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A visão do Departamento e do Instituto de Psiquiatria do HCFM USP EDITORES
ED ITORES DE ÁREA
Euripedes Constantino Miguel Valentim Gentil Wagner Farid Gattaz
Cássio M. C. Bottino Hermano Tavares Orestes V. Forlenza Renerio Fraguas Jr. Sandra Scivoletto Táki Athanássios Cordás
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Editores
Editores de Área
Euripedes Constantino Miguel Valentim Gentil Wagner Farid Gattaz
Cássio M. C. Bottino Hermano Tavares Orestes V. Forlenza Renerio Fraguas Jr. Sandra Scivoletto Táki Athanássios Cordás
Manole
© Editora Manole Ltda., 2011, por meio de contrato com a Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Logotipos © Hospital das Clínicas - FMUSP © Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo © Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP
Capa: Hélio de Almeida Imagem da capa: Sirio José Braz Cançado Ilustrações: Sirio José Braz Cançado e Departamento Editorial da Editora Manole Editoração eletrônica: Azza Graphstudio Ltda., Luargraf Serviços Gráficos e JLG Editoração Gráfica Este livro contempla as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Clínica psiquiátrica I editores Euripedes Constantino Miguel, Valentim Gentil, Wagner Farid Gattaz. - Barueri, SP : Manole, 2011. Vários autores. Bibliografia. ISBN 978-85-204-3440-6 1. Psicologia clínica 2. Psiquiatria L Miguel, Euripedes Constantino. II. Gentil, Valentim. III. Gattaz, Wagner Farid. CDD-616.89 11 -02761 NLM-WM 100
Índices para catálogo sistemático: 1. Psiquiatria : Aspectos clínicos : Medicina 616.89
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permissão expressa dos editores. É proibida a reprodução por xerox. A Editora Manole é filiada à ABDR Associação Brasileira de Direitos Reprográficos. Editora Manole Ltda. Av. Ceci, 672 - Tamboré 06460-120 - Barueri - SP - Brasil Tel.: (11) 4196-6000 - Fax: (11) 4196-6021 www.manole.com.br
[email protected] Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Foram feitos todos os esforços para se conseguir a cessão dos direitos autorais das imagens aqui reproduzidas, bem como a citação de suas fontes. Os gráficos contidos nesta obra foram em sua maioria ilustrados pelo artista Sirio José Braz Cançado. Caso algum autor sinta-se prejudicado, favor entrar em contato com a editora.
A Medicina é uma área do conhecimento em constante evolução. As precauções de segurança padronizadas devem ser seguidas, porém novas pesquisas e experiências clínicas podem merecer análises e revisões. Alterações em tratamentos medicamentosos ou decorrentes de procedimentos tornam-se necessárias e adequadas. Os leitores são aconselhados a conferir as informações sobre produtos fornecidas pelo fabricante de cada medicamento a ser administrado, verificando a dose recomendada, o modo e a duração da administração, bem como as contraindicações e os efeitos adversos dos medicamentos. É responsabilidade do médico, com base na sua experiência e no conhecimento do paciente, determinar as dosagens e o melhor tratamento aplicável a cada situação. Nem os editores ou os autores assumem responsabilidade por quaisquer prejuízos ou lesões a pessoas ou propriedades.
Editores
Euripedes Constantino Miguel Professor Titular do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Chefe do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Valentim Gentil Professor Titular de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Wagner Farid Gattaz Professor Titular e Presidente do Conselho Diretor do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
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Editores de Area
Cássio Machado de Campos Bottino Livre-Docente do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenador do Programa Terceira Idade do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Hermano Tavares Livre-Docente do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenador do Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Orestes V. Forlenza Professor Associado do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Vice-Diretor do Laboratório de Neurociências do Departamento e Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Renerio Fraguas Jr. Professor Livre-Docente do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenador do Grupo de Interconsulta Hospitalar do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Sandra Scivoletto Professora de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Docente responsável pelo Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenadora do Programa Equilíbrio, destinado a crianças e adolescentes em situação de risco e vulnerabilidade social. Táki Athanássios Cordás Professor Colaborador do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenador da Assistência Clínica do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenador do Programa Transtornos Alimentares (AMBULIM) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Revisores Científicos
Ana Gabriela Hounie
Júlio Reno Sawada
Psiquiatra. Doutora em Ciências pela FMUSP. Pesquisadora do Projeto Transtornos do Espectro Obsessivo Compulsivo (PROTOC) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Graduado em Medicina pela FMUSP. Residência Básica em Psiquiatria e Adicional em Infância e Adolescência no HCFMUSP. Médico Preceptor do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência (SEPIA) do Instittuto de Psiquiatria do HCFMUSP.
André Castilho Valim
Psiquiatra Especialista em Psiquiatria Forense pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Daniel Lucas Conceição Costa
Psiquiatra. Ex-preceptor da Graduação do Departamento de Psiquiatria da FMUSP (2010). Pesquisador do Projeto Transtornos do Espectro Obsessivo Compulsivo (PROTOC) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Fabiana Meira Guimarães
Psiquiatra com Especialização em Psiquiatria da Infância e Adolescência pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Milena Gross de Andrade
Graduada em Medicina pela FMUSP. Médica Preceptora do Programa de Residência Médica em Psiquiatria do Departamento e Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Especialista em Psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Saulo Vito Ciasca
Graduado em Medicina pela FMUSP. Médico Preceptor do Programa de Residência Médica em Psiquiatria do Departamento e Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Autores Adriana B. Pillegi de Oliveira Psiquiatra Colaboradora do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Adriana Bastos Conforto Neurologista. Livre-Docente do Departamento de Neurologia. Médica Assistente da Divisão de Clínica Neurológica do HCFMUSP. Pesquisadora do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein. Adriana Regina Ferreira Marciano Psiquiatra de Infância e Adolescência. Supervisara de Residentes de Psiquiatria Infantil do Hospital Universitário da FMUSP. Preceptor da Graduação do Curso de Psiquiatria Clínica da FMUSP. Mestrado em Psiquiatria pela FMUSP. Alberto Queiroz Farias Professor-Doutor do Departamento de Gastroenterologia da FMUSP. Coordenador Clínico da Equipe de Transplante de Fígado do HCFMUSP. Membro Titular da Sociedade Brasileira de Hepatologia (SBH). Albina Rodrigues Torres Professora do Departamento de Neurologia, Psicologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Alexandra Martini de Oliveira Diretora do Serviço de Terapia Ocupacional do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Alexandre Andrade Loch Pesquisador do Núcleo de Epidemiologia do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Diretor Técnico de Serviço de Saúde do Hospital Psiquiátrico Felipe Pinel (HPP). Alexandre Pinto de Azevedo Psiquiatra. Coordenador do Grupo de Estudos em Comer Compulsivo e Obesidade (GRECCO) do Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Mestre pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Alexandre Saadeh Psiquiatra e Psicodramatista. Doutor em Ciências pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenador doAmbulatório de Transtornos de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS) do NUFOR do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Professor Doutor do Curso de Psi-
cologia da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). ,
Alvaro Pentagna Neurologista. Médico Colaborador do Laboratório de Neurofisiologia Clínica. Amrapali Zaveri Graduação em Zoologia pela Pune University, India. Mestrado em Bioinformática pela Sikkim Manipal University, India. Doutoranda em Ciências da Computação pela University of Leipzig, Germany. Ana Claudia Andrade West Psicóloga. Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Formada em Psicoterapia Interpessoal pelo Western Psychiatric Institute and Clinic, University of Pittsburgh School of Medicine. Membro da Sociedade Internacional de Psicoterapia Interpessoal (isi PT). Ana Cristina Gargano Nakata Psiquiatra. Colaboradora do Serviço de Interconsultas do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Residência em Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Graduação em Medicina pela FMUSP. Ana Gabriela Hounie Psiquiatra. Doutora em Ciências pela FMUSP. Pesquisadora do Projeto Transtornos do Espectro Obsessivo Compulsivo (PROTOC) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Ana Kleinman Psiquiatra da Infância e Adolescência. Pós-graduação em Psiquiatria da Infância e Adolescência pelo Institute of Psychiatry, King's College London. Médica Pesquisadora do Programa de Transtorno Bipolar (PROMAN) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Ana Maria Cavalcante Lefêvre Graduada em Ciências Biológicas, em Ciências de Primeiro Grau pelo Instituto de Biociências da USP. Especialista em Educação em Saúde. Mestre e Doutora em Saúde Pública pela USP. Criadora da Metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo e dos Softwares Qualiquantisoft e Qlqt online. Sócia Administradora e Pesquisadora do Instituto de Pesquisa do Sujeito Coletivo.
AUTORES
Ana Paula Bonilauri Ferreira Graduação em Odontologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Mestrado em Odontologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutoranda em Odontologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Ana Taveira Psiquiatra. Mestre em Ciências pelo Departamento e Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. André Castilho Valim Psiquiatra. Especialista em Psiquiatria Forense pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. André Felix Gentil Neurocirurgião do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein (IIEPAE). Doutorando pela FMUSP. André Malbergier Professor Colaborador do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas ( GREA) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Mestre em Saúde Pública pela Universidade de Illinois em Chicago. André Mata Coordenador do Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz- FMUSP. Professor de pós-graduação do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP. Doutor em História pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Pós-Doutor em História das Práticas Médicas pelo Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP. André Russowsky Brunoni Psiquiatra pelo HCFMUSP. Pós-doutorando pelo Núcleo de Neurociências e Comportamento do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) . Coordenador Clínico do Projeto SELECT-TDCS: Pesquisa Clínica com Estimulação Transcraniana por Corrente Contínua e Sertralina para o tratamento da depressão, desenvolvido no Hospital Universitário da FMUSP. André Seixas Psiquiatra. Pós-graduando do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Andrea Horvath Marques MD, PhD. Research Fellow Genetic Epidemiology Research Branch, National Institute of Mental Health, National Institute of Health, Bethesda, MD, USA. Andrea P. Jackowski Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Psiquiatria do Desenvolvimento para Infância e Adolescência (INCT-INPD, CNPq). Laboratório Interdisciplinar de Neurociências Clínicas (LiNC). Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo.
Andréia de Fátima Nascimento Professora Colaboradora do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Coordenadora da Unidade de Avaliação de Tecnologias em Saúde do Instituto de Educação e Ciências do Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Anna Cláudia Dominguez Alves Graduanda de Medicina pela FMUSP. Anna Maria Andrei Doutora em Medicina pela FMUSP. Anny de Mattos Barroso Maciel Psiquiatra do Programa de Transtornos Alimentares (AMBULIM) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Antonio Carlos Lopes Médico residente em Psiquiatria pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM Unifesp). Antonio de Pádua Serafim Psicólogo e Neuropsicólogo. Doutor pela FMUSP. Coordenador Geral do Programa de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica (NUFOR). Psicólogo Supervisor do Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Ariel Bogochvol Psiquiatra e Psicanalista. Supervisor do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenador do curso para a formação do Instituto da Psicanálise Lacaniana. Coordenador do Núcleo de Pesquisas de Psicopatologia e Psicanálise do Instituto de Psiquiatria do HC/IPLA. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. Arthur Guerra de Andrade Professor Associado do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Professor Titular do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do ABC. Bacy Fleitlich-Bylyk Psiquiatra. Doutora em Psiquiatria da Infância pelo King's College, Universidade de Londres. Coordenadora do Projeto de Assistência, Ensino e Pesquisa em Transtornos Alimentares na Infância e Adolescência do Instituto de Psiquiatria da FMUSP. Chefe da Enfermaria de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Beny Lafer Professor Associado do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria da FMUSP. Coordenador do Programa de Transtorno Bipolar (PROMAN) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Bernardo de Mattos Vianna
Camila Muniz de Souza Pedro
Médico Residente de Psiquiatria Geriátrica do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Médica Residente em Psicogeriatria pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Bianca Boura Bellini
Camila Tarif Ferreira Folquitto
Psiquiatra. Especialização em Psiquiatria pela Universidade Paris VII. Médica Assistente e Pesquisadora do Serviço de EMT do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Psicóloga. Graduada e Mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Doutoranda do IPUSP. Realiza pesquisas sobre o desenvolvimento psicólogico da criança e transtornos na infância e adoles• • cenCia.
Breno Satler de Oliveira Diniz
Psiquiatra. Coordenador do Ambulatório de Psicogeriatria do LIM-27, Departamento e Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Doutorando pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Bruna Bartorelli
Médica Assistente do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenadora do Ambulatório de Transtornos Somatoformes (SOMA). Supervisara do Grupo de Interconsultas e da Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Bruno Henrique Machado
Psiquiatra formado pela FMUSP. Residência Médica no Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Supervisor no Ambulatório Didático do Programa Interdisciplinar de Álcool e Drogas (GREA) no Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Bruno Mendonça Coêlho
Formado em Medicina p ela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Membro da Seção de Suicidiologia da Associação Mundial de Psiquiatrias. Formado em Psiquiatria pela FMUSP e pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp). Coordenador do Ambulatório de Psiquiatria da Infância e Adolescência (APIA) da Faculdade de Medicina do ABC. Coordenador Técnico da Unidade de Saúde da Criança e do Adolescente (USCA) de São Caetano do Sul. Pesquisador do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Candida Helena Pires de Camargo
Psicóloga Especialista em Neuropsicologia e Psicologia Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia. Coordenadora da Neuropsicologia e Reabilitação Neuropsicológica do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Diretora do Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Carla Cristina Adda
Psicóloga Especialista em Neuropsicologia. Doutoranda em Ciências pelo Departamento de Neurologia da FMUSP. Neuropsicóloga da Divisão de Psicologia do Instituto Central do HCFMUSP. Carlos Alberto de Bragança Pereira
Professor Titular de Estatística do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP). Chefe do D epartamento de Estatística da Universidade de São Paulo. Carlos Ewerton Maia Rodrigues
Graduação em Medicina pela Universidade Federal do Ceará. Residência em Clínica Médica e em Reumatologia no Hospital Geral de Fortaleza. Título de Especialista em Reumatologia. Médico Intensivista da Secretaria de Saúde do Estado (SESA) e da Cooperativa de Médicos Intensivistas do Ceará. Doutorando em Ciências Médicas (Processos Imunes e Infecciosos) pela FMUSP.
Camila Luisi Rodrigues
Carlos Gustavo Mansur
Psicóloga Colaboradora do Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Psicóloga Colaboradora do Ambulatório de Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (ATODAH) e do Ambulatório de Transtorno de Ansiedade na Infância e na Adolescência (AMBULANSIA) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Psiquiatra. Doutor em Ciências pelo D epartamento de Psiquiatria da FMUSP. Médico Pesquisador do Serviço de EMT e Médico Assistente do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Camila Magalhães Silveira
Doutora pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Psiquiatra da Unidade de Dependência Química do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Pesquisadora do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica do Departamento e Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Carlos Vicente Serrano Jr.
Professor Livre-Docente pela FMUSP. Médico Assistente da Unidade Clínica de Coronariopatia Aguda do Instituto do Coração (InCor) do HCFMUSP. Carmen Lucia Albuquerque de Santana
Psiquiatra e Arteterapeuta. Mestre em Psiquiatria pela FMUSP. Doutora em Ciências pela FMUSP. Pesquisadora do grupo de Epidemiologia Psiquiátrica (Diretório do CNPq-FMUSP).
AUTORES
Carmita Helena Najjar Abdo Psiquiatra. Livre-Docente e Professora Associada do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Fundadora e Coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Carolina Cappi Bióloga. Mestre em Biologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Doutoranda do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Carolina Zadrozny Gouvêa da Costa Mestre pelo D epartamento de Psiquiatria da FMUSP. Psiquiatra da Infância e Adolescência. Médica do Programa de Transtornos de Ansiedade na Infância e Adolescência do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência (SEPIA) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Carolina Mello-Santos Psiquiatra Colaboradora do Serviço de Interconsultas do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Carolina Demarchi Munhoz Professora Doutora do Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). Carolina Martins do Prado Doutoranda em Ciências pelo Instituto de Psiquiatria da FMUSP. Cássio Machado de Campos Bottino Livre-Docente do Departamento de Psiquiatria da FMUSP e Coordenador do Programa Terceira Idade do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Christina Hajaj Gonzalez Psiquiatria. Doutora em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Coordenadora do Projeto Distúrbio Obsessivo Compulsivo (PRODOC) da Unifesp. Clarice Gorenstein Professora Associada do Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). Pesquisadora do Lim-23, Laboratório de Psicofarmacologia do HCFMUSP. Claudio Cohen Psiquiatra. Professor Associado da FMUSP. Presidente da Comissão de Bioética do HCFMUSP. Membro da Câmara Técnica de Saúde Mental do CREMESP. Clovis Alexandrino Silva Jr. Médico Pesquisador do NEP do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Responsável pela parte de Transtornos do Humor em Idosos do São Paulo Megacity. Residência Médica em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina do ABC. Coordenador do Serviço de Emergências Psiquiátricas do Centro Hospitalar do Município de Santo André, ligado à Faculdade de Medicina do ABC. Médico Pesquisador e Colaborador das Disciplinas de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Medicina do ABC. Cristiana Castanho de Almeida Rocca Psicóloga Supervisara do Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Doutora e Mestre em Ciências pela FMUSP. Psicóloga Colaboradora do Proj eto de Pesquisa em Transtorno Bipolar e do Ambulatório de Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Chei Tung Teng Médico Coordenador do Serviço de Interconsultas do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Diretor Clínico da Clínica de Ansiedade e Depressão ( CLIAD).
Cristiane Maluhy Gebara Psicóloga. Docente do curso ''Aprimoramento em Terapia Comportamental Cognitiva em Saúde Mental" do Programa de Ansiedade (AMBAN) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Especialista em Medicina Comportamental pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Christian César Cândido de Oliveira Fonoaudiólogo do Programa Equilíbrio do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Doutor em Ciências pelo Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da FMUSP.
Cristina Belotto da Silva Psicóloga Clínica. Doutora em Ciências pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP.
Christian Costa Kieling Graduação em Medicina, Mestrado em Psiquiatria e doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduação em Comunição Social - Jornalismo pela UFRGS. Residência Médica em Psiquiatria no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Editor associado da Revista Brasileira de Psiquiatria (RBP). Membro do Advisory Board do Movement for Global Mental Health (MGMH). Consultor do Comitê de Publicações da Associação Mundial de Psiquiatria (WPA).
Cristina Emiko lgue Mestre em Enfermagem. Diretora da Divisão de Enfermagem do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Daniel Fuentes Psicólogo Especialista em Neuropsicologia pelo Conselho Federal de Psicologia. Doutor pela FMUSP. Diretor do Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
XIII
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XIV
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Daniel Martins de Barros Psiquiatra. Doutorando pela FMUSP. Coordenador da Sessão de Psiquiatria Forense do Programa de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Daniela Meshulam Werebe Médica Supervisara do Ambulatório de Somatização do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Médica Assistente do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Pertence à Sociedade Brasileira de Psicanálise. Médica do Hospital Israelita Albert Einstein. Daniela Zippin Knijnik Psiquiatra pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Clínica Médica pela UFRGS. Doutora em Psiquiatria pela UFRGS. Médica colaboradora do Pro grama de Transtornos de Ansiedade (PROTAN) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Formação em Terapia Cognitiva no Beck Institute, Philadelphia. Membro Fundador da Academy of Cognitive Therapy (ACT). Danielle Soares Bio Psicóloga Clínica e Neuropsicóloga. Mestre em Ciências. Danilo Antonio Baltieri Mestre e Doutor em Medicina pelo D epartamento de Psiquiatria da FMUSP. Professor Assistente de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do ABC. Pesquisador do Grupo In terdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Danilo Fonseca Maia Neurologista. Médico Colaborador do Laboratório de Neurofisiologia Clínica. Danyella de Melo Santos Psicóloga clínica e hospitalar. Doutora pela FMUSP. Responsável pela assistência psicológica na clínica de Reumatologia do HCFMUSP. Colaboradora do Grupo de Interconsulta Hospitalar do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Débora Luciana Melzer-Ribeiro Médica Supervisara do Ambulatório de Interconsultas do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Médica do Serviço de Terapias Biológicas (ECT) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Mestranda do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Débora Pastare Bassitt Doutora em Ciências pela FMUSP. Médica Assistente Comissionada do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenadora da Enfermaria de Geriatria do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Dimple Rajgor Graduação em Microbiologia pela University of Mumbai, Índia. Mestrado em Biologia Aplicada pela University of Mumbai, Índia. Doutoranda em Biologia Aplicada . Dnyelle Souza Silva Mestre em Ciências pela FMUSP. Psicóloga da Divisão de Psicologia do Instituto Central do HCFMUSP. Psicóloga Colaboradora do Serviço de Transplante Renal do HCFMUSP. Doris Hupfeld Moreno Médica Pesquisadora do Grupo de Estudos de Doenças Afetivas (GRUDA) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Médica Assistente do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Douglas Motta Calderoni Médico Colaborador do Ambulatório de Interconsultas do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Edith Lauridsen-Ribeiro Pediatra pela FMUSP. Especialista em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes (GEPPPI). Doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP). Edson Shiguemi Hirata Doutor em Psiquiatria pela FMUSP. Diretor da Divisão Médica do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Eduardo de Castro Humes Psiquiatra pelo D epartamento de Psiquiatria da FMUSP e pela ABP/AMB. Médico Assistente do Hospital Universitário da FMUSP e do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Eduardo Genaro Mutarelli Professor do Departamento de Neurologia da FMUSP. Neurologista da Clínica DFVNEURO e do Hospital Sírio Libanês. Colaborador do Ambulatório de Transtornos Somatoformes do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Associado da American Academy of Neurology. Eduardo Wagner Aratangy Médico Supervisor do AMBULIM do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Administrador do Serviço de Eletroconvulsoterapia (ECT) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Eliana Curátolo Especialista em Psiquiatria da Infância e Adolescência pela Associação Brasileira de Psiquiatria. Mestre em Psiquiatria Infantil pelo Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo. Coordenadora do Ambulatório de Psicose na Infância do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência (SEPIA) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
AUTORES
Elias Carvalho Graduação em Tecnologia em Processamento de Dados pelas Faculdades Associadas de São Paulo. Mestrado em Computação p ela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Elida Paula Benquique Ojopi Doutora em Ciências Biológicas (Genética) pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho. Elisa Brietzke Psiquiatra. Mestre em Ciências Médicas. Doutora em Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do Programa de Transtorno Bipolar (PROMAN) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Emanoella Faro de Oliveira Neurologista Infantil. Médica Estagiária do Serviço de Neurofisiologia Clínica do Instituo de Psiquiatria do HCFMUSP. A
Enio Roberto de Andrade Psiquiatra da Infância e Adolescência. Mestre em Psiquiatria pela FMUSP. Diretor do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenador do Ambulatório de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Eric Cretaz Médico Assistente do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Erich Talamoni Fonoff Médico Neurocirurgião Assistente da Divisão de Neurocirurgia Funcional do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenador do Grupo de Neurocirurgia Funcional da Disciplina de Neurocirurgia do Departamento de Neurologia da FMUSP. ,
Erico de Moura Silveira Jr. Psiquiatra pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Psiquiatria pela UFRGS. Esther M. Sternberg Chief, Section on Neuroendocrine Immunology and Behavior, National Institute of Mental Health, National Institutes ofHealth (NIH). Director, Integrative Neural Immune Program, NIH. Euripedes Constantino Miguel Professor Titular e Chefe do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Euthymia B. A Prado Psiquiatra. Doutora em Medicina pela FMUSP. Colaboradora do Programa de Atendimento e Pesquisa em Violência (PROVE) do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Eva Helena C. C. Zoppe Médica do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Fabiana Saffi Psicóloga Clínica e Forense. Mestre em Ciências pela FMUSP. Especialista em Psicologia Jurídica e em Avaliação Psicológica e Neuropsicológica. Psicóloga do Serviço de Psicologia e Neuropsicologia e do Projeto de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Fabiano Gonçalves Nery Psiquiatra. Mestre e Doutor em Ciências pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Supervisor da Residência Médica na Enfermaria de Ansiedade e Depressão (EAND) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Pesquisador Colaborador do Programa de Transtorno Bipolar (PROMAN) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Fabiele Maidel Fritzen Médica Residente do Departamento de Psiquiatria do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Fabio Armentano Psiquiatra. Estagiário do Programa Terceira Idade (PROTER) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Fábio Corregiari Psiquiatra. Doutor p elo D epartamento de Psiquiatria da FMUSP. Médico Pesquisador do Programa de Ansiedade (AMBAN) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Fabio Pinato Sato Médico Colaborador e Supervisor do Ambulatório de Transtornos Invasivos do Desenvolvimento do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP Fábio Tápia Salzano Mestre em Psiquiatria pela FMUSP. Vice-Coordenador do Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenador do Hospital Dia do Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Felipe Corchs Médico assistente do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Doutorado pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenador do Programa de Análise do Comportamento para Residentes em Psiquiatria da FMUSP. Fernanda Pisciolaro Nutricionista Clínica. Coordenadora da Equipe de Nutrição do Grupo de Estudos de Comer Compulsivo e Obesidade (GRECCO) do Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Especialista em Distúrbios Metabólicos e Risco Cardiovascular - CÉU.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Fernando Lefêvre Graduação em Pedagogia pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Semiótica pela Universidade de ParisSorbonne . Doutorado em Saúde Pública pela USP. Professor Titular da USP. Assessor do Instituto de Pesquisa do Discurso do Sujeito Coletivo. Criador, com Ana Maria Cavalcanti Lefevre, da técnica de processamento de depoimentos em pesquisas de opinião, chamada Discurso do Sujeito Coletivo, bem como dos softwares Qualiquantisof e QlQt On line, todos desenvolvidos na USP. Fernando Ramos Asbahr Médico Pesquisador do Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Flávio Aloé Médico Neurologista e Neurofisiologista Clínico. Médico Assistente do Centro Interdepartamental para Estudos do Sono do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Flávio Kapczinski Psiquiatra. Doutor em Psiquiatria. Professor Adjunto do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenador do Laboratório de Psiquiatria Molecular do Centro de Pesquisas do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Pesquisador lA do CNPq. Flávio Shansis Psiquiatra. Mestre em Bioquímica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenador do Programa de Pesquisa e Ensino em Transtornos do Humor (PROPESTH) no Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP). Professor da Residência em Psiquiatria do HPSP. Francisco Baptista Assumpção Jr. Livre-Docente da FMUSP. Professor Associado do Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo. Membro da Academia Paulista de Psicologia.
Frederico Navas Demétrio Coordenador do Ambulatório Didático do Grupo de Estudos de Doenças Afetivas (GRUDA) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Supervisor da Enfermaria de Ansiedade e Depressão (EAND) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Gabriel Rodrigo Fries Biomédico. Mestre em Bioquímica. Doutorando em Ciências Biológicas (Bioquímica) na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisador do Laboratório de Psiquiatria Molecular do Centro de Pesquisas do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Gabriela Delevati Colpo Farmacêutica. Doutoranda em Ciências Médicas - Clínica Médica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do Laboratório de Psiquiatria Molecular do Centro de Pesquisas do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Geraldo Busatto Filho Professor Associado do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Geraldo Gomes Serra Professor Doutor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Gilberto D'Eiia Médico e Professor Adjunto das Disciplinas de Psiquiatria e Psicologia da Faculdade de Medicina do ABC. Doutor pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Giovanna Kliemann Scarpari Psicóloga aprimoranda do serviço de Psicologia e Neuropsicologia do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Francisco Bevilacqua Guarniero Psiquiatra formado pela FMUSP.
Gizela Turkiewicz Psiquiatra, com área de atuação na Infância e Adolescência, pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Pós-graduanda pela FMUSP.
Francisco Lotufo Neto Psiquiatra. Professor do Departamento de Psiquiatria da FMUSP.
Graça Maria Oliveira Psicóloga Supervisara do Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Franklin Santana Santos Geriatra. Doutor em Medicina pela FMUSP. Pós-Doutor em Psicogeriatria pelo Karolinska Institutet - Suécia. Pesquisador Colaborador do LIM-27 e do Departamento e Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Guilherme Cunha Graduação em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestrado em Ciências Biológicas (Fisiologia e Farmacologia) pela UFMG.
Frederico Camelo Leão Psiquiatra. Mestrado pela FMUSP. Doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Guilherme Funaro Psiquiatra, Psicanalista e Psicoterapeuta.
AUTORES
Guilherme Vanoni Polanczyk Professor do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Psiquiatria do Desenvolvimento para Infância e Adolescência (INCT-INPD, CNPq). Gustavo Bonini Castellana Formado pela Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA). Especialista em Psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria e em Psiquiatria Forense pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Médico do Programa de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica (NUFOR) e integra a equipe do Programa de Atenção à Saúde Mental do Jovem Infrator da Fundação Casa - SPt . Gustavo Gil Alarcão Psiquiatra e Psicanalista. Especialista em Psicoterapia pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Helena Brentani Médica Psiquiatra. Professora Doutora do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Helena Passarelli Giroud Joaquim Mestranda em Ciências pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Helio Elkis Professor Associado do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenador do Programa de Esquizofrenia (PROJESQ) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Presidente do Centro de Apoio a Pesquisa ( CEAPESQ) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Helmut Heinsen Médico Neuroanatomista. Chefe do Laboratório de Pesquisa em Morfologia Cerebral da Clínica de Psiquiatria da Universidade de Wuerzburg, Alemanha. Hercilio de Oliveira Jr. Médico Psiquiatra. Mestre em Ciências pela FMUSP. Hermano Tavares Livre-Docente do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenador do Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Hewdy Lobo Ribeiro Psiquiatra Colaborador do ProMulher do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Psicogeriatra e Psiquiatra Forense pela ABP. Médico Nutrólogo pela ABRAN. Homero P. Vallada Professor Associado do Departamento de Psiquiatria da FMUSP.
llza Marlene Kuae Fukuda Professora Doutora pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. lsabela Martins Bensenor Médica do HCFMUSP. Doutora em Clínica Médica pela FMUSP. Professora Associada da FMUSP. Ivan Aprahamian Geriatra. Mestre em Gerontologia pela Unicamp. Assistente Clínico do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Doutorando do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. lvson Tassell Médico do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Jacson Barros Graduação em Engenharia Elétrica pela Faculdade de Engenharia de São Paulo. Mestrado em Medicina Preventiva pela FMUSP. Jair C. Soares Professor Titular e Chefe do Departamento de Psiquiatria e Ciências do Comportamento da Universidade do Texas, Houston. Jatin Shah Graduação em Cirurgia e Medicina Ayurvedica pela Maharashtra University of Health Sciences, Índia. Jefferson C. Folquitto Psiquiatra. Pesquisador do Programa Terceira Idade (PROTER) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Doutorando em Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Jimena Barriviera Médica Colaboradora do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. João M. C. Maia Médico Preceptor das Disciplinas de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Medicina do ABC. Médico Assistente do Corpo Clínico do Hospital Israelita Albert Einstein. Médico Colaborador do Ambulatório de Tabagismo do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Joel Rennó Jr. Doutor em Medicina pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Médico Assistente do Instituto e Departamento de Psiquiatria do HCFMUSP. Diretor do Programa de Saúde Mental da Mulher (Pro Mulher) do Instituto e Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Jônia Lacerda Felício Diretora do Serviço de Psicologia e Neuropsicologia. Doutorada em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Diretora do Serviço de Psicologia
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e Neuropsicologia do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenadora do Curso de Psicologia do Centro Universitário São Camilo - SP.
cia no HCFMUSP. Médico Preceptor do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência (SEPIA) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
José Antonio de Mello Siqueira Amaral Psiquiatra. Colaborador e Pesquisador do Projeto de Transtorno Bipolar (PROMAN) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Mestre em Medicina pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP.
Karla Mathias de Almeida Psiquiatra Colaboradora e Pesquisadora do Programa de Transtorno Bipolar (PROMAN) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Mestre em Saúde Comunitária pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. Doutora em Ciências pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP.
José E. R. de Aguiar Especialista em Psiquiatria pela ABP. Especialista em Dependência Química pela Unifesp. José Gallucci Neto Mestre em Psiquiatria pela FMUSP. Médico Assistente e Chefe da Enfermaria Metabólica do Instituto de Psiquiatria do do HCFMUSP. Coordenador da Residência Médica do Instituto Bairral de Psiquiatria. José Luiz Pacheco Psiquiatra pela ABP/AMB e CFM. Médico Assistente do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenador do Serviço de Psiquiatria do Hospital Universitário da FMUSP. Jouce Gabriela Almeida Enfermeira. Diretora Técnica do Serviço de Saúde do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Mestre em Enfermagem pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Jozélio Freire de Carvalho Livre-Docente pelo Departamento de Clínica Médica da FMUSP. Coordenador do Ambulatório de Síndrome Antifosfolípide do HCFMUSP. Julian F. Thayer The Ohio Eminent Scholar Professor in Health Psychology The Ohio State University. Juliana Belo Diniz Graduação em Medicina pela FMUSP. Residência em Psiquiatria no Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Doutoranda pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Juliana de Oliveira Barros Mestre em Ciências pela FMUSP. Terapeuta Ocupacional do Laboratório de Investigação e Intervenção em Saúde e Trabalho (LIIST) do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da FMUSP.
Kette Dualibi Ramos Valente Neurologista e Neurofisiologista. Doutora em Neurologia pela FMUSP. Diretora do Laboratório de Neurofisiologia Clí. mca. Laura Helena Silveira Guerra de Andrade Psiquiatra formada pela FMUSP. Doutora em Psiquiatria pela FMUSP. Pós-doutorado pela Jonhs Hopkins University, School of Public Health. Coordenadora do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Professora Colaboradora Médica do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Laura Stertz Biomédica. Doutoranda em Ciências Biológicas (Bioquímica) na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do Laboratório de Psiquiatria Molecular do Centro de Pesquisas do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Lea Tenenholz Grinberg Médica neuropatologista. Doutora em Ciências pelo Departamento de Patologia da FMUSP. Diretora do Banco de Encéfalos Humanos do Grupo de Estudos em Envelhecimento Cerebral da FMUSP. Professora Assistente do Departamento de Neurologia da Universidade da Califórnia em São Francisco. Codiretora do Capítulo de Cérebros da Human Proteomics Organization (HUPO) Leandro Fernandes Malloy-Diniz Psicólogo. Doutor em Farmacologia Bioquímica e Molecular pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais.
Juliano Souza Mestre em Ciências pela FMUSP.
Leandro da Costa Lane Valiengo Médico graduado pela FMUSP. Residência em Psiquiatria pela FMUSP. Médico Colaborador do Projeto de Epilepsia e Psiquiatria (PROJEPSI) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Júlio Renó Sawada Graduado em Medicina pela FMUSP. Residência Básica em Psiquiatria e Residência Adicional em Infância e Adolescên-
Leda Leme Talib Doutoranda em Ciências pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
AUTORES
Lee Fu-I Psiquiatra da Infância e Adolescência. Doutora em Psiquiatria pela FMUSP. Médica Assistente do Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Responsável Geral do Programa de Atendimento aos Transtornos Afetivos (PRATA) no mesmo serviço. Supervisara de Médicos Residentes de Psiquiatria da Infância e Adolescência. Lena Nabuco de Abreu Psiquiatra. Colaboradora e Pesquisadora do Programa de Transtorno Bipolar (PROMAN) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenadora do Ambulatório de Transtornos de Humor e Ansiedade da Faculdade de Medicina do A BC.
Leon de Souza Lobo Garcia Psiquiatra e Escritor. Médico do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Leonardo F. Fontenelle Professor Adjunto do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Instituto de Saúde da Comunidade da Universidade Federal Fluminense. Coordenador do Setor de Obsessões e Compulsões do Programa de Ansiedade e Depressão do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB-UFRJ). Letícia Maria Furlanetto Professora Associada de Psiquiatria do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordenadora do Laboratório de Estudos dos Transtornos do Humor (LETH-UFSC). Líder do Grupo de Pesquisas (CNPq): "Morbidade Psiquiátrica em Pacientes Internados no Hospital Geral'~ Lia Arno Fiare Neurologista e Neurofisiologista. Mestre em Neurologia pela FMUSP. Médica Assistente do Laboratório de Neurofisiologia Clínica. Ligia lto Psicóloga Clínica. Doutoramento pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade de Londres. Liliana Marchetti Psicóloga Clínica e Hospitalar. Terapeuta Familiar e Comunitária. Coordenadora do TCendo-SP Ensino e Desenvolvimento. Psicóloga do Projeto de Epilepsia e Psiquiatria (PROJEPSI) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Lívia Emy Fukuda Médica Residente do Departamento de Psiquiatria do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Luciana Cofiel Graduação em Fisioterapia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Mestrado em Ciências Fisiológicas pela UFSCar. Doutorado em Fisioterapia pela UFSCar. Luciana Archetti Conrado Mestre em Dermatologia pela FMUSP. Doutora em Ciências da Saúde pela FMUSP. Especialização em Psicossomática pelo Instituto Sedes Sapientiae - São Paulo. Luciana R. O. Cardoso Psicóloga. Especialista em Terapia Comportamental pela Universidade de São Paulo. Mestre em Psicologia Experimental pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Psicóloga Pesquisadora do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Luciana de Carvalho Monteiro Psicóloga Supervisara do Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Mestre em Ciências pela FMUSP. Psicóloga Colaboradora do Projeto Déficit de Atenção/Hiperatividade em Adultos (PRODATH) e do Projeto Esquizofrenia (PROJESQ) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Luciane de Fátima Viola Ortega Neuropsicóloga. Mestre em Ciências pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Pesquisadora Colaboradora doAmbulatório Jundiaí 80+. Professora do Curso de Especialização em Geriatria e Gerontologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí (FMJ). Luciene Angélica Mendes Promotora de Justiça Criminal do Ministério Público do Estado de São Paulo. Luciene Stivanin Fonoaudióloga do Programa Equilíbrio do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Doutora em Ciências pelo Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da FMUSP. Luisa Terroni Psiquiatra do Grupo de Interconsultas do Departamento e Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Doutora em Ciências pela FMUSP. Luiz Kobuti Ferreira Psiquiatra. Pós-Graduando do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Luis Augusto Rohde Professor Associado do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Colaborador da Pós-Graduação em Psiquiatria da USP. Coordenador do Programa de TDAH do Hospital das Clínicas de Porto Alegre (HCPA) da UFRGS.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Luiz Teixeira Sperry Cezar Médico Assistente do Instituto de Infectologia Emílio Ribas. Médico Pesquisador do Grupo de Interconsulta Hospitalar do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Luiz Vicente Figueira de Mello Médico Assistente do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Lyssandra S. Tascone Doutoranda em Psiquiatria da FMUSP. Psiquiatra Colaboradora do Programa Terceira Idade (PROTER) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Maguida Costa Stefanelli Professora Titular e Doutora pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Manoel Jacobsen Teixeira Professor Titular da Disciplina de Neurocirurgia do Departamento de Neurologia da FMUSP. Mara Cristina Souza de Lucia Psicóloga e Psicanalista. Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Psicologia Clínica e Psicologia Hospitalar pelo CFP. Diretora da Divisão de Psicologia do Instituto Central do HCFMUSP. Orientadora do Programa de Pós-graduação em Neurologia da FMUSP. Presidente do Centro de Estudos em Psicologia da Saúde (CEPSIC). Marcelo Biondo Médico Psiquiatra. Residente Infantil no Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Marcelo Q. Hoexter Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Psiquiatria do Desenvolvimento para Infância e Adolescência (INCT-INPD, CNPq). Laboratório Interdisciplinar de Neurociências Clínicas (LiNC), Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Márcia Morikawa Psiquiatra da Infância e Adolescência. Colaboradora do Ambulatório de Transtornos de Ansiedade na Infância e Adolescência do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência (SEP IA) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Psiquiatra da Unidade de Internação do Polo de Atenção Intensiva em Saúde Mental da Zona Norte - Conjunto Hospitalar do Mandaqui. Márcio Bernik Psiquiatra. Doutor pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenador do Programa de Ansiedade (AMBAN) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Márcio Eduardo Bergamini Vieira Psiquiatra pela FMUSP. Especialista em Psiquiatria pela AssociaçãoBrasileira de Psiquiatria (ABP). Médico Assistente do Grupo de Interconsultas do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Médico Supervisor de Residentes do Hospital Universitário da FMUSP. Marco Antonio Marcolin Coordenador do Grupo de Estimulação Magnética Transcraniana do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Marco de Tubino Scanavino Mestre e Doutor em Psiquiatria pela FMUSP. Coordenador Didático do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Responsável pelo Ambulatório de Impulso Sexual Excessivo do ProSex e do Proamiti. Médico Assistente do Hospital-Dia Adulto do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Marcos Tomanik Mercadante Professor Assistente do Departamento de Psiquiatria da Univerisidade Federal de São Paulo (Unifesp). Marcus Vinicius Zanetti Psiquiatra. Pós-graduando do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Maria Alice De Mathis Psicóloga. Mestre em Psiquiatria pela FMUSP. Maria Carmen Viana Psiquiatra. Professora Adjunta do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pesquisadora Colaboradora do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica LIM -23 do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Maria Cecília Fernandes Silva Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro Filiado do Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Psicóloga Supervisara e Coordenadora do Ambulatório de Família (AMFAM) do Serviço de Psicologia do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Maria Conceição do Rosário Psiquiatra. Professora Adjunta do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Coordenadora dos Ambulatórios de TOC e TDAH da Unidade de Psiquiatria da Infância e Adolescência (UPIA) da Unifesp. Maria Del Pilar Estevez Diz Oncologista clínica. Doutora em Oncologia pela FMUSP. Coordenadora Médica da Oncologia Clínica do Instituto do Câncer de São Paulo (ICESP).
AUTORES
Maria Fernanda Faria Achá Psicóloga e Neuropsicóloga. Mestranda do Programa de PósGraduação do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Psicóloga Colaboradora do Ambulatório de Perícias do Programa de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica (NUFOR) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP Maria Inês Falcão Psicóloga. Especialista em Rorschach pela Sociedade Rorschach deSPe em Neuropsicologia e Psicologia Hospitalar pelo Conselho Federal de Psicologia. Psicóloga Supervisara do Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP Professora de Graduação de Psicologia da Universidade Paulista. Membro da Diretoria e Professora da Sociedade Rorschach de São Paulo. Maria Lívia Tourinho Moretto Psicóloga Supervisara da Divisão de Psicologia do Instituto Central do HCFMUSP Professora Adjunta da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mariana Eizirik Psiquiatra pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Psiquiatria pela UFRGS. Researcher Fellowship na Unidade de Psicanálise da University College London (UCL). Médica Colaboradora da Unidade de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP Mario Rodrigues Louzã Neto Doutor em Medicina pela Universidade de Würzburg, Alemanha. Médico Assistente e Coordenador do Programa de Esquizofrenia (PROJESQ) e do Programa de Déficit de Atenção e Hiperatividade (PRODATH) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Marisol Montero Sendin Médica pela FMUSP Especialista em Pediatria e Hebiatria pelo Instituto da Criança do HCFMUSP Especialista em Psicanálise da Criança pelo GEPPPI. Especialista em Psicossomático pelo Institute Sedes Sapientiae. Marni N. Silverman Section on Neuroendocrine Immunology & Behavior, National Institute o f Mental Health, National Institutes o f Health. Marsal Sanches Psiquiatra. Mestre e Doutor pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Postdoctoral Fellow do Departamento de Psiquiatria da University o f Texas Health Science Center at Houston. Martinus T. van de Bilt Psiquiatra. Coordenador do Ambulatório de Psicoses do LIM -27 do Departamento e Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP
Mary Ellen Dias Barbosa Psicanalista. Especialização em Psicologia Hospitalar pelo Instituto Central do HCFMUSP Psicóloga do HCFMUSP Maurício Lucchesi Psiquiatra. Mestre em Medicina e Doutor em Ciências pelo Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP Maurício Marx e Silva Membro Efetivo da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. Membro Associado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre. Fundador e ex-coordenador do Núcleo de Neurociências da APRS. Editor de Neurociências da Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul (2005-2008). Professor do Instituto Contemporâneo de Psicanálise e Transdisciplinaridade e do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia. Mauricio Uriona-Maldonado Graduação em Engenharia Industrial pela Escuela Militar de Ingeniería, Bolívia. Mestrado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutorando em Engenharia e Gestão do Conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mauricio Wajngarten Professor Livre-Docente pela FMUSP Diretor da Unidade Clínica de Cardiogeriatria do Instituto do Coração (InCor) doHCFMUSP Mauro Aranha de Lima Mestre em Psiquiatria pela FMUSP. Mestre em Filosofia pela Faculdade de São Bento. Conselheiro do Cremesp. Mauro Victor de Medeiros Filho Médico Residente em Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP Miguel Angelo Boarati Psiquiatra da Infância e Adolescência. Médico Assistente do Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP Coordenador doAmbulatório do Programa de Atendimento aos Transtornos Afetivos (PRATA) no mesmo serviço. Supervisor de Médicos Residentes de Psiquiatria da Infância e Adolescência. Milena Gross de Andrade Médica pela FMUSP Médica Preceptora do Programa de Residência Médica em Psiquiatria do Departamento e Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP Especialista em Psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Milton de Arruda Martins Professor Titular de Clínica Médica da FMUSP Miréia Casademunt Raso Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Departamento de Psiquiatria do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Mirella Baise
Paula Approbato de Oliveira
Mestre em Neurociências pela Universidade de São Paulo. Especialista em Avaliacao Psicológica e Neuropsicológica pela FMUSP. Psicóloga Hospitalar da Santa Casa de Misericórdia de SP.
Especialista em Neuropsicologia pelo Serviço de Psicologia e em Neuropsicologia pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Mestranda do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Mônica de Almeida Mogadouro
Paulo Clemente Sallet
Médica Colaboradora do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Psiquiatra da Prefeitura Municipal de São Paulo. Especialista em Psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria. Especialista em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo.
Psiquiatra. Doutor pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Médico Assistente. Coordenador da Unidade de Agudos do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Paulo Germano Marmorato
Mestre em Ciências pela FMUSP.
Médico Pesquisador do Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Natasha Cardoso da Fonseca
Paulo Jannuzzi Cunha
Neurologista. Médica Colaboradora do Laboratório de Neurofisiologia Clínica.
Doutor pela FMUSP. Especialista em Avaliação Psicológica e Neuropsicológica pelo Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Pós-Doutorando pelo Laboratório de Investigação Médica LIM 21 do HCFMUSP.
Monica Kayo
Nairo de Souza Vargas
Psiquiatra. ProfessorDoutor do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA). Membro da International Association for Analytical Psychology (IAAP). Membro Fundador da Sociedade de Psicodrama de São Paulo.
Paulo Renato Canineu
Geriatra. Doutor em Gerontologia pela Unicamp. Professor Assistente-Doutor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Niraldo de Oliveira Santos
Psicanalista. Diretor Técnico de Serviço de Saúde do Serviço de Assistência da Divisão de Psicologia do Instituto Central do HCFMUSP. Doutorando em Ciências pelo Departamento de Neurologia da FMUSP. Orestes Vicente Forlenza
Professor Associado do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Vice-Diretor do Laboratório de Neurociências do Departamento e Instituto de Psiquiatria da FMUSP.
Paulo Vaz Arruda
Professor Titular aposentado do curso de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Metodista. Professor Assistente Doutor do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenador do Grupo de Assistência Psicológica ao Aluno da FMUSP- GRAPAL Pedro Caldana Gordon
Médico Residente do Departamento de Psiquiatria do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Osvaldo Moreira Leal
Médico Graduado pela FMUSP. Residência em Clínica Médica e em Alergia e Imunologia Clínica pelo HCFMUSP. Mestre em Alergia e Imunopatologia pela FMUSP. Responsável pelo Ambulatório de Asma e DPOC do Hospital Universitário (HU) da FMUSP. Responsável pelo Laboratório de Espirometria do HU. Oswaldo Ferreira Leite Netto
Médico pela FMUSP. Psiquiatra e Psicanalista. Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e da International Psychoanalitical Association. Diretor do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Pedro de Souza Leite
Médico Residente em Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Pedro Gomes de Alvarenga
Psiquiatra. Pesquisador do Projeto de Transtornos do Espectro Obsessivo-compulsivo (PROTOC) do Departamento e Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Membro do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Infância e Adolescência. Membro da Associação Brasileira de Psiquiatria. Phillip Leite Ribeiro
Patrícia de C. L. Schoueri
Doutora em Psiquiatria pela FMUSP. Coordenadora do Grupo de Psicoterapia Breve do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Psiquiatra. Pós-Graduando do Serviço de EMT do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
AUTORES
Raquel Stabellini Doutora em Ciências/Genética pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Programa de Transtorno Bipolar (PROMAN) do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Renan K. Muniz Graduando em Medicina pela FMUSP. ,
Renata Avila Neuropsicóloga. Mestre e Doutora em Ciências pela FMUSP. Pesquisadora do Programa Terceira Idade (PROTER) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Renata Barboza Ferraz Psiquiatra pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Membro Analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica de São Paulo. Renata Sciorilli Camacho Psiquiatra. Pesquisadora do Grupo de Estimulação Magnética Transcraniana do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Renato Del Sant Diretor do Hospital-Dia de Adultos do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Membro da Câmara Técnica de Saúde Mental do CREMESP. Mestre em Psiquiatria pela FMUSP. Renato Luiz Marchetti Doutor em Psiquiatria pela FMUSP. Diretor do Serviço de Ambulatórios do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenador do Projeto de Epilepsia e Psiquiatria (PROJEPSI) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Renato Teodoro Ramos Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Médico Supervisor do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Renerio Fraguas Jr. Professor Livre-Docente do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenador do Grupo de Interconsulta Hospitalar do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Reynaldo Mapelli Jr. Promotor de Justiça e Coordenador da Área de Saúde Pública do Centro Operacional (CAO) Cível e de Tutela Coletiva do Ministério Público do Estado de São Paulo. Ricardo Abrantes do Amaral Médico Psiquiatra. Doutor em Psiquiatria pela Universidade de São Paulo. Ricardo Alberto Moreno Professor Médico Colaborador do D epartamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenador do Grupo de Estudos de Doenças Afetivas (GRUDA) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Ricardo Barcelos-Ferreira Médico Pesquisador do Programa Terceira Idade (PROTER) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Especialista em Psiquiatria Geriátrica (ABP/ AMB). Doutorando em Psiquiatria pela FMUSP. Ricardo Pietrobon Graduação em Medicina pela Universidade Federal do Paraná. MBA pela Duke University e Doutorado em Epidemiologia pela University ofNorth Carolina at Chapel Hill (EUA). Rodrigo da Silva Dias Psiquiatra. Mestre e Doutor em Medicina pela FMUSP. Pesquisador do Grupo de Estudo em Transtorno Bipolar (PROMAN) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Rodrigo Diaz Olmos Professor Doutor do D epartamento de Clínica Médica da FMUSP. Diretor da Divisão de Clínica Médica do Hospital Universitário (HU) da FMUSP. Médico Assistente do Pron to-Socorro do HU da FMUSP. Rodrigo Lancelote Alberto Psiquiatra. Pesquisador do Serviço de EMT. Médico Plantonista do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Rodrigo Machado-Vieira Professor Orientador do Programa de Pós -Graduação em Psiquiatria do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP e Coordenador do Ambulatório de Psicoses (Bipolar)- LIM 27. Rosa Hasan Neurologista Assistente do Laboratório de Sono da Neurofisiologia Clínica do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Responsável pelo Laboratório de Sono da Faculdade de Medicina do ABC. Rosa Magaly Campeia Borba de Morais Pediatra e Psiquiatra da Infância e Adolescência. Médica do Programa de Transtornos de Ansiedade na Infância e Adolescência (SEPIA) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Médica Colaboradora do Centro de Conhecimento da Associação de Amigos do Autista (AMA) de São Paulo. Roseli Gedanke Shavitt Psiquiatra. Pós-Doutorado pela FMUSP. Coordenadora do Programa Transtornos do Espectro Obsessivo-Compulsivo (PROTOC) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Rudá Alessi Neurologista. Médico Colaborador do Laboratório de Neurofisiologia Clínica. Sandra Scivoletto Professora de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Docente Responsável pelo Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenadora do Programa Equilíbrio, destinado a crianças e adolescentes em situação de risco e vulnerabilidade social. Sara Mata Borges Bottino Coordenadora Médica da Psiquiatria do Instituto do Câncer de São Paulo (ICESP). Saulo Vito Ciasca Médico formado pela FMUSP. Médico Preceptor do Programa de Residência Médica em Psiquiatria do Departamento e Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Selma Lancman Professora Titular e Chefe do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da FMUSP. Coordenadora do Laboratório de Investigação e Intervenção em Saúde e Trabalho (LIIST) do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da FMUSP. Secretária geral da Associação Internacional de Psicodinâmica do Trabalho (AIPPT). Sérgio Nicastri Doutor em Medicina (área de concentração Psiquiatria) pela FMUSP. Mestre em Saúde Pública pela Universidade Johns Hopkins (EUA). Médico pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Sérgio Paulo Rigonatti Mestre e Doutor em Medicina pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Presidente do Conselho Penitenciário do Estado de São Paulo. Coordenador do Serviço de Tratamentos Biológicos (ECT-TMS) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Sergio Ricardo Hototian Psiquiatria. Mestre em Ciências pela FMUSP. Pesquisador Colaborador do LIM-27 do Departamento e Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Sheila Cavalcante Caetano Psiquiatra da Infância e Adolescência. Professora Colaboradora Médica do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Médica Assistente do Serviço de Psiquiatria Infantil (SEPIA) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Shirley Moreira Burburan Especialista em Anestesiologia pela Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA) da Associação Médica Brasileira (AMB). Mestre em Anestesiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Certificado de Área de Atuação em Dor pela SBA da AMB. Clínica de Dor do Ministério da Saúde - Hospital Federal de Ipanema, RJ. Coordenadora da Clínica de Dor do Hospital Municipal Lourenço Jorge, RJ.
Silvana Chiavegatto Neurocientista. Professora Doutora em Farmacologia. Coordenadora do Laboratório de Neurociências Comportamentais e Moleculares do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). Sigride Thomé de Souza Neurologista Infantil e Neurofisiologista. Mestre em Neurologia pela FMUSP. Médica Supervisara do Laboratório de Neurofisiologia Clínica. Silvia de Vincentiis Neurologista e Neurofisiologista. Mestre em Neurologia pela FMUSP. Médica Assistente do Laboratório de Neurofisiologia Clínica. Silviane Pinheiro Campos de Andrade Psicóloga especialista em Neuropsicologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Mestre em Ciências pelo Departamento de Psicobiologia da Unifesp. Pesquisadora Colaboradora do Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Sonia Mansoldo Dainesi Graduação em Medicina pela FMUSP. Especialização em Endocrinologia e Metabiologia pelo HCFMUSP. Pós-gradução latu sensu (MBA empresarial) pela Fundação Dom Cabral (MG). Doutoranda do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP. Stella Marcia Azevedo Tavares Médica neurofisiologista clínica. Coordenadora do Laboratório de Sono da Neurofisiologia Clínica do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Taís Michele Minatogawa-Chang Médica Supervisara do Ambulatório de Interconsultas do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Médica Assistente do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Táki Athanássios Cordás Professor Colaborador do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenador da Assistência Clínica do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenador do Programa Transtornos Alimentares (AMBULIM) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Tânia Corrêa de Toledo Ferraz Alves Professora Colaboradora Médica do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Médica Assistente do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Tania Marcourakis Professora Doutora do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo.
AUTORES
Tania Takakura Psiquiatra com especialização em Psiquiatria da Infância e Adolescência. Psiquiatra do Programa Equilíbrio do Departamento e Instituto de Psiquiatria da FMUSP. Projeto especializado no atendimento de crianças e adolescentes vítimas de maus tratos em situação de vulnerabilidade social. Thelma da Motta Psiquiatra formada pela FMUSP. Residência na FMUSP. Tíbor R. Perroco Psiquiatra. Pós-graduando do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Tito Paes de Barros Neto Docente e Supervisor do curso "Aprimoramento em Terapia Comportamental Cognitiva em Saúde Mental" do Programa de Ansiedade (AMBAN) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Mestre em Psiquiatria pela FMUSP. Valentim Gentil Professor Titular de Psiquiatria da FMUSP. Valeri Delgado Guajardo Mestranda pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Psicóloga da Divisão de Psicologia do Instituto Central do HCFMUSP. Psicóloga Colaboradora do Grupo de Interconsulta Hospitalar do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Valéria Antakly de Mello Mestre em Ciências pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Psiquiatra Clínica do Serviço de Neurocirurgia de Epilepsia do Hospital Brigadeiro UGA V Psiquiatra Clínica do Serviço de Atendimento a pessoas vivendo com HIVI Aids do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias do HCFMUSP. Vanessa Citero Professora Afiliada do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Coordenadora do Setor de Interconsulta Psiquiátrica e em Saúde Mental do Departamento de Psiquiatria da (Unifesp ). Psiquiatra do Hospital Israelita Albert Einstein. Vanessa Dentzien Pinzon Mestranda em Psiquiatria pela FMUSP. Coordenadora de Pesquisa do Programa de Assistência de Ensino e Pesquisa em Trantornos Alimentares na Infância e Adolescência (PROTAD) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP.
Vanessa de Jesus Rodrigues de Paula Doutoranda em Ciências pelo Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Vera Lúcia Carvalho Tess Psiquiatra. Mestre em Medicina pela FMUSP. Médica Assistente do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Responsável pelo Ambulatório de Gestantes do Serviço de Interconsultas do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Verena Castellani Médica Psiquiatra pela Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Médica Assistente do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Victor Bigelli de Carvalho Preceptor do Departamento de Psiquiatria do HCFMUSP. Vivian Yuri Hiroce Médica Assitente do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Wagner Farid Gattaz Professor Titular e Presidente do Conselho Diretor do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Walter Cintra Ferreira Jr. Médico. Mestrado em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas. Yuan-Pang Wang Psiquiatra formado pela FMUSP. Residência, Mestrado e Doutorado pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Orientador do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Médico-Supervisor do Ambulatório Didático da Residência Médica do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Zacaria Borge Ali Ramadam Doutor e Livre-Docente de Clínica Psiquiátrica pela FMUSP. Professor Associado do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Zenon Lotufo Jr. Filósofo. Pós-Graduado em Ciências Sociais. Analista Translacional. Pastor da Igreja Presbiteriana Independente. Psicoterapeuta. Membro do Corpo dos Psicólogos e Psiquiatras Cristãos ( CPPC).
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Sumário
Prefácio - Giovanni Guido Cerri ...... ... ....... ....... ... ....... ....... .. XXXIII Prefácio - ]ames F. Leckman .. ....... ....... ... ....... ....... ....... ... .... .. XXXIV Prefácio- Marcelo Pio de Almeida Fleck, José Alexandre de Souza Crippa e Rodrigo Affonseca Bressan ... ....... ....... ... .XXXV Apresentação .. ... ....... ....... ... ....... ... .... ... ....... ... .... ... ....... ... ....... .. XXXVI
• Seção 2- Vertentes do Conhecimento Editor: Orestes Vicente Forlenza 11 Aspectos Genéticos e Epigenéticos do D esenvolvimento 116 Helena Brentani, Homero P. Vallada 1 2 Interação Gene-ambiente: Mecanism os Causais e Fatores
• Seção 1 - A Psiquiatria e seus Li mites Editor: Orestes Vicente Forlenza
Protetores ............................................................................... .. 126
. ' . d a p Siquiatria . . . .... .... ... ....... ... .... ... ....... ... ....... ....... ... ....... .. . 4 1 H Istoria Táki Athanássios Cordás, André Seixas, Eduardo Wagner Aratangy, André Mota
13 Fatores de Risco e Proteção para Morbidade Psiquiátrica .. 136 Ricardo Barcelos-Ferreira, Cássio Machado de Campos Bottino, Débora Pastare Bassitt, Tânia Corrêa de Toledo Ferraz Alves
2 A Evolução do s Conceitos em Psiquiatria ............................. 22 Yuan-Pang Wang, Alexandre Andrade Loch, Laura Helena Silveira Guerra de Andrade
1 4 D esenvolvimento Cerebral nas Diversas Fases da Vid a ... 154 Marcelo Q. Hoexter, Euripedes Constantino Miguel, Andrea P. Jackowski, Guiherme Vanoni Polanczyk
3 Psiquiatria e seus Limites ....................................................... 36
1 5 D esenvolvimento Cognitivo e Socioemocional
Zacaria Borge Ali Ramadam, Yuan-Pang Wang
nas Diversas Fases da Vida ...................................................... l64
4 Psiquiatria e Neurociência: Estado Atual e Perspectivas
Jônia Lacerda Felício, Camila Tarif Ferreira Folquitto, Giovanna Kliemann Scarpari, Cristiana Castanho de Almeida Rocca
Guilherme Vanoni Polanczyk, Christian Costa Kieling
Futuras ........................................................................................ 49
Marsal Sanches, Jair C. Soares 5 Interface com a Neurologia ... ....... ... ....... ....... ... ....... ....... ... ........ 55 Eduardo Genaro Mutarelli
16 D esen volvimen to Cognitivo e Psicomotor ....................... 182 Daniel Fuentes, Silviane Pinheiro Campos de Andrade, Leandro Fernandes Malloy-Diniz, Candida Helena Pires de Camargo 17 Ambiente Fam iliar e Tran stornos Mentais: Uma Visão da
6 Interface com a Neurocirurgia .... ... ....... ....... ... ....... ....... ... ........ 61 Manoel Jacobsen Teixeira, Erich Talamoni Fonoff
Psicologia A nalític.a ................................................................. 192
7 Psiquiatria, Psicologia e Psicanálise ...................................... 70 Ariel Bogochvol
18 Influência do Ambiente Familiar e Social sob a Perspectiva da Neurociência - Neuropsicanálise ......... 199 Flávio Shansis, Rodrigo Machado-Vieira, Maurício Marx e Silva
8 Interface com Sociologia, Antropologia e Filosofia ............ 86 Zacaria Borge Ali Ramadam
Nairo de Souza Vargas
19 Sistem as Neuroquímicos no Sistem a Ner voso Central e a Psicofa.r mac.o logia............................................................... 206
9 Influência d a Cultura sobre a Psiquiatria .............................. 92 Yuan-Pang Wang, Carmen Lucia Albuquerque de Santana, Liliana Marchetti, Francisco Lotufo Neto
1O Psiquiatria e Religião ......................................................... 105 Francisco Lotufo Neto, Frederico Camelo Leão, Zenon Lotufo ]r.
Clarice Gorenstein, Tania Marcourakis, Carolina Demarchi Munhoz 20 Bases Moleculares do Funcionam ento Cerebra1 .............. 220 Flávio Kapczinski, Gabriela Delevati Colpo, Laura Stertz, Gabriel Rodrigo Fries
SUMÁRIO
21 Epilepsia e Transtornos Psiquiátricos: Aspectos Relacionados ao Neurodesenvolvimento ............................... 234 Kette Dualibi Ramos Valente, Natasha Cardoso da Fonseca, Rudá Alessi, Sigride Thomé de Souza, Lia Amo Fiore 22 Psiconeuroimunologia ....................................................... 246 Marni N. Silverman, Euthymia B. A. Prado, Julian F. Thayer, Esther M. Sternberg, Renan K. Muniz, Andrea Horvath Marques
• Seção 3 - Da Semiologia ao Diagnóstico em Psiquiatria Editor: Táki Athanássios Cordás
23 Sistema de Classificação - Diagnóstico em Psiquiatria ... 282 Yuan-Pang Wang, Laura Helena Silveira Guerra de Andrade 24 Anamnese Psiquiátrica na Infância e Adolescência ......... 295 Ênio Roberto de Andrade, Miguel Angelo Boarati 25 Anamnese Psiquiátrica no Adulto ..................................... 308 Renato Del Sant, Renato Luiz Marchetti 26 Anamnese Psiquiátrica no Idoso ....................................... 323 Débora Pastore Bassitt, Camila Muniz de Souza Pedro, Fabio Armentano 27 Avaliação Neuropsicológica ............................................... 333 Daniel Fuentes, Silviane Pinheiro Campos de Andrade, Mirella Baise 28 Exames Laboratoriais, Marcadores Genéticos e Bioma.rcadores Humorais ....................................................... 347 Breno Satler de Oliveira Diniz, Raquel Stabellini, Martinus T. van de Bilt, Carolina Cappi, Helena Brentani, Orestes Vicente Forlenza 29 Exames de Imagem Cerebral ............................................. 361 Marcus Vinicius Zanetti, Tânia Corrêa de Toledo Ferraz Alves, Geraldo Busatto Filho 30 Nosologia dos Fenótipos Prodrômicos, Pré-mórbidos e Endofenótipos .......................................................................... 368 Leonardo F. Fontenelle 3 1 Avaliação da Personalidade ............................................... 376 Antonio de Pádua Serafim
32 Avaliaç~o do Sono .............................................................. 392 Stella Marcia Azevedo Tavares, Rosa Hasan
35 O Papel da Eletrencefalografia Quantitativa nos Transtornos Neurológicos e Psiquiátricos ...................... .438 Silvia de Vincentiis, Kette Dualibi Ramos Valente • Seção 4- Sintomas e seu Significado em Psiquiatria Editor: Táki Athanássios Cordás
36 Bases Filosóficas para a Construção do Método em Psicopatologia .......................................................................... 444 Mauro Aranha de Lima 37 Consciência e Atenção ........................................................ 451 Renato Luiz Marchetti, Victor Bigelli de Carvalho 38 Alterações das Funções Cognitivas: Memória e Inteligência ............................................................................... 469 Chei Tung Teng, Maria Inês Falcão, Ana Taveira 39 Alterações da Sensopercepção .......................................... .489 Saulo Vito Ciasca, Renato Del Sant 40 Tempo e Espaço: Vivência e Rendimento ........................ .499 Renato Del Sant, Táki Athanássios Cordás 4 1 Alterações do Pensamento (Forma e Conteúdo) e Linguagem ................................................................................ 504 Yuan-Pang Wang, Marcelo Biondo, Bruno Henrique Machado, Alexandre Andrade Loch 42 Psicopatologia do Juízo ...................................................... 519 Ariel Bogochvol, Thelma da Motta
43 Afetividade .......................................................................... 533 Ana Cristina Gargano Nakata, Chei Tung Teng 44 Psicopatologia da Volição: Impulso, Instinto e Vontade .543 Hermano Tavares
45 Alterações da Psicomotricidade ........................................ 550 Paulo Clemente Sallet, Pedro Caldana Gordon
• Seção 5 - As Grandes Síndromes Psicopatológicas Editor: Hermano Tavares
46 Diagnóstico em Psiquiatria: um Breve Histórico de sua Evolll4Y~O ................................................................................... S(}Ll Hermano Tavares, Táki Athanássios Cordás 4)7 JC>~li,.itt11l ............................................................................... 56:7
33 Avaliação da Sexualidade no Ciclo de Vida ..................... .400 Carmita Helena Najjar Abdo
Franklin Santana Santos, Renerio Fraguas Jr., Orestes Vicente Forlenza
34 Saúde da Mulher ................................................................. 422 Joel Rennó Jr., Renata Sciorilli Camacho, Hewdy Lobo Ribeiro
4 8 Demências .......................................................................... 582 Orestes Vicente Forlenza, Ivan Aprahamian, Tíbor R. Perroco, Cássio Machado de Campos Bottino
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
49 Esquizofrenia ...................................................................... 603 Helio Elkis, Monica Kayo, Graça Maria Oliveira, Vivian Yuri Hiroce, Jimena Barriviera, Ivson Tassell
63 Transtorno Obsessivo-compulsivo .................................... 848 Roseli Gedanke Shavitt, Albina Rodrigues Torres,
50 Síndromes Psicopatológicas: Transtornos Psicóticos Breves, Transtorno Esquizoafetivo e Transtorno Delirante ............... 623 Paulo Clemente Sallet, Fabiele Maidel Fritzen, Lívia Emy Fukuda
64 Síndrome de Tourette e Transtornos de Tiques ............... 863 Pedro de Souza Leite, Mauro Victor de Medeiros Filho,
51 Psicose na Infâ.n cia ............................................................. 650 Eliana Curátolo
65 Transtorno Dismórfico Corporal ...................................... 872 Luciana Archetti Conrado, Táki Athanássios Cordás
52 Transtornos Psiquiátricos Relacionados ao Ciclo Reprodutivo da Mulher ........................................................... 658 Rodrigo da Silva Dias, Vera Lúcia Carvalho Tess
66 Transtorno Obsessivo-compulsivo na Infância e Adolesc.ê ncia ............................................................................ 893 Mauro Victor de Medeiros Filho, Pedro de Souza Leite,
53 Síndromes Decorrentes do Uso de Substâncias ................ 667 André Malbergier, Adriana B. Pillegi, Camila Magalhães Silveira, Hercilio de Oliveira Jr., João M. C. Maia, José E. R. Aguiar, Luciana R. D. Cardoso, Ricardo Abrantes do Amaral,
Ana Gabriela Hounie
Pedro Gomes de Alvarenga, Ana Gabriela Hounie
Anna Cláudia Dominguez Alves, Maria Alice de Mathis, Pedro Gomes de Alvarenga 67 Transtornos Dissociativos, Somatoformes e
Sérgio Nicastri, Verena Castellani, Arthur Guerra de Andrade
Síndrome da Fadiga Crônica................................................... 904 Daniela Meshulam Werebe, Guilherme Funaro
54 Depressão ............................................................................ 698 Doris Hupfeld Moreno, Frederico Navas Demétrio,
68 Somatização na Infância .................................................... 913 Marisol Montero Sendin
Ricardo Alberto Moreno 55 Transtorno Bipolar ............................................................. 711 Beny Lafer, Karla Mathias de Almeida, Lena Nabuco de Abreu,
69 Transtornos Alimentares ................................................... 931 Fábio Tápia Salzano, Eduardo Wagner Aratangy, Alexandre Pinto de Azevedo, Fernanda Pisciolaro,
José Antonio de Mello Siqueira Amaral
Anny de Mattos Barroso Maciel, Táki Athanássios Cordás
56 Transtornos do Humor no Ciclo da Vida ......................... 732 Sheila Cavalcante Caetano, Ana Kleinman, Bernardo de Mattos Viana, Tânia Corrêa de Toledo Ferraz Alves
70 Transtornos Alimentares na Infância e na Adolesc.ê ncia ..................................................................... 953 Gizela Turkiewicz, Vanessa Dentzien Pinzon, Bacy Fleitlich-Bilyk
57 Transtorno de Pânico e Agorafobia ................................... 757 Márcio Bernik, Fábio Corregiari
7 1 Transtornos da Sexualidade ............................................... 959 Carmita Helena Najjar Abdo, Marco de Tubino Scanavino
58 Fobia Social ......................................................................... 771 Tito Paes de Barros Neto, Cristiane Maluhy Gebara
72 Transtorno de Identidade de Gênero ................................ 977 Alexandre Saadeh
59 Fobias Específic.a s ............................................................... 788
73 Tra.n stornos do Sono .......................................................... 994 Flávio Aloé, Alexandre Pinto de Azevedo
Márcio Bernik, Luiz Vicente Figueira de Mello, Fábio Corregiari 60 Transtorno de Ansiedade Generalizada ............................ 795 Renato Teodoro Ramos
74 Jogo Patológico ................................................................. 1O15
6 1 Transtorno do Ajustamento, Transtorno do Estresse Agudo e Transtorno do Estresse Pós-traumático ............................... 807
75 Impulsividade e Transtornos do Controle do Impulso ............................................................................. ! 038 Hermano Tavares
Felipe Corchs, Paula Approbato de Oliveira, Sara Mota Borges Bottino, Paulo Jannuzzi Cunha, Sandra Scivoletto 62 Transtornos Ansiosos e Emocionais na Infância .............. 824 Fernando Ramos Asbahr, Marisol Montero Sendin, Carolina Zadrozny Gouvêa da Costa, Rosa Magaly Campelo Borba de Morais, Márcia Morikawa
Hermano Tavares
76 Transtornos da Personalidade ......................................... 1051 Hermano Tavares, Renata Barboza Ferraz 77 Retardo Mental ................................................................. ! 065 Francisco Baptista Assumpção ]r.
SUMÁRIO
78 Transtornos Invasivos do Desenvolvimento ................... 1085 Fábio Pinato Sato, Marcos Tomanik Mercadante
91 Uso de Psicofármacos na Gravidez e no Pós-parto ........ 1294 Joel Rennó Jr., Táki Athanássios Cordás
79 Déficits Específicos de Aprendizagem e Transtornos da Fala e da Linguagem .................................... 1095 Luciene Stivanin, Cristiana Castanho de Almeida Rocca, Christian César Cândido de Oliveira
92 Eletroconvulsoterapia ...................................................... 1303 Eric Cretaz, Sérgio Paulo Rigonatti, Eduardo Wagner Aratangy
80 Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade ......... 1113 Guilherme Vanoni Polanczyk, Júlio Renó Sawada, Ênio Roberto de Andrade, Luis Augusto Rohde 81 Transtornos de Conduta e Comportamentoos Externalizantes ...................................... 1133 Paulo Germano Marmorato
• Seção 6 - Aspectos Gerais do Tratamento Editor: Cássio Machado de Campos Bottino
93 Estimulação Magnética Transcraniana ........................... 1319 Marco Antonio Marcolin, Carlos Gustavo Mansur, Rodrigo Lancelote Alberto, Bianca Boura Bellini, Phillip Leite Ribeiro 94 Neurocirurgia para os Transtornos Psiquiátricos .......... 1328 Antonio Carlos Lopes, André Felix Gentil, Euripedes Constantino Miguel 9 5 Psicoterapias Psicodinâmicas .......................................... 1344 Oswaldo Ferreira Leite Netto, Gustavo Gil Alarcão 96 Psicoterapia Cognitivo-comportamental... ..................... 1357 Fabiana Saffi, Miréia Casademunt Roso, Ligia lto, Francisco Lotufo Neto
82 Psicofarmacologia em Psiquatria: Antidepressivos ........ 1158 Ricardo Alberto Moreno, Doris Hupfeld Moreno, Frederico Navas Demétrio
97 Psicoterapia Interpessoal.................................................. 1372 Ana Claudia Andrade West, Francisco Lotufo Neto
83 Psicofarmacologia em Psiquatria: Antipsicóticos ......... 1176 Helio Elkis, Mario Rodrigues Louzã Neto
9 8 Psicoterapia Familiar........................................................ 1382 Maria Cecília Fernandes Silva, Jônia Lacerda Felício
84 Estabilizadores de Humor ................................................ 1191 Beny Lafer, Fabiano Gonçalves Nery, Elisa Brietzke
9 9 Psicoterapia Dinâmica Breve ........................................... 1404 Patrícia de C. L. Schoueri, Eva Helena C. C. Zoppe, Milena Gross de Andrade
85 Psicofarmacologia em Psiquatria: Hipnóticos e Ansiolíticos............................................................................. l208 Márcio Bernik, Fábio Corregiari
100 Reabilitação Neuropsicológica ...................................... 1418 Luciane de Fátima Viola Ortega, Candida Helena Pires de Camargo, Renata Ávila
86 Inibidores das Colinesterases (1-ChE) e Antagonistas dos Receptores N-Metil-D-Aspartato (NMDA) ................... 1218 Cássio Machado de Campos Bottino, Tíbor R. Perroco, Jefferson C. Folquitto, Lyssandra S. Tascone
1O1 Reabilitação Profissional: Emprego Assistido .............. 1426 Alexandra Martini de Oliveira, Danielle Soares Bio, Wagner Farid Gattaz
87 Psicofarmacologia em Psiquatria: Psicoestimulantes..... 1232 Ênio Roberto de Andrade, Mario Rodrigues Louzã Neto
1 02 Reabilitação Psicossocial em Psiquiatria ...................... 1432 Carmen Lucia Albuquerque de Santana, Francisco Lotufo Neto
88 Particularidades do Tratamento Farmacológico na Criança e no Adolescente ................................................. 1236 Ênio Roberto de Andrade, Lee Fu-I, Miguel Angelo Boarati
1 03 Reabilitação Neuropsicológica e Treino de Habilidades Sociais em Crianças e Adolescentes com Transtornos Psiquiátric.o s ........................................................................... 1444 Cristiana Castanho de Almeida Rocca, Luciana de Carvalho Monteiro, Camila Luisi Rodrigues
89 Particularidades do Tratamento Farmacológico do Idoso .................................................................................. 1257 Sergio Ricardo Hototian, Paulo Renato Canineu, Orestes Vicente Forlenza 90 Farmacogenética na Psiquiatria ...................................... 1273 Elida Paula Benquique Ojopi, Carolina Martins do Prado, Wagner Farid Gattaz
• Seção 7 - Interface da Psiquiatria com as Outras Especialidades Médicas Editor: Renerio Fraguas Jr. 1 04 Interconsulta Psiquiátrica: Conceitos ........................... 1462 Renerio Fraguas Jr., Mara Cristina Souza de Lucia, Milton de Arruda Martins
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
105 Emergência Psiquiátrica no Hospital Geral ................. 1471 Débora Luciana Melzer-Ribeiro, C hei Tung Teng 106 Interconsulta no Paciente com Risco de Suicídio ........ 1482 Bruno Mendonça Coêlho, Carolina Mello-Santos, Yuan-Pang Wang
1 19 Interconsulta em Transplante........................................ 1699 Renerio Fraguas Jr., Valeri Delgado Guajardo, Dnyelle Souza Silva, Maria Lívia Tourinho Moretto, Mary Ellen Dias Barbosa, Alberto Queiroz Farias 120 Interconsulta em Unidades de Queimados ................... 1720 Márcio Eduardo Bergamini Vieira
107 Interconsulta no Paciente com Transtorno Factício .... 1497 Bruna Bartorelli, Eduardo Genaro Muttareli 108 Interconsulta no Paciente no Final da Vida e Cuidados Paliativos ............................................................. .. 1509 Taís Michele Minatogawa-Chang, Daniela Meshulam Werebe 1 09 Interconsulta em Atenção Primária: o Clínico Tratando Transtornos Mentais Leves ................... 1518 Eduardo de Castro Humes, Isabela Martins Bensefior, José Luiz Pacheco, Márcio Eduardo Bergamini Vieira 1 1 O Interconsulta no Paciente com Dor ............................... 1531 Letícia Maria Furlanetto, Shirley Moreira Burburan, Vanessa Citero 1 1 1 Interconsulta em Doenças Neurológicas ...................... 1553 Luisa Terroni, Adriana Bastos Conforto, Carla Cristina Adda 11 2 Interconsulta em Doenças Reumatológicas e Musculoesqueléticas .............................................................. 1569 Renerio Fraguas Jr., Danyella de Melo Santos, Niraldo de Oliveira Santos, Carlos Ewerton Maia Rodrigues, Jozélio Freire de Carvalho 1 13 Interconsulta em Doenças do Sistema Endocrinológico .................................................................... 1588 Débora Luciana Melzer-Ribeiro, C hei Tung Teng, Taís Michele Minatogawa-Chang 1 14 Interconsulta em Oncologia .......................................... 1605 Sara Mota Borges Bottino, Maria Del Pilar Estevez Diz 1 1 5 Interconsulta em Cardiologia ........................................ 1626 Renerio Fraguas Jr., Anna Maria Andrei, Milena Gross de Andrade, Carlos Vicente Serrano Jr., Mauricio Wajngarten 1 1 6 Interconsulta em Infectologia ........................................ 1647 Luiz Teixeira Sperry Cezar, Valéria Antakly de Mello 1 17 Interconsulta em Doenças Respiratórias ...................... 1666 André Russowsky Brunoni, Osvaldo Moreira Leal,
121 Interconsulta em Ginecologia e Obstetrícia: Transtornos Psiquiátricos na Gestação e no Puerpério ...... 1726 Vera Lúcia Carvalho Tess, Rodrigo da Silva Dias 122 Interconsulta em Dermatologia..................................... 173 7 Douglas Motta Calderoni, Taís Michele Minatogawa-Chang, Chei Tung Teng 123 Interconsulta do Paciente Idoso .................................... 1756 Tânia Corrêa de Toledo Ferraz Alves, Fabio Armentano 12 4 Interconsulta em Crianças e Adolescentes.................... 1770 Adriana Regina Ferreira Marciano, Tania Takakura 125 Interconsulta em Epilepsia............................................. 1788 Renato Luiz Marchetti, José Gallucci Neto, Leandro da Costa Lane Valiengo
• Seção 8 - Estruturação da Rede de Atendimento em Saúde Mental e os Serviços de Atendimento Psiquiátrico Editora: Sandra Scivoletto 126 Epidemiologia dos Transtornos Mentais na População Geral Adulta ........................................................................... 1802 Laura Helena Silveira Guerra de Andrade, Clovis Alexandrino Silva Jr., Yuan-Pang Wang, Maria Carmen Viana 127 A Rede de Serviços de Saúde Mental ............................ 1817 Leon de Souza Lobo Garcia, Maurício Lucchesi 128 Saúde Mental e Atenção Básica ..................................... 1830 Leon de Souza Lobo Garcia, Carmen Lucia Albuquerque de Santana 129 Cuidados de Média Complexidade em Saúde Mental: Atendimento Ambulatorial ................................................... 1840 Andréia de Fátima Nascimento, Mônica de Almeida Mogadouro 130 Serviços Voltados para o Tratamento da Dependência Química e Integração com Políticas Gerais ......................... 1850 Hercilio de Oliveira Jr., André Malbergier, Ricardo Abrantes do Amaral, Arthur Guerra de Andrade
Rodrigo Diaz Olmos 1 1 8 Interconsulta em Doenças do Sistema Gastrointestinal ..................................................................... 1683 Eduardo de Castro Humes, Taís Michele Minatogawa-Chang
13 1 Políticas, Serviços e Ações Voltados para o Atendimento de Crianças e Adolescentes ......................... 1861 Edith Lauridsen-Ribeiro, Sandra Scivoletto
SUMÁRIO
132 Atendimento de Alta Complexidade em Psiquiatria ... 1882 Edson Shiguemi Hirata, Táki Athanássios Cordás, Fábio Tápia Salzano, Walter Cintra Ferreira Jr.
146 Metodologia em Neuroquímica .................................... 2048 Leda Leme Talib, Helena Passarelli Giroud Joaquim, Vanessa de Jesus Rodrigues de Paula
133 Pronto-Socorro Psiquiátrico .......................................... 1893 Chei Tung Teng, Taís Michele Minatogawa-Chang, Edson Shiguemi Hirata
147 Estatística em Psiquiatria ............................................... 2059 Carlos Alberto de Bragança Pereira, Cristina Belotto da Silva, Juliana Belo Diniz
134 Legislação e Atendimento Psiquiátrico ........................ 1904 Reynaldo Mapelli Jr., Luciene Angélica Mendes, Mauro Aranha de Lima
148 Metodologia em Estudos de Genética Epidemiológic.a ...................................................................... 2066 Maria Conceição do Rosário, Christina Hajaj Gonzalez, Ana Gabriela Hounie
135 Uma Visão Crítica da Política Brasileira de Saúde Mental ..................................................................... 1916 Valentim Gentil 136 Saúde Mental no Trabalho ............................................. 1932 Selma Lancman, Juliana de Oliveira Barros
149 Metodologia para Estudos de Alterações do DNA em Transtornos Psiquiátricos ............................................... 2073 Helena Brentani, Homero P. Vallada 150 Metodologia em Modelos Animais ............................... 2080 Silvana Chiavegatto
137 Enfermagem Especializada em Saúde Mental e Psiquiatria............................................................................ 1944 Maguida Costa Stefanelli, Ilza Marlene Kuae Fukuda, Cristina Emiko Igue
1 51 Metolodogia em Estudos Post Mor tem ......................... 2089 Fabiano Gonçalves Nery, Lea Tenenholz Grinberg, Helmut Heinsen
138 Espaço Construído, Arquitetura e Psiquiatria ............. 1962 Geraldo Gomes Serra
1 52 Psiquiatria Baseada em Evidências ............................... 2098 Juliano Souza, Jouce Gabriela Almeida, Helio Elkis
• Seção 9 - Educação em Psiquiatria: Ensino, Pesquisa e Educação Continuada Editor: Hermano Tavares
153 Pesquisa Translacional em Psiquiatria .......................... 2110 Rodrigo Machado-Vieira
139 Ensino de Psiquiatria na Graduação ............................. 1972 Gilberto D'Elia, Francisco Lotufo Neto, Paulo Vaz Arruda
1 54 Pesquisa Qualitativa: Ilustrando Possibilidades de sua Aplicação para o Campo da Saúde Mental ........................... 2116 Carmen Lucia Albuquerque de Santana, Ana Maria Cavalcanti Lefevre, Fernando Lefevre
140 A Formação do Psiquiatra: Residência Médica ............ 1978 Milena Gross de Andrade, Saulo Vito Ciasca, Renerio Fraguas Jr.
155 Investigação Neuropsicológica em Psiquiatria ............. 2127 Daniel Fuentes, Leandro Fernandes Malloy-Diniz
141 Pós-graduação em Psiquiatria ....................................... 1990 Beny Lafer
156 Neuroimagem em Psiquiatria ....................................... 2136 Luiz Kobuti Ferreira, Tânia Corrêa de Toledo Ferraz Alves, Sheila Cavalcante Caetano, Marcus Vinicius Zanetti, Geraldo Busatto Filho
1 42 Metodologia em Epidemiologia .................................... 1997 Laura Helena Silveira Guerra de Andrade, Yuan-Pang Wang, Isabela Martins Benseíior, Maria Carmen Viana 143 Metodologia em Pesquisa Clínica ................................. 2009 Juliana Belo Diniz, Sonia Mansoldo Dainesi 144 Metodologia em Neurofisiologia ................................... 2021 Kette Dualibi Ramos Valente, Danilo Fonseca Maia, Álvaro Pentagna, Emanoella Faro de Oliveira 145 Metodologia em Psicoterapia ........................................ 2033 Mariana Eizirik, Érico de Moura Silveira Jr., Daniela Zippin Knijnik
157 Metodologia na Elaboração de Instrumentos de Mensuração ............................................................................ 2152 Yuan-Pang Wang, Francisco Bevilacqua Guarniero, Clarice Gorenstein 158 Psiquiatria e a Pesquisa em Informática: Rumo a uma Maior Qualidade e Produtividade ........................................ 2166 Luciana Cofiel, Helena Brentani, Jacson Barros, Amrapali Zaveri, Elias Carvalho, Jatin Shah, Ana Paula Bonilauri Ferreira, Guilherme Cunha, Mauricio Uriona-Maldonado, Dimple Rajgor, Euripedes Constantino Miguel, Ricardo Pietrobon
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XXXI
.. XXXII
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
• Seção 1O - Ética em Psiquiat ria e Psiquiat ria Forense Editores: Cássio Machado de Campos Bottino e Táki Athanássios Cordás
162 Avaliação Multidisciplinar em Psiquiatria Forense ..... 2213 Antonio de Pádua Serafim, Daniel Martins de Barros, Maria Fernanda Faria Achá
159 A Nova Psiquiatria Frente à Ética Médica e à Bioética .. 2180 Claudio Cohen, Mauro Aranha de Lima
163 Perícias Psiquiátricas em Situações Específicas ............ 2222 Antonio de Pádua Serafim, Alexandre Saadeh, Gustavo Bonini Castellana, Daniel Martins de Barros
160 Transtornos Mentais e Comportamento Violento ....... 2191 Sérgio Paulo Rigonatti, Danilo Antonio Baltieri 161 Avaliação Psiquiátrica e Psicológica nas Diversas Áreas do Direito ............................................... 2201 Fabiana Saffi, André Castilho Valim, Daniel Martins de Barros
Indice Remissivo .............................................................................. I- i Encarte ............................................................................................. E- i
Prefácio Giovanni Guido Cerri
Esta obra foi elaborada com uma visão abrangente e atualizada e, ao mesmo tempo, com o rigor científico que a psiquiatria exige. Dividida em seções temáticas, a psiquiatria foi abordada privilegiando-se o enfoque interdisciplinar. Clínica Psiquiátrica tem uma forte vocação para Vade Mecum, pois reúne informações fundamentais e o estado da arte em psiquiatria. Começando pela conceituação da psiquiatria e disciplinas correlatas, passamos pela etiopatogenia dos transtornos mentais. Há duas seções que enfocam, além dos sinais e sintomas, a problemática do diagnóstico em psiquiatria. Em seguida, há um mosaico com as grandes síndromes e transtornos mentais e suas peculiaridades psicopatológicas. As intervenções biológicas, bem como a terapia medicamentosa, a eletroconvulsoterapia e a estimulação magnética transcraniana, são discutidas, além das intervenções psicoterapeutlcas. A
Diante de uma infinitude de ilhas de conhecimento, há uma seção dedicada à interface da psiquiatria com outras especialidades médicas. A seguir, trata-se da psiquiatria na saúde pública, apresentando a realidade do atendimento psiquiátrico e as questões relativas à saúde mental nos serviços médicos de diversos portes. O ensino da psiquiatria e a metodologia de pesquisa estão agrupados em uma seção. A ética em psiquiatria e a psiquiatria forense fecham este livro indispensável. Assim, convidamos os amigos a usufruírem dessa obra editada pelos professores Euripedes Constantino Miguel, Wagner Farid Gattaz e Valentim Gentil, com a colaboração de seus pares. Elaborada com seriedade, de dicação e rigor científico, Clínica Psiquiátrica é útil tanto aos experientes militantes da psiquiatria quanto àqueles que estão no início de sua formação.
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Prof. Dr. Giovanni Guido Cerri Secretário da Saúde do Estado de São Paulo Professor Titular da Disciplina de Radiologia Departamento de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Prefácio James F. leckman
Estas são épocas memoráveis para aquele que trabalha na área de psiquiatria. Nas últimas três décadas, houve, em nosso conhecimento, um progresso espantoso, que tem se mostrado constante, desde a decodificação do genoma humano até nossa capacidade de monitorar a atividade de circuitos neurais do cérebro humano. Com esse progresso, veio a confirmação de que nossa dotação genética é apenas uma parte da história e que o desenvolvimento precoce é importante, pois o nosso cérebro se esforça ao máximo para começar a dar sentido ao mundo. No entanto, os mistérios continuam. Por que nosso ambiente de cuidado precoce é tão importante? O que as neurociências podem ensinar sobre as origens e a natu reza da consciência - aquelas experiências subjetivas, únicas, em que damos de cara com o mundo e nossos "eus" incorporados e que ouvimos ecoados em nossas vozes e nas vozes de nossos pacientes? Como atua o trabalho "inconsciente" na saúde e na doença? O tempo está propício para a publicação de um novo e abrangente tratado sobre psiquiatria. O Brasil tem a sorte de ter o Departamento e Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo. Desde sua fundação, há quase 50 anos, o "Departamento e Instituto" têm desempenhado papel importante no treinamento e na capacitação de psiquiatras de todas as partes do Brasil e os membros de sua equipe são líderes mundiais, tanto na área de clínica mé-
dica como no campo de pesquisas. Ao longo das 1O seções e 163 capítulos, este livro reflete a profundidade e a diversidade de nossa área. Diversas orientações teóricas são representadas com desenvoltura, desde o ponto de vista biológico até nos âmbitos psicodinâmico, sociocultural e comportamental. O melhor de tudo é que Clínica Psiquiátrica é dotado da visão, do conteúdo e da clareza conceitual necessários para a educação das novas gerações de estudantes. Em consequência disso, este livro fornece bases sólidas que capacitarão o leitor a adquirir o conhecimento atualizado necessário para as práticas inovadoras e modernas da psiquiatria. Além dos estudantes de psiquiatria, outros profissionais envolvidos com saúde mental considerarão esse livro uma ferramenta de grande valor. Clínica Psiquiátrica será de extrema utilidade para clínicos experientes, residentes, pediatras, psicólogos e neurologistas, bem como para profissionais relacionados, como enfermeiros, assistentes sociais, educadores, advogados e diplomatas. Alguns considerarão as explicações científicas detalhadas de grande interesse. Outros se concentrarão nas orientações clínicas do dia a dia. Todos ganharão uma nova oportunidade de ampliar seu conhecimento básico e refinar sua especialidade clínica pela leitura desse volume intelectualmente satisfatório e clinicamente perspicaz.
James F. Leckman Neison Barris Professor of Child Psychiatry, Pediatrics and Psychology Yale University. Professor Visitante, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, desde 2002
Prefácio Marcelo Pio de Almeida Fleck José Alexandre de Souza Crippa Rodrigo Affonseca Bressan
O crescimento e a pujança da psiquiatria brasileira têm sido reconhecidos por vários indicadores. Somos umas das maiores comunidades de psiquiatras do mundo, com um Congresso e uma Associação fortes, além de possuirmos uma crescente produção científica de impacto internacional, ilustrada pela alta qualidade científica da Revista Brasileira de Psiquiatria, da Revista de Psiquiatria Clínica e também de outras importantes publicações nacionais. Paradoxalmente, não tínhamos um livro-texto abrangente de psiquiatria, produzido em nosso país, que ao mesmo tempo pudesse ser utilizado por alunos de graduação, residentes em formação e psiquiatras interessados em atualizar-se nesse fascinante campo da medicina. A produção de um compêndio nesta área só poderia ser obtida com um esforço de vários profissionais e pesquisadores altamente qualificados que poderiam, em conjunto, abranger a expansão da psiquiatria nas últimas décadas, assim como discutir as suas interfaces com outras disciplinas básicas e clínicas. Entretanto, essa lacuna permaneceu por muitos anos, apesar de louváveis esforços individuais e de grupos de pesquisadores no passado. O livro Clínica Psiquiátrica, editado pelos professores Euripedes Constantino Miguel, Valentim Gentil e Wagner Farid Gattaz, é uma iniciativa extremamente ambiciosa e ao mesmo tempo necessária e oportuna, pois preenche essa carência na literatura nacional. É uma obra do Departamento e do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP) e foi escrita em sua maioria por autores formados e em atividades ligadas a essas instituições.
O livro é composto de 163 capítulos distribuídos em 1Oseções. Sua organização reflete a complexidade do campode estudo da psiquiatria do século XXI. Além dos capítulos e seções tradicionalmente integrantes de um livro de Clínica Psiquiátrica, como os que descrevem as grandes síndromes e seus tratamentos, foram cuidadosamente previstos capítulos relativos a aspectos históricos e conceituais da psiquiatria, além de interessantes seções sobre ensino e pesquisa em psiquiatria e estruturação de uma rede de saúde pública. O grande mérito desta obra, que certamente será um marco na psiquiatria brasileira, foi o de ao mesmo tempo trazer uma revisão dos aspectos mais importantes da psiquiatria atual aliada a aspectos peculiares da prática psiquiátrica brasileira. Estes aspectos, obviamente, não estão presentes nas traduções para o português dos grandes tratados de psiquiatria desenvolvidos em outros países, no entanto, seu ensino é fundamental para a formação de profissionais sintonizados com as necessidades e peculiaridades da nossa realidade. O livro Clínica Psiquiátrica será seguramente um marco no ensino da psiquiatria no Brasil e uma referência imprescindível nos países de língua portuguesa e para a psiquiatria na América Latina. O Departamento e Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo estão de parabéns e a comunidade científica nacional agradecida por mais essa iniciativa.
Marcelo Pio de Almeida Fleck José Alexandre de Souza Crippa Rodrigo Affonseca Bressan Editores da Revista Brasileira de Psiquiatria
Apresentação
Temos orgulho e satisfação em apresentar este livro com as contribuições de membros do Departamento e do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), das unidades a nós afiliadas - que compõem o Sistema HCFMUSP - e de algumas das Instituições Universitárias com as quais mantemos cooperação técnico -científica especial. Este é um livro-texto que se insere em uma longa tradição de ensino de psiquiatria que remonta a 1918, ano do primeiro curso da Cadeira de Neuropsiquiatria, regida por Francisco Franco da Rocha, e que foi ministrado na recém-criada Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, de 1912. Na época, essas aulas foram dadas no Hospital de Juqueri, um hospital asilar modelo. Com a reforma do ensino médico, em 1935, a Cadeira de Clínica Psiquiátrica foi desmembrada, sendo ocupada desde 1936 pelo Prof. Antonio Carlos Pacheco e Silva, que viria a constituir o atual Departamento de Psiquiatria. As aulas passaram a ser dadas também na antiga Diretoria Geral da Assistência aos Psicopatas. A partir de 1952, com a inauguração do "Instituto de Psiquiatria Antonio Carlos Pacheco e Silvà' (IPq), as atividades de assistência, ensino e pesquisa passaram a ser concentradas nele que foi o primeiro serviço de Psiquiatria em um Hospital Geral no Brasil.
Hoje muitas das nossas atividades são exercidas também em outros Institutos do Complexo HCFMUSP, no Hospital Universitário da USP, no Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa, nas Unidades Básicas de Saúde e nos Hospitais que fazem parte do Projeto Região Oeste (um convênio entre a Prefeitura de São Paulo e Fundação Faculdade de Medicina), além de alguns serviços externos à rede pública, bem como em laboratórios e clínicas da USP e de outras universidades com as quais temos tido frutífera colaboração em psiquiatria, saúde mental, ciências básicas, neurociências e diversos outros campos do conhecimento relacionados à nossa missão. Assim, o IPq e o Departamento de Psiquiatria, um dos dezessetes departamentos da FMUSP, em conjunto com todas as unidades descritas acima, integram o Sistema HCFMUSP, tendo como missão o ensino, a pesquisa e a assistência em psiquiatria e saúde mental. No ensino somos responsáveis pela formação e treinamento de médicos e diversos outros profissionais de saúde e de áreas correlatas, participando em cursos de graduação, pós -graduação sensu strictu, residência, aprimoramento, especialização, educação continuada e pós-doutoramento, com bom desempenho conforme avaliações nacionais e internacionais. Nossas pesquisas abrangem desde pesquisa básica em neurociências até
avaliação e difusão de modelos eficientes de intervenção para a prevenção, tratamento e reabilitação de pacientes com transtornos mentais. Na assistência, o Departamento é responsável pela orientação acadêmica do Instituto de Psiquiatria, do Hospital Universitário da USP, do Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa e, desde 201 O, também dos equipamentos de saúde de parte da Região Oeste da Cidade de São Paulo (o Projeto Região Oeste). Portanto, temos responsabilidades e atribuições bastante diversificadas, o que exige a sistematização e o controle de qualidade constantes do material didático e do trabalho para cumprirmos bem nossos papéis. Nos sos valores são determinantes da articulação das três áreas que consistem na nossa missão. O objetivo maior é oferecer estratégias terapêuticas efetivas para o alívio do sofrimento dos que estão doentes e para a prevenção do risco de desenvolver transtornos mentais. Para tanto, é fundamental dispor de evidências médico-científicas de eficácia e efetividade para todos os nossos procedimentos. Assim estaremos capacitados para formar médicos e profissionais de saúde mental competentes e com habilidade para executar tratamentos eficientes e viáveis em nosso meio. Por isso procuramos formar nossos profissionais em um ambiente humanitário e atualizado de pesquisa e assistência, para que eles desen-
volvam espírito crítico para avaliar o que houver de mais confiável e eficaz em suas áreas de atuação e, por sua vez, contribuam para um contínuo aperfeiçoamento da Instituição e das profissões que abraçaram. Este livro mostra essa interação no contexto das diferentes abordagens para o estudo e tratamento dos transtornos mentais, com diferentes modelos, às vezes aparentemente conflitantes. Entretanto, a diversidade e pluralidade nos vários referenciais que norteiam a atividade profissional é um dos principais valores universitários. Acreditamos, ainda, que o conhecimento por nós gerado ou extraído da literatura deve ser difundido de forma responsável e ampla, inclusive para sociedade em geral. Para isso, está sendo também criada uma "Escola de Educação Permanente" (www.clinicapsiquiatrica.org.br) que oferecerá informações atualizadas de forma dinâmica e integrada com os capítulos deste livro por meio eletrônico, de fácil acesso e boa qualidade. Com isso, nos manteremos alinhados aos principais atributos que sempre marcaram a atuação desta Instituição no cenário médi co-científico nacional. Concluindo, há quase um século esta Instituição exerce atividades assistenciais, de ensino e pesquisa em psiquiatria e saúde mental, tendo acumulado uma valiosa experiência e conhecimento que procuramos sintetizar neste livro.
Euripedes Constantino Miguel Valentim Gentil Wagner Farid Gattaz
Cássio M. C. Bottino Hermano Tavares Orestes V. Forlenza Renerio Fraguas Jr. Sandra Scivoletto Táki Athanássios Cordás
I
•
1n1ca
Seção 1
u iatria e seus Editor: Orestes Vicente Forlenza
1. História da Psiquiatria, 4 2. A Evolução dos Conceitos em Psiquiatria, 22 3. Psiquiatria e seus Limites, 36 4. Psiquiatria e Neurociência: Estado Atual e Perspectivas Futuras, 49 5. Interface com a Neurologia, 55 6. Interface com a Neurocirurgia, 61 7. Psiquiatria, Psicologia e Psicanálise, 70 8. Interface com Sociologia, Antropologia e Filosofia, 86 9. Influência da Cultura sobre a Psiquiatria, 92 1O.Psiquiatria e Religião, 105
imites
Não obstante os notáveis avanços tecnológicos que buscam o mapeamento da estrutura e da função cerebral, visando a uma melhor compreensão do comportamento humano e, em última análise, a separação dos processos psíquicos normais dos patológicos, a clínica psiquiátrica não pode prescindir dos modelos humanísticos para uma completa apreensão dos fenômenos mentais. É necessário integrar diferentes referenciais teóricos, como, por exemplo, o psicológico, o social e o biológico. Todavia, como consequência dessa diversidade, os métodos de investigação e as leituras dos achados muitas vezes se distanciam , podendo resultar em modelos distintos e, eventualmente, discordantes sobre a essência destes fenômenos. Pod eríamos, portanto, dizer que a psiquiatria ainda ocupa uma região cinzenta do conhecimento, vulnerável ao questionamento de alguns dos seus pressupostos básicos, entre os quais o (muitas vezes) tênue limite entre a saúde e a doença mental. Tais divergências, algumas vezes alimentadas por teorias intransigentes, geram polêmicas e su scitam d ebates. Pro curamos acolher, neste módulo introdutório, alguns dos temas que ilustram a riqueza e a complexidade da psiquiatria. A seção introdutória deste livro, intitulada "A psiquiatria e seus limites" reúne os diferentes modelos que compõem o pensamento psiquiátrico. Partindo d e uma revisão rica e abrangente sobre a história da psiquiatria, revisitamos os conceitos que sustentam as bases do conhecimento psiquiátrico, para em seguida refletir sobre os limites da psiquiatria à luz das demais ciências médicas e humanas. Os capítulos que se seguem apresentam as m últiplas inter faces desta especialidade m édica. No primeiro capítulo deste livro, Táki Cordás et al. abordam a história da psiquiatria. Não é possível conhecer completamente uma área de conhecimento sem conhecer sua história. A psiquiatria é provavelmente a mais antiga das esp ecialidades médicas e parece-nos que a mais complexa entr e todas elas. Sua complexidade reside n ão apenas nas intrincadas questões biológicas que o mais complexo dos órgãos do homem - o cérebro - oculta, mas também nas complexas e essenciais relações entre a atividade cerebral e o meio ambiente. As principais questões da n ossa prática estão contidas em nossa história: como aj udar o homem que sofre, como comportar-se diante das questões éticas que nos trás, em que medida o biológico e o cultural interagem em seu mundo interno. A histór ia igualmente n os permite, e exige, um distan -
ciamento de nossas crenças mais absolutas, na medida em que revela, com o passar do tempo, as limitações do nosso conhecimento. Em seguida, Yuan-Pang Wang et al. discorrem sobre a evolução dos conceitos em psiquiatria (Capítulo 2). Os autores descrevem, do ponto de vista epistemo lógico, como os conceitos seminais da psiquiatria se organizaram e progrediram ao longo do tempo. Este texto sintetiza as várias posições que determinaram as direções do saber psiquiátrico em diferentes épocas da história. Ao articular os principais movimentos conceituais, os autores discutem as imperfeições da polarização entre o biológico e o psicológico, apresen tando propostas conciliadoras que buscam integrar os conhecimentos h uman ísticos às neurociências, e destacar suas implicações para as teorias atuais da psiquiatria. No Capítulo 3, Zacaria Ramadam e Yuan-Pang Wang d edicam-se especificamente ao tema desta Seção 1, ou seja, a psiquiatria e seus limites. Os autores sustentam que o conhecimento psiquiátrico, devido à sua abrangência e ao fato de se ocupar de um assunto tão diverso como o comportamento humano, sempre foi um campo aberto a especulações de toda a ordem, fazendo com que com seus contornos até hoje ainda sejam mal definidos. O referencial m édico e o modelo científico são permeados por formulações leigas, religiosas, artísticas, filosóficas e políticas. A convergência dessas questões, contudo, pode resultar em uma apreensão integral dos fenômenos psíquicos. Os autores discutem a psiquiatria no contexto da medicina, a influência da psicanálise, o advento da psiquiatria biológica, bem como as pressões legais e socioeconômicas que a psiquiatria sempre sofreu. Nos cinco capítulos subsequentes, diversos especialistas discorrem, de forma pragmática, sobre as interfaces da psiquiatria com a neurociência (Marsal Sanches e Jair Soares), a neurologia (Eduardo Mutarelli), a neurocirurgia (Manoel Jacobsen Teixeira e Erich Fonoff), psicologia e psicanálise (Ariel Bogochvol) e sociologia, antropologia e filosofia (Zacaria Ramadam). Ao final da seção, Yuan-Pang Wang et al. discutem no Capítulo 9 a importância de conhecer formas culturais de expressão emocional e a influência da cultura sobre o diagnóstico psiquiátrico. Francisco Lotufo Neto et al. concluem esta seção com o tema psiquiatria e religião (Capítulo 10), apresentando as evidências científicas e discutindo os mecanismos por meio dos quais a religião influencia a saúde.
História da Psiquiatria
Táki Athanássios Cordás André Seixas Eduardo Wagner Arata ngy André Mata
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Antiguidade, 5 Das prédicas medievais à modernidade: religião e
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
"desencantamento" da loucura, 6 Renascimento, 6 Nascimento da medicina moderna e práticas psiquiátricas nos séculos XVII e XVIII, 7 Frenologia de Gall, 8 Psiquiatria francesa e tratamento moral, 8 Teoria da degeneração, 9 Psiquiatria alemã, 1O
1. Compreender os diferentes enfoques sobre a história da
psiquiatria. 2. Saber o início do pensamento médico-científico. 3. Explicar o desenvolvimento das escolas alemã e francesa. 4. Explicar os primórdios das terapêuticas psiquiátricas. 5. Explicar o desenvolvimento da psiquiatria no Brasil e no Instituto de Psiquiatria da FMUSP.
Emil Wilhelm Magnus Georg Kraepelin (1856- 1926), 1O Escola de Wemicke-Kieist, 11 Forma e conteúdo: Jaspers e Schneider, 11 Terapias biológicas, 12 Antipsiquiatria, 13 Psicoterapias, 14 Psiquiatria no Brasil: introdução, 15 Origens da especialidade médica: planos da Clínica Psiquiátrica da FMUSP, 16 Questões, 20 Referências bibliográficas, 20
Como aponta Berrios em seu capítulo introdutório de The history of mental symptoms, há várias formas de entender e abordar a história da psiquiatria, devendo-se obrigatoriamente definir alguns conceitos. Pode-se entender a história da evolução da psiquiatria como o desenvolvimento, dentro da medicina, da especialidade, que nasceu no final do século XVIIP. Pode-se traçar a história dos termos psiquiátricos (obsessão, delírio, mania etc.) ou dos conceitos funda mentais da especialidade (teorias sobre anorexia nervo sa, esquizofrenia, depressão etc.) no que se convencionou chamar de história conceitual. Berrios salienta, por exemplo, que o estudo da história do termo melancolia não explica necessariamente por
que certos sintomas são chamados melancólicos segundo os padrões atuais (despertar precoce, retardo motor). Certamente, mais do que com qualquer outra especialidade médica, o estudo de muitos conceitos psiquiátricos, como as oposições "endógeno" e "exógeno': "neurose'' e "psicose': "formá' e "conteúdo", não pode ser entendido sem o conhecimento das ideias que permearam histórica e filosoficamente as discussões sobre mente e cérebro, entre outras questões epistemológicas. Mais possibilidades de estudar o tema incluiriam o estudo por meio da história dos termos equivalentes em diferentes sociedades e línguas (etimologia histórica e comparativa) ou dos comportamentos e das alterações cerebrais envolvidas (paleontologia comportamental). Parte da história da psiquiatria também pode ser contada pelo estudo de algumas de suas disciplinas, pelo desenvolvimento histórico da psicofarmacologia, pela história da psicopatologia, das correntes psicoterápicas etc. Pode-se igualmente abrir mão de qualquer perspectiva biográfica ou antológica e descrever a evolução das instituições psiquiátricas, tal qual se descreve, por exemplo, a história do homem com base na história dos jardins ou dos meios de transporte.
1 HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA
Não é, em função das limitações de espaço, do escopo deste capítulo aprofundar especificamente algum dos diferentes aspectos específicos citados.
Antiguidade A história das primeiras descrições de quadros clínicos tratados atualmente pela psiquiatria ocidental pode começar a ser contada pelas visões mágicas que a doença mental assumia entre assírios, babilônios, egípcios e pela primitiva noção de punição por um deus irado. O Velho Testamento é pródigo em figuras possuídas pelo demônio e relata como o Senhor puniu Nabucodonosor, reduzindo-o à figura de um animal (lobo) que rastejava em seu palácio. Apenas a partir dos gregos a pergunta "que deus ofendi ou que entidade me pune e pelo quê?" será substituída pela busca do órgão acometido, pela base física da doença. As crenças no sobrenatural e nas possessões como causa das doenças mentais passam a ser confrontadas na medicina grega, como no seminal trabalho "Sobre a doença sagrada" de Hipócrates, que aborda a epilepsia como doença do cérebro e não um mal no qual o sobrenatural esteja presente. Com Hipócrates e seus seguidores, a assim chamada escola hipocrática, o cérebro foi eleito como o centro das funções mentais e de suas alterações, superando a postura cardiocêntrica de Aristóteles, que considerava o coração o centro das emoções humanas. As teorias da escola hipocrática incorporavam as pectos anatômicos, fisiológicos e de temperamento na gênese das doenças. Pertence a Hipócrates a ideia de que a histeria afetaria apenas as mulheres, resultado do deslocamento eventual do útero pelos diversos órgãos, incluindo o cérebro, e que poderia ser curada ou prevenida pelo casamento. Trata-se de forma bastante criativa a primeira ideia que manifesta a ligação entre a vida sexual, sua frustração e os sintomas mentais. A escola hipocrática, além da epilepsia e da histeria, descreveu com invejável precisão os quadros de delirium, as psicoses puerperais, as fobias entre outros. O termo frenite foi utilizado para referir-se a um processo inflamatório que causaria sintomas físicos e psíquicos, mas nunca foi anatomicamente localizado. No século XIX, foi substituído por delirium, confusão mental e turvação da consciência2 • Ainda se pode atribuir aos hipocráticos o desenvolvimento de métodos psicoterápicos, pela indução do sono e interpretação dos sonhos ou com os rudimentos da psicoeducação. O século XX a.C. marca a ascensão do poder romano e a submissão total das cidades gregas. Apesar da franca helenofilia romana pelos diferentes aspectos da cultura grega, o interesse pela medicina entre eles pode ser
avaliado pela frase do xenófobo Catão: "a medicina, como a tragédia, é uma arte gregà'. Desse modo é possível destacar uma verdadeira legião de médicos gregos bem-sucedidos no Império Romano, como Asclepíades de Bitinia (120 a.C. -30 a.C.), Artemidoro de Éfeso, Are teus da Capadócia (o primeiro a falar da diferença entre a melancolia, doença, e a reação depressiva psicologicamente compreensível) até chegar a Galeno. Galeno (128 d.C. -201 d.C.) nasceu em Pérgamo e faleceu em Roma. Dissecou macacos freneticamente para conhecer o sistema cardiovascular e a anatomia do sistema nervoso periférico, reconheceu os nervos espinhais e sete dos doze pares cranianos, chegando ao estudo dos ventrículos cerebrais. Deve igualmente ter dissecado alguns cadáveres, mas seus erros nas descrições anatômi c as mostram que estava muito mais familiarizado com símios que com humanos. Galeno, pela primeira vez, descreveu o delírio dos alcoolistas e a simulação das doenças, a qual chamou de patomímia3. Propôs, igualmente, a existência de três tipos de melancolia, assim como formas diferentes de psicoses. Profundo conhecedor dos textos hipocráticos, reafirmou a exatidão da descrição da melancolia e realçou que, embora os pacientes pudessem ser uns diferentes dos outros, todos apresentavam medo e falta de ânimo como sintomas cardinais. A teoria humoral da bile negra é extensivamente desenvolvida e influenciará a medicina de maneira mais ou menos intensa pelos próximos mil anos. Uma visão es quemática de sua teoria dos humores está representada na Figura 1 e na Tabela I. Segundo a teoria hipocrática da doença, o diagnóstico - olhar e ver através - é feito pela observação dos quatro humores, baseado no conceito dos quatro fluidos essenciais: bile, fleugma, sangue e bile negra, correspondendo aos quatro elementos naturais, fogo, água, ar, terra, respectivamente. Entendia-se que, em proporções adequadas, esses fluidos ditariam a saúde humana, enquanto na doença ocorreria o desequilíbrio entre eles. Os quatro elementos regulariam as emoções e, por fim, todo ocaráter, "colorindo" os indivíduos, segundo a predominânÚMIDO Colérico-sanguíneo
SANGUÍN EO
Sanguíneo-fleugmático
FLEUGMÁTICO FRIO
COLÉRICO CALOR
Colérico- ~
melancóli co
MELANCÓLICO
Fl eugmático-melancólico
SECO
Figura 1
Representação da teoria de humores de Galena.
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A PSIQUIATRIA E SEUS LIMITES
Tabela I Teoria dos humores de Galeno
Humor
Qualidades
Sanguíneo
Quente, úmido
Colérico
Quente, seco
Fleugmático
Frio, úmido
Melancólico
Frio, seco
Elemento
Personalidade
Ar
Otimista, falante, irresponsável, gordo
Fogo
Explosivo, ambicioso, magro
Água
Lento, corpulento, pregUIÇOSO
Terra
Introspectivo, pessimista, magro
cia de um ou outro dos fluidos em coléricos, fleugmáticos, sanguíneos e melancólicos, respectivamente4.
Das prédicas medievais à modernidade: religião e "desencantamento" da loucura A atenção dada aos fenômenos sócio-históricos no período denominado como medieval, ou seja, da queda do Império Romano em 476 até o ano 1000, Alta Idade Média, e de 1300 até a queda de Constantinopla em 1453, Baixa Idade Média5•6, pode ser resumida (ao contrário dos gregos) na frase de Tertulio: "Credo quia absurdum" (creio porque é absurdo). A doença e a saúde são representadas, na Idade Média, como uma feroz batalha entre Deus e sua legião de anjos, arcanjos e santos contra Satanás e suas hostes. A alma humana frágil estaria à mercê do resultado dessas batalhas, e sua sanidade mental dependia da vitória das forças benignas. Rezas, rituais e trepanações deveriam servir para tentar libertar o corpo dos demônios que possuíam o pobre indivíduo. Em 1486 o abandono do pensamento racional sofreu mais um duro golpe com a publicação do Malleus Male.ficarum (Martelo das bruxas) pelos teólogos dominicanos Heinrich Kramer e Iacobus Sprenger. Embora a data de publicação didaticamente esteja inserida nos séculos do Renascimento, trata-se de obra tipicamente medieval. Baseado na bula Summis desiderantes de Inocêncio VIII de 1448, o Malleus Male.ficarum é uma espécie de manual com critérios diagnósticos para o reconhecimento de bruxas e bruxarias dividido em três partes. A primeira seção reafirmava a existência do demônio e sua ação principalmente em casos de sexualidade muito exacerbada. Como a mulher era considerada muito mais erotizada do que o homem, lá se assestava o perigo, nelas estava aberta a possibilidade da transformação em bruxa e conjunção carnal com o demônio. Essa seção ensinava ainda os juízes a reconhecerem as feiticeiras em seus múltiplos disfarces. A segunda seção descrevia as formas de malefício resultantes da ação do demônio. E a terceira parte dedicava-se ao ensinamento das formas de interrogatório e condenação7 •
Muitas das mulheres descritas como bruxas apresentavam comportamentos que, atualmente, poderiam ser chamados de histéricos ou psicóticos, o que levou à condenação e morte por parte da Inquisição de milhares de mulheres por cerca de 150 anos. Merece destaque o trabalho de Paracelsus (1493 1541), famoso médico suíço que rejeitava a teoria humoral, propondo que o ser humano possuía uma alma divina que habitava um corpo animal e que os transtornos psiquiátricos surgiriam quando os instintos suplantavam o espírito. Paracelsus também pode ser considerado precursor da psicossomática ao propor que emoções pudessem causar doenças corporais2 •
Renascimento O Renascimento é um período da história europeia não rigidamente demarcado em termos temporais, mas que compreende um conjunto de profundas modificações ocorridas entre os séculos XIV e XVI. Esse poderoso movimento social, cultural e intelectual marca uma diversidade e uma inovação de ideias não vistas até então. Entre 1530 e 1546, o médico italiano Girolamo Fracastoro publica relatos de uma nova doença, com características desfigurantes, graves sintomas mentais e alta mortalidade. Ele a chamou de syphilis e propôs que seria causada por contato sexual. Nos próximos séculos, a sífilis crônica seria a principal causa de demência na Europa. O Humanismo renascentista, livre para pensar, tenta abandonar a antiga postura maniqueísta da mente dividida na constante batalha entre Deus e o diabo e olha com ma1s atençao nao apenas o orgamco, mas a perspectiva filosófica e psicológica do homem que sofre. Isso não significa, porém, que milagrosamente o homem renascentista para de temer as bruxas e os demô nios e se torna um ser científico, nem que a medicina dos séculos XV e XVI tenha sofrido grande renovação em relação à Idade Média. Pelo contrário, algumas das ideias renascentistas sobre a insanidade são profundamente irracionais, sem conexão com as ideias greco-latinas tão caras aos autores e artistas da renascença. E, por vezes, profundamente marcadas pelas prédicas religiosas. Esse panorama pode ser visto claramente na obra máxima de Robert Burton (1557- 1640), A anatomia da melancolia. Burton assume uma postura médica bastante ambígua, quase dicotômica. É a loucura um problema espiritual ou médico? Lista o autor, entre as causas da melancolia, além da idade avançada, o temperamento, a hereditariedade e até a possibilidade de ser causada secundariamente por afecções de outras partes do corpo, agindo no cérebro (um grande avanço, sem dúvida). Mas, ainda herdeiro do homem medieval, inclui também explicações etiológicas baseadas em causas sobrenaturais, como Deus, diabo, mágicos, bruxas e questões astrológicas entre as possibilidades etiológicas. •
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A anatomia da melancolia foi primariamente publicada em 1621, um pantagruélico livro de 900 páginas, que Burton passou a vida revisando e ampliando até chegar a mais de 1.300 páginas na saedição, a última publicada durante a vida do autor. Inúmeras outras edições se se guiram até que o livro ficasse quase um século sem ser reeditado, até voltar a sê-lo recentemente, em 2001. Reza a tradição que Burton escreveu seu tratado também como uma forma de lidar com sua própria depressão (ou distimia, como querem alguns). Trata-se de um livro que exige verdadeiro tour de force para a leitura: um único parágrafo chega a durar sete páginas, o prefácio, mais de cem; é prolixo e carregado de citações de Homero, Virgílio, Heródoto, Santo Agostinho, da Bíblia e até de Shakespeare, além de centenas de outros autores. Contudo, a compreensão da racionalidade humana ligada ao esclarecimento do pensamento passa a ganhar força e a tomar corpo nos discursos em torno da loucura e do louco, afinal o que conhece não pode estar louco, assim como o eu que não pensa não existe. Excluída pelo sujeito que duvida, a loucura é a condição de impossibilidade do pensamento. Ou seja, com base no racionalismo moderno, sabedoria e loucura serão cindidas pelas ameaças que a denominada loucura traria no estabelecimento entre os sujeitos e suas verdades. Rapidamente, o louco ganharia um lugar diferente do vivido por ele em sua comunidade, sendo esquadrinhado não mais como desviante, mas como doente a ser reconduzido ao seu "equilíbrio" físico e mental.
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Figura 2
A anatomia da melancolia, de Robert Burton.
Nascimento da medicina moderna e práticas psiquiátricas nos séculos XVII e XVIII O século XVII e, particularmente, o XVIII marcam a definitiva (ou quase) superação e o declínio do dogmatismo religioso e a ascensão do racionalismo. Frequentemente denominado de século do Iluminismo (Aufklaring), é caracterizado pelo sentimento cosmopolita e secularista, além do respeito pela dignidade do homem (tentou -se, ao menos) e da convicção de que o conhecimento e a cultura levariam a um mundo melhor. Os intelectuais da Inglaterra, da França, da Holanda e da Alemanha ridicularizavam o pecado original e o pensarnento dos clérigos de que a vida era um mar de lágrimas. A ciência e a tecnologia, pensavam, levariam o homem a controlar as forças naturais, ao progresso social, à prosperidade, ao controle e à cura de todas as doenças e, talvez, à imortalidade8 . Com essas expectativas gigantescas não é de se admirar que os resultados tenham sido tão modestos; mas se não se chegou ao espaço, subiu-se uma respeitável montanha. No começo do século XVII, a experimentação é a ordem do dia, substituindo a tradição, a fé e a abstração dedutiva de gabinete. Os séculos XVII e XVIII, na medicina, mostram o conhecimento cada vez mais desenvolvido da anatomia humana, continuando a linha apresentada por Andreas Vesalius no século XVI. Os anatomistas da época mostram -se excelentes artistas e, capitalizando os avanços da imprensa, elaboram esplêndidos atlas de anatomia. Thomas Willis (1621 -1675) realizou autópsias em diversos pacientes, reconhecendo a diferença entre pacientes acometidos por quadros orgânicos, em que o cérebro apresentava alterações perceptíveis, e quadros mentais sem patologia aparente à autópsia. Descreveu estruturas cerebrais e ficou imortalizado pela descrição do polígono vascular nomeado por ele na base do cérebro9 . Outro importante médico inglês foi Thomas Sydenham (1624- 1689), precursor das tentativas de construção "ateórica'' para a classificação dos quadros mentais. Procurou incorporar os conhecimentos psicológico e fi siológico da época numa visão mais sistemática da insanidade. Sydenham também procurou criar um modelo compreensivo dos transtornos mentais, atribuindo causas "externas" (quadros reacionais), "internas" (distúrbios dos "espíritos animais") e "antecedentes" (predisposições inatas)2. Ele também observou que os sintomas da histeria poderiam acometer também os homens. Curiosamente, o médico inglês é mais conhecido por suas descrições neurológicas, como a da coreia que leva seu nome. Os trabalhos dos grandes anatomistas Malpighi e do holandês Herman Boerhaave passam a exibir um corpo que opera por meio de um sistema integrado de válvulas que controlam a pressão dos fluidos, um sistema que subs-
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titui a teoria dos humores por um sistema de entendimento mecânico e hidráulico do corpo (frequentemente chamado de "homem mecânico" ). Segundo Friedrich Hoffmann, médico e químico alemão, "medicina é a arte de adequadamente utilizar os princípios físico-mecânicos para preservar a saúde do homem e restaurá-la quando ela se perdeu". Entendia a doença como o desequilíbrio do tônus corporal. Um fenômeno físico, mas que dependia de outro elemento denominado de força vital - anima. Tais proposições levaram à concepção do vitalismo, segundo o qual os fenômenos eram físicos, mas apresentavam determinada força vital agindo sobre eles 10 • A partir da segunda metade do século XVIII, as ideias psiquiátricas são profundamente influenciadas pela filosofia empirista de John Locke (1632 - 1704) e de seu seguidor Etienne Condillac (1715 - 1780). John Locke, um dos mais influentes, senão o mais influente entre os filó sofos ingleses do século XVIII, recebeu treinamento em ciência, filosofia e medicina. Opondo -se ao modelo das ideias inatas de Descartes, identifica apenas as experiências como fontes de conhecimento. O cérebro, afirma, ao nascer é uma tábula rasa, em que o mundo das experiências imprime, gradualmente, suas impressões. O cérebro organizaria ativamente as experiências mediante associação de ideias, chegando ao resultado final, o conhecimento 11 . Locke sugere, em seu Essay concerning human understanding (1600), que a loucura seria resultante de uma falha na associação das informações recebidas pelos pro cessos sensoriais, que deveriam ser transformadas em conhecimento 12 • As ideias de Locke influenciaram profundamente William Cullen (171 O - 1790), professor da Universidade de Edinburgo. William Cullen foi o maior professor de medicina da Grã-Bretanha no século XVIII. Com sólida formação filosófica, amigo de Adam Smith e David Hum e, nascido na Escócia, desenvolveu a maior parte de seu trabalho in icialmente em Glasgow, onde se tornou professor de medicina e, posteriormente, em Edimburgo, para onde se mudou em 1755 e usou pela primeira vez o termo "placebo" em seu sentido atual. Embora Cullen tenha escrito sobre uma série de assuntos diversos, como química, filosofia, geologia e medicina, sua importância na história da psiquiatria advém do fato de ter cunhado o termo neurose. Acreditava Cullen que excessos ou deficiências locais ou generalizadas da "energia dos nervos" seriam responsáveis por um grande número de doenças, e, na publicação de sua nosologia em 1769, as neuroses eram uma das categorias mórbidas. Embora as neuroses de Cullen abarcassem quadros tão diversos como doenças reumáticas, diabetes, cólera, quadros psicóticos, convulsões, vesania (antigo termo romano para insanidade), entre outros, o termo se manteve por todo o século XIX. Neurose era o nome dado para defi-
nir quadros neuróticos, como histeria, hipocondria e neurastenia, até ser definitivamente imortalizado por Freud no começo do século XX.
Frenologia de Gall Franz Joseph Gall (1758 -1828), médico alemão, anatomista e fisiologista, considerava que o cérebro continha diferentes órgãos que ocupavam determinadas áreas. A configuração individual de tais órgãos poderia ser mapeada na superfície do crânio, revelando características da personalidade conforme forma, tamanho e proporção de estruturas faciais e cranianas. O método ficou conhecido como frenologia e permaneceu popular até meados do século XIX. A frenologia exerceu influência em várias áreas das ciências, desde medicina e psicologia até as nas centes antropologia e sociologia, com repercussões importantes na sociedade da época 13 • Na Itália, por meio do direito criminal, surgiu a maior associação com a nascente antropologia e a medicina. O médico Cesare Lombroso (1835- 1909) e os juristas Rafaelle Garofalo e Enrico Ferri criaram a antropologia criminal, que se caracterizava por um discurso médico-científico que patologizava o ato antissocial (criminoso), assim; buscavam estigmas morfológicos que pudessem evidenciar um tipo humano destinado ao crime. Orelhas afastadas, cabelos abundantes, protuberâncias frontais e maxilares enormes, queixo quadrado, entre outros sinais, ,seriam para Lombroso o retrato ideal do criminoso. Lombroso, formado em medicina e influenciado des de cedo por teorias materialistas, positivistas e evolucionistas, tornou-se famoso por defender a teoria que ficou conhecida como a do criminoso nato, termo que na realidade foi criado por Ferri. Com base no pressuposto de que os comportamentos são biologicamente determinados e ao basear suas afirmações em grande quantidade de dados antropométricos, Lombroso construiu uma teoria evolucionista, na qual os criminosos aparecem como tipos atávicos, ou seja, como indivíduos que reproduzem física e mentalmente características primitivas do homem. Sendo o atavismo tanto físico como mental, poder-se-ia identificar, valendo-se de sinais anatômicos, os indivíduos que estariam hereditariamente destinados ao crime 14 . Assim sendo, os indícios do mal e do crime se revelavam na aparência congênita, daí o chamado criminoso nato. Dessa forma, o delinquente seria um doente; o crime, um sintoma; a pena ideal, um tratamento.
Psiquiatria francesa e tratamento moral Da França partiram os primeiros raios da construção da ciência psiquiátrica, a partir do final do século XVIII e início do século XIX, com Pinel, Esquirol, Morei, Magnan Falret, Moreau de Tours, Clérambault e muitos outros.
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O final do século XVIII marca o início da busca por condições mais humanitárias, em virtude dos escandalosos maus-tratos que os doentes sofriam nas instituições asilares. Na Inglaterra, William Tuke, um filantropo quacker comerciante de chá e café, fundou em York em 1796 o asilo de Retreat para oferecer tratamento mais humano aos doentes mentais. Na Itália, o médico florentino Vicenzo Chiarugi publica em 1793 Della pazzia, propondo que a mente adoece em função dos estímulos dos sentidos e do sistema nervoso. Desenvolve ideias sobre a não restrição e contrárias ao aprisionamento dos doentes mentais, oferecendo -lhes condições mais dignas e propondo a eficácia do chamado tratamento moral. Essas ideias, embora antecedessem as de Pinel, foram menos valorizadas pela ausência de discípulos e por serem escritas em italiano em vez do francês, que era a língua universal da época. Assim, sem dúvida, o trabalho que mereceu maior divulgação ocorreu na França com Philippe Pinel ( 1745 1826), considerado por muitos o fundador da moderna psiquiatria. Nascido no sul da França, iniciou seus estudos médicos em Toulouse, onde apresentou sua tese em 1773, e os completou em Montpellier. Em 1778, mudou-se para Paris, onde não conseguiu clinicar, pois segundo as regras do Antigo Regime, apenas os formados na própria cidade podem clinicar, passando a dedicar-se ao jornalismo médico. No meio da Revolução Francesa, inspirado em seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, e após convencer o triunvirato Robespierre, St. Just e Couthon, implanta a partir de 1793 (quatro anos após a revolução) reformas humanitárias em Bicetre e, posteriormente, na Salpetriere, abolindo o uso de correntes e algemas. O tratamento moral de Pinel repudiava a utilidade dos métodos físicos (embora pudesse usá-los se houvesse um intuito terapêutico ulterior) e a restrição dos manicômios e duvidava da insistência na busca de fatores orgânicos e do amplo uso de drogas terapêuticas da épo-
Figura 3
Pinel.
ca. Acreditava o francês que "o controle morar: uma teo ria baseada em métodos psicológicos, pudesse, por meio da atitude médica firme, exemplar (misto de doçura e autoridade), curar o doente. "As bases filosóficas do tratamento" parecem estar relacionadas com a "incorruptibilidade moral" de Robespierre e sua intenção era devolver ao paciente "sua responsabilidade morar: convencê-lo de seu "erro" (como as ideias delirantes) e propiciar retorno às suas identidades individual e social anteriores. Pinel nunca definiu exatamente as técnicas do que constituía o "tratamento moral", talvez por isso haja tanta confusão e incerteza na literatura. Outro fator é o entendimento incorreto do termo moral, como algo que se relaciona com a ética ou com a adequação dos costumes; seu uso significava a oposição a métodos físicos e podia ser traduzido puramente por "psicológico'~ Talvez o melhor fosse dizer psicoterapia ou uma forma dela 15 . "Em geral se conseguem piores resultados com medicamentos do que com remédios morais, sobretudo, mediante uma atividade física e mental que possa oferecer uma distração aos melancólicos envolvidos em seus tristes pensamentos e que, inclusive, modifique sua viciosa circularidade", diz PineP 6 •
Teoria da degeneração Influenciados pela obra de Prosper Lucas, Tratado filosófico efisiológico da hereditariedade natural, dois dos mais eminentes psiquiatras da história da psiquiatria francesa, Morel (1809-1873) e, posteriormente, Magnan (1835 1916), propõem a teoria da degeneração. De inspiração darwinista, a teoria da degeneração considera que uma variedade de quadros psiquiátricos conhecidos, incluindo obsessões e compulsões, seria hereditária ou precocemente adquirida e transmitida por gerações, podendo eclodir a qualquer momento da vida
Figura 4
Pinel in the courtyard of the sapetreire.
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ativada por eventos externos dos mais díspares, como doenças médicas, sífilis, traumatismos cranianos, alcoolismo, alimentação deficiente, conduta sexual desregrada, avareza e outros. A conduta sexual anômala de um membro da família será transmitida para seu filho e desse para seus des cendentes em progressivas piora e gravidade. Essa teoria aproximava a moral da biologia, uma vez que os indivíduos degenerados apresentavam não apenas progressivo decréscimo orgânico, mas também de comportamento e escolhas pessoais 17 • A teoria influenciou importantes obras de pelo menos dois autores, o desenvolvimento das ideias sobre sexualidade de Krafft-Ebing (1840-1902) e do psiquiatra italiano Cesare Lombroso ( 1836-1909) sobre o criminoso nato. A principal obra de Lombroso, I.:uomo delinquente (O homem delinquente, de 1876), que iria influenciar por muitos anos o estudo do direito e a criminologia, propunha o diagnóstico da degeneração de um indivíduo com base em estigmas fisionômicos, como testa excessivamente curta, tatuagens, sobrancelhas muito grossas e outros. No Brasil, a teoria da degeneração ou degenerescência foi muito influente no meio médico brasileiro na segunda metade do século XIX e no início do século XX, com grande relevância para a medicina legal.
Psiquiatria alemã Emil Wilhelm Magnus Georg Kraepelin (1 856- 1926) A dicotomia kraepeliniana da demência precoce de um lado e da loucura (ou insanidade) maníaco-depressiva de outro, proposta no final do século XIX, é ainda o mais forte conceito taxonômico (e certamente o mais antigo) ainda vigente na psiquiatria. Suas ideias passaram sobre as demais propostas classificatórias como um panzer passaria sobre um gato e ainda, com raras exceções, serve de balizamento para pesquisas neuroquímicas, clínicas e genéticas. É possível dizer que psiquiatras ainda vivem em um mundo kraepeliniano 18 • Emil Kraepelin cursou medicina em Wurzburg e em Leipzig, onde estudou com Wilhelm Max Wundt (18321920). Ainda estudante, decidiu tornar-se psiquiatra - Irrenarzt - e ganhou um prêmio da Universidade de Wurzburg por seu trabalho na área psiquiátrica, sendo, posteriormente com 21 anos, assistente de Franz von Rinecker. Após ser aprovado em concurso na Universidade de Wurzburg, em 1878, sucedeu Aguste Henri Forel (1848 1931) como assistente de Johann Aloys von Gudden (18241886), em Munique, trabalhando por quatro anos. Johann von Gudden é, atualmente, uma personalidade esquecida, mas foi um dos mais renomados psiquiatras da época, muito interessado em psiquiatria biológica; como diretor do
Oberbayerische Kreis - Irrenanstalt, em Munique, tornando-se professor de psiquiatria nessa universidade. Em seu laboratório, além de Kraepelin e Forel, trabalharam Oskar Panizza e Franz Nissl, que tornaram o laboratório a primeira célula do futuro Instituto de Pesquisa em Psiquiatria de Munique, fundado mais tarde pelo próprio Emil Kraepelin. Designado médico da família real, von Gudden tentou tratar do famoso rei Ludwig II da Baviera, com quem em situações misteriosas morreu afogado em 13 de julho de 1886, no lago Starnberg, perto do castelo de Berg19 • Trabalhando com Gudden no Munchen Kreisirrenanstalt, mas precisando de dinheiro para casar-se, aceitou a posição de médico-chefe na Silésia; em 1885, novamente retornou a Dresden e, em 1886, estabelece-se como professor de psiquiatria na Universidade de Dorpat, atual Tortu, na Estônia, sucedendo Hermann Emminghaus. Em 1891, Kraepelin foi indicado para a referida cátedra, de onde saiu para, em 1903, tornar-se professor de psiquiatria clínica na Universidade de Ludwig-Maximilians em Munique. Alois Alzheimer estava em Heidelberg há apenas um ano e, a convite de Kraepelin, acompanhou-o para um laboratório maior e com mais recursos em Munique. Em 1906, em um encontro da Sociedade de Alienistas do Sudoeste, Alzheimer apresenta os achados neuropatológicos de uma mulher falecida aos 51 anos em Munique: "eine eigenartige Erkrankung der Hirnrinde" (uma doença peculiar do córtex cerebral), o primeiro relato da doença que viria a ter o seu nome. Kraepelin foi igualmente um dos pioneiros no que se convencionou chamar de psiquiatria transcultural, tendo
Figura 5
Emil Kraepelin.
1 HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA
viajado para Índia, Java, Estados Unidos e México, morrendo em 1926 quando se preparava para uma viagem ao Ceilão (atual Sri Lanka). Esse homem brilhante gostava e entendia muito de artes plásticas, gostava de poesia e era um bom poeta ro mântico. Chegou a escrever uma biografia de Bismarck, em que compara seus próprios aspectos psicológicos com os do grande "Chanceler de Ferro" da Alemanha18. Quando Kraepelin, em 1899, na sexta edição de seu tratado, propôs a sua dicotomia, isso se contrapunha à ideia dominante na psiquiatria alemã da psicose única. A teoria da psicose única (Einheitspsychose), de Wilhelm Griesinger (1817-1868), grande psiquiatra alemão falecido então há cerca de trinta anos, propunha que a melancolia era o estágio inicial de uma única doença que, progressivamente, passaria por outros estágios até desembocar na insanidade. A ideia influenciaria grandes nomes da psiquiatria, como Karl Kahlbaum (1828-1899), na Alemanha, e Henry Maudsley (1835-1918), na Inglaterra20 . Embora em oposição às ideias de Kahlbaum, Kraepelin foi influenciado pelo grande psiquiatra de Gorlits, ao adotar o conceito de catatonia (anexando-o como uma das formas de sua demência precoce) e ao acompanhar o paciente em seu diagnóstico sincrônico (ou transversal) e diacrônico (ou longitudinal), o que não merecia especial atenção da psiquiatria na época2 1 • As diferentes edições de seu tratado mostram as ideias de Kraepelin em constante evolução; por exemplo, o conceito e o status nosológico da melancolia involutiva. Na sétima edição de seu tratado, ele descreve a melancolia involutiva como uma depressão agitada que ocorria pela primeira vez após os 40 anos de idade, sendo uma entidade separada da insanidade maníaco -depressiva. Já na oitava edição, confrontando um trabalho de Dreyfus com sua própria experiência clínica, Kraepelin abandonou a ideia de entidade independente e volta a inseri -la no contexto da insanidade maníaco-depressiva. Dreyfus, reexaminando boa parte dos pacientes descritos por Kraepelin como apresentando a doença, apontou para o fato de que a maioria exibia episódios prévios e que o prognóstico era melhor do que o proposto anteriormente. Outro exemplo de seu espírito crítico é o refinamento contínuo do conceito de estado misto, introduzido na quinta edição, burilado na sexta e aperfeiçoado após o trabalho junto a seu assistente, Weygandt, para a sétima edição. Kraepelin usou a denominação estado misto para descrever quadros caracterizados pela ocorrência simultânea de sintomas opostos da psicose maníaco-depressiva: dois tipos na sexta edição, seis na sétima edição (mania depressiva ou ansiosa, depressão excitada, mania com pobreza do pensamento, estupor maníaco, depressão com fuga de ideias e mania inibida)22 • Dando continuidade à fenda aberta por Kraepelin, o psiquiatra suíço Eugen Bleuler (1857-1939), em sua obra
principal Demência precoce ou o grupo das esquizofrenias ( 1911), cunha o termo esquizofrenia, diferenciando tal quadro das demências. Bleuler introduz conceitos como autismo e ambivalência, alteração das associações de ideias, além de descrever a personalidade esquizoide, baseando o diagnóstico de esquizofrenia nos complexos sintomáticos e não priorizando a importância dada por Kraepelin à evolução.
Escola de Wernicke-Kieist A unificação de todos os transtornos do humor sob um mesmo conceito, o kraepeliniano, de loucura maníaco-depressiva e da demência precoce, englobando quadros muito diferentes descritos por vários autores (Kahlbaum, Hacker), causou grande rejeição em alguns círculos psiquiátricos, não apenas fora da Alemanha (Inglaterra, França, Escandinávia), mas dentro do próprio país23 , onde existia a tendência hostil à descrição extremamente compartimentalizada de categorias, apenas três, no caso: esquizofrenia, paranoia e loucura maníaco-depressiva24. Carl Wernicke (1848 -1905), em Breslau e posteriormente em Halle, contemporâneo de Kraepelin, tentou construir um ambicioso sistema de significados entre sintomas psiquiátricos e áreas cerebrais específicas. O tempo consagrou, no entanto, muito mais seus achados neurológicos (área e afasia de Wernicke). Sua morte prematura (ao andar de bicicleta foi atropelado por um caminhão) e, provavelmente, sua classificação muito complicada (que seu discípulo Kleist aperfeiçoou ainda mais) fizeram com que as ideias dessa escola fossem marginalizadas e tivessem poucos seguidores; Jaspers, por exemplo, chamou suas ideias de "mitologia cerebral". Lastimavelmente, isso talvez tenha postergado em demasia o reconhecimento da proposição que Karl Kleist (1879 -1960) e sua aluna, Edda Neele, já haviam feito na primeira metade do século XX, a de dividir os quadros afetivos em unipolar (einpolig) e bipolar (zweipolig). Kleist definiu também um subgrupo de psicoses, as psicoses cicloides que, na classificação de Kraepelin, faziam parte da esquizofrenia e das doenças afetivas 25 • Apenas com a revalorização dos trabalhos de Karl Leonhard ( 1904- 1988 ), aluno desde 1936 e sucessor de Kleist, em Berlim, nas décadas de 1950 e 1960, adotou-se a divisão entre a depressão unipolar e a depressão bipolar.
Forma e conteúdo: Jaspers e Schneider A fenomenologia de Jaspers se fundamentou na compreensão e na distinção entre o processo mórbido e o desenvolvimento psicológico, único compreensível. A diferenciação entre forma (forma do grego morphe) e conteúdo, aspecto essencial na fenomenologia e no de senvolvimento psicopatológico, surgiu no século XIX,
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mas ela remete à filosofia grega e, em particular, às ideias de Platão e Aristóteles. A forma designaria, inicialmente, a configuração exterior, a figura, a estrutura visível de um corpo. Porém, associada a esse sentido, está vinculada uma segunda acepção. A forma, o eidos aristotélico, referia-se à "essência ou caráter comum de um objeto". A forma representaria o imutável, o que tem caráter universal, o que define o objeto em sua essência independentemente de variações individuais. Em psicopatologia, os aspectos formais do pensamento, da sensopercepção, dos estados afetivos, entre outros. O conteúdo seria, em psicopatologia, o colorido individual sociocultural que o fenômeno assume; a variação individual, o mutável, o particular. A forma corresponderia ao conceito de patogênico, ligado diretamente ao pathos, e o conteúdo seria o patoplástico, o que o colore e caracteriza sua individualidade. Na psiquiatria, essa contraposição foi introduzida por Kahlbaum em 1863, opondo a essência da doença às suas apresentações mutáveis. A noção de forma e conteúdo é uma das mais importantes contribuições de Karl Jaspers. Karl Jaspers trabalhou na Clínica Psiquiátrica de Heidelberg de 1908 a 1915. Em 1911, foi convidado a escrever uma Psicopatologia geral (Allgemeine Psychopathologie), cuja primeira edição apareceu em 1913. Inspirou-se na fenomenologia de Husserl como método científico. Clínico experiente, Jaspers utiliza-se do modelo descritivo para conhecer e reportar os fenômenos de consciência, as vivências de seus pacientes. Da mesma maneira, é possível observar a inspiração de Jaspers pelas ideias de Dilthey, contrapondo "a psicologia explicativa, ainda baseada em modelos pouco heurísticos, à psicologia compreensivà: A diferenciação entre explicar, compreender e interpretar passa a ser um importante bastião epistemológico. Da mesma Universidade de Heidelberg merece grande destaque o trabalho de Kurt Schneider, com um dos mais importantes livros psiquiátricos da história, o Psicopatolo-
Figura 6.
Karl Jaspers.
gia clínica (Klinische Psychopathologie) primeiramente editado em 1946. Na verdade, o contínuo trabalho para a elaboração deste livro começou com várias publicações do autor a partir de 1935 e continuou sendo acrescido de novos capítulos a partir da segunda edição de 1948. Seus seminais conceitos e discussões sobre personalidades psicopáticas, sistematização da psicopatologia clínica, a descrição dos sintomas de primeira ordem na esquizofrenia e muitos outros ainda influenciam as classificações atuais.
Terapias biológicas Dietas, terapias corporais e psicofármacos rudimentares são utilizados como métodos terapêuticos para quadros psíquicos desde o início das práticas curandeiristas. Entretanto, situa-se o início dos tratamentos biológicos no começo do século XX, com a observação de que crises epilépticas podiam atenuar sintomas psicóticos e com o uso da febre no combate à "paralisia geral" (sífilis terciária). Em 1917, o psiquiatra austríaco Julius von WagnerJeuregg (1857-1940) conseguiu a remissão de quadros de "paralisia geral" da neurossífilis com febre induzida por malária artificialmente inoculada em seus pacientes. Wagner-Jauregg tornou-se o primeiro psiquiatra a receber o Prêmio Nobel. Seu tratamento perdurou até o advento da penicilina, nos anos de 194026 • Nas décadas de 1920 e 1930 do século XX, o psiquiatra húngaro Ladislas Meduna (1896-1964) utilizou o metrazol (cardiazol) para induzir crises epilépticas, assim como Manfred Sake (1900-1957), na Áustria, utilizou o choque insulínico para provocar crises hipoglicêmicas em pacientes esquizofrênicos, gerando remissão de sintomas psicóticos. Tais métodos eram extremamente arriscados e agressivos, mas eficientes quando o paciente sobrevivia. Em 1938 os psiquiatras italianos Ugo Cerletti (18771963) e Lucio Bini (1908 -1964) utilizaram eletricidade para induzir crises epilépticas controladas, fundando a eletroconvulsoterapia (ECT), que substituiria os choques insulínico e cardiazólico. Ao longo das décadas de 1940 e 1950, a ECT também mostrou-se eficaz no tratamento dos quadros de humor. Ainda hoje, apesar das modernas medicações psiquiátricas, a ECT se mantém como tratamento de escolha em diversas situações. A descoberta das vitaminas foi outro marco na história da psiquiatria. A pelagra, doença causada pela de ficiência de niacina, era a maior causa de demência no sul dos Estados Unidos. Entre 1912 e 1937, foi erradicada desse país em virtude da campanha de suplementação da vitamina do complexo B à alimentação. Ao longo da história das grandes explorações humanas e dos períodos de privação alimentar, são conhecidos os quadros psicorgânicos causados por deficiências específicas. Escorbuto, síndrome de Wernicke (neurite por deficiência de
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tiamina), beribéri e outras formas de desnutrição foram sendo tratadas historicamente de forma empírica26,27 • A psicocirurgia permaneceu controversa e polêmica. Entre 1940 e 1950, o neurologista português Egas Moniz (1874- 1955) propõs o tratamento de quadros psicóticos e obsessivo-compulsivos intratáveis por meio da lobotomia. O procedimento consistia na destruição da substância branca dos lobos frontais. Alguns pacientes apresentavam melhoras, mas outros tinham complicações cirúrgicas graves e alterações definitivas da personalidade. Moniz recebe o Prêmio Nobel em 1949. A psicocirurgia decaiu após o advento dos psicofármacos, mas recentemente tem sido utilizada com sucesso por meio de , . . . . . . tecmcas precisas e mm1mamente mvas1vas. A era dos psicofármacos teve início em 1952, quando a clorpromazina foi utilizada com sucesso pelos psiquiatras franceses Jean Delay ( 1907 -1987) e Pierre Deniker ( 1917-1999) para a tranquilização de pacientes com esquizofrenia crônica. Em pouco tempo, diversos estudos com esse antipsicótico foram realizados, e a droga passou a ser chamada de neuroléptico, por reduzir sem paralisar a atividade nervosa. Logo, o tempo de hospitalização, assim como a gravidade de quadros psicóticos, passou a decair com o uso dos neurolépticos. Em 1961, o haloperidoi foi utilizado com sucesso no tratamento de um caso de síndrome de Tourette, o que ampliou o espectro do uso dos neurolépticos. Surgem, também, os efeitos colaterais: parkinsonismo, discinesia tardia, acatisia e distonia aguda. Nas décadas seguintes, ocorreu o desenvolvimento de diversos antipsicóticos da chamada primeira geração. A partir do fim da década de 1980, os antipsicóticos atípicos, ou de segunda geração, passaram a ser utilizados clinicamente, com menores efeitos colaterais e eficácia teórica também contra sintomas negativos da esquizofrenia. A clozapina havia sido desenvolvida nos anos de 1970, mas, em razão do risco de agranulocitose, ficou fora do mercado americano até 198926 • O lítio foi descrito como eficaz no controle da mania, em 1949, pelo psiquiatra australiano John Cade (19121980). Até os anos 1970, houve muita discussão sobre a efetividade do lítio como estabilizador de humor. A partir da década de 1980, anticonvulsivantes também foram utilizados como estabilizadores de humor. Entre 1960 e 1963, foram lançados os primeiros benzodiazepínicos, o clordiazepóxido e o diazepam, que seriam utilizados contra a ansiedade em pacientes não psicóticos. Ao longo dos anos seguintes, surgiram novas indicações para essas medicações, assim como uma profusão de compostos dessa classe, por exemplo, clonazepam em 1975, lorazepam em 1977 e alprazolam em 1981 26• Os antidepressivos passaram a ser utilizados depois de 1957, quando o psiquiatra suíço Roland Kuhn (1912 2005) relatou o uso do tricíclico imipramina no tratamento de quadros depressivos. No mesmo ano, também surgiu
o primeiro relato de um inibidor da monoamino-oxidase (iMAO), a iproniazida, como "energizante psíquico': Nos anos seguintes, os antidepressivos tricíclicos passaram a ser utilizados largamente. Os iMAO foram relacionados a graves crises hipertensivas, e, até que se descobrisse que o consumo de tais fármacos com alimentos ricos em tiramina era o problema, seu uso foi evitado. Tricíclicos e iMAOs prosperaram e tiveram seu uso difundido em outros transtornos psíquicos até o fim dos anos de 1980, com o surgimento de uma nova classe de antidepressivos. Os inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS) surgiram a partir de 1988 com o resultado de pesquisas de laboratórios farmacêuticos. Fluoxetina, paroxetina, sertralina e citalopram foram os primeiros a serem comercializados e revolucionaram o tratamento psiquiátrico, pois tornaram o uso de psicofármacos mais acessível. Os ISRS mostraram melhor tolerabilidade e segurança em relação aos tricíclicos e iMAOS, com boas respostas terapêuticas. Em poucos anos, seu uso foi adotado para o tratamento de diversos transtornos psiquiátricos26,27 . Na década de 1990, começou o desenvolvimento de medicações antidepressivas que atuam em outros sistemas de neurotransmissão, em especial noradrenérgicos, dopaminérgicos e, mais recentemente, melatoninérgicos. Os psicoestimulantes têm uma história mais longa e controversa. O uso de cafeína, cocaína e outros alcaloides como estimulantes é antigo. Em 1937, o pediatra americano Charles Bradley (1902 - 1979) relatou o uso de um anfetamínico (benzedrina) no tratamento de crianças com "transtornos comportamentais". O uso de estimulantes oscilaria nas próximas décadas, sendo empregado para diversos propósitos até que, na década de 1980, com o desenvolvimento do diagnóstico de transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, seu benefício encontrou uma finalidade 26' 27 .
Anti psiquiatria Uma visão superestimada das potencialidades biológicas de tratamento para a época, aliada a uma série de outros fatores, marca o início do movimento antipsiquiátrico na década de 1960. O termo antipsiquiatria foi utilizado, pela primeira vez, pelo psiquiatra David Cooper, em 1967, com o livro Psychiatry and antipsychiatry, caracterizando o movimento que desafiava as práticas fun damentais da psiquiatria ortodoxa. Tal movimento encontrou terreno fértil no período de contracultura da época, em que havia franco desafio às autoridades políticas, acadêmicas e médicas, oferecendo, assim, parâmetros de cultura para ideias de desconstrução do modelo médico de doença psiquiátrica. Essa visão da psiquiatria como construção social e política marcou as obras de Michel Foucault (Loucura e civiliz ação), Thomas Szasz (O mito da doença mental), Ronald Laing (O eu dividido) e Goffman (Asilo).
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Contudo, questões em torno das propostas da antipsiquiatria tratam da negação de certas postulações do saber psiquiátrico, consolidado, até então, como o diagnóstico até a psicofarmacologia. Também é colocada em discussão a hegemonia médica diante do seu conhecimento das dimensões sociais do doente.
Psicoterapias Em 1896, Freud introduziu o termo "psicanálise'' a uma prática que sendo mais do que um novo método de terapia, exibia a nova teoria do psiquismo. Na sua prática do método de livre associação de ideias, em que os pacientes com frequência mencionavam o conteúdo de seus sonhos, os conteúdos foram férteis para a construção do principal conceito da psicanálise, o inconsciente. Em 1900 (na verdade publicado em 1899, mas com data posterior para estender os direitos autorais), publicou "Interpretação dos sonhos': Freud também colocou a sexualidade e seus conflitos em discussão; o conceito de complexo de Édipo, entre outros, demonstra a importância das questões sempre ocultas entre pais e filhos. A prática psicanalítica busca o entendimento dos porquês das escolhas e oferece uma leitura de nossas vidas inexplorada até então. Autores como Abraham, René Spitz, Melanie Klein, Jacobson, Arietti, Lacan, entre outros, desenvolveram as ideias de Freud, além de difundilas e explorar seus aspectos particulares. Embora a psicanálise tenha oferecido, nos últimos cem anos, importantes construtos teóricos sobre os transtornos psiquiátricos, as suas proposições carecem ainda de valor heurístico, até pela incapacidade de partilhar a mesma terminologia com a psiquiatria e iniciar protocolos de pesquisa conjuntos. A década de 1950 foi importantíssima na história da terapia comportamental. Foi durante esse período que essa forma de tratamento emerge como clinicamente útil no tratamento dos transtornos psiquiátricos com base em pesquisas experimentais sobre as teorias de aprendizado. Esse período abriga a emergência das primeiras grandes insatisfações com a teoria e a prática psicanalítica amplamente predominante no mundo inteiro. Em 1952, surgiu a mais influente crítica à psicanálise até então publicada, o livro Os efeitos da psicoterapia, de Hans J. Eysenck, professor de psicologia da London University. Eysenck examinou os resultados publicados e concluiu que a resposta ao tratamento psicanalítico era semelhante aos índices encontrados de remissão espontânea para doenças neuróticas. Embora os resultados possam ser, e foram, objeto de acalorada discussão, o trabalho de Eysenck abriu a questão da avaliação dos resultados da psicoterapia e estimulou o progresso da incipiente terapia comportamental. Eysenck foi fortemente influenciado pelos trabalhos de seu antecessor russo, Ivan Sechenov, que, em 1866, publicou o trabalho Reflexos do cérebro, no qual postulou
que os processos mentais superiores podem ser analisados em termos do conceito de esquemas reflexos. Pavlov, em 1928, publicou, pela primeira vez, seus trabalhos sobre reflexos incondicionados e condicionados. O condicionamento clássico, ou pavloviano, e os princípios da "generalização" (estímulos similares aos estímulos condicionados produzem a mesma resposta condicionada) e "diferenciação" (uma resposta condicionada pode ser eliciada por apenas um estímulo particular e não por estímulos similares) foram estabelecidos pelo cientista russo. O trabalho de Pavlov teve profunda influência em diferentes centros fora do seu país. Ele foi o primeiro a utilizar métodos objetivos de pesquisa para interpretar o comportamento, e seus princípios de trabalho - objetividade, avaliação de resultados, além de aplicação e mensuração dos princípios das ciências biológicas sobre o comportamento - são válidos até hoje 28 • Os trabalhos do russo marcaram definitivamente as ideias do psicólogo americano John B. Watson (1878-1958), que, de fato, é o introdutor do conceito de behaviorismo. Em 1913, Watson lançou uma espécie de manifesto chamado "A psicologia tal como vê um behaviorista': no qual não propõe uma nova ciência, mas redefine que a psicologia deveria ser definida como estudo do comportamento. Sem dúvida, porém, o grande nome e maior organizador das ideias do behaviorismo foi o psicólogo americano de Harvard, B. F. Skinner, por meio de seus estudos de condicionamento operante desenvolvidos mediante a relação entre comportamento e reforçamento. São clássicos e válidos, até hoje, seus conceitos de reforço positivo, reforço negativo e condicionamento aversivo. Feroz defensor de suas ideias, Skinner abre seu livro Sobre o behaviorismo refutan-
Figura 7
Freud.
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do energicamente vinte ideias comumente ditas sobre o behaviorismo que afirma serem falsas. A abordagem cognitiva teve início por volta de 1956, quando Skinner começou a incluir o comportamento verbal como tema de seus estudos. Isso revelava que os behavioristas começavam a reconhecer a necessidade de compreender os "processos internos" que governam o comportamento. A famosa "caixa pretà' de Skinner passava a despertar o interesse dos pesquisadores sobre seus conteúdos. Em 1958, Wolpe introduzia a técnica da dessensibilização sistemática, na qual mostrava que era possível modificar uma resposta de ansiedade com procedimentos apenas cognitivos: treinava-se o paciente para relaxar enquanto ele imaginava situações geradoras de ansiedades de modo a inibi-las29 . Foi a primeira forma de terapia verbal alternativa à psicanálise e estava baseada nos modelos de aprendizagem com grande utilidade nos quadros fóbicos. Percebia-se não ser mais suficiente modificar o contexto de modo a reforçar, positiva ou negativamente, uma resposta que precisava ser modificada; era necessário considerar também a maneira como o indivíduo percebia esse contexto. São essas, exatamente, as ideias de Beck, em 1963, quando começou a publicar estudos sobre a relação entre o pensarnento e a depressão. Alguns anos mais tarde, por volta de 1970, juntamente com Mahoney, ambos influenciados pelo avanço dos estudos na área das ciências cognitivas, deram início à revolução propriamente dita29• Até hoje, a terapia cognitiva tem como pressuposto a ideia de que os sentimentos e os comportamentos do indivíduo são determinados pelo modo como ele estrutura e interpreta o mundo por meio de seus pensamentos e suas crenças. A terapia cognitiva comportamental vem sendo aplicada no tratamento dos quadros psiquiátricos, particularmente os transtornos de ansiedade e depressão, primeiro mediante terapia individual e, depois, terapia em grupo. As abordagens comportamentais e cognitivas na busca da maior aproximação com a clínica, tentando utilizar parâmetros científicos de eficácia terapêutica, passaram a interessar-se pelo comportamento depressivo. Em 1963, quando o psicólogo americano Aaron Beck começou a publicar estudos sobre a relação entre o pensamento e a depressão, iniciou -se o que, por volta de 1970, considerou-se a revolução cognitiva na psicoterapia. Até hoje, a terapia cognitiva de Beck baseia-se na visão teórica de que os sentimentos e os comportamentos do indivíduo são determinados pelo modo como ele estrutura e interpreta o mundo por meio dos seus pensamentos e crenças.
Psiquiatria no Brasil: introdução O primeiro estabelecimento de saúde destinado exclusivamente para tratamento dos insanos, no Brasil, data de 1852, com a inauguração do Hospício Dom Pedro II,
sendo um prédio anexo da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Durante o período colonial, do descobrimento até o século XIX, não se cuidou de forma efetiva da saúde dos indivíduos acometidos de qualquer transtorno mental. Eles continuavam entregues à sua própria sorte, reclusos e submetidos aos aparelhos de contenção, dos mais primitivos e bárbaros até castigos físicos, porque predominava, ainda naquela época, ideais de possessão demoníaca por parte do adoecido. No primeiro regulamento do Hospício Dom Pedro II, lia-se que o estabelecimento se destinava exclusivamente para asilo, tratamento e curativo dos alienados de ambos os sexos de todo o Império, sem distinções de condições, naturalidade ou religião. Nos primórdios do seu funcionamento, a laborterapia foi introduzida como método terapêutico, por meio de oficinas de sapataria e alfaiataria. Mas, tão logo o hospício começou a funcionar, não tardou a ficar lotado, por consequência do grande número de pessoas que estavam desassistidas. Durante as primeiras décadas de funcionamento, o hospício foi dirigido por diversos médicos, contudo, somente em 1887 a direção do estabelecimento passou a ser feita por um especialista, o Professor Teixeira Brandão, já então alienista do hospício. Durante o Império, as províncias foram progressivamente criando seus próprios estabelecimentos para cuidar de seus doentes mentais. São Paulo, desde 1852, recolhia os doentes em casarões até o advento do Hospital do Juqueri; Bahia com o Asilo São João de Deus (1874); Rio Grande do Sul com o Hospital São Pedro (1879); e Pernambuco com o Hospício da Tamarineira (1883) 30'3 1• Proclamada a República, o Hospício Dom Pedro II foi desanexado da Santa Casa de Misericórdia e passou a ser denominado Hospital Nacional de Alienados, além de ser ampliado, com a construção do pavilhão de observação, para melhor atender os doentes. No mesmo pavilhão eram, também, ministradas as aulas de "Clínica de Doenças Nervosas e Mentais" da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro que, junto com a Faculdade de Medicina da Bahia, formaram os primeiros alienistas no BrasiP2 • Em fins de 1902, o Professor Juliano Moreira da Faculdade de Medicina da Bahia foi nomeado o novo diretor do Hospital Nacional dos Alienados. O novo diretor, que se destacou em Salvador como especialista renomado, havia visitado, pouco antes, vários hospitais e instituições especializadas, em diferentes países da Europa, por isso não tardou em propor diversas reformas na estrutura do hospital. Criou uma colônia exclusiva ao tratamento de pacientes epilépticos e outra para os alcoólatras, tornando, assim, mais conveniente o tratamento dos doentes separados por patologias. No campo legislativo, em dezembro de 1852, surgiu a primeira lei brasileira regulamentando a assistência de doentes mentais, porém, somente a partir de 1903, passou a vigorar a primeira lei brasileira de proteção aos alienados. Os
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artigos principais versavam sobre: "internação do indivíduo para sua proteção e de terceiros em estabelecimento apropriado e somente após comprovada a alienação" (art. 1°); "o enfermo poderá ser tratado em sua residência caso sejam administrados os cuidados necessários" (art. 3°); "proibição de manter enfermos em cadeias públicas ou entre criminosos" (art. 10). Outros artigos da lei versam também sobre as adequações dos estabelecimentos de saúde mental, e o adequado tratamento médico. Após 1925, o projeto de Lei n. 218, do médico Afrânio Peixoto, outro grande alienista da época, reorganizou a assistência aos doentes mentais no Brasil. Com a nova lei foram criados os primeiros serviços abertos para os doentes mentais. A Lei de 1925 foi revisada e ampliada em 1934, sendo as principais mudanças relacionadas à profilaxia metal. Nesse período, o movimento de higiene mental tornou-se mais influente e sólido com a criação das Ligas de Higiene Mental33. Em São Paulo, no ano de 1926, fundava -se a Liga Paulista de Higiene Mental, com sede no Juqueri, tendo à fren te os médicos Pacheco e Silva, Geraldo de Paula Souza, Enjolras Vampré, Marcondes Vieira, Cantídio de Moura Campos, Fausto Guerner e Ferraz Alvim. A liga nunca recebeu recursos do Estado para a realização de suas atividades, tendo perfil profissionalizante, ligado particularmente à psiquiatria e a propostas de higiene mental e eugenização social; reformular os dispositivos institucionais, adaptando-os aos novos propósitos da "eugenização" constituiu um dos objetivos visados pelos psiquiatras entrincheirados nas Ligas de Higiene MentaP 4 . Outro ponto a ser salientado é o intercâmbio de médicos brasileiros que estagiaram em instituições france sas, por meio do Instituto Franco-Brasileiro de Alta Cultura e das revistas médicas alemãs, que passaram a ser publicadas em português, como a Revista Médica de Hamburgo, além de correspondências entre médicos brasileiros e alemães, como se deu entre Juliano Moreira e Emil Kraepelin nos anos de 1905 e 190635' 36. Em 1907, Juliano Moreira, junto com os médicos Afrânio Peixoto, Antonio Austregésilo, Henrique Roxo e Ulysses Viana fundou a Sociedade Brasileira de Neurologia, Psychiatria e Medicina Legal, que, mais tarde, transferiu sua tradição e seu patrimônio histórico para a nova Associação Brasileira de Psiquiatria. No ano seguinte, na Fundação da Sociedade Brasileira de Neurologia, Psychiatria e Medicina Legal, compõese uma comissão com a finalidade de apresentar um pro jeto brasileiro de classificação das doenças mentais, sendo que a classificação de Kraepelin teve forte adesão de Juliano Moreira36. Data, também, dessa primeira década do século XX o início da primeira publicação dedicada especificamente à psiquiatria, o Archivos Brasileiros de Psychiatria, Neurologia e Medicina Legal, fundado em 1905, por Juliano Moreira e Afrânio Peixoto37 • Por fim, devem-se destacar nomes de importantes médicos que, ao longo dos séculos XIX e XX, contribuíram, de forma extraordinária,
para o desenvolvimento da psiquiatria brasileira: Nina Rodrigues, na Bahia, Ulysses Pernambucano, em Pernambuco, e José Leme Lopes, no Rio de Janeiro. É importante destacar a influência de Juliano Moreira durante as próximas décadas, já que ao tratar da dimensão físico -orgânica das doenças mentais no país, de maneira inovadora procurou trabalhar a ideia da igualdade racial, incorporando os miscigenados: [... ] dessa forma, eram combatidas as diferenças irredutíveis, presentes apenas na dimensão físico-orgânica dos indivíduos. Tratava-se do projeto de uma sociedade igualitária frente às possíveis diferenças físico-orgânicas individuais que, apesar de poderem atingir uma parcela da população, eram comprovadamente independentes do clima e da constituição raciaP8•
Ao assumir o cargo de diretor do Serviço Nacional de Doenças Mentais entre 1941 e 1954, Adauto Botelho, discípulo de Juliano Moreira, tentou redefinir o recémcriado órgão com base no caráter científico da psiquiatria, expandindo hospitais e convênios com esferas estaduais, ao mesmo tempo em que a psiquiatria se firmava como especialidade médica. Com a crise hospitalar dos anos de 1960 a 1970, abriu-se espaço para que diversos hospitais privados fossem inaugurados, muitos deles sem administração compatível para os serviços voltados aos doentes mentais. Dentro desse quadro, os anos de 1970 permitiram que novas correntes do pensamento psiquiátrico, vindas da Europa e Estados Unidos, ganhassem espaço, caso exemplar da chamada psiquiatria preventivista. Tal marcação pode ser acompanhada no 1o Congresso Brasileiro de Psiquiatria ocorrido na cidade de São Paulo em 1970, no qual houve discussões sobre o direito à assistência, recursos, prevenção, formação de pessoal, serviços, pesquisa e hospitais comunitários39 •
Origens da especialidade médica: planos da Clínica Psiquiátrica da FMUSP No estado de São Paulo, data de 1852 o primeiro estabelecimento para tratamento dos doentes mentais, considerado um "asilo provisório". Em 1864, mudou-se esse estabelecimento de saúde para a ladeira Tabatinguera, recebendo a designação popular de "Hospício da Várzea do Carmo': Mas é somente na virada do século, mais precisamente em 1898, que as instalações de saúde para tratamento dos doentes mentais em São Paulo receberam a devida atenção. Iniciaram-se, assim, as atividades no Hospital Central do Juqueri, tendo como seu primeiro diretor o eminente psiquiatra paulista, formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro sob orientação do Professor Teixeira Brandão, Francisco Franco da Rocha3 1• Em 1918, foi inaugurado o curso de psiquiatria, ministrado à primeira turma da nova escola criada, a Faculdade de Medicina
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e Cirurgia de São Paulo (1912). Nesse período, a cadeira de neuropsiquiatria era regida pelo Dr. Francisco Franco da Rocha. Em virtude da inexistência de instalações apropriadas, as aulas eram dadas no Hospital de Juqueri. Em outubro de 1923, o Professor Franco da Rocha solicitou exoneração da cadeira que ocupava, tendo sido assumida mediante contrato pelo Dr. Enjolras Vampré. Na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a cadeira denominada Clínica Psiquiátrica e Neuriátrica foi dividida, em 1935, em duas outras: a psiquiátrica e a neurológica. Para a primeira foi aprovado o médico Enjolras Vampré, único candidato; para a segunda disputaram a vaga os médicos Durval Marcondes e Antonio Carlos Pacheco e Silva, sendo escolhido este último. Em suas origens, o ensino médico da psiquiatria em São Paulo estava ligado ao próprio surgimento da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, entre 1912 e 1913. A convite de Arnaldo Vieira de Carvalho, o médico Franco da Rocha assumiu a cátedra de Psiquiatria, com o curso sendo realizado no Hospício do Juqueri, tendo como assistentes Francisco Vieira de Moraes e Antonio Carlos Pacheco e Silva, que assumiria a cadeira em 1923, quando Franco da Rocha se exonerou do cargo. Durante seu período de trabalho, procurou desenvolver as concepções de Morei, por meio da laborterapia. Mais tarde, Pacheco e Silva buscaria, dentro e fora do país, tecnologias que se pudessem aplicar ao ensino e à pesquisa, utilizando-se largamente do Hospital do Juqueri como campo de experimentação. Articulado ao momento político vivido em São Paulo, como em outubro de 1930, foi estabelecido o Governo Provisório de Getúlio Vargas, resultando no progressivo afastamento das lideranças paulistas do núcleo central do poder federal. O crescente isolamento político paulista levaria, dois anos mais tarde, à cisão efetiva com a deflagração da Revolução Constitucionalista, que mobilizou as forças paulistas em oposição ao Exército nacional, afetando a vida da Faculdade de Medicina de São Paulo, quer pela sua participação nos fatos políticos, quer em sua incorporação à Universidade de São Paulo no ano de 193440 • No plano do ensino da psiquiatria na Faculdade de Medicina, em sua aula inaugural do curso de Clínica Psiquiátrica em 1936, Pacheco e Silva falou sobre a importância da disciplina para as especialidades médicas, pois era o médico o profissional habilitado e autorizado a aprofundar esses estudos. De acordo com o Professor, era possível apreciar os fenômenos mórbidos e conhecer os meios capazes de devassar o espírito humano, penetrando em seus meandros e fazendo uma "limpezà': [... ] a patologia do espírito integra cada vez mais dentro da medicina geral. Para se fazer tal demonstração, é o bastante recordar que mais de 50% dos casos de alienação mental se originam de afecções localizadas fora do cérebro e que, em tais casos, os distúrbios psíquicos não passam de epifenômenos. Daí a orientação moderna, que
preconiza a criação de clínicas especializadas, laboratórios bem providos, gabinetes dentários e outros recursos para se proceder, no dizer dos alienistas alemães - à limpeza orgânica dos doentes 41 .
Por essa perspectiva, existiriam doenças nervosas hereditárias, o que mereceria da psiquiatria o estudo da constituição dos indivíduos, pois: [... ]como demonstrou Kretschmer, revivendo a doutrina dos temperamentos e das constituições, existe uma relação somatopsíquica, isto é, uma relação entre a constituição corpórea do indivíduo e seu temperamento, na qual existe a predisposição para esta ou aquela doença mental. Destacavam-se: (1) o afastamento dos ''elementos degenerados': (2) sua segregação, "com o objetivo de evitar a procriação dos indivíduos fadados a uma prole degeneradà: (3) a esterilização de procriadores ''com defeitos físicos e mentais, a grande massa de tarados e inválidos que superlotam os hospitais e estabelecimentos de assistência': (4) a educação, que deveria estar ligada à formação do cidadão e a sua responsabilidade sobre a raça, e, finalmente, (5) a supressão, que, mesmo sendo considerada uma posição de ''autores radicais", foi apresentada "como a supressão pura e simples dos indesejáveis. Com o fito eugênico e humano, acreditando poder dessa forma encerrar o sofrimento dos seres degenerados, aos quais está reservada uma vida de miséria e sofrimento41.
Pacheco e Silva tentou incluir na Constituição de 1934 uma proposta de eugenização social, como também aliar à higiene mental debates como o cinema e a higiene mental, higiene mental na educação familiar, higiene mental na escola e na universidade, higiene mental e orientação profissional, herança e constituição, esterilização de anormais, tráfego e higiene mental e imigração e higiene mental. Em carta recebida em 22 de fevereiro de 1934, Pacheco e Silva era parabenizado por seu primo, Aristides Amaral, pelas emendas e pelos pareceres da chamada Comissão dos 26, responsável por introduzir um projeto nacional eugenista de controle imigratório: "aceite os meus vivos parabéns pelo belo discurso sustentando a emenda paulista que obriga os poderes públicos a cuidar da educação eugênica e social. Só assim o Brasil deixará de receber o despejo da escória de todos os países"42,43. Em 1936, após concurso público o Professor A. C. Pacheco e Silva assumiu definitivamente a direção da clínica. As aulas eram então ministradas no Hospital de Juqueri e nos ambulatórios da Diretoria Geral da Assistência aos Psicopatas. Somente em 1952, as atividades da psiquiatria foram transferidas para edifício próprio junto ao Hospital das Clínicas, no então recém -inaugurado Instituto de Psiquiatria (IPq). O período que antecedeu a elaboração dos planos da construção do IPq também foi
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marcado por grandes transformações no cenário político nacional, com mudanças da centralização do poder, enfraquecimento da influência paulista no âmbito federal e mudanças no campo da educação com a reforma do . . ensmo supenor. Em 1939, diante das dificuldades com que se deparava para ministrar o ensino de psiquiatria, o Professor A. C. Pacheco e Silva enviou uma representação ao Conselho Técnico e à Congregação da Faculdade de Medicina, expondo a necessidade premente de instalações adequadas e modernas para o ensino da especialidade. Expõs que após sua exoneração da Diretoria da Assistência aos Psicopatas não dispunha mais do vasto material clínico utilizado para ilustrar o ensino da psiquiatria até então. Ressaltou, ainda, que a Cadeira de Psiquiatria não dispunha, a esse tempo, de verba no orçamento da Faculdade de Medicina, o que obrigava o catedrático a pagar, do seu próprio bolso, pequenas despesas imprescindíveis. Ao longo dessa representação, dirigida ao Conselho Técnico e à Congregação da Faculdade, o Professor A. C. Pacheco e Silva reforçou a importância crescente do ensino da psiquiatria e a necessidade social da formação de um corpo de médicos especializados em doenças mentais: [...] O ensino da Clínica Psiquiátrica deve, hoje, fazer parte das clínicas denominadas fundamentais do curso médico, de caráter formativo, e não constituir uma simples cadeira de especialização, obrigatória, apenas para os médicos candidatos a cargos técnicos de assistência psiquiátrica.
Adiante, reforçou os motivos da necessidade da construção de instalações adequadas à Clínica Psiquiátrica para: [... ] manter o nosso ensino médico à altura das suas gloriosas tradições [... ]33 . [... ] Eis porque é, com a mais profunda preocupação, senhores Membros do Conselho Técnico-Administrativo, que vemos a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo completamente desaparelhada para propiciar aos alunos, sequer, conhecimentos elementares de Clínica Psiquiátrica [... ]. Se não dispõe de uma única enfermaria, de um só leito, onde possa internar e observar doentes, quanto mais produzir trabalhos à altura do renome da Faculdade [... )33 •
Buscou ainda justificativa para o projeto do instituto, nas mais diversas faculdades de medicina do mundo. Descreveu o programa de psiquiatria da Universidade de Cornell, em Nova York, com extenso curso em saúde mental, que vai do primeiro ao quarto ano do curso de medicina. Cita, também, a Escola Médica de Harvard, onde o curso de psiquiatria já era obrigatório para todos os es-
tudantes de medicina àquela época, e o exemplo da Universidade de Yale, onde já se ensinava psiquiatria em hos pital universitário. [... ] O ensino da Clínica Psiquiátrica, antigamente feito nos asilos públicos, é hoje realizado nas clínicas psiquiátricas universitárias, colocadas nos mesmos edifícios dos hospitais de clínica ou em anexos [... )33•
Nesse mesmo período, mais precisamente em 1938, foram retomadas as obras da construção do Hospital das Clínicas concluídas em 1944, que permitiram à Faculdade ampliar e consolidar suas atividades de ensino, que até aquele momento eram realizadas na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Data dos planos iniciais do Hospital das Clínicas, elaborados pelos Professores Rezende Puech e Souza Campos, que a Clínica Psiquiátrica seria construída em edifício separado do Instituto Central. Fato justificado pela natureza dos doentes a serem tratados na clínica. Nesse contexto histórico, surgiu a elaboração e a concretização do projeto de construção de um instituto de psiquiatria pertencente, mas anexo, ao Hospital das Clínicas para melhor adequação do ensino, assistência e pesquisa da Clínica Psiquiátrica da FMUSP. A efetivação da construção do edifício destinado à Clínica Psiquiátrica deu-se por meio dos esforços dos Professores Jorge Americano e Benedito Montenegro, naquela época, Reitor da Universidade e Diretor da Faculdade de Medicina, respectivamente, os quais, atendendo os reiterados apelos do Professor Pacheco e Silva, despertaram a devida atenção das autoridades do governo estadual. Foi por meio do Decreto-Lei n. 14.456, de 11 de janeiro de 1945, que teve início a construção do atual prédio do Instituto de Psiquiatria, inaugurado em 1952. Po rém, somente em 1963 foi posta em funcionamento a sexta e última enfermaria do Instituto, totalizando 272 leitos para assistência de pacientes internados33 . Contudo, antes de dar início às atividades da Clínica Psiquiátrica no atual prédio, é montado, a título precário e por tempo indeterminado, um ambulatório de saúde mental, instalado no 4o. andar do prédio central do Hospital das Clínicas, na enfermaria de Moléstias Infecciosas, espaço este cedido pelo Professor Celestino Bourroul, após solicitação do Professor Pacheco e Silva à superintendência do hospital (despacho de 24 de setembro de 1947). À época do início de sua construção, o Instituto foi concebido para receber unicamente casos agudos. Planejado muitos anos antes e construído vagarosamente, quando foi inaugurado, contava ainda com salas destinadas à balneoterapia, algo já ultrapassado como recurso terapêutico para a época, sendo assim retiradas as banheiras para ampliar o espaço das enfermarias. Consta desse mesmo período a ideia de um pronto-socorro psiquiátrico no Instituto, que nunca foi concretizada em razão de problemas
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Figura 8 Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Fachada Principal. Fonte: Museu Histórico "Prof. Carlos da Silva Lacaz" da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
administrativos e do receio do IPq tornar-se depositário de todo e qualquer caso psiquiátrico do Estado de São Paulo e até mesmo de outros Estados (Ata n. 798, item 1°, de 10 de outubro de 1962) 44 • Apesar da lentidão para finalização da construção, o Instituto, já na década de 1950, correspondia às expectativas e às diretrizes da Organização Mundial da Saúde ( OMS), que recomendava a internação de doentes mentais em hospitais menores, de 100 a 300 leitos visando a desospitalização ou desinstitucionalização. Do ponto de vista científico, o Instituto também apresentava orientação que visava a companhar as inovações da época. Em 1952, sediou o 1º Congresso Panamericano de Criminologia. Nesse mesmo ano, com a descoberta da clorpromazina, os psicofármacos passaram a ser usados no tratamento dos pacientes atendimentos na Clínica Psiquiátrica, proporcionando, assim,
uma revolução na evolução e no prognóstico dos enfermos. Em 1953, o Instituto recebe o Professor Hugo Cerletti (Itália), com recursos provenientes da Faculdade de Medicina e do Itamaraty, para ministrar palestra sobre as descobertas relacionadas à eletroconvulsoterapia (ECT), que já era utilizada (Ata n. 326, de 12 de março de 1953). Desde o início de suas atividades assistenciais, o Instituto possui um departamento de Serviço Social estruturado para o estudo de casos sob o ponto de vista do diagnóstico social e intervenção junto aos familiares. Já o setor de terapia ocupacional teve início, posteriormente, na década de 1960, enfocando o tratamento por meio da reabilitação social e ocupacional. O Serviço de Psicologia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, como entidade oficialmente institucionalizada, iniciou suas atividades em 1977. Contudo, atividades assisten-
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Figura 9 Hospital de Clínica Psiquiátrica. Fachada Principal. Fonte: Museu Histórico "Prof. Carlos da Silva Lacaz" da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
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ciais d e psicoterapia, bem como seu ensino, já existiam desde a década de 196033•44 . A construção do Instituto de Psiquiatria no complexo hospitalar do Hospital das Clínicas representou para São Paulo u m acontecimento de excepcional relevo e impnmm novos rum os a ass1stenCia, ao ensmo e a pesqm sa. Atendimentos ambulatoriais e nas enfermarias, utilização de valioso material para as aulas pr áticas, estud os minuciosos de casos enriquecidos com a disponibilidade de p reciosos recursos subsidiários criaram, desde cedo, condições objetivas para a realização de pesquisas e a publicação de trabalhos, m onografias e teses, que foram aparecendo naturalmente nos anos que se seguiram. Ao longo das décadas seguintes, o Instituto foi se modernizando e se atualizando, acompanhando a evolução dos tratamentos aos enfer mos e tornando o ensino em saúde mental uma referência brasileira. •
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Questões 1. Qual o principal objeto de estudo da história da Psiquiatria? a) A história do desenvolvimento da especialidade dentro das ciências médicas. b) A história dos termos psiquiátricos. c) A história dos conceitos psiquiátricos. d) A história do desenvolvimento das abordagens terapêuticas. e) Todas as anteriores.
2. Qua l a principal modificação no modo de pensa r a doença mental encontrada na Idade Média? a) As pesquisas sobre os humores, ou seja, os aspectos biológicos das doenças mentais. b) O desenvolvimento do estudo das relações de entendimento corpo-mente. c) O surgimento dos primeiros movimentos psicoterápicos de auxílio. d) A volta ao pensamento hipocrático. e) O marcante papel da Igreja Católica no entendimento dos fenômenos psíquicos. 3. Autor das primeiras e principais obras da Psiquiatria alemã do final do século XIX e início do século XX: a) Wernicke. b) Kleist. c) Mayer-Gross. d) Emil Kraepelin. e) Sigmund Freud. 4. Quando da fundação da Liga Paulista de Higiene Mental, que ideia de forte influência europeia da época estava presente no pensamento de seus membros? a) A teoria do inconsciente coletivo de Jung. b) A necessidade da expansão das pesquisas farmacológicas. c) O fechamento dos hospitais psiquiátricos. d) As iniciativas científicas de caráter eugenista. e) A introdução dos métodos da psicanálise freudiana.
5. Qual dos seguintes hospitais serviu inicialmente de base para o ensino psiquiátrico na primeira metade do século XX em São Paulo: a) Hospital do Juqueri. b) Hospital São Paulo. c) Diferentes Santas Casas de Misericórdia. d) O próprio Hospital das Clínicas. e) Instituto Pacheco e Silva.
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A Evolução dos Conceitos em Psiquiatria Yua n-Pang Wang A lexandre A ndrade Loch Lau ra Helena Silveira Guerra de Andrade
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 22 O mundo antes da psiquiatria: a loucura - disfunção corpórea ou espiritual, 23 O surgimento da psiquiatria: Descartes e o dualismo mente-corpo, 24 Dogmatismos: os primeiros passos da psiquiatria, 25
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
A modernidade e os conceitos iniciais da Psiquiatria, 26 Pós-modernismo e psiquiatria, 26
1. Conhecer os conceitos da loucura na era pré-psiquiátrica.
2. Articular os principais movimentos conceituais psiquiátricos. 3. Discutir as im perfeições do biologismo versus psicologismo. 4. Identificar as propostas conceituais conciliadoras. 5. Compreender o papel das neurociências e suas implicações para
Antimodernismo, 27
os conceitos da psiquiatria.
Ecletismo e a proposta de pacificação, 28 Pluralismo e a luz no fim do túnel, 29 lntegracionismo e a proposta de solução, 30 O conceito integracionista de endofenótipo, 32 Considerações finais, 32 Questões, 33 Referências bibliográficas, 34
Introdução A história da psiquiatria foi abordada no capítulo precedente. Todavia, do ponto de vista epistemológico, como os conceitos da psiquiatria se organizaram e progrediram ao longo do tempo? Antes de discorrer sobre a evolução dos conceitos em ps1qmatna e necessano que se examme o termo conceito": para discutir e vislumbrar as dificuldades na elaboração de conceitos em psiquiatria, bem como os caminhos que eles seguiram na disciplina. O que é um conceito? O conceito é, "em geral, todo o processo que possibilite a descrição, a classificação e a previsão dos objetos cognoscíveis" 1• Assim sendo, qualquer conceito possui dois componentes; o primeiro deles diz respeito aos objetos que são acessíveis ao conhecimento humano. Estes objetos em geral pertencem ao mundo real e são acessíveis pela experiência sensorial como vi•
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são, audição, tato, olfato etc. Esses objetos originariam os conceitos empíricos. Os outros objetos do conhecimento, oriundos de operações mentais (p. ex., a imaginação), gerariam os conceitos puros2 . O segundo componente do conceito diz respeito à ideia ligada a estes objetos. Segundo os gregos, o processo de ligar objetos a ideias para a construção de conceitos seria veiculado pela essência destes objetos3 • De maneira simples, conceitos são ideias que exprimem a essência de objetos do conhecimento humano. Em grego, ideia e conceito eram expressos pela mesma palavra, lagos, com significados bastante próximos. Neste capítulo, ambos os termos serão utilizados de maneira intercambiável. Um conceito apresenta quatro funções4 : • descrever os objetos da experiência para possibilitar que os conheçamos. • uma função econômica de classificar as coisas da natureza: quando nos referimos a um certo objeto observado, ao invés de descrevê-lo, por exemplo, pode-se utilizar um conceito para evocar a sua ideia e abreviar a sua descrição. • organizar dados da experiência, ou seja, um conceito estabelece e ordena os nexos lógicos da experiência por meio da atividade de entendimento.
2 A EVOLUÇÃO DOS CONCEITOS EM PSIQUIATRIA
• prever; em outras palavras, a ciência utiliza os conceitos para predizer a experiência futura à luz da experiência passada. Os conceitos operam basicamente com a díade conhecimento - objeto do conhecimento. Entretanto, a elaboração de conceitos é particularmente difícil na psiquiatria por lidar com esta díade em relação ao conhecimento da mente. Um dos temas fundamentais, porém mais difíceis, da psiquiatria é a compreensão do conceito da mente, que foi debatido ao longo de séculos por filósofos, intelectuais e cientistas brilhantes, sem que nenhum consenso fosse alcançado. A origem e a estrutura do conceito da mente, os métodos e a validade das investigações sobre o seu objeto ainda não estão livres de posições divergentes. A evolução da teoria científica não provém da mera acumulação estocástica de "feitos': mas de um grupo de circunstâncias e possibilidades intelectuais que possibilitam a sua mudança paradigmática5. A história do desenvolvimento dos conceitos em psiquiatria indicam que importantes "revoluções copernicanas" se fizeram presentes lado ao lado de retrocessos periódicos. Muitas vezes, os marcos epistemológicos não têm limites claros, em uma evolução gradual, pendular e descontínua, com paradigmas dominantes e mudanças conceituais relacionadas aos tipos de ideias, estratégias e aparatos intelectuais concebíveis em determinado momento histórico. Em algumas épocas, posicionamentos radicais chegam a coexistir ao lado de posturas mais parcimoniosas e racionais. Em psiquiatria, a falta de um arcabouço conceitual coeso e único é, em boa parte, herança desta evolução conceitual caótica. Este capítulo abordará inicialmente alguns conceitos da era pré-psiquiátrica, para indicar que ideias rudimentares sobre a doença da mente já existiam muito antes do advento da disciplina. A seguir, o ambiente intelectual que permitiu o nascimento do conceito da psiquiatria é destacado, e logo após, toda a miríade de conceitos que surgiram após a sua inauguração, com seus pontos favo ráveis e suas fragilidades. Nas seções finais, são apresentadas propostas mais recentes, muitas delas resultantes de um amadurecimento conceitual da psiquiatria em relação aos avanços científico-tecnológicos que ocorreram nos últimos 50 anos.
O mundo antes da psiquiatria: a loucura disfunção corpórea ou espiritual Alguns autores sugerem que a doença mental não existia nos primórdios da civilização e que ela, portanto, seria uma fabricação do homem, e não uma doença ou distúrbio de saúde propriamente dito. Negam qualquer aspecto patológico de distúrbio mental, muitas vezes situando -o como mera sequela de movimentos sociais. A loucura, como era designado o distúrbio da mente na era pré -psiquiátrica, seria uma criação da Idade Moderna (1453 -1789 d.C.), uma consequência do capitalismo6 • Ou
seja, não havia um conceito de doença mental antes desta época: a sua concepção seria uma invenção moderna, reflexo do avanço da civilização. Neste mesmo âmbito teórico, outros aventam que a distinção entre uma psique normal e patológica seria uma farsa7 , uma arbitrariedade concebida com o objetivo de instrumentalizar formas de poder8 • Não obstante, a doença mental sempre existiu independentemente dos sistemas econômicos e das tensões sociais. Muito antes da psiquiatria, séculos antes da Idade Moderna e da Revolução Industrial, que se iniciou na Inglaterra em meados do século XVIII e foi responsável por concretizar o capitalismo como sistema econômico mundialmente, já se elaboravam rudimentos conceituais sobre as disfunções da mente. Fazendo referência à Pré-história, arqueologistas descreveram a descoberta de crânios humanos com vestígios de trepanações - pequenos buracos realizados com instrumentos manufaturados para tal - que datam da época de 5000 a.C. Concebia-se que a mente de uma pessoa pudesse estar alterada, possivelmente possuída por demônios, e os buracos permitiriam a sua saída por intermédio dos rituais9 • A mente alterada seria o objeto de uma intervenção específica. Na Antiguidade, época que se segue à Pré-história, encontramos novamente o conceito de doença mental na Grécia em seu período áureo: a teoria dos humores já estava presente em épocas remotas no Egito 10 e na Meso potâmia11. Entretanto, foi com Hipócrates que ela ganhou aplicação médica. Os temperamentos dos homens seriam o resultado da combinação entre os quatro humores; a bile negra, a bile amarela, o sangue e a fleuma 12• 13•14• A mente e o corpo teriam uma correlação estreita, mediada pelos humores. Aristóteles observa em seus escritos 15 que os indivíduos que se tornam eminentes na filosofia, política ou poesia teriam uma preponderância da bile negra, gerando um temperamento melancólico. O seu predomínio em pessoas eminentes seria funcional e produtivo, mas poderia se tornar patológico, gerando doença, caso ultrapassasse determinado limiar, como foi o caso de Heráclito. A melancolia excessiva se expressaria por comportamentos disruptivos e "feridas na pele" 16. Este conceito antigo indica que a mente e o corpo constituiriam uma mesma essência. Em termos filosóficos, há um conceito monista, que tem origem no prefixo mono, que significa um só, único; contrapondo-se ao dualismo e ao pluralismo, isto é, a alteração ("doençà') de um afetaria o outro por contingência. Esse conceito de doença da mente ou insanidade apresenta um caráter quantitativo, variando neste continuum, sem limites precisos ou categorias. Passando para outras épocas da história que precederam a existência da psiquiatria, observa-se também a presença de conceitos de distúrbios da mente. Nem sempre a sua origem foi atribuída à alteração corporal. Na Alemanha da Idade Média, por exemplo, a insanidade não era concebida como problema médico (ou seja, orgâni -
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co), mas como um desvio moral (responsabilizando o indivíduo) ou de causa sobrenatural (desresponsabilizando o indivíduo) 16. Os distúrbios mentais daquela época eram negligenciados pelos médicos e não recebiam suficiente estatuto acadêmico. Muitas vezes, eram relegados à teologia como questões espirituais e tratados por meio de ervas. Berivica jugrien e gagatis eram preparados herbáceos prescritos pelo médico Johann Tolat, em meados de 1500, como eficazes para acalmar os demônios e bruxas que perturbavam aqueles com distúrbios mentais. Paradoxalmente, a causa desta ideia primitiva de doença mental ora é atribuída ao livre -arbítrio da pessoa, ora a espíritos maléficos externos ao corpo. Como o corpo está separado da mente, já que espíritos geram alterações na mente, mas não no corpo, pode-se falar de uma concepção dualista da mente: a mente e o corpo constituem duas essências distintas. Foi apenas após o Renascimento que a loucura voltou a ser vista a partir de uma etiologia orgânica com o resgate das teorias gregas sobre os humores e seus desequilíbrios16. Entretanto, as causas espirituais para a insanidade nunca deixaram de ser aventadas. De fato, com o fortalecimento da Igreja e com o movimento da Inquisição, os historiadores da medicina descrevem diversos casos em que o surgimento de quadros psicóticos era considerado um indício de possessões demoníacas, cujos indivíduos assim acometidos deveriam ser levados à fo gueira17. O conceito monista da Antiguidade (mente e corpo unificados) e o conceito dualista da Igreja (corpo separado da mente, afetada por espíritos) convivem simultaneamente. Uma profusão de relatos históricos de indivíduos sofrendo de alterações da mente poderia ser citada. O que todos eles nos revelam é que, em um passado em que a psiquiatria ainda não existia, o distúrbio mental já se fazia presente, cuja conceituação era apreendida por meio de conceitos vagos e polimórficos de uma "insanidade". Ao contrário do que alguns autores defendem, a doença mental não é uma invenção recente, ela sempre existiu e não é exclusiva das sociedades modernas6'8. Havia, em geral, apenas uma única doença mental, a loucura. Esse conceito era impreciso, inconstante e de contornos nebulosos: ora era monista ora dualista. Suas causas oscilavam entre fatores orgânicos ou espirituais, nas quais podiam intervir médicos ou religiosos. O indivíduo era visto como o culpado de seu distúrbio; outras vezes, era a vítima. Loucura, insanidade ou alienação? Havia, pois, certo senso de que poderia haver distúrbios nos comportamentos e pensamentos de uma pessoa, no que hoje chamamos de psiquismo. Entretanto, este conceito não estava desenvolvido, era rudimentar e englobava uma gama heterogênea de alterações. Pode-se afirmar que, até então, não havia uma proposta robusta de uma ontologia da mente. A palavra ontologia origina-se do grego ontos e logos, que significa co-
nhecimento do ser. De maneira simplificada, na ontologia estuda-se a existência de algo e como este algo foi gerado, como ele se constitui. Ela surgiu apenas na Idade Moderna a partir do século XVII; pelo exposto conclui-se, entretanto, que isso que não quer dizer que a doença mental surgiu apenas com o estudo mais aprofundado da mente, mas é muito anterior a ela; erro comum no qual alguns autores antipsiquiátricos incorrem. Assim, sem um conceito bem delineado sobre a mente, as alterações mentais eram atribuídas ao corpo ou a espíritos.
O surgimento da psiquiatria: Descartes e o dualismo mente-corpo A psiquiatria como disciplina nasceu entre o final do século XVIII e o início do século XIX. Pouco antes de seu aparecimento, os diagnósticos estavam separados em dois grandes grupos inespecíficos: as "insanidades" ou "loucuras" e "doenças nervosas" ou "doença dos nervos". As insanidades incluíam as alterações que demonstravam uma perda de contato com a realidade, enquanto as doenças nervosas eram distúrbios nos "nervos". No primeiro grupo de "alienados': as pessoas apresentavam comportamento alterado, muitos deles seriam descritos nos dias de hoje como maníacos, esquizofrênicos, delirantes, com quadros de retardo mental e epilepsia. Conforme relata Edward Shorter 18, esses indivíduos eram isolados do convívio social por não haver intervenções eficazes. Deviam ficar trancados em quartos escuros, em celeiros, ou então, confinados em pequenos cubículos onde recebiam alimento e, frequentemente, permaneciam acorrentados. Quando a loucura era "pacíficà: a pessoa era deixada a esmo nas cidades. Os conceitos herdados da Idade Média perpetuavam associados a um defeito moral ou espiritual, sem receber a devida atenção da medicina 18. Os quadros clínicos menores, como a histeria, os distúrbios ansiosos e somatoformes, assim como a depressão, eram incluídos na categoria das doenças dos nervos ou neuroses 19. Os avanços da anatomia contribuíram para atribuir a origem desses distúrbios nas fibras nervosas, as quais determinavam alterações dos movimentos e sensações corporais. Tais alterações físicas eram passíveis de intervenção médica exercida por "doutores especializados em nervos". A ideia de alienação não contaminava os pacientes nervosos e os médicos que deles cuidavam. Nos séculos XVI e XVII, esses dois grupos de distúrbios conviviam lado a lado sem uma conceituação nítida da mente. As condições fundamentais que contribuíram para o nascimento da psiquiatria foram o desenvolvimento do conceito de mente, o aprimoramento de uma ontologia e de uma filosofia da mente. Como consequência, uma terapêutica médica tornou-se possível. Tal mudança foi impulsionada pela filosofia do racionalismo, uma corrente filosófica que privilegia o raciocínio como a principal operação mental a ser desenvolvida e enaltecida no ser hu -
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mano, proposto por Renê Descartes (1596- 1650), autor inaugural do pensamento moderno. Nas Meditações metafísicas20, este pensador instaura a dúvida como o fun damento do conhecimento filosófico, questionando metodicamente todos os objetos de conhecimento e todas as certezas prévias. Acaba por eleger o seu próprio pensamento como a única coisa da qual ele pode ter certeza: cogito ergo sum (penso, logo existo). Ao enaltecer a reflexão do sujeito pensante e defender a primazia da mente sobre os demais eventos da natureza, Descartes valida a existência do ser humano pela única coisa verdadeiramente indubitável: o seu pensamento. Além de definir uma ontologia da mente, Descartes fundamenta uma divisão mente-corpo e fortalece a mente como unidade autônoma, separada do mundo material. Dois mundos seriam concebidos: a res cogitans é a realidade produzida pela mente e ares extensa é a realidade material. Diferente da proposta monista, a mente e o corpo seriam duas substâncias distintas, cuja cisão é difícil de conciliar até os dias de hoje 2 1•22 . Outro fator que viabilizou o surgimento da psiquiatria como disciplina foi o movimento intelectual do Iluminismo (transição do século XVII para o XVIII). Ideais como o questionamento do poder, a libertação da humanidade da tirania de condições sociais desfavoráveis, a as censão dos métodos empíricos na ciência e na tecnolo gia, o comprometimento com o racionalismo e com o acesso à verdade fizeram parte desta época. Os filósofos iluministas como David Hume, Ethienne Condillac, Voltaire e Jean-Jacques Rousseau foram expoentes deste novo ideário social. A Revolução Francesa demarcava, ao mesmo tempo, a queda do Absolutismo e da Monarquia. Com tais ideias humanistas em alta, a racionalidade, a liberdade e o livre-arbítrio eram exaltados. O homem era o centro das atenções. Neste contexto libertário, as ciências ganharam grande propulsão e a Medicina, em especial, teve importante evolução. A confiança nos efeitos benéficos dos asilos e casas de saúde23 para o cuidado dos insanos contribuiu para formular a ideia de "doentes mentais': objetos de atenção dos alienistas da época. Somente a partir do século XVIII a psiquiatria nasce como uma disciplina médica 18 • Mais tarde, o médico alemão Johann C. Reil cunharia como Psychiaterie esta nova disciplina 24 • As condições antes designadas sob o rótulo de insanidade, que antes não mereciam atenção e que não eram passíveis de intervenção, tornavam-se agora o alvo de investimentos médicos. Diz Reil, em 1803: "os médicos da Inglaterra, da França e da Alemanha estão todos dando grandes passos para a melhora dos insanos'~ É neste cenário conceitual contraditório que a psiquiatria surge. Por um lado, há a proposição da psiquiatria como uma ciência médica, cuja concepção organicista da mente retoma o monismo grego. Em contrapartida, o conceito da mente é abstraído e fortalecido por meio da
divisão cartesiana da mente e do corpo. Ocorre a sedimentação do dualismo, que se mantém até os dias de hoje, no qual a mente é privilegiada com o status de uma substância autônoma e distinta da concretude do mundo real. Como resultado, partidários de ambas as posições surgem para dissolver este conflito na Medicina: o "biologismo" e o "psicologismo'~ A primeira representa uma reação monista, pois enfatiza a mente como uma substância orgânica e fortalece a noção da união mente-corpo. Os psicolo gistas, por sua vez, legitimam a posição dualista cartesiana de autonomia da mente sobre o corpo. Embora pouco explícitas, essas duas filiações são presentes ainda nos dias de hoje. Mais adiante veremos que só agora, com o avanço das ciências, estamos retomando o monismo.
Dogmatismos: os primeiros passos da psiquiatria As modalidades terapêuticas em psiquiatria podem ser divididas grosseiramente em psicoterapia e psicofarmacoterapia, as quais são levadas a cabo, muitas vezes, por meio das ideologias que estão por trás dessas práticas. Tanto na ideologia psicoterápica como na psicofarmacológica, estas práticas são vistas como uma solução quase exclusiva para os distúrbios mentais. Nos primórdios da psiquiatria esta divisão ideológica aflorou com grande radicalismo, criando partidarismos quase que religiosos de ambos os lados, repletos de opiniões rígidas e extremadas. Muitas vezes, os pontos fundamentais e indiscutíveis de uma crença na psiquiatria são defendidos com uma adesão intransigente das suas respectivas visões sobre a doença mental. Este tipo de posicionamento conceitual foi chamado por Nassir GhaemF5 de dogmatismo. O exemplo da psicoterapia e farmacoterapia representa, na verdade, um paralelo atualizado dos conflitos entre o monismo e o dualismo que caracterizaram o surgimento da disciplina psiquiátrica. Logo após o nascimento da psiquiatria surgiram aqueles que advogavam que a doença mental era resultado exclusivo de alterações de uma mente eminentemente psicológica e aqueles que acreditavam na doença mental como a consequência exclusiva de alterações orgânicas. De forma estereotipada, o dogmatismo psicológico chega a pensar num quadro de mania ou delirium como tendo uma origem essencialmente psicológica e investiria basicamente na psicoterapia como o seu tratamento, enquanto o dogmatismo biológico pensaria a histeria conversiva como alteração sumamente orgânica, indicando exclusivamente tratamentos biológicos. Evidentemente tal afirmação, ainda que com a licença de ser "caricata'', incomoda os radicais biológicos e os radicais psicológicos que tendem a se autojustificar com o "radicalmente neutro", o ecletismo, ou o "politicamente correto". Pessoas e profissionais aderentes a estes dogmatismos acreditam piamente em etiologia de natureza única para as doenças
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mentais e acabam não reconhecendo os limites e o caráter parcial de tal posicionamento. Didaticamente, os períodos de dogmatismo psiquiátrico são divididos conceitualmente entre os defensores da Modernidade, Pós-modernidade e Antimodernidade. Esses partidários coexistiram em muitos períodos da história conceitual da psiquiatria, não se sucederam uns aos outros como uma evolução sequencial, gerando diversas tensões de difícil conciliação.
A modernidade e os conceitos iniciais da psiquiatria O dogmatismo conceitual psiquiátrico se evidenciou desde a criação da psiquiatria, situada no período histórico pós-medieval da Modernidade. Nesse período (17891900) o capitalismo se consolida como sistema econômico, com a divisão do trabalho, produção em série, aceleração dos meios de comunicação e troca de capital. A Revolução Industrial no final do século XIX marca importantes mudanças sociais e nas relações de trabalho. Na Europa do século XVIII, os alienistas da escola francesa de Paris foram os primeiros representantes dessa modernidade. Fortalecido por ideias do Iluminismo, Philippe Pinel, o pai da psiquiatria moderna, aderiu a pensamentos libertários da Revolução Francesa e trouxe reformas humanísticas ao tratamento dos pacientes com distúrbios mentais. Pinel acreditava que pessoas com distúrbios mentais - os psicóticos, os delirantes, aqueles com retardo mental etc. - sofriam de processos naturais (de doenças) e não de desvios morais ou de causas sobrenaturais. Sinais e sintomas psicopatológicos passaram a ser descritos minuciosamente como a parte integrante das doenças da mente, mantendo relação também com as fun ções normais da mente. Na esteira do conceito organicista anunciado pelos alienistas franceses, Emil Kraepelin e Eugen Bleuler propuseram as suas próprias visões por meio do mesmo princípio: observar e distinguir os diversos tipos de anormalidades de comportamento e catalogá-los como doença mental. Aqui se fortalece o esforço taxonômico, tanto pela escola francesa (nosologistas franceses) como pela esco la alemã (com Kraepelin enfatizando mais o curso da doença). A loucura de outrora é dividida em demência precoce e psicose maníaco -depressiva. Os diagnósticos que antes pertenciam à neurologia são suplementados por essa nova visão clínica e os sistemas classificatórios se desenvolvem sob o auspício do pensamento moderno. Em suma, no conceito moderno, a doença mental é pensada como tendo etiologia orgânica, a qual é identificada por meio de um sistema classificatório baseado na observação empírica, passível de intervenção terapêutica. O reflexo atual da modernidade na maneira de elaborar conceitos na psiquiatria são os manuais diagnósticos, como aqueles do sistema DSM e CID.
Esta posição taxonômica, vigente atualmente, representa um legado neokraepeliniano do dogmatismo biológico. A doença mental é agrupada em clusters sindrômicos em termos de similaridade sintomática. Essa infraestrutura classificatória permitiu avanços tecnológicos sobre o funcionamento da mente e, com isso, questionamentos das suas características fundamentais. Os próprios idealizadores do sistema DSM argumentam que estavam buscando a confiabilidade das categorias diagnósticas26• Os profissionais de saúde mental, usuários deste manual, poderiam se comunicar por meio de um instrumento diagnóstico homogêneo de forma concordante. Um indivíduo com esquizofrenia na América do Sul apresentaria sinais e sintomas semelhantes a um indivíduo com esquizofrenia na Ásia, e assim por diante. A facilidade da comunicação proporcionada pelos manuais possibilitaria futuras pesquisas com garantias de estabilidade e reprodutibilidade. Esta etapa constitui um primeiro passo para buscar a validade destes transtornos mentais, que supostamente compartilham marcadores (validadores) biológicos comuns. O pensamento moderno influenciou a psiquiatria em termos de uma coerência científica, com uma organização dos quadros mentais para o seu objeto de estudo e intervenção. Estas entidades clínicas operacionalizadas baseiam-se na premissa de que sinais e sintomas observáveis se agrupariam e constituiriam entidades diagnósticas, as quais descrevem uma relação entre mente e corpo intermediada pelas alterações biológicas que seriam descobertas no futuro. Analogamente, a modernidade estimulou classificações (ou divisão de trabalho) para melhorar a comunicação entre os profissionais de saúde mental (relação de troca e comunicabilidade do capitalismo). As principais ideias dos neokraepelinianos estão resumidas na Tabela I. A modernidade anuncia um "biologismo" que encerra um monismo reducionista: a mente está irrevogavelmente baseada no corpo, no qual os significados mais complexos das atitudes e da existência são desprezados ou reduzidos a meras reações bioquímicas. Constitui-se um dogma por preconizar uma visão radical, excessivamente biológica da doença mental.
Pós-modernismo e psiquiatria A concepção pós-moderna surge como uma contraposição ao modernismo, questionando os seus próprios princípios. É partidário de uma filosofia idealista, legado do romantismo alemão, que conta com importantes autores como Kant e Nietzsche. A introdução de uma feno menologia das vivências subjetivas foi fundamental para a visão psiquiátrica do século XX. Esta nova ciência dos fenômenos da mente pouco se interessou pelos sinais, sintomas da doença mental e diagnóstico psiquiátrico. Nietzsche acreditava que o ser humano era, em grande parte, tomado por paixões, ou seja, forças ocultas justificariam os seus comportamentos e guiariam suas ações.
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Tabela I
Principais ideias dos neokraepelinianos
A psiquiatria é um ramo da medicina. A psiquiatria deve usar métodos científicos modernos e basear sua prática em conhecimento científico. A psiquiatria trata pessoas que estão doentes e que necessitam de tratamento para doenças mentais. Existe uma fronteira entre pessoas normais e doentes. A doença mental não é um mito; há diversas doenças mentais. É o papel da psiquiatria científica investigar as causas. o diagnóstico e o tratamento destas doenças mentais. O foco de médicos psiquiatras deve ser o aspecto biológico das doenças mentais. Deve haver um interesse explícito e intencional pelo diagnóstico e pelas classificações. Os critérios diagnósticos devem ser codificados, e uma área de pesquisa legítima e valorosa deve validar tais critérios por várias técnicas. Os departamentos psiquiátricos nas escolas médicas devem ensinar tais critérios e não menosprezá- los, como foi o caso por diversos anos. Técnicas estatísticas devem ser usadas na pesquisa direcionadas a melhorar a confiabilidade e a validade dos diagnósticos e das classificações. Fonte: Adaptada de Kl erman (1978)26 •
O seu conceito da morte de Deus é uma metáfora para a dissolução da fé religiosa, com críticas veladas às ideias modernistas como a perfectibilidade do homem, o destino histórico e a moralidade universal. O principal representante pós-modernista em psiquiatria foi Sigmund Freud. Neurologista de formação, ao desenvolver o seu corpo teórico, Freud acabou por descrever uma fenomenologia das paixões. Este autor discordava da classificação de Kraepelin, vendo -a como uma "psiquiatria descritiva" de epifenômenos. Para esse médico, a superficialidade da visão kraepeliniana desviava a atenção da fonte real dos problemas humanos: as paixões em conflito. Freud aderiu à ideia pós-moderna de que a desonestidade e as racionalizações estariam cegando as pessoas para o que elas estariam pensando de verdade. Os distúrbios mentais - assim como outros fenômenos mentais como os sonhos, os atos falhos e os chistes - não constituem questões de forma. Concordava que os distúrbios da mente devem ser classificados em catálogo de patologias ou de eventos humanos, mas representariam apenas o funcionamento dinâmico da mente humana ao administrar o conflito entre as suas paixões e as expectativas da sociedade. A contribuição freudiana à psiquiatria da sua época foi a sua discordância que as doenças mentais seriam eventos naturais, explicáveis e impessoais, que deveriam ser identificados estaticamente por meio de sinais e sintomas estereotipados. Ocorreu, pois, um fortalecimento da ideia de que os distúrbios mentais - assim como a dissolução deles - são funções da pessoa e não uma entidade de doença. Isso ocorreria desde os transtornos psiquiátricos menores até as grandes psicoses. Conforme diz Freud: ''A formação delirante, que nós tomamos como um produto patológico, na verdade é uma tentativa de recuperação, um processo de reconstrução" 27 • Se o pensamento moderno pecava pelo "biologismo" excessivo, o radicalismo pós-moderno adota outro ponto: o "psicologismo" excessivo é transformado em um rígido
dogmatismo que afirma que nada é orgânico, tudo tem sua origem no psicológico, nos conflitos das paixões humanas. Aqui reside o principal ponto de divergência entre os modernos e os pós-modernos, ou seja, entre os psiquiatras biológicos e dinamicistas: os primeiros falam em estados, condições e eventos mentais ao enfatizarem a sua apresentação categoria! atual de sintomas e sinais, enquanto que os psicoterapeutas usam termos que remetem a uma função mais profunda, enfatizam processos, conflitos, mecanismos de defesa e conteúdos latentes ou manifestos. Estas duas polaridades são aparentes quando uma pessoa usa um ou outro termo que a posiciona desde o começo no que diz respeito à visão da doença mental. Entretanto, elas raramente reconhecem estar se filiando a um posicionamento ideológico ou a outro e tomam o seu ponto de vista como a única verdade; pensam e argumentam como se o seu lado fosse o certo e ignoram a existência de um outro. O resultado disso é um mistificador conflito sobre a natureza das condições psiquiátricas25 •
Antimodernismo O radicalismo antimodernista surgiu no início da década de 1960 como um movimento que protestava contra o teor degenerado do modernismo e do pós-modernismo. Na mesma época, a clorpromazina foi sintetizada e ganhava aceitação dos psiquiatras. O serviço psiquiátrico ainda privilegiava grandes asilos e manicômios. Os representantes do antimodernismo criticavam veemen temente a corrupção das pessoas que, seduzidas pela ganância, teriam sucumbido ao consumismo. Censuravam, ao mesmo tempo, tanto a imoralidade da reificação biológica do modernismo como o fatalismo das escolhas pessoais impostas por forças libidinais incontroláveis do pósmodernismo. Em contrapartida, pregavam a liberdade do ser humano e a sua capacidade de decidir sobre o próprio destino. Acreditavam, portanto, que tanto o modernismo como o pós-modernismo aprisionavam as pessoas, assim
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como as instituições psiquiátricas encarceravam os doentes mentais em locais fechados 28 • Thomas Szasz é o principal partidário desta ideologia. Por meio de sua obra The myth of mental illness7 , questiona grande parte dos conceitos da psiquiatria, elaborando o esboço de uma antipsiquiatria. Defendia que maneiras alteradas de se viver a vida deviam ser encaradas como escolhas individuais e deviam ser apoiadas por uma sociedade justa. Incluíam na ordem de escolhas humanas comportamentos patológicos como o uso doentio de álcool e o suicídio. "De quem é a vida, afinal?", costumavam perguntar os antipsiquiatras. A liberdade como valor máximo e absoluto (ou fundamentalista) é a ideia principal do antimodernismo. Este movimento se recusa a enxergar que doenças mentais possam limitar a liberdade e autonomia individual das pessoas, contrário à posição acadêmica aceita por muitos psiquiatras. Recusa-se também a aceitar que o avanço e sucesso da psicofarmacologia nos tratamentos psiquiátricos tenham revelado os efeitos biológicos de substâncias químicas alteradas no organismo. De maneira dogmática, é uma negação de todo o pensamento sobre o distúrbio mental que se desenvolveu desde a Antiguidade. Não se podem delimitar com precisão os períodos históricos nos quais os três dogmatismos ocorreram. Emhora um pareça a reação do outro, não há uma relação temporal bem definida entre os três. Na verdade, estes dogmatismos - o biologismo, o psicologismo e a antipsiquiatria - continuam presentes com grande frequência nos dias de hoje. Quem nunca se deparou, na prática clínica, com ideias biologistas, psicologistas ou antipsiquiátricas? Por exemplo, quando se presencia a medicação exagerada de comportamentos que refletem meramente conflitos psicológicos; quando se superinterpreta ou supersignifica comportamentos estritamente decorrentes de alterações mentais orgânicas. Ou quando observamos atitudes completamente rebeldes advogando uma antipsiquiatria, negando a existência de qualquer distúrbio mental e dizendo que são resultados de forças sociais subliminares. Os dogmatismos expressam, portanto, opiniões extremadas que, como citado anteriormente, pecam pela obediência cega a uma doutrina exagerada, unilateral e rígida.
Tabela 11
Ecletismo e a proposta de pacificação Em reação aos excessos dos dogmatismos surge o ecletismo, como uma tentativa de amainar o grande conflito entre ideologias sumamente biológicas e sumamente psicológicas sobre a mente e seus distúrbios. Nesse cenário de intransigências e disputas conceituais emerge na psiquiatria a proposta de um modelo biopsicossocial. O modelo biopsicossocial origina-se em dois momentos na psiquiatria. O primeiro deles é com Adolph Meyer e sua psicobiologia29 • Meyer foi influenciado pela escola de pensamento pragmatista dos Estados Unidos, cujas premissas foram fundamentais para a formulação da segunda edição do DSM e contém basicamente as suas ideias sobre a doença mental. Insatisfeito com a abordagem excessivamente biológica dos alemães, Meyer contrapunha-se a Kraepelin. Nos termos deste autor norte-americano, o pessimismo biológico de Kraepelin ignorava fatores psicossociais e estaria oferecendo um "niilismo terapêutico" com seus conceitos. Na prática, Meyer creditava algum componente biológico às doenças mentais, mas estava mais interessado nos aspectos psicossociais que também pudessem estar alterados (Tabela II). Pensava as doenças mentais como reações a eventos sociais e eventos de vida, apesar de não descartar a importância do biológico na psiquiatria, seguindo os conceitos da época. George Engel foi outro impulsionador do modelo biopsicossociaP 1 • Este autor recebeu influência do Instituto Franz Alexander, um centro do movimento psicossomático nos Estados Unidos. Juntamente com Alexander, esses dois pesquisadores foram os primeiros a tentar implementar ideias psicanalíticas na medicina. Sem grande sucesso nesta empreitada, Engel sentiu-se então compelido a formular um modelo biopsicossocial que se opusesse ao reducionismo biomédico, já que em 1970 a psiquiatria biológica fortalecia -se enquanto as influências da psicanálise na medicina e na psiquiatria perdiam terreno. Primeiramente os psiquiatras ansiavam por uma resolução do conflito da psiquiatria biológica versus psiquiatria dinâmica. Em segundo lugar, a escola biológica, apesar de resgatar as ideias de Kraepelin com os primeiros esboços do DSM-III, na transição para os anos 1980, queria se desviar de uma conceituação excessivamente biológica da psiquiatria, ao tentar elaborar uma classificação diag-
Premissas do modelo biopsicossocial de Meyer
Os limites entre os mentalmente saudáveis e os mentalmente doentes é fluido porque pessoas normais podem se tornar doentes se expostas a traumas suficientemente graves. A doença mental deve ser concebida ao longo de um continuum de gravidade da neurose por meio de condições borderlines até a psicose. Uma mistura de ambiente nocivo e conflitos psíquicos causa a doença mental. Os mecanismos por meio dos quais a doença mental emerge em um indivíduo são mediados psicologicamente. A pós- modernidade proporciona aos médicos uma oportunidade de redefinir seus papéis e responsabilidades. Fonte: Adaptada de Wilson (1993)30 •
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nóstica "ateórica''. Os kraepelinianos e os neokraepelinianos se diferenciariam por este critério: Emil Kraepelin não negava uma etiologia estritamente biológica das doenças mentais enquanto seus seguidores atuais são um pouco mais ecléticos. Assim o modelo biopsicossocial teve generosa recepção, principalmente nos Estados Unidos. A princípio, este modelo evita o dogmatismo: escapa ao reducionismo biológico ao mesmo tempo em que nega a exclusividade psicanalítica. Qual seria o problema do modelo biopsicossocial? Nassir Ghaemi25 exemplifica as dificuldades que tal modelo poderia suscitar utilizando doenças médicas; to me-se o diabetes como ilustração. Alguém tem uma predisposição genética (biológico) que produz a doença quando associada com ganho de peso excessivo, que por sua vez tem suas raízes psicológicas (ansiedade, depressão) ou ambientais (acesso a junk food, hábitos alimentares). Entretanto quando se analisa outra doença, como a doença de Tay-Sachs, pouco pode ser dito sobre sua etiologia, além do infeliz acaso de herdar uma doença genética dos genitores. Cada componente deste modelo biopsicossocial apresenta uma contribuição desigual nas doenças . ., . ps1qmatncas. McHugh e Slavney32 criticaram o modelo biopsicossocial por ser demasiadamente amplo e sem limites. O ecletismo coleciona todas as explicações possíveis, contudo, não sugere nenhuma direção específica. Não se sabe qual a implicação do componente biológico e do psicossocial na geração dos distúrbios. O modelo biopsicossociallista aspectos relevantes na psiquiatria e não proporciona um guia verdadeiro para clínicos e pesquisadores. Como consequência, o clínico se torna eclético, podendo fazer o que quiser 33, uma vez que tudo está contemplado e justificado. O ecletismo pode ser descrito como um modelo "politicamente correto" que atinge o consenso de uma ampla audiência, já que tudo, aparentemente, tem um componente biológico, um componente psicológico e um componente social. Decorre daí que todos devem receber medicação e psicoterapia, já que todo mundo é biológico e psicológico. Mantém-se, pois, a imprecisão teórica do conceito de doença mental: este modelo pode acolher tanto uma teoria como outra. Se você optar por medicação, está certo; se optar por terapia, também está certo. Afinal, está tudo justificado no amplo, confortável, mas indeterminado conceito do biopsicosocial. Como resultado, permanece a confusão conceitual na psiquiatria. Afinal, quantas condutas terapêuticas diferentes existem para um mesmo diagnóstico psiquiátrico? O tratamento varia muito de acordo com a "filiação" de cada profissional; mas to das são válidas e corretas. Em outras áreas da Medicina tal heterogeneidade não existe: a coerência interna dos conceitos médicos são mais integrados e melhor estabelecidos, ao contrário do ecletismo psiquiátrico descomprometido com uma explicação mais vigorosa.
Pluralismo e a luz no fim do túnel Se por um lado o ecletismo propicia os ingredientes, mas não a teoria conceitual, a visão pluralista dos distúrbios da mente visa justamente conjeturar sobre o seu conceito. O pluralismo prega que deve haver conceitos diversos sobre a doença mental, cada um em consonância com a dimensão específica de alteração que está ocorrendo. Diferente do dogmatismo, que propõe uma explicação única para tudo, e do ecletismo, que propõe todas as explicações para tudo, o pluralismo delimita quais conceitos devem ser usados para uma situação específica na psiquiatria. O primeiro autor a propor um pluralismo conceitual no entendimento do adoecer psíquico foi Leston Havens34. Quatro diferentes abordagens ao sofrimento humano são propostas e organizadas por meio de seus métodos e não pelos seus conteúdos. Esta estratégia ameniza grande parte dos conflitos existentes entre as teorias precedentes. A primeira grande escola conceitual seria a objetivo-descritiva, baseada no método científico tradicional empírico de observação e análise estatística. O representante maior desta abordagem é o arcabouço conceitual proposto por Emil Kraepelin: as doenças psiquiátricas seriam captadas pelo agrupamento de sinais e sintomas e estariam sediadas no biológico. Assim, deveriam ser tratadas "somaticamente" com medicações e outros tratamentos físicos. Foi baseado neste modelo que Alois Alzheimer, aluno de Kraepelin, conseguiu determinar uma alteração patológica post mor tem em uma amostra de pessoas que sofriam de demência. O próprio Kraepelin observou que muitas pessoas com psicose na realidade sofriam de infecções sifilíticas. Tais fatos influenciaram bastante o pensamento do final do século XIX e início do XX, fazendo com que os psiquiatras procurassem causas orgânicas para as síndromes clínicas que observavam. O conteúdo da escola objetivo-descritiva pode variar, mas a forma é sempre a mesma: a observação empírica e descrição como no modelo médico tradicional.A segunda escola de pensamento é a psicanálise e as suas ramificações posteriores. Segundo Havens3\ o que todas as diversas escolas psicanalíticas (freudiana, lacaniana, kleiniana) têm em comum é a utilização da livre-associação como método terapêutico. O psicanalista não persegue sinais ou sintomas, mas deixa que o paciente fale e escuta-o de uma posição neutra e imparcial, elaborando opiniões apenas a posteriori. Acredita-se numa lógica oculta entre os conteúdos daquilo que o paciente diz e que esta lógica poderia ser descoberta pelas livres associações que o paciente faria. Somente assim teríamos acesso ao inconsciente. A terceira escola é a existencial, representada principalmente por Ludwig Binswanger e Ronald Laing35 • O método principal desta escola é a empatia, por meio do qual o psiquiatra se coloca no lugar da outra pessoa. Como na psicanálise, da qual sofre grande parte da influência, o
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terapeuta coloca-se em uma posição de escuta neutra e imparcial. Entretanto, ao contrário da escuta psicanalítica, não há um movimento de teorizar sobre tudo que o paciente fala ou a necessidade de organizar todo o conteúdo do que vem sendo dito em uma teoria. Pelo contrário, o paciente deve ser simplesmente entendido. Aqui não há uma relação paciente-curador, não há uma relação objeto-descritor dos kraepelinianos. Esta relação é anulada e substituída por uma relação igualitária onde os movimentos do terapeuta para o paciente e o do pacien. , . te para o terapeuta sao s1metncas. A última escola seria a interpessoal, ou a também chamada por ele de escola de psiquiatria social. Ela é representada por Harry S. Sullivan, Erich Fromm, Erik Erikson, Carol Gilligan e vários outros. A metodologia destes teóricos envolve uma "limpeza do campo interpessoal". Acreditavam que durante a interação entre duas pessoas ocorrem reações interpessoais que podem influenciar os fenômenos psicológicos observados. Tais fenômenos tenderiam a distorcer o campo interpessoal; isso ocorreria na psicose, por exemplo, em decorrência da paranoia. Este fenômeno é semelhante ao processo de transferência pela psicanálise. Esta escola interpessoal estava insatisfeita com o conceito de transferência e, por isso, combatia ativamente as suas distorções. Igualmente pluralista é a proposta baseada no livro Perspectives in psychiatri2 de McHugh e Slavney. Os autores propõem quatro maneiras por meio das quais se devem entender os fenômenos mentais: 1. Doença: o que o paciente tem. O tratamento visa à cura, e esta visão está de acordo com a escola objetivo-descritiva de Havens. Uma pessoa tem ou não tem uma doença. Segundo os autores, entre os distúrbios desta esfera poderíamos citar a demência de Alzheimer e a afasia com alteração anatômica confirmada e o transtorno bipolar e a esquizofrenia, ainda sem causa somática determinada. 2. Dimensão: o que o paciente é. O objetivo do tratamento é o aconselhamento e aproxima-se, em vários pontos, da escola existencial de Havens. Não há categorias de doenças, mas sim dimensões, ou seja, comportamentos dentro da normalidade atingiriam um distúrbio pelo seu desvio da média, dentro de um continuum dimensional. Este modelo é aplicável a aspectos psicológicos universais (p. ex, traços de personalidade) e diferem entre os indivíduos em quantidade. Incluem-se neste caso a ansiedade, a inteligência, os temperamentos, por exemplo. 3. Comportamento: o que o paciente faz. Tratamento nesta categoria visa a re-educação, por meio da qual o indivíduo aprenderia métodos para controlar ou alterar seus comportamentos. Este é o método que rege as bem conhecidas terapias comportamentais para o transtorno obsessivo-compulsivo e para a depressão; p. ex., a histeria e a bulimia nervosa seriam incluídas nesta esfera. 4. História de vida: o que o paciente quer. Esta perspectiva foca nos objetivos futuros do paciente. Ao invés
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de apenas entender o que o paciente é, ou o que ele foi, como na escola existencialista, foca-se também no que o paciente pode vir a ser. O tratamento visa a estabelecer novos objetivos, ou alterar os já estabelecidos de uma maneira mais saudável. Após o surgimento da psiquiatria, os conceitos inicialmente foram elaborados de maneira radical; eram mais assemelhados a dogmas, quase uma religião a ser fielmente seguida. Ao se dar conta disso, o modelo eclético surge no cenário acadêmico para apaziguar os ânimos e legitimar todos os dogmas em uma só teoria, amorfos e que mais aceita e pouco explica. O pluralismo surge, então, como uma nova proposta: diferentes conceitos coexistem, mas cada um tem o seu papel bem delineado.
lntegracionismo e a proposta de solução Até recentemente a filosofia da mente nos mostrou que a maioria dos conceitos que tentou delimitar a ontologia da mente, e por extensão também os conceitos envolvendo os seus distúrbios, eram basicamente dualistas. Ou seja, tinham como premissa uma separação dialética entre mente e corpo. Entretanto, a filosofia contemporânea tende a pensar a mente de uma maneira monista, advogando que não há mente sem cérebro; portanto, ambos fariam parte de uma mesma substância. Partidários desse pensamento filosófico têm abalado a convicção dualista. Primeiramente com Darwin, depois com Einstein, provou-se que crenças aparentemente oriundas de outra dimensão de existência (o divino) poderiam ser explicadas por leis da natureza. De maneira semelhante, as neurociências gradualmente estenderam o mesmo tipo de explicações para o cérebro. Apesar de o monismo ser a opção mais coerente do ponto de vista filosófico, muitas pessoas permanecem atreladas ao dualismo na prática. O que se observa é que ainda pensam desta maneira, muitas vezes de maneira até inconsciente. Mantém esta crença camuflada uma vez que o monismo já recebeu muitas críticas: um monismo fun damentalista e radical implicaria em uma redução de todos os fenômenos mentais ao cérebro. Caímos então na problemática do reducionismo materialista. Neste materialismo monista, a mente seria reduzida ao funcionamento cerebral, o que parece não ocorrer. Exemplificando: quando se junta condutores, parafusos, placas, chips e componentes de plástico forma-se um computador. Entretanto, quando utilizamos o seu software percebemos que o computador não é apenas a simples soma de todos os seus componentes, mas que aquilo resultou em alguma coisa a mais. Este algo novo é o software, que de maneira alguma é uma somatória dos componentes físicos do computador. Há um nível de tradução entre a maquma, entre as marcas magnetlcas que estao no disco rígido ou no chip, e o software que operamos. Este algo a mais que se agrega à soma dos componentes ,
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para gerar uma coisa nova chamaria-se qualia, em termos filosóficos. Advogam, portanto, que o mesmo aconteceria com a mente, que não seria então um amontoado de neurônios, tampouco a sua simples somatória. Reduzir o pensamento a uma ligação axonal seria um reducionismo biológico, seria como dizer que o software do computador é a soma de seus componentes físicos. Uma alternativa para escapar a um dualismo e a um materialismo reducionista seria o integracionismo, cujo representante principal é Eric Kandel, vencedor do prêmio Nobel de Medicina em 2000. Kandel iniciou sua carreira com forte influência da psicanálise, mas voltou-se ao estudo das ciências básicas posteriormente. Seu trabalho veio à tona por meio de dois artigos publicados pouco antes de ganhar o prêmio Nobel; o primeiro deles chama-se A new intellectual framework for psychiatry36 e o segundo Biology and the future ofpsychoanalysis37 , ambos publicados no American fournal of Psychiatry. Em ambos os estudos ele descreve 5 princípios pelos quais as ciências da mente deviam se basear: 1. Todos os processos mentais, até os mais complexos processos biológicos, têm a sede no cérebro. Desta forma, distúrbios comportamentais que caracterizam o transtorno psiquiátrico são distúrbios da função cerebral, até mesmo aqueles casos em que as causas do distúrbio são de origem claramente ambiental. 2. Os genes são importantes determinantes do padrão de interconexão entre os neurônios. Assim, um componente que contribui substancialmente para o desenvolvimento de grandes transtornos mentais é genético. 3. Da mesma forma que os genes contribuem para o comportamento, assim também o comportamento e fatores sociais exercem ações no cérebro ao retroalimentálo modificando a expressão de genes e consequentemente a função das células nervosas. O aprendizado, por exemplo, produz mudanças na expressão genética. 4. Alterações genéticas produzidas pelo aprendizado geram mudanças no padrão de conexões neuronais. Essas mudanças não apenas contribuem para a base biológica da individualidade, mas também presumivelmente são responsáveis por iniciar e manter anormalidades do comportamento que são induzidas por contingências sociais. 5. Da mesma maneira que a psicoterapia e o aconselhamento psicológico são eficazes e produzem mudanças a longo prazo no comportamento, presumivelmente eles o fazem por meio do aprendizado, ao produzir mudanças na expressão gênica que alteram a força das conexões sinápticas e mudanças nas estruturas que alteram o padrão anatômico das interconexões entre células nervosas no cérebro. Conforme a resolução das técnicas de imagem cerebral for melhorando, elas devem eventualmente permitir uma avaliação quantitativa do resultado da psicoterapia. Este é, rapidamente, o modelo de psiquiatria defendido por Kandel. O primeiro princípio trata do materialismo não reducionista: a mente depende do cérebro. O
segundo e o terceiro argumentos nos dizem que o ambiente e os genes contribuem na formação da mente. Se conectarmos os três primeiros princípios obteremos o seguinte argumento lógico: A mente é dependente do cérebro ( 1°) -7 O cérebro depende em parte dos genes (2 2 ) -7 Portanto a mente depende em parte dos genes (2°) -7 Também, fenômenos mentais anormais dependem dos genes (2 2 ); O cérebro dependente em parte do ambiente social (3 2 ) -7 Portanto a mente depende em parte do ambiente social (3°) -7 Também, fenômenos mentais anormais dependem em parte do ambiente social (3°). Estas premissas não são originais, este pensamento já data de certo tempo; o que Kandel traz de inovador está contido nos princípios 3 e 4. Especificamente, elas dizem que o cérebro pode ser influenciado diretamente pelo ambiente por meio do conceito de neuroplasticidade, no qual poderia se estabelecer um elo entre o ambiente e a mente, elo este que estaria sediado no cérebro (Figura 1). Kandel admite que a conexão entre o psicológico e o cérebro ainda não está bem elucidada, mas acredita que isso seja apenas uma questão de tempo. Para exemplificar sua teoria, este cientista cita dois exemplos com modelo animal. O primeiro deles é sobre a aplysia, um tipo de lesma-domar que liberta tintas quando atacada. Kandel verificou que
Estados psicológicos complexos (emoções) M ente Estados psicológicos simples Nível translaciona I Circuitos neuronais complexos
Grupos neurona is
Sinapses neuronais Cérebro Transdução de segundo mensageiro dentro do neurônio
Mudanças genéticas dentro do neurônio
Mudanças nas proteínas do DNA
Abordagem integracionista à mente e ao cérebro. Fonte: Adaptada de Ghaemi, 2007 25•
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o número de sinapses era o dobro em aplysias submetidas a condicionamento para aprendizagem de longo prazo em comparação com aquelas que não eram. Ou seja, o ambiente modifica o sistema nervoso central por meio de uma atuação direta sobre ele. Em outras palavras: a lembrança modificava o cérebro; e esta alteração se realiza não por intermédio da memória de curto prazo (que é evanescente), mas por meio da memória de longo prazo. O segundo experimento diz respeito a macacos. Um grupo de primatas foi estimulado a obter alimentos usando três dedos da mão ao invés dos outros dois. Após milhares de tentativas, observou-se que a área cortical destinada a estes três dedos havia aumentado em comparação ao ponto inicial. O aprendizado participa ativamente na modelagem e no crescimento cerebral. Evidentemente, Kandel não explanou de que maneira o ambiente poderia agir sobre o cérebro, mas enunciou um promissor princípio sobre a sua visão. O cérebro seria um órgão dotado de plasticidade e que seria moldado literalmente pelo ambiente. A sua ideia é de que, em algum nível, fenômenos mentais e cerebrais se traduzem um no outro. Talvez esta interação ocorresse em outro nível. O integracionismo kandeliano representa um importante progresso de modelos conceituais para a psiquiatria, os quais se mantêm alinhavados com os recentes avanços científicos no estudo do cérebro.
O conceito integracionista de endofenótipo Um conceito que tem sido muito falado (e também muito criticado) na psiquiatria é o conceito de endofenótipo38. Mais de 50 anos se passaram desde a descrição da estrutura do DNA por Watson, Crick e Wilkin. Pode-se acessar atualmente o genótipo de uma pessoa por meio de técnicas de biologia molecular como polymerase chain reaction (PCR). Este conceito unificador representa uma recente tentativa de integrar o rígido dualismo de algumas escolas. O fenótipo representa as características observáveis do indivíduo e resulta de influências tanto do genótipo quanto do ambiente. Em doenças com padrão de herança genética mendeliano o fenótipo geralmente expressa o genótipo. Entretanto, quando passamos para padrões genéticos complexos e doenças influenciadas por múltiplos genes, como em Psiquiatria, esta certeza desaparece. Entretanto, quando se somam incontáveis fatores com pesos diferentes a chance de erro aumenta vertiginosamente. A probabilística genética, por sua vez, pode ser produzida a partir de um número limitado de fatores. Além disso, falta ainda determinar quais dos múltiplos fatores ambientais e epigenéticos geram o distúrbio. É para esta função que surge o endofenótipo; este conceito começou a ser usado há cerca de 40 anos atrás, por Gottesman e Shieds39. O endofenótipo foi descrito como um fenótipo interno que seria detectável por testes bioquímicos ou exame microscópico40, cuja definição foi
utilizada para explicar diversos conceitos de evolução e da biologia de espécies da vida natural. Por exemplo, a dispersão geográfica de gafanhotos seria uma função de algum fator não aparente em seu exofenótipo, mas de um endofenótipo. Este marcador nem sempre está claramente externalizado e visível, muitas vezes, permanece oculto e acessível apenas microscopicamente. Desde o início de sua incorporação à pesquisa científica, o conceito de endofenótipo questiona a validade das síndromes psiquiátricas, baseadas apenas no exterior observável. Supunha-se, e ainda se supõe, que tais síndromes formam um conjunto de alterações heterogêneas reunidas inadequadamente sob entidades homogêneas. Seriam, entretanto, homogêneas apenas no nível da observação, encarado como epifenômeno, mas sem validador biológico identificável. A ideia de endofenótipo surge para estabelecer uma ligação entre o genético e o observável, visando facilitar a descoberta de fatores geradores de suscetibilidade. Tomandose os endofenótipos propostos para a esquizofrenia como exemplo, no nível do genótipo, já há evidências de vários genes candidatos para a esquizofrenia; portanto genes confeririam alterações para o receptor da serotonina (13q32 34), alterações na COMT (22qll), na disbindina (DTNBPl) etc.41·42. Alguns destes múltiplos genes relacionados à esquizofrenia se combinariam para gerar distúrbios na função oculomotora, outros para alterar a memória de trabalho, e assim por diante. Este nível seria o do endofenótipo. A busca destes validadores biológicos conferiria uma teoria de sustentação à suscetibilidade da doença. Ou seja, sob determinadas circunstâncias ambientais, o indivíduo desenvolveria o fenótipo da esquizofrenia38. A utilização de fenótipos intermediários (os endo fenótipos) estabelece a comunicação entre o biológico e o comportamento observável. Se por um lado para alguns tal conceito possibilita a elaboração de classificações diagnósticas mais válidas, baseadas em aspectos biológicos que comporiam meta-estruturas43 , muitas críticas têm sido feitas ao conceito. Uma delas é a de que o endofenótipo não simplifica a pesquisa genética, apenas renomeia as dificuldades que já se encontram inerentes a este tipo de pesquisa44 . Outra crítica recai sobre o caráter tautológico do seu conceito: isto é, a expressão dos genes apenas representa os fenótipos extensamente observados. Ainda são necessárias mais pesquisas sobre as bases biológicas do transtorno mental para determinar a real importância do conceito de endofenótipo.
Considerações finais Os conceitos da psiquiatria ao longo do tempo evoluíram questionando as relações entre mente e cérebro. Muitas vezes, ideias antigas persistem e paradigmas ino vadores são propostos para formular uma descrição adequada desta questão fundamental. Os conceitos atuais de
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psiquiatria são sofisticados, mas, ainda insuficientes para organizar e compreender toda a complexidade da mente humana. As classificações diagnósticas atuais sobre os transtornos mentais, que primam pela confiabilidade e reprodutibilidade, como os atuais manuais da CID- lO e DSM-IV, ainda se esforçam para atingir uma coerência descritiva sobre a infraestrutura da mente humana. Este texto sintetiza as várias posições conceituais que determinaram as direções do saber psiquiátrico e a intervenção terapêutica em várias épocas da história da psiquiatria. Divergências, radicalismos e polêmicas suscitaram debates entusiasmados, sem que uma única posição de consenso seja suficiente para fornecer uma ordem apaziguadora entre os cientistas e psiquiatras clínicos. Observando o tortuoso caminho que os conceitos psiquiátricos percorreram até o presente momento, há duas grandes questões a serem aprendidas aqui. Primeiro, a dificuldade de elaborar um conceito em psiquiatria reside, primariamente, na complexidade do seu objeto de estudo: a mente humana. Qualquer afirmação sobre a natureza da mente é problemática, na medida em que a sua essência não está, ou não pode ser, claramente definida e entendida. A mente não pode ser observada diretamente, ou medida com exatidão. É subjetiva e não objetiva. O acesso a ela é indireto, por meio da psicopatologia, como sugeria Jaspers4 5• Entretanto este método ainda passa por diversas obliquidades, desde a linguagem até o tipo de entrevistador e qual sorte de contato ele estabelece com o examinado. Não se pode confiar na superficialidade de sinais e sintomas observáveis, sem que os processos mentais subjacentes de tais epifenômenos estejam estabelecidos. Por todos esses motivos foi tão difícil constituir a mente como o objeto de conhecimento em psiquiatria. O resultado disso é uma sensação de confusão, indefinição e impalpabilidade do objeto que se deseja apreender, a mente e suas alterações, que acaba por evaporar e escapar de nossas mãos. A frouxidão conceitual possibilita, então, uma enorme variabilidade teórica; desde a filiação a conceitos radicalizados, até o partidarismo a conceitos abrangentes e polimórficos. Não resta alternativa senão a utilização de critérios observáveis na sua elaboração conceitual. A evolução dos conceitos na psiquiatria é inconstante e de difícil delimitação temporal. A história dos conceitos em psiquiatria é volátil e pendular: cheia de avanços e retrocessos, de conceitos contrários coexistindo em um mesmo período histórico. Talvez o maior fio condutor da evolução conceitual seja o interesse que os grandes pesquisadores e médicos sempre mantiveram sobre os mistérios da mente humana. Sem um aparente encadeamento lógico e epistemológico, constituíram-se os dogmatismos, os ecletismos e os pluralismos. Não é difícil perceber que ainda hoje a prática profissional está separada em muitas destas posições conceituais. Dependendo do "modismo" vigente, prevalece a presença de uma
ou outra corrente conceitual. Mas é fato que todas coexistem na atualidade. Mas uma mudança de paradigma está se esboçando. Várias ideias vindas de neurociências estão revolucionando a psiquiatria. Em primeiro lugar, o conceito de neuroplasticidade demonstrou que a mente está situada no cérebro, isto é, fatores ambientais e psicológicos apresentam efeitos consideráveis na organização neuronal. Esta constatação empírica encerra a disputa dualista da mente-cérebro e estabeleceu de forma científica a sua essência. Em segundo lugar, o grande avanço das técnicas de neuroimagem possibilitou um maior acesso in vivo aos fenômenos da mente. A demonstração da ativação de áreas cerebrais responsáveis por processamento de estímulos auditivos e visuais em uma pessoa com alucinações visuais ou auditivas evidencia a ligação entre os fenômenos mentais e as suas base cerebrais46•47 . Hoje em dia, já é possível discutir as bases orgânicas das circuitarias neuronais de funcionamentos complexos juntamente com as teorias da mente48 . Soma-se a esses dois fatores a grande evolução na pesquisa das bases moleculares da expressão gênica e do funcionamento cerebral49 • O otimismo se faz sentir em várias áreas da psiquiatria. Ainda resta muito por fazer neste aspecto, mas passos muito importantes já foram dados. Uma teoria da mente poderá ser elaborada com consistência e robustez quando for constituída a essência da mente, livre de vieses e fatores confundidores. Enquanto isso, os conceitos de doença mental continuam sofrendo com as incertezas e incoerências de um conjunto de conhecimentos pouco integrados à prática clínica. Por fim, os recentes progressos da psiquiatria prometem oportunidades e desafios de se estabelecer como uma robusta disciplina médica, com um corpo conceitual coerente e aplicável cientificamente.
Questões 1. Os quatro posicionamentos teóricos observados na psiquiatria com relação aos seus conceitos, segundo Nassir Ghaemi, são: a) radical ismo, ecletismo, integracionismo, pluralismo. b) biologismo, psicolog ismo, ecletismo, integracionismo. c) dog matismo, ecletismo, pluralismo, integracionismo. d) dogmatismo, ecletismo, rad icalismo, integracionismo. e) monismo, dualismo, dogmatismo, plural ismo. 2. O integracionismo, corrente conceitual atual que assim ila todos os avanços científicos mais recentes, foi impulsionado principalmente por quais fatores? a) Desenvolvimento da corrente do biologismo. b) Desenvolvimento do conceito de neuroplasticidade, avanço das neurociências. c) Junção do biolog ismo e do psicolog ismo, resu ltando no ecletismo. d) Desenvolvimento dos psicofármacos. e) Grandes avanços na genética psiquiátrica.
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3. A diferença entre ecletismo, pluralismo e integracionismo é: a) Ecletismo e pluralismo são correntes ideológicas iguais que refletem a aceitação de diferentes maneiras de se conceitualizar o distúrbio mental. O integracionismo pretende integrar estas duas concepções. b) O pluralismo e o integracionismo trabalham com conceitos sumamente biológicos enquanto o ecletismo entende os transtornos mentais como decorrentes de alterações psicológicas. c) As três correntes de pensamento são iguais, o que muda nelas é apenas a maneira mais biológica ou psicológica de compreender os distúrbios mentais. d) O ecletismo reúne correntes conceituais opostas mas elas não se comunicam, não se misturam - é o pensamento do "tudo pode"; já no pluralismo, os distúrbios mentais são separados em grupos diferentes e cada grupo é entendido de acordo com uma perspectiva diferente. No integracionismo, os conceitos psicológicos e biológicos são integrados utilizando-se o conceito de neuroplasticidade e de um materialismo não reducionista. e) Na verdade, o ecletismo, o pluralismo e o integracionismo são fases sucessivas de dualismo que incorporaram progressivamente os recentes avanços tecnológicos. 4. Escolha a alternativa que melhor represente a associação entre as escolas ideológicas e os autores: a) Dogmatismo biológico: Johann C. Rei I; Dogmatismo psicológico: Carl G. Jung; Dogmatismo antipsiquiátrico : Ronald Laing; Ecletismo: Karl Jaspers; Pluralismo: Paul McHugh ; lntegracionismo: Eric Kandell . b) Dogmatismo biológico : Adolf Meyer; Dogmatismo psicológico : Eugen Bleuler; Dogmatismo antipsiquiátrico: Leston Havens; Ecletismo: Emil Kraepelin; Pluralismo: Eric Kandell; lntegracionismo: Paul McHugh. c) Dogmatismo biológico: Emil Kraepelin ; Dogmatismo psicológico: Sigmund Freud; Dogmatismo antipsiquiátrico:Thomas Szasz; Ecletismo: Adolf Meyer; Pluralismo: Paul McHugh; lntegracion ismo: Eric Kandell. d) Dogmatismo biológico: Friedrich Nietszche; Dogmatismo psicológico : Erich Fromm; Dogmatismo antipsiquiátrico : Eric Kandell; Ecletismo: Ronald Laing; Pluralismo: Paul McHugh; lntegracionismo: Thomas Szasz. e) Dogmatismo biológico : Phillipe Pinel; Dogmatismo psicológico : Kurt Schneider; Dogmatismo antipsiquiátrico: Nassir Ghaemi; Ecletismo: Ronald Laing; Pluralismo: Thomas Kuhn; lntegracionismo: Ludwig Binswanger. 5. Os conceitos em psiquiatria: a) São de fácil delineamento, pois há uma clara noção da ontologia da mente. b) Possuem períodos históricos bem definidos, pois a psiquiatria como ciência apresenta um curso linear e lógico, sendo que o final de um período inaugu ra um outro. c) São de difícil definição, tendo em vista a dificuldade em estabelecer uma ontologia da mente; a evolução dos conceitos é
errática e vários movimentos conceituais opostos sobrepõemse temporalmente e coexistem. d) Deveriam ignorar totalmente as instâncias psicológicas pois tudo está baseado no cérebro e não há qualquer influência do meio externo sobre o biológico; criação, local de nascimento, eventos traumáticos e outros fatores sociais não podem atingir o cérebro. e) Deveriam se basear totalmente nos conceitos psicológicos, principalmente nos psicanalíticos, tendo em vista que a existência humana é influenciada somente pelas paixões e conflitos humanos.
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2 A EVOLUÇÃO DOS CONCEITOS EM PSIQUIATRIA
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Psiquiatria e seus Limites
Zaca ri a Borge A li Ramadam Yua n-Pa ng Wang
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 36 Psiquiatria no contexto da medicina, 36
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Divergências diagnósticas, 37 Aspectos conceituais e influência da psicanálise, 39 O advento da psiquiatria biológica, 40 Pressões legais e socioeconômicas, 40 Troca das escolas pelas escalas, 41 A revolução terapêutica, 41 Experiência de uma boa prática clínica, 43 A reformulação das reformas de saúde mental, 44 Profissão psiquiatra: médico, filósofo ou neurocientista?, 45 Considerações finais, 46 Questões, 47 Referências bibliográficas, 47
Introdução Pode parecer estranho um capítulo sobre os limites da psiquiatria. Durante décadas, a imprecisão diagnóstica e a insuficiência de recursos terapêuticos - presentes em muitas áreas da medicina - serviram de pretexto e fizeram da psiquiatria o alvo principal de críticas contundentes, inclusive dos próprios médicos. Em virtude de sua abrangência, posto que seu principal foco de interesse envolve a diversidade dos comportamentos humanos, com suas particularidades e suas desordens, quantitativas e qualitativas, no decurso do tempo o campo da psiquiatria sempre esteve sujeito a expansões e inflexões, tornando seus contornos mal definidos e inseguros. Além disso, é justificável e compreensível que os transtornos mentais e a psiquiatria tenham sido, desde sempre, objeto de interesse de tantos filósofos e artistas, ao contrário de outras especialidades médicas: é que na sua esfera situam-se autonomia individual, capacidade de discernimento, consciência, inconsciente, livre-arbítrio, perversões sexuais e homicidas, suicídio, fanatismos, enfim, a multiplicidade das chamadas "paixões humanas", estendendo-se desde as liberdades individuais até as coletivas, no plano político.
1. Compreender o alcance da psiquiatria como solução para
problemas de saúde mental. 2. Entender a legitimidade de intervenções psiquiátricas para problemas pessoais e sociais. 3. Discutir a expansão do modelo biomédico na psiquiatria. 4. Discernir os limites do diagnóstico psiquiátrico e a avaliação clínica por meio de instrumentos psicométricos. 5. Avaliar as abordagens terapêuticas com medicamentos e psicoterapias como a panaceia para os múltiplos problemas psiquiátricos. 6. Focar as incertezas da prática psiquiátrica em relação ao paciente como o centro da atenção em saúde mental.
Tudo isso faz da psiquiatria um campo aberto a especulações de toda ordem, leigas, religiosas, artísticas, filosóficas e políticas, com seus contornos até hoje ainda permeáveis. Cabe registrar que Philippe Pinel, um dos maiores ícones da psiquiatria, intitulou sua obra principal como Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou a mania, publicada no início do século XIX1 • Em contrapartida, Karl Jaspers, o maior psicopatologista moderno, tornou-se um bem-sucedido professor de filosofia em Heidelberg e, posteriormente, em Basileia2. Retomado repetidamente pelos pensadores da psiquiatria e partidários da filosofia da subjetividade dos doentes mentais3,o seu livro Psicopatologia geral4 ainda é leitura obrigatória.
Psiquiatria no contexto da medicina Filósofos de grande prestígio deram contribuições significativas ao estudo da psicologia, das emoções e da alienação mental, dentre eles Descartes, La Bruyere, Kant, Kierkegaard, Nietzsche, Schopenhauer, Bergson, W. James, Husserl, Sartre e Merleau-Ponty. Contudo, a psiquiatria sempre foi um ramo da medicina, isto é, uma prática científica, baseada em conhe-
3 PSIQUIATRIA E SEUS LIMITES
cimentos procedentes de vários campos da ciência, tais como biologia, fisiologia, bioquímica, genética, psicologia, psicopatologia, sociologia, etc. Johann Christian Reil, o médico alemão que cunhou o termo psiquiatria há mais de dois séculos, almejava que essa nova disciplina de medicina fosse criada para cuidar dos indivíduos que sofriam de doença mental, pois estes deveriam ser tratados por médicos e não por outros profissionais. Recomendava que apenas os melhores médicos deveriam se tornar psiquiatras (apud Marneros) 5, uma vez que, por princípio, há uma continuidade entre a parte somática e a psíquica, sendo a psiquiatria inseparável da medicina. De acordo com Reil, as causas das doenças humanas não podem ser divididas em puramente mentais, químicas ou físicas, mas seriam uma interação essencial entre esses três domínios. Elegendo a Psiquiatria como um dos ramos maiores da medicina, Reil enfatizava a universalidade das doenças mentais e propunha princípios de tratamento humanizado e meios de atingi-los por meio da psiquiatria (Tabela I). Assim sendo, tanto quanto as outras especialidades médicas, sua efetividade depende de todas essas fontes que concorrem para o seu exercício e corpo de conhecimentos, apresentando consistências e fragilidades similares e equivalentes às dos demais ramos da medicina. Sabe-se que toda investigação científica consiste em identificar padrões e/ ou particularidades nos fenômenos observados e descobrir maneiras e meios de interferir neles. Isso vale tanto para ciências exatas (matemática, física, astronomia) como para ciências humanas (psicologia,
Tabela I
Pontos-chave de Johann Christian Rei I sobre a psiquiatria
Doença mental a) As doenças mentais são universais. Todas as pessoas podem ser acometidas por elas. b) Deve-se examinar se a responsabilidade criminal de pessoas com doença mental está rebaixada ou inexistente durante a doença. c) Uma campanha antiestigma é necessária e o humanismo deve ser primário no tratamento do doente mental. Tratamento e cuidado a) Instituições mentais humanas são as bases de cuidado de alta qualidade. b) Asilos para lunáticos devem ser transformados em hospitais mentais. c) Prevenção em intervalos "lúcidos": medidas de suporte e evitação de "altas emoções expressas" e de hi per ou subestímulo. d) Psicoterapia ("terapia psíquica") é um método terapêutico equivalente - ao lado de cirurgia e farmacoterapia - tanto para as doenças mentais como para as somáticas. e) Os problemas mentais podem causar transtornos somáticos (transtornos psicossomáticos). Psiquiatria a) A psiquiatria é uma especialidade médica pura. Filósofos e psicólogos não devem participar desta "incorporação". b) Somente os melhores médicos devem se tornar psiquiatras. c) Uma psicologia médica específica às necessidades do médico deve ser fundamental ao treinamento médico. d) Psiquiatria, psicossomática e psicologia médica são intimamente relacionadas. Fonte: Marneros, 2008.
antropologia ou sociologia). Foi esse preceito que inspirou, no século XIX, a notável obra de Claude Bernard6 , pioneiro da medicina científica baseada em evidências. Entretanto, numerosas áreas de interesse e objetos de estudo apresentam padrões menos evidentes e mais frequentes particularidades, com elevado índice aleatório, como se observa na física quântica e em partículas subatômicas, impondo-se o uso da estatística para se atingir alguns padrões, muitas vezes meras aproximações inconclusivas. Outro exemplo igualmente característico é a meteorologia, nos seus esforços para a previsão do tempo e da temperatura. Essas e outras áreas de estudo, baseadas em probabilidades mais do que certezas, foram designadas por Abraham Moles como "ciências do impreciso"7 . Indiscutivelmente, a grande massa dos conhecimentos médicos situa-se nessa condição: basta observar que mais de 90% dos artigos publicados nas milhares de re vistas médicas de todo o mundo apresentam cálculos estatísticos bastante sofisticados a respeito da pesquisa em questão. Até mesmo parâmetros fisiológicos básicos, como pressão arterial, glicemia, colesterolemia, etc., sofrem variações substanciais, dependendo da região, da população estudada, dos hábitos alimentares, etc., resultando em variações do que se pode ou não considerar patologia. Não é demais lembrar que, até há pouco tempo, o diagnóstico de morte era feito pela parada da atividade cardíaca; apenas recentemente, estabeleceu-se um novo conceito, por meio do silêncio da atividade cerebral. Segue-se que os fenômenos incertos e imprecisos a vida e seus dinamismos - constituem o vasto campo de interesses da medicina e suas especialidades, dentre elas a psiquiatria. Observa-se, pois, que nenhum dos ramos da medicina se acha imune às fragilidades habitualmente atribuídas à psiquiatria. Não obstante, o psiquiatra americano Paul Haun escreveu: A experiência forjou para o clínico geral um padrão, que de regra lhe faculta aplicá-lo às desordens médicas com resultados diagnósticos positivos. O índice é flexível, podendo dilatar-se ou contrair-se dentro de certos limites, de modo a abranger o atípico e o aberrante: é, porém, um mau médico quem confunde uma escarlatina com uma fratura de fêmur, e de nenhum modo é um psiquiatra inepto aquele que confundir uma psicose maníaco-depressiva com uma esquizofrenia. Um internista poderá dizer seguramente se um marciano sofre ou não de tuberculose, mas o psiquiatra será incapaz de decidir se ele é um psicótico, um gênio ou um espécime médio de extraterrestre8 .
Comentários dessa natureza, e outros mais contundentes, alertaram a comunidade psiquiátrica mundial.
Divergências diagnósticas Um fato relevante foi a constatação de que entre os países europeus e os Estados Unidos havia uma discrepância
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substancial na frequência dos diagnósticos de esquizofrenia: nos Estados Unidos, o número de pacientes diagnosticados como esquizofrênicos era consideravelmente maior, o que não ocorria com doenças clínicas não psiquiátricas9 • Ainda hoje, ao perguntar a diferentes psiquiatras sobre o diagnóstico de um mesmo paciente, facilmente se obtém opiniões diversas sobre o diagnóstico provável. Sob a liderança de J. K. Wing e N. Sartorius, com patrocínio da Organização Mundial de Saúde, foi desenvolvido, na década de 1960, um projeto multinacional com propostas que visavam a unificar os critérios diagnósticose corrigir as aberrações observadas 10. Na mesma década, Thomas Szasz, professor de psiquiatria de uma universidade de Nova Iorque, ganhava notoriedade mundial, ao publicar o livro O mito da doença mentaP 1, no qual sustentava que comportamentos diagnosticados como enfermidades mentais eram apenas alterações resultantes de condições sociais adversas; intelectuais desinformados e até muitos psiquiatras encamparam as ideias de Szasz, reforçados ainda pelas obras de Laing e Cooper, resultando no movimento denominado de "antipsiquiatria': Tais ideias, adotadas pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia e temperadas com a ideologia marxista na época da Guerra Fria (entre os EUA e a extinta URSS), produziram inicialmente as utópicas "comunidades terapêuticas" na região de Trieste. Essas ideias atingiram também outros países, inclusive o Brasil, com resultados insatisfatórios e muitas vezes danosos para os pacientes e suas famílias. Cabe lembrar, a título de curiosidade, a experiência conduzida pelo Dr. David Rosenhan, da Universidade de Stanford (Califórnia), relatada na revista Science 12, querecebeu ampla divulgação internacional: oito pseudopacientes, quatro psicólogos, um psiquiatra, um pediatra, um pintor e uma dona de casa, com identidades falsas, compareceram a um hospital psiquiátrico dizendo que estavam "ouvindo vozes"; não modificaram nenhum outro dado de sua biografia real. Foram internados com o diagnóstico de esquizofrênicos; causou perplexidade o fato de que os pacientes internados (verdadeiramente doentes) os reconheceram como indivíduos normais, ao contrário da equipe hospitalar, que só lhes deu alta como "esquizofrênicos em remissão" 13 • A subjetividade do diagnóstico psiquiátrico foi duramente criticada e ironizada entre os próprios psiquiatras, mas também entre o público em geral. Além desses fatos fartamente divulgados com ampla repercussão internacional, a psiquiatria apresentava algumas fragilidades conceituais, tais como a distinção entre psicoses e neuroses; a caracterização dos quadros clínicos, como enfermidades propriamente ditas ou transtornos, posto que o vocábulo "enfermidade" seria privativo dos quadros com etiologia e fisiopatologia reconhecidos ou claramente suspeitados. Os nosologistas de psiquiatria ainda se esforçam para dissolver as suas próprias contradições 14. Céticos, como Assen Jablensky15, acreditam que a classificação dos transtornos mentais pouco avançou desde a nosografia psiquiátrica
proposta por Emil Kraepelin: os psiquiatras continuam invocando e utilizando os conceitos do discurso clínico formulados no século XIX. Diferente da medicina, em que as doenças podem ser organizadas de acordo com a sua etiologia, os psiquiatras não conseguem estabelecer ainda a relação entre a atividade mental e o cérebro, sede subjacente de vontade, cognição, afeto e pensamento. A constatação de que o rim produz urina ou o fígado, a bile, não pode ser equiparada em psiquiatria - a atividade mental não pode ser resumida como meras reações químicas que transcorrem no cérebro. A maioria dos psicoterapeutas acredita que, diferente da urina, a mente humana é capaz de moldar ou dissolver problemas provenientes de várias fontes. Todavia, uma classificação que forneça uma infraestrutura para descrever e sintetizar as afecções psíquicas é obstruída pela nossa ignorância sobre as inter-relações entre o cérebro e a mente. A expansão de categorias diagnósticas é um fenômeno paralelo à disponibilidade de terapêuticas supostamente eficazes. O processo de classificação sofre a influência de comercialização de novos remédios. A expansão do diagnóstico do transtorno bipolar e a sua extensão à população pediátrica é um exemplo deste fenômeno 16. Observando a crescente prescrição de psicoestimulantes para crianças e adolescentes, críticos da excessiva medicalização da infância veem com preocupação a rotulação de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) como um diagnóstico que integra os sistemas atuais de classificação17. O contexto social desse transtorno é destacado por Sami Tamimi: vivemos atualmente num mundo impaciente com as crianças "inconvenientes': Os psiquiatras capitaneiam esse "moderno" sintoma de intolerância, com atácita aceitação dos pais, ao rotular os seus filhos com TDAH e lhes prescrever medicamentos nem sempre necessários. Em seguida, esse transtorno foi estabelecido como um dos transtornos crônicos em adultos mais subdiagnosticados no mundo moderno de competição e excessos 18, causando mais protestos dos psiquiatras sobre a sua validade 19. Dois outros transtornos ilustram também esse processo de medicalização do diagnóstico psiquiátrico. Primeiramente, o transtorno de ansiedade social - a fobia social - é considerado o terceiro transtorno mental mais frequente nos EUA, atrás de depressão e alcoolismo, a partir da revisão de Liebowitz et al. 20 . Os autores consideram que este transtorno, esquecido na nosografia, seria caracterizado por medo intenso e persistente em situações sociais ou de desempenho. A timidez "patológica'' estaria presente em 13,3% da população norte-americana, a qual representa um problema de saúde pública21. Contudo, os limites da síndrome de timidez e fobia social não podem ser claramente demarcados, reforçando também a dúvida sobre os benefícios de seu tratamento medicamentoso. Igualmente problemático é o construto do transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), um diagnóstico particularmente relevante aos norte-americanos. O TEPT foi incorporado à nosografia a partir da necessidade ideológica e política de acomodar os traumas de combate que atin-
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giam os veteranos da guerra de Vietnã22 . Subsequentemente, o TEPT também foi imprecisamente associado a outros traumas humanos de menor intensidade, cuja consequência comum resultava em compensações financeiras por danos emocionais do seu portador. Os eventos traumáticos do sofrimento humano ultrapassavam as questões sociais. Há, portanto, um diagnóstico psiquiátrico para dar conta da necessidade de reduzir danos de guerras e desastres. Novos transtornos são propostos ano após ano. Em 1952, a Associação Psiquiátrica Americana reconhecia 106 doenças mentais na sua primeira edição de DSM (Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais). Hoje em dia, a DSM-IV, em uso desde 199423, reconhece 357 transtornos mentais, sob a alegação de tentativas de conferir maior concordância aos diagnósticos psiquiátricos a partir do DSM-III. Tomando os exemplos de fobia social e TEPT pode-se afirmar que houve uma reificação maciça de condições psicológicas. Qual a utilidade de rebatizar (medicalizar) as características básicas da existência humana com um jargão utilitário desprovido de maiores significados teóricos? A gradativa fragmentação e expansão de múltiplos diagnósticos não construiu um mundo mais feliz. Fato ou ficção? Isto é, houve um crescimento real dos transtornos mentais ou "pseudoepidemias" estão sendo criadas pelos próprios psiquiatras? Diagnóstico não é igual a doença. Frente à falta de validade da maioria das síndromes descritas nos sistemas de classificação, o professor de filosofia e psiquiatria, Fulford24 diria que esse trabalho de rotulação é inescapável à atribuição de valor, muitas vezes construído socialmente como o resultado de uma determinada cultura. A nosografia psiquiátrica atual ainda peca por não possuir um sistema coerente de classificação e se esforça para atingir essa integração 14.
Aspectos conceituais e influência da psicanálise Neurose ou psicose? Doença ou transtorno mental? Essas e outras interrogações permeavam o campo da psiquiatria. Provavelmente, o conceito de doença mental é fundamentalmente falho, por isso, nunca pode dar origem a um conjunto válido de categorias e, muito menos, a uma ciência válida. Por outro lado, durante os primeiros cinquenta anos do século XX, a psiquiatria, sobretudo a norte-americana, esteve impregnada com os conceitos psicanalíticos (em sua versão ianque, rejeitada pelos psicanalistas ortodoxos), sobretudo graças à influência de discípulos de Freud, emigrantes, como Franz Alexander, Erich Fromm e Karen Horney. A metodologia psicanalítica contrapõe-se aos métodos da pesquisa médica habitual, posto que seus conceitos privilegiam as particularidades e a experiência individual; por outro lado, a medicina segue o modelo tradicional da investigação científica, ou seja, procura identificar regularidades e padrões gerais dos fenômenos observados.
É verdade que a psicanálise, baseada na observação exaustiva de casos solitários, trouxe contribuições importantes para a compreensão de numerosos processos psicopatológicos, sobretudo nas chamadas neuroses e perversões. Alguns autores veem a psicanálise dotada de uma linguagem privada, de construções de difícil verificação, inviabilizando espaço para uma teoria sólida25 . Apesar disso, os conceitos de inconsciente e mecanismos de defesa, desenvolvidos por Freud, constituem, até hoje, instrumentos indispensáveis para entenderessas doenças, bem como as psicoterapias em geral. Esses conceitos, oriundos da observação de casos particulares, individuais, foram transformados num arcabouço doutrinário, extrapolando o campo da psicopatologia. O próprio Freud desencadeou esse movimento, com suas obras Interpretação dos sonhos, Psicopatologia da vida cotidiana, Totem e tabu, O futuro de uma ilusão, entre outras26. A obra de Freud propiciou também amplo debate sobre a sexualidade, até então reprimida pelos preconceitos da Era Vitoriana (homossexualismo era punido com prisão, como foi o caso do escritor Oscar Wilde, na Inglaterra; ainda hoje, em alguns países do Oriente Médio, persiste a pena de prisão ou sentença de morte para esses casos). Até meados do século passado, homossexualismo constava na classificação das doenças mentais. O caráter revolucionário da obra de Freud, sobretudo no campo da sexualidade, conquistou simpatias de intelectuais e artistas, reforçando, em consequência, o prestígio da doutrina psicanalítica no ocidente, tanto entre o público leigo quanto entre os profissionais da psiquiatria. Nos Estados Unidos, discípulos de Freud que haviam fugido do nazismo ocuparam importantes postos de ensino em instituições universitárias, contribuindo para a divulgação da psicanálise que se tornou, até os anos de 1950, praticamente sinônimo de psiquiatria no imaginário popular. Obras literárias e cinematográficas contribuíram sensivelmente para isso, tais como "Spellbound" e "Psicose", do grande diretor Alfred Hitchcock. Todavia, raramente os tratamentos psiquiátricos foram retratados de forma positiva no cinema27 • Nesse contexto de adversidades, simpatias e hostilidades, aqui sumariamente descrito, não faltavam ataques à psiquiatria tradicional, que cuidava de pacientes psicóticos graves, auto e heteroagressivos, a pretexto de que as internações hospitalares eram "medidas repressivas das elites" contra discordantes das regras sociais do establishment. Argumentava-se também que a eletroterapia cere bral (impropriamente chamada de "eletrochoque") seria um castigo aplicado aos pacientes mais rebeldes. O filme "Um estranho no ninho", estrelado por Jack Nicholson, foi lapidar na divulgação dessas ideias equivocadas. Embora a psiquiatria norte-americana tenha se de senvolvido como um legado psicobiológico de Adolph Meyer, as explicações psicológicas e psicodinâmicas de transtorno mental foram influenciadas pela psicanálise.
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Assim como muitos psiquiatras de sua época, Meyer foi neurologista e entendeu que os processos cerebrais apresentam um papel nas manifestações de transtorno mental. Tentando escapar ao reducionismo biológico, Meyer se opôs às distinções clínicas "biologizantes" de Kraepelin sobre os transtornos mentais. Ainda que incorporasse conceitos psicanalíticos, ele foi cético em relação ao determinismo psíquico de Freud dos fenômenos mentais28 . A "psicobiologia" de Meyer almejava, pois, uma espécie de conceituação eclética, na tentativa de fornecer uma teoria unificadora, sem que haja um explícito compromisso com múltiplas explicações. Esta abordagem centrada na compreensão da pessoa atraiu e influenciou a psiquiatria na primeira metade do século XX, pois o teórico estaria livre para explorar outras possibilidades em meio às críticas. Assim, o jogo de interesses e a contaminação político-ideológica comprometeram sobremaneira a delimitação do campo da psiquiatria e suas raízes na medicina clássica, desde as primeiras lições de Hipócrates a respeito da epilepsia, da melancolia, da histeria e de outros transtornos. A clínica em psiquiatria dos Estados Unidos teve que readquirir o equilíbrio, complementando com a visão biológica, para se incorporar à compreensão psicológica e social das incertezas deste ofício29 .
O advento da psiquiatria biológica Tais controvérsias e a vulgarização, que atingiu níveis grotescos e anedóticos, alertaram a nova geração de psiquiatras, mais críticos e céticos em relação à psicanálise e mais preocupados com os aspectos neuroquímicos e neurofisiológicos dos transtornos mentais, porém guiados por um paradigma positivista. Entretanto, os esforços desses profissionais - rotulados como "organicistas"- não trouxeram resultados animadores. As pesquisas de H. Selye, na área de neuroendocrinologia30, e de W. Penfield, em neurofisiologia31, . . , . trouxeram perspectivas Importantes, porem nao consistentes, já que até hoje, décadas depois, não foi possível identificar nenhum marcador biológico para os transtornos mentais. Naquela época, há mais de 40 anos, Penfield escrev eu: Há então o problema da esquizofrenia. Aqui observamos um distúrbio da mente com pontos característicos [... ] que certamente possuem bases orgânicas, embora ainda nenhuma tenha sido descoberta. O fator genético nesta doença é de importância relevante. A ausência de qualquer patologia estrutural sugere um distúrbio bioquímica - talvez um problema enzimático. [... ] Pode-se argumentar que na esquizofrenia, somente o órgão da mente é considerado doente, porém, um julgamento introspectivo, derivado da observação de vários casos, leva-me à convicção de que há envolvimento tanto de quem pensa como de seus pensamentos3 1•
O pesquisador insinuava, então, a ideia amplamente aceita, hoje, de que a esquizofrenia e outros transtornos mentais têm etiologia multifatorial. Obviamente, a multifatorialidade é um campo fértil para controvérsias e posições doutrinárias sectárias. A crença de que há importantes mecanismos causais por descobrir em relação à (neuro)biologia dos transtornos mentais continua influente sobre a direção tomada pelas pesquisas, prática clínica e atitudes públicas. Contudo, o seu efeito pode ser nocivo32 , ao obstruir os avanços na prática clínica, no manejo dos pacientes e na desestigmatização dos transtornos mentais. Disso resultava, na prática, que não apenas entre americanos e europeus, mas no território dos Estados Unidos, em diferentes instituições médicas e universitárias, dependendo da escola doutrinária mais influente, os critérios diagnósticos eram divergentes e, não raramente, conflitantes, chegando a uma situação quase caótica até o início da década de 1950.
Pressões legais e socioeconômicas Nesse estado de coisas, um fator importante contribuiu para modificar o panorama confuso: os seguros-saúde e as instituições do estado para a concessão de pensões para doentes mentais, sobretudo veteranos de guerra acometidos de transtorno de estresse pós-traumático. Além disso, nos EUA, fato que ainda não ocorre no Brasil, os médicos estão sujeitos a pagar custosas indenizações por erros diagnósticos, razão pela qual a atividade médica é onerosa, impondo aos profissionais o pagamento de um seguro sobre os riscos de sua atividade, sujeita a eventuais deslizes ou imperícias. Tornou-se, assim, indispensável estabelecer critérios uniformes, consensuais, que pudessem respaldar laudos e atestados psiquiátricos, ao abrigo de sanções legais e pecuniárias. Admitir a importância de tais pressões socioeconômicas (e, de resto, sobre a medicina em geral) não é nenhum demérito para a psiquiatria norte-americana: a análise histórica, mesmo singela, permite verificar que o conhecimento psiquiátrico só se desenvolveu e ganhou consistência a partir dos séculos XVIII e XIX, quando questões jurídicas e criminais - no advento da Revolução Industrial - cobravam pareceres seguros sobre capacidade de discernimento e laborativa, responsabilidade civil e criminal. Nos regimes monárquicos e antes do advento do proletariado industrial e dos direitos civis, eram irrelevantes; nas sociedades rurais, como até hoje, no interior de muitos países, o doente mental era tolerado pela comunidade, folcloricamente, ou recolhido, para não criar problemas. A ascensão da burguesia e a alta concentração populacional das metrópoles mudaram esse panorama33 . A importância das questões jurídicas na elaboração do saber psiquiátrico é confirmada pelo fato de que to dos os grandes mestres da psiquiatria, desde o século XVIII, publicaram obras sobre questões forenses e médi-
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co-legais. Não é estranho, portanto, que a psiquiatria norte-americana tenha sofrido influências dessa natureza.
Troca das escolas pelas escalas A divergência entre os critérios diagnósticos adotados pela diversas escolas doutrinárias (americana, inglesa, alemã e francesa), alguns mais restritivos, outros mais flexíveis, havia produzido uma desconfiança difusa e até ceticismo em relação aos diagnósticos e pareceres psiquiátricos, o que não ocorria com outras áreas da medicina, sustentadas, primordialmente, na concretude dos marcadores biológicos. A psiquiatria, entretanto, limitava-se à observação de sintomas e comportamentos sujeitos a interpretações diversas. Por conseguinte, tornava -se imperioso estabelecer uma linguagem comum entre os profissionais, bem como critérios diagnósticos mais uniformes, com um mínimo de consistência, que permitissem restaurar a credibilidade dessa área. Com esse propósito, a partir dos anos de 1980, a Associação Psiquiátrica Americana designou algumas comissões (taskforces) destinadas a harmonizar critérios, não apenas nos EUA, mas em outros países, despojando-os de interpretações doutrinárias e objetivando maior grau de confiabilidade entre os profissionais que os utilizavam. Ou seja, de acordo com seus proponentes, como Robert Spitzer, tratava-se de estabelecer uma classificação de diagnósticos isenta de interpretações subjetivas com critérios operacionais (ou aqueles que prevaleciam comumente na prática clínica). Disso resultaram o apelo maior aos procedimentos estatísticos e a valorização das escalas de sintomas-chave para caracterizar os quadros clínicos. Esse trabalho, com o apoio da Organização Mundial da Saúde (OMS), sacramentou a troca das escolas doutrinárias pelas escalas de sintomas na elaboração dos diagnósticos e, sobretudo, deu ênfase aos critérios estatísticos (DSM) - Manual de Diagnóstico e Estatística - , do que resultou a CID-10 - Classificação Internacional de Doenças23' 24 • Os DSM (em inglês: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) já tiveram, nos últimos vinte anos, numerosas e sucessivas edições, revistas e reformuladas, com inclusão e exclusão de diversos quadros clínicos23 • Os quadros clínicos passaram a ser identificados por uma lista de critérios operacionais ou sintomas estabelecidos - por convenção - pelas comissões encarregadas de estudá-los. Disso resultou a criação de escalas e inventários para rastrear tais sintomas: para ansiedade, depressão, esquizofrenia, mania, dependência de drogas, etc. Mas também escalas para qualidade de vida, relações familiares, transtornos alimentares, temperamento e caráter, enfim, o modelo operacional, ateórico ampliou sensivelmente o número de síndromes e quadros clínicos 15 , chegando a muitas dezenas na CID-1 O e no DSM-IV, originando tam-
bém o conceito de "comorbidades", quer dizer, um mesmo paciente pode sofrer, ao mesmo tempo, em decorrência de várias entidades clínicas descritas na Classificação Internacional (CID-10) ou no sistema DSM-IV23,24 • Por outro lado, para a identificação adequada de tantas entidades nosográficas e respectivas comorbidades, foram criadas centenas de escalas, utilizadas por pesquisadores em todos os países35 • Obviamente, os criadores desses "instrumentos de avaliação" sempre cobram direitos autorais dos pesquisadores que os utilizam. Ressalta-se que nenhuma revista científica de grande prestígio aceita publicar trabalho científico que não tenha utilizado uma dessas escalas de maior prestígio e os correspondentes cálculos estatísticos. Esse é o modelo corrente da "medicina baseada em evidências" que, talvez mais do que o modelo doutrinário precedente, vem produzindo sérias distorções na prática psiquiátrica. Versiani, eminente professor de psiquiatria, escreveu: As escalas de avaliação psiquiátricas foram introduzidas em diferentes tipos de pesquisas na década de 60, com enorme expectativa inicial [... ]. Imaginou-se uma mina de ouro de dados clínicos. [...] Pensou-se que, por meio desses fatores, seria possível gerar uma tipologia dos transtornos psiquiátricos cientificamente baseada em conjunto de dados muito representativos, com grande potencial de conclusões, como melhor previsão das respostas aos diversos tratamentos. As expectativas iniciais de grandes resultados com a utilização das escalas de avaliação psiquiátrica não se concretizaram. Muito pouco insight clínico foi gerado com o enorme conjunto de informações coletadas em incontáveis estudos com as várias escalas. As escalas de avaliação psiquiátricas não são instrumentos de fácil utilização. São muito diferentes do termômetro ou do aparelho de pressão. [...] Existe muito ruído, muita variação nos resultados da aplicação de escalas de avaliação psiquiátricas, o que dificulta a captação de perfis clínicos válidos, correspondentes com sintomas dos quais os pacientes realmente sofrem36 •
E mais, o psicólogo Stanley Stevens, autor da influente teoria dos níveis de mensuração utilizada pelos estatísticos, já alertava nos idos anos de 1940 sobre os limites de mensuração, que Any particular scale, sensory or physical, may be objected to on the grounds ofbias, low precision, restricted generality, and other factors, but the objector should remember that these are relative and practical matters and that no scale used by mortais is perfectly free of their taint 37 .
A revolução terapêutica O deus da medicina na mitologia grega, Asclépio, teve duas filhas, Hygeia e Panaceia. Enquanto Hygeia personificava a saúde ou sanidade, Panaceia era considerada a "cura
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de todos os males': Contudo, essa díade saúde/doença nem sempre foi uma prática equilibrada na medicina. Enquanto a figura da Hygeia foi associada poeticamente à perpetuação da saúde (felicidade) e prevenção de doenças, Panaceia proporcionava a cura prosaica de sofrimento e infelicidade que a doença e a morte atingiam todos os seres humanos. As distorções na terapêutica psiquiátrica são alegorias para uma prática médica vista cada vez mais com desconfiança. Embora numerosos quadros psiquiátricos ainda apresentem limites imprecisos sem validade demonstrada, os recursos terapêuticos se desenvolveram, paradoxalmente, de maneira extraordinária. A grande revolução psiquiátrica iniciou-se na década de 1950, quando Delay, Deniker e Harl utilizaram a clorpromazina em pacientes esquizofrênicos e maníacos, com resultados surpreendentes38 . A seguir, os antidepressivos (IMAO) e os ansiolíticos (benzodiazepínicos) propiciaram uma transformação significativa no panorama da terapêutica psiquiátrica. Psicóticos graves, que permaneciam décadas internados em asilos, evoluindo para quadros demenciais, hoje são recuperados e restituídos ao convívio familiar e social. A reintrodução de clozapina no arsenal terapêutico de psicose no final dos anos 1980 representa um advento de inegável benefício39 • A demonstração de efeitos estabilizadores de humor dos sais de lítio também alterou o curso dos pacientes portadores de doença maníaco-depressiva40• Pode-se constatar que, no campo terapêutico, nos últimos 50 anos, a psiquiatria foi uma das especialidades médicas que mais se desenvolveram. A psiquiatria foi transformada em um empreendimento médico - haja vista as indústrias farmacêuticas, a partir 1950 e 1960, com a introdução de medicamentos específicos para diversas doenças. Novos antipsicóticos, antidepressivos e ansiolíticos tiveram a sua eficácia e o perfil de efeitos colaterais determinados, subsequentemente, nem sempre por meio de ensaios clínicos controlados. Para Moncriff4 1 anseios sociais impulsionaram a criação do conceito de antidepressivo. Entre as maiores pressões sociais incluem o desejo dos profissionais de psiquiatria em se integrar com a medicina em geral para melhorar o seu status social e afastar-se dos asilos inefetivos. As intervenções físicas e os tratamentos com medicamentos ajudaram a impulsionar suas credenciais médicas e os medicamentos antidepressivos como uma forma conveniente de tratamento médico para uma aflição da comunidade. Os antidepressivos também ajudaram a combater os furiosos ataques do movimento antipsiquiátrico. Assim, a indústria farmacêutica ajudou a criar e disseminar a visão de antidepressivos como o tratamento de doenças específicas, a fim de distingui-las das drogas não específicas. Entretanto, John K. Wing alerta: Verifica-se um expansionismo médico que tira partido da disposição do paciente de sentir-se melhor simplesmente porque se aplicou um rótulo ou se fez alguma coisa. [... ] Qualquer queixa humana pode ser conciliada den-
tro de certas teorias psicológicas; as contradições são tão bem recebidas quanto às confirmações. [... ] Grande parte da crítica da Psiquiatria foi a reação à tendência médica, rigorosamente reconhecida, mas supergeneralizada pelos críticos, a ir demasiado longe 42.
Juntamente com a catalogação de "novos" transtornos mentais em sucessivas edições de classificação de diagnóstico psiquiátrico, outros autores mais céticos também observam uma expansão da Psiquiatria baseada no modelo biomédico e questionam a legitimidade de intervenções psiquiátricas em problemas pessoais e sociais corriqueiros29 • A epidemia de portadores de "infelicidade" é declarada no globo, a partir da era dos consumidores de inibidores seletivos de recaptura de serotonina (ISRS) 43 . Iniciando com a fluoxetina, o uso de outros antidepressivos ISRS foi equiparada a um estilo de vida na era do Prozac®. Testado inicialmente para tratamento de hipertensão arterial, esta "pílula da felicidade" foi extensivamente utilizada para domesticar as diversas formas de sofrimento e infelicidade humana. A aprovação de paroxetina para tantos transtornos como a depressão, a ansiedade generalizada, o transtorno do pânico, o transtorno obsessivocompulsivo, a fobia social e o transtorno de estresse pós-traumático qualifica esse ISRS como uma poção mágica recomendável para uma multiplicidade de problemas do homem moderno. Passados mais de 20 anos desde o lançamento da fluo xetina, muito ainda precisa ser provado. Contestações vêm, primeiro, dos próprios acadêmicos e, posteriormente, também dos consumidores desta medicação. David Healy em Let them eat Prozac44 considera a teoria do "desequilíbrio químico" demasiadamente simplista, após passar uma década estudando o neurotransmissor serotonina em deprimidos e sem encontrar boas evidências que sustentem esta teoria. Complementaria Malcolm Lader, professor de Psicofarmacologia Clínica no Instituto de Psiquiatria de Londres, que: "a ideia de que foi um grande avanço a fluoxetina selecionar apenas a serotonina é uma mera hipótese" 45, outros fatores importantes que contribuem para a depressão incluem a experiência de vida, o histórico familiar, os hormônios e a dieta. Apesar disso, a teoria do "desequilíbrio químico" foi repetida e promovida nos programas de televisão, revistas de divulgação, portais de internet de companhias farmacêuticas e na publicidade. A ideia de que algumas drogas têm uma ação específica sobre a neuroquímica da depressão disseminou -se rapidamente e foi extensamente divulgada nos anos 1960, antes de qualquer evidência apoiar esta visão4 1. Para muitos pacientes é conveniente ouvir que há alguma "coisa'' neles que está em nível muito baixo: para que seja "consertada'' e retomada a felicidade, basta tomar uma pílula. A atriz norte-americana Brooke Shields declarou que foi muito "reconfortante" descobrir que a sua depressão puerperal estava "diretamente ligada a uma alteração bio-
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química': O modismo em consumir antidepressivos pelas celebridades ajudou a eliminar o estigma da depressão. Rapidamente, o consumo da medicação se expandiu na população geral na mesma década. Nos EUA, as crianças de 5 anos ou menos foram o segmento de maior crescimento no uso de antidepressivos na população não adulta. Por exemplo, o mutismo seletivo é um problema comum em pré-escolares, que tem sido tratado com a fluoxetina. A sua prescrição atingiu níveis sem precedentes, inclusive para animais silvestres (ursos) e domésticos (papagaios, gatos e cães). Tão rápido quanto a sua expansão, os antidepressivos foram citados pelos tribunais, por seus efeitos colaterais e eventos adversos inesperados. Ironizado em seriados televisivos, como Sex and the city, alguns pacientes alegam que a medicação os ajudou a curar e acalmar pânico e depressão, contudo, a sua ingestão também lhes induziu a um estado de indiferença sexual. Alterações de peso, disfunção sexual e até casos de suicídio (em cerca de 1 em cada 500 consumidores) foram associados ao consumo de antidepressivos. O sucesso dos antidepressivos estimula ainda uma dúvida recorrente: a felicidade humana é um estado de espírito ou a combinação de elementos químicos no cérebro? Tristeza e angústia fazem parte da vida. Algumas grandes crises ao longo da vida são reações homeostáticas essenciais para o indivíduo, argumentariam os psicanalistas. Atravessá-las e sair delas nos engrandece. Esses mecanismos homeostáticos não devem ser eliminados do equilíbrio do ser humano. Se é verdade que nos últimos 20 anos, não surgiu nada mais revolucionário do que a fluoxetina, também é fato que, no mesmo período, aumentou significativamente o número de pessoas diagnosticadas com depressão. No mundo atual, valoriza-se a euforia e a alegria constante. Ao mesmo tempo, os momentos de recolhimento e tristeza, antes considerados normais, passaram a ser desprezados e até condenados. Estar bem todos os dias tornou-se quase que uma obrigação. Os mais tristes passaram a ser os "depressivos". Paralelos ao avanço da fluoxetina chegam também os riscos da simplificação do diagnóstico e generalização da terapêutica. Por provocar menos efeitos colaterais, os antidepressivos modernos deixaram de ser prescritos exclusivamente por psiquiatras ou neurologistas. Coincidentemente, a OMS alerta nos seus relatórios sobre a "carga global de doenças': resultante do aumento da frequência da depressão46. O entusiasmo suscitado pelos tratamentos farmacológicos tende a reproduzir os abusos da fase áurea da psicanálise. Tal qual a simbologia mítica de Asclépio, que detinha um enorme poder terapêutico revelado pela serpente sagrada, a utilização "nem sempre nobre" da prática médica teria provocado a ira sobre o médico grego. O castigo imposto por Zeus era uma lição para todos os médicos, traídos pela ambição do poder, da fama, da glória e do dinheiro, um pecado de usurpação dos poderes divinos (hybris), ao perturbar a ordem natural das coisas e a harmonia universal, de que a doença, a dor, o sofrimento e a morte dos humanos faziam parte integrante.
Experiência de uma boa prática clínica Ao longo da história da Psiquiatria, encontram-se facilmente exemplos anedóticos de práticas danosas ao paciente mental. Por exemplo, a prática de leu cotomia préfrontal preconizada por Egas Moniz foi abandonada rapidamente após a constatação de lesões irreversíveis naqueles pacientes que se submeteram a esse procedimento. Ignorâncias à parte, esses trechos da história atestam a pressão que os psiquiatras recebiam para encontrar intervenções para alguns problemas de difícil solução, não sem as suas implicações sociopolíticas, dados os procedimentos disponíveis à época em que tais práticas eram comuns. Provavelmente, a maioria das intervenções eficazes foi descoberta na base de tentativa e erro e não inventada ou desenvolvida por meio de um modelo compreensivo do fun cionamento da mente humana. Encontramos facilmente no passado, dados os limites da resolutividade destes casos, muitos outros exemplos de abuso e má prática. Parece que a Psiquiatria tende a progredir em modismos. Uma vez encontrado o ingrediente inicial de sucesso terapêutico de determinados casos difíceis, essas intervenções estão propensas a serem aclamadas como a panaceia dos males. Abrem -se caminhos para o seu uso indiscrirninado, abuso incontrolado e, subsequentemente, coercitivo. A utilidade da eletroconvulsoterapia é um contundente exemplo desta prática. Hoje em dia, a indicação restritiva desta modalidade terapêutica tem servido de freio para os excessos cometidos no passado pelos próprios psiquiatras. Vivemos uma época de medicina baseada em evidências47. O empirismo terapêutico deve sobrepujar os erros do passado, agregando evidências de metanálises e revisões sistemáticas que selecionam cuidosamente os estudos qualitativa e metodologicamente superiores. Esta prática contém, portanto, uma crescente desconfiança do conjunto de conhecimentos disponíveis para a terapêutica. Diretrizes prescritivas e consensos clínicos são propostos por organizações (p. ex., Food and Drug Administration) e associações acadêmicas de especialistas (p. ex., National Institute for Health and Clinicai Excellence - NICE; American Psychiatric Association Guidelines; Texas Medicai Algorithm Project TMAP) para monitorar os excessos e dissolver os impasses terapêuticos. Tudo isso em prol do benefício e alegações de medidas de proteção dos pacientes. Um alvoroço na mídia ocorreu em 2008, quando um estudo metanalítico48 anunciou, entre as suas conclusões, que os medicamentos antidepressivos não seriam superiores ao placebo para o tratamento de depressão leve e moderada. Os autores precipitaram discussões no meio acadêmico48, pois entre os trabalhos selecionados também figuravam estudos "negativos" e não publicados - porém submetidos ao FDA. Esse viés de publicação dos antidepressivos50, a maior aceitação de estudos demonstrando resultados benéficos de serem aceitos num periódico, parece ser igualmente comum em outras áreas médicas. Parte da razão do sucesso do modelo biomédico é por haver uma aparência de "fazer algd'42.
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Ao lado disso, a exigência de ensaios clínicos controlados, randomizados e duplo-cegos em pesquisa de psicofarmacologia é desafiada e criticada por outro paradigma. Quando vários tipos de antipsicóticos foram testados em estudos "realistas" e "pragmáticos" com pacientes atendidos em diversos centros clínicos, como o estudo Clinicai Antipsychotic Trials oflntervention Effectiveness (CATIE) 5 1, os novos antipsicóticos não foram superiores aos de primeira geração. A efetividade dos novos e caros antipsicóticos é fortemente atacada. Independentemente da pressão da indústria farmacêutica e dos efeitos de marketing, esse tipo de estudo só serviu para fortalecer as incertezas e a descrença em relação aos psiquiatras clínicos. A necessidade de evidenciar a eficácia com amostras homogêneas de participantes leva a um problema intrínseco e contraditório nos ensaios clínicos controlados. Ao selecionar pacientes representativos, com determinadas características, a validade interna deste tipo de estudo é artificialmente impedida de ser generalizada para o mundo real, com pacientes heterogêneos. Para piorar, a polifarmacoterapia é uma prática comum em muitos pacientes do dia a dia, enquanto as evidências dos ensaios clínicos se referem geralmente a mono terapia. Um efeito colateral deste tipo de estudo é a incapacidade de relativizar esse viés metodológico inescapável. Por fim, os conflitos de interesse que emergem da relação entre os médicos e a indústria adicionam dúvidas compreensíveis entre os clínicos. Igualmente criticável é a preferência de psicoterapia52, cujos métodos centrados na figura do paciente individual não tem a sua eficácia e segurança demonstrada. O principal argumento é a ausência, quase que total, de avaliações sistemáticas dos seus efeitos colaterais. Portanto, a suposta benignidade deste tipo de intervenção baseada em "conversar" n ão pode ser assumida. Os riscos de piora e recaída sintomática, eliciação de "falsas memórias", dependência-abstinência ao processo psicoterapêutico, abuso de pacientes pelos psicoterapeutas são apontados como pontos relevantes que devem ser monitorados. As particularidades e os fundamentos teóricos desta modalidade terapêutica desqualificam a sua efetiva comparação com a farmacoterapia. Todos esses pontos destacam fatos que corroboram a desconfiança dos próprios psiquiatras, pacientes e o público em geral na adequação e legitimidade da interven- . ., . çao pstqmatnca. O potencial de abuso das intervenções de psiquiatria parece ter raízes antigas, visto que são facilmente impostas como a solução de diversos problemas inerentes à cultura e a existência dos agrupamentos humanos. Sua crescente medicalização nas últimas décadas não trouxe critérios mais claros, tampouco respostas inequívocas para essas dificuldades. Críticos e céticos da Psiquiatria reclamam do alcance das intervenções terapêuticas, incitando debates sobre as fronteiras desta disciplina e propondo reformas do sistema de saúde mental em diversos países. Muitos deles, vistos como inconvenientes ou fa -
náticos, foram banidos e marginalizados das poderosas sociedades científicas e associações acadêmicas.
A reformulação das reformas de saúde mental Durante as décadas de 1970 e 1980, quando se noticiou o encarceramento de diversos membros dissidentes em asilos destinados para tratamento de doenças mentais pelas autoridades da extinta União Soviética53, opapel e os excessos da psiquiatria causaram justificadas preo cupações no Ocidente sobre o alcance desta prática como um instrumento de coerção e controle social. A forma indolente (sluggish) de esquizofrenia origina do conceito de que pessoas que se opunham ao regime soviético eram mentalmente doentes, pois não há nenhuma outra explicação lógica possível sobre o motivo de recusar o melhor sistema sociopolítico do mundo54 • Igualmente inadequado é o uso persistente de Psiquiatria como meio de re pressão estatal na China55 , a despeito dos protestos das organizações internacionais de direitos humanos. A semelhança entre o diagnóstico psiquiátrico e os padrões comportamentais socialmente inaceitáveis qualifica a prática psiquiátrica como uma forma de "legislar" e "normalizar" os desvios da multiplicidade do existir humano. Mais complexa ainda é a organização dos serviços de tratamento psiquiátrico. Da inexistência de locais adequados na antiguidade, passando por tentativas de exclusão e confinamento prisional em grandes manicômios, muita coisa mudou. Asilos e manicômios eram lugares sociais, muitas vezes coercitivos, para pessoas "inconvenientes': Mas em essência, a redução de leitos psiquiátricos que assistimos em muitos países não tem provocado evidentes efeitos benéficos para o paciente e a sociedade como um todo. À guisa de "psiquiatrização" dos transtornos mentais, que eram reclusos em grandes instituições asilares, a extinção dos ditos "leitos hospitalares" forçou a saída de doentes mentais para seus lares, ou então ao convívio da sociedade. Em muitos países, as pessoas com doenças mentais graves já não passam anos das suas vidas em instituições psiquiátricas. No entanto, embora, isso significa que as pessoas com doença mental não estejam limitadas, não há garantias de que eles sejam totalmente integrados nas suas comunidades. As barreiras à cidadania plena são em parte devidas à deficiência produzida por suas doenças e em parte pela estigmatização e por atitudes discriminatórias do público56 • Avaliando a situação global da saúde mental, a OMS considerou que "a mais importante barreira a ser sobrepujada na comunidade é o estigma e a discriminação associada aos portadores de transtornos mentais e do comportamento" 57,58 . Se o confinamento custodial dos pacientes deve ser visto como inefetivo, a prescrição indiscriminada de medicamentos também não pode ser suficiente para todos os pacientes. A inadequação de instituições assistenciais ultrapassadas não pode ser combatida simplesmente pela sua extinção. Infelizmente, os médicos são treinados na escola
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médica para encontrar um único remédio para males de origens múltiplas. Contudo, o deslocamento forçado de todo um contingente de pacientes graves para instalações extrahospitalares, igualmente sem preparo para recebê-los, também não pode obter o êxito esperado. As modalidades terapêuticas devem ser múltiplas para os usuários da saúde mental. Todo o clínico sabe que para cada estágio de doença há uma indicação adequada, seja do setting terapêutico, modalidade de intervenção ou medicamento. Os leitos hospitalares, hospitais-dias, centro de atenção psicossocial (CAPS) e ambulatórios são apropriados para cada estágio de doença. Ao privilegiar apenas certas modalidades terapêuticas, como a solução para muitas dificuldades de cuidado dos pacientes, por exemplo, pode não surtir efeito para os diferentes pacientes que necessitam de uma internação hospitalar ou já estão estabilizados. Essa observação é válida para psicóticos, usuários de álcool e substâncias, suicidas, bipolares etc., os quais nem sempre têm as suas necessidades de serviço satisfeitas. Persistir no paradigma de que os pacientes esquizofrênicos ainda representam os clientes centrais da Psiquiatria tem impedido a desestigmatização e ampliação das intervenções necessárias em psiquiatria59 • Em um estudo realizado na Inglaterra60, a proporção de prisioneiros com transtorno mental crescia à medida que havia uma redução dos leitos psiquiátricos. Alguns autores chegaram a sugerir que as cadeias estavam substituindo os hospitais psiquiátricos61. Os defensores da extinção dos estabelecimentos especializados de reclusão e tratamento integral de indivíduos com transtornos mentais argumentam que ocorreu, na verdade, uma "psiquiatrização" da criminalidade ou, alternativamente, houve um maior reconhecimento de doenças mentais entre os prisioneiros, cujo diagnóstico não era feito antes de seu aprisionamento. Independente desses argumentos, uma indagação permanece: qual é o limite e a relação entre a criminalidade e doença mental? Os indivíduos portado res de transtornos mentais praticariam mais atos criminosos ou a reclusão em instituições prisionais favoreceram o surgimento de transtornos mentais?62 De sobra, uma questão de responsabilidade institucional ainda deve ser discutida: quem seriam as autoridades capazes de custodiar esses indivíduos criminosos e doentes? Como relatam as páginas da história da psiquiatria: medicalizar esses indivíduos para o domínio da Psiquiatria ou custodiá-los por autoridades policiais? 33 Este debate continua. Outro fenômeno ligado ao sistema de saúde, nem sempre demonstrado nos estudos descritivos, é o crescente número de moradores de rua nas sociedades urbanas do mundo moderno63 • Muitos deles são portadores de transtornos mentais. Essa constatação não está livre de interpretações divergentes. A reintegração da cidadania destes indivíduos e a forma assistencial apropriada para esta população crescente são tópicos que esbarram nos limites do modelo de serviços oferecidos aos pacientes psiquiátricos.
Talvez os problemas de assistência psiquiátrica e o processo de coerção devem ser vistos separadamente. Aceita-se que existem casos em que a sociedade pode, justificadamente, restringir a liberdade de uma pessoa em virtude de perturbação mental. O problema é que a sociedade não pode fazer isso aleatoriamente: deve justificar e autorizar os agentes a agir em seu nome. Como alternativa, a Psiquiatria acabou por exercer esta coerção legalizada, muitas vezes na forma restritiva de um controle médico. Juntamente com os desafios conceituais apresentadas pela crítica de Szasz 11, a coerção legal continua sendo um problema fundamental para a psiquiatria.
Profissão psiquiatra: médico, filósofo ou neurocientista? A psiquiatria moderna tem suas origens no Iluminismo, cujos pensadores pregavam que a razão resolveria os problemas da humanidade e desvendaria os mistérios da mente humana. Ao longo da história, os pacientes já foram "cuidados" por curandeiros, autoridades religiosas, policiais, enfermeiros, médicos, assistentes sociais, psicoterapeutas, laborterapeutas etc. 38 Os governantes, os legisladores, os políticos, a indústria farmacêutica e os meios de comunicação exercem influência substancial sobre a forma de tratar, reduzir, controlar e prevenir as doenças. Associações de famílias e grupos de autoajuda também começam a se mobilizar em relação à saúde mental. Esta multiplicidade de agentes ativos que intervêm sobre os pacientes psiquiátricos indica, similarmente, a vasta gama de modalidades terapêuticas disponíveis no mercado atual. Mas, para além disso, parece que perpetua uma mensagem sobre a visão atual da doença mental: uma complexa condição humana sem uma intervenção única e adequada. Médicos não são cientistas; eles são profissionais da saúde. Eles não tratam doenças, eles tratam as pessoas. O cenário contrário também pode ser afirmado: os cientistas descobrem doenças, as suas causas e formas de controlálas. Nem por isso precisam ser médicos. No entanto, os médicos se alimentam da ciência para que as informações sejam transformadas em práticas clínicas. Os cientistas, em contrapartida, investigam questões clínicas que tenham relevância médica. Esta dependência necessária entre as duas profissões não é simétrica. Mesmo nos casos em que as doenças podem ser claramente demonstradas o médico não vai agir como um cientista, mas como um profissional de saúde que deve responder a uma necessidade expressa do enfermo, e não simplesmente a um estado de doença. As bases filosóficas da psiquiatria têm permanecido quiescentes4 • Heidegger, Foucault e Wittgenstein enxergariam a Psiquiatria ortodoxa atual como uma consequência "degeneradà' do iluminismo europeu, carregando as limitações da Idade da Razão. Pois, passado mais de dois séculos, desde a proposta unificadora de Reil, observa-se uma aplicação inapropriada de tecnologias científicas à "loucurà' e o
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sofrimento humano. Esta abordagem tem negligenciado fatores como o significado, a valoração e o contexto social da doença mental4,29,64. Para alcançar uma compreensão apropriada dos seres humanos, é necessário um equilíbrio entre uma interpretação "hermenêutica" e o "reducionismo biológico"64• A comunidade psiquiátrica precisar iniciar o difícil processo de desconstrução das falhas do atual modelo biomédico e de reconstrução de uma alternativa viável que restabelece o equilíbrio entre o médico e o seu paciente. O médico psiquiatra não pode ser desinteressado, deve estar fundamentado em um compromisso positivo com o humanismo, os ideais liberais, contrário a teorias conceitualmente falhas e práticas opressivas. A coerção das práticas errôneas não desaparece com protesto, mas tampouco deve ser aceito como algo inevitável. Se existe algo a ser aprendido a partir do modelo biomédico que domina a visão acadêmica atual é a certeza de que a psiquiatria não deve ser uma simplificação caricatura! dos complexos problemas humanos. Para evitar os excessos da antipsiquiatria, o praticante da psiquiatria terá que ocupar uma posição crítica de meio-termo, entre a rejeição total da noção de doença mental e os conhecimentos neurobiológicos acumulados. A crescente divisão entre psiquiatras clínicos e aqueles que estão ligados à universidade é notável: uns atendem pacientes enquanto outros exercem a atividade de pesquisa. Em qualquer área dos cuidados de saúde ou de prática social há uma grande diversidade de interesses, em nível individual, social e político. As estratégias de marketing das empresas farmacêuticas, as práticas de ensino das escolas médicas, ou o papel das universidades na manutenção da especialização e hegemonia biomédica têm exercido controle sobre o papel da psiquiatria no século XXI. Ressalta-se, ainda, o impacto da indústria farmacêutica sobre a academia, que se ruma gradativamente a uma estreita agenda neurobiológica para excluir os fatores sociais e psicológicos. Muitos psiquiatras parecem se afastar das origens da medicina e do seu papel social, confundindo-se perigosamente na sombra que eles próprios criaram. Evitar a arrogância, relações de poder, ou a exploração dos clientes são alguns ingredientes básicos de uma boa prática médica. Entrincheirar-se nos modelos biomédicos pode ter deteriorado a preciosa relação médico -paciente defendido hipocraticamente há milênios. Os "consumidores" da Psiquiatria devem receber o máximo de benefício, extraído a partir de habilidades médicas dos psiquiatras com amplo treinamento65 • Os psiquiatras, por sua vez, devem utilizar o seu conhecimento médico e biológico, munidos de habilidade diagnóstica efetiva, para apreciar os fatores psicossociais no contexto do paciente e esco lher a melhor modalidade de tratamento.
Considerações finais Este capítulo explícita uma reflexão "pública e pro vocativa" dos autores sobre os caminhos tomados pela
Psiquiatria, um "templo" em que tantas visões divergentes se acomodam e lutam por seu lugar no panteão das especialidades médicas. Tendo em vista os recentes desenvolvimentos da psiquiatria, o entusiasmo e a expectativa de obter soluções para os principais problemas de saúde mental continuam inexoravelmente crescentes66'67. Contudo, nem todos os praticantes de Psiquiatria estão de acordo. A Associação Psiquiátrica Mundial se preocupa com o futuro da disciplina, estabelecendo metas para o início do século21,68 temendo o progressivo desfiguramento da profissão do psiquiatra69. O desprestígio da carreira, a imagem negativa do psiquiatra na mídia, o litígio com os pacientes, a persistência da estigmatização da doença mental e a competição com outros profissionais que atendem os pacientes psiquiátricos têm atraído, de forma pronunciada, menos jovens profissionais interessados em praticar psiquiatria em alguns países68-70. O clima de pessimismo e ceticismo chega a questionar o futuro da psiquiatria, principalmente entre os médicos europeus, sugerindo um cenário de "crise"29' 64'65,69,70 . A fragmentação da disciplina psiquiátrica, com especializações biomédicas como neurologia, neurociência, neurobiologia, neuropsicologia, neuroimagem, genética molecular etc., parece anunciar a dificuldade desta prática médica em se manter integrada e coesa. Essas questões discutidas indicam, pois, a hora da comunidade psiquiátrica reavaliar as suas direções. A psiquiatria caminha para um abismo, ameaçada de se tornar uma especialidade que desenha caricatura de seres humanos "felizes e sem sofrimento: porém, reféns de tecnologia, abstrações numéricas e pílulas fabricadas. Provavelmente, delimitar as fronteiras da psiquiatria será sempre uma tarefa difícil, senão impossível, posto que esbarra em algumas questões insolúveis: • o complexo problema das relações mente-corpo, objeto de interesse de todos os filósofos e neurofisiologistas. Há poucos anos, Karl Popper e John Eccles empreenderam um exaustivo debate a respeito71'72 sem conclusões satisfatórias; • relações entre livre-arbítrio e determinismo, das quais resulta, para os religiosos, como Santo Agostinho e Tomás de Aquino73,7\ a noção de culpa e pecado ou, para os pensadores leigos, a responsabilidade civil ou criminal perante os homens, além de outras questões de natureza ética; • a relatividade dos conceitos de normal e patológico, sujeitos aos valores geográficos e culturais (por exemplo, o homossexualismo, já citado, ou o canhotismo já fo ram catalogados como doenças; já a gula e o jogo, antes considerados vícios, tornaram -se enfermidades como transtorno alimentar e jogo patológico; quadros alucinatórios, em numerosas culturas, são considerados manifestações espirituais e reverenciados). Tais problemas, inerentes ao campo da psiquiatria, não atingem, de maneira significativa, as outras especialidades médicas que, isentas de contaminação especulativa, trabalham voltadas exclusivamente para os transtornos somáticos e sofrimentos do corpo.
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Na psiquiatria, a convergência dessas questões que envolvem o próprio sentido da existência frequentemente leva alguns profissionais a extrapolar sua área de competência e invadir a esfera da taumaturgia. A expansão da disciplina psiquiátrica nas últimas décadas, fundamentada sobre o modelo biomédico, tem incentivado os tratamentos medicamentosos como uma panaceia de múltiplos problemas. Não se trata de ignorar e abandonar todos os avanços científicos alcançados na Psiquiatria, mas, certamente, é necessário não omitir e esquecer os princípios mais elevados que guiaram por séculos a prática da medicina. Somente o bom senso e a boa formação médica podem estabelecer limites adequados à onipotência e à tentação ingênua de tudo explicar e tudo resolver, livre de suposições e crenças desprovidas de sustentação científica. Os desvios da psiquiatria atual devem ser retificados sob o risco de deteriorar a essência desta prática médica. Muitos dos princípios propostos por Johann Reil continuam válidos até hoje. É mister, pois, uma ponderação contínua dos psiquiatras sobre os limites deste ofício, para evitar os perigos da coerção, arrogância, abuso e busca de poder. Esse equilíbrio pode ser atingido quando os praticantes da psiquiatria não se esquecerem de eleger os pacientes como a figura central das incertezas da existência humana.
Questões 1. A frase "... as causas das doenças humanas não podem ser divi-
a) b) c) d) e)
didas em puramente mentais. químicas ou físicas. mas seriam uma interação essencial entre esses três domínios" foi anunciada há mais de 200 anos pelo criador do termo psiquiatria, o médico: Karl Jaspers. Emil Kraepelin. Philippe Pinel. Johann Christian Reil. Kurt Schneider.
2. Em relação ao diagnóstico psiquiátrico. assinale a alternativa correta: a) O sistema atual de classificação de doenças mentais apresenta coerência interna e validade irrefutável. b) O processo de diagnóstico psiquiátrico jamais conseguirá ser ateórico. sem a contaminação da subjetividade do entrevistador. c) A concordância do diagnóstico psiquiátrico é um ponto de consenso entre os psiquiatras. principalmente após a adoção de critérios operacionais como os do DSM-IV ou da CI D-1O. d) Há um aumento de número de pessoas que sofrem de transtornos mentais. pois a cada ano novos quadros clínicos são descritos. e) O uso de escalas psicométricas de avaliação conferiu maior validade aos diagnósticos psiquiátricos. 3. Assinale a alternativa incorreta em relação às psicoterapias: a) É um procedimento seguro e benéfico. livre de efeitos colaterais
b) A psicanálise forneceu o arcabouço teórico e técnico para várias formas de psicoterapias. c) Apresenta poucas evidências de eficácia, tolerabilidade e efetividade. d) A terapia cognitiva-comportamental é partidário do modelo causal psicobiológico. e) A sua efetividade é comparável com a farmacoterapia. em alguns casos.
4. Os principais problemas da psiquiatria atual são, exceto: a) descrença em relação ao diagnóstico e classificação dos transtornos mentais. b) desprezo dos valores individuais, subjetividade e significação do contexto social. c) ênfase excessiva na compreensão psicodinâmica do paciente. em detrimento do modelo biomédico e neurociências. d) desconfiança em relação à terapêutica. farmacológica e psicológica. e) uso coercitivo e abusivo de intervenções psiquiátricas. 5. Assinale a afirmação falsa. A psiquiatria sempre se esbarrará em questões inerentes à existência humana. posto que: a) A subjetividade está presente em toda vida psíquica b) A relação entre mente e cérebro dificilmente será estabelecida. c) O livre-arbítrio é uma característica humana que extrapola o determinismo biológico de paixões. vontades. impulsos e comportamentos. d) A distinção entre o normal e o patológico fazem fronteiras tênues que inviabilizam estabelecer claros limites entre a saúde e a doença na psiquiatria. e) A doença mental é o resultado biológico de alterações neuroquímicas. genéticas e degenerativas, as quais são irreversíveis e inescapáveis.
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Psiquiatria e Neurociência: Estado Atual e Perspectivas Futuras Marsal Sanches Jair C. Soares
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 49
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Aspectos históricos da relação entre psiquiatria e neurociência, 49 Neurociência, comportamento e etiopatogenia dos transtornos mentais, 50 Potenciais contribuições da neurociência para o diagnóstico em psiquiatria, 52 Neurociência e tratamento em psiquiatria, 52 Perspectivas em neurociência e suas possíveis implicações para a prática psiquiátrica, 52
1. Discutir detalhada mente a relação entre psiquiatria e neurociência. 2. Abordar os transtornos mentais como resultado de alterações cerebrais, sejam elas de natureza anatômica, neuroquímica ou funcional. 3. Utilizar a neurociência para o diagnóstico em psiquiatria. 4. Conhecer os potenciais e os riscos da caracterização da psiquiatria como uma neurociência clínica.
Considerações finais, 53 Referências bibliográficas, 53
Introdução A neurociência, enquanto área do conhecimento encarregada do estudo científico do sistema nervoso, tem nos últimos anos atingido importantes progressos no que tange ao melhor entendimento dos intrincados processos envolvidos no funcionamento do cérebro. Dentre esses progressos, encontram -se contribuições relacionadas às bases biológicas de fenômenos ligados ao comportamento humano, como o pensamento, as emoções e a me' . mona. Sob esse ponto de vista, o casamento da neurociência com a psiquiatria soa como bastante natural e viável. Sendo a psiquiatria a área da medicina responsável pela identificação e tratamento dos transtornos mentais, uma melhor compreensão dos correspondentes anatômicos, bioquímicas e moleculares desses transtornos apenas teria a contribuir para o cabedal de conhecimento necessário para seu diagnóstico e manejo 1 • Entretanto, há diversas ressalvas referentes à ligação entre psiquiatria e neurociência. Algumas delas passam por questões filosóficas referentes à relação entre mente
e cérebro. Outras dizem respeito ao risco de reducionismo, isto é, de que os transtornos mentais sejam reduzidos pura e simplesmente a alterações do funcionamento cerebral, ignorando-se seus diversos desdobramentos de natureza social, cultural e psicológica2•3 • Finalmente, há grande confusão no que tange à diferenciação entre aplicações da neurociência à psiquiatria e tratamentos biológicos em psiquiatria. O presente capítulo realiza uma análise crítica darelação entre psiquiatria e neurociência, à luz da evidência científica atualmente disponível.
Aspectos históricos da relação entre psiquiatria e neurociência A ideia de que os transtornos mentais resultariam de anomalias cerebrais é, do ponto de vista histórico, re lativamente nova. Ainda que autores como Hipócrates e Galena já aventassem a hipótese de que algumas alterações comportamentais pudessem estar relacionadas a disfunções de ordem física, somente no século XIX esse conceito tornou-se amplamente difundido, por meio da cor-
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rente médica denominada somaticismo. Baseando-se em evidências neuropatológicas e neurofisiológicas, autores como Bayle, na França, e Griesinger, Westphal, Alzheimer e Kahlbaum, na Alemanha, difundiram o conceito de que, no estudo das doenças mentais, as entidades no sológicas deveriam sempre remeter a achados característicos de natureza anatomopatológica4 . O achado de aracnoidite em pacientes com paralisia geral progressiva e de placas senis em pacientes com quadros demenciais repre sentaria evidência fortemente favorável à corrente em questão. Entretanto, o estudo anatômico sistemático de pacientes com transtornos mentais revelou que, em boa parte das síndromes clínicas, alterações cerebrais macroscópicas ou microscópicas não podiam ser identificadas de forma consistente. Essa ausência de consistência foi na época atribuída a limitações de ordem técnica no que diz respeito à identificação das alterações em questão. Em outras palavras, enquanto em alguns transtornos mentais (denominados transtornos mentais orgânicos) alterações anatômicas cerebrais eram facilmente identificadas, em outras doenças tais alterações não podiam ser detectadas, não obstante as doenças mentais em questão resultarem de patologia cerebral. Tais doenças foram denominadas transtornos mentais endógenos5 • A dicotomia em questão (transtornos orgânicos vs. endógenos) deixava implícito o fato de que, na medida em que técnicas neuropatológicas e neurofisiológicas mais sofisticadas fossem desenvolvidas, doenças classificadas inicialmente como endógenas seriam paulatinamente incorporadas ao grupo das doenças orgânicas. É interessante notar que, naquele momento histórico, a psiquiatria não existia como especialidade médica distinta, e a separação entre neurologia e psiquiatria não era clara. Enquanto os médicos encarregados do manejo de doentes mentais em sanatórios eram chamados alienistas, aqueles responsáveis pelo tratamento de distúrbios do comportamento em caráter não hospitalar denominavam -se neurologistas ou neuropsiquiatras. A ascensão das escolas psicológicas, na primeira metade do século XX, trouxe consigo mudanças importantes nesse panorama. A teoria psicanalítica passou a exercer grande influência na prática psiquiátrica como um todo, não apenas no que tange ao tratamento dos transtornos mentais, mas também sobre a nosologia psiquiátrica. Ainda que Freud afirmasse que no futuro as ideias psicológicas vigentes seriam substituídas por construções de natureza orgânica, a consolidação da psicanálise como área do conhecimento foi responsável por uma progressiva cisão entre mente e cérebro. Tal fato contribuiu para um progressivo distanciamento entre a psiquiatria e a neurobiologia. Esse distanciamento persistiu até o final da década de 1980, quando a psicanálise passou a perder força como pensamento dominante na psiquiatria acadêmica. Tal fato se deveu a diversos fatores, dentre os quais
a consolidação dos tratamentos biológicos como estratégia efetiva para o manejo de boa parte dos pacientes com transtornos mentais. Além disso, não obstante seus marcantes avanços do ponto de vista teórico, a psicanálise não apresentou, concomitantemente, progressos do ponto de vista científico, falhando em demonstrar métodos objetivos para a testagem de suas teorias previamente formuladas6. Atualmente, embora ainda instigante e útil como instrumento de autoconhecimento, a psicanálise não parece desempenhar papel de destaque no tratamento de pacientes com doenças psiquiátricas graves. Finalmente, a década de 1990, formalmente declarada a década do cérebro, foi o palco da reaproximação entre psiquiatria e neurociência7 • A ideia de uma relação direta entre funcionamento cerebral e comportamento humano foi retomada com grande força e vasta evidência científica (proveniente de estudos de biologia mole cular e neuroimagem) foi obtida, voltada para a testagem da hipótese em questão. Não obstante as controvérsias referentes à robustez da associação comportamento-neurobiologia, a psiquiatria tem progressivamente se caracterizado como "neurociência clínica'' 1,3 , sendo que especial atenção tem sido dedicada às implicações de tal caracterização.
Neurociência, comportamento e etiopatogenia dos transtornos mentais Um dos pilares da relação entre psiquiatria e neuro ciência é a hipótese de que todos os transtornos mentais resultam de disfunções em determinadas regiões ou circuitos cerebrais. Incontáveis estudos têm demonstrado que, em pacientes com várias doenças psiquiátricas, determinados padrões referentes a alterações morfométricas e/ ou funcionais em circuitos cerebrais diversos estão presentes. Por exemplo, o alargamento de ventrículos laterais, primeiro achado estrutural cerebral descrito em pacientes esquizofrênicos, é considerado uma dos mais replicados achados na neuroimagem dos transtornos mentais8. O mesmo pode ser afirmado no que tange à atrofia do hipocampo em depressão unipolar, ao alargamento de amígdala no transtorno bipolar do humor e às hiperintensidades da substância branca na depressão de início tardio 9 - 11 • Com frequência, tais achados permitem a formulação de hipóteses referentes à etiopatogenia dos transtornos em questão, ou constituem evidência favorável a hipóteses anteriormente formuladas. Por exemplo, o fato de que o alargamento de ventrículos na esquizofrenia parece estável ao longo do tempo e aparentemente já está presente antes do aparecimento dos sintomas é uma das bases para a hipótese de que alterações de neurodesenvolvimento (com possível migração neuronal anômala no período intraútero) estão envolvidas na fisiopatologia dessa doença, bem como de outros transtornos mentais 12, 13 •
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A atrofia hipocampal, por sua vez, vai de encontro à hipótese de que a hiperatividade do eixo hipotálamo -hipótese está envolvida na fisiopatologia dos quadros depressivos14. Finalmente, o achado de alterações da substância branca em idosos com depressão originou a assim denominada hipótese da depressão vascular. Segundo esse modelo, idosos sem marcantes antecedentes familiares de transtornos de humor podem desenvolver depressão secundariamente a lesões cerebrais isquêmicas, que acabariam por gerar disfunções nos circuitos cerebrais relacionados à regulação das emoções, particularmente aqueles envolvendo o córtex pré-frontal. Essa hipótese seria sustentada pela frequente associação de sintomas depressivos com fatores de risco cardiovascular e achados de neuroimagem sugestivos de isquemia cerebral nesses pacientes15'16. Raciocínios similares podem ser feitos no que tange ao possível papel de neurotransmissores na patogenia dos transtornos mentais. Inicialmente evocada como explicação para o efeito terapêutico de determinadas medicações (como antipsicóticos e antidepressivos), a teoria do "desbalanço neuroquímico" (isto é, de que a falta ou excesso de determinados neurotransmissores afetaria o funcionamento de determinados circuitos cerebrais) tornouse lugar comum. Como exemplos dessa linha de raciocínio, pode-se citar a hipótese monoaminérgica da depressão e a hipótese dopaminérgica (ou, mais recentemente, da estabilização dopaminérgica) da esquizofrenia. Não obstante o montante crescente de resultados que demonstram uma relação clara entre alterações cerebrais e transtornos mentais, críticas são com frequência feitas ao real significado dessas evidências. Dentre esses argumentos, encontram -se problemas relativos à replicação de tais resultados, e a proposição de que os achados descritos podem indicar medidas de associação, e não de causa e efeito. Além disso, alguns autores (p. ex., Paris et al. 17) defendem o conceito de que tais limitações são, na verdade, resultado de problemas relativos à formulação de um dos paradigmas básicos da neurociência (isto é, da problemática relativa à dicotomia mente-cérebro). A grande maioria dos neurocientistas adota o pressuposto de que todos os fenômenos mentais são pura e simplesmente reflexo de determinados processos cerebrais. Entretanto, embora funções básicas como atenção e memória possam ser facilmente traduzidas em termos de correlatos neurofisiológicos, os mecanismos cerebrais envolvidos na produção de funções mentais mais complexas, como o pensamento, as emoções e a própria consciência não foram, até o presente momento, adequadamente caracterizados. Segundo esse ponto de vista, ainda que disfunções neuronais ou moleculares estejam sem dúvida relacionadas ao surgimento de fenômenos psicopatológicos, a relação direta entre disfunção cerebral e psicopatologia se tornaria conceitualmente inviável, uma vez que os fenô-
menos mentais per se seriam considerados como resultado de processos cerebrais hierarquicamente superiores ao que o atual nível de entendimento do funcionamento cerebral permite inferir. Os aspectos genéticos dos transtornos mentais parecem seguir modelos complexos de herança, com o possível envolvimento de múltiplos alelos. Por conta disso, apesar do grande número de estudos descrevendo achados positivos, não há, até o presente momento, resultados conclusivos quanto a achados de genética molecular em patologias psiquiátricas. Intimamente ligada a essa problemática encontrase a questão da interação entre vulnerabilidade genética e estresse na etiopatogenia dos transtornos mentais. Segundo o modelo estresse-diátese dos transtornos mentais, indivíduos geneticamente propensos a determinadas doenças psiquiátricas teriam seus transtornos deflagrados pela exposição a determinados fatores estressares de ordem ambiental. Esse modelo, por sua vez, originou o conceito de endofenótipo: marcadores biológicos (avaliáveis macro ou microscopicamente) encontrados em indivíduos geneticamente propensos a determinada doença, não necessariamente ligados à presença da doença em questão 18 . Em outras palavras, os endofenótipos estariam presentes não somente em indivíduos portadores de determinado transtorno mental, mas também em indivíduos saudáveis, como seus parentes de primeiro grau. Além disso, entre indivíduos portadores de transtornos mentais, os endofenótipos devem, por definição, ser independentes do estado mental do indivíduo em questão (ou seja, devem ser encontrados não somente nas fases agudas da doença, mas também nos períodos de remissão). Mais recentemente, a interação entre fatores genéticos e ambientais na patogênese dos transtornos do comportamento tem sido abordada sobre outro ângulo, denominado enfoque epigenético. Segundo esse ponto de vista, a contribuição dos fatores psicossociais para o desenvolvimento de determinada doença se daria não de forma independente dos aspectos genéticos, mas sim atuando diretamente sobre eles. Modelos animais demons traram que determinados padrões de cuidados maternos durante a infância levam a alterações na metilação (e, consequentemente, maior ou menor expressão) de determinados genes, alguns dos quais envolvidos na síntese de determinadas proteínas/receptores de interesse para o desenvolvimento de determinada doença19 . Essa evidência é de grande interesse para o melhor entendimento do papel de eventos traumáticos e outros estressares ambientais durante a infância no desenvolvimento de patologias psiquiátricas na idade adulta. No entanto, estudos sobre a epigenética de transtornos mentais em seres humanos estão ainda em fase preliminar. Finalmente, as dificuldades na definição de fenóti pos em psiquiatria podem atrapalhar em muito a obten-
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ção de achados consistentes no que se refere à neurobiologia dos transtornos mentais. Esse aspecto será abordado com mais profundidade no item a seguir. Em suma, a evidência atualmente disponível permite consistentemente inferir que os transtornos mentais são resultado de alterações cerebrais, sejam elas de natureza anatômica, neuroquímica ou funcional. É esperado que a solidez da evidência em questão aumente progressivamente ao longo das próximas décadas, diante do avanço contínuo nas técnicas de pesquisa neurobiológica.
Finalmente, achados neurobiológicos podem auxiliar na identificação de indivíduos sob elevado risco de desenvolvimento de determinado transtorno. Uma vez que tais resultados se originam geralmente de estudos que envolvem populações de risco (isto é, indivíduos normais, porém sob elevado risco genético para o desenvolvimento da patologia em questão), as mesmas dificuldades relativas à caracterização de fenótipos podem ser responsáveis pelos resultados contraditórios, até o presente momento, referentes a esse aspecto.
Potenciais contribuições da neurociência para o diagnóstico em psiquiatria
Neurociência e tratamento em psiquiatria
Uma das aplicações mais atraentes da neurociência à psiquiatria é a possibilidade de identificação de marcadores biológicos, os quais poderiam ser utilizados para a confirmação diagnóstica de transtornos mentais. O teste da supressão da dexametasona, no passado utilizado para o diagnóstico de depressão, é um exemplo de tal aplicaçao. Dentre as diversas áreas de pesquisa neurobiológica, a neuroimagem dos transtornos mentais seria aquela com maior potencial de aplicação para esse fim, por conta de seu caráter não invasivo. Entre essas abordagens encontram-se tecmcas estruturais, como a ressonanc1a magnética estrutural (MRI); neuroquímicas, como a espectroscopia por ressonância magnética (MRS); e funcionais, como a ressonância magnética funcional (fMRI), a tomografia por emissão de pósitrons (PET) e a tomografia por emissão de fóton único (SPECT). Entretanto, a despeito do vasto número de publicações e achados positivos no que tange à neuroimagem em psiquiatria, estamos ainda distantes da possibilidade de se utilizar tais testes para fins diagnósticos de forma rotineira. Isso se deve ao fato de que a consistência dos achados positivos de neuroimagem é relativamente baixa. Além disso, boa parte dos achados em questão é de natureza puramente quantitativa, e não pode ser utilizada para fins de categorização. Uma das principais razões para a baixa taxa de replicação dos resultados dos estudos de neuroimagem é a dificuldade na caracterização de fenótipos em psiquiatria. Dado nosso limitado conhecimento sobre a etiologia e patogênese dos transtornos mentais, as entidades clínicas atualmente encontradas na nosologia psiquiátrica são definidas com base em sua apresentação clínica, a qual é em última análise caracterizada de forma subj etiva, não obstante a utilização de critérios padronizados e entrevistas estruturadas. Consequentemente, é provável que os elementos atualmente utilizados pela maioria dos estudos de pesquisa neurobiológica não sejam, na verdade, os mais adequados para a definição de casos e controles, sendo que seus resultados acabam sujeitos a diversos vieses referentes ao construto em questão. f
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A possibilidade de que a neurociência possa contribuir para o aperfeiçoamento do tratamento dos transtornos mentais tem sido uma das áreas de maior interesse da pesquisa neurobiológica nos últimos anos. Tais contribuições podem se dar, teoricamente, de várias maneiras: a) Identificação de preditores de resposta: determinados marcadores biológicos podem ser estabelecidos como preditores da resposta do transtorno em questão a determinadas estratégias terapêuticas farmacológicas ou não farmacológicas. Tais marcadores podem corresponder a achados de neuroimagem ou outras medidas neurofisiológicas, ou a determinados padrões genotípicos (abordagem farmacogenética). Apesar de alguns estudos apontarem para resultados promissores em relação a tais preditores, sua utilização corriqueira na prática clínica ainda representa uma realidade distante 20-23 • b) Auxílio no diagnóstico diferencial de transtornos mentais: em casos de dúvida diagnóstica, a utilização de elementos neurobiológicos seria decisiva para a adequada formulação diagnóstica (vide seção anterior), possibilitando a implementação da estratégia terapêutica mais adequada. c) Implementação de medidas terapêuticas preventivas: com o progressivo avanço do conhecimento referente ao prognóstico dos transtornos mentais e a melhor caracterização de marcadores de vulnerabilidade a esses transtornos, a neurociência poderia, em tese, viabilizar medidas de prevenção primária em psiquiatria. O tratamento preventivo de pessoas sob risco genético para esquizofrenia seria um exemplo dessa aplicação. Tais propostas preventivas esbarram em diversas questões de ordem técnica e ética, as quais não podem ser adequadamente respondidas à luz da evidência atualmente disponível 24' 25 •
Perspectivas em neurociência e suas possíveis implicações para a prática psiquiátrica Não obstante a clássica e ainda contemporânea dicotomia (biológico vs. psicossocial) no entendimento dos transtornos mentais, há uma tendência cada vez mais
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clara de que a psiquiatria incorpore, de maneira progressiva, os avanços no conhecimento neurobiológico, consolidando-se legitimamente como neurociência clínica 1•26 • Algumas prováveis consequências dessa caracterização serao: a) Redução da distância entre psiquiatria e neuro logia, com possível fusão das duas especialidades: atualmente, a separação entre psiquiatria e neurologia se baseia na proposta da última de "mapear" sinais e sintomas no sistema nervoso (isto é, de correlacionar achados e síndromes clínicas com lesões ou disfunções cerebrais específicas). A psiquiatria, até o presente momento, não é capaz de fazer o mesmo, mas a elucidação de correlatos neurofisiológicos e moleculares dos sintomas comportamentais tornaria as duas especialidades indistinguíveis. b) Desaparecimento da distinção cérebro-mente: avanços na neurociência têm propiciado, progressivamente, uma adequada compreensão das bases neuroanatômicas e neurofisiológicas do pensamento, dos afetos e da consciência humana. Consequentemente, a cisão entre mente e corpo, proposta ao longo da história da psiquiatria, perdeu o sentido. c) Mudanças no ensino da psiquiatria como especialidade médica: psiquiatras passarão a ser treinados como neurocientistas, sendo que seu aprendizado passaria a enfatizar as bases moleculares e neurofisiológicas do comportamento humano 27 . Um desafio inerente a essa mudança será a incorporação de tal enfoque à formação do psiquiatra, ao mesmo tempo preservando a sofisticação semiológica e as intrincadas teorias existentes para caracterização dos transtornos mentais e da personalidade. Por outro lado, aqueles com postura cética2•17 acreditam que, a despeito dos esperados avanços técnicos na neurociência ao longo dos próximos anos, a associação psiquiatria-neurociência teria atingido uma espécie de patamar, e que a psiquiatria não pode nem poderá, conceitualmente, ser caracterizada como neurociência clínica, sob o risco de que se adote uma visão reducionista dos transtornos mentais. Além disso, alertam para alguns riscos adicionais dessa associação: a) Abandono progressivo das técnicas psicoterápicas e outras abordagens psicossociais dos transtornos mentais: com o maior conhecimento das bases fisiopatológicas das patologias psiquiátricas, a terapêutica passaria a priorizar a psicofarmacologia e outros tratamentos biológicos, em detrimento das abordagens não biológicas. Essa possibilidade não parece encontrar fundamento à luz do crescente interesse nos mecanismos biológicos envolvidos na resposta terapêutica a intervenções psicossociais, particularmente abordagens psicoterápicas atualmente existentes28 . b) Mudanças de paradigma no que se refere à conceituação do comportamento humano: que passaria a ser visto não como fruto da capacidade de decisão e do livrearbítrio, mas como resultado de processos neurofisioló-
gicos e neuroquímicos. Segundo esse ponto de vista, as implicações éticas e legais de tal redefinição causariam profundas transformações nas relações interpessoais e, possivelmente, na estrutura da sociedade. Essas preocupações não parecem encontrar fundamento científico ou mesmo filosófico, na medida em que os aspectos humanísticos do comportamento humano dificilmente seriam abandonados e desconsiderados em decorrência do melhor entendimento do funcionamento do cérebro.
Considerações finais Encontramo-nos em um momento histórico bastante ímpar no que diz respeito à relação entre psiquiatria e neurociência. Diferentemente da tendência histórica caracterizada por uma visão maniqueísta dos transtornos mentais, ora com predomínio das correntes de ordem biológica, ora com maior ênfase nos fatores psicossociais, a abordagem atual oferece evidências sólidas no sentido de que as alterações cerebrais são, em última instância, as responsáveis pelas alterações de comportamento que representam o objeto de estudo da psiquiatria. Ainda que nosso atual nível de conhecimento não seja capaz de elucidar completamente os mecanismos intrínsecos pelos quais essas alterações cerebrais se traduzem em patologias psiquiátricas, espera-se que o futuro próximo traga respostas para algumas das indagações atualmente encontradas e citadas ao longo do presente capítulo. Espera-se que tais avanços se traduzam no progressivo aperfeiçoamento das ferramentas diagnósticas e terapêuticas disponíveis para o manejo dos transtornos mentais, as quais se tornarão mais eficientes e precisas, sem que a psiquiatria, enquanto neurociência clínica, deixe de lado seus aspectos artísticos e sua sofisticação teórica, mantendo se a abordagem do ser humano em sua totalidade.
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Interface com a Neurologia
Eduardo Genaro Mutarelli
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 55 Sintomas psiquiátricos em doenças neurológicas, 56 Depressão, 56 Lesões cerebrais focais e sintomas de doenças psiquiátricas, 57 Doenças neurológicas com manifestações psiquiátricas, 58
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Encefalopatias autoimunes, 58 Encefalopatias metabólicas, 58
1. Conhecer os correlatos biológicos de determinadas manifestações comportamentais. 2. Saber quando se deve suspeitar de alteração cerebral levando a distúrbios comportamentais.
Epilepsia, 59 Questões, 59 Referências bibliográficas, 59
2) mesmo que a apresentação seja comum, os sinto-
Introdução Cérebro e mente ocupam o mesmo espaço físico, uma sendo a manifestação do outro, e, portanto, tentar estabelecer uma fronteira bem delimitada entre neurologia e psiquiatria é quase impossível. As manifestações comportamentais são produzidas pelo cérebro; consequentemente, alterações psicológicas são produzidas pelo cérebro, e é de se esperar que lesões ou disfunções neurológicas apresentem sintomas psiquiátricos. Lesões cerebrais podem causar comportamentos obsessivos, impulsividade, depressão e esquizofrenia. O índice de tumor cerebral é 20 vezes m aior em pacientes psiquiátricos internados do que na população geral e vice-versa: doenças psiquiátricas podem causar lesões neurológicas. Por exemplo, indícios apontam para uma predisposição a doenças degenerativas, como Parkinson e Alzheimer, em pacientes com distúrbios afetivos 1•2 • O psiquiatra deve suspeitar de alguma lesão cerebral levando a distúrbios comportamentais, sugerindo que esse distúrbio seja secundário e não primário, quando: 1) a apresentação clínica é incomum;
mas iniciaram fora da faixa etária habitual; 3) estão presentes sinais e/ou sintomas de acometimento neurológico; e 4) quando o paciente não responde à terapêutica adequada. São exemplos: paciente esquizofrênico com alucinações visuais predominantes, paciente com depressão e disfunção executiva, paciente que passe a apresentar sintomas de esquizofrenia aos 50 anos de idade ou paciente deprimido que não responde a qualquer terapêutica. Nesses exemplos, os pacientes deverão ter sua investigação ampliada na procura de alterações cerebrais que justifiquem os sintomas observados. Essa investigação pode ser completamente negativa, mas é necessário que seja realizada. São várias as causas de acometimento do sistema nervoso central capazes de causar transtornos comportamentais. Para a sua memorização, pode-se utilizar o acrônimo VITAMINAS, em que V significa vascular; I, infeccioso; T, tóxico -metabólico; A, autoimune; M, me tástase; I, iatrogênico; N, neurodegenerativo; e S, sistêmico. Abaixo, são descritas em mais detalhes algumas dessas causas. Destacamos ainda o déficit de vitamina B12 e ácido fólico, as intoxicações e iatrogenias, que não serão abordadas, mas devemos tê-las sempre em mente.
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Sintomas psiquiátricos em doenças neurológicas A síndrome de Capgras caracteriza-se pela alegação do paciente de que pessoas conhecidas foram duplicadas e aquela que se apresenta à sua frente é impostora. Essa síndrome algumas vezes é causada por uma alteração cerebral que provoca desconexão entre a amígdala (estrutura cerebral responsável pelas alterações autonômicas taquicardia, sudorese, hipertensão e outras - diante de estímulos afetivos) e a encruzilhada temporo-parieto-occipital (córtex cerebral responsável pela interpretação dos estímulos sensoriais - tátil, visual e auditivo). Dessa maneira, o paciente reconhece a figura da pessoa, porém não tem sensações internas (sentimentais) desse reconhecimento. Essa desconexão pode ser causada por lesões estruturais como trauma de crânio, acidente vascular cerebral, distúrbios tóxico-metabólicos e outros3,4 .
anterior, essa área está ligada a iniciativa e vontade. Não raramente pacientes com tumores nessa região, em particular os meningeomas da foice, que comprimem as porções mediais pré-frontais, são tratados por meses a anos como portadores de depressão primária. Esses pacientes em geral são diagnosticados por serem refratários aos tratamentos convencionais e somente quando, pela evolução do tumor, apresentam alguma complicação como cefaleia, crises epilépticas, alterações visuais ou o acometimento de áreas vizinhas que levem a outros sintomas cognitivos, são devidamente investigados. A falta de resposta aos antidepressivos ou a terapias psicológicas se dá pelo fato de não haver substrato para a reação do cérebro, isto é, sendo o cíngulo anterior responsável por iniciativa, motivação e vontades, não há como responder se essa região está lesada. As Figuras lA e B mostram um exemplo de neuroimagem de um paciente que vinha sendo tratado como depressivo por longos períodos até apresentar algum outro sintoma que incitou a expansão da investigação.
Depressão A prevalência de depressão em pacientes com doenças neurológicas é maior do que na população em geral e mesmo se comparados com pacientes com outras doenças crônicas (Tabela I). Esse dado sugere mais do que uma associação, um possível mecanismo etiopatogênico. Por exemplo, a incidência de depressão em pacientes que sofreram acidente vascular cerebral (AVC) é maior em lesões à esquerda do que à direita e parece haver um papel nas alterações do locus coeruleus e dos núcleos da base na regulação do humor de pacientes parkinsonianos. Pacientes com depressão primária têm diminuição da atividade metabólica na porção mediai dos lobos fron tais. Como explicitado acima, no tópico sobre o cíngulo
Tabela I
Prevalência de depressão em pacientes com doenças neuro-
lógicas Prevalência
Risco em vida
Doença de Parkinson
10-20%
50%
Doença de Alzheimer
10- 20%
Epilepsia
20-300/o
50%
AVC
300/o
40- 50%
Esclerose múltipla
14%
50%
Cefaleia crônica
10- 20%
Fonte: adaptada de Schiffer, 2010 5 .
Figura 1 Ressonância magnética de crânio adquirida em T1 com injeção de gadolíneo demonstrando volumoso meningeoma frontal de paciente previamente diagnosticado como depressivo.
5 INTERFACE COM A NEUROLOGIA
Lesões cerebrais focais e sintomas de doenças psiquiátricas Lesões corticais temporais à esquerda estão associadas a sintomas esquizofrênicos. Essas alterações podem ser idiopáticas (primárias) ou secundárias a doenças neurológicas. Deve-se suspeitar de que tais quadros psicóticos têm caráter orgânico quando o paciente se apresenta com outros sinais de lesão do lobo temporal esquerdo como afasia, hemiparesia direita, crises epilépticas e hemianopsia (principalmente aquelas com perda do campo visual à direita) 6. As hemianopsias são déficits que devem ser pesquisados ativamente, pois o paciente frequentemente não tem consciência desse defeito, e às vezes são os familiares que relatam esbarrões com o lado direito do corpo ou do carro7 • Lesões da área pré-frontal dorsolateral ou de seus circuitos (Figura 2) causam déficit executivo e de planejamento. Essas dificuldades podem ser constatadas em testes neuropsicológicos que requerem atenção sustentada ou dividida. São indivíduos que têm dificuldade de fazer cálculos mentais, gerar uma lista de palavras, como nome de animais, e não conseguem executar o teste de trilhas (trai[ making test) A ou o B. Esses pacientes são passíveis de serem reconhecidos em testes. Já os pacientes com lesões pré-frontais orbitofrontais ou do cíngulo anterior e de seus circuitos não podem ser diagnosticados por testes ou mesmo por anamnese direta, só mesmo pela observação ou pelo relato dos acom-
panhantes. São pessoas que no exame neurológico clássico e nos testes cognitivos podem sair-se muito bem. Os pacientes com lesão orbitofrontal e de seus circuitos8 (Figura 2) são capazes de ter desempenho acima do normal nos testes neuropsicológicos e de inteligência, mas serem funcionalmente desastrosos, deixando atrás de si um rastro de catástrofe nas relações pessoais e pro fissionais. São demitidos do trabalho e se divorciam frequentemente. Num restaurante, são capazes de tomar água do copo da mesa ao lado só porque estão com sede, descer do carro no meio de uma avenida porque estão com pressa, ou assediar a empregada na frente da esposa e dos filhos. Porém, se confrontados e questionados sobre essas atitudes, eles, honesta e sinceramente, dizem que tais atitudes estão erradas e que não deveriam ser tomadas, e apresentam justificativas lógicas para explicá-las. Os pacientes com lesão das porções anteriores do cíngulo e de seus circuitos (Figura 2) têm perda da iniciativa e passam a manifestar-se só em resposta a estímulos externos. Muitas vezes a resposta é simplesmente a repetição do que lhe foi perguntado ou pedido, produzindo um quadro de apatia e abulia que chega ao extremo do mutismo acinético. Pacientes com demência frontotemporal (DFT) apresentam o conjunto dos sintomas descritos acima nas subcategorias de disfunções pré-frontais e temporais. Lesões dos circuitos talamofrontais causam as alterações de personalidade e comportamentais descritas,
COGNITIVO
MOTOR
Músculo-esquelético
Oculomotor
SOCIAL-EMOCIONAL
Executivo
Inibição
AMS/CPM/CM
AVF/AVS/AVP
CPFDUCPP
Córtex frontal lateral
Córtex orbitofrontal
Núcleo caudado - putame Lateral
Núcleo caudado -putame Lateral
Núcleo caudado - putame Porção central
Núcleo caudado ventral mediai
Núcleo caudado Puta me ventral mediai
Recompensa
Motivação
Córtex anterior do giro do cíngulo/ Córtex frontoinsular
Estriado ventral Globo pálido interno
Ventral lateral pars oralis
Globo pálido interno Substância negra pars reticu/ata
Substância negra pars reticu/ata
Ventral anterior pars magnocellularis Dorsomedial multiforme
L..-.
Ventral anterior pars magnocel/ularis Dorsomedial multiforme
Substância negra pars reticu/ata
Ventral anterior pars magnocel/ularis Dorsomedial multiforme
Globo pálido interno Substância negra pars reticu/ata
Pálido ventral
Dorsomedial pars magnocel/ularis
Dorsomedial pars magnocel/ularis
Figura 2 Lesão orbitofrontal e de seus circuitos. AMS: área motora suplementar; AVF: área visual f rontal; AVP: área visual parietal; AVS: área visual suplementar; CM: córtex motor; CPFD L: córtex pré-fro ntal dorsolateral; CPM: córtex pré- motor; CPP: córtex parietal posterior. Adaptada de Seely WW 2010 9•
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SEÇÃO 1
A PSIQUIATRIA E SEUS LIMITES
Tabela 11 Sintomas psiquiátricos Local da lesão
Possível sintoma psiquiátrico
Caudado
Impulsividade, abulia, apatia
Puta me
Acinesia psíquica
Tálamo
Desinibição, hipersexualidade, apatia. mutismo acinético, agitação e disforia
Lobo frontal (LF)
Perda da simpatia e empatia, comer compulsivamente, hipersexualidade
LF dorsolateral
Déficit de atenção, síndrome disexecutiva, falta de planejamento, escolha de sequência errada para as tarefas
LF orbitofrontal
Desinibição, impulsividade, alteração do comportamento social
LF cíngulo anterior
Apatia, depressão, abulia
Lobo temporal
Síndrome de Kluver-Bucy, hipersexualidade, alucinação auditiva, paranoia, esquizofrenia
como impulsividade, ritualismo, comportamento obsessivo-compulsivo e hipersexualidade, entre outras.
Doenças neurológicas com manifestações psiquiátricas
de febre baixa de origem indeterminada e/ou sintomas gripais, seguidos de psicose aguda caracterizada por ansiedade, introversão, alucinação visual e/ou auditiva e pensamentos paranoides. Esse conjunto de sinais e sintomas leva à suspeita diagnóstica de esquizofrenia. Alguns pacientes se apresentam com déficit de memória ou convulsão. Dessa maneira, 77% dos pacientes procuram o psiquiatra para uma primeira avaliação e o restante procura o neurologista. Com a evolução e a piora do quadro, os pacientes passam a ter crises epilépticas, discinesias orofaciais, coreoatetose ou alterações posturais com aumento do tono extensor e opstótono. O opstótono e as discinesias faciais são muito sugestivos dessa doença. Em fases mais avançadas, os pacientes apresentam disautonomia e depressão respiratória de origem central que podem levar à morte do paciente. Na investigação, 95% dos pacientes tinham alterações liquóricas, sendo que 91 % tinham pleocitose de predomínio linfomonocitário e 32% tinham hiperproteinorraquia. O eletroencefalograma estava alterado em 92% dos casos, sendo 71 % com lentificação no traçado e 21 % com ondas agudas. A ressonância de crânio estava alterada em 55% dos casos, em sua maioria com hipersinal em flair, muitas vezes de caráter transitório, córtico-subcortical. O tratamento que se mostrou eficaz inclui retirada do tumor e imunoterapia baseada em pulsoterapia com corticosteroides, gamaglobulina e plasmaférese 12 •
Encefalopatias autoimunes Na encefalopatia responsiva a esteroide, anteriormente chamada de encefalopatia de Hashimoto, o paciente apresenta-se com alterações comportamentais, psicose, depressão, tremor, mioclonia, dificuldade de fala, crise convulsiva, eventualmente evoluindo para declínio cognitivo e demência. Essa entidade deve ser suspeitada quando a investigação é inconclusiva na presença de autoanticorpos antitireoglobulina ou antiperoxidase tireoideana, e o paciente não tem alteração tireoideaana clínica ou laboratorial. Diz-se que a investigação é inconclusiva, pois os exames complementares são normais ou estão alterados de maneira inespecífica, como a ressonância magnética de crânio com alteração de sinal em substância branca, liquor com pleocitose discreta e hiperproteinorraquia, e EEG (eletroencefalograma) com lentificação no traçado ou atividade periódica (semelhante à atividade periódica da doença de Jakob-Creutzfeldt) 10 • Esses pacientes respondem bem à pulsoterapia com corticosteroide (solumedrol 1 g EVI dia por 5 dias) 11• Em pacientes com resposta transitória e refratária pode-se usar outros imunomoduladores. Encefalopatia por anticorpo antirreceptor NMDA (nmetil d-aspartato) em geral ocorre como síndrome paraneoplásica em consequência a teratoma de ovário ou de testículo, mais raramente secundária a tumor pulmonar de células pequenas ou outros tumores, sendo que uma proporção significativa de pacientes não tem tumor associado. As manifestações iniciais mais comuns são pródromo
Encefalopatias metabólicas
A doença de Wilson é provocada pela deposição de cobre em tecidos. Em 1912, Wilson descreveu pacientes com degeneração hepatolenticular. Os pacientes se apresentam com alterações neurológicas, psiquiátricas e hepáticas, sendo que qualquer uma dessas três pode causar o sintoma que predomina inicialmente, porém, na ocasião do diagnóstico, os pacientes têm sintomas dessas três alterações. Não existe um quadro clínico típico de doença de Wilson; sendo assim, é comum o retardo médio de dois anos entre a primeira consulta e o diagnóstico definitivo. Devese suspeitar dessa doença em pacientes que se apresentem com distúrbios dos movimentos, transtornos psiquiátricos ou hepatopatia de início insidioso, ou quando o paciente já se apresenta com associação de duas dessas alterações. A idade de início pode variar muito, desde a infância até a senilidade, porém o habitual é começar na adolescência e no adulto jovem. Do ponto de vista neurológico, suspeita-se da doença de Wilson quando os distúrbios dos movimentos são compostos por associação de distonia e coreia, parkinsonismo e distonia. Além dessas associações, pode-se observar outras alterações como disartria, tremor e pseudoatetose. Do ponto de vista psiquiátrico, o paciente pode apresentar-se inicialmente com sintomas mal definidos de difícil valorização, como alteração da personalidade, irritabilidade e depressão, para progressivamente ir piorando com sintomas de introversão pessoal, depressão, esquizo-
5 INTERFACE COM A NEUROLOGIA
frenia, disfunção do lobo frontal, como já descrito acima, com desinibição, impulsividade, comportamento antissocial e disfunção executiva. No exame clínico pode-se constatar o anel de Kayser-Fleischer, depósito de cobre na córnea, que se apresenta como um anel acastanhado na periferia da córnea. Exames complementares que auxiliam o diagnóstico são a baixa concentração de ceruloplasmina sérica e o excesso de cobre no sangue ou na urina, colhida por 24 horas. A ressonância magnética de crânio pode levantar a suspeita dessa doença pelo depósito de cobre que se apresenta pelo aumento do sinal na aquisição em T2 nos núcleos da base, no tronco cerebral e na substância branca. O tratamento consiste em tentar retirar o cobre depositado com substâncias quelantes 13 •
Epilepsia Crises epilépticas parciais podem causar sintomas indistinguíveis, em suas manifestações, de quadros tipicamente psiquiátricos. Pensamento obsessivo-compulsivo, manifestação emocional, comportamento de pânico, alucinação, autoscopia, sentimento paranoide e praticamente qualquer sintoma psiquiátrico podem ser manifestações de crise epiléptica. O diagnóstico será firmado principalmente pela história da manifestação. No caso da epilepsia, esses fenômenos ocorrem fora de um contexto psiquiátrico, ou seja, o paciente epiléptico até o momento da crise e depois de recuperado apresenta-se normal, enquanto opaciente psiquiátrico tem suas manifestações por períodos prolongados. Mesmo em períodos de exacerbação, opaciente já vinha apresentando tais alterações. A personalidade epiléptica é conhecida em qualquer ambulatório de epilepsia e descrita há muitas décadas. Paciente pegajoso, prolixo e indeciso são sintomas comuns. Em alguns casos, a personalidade do paciente com epilepsia do lobo temporal pode ser mais complexa, com sentimento de culpa, religiosidade exacerbada, misticismo, fatalismo, atenção aos detalhes e às regras, necessidade de anotar ou compulsão para escrever (hipergrafia) e depressão. Quadros mais graves podem apresentar es quizofrenia e psicose esquizofreniforme. O EEG de superfície pode ajudar no diagnóstico, porém quase metade dessas crises pode não ser registrada 1\ pois são originadas em regiões profundas como a do hipocampo e a septal. Em caso de suspeita, deve-se ampliar a investigação com a implantação cirúrgica de eletrodos profundos e/ou a obtenção de SPECT (single photon emition computed tomography) ictal.
Questões 1. Os sintomas descritos como lesões pré-frontais podem ocorrer em outras partes do sistema nervoso. exceto: a) Cerebelo. b) Tálamo.
c) Caudado. d) Globo pálido. e) Cíngulo.
2. Podemos afirmar que pacientes com lesão pré-frontal, em especial a região orbitofrontal: a) Têm o exame neurológico clássico. b) São diagnosticados pelos relatos dos acompanhantes ou de testemunhas. c) Têm o exame neuropsicológico alterado. d) Têm dificuldade de fala (afasia). e) Podem ter alucinação visual.
3. Paciente com distonia. tremor e parkinsonismo. introversão psíquica e depressão faz pensar em: a) Encefalopatia responsiva a esteroide. b) Deficiência de vitamina B12. c) Doença de Wilson. d) Tumor do lobo temporal. e) Porfiria. 4. São sinais de alerta sugestivos de base orgânica. e que portanto devem ser investigados. os seguintes sintomas psiquiátricos. exceto: a) Início dos sintomas após os 50 anos. b) Quadro clínico atípico. c) Sinais de alterações neurológicas (afasia, hemiparesia, convulsão. entre outras). d) Comorbidade psiquiátrica (por exemplo. esquizofrenia e depressão). e) Cefaleia em crescendo. 5. A certeza do diagnóstico de pseudocrise epiléptica (crise não epiléptica) é confirmada quando: a) O EEG intercrítico (entre as crises) é normal. b) O EEG ictal (durante a crise) é normal. c) A ressonância magnética do encéfalo é normal. d) O SPECT cerebral é normal durante a crise. e) O SPECT cerebral é normal no período interictal.
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Interface com a Neurocirurgia
Manoel Jacobsen Teixe ira Eri ch Talamoni Fonoff
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 61 Psicocirurgia, 62 Procedimentos estereotácticos, 64
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
A neuromodulação moderna, 66 Desenvolvimento da neurocirurgia funcional aplicada a psiquiatria, 66 Considerações finais, 67 Questões, 67 Referências bibliográficas, 68
Introdução A utilização de procedimentos cirúrgicos para tratar doenças e sintomas psiquiátricos passou por turbu lências durante o século XX, causando intenso debate entre médicos, legisladores e o público em geraP -9 . Grande parte deste debate é baseado em questões fundamentais, tais como a neurobiologia da psiquiatria; o papel do livre-arbítrio; a relação deste com a biologia subjacente aos nossos comportamentos. O abuso e a malversação de procedimentos psicocirúrgicos também contribuíram para as polêmicas episodicamente afloradas na sociedade, em diversas partes do mundo 1- 12 • Uma visão adequada sobre a cirurgia psiquiátrica demanda que se considere um paralelo entre a evolução dos conhecimentos e a aplicação dos mesmos em cada momento histórico, no contexto da evolução das neuro ciências em geral, da psicofisiologia e do estudo do comportamento, da psicofarmacologia, da anatomia funcional, do desenvolvimento de metodologias investigativas e procedimentos operatórios e suas aplicações na psiquiatria e neurocirurgia. É importante também ressaltar a dificuldade no processo de desenvolvimento de modelos animais que mimetizassem as doenças psiquiátricas, pois o paralelo entre comportamento animal e a psico-
1. Conhecer os fundamentos de psicocirurgia. 2. Conhecer procedimentos estereotácticos propostos para o tratamento de doenças psiquiátricas. 3. Saber por que a cirurgia psiquiátrica impulsionou a criação e utilização em maior escala do método estereotáctico.
patologia humana nem sempre foi muito claro. Apenas em décadas mais recentes que as neurociências encontraram campo fértil no desenvolvimento de modelos animais de doenças psiquiátricas em primatas e em roedo res. Mais recentemente, os modelos animais penderam para análise de animais menores, em geral ratos, possivelmente por custos mais acessíveis, mas principalmente pela necessidade de se replicar estatisticamente resultados de pesquisas baseadas em testes comportamentais que, por apresentarem conhecida variabilidade interindividual, necessitam de grupos relativamente numerosos para que revelem resultados significativos. A criação e aplicação de procedimentos neurocirúrgicos no tratamento de doenças psiquiátrica, acompanharam a própria criação e o desenvolvimento da chamada neurocirurgia funcional, desde seus primórdios com a manipulação da tecido cerebral por meio de técnicas inicialmente rudimentares, utilizadas em procedimentos neurocirúrgicos gerais. A aquisição de tecnologia, como o próprio método estereotáctico, a radiofrequência, radiocirurgia, neuroimagem estrutural e, mais recentemente, neuroimagem funcional, neurofisiologia localizatória de alta resolução, neuromodulação baseada em estimulação elétrica ou magnética e terapia celular e genética impulsionaram os métodos de tratamento cirúrgico dos transtornos psiquiátricos, refinando -os e os deixando mais seletivos.
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Por sua vez, a aproximação da psiquiatria com a medicina geral e as neurociências, a partir da criação de métodos de padronização diagnóstico e de escalas de gradação de sintomas para avaliação e seguimento dos pacientes tratados e, mais recentemente, com a incorporação e o desenvolvimento de estudos comparativos e controlados, fez dessa um dos ramos da medicina mais produtivos e promissores, acelerando sua evolução de décadas em poucos anos. A definição das boas práticas na aplicação de procedimentos desta natureza deve, portanto, considerar conhecimentos adquiridos ao longo da história da especialidade, na integração contínua entre ética, ciência básica e psiquiatria e a evolução técnica e investigativa em neurocirurgia funcional, aliados aos métodos comtemporâneos de estudos prospectivos, comparativos e encobertos com análise de longo prazo, realizados por neurocirurgiões experientes que dominam as técnicas aplicadas (inclusive seus limites) em pacientes cuidadosamente selecionados por equipe multidisciplinar de peritos em psiquiatria e psicologia. A psicocirurgia acompanha a humanidade ao longo da história humana, desde culturas primitivas, com vários registros, desde o Período Neolítico, de pessoas submetidas a procedimentos neurocirúrgicos com recuperação bem sucedida 16'17. Imagina-se que procedimentos como estes foram trefinações realizadas por xamãs de tribos primitivas na tentativa de tratamentos de pessoas que apresentavam sintomas psiquiátricos ou epiléticos e, devido a isso, considerados doentes ou possuídos por demônios e espíritos malignos. Assim, os connhecimentos sobre a relação entre cérebro e o comportamento, a exemplo da relação entre traumatismo craniano e perda de habilidades cognitivas ou mesmo o desenvolvimento de sintomas psiquiátricos, também constam de inscrições religiosas, na literatura e artes plásticas2'3'8'9,18-2o.
Psicocirurgia Descrições pormenorizadas como o caso ilustrati vo da estreita ligação entre a função cerebral e habilidades cognitivas e comportamentais foi apresentada por John Martyn Harlow, que era o médico de um trabalhador ferroviário norte-americano, Phineas Gage. Gage, em setembro de 1848, enquanto utilizava uma barra de ferro para acomodar explosivos em pó em rochas a serem dinamitadas, provocou uma descontrolada explosão que causou lesão do olho esquerdo e na porção frontal do crânio, resultando em graves danos no lobo frontal esquerdo. Gage apresentou curto período de inconsciência após o acidente sem que disfunções motoras ou sensitivas fossem observadas. No entento, conforme descrição feita por Harlow, a personalidade de Gage sofreu modificações radicais, ao ponto de seus amigos e conhecidos dizerem que "ele não era mais Gage" 20 . Este, que antes do acidente era capaz de integrar-se facilmente com
seus colegas, responsável e altruísta, tornou -se egoísta e infantil, expressando comportamentos imaturos e agressivos 2,21,23 . O caso de Phineas Gage foi amplamente divulgado na comunidade médica e consolidado em conjunto com os casos apresentados pelos neurologistas Paul Broca24,25 e Carl Wernicke26, adicionando ao conhecimento neuropsiquiátrico da época a importância do cérebro na esfera mental e cognitiva. Com tais relatos e vários outros, construiu-se parte do conhecimento sobre are lação neuroanatômica funcional e passou a ser razoável supor, já no século XIX, que intervenções cirúrgicas pudessem ser aplicadas na correção de sintomas psiquiátricos e distúrbios de habilidades mentais2. Em 1888, sob a influência dos casos descritos acima, o psiquiatra suíço Gottlieb Burckhardt propôs, após estudos iniciais em animais no final da década de 1880, que a excisão bilateral cerebral em múltiplos focos no córtex frontal, parietal e lobo temporal pudesse ser útil contra sintomas psicóticos27. Apesar de haver resultados positivos em três de seis pacientes, seu trabalho não foi favoravelmente aco lhido pela comunidade médica suíça. Nos 40 anos subsequentes houve uma pausa nos procedimentos desta natureza, sendo o trabalho de Burckhardt negligenciado por seus sucessores. Em 1935, Jacobsen Carlyle e John Fulton apresentaram um estudo realizado em primatas sobre a função do lobo frontal na memória de curto prazo, no II Congresso Internacional de Neurologia realizada em Londres28 . No estudo, dois macacos foram testados quanto à capacidade de lembrar diferentes imagens, uma habilidade que diminuiu consideravelmente após ressecção dos lobos frontais. Jacobsen e Fulton, no entanto, também observaram que um dos animais, antes da ressecção do lobo frontal, apresentava extrema ansiedade ao iniciar o jogo de cartas e mostrou proeminente agressividade quando falhou durante o jogo, enquanto o mesmo animal, após a ressecção do lobo frontal, parecia imperturbável pela configuração do jogo. Além disso, mesmo apresentando desempenho pior do que antes no jogo que tanto o importava, não voltou a apresentar sinais de agressividade 28 . O estudo de Jacobsen e Fulton enfatizou o papel dos lobos frontais na ansiedade e no comportamento agressivo. Esse trabalho influenciou Egas Moniz (1874- 1955) juntamente com o neurocirurgião Almeida Lima, que introduziu o procedimento da no meada leucotomia pré-frontal, realizada em alguns pacientes psiquiátricos selecionados com sintomas psiquiátricos, como ansiedade ou depressão psicótica e agitação psicomotora graves29 . A leucotomia pré-frontal foi realizada a fim de desconectar o polo pré-frontal e parte dos lobos frontais do restante do encéfalo, afim de liberá-los dos geradores pré-frontais de ansiedade prejudicial. O processo foi inicialmente realizado por meio da destruição química da substância branca do centro semioval pela injeção de álcool absoluto na substância branca subcortical do córtex pré-frontal e, mais tarde (após os pri-
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meiros sete casos), realizado com um instrumento espe cial, o leucótomo, introduzido no cérebro através de um ou mais orifícios de trepanação precoronal bilateralmente2-s,s,9,29,30. Egas Moniz apresentou sua primeira mono grafia com base em 20 pacientes, sendo que sete destes foram considerados curados, sete apresentaram melhora e seis permaneceram inalterados29 . Em trabalho ulterior sobre a leucotomia pré-frontaP 0, notou que usando a referida técnica foram observados apenas distúrbios menores e temporários à lesão dos lobos frontais. Afirmou, então, que o processo de recuperação poderia resultar na reversão das disfunções observadas30 . O número de leucotomias préfrontais realizadas pelo grupo de Lisboa não excedeu 100 casos no total5 • No entanto, os trabalhos de Moniz tiveram grande impacto sobre o neurologista e psiquiatra Walter Freeman, que juntamente com o neurocirurgião James Watts rapidamente e com grande entusiasmo introduziu a psicocirurgia nos Estados Unidos, no final dos anos 1930 2'3'5' 8' 9'32. Freeman e Watts modificaram o procedimento de Moniz tornando as lesões maiores, de modo a obter maior efeito sobre os sintomas psiquiátricos 2'33 -35 . Com o passar do tempo e consequente aumento da experiência, ele propôs o procedimento em três modalidades, dependendo do volume de tecido cerebral desconectado: leucotomia míni ma, padrão e pré -frontal radicaF' 33 -35 . A leucotomia pré -frontal mínima lobotomia foi utilizada principalmente em pacientes com doenças afetivas psiconeuróticos, enquanto em maior escala a lobotomia pré-frontal radical foi aplicada em pacientes com esquizofrenia ou que necessitaram de reoperação devido a ausência de resultados com procedimentos mais restritos 2. É notável que Freeman e Watts em seus primeiros textos, afirmaram que "os pacientes perdem algo com esta operação, espontaneidade, brilho no olhar, e mudam a personalidade" e que "o uso indiscriminado deste procedimento poderia resultar em danos enormes". Portanto, o procedimento deveria ser reservado para casos selecionados em que os métodos conservadores de tratamento não apresentaram resultados satisfatórios33 . Todavia, a introdução da psicocirurgia, no final dos anos de 1930, foi recebida com entusiasmo dentro da comunidade médica e pelo público em geral devido à falta de tratamentos eficazes para sintomas psiquiátricos graves 2-s,s,36 . Pessoas que sofriam de psicoses crônicas e distúrbios afetivos graves eram mantidas em asilos fechados por longos anos sem possibilidade de tratamento efetivo, por vezes em situações de higiene e cuidados de enfermagem precários, resultando em frequentes surtos de doenças infecciosas, como, por exemplo, tuberculosé 9,31. Pacientes agressivos eram, na melhor das hipóteses, tratados com barbitúricos e frequentemente trancados por longos períodos e restritos por mecanismos de contenção. Muitos profis sionais e familiares dos pacientes, portanto, consideravam a psicocirurgia como uma possível alternativa à ins -
titucionalização da vida ou, ao menos, a possibilidade de reduzir a agressividade excessiva mesmo daqueles que seriam mantidos nas instituições, sem necessidade de contenção permanente3'8'9. O uso inicialmente conservador da psicocirurgia como um último recurso para pacientes graves, até nos anos de 1940, converteu-se em agressiva e indiscriminada utilização do procedimento a partir desta época2'3'8'9'31 . O uso da psicocirurgia aumentou durante a segunda guerra mundial devido à expansão das indicações, motivadas pela superlotação dos hospitais, gerando encaminhamento de número cada vez maior de pacientes traumatizados de guerra2'3'8'9,31,36. Com o passar dos anos, Walther Freeman aparentemente perdeu a cautela para indicações de psicocirurgia, inspirado pelo trabalho do psiquiatra italiano Amarro FiambertP8 que, em 1946, inventou a técnica simples lobotomia transorbital. Este procedimento era realizado sob indução de inconsciência por eletroconvulsoterapia e por meio da inserção de um picador de gelo como instrumento (nomeado orbitoclasto, ou seja, leucótomo transorbital) bilateralmente, através do teto da órbita em direção aos lobos frontais. Este procedimento levava cerca de 15 a 20 mine podia ser realizado mesmo na ausência de neurocirurgiões e anestesistas, bem como sem o uso de técnica estéril e adequada do centro cirúrgico2-4'8'9. Freeman, que agora foi abandonado por Watts, viajou por todo os Estados Unidos em seu trailer, apelidado na época de "lobotomóvel': visitando hospitais públicos e asilos, realizando procedimentos até mesmo em quartos de hotéis para cumprir, o que em sua ideia era denominada psicocirurgia2-4'8'9. A "facilidade" com que se poderia fazer psicocirurgia, juntamente com a demanda crescente por tratamentos eficazes para sintomas psiquiátricos graves, levou a um aumento bastante significativo no número de procedimentos realizados. Estima-se que, nos Estados Unidos, menos de 300 lobotomias foram realizadas em 1945 sendo que, nos anos de 1949, 1950 e 1951, a cada ano, foram feitas mais de 5.0005,39 . O aumento no uso da psicocirurgia foi feito em plena publicidade e coroado com a atribuição do Prêmio Nobel de medicina e fisiologia, em 1949, para ser compartilhado entre Egas Moniz, pela descoberta do valor terapêutico da leucotomia em certas psicoses, e Rudolf Walter Hess, por sua descoberta da organização funcional do diencéfalo como coordenador de atividades dos órgãos internos40. Nesta época, a psicocirurgia já não era reservada para casos selecionados, pelo contrário, realizada em grande número e fora do âmbito neurocirúrgico, frequentemente por não-neurocirurgiões, por exemplo, ortopedistas, neurologistas e psiquiatras2-s,s,9,41. A falta de cautela, tanto na indicação quanto nos cuidados técnicos, trouxe o aumento de complicações: muitos na época afirmavam, em relação aos procedimentos psicocirúrgicos, "pode ser facilmente realizado por um psiquiatra, com as ferramentas que ele poderia ter no bolso'~ Procedimentos realizados através do teto da órbita pode levar a danos de vasos cerebrais, resultando em hemorra-
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gias graves ou fatais, mesmo quando realizadas com técnica apurada. Estes incidentes tornaram-se muito frequentes, além do aumento do risco de infecções cerebrais e dano neuronal indesejados, devido a realização do procedimento em ambientes não adequados e/ou por profissionais despreparados. Morbidade e mortalidade foram associadas com a psicocirurgia atingindo, durante este período, números inaceitáveis em alguns hospitais 10 • As indicações expandidas da psicocirurgia ultrapassaram o senso ético por serem realizadas sem o consentimento do paciente e, em alguns casos, em presos ou reclusos em instituições para a correção de distúrbios de conduta2' 10 • Esta prática, naturalmente, chamou a atenção da opinião pública, agravada pelas notícias de alta morbidade e mortalidade2'3'8'9. O golpe final para o uso indiscriminado da psicocirurgia foi, no entanto, causada pela introdução de lítio, no final dos anos de 194043,44, seguido pela clorpromazina, o primeiro medicamento antipsicótico eficaz, em meados da década de 19S02s,s,9,31'41. A introdução dessas drogas, juntamente com a aceitação geral da eletroconvulsoterapia, inserida em 193845 como um tratamento eficaz da depressão grave, levou à redução paulatina do número de procedimentos cirúrgicos destinados ao uso psiquiátrico. Rapidamente comparou-se procedimentos na época utilizados indiscriminadamente carregados de altas taxas de morbimortalidade com os efeitos benéficos e o entusiasmo do uso das medicações antipsicóticas e da eletrconvulsoterapia, resultando em favoritismo para métodos mais conservadores. Essa conversão foi também motivada pela natureza irreversível dos procedimentos psicocirúrgicos aliados às preocupações éticas associadas à sua práticaz-s,s,9,31 '41. O apogeu da psicocirurgia chegou ao fim durante a década de 1950, pelas razões acima mencionadas, levando praticamente ao seu abandono. Estima-se por registros institucionais e pela literatura que o número de lobotomias realizadas durante este período em todo o mundo foi em torno de 70 a 90 mil casos, sendo 50 mil apenas nos Estados Unidos 2'3'8'9'36 , seguido pelo Reino Unido com 15.000 a 20.000 casos36 e pela Escandinávia (Dinamarca, Suécia e N oruega) com cerca de 9.000 a 10.000 casos 10' 12 • O elevado número de casos realizados ressalta que ao menos um número razoável destes casos foram considerados de resultados satisfatórios e efeitos adversos aceitáveis. O aumento das taxas de morbimortalidade associadas aos tradicionais procedimentos psicocirúrgicos, já durante a década de 1940, trouxe uma preocupação considerável para alguns neurocirurgiões, embora concordassem com o propósito terapêutico e científico da psicocirurgia. Com isso, surgiu a ideia de que quanto menor e mais específica a lesão em determinada estrutura do cérebro, melhor seria o seu resultado comparado a eventuais efeitos colaterais, relativamente menores devido ao aumento da seletividade. Por isso o objetivo de procedimentos psicocirúrgicos passaram a ser a otimização das técnicas cirúr-
gicas para causar o mínimo de traumatismo cirúrgico em estruturas cerebrais vizinhas. Nesta época, alguns desses autores pioneiros como William Beecher Scoville e Hugh Cairns abandonaram, por conseguinte, procedimentos fechados e introduziram procedimentos a céu aberto a fim de que o cirurgião tivesse acesso visual a estruturas e com isso pudesse examinar e programar melhor os alvos, tanto para secção de fibras quanto para destruição de áreas corticais, como o córtex órbito-frontal46 e giro e fascículo anterior do cíngulo47. No entanto, as técnicas abertas foram, durante as próximas décadas, sendo substituídas por procedimentos que utilizavam o método estereotáctico em humanos, desenvolvido por Ernest Spiegel e Henry Wycis em 194748 -50 . Spiegel e Wycis basearam-se inicialmente em estruturas anatômicas encéfalo com o auxílio da pneumoencefalografia já utilizando, na época, os raios X e, mais tarde, em 1950, os meios de contraste desenvolvidos para aplicação na visualização dos contornos ventriculares, ou seja, a ventriculografia48'49'52 . O método tornou-se logo o padrão geral para calcular coordenadas de alvos de estereotaxia. O método estereotáctico adicionou precisão aos procedimentos ditos fechados, ou seja, substituiu a visão direta do cirurgião por visualização indireta por médotos de imagem, como a ventriculografia, que foi utilizada até muito recentemente. Com a utilização do método estere, . . - ., . . otactlco, as mtervençoes CirurgKas tornaram-se ma1s reprodutíveis e seguras, aliando a menor insasividade dos procedimentos fechados e a segurança e seletividade de procedimentos abertos. Atualmente, a utilização da estereotaxia aliada a novos métodos de imagem, como a tomografia computadorizada e a ressonância magnética, assim como o uso da computação gráfica, oferecem muito mais recursos para o ciurugião, como a fusão e reconstrução de imagens de vários métodos de imagem e com atlas histológicos, trazendo uma verdadeira revolução no campo da estereotaxia da década de 1990 em diante.
Procedimentos estereotácticos Na época de sua criação a estereotaxia, conforme utilizada por Spiegel e Wycis, auxiliou o primeiro procedimento para atingir o núcleo dorsomediano do tálamo, sem visão direta e com precisão milimétrica, transpondo coordenadas do atlas para a ventriculografia, a fim de tratar agitação comportamental de um paciente psicótico48-50'53. A partir de então, vários outros procedimentos estereotácticos foram propostos visando o tratamento de doenças psiquiátricas2, tais como: amigdalotomia bilateraiS\ hipotalotomia para o tratamento da violência sexual55, hipotalotomia posterior para esquizofrenia complicada pela auto ou heteroagressividade56'57 , cingulotomia anterior58 -61 , capsulotomia anterior62 -6\ tractotomia subcaudata65,66 e leucotomia límbica32'67 . Mais tarde, apenas quatro destes procedimentos foram utilizados regularmente em centros altamente especializados. James Pa-
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pez tinha apresentado, em 1937, a proposta de um circuito relacionado às emoções, estabelecendo que a informação neural emocional era propagada entre os giros do cíngulo e parahipocampal, o hipotálamo e o tálamo por feixes específicos de fibras, como o fascículo do cíngulo, o fórnix, o trato mammilotalâmico e as radiações talâmicas68• Esse conceito influenciou o que mais tarde viriam a ser as teorias sobre o sistema límbico69-7 1 • A proposta deste circuito funcionou como justificativa teórica a Sir Hugh Cairns quando este tentou desligar a porção anterior do lobo frontal e giro do cíngulo relacionados ao processamento de informações emocionais secccionando o fascículo do cíngulo47. Esse procedimento foi em 1967, convertido em um procedimento estereotáctico por Ballantiné58 • Contemporaneamente, a cingulotomia anterior é em geral realizada bilateralmente utilizando o método estereotáctico juntamente com métodos de imagem, como a tomografia e a ressonância magnética por coagulação por radiofrequência, que produz uma lesão circunscrita e reprodutível pelo controle de temperatura aplicada ao tecido cerebral. A lesão é realizada entre o terço anterior e médio do giro do cíngulo e localizada logo acima do corpo caloso 60'72'73 • A cingulotomia anterior é utilizada no tratamento da dor crônica58 , do transtorno depressivo maior59' 6 1 e do transtorno obsessivo-compulsivo 60,61 resistentes ao tratamento convencional. É relatado resultado positivo entre 40 e 60% dos pacientes submetidos a cingulotomia59' 6 1• Os efeitos colaterais foram relatados como pouco frequentes 58-61 , principalmente de crises no perioperatório (1 %) e incontinência urinária59,60'72 • Foi também relatado um número não negligenciável de suicídios (1 a 9%) 59,60 entre os pacientes tratados, embora parte destes casos possa ser atribuída, provavelmente, à psiquiátricas subjacentes doença que não tenha havido melhora apreciável. Em 1949, Jean Talairach descreveu outro procedimento bastante importante até os dias de hoje, a capsulotomia anterior, correlacionando achados de autópsia e sua relação com os efeitos clínicos após a lo botomia frontal. Talairach propôs desconexão das fibras frontotâlamicas, comunicação entre giro cíngulo anterior subgenual e do córtex órbito-frontal e mediai e os núcleos anterior e dorso mediai do tálamo 4' 56'64 • Deste modo, um procedimento mais restrito diferente das lobotomias frontais poderia ser realizado segundo do método estereotáctico por eletrocoagulação através de um eletródio colocado entre o terço médio do braço anterior da cápsula interna, alinhado ao forame interventricular de Monro 64 • O mesmo procedimento também foi proposto por Lars Leksell, na Suécia, utilizando-se outro instrumento, a aplicação de radiação ionizante em altas doses, segundo o método estereotáctico para inativar o mesmo alvo da capsulotomia por termocoagulação56,63. A capsulotomia anterior é especialmente eficaz contra transtorno obsessivo compulsivo, pro-
movendo melhora duradoura variável entre 48 e 78%4,56,62,63,74. Os efeitos colaterais são geralmente pouco importanntes e transitórios - cefaleia, incontinência urinária, confusão mental e ganho de peso. Cansaço e falta de iniciativa também fazem parte dos efeitos adversos encontrados. Estaletargia, apesar de geralmente transitória, pode durar várias semanas ou até meses, com recuperação plena, contudo, em praticamente todos os casos4,56,61-63,74 . Leucotomias frontais mais restritas, visando a inativação de conexões entre o córtex órbito-frontal, tálamo e o sistema límbico, foram propostas por Scoville, no final de 194046 • Geoffrey Knight modificou este procedimento, restringindo a lesão original para apenas 2 centímetros, logo abaixo do núcleo caudado, denominando, assim, este procedimento de tractotomia subcaudata. Em 1961, modificou o método, convertendo a cirurgia aberta para um procedimento estereotáctico46,65,66,75,76. Segundo o método estereotáctico, a tractotomia subcaudada é realizada pela insersão estereotáctica bilateral filamentos de Ítrio (Y90) de 7 milímetros de comprimento por meio de sondas colocadas na substância branca frontal, logo anterior inferiomente à cabeça do núcleo caudado65,66,75 • Radiação beta de meia-vida curta pelos filamentos de ítrio produziam a lesão dos tecidos vizinhos até 2 mm da superfície das hastes, resultando em lesões bilaterais de 20 X 20 X 5 milímetros mesma região 65,66,75. Atualmente, as lesões são produzidas em forma semelhante por radiofrequência, pois a produção do ítrio foi interrompida em 199565,76• A tractotomia subcaudada estereotáctica foi muito utilizada no tratamento de transtornos afetivos resistentes, transtorno obsessivo-compulsivo e ansiedade refratária65,77 -79 com descrições de respostas positivas entre 40 e 70% nas condições supracitadas65'76-79• No Reino Unido, mais de 1.300 pacientes foram tratados com tractotomia subcaudata estereotáctica, sendo que os efeitos adversos mais comuns foram desorientação transitória pós-operatória ( 10%) e convulsões (1,8%) 65'76-79 • Na tentativa de diminuir o grau de lesão compreendida nos procedimentos estereotácticos frontais, os autores acabaram por reduzir demasiadamente os alvos de ablação acabando por tornar os procedimentos inefetivos. Com o intuito de corrigir os procedimentos para adicionar efetividade, Desmond Kelly e Alan Richardson introduziram a chamada leucotomia límbica, em 1973. Leucotomia límbica combinava a tractotomia subcaudata com a cingulotomia anterior realizada por lesão em ambos os alvos, por termocoagulação estereotáctica3A,J3,32' 67' 80. Esta servia-se a interromper as fibras orbitofrontais as fibras no circuito de Papez, ou circuito límbico proposta de emoção 13,68 • Leucotomia límbica, como os procedimentos descritos anteriormente, foi utilizada principalmente no tratamento de depressão e transtorno obsessivo-compulsivo resistentes, com taxas de resposta em torno de 36 e 50%4'67 • Os efeitos colaterais também são comuns a outros procedimentos, anteriormente descritos, e ocorrem em baixa fraquência: cefa-
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leia transitória, letargia, incontinência urinária e convulsões4' 32'80 • Os quatro procedimentos estereotácticos descritos acima foram utilizados durante os últimos 50 anos em mais de 5.000 pacientes que sofriam de depressão maior, ansiedade e transtorno obsessivo-compulsivo resistente a outros tratamentos. Embora estes pacientes eram gravemente afetados pelas sindromes psiquiátricas correspondentes, os procedimentos instituídos foram geralmente eficazes em mais da metade dos casos e os efeitos colaterais foram mantidos a números razoavelmente baixos. Os mais prevalentes foram: convulsões, cefaleia e confusões mentais transitórias, enquanto os déficits permanentes como apatia e incontinência urinária foram observados em menos de 5% dos casos.
A neuromodulação moderna Os procedimentos psicocirúrgicos descritos até o momento foram todos baseados em técnicas ablativas, ou seja, lesão de áreas cerebrais ou, mais frequentemente, interrupção de fibras nervosas que conectam o lobo frontal com estruturas límbicas, localizadas mais caudalmente no encéfalo. No entanto, nos últimos 20 anos, as técnicas antes aplicadas na medula espinhal para tratamento de dor foram propostas para aplicação encefálica superficial ou profunda e pouco a pouco foram sendo testadas para várias doenças como Parkinson, distonia e dor neuropática, resistentes a outros tratamentos, assim como doenças de foro psiquiátrico. Com a aplicação de corrente elétrica localizada e dirigida pelo implante de eletródio é possível influenciar e modificar de modo reversível o funcionamento de certas regiões do encéfalo e alterar a atividade ou função dos circuitos. Essa modalidade de tratamento cresceu rapidamente em indicações e em número na esfera psiquiátrica e, atualmente, é aplicada em várias condições como: depressão maior, transtorno obssessivo compulsivo e síndrome de Gilles de La Tourette 14, 15 • No entanto, os efeitos da estimulação elétrica pode mudar conforme os parâmetros de frequência, amplitude e comprimento de onda, a tal ponto do efeito ser antagônico, a exemplo da baixa frequência, que em núcleos subcorticais estimula a atividade dos neurônios, enquanto a alta frequência os bloqueia. As possibilidades de interação do sistema de estimulação e o tecido cerebral são múltiplas e por isso a neuromodulação pode ser promissora, além de ser um método seguro por ser reversível.
Desenvolvimento da neurocirurgia funcional aplicada à psiquiatria A cirurgia psiquiátrica impulsionou a criação e utilização em maior escala do método estereotáctico, mesmo antes de sua utilização em cirurgia de distúrbios do movimento, o que trouxe aprimoramento da técnica ao
longo dos anos. Ou seja, a estereotaxia não só foi mantida na prática clínica, como foi acrescida de várias novas aquisições tecnológicas que elevaram a precisão espacial, a localização de alvos e a possibilidade de simulação do procedimento e, com isso, a escolha da trajetória dos eletródios evitando regiões vitais, além da determinação mais refinada do próprio alvo do implante, pela utilização de recursos avançados de computação gráfica com melhor entendimento da anatomia funcional e maior reprodutibilidade. A estereotaxia também tem a vantagem dos procedimentos cirúrgicos serem minimamente invasivos, pois as incisões e aberturas cranianas são tradicionalmente diminutas e podem ser facilmente realizadas sob anestesia local. Isso permite que os pacientes participem dos pro cedimentos de testagem intraoperatória, tanto do alvo quanto para eventuais efeitos colaterais da estimulação. A utilização de métodos de neurofisiologia aplicada a neurocirurgia funcional pode adicionar ainda maior precisão aos procedimentos, pois a identificação dos padrões de atividade neuronal de cada núcleo ou sua ausência na substância branca auxilia muito o refinamento dos alvos de implante de eletródios de estimulação. Além da melhora na precisão dos alvos, o registro eletrofisiológico ainda permite um campo enorme para investigação científica e correlação da atividade neuronal com os comportamentos do paciente desperto. Mais recentemente propusemos a utilização de técnicas de microdiálise que possibilitem a aferição dinâmica de várias substâncias, entre elas neurotransmissores e seus metabólitos, com a possibilidade de se correlacionarem tanto com a atividade neuronal quanto com os comportamentos. Esse tipo de pesquisa pode ampliar muito os conhecimentos atuais de como fun cionam os circuitos cerebrais em determinadas doenças neurológicas e psiquiátricas. As técnicas modernas de neuromodulação, por conseguinte, abrangem também a utilização de terapia celular - com implante de células-tronco originadas de vários tecidos- , terapia gênica - na qual vetores injetados em determinados alvos encefálicos têm a propriedade de introduzir genes que codificam proteínas e consequentemente alteram o funcionamento das neurônios - e a estimulação profunda do tronco cerebral, que é uma tendência atual de abordagens neurocirúrgicas funcionais. Com o refinamento e aumento da precisão das técnicas de estereotaxia moderna o tronco cerebral passou a ser um possível alvo para intervanções neurocirúrgicas funcionais sem que haja morbidade. A experiência acumulada com a estimulação elétrica cerebral em doença de Parkinson nos demonstra que há uma relação inversa entre a seletividade e a efetividade dos procedimentos desde o córtex até o tronco cerebral. A neuromodulação é um método conservador e reversível e por isso pode ser aplicado em regiões que não são passíveis de se realizar lesões, por alto índice de morbidade. É possível efetuar medulação da atividade desde o córtex motor, tálamo, globo pálido interno, núcleo sub-
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talâmico e núcleo pedunculopontino. A estimulação do córtex motor tende a ser bastante seletiva, ou seja, apenas alterações motoras são observadas, mas sua efetividade está em torno de 30%. Enquanto que no núcleo subtalâmico a efetividade da estimulação é grande, em torno de 85 a 90%, a seletividade deixa a desejar por alterar também o comportamento, com indução de impulsividade e eventualmente depressão. Atualmente, cerca de 75 mil foram operadas para implante estereotáctico de eletródios cerebrais para o tratamento de diversas doenças, princapalmente doença de Parkinson, tanto do núcleo subtalamico quanto do globo pádido interno com resultados muito interessantes, o que demonstra que doenças funcionais do encéfalo humano podem ser tratadas de modo eficaz e seguro, resultando em diminuição sustentada dos sintomas parkinsonianos 14' 15 • Os eletródios de estimulação cerebral profunda têm vários contatos dispostos sequencialmente desde a extermidade distai, que permitem a estimulação com numerosas combinações de diferentes parâmetros de estimulação e de ativação de pólos negativos e positivos com derivações bipolares ou monopolares em áreas adjacentes sem a necessicade de alterar a localização eletródio. O eletródio é conectado a extensões e delas a um estimulador implantado na região subcutânea do tórax, que permite o controle de parâmetros, frequência, largura de pulso e amplitude. O uso de técnicas de estimulação profunda do cérebro foi ampliado para o tratamento de transtornos psiquiátricos graves, como transtorno obsessivo-compulsivo - com eletródios implantados na porção anterior da cápsula interna ou caudado ventral - e depressão resistente - com os eletródios colocados na área cortical subgenual. Embora tenham sido realizados em pequeno número e o acompanhamento dos pacientes operados ainda não seja suficientemente longo, essa técnica tem demonstrado resultados promissores para a utilização futura de neuromodulação na psicocirurgia, visto que a maioria das doenças psiquiátricas são alterações disfuncionais e não degenerativas 15. Esta técnica pode, portanto, representar uma modalidade de tratamento valiosa para pacientes neuropsiquiátricos que não obtiveram benefício real com tratamentos medicamentosos 15.
neurocirúrgico. Apesar de eventos hemorrágicos serem relativamente comuns, as hemorragias intracerebrais ou subdurais raramente têm manisfestações clínicas sem mordidade considerável. Em geral, as hemorragias tendem a ser mais comuns em procedimentos ablativos do que em procedimentos de implantes de eletródios para neuromodulação. Por outro lado, a infecção relacionada ao procedimento cirúrgico é mais frequente em implantes e muito menor em procedimentos ablativos, pois no primeiro há corpo estranho implantado, o sistema de estimulação, o que predispõe as infecções relacionadas a próteses. No entanto a morbidade geral atribuída a este tipo de infecção é baixa, pois em geral são infecções de partes moles sem envolvimento do sistema nervoso central. Por fim, é importante lembrar que as técnicas neurocirúrgicas, juntamente com as novas tecnologias, devem ser aplicadas em pacientes selecionados por equipe dedicada e multidiciplinar, fazendo análise de condições sociais para cuidados básicos, acompanhamento familiar, diagnóstico psiquiátrico estruturado, tratamentos prévios e critérios de refratariedade clínica, avaliação cognitiva e neuropsicológica completas. Além disso, procedimentos psicocirúrgicos deverão ser realizados em centros de excelência em neurocirurgia e psiquiatria, idealmente universitários, que tenham equipes de profissionais bem formados e estáveis para fazer o acompanhamento a longo prazo. Procedimentos que envolvem neuromodulação têm seu efeito reversível e a estimulação, em geral, não é percebida pelo paciente, o que propicia que estudos controlados encobertos com exposição cruzada possam ser realizados gerando, assim, resultados com alto nível de evidência.
Considerações finais
c) d) e)
A história da psicocirurgia combinada com conhecimento atualizado sobre as possíveis aplicações das técnicas neurocirúrgicas aliadas as técnicas de neuromodulação que estão em franco desenvolvimento tecnológico assim como e protocolos de avaliação em todo o mundo estão sendo realizados para estabelecer a eficácia do método em várias doenças e vários alvos de implante possíveis de serem aplicados em doenças neuropsiquiátricas. No entanto, é importante lembrar que os procedimentos neurocirúrgicos funcionais ablativos, como os modulatórios, apresentam risco inerentes a qualquer procedimento
Questões 1. Sobre o significado do estudo de casos, como o de Phineas
a) b)
Gage, para o desenvolvimento do conhecimento sobre neuroanatomia funcional: Demonstrou que o indivíduo poderia sobreviver mesmo com graves lesões do sistema nervoso central. Estabeleceu a relação entre comportamento social humano e lesões do lobo frontal. Demonstrou que o lobo frontal não tinha função motora. Não deu grande importância para o assunto. Demonstrou que as funções relacionadas ao comportamento social em nada se relacionam com regiões específicas no cérebro humano.
2. Estudos envolvendo lesões encefálicas e comportamento em primatas, como os de Jacobsen e Fulton, demonstraram que: a) Os animais não são capazes de raciocinar. b) Primatas não consegu iram desenvolver habilidades necessárias para memorização de longo prazo. c) Primatas após lesão dos lobos frontais não foram capazes de jogar cartas.
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d) Há correlação entre lobos frontais e o controle da ansiedade e agressividade relacionada ao controle das frustrações. e) Os lobos frontais estariam relacionados apenas a aquisição de linguagem.
3. Sobre procedimentos cirúrgicos para tratamento de doenças psiquiátricas: a) São proced imentos simples e podem ser realizados em qualquer serviço médico. b) O método estereotáctico atualmente não é mais utilizado pois tornou-se obsoleto. c) O método estereotáctico, quando foi introduzido em procedimentos neurocirúrgicos contribuiu para melhora da precisão e menor invasividade. d) Procedimentos abertos são mais precisos, pois o cirurgião pode ter o controle visual das estruturas cerebrais. e) Não se deve utilizar métodos de imagem em cirurgias estereotácticas pois a distorsão espacial compromete a precisão dos procedimentos. 4. Sobre as perspectivas do tratamento de doenças por procedimentos cirú rgicos: a) Atualmente não são realizados, pois não há experiência de proced imentos desta natureza. b) Devem ser baseados apenas em exames de imagem e não em métodos funcionais pois houve um avanço grande na área. c) A tendência é que estes procedimentos caiam em desuso pois os fármacos têm resultados em todos os doentes. d) Métodos de neuromodulação por meio de implantes de eletródios profundos devem substituir em parte os procedimentos ablativos. e) A infecção relacionada aos implantes não é mais preocupação real pois as novas tecnologias em neuropróteses já prevêem erradicação de todas as infecções. 5. Sobre o método estereotáctico : a) Baseia-se em três princípios básicos : referência espacial por método de imagem, acoplamento entre imagem e o encéfalo real dado pela fixação esquelética e sistema milimétrico de coordenadas cartesianas para localização de alvos no espaço. b) Com as novas tecnologias os sistemas ditos "trame /ess" são mais precisos que os baseados em fixação esquelética. c) Os atlas de anatomia seccional utilizados na atualidade anatômicos são podem ser fundidos com as imagens do paciente e fazem desnecessários quaisquer outros métodos de registro da anatomia funcional. d) É utilizado em procedimentos cirú rgicos apenas e) Os atlas de anatomia seccional utilizados na atualidade podem ser fundidos com as imagens do paciente, o que faz desnecessário o uso de quaisquer outros métodos de registro funcional.
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Psiquiatria, Psicologia e Psicanálise
Ariel Bogochvol
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 70
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Aspectos históricos, 72
1. Delimitar os campos da psiquiatria, psicanálise e psicologia.
Histórias do sentido, 73 O sentido do sintoma, 75 Formações do inconsciente - significante e significado, 76 A psicanálise da psicopatologia, 77 Tratamento psicanalítico, 79 Filosofia, psicologia, ciências humanas, epistemologia, psiquiatria e psicanálise, 82 Referências bibliográficas, 84
2. Conhecer aspectos históricos destas disciplinas. 3. Conhecer os modelos teóricos vigentes à época do nascimento da psicanálise. 4. Compreender a maneira como a problemática do sentido e da significação se introduziu no campo psiquiátrico. 5. Conhecer os modelos freudianos e lacanianos. 6. Apreender o modo como opera o tratamento psicanalítico. Z Discutir as relações entre psiquiatria, psicanálise, psicologia, filosofia e epistemologia.
Introdução Um artigo que pretenda tratar das relações entre psiquiatria, psicologia e psicanálise deve tomar algumas precauções. A primeira é limitar suas pretensões: não é possível falar da psiquiatria, da psicologia ou da psicanálise, porque sob estes termos abrigam-se disciplinas, teorias, doutrinas, práticas múltiplas e contraditórias. Tanto seu agrupamento em campos específicos quanto a possibilidade de definir o traço comum na multiplicidade do que se costuma incluir em cada grupo são problemáticos. Seria melhor falar das psiquiatrias, das psicologias e das psicanálises, já que essa maneira plural mostra o que se esconde sob a unidade dos termos.
O Novo dicionário básico da língua portuguesa Folha/ Aurélio8 define a psiquiatria como um parte da medicina que se ocupa do estudo e do tratamento das doenças mentais; a psicologia como ciência dos fenômenos psíquicos e do comportamento; a psicanálise como um método de tratamento das desordens mentais criado por Sigmund Freud. A simplicidade destas definições não deve iludir. Basta aprofundar um pouco a discussão para que as dificuldades apareçam: a psiquiatria é um ramo da medicina como outro qualquer? As doenças mentais se comportam como as doenças do corpo? A psicologia engloba a psicanálise? A psicanálise é uma parte da psiquiatria?
Na mitologia grega, a bela psyché é a humana por quem o deus Eros se apaixonou, contrariando Afrodite, sua mãe, e que só poderia ficar com ele na condição de nunca conhecer sua identidade (Figura 1). O radical psyché significa alento, sopro de vida, alma, espírito, sentimento, inteligência6. Os seus derivados - psiquiatria/psicologia/psicanálise - teriam como traduções naturais medicina/ estudo/tratamento da alma/ espírito não fossem as ressonâncias filosóficas e religiosas destes termos. Tanto a psiquiatria como a psicologia possuem longo passado, mas história curta. Desde a Antiguidade, pensadores, filósofos e teólogos dedicaram -se à reflexão sobre a natureza humana - pensamento, linguagem, sentimentos, loucura - , mas somente ao longo do século XIX a psiquiatria se estruturou como um ramo especial da medicina e a psicologia se separou da filosofia, tornando-se ciência autônoma. A história da psicanálise é ainda mais curta, e sua fundação é datada em 1900 19 . Nascidas ou consolidadas no final do século XIX, estas disciplinas se dividiram ao longo do século XX, na medida em que seus objetos originais se mostraram mais complexos, diferentes das primeiras idealizações. O conceito de doença mental, por exemplo, que norteou o discurso psiquiátrico durante certo tempo, foi revisto em várias frentes. O fracasso do modelo das "entidades mórbidas': a demons-
7 PSIQUIATRIA, PSICOLOGIA E PSICANÁLISE
Figura 1
Eros e Psyche, de Jacob Zucchi.
tração da existência de outras causalidades além da orgânica, a emergência do psíquico onde só se considerava o organismo, a reflexão sobre as condições e as consequências sociais do discurso psiquiátrico, a crítica de suas instituições, tudo isso promoveu a multiplicação de teorias e dos modos de conceber a doença mental e sua terapêutica. O mesmo processo, com suas particularidades, foi verificado na psicologia, que se desdobrou em vários setores além da psicopatologia - hospital, educação, trabalho, instituições, relações sociais - e assistiu à multiplicação de objetos de pesquisa, teorias e práticas. É definida como teoria geral da conduta, síntese da psicologia experimental, psicologia clínica, psicanálise, psicologia social e etnologia35 e pergunta-se se, de fato, há algum elemento comum que permita reuni-las em uma ciência única5. Quanto à psicanálise, S. Freud a definiu como: 1) um processo de investigação de processos mentais inconscientes; 2) uma forma de tratamento de transtornos neuróticos; 3) uma série de concepções psicológicas adquiridas por esses meios e que se juntam progressivamente em uma nova disciplina científica38 • Mesmo antes de sua morte, ocorreram dissidências significativas e, ao longo do século XX, assistiu-se à divisão da psicanálise em várias correntes que se questionam mutuamente. Estas disciplinas não só se dividiram internamente, como se interpenetraram, influenciando-se reciprocamente. São variadas as suas relações: nosográfica, nosológica, psicopatológica, etiopatogênica, terapêutica, institucional, política, filosófica, ética, epistemológica. Estas influências recíprocas não se deram sem conflitos e combates "internos" e "externos", com resultados variados. Em cada período, houve a combinatória e o predomínio de determinadas concepções.
No discurso corrente, a psicanálise está sob ataque e ocupa uma posição defensiva, ao contrário do que ocorria há 30-40 anos, quando a psiquiatria psicodinâmica era hegemônica. Vive-se, na atualidade, a "Era da Morte de Freud': como é anunciada bombasticamente na mídia. A morte de Freud, aliás, já foi anunciada inúmeras vezes. Dessa vez, sua teoria teria sido suplantada pelas neurociências e pelas terapias cognitivo-comportamentais em variadas versões. Independentemente da realidade ou fantasia dessa morte, seu anúncio reiterado indica a mudança da ciência, da psiquiatria e do lugar que a psicanálise ocupa nestes discursos. Na psiquiatria, a perspectiva localizacionista cedeu lugar a uma perspectiva funcionalista, que enfoca as disfunções da atividade cerebral em um nível molecular, bioquímico, fisiológico. A neurofisiologia fornece diversos modelos teóricos desse funcionamento e de suas alterações. A psicofarmacologia amplia a gama de medicações oferecidas. A neuropsicologia analisa a relação entre os sistemas neurais e as atividades psíquicas. A genética busca encontrar os elementos primários do funcionamento psicobiológico. Técnicas de neuroimagem possibilitam a visualização da anatomia e do funcionamento do cérebro. Com seus avanços, a psiquiatria se incluiu com plenos direitos na medicina e na ciência em que ocupava, até há pouco tempo, posição marginal pela ausência de modelos científicos, de verificações experimentais ou de resultados baseados em evidências. A hipótese de que alterações da neurotransmissão cerebral, herdadas ou adquiridas, sejam a via final comum dos diversos quadros psiquiátricos é, no momento, hegemônica. A dopamina, a serotonina, a noradrenalina, o GABA, os receptores e suas mútuas relações nas sinapses de determinados sistemas neurais estão implicados na causa das depressões, das esquizofrenias, das fobias, ob sessões, angústia, agressividade... A ação dos psicofármacos demonstra a eficácia, mas também os limites desses modelos. A psiquiatria biológica, outrora ramo especial da psiquiatria dedicado à investigação dos aspectos neurobio lógicos da atividade psíquica, tornou -se uma concepção abrangente da clínica. Sua vertente mais extrema pretende reduzir a psiquiatria à biologia e postula que o campo psiquiátrico opera estritamente com base em uma bio/lógica, não havendo lugar para outras 'lógicas'. Em um plano metafísico, afirma que as doenças mentais têm causas orgânicas e, em um plano crítico, admite apenas um tipo de causalidade37. Para essa concepção, o desenvolvimento da psiquiatria e das neurociências teria demonstrado a falácia da psicanálise e decretado sua falência. A biologia, em suas várias ramificações, é a ciência de vanguarda da hipermodernidade e serve de apoio para a produção de discursos filosóficos, políticos e ideológicos. O biologicismo é uma concepção ampla que afeta a psiquiatria, as ciências e a vida social. Amparada pela mí-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 1
A PSIQUIATRIA E SEUS LIMITES
dia e envolvendo interesses econômicos, difunde-se a ideia de que o mal-estar do homem é causado por um desajuste biológico, tratável biologicamente. O homem "desbussolado" da pós-modernidade9 encontra amparo na ideia de que seu sofrimento é uma disfunção tratável pela medicina como outras disfunções e doenças quaisquer. Este discurso tem como pressupostos que o homem é um ser natural, neuronal, que o cérebro e a mente obedecem a leis estritamente biológicas e que a doença mental é uma doença do cérebro. Propõe uma psiquiatria sem psiché ou reduzida a propriedades elementares dos neurônios. Contra este discurso, pode-se argumentar que a natureza do homem é histórico-cultural, que seu ser é simbólico, que seu cérebro responde a estímulos não biológicos, que sua mente é uma propriedade emergente de um órgão biossemântico48 que se desenvolve apenas se estiver imerso em um mundo de linguagem, com suas leis. Nessa concepção, a doença mental é uma "doença do sujeito" (ver adiante conceito de sujeito). Define-se a psiquiatria como um ramo especial da medicina, um campo de saber-fazer (savoir faire), em que se articulam disciplinas e discursos contraditórios em seus objetos e métodos e que gravitam em torno da psicopatologia. Sua estrutura é a de um mosaico, um quebra-cabeça constituído por múltiplas referências teóricas e práticas. Ramo especial da medicina, ela não é abarcável inteiramente pela biologia3 . Para Jaspers, fundador da psicopatologia geral, esta ciência básica da psiquiatria seria dupla, médica e não médica, ligada às ciências naturais e às ciências do sentido. Neste campo, a psicanálise como as psicologias se incluem, legitimamente, como atesta a história da psiquiatria. As relações entre psiquiatria, psicologia e psicanálise podem ser abordadas com base em diferentes perspectivas que se entrelaçam intimamente. Podem ser feitas somente de forma parcial. Isso implica escolhas, modos de delimitar, analisar e interpretar o tema. Trata-se de uma situação inevitável em função da matéria mesma de que se trata.
ção de seu Lehrbuch der psychiatrie de 1899 sintetizou a nosologia e a nosografia de seu tempo e continua a ser uma referência nos dias de hoje. A psiquiatria reuniu, naquele período, uma série de disciplinas clínicas (nosologia, semiologia), biológicas (anatomia, fisiologia), psicológicas, filosóficas em torno de sua disciplina nuclear, a psicopatologia. As psicologias do século XIX, que serviram de base para a elaboração do discurso psiquiátrico, herdaram do iluminismo a preocupação de filiar-se às ciências da natureza com seus ideais de quantificação, de matematização, de busca de leis gerais e procuravam seus esquemas de análise nos métodos e modelos destas ciências. Três modelos, que se influenciaram mutuamente, predominaram 11: 1) Modelo físico-químico, definido por J. S. Mill, em 1851, na Logique. Os fenômenos do espírito como os fenômenos materiais exigem duas formas de pesquisa: a primeira tenta, com base em fatos, o acesso a leis mais gerais, segundo o princípio da universalização newtoniana; a segunda, como a análise química, reduz os fenômenos complexos a elementos simples, segundo os princípios de redução de Lavoisier. Este modelo é o denominador comum de todas as psicologias associacionistas e da análise elementar, que serviram de base tanto para a psicanálise como para o comportamentalismo e para a teoria da aprendizagem. 2) Modelo orgânico: não se busca definir o domínio psicológico com base nas coordenadas da física ou da química, mas na sua natureza orgânica e biológica, tal como se conhece depois de Bichat e de Claude Bernard. O psiquismo, como o organismo, é caracterizado por sua espontaneidade, sua capacidade de adaptação e seus processos de regulação internos. Baseando-se nos princípios da escola de Helmoltz, Wundt, em 1874, ao retomar o problema da atividade específica do nervo e Fechner, em 1877, com base na análise das relações entre a estimula-
Aspectos históricos No final do século XIX, a convergência de fatores sociais, políticos, econômicos, filosóficos, científicos e culturais resultou em um período de grande efervescência no "campo psi" (termo contemporâneo que designa genericamente todos os discursos que se aplicam aos fenômenos psicológicos, normais ou patológicos, independente de suas especificidades). Para a psiquiatria, foi o momento que coroou todo um esforço de descrição, classificação e explicação de sua clínica, que teve seus pontos de apoio nas obras de alie nistas, neurologistas e psiquiatras como Pinel, Esquirol, Baillarger, Griesinger, Kalbahum, Cotard, Charcot, Seglas e seu apogeu na obra de Kraepelin (Figura 2). A 6a edi-
Figura 2
E. Kraepelin.
7 PSIQUIATRIA, PSICOLOGIA E PSICANÁLISE
ção e o efeito sensorial, ressaltaram que o aparelho psíquico não funcionava como um mecanismo, mas como um conJunto orgamco, CUJas reaçoes eram ongma1s e Irredutíveis às ações que os desencadeavam. Este modelo orientou as pesquisas psicofisiológicas e as pesquisas sobre as regulações internas do psiquismo, como dor, prazer, tendências, sentimentos, vontades. 3) Modelo evolucionista: Spencer publicou seu Systeme de philosophie em 1875, baseado nas ideias de Darwin, em que descreve a evolução do indivíduo ao mesmo tempo como um processo de diferenciação - movimento horizontal de expansão para o múltiplo - e por um movimento de organização hierárquica - movimento vertical de integração na unidade. Assim teriam procedido as espécies no curso da evolução, as sociedades no curso da história e o indivíduo em sua gênese psicológica. H. Jackson, na neurologia, e T. Ribot, na psicologia patológica, retomaram as teses spencerianas. O evolucionismo foi a primeira corrente a mostrar que o fato psicológico não tem sentido senão com relação a um passado (as estruturas anteriores que o determinam) e a um futuro aberto sobre o eventual, sobre o acaso. Esperava-se que a psicologia pudesse esclarecer tanto o funcionamento "normal" quanto o funcionamento "patológico". Apesar do ideal de representar para a psicopatologia, aquilo que a fisiologia era para a fisiopato logia, havia um evidente descompasso entre o projeto destas psicologias e as possibilidades de aplicá-las ao campo clínico. Só de maneira periférica a psicologia e a psicopatologia se aproximavam, mesmo que o projeto científico fosse o mesmo. Toda a história da psicologia de meados do século XIX até o século XX trata das contradições entre o projeto desta psicologia científica, seus postulados e suas conclusões. Ao perseguir o ideal de exatidão e rigor das ciências natu•
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rais, ela foi levada a reconhecer, na realidade humana, outra coisa que não um setor da objetividade natural e, portanto, obrigada a renunciar a seus postulados e a utilizar outros métodos, diferentes das ciências da natureza. Descobrindo um novo status do homem, teve de se impor, como ciência, um novo estilo, buscar novos princípios e desvelar para si mesmo um novo projeto 12 • Às forças físicas, químicas e biológicas/orgânicas, acrescentava-se a realidade do sentido.
Histórias do sentido A entrada em cena do "sentido:· fez-se, no final do século XIX, por caminhos bem diversos, mas que pertenciam a uma paisagem comum. Tratava-se de deixar de lado as hipóteses amplas e gerais, pelas quais se explicava o homem como um ser natural, e retomar de forma mais rigorosa o exame da realidade humana de acordo com sua própria medida e daquilo que escapava do natural. Tomar o homem em seu próprio nível, nas condutas nas quais se exprimia na consciência em que se reconhecia, na história pessoal por meio do qual ele se constituía13 . Na Introdução às ciências do espírito, de 1883, W Dilthey (Figura 3) defende a ideia de que o homem não aprende o que ele é ruminando sobre si mesmo, mas pela história. A história lhe ensina que ele não é um elemento segmentar de processos naturais, mas uma atividade espiritual, cujas produções depositam-se, sucessivamente, no tempo como atos cristalizados e significações silenciosas7. Seria necessária uma análise dos produtos do espírito, uma hermenêutica, destinada a dar acesso a um apanhado sobre a gênese do conjunto psicológico. Não se trata de explicar o espírito por outra coisa do que por ele próprio. É preciso, antes de tudo, compreendê-lo com os meios apropriados. O tema da compreensão como método próprio das ciências históricas, em oposição à explicação causal, método próprio das ciências naturais, foi retomado pela fenomenologia de Husserl, que fez da descrição rigorosa do vivido o projeto de toda a filosofia tida como ciência. A compreensão conservou sua validade, mas em vez de fundamentá-lo em uma metapsicologia do espírito, como Dilthey, a fenomenologia estabeleceu-a sobre uma análise do sentido imanente a toda a experiência vivida. K. Jaspers (Figura 4) publicou a Psicopatologia geral em 1913, baseada em alguns desses princípios. A feno menologia jasperiana propunha-se a estudar a vivência psíquica individual no marco de uma psicologia descri*Há um debate sobre os significados das palavras "significação" e "sentido:' Ver, por exemplo, M. Selaibe, Sentido e significação. Informações retiradas da Internet Universitária, comentado por Mirian Chneiderman em Resena de ensaio clínico sobre o sentido. No texto, "significação" e "sentidô' serão utilizados indistintamente.
Figura 3
W. Dilthey.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Figura 4
Figura 6
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SEÇÃO 1
A PSIQUIATRIA E SEUS LIMITES
K. Jaspers.
Charcot.
tiva dos fenômenos da consciência25. Seu método permitiu distinguir, entre os fenômenos patológicos, aqueles , . . . que eram compreensiveis, que transcornam em mew a uma ordem de sentido e significação, e fenômenos incompreensíveis, sem sentido, que escapavam dos modos habituais de significação e rompiam com as relações de compreensão. Denominou "desenvolvimento" os fenô menos compreensíveis, abordáveis pelas ciências do sentido, e "processos" os incompreensíveis, abordáveis pelas CienCias naturais. Sua psicopatologia geral é dualista do ponto de vista do objeto e do método. Parte da hipótese de uma divi• A
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o
Figura 5
P. Janet.
são intrínseca do campo psicopatológico entre o compreensível e o incompreensível, entre o desenvolvimento e o processo, entre as ciências do sentido e as ciências da natureza. De qualquer forma, ressalta a necessidade de utilizar outros meios, derivados das ciências históricas e do sentido, na abordagem do fenômeno psicopatológico. A psicopatologia fenomenológica deu origem a Daseinanalyse, que descreve não apenas as formas da vivência, mas as formas da existência, analisando o ser no mundo característico de grandes estruturas psicopatológicas como ilustram as obras de L. Biswanger e E. Minkowski. P. Janet (Figura 5), que trabalhou com Charcot (Figura 6) em Salpetriere dirigindo o laboratório de psicologia experimental, é mais um dos autores que saíram do quadro naturalista. Definiu o tema da psicologia como a conduta real do indivíduo humano, entendendo por conduta a reação submetida à regulação, cujo desenrolar depende dos resultados que obtém de sua ação. A regulação pode ser interna, pelos sentimentos, ou externa, pela conduta dos outros. A doença, em sua concepção, não é nem um déficit nem uma regressão, mas um distúrbio dessas regulações 14 • Para Janet, o psiquismo não é, em si mesmo, unitário, mantendo-se integrado pela ação de uma força interna de síntese de seus diversos elementos ideativos e afetivos. Sua teoria psicopatológica examina os fatores que podem conduzir à ruptura e consequente dissociação. A histeria é o protótipo dessa situação. Formado em filoso fia, em 1889, com uma tese sobre o Automatisme psychelogique, e em medicina, em 1892, com uma tese sobre I.:état mental des hystériques, P. Janet introduziu vários conceitos, alguns usados por S. Freud na psicanálise. De 1902 a 1936, foi o responsável pela cadeira de psicologia experimental e comparada do Collége de France.
7 PSIQUIATRIA, PSICOLOGIA E PSICANÁLISE
O sentido do sintoma Quando Freud publicou, em parceria com J, Breuer (Figura 7), em 1895, os Estudos sobre a histeria20, considerados o ponto de partida da psicanálise, ele estava de acordo com a pesquisa psicopatológica e psicológica de sua época, partilhando de seus pressupostos e de seus métodos de investigação. Longe de se insurgir contra o "cientificismo" do século XIX, a psicanálise foi, de início, um de seus maiores representantes. Afora a influência de Charcot, sobre a qual Freud jamais deixou de insistir, tanto Freud (Figura 8) quanto Breuer eram fiéis à escola de Helmholtz e alunos de E. Bucker, um de seus membros mais proeminentes36 • Em Estudos sobre histeria, são apresentados cinco casos. O mais célebre é Anna O, de 21 anos, com sérios distúrbios de visão e de fala, anorexia, paralisia de três extremidades com contratura e anestesia, tosse nervosa, e que foi tratada por Breuer de 1880 a 1882. Todos os casos eram de mulheres com sintomas corporais e psíquicos para os quais não havia causa orgânica demonstrável. A principal posição teórica adotada por Freud e Breuer parece, na superfície, simples. Sustentam que, "no curso normal das coisas, se uma experiência for acompanhada por grande dose de 'emoção: essa emoção ou é descarregada numa variedade de atos reflexos conscientes ou se torna gradualmente desgastada pela associação com outros materiais mentais conscientes. No caso de pacientes histéricos, nenhuma destas coisas ocorre. Ou por ter ocorrido em um estado particular de dissociação mental, descrito como hipnoide, ou porque o ego considerou-a incompatível com suas normas e a desviou. Neste caso, a emoção permanece em um estado 'estrangulado' e alembrança da experiência ao qual está ligada é isolada da cons-
Figura 1
J. Breuer.
ciência. A lembrança emotiva é manifestada depois na forma de sintomas histéricos que podem ser considerados símbolos mnêmicos (símbolos da lembrança reprimida)" 20 • Propunham o método catártico que, pela hipnose, possibilitava que a experiência original, juntamente com sua emoção, fosse levada à consciência e ab-reagida. Assim, a força que mantinha o sintoma deixava de atuar e ele desaparecia. O método é o precursor da talking cure, como foi nomeada por Anna O a psicanálise nascente. O traço comum dos casos é que as representações de desejo estavam associadas à vergonha, ao remorso, ao sofrimento moral. Provocavam aversão do eu e um movimento de defesa pelo recalque que retirava a representação da consciência. Inconsciente, a representação adquiria qualidades singulares - indestrutibilidade, insistência. Constituía-se um corpo estranho, podendo exprimir-se por conta própria e causar "dupla consciência': O corpo estranho, ignorando a censura, infiltrava-se no eu normal e fazia-se escutar em formações substitutivas. As pacientes sofriam 'ideogenicamente' de suas reminiscências. Os sintomas, como hieróglifos, 'falavam' de forma enigmática sobre acontecimentos, desejos e afetos das pacientes. Freud e Breuer publicaram o mais sofisticado estudo sobre a clínica, patogenia e tratamento dos sintomas histéricos de seu tempo 23 . Introduziram várias noções e hipóteses, como inconsciente, recalque, defesa, conversão, etiologia sexual, bem como psicoterapia da histeria. Desde os primeiros trabalhos, há, por parte de Freud, um esforço em conjugar o registro quantitativo - a "energia'', a "catexia'' - com o registro da significação e do sentido - os "símbolos mnêmicos': Junto com seu mecanicismo, há toda uma pesquisa do sentido que aborda os fenômenos psíquicos como fe nômenos significativos. O sintoma histérico tem sentido
Figura 8
S. Freud.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 1
A PSIQUIATRIA E SEUS LIMITES
oculto, é uma forma disfarçada de satisfação do desejo. É um fenômeno semântico e energético. Não há, para Freud, contradição entre o determinismo das forças cuja natureza é objeto das ciências naturais e, por outro lado, o psíquico, com suas representações e produções de sentido, cujo campo é aquele das ciências do sentido. Pelo contrário, o sintoma conjuga uma face de mensagem/sentido e uma face de satisfação pulsional. Nenhuma forma de psicologia deu mais importância à significação do que a psicanálise. Freud levou a análise do sentido a seus limites extremos. Se ele foi mais lon ge do que Janet e Jaspers, é por ter conferido um estatuto objetivo à significação. Ele buscou reaprendê-la no nível dos símbolos expressivos, no próprio material do comportamento e tornou possível um estudo objetivo das significações. Demonstrou que o fenômeno psicopatológico não é separável do problema da significação para o ser em geral, isto é, da linguagem para o homem26 .
Formações do inconsciente - significante e significado A teoria do sintoma histérico foi utilizada por Freud na investigação de temas distantes da patologia. Em um intervalo de cinco anos, publicou quatro livros: A interpretação dos sonhos, em 1900, Psicopatologia da vida cotidiana, em 1901, Chiste e suas relações com o inconsciente e Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, em 1905. São os textos fundadores da psicanálise, que delimitam o seu campo e formulam os conceitos fundamentais. Os fenômenos analisados não têm, aparentemente, nada em comum com o sintoma. São fenômenos normais como os sonhos e a sexualidade, fortuitos como os atos falhos, contingentes como um chiste. Não têm características patológicas, não implicam sofrimento, são irrelevantes, casuais, curiosos ou considerados mera função fisiológica como a sexualidade. O sintoma, por seu lado, tende a ser duradouro, é considerado patológico, fonte de sofrimento, produz desordem e/ou nova ordem, é relevante, significativo e desperta interesse tanto naquele que é afetado quanto no meio que o cerca. Para Freud, a psicanálise podia ampliar o campo de investigação psicológica e psicopatológica, aprofundar as investigações realizadas, esclarecer os fenômenos em si e suas conexões. Abordados pela psicanálise, o sonho, o ato falho, o chiste e o sintoma, evidenciavam, apesar de suas diferenças, determinadas características comuns e podiam ser colocados em série. São formações do inconsciente e relacionam-se intimamente com a sexualidade. O que elas têm em comum, em primeiro lugar, é o caráter de descontinuidade, de tropeço, de surpresa, de nonsense que comportam. Além disso, são constituídas por moções de desejo, pensamentos inconscientes que se combinam pelas leis do processo primário - a condensa-
ção e o deslocamento - a partir do princípio do prazer, sem consideração pelo princípio da realidade. Para J. Lacan, psicanalista francês que, na década de 1950, propôs uma releitura da obra de Freud com base no estruturalismo 1, "os mecanismos descritos por Freud como sendo os do processo primário abrangem exatamente as funções que a linguística toma por determinantes das vertentes mais radicais dos efeitos da linguagem, a metáfora e a metonímia ou, dito de outra maneira, os efeitos da substituição e combinação do significante nas dimensões sincrônica e diacrônica em que eles aparecem no discurso" 27 . Baseando-se no conceito de signo linguístico, definido por F. Saussure em seu Curso de linguística geral49 , e na distinção entre o significante (a imagem acústica) e o significado (o conceito), J. Lacan ressaltou, na obra de Freud, o papel constitutivo do significante como produtor das significações e segundo modalidades formais precisas28. O "inconsciente é estruturado como uma linguagem'' é a fórmula que sintetiza a releitura lacaniana. As formações do inconsciente atestam a relação do desejo com a linguagem. Na Interpretação dos sonhos, trata-se da letra do discurso em sua textura e seus empregos. A primeira proposta, articulada logo no capítulo preliminar, é que o sonho é um rebus (rebus: jogo que consiste em representar palavras ou frases por meio de desenhos ou sinais, cujo nome apresenta analogia com o que se quer dar a entender) e que é preciso entendê-lo "ao pé da letra': Tem a mesma estrutura em que se articula o significante no discurso só que respeitando as condições de figurabilidade do sonho. As imagens dos sonhos devem ser retidas por seu valor de significantes, ou seja, pelo que permitem soletrar do "provérbio" proposto pelo rebus do sonho. Essa estrutura de linguagem está no princípio da significância do sonho29. O trabalho do sonho segue as leis do significante em sua extensão mais geral, assim como os lapsos, o chiste e o sintoma. Nos numerosos exemplos, como no esquecimento do nome de Signorelli, no chiste do familionário 30 , verificam-se as operações de metáfora e metonímia na produção do sentido. O sintoma, de acordo com a análise da histeria, é um "símbolo mnêmico" que "está no lugar" de um desejo recalcado e, como tal, é um exemplo da operação da metáfora - um significante no lugar de outro. No decorrer de um discurso intencional, em que o sujeito pretende dizer uma coisa, produz-se algo que ultrapassa seu querer, que se manifesta como acidente, tropeço, paradoxo. O inconsciente, a partir de Freud, é uma cadeia de significantes que, em algum lugar, numa outra cena, repete-se e insiste em interferir nos cortes que lhe oferece o discurso efetivo e na cogitação a que ele dá forma 32 . "Quem fala" no sonho, no ato falho, no chiste e no sintoma? As formações do inconsciente introduzem o sujeito dividido($), conforme a notação usada por La-
7 PSIQUIATRIA, PSICOLOGIA E PSICANÁLISE
can. É dividido entre o querer dizer e o dito, o sonho e a realidade, o consciente e o inconsciente, o prazer e o sofrimento, o desejo e sua realização. É subjectum de um "saber que não se sabe" e que "fala'' pela metáfora e pela metonímia sua verdade e a do desejo inconsciente que . o amma. O inconsciente é estruturado como linguagem e, ao mesmo tempo, é efeito da inserção do homem no mundo da linguagem. A linguagem, com sua estrutura, preexiste ao sujeito; ele é servo dela e, mais ainda, de um discurso em cujo movimento seu lugar já está inscrito antes de seu nascimento, nem que seja sob a forma de nome próprio26. O inconsciente é um efeito da imersão do homem em um universo que não é natural, mas simbólico, que não é regido estritamente pelas necessidades biológicas, mas por leis, interdições, trocas, pactos, palavras, pelo discurso do outro. A psicanálise é, por excelência, o campo da fala e da linguagem e trata das consequências, no homem, do fato de sua existência ser regida e desnaturalizada pelo simbólico.
A psicanálise da psicopatologia Não é o caso de resumir o pensamento freudiano (Quadro I), mas de mostrar suas profundas relações com a clínica, solo em que nasceu e se desenvolveu. Freud abordou praticamente todas as suas dimensões: nosolo gia, semiologia, etiologia, etiopatogenia, sintomatologia, terapeutlca, etlca. Quanto à nosologia, fez a separação da neurose de angústia da neurastenia, a descrição minuciosa da neurose obsessiva e da fobia, a delimitação da histeria e propôs algumas classificações dos transtornos mentais, que variaram de acordo com mudanças de sua prática e teoria (Quadro II). Com base em conceitos fundamentais, como inconsciente, pulsão, recalque, defesa, repetição, transferência, formulou teorias de psicopatologia geral e teorias para explicar a diversidade e a especificidade dos quadros clínicos. Estudou a histeria, a neurose de angústia, a neurastenia, a fobia, a neurose obsessivo-compulsiva, a paranoia, a esquizofrenia, a mania, a melancolia, as perversões, as neuroses de caráter. Demonstrou a importância da sexualidade na etiologia e manifestações clínicas, não como genitalidade, mas como sexualidade infantil, perversa e polimorfa, cujos traços permanecem na vida adulta. Descobriu a função decisiva dos primeiros anos de vida, da triangulação edípica e do complexo de castração, das fantasias e fixações, como vias de acesso/impedimento à sexualidade dita normal. Investigou as relações entre a sexualidade e a psicopatologia, entre a psicopatologia e a cultura e entre a cultura e a sexualidade. Quanto à etiopatogenia, Freud procurou responder algumas perguntas - como se formam os sintomas? Como A
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I
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se organizam? Qual é sua função? - utilizando -se, para tanto, do arcabouço metapsicológico. Abordou o sintoma, como as outras formações psíquicas, em três dimensões distintas e relacionadas entre si: a) em uma referência econômica, como um processo de descarga/satisfação; b) em uma referência dinâmica, como resultante de um conflito intrapsíquico/interinstâncias; c) em uma referência tópica, como formação do inconsciente. Diferente da concepção organicista, que supõe que o sintoma é um simples epifenômeno de um transtorno orgânico, na concepção freudiana o sintoma é uma formação complexa, profundamente articulada ao sujeito, mas em um plano cuja existência ele desconhece. São diversas suas definições do sintoma: é o produto de um conflito psíquico e emerge como derivado múltiplas vezes distorcido da realização do desejo libidinal inconsciente, uma peça de ambiguidade engenhosamente escolhida, com dois significados em completa contradição mútua; sinal, substituto, transcrição de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado latente como consequência do processo de recalque, representa uma formação de compromisso entre a instância recalcante e os produtos do recalcado; é um retorno do recalcado. Metapsicologicamente, o sintoma é produto de um jogo intricado que associa representantes das pulsões, que se combinam via condensação ou deslocamento, catexias libidinais que circulam de modo ora livres ora ligadas e lugares psíquicos diferenciados e conflitivos entre si. Formação complexa, organizada, estruturada, portadora de um sentido, o sintoma tem duplo caráter de ser linguagem e satisfação. Propôs uma semântica, uma sintaxe e uma economia/ energética do sintoma. Os diferentes sintomas e quadros neuróticos são modos diversos de se haver com a verdrangung2 4, o recalque, seus derivados e substitutos, e com o "quantum de excitação'~ As análises "clássicas" de Dora, do Pequeno Hans, do Homem dos Ratos, do Homem dos Lobos mostram as diferentes maneiras como o sintoma se forma na histeria, na fobia e na neurose obsessiva. Freud procurou esclarecer a especificidade etiológica e etiopatogênica dos estados psicóticos como paranoia e esquizofrenia e propôs um mecanismo diferente do recalque, a verwerfung24 (definida por J. Lacan como forclu são), para explicar fenômenos como o delírio e a alucinação: se o que cai sob o golpe do recalque volta como retorno do recalcado, o que é forcluído retorna no reaP 4• Tanto na neurose quanto na psicose há "perda da realidade", mas seus modos de reconstrução são diferentes: na neurose, pela fantasia, na psicose pelo delírio. De um ponto de vista dinâmico, a neurose é decorrente de um conflito entre o ide o ego; a psicose, de um conflito entre o ego e a realidade. Também procurou esclarecer o mecanismo específico de perversões como o fetichismo. No fetichista, há
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Qua dro I
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A PSIQUIATRIA E SEUS LIMITES
Algumas contribuições freudianas
Modelo topográfico da mente
No livro A interpretação dos sonhos apresenta o modelo topográfico do aparelho psíquico, dividido entre o consciente, o pré-consciente e o inconsciente, cada um com suas próprias características.
Dinâmica do funcionamento mental
O aparelho psíquico busca manter sua tensão constante, descarregando seu excesso. Há uma regulação conflitiva entre os sistemas cs, pcs e ics.
Teoria das pulsões
Na Pu/são e suas vicissitudes define a pulsão como um conceito situado entre o psíquico e o somático, como o representante psíquico de uma estimulação proveniente do corpo, como uma medida da demanda de trabalho feito ao psíquico em função de sua vinculação ao corpo. Define sua fonte, sua energia, seu alvo e o circuito da pulsão. Propõe algumas classificações da pulsão: pulsões sexuais x pulsões do ego; pulsão de vida x pulsão de morte.
Sexualidade infantil
Nos três ensaios sobre a sexualidade, além de abordar o desenvolvimento da sexualidade infantil, Freud ampliou o conceito de sexualidade, incluindo formas de prazeres que transcendem a relação genital, e mostrou as relações entre a neurose e a perversão.
Fases do desenvolvimento libidinal
Freud propõe fases do desenvolvimento em que prevalecem determinados objetos, satisfações e formas de relação com o outro. Descreve as fases oral, anal, fálica e genital. Estabelece o complexo de Édipo e da castração como fundamentais na constituição da sexualidade.
Conceito de narcisismo
Em Introdução ao narcisismo, Freud introduz um conceito que modifica as concepções sobre a libido e o eu e possibilita nova compreensão de fenômenos psicopatológicos como os delírios de grandeza, a hipocondria e psicológicas ao adoecimento e ao enamoramento.
A segunda tópica
Em O ego e o id, Freud propõe uma nova organização do aparelho psíquico, dividido entre o ego, o id e o superego. O id inclui os representantes psíquicos das pulsões e aquilo que está sob recalque no ics, opera de acordo com o processo primário e segundo o princípio do prazer. O ego ocupa um lugar entre os impulsos e as demandas da realidade. Ele avalia, percebe, coordena e integra as percepções com a finalidade de reduzir a intensidade da tensão. Procura o melhor nível de satisfação, mediando as exigências pulsionais e as exigências da realidade social. O superego, produto da internalização das figuras parentais, regras, leis, ideais, proscrições, ajuda o ego a se situar na realidade. O ego não é senhor em sua casa, assolado por instâncias contraditórias.
Teorias da angústia
Freud desenvolve três teorias da angústia - como transformação da libido, como efeito do recalque e como causa do recalque - com profundas implicações na clínica. A angústia ocupa um lugar central na teoria freudiana.
Conceito de caráter
O caráter é o padrão de reação típico de uma pessoa, sua forma habitual de se comportar, pensar, sentir, falar. Freud havia ligado certos traços de caráter a fixações libidinais. Conclui que os traços permanentes de caráter representam o prolongamento de impulsos, sua sublimação e formações reativas contra eles. Diferente da neurose, que representa um fracasso do recalque, o caráter representa seu sucesso associado ao uso de outras defesas como a formação reativa e a sublimação.
Relações de objeto
Há várias teorias acerca das relações de objeto. O objeto não tem uma definição precisa em Freud. Ele designa tanto a pessoa amada, como o objeto da satisfação primária para sempre perdido, como os objetos da pulsão, como os da fantasia. Daí derivam variadas noções de objeto e variadas concepções acerca das relações que estabelecem sujeito e objeto.
Fonte: adaptado de Gabbard 23 •
verleugnunf\ o desmentido por meio de uma clivagem do ego, o sujeito desmente a castração e, no seu lugar, coloca um objeto que se torna condição de seu desejo. As estruturas clínicas - neurose, psicose e perversão - representam modalidades defensivas, expressam-se em organizações e em sintomas diversos e derivam de mecanismos específicos (Quadro III). Os primeiros anos da psicanálise foram associados a êxitos terapêuticos notáveis. Acreditava-se que, uma vez decifrada sua mensagem, o sintoma se desvanecia, que ele podia ser inteiramente esclarecido por uma análise da linguagem, como as outras formações do inconsciente.
Nos anos de 1920, época em que foi formulada a segunda tópica22, constatou-se, ao contrário, que o sintoma resistia à decifração e que, além da decifração, permanecia algo irredutível. Freud não cessou de criar conceitos para dar conta do "resto": reação terapêutica negativa, resistência, pulsão de morte, masoquismo primordial, para além do princípio do prazer. Em Inibição, sintoma e angústia (ISA), texto de 1926, o sintoma não é mais colocado lado a lado com sonhos, atos falhos e chistes. Não apresenta o sintoma como modo de expressão decifrável, mas como modo de satisfação que escapa ao princípio do prazer e que "não cessa de se
7 PSIQUIATRIA, PSICOLOGIA E PSICANÁLISE
Quadro 11
Nosografias freudianas Nosografia 11
Nosografia I
Nosografia 111
Neuroses atuais
Neuropsicoses
Neuroses de transferência
Neurose narcísica
Neuroses de transferência
Neurastenia Neurose de angústia
Histeria Fobia Obsessão Paranoia
Histeria Fobia Neurose obsessiva compulsiva
Esquizofrenia Histeria Paranoia Neurose Psicose fóbica maníacoNeurose depressiva obsessiva compulsiva
repetir". Não está referido a um inconsciente que "quer dizer e que fala de modo encoberto", mas à pulsão enquanto ela quer se satisfazer e consegue fazê-lo de maneira "desviada': O essencial não é mais o sentido do sintoma, mas aquilo que aparece como desprazer e sofrimento e que revela ser uma "satisfação inconsciente': Não trata da problemática da significação, mas do gozo 39 • A inibição é definida por Freud como tudo o que é da ordem de um não funcionamento. O que conduz o ego a inibir uma função, como a locomoção, a alimentação, a sexualidade, é um investimento mal situado da libido. Ou a função está muito libidinizada, havendo incremento da significação simbólica, de tal forma que o ego evita um conflito com o id que investe essa função, ou a inibição está a serviço do autocastigo e o ego evita um conflito com o superego. No caso das inibições globais como no luto e na melancolia, a inibição decorre de um esvaziamento de libido. A inibição atesta a impotência do ego diante da libido. Ele evita o conflito com as outras instâncias às custas de uma renúncia à sua ação. No caso do sintoma, não se trata de uma tentativa de controle de funções do ego, mas de uma tentativa de controle da pulsão. Em lugar de proceder a uma ação que transforma o mundo, produz-se uma modificação do próprio corpo e do pensamento. O sintoma, nesses termos, é uma das vicissitudes da pulsão. Não há satisfação direta da pulsão, mas a satisfação degradada no sintoma. Aquilo que aparece como desprazer e sofrimento é, em r e alidade, uma satisfação inconsciente. O problema da angústia também é reconsiderado: antes, explicada como uma transformação automática e direta da libido, a angústia passa a ser considerada o sinal disparado pelo ego que põe em movimento o mecanismo do recalque 39 •
Quadro 111
Nosografia IV
Neuroses ' . narc1s1cas
Psicoses
Neurose
Psicose
Psicose ' man1acodepressiva
Esquizofrenia Paranoia
Histeria Neurose fóbica Neurose obsessiva compulsiva
Esquizofrenia Fetichismo Paranoia Sadismo Psicose Voyeurismo ' man1acoMasoquismo depressiva
Perversão
Usando as noções de fixação e regressão, Freud propõe que os quadros psicopatológicos correspondem a estancamentos da libido em determinados estágios do desenvolvimento libidinal - oral, anal, fálico. Oferece uma explicação metapsicológica para a oposição do registro neurótico, psicótico e perverso, com base em uma organização que se explica pelo dinamismo próprio do desenvolvimento e da estrutura do sujeito. A partir de Freud, a psiquiatria deixa de parecer uma aglomeração fortuita de síndromes. As desordens psíquicas estão articuladas ao sujeito. Derivam de um desenvolvimento libidinal que opera por meio de conflitos fun damentais que podem ou não ser resolvidos. A psicanálise traz para a psiquiatria ordenamento, lógica e terapêutica21. Seus discípulos diretos como K. Abraham (Figura 9), O. Rank, S. Ferenczi, W. Reich, V. Tausk, E. Jorres e seus seguidores como M. Klein (Figura 10), A. Freud (Figura 11), W. Bion (Figura 12), D. Winnicot, J. Lacan (Figura 13) trouxeram numerosos aportes à clínica, e seria impossível apresentá-los neste espaço. Na atualidade, a psicanálise se divide em três correntes principais: psicologia do ego, relações de objeto e orientação lacaniana (Quadro IV).
Tratamento psicanalítico Não serão apresentadas as indicações e as contraindicações da psicanálise, as teorias do tratamento, as técnicas, nem a querela das doutrinas. De acordo com as teorias, modifica-se a práxis da psicanálise. Os objetivos e os meios de uma análise pela psicologia do ego ou kleiniana ou lacaniana não são os mesmos apesar de se chamarem psicanálise. São apresentadas, a seguir, algumas par-
Estruturas clínicas Neurose
Psicose
Perversão
Mecanismo
Verdrangung - recalque
Verwerfung - forclusão
Ver!eugnung - desmentido
Fenômenos
Conversão, fobias, obsessão, compulsão
Alucinação, delírio, alterações da linguagem
Fetiche
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Figura 9
Figura 12
K. Abraham.
W. Bion.
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SEÇÃO 1
A PSIQUIATRIA E SEUS LIMITES
Figura 1O M. Klein.
Figura 13
Figura 11
Anna Freud.
J. Lacan.
ticularidades do tratamento analítico desde uma perspectiva freudiana e lacaniana. Freud comparou a psicanálise ao um jogo de xadrez. Somente as aberturas e os finais de jogos admitem uma apresentação sistemática; a infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a abertura desafia qualquer descrição desse tipo. É o sintoma que leva uma pessoa a procurar tratamento: há "algo que não vai bem'', que "não caminha': que "não dá para segurar': que produz sofrimento. O sintoma é algo estranho do qual a pessoa quer livrar-se. É o modo como o analista responde a essa demanda que caracteriza a psicanálise em relação a outras práticas terapêuticas 10• Com a psicanálise freudiana começa uma prática te rapêutica singular. O que se trata de curar? A psicanálise
não é uma sabedoria como a oriental ou os guias de autoajuda e não é uma prática médica em sentido estrito. Nas sabedorias, trata-se de conseguir harmonia, correspondência entre o sujeito e o mundo e, na medicina, um restitutio ad integrum ou o menor dano possível. A psicanálise considera que o mal-estar na civilização é estrutural e que radica no que Freud chama castração. Não há nenhum plano de acesso à harmonia, à felicidade, à genitalidade, ao outro sexo, um modo de remediar a castração e efetivar o restitutio ad integrum. A castração é o incurável da humanidade e, também, a condição e o limite freudiano dos esforços terapêuticos 10 • A promoção de um ideal terapêutico recobre uma ética, no sentido de que esse ideal define o que se deve-
7 PSIQUIATRIA, PSICOLOGIA E PSICANÁLISE
Quadro IV
Algumas correntes psicanalíticas Eixo
Corrente
Bases
Concepções
Psicologia do ego
Baseada no trabalho de Anna Freud, O ego e seus mecanismos de defesa. Os fundamentos foram propostos por Kris, Hartmann e Loewenstein
Parte de algumas concepções de Freud, desenvolvidas em O ego e o id, em que o ego é tomado como uma instância que organiza os processos mentais e suas funções, ainda que pressionado pelo superego e pelo id. Expandiu as funções do ego e propôs uma esfera autônoma livre de conflitos. São funções do ego: 1) controle e regulação dos impulsos; 2) julgamento; 3) relação com a realidade; 4) relações de objeto; 5) função sintética; 6) funções autônomas primárias e secundárias; 7) mecanismos de defesa. O tratamento visa fortalecer o eu em sua capacidade de adaptação à realidade23•
Centrada na relação ego-mundo
Relações de objeto
Desenvolvida a partir da obra de M. Klein e seus discípulos como S. lsaacs, J. Riviere, W. Bion (Figura 12) e H. Rosenfeld
Fundamenta-se na psicanálise de crianças para propor uma doutrina complementar ao freudismo. Ressalta a precocidade dos conflitos pulsionais e a prevalência do mundo fantasmático. Propõe a existência, durante o primeiro ano de vida da criança, das posições esquizoparanoide e depressiva, essenciais para o desenvolvimento ulterior, e de uma situação edípica extremamente precoce, bem como de um superego arcaico. A rivalidade da situação triangular começa no estádio oral e marca as relações ambivalentes com os bons e os maus objetos introjetados ou projetados. Propõe a noção de identificação projetiva e novos aportes sobre as psicoses 36.
Centrada nas relações de objeto
Lacaniana 51
Baseada na obra de J. Lacan, que produziu um novo corpo teórico na psicanálise
Seu retorno a Freud foi iniciado com a leitura linguística da psicanálise sintetizada na sua fórmula mais conhecida: o inconsciente é estruturado como uma linguagem. O inconsciente é a outra cena em que isso fala e pensa com sua lógica e gramática. É o lugar de uma verdade traumática com a qual o sujeito terá de aprender a viver. Mais do que uma teoria e técnica de tratamento, a psicanálise é uma teoria e uma prática que põe os indivíduos diante da dimensão mais radical da experiência humana. Não tem como objetivo o bem-estar, o sucesso, mas levar o paciente a enfrentar as coordenadas e impasses de seu desejo e gozo. Em sua teorização, Lacan fez uso da filosofia, da linguística, da antropologia, da lógica, da matemática. Parte de seus conceitos essenciais não tem equivalentes na teoria freudiana, por exemplo, a tríade simbólico/imaginário/real, o grande outro, a noção de sujeito, o objeto.
Centrada nas relações com o grande Outro e com o objeto
ria considerar um bem para o sujeito. A psicanálise se posiciona desde outra perspectiva. Lacan mostra que a vertente ética do programa freudiano não é uma referência eventual e contingente, mas um aspecto intrínseco e essencial da psicanálise. "O estatuto do inconsciente não é ôntico, mas ético:' Dizer que "não há clínica sem éticá', implica situar, em toda estrutura clínica, o problema da escolha sempre forçada do sujeito em relação à lei e ao desejo. Não se trata de substituir a técnica pela ética, mas de introduzir a ética como modo de despsicologizar e desmedicalizar a psicanálise 10 . Freud advertia para os perigos do furor sanandi. O desejo de curar, próprio do médico, não se confunde com o desejo do analista. Como saber se aquilo do qual o paciente se queixa não é sua maior satisfação? O psicanalista escuta a queixa, aquilo que "não anda: que é singular de cada sujeito e que vai se reformular no correr da análise42 • As entrevistas preliminares precedem a entrada em análise e podem ser estruturadas em três níveis que se imbricam: 1) Avaliação clínica: subjetivação; 2) Localização subjetiva: retificação subjetiva; 3) Introdução ao inconsciente.43 A avaliação clínica tem importância vital, uma vez que uma análise não pode ser iniciada em quaisquer con-
dições e não transcorre da mesma forma nas diferentes estruturas clínicas. O psicanalista deve ser capaz de concluir, antes do início do tratamento, algo a respeito da estrutura clínica daquele que o procura. Trata-se de um caso de neurose? De psicose? De perversão? Se há algo que a experiência psicanalítica ensina é que existem estruturas sólidas, que não se modificam, não passam de uma para a outra. Existem estruturas com lógicas próprias e sintomas típicos, mas é o fato do sujeito dizê-lo e o modo como o faz que servem de base para o diagnóstico psicanalítico. No diagnóstico psiquiátrico, busca-se a objetividade baseada na presença ou na ausência de determinados sinais e sintomas listados nos manuais de classificação diagnóstica como o CID- 10 e o DSM- IV Na psicanálise, o que está em causa é o sujeito. É possível fazer um diagnóstico baseado no sujeito?44 O sintoma, de um ponto de vista freudiano, só existe a partir do discurso do paciente. A base da clínica psicanalítica é a clínica psiquiátrica, mas antes de tudo uma auto clínica. O sintoma é aquilo que o paciente traz e não o que é obtido por meio de um checklist. Só existe na medida em que é falado e endereçado ao analista, como uma questão que lhe concerne profundamente. Tem formas reconhecidas pela clínica, mas porta sempre uma marca singular.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 1
A PSIQUIATRIA E SEUS LIMITES
Não é apenas um fato, mas um dito, e interessa a posição que o sujeito adota em relação aos seus ditos, inclusive seu sintoma. É essencial questionar a posição daquele que fala e, a partir daí, localizar seu dizer. Trata-se de partir dos enunciados para se chegar ao sujeito da enunciação, "lugar" em que se localiza aquele que enuncia. Não há frase, discurso, conversa que não traga a marca da posição do sujeito. Localizar o sujeito consiste em fazer aparecer a "caixa vazia'' em que se inscrevem as variações de sua posição subjetiva. O sujeito é a caixa vazia na qual se inscrevem as modalizações do dito e que encarna sua ignorância de si. O lugar da enunciação é o próprio lugar do inconsciente45 • As entrevistas preliminares não constituem apenas uma investigação para localizar o sujeito, mas servem também para uma mudança de sua posição. A retificação subjetiva é a mudança de posição do sujeito que deixa de queixar-se dos outros para se queixar de si mesmo. O ato analítico consiste em implicar o sujeito em seu queixume, em seu próprio motivo de queixar-se, posto que, por sua posição o sujeito sempre é responsável. "Qual a sua parte nas desordens de que se queixa?" é a pergunta que resume a questão inicial da análise. É uma questão ética. A clínica analítica é uma clínica sob transferência (CST), um saber determinado de ponta a ponta por suas condições de elaboração, ou seja, pela estrutura da experiência analítica. O sem sentido do sintoma tem como consequência chamar um saber suposto. A instituição do analista como "sujeito suposto saber" recobre, de imediato, a destituição subjetiva dada pelo nonsense do sintoma. O analista ocupa esse lugar sem se confundir com aque le que, efetivamente, sabe que é a posição do médico. O sintoma analítico exige sua implantação na relação com o analista, é dirigido ao analista e, na medida em que o complementa com o objetivo de restituir-lhe o sentido, ele faz parte do sintoma. O primeiro momento da experiência analítica se traduz por uma reorganização do sintoma a partir da inclusão do analista46 • Diferente da relação médico -paciente, que busca a compreensão, a relação analítica se baseia na incompreensão, no mal entendido. "O que você quer dizer com isso?" é uma interpretação mínima que dimensionao não saber em jogo. O analista mostra ao paciente que não o entende e que ele mesmo não se entende. É necessário introduzir o mal entendido na medida em que o significante é produtor de significações múltiplas. Separando enunciado e enunciação, reformulando a demanda, introduzindo o mal entendido, o analista conduz o sujeito para o encontro do inconsciente e o questionamento de seu desejo. A partir dessa localização, o sujeito aceita a associação livre, a abandonar a posição de mestre, de senhor de si mesmo, a falar desde uma outra cena. É uma condição nomeada por Lacan como "histerização do discurso': Esse tempo da análise comporta o da interpretação, visando
reduzir a envoltura formal do sintoma por meio da produção dos significantes da sujeição ao outro e da queda das identificações. Lacan desenvolveu variadas concepções do tratamento psicanalítico, da finalidade e do final de uma análise. Em um primeiro momento, ressaltou o aspecto significante do sintoma e sua face de verdade oculta; o final de análise, no caso, era solidário com a decifração do sintoma e sua desaparição. Em um segundo momento, deslocou a ênfase do simbólico ao real, ressaltando que o sintoma se relaciona com algo que escapa ao significante, o gozo, que é indizível. A experiência analítica, uma experiência de fala, vai delimitando progressivamente o indizível até reduzi-lo ao impossível de dizer 2 • A "travessia da fantasia'' liberta um saber sobre a estrutura que possibilita ao sujeito saber fazer (savoir faire) com seu sintoma. Não se trata mais de dar sentido ao sintoma, mas de "emprestar consequência" 10 • O sintoma do final de análise não é o mesmo do . ' . llllClO. O que é terapêutico na operação analítica é o dese jo. Em certo sentido, o desejo é a saúde. Mas, paradoxalmente, o desejo é contrário à homeostasia, ao bem -estar. No tratamento, busca-se a realização de um sujeito que, ao contrário de uma exigência de domínio do eu, constitui-se no buraco aberto na experiência pela referência do ser falante ao outro, compreendido como vínculo da fala. O tratamento não tem como objetivo preencher essa fa lha, mas expô -la para que o sujeito possa encontrar uma nova relação com o seu desejo e seu gozo. Segundo os termos lacanianos, trata-se de "não ceder em seu desejo"; segundo os termos freudianos, wo es war, soll ich werden, "onde isso estava (Eu) há de advir".
Filosofia, psicologia, ciências humanas, epistemologia, psiquiatria e psicanálise Freud comparou sua descoberta do inconsciente com as revoluções copernicana e darwinista, na medida em que colocava em questão o lugar que o homem conferia a si mesmo no centro de um universo. O inconsciente descentra o sujeito e os saberes baseados na consciência. Isso tem consequências radicais no campo psi, nas ciências, na filosofia. O cogito filosófico que está no cerne da miragem que torna o homem moderno tão seguro de ser ele mesmo é profundamente subvertido pela cogitação freudiana. No lugar do cogito ergo sum (penso, logo existo) cartesiano, Freud propõe uma nova razão: "penso onde não sou, logo sou onde não penso': O "sujeito da ciência" e a psicologia como ciência da consciência e do indivíduo também são colocados em questão na medida em que o inconsciente descentra a consciência e o "eu penso". Aparentemente, pode -se dizer que a psicanálise é uma forma de psicologia que se acrescenta à psicologia
7 PSIQU IATRIA, PSICOLOG IA E PSICANÁLISE
da consciência, que duplica a psicologia da consciência com uma camada suplementar. De fato, a simples descoberta do inconsciente não é uma adição de domínios, não é uma extensão da psicologia; é o confisco, pela psicologia, da maioria dos domínios que cobriam as ciências humanas. Os temas que, até aquele momento, estavam excluídos da psicologia, seja a título de fisiologia (as relações com o corpo) seja a título da sociologia (as relações do indivíduo com seu meio, grupo, cultura), foram remetidas ao interior da problemática psicológica. A partir de
Freud, todas as ciências humanas se tornaram, de uma forma ou de outra, ciências da psyché 15 e a psicologia se tornou, por um tempo, freudiana. Foi no interior do sistema freudiano que se produziu essa reviravolta da psicologia; foi no decorrer da reflexão freudiana que a análise causal transformou-se em gênese das significações, que a evolução cedeu seu lugar à história e que o apelo à natureza foi substituído pela exigência de analisar o meio culturaF6 . Mas nem toda a psicologia se tornou uma psicologia do inconsciente nem das relações entre a consciência e a inconsciência. Não
Quadro V Correntes da psicologia contemporânea
Teorias
Representantes
Linhas gerais
Behaviorismo
Watson
Busca o sentido adaptativo das condutas com base nas manifestações objetivas do comportamento, sem fazer intervir a experiência vivida ou as estruturas nervosas e seus processos, confrontando a análise das estimulações com a das reações, procura reencontrar a unidade do comportamento. Todo comportamento deveria explicar-se com base em uma constelação estimulante, sem apelar para entidades como instinto, consciência, liberdade.
Gestalttheorie
Wertheimer, Kohler Kofka
Mostram que são as qualidades estruturais da estimulação que motivam, em seu aspecto geral, respostas como a percepção que articula o campo, a inteligência que o reestrutura, a emoção que embaralha suas linhas. É preciso abandonar a hipótese de uma ação imediata dos estímulos locais e definir a relação entre a constelação estimulante e a resposta por meio de um campo que não implique objetividade natural, nem processo causal. O campo fenomenal depende de uma interação de forças entre o sujeito e seu meio. Estas estruturas de conjunto e as significações que habitam evoluem no decorrer do devir individual.
Psicologia genética
Piaget, Wallon
Buscam levar em conta a maturação e a aquisição, o desenvolvimento necessário e o progresso ligado às circunstâncias. Piaget focaliza o desenvolvimento das estruturas biológicas e lógicas. H. Wallon atribui o máximo ao meio. O pensamento não é o modelo lógico e já constituído da ação, mas é o ato desdobrando-se em um meio que se constitui como pensamento, por meio da intermediação do rito, do símbolo e, finalmente, da representação.
Psicologia social
Kandiner, M. Mead, R. Benedict, Linton
As significações objetivas das condutas individuais são ligadas, por um laço de essência, à objetividade das significações sociais. "Conduzir-se" só pode ter sentido em um horizonte cultural que dá à conduta sua norma (sob o aspecto do grupo) e o tema que a orienta (sob as espécies da opinião e da atitude). O estudo das instituições busca determinar as estruturas de base de uma sociedade; isolar as condições econômicas com sua incidência direta sobre o desenvolvimento do indivíduo; descrever a maneira como o indivíduo reage a essas instituições, como ele integra a experiência, como ele projeta os temas maiores sob a forma de mito, religião, das condutas tradicionais, das regras jurídicas e sociais.
Cognitivista 36
U. Neisser. O. Broadbent, G. Miller
Constituem uma renovação da psicologia experimental que ocorreu, nos anos de 1960 e 1970, por um questionamento dos postulados do behaviorismo, sobre a influência conjugada da cibernética, da teoria da informação e da inteligência artificial. O objeto da psicologia não se limita ao comportamento nem ao estudo das respostas correlacionadas com a estimulação. Para a psicologia cognitiva, o mental é um domínio legítimo de pesquisas. O método mantém as exigências das ciências experimentais - experimentação, a testagem de hipóteses, a verificação ou refutabilidade empíricas - e estuda de maneira específica "o que se passa no intelecto humano". A natureza profunda das atividades mentais consistiria no tratamento da informação: seleção, elaboração, transformação, estocagem, recuperação e utilização da informação Admitindo que a atividade mental é uma atividade do cérebro, a psicologia cognitivista recusa-se a ser reduzida às neurociências. A informação pode ser tratada pelo computador ou pelo cérebro, e isso demonstra que existe certo nível do funcionamento idêntico que pode ser executado por meios materiais diferentes. As teorias cognitivistas relacionam-se diretamente com a neuropsicologia e a linguística e servem de inspiração para pesquisas na psiquiatria.
Fonte: adaptado de M. Foucault11 •
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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A PSIQUIATRIA E SEUS LIMITES
houve uma metamorfose geral do saber psicológico. Permaneceu e floresceu uma psicologia fisiológica e experimental (Quadro V). No decorrer dos últimos cem anos, a psicologia instaurou relações novas com a prática, além da psicopatologia: hospital, educação, trabalho, organização de grupos. Apresentando-se com seu fundamento racional e científico, a psicologia questiona os problemas suscitados por essas práticas: problemas da saúde e da doença, pro blema do sucesso e fracasso escolar; problema da adap tação do homem às instituições, ao trabalho. A psicologia contemporânea é uma análise do anormal, do patológico, do conflituoso, uma reflexão sobre as contradições do homem consigo mesmo 17• Seu desenvolvimento consistiu no lento abandono do positivismo que a alinhava, no começo, com as ciências da natureza, mas isso não resolveu as contradições que a motivaram. Nas formas atuais da psicologia, reencontram-se essas contradições sob o aspecto de uma ambiguidade que se descreve como co extensiva à existência humana. Em relação à psiquiatria, a psicanálise ocupa, na atualidade, uma posição singular. É simultaneamente: • uma disciplina que pertence à série das disciplinas que se aplicam à psiquiatria. Como uma disciplina entre outras, insere-se em uma problemática interdisciplinar que tem como objeto a psicopatologia; • uma disciplina que se pretende relacionada à série, mas distinta dela e capaz de analisá-la. Interrogando, com base na noção de inconsciente, os outros discursos, insere-se em uma problemática transdisciplinar que tem como objeto o cogito, o sujeito cognoscente em sua relação com o saber de si e do mundo; • uma disciplina considerada por outras disciplinas como fora da série, extraterritoriaP3 . Questionada por outros discursos - em seus métodos, efeitos, fundamentos, coerência-, a psicanálise insere-se em uma problemática disciplinar, epistemológica, que tem como objeto seu estatuto clínico, teórico e científico4 • Quanto à questão de sua cientificidade, as discussões não se esgotaram. Há confirmações experimentais de várias hipóteses freudianas (atividade mental inconsciente, a memória inconsciente) que servem de suporte para o desenvolvimento de uma neuropsicanálise, um método que busca integrar, sobre uma base empírica, a psicanálise e a neurociência50 • Também há trabalhos demonstrando a importância das psicoterapias (independentemente de sua orientação) na aderência ao tratamento, na redução no índice de recaídas, da abstenção ao trabalho, com gastos de hospitalização e atendimentos de emergência, na utilização de recursos médicos gerais, na dose de neurolépticos e antidepressivos em condições clínicas em que estas drogas são consideradas imprescindíveis47 • Por outro lado, as dificuldades metodológicas para realização de pesquisas controladas, randomizadas, com estudos duplocego são praticamente intransponíveis. Como reproduzir
uma situação não standard, em que as intervenções não são padronizadas? A pesquisa principal é, como na fenomenologia, o estudo aprofundado de casos individuais25 • Colocam-se para a psicanálise, na pós-modernidade, enormes desafios. Do ponto de vista de suas tarefas em uma instituição psiquiátrica, cabe aos psicanalistas ocupar todos os espaços de assistência, ensino e pesquisa, em suas várias modalidades e sustentar com seu discurso, com sua clínica e sua ética a conjugação/disjunção permanentes com o discurso e dispositivos médicos/psiquiátricos.
Referências bibliográficas 1. Althusser L. Freud e Lacan. In: Antologia de textos teóricos- estruturalismo. São Paulo: Martins Fontes, 1967. p.229-56. 2. Associação Mundial de Psicanálise. A transformação do sintoma na análise. In: Como terminam as análises? Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1995. p.127. 3. Bogochvol A. Sobre a psicofarmacologia. In: Magalhães MCR (org.) Psicofarmacologia e psicanálise.. São Paulo: Escuta, 2001. 4. Bunge M. The mind body problem. Oxford: Pergamon Press, 1980. 5. Canguilhem G. Quést-ce que la psychologie? Conférence prononcée le 18 décembre 1958 au College philosophique à Paris. Paris, 1958. 6. Cunha AG. Dicionário etmológico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira da Língua Portuguesa,1999. 7. Dilthey W. apud Foucault M. A psicologia de 1850-1950. In: Ditos e escritos I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994. p.128. 8. Ferreira ABH. Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994-1995. 9. Forbes J. A psicanálise do homem desbussolado- aforismos sobre as mudanças necessárias a uma psicanálise do século XXI. Revista Psique. maio 2010;53. 1O. F orbes J. Emprestando consequência - quando Freud não explica. Disponível em:www. projeto analise.com.br, 1990. 11. Foucault M. Psicologia de 1850 a 1950. In: Foucault M. Ditos e escritos I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994. p.122-7. 12. Foucault M. Psicologia de 1850 a 1950. In: Foucault M. Ditos e escritos I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994. p.122-3. 13. Foucault M. Psicologia de 1850 a 1950. In: Foucault M. Ditos e escritos I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994. p.127. 14. Foucault M. Psicologia de 1850 a 1950. In: Foucault M. Ditos e escritos I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994. p.129. 15. Foucault M. Psicologia de 1850 a 1950. In: Foucault M. Ditos e escritos I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994. p.131. 16. Foucault M. Psicologia de 1850 a 1950. In: Foucault M. Ditos e escritos I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994. p.125. 17. Foucault M. Psicologia de 1850 a 1950. In: Foucault M. Ditos e escritos I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994. p.139. 18. Foucault M. Filosofia e psicologia. In: Foucault M. Ditos e escritos I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994. 19. Freud S. A interpretação dos sonhos (1900). In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vols. IV e V Rio de Janeiro: Imago, 1969. 20. Freud S. Estudos sobre a Histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 1969. 21. Freud S. Conferências introdutórias- psicanálise e psiquiatria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVI. Rio de Janeiro: Imago, 1969. 22. Freud S. O Ego e o id. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: !mago, 1969. 23. Gabbard GO. Theories o f personality and psychopathology. In: Kaplan & Saddock 's comprenhensive textbook o f psychiatry. 7'h ed. vol. I. Philadelphia: Lippincott Willians & W ilkins, 2000. 24. Hanz L. Dicionário comentado do Alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
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25. Jaspers K. Psicopatologia geral.Rio de Janeiro: Atheneu, 1979. p.71. 26. Lacan J. Formulações sobre a causalidade psíquica. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.152-97. 27. Lacan J. Subversão do desejo e dialética do desejo. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.807-43. 28. Lacan J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.496-537. 29. Lacan J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.513-4. 30. Lacan J. O seminário: as formações do inconsciente. Livro S. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. 31. Lacan J. Subversão do desejo e dialética do desejo. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.813. 32. Lacan J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.498. 33. Lacan J. O lugar da psicanálise na medicina - Opção Lacaniana 32. 34. Lacan J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 35. Lagache D. apud Canguilhem G. Quést-ce que la psychologie? Conférence prononcée le 18 décembre 1958 au College philosophique à Paris. Paris, 1958. 36. Lanterri-Laura G, del Pistoia L. Les principales theories dans la psychiatrie contemporaine. Encycl Méd Chir 37006 AlO Paris: Editions techniques, 1992. 37. Lanterri-Laura G , del Pistoia L. Introduction hystorique et critique. Encycl Méd Chir. 37005 A 10 Paris ;1998:5.
38. Laplanche J, Pontalis BP. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 39. Miller JA. El secreto del síntoma. In: Miller JA. El partenaire- sintoma. Buenos Aires: Paidós, 2008. p.S3-73. 40. Miller JA. Freud, Lacan y el psicoanalisis. In: Conferencias Porteíias, Tomo I, Buenos Aires: Paidós, 2009. p.173-189. 41. Miller JA. Conferencia a los estudiantes de psicologia. In: Conferencias Porteíias. Tomo I. Buenos Aires: Paidós, 2009. p.269-81. 42. Miller JA. Discurso do método psicanalítico. In: Lacan elucidado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.225. 43. Miller JA. Diagnóstico e localização subjetiva. In: Lacan Elucidado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.231. 44. Miller JA. Diagnóstico e localização subjetiva. In: Lacan Elucidado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.230-46. 45. Miller JA. Psiquiatria e psicanálise. In: Lacan Elucidado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.121. 46. Miller JA. CST. In: Miller JA. Clínica bajo transferência. Buenos Aires: Manantial, 1995. 47. Nogueira Filho DM. Sobre a psiquiatria e a psicanálise. In: Magalhães MCR (org.). Psicofarmacologia e psicanálise. São Paulo: Escuta, 2001. 48. Riva D. Conferência no Instituto de Psicanálise Lacaniana (IPLA) em Psiquiatria Biológica, maio 2005. 49. Saussure F. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix. [Sem data] 50. Soussini Y. O que é neuropsicanálise? Scien Cult São Paulo. 2004;56:4. 51. Zizek S. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010. p.9-13.
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Interface com Sociologia, Antropologia e Filosofia Zaca ri a Borge Ali Ramadam
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 86
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Fatores sociais na psiquiatria, 86
1. Estabelecer as relações da sociologia, antropologia e filosofia para
Contribuições da sociologia, 87 Abrangência e contribuições da antropologia, 89 Normal x patológico, 89 Filosofia e psicopatologia, 90
o avanço da psiquiatria. 2. Definir as influências dos fatores socioculturais no estudo da psiquiatria.
Considerações finais, 90
3. Definir o que é antropologia e sua importância.
Referências bibliográficas, 91
4. Explicar qual a diferença entre normal e patológico. 5. Citar diversos estudiosos e seus estudos nas ciências humanas. 6. Relacionar diversas áreas do conhecimento.
Introdução O psiquiatra deve ter sólidos conhecimentos de clínica médica, neurologia, psicopatologia, psicologia e terapêutica. Tratam-se de matérias necessárias e indispensáveis, mas não suficientes. Será um profissional mais completo e com mais clara visão do seu campo de trabalho se, na sua formação, houver agregado conhecimentos de sociologia, antropologia e filosofia. Ao longo da história, a psiquiatria (como algumas outras especialidades médicas) vem sofrendo exaustivo processo de decantação e depuração, sobretudo no que concerne aos limites entre o normal e o patológico. Esses limites, como se verifica por meio das sucessivas edições dos DSM norte-americanos 1•2 , nunca foram solidamente estabelecidos, restando, em grande parte, controvérsias entre o que se pode considerar transtorno mental ou simplesmente desvio das normas sociais. A título de ilustração, citam-se alguns exemplos da clínica médica: R. Dubos descreveu uma tribo sul-americana em que a espiroquetose discrômica, caracterizada por manchas multicores na pele, era tão comum que a pessoa que não
a tivesse era considerada anormal e impedida de se casar. A espiroquetose discrômica é uma doença grave, identificável de pronto por qualquer especialista, mas achavase que só quem tinha essa doença era sadio3 •
De modo semelhante, E. H. Ackerknecht (apud J. K. Wing) mostrou que, no início do século XIX, a malária era tão comum no vale superior do Mississipi que suas manifestações eram consideradas normais e nenhum esforço se fez para desenvolver métodos de prevenção e tratamento, já que não era tida como doença. Outro exemplo significativo citado por J. K. Wing: "A existência do odor axilar é considerada entre os japoneses como uma doença, a osmidrose da axila, que costumava garantir isenção do serviço militar. Certos médicos especializam-se no tratamento dela, e os portadores da doença são geralmente internados em hospital'~
Fatores sociais na psiquiatria Problemas dessa ordem, observados na clínica médica, foram (e são) mais complexos na esfera da psiquiatria, na qual comportamentos anômalos são frequente-
8 INTERFACE COM SOCIOLOGIA, ANTROPOLOGIA E FILOSOFIA
mente avaliados pelo prisma da ética e dos costumes vigentes. Por exemplo, é difícil, muitas vezes, distinguir alguns quadros melancólicos (depressão patológica) da tristeza profunda provocada por situações de luto, separação e perda de pessoas ou objetos queridos. O significado afetivo é muito variável entre as pessoas, influindo na intensidade e na duração da tristeza. Em um curto poema, Carlos Drummond de Andrade4 expressou o problema: Era uma vez um czar naturalista que caçava homens. Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas ficou muito espantado e achou uma barbaridade
Ou seja, para os seres humanos, muitas vezes a perda de um animal de estimação ou de uma joia de uso pessoal pode ser mais dolorosa do que a perda de um parente próximo; trata-se de um complexo universo de significados. A distinção entre luto (tristeza "normal") e melancolia (patológica) foi tema de um clássico trabalho de Freud5; não obstante, embora tenha delineado alguns critérios fundamentais para o diagnóstico diferencial, até hoje persistem as dificuldades para se decidir quando é pertinente a prescrição de antidepressivos. Mesmo os critérios operacionais adotados pelo DSM e pelo CID- 10 não lograram cabal elucidação do problema, resultando em numerosos casos de "depressões resistentes" avessos a qualquer intervenção terapêutica. Ressalte-se que a condição de luto e sua duração (bem como rituais correlatos) são bastante variáveis conforme as culturas dos povos e de seus subgrupos sociais. Outro exemplo de dificuldade diagnóstica, contaminada por valores sociais vigentes, são os quadros de dependência: etilismo, tabagismo, jogo, transtornos alimentares e sexualidade. Cada povo, conforme a cultura, atribui diferentes valores (de qualidade e intensidade) aos comportamentos dessa natureza. O diagnóstico de embriaguez e de etilismo é variável em diversos países, conforme o grau de tolerância; na esfera da sexualidade, os valores sociais influem de maneira ainda mais contundente. Além disso, em numerosas culturas, indivíduos em processo demencial são vistos como "caducos" normais em razão da idade, tolerados pelos familiares sem recorrer à intervenção médica. Entretanto, um dos maiores desafios diagnósticos da psiquiatria, em conexão com os valores sociais, refere-se aos transtornos da personalidade. A caracterização desses transtornos, intentada de forma magistral por Kurt
Schneider6 , permanece inacabada e é permeável aos valores locais e culturais. Ilustrativo dessa condição foi o caso de Pierre Riviere, que exterminou sua família no século XIX, estudado por Michel Foucaulf; examinado pelos maiores psiquiatras da época, nenhuma anomalia foi encontrada, salvo sua insensibilidade em relação ao crime praticado. Crimes similares (assassinato de pais e outros parentes próximos) têm sido observados recentemente em São Paulo; em Roma, sob o império de Calígula, ao que se sabe, eram consideradas disputas de poder e não se questionava a saúde mental dos homicidas. Todos esses exemplos remetem, obviamente, à falta de marcadores biológicos na área da psiquiatria, tornando impossível adotar as diretrizes de Claude Bernard8 para a medicina baseada em evidências. O estudo dos comportamentos com modelos animais é precário, considerando-se que se pode apenas reproduzir comportamentos simples e rudimentares, sem a participação de valores afetivos, significados sociais e culturais.
Contribuições da sociologia Torna-se, pois, indispensável recorrer-se à sociologia, à antropologia e à filosofia para que seja obtido melhor desempenho da atividade psiquiátrica, depurada de . . . vieses mais grosseiros. Isso porque tais disciplinas, destinadas ao estudo do ser humano, embora sob diferentes perspectivas, têm trazido notáveis contribuições ao campo da psiquiatria, da qual se servem, também, para suas pesquisas e elaboração de seus conhecimentos. Essa situação foi claramente observada por K. Jaspers, que, em Psicopatologia geral9 , dedicou extensos capítulos e comentários sobre a interface dessas áreas. Ressalta que "os métodos que se utilizam das pesquisas sociológicas e históricas são os mesmos que servem à psicopatologia em geral': Acrescenta que "o método importante é o comparativo: comparação de povos, formas culturais, grupos populacionais diversos; este é o campo especial da estatística''. Nessa obra, escrita há um século, assinalou: "Os métodos estatísticos gozam, presentemente, de grande favor. São, todavia, difíceis de manejar e só podem usar-se, quando se espera que venham a fornecer dados confiáveis, com grande prudência e espírito crítico". Jaspers adverte que constatações estatísticas possibilitam estabelecer correlações, mas per si não significam um conhecimento causal. São indicações de possibilidades que requerem interpretação. Mesmo tratando-se de números comparativos simples, há o perigo de erros de interpretação, muitas vezes difí-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 1
A PSIQUIATRIA E SEUS LIMITES
ceis de constatar. Justamente a impressão dos números quase sempre vigorosa não deve fazer esquecer a advertência, que de uma forma exagerada, lembra: com números pode-se provar tudo 9 .
Criada por Augusto Comte, a sociologia se propõe a estudar as sociedades e as leis gerais que regem as relações entre seus grupos, instituições, costumes, tradições, economia, linguagem, etc. O sociólogo busca sempre encontrar nos fatos sociais aquilo que é mais geral e, ao mesmo tempo, aquilo que é característico 10 . Com efeito, por meio do estudo das populações e de seus subgrupos (etários, religiosos, profissionais, econômicos, etc.), a sociologia permite caracterizar o contexto em que se insere o indivíduo, bem como identificar os principais fatores capazes de contribuir - ou não - para a origem e o desenvolvimento de numerosos quadros patológicos. Isso é bem evidente em quase todos os projetos de pesquisa médica, quando se estabelecem critérios de inclusão e de exclusão dos sujeitos da pesquisa, considerando-se região de procedência, idade, profissão, situação fa miliar, grau de instrução e numerosos outros parâmetros, cuja importância já tenha sido previamente reconhecida por meio de estudos sociais. Por exemplo, o estudo dos hábitos alimentares das populações nipônicas e daquelas de origem europeia permite explicar as diferentes incidências de câncer colorretal nesses povos. De modo semelhante, o conhecimento da chamada "dieta mediterrânea'' trouxe importantes contribuições para o estudo das patologias cardiocirculatórias. No campo da psiquiatria, as contribuições da sociologia são maiores e mais significativas: por exemplo, na distinção entre luto e melancolia, as diferenças entre orientais e ocidentais são enormes, tanto no que se refere ao culto dos mortos e período de tristeza "normal" como nos sinais exteriores dessa condição; são também importantes os fatores religiosos, dificultando, frequentemente, o diagnóstico diferencial com quadros patológicos. Ainda no âmbito religioso, é bem sabido que numerosas manifestações e comportamentos bizarros assimilados por certos grupos sociais são considerados legítimas expressões de entidades espirituais, embora, à primeira vista, sejam sugestivos de manifestações psicóticas. Nessa área merece destaque o notável trabalho de Dalgalarrondo 11, que investigou exaustivamente as questões envolvendo religião e psicopatologia. O suicídio e suas tentativas, que constituem outro problema de grande relevância para a psiquiatria, receberam da sociologia contribuições fundamentais por meio da obra magistral de Emile Durkheim 12 • Em fins do século XIX, época em que os dados estatísticos ainda eram precários, esse discípulo de A. Comte, fundador da sociologia moderna, conseguiu estabelecer correlações significativas entre o comportamento suici-
da e numerosos fatores sociais, tais como estrutura familiar, atividade profissional, grau de instrução, religião, etc., evidenciando os principais fatores de risco determinantes desse comportamento, independentes de transtornos psicopatológicos propriamente ditos. Tais fatores, identificados por Durkheim há mais de cem anos, são até hoje confirmados por todas as pesquisas e constituem elementos importantes para a avaliação dos quadros melancólicos e concorrentes para as tentativas de autoextermínio. Dentre as mais notáveis contribuições da sociologia para a psicologia e a psicopatologia, cabe destacar ostrabalhos de Gustave Le Bon, demonstrando as sensíveis diferenças entre os comportamentos dos indivíduos isolados ou quando se encontram em grupos ou multidões. Ele mostrou que nessa segunda condição o pensamento racional se dilui, prevalecendo, sobretudo, fatores emocionais e inconscientes na determinação do comportamento 13•14. Le Bon assinalou que O fato mais importante apresentado por uma turba psicológica é o seguinte: quaisquer que sejam os indivíduos que a compõem, por muito semelhantes ou diferentes que possam ser o seu gênero de vida, as suas ocupações, o seu caráter ou sua inteligência, só o fato de serem transformados em multidão dota-os de uma espécie de alma coletiva. Essa alma os faz sentir, pensar e proceder de uma maneira diferente daquela pela qual sentiria, pensaria e procederia cada um deles isoladamente. Certas ideias, certos sentimentos só surgem ou se transformam em atos nos indivíduos em multidão. A turba psicológica é um ser provisório, composto de elementos heterogêneos, que por um instante se unem, inteiramente como as células de um corpo vivo, que formam pela sua reunião um ente novo o qual manifesta caracteres mui diferentes daqueles que cada umas dessas células possu 13 .
Um trabalho de Freud a respeito da psicologia das massas foi baseado nas ideias de Le Bon. A sociologia permitiu melhor compreensão das dinâmicas grupais, resultando na obra de Jacob L. Moreno (sociometria e psicoterapia psicodramática), assim como as técnicas de interpretação grupal preconizadas por W Bion. Por outro lado, o estudo dos rituais de iniciação em povos primitivos, bem como nas "tribos" de adolescentes urbanos, com generoso consumo de drogas, tem trazido importantes subsídios para a compreensão desses fenô menos e a implementação de políticas para a prevenção dos abusos e das dependências químicas. Seria exaustivo prosseguir no registro das imensas contribuições da sociologia para a psiquiatria; cabe no tar, porém, que tais estudos se estendem e se confundem,
8 INTERFACE COM SOCIOLOGIA, ANTROPOLOG IA E FILOSOFIA
com frequência, com o campo da antropologia, bem mais amplo e de objetivos mais ambiciosos.
Abrangência e contribuições da antropologia Com efeito, a antropologia comporta um vasto campo de interesses, e não há, no elenco das ciências h umanas, nenhuma tão abrangente. Ela é definida como "ciência do homem no sentido mais lato, que engloba origens, evolução, desenvolvimentos físico, material e cultural, fisiologia, psicologia, características raciais, costumes sociais, crenças, etc. Subdivide-se em cultural, física, social e urbana'' 15 • Antropólogos assinalam que como ciência da humanidade, ela se preocupa em conhecer cientificamente o ser humano em sua totalidade, o que lhe confere um tríplice aspecto: a) ciência social: propõe conhecer o homem enquanto elemento integrante de grupos organizados; b) ciência humana: volta-se especificamente para o homem como um todo: sua história, suas crenças, usos e costumes, filosofia, linguagem, etc.; c) ciência natural: interessa-se pelo conhecimento psicossomático do homem e sua evolução 16•
Observam que a antropologia tem dimensões biológica, sociocultural e filosófica, quando se empenha em responder a indagação: o que é o homem? E prosseguem: "Na idade clássica, foram os gregos que mais reuniram informações sobre povos diferentes, deixando substanciosos registros e relatos dessas culturas. Nasce, assim, a antropologia, no século V a.C., com a figura de Heródoto, que descreveu minuciosamente as culturas circundantes. É considerado o 'pai da antropologia: Chineses e romanos também deixaram descrições de povos diferentes" 16 • Heródoto, portanto, considerado "o pai da História': teria gerado outra filha, a totipotente antropologia que, assim considerada, abrange todas as ciências humanas, conforme segue: A partir de meados do século XVIII, a antropologia adquire a categoria de ciência, quando Linneu, ao classificar os animais, relaciona o homem entre os primatas. Foi um dos primeiros a descrever as raças humanas. No século XIX, à medida que os fósseis humanos foram descobertos, a antropologia progrediu cada vez mais. Na década de 1840, o investigador francês Boucher de Perthes, pela primeira vez, refere-se ao homem pré-histórico, baseado em seus achados (utensílios de pedra) de idade bastante recuada. John Lubock recompilou dados existentes sobre a cultura da idade da pedra e estabeleceu as diferentes culturas do paleolítico e do neolítico. A antropologia sistematiza-se como ciência após Darwin ter trazido à luz a teoria evolucionista, com a publicação
de suas obras: Origem das espécies (1859) e A descendência do homem (1871). A antropologia física tem, a partir daí, grande impulso, e surgem os primeiros teóricos da nova ciência: Tylor, Morgan, Bachofen, Maine, Bastian. O progresso da antropologia, no século XX, é o resultado das descobertas anteriores relativas ao homem. Seus especialistas passam a desenvolver constantes pesquisas de campo, de caráter científico, incentivadas a partir dos trabalhos de Franz Boas, que é considerado o pai da antropologia moderna 16•
Eis, sucintamente, um esboço do campo da antropologia, cuja abrangência torna irrelevantes quaisquer considerações. Não cabe questionar sua objetividade, já que todas as suas pesquisas e seu corpo de conhecimentos são embasados em metodologias rigorosas, inerentes a cada disciplina conexa. É, portanto, um campo imenso de informações e pesquisas, tangenciando todo o universo das ciências humanas, incluindo a psicologia, a psicopatologia e a psiquiatria.
Normal x patológico Nesse contexto, ressalta-se a questão do que é normal e o que é patológico. Como assinalado anteriormente em alguns exemplos, fatores culturais e até ideológicos interferem na avaliação; na época da Guerra Fria (EUA x URSS), na União Soviética, numerosos dissidentes do regime foram diagnosticados como doentes mentais e internados em hos. . . ., . p1ta1s ps1qmatncos. No Ocidente, ao contrário, prosélitos da chamada "antipsiquiatria'' proclamavam a inexistência das doenças mentais, argumentando que seriam apenas "desvios das normas repressoras" impostas pelas classes dominantes 17• Entretanto, mesmo fora do plano político-ideológico, no âmbito das ciências biológicas, diferentes teorias e interpretações dos fenômenos se digladiavam entre si 18•19 • Na esteira desses problemas, visando estabelecer modelos para as concepções de doença e de saúde, faculdades de medicina na França e nos Estados Unidos, com o estímulo da Organização Mundial da Saúde, já incluem estudos de antropologia nos seus cursos de graduação20 • É inegável que, abrangendo áreas tão múltiplas de conhecimento e pesquisa (a totalidade do homem), a antropologia compreende um número imenso de disciplinas e informações oriundas de diferentes metodologias de investigação. Também é indubitável que tal abrangência acarreta algumas confusões, no que concerne à delimitação de cada área. Por exemplo, Kant, que praticamente nunca saiu de sua cidade natal, produziu, no século XVIII, obras notáveis de antropologia, a respeito de caráter, temperamento e costumes; suas observações a respeito da psico-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 1
A PSIQUIATRIA E SEUS LIMITES
logia e da psicopatologia humanas influenciaram, sobremaneira, a obra de K. Jaspers 21 -23 • Observa-se que o vocábulo "antropologia" envolve estudos bastante diversificados, desde pesquisas arqueo lógicas, etnogeográficas, sociológicas, psicológicas, enfim, tudo o que se refira à totalidade do ser humano. Isso não desmerece a vasta gama de conhecimentos acumulados, embora possa causar desconforto aos pensadores mais cartesianos. No século passado, os estudos antropológicos se desenvolveram sobremaneira, destacando-se os trabalhos de Malinowski2\ Lévi-Strauss25 e R. Bastide26 com notáveis contribuições para a compreensão das formas rudimentares de pensamento e de psicologia primitiva; igualmente relevantes foram os trabalhos de Bateson27 sobre as estruturas dos processos mentais e os relacionamentos familiares. Contudo, graças ao seu amplo espectro de interesse, especialistas de outras disciplinas produziram excelentes trabalhos de antropologia, com significativas repercussões na área da psicologia e da psicopatologia: por exempio, o biólogo von Uexküll, em seus estudos comparativos sobre os mecanismos da percepção dos homens e dos animais 28·29 . O biólogo Edward O. Wilson desenvolveu notáveis estudos a respeito das raízes biológicas dos comportamentos mais complexos, estabelecendo os fundamentos da sociobiologia30. Em contrapartida, K. Goldstein, com base em quadros clínicos neurológicos, produziu uma importante obra de antropologia31 ·32 que influenciou as notáveis obras de Merleau-Ponty sobre a fenomenologia da percepção e a estrutura do comportamento33·34. No conjunto de tantas e incontáveis obras publicadas no século XX, observa-se a interface, ou melhor, a clara intersecção entre a psiquiatria, a antropologia e a filosofia, entrelaçando seus conhecimentos e enriquecendo-se mutuamente. É ilustrativo o exemplo de von Gebsattel, que foi professor de psicologia e psicoterapia e, a seguir, de antropologia na Universidade de Wurzburg, cujas obras Antropologia médica e !mago hominis35•36 enriqueceram não apenas o campo da psiquiatria como da antropologia, por meio do estudo das estruturas básicas dos quadros psicopatológicos. Sobressai, também, a obra do psiquiatra E. Minkowski, sobre vivência do tempo subjetivo e percepção do mundo 37·38 .
Não foi menor, porém, a contribuição dos filósofos alemães, cuja matéria-prima de reflexão consistiu, sempre, na essência do humano e sua inserção no mundo. Desde Kant, no século XVIIF'-23 , a produção filosófica alemã se revelou extremamente rica no que concerne às questões sobre percepção do mundo, matéria e espírito, subjetividade, mente, pensamento, corporeidade. Merecem destaque as obras de Schopenhauer46 e de Nietzsche47 que, segundo alguns críticos, teriam influenciado a obra de Freud. Esses autores produziram textos notáveis a respeito do sujeito e de suas relações com o mundo, analisando exaustivamente questões relativas ao ' . comportamento, aos costumes e as regras mora1s. É importante destacar, sobretudo, os trabalhos de Husserl, que influenciaram, sobremaneira, a obra de Jaspers, o maior psicopatologista do século XX48·49 . A obra de Heidegger, discípulo de Husserl, também teve grande repercussão na psiquiatria, por meio dos trabalhos de Binswanger, com notáveis investigações psicopatológicas e o desenvolvimento da analítica existencialso. A questão da subjetividade x materialidade, mente x corpo, ser no mundo, desde a época dos gregos, sempre esteve entre as principais indagações filosóficas, estendendo-se para a biologia, a psicologia, a sociologia e a antropologia. Filósofos como Heráclito, Platão, Sócrates, Aristóteles e dezenas de grandes pensadores dedicaram-se à investigação desses problemas, sem conclusão satisfatória. Mais recentemente, grandes neurologistas, como Penfield51 ou J. Eccles, em colaboração com o filósofo K. Popper52·53, tentaram elucidar essas questões. Modelos animais, como os utilizados por Kandel com a Aplysia5\ descortinaram importantes mecanismos da neurotransmissão que, no entanto, não ultrapassam alguns aspectos mais rudimentares do comportamento humano. Essas pesquisas, ao longo dos séculos, refletem fielmente o pensamento de Hipócrates, que procurou descartar as influências espirituais e sobrenaturais na produção de enfermidades. Deve-se reconhecer que, pelo menos nos setores mais bem informados das sociedades ocidentais, essa tese prevalece. Entretanto, imensas populações humanas, na África e na Ásia, prosseguem contaminadas por ideologias e crenças religiosas para explicar não apenas transtornos mentais, como também doenças somáticas.
Filosofia e psicopatologia
Considerações finais
Ao longo da história, a contribuição dos filósofos franceses, desde Descartes39, foi prodigiosa. No século passado, além da extraordinária obra de Merleau-Ponty, já citado, cabe lembrar H. Bergson40, Sartre41·42 eM. Foucault43-45 .
A interface da psiquiatria com a sociologia, a antropologia e a filosofia revela apenas a fragilidade dos conhecimentos a respeito da essência da natureza humana e os esforços para obter respostas que, talvez, jamais serão encontradas.
8 INTERFACE COM SOCIOLOGIA, ANTROPOLOGIA E FILOSOFIA
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Influência da Cultura sobre a Psiquiatria
Yua n-Pang Wang Ca rmen Lucia A lbuquerque de Santa na Li liana M archetti Francisco Lotufo Neto
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 92 Cultura, 93
Ao final deste capítulo, você estará apto a: 1.
Discutir como iniciou a psiquiatria transcultural e definir cultura.
2.
Citar cinco áreas de interesse da relação cultura - psiquiatria.
3.
Definir etnopsiquiatria.
Cultura e personalidade, 95 Influência dos fatores culturais sobre o diagnóstico, prognóstico e
4.
Descrever a importância de conhecer formas culturais de expressão emocional.
tratamento, 96 Princípios gerais de prática clínica transcultural, 96 Entrevista e barreira cultural, 96
5.
Dizer quais os limites da relação cultura e personalidade.
6.
Dar exemplos da influência da cultura sobre o diagnóstico, de
Formas culturais de expressão emocional, 94 Os sintomas como comunicação, 94 O etnocentrismo, 95
síndromes ligadas à cultura, de itens que fazem parte de um roteiro para formulação cultural e de psicoterapias com
Avaliação, 96 Linguagem, 97 Consultores culturais, 97 Avaliação do estado mental, 97 Aparência e comportamento, 97
influência religiosa. Z
Caracterizar a terapia comunitária.
Relação com o avaliador, 97 Psicomotricidade, linguagem e pensamento. 97 Afetividade, 97 Síndromes ligadas à cultura (culture-bound syndromes), 98 A formulação cultural, 100 A linguagem para expressar sofrimento, 100 Como a pessoa entende sua doença - os modelos explicativos, 100 Terapias com influência religiosa praticadas no Brasil, 100 Uma terapia sensível à cultura: a terapia comunitária, 102 Questões, 102 Referências bibliográficas, 103
Introdução Os psiquiatras clínicos, particularmente aqueles que atuam profissionalmente em grandes centros urbanos, são cada vez mais requisitados para avaliar e tratar pacientes de muitos grupos culturais e linguísticos diferentes, que compõem a sociedade multicultural atual. Entre nós, é grande o número de pessoas, vindas de outros estados do Brasil e de outros países que buscam melhores
condições econômicas ou segurança. É difícil fornecer o melhor cuidado psiquiátrico e psicológico a pacientes que falam línguas diferentes e conservam crenças divergentes da cultura dominante. Hoje é cada vez mais necessário serviços culturalmente competentes. A psiquiatria transcultural nasceu como uma disciplina científica paralela ao crescimento da moderna psiquiatria clínica. Emil Kraepelin, numa expedição a Java para estudar os transtornos mentais em diferentes comunidades, observou menor taxa de transtorno bipolar entre os pacientes javaneses e a menor incidência de "sentimento de culpa'' nos nativos depressivos, ainda no início de século XX1•2 . Eugen Bleuler, por sua vez, percebeu rapidamente que a expressão psicopatológica de pacientes ingleses e irlandeses apresenta várias diferenças culturalmente geradas3 • As várias correntes migratórias no mundo, principalmente após a li Guerra Mundial, impulsionaram a demanda pela psiquiatria transcultural, uma vez que os psiquiatras clínicos são rapidamente expostos a padrões psicopatológicos de sofrimento psicológico de refugiados de vítimas de catástrofes.
9 INFLUÊNCIA DA CULTURA SOBRE A PSIQUIATRIA
Cultura A cultura denota um padrão de significados transmitidos historicamente, de geração a geração, incorporados simbolicamente, por meio dos quais os homens que compartilham a mesma identidade se comunicam, e desenvolvem atividades e hábitos do seu cotidiano. A construção de significados ou mecanismos sociais de controle do comportamento decorrentes da cultura vão influenciar a vida de determinada população. A expressão "cultura'' deve ser entendida como características e aspectos não biológicos de um certo agrupamento humano, como a prática de criação, sistemas de crença, hábitos de diagnóstico e prescrição, etc. O relacionamento entre a medicina, especialmente a psiquiatria, e a cultura gera interesse pelas influências culturais sobre a etiologia, frequência e natureza das doenças e o cuidado e seguimento dos doentes dentro de uma determinada unidade cultural. Preocupa-se com o relacionamento entre as doenças e a matriz criada pelo jogo entre sociedade, cultura e ambiente. A Tabela I re sume as principais áreas de interesse 4 · 10 : A abordagem transcultural preocupa-se com uma análise comparada acerca do que acontece em outras culturas. Um observador sai de sua unidade cultural e ob-
Tabela I
Influências da cultura sobre a Psiquiatria - áreas de interesse
• Em que medida a doença é influenciada pela cultura do paciente? • Uma determinada doença se apresenta da mesma forma em todo o mundo? • Os sintomas são os mesmos, ou são expressos de forma diferente? • A frequência e a gravidade das doenças sofrem influência da cultura? • O tratamento varia em diferentes culturas? • O prognóstico sofre influência do meio cultural? • Como fazer estudos multicêntricos em países com língua, costumes e tradições diferentes? • Como tratar um paciente de cultura, gênero ou etnia diferente? • Existem quadros clínicos específicos para determinadas culturas? • A frequência total e relativa das doenças em diferentes culturas apresentam correlação com fatores culturais estressantes? • As diferenças no diagnóstico e na natureza dos sintomas. • Os estudos comparativos do processo diagnóstico. • Os modos diversos de expressar os sintomas, particularmente a dor e os psiquiátricos. • Instrumentos transculturais para diagnóstico e avaliação. • O relacionamento de fatores culturais com transtornos específicos. • O relacionamento das doenças com gênero e etnia. • Síndromes e tratamentos ligados à cultura. • O cuidado do doente, formas e eficácia dos tratamentos em diferentes culturas. • A evolução e o curso das doenças em diferentes culturas. • As atitudes da comunidade em relação àquela doença ou sintoma. • A relação da medicina com outras disciplinas: epidemiologia, antropologia, sociologia, história, artes e teologia. • A saúde da população indígena (aborígenes), minorias etnoculturais, imigrantes e refugiados. • Crítica cultural das teorias e práticas médicas.
serva cientificamente a prática médica da outra cultura. Isto traz imediatamente à tona um debate controverso: a universalidade versus especificidade cultural das doenças. Nesta dicotomia duas maneiras de estudar o tema surgem: etic e emic. Na abordagem etic, o objeto é definido pelo observador que passa a procurá-lo no campo que está sendo estudado (parte assim do pressuposto que este objeto tem características universais). Refere-se à classificação e conceituação do observador sobre o que é observado. O observador cria a estrutura de interpretação e a usa para observar a realidade. Já na abordagem emic, o objeto de estudo surge da observação do campo (sendo esta descrição válida apenas para o local em que foi descrita). Focaliza o ponto de vista do informante, o significado que ele atribui ao seu comportamento, pensamentos, atitudes e motivações. O investigador abandona sua maneira estereotipada e preconcebida, de modo a tentar compreender a realidade como percebida pelo informante. Portanto, na abordagem etic um instrumento para avaliar ou diagnosticar transtornos mentais é criado no ocidente e aplicado em outra cultura. Na abordagem emic, o pesquisador procura se despir dos seus pressupostos, imergir na outra cultura e observar como os nativos identificam, descrevem, denominam e classificam eventuais transtornos mentais 11 • A comparação procura, por meio do estudo de semelhanças e diferenças, descobrir regularidades universais na forma e no processo, compreendendo as relações funcionais básicas entre variáveis biopsicossociais e socioculturais nas doenças. Por exemplo, a esquizofrenia nuclear composta pelos sintomas de primeira ordem de Schneider tem prevalência semelhante em diferentes culturas, enquanto outros sintomas variam muito em frequên. c1a. A sociologia psiquiátrica pode também estudar a influência de variáveis sociais e culturais (classe, mudança social, práticas de socialização, marginalidade, atitudes grupais) na etiologia, apresentação e evolução das doenças. Outro ponto de interesse é examinar as consequências da doença sobre a sociedade e os aspectos sociais dos serviços e profissões ligadas à saúde 12- 14 . A etnomedicina estuda a inter-relação entre o comportamento e a cultura de origem do paciente e de seu terapeuta. Assim sabe-se que diferenças étnicas e de gênero influenciam o diagnóstico e a conduta médica. Nos Estados Unidos, por exemplo, pacientes afro-americanos ou do sexo feminino com dor torácica recebem, com menor frequência, diagnóstico de infarto e são menos encaminhados à unidades de terapia intensiva 15-21 . A etnofarmacologia procura estudar a influência étnica sobre o uso e efeito das medicações22-27 . Os fármacos são largamente utilizados em diversas culturas e um consenso da eficácia destes nas diversas etnias acompanhou descrições de variações nas doses, efeitos colaterais
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A PSIQUIATRIA E SEUS LIMITES
e resposta a praticamente todas as classes de medicamentos. Os mecanismos responsáveis por estas diferentes res postas são a farmacocinética, a farmacodinâmica e os fatores não biológicos. As enzimas metabolizadoras de drogas no processo de biotransformação sofrem influência genética e apresentam diferenças interétnicas. Por exemplo, asiáticos e caucasianos diferem em termos farmacocinéticos e farmacodinâmicos na sua resposta ao haloperidol. Os primeiros têm concentração plasmática 50% maior. Japoneses e asiáticos podem eventualmente se beneficiar de dosas menores de lítio. O metabolismo dos benzodiazepínicos é mais lento nos asiáticos. Os fatores não biológicos exercem influência signifi cativa na resposta ao tratamento medicamentoso. Estes incluem a aderência ao tratamento, efeito placebo, estresse, suporte social, personalidade do paciente, crenças do paciente, expectativas, bem como a maneira como a medicação é prescrita. Consumo de diversos alimentos ou drogas como grapefruit, ervas medicinais, cafeína, tabaco, carne grelhada em carvão vegetal podem inibir ou induzir enzimas do citocromo P450. A percepção e descrição dos efeitos colaterais são fortemente influenciadas pelas crenças e expectativas determinadas pela cultura. Elas determinam sua atitude, comportamento e aderência ao tratamento. Discrepância nas crenças sobre a medicação entre clínicos e pacientes aliada a problemas de comunicação são as maiores razões para dificuldades na aderência ao tratamento. Todos esses achados e avanços, defendidos por pesquisadores e clínicos com formação sociocultural, culminaram no reconhecimento enfático, pela Associação Psiquiátrica Americana (American Psychiatric Association [APA]), na 4' edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-IV) da importância da cultura e etnicidade no diagnóstico e tratamento de transtornos psiquiátricos. Durante a elaboração do DSM-IV, foram dedicados esforços especiais para permitir o uso do manual também entre as populações culturalmente diversas, tanto nos Estados Unidos como internacionalmente. Foram avaliados indivíduos de numerosos grupos étnicos com diferentes passados culturais, incluindo muitos imigrantes recentes.
Formas culturais de expressão emocional Assim como cada cultura apresenta o seu modo peculiar de expressar ideias e conceitos, a expressão das emoções também pode ser culturalmente idiossincrática. Este fato pode gerar confusão na comunicação, perplexidade e mesmo animosidade entre pessoas de culturas diferentes, quando as reações não são conforme as expectativas. Por exemplo, o discurso fleumático dos anglo -saxões, a fala inflamada dos latinos, a exasperação apaixonada dos franceses e a impassividade dos orientais.
Mesmo na expressão de uma sensação fundamental como a dor, os médicos em comunidades multiculturais sabem que a resposta de diferentes grupos étnicos pode ser muito diferente 28-3 1. Klineberg estudou textos da literatura clássica chinesa e mostrou como os chineses percebem e expressam os seus sentimentos, usando várias partes do corpo olhos, língua, mãos etc. - para mostrar estados emocionais de modo essencialmente diferente do ocidente. Hindus conversam balançando a cabeça de um lado a outro, para expressar concordância. Um ocidental desavisado pode interpretar tal gesto como discordância 19 . Leff apontou que, muitas vezes, as diferentes gradações emocionais descritas por uma cultura estão na dependência de palavras ou expressões idiomáticas disponíveis para cada estado afetivo. Algumas línguas têm um rico repertório de palavras para descrever os diferentes estados de sentimento. Quanto maior este vocabulário, maiores as diferenças em sintomatologia e em transtornos específicos para aquela cultura 19 • A cultura ocidental muitas vezes privilegia o psicológico. Para o diagnóstico de depressão espera-se que estejam presentes, anedonia, desesperança, sentimentos de culpa. Entretanto, para a maior parte da população a depressão é manifestação somática, com queixas de cansaço, dor, formigamentos, vazio, palpitações, etc. Algumas culturas não possuem palavras para definir depressão ou ansiedade, sendo estas descritas por expressões somatoformes do tipo "meu coração está cansado" ou "meu coração bate depressa demais"13, 19 • Os Ainu em Hokkaido, no norte do Japão, sofrem diferentes tipos de cefaleia: a do urso, do veado e do pica-pau. A do urso se assemelha ao pisar pesado do urso, a segunda é mais leve e a terceira, latejante. Podemos até nos identificar com estas descrições, mas os Ainu vivem em um mundo animista, onde estes animais pertencem a um mundo espiritual habitado por deuses, ancestrais e forças demoníacas. Por isso o significado da dor será to talmente diverso 13, 19 .
Os sintomas como comunicação Os sintomas podem ter um significado para as pessoas próximas do paciente, isto é, são forma de comunicação e provavelmente expressam a psicodinâmica de um relacionamento. Um exemplo foi dado por Teoh & Tan, descrevendo um surto de histeria epidêmica entre ado lescentes da Malásia. Tais comportamentos pareciam ser a única forma de comunicação permitida para mulheres adolescentes dentro de uma sociedade altamente repressiva, paternalista, machista e hierárquica32 • No interior do Brasil, onde o acesso aos serviços de saúde é muito difícil e trabalhoso, os médicos valorizam as "crises histéricas': pois pode ser o único modo de chamar atenção da família e ser levado a tratamento por mal-
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estar ou dor. A expressão dramática de dor ou sofrimento indica a presença de algum problema sério de saúde. Um dos autores presenciou há poucos dias, em cidade da região amazônica, um familiar queixando-se dos médicos de um pronto -socorro local e protestando em anúncios veiculados pelos autofalantes de um veículo em movimento percorrendo a cidade. Sua esposa havia falecido pois seu comportamento havia sido interpretado como "piti", pois chorava e gritava intensamente. Na verdade estava sofrendo um infarto do miocárdio. O mesmo ocorre na Índia setentrional, onde uma grande proporção de pacientes diagnosticados e tratados com depressão apresentou inicialmente sintomas físicos. Os autores postularam que estes pacientes poderiam queixar inicialmente de sintomas somáticos, para tentar estabelecer a necessidade de consultar um médico. Justificam sua solicitação por meio de uma série de queixas universalmente reconhecidas como do domínio dos médicos especializados19. Não podemos nos esquecer que o comportamento frente à doença é fortemente influenciado pela cultura. Por exemplo, um etíope que se sinta doente deve demonstrar abundantemente sua doença. Deve ser levado carregado por parentes ao consultório médico mesmo que possa andar normalmente. O médico em nossa cultura pode facilmente considerar este comportamento exagerado e teatral diagnosticando -o como comportamento histriônico13.
O etnocentrismo O médico geralmente vai se comunicar dentro do modelo saúde/ doença aprendido. O paciente, por outro lado, nem sempre compartilha este modelo. Quanto maior a diferença cultural entre o médico e o paciente, maiores as chances de erros de comunicação que podem dificultar ainda mais a avaliação diagnóstica e a terapêutica. A importância de considerar os fatores culturais ao entrevistar os pacientes e ao fazer o diagnóstico tem como maior objetivo fugir do etnocentrismo. Este é um fenô meno bem conhecido em todas as culturas. É aquela convicção, geralmente inconsciente, de que as aquisições e valores da própria cultura são os melhores, os únicos corretos, e que qualquer diferença é considerada "primitivà'. Se o modelo do paciente não for levado em consideração, não haverá bom relacionamento médico-paciente, a comunicação será falha e não com preendida, e será grande a probabilidade de a orientação não ser seguida. Um cuidado maior é necessário no atendimento de pessoas de outra etnia ou língua. É mais difícil para o médico interpretar o significado das queixas e discernir sua pertinência e gravidade. A crença do médico sobre como determinada etnia reage pode influenciar a quantidade de medicação que é prescrito aos pacientes.
Estudos sobre diferenças étnicas entre médico e paciente mostram que nos Estados Unidos um paciente afroamericano tem maior probabilidade de receber um diagnóstico de esquizofrenia. Além de receber diagnósticos psiquiátricos mais graves, são tratados com neurolépti cos mais frequentemente e em doses mais elevadas, e recebem mais medicação de depósito. Pacientes de origem africana foram mais contidos em seus leitos durante uma internação que os de outras etnias. Isto pode ter causa no racismo, na experiência clínica de falta de aderência e nas dificuldades de diagnóstico decorrentes de modelos diferentes de comunicação. Na Inglaterra do século XVIII, doentes mentais eram trancados nus em celas úmidas, por médicos que achavam que eles não sentiam dor. No século XIX médicos americanos faziam cirurgias em mulheres afro-americanas sem anestesia, com a mesma justificativa. Crianças foram operadas no século XX sem anestesia, pela crença de que não sentiam dor por não terem seu sistema nervoso plenamente desenvolvido. Gênero é outra fonte de viés. Estudos sobre gênero e diagnóstico psiquiátrico demonstram que uma mulher tem maior probabilidade de receber um diagnóstico de histeria e um homem com comportamento semelhante o de personalidade antissocial33 -36 •
Cultura e personalidade A Escola Culturalista ou de Cultura e Personalidade, nos Estados Unidos, a partir de 1930, foi representada, entre outros, por M. Mead, R. Benedict, R. Linton e A. Kardiner, que desenvolveu diversos conceitos importantes e polêmicos. Um deles foi o de caráter nacional, que sugere que cada cultura está associada a uma estru tura de personalidade comum. Segundo esta escola a heterogeneidade de comportamento observado nas diversas culturas permitiria formar tipologias culturais. Os trabalhos deste período foram criticados como reducio nistas por atribuírem à cultura um papel causal e não complementar na formação da personalidade37. As descrições do culturalismo americano e conceitos como o de caráter nacional ainda influenciam o médico brasileiro. Não é raro ouvirmos em nosso meio citações sobre a "latinidade': o comportamento do paulista, do carioca ou do nordestino ou a "negritude'' ou "o brasileiro é assim'~ Precisamos estar atentos pois as generalizações sobre o caráter nacional podem ser utilizadas para embasar atitudes políticas, ideológicas ou discriminatórias. Laplantine9 alerta: "Proveniente de um procedimento empírico, tende a efetuar uma redução dos comportamentos humanos a tipos e a esboçar tipologias que devem muito mais à intuição e à própria personalidade do pesquisador do que a uma rigorosa construção de um objeto científico"9 • O consenso atual é de que um diagnóstico ou prognóstico significativo da personalidade de uma pessoa não
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deve ser feito somente com base na sua nacionalidade, mas existem particularidades em cada cultura a partir das quais os diferentes processos patológicos se elaboram.
Influência dos fatores culturais sobre o diagnóstico, prognóstico e tratamento Como descrevemos anteriormente, as manifestações clínicas são resultantes da interação de um sistema complexo que envolve fatores biológicos, psicológicos e socioculturais. Ao elaborarmos uma proposta terapêutica devemos, portanto, contemplar todas estas instâncias. No Brasil alguns diagnósticos carregam significado especial. É muito comum entre nós culpar a ''pressão" como a origem de múltiplos males. O médico irá ouvir diariamente que a pressão está alta ou que abaixou de mais. O fígado é fruto de outras tantas queixas, determinados alimentos fazem mal a ele, e o elevado consumo de hetatoprotetores. As professoras recomendam aos pais que o filho faça um eletroencefalograma, pois seu comportamento sugere "disritmià' . Detemos o recorde mundial de consumo de anfetaminas e seus derivados, graças às fórmulas para emagrecer, que tratam excesso de peso em mulheres com índice de massa corpórea de 20 a 25. São maneiras de expressar por meio de queixas físicas, problemas sociais e psicológicos, e estresse. Na Inquisição, procurava-se a marca do diabo espetando agulhas em busca de uma área insensível a dor. Isto era uma evidência infalível de bruxaria. No século XVIII a dor era um sentimento, uma emoção, portanto sua realidade não era questionada. No século XIX, positivista, dor era fruto de uma lesão do sistema nervoso. No caso da mulher se seus sintomas não estivessem de acordo com o conhecimento da época, era histeria, ou imaginação. O tratamento preconizado era o descanso. A paciente permanecia na cama, isolada de amigos e família, sua dieta era gordurosa e ingerida a cada hora. Qualquer atividade era proibida, inclusive ler e costurar. Ouvia palestras edificantes sobre os deveres e obrigações morais da mulher em casa. Após algumas semanas deste tratamento, qualquer uma voltava melhor à sua rotina de vida, por mais insatisfatória que ela fosse. As instruções finais eram: "Viva uma vida mais doméstica possível. Tenha as crianças perto de você o tempo todo, deite-se uma hora após as refeições, tenha só duas horas de atividade intelectual por dia, nunca toque uma caneta, pincel ou lápis até o final de sua vida:' 38 Na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX a gota chegou a ser classificada entre as neuroses, consequência de falha moral, sinal de vida devassa e preguiçosa. Assim como doença venérea ou alcoolismo entre nós hoje. No Brasil, México, Costa Rica, Argentina e Espanha a probabilidade de um paciente com câncer receber morfina é muito pequena, se comparado com um paciente da Inglaterra, Canadá ou Estados Unidos. O problema não
é o custo, mas a associação feita entre uso de morfina e dependência de drogas ilícitas3 1. A burocracia envolvida no processo de receitar certos analgésicos, receituário especial e pagamento para obtê-lo, medicação trancada e de acesso rotineiro difícil, dificultam e diminuem a probabilidade de prescrição. Estas restrições são fruto de crenças estabelecidas pela cultura, que dão origem a legislação e rotinas inadequadas, des pertam medo no profissional, fazem com que o médico nem considere esta possibilidade como alternativa, impedindo-o de prescrever adequadamente. No Brasil, a frequência de uso de álcool e drogas entre pacientes psiquiátricos é menor que em outras culturas, talvez pelos pacientes morarem com a família, ou pela crença de que álcool ou drogas "tiram o efeito dos remédios:'
Princípios gerais de prática clínica transcultural Numa entrevista diagnóstica culturalmente adequada, o entrevistador deve estar atento para os pontos indicados a seguir. Entrevista e barreira cultural
A regra de ouro para avaliação transcultural continua sendo a mesma para qualquer processo diagnóstico usual na psiquiatria clínica, que é estabelecer empatia durante a entrevista clínica. Para isso ocorrer o entrevistador deve estar ciente do estilo de comunicação preferido nessa diversidade cultural. Imigrantes de primeira geração, como asiáticos e latinoamericanos, podem favorecer um estilo comunicacional menos expressivo, principalmente quando estão falando com figuras de autoridade e sobre conteúdos que carregam algum estigma. Para superar este desconforto e negação inicial o clínico sensato usará sensibilidade e tato, principalmente quando se discutem temas sexuais, agressão e suicídio. Muitas culturas tradicionais esperam deferência e respeito aos idosos e chefes de família. Os seus membros podem responder com aborrecimento ou contenção emocional frente à abordagem igualitária e informal que predomina na cultura médica ocidentaP9 . Avaliaçã o
As chances de erro diagnóstico, super ou subestimar psicopatologia são comuns na avaliação diagnóstica de pacientes com barreira linguística. Um diagnóstico errado é consequência comum. Por exemplo, Marcos et al. demonstraram que os pacientes esquizofrênicos de o rigem hispânica tenderam a exibir mais psicopatologia em entrevistas feitas em outra língua do que em seu espanhol nativo. Os clínicos transculturais que trabalham com refugiados, por exemplo, advertem que não se deve rotular erroneamente como psicopatologia do eixo I quando os
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refugiados do sudeste asiático relatam histórias vívidas e nítidas de ter testemunhado massacres e torturas antes ou durante o seu processo de imigração40. Linguagem
Marcos25•40 estabeleceu a importância de avaliar a proficiência linguística do paciente bem como a sua independência linguística. As pessoas bilíngues podem apresentar acesso desigual às emoções profundas. O clínico que entrevista um paciente usando a sua segunda língua deve também perceber que esta é menos eficiente para evocar e expressar emoções complexas. Isto pode resultar numa história psiquiátrica mais limitada e menos acurada. A perda de sutilezas comunicativas pode levar o clínico a subestimar a capacidade adaptativa do paciente para funções cognitivas superiores como o humor e ironia. O uso da segunda língua reduz a habilidade do paciente em estabelecer uma relação de apoio e comunicação emocional com os terapeutas. Consultores culturais
Quando a barreira de linguagem é intransponível, o clínico pode necessitar do auxílio de um tradutor ou intérprete. Idealmente, eles devem receber treinamento específico para assistência psiquiátrica. A interpretação pode superar as limitações de uma tradução simples, por abarcar não somente o significado literal das sentenças proferidas pelo paciente (significado denotativo), mas também as ricas nuances de afeto e significado que acompanham aquela expressão (significado conotativo). Muitos autores descreveram as armadilhas de avaliar pacientes monolíngues por meio de uma tradução inadequada. Quando os parentes ou outros tradutores não treinados são utilizados, as chances de comunicação errônea são expandidas pelo processo de transferência e contratransferência que ocorre entre o paciente e o tradutor, destruindo a confidencialidade esperada para a entrevista clínica. Estes fatores favorecem o uso de tradutores treinados em certas circunstâncias, ou integrando a equipe clínica multidisciplinar. Para obter um diagnóstico acurado e completo, alcançando um planejamento de tratamento culturalmente adequado, é frequentemente necessário o uso de consultores culturais com familiaridade no passado cultural, normas, linguagem de sofrimento, modelos explicativos de doença e dinâmica familiar do paciente4 1•42 .
dades mentais, tanto espontâneas como estimuladas pelas perguntas do entrevistador, são de suma importância. Ao interpretar a aparência, o comportamento, a linguagem e o conteúdo do pensamento do paciente, o entrevistador deve estar atento a um erro típico chamado falácia categoria!. Isto é, o observador tende ou se esforça em adequar todas as condições e observações, independente do seu contexto cultural, para o modelo diagnóstico ocidental, sem valorizar o modelo diagnóstico da cultura local. A resposta do paciente para itens mentais específicos é afetada pela sua cultura de origem, nível educacional, grau de alfabetização, proficiência linguística e nível de aculturação. Os seguintes pontos do exame do estado mental são os mais vulneráveis a erro de interpretação7.43 -46. Aparência e comportamento
Muitas das anotações em observações clínicas psiquiátricas estão repletas de expressões como normal, apropriado, adequado etc., que apresentam variações culturais significativas e devem ser cuidadosamente avaliadas pelo clínico. Relação com o avaliador
A avaliação da atitude e o relacionamento do paciente com o psiquiatra pode ser afetada por muitas variáveis psicossociais, por exemplo, se a entrevista é voluntária ou a situação clínica é urgente. Manutenção ou esquiva de contato visual, deferência, reserva, polidez, proximidade física, e contato físico são sujeitos à influência cultural que o clínico deve se empenhar a decodificar. Psicomotricidade, linguagem e pensamento
Um paciente que se comunica na sua segunda língua não dominante tende a utilizar atividade não verbal adicional para facilitar a comunicação através da barreira linguística. Este esforço extra deve ser avaliado cuidadosamente e não ser atribuído a tensão, hiperatividade, distúrbio do pensarnento ou outras formas de psicopatologia. Os entrevistadores devem estar atentos para este erro, repetindo as perguntas mais importantes, introduzindo redundâncias para facilitar a comunicação, além de identificar os sinais paralinguísticos que podem obscurecer a sua avaliação de humor e expressão emocional. Na dúvida, um tradutor treinado ou consultor cultural deve ser solicitado para validar a entrevista47 -49 .
Avaliação do estado mental
A avaliação do estado mental está sujeito a muitas distorções quando conduzida com barreiras linguísticas e culturais. O processo central da avaliação do estado mental envolve a observação e a interpretação da aparência, do comportamento e da linguagem do paciente. As ativi-
Afetividade
Ao avaliar o humor, a ressonância afetiva e a tonalidade afetiva de um paciente é necessário reconhecer que tanto as expressões afetivas espontâneas como as estimuladas são profundamente moldadas por normas culturais
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e expectativas. A impassividade culturalmente sancionada não deve ser interpretada erroneamente como embotamento afetivo, nem o entusiasmo observado em indivíduos de origem mediterrânea deve significar intensidade excessiva de afeto. Os entrevistadores devem ser sensíveis ao significado dos fatores linguísticos que podem obscurecer a interpretação do afeto50•51 •
Síndromes ligadas à cultura (culture-bound syndromes) As síndromes ligadas à cultura recebiam uma atenção limitada dos pesquisadores, pois eram mencionadas como
Tabela 11
quadros exóticos e raros de distúrbios no pensamento, humor ou comportamento, mostrando uma apresentação dramática, ocorrendo no contexto de características locais específicas, relevantes para aquela cultura particular. Na taijin kyofusho, uma síndrome prevalente no Japão, por exemplo, os indivíduos que dela sofrem apresentam uma preocupação intensa que seu corpo possa ser ofensivo aos outros (pelo olhar, aparência, odor corporal ou qualquer outra característica). Ela é melhor entendida pela intensa valorização dos japoneses do comportar-se de forma socialmente apropriada, e pela vergonha de transgredir regras da tradição cultural. Algumas das principais síndromes ligadas à cultura estão na Tabela Il52- 54 •
Síndromes ligadas à cultura
África, afroamencanos, afro-caribenhos e Estados Unidos meridional
Ásia ou Sudeste Asiático
Nome da síndrome
Sintomas predominantes
Etnia/cultura ou área
Boufée délirante
Eclosão súbita de comportamento agitado e agressivo, confusão, excitação psicomotora, pode incluir alucinose ou paranoia
África ocidental, Haiti
Confusão mental (brain fog)
Dificuldades em concentração, memória, pensamento, sintomas na cabeça e pescoço - dor, pressão, tensão, calor, queimação, visão borrada
África ocidental
Desmaio (falling-out ou blacking ou{)
Colapso súbito precedido de tontura com ou sem pródromo, incapacidade para enxergar ou se mover
Caribe e Estados Unidos meridional
Ode-ori
"Sentimento" de calor na cabeça, sensação de parasita dentro da cabeça, pode ser atribuído à feitiçaria
Nigéria
Trabalho (rootwork)
Ansiedade e queixas gastrointestinais, fraqueza, tontura, medo de ser envenenado ou assassinado, atribuído à feitiçaria
Caribe e Estados Unidos meridional (afro-americanos e europeus nos EUA)
Sangue dormido
Dor, dormência, tremor, paralisia, choque, convulsões, cegueira, ataque cardíaco, infecção, aborto
Portugueses de Cabo Verde
Zar
Episódios dissociativos (pode incluir risadas, gritos, sacudidela de cabeça, choro, canto), apatia ou isolamento, recusa alimentar; não é considerado patológico pela cultura local, é atribuído à possessão dos espíritos
Norte da África, Oriente Médio
Feitiço (spe/1)
Estado de transe, algumas vezes com alteração de personalidade durante a "comunicação" com os parentes falecidos
Estados Unidos meridional (entre os afro-americanos e brancos)
Amok
Episódio dissociativo com ira acompanhado de crise de violência, frequentemente acompanhado de ideias persecutórias, automatismo, amnésia, exaustão e retorno ao estado pré-mórbido após a crise
Malásia (outras áreas de Ásia, Pacífico, Porto Rico e entre os Navarros)
Dhat
Intensa ansiedade e preocupações hipocondríacas sobre a perda de sêmen, descoloração da urina, fraqueza e exaustão
Índia
Hwa-byung
Pânico, medo de morte iminente, disforia, insônia, fadiga, dispneia, indigestão, sensação de massa epigástrica, anorexia, palpitações, dores - atribuídos à supressão da raiva
Corei a
Koro
Ansiedade súbita intensa que os genitais encolherão para dentro do corpo e causar morte
Ásia (sul e leste)
Lata h
Hipersensibilidade ao medo súbito, frequentemente acompanhado de ecopraxia, ecolalia, obediência automática, comportamento dissociativo ou de transe
Malásia, Indonésia (também descrito na Sibéria, na Tailândia e no Japão)
Psicose induzida por Qigong (zhouruo-zhumo)
Dissociação aguda, paranóia, outros sintomas psicóticos, ansiedade, irritabilidade, atividade motora incontrolável. Os sintomas somáticos são atribuíveis à aplicação inapropriada ou incapacidade de finalizar Qigong
China
Continua
9 INFLUÊNCIA DA CULTURA SOBRE A PSIQUIATRIA
Tabela 11
Síndromes ligadas à cultura (continua)
Ásia ou Sudoeste Asiático
Áreas de cultura ocidental (anglo-saxões, norte-americanos)
Latinoamencanos. latinos
Índios e nativos norte-americanos, esquimós, ilhas do Pacífico
Nome da síndrome
Sintomas predominantes
Etnia/cultura ou área
Neurastenia (Shenjingshuairuo)
Fadiga, tontura, dores, prejuízo de memória e concentração, distúrbio de sono, problemas gastrointestinais, disfunção sexual, irritabilidade, excitabilidade, distúrbios do sistema nervoso autônomo
China
Espermatorreia (Shen-k'uei/ Shenkui)
Ansiedade, pânico, tontura, dor nas costas. fatigabilidade, fraqueza. insônia, sonhos frequentes, disfunção sexual - atribuída à perda de sêmen
Japão, China
Shin-byung
Ansiedade e queixas somáticas são acompanhadas de dissociação e possessão
Corei a
Shinkeishitsu
Obsessões, perfeccionismo, isolamento social, fadiga, hipocondria
Japão
Swoy
Perda de prazer. fadiga, perda de apetite, insônia, tontura, alucinose, sensação de paralisia, pressão no peito
Tailândia
Taijin kyofusho
Medo intenso de que o seu corpo seja ofensivo para alguém
Japão
Anorexia nervosa
Recusa em manter peso corporal normal, amenorreia, medo de engordar. distorção da imagem corporal - atribuído a estressares psicossociais, vulnerabilidade genética e pressões culturais para se manter magro
Reino Unido, Europa, América do Norte e Sul (Japão, China e algumas áreas do Oriente Médio)
Síndrome de fadiga crônica/síndrome de encefalomielite miálgica
Humor depressivo de grau leve, distúrbio de memória e concentração, confusão, dificuldade para dormir, fadiga
América do Norte, Inglaterra e Austrália
Transtorno dissociativo de identidade
Presença de duas ou mais personalidades distintas que toma controle do comportamento da pessoa
Estados Unidos
Mal de ojo
Sono agitado, choro. diarreia, febre, vômito - atribuído à rivalidade ou ciúme
Mediterrâneos (geralmente em criança)
Bruxa velha (old hag)
Distúrbios hipnagógicos ou hipnopômpicos
Terras Novas (Newfoundland)
Ataque de nervos
Grito, choro, tremor. calor subindo do peito à cabeça. agressão; algumas vezes dissociação, pseudoconvulsão ou desmaio; ameaça suicida, sensação de estar fora de controle. Rápido retomo à normalidade, pode ou não ser visto como localmente anormal, atribuído a um estressar específico
América Latina e Mediterrâneo
Bílis, cólera
Tensão nervosa aguda, cefaleia, tremor, grito, distúrbios estomacais, às vezes com perda de consciência, fadiga crônica a partir do episódio; atribuído à raiva que perturba o equilíbrio corporal nuclear
Grupos latinos
Loucura
Psicose crônica, incoerência, agitação, alucinação auditiva e visual, transgressão de regras sociais, imprevisibilidade, às vezes violência, atribuída à vulnerabilidade herdada ou aos estressares
América Latina e latinos nos Estados Unidos
Nervios
Grande variedade de sintomas de sofrimento emocional, distúrbio somático, incapacidade para funcionamento devido a cefaleia, irritabilidade, distúrbios estomacais, dificuldades para dormir, nervosismo, choroso, incapacidade para se concentrar, tremor, sensação de zumbido, tontura - atribuída à vulnerabilidade ao estresse ou dificuldade de circunstâncias de vida
América Latina e latinos nos Estados Unidos
Susto
Distúrbio de apetite, alterações de sono, tristeza, falta de motivação, sentimentos de baixa autoestima; dores, diarreia - atribuído a um evento amedrontador que provocou a saída da alma do corpo
México, América Central e do Sul, latinos nos Estados Unidos
Aborrecimentos dos fantasmas (ghost sickness)
Preocupação com a morte e pessoa falecida, sonhos ruins. fraqueza, sentimento de perigo, perda de apetite, desmaio, tontura, medo, ansiedade, alucinações, perda de consciência, confusão, sentimentos de futilidade, sensação de sufocação
Grupos nativos americanos
Lich'aa
Episódio dissociativo semelhante a Amok
Navarros
Hi-wa itck
Insônia, anorexia, depressão, suicídio - atribuído à separação indesejada da pessoa amada
Mohave Continua
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela 11
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SEÇÃO 1
A PSIQUIATRIA E SEUS LIMITES
Síndromes ligadas à cultura
Índios e nativos norte-americanos, esquimós, ilhas do Pacífico
Nome da síndrome
Sintomas predominantes
Etnia/cultura ou área
Pibloktoq
Episódio dissociativo abrupto (geralmente com grito, atos irracionais ou perigosos). Frequentemente acompanhado de convulsões e coma por até 12 horas
Esquimós
Cafard, cathard
Episódio dissociativo semelhante a Amok
Polinésia
Na tadoka ni vasucu
Dores no pós-parto, ocasionalmente ansiedade - atribuída à exaustão
Fiji
Puke he faka'avanga
Perda de apetite e perda de peso - atribuída à visita de espíritos
Tonga
Fonte: adaptada do DSM-IV CAPA, 1994) e Kaplan & Sadock (1997) 55- 57
Tabela 111 Roteiro para formulação cultural (Avaliação cultural global para diagnóstico e tratamento) Identidade cultural do indivíduo • Grupo cultural ou étnico de referência • Grau de assimilação da cultura hospedeira • Habilidades linguísticas e preferências Explicações culturais da doença • Linguagem predominante de sofrimento (idiom of distress) • Significados e gravidade percebida em relação às normas do grupo de referência • Categoria local de doença • Modelos explicativos do indivíduo e grupo de referência cultural • Comportamentos de busca de ajuda Fatores culturais relacionados ao ambiente psicossocial e níveis de funcionamento • Estressares sociais identificados • Apoio social • Níveis de funcionamento e incapacitação (em relação ao grupo de referência) Elementos culturais de relacionamento entre o indivíduo e o clínico • Diferenças no passado cultural e posição social entre o indivíduo e o clínico pode provocar problemas para comunicação, levantamento das informações e interpretação dos sintomas. Fonte: adaptada de American Psychiatric Association 76 •
A formulação cultural É um instrumento importante no diagnóstico e tratamento de indivíduos culturalmente diversos, como a formulação psicodinâmica é para o psiquiatra de orientação psicodinâmica. Nucci60 discute extensamente a formulação cultural em psiquiatria e apresenta um ótimo roteiro de entrevista, para uma abordagem em profundidade58•59 . O DSM-IV (1994) sugere um esboço para uma avaliação completa e recomenda que algumas categorias sejam incluídas sistematicamente (Tabela III) 56 .
A linguagem para expressar sofrimento Cada cultura apresenta uma lista de expressões apropriadas para expressar determinadas emoções. A expres-
Tabela IV
Questões para identificar o modelo explicativo
Como (o que) é esse problema? Como ele afeta o seu corpo? O que poderá acontecer em seguida? O que acontece se a doença durar muito tempo? O que você mais teme nesta doença? Qual é o tratamento mais apropriado? O que dá mais medo no tratamento? Quais as explicações que sua família e amigos dão a esta doença? Fonte: adaptada de Kaplan et ai., 19977•
são "linguagem de sofrimento" (idioms of distress) serve para designar formas peculiares de um indivíduo de determinada cultura expressar estes estados afetivos44• Muito . ' . comum no nosso me10 e ancorar os sentimentos com um sintoma físico, por exemplo, "dor de cotovelo", "coração partido': "gastura'' entre outros. Entre os asiáticos, principalmente os chineses, formas específicas de expressar o sofrimento podem afetar muitas vezes o diagnóstico ocidental ou alterar o resultado de escalas psicométricas49•60 • Paulo Dalgalarrondo43 provê um interessante glossário de denominações populares relacionadas à psicopatologia, entre as quais encontram-se também várias formas de síndromes específicas do contexto brasileiro e expressões de sofrimento recolhidas em diversas regiões do Brasil43 •
Como a pessoa entende sua doença os modelos explicativos Algumas perguntas simples podem ajudar a ter uma visão mais clara do modelo explicativo do doente (Tabela IV)?.
Terapias com influência religiosa praticadas no Brasil Todas as psicoterapias sofrem influência cultural. As comumente aceitas pelo meio acadêmico como "científicas" têm origem no ocidente e surgem quando o indivi-
9 INFLUÊNCIA DA CULTURA SOBRE A PSIQUIATRIA
Tabela V
Psicoterapia com influência religiosa praticadas no Brasil
Linha terapêutica
Descrição dos principais métodos
Terapia noossofrológica Criador: Frei Albino Aresi da Clínica Mens Sana
Associa métodos psiquiátricos e psicológicos convencionais e poderes paranormais para diagnóstico e cura. Após uma triagem e entrevista, o paciente pode ser encaminhado a vários serviços: 1) Psicorelax: aparelho que produz vibrações suaves, onde o paciente recebe sugestões, musicoterapia e cromoterapia; 2) Psicotron: colchão vibratório operado por pessoa paranormal, chamada de sensitiva, que detecta fatos do inconsciente. Um relatório é encaminhado ao psicoterapeuta, o que abreviaria o processo terapêutico, tornando-o mais eficiente. Outras técnicas: pulsotron, regressão de idade, fisioterapia, massagem, medicamentos, terapia religiosa, cursos psicoprofi láticos66 •
Trilogia analítica ou "psicanálise integral" Criador: Norberto Keppe
Pretende reunir ciência, filosofia e espiritual idade (trilogia) analisando todas as partes ou fatos, para corrigir os erros de cada campo e promover o desenvolvimento de uma ciência mais completa (analítica). Segundo Keppe, a psicoterapia trilógica é o processo de conscientização da dialética errônea e a recuperação e desenvolvimento da humanidade dependem dessa percepção. A terapia adota o método dialético, a união do sentimento verdadeiro (amor) com o pensamento verdadeiro, chegando à consciência que possibilitará o agir correto. Leva à unificação da ciência, filosofia e teologia; do senimento, pensamento e ação; visando à unificação dos homens. raças e nações67•68•
Psicotranse Criador: Dr. Eliezer Mendes
Propõe a cura do equilíbrio energético utilizando os processos mediúnicos. Utiliza do manancial incalculável das religiões mediúnicas na psicoterapia. Esquizofrenia e epilepsia são vistas como fenômenos parapsicológicos, ocasionado por desequilíbrios na captação de energias estranhas subconscientes ou do exterior. Acomete indivíduos em viagens por universos paralelos. Adaptou técnicas de hipnose, parapsicologia, terapia reichiana, regressão de memórias e a vidas passadas e terapia primai. Tem forte influência da umbanda, usando técnicas de indução de transe. Os terapeutas sensitivos captam a loucura do paciente (energias que perturbam o paciente) através da transidentificação (os pensamentos e sentimentos de uma pessoa viva ou morta detectados pelo sensitivo) e transmutação (o sensitivo passa a expressar o que sente, capta e transforma simultaneamente os distúrbios que recebeu em algo que não lhe deixará resquícios energéticos) 69 .
Terpsicore-transe-terapia Criador: David Akestein
Terpsicore, a deusa mitológica da dança. foi o motivo da denominação. Usa de técnicas de indução de transe e musicoterapia, integrando-as no tratamento que é eminentemente não verbaF0• Por meio do transe cinético, formulado a partir do fenômeno de transe dos cultos afro-brasileiros, ocorre a liberação emocional e pela dessensibilização, uma restruturação da personalidade e harmonização biopsicossocial. Não usa o aspecto místico ou religioso 70•
Nova Era movimentos gnósticos
Propõe o abandono de uma visão materialista e a vivência de uma nova era de consciência. Esta pode ser adquirida ou desenvolvida por meio da meditação, artes marciais, hipnose, drogas, trabalhos corporais etc. O sobrenatural é herdado e pode ser detectado ou utilizado através de telepatia, percepção extrassensorial, transmigração de almas, profecias, cura pela fé, energias, vibrações, toques terapêuticos, astrologia, tarô, búzios etc. As relíquias e objetos sagrados tem grande importância, colecionando-se amuletos, pirâmides, cristais etc.64•65•
Terapia de Vidas Passadas Origem: Estados Unidos
Através de indução hipnótica processa-se a regressão no tempo à procura de momentos nos quais traumas ocorreram. O material não é interpretado, mas descarregado. Pesquisa não só as memórias da vida atual, mas também as reminiscências da vida intrauterina e de vidas pregressas. Nessas memórias surgiriam causas e porquês dos sintomas e patologias. O paciente é induzido a repetir a emoção sentida nos momentos dramáticos da regressão até que a angústia desapareça. Traumas podem ter ocorrido em diversas vidas, e memórias traumáticas podem ser reavivadas por acontecimentos perinatais, devendo tudo isto ser explorado e trabalhado. As principais indicações seriam as fobias, histeria e sintomas psicossomáticos 71•
Cura Interior Criador: Ruth Carter Stapleton Origem: Estados Unidos
Tem grande penetração no meio evangélico, mas principalmente no carismático católico. Enfatiza o papel da oração e da influência do Espírito Santo e a importância da cura para a comunidade cristã. Usa de algumas ideias freudianas, como as experiências da infância influenciando o comportamento e pensamento adulto e de Missildine, como ajudar as pessoas a identificar, compreender, respeitar, aprender a lidar com a criança do passado.
Aconselhamento Noutético Criador: Jay Adams Origem: Estados Unidos
Tem grande penetração entre os pastores evangélicos brasileiros, que adotam suas ideias e métodos para realizar aconselhamento. O objetivo do tratamento é mudar o modo como as pessoas vivem suas vidas, e o padrão para mudança é a Bíblia. Se a pessoa vive de modo inconsistente com o padrão bíblico, ela precisa mudar (noutesia). O terapeuta deve confrontá-la em amor72•
Cientologia Criador: L. Ron Hubbard Origem: Estados Unidos
Iniciou-se como técnica de tratamento, denominada dianética - a ciência moderna da saúde mental -. mas passou, para evitar a pressão do FDA. a ser um movimento religioso. As clínicas se tornaram templos e os terapeutas em sacerdotes. As pessoas devem passar por uma auditoria, inicialmente um questionário, depois um aparelho, denominado e-meter. A infelicidade seria derivada de aberrações mentais (engramas) provocadas por traumas precoces. Humanos seriam constituídos por espíritos (thetans) expulsos da terra há 75 milhões de anos por um governante galáctico chamado Xenu. O aconselhamento através do e-meter pode quebrar os engramas, melhorando a inteligência e a aparência.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 1
A PSIQUIATRIA E SEUS LIMITES
dualismo passa a ser o modo de ser dominante. O cadinho religioso que é o Brasil reflete-se na prática médica. Diversas são as terapias com influência religiosa, algumas aqui criadas, outras importadas, mas com grande penetração; algumas praticadas por profissionais, outras por leigos. Alguns exemplos estão na Tabela V 62-65 . Como este sincretismo terapia e religião deve ser avaliado? Os seguintes critérios devem ser adotados 73-75 : • Critério científico (avaliação dos resultados e do processo): descrição do tratamento se possível com um manual, especificar os fatores clínicos que serão afetados. Se o tratamento funciona, usando desenhos de pesquisa adequados? Como o tratamento compara com os outros? Quais são os ingredientes clínicos fundamentais? Como interage com variáveis do tipo qualidades do terapeuta, condições interpessoais? Qual a população alvo? Como medir as mudanças? Etc. • Critério epistemológico: se a terapia está aberta a críticas e evolução, se dialoga com as neurociências e a psicologia, se a análise teórica é baseada nos conhecimentos médicos e psicológicos. • Critério ético: se há controle dos terapeutas, se é possível averiguar fatos apregoados, se o tratamento é patenteado, se está envolvido em problemas legais, se funciona como culto totalitário, se explora pacientes e terapeutas. • Critério administrativo e organizacional: preparo e formação dos terapeutas, financiamento. • Critério psicopatológico: sistema teórico paranoide, explicações delirantes sobre o grupo, saúde mental de liderança). • Critério cultural: sensibilidade cultural, não elitista, respeito ao conceito de "self' da comunidade, linguagem simbólica adequada, cuidados com o popularesco. • Critério teológico: insere-se numa tradição teoló . gtca. Nenhuma dessas práticas passa incólume por estes crivos. Entretanto, as práticas psicoterápicas convencionais aceitas pelas academias e conselhos regionais e federais também não passam. São aceitas como científicas porque a cultura acadêmica assim o determinou.
Uma terapia sensível à cultura: a terapia comunitária A terapia comunitária é uma técnica simples de trabalho em grupo, solidamente ancorada na teoria sistêmica, teoria da comunicação e antropologia cultural. Foi desenvolvida pelo Prof. Dr. Adalberto Barreto, do cente de Medicina Social da Universidade Federal do Ceará, que trabalha no tema desde 1987, reconhecido internacionalmente e divulgador da técnica por vários estados brasileiros. A terapia comunitária surgiu da necessidade de atendimento a grandes grupos de pessoas com transtornos mentais, problemas e sofrimento. Trata-se de um procedimento terapêutico de caráter pre-
ventivo em saúde mental (atenção primária), fomentador de cidadania e que permite a construção de redes solidárias. Vem sendo utilizada em comunidades carentes e em contextos de precariedades fundamentais, por meio de equipes institucionais públicas, privadas e/ ou voluntárias. Trata-se de uma técnica inovadora e de fácil aplicação, que atinge um grande número de pessoas, tornandose desta forma uma ferramenta de promoção de saúde. É um instrumento valioso para se diagnosticar e atender as carências, lacunas de conhecimento e problemas emergentes específicos de grupos nos mais diferentes lugares. Mostra-se também um procedimento privilegiado para a divulgação de informações e para uma efetiva comunicação com a população. A terapia possui a seguinte estrutura: 1) Acolhimento: ambientar o grupo, definir a terapia comunitária e as regras para o funcionamento do grupo. Passar a direção ao diretor do dia. 2) Aquecimento: aquecer o grupo para trabalhar, dando-se algum exercício, brincadeira etc. 3) Escolha do tema: levantar todos os temas, anotar e resumir para que o grupo possa fazer a escolha do que será discutido. O grupo escolhe o tema a ser discutido, que será apresentado pelo protagonista do problema. 4) Contextualização: este é o momento de entender o problema da pessoa. Ela vai explicar, contar seu problema e todos podem fazer perguntas que a ajudem a esclarecer a dor dessa pessoa. Preparam -se pelo menos dois motes (perguntas-chave que permitem a reflexão do grupo sobre o sentido do comportamento na situação pro blema, para facilitar e tornar consciente o que a pessoa está querendo comunicar). Somente quando os motes estiverem prontos passa-se para a próxima etapa. Níveis possíveis de mote: individual, familiar, comunitário e social mais amplo. 5) Problematização: neste momento o protagonista ouve, fica de lado aguardando. Coloca-se o mote para mo tivar as pessoas do grupo a trazerem experiências, vivências e principalmente as resoluções criativas das suas situações-problema. 6) Término: ritual de agregação e conotação positiva. Terapeuta pede ao grupo para ficar de pé. A pessoa que está aguardando vai receber uma palavra positiva do terapeuta que em seguida convida o grupo fazer o mesmo. Para finalizar o grupo é chamado a dizer o que levará para casa daquela sessão e o que aprendeu.
Questões 1. O pioneiro da psiquiatria transcultural foi: a) Bleuler. b) Kraepelin. c) Pike. d) Kleinman.
9 INFLUÊNCIA DA CULTURA SOBRE A PSIQUIATRIA
Qual afirmação é correta sobre etnomedicina? Estuda a influência étnica sobre o uso e efeito das medicações. Examina as consequências da doença sobre a sociedade. Estuda a influência de variáveis sociais e culturais na etiologia das doenças. d) Estuda a interrelação entre o comportamento e a cultura de origem do paciente e do terapeuta.
2. a) b) c)
3. Em relação a prática clín ica transcu ltural é correto afirmar que: a) Empatia não é importante. b) Imigrantes de primeira geração podem favorecer um estilo de comunicação menos expressivo. c) Idosos e chefes de família de sociedades tradicionais não se incomodam com um estilo de entrevista informal. d) A psicopatologia é a mesma em pacientes de culturas diferentes. 4. Taijin Kyofusho é: a) Uma síndrome que só existe na Tailândia. b) Uma eclosão súbita de comportamento agitado e agressivo. c) Síndrome que se assemelha a fobia social. d) Episódio dissociativo acompanhado de crise de violência. Sobre a terapia comunitária é correto afirmar que: Foi adaptada da cultura norte-americana para o Brasil. O terapeuta necessita formação especializada. A sessão possui as seguintes fases: acolhimento, aquecimento, escolha do tema, contextualização, problematização, término. d) Trabalha em pequenos grupos comunitários com finalidade curativa.
5. a) b) c)
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SEÇÃO 1
A PS IQ UIATRIA E SEUS LI M ITES
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Psiquiatria e Religião
Francisco Lotufo Neto Frederico Camelo Leão Zenon Lotufo Jr.
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 105 Religião madura e saudável, 106
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
O que os estudos científicos mostram, 106 Religiosidade intrínseca e compromisso religioso, 108 Mecanismos de ação, 108
1. Detalhar os argumentos que discutem os prejuízos ou benefícios da religião sobre a saúde. 2. Conhecer as características de uma religião madura e saudável.
Comportamento e estilo de vida, 108 Apoio social, 109
3. Conhecer algumas evidências científicas sobre a influência da
Sistema de crenças, 109 Rituais religiosos, 109
4. Conhecer alguns mecanismos por meio dos quais a religião
religião sobre a saúde. influencia a saúde.
Oração, 109 Meditação, 109 Confissão, 109 Perdão, 11 O Conversão, 11 O Exorcismo, 11 O Liturgia, 11 O Benção, 110 Direção espiritual, 11 O Idioma para expressar o estresse e promover ajustamento pessoal, 111 ProSER - Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP, 111 Questões, 112 Referências bibliográficas, 113
Introdução Psiquiatria e psicologia são ciências novas, praticamente nascidas no século XIX. Seu relacionamento com a religião tem sido conturbado, com desconfianças e hostilidades de ambos os lados. No lado dos opositores te mos Freud, pai da psicanálise, que considerava a religião uma ilusão e um transtorno obsessivo-compulsivo da humanidade. Albert Ellis 1, criador da terapia racional emotiva, no seu estilo contundente, afirmou ser a religião causadora de patologia e neuroses. Mais tarde, diante das
evidências em contrário apresentadas por Malony2, que estudou pacientes da própria clínica de Ellis e mostrou que os religiosos apresentavam maior progresso e saúde, mudou de opinião. Dois pioneiros suíços, Oskar Pfister3, pastor, e Paul Tournier\ médico, deram importante contribuição para mudar esse clima de animosidade. Oskar Pfister teve sua correspondência com Freud recentemente publicada em português e os livros de divulgação de Paul Tournier têm tido grande aceitação. Dessa forma, uma colaboração inestimável tem sido prestada à prática médica, psiquiátrica, psicológica e teológica. Oskar Pfister, pastor luterano e amigo íntimo de Freud, permite-nos conhecer a visão freudiana da espiritualidade. Paul Tournier foi um dos pioneiros da aplicação da fé cristã na prática médica e na psicoterapia, sendo seu trabalho considerado praticamente sinônimo de aconselhamento cristão. Seus livros tocam ainda o coração de muitos, ajudando, despertando o crescimento pessoal e espiritual, aprimorando o conhecimento do si mesmo e permitindo uma vida mais plena na comunhão com Deus. Uriel Heckert, professor de psiquiatria da Universidade Federal de Juiz de Fora, estudou sua obra em sua disser-
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tação de mestrado, introduzindo entre nós a reflexão sobre o assim considerado "Pai da Medicina da Pessoà'. Aqui serão tratados os frutos dessas primeiras tentativas de integração entre saúde mental e religião. Por meio de uma contínua diminuição dos preconceitos contra, a religião nos meios psicológico e psiquiátrico. Assim, a religião e sua influência sobre a saúde tornou -se objeto de estudo científico. Esses estudos mantêm a polarização e a ambiguidade que a religião sempre traz: alguns acham que ela é prejudicial à saúde mental, outros defendem seus benefícios. Os principais argumentos dos dois lados em conflito estão no Quadro I.
Religião madura e saudável Para Pruyser5, psicólogo da Clínica Mayo, os componentes de uma teologia são idealizados para formar um Qua dro I
Argumentos sobre a religião
1. Argumentos dos que afirmam ser a religião prejudicial:
a. Gera níveis patológicos de culpa. b. Promove a autodepreciação e diminui a autoestima, por meio de crenças que desvalorizam nossa natureza fundamental. c. Estabelece a base para a repressão da raiva. d. Cria ansiedade e medo por meio de crenças punitivas (por exemplo: inferno, pecado original etc.). e. Impede a autodeterminação e a sensação de controle interno, sendo um obstáculo para o crescimento pessoal e o funcionamento autônomo. f. Favorece a dependência, o conformismo e a sugestionabilidade, com o desenvolvimento da confiança em forças exteriores. g. Inibe a expressão de sensações sexuais e abre caminho para o desajuste sexual. h. Encoraja a visão de que o mundo é dividido entre "santos" e "pecadores", o que aumenta a intolerância e a hostilidade em relação "aos de fora ". 1.
Cria paranoia com a ideia de que forças malévolas ameaçam nossa integridade moral.
J. Interfere no pensamento racional e crítico. 2. Argumentos dos que acham que a religião tem impacto positivo sobre a saúde: a. Reduz a ansiedade existencial ao oferecer uma estrutura cognitiva que ordena e explica um mundo que parece caótico. b. Oferece esperança, sentido, significado e sensação de bem- estar emocional. c.Ajuda as pessoas a enfrentarem melhor a dor e o sofrimento, por meio de um fatalismo reassegurador. d. Fornece soluções para uma grande variedade de conflitos emocionais e situacionais.
plano de vida que, se praticado, pode trazer alegria e satisfação ao que crê. Toda religião contém esses elementos e sua integração a um estilo de vida é o determinante da relação positiva entre religião e saúde mental. Esses ele mentos são multidimensionais, mais complexos que o simples frequentar um serviço religioso e se conformar a certas crenças. Malony6, numa perspectiva cristã, denominou -os "teologia funcional": • consciência de Deus: o grau em que a pessoa experimenta uma sensação de deslumbramento e a sensação de ser uma criatura no relacionamento com o divino (i. e., reverência versus idolatria); • aceitação da graça e do amor incondicional de Deus: o grau em que a pessoa vivencia e compreende o amor e a benevolência de Deus (i. e., confiança e sensação da presença da providência divina versus independência e desesperança exagerados); • arrepender-se e ser responsável: o grau em que a pessoa assume responsabilidade pelos seus próprios sentimentos e comportamentos (i. e., redenção, justificação, perdão e mudança versus falta de consciência, irresponsabilidade, amargura e vingança); • conhecer a liderança e a direção de Deus: o grau em que a pessoa confia, espera e vive a direção de Deus em sua vida (i. e., fé versus desespero); • envolvimento com a religião organizada: o grau quantitativo, qualitativo e motivacional em que a pessoa está envolvida com a igreja (i. e., compromisso, participação e associação versus isolamento e solidão); • vivenciar comunhão: o grau em que a pessoa serelaciona e tem noção de identidade interpessoal (comunhão com outros versus estar centrado em si mesmo e orgulho); • ser ético: o grau em que a pessoa é flexível e compromissada à aplicação de princípios éticos na sua vida diária (i. e., noção de vocação e de viver os valores da vida versus perda de sentido e perda do sentimento de dever). Malony acrescentou uma oitava categoria, pois a pessoa madura do ponto de vista religioso deve ser tolerante e não pré-julgadora: o grau em que a pessoa está crescendo, elaborando e aberta a novidades em sua fé (i. e., humildade e interesse por mudanças versus mente fechada e autoritarismo).
O que os estudos científicos mostram
e. Soluciona o problema perturbador da morte, por meio da crença na continuidade da vida. f. Dá às pessoas uma sensação de poder e controle, por meio da associação com uma força onipotente. g. Estabelece orientação moral que suprime práticas e estilos de vida autodestrutivos. h. Promove coesão social. 1. Fornece identidade, satisfazendo a necessidade de pertencer, ao unir as pessoas em torno de uma compreensão comum.
J. Fornece as bases para um ritual catártico coletivo.
Quando se estuda o assunto, as evidências são ampiamente favoráveis à valorização da religião no trabalho médico e psiquiátrico. Procurando deixar os preconceitos de lado, diversos pesquisadores procuraram avaliar a influência da religião sobre a saúde mental. Os resultados são interessantes: religiosidade está associada a bem-estar, saúde física, diminuição da mortalidade, melhor controle da pressão arte-
1 O PSIQUIATRIA E RELIGIÃO
rial, maior capacidade de enfrentar o estresse, maior satisfação conjugal e sexual. Em relação à saúde mental notou-se maior ajustamento pessoal e menos dias de internação em clínicas psiquiátricas. Koenig7 revisou extensamente os trabalhos relacionando saúde e religião em idosos e observou que: • "Evidência se acumula em apoio da visão que o compromisso religioso maduro e dedicado sob a forma de crenças e atividades baseadas na tradição judaico-cristã está relacionada a maior bem -estar e menores níveis de depressão e ansiedade': • Esses trabalhos operacionalizaram religião como atividade religiosa organizacional (frequência à igreja e a outras atividades relacionadas); atividade religiosa não organizacional (oração, leitura das escrituras, ouvir programas religiosos na televisão ou rádio); rituais religiosos (sacramentos, leis sobre dieta, modo de vestir) e crenças religiosas, religiosidade intrínseca e força do compromisso religioso e enfatizaram o uso de qualquer uma dessas formas de expressão religiosa como ajuda para enfrentar o estresse psicológico. • Frequência a serviços religiosos correlaciona-se de maneira consistente com ajustamento pessoal, felicidade ou satisfação na vida, bem-estar, menor taxa de suicídio, menos sintomas depressivos, menor ansiedade em relação à morte e melhor adaptação a períodos de luto, tanto em idosos que estão morando na comunidade como em instituição. • O envolvimento na comunidade religiosa provê companhia e amigos de idade parecida e com os mesmos interesses; um ambiente que fornece apoio para amortecer mudanças estressantes na vida; uma atmosfera de aceitação, esperança e perdão; uma fonte prática de assistência, quando necessário; uma visão comum do mundo e uma filosofia de vida. • Estudos procuraram controlar frequência a cultos, uma vez que, entre idosos, isso pode ser importante viés, pois quem frequenta tem boa saúde física, e boa saúde física relaciona-se sempre positivamente com bem-estar. Assim, frequência a serviços religiosos pode ser apenas um sinal de boa saúde física e nada tem a ver com boa saúde mental. Mesmo quando isso é controlado, a relação entre frequência a cultos e saúde mental se mantém. Outra área em que a religião é importante é o tratamento da dependência de álcool e drogas. Duas são as explicações para o efeito da religião sobre a supressão do uso de substâncias: a função de controle social que a religião exerce, desencorajando desvios, delinquência e comportamentos autodestrutivos e o desenvolvimento de recursos pessoais (sucesso acadêmico, valores pró-sociais, competência social) e ambientais positivos (harmonia familiar, comunicação pais-filhos, apoio dos pais, apoio de outros adultos). O papel da religião contra o uso relaciona-se também ao grau em que essas normas se sobre-
põem, ou são contrárias às normas culturais. Ou seja, a religião tem maior efeito quando há diferentes opiniões na sociedade sobre o uso da substância em questão; e menor efeito se houver acordo com outros mecanismos de controle social desencorajando o uso. Não se sabe como a religião promove os recursos pessoais e sociais que agem na prevençao. O exemplo mais bem -sucedido do papel da religião é o movimento internacional dos Alcoolistas Anônimos (AA) que surgiu inspirado por uma reunião de reavivamento, nela se baseando para estruturar sua organização . ' . e pnnc1p10s. Os AA e outros grupos de autoajuda com frequência iniciam ou encerram suas reuniões com a bela oração de Reinhold Niebuhr: "Senhor, dê-me a serenidade de aceitar as coisas que não posso mudar, a coragem de mudar aquilo que posso, e a sabedoria para saber a diferença:' O 11 u passo dos AA diz: "Procuramos através da oração e meditação melhorar nosso contato consciente com Deus, como quer que o entendamos, orando somente pelo conhecimento da sua vontade para nós e pelo poder de levá-la adiante". Os outros princípios procuram ajudar a pessoa na sua grande luta espiritual para sobrepujar a força do alcoolismo e de outros vícios. Importante é que, apesar da extensa literatura disponível acerca do papel da religião no uso de substâncias, esses trabalhos não estão presentes nas principais revisões sobre o assunto, tendo, portanto, pouca influência no estabelecimento de políticas sociais, planejamento comunitário ou desenvolvimento de programas7- 13 . Em Field analysis of the literature on religion, spirituality, and health, revisão da literatura na pesquisa do campo saúde, espiritualidade e religiosidade (SER) realizada em 2005, Sloan 14 observa que, apesar de ter ocorrido progressos em relação a sua revisão de 1999, ainda há muito a ser realizado. Ao elencar os problemas atuais da pesquisa neste campo, Sloan enumera: insuficiência de provas, heterogeneidade nos resultados, resultados imprecisos, variáveis independentes e resultados variáveis. No entanto, a dimensão da espiritualidade e da religio sidade, amplamente conhecidas como agentes que interferem na saúde, continuam sendo negligenciadas por falta de um modelo normativo que organize e sistematize ' . suas pratiCas. A maior parte dos estudos a que temos acesso tem origem em países ocidentais, principalmente anglo -saxões. Entretanto em árabe e farsi há grande quantidade de escritos e trabalhos científicos sobre saúde e religião islâmica. Estes mostram resultados semelhantes aos observados na tradição judaico-cristã 15 • Padecem também dos mesmos problemas. Nas duas tradições é necessário separar trabalhos com finalidade proselitista, e há muitos com metodologia inadequada.
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Religiosidade intrínseca e compromisso religioso
a religião pode influenciar a saúde física e mental foram encontrados.
Allport 16 estudou dois tipos de religiosidade, a intrínseca e a extrínseca. Na religiosidade intrínseca, a pessoa realmente acredita e procura viver sua fé. Ela é o princípio motor de sua vida. Na extrínseca, a religião é um meio para atingir outros fins. Por exemplo, uma conversão com finalidade de casamento, frequentar o serviço religioso por status e porque é bom para os negócios. Batson e Ventis 17 acrescentaram um terceiro tipo, que é a religião do tipo busca. A religiosidade intrínseca correiaciona sistematicamente a saúde e a saúde mental. A religiosidade extrínseca é aquela que dá um mau nome a religião, pois está relacionada a intolerância e preconceito. Uma medida indireta boa da religiosidade intrínseca é o compromisso religioso, a frequência com que a pessoa pratica os rituais de sua religião (oração, serviços religiosos, literatura, hora devocional etc.). Gartner et al. 18 afirmam: "À primeira vista, fica-se confuso com a pesquisa sobre o relacionamento entre religião e saúde mental, pois os resultados são mistos e contraditórios': Para superar essa dificuldade, procuraram dividir os trabalhos de acordo com quais aspectos da saúde mental estavam sendo avaliados. Analisaram cerca de 200 artigos recentes e as revisões prévias e concluíram que compromisso religioso tem: • relação positiva com saúde física, bem-estar, prognóstico de doenças, satisfação conjugal, diminuição da mortalidade e menores índices de suicídio, uso de dro gas, uso de álcool, delinquência, depressão e divórcio; • relação ambígua ou complexa com ansiedade, psicoses, autoestima, transtornos sexuais, preconceito, inteligência e educação; • associação positiva com autoritarismo, dogmatismo, intolerância à ambiguidade, rigidez, sugestionabilidade, dependência, autorrealização e epilepsia do lobo temporal. A maioria dos estudos que encontraram relação positiva entre religião e saúde mental media saúde mental por meio de eventos da vida real, que podem ser observados diretamente com confiabilidade e validade inquestionáveis: saúde física, mortalidade, suicídio, uso de drogas, abuso de álcool, delinquência e divórcio. Os estudos que encontraram uma relação de religiosidade com aspectos psicológicos negativos eram em geral trabalhos de "papel e lápis" que utilizavam questionários com viés onde a resposta "sim'' sobre experiência religiosa já contava ponto para uma associação com falta de saúde mental.
Comportamento e estilo de vida
Mecanismos de ação As constatações do benefício da religião levaram os cientistas a tentar entender por que a religião assim age sobre a saúde. Diversos mecanismos por meio dos quais
As prescrições bíblicas de 3.000 anos atrás sobre dieta, circuncisão, preparo da alimentação, limpeza e sexualidade foram importantes para prevenir infecções, doenças sexualmente transmissíveis e câncer, num período em que o conhecimento científico e a medicina preventiva não estavam desenvolvidos. Outra recomendação médica frequente é componente da prática espiritual: o dia semanal de descanso para relaxar o corpo e a mente, refrescar e restaurar, adorar a Deus, comunhão com a família e outros fiéis. Hoje outras doenças são prioritárias, muitas delas relacionadas aos estilos de vida contemporâneos ( estresse, dependência de substâncias, alimentação excessiva, comportamento sexual). Estes podem ser vistos como violações de leis e práticas espirituais, pois estas prescrevem moderação no comportamento sexual e alimentar, advertem contra o beber excessivo, contra o perseguir incessante do dinheiro e poder, a competição, as emoções negativas (hostilidade, raiva, ressentimento e culpa), narcisismo e incapacidade de amar. Há um apelo claro à moderação, com implicações significativas para a saúde. Um exemplo da aplicação de princípios semelhantes ou claramente religiosos à prática médica é o programa de Thoresen et al. 19'20 para ensinar pessoas com doença coronária a modificar seu comportamento. Esse programa reduziu muito a mortalidade dos seus participantes. Ele propunha: • aprender a dar e receber amor diariamente; • ver o mundo como um lugar não hostil que precisa ser combatido, mas um lugar que pode ser amoroso, cooperativo, pacífico e feliz; • oração (que os pacientes acharam ser a parte mais valiosa do programa); • desenvolver humildade e paciência (entrar na fila mais comprida e lenta do supermercado, aprendendo a tolerar e ter prazer na espera); • modelação do comportamento de amar e aceitar (treino em sorrir); • deixar de brincar de Deus (aprender a deixar de controlar o ambiente e a aceitar suas limitações pessoais). Nesse programa, o conceito de "graçà' tão caro a Paul Tournier foi introduzido de maneira secular: que é sábio e desejável receber as coisas maravilhosas que a vida oferece, que estas não precisam ser ganhas (amor, serenidade, descanso, riso, alegria, divertimento, família, crianças, animais, plantas, beleza, vida); encorajamento da vida simples e abundante, por meio de uma postura de paciência e aceitação com humildade, amor, alegria, serviço desinteressado a outros e obediência suave aos preceitos espirituais, recebendo em troca as bençãos decorrentes.
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Esse projeto, após quatro anos de acompanhamento, demonstrou 50% de redução na morbidade e mortalidade coronária, melhora que não ocorreu no grupo controle.
Apoio social Pertencer e participar de um grupo religioso pode trazer consequências psicossociais saudáveis que influenciam positivamente a saúde. A religião promove coesão social, sensação de pertencer, incorporar e participar, sanciona continuidade dos relacionamentos, padrões familiares e outros sistemas de apoio. Por meio do desenvolvimento de comunhão e companheirismo provê apoio social, modera o estresse e a raiva, e enfatiza estilos mais reflexivos de lidar com as situações e se adaptar aos problemas. O apoio social correlaciona com saúde e pode atuar de diversas maneiras: • favorecendo a aderência a programas promotores de saúde; • a comunhão regular com outros é característica importante de muitos sistemas religiosos e são muito importantes em momentos de solidão, depressão e morte de ' . pessoa prmuma; • o processamento cognitivo e crenças influenciam o lidar com o estresse. As crenças da pessoa e suas interpretações em relação ao sofrimento e à vida são fundamentais para lidar com as dificuldades; • talvez por vias psiconeuroendocrinológicas a experiência religiosa e o companheirismo sirvam para bloquear ou inibir o impacto de emoções deletérias como a ansiedade e a anomia. Apesar do apoio social ser reconhecido como uma consequência importante da religião, parece não ser o principal meio por meio da qual ela exerce sua ação sobre a saúde. Estudo relacionando religião com frequentadores de clubes que também oferecem apoio social mostrou que mesmo assim a religião era superior. Algo mais existe nela...
Os rituais religiosos públicos e privados são métodos poderosos para manter a saúde mental e para prevenir o início ou a progressão de distúrbios psicológicos. Ajudam a pessoa a enfrentar terror, ansiedade, medo, culpa, raiva, frustração, incerteza, trauma e alienação, a lidar com emoções e ameaças universais oferecendo um mecanismo para delas se distanciar. Reduzem a tensão pessoal e do grupo, a agressividade, moderam a solidão, a depressão, a anomia, a sensação de não ter saída e a inferioridade. Schumaler21 diz que a ausência de religião priva a pessoa dos benefícios produzidos pelos rituais encenados pela maioria, caminhos antiquíssimos para a saúde psicológica, pois incorporam cognições, filiação social, ação coletiva e catarse.
Oração A oração é uma das formas mais antigas de intervenção terapêutica e continua sendo frequentemente utilizada, inclusive pelos médicos (dois terços de uma amostra de 126 médicos relataram rezar pelos seus pacientes). Byrd2 1 acompanhou por dez meses 393 pacientes admitidos em unidade coronária, dividindo-os em dois grupos. Os nomes dos pacientes de um dos grupos foram fornecidos a participantes de um grupo que se reunia sistematicamente para interceder com oração. Em síntese, um grupo de cristãos fora do hospital orou sobre as pessoas de um dos grupos. Os que receberam oração apresentaram menos edema pulmonar, foram entubados com menor frequência, necessitaram de menos antibióticos. Dossey23 conclui que não orar pelos pacientes é o mesmo que evitar ministrar uma droga ou um procedimento cirúrgico eficaz. Recomenda que se siga a tradição da medicina, indo ao cerne dos dados obtidos cientificamente sem contorná-los, não importando o quão desconfortável isso possa ser, pois as evidências a favor da eficácia da oração não podem ser ignoradas.
Sistema de crenças
Meditação
As crenças religiosas podem gerar paz, autoconfiança e sensação de propósito na vida, ou o oposto - culpa, depressão e dúvidas. O efeito benéfico da religião pode advir do indivíduo perdoar a si mesmo e aos outros, desenvolver autoconceitos emocionais mais saudáveis e dar-se de modo não egoísta. Historicamente a religião é benéfica à saúde mental por fornecer cognições fora do comum. Mais e mais pessoas abandonam a religião organizada quando ela perde a sua utilidade como instrumento explicativo.
Um dos principais objetivos de muitos sistemas de prática espiritual é propiciar a vivência de paz interior, no seu sentido mais profundo e amplo. A meditação como uma ferramenta de contato com a dimensão espiritual individual do paciente, objetivando desenvolver uma busca saudável da espiritualidade, de modo que essa possa colaborar como técnica complementar nos processos terapêutico, como por exemplo, capacidade de autorregulação A literatura sobre os benefícios da meditação é muito extensa e seus benefícios já são reconhecidos por todos24 •
Rituais religiosos Evidências empíricas da psiquiatria e da medicina de cuidados primários mostram ser os rituais invariavelmente associados com benefício.
Confissão "É somente com ajuda da confissão que sou capaz de me atirar nos braços da humanidade, livre finalmente do
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fardo do exílio moral:' Esta frase de Jung mostra a importância da confissão para a saúde. A confissão reduz a raiva, aumenta a simpatia e reduz as repercussões negativas do ato e a culpa, tendo um valor catalítico e um efeito positivo no enfrentar os problemas com sucesso e no ajustamento e na evolução terapêutica25 •
Liturgia
O perdão está relacionado com a culpa, a vergonha e a reconciliação, mas principalmente com a segunda. A vergonha é a percepção de que os outros nos estão vendo como realmente somos, e não como gostaríamos que nos vissem. O perdão é o reconhecimento que na verdade somos mais parecidos com quem nos ofendeu do que diferentes.
Envolve a participação ativa e consciente da assembleia pela leitura de textos sagrados, louvor por meio de hinos, salmos e cânticos, oração silenciosa e em grupo, e celebração de sacramentos (na religião cristã o batismo, a confirmação e a eucaristia, a reconciliação e as devoções). A liturgia apropriada ao momento de vida da congregação ou da família facilita muito a catarse emocional. O ministro religioso é treinado a planejá-la de acordo com períodos de celebração ou contrição e seguindo os ritos de passagem (no Ocidente o nascimento, o aprender a ler, o início da adolescência ou da vida adulta, a entrada na universidade ou no mercado de trabalho, ocasamento, a separação, a aposentadoria, a saída dos filhos de casa, a morte, as lembranças dos entes queridos).
Conversão
Benção
A conversão religiosa e as experiências religiosas intensas parecem ter um efeito benéfico, reduzindo sintomas patológicos. Nas igrejas todos já presenciaram mudanças intensas na vida de pessoas após a experiência de conversao.
Benção, passes, imposição de mãos, unção dos enfermos são práticas presentes em diversas religiões desde a antiguidade. São formas, atos ou palavras para comunicar poder às pessoas em nome de Deus, ou uma expressão de confiança entre as pessoas. Fazem parte do trabalho pastoral e a intenção é transmitir a promessa de força que será encontrada, não em quem a expressa, mas em Deus. Em nome de quem as palavras estão sendo ditas. O benzer é uma das práticas mais presentes na nossa medicina folclórica. É um ato de súplica, de imploração, de pedido insistente aos deuses para que eles se tornem mais presentes, para que tragam boas novas e benefícios. É um instrumento para produzir solidariedade, um elemento que aglutina as pessoas, que repara a tragédia, a dor, a aflição e o sofrimento.
Perdão
Exorcismo O exorcismo é o invocar o nome de Deus para expulsar um espírito maligno que se crê habitar ou possuir uma pessoa, local ou objeto. Sem levar em consideração a dimensão espiritual, são os seguintes os mecanismos psicológicos do exorcismo: • a eficácia apoia-se sobre o efeito placebo: funciona porque as pessoas acham que vai funcionar; • o resultado é influenciado por fatores e processos psicológicos (percepção, crença, expectativa, motivação, dramatização, e reforço); • a doença recebe um nome (p. ex., possessão), o rótulo é manipulado e um novo nome é usado (curado, exorcizado, expulso); • quando o tratamento não funciona imediatamente, a falta de cura não é atribuída ao sistema terapêutico, mas ao curandeiro ou ao remédio); • relação terapeuta-cliente: o vínculo é importantíssimo. Na prática clínica tem sido demonstrado que calor humano, empatia e terapeuta genuíno produzem melhores resultados. No meio mágico, a onipotência e o carisma do curandeiro (a autoapresentação como poderoso, autoconfiante, onipotente e a energia autoritária); • remissão espontânea de sintomas psicológicos; • abreação, através dele vivencia-se novamente intensa experiência emocional na tentativa de solucionar um problema psicológico e liberar as emoções acumuladas através de uma descarga catártica.
Direção espiritual É descrita como um relacionamento que tem por objetivo o desenvolvimento do self espiritual, o que inclui a construção de um forte relacionamento com Deus e o desenvolvimento de uma vida pessoal plena de sentido. Toma diferentes formas dependendo das crenças religiosas, mas o diretor espiritual tem em seu repertório de comportamentos o uso de encorajamento, apoio e confronto, visando a criar um clima de confiança que conduza o orientando a correr riscos e a crescer. O alvo da direção espiritual é aprofundar o relacionamento de uma pessoa com Deus. Ajudar a pessoa a prestar atenção na comunicação pessoal com Deus, e a responder, crescendo em intimidade com Ele e vivendo as consequências desse relacionamento. O foco da direção espiritual e em temas espirituais, oração, leitura das escrituras e literatura religiosa, exercícios de visualização, escrever um diário e outras práticas religiosas usadas para aumentar a consciência da presença de Deus e o relacionamento com ele.
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Idioma para expressar o estresse e promover ajustam ento pessoal A religião pode ser utilizada como um idioma para expressar o sofrimento em momentos de desorganização social e insatisfação, por meio de comportamentos que a psiquiatria pode interpretar como dissociativos. Outros mecanismos como técnicas de alteração de consciência, experiências místicas, experiências de proximidade com a morte, influências superempíricas e sobrenaturais são descritas também. Um poder ativo que transcende ou existe independentemente do mundo natural, que escolhe quando e por que abençoar ou dotar indivíduos ou grupos de pessoas com saúde. Essa visão de mundo é enfatizada dentro das tradições judaico-cristã e islâmica. Enfatiza a transcendência de Deus e a sua presença e poder atuando na natureza e na história. Esse poder divino está acima das leis naturais e não pode ser objeto de escrutínio científico e experimentação.
ProSER - Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP O Departamento de Psiquiatria da FMUSP possui um programa, o ProSER-Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Ele é um grupo transdisciplinar, cujo objetivo principal é o aumento da razoabilidade humana a respeito das relações entre saúde, espiritualidade e religiosidade. Nesse sentido, o princípio norteador do grupo é pensar a ciência como algo vivo em constante e contínua transformação, com o objetivo de ampliar o pensamento coletivo e os impactos das dimensões espirituais e religiosa sobre o bem-estar físico e mental do ser humano e das comunidades. O ProSER tem como antecedente o NEPER (Núcleo de Estudos de Problemas Espirituais e Religiosos do Instituto de Psiquiatria da FMUSP). Em suas origens, o NEPER foi fundado a partir de uma série de pesquisas que relacionava dimensão religiosa e saúde mental. O ProSER desenvolve suas atividades a partir de um tripé constituído por pesquisa, ensino e assistência médica multidisciplinar. Sua missão é triádica: prestar assistência aos pacientes; desenvolver programas de ensino e capacitação profissional para a dimensão integral da saúde; estimular a produção de conhecimento a partir de uma perspectiva interdisciplinar das relações entre saúde, espiritualidade e religiosidade. Existe uma demanda nos pacientes no sentido de comunicar suas necessidades espirituais e religiosas. No entanto, os médicos não se sentem preparados para lidar com esse tipo de informação. Isso devido a vários fatores como: falta de treinamento, visão por demais especialista de sua prática, falta de uma cultura no meio médico
Quadro 11
Objetivos da atividade de assistência
• Investigar o impacto da espiritualidade e religiosidade de pacientes internados no IPq na interface em saúde mental. - Anamnese espiritual. • Promover atividades que investiguem e promovam o contato com a espiritualidade/religiosidade com foco em saúde mental. - Arteterapia, terapia ocupacional, psicologia transpessoal, meditação, orientação terapêutica a pacientes e familiares. • Promover assistência às necessidades espirituais na interface saúde mental.
e conflitos religiosos/
- Orientação terapêutica a pacientes e familiares. - Orientação na abordagem da equipe de enfermaria. • Promover pesquisa na área de saúde mental e espiritualidade. • Promover ensino a alunos residentes e profissionais na área de saúde na abordagem da saúde e espiritualidade. • Discussão do caso. - Levantamento e avaliação de necessidades espirituais. - Encaminhamentos externos - capelania. - Encaminhamentos internos.
que aprove e incentive considerar esse tipo de informação relevante. No presente capítulo, consideramos que o ser humano tem também, além das dimensões físicas e emocionais, outra dimensão composta por questões mais abrangentes, de cunho existencial, que se manifesta por meio de aspectos espirituais e/ ou religiosos. Tal dimensão se associa a necessidades íntimas ligadas à busca de significado e sentido. Tal dimensão será denominada como a dimensão do ser. As práticas de saúde que integram essa dimensão serão denominadas "Medicina do ser': Embora muitas transformações estejam envolvidas no processo de implantação de uma metodologia de medicina do ser, existe no campo da saúde uma consciência dos benefícios que tais abordagens podem gerar nas políticas de saúde pública. O primeiro benefício a ser observado se refere à diminuição nos custos de saúde. A abordagem da medicina do ser é algo que requer sensibilidade, atitude e uma lógica de ação. Mas, em contrapartida, pode diminuir os altos custos que a medicina tecnológica implica. Um dos possíveis benefícios se relaciona a estimular a reflexão sobre os princípios que norteiam a existência do paciente e, com isso, expandir a busca consciente de valores. A complexidade do ser humano requer uma revisão no atendimento de saúde. Considerar o ser humano apenas sob o ponto de vista físico é negligenciar suas dimensões psíquicas e espirituais e/ou religiosas. A inclusão da dimensão psíquica é algo que já foi consolidado na constituição de uma abordagem psicossomática da saúde. No entanto, a dimensão da espiritualidade e da religiosidade, apesar de serem amplamente conhecidas como agentes que interferem na saúde, continuam sendo negligenciadas por falta de um modelo normativo que organize e sistematize suas práticas. A partir do restabelecimento do espaço de conversação, ou seja, do diálogo, o médico terá condições de per-
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ceber, interagir e formular um diagnóstico aprofundado das complexidades do ser, isto é, tanto em suas necessidades de sobrevivência como de transcendência. A prescrição de mudanças de hábitos atua em paralelo com outras terapêuticas no sentido de contribuir tanto para a sobrevivência (manutenção e restabelecimento da saúde) e transcendência do indivíduo. No entanto, sem a meta da transdisciplinaridade não se pode alcançar as dimensões complexas que são inerentes aos fenômenos da saúde, espiritualidade e religiosidade. Segundo Ubiratan D'Ambrosio, em Transdisciplinaridade, a essência da humanidade se encontra na síntese entre o ser (substantivo) e o ser (verbo). A imagem metafórica apresentada por D'Ambrosio é uma estrela composta por dois triângulos entrelaçados. Para compreender a multidimensionalidade da síntese, é necessário refletir sobre cada um deles. O primeiro triângulo representa as estratégias de sobrevivência individual e da espécie. Esse esquema é denominado triângulo da sobrevivência26• O outro esquema se denomina triângulo da transcendência e representa as intermediações do conhecimento. No entrelaçamento dos impulsos de sobrevivência e de transcendência é possível entrever a essência do ser humano. Segundo o autor, "os dois conjuntos configuram a essencialidade da vida humanà~ Em síntese, o que o autor afirma na apresentação da metáfora da estrela é que as necessidades essenciais do ser humano são de duas naturezas indissociáveis: sobreviver e transcender. A proposta da transdisciplinaridade é algo que pode agenciar diálogos rumo à construção de um modelo de ação em saúde que transpasse as barreiras disciplinares e compreenda o ser humano em sua "estrelà' multidimensional. Além de estudos científicos a respeito e reconhecendo o imenso potencial terapêutico das comunidades religiosas e da religião madura e saudável, o ProSER provê assessoria às igrejas, comunidades ou sinagogas que desenvolvem projetos que envolvam saúde mental. As possibilidades de colaboração são muitas. Muitas igrejas e organizações paraeclesiásticas realizam importante trabalho na recuperação de dependentes de drogas. Além disso, há possibilidades de trabalho em prevenção de violência, de depressão, onde o grupo de risco maior é o de mulheres jovens, com crianças pequenas e problemas financeiros e conjugais. O perfil demográfico de nossa população está mudando rapidamente. O número de pessoas idosas será cada vez maior, e as igrejas estarão prestando um grande serviço à sociedade se criarem programas para essa população. Projetos para a terceira idade, que respeitam e valorizam a experiência e as capacidades de nossos idosos e o cuidar de pessoas com doença de Alzheimer são extremamente necessários. Projetos voltados para a família promovendo bem-estar, ensinando a melhorar a comunicação e prevenindo sua desestruturação têm imenso impacto na prevenção de problemas mentais e sociais.
Questões 1. Freud, pai da psicanálise, considerava a religião uma:
a) Ilusão e um transtorno obsessivo-compulsivo da humanidade. b) Necessidade de consumo. c) Um instinto de sobrevivência. d) Uma pulsão de morte. e) Uma questão política e econômica. 2. Os estudos científicos que integram saúde e espiritualidade demonstram: a) Como a religião pode levar à loucura. b) Como a religião pode curar pessoas. c) Como as pessoas religiosas são mais vulneráveis a doenças psiquiátricas e psicológicas. d) Como avaliar de forma científica a influência da religião sobre a saúde mental. e) Como os preconceitos religiosos protegem os indivíduos de doenças mentais. 3. a) b) c) d) e)
Segundo Allport, existem dois tipos de religiosidade: Fanática e moderada. Saudável e prejudicial. Antiga e moderna. Cultural e pessoal. Intrínseca e extrínseca.
4. As pesquisas que apresentam constatações do benefício da
a) b) c) d) e)
religião sobre a saúde demonstram que: A religião isola as pessoas de seus amigos e estimula uma vida solitária. A religião pode interferir de modo benéfico no comportamento e estilo de vida (dieta, higiene, disciplina etc.). A relig ião cria hábitos nocivos à saúde. A religião é contra os avanços da ciência. A religião estimula comportamentos fanáticos e irracionais.
5. O ProSER, Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosida-
a) b) c)
d) e)
de do Instituto de Psiquiatria do HC-FM US P, parte do pri ncípio de que o ser humano é uma complexidade e tem como proposta o conceito de "medicina do ser". Tal proposta compreende: Avaliar as taxas de felicidade bruta dos indivíduos. Estudar os índices de desenvolvimento cognitivo dos grupos e instituições. Pensar a ciência como algo vivo em constante e contínua transformação, com o objetivo de ampliar o pensamento coletivo e os impactos das dimensões espirituais e rel igiosa sobre o bem estar físico e mental do ser humano e das comunidades. Propor projetos de avaliação do impacto dos avanços tecnológicos no estilo de vida. Estudar as transformações do fenômeno rel igioso nos grupos que participam de programas de comunicação em massa.
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ertentes
ecimento
Editor: Orestes Vicente Forlenza
11. Aspectos Genéticos e Epigenéticos do Desenvolvimento, 116 12. Interação Gene-ambiente: Mecanismos Causais e Fatores Protetores, 126 13. Fatores de Risco e Proteção para Morbidade Psiquiátrica, 136 14. Desenvolvimento Cerebral nas Diversas Fases da Vida, 154 15. Desenvolvimento Cognitivo e Socioemocional nas Diversas Fases da Vida, 164 16. Desenvolvimento Cognitivo e Psicomotor, 182 17. Ambiente Familiar e Transtornos Mentais: Uma Visão da Psicologia Analítica, 192 18. Influência do Ambiente Familiar e Social sob a Perspectiva da Neurociência, 199 19. Sistemas Neuroquímicos no Sistema Nervoso Central e a Psicofarmacologia, 206 20. Bases Moleculares do Funcionamento Cerebral, 220 21. Epilepsia e Transtornos Psiquiátricos: Aspectos Relacionados ao Neurodesenvolvimento, 234 22. Psiconeuroimunologia, 246
A Psiquiatria vem sofrendo uma notável evolução nas últimas décadas. Os benefícios se fazem sentir não apenas pela maior efetividade das terapêuticas atuais, mas também pela compreensão mais abrangente dos fatores causais e dos mecanismos subjacentes ao adoecimento mental. Surge assim a possibilidade - ou, melhor dizendo, a necessidade - de integrar conhecimentos gerados a partir de referenciais distintos e complementares, reconhecendo os fatores biológicos, psicológicos e sociais que desempenham papel na sua patogênese. A Seção 2 deste livro tem como objetivo percorrer as diferentes vertentes do conhecimento que contribuem para a compreensão da etiopatogenia dos transtornos mentais. Este módulo inicia-se com a contribuição de Helena Brentani e Homero Vallada sobre os aspectos genéticos e
epigenéticos do desenvolvimento (Capítulo 11). Partindo de conceitos fundamentais sobre a embriogênese do sistema nervoso central, os autores discorrem sobre o papel da herdabilidade e dos genes na formação e consolidação de estruturas e circuitos cerebrais. Abordando a epigenética do neurodesenvolvimento, os autores discutem as evidências da interação gene -ambiente que influenciam a ocorrência de importantes transtornos mentais como esquizofrenia, autismo e transtorno do déficit de atenção e hiperatividade. No capítulo seguinte, Guilherme Polanczyk e Christian Kieling discutem a interação gene-ambiente: mecanismos causais e fatores protetores (Capítulo 12), partindo do pressuposto que os fatores de risco genéticos e ambientais atuam por meio de mecanismos conjuntos para conferir proteção ou para permitir o desenvolvimento de transtornos mentais.
Os autores definem a interação gene-ambiente como o controle genético da suscetibilidade à doença frente a estressares ambientais, aumentando o risco ou protegendo contra o seu desenvolvimento. O estudo da interação geneambiente justifica-se no sentido de aprofundar o entendimento sobre os mecanismos etiopatogênicos de determinados transtornos mentais, podendo contribuir para desenvolver novas estratégias de tratamento e prevenção. Em uma perspectiva epidemiológica, Ricardo BarcelosFerreira et al. descrevem no Capítulo 13 os fatores de risco e de proteção para morbidade psiquiátrica. Discute-se a influência de fatores preditivos de natureza individual, familiar, social, econômica e ambiental sobre o adoecimento populacional. São propostas ações que podem ser desenvolvidas para promoção de saúde e prevenção destes transtornos. No Capítulo 14, Marcelo Hoexter et al. abordam o desenvolvimento cerebral nas diversas fases da vida. Os autores sustentam que a investigação do processo de maturação cerebral é importante para o entendimento das alterações emocionais e comportamentais que ocorrem durante o desenvolvimento normal e patológico. Fatores que interferem nas sucessivas ondas de proliferação, migração, diferenciação e morte celular terão impacto no ulterior funcionamen to dessas estruturas cerebrais. Os autores ilustram estas teorias com achados de estudos longitudinais baseados em exames de ressonância magnética seriados, mostrando haver perfis distintos de crescimento volumétrico de substância branca e cinzenta em diferentes regiões corticais ao longo da vida. São discutidas as implicações destes achados na fisiopatologia do autismo, da esquizofrenia e do transtorno do déficit de atenção/hiperatividade. Passando para um referencial psicológico, Jônia Lacerda et al. abordam no Capítulo 15 o tema desenvolvimento emocional e cognitivo nas diversas fases da vida. Após fazer um breve apanhado sobre o histórico das práticas sociais e o desenvolvimento humano, as autoras discutem as principais perspectivas teóricas sobre o assunto, incluindo, entre outras, as teorias psicanalítica, de aprendizagem social e cognitivas. No capítulo seguinte o desenvolvimento cognitivo e psicomotor (Capítulo 16) é revisto em detalhe pelo neuropsicólogo Daniel Fuentes et al. Partindo do desenvolvimento cognitivo e psicomotor normal, com ênfase nas funções cognitivas atenção, memória e linguagem. Os autores dis cutem as condições que afetam o seu desenvolvimento, tais como síndromes genéticas, desordens neurológicas, transtornos invasivos do desenvolvimento e determinados transtornos psiquiátricos. Ao final do capítulo, é oferecida uma revisão sobre os principais testes que podem ser utilizados pelo clínico na avaliação do desempenho cognitivo e psicomotor nas diferentes fases da vida. Sob o referencial da Psicologia Analítica, Nairo Vargas (Capítulo 17) aborda o tema influência do ambiente familiar para a compreensão da etiopatogenia dos transtornos mentais. Trazendo alguns conceitos básicos deste referencial teórico, o autor revê criticamente a influência do ambiente familiar sob o ponto de vista psicodinâmico, concluindo que a família é tanto um fator de risco como um fator de prote-
ção com relação ao desencadeamento de um transtorno mental ao longo da vida. Em seguida, tecendo um contraponto com o capítulo anterior, Flávio Shansis et al. discorrem sobre a influência do ambiente familiar e social sob a perspectiva da neurociência (Capítulo 18). Após uma breve introdução sobre as bases conceituais da Neuropsicanálise, os autores abordam o modelo de "consiliênciá' e a teoria do apego de Bowlby, revisitada à luz dos conhecimentos atuais em neurociência da evolução cerebral. Estes novos paradigmas buscam possibilitar um diálogo frutífero entre as contribuições objetivas dos fenômenos mentais pelas neurociências e a visão psicanalítica do psiquismo, buscando uma melhor compreensão dos fenômenos e dos transtornos psíquicos. Os capítulos seguintes retomam o enfoque neurobiológico. Clarice Gorenstein et al. descrevem os sistemas neuroquímicos no sistema nervoso central (Capítulo 19), que representam as bases teóricas para a terapêutica psicofarmacológica que será abordada detalhadamente na Seção 6. Iniciando com uma revisão sobre os mecanismos de ação dos psicofármacos, os autores abordam em detalhe as bases da neurotransmissão, destacando as principais vias envolvidas na ação dos psicofármacos e sua relevância nas diferentes doenças neuropsiquiátricas. Em seguida, em "Bases Moleculares do Funcionamento Cerebral" (Capítulo 20), Flávio Kapczinski et al. descrevem mecanismos gerais do funcionamento cerebral baseado nas vias intracelulares de transdução de sinais. Os autores apresentam os conceitos e os mecanismos gerais da neuroplasticidade. Destacam a relevância destes mecanismos para formação da estrutura altamente organizada do sistema nervoso em desenvolvimento, mas também nas respostas a estímulos fisiológicos e patológicos que afetam o cérebro adulto, oferecendo, como exemplo, alguns processos cognitivos complexos como aqueles envolvidos no aprendizado ' . enamemona. No Capítulo 21, "Epilepsia e Transtornos Psiquiátricos: Aspectos Relacionados ao Neurodesenvolvimento", Kette Valente et al. destacam a importância do estudo da epilepsia na compreensão da fisiopatologia dos transtornos mentais em todas as fases da vida, com ênfase nos aspectos relacio nados ao neurodesenvolvimento. Concluindo esta seção, Andrea Marques et al. apresentam no Capítulo 22 (Psiconeuroimunologia) a interação entre o sistema imunológico, o sistema endocrinológico e o sistema nervoso, reconhecendo o papel dos mecanismos inflamatórios e das respostas dos eixos neuroendócrinos na fisiopatologia dos transtornos mentais. Nessa complexa rede de interações, os autores mostram como o estresse pode influenciar o sistema imunológico e, inversamente, esse sistema pode alterar o comportamento e as emoções, acarretando respostas comportamentais que vão do sickness behavior (ou "comportamento de doençá') até o desencadeamento de quadros depressivos. Discute-se a associação bidirecional entre os quadros psiquiátricos e as doenças clínicas, com destaque para as manifestações psíquicas que ocorrem no câncer e nas doenças cardiovasculares.
Aspectos Genéticos e Epigenéticos do Desenvolvimento Helena Brentani Homero P. Vallada
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Neurodesenvolvimento, 116 Embriogênese do sistema nervoso central, 116
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
O desenvolvimento do sistema nervoso é dinâmico durante a vida, 117 Genética do neurodesenvolvimento, 118 Herdabilidade de estruturas e circuitos cerebrais, 118 Formas de sp/icing e de interação com o microambiente, 118 Epigenética do neurodesenvolvimento, 119 Alterações da cromatina, 119 O papel do ambiente durante o neurodesenvolvimento, 120 Achados genéticos dos transtornos do neurodesenvolvimento, 120 Divisão genética dos transtornos do neurodesenvolvimento, 120 Os transtornos do neurodesenvolvimento e seus genes, 121 Considerações finais, 124 Referências bibliográficas, 124
Neurodesenvolvimento
Embriogênese do sistema nervoso central A organização do sistema nervoso (SN) é determinada por fatores genéticos e ambientais que participam do seu desenvolvimento e o influenciam por atuar em etapas específicas da formação das diversas regiões do SN. Essas etapas são as seguintes: neurogênese, migração neuronal, diferenciação e maturação, sinaptogênese e mielogênese. Durante o desenvolvimento embrionário, ocorre a diferenciação das células do embrião que se organizam em três folhetos embrionários: o ectoderma, o mesoderma e o endoderma. O ectoderma é aquele que está em contato com o meio externo e é desse folheto que se origina o sistema nervoso. O primeiro indício de neurogênese, a primeira etapa da formação do SN, é um espessamento do ecto-
1. Compreender a embriogênese do SNC.
2. Compreender o papel da herdabilidade e dos genes no neurodesenvolvimento. 3. Entender o papel do ambiente no neurodesenvolvimento. 4. Conhecer alguns dos transtornos do neurodesenvolvimento e seus genes.
derma situado acima da notocorda, o que constitui a placa neural. A placa neural cresce progressivamente tornando-se mais espessa e adquire um sulco longitudinal chamado sulco neural, que se aprofunda para formar a goteira neural. Os lábios da goteira neural se fundem para compor o tubo neural. A formação do tubo neural ocorre aproximadamente de duas a três semanas após a concepção. O ectoderma não diferenciado se fecha sobre o tubo neural isolando-o do meio externo. No ponto em que esse ectoderma encontra os lábios da goteira neural, desenvolvem -se células que formam de cada lado uma camada longitudinal, que se chama crista neural, situada dorsalmente no tubo neural. O tubo neural dá origem a elementos do sistema nervoso central (SNC), enquanto a crista neural origina elementos do sistema nervoso periférico. Perto da quinta semana de gestação verifica-se o fechamento do tubo neural e começa a proliferação de neuroblastos. O calibre do tubo neural não é homogêneo. A parte cranial, que dá origem ao encéfalo adulto, torna-se dilatada, enquanto a parte caudal permanece com calibre uniforme, o que dará origem à medula do embrião 1• O tubo neural sofre transformações para formar as vesículas encefálicas e a cavidade do tubo neural, que constituirá os ventrículos cerebrais. Em torno da oitava semana de gestação, células da zona ventricular, localizada próximo dos precursores dos ventrícu-
11 ASPECTOS GENÉTICOS E EPIGENÉTICOS DO DESENVOLVIMENTO
los laterais, se diferenciam e dão origem aos neurônios corticais e subcorticais. A partir de doze semanas de gestação, esses neurônios migram para uma área adjacente chamada de zona subventricular. Esses neurônios recém-formados adotam dois tipos de migração: tangencial e radial. A migração tangencial ocorre em trajetórias paralelas à superfície ventricular, enquanto na migração radial os neurônios seguem uma trajetória perpendicular à superfície ventricular. Estes últimos vão aumentar a espessura cortical e precisam de células da glia para se acomodar, como será descrito adiante. Esses neurônios, por volta de dezesseis semanas de gestação, vão formar a placa corticaF. A placa cortical embrionária é constituída por um conjunto de neurônios orientados verticalmente, que têm origem exatamente no mesmo local da zona ventricular proliferativa. Cada um desses conjuntos de neurônios é formado por vários clones que migram ao córtex através das células da glia. Na placa cortical, células que chegam depois passam por células que já estão ali e assim se forma um gradiente de dentro para fora constituindo o que serão mais tarde as seis camadas corticais. Os neurônios de determinada coluna são interconectados verticalmente, dividem as mesmas conexões externas e agem como uma unidade de funcionamento. Neurônios em migração ficam extremamente polarizados em direção ao seu destino e apresentam uma sensibilidade e especificidade muito grandes em relação a sinalizadores externos, que vão dar as dicas do caminho a ser seguido. Após essa etapa ocorre a diferenciação dos neurônios: eles produzem neurotransmissores específicos, seus dendritos crescem e se ramificam e seus axônios se estendem projetando-se em direção a outros neurônios. Por volta de vinte semanas de gestação, os neurônios já maduros estão na fase de formação das sinapses, e aqueles que não encontram seus alvos são eliminados por apoptose ou morte celular programada. Com vinte semanas de gestação, já é possível ver os primeiros indícios de giros e sulcos com o uso de ressonância magnética. O pico de refinamento das sinapses ocorre ao redor de 24 a 28 semanas de gestação, quando se dá a organização dos circuitos cerebrais. Por volta de 28 semanas encontramos número de neurônios 40% maior no cérebro fetal do que no cérebro de um adulto. Nessa fase de refinamento das sinapses tem lugar a apoptose seletiva, o que resulta na perda de aproximadamente 50% dos neurônios corticais. Isso é observado através da alteração da espessura cortical, que se torna mais fina. Porém a definição de sinapses permanentes ocorrerá só durante a adolescência3 • Finalmente forma-se a bainha de mielina em volta dos axônios a partir de oligodendrócitos do SNC. Todos esses processos são extremamente dinâmicos e seu tempo de maturação depende da área cerebral onde ocorrem. A mielinização da área occipital começa um a dois meses antes do nascimento e se estende para a área frontal até o nono mês de vida do bebê. A mielinização do cór-
tex se dá na direção posteroanterior seguindo a maturação dos circuitos cerebrais, ou seja, primeiro os circuitos sensoriais, depois os motores e por fim os associativos. Os circuitos sensoriais recebem axônios de neurônios que interagem com áreas sensitivas geralmente localizadas no tálamo ou constituem regiões de onde partem axônios para fora do córtex, ou seja, em direção a outras áreas do SNC (áreas motoras). Correspondem a regiões relacionadas à sensibilidade e/ou à motricidade. Os circuitos de associação corticais recebem o fluxo das informações já elaboradas em outras áreas que, por sua vez, são responsáveis pelo fluxo de estratégias comportamentais e enviam instruções às áreas motoras3 •
O desenvolvimento do sistema nervoso é dinâmico durante a vida Durante todos os estágios do desenvolvimento cerebral ocorre o que denominamos plasticidade cortical, ou seja, mudanças constantes no padrão citoarquitetônico do cérebro. Uma parte desses processos termina no fim da gestação, mas a grande maioria continua na infância sendo que alguns deles chegam a ocorrer mesmo em adultos. Por exemplo, a densidade neuronal da camada III do córtex pré-frontal (CPF) diminui, entre os 2 e 7 anos de idade, de 55 a 10% em relação à densidade média de um adulto. A densidade sináptica no CPF atinge seu máximo por volta dos 3,5 anos de idade, sendo mais de 50% maior que a de um adulto. Por exemplo, em um estudo longitudinal com pessoas de 4 a 22 anos, Gogtay et al. 4 observaram que o volume da substância cinzenta do CPF aumenta até a pré-adolescência e então começa a diminuir, enquanto o aumento de substância branca, ou seja, a quantidade de mielinização, ocorre até os 25 anos de idade. Alguns trabalhos que realizaram a contagem de sinapses em cérebros post mortem associam esse aumento e diminuição de substância cinzenta com o aumento e poda de sinapses nas mesmas regiões 5• Também é interessante notar que essa diminuição de substância cinzenta, por exemplo, no córtex frontal inferior esquerdo (áreas 6 e 44) que foi observada em crianças de 5 a 11 anos avaliadas por ressonância a cada dois anos se correlacionou com uma melhor performance em testes fonoaudiológicos, mas não com habilidades motoras6•7• Essas mudanças de espessura da substância cinzenta já foram associadas também ao desempenho cognitivo geral. Shaw et al. 8 mostraram que em crianças menores uma espessura mais fina da substância cinzenta relaciona-se difusamente com medidas de QI, no entanto na adolescência o QI correlaciona-se perfeitamente só com espessura de áreas do lobo frontal claramente envolvidas em funções executivas. Garlick9 demonstrou que crianças mais inteligentes apresentam uma plasticidade cortical maior e uma fase inicial de espessamento cortical prolongado seguido de uma grande diminuição da espessura do mesmo.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
Genética do neurodesenvolvimento Herdabilidade de estruturas e circuitos cerebrais A genética do neurodesenvolvimento em humanos não é um objeto de fácil estudo, principalmente pela dificuldade de conseguir tecido cerebral de fetos humanos. Além dessa dificuldade, sabemos que genes não codificam comportamentos, mas sim determinam estruturas cerebrais assim como suas interações. Assim, além do uso de modelos animais, uma das abordagens adotadas diante dessa dificuldade é recorrer aos achados de imagem como endofenótipos. Os estudos de genética do neurodesenvolvimento se dividem basicamente em três grupos: • O que estabelece quanto da estrutura cerebral e de suas interligações se deve a um componente genético e/ ou ambiental. • Aquele que associa um comportamento específico a variações estruturais em determinada área e possíveis genes relacionados. • O que avalia expressão diferencial de genes de neurodesenvolvimento em modelos animais ou fetos humanos evidenciando o papel dos genes no neurodesenvolvimento. Os estudos de gêmeos são uma poderosa ferramenta para a avaliação da participação do componente genético e do componente ambiental, pois teoricamente gêmeos monozigóticos (MZ) são 100% iguais geneticamente. Assim, se um traço não depende nada do ambiente, eles deveriam apresentar 100% de igualdade fenotípica. Existem hoje vários estudos que exploram a herdabilidade de diferentes aspectos da estrutura cerebral 10• Estudos de imagem feitos em gêmeos adultos mostraram que a influência genética no volume cerebral como na espessura da substância cinzenta é muito grande 11• O estudo de Thompson et al. 12 com dez pares de gêmeos adultos MZ e dez pares de gêmeos dizigóticos (DZ) mostrou variabilidade da herdabilidade de estruturas cerebrais, sendo que a maior herdabilidade foi para áreas associativas: lobo frontal e temporal. O estudo de Posthuma et al. 13 mostrou uma associação entre volume de substância cinza e variação de QI. O estudo de Wallace 14 indicou uma herdabilidade de 0,77-0,88 para todas as áreas cerebrais estudadas em pares de gêmeos MZ x DZ, com exceção do cerebelo. Wallace, estudando indivíduos de 5 a 19 anos, mostrou que a quantidade de substância cinzenta apresenta diminuição de herdabilidade com o aumento da idade, enquanto a herdabilidade da substância branca aumenta com a progressão da idade. Esse fato pode ser interpretado como a possibilidade de interferência do meio ambiente no desenvolvimento de regiões que envolvem processos cognitivos complexos. Todas essas observações da herdabilidade de estruturas cerebrais são reforçadas por achados do efeito de polimorfismos em genes relacionados à migração e à diferenciação neuronal
(BDNF, DISC1 por exemplo) em estruturas cerebrais em indivíduos saudáveis 15' 16 • Dois estudos recentes mostram que, além das estruturas, a conectividade entre elas, ou seja, os circuitos cerebrais e sua atividade, também apre, . senta um componente genet1co.
Formas de splicing e de interação com o microambiente Os estudos de genes diferencialmente expressos em modelos animais, envolvidos com cada etapa do neurodesenvolvimento, seja antes do nascimento, seja depois dele, evidenciam claramente seu papel em cada fase. Um estudo de 2006 que comparou a diferença de expressão gênica em áreas cerebrais distintas de camundongos em diversas etapas do neurodesenvolvimento mostrou que a variabilidade era mais bem explicada pelas fases do neurodesenvolvimento do que por qualquer outro fator. Um trabalho mais recente de Johnson et al. 18 , usando treze regiões do lado esquerdo e o direito do cérebro de quatro fetos humanos com 18-23 semanas de gestação, mostrou que durante o neurodesenvolvimento o cérebro fetal expressa 76% do transcriptoma humano. Mais ainda: 33% destes apresentam expressão diferencial e 28% splicing alternativo entre as diferentes áreas, de acordo com o desenvolvimento cerebral. Vários padrões de expressão diferencial foram correlacionados com regiões específicas. Por exemplo, no córtex, genes relacionados a projeções corticais e à sinaptogênese estão muito expressos. Dos genes diferencialmente expressos, 17% também sofrem splicing alternativo, o que mostra a importância do estudo de controle de splicing no neurodesenvolvimento. É interessante notar que vários genes envolvidos com o neurodesenvolvimento têm sua expressão e isoforma tecido e tempo dependentes, de maneira que um mesmo gene exerça diferentes papéis na neurogênese, migração e sinaptogênese. Um bom exemplo é o DISC1. Nas células progenitoras da camada ventricular ou subventricular de um cérebro em desenvolvimento, o DISC1 aumenta a proliferação das células progenitoras e diminui a capacidade de diferenciação neuronal das mesmas. Já no neurônio pós-mitótico, o DISC1 se associa ao complexo motor dineína e atua na migração neuronal. Na fase pós-natal, o DISC1 é muito expresso em sinapses e parece estar envolvido com a poda de sinapses glutamatérgicas, sendo assim fundamental para estabelecer as conexões de neurônios piramidais com interneurônios 19 • A migração das camadas corticais é regulada por várias moléculas extracelulares que funcionam como dicas para os neurônios, ativando vias intracelulares que na maioria das vezes vão levar a alterações de polaridade e/ ou do destino do neurônio em questão. Quando a laminina, uma dessas moléculas externas, se liga ao receptor a1~1 de integrina, aciona p35/Cdk5, que, por sua vez, fos forila ~-catenina, fazendo com que o complexo N -caderina/ ~- catenina diminua a adesão celular permitindo a
11 ASPECTOS GENÉTICOS E EPIGENÉTICOS DO DESENVOLVIMENTO
migração neuronal. A quantidade de ativação da ~-catenina é um dos fatores que determinam se o neurônio fica em uma camada mais profunda ou migra para uma mais superficial. Assim, a expressão de ~-catenina diminui com o desenvolvimento cortical fazendo com que neurônios que migrem depois se localizem em camadas mais superficiais20. Outra forma de atuação de p35/Cdk5 é no controle de modificações do citoesqueleto por meio da reorganização de actina no cone de crescimento dos neuritos. É interessante notar que a expressão de Cdk5 só é detectada, mesmo durante o neurodesenvolvimento, em neurônios pós- mitóticos, o que evidencia que seu papel não tem nada a ver com a divisão celular. Um estudo importante mostrou que camundongos que não expressam p35 apresentam alterações das camadas cerebrais sem exibir o gradiente clássico das camadas neuronais21 . Outro sinalizador importante relacionado à migração neuronal é a reelina, uma glicoproteína extracelular. A reelina liga-se a receptores de membrana lipoproteicos (VLDLr, ApoER2) fazendo com que neurônios/ axônios em migração possam perceber e responder a dicas extracelulares do posicionamento dos mesmos em camadas. Uma vez formado o complexo reelina/VLDLr/ ApoER2, ocorre a fosforilação de Dab 1, o que leva a uma série de rearranjos do citoesqueleto. A reelina também tem um papel importante na ativação das vias de Notch durante a migração neuronaF2. Os camundongos mutantes Reeler apresentam as camadas corticais dispostas exatamente da maneira inversa à normal. O BDNF (fator neurotrófico derivado de cérebro) é outra molécula de sinalização muito importante para o destino migratório dos neurônios. Ele estimula a transcrição de vários fatores intrínsecos, como p27, Mash1 e Math1 e Ngn1 ou Ngn2, que vão levar a alterações que determinam a migração de neurônios para camadas mais profundas23. Mais um sinalizador muito estudado é o NRG1 e seu receptor ErbB4. NRG 1 contribui para o posicionamento de células radiais da glia formando uma galhada por onde os neurônios vão subir para atingir as diferentes camadas corticais. O NRG1 também é muito importante na migração tangencial de interneurônios do córtex, influenciando o número de interneurônios GABAérgicos. A formação das sinapses, ou sinaptogênese, assim como sua maturação também são controladas pela expressão de genes dependentes de sinalizadores externos. Aqui as moléculas de adesão celular ( CAM) exercem um papel fundamental tanto na formação como na manutenção das sinapses.
Epigenética do neurodesenvolvimento Alterações da cromatina As alterações estáveis no nível de expressão de um gene que é independente da mudança do DNA são pro-
duzidas por mecanismos epigenéticos. Basicamente co nhecemos hoje três desses mecanismos: alteração do padrão de metilação, alteração da estrutura da cromatina e atividade de microRNAs. Ou seja, alterações epigenéticas são modificações dinâmicas e responsivas de genes a sinais sociais e adversidades do meio externo que ocorrem durante o desenvolvimento, permitindo uma interação do ambiente com alterações estáveis e hereditárias no genoma. A regulação da expressão gênica e o destino dos neurônios na fase de migração se dão por mecanismos epigenéticos. Os microRNAs controlam o silenciamento da cromatina, a estabilidade do mRNA ou a tradução. O DNA encontra-se enrolado em histonas (H2A, H2B, H3 e H4), que formam octâmeros e dão origem aos nucleossomos. A metilação é uma modificação covalente que ocorre no genoma de mamíferos, nas citosinas do 5- citosina-fosfodiester-guanina (CpG), dando origem a uma 5-metilcitosina. A adição de um grupo metil no quinto carbono da citosina para formar 5mC é catalisada pela enzima DNA metiltransferase (DNMT). A DNMT-1 prefere DNA hemimetilado e assim, durante a divisão celular, sempre copia a fita metilada mantendo esse padrão na geração seguinte. A 5mC inibe a transcrição gênica por vários mecanismos: gruda-se a regiões promotoras ricas em CpG; gruda-se em sítios específicos de ligação (bíndíng) de fatores de transcrição; atrai enzimas que contêm um metil-CpG binding domaín como a metil-CpG-bindíngproteín (MeCP) -2, que está envolvida na "leitura" de áreas metiladas e gruda-se nelas. Essas MeCP-2 afetam a condensação da cromatina por recrutarem tanto proteínas correpressoras (SIN3A) como também enzimas modificadoras de histonas, levando à compactação da cromatina. A metilação que ocorre de novo ao longo da vida é feita por DNMT-3A e DNMT3B e modulada pela DNMT-3L. Por sua vez, as caudas N terminais das histonas ficam para fora dos nucleossomos e podem sofrer vários tipos de reações químicas, sendo a principal a acetilação. Esta, por seu turno, também vai interferir na condensação da cromatina deixando-a mais frouxa e, portanto, favorecendo a transcrição gênica. Processos do neurodesenvolvimento como neurogênese e migração neuronal são extremamente regulados por alterações da estrutura da cromatina. Por exemplo, o fator silenciador que dá especificidade às células neuro nais nos tecidos não neuronais está associado a complexos repressores de abertura da cromatina, o que faz com que ele seja só expresso em neurônios na fase de neurogênese. Da mesma forma, inibidores da acetilação de histonas induzem a diferenciação neuronal em células corticais embrionárias. Já foi demonstrado que a maturação de oligodendrócitos e a formação de mielina no corpo caloso são dependentes da deacetilação de histonas. Também já foi demonstrado que a deficiência de DNMT- 1 causa mau funcionamento neuronal e morte. Alterações da cromatina ou de expressão gênica mediada por mi-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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VERTENTES DO CONHECIMENTO
croRNAs são extremamente importantes na formação das . smapses.
O papel do ambiente durante o neurodesenvolvimento O desenvolvimento do SNC é dependente das condições intrauterinas, que se manifestam através da me tilação, acetilação de genes importantes para o desenvolvimento do SNC. Esse processo é conhecido como programa fetal de plasticidade desenvolvimental e é um dos pontos principais do modelo Developmental Origins ofHealth and Disease (DOHaD). O uso de drogas durante a gestação, a falta de folato, a restrição alimentar, o uso de cigarro, o diabetes, a hipertensão arterial sistêmica (HAS) materna, o estresse materno entre outros são fatores externos afetam o desenvolvimento intraútero do SNC. Hoje se sabe que alterações nos níveis de nutrientes para o bebê, como as concentrações de colina e falatos, doadores do grupo metil, vão interferir na capacidade de metilação durante a gestação. Dietas ricas em gordura causam aumento de massa corporal e reduzida sensibilidade à insulina na prole. Dieta pobre em proteínas causa, em modelos animais, diminuição da expressão de moléculas da via dopaminérgica. Como foi discutido até aqui, o desenvolvimento do SNC não para ao nascimento, mas continua até o fim da adolescência, sendo que vários agentes do meio ambiente podem interferir na expressão gênica e modificá-la. Após o nascimento, fatores externos agem na modulação do desenvolvimento do SNC, sendo que estímulos táteis e cuidados maternos são fundamentais na modelagem do eixo hipotálamo-hipofisário (HPA) e na consequente resposta ao estresse na vida adulta. Os estudos mais abrangentes que mostram os efeitos adaptativos da expressão gênica em fun ção do ambiente externo são aqueles realizados com resposta ao estresse e com a falta de cuidados maternos em ratos recém-nascidos. Foi demonstrado que ratinhos neonatais expostos a períodos de tempo sob a ausência da mãe (> 60 minutos), quando comparados com ratinhos que não sofreram a separação, apresentaram maior nível de ansiedade, alteração de memória e menor capacidade de exploração do ambiente quando adultos. Também foi demonstrado que o tipo de posição para amamentação e a quantidade de estímulo tátil da mãe nos ratinhos interferiram na responsividade ao estresse e alteraram funções cognitivas da prole na fase adulta. É interessante notar que ratas que recebiam bons cuidados maternos, quando mães, se comportavam do mesmo modo, e o contrário também foi verificado. Esses achados foram correlacionados com alterações no eixo hipotálamo -hipófise da prole induzida pelo comportamento materno nas primeiras semanas de vida. Exposição a diferentes níveis de cuidados maternos foi correlacionada com achatamento da resposta do HPA e diminuição da expressão de receptores de glicocorticoi-
de em áreas cerebrais que persistiam até a vida adulta. A prole de mães cuidadoras apresenta aumento da expressão de mRNA do receptor de glicocorticoide ( GR), aumento da resposta aos glicocorticoides, diminuição da expressão de mRNA de fator liberador de corticotropina no hipotálamo e consequentemente menor resposta ao estresse, apresentando menor liberação de ACTH e cortisol quando comparada a animais criados por mães que não eram cuidadoras. Assim, demonstrou-se que comportamentos do início da vida dos ratos influenciariam o tipo de resposta ao estresse que eles apresentavam quando adultos. De acordo com essa hipótese, foram encontradas diferenças de metilação no promotor do gene de GR no hipocampo de animais provenientes de mães cuidadoras quando comparado ao dos provenientes de mães não cuidadoras. Do mesmo modo, foi demonstrado que proles provenientes de mães não cuidadoras apresentavam um aumento de ligação da MECP2 à região promotora do gene BDNF no hipocampo, diminuição da expressão de mRNA de BDNF, redução da sobrevida de neurônios hipocampais e redução de sinaptogênese e plasticidade sináptica. Consequentemente essas proles apresentavam pior desempenho em testes de memória espacial e capacidade de aprendizado. Por outro lado, em ratos, um aumento dos cuidados maternos promovia maior resiliência ao estresse ao longo da vida. Esses animais apresentavam potencial excitatório dos neurônios do hipotálamo reduzido, e o número de sinapses glutamatérgicas dos mesmos era diminuído, enquanto o número de sinapses gabaérgicas era igual ao de ratos que não foram expostos a excessivo cuidado materno. Já foram demonstradas em humanos diferenças de metilação em pacientes que cometeram suicídio e tinham apresentado eventos traumáticos na infância. Um estudo feito com mulheres que sofreram abuso durante a infância mostrou que elas apresentavam hiperatividade do eixo hipotálamo-hipófise quando submetidas a um teste de estresse social, exibiam baixos níveis de ocitocina, uma substância já relacionada à capacidade de vínculo, e níveis aumentados de IL6 no líquor, além de tamanho do hipocampo reduzido, medido por ressonância magnética.
Achados genéticos dos transtornos do neurodesenvolvimento Divisão genética dos transtornos do neurodesenvolvimento Como comentamos acima, genes em geral não são diretamente responsáveis por transtornos mentais ou comportamento. Os genes codificam proteínas, e, no caso dos transtornos mentais, genes específicos apresentam uma discreta anormalidade molecular, que leva à produção de uma proteína alterada geneticamente. Diferentes grupos de proteínas, como as que regulam o neurodesenvolvimento, que incluem as de seleção, migração, dife -
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renciação e sinaptogênese neuronal, vêm sendo associados à etiopatogenia de diversos transtornos psiquiátricos, assim como outras proteínas do SN, como enzimas, transportadores, moléculas de transdução de sinal, ou aquelas envolvidas na plasticidade sináptica, axonal e dendrítica. Os transtornos do neurodesenvolvimento do ponto de vista genético podem ser divididos em quatro categorias principais: aneuploidias (tipo síndrome de Down), microdeleções cromossômicas (ex-síndrome de Willians Beuren), doenças em que um único gene é afetado (por exemplo, mutação do gene FMR1 na síndrome do X-frágil) e doenças de origem complexa, em que se acredita . . , . . que possam existir causas genehcas com mteraçao complexa e/ou epigenéticas. Neste capítulo discutiremos apenas o quarto grupo no qual se enquadra grande parte dos transtornos psiquiátricos, sendo que o maior número de estudos até o momento se concentra em esquizofrenia, transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e autismo.
Os transtornos do neurodesenvolvimento e seus genes Esquizofrenia Há mais de trinta anos, um número cada vez maior de pesquisadores vem apresentando resultados de trabalhos científicos que confirmam a hipótese de falhas no neurodesenvolvimento normal como fator principal para o aparecimento da esquizofrenia. Vale lembrar que esquizofrenia é uma síndrome bastante prevalente (ver capítulo sobre esquizofrenia neste livro) e, a exemplo do que ocorre com outros transtornos médicos comuns, como hipertensão arterial ou diabetes, devem existir fatores etiológicos distintos que levem a manifestações clínicas semelhantes. Em um futuro próximo, teremos uma compreensão mais clara dos diferentes agentes etiológicos que concorrem para a esquizofrenia, e assim passaremos a chamá-los novamente de "o grupo das esquizofrenias" (originalmente cunhado por Eugen Bleuler), de forma semelhante ao que vem acontecendo nos dias atuais com a doença de Alzheimer. A hipótese de falha no neurodesenvolvimento para o aparecimento da esquizofrenia baseia-se nas evidências dos estudos que observaram diferenças na anatomia cerebral, na distinção de desenvolvimento motor, linguagem, rendimento escolar ou funcionamento cognitivo geral apresentada entre indivíduos-controles e aqueles com esquizofrenia. Baseia-se também nos resultados de estudos genéticos. A importância do componente genético para a esquizofrenia já está bem estabelecida em diversos estudos do século passado, e calcula-se, por meio desses estudos, uma herdabilidade entre 0,6 e 0,8 (maior do que para diabetes e hipertensão arterial). Diferentes estratégias foram utilizadas na identificação inicial de possíveis genes candidatas (como sítios de ação no SN a respostas a antipsicó-
ticos, relatos de translocações cromossômicas, estudos de associação envolvendo dezenas ou milhares de marcadores distribuídos por todo o genoma etc). Dessa maneira, nos últimos anos têm sido identificadas diversas variantes de genes de vulnerabilidade para a esquizofrenia. Apesar de esses genes ainda estarem sendo investigados, muitos deles, já identificados, estão envolvidos no desenvolvimento, na maturação e na resiliência cerebral. São eles:
COMT Variantes do gene que codifica a catecol-0 -metil transferase (COMT), uma enzima central no catabolismo de dopamina sináptica, parecem aumentar o risco de desenvolvimento de esquizofrenia, mas apenas de forma modesta. A variante mais bem estudada, o polimorfismo de apenas um nucleotídio (SNP, single nucleotide polymorphism), o rs4680, apresenta adenina ou guanina, levando à presença do aminoácido metio nina ou valina na posição 158 da enzima COMT. O alelo de risco identificado para esquizofrenia é a COMT com valina na posição 158. Essa variante confere à estrutura proteica da enzima uma maior termoestabilidade, permitindo maior atividade enzimática e assim reduzindo a concentração de dopamina nas sinapses do córtex pré-frontal. Estudos que envolvem testes neuropsicológicos e de neuroimagem funcional têm confirmado a associação de uma menor atividade préfrontal para a variante valina. DISCl O gene que codifica a proteína DISC1 (disrupted-inschizophrenia 1) é abundante no hipocampo, e junto com outras proteínas forma um complexo com impacto na função centrossomal, crescimento neurítico e migração neuronal, como descrito acima. Vários estudos têm confirmado a associação de diferentes haplótipos desse gene (isto é, diferentes configurações na distribuição dos alelos em um gene) com um risco aumentado para esquizo frenia. Em especial, o polimorfismo Ser704Cys tem sido estudado com relação ao volume do hipocampo e performance em testes neuropsicológicos, com atenção especial para a variante serina. RGS4 RGS4 (regulator of G protein signaling 4) é um importante modulador do sistema nervoso central, envolvendo, entre outros, os sistemas dopaminérgico, glutamatérgico e o sistema neuregulina-proteína G. A mudança de um nucleotídeo (rs951436 C~ A) no gene que codifica essa proteína está associada com o risco para desenvolver esquizofrenia, assim como na redução de volume do córtex pré-frontal dorsolateral. NRGl Até o momento há seis isoformas da neuregulina 1 (NRG1), provenientes de cortes variados ("alternative
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VERTENTES DO CONHECIMENTO
splicing") da proteína original. Essas isoformas e seu receptor ErbB4 contribuem potencialmente para o desenvolvimento da esquizofrenia através de processos neurais que incluem migração neuronal, orientação axonal e mielinização, plasticidade sináptica e maturação dendrítica glutamatérgica. Variantes do gene NRG 1 têm sido associadas com o diagnóstico de esquizofrenia, assim como anormalidades de comportamento em modelos animais, como camundongos que respondem a medicação antip sicótica. Há também resultados de diminuição de ativação pré-frontal e variantes do NRGl. ZNF804A Em um recente estudo de associação que cobriu todo o genoma (genome-wide association study ou GWA), a variante de um único nucleotídeo rsl344706 no gene ZNF804A (zinc .finger protein 804A) apresentou um aumento na vulnerabilidade para desenvolver esquizofrenia. Entretanto a proteína codificada pelo ZNF804A ainda tem uma função pouco conhecida.
DTNBPl A disbindina (dystrobrevin-binding protein 1 ou DTNBP1) é uma proteína que faz parte do complexo proteico associado à distrofina presente originalmente nas células do músculo esquelético, e mais tarde observado no SNC, principalmente nos axônios e em terminações sinápticas. Alterações no gene da disbindina localizado no cromossomo 6p22.3 foram relatadas em esquizofrenia. Essa proteína é muito importante na formação de lisossomos e portanto na formação de sinapses. RELN A reelina (reelin ou RELN) é uma proteína que contribui no processo de migração neuronal. Expressão diminuída de reelina assim como o aumento da metilação de seu promotor são achados consistentes em esquizofrenia. Infecções virais durante a gestação podem ser uma explicação para o aumento de metilação da região promotora de reelina. Transtorno do déficit de atenção e hiperatividade
O transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) é bastante prevalente na infância (2 -4%), mais comum em meninos (2-3 vezes mais frequente), apresentando curso variável e comorbidades frequentes (ver capítulo sobre TDAH neste livro). Portanto, trata-se de um transtorno clinicamente heterogêneo, em que 50% ou mais dessas crianças com TDAH, quando atingem a idade adulta (após maturação cerebral), tornam-se assintomáticas. Entretanto, os outros quase 50% continuarão a apresentar sintomas do TDAH na vida adulta. Sabe-se também, por meio de estudos epidemiológicos em famílias e em gêmeos, que a sua herdabilidade é uma das mais altas entre os transtornos psiquiátricos. Calcula-se que cerca de
75% dos fatores envolvidos para o desenvolvimento da doença são atribuídos ao componente genético. Vários genes têm sido investigados em diferentes amostras de TDAH, entretanto os mais estudados são aqueles do sistema dopaminérgico. A partir do uso do metilfenidado, que comprovadamente melhora a sintomatologia de pacientes com TDAH, e sabendo-se que o principal mecanismo de ação dessa droga é bloquear o transportador da dopamina, tem-se realizado uma série de investigações envolvendo o sistema dopaminérgico. Os genes mais estudados têm sido os que codificam o receptor da dopamina subtipo4 e o transportador da dopamina.
DRD4 A associação entre TDAH e o polimorfismo de repetições de 48 pares de base no exon III do gene que codifica o receptor dopaminérgico subtipo4 (DRD4), expresso primariamente no córtex pré-frontal, é um dos mais ro bustos e consistentes resultados em estudos de genética molecular do TDAH. Em uma meta-análise com mais de trinta estudos identificou-se o alelo 7 (repetição 7 ou DRD47r) desse marcador no DRD4 como fator de risco para desenvolver TDAH, apesar de ser um efeito pequeno (odds ratio > 1,3). Em termos funcionais, o alelo DRD4-7r parece alterar a função do receptor fazendo-o menos sensível à dopamina do que os outros alelos existentes. DAT1/SLC6A3 O transportador da dopamina (DAT1 ou SLC6A3) é expresso primariamente no estriatum e no núcleo accumbens e é o principal sítio de ação do metilfenidado. O gene DAT1 apresenta um polimorfismo de repetição de número variável (variable number tandem repeat ou VNTR) de quarenta pares de base na região 3 não transladada. Os alelos 9 (440 pb) e 1O (480pb) são os mais frequentes (por volta de 23 e 72% respectivamente). O alelo 10 parece estar relacionado com um aumento da expressão mesolímbica do transportador. Apesar de vários estudos relatarem uma associação positiva entre DAT1 e TDAH, há inconsistência quanto ao alelo associado, além de haver também resultados negativos. Em uma recente meta-análise, observou-se heterogeneidade entre estudos europeus (de base familiar) e casos-controles de origem asiática. Estudos envolvendo indivíduos do Caribe e do Oriente Médio também apresentam resultados conflitantes. Entretanto, há estudos que procuram correlacionar alelos do DAT1 com determinadas estruturas anatômicas (neuroimagem), ou com diferentes comorbidades (transtornos de humor e ansiedade). Os sistemas noradrenérgico e serotoninérgicos também têm sido investigados no TDAH. Os mais estudados são os genes para o transportador da noradrenalina (NET1), os receptores alfa-adrenérgicos 2A e 2C (ADRA2A e ADRA2C), o transportador da serotonina (5HTT/SLC6A4), e os receptores serotoninérgicos subtipos 1B e 2 A (HTR1B
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e HTR2A). Embora vários resultados positivos tenham sido relatados, vários outros estudos são negativos. O SNAP25, uma proteína ligada ao sinaptossomo, também foi associado ao TDAH, sendo confirmado em uma meta-análise, mas apresentando apenas um pequeno efeito. Autismo
O conhecimento científico sobre o autismo tem sofrido grandes transformações desde a sua primeira descrição médica (ver capítulo sobre o autismo neste livro). Por exemplo, há pouco mais de trinta anos, acreditava-se que sua causa etiológica era predominantemente de base psicodinâmica, isto é, causada por uma relação patológica de comunicação entre os pais (principalmente a mãe - chamada de "mãe fria'') e a criança. A partir dos estudos genético-epidemiológicos, evidenciou-se a presença de uma base biológica como fator etiológico importante. Hoje, com base nos resultados de estudos em gêmeos (comparação entre as taxa de concordância de gêmeos monozigóticos e dizigóticos), calcula-se que mais de 80% da variância para desenvolver esse transtorno seja de causa genética (talvez o transtorno psiquiátrico com o maior componente genético). Consequentemente, vários estudos na área da genética e biologia molecular têm sido realizados nos últimos anos, na busca da identificação dos possíveis genes envolvidos no desenvolvimento do autismo. Muitos dos genes investigados, que incluem o NLGN3, o NLGN4X e o SHANK3, codificam proteínas que afe tam o desenvolvimento neuronal, principalmente a formação de sinapses. Entretanto, assim como na esquizofrenia, a reprodução dos achados positivos em outras amostras independentes tem sido limitada. Além disso, raras deleções das chamadas variações do número de cópias (CNV copy number variants) na região 22ql3.3, que incluem o gene do SHANK3, têm sido observadas em pacientes com autismo. Também foram relatadas associações com outras raras regiões submicroscópicas, que apresentam hemizigose, deleção ou duplicação na região 16p11.2, NRXN1 e PTCHD1. As variações do número de cópias ( CNV) são regiões cromossômicas que podem conter sequências de mil a até alguns milhões de nucleo tídeos, e que podem ter sido geradas por duplicações, deleções, inserções ou inversões cromossômicas. Autismo e esquizofrenia
Mais recentemente, alguns autores têm proposto uma ligação entre o autismo e os transtornos pervasivos do desenvolvimento, como a esquizofrenia, principalmente a esquizofrenia de aparecimento na infância 10 • Essa hipótese se fundamenta em resultados de estudos em famílias (maior frequência de autismo e outros transtornos pervasivos do desenvolvimento em famílias com crianças diagnosticadas com esquizofrenia e vice-versa), de neuroimagem, clínico-sintomatológicos e de resposta terapêutica. Há também estudos em genética molecular que se funda-
mentam na hipótese da existência de um espectro de transtornos que compartilham aspectos etiológicos comuns (ver capítulo sobre autismo e esquizofrenia infantil neste livro) na busca de associação alélica entre os transtornos do espectro. Os principais resultados na área envolvendo técnicas genético-moleculares são dos estudos que identificam regiões em que há variações do número de cópias de sequências de nucleotídeos, podendo ter sido geradas por duplicações ou deleções cromossômicas. Vários estudos vêm associando a região cromossômica 22q 11, responsável pela síndrome velocardiofacial, com esquizofrenia (e psicose) e com autismo (e outros transtornos pervasivos da infância). Trata-se de uma região em que há mais de cinquenta genes presentes, e o risco para o aparecimento desses transtornos estará aumentado ou muito aumentado dependendo do tamanho e da região cromossômica atingida (deleção e duplicação foram observadas). Outra região também identificada como importante é a área cromossômica 16p11.2 e 16pl3.1, que engloba também vários genes em cada uma delas. Alguns pesquisadores sugerem que diferentes anormalidades sofridas em uma mesma região cromossômica, por exemplo, micro deleção e microduplicação (também chamada de variante recíproca), seriam responsáveis pelo aparecimento de autismo e esquizofrenia respectivamente. Há ainda relatos de genes específicos associados com a etiopatogenia da esquizofrenia, que foram também identificados para o autismo. Existem estudos em que o mesmo alelo foi identificado tanto para a esquizofrenia como para o autismo, há outros que associam diferentes alelos do mesmo marcador do gene candidato para a esquizofrenia e para o autismo. Alguns estudos têm identificado diferentes marcadores do mesmo gene para ambos os transtornos e, finalmente, há aqueles em que se relata uma sobreposição complexa, isto é, diferentes haplótipos do mesmo gene para cada uma das doenças. A Tabela I resume os principais resultados até o momento. Autismo e TDAH
Como foi comentado acima, o TDAH e o autismo (vamos aqui incluir também os transtornos do espectro do autismo e chamá-los de TEA) são doenças do neuro -
Tabela I Padrão de sobreposição entre os genes associados para autismo e para esquizofrenia (modificado de Crespi et ai. 201 0) 2•
Mesmos alelos
Diferentes ale los
Diferentes marcadores
Sobreposição complexa
DAO
AHil
BDNF
CNTNAP2
DISCl
APOE
DRD3
COMT
GRIK2
DRDl
EGF
NRXNl
GSTMl
FOXP2
NTNGl
SLC6A4
MTHFR
HLA-DRBl
RELN
SHANK3
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desenvolvimento que apresentam também um importante componente genético em sua carga etiológica. A co ocorrência (ou comorbidade) de ambas as doenças é muito frequente, podendo variar de 30 a 80% em crianças inicialmente identificadas com TEA e que apresentam também critério diagnóstico para TDAH, e de 20 a 50% em crianças com TDAH e que apresentam critério para TEA (ver Capítulo 80 neste livro). Com base nessas observações e nos resultados de estudos de agregação familiar e de gêmeos que também confirmaram essas informações iniciais, tem-se procurado pesquisar os mesmos genes candidatos nos dois fenótipos. Entretanto, o número de estudos que utilizam esse tipo de abordagem é ainda pequeno, com poucos resultados positivos. Por exemplo, em um estudo realizado em 2008, genotipou-se o conhecido marcador do tipo VNTR daregião 3 do DATl em 67 crianças com TEA e com sintomatologia para TDAH, tendo-se observado uma associação fraca com o alelo 10 (apesar de não ser o esperado, a literatura relativa a esse marcador para TDAH ainda é conflitante). Com relação à investigação do alelo DRD4r7 em 136 probandos com autismo, não houve associação. Naturalmente esses estudos ainda são inconclusivos por apresentarem um número pequeno de trabalhos e utilizarem amostras reduzidas.
Considerações finais A área da genética e biologia molecular encontra-se em grande crescimento e com um número cada vez maior de publicações. Até o momento, os resultados envolvendo fenótipos de transtornos psiquiátricos são promissores, mas ainda não há uma compreensão clara da atuação das variantes genéticas identificadas. Entretanto, apesar disso, há um grande número de estudos feitos pela comunidade científica segundo os quais se aceita que o componente genético e os fatores que influenciam o neuro desenvolvimento anormal têm sido alguns dos principais responsáveis pela etiofisiopatogenia de grande parte dos transtornos mentais, dentre eles a esquizofrenia, o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e o autismo. Grupos de genes relacionados a estrutura cerebral, resposta ao estresse intraútero, resposta ao ambiente externo na infância e variações genômicas de suscetibilidade que respondem ao ambiente extraútero são a base do modelo genético para os transtornos psiquiátricos do neurodesenvolvimento. Além disso, diferentes grupos de genes podem se combinar de diferentes formas para dar origem a fenótipos semelhantes.
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Interação Gene-ambiente: Mecanismos Causais e Fatores Protetores Guilherme Va noni Polanczyk Christian Costa Kieling
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 126 Conceitualização, 127
Transtornos mentais são conceitualizados como condições multifatoriais e complexas, para os quais contribuem fatores de risco
Interações estatísticas, 127 Interações biológicas, 128 Metodologia para o estudo de GxE, 128
de diferentes naturezas e níveis.
Evidências de GxE em transtornos mentais e desenvolvimento, 130 Comportamento antissocial, 130 Depressão, 131 Psicose, 132 Desenvolvimento cognitivo, 132 Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade, 132 Implicações, desafios e perspectivas, 133 Conclusão, 133 Questões, 133 Referências bibliográficas, 134
1. Fatores de risco genéticos e ambientais atuam por intermédio de mecanismos conjuntos para a proteção ou para o desenvolvimento de transtornos mentais. 2. A interação gene-ambiente refere-se ao controle genético da suscetibilidade à doença diante de estressares ambientais, aumentando o risco ou protegendo contra o seu desenvolvimento. 3. A interação estatística refere -se à partida do efeito aditivo ou multiplicativo de genes e ambiente. A interação desenvolvimental refere-se a um processo biológico de ação entre o efeito de genes e ambiente. 4. Para a identificação de interações gene-ambiente com implicações biológicas, é fundamental a existência de hipóteses que relacionem a priori gene, estressar ambiental e transtorno
Introdução Ao longo da última metade do século passado, a dicotomia entre natureza e ambiente (nature versus nurture) usada para explicar a origem dos transtornos mentais, foi progressivamente abandonada, e esses transtornos deixaram de ser entendidos como consequência de eventos ou fatores causais isolados para ser conceitualizados como desfechos do efeito de múltiplos fatores de risco, de diferentes naturezas, agindo de forma inter-relacionada em diferentes níveis 1•2 • Em paralelo às mudanças conceituais, houve também uma grande evolução em pesquisas empíricas, em parte impulsionada por avanços tecnológicos, como no campo da genética molecular. Essa evolução permitiu que se deixasse de considerar o risco genético como uma variável anônima e que ele passasse a ser estudado pela identificação de variantes alélicas específicas. Evidenciou-se então que não há fatores de risco genéticos e ambientais suficientes ou necessários para o desen-
mental. 5. Há evidências de interação gene-ambiente para condições como comportamento antissocial, depressão, psicose, desenvolvimento cognitivo, transtorno de déficit de atenção/hiperatividade, entre outros. 6. O estudo da interação gene-ambiente tem o potencial de informar estratégias de prevenção de transtornos e aprofundar o entendimento sobre os mecanismos etiológicos envolvidos nos processos de doença.
volvimento da maioria dos transtornos mentais e que os fatores de risco atuam por meio de mecanismos conjuntos para a proteção contra transtornos mentais ou para o seu desenvolvimento 1•2 • Os estudos nessa área mostraram que genes e ambiente se inter-relacionam por mecanismos diversos para aumentar a suscetibilidade a transtornos ou para promover a resiliência. Entre os mecanismos de inter-relação
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de fatores genéticos e ambientais destacam-se mecanismos epigenéticos e interação gene -ambiente. Os mecanismos epigenéticos são abordados em um capítulo específico. Neste capítulo, será discutida a interação gene-ambiente.
Conceitualização A interação gene -ambiente (GxE) refere -se ao fe nômeno de variação do efeito de uma exposição ambiental em razão do genótipo do indivíduo. Alternativamente, refere-se a situações em que os genes moderam a sensibilidade do organismo a eventos ambientais específicos, aumentando o risco de transtornos ou promovendo a resiliência. Quando há GxE, um transtorno mental ocorre se características ambientais específicas e determinado genótipo são combinados (ou seja, quando a predisposição genética é associada a fatores desencadeantes ambientais) 2-7 • Historicamente, o termo interação foi utilizado sob duas perspectivas: uma biométrica (ou estatística) e uma desenvolvimental. A tensão entre ambas as perspectivas foi responsável por controvérsias significativas na área, que dificultaram o seu avanço. O conceito biométrico de interação foi introduzido por Ronald Fischer, um dos fundadores da genética de populações e o criador da análise de variância, que tratava a GxE como um fenômeno puramente estatístico e indesejado. O conceito desenvolvimental ou biológico de interação foi introduzido por Lancelot Hogben, um embriologista experimental, com o objetivo de explicar o papel que as relações entre genes e ambiente desempenham ao longo do desenvolvimento na produção de variabilidade 1 •
Interações estatísticas Do ponto de vista estatístico, considera-se a presença de interação quando os resultados obtidos em uma análise se desviam significativamente daquilo que foi predito pelo modelo testado. Tais predições podem ser modeladas em termos aditivos ou multiplicativos, o que possui implicações relevantes na avaliação da presença ou ausência de interação. Interações estatísticas não são fenômenos observáveis concretamente e são dependentes do modelo em questão8 . Por exemplo, a interação estatística sob o modelo aditivo (isto é, quando se estudam diferenças de risco) entre G e E significa que o risco de doença quando ambos ( G e E) estão presentes é diferente do efeito a ditivo (soma) dos riscos individuais de G e E. Dessa forma, o risco combinado pode ser maior ou menor do que a soma dos riscos individuais. De modo semelhante, uma interação estatística sob o modelo multiplicativo (isto é, quando se estudam razões de risco utilizando uma regressão logística, por exemplo) significa que o risco de doença quando G e E estão presentes é diferente do efeito multi-
Tabela I Incidência cumulativa hipotética em relação à exposição a fatores genéticos (G) e ambientais (E)
E-
E+
G-
1
5
G+
2
8
plicativo (produto) entre riscos individuais de G e E. Por definição, havendo efeitos principais tanto de G quanto de E (assumindo que o estudo possua poder suficiente), sempre será possível identificar evidência de interação estatística em um dos dois modelos (Tabela I). Assim, a interação estatística é um fenômeno cuja presença ou ausência, bem como a magnitude, é em grande parte determinado pelo modelo escolhido para mensurar o desvio de um padrão de efeitos9 . Questões tradicionais ligadas à estatística também são relevantes em estudos de GxE, nos quais, por exemplo, diversos fatores, além do tamanho da amostra, estão associados ao seu poder de detectar a presença de interação. Estudos baseados em dados empíricos e modelos computacionais identificaram que o tamanho da amos tra necessário para a detecção de interação é determinado pela magnitude da interação, pela frequência do ale lo e pela força da associação entre exposição e desfecho em indivíduos com o alelo mais frequente 10 . Também foi observado que o poder estatístico e o tamanho da amostra são altamente influenciados pelo erro de medida das variáveis de exposição ambiental e de desfecho fenotípi co, de modo que estudos que utilizam medidas pouco precisas necessitam de amostras muito maiores para detectar determinado efeito. Esse fenômeno indica que o investimento em medidas mais precisas pode ser uma abordagem mais efetiva em termos econômicos para estudos de GxE, se comparado ao investimento em amos tras maiores9' 11 . Assim como nos demais estudos de genética, a questão das comparações múltiplas também deve ser levada em consideração em estudos de GxE, em que a magnitude do problema é amplificada pelo fato de que um número ainda maior de variáveis é avaliado (incluindo não só um grande número de genes, mas também múltiplas exposições ambientais, bem como todas as possíveis interações entre genes e ambientes). Se, entretanto, o teste de um grande número de potenciais interações faz aumentar substancialmente a probabilidade de resultados falsos-positivos, os métodos tradicionais de correção estatística para o problema podem acarretar uma reduzida possibilidade na identificação de interações verdadeiramente positivas. Dado que estratégias clássicas, como a correção de Bonferroni, são pouco adequadas para tais procedimentos (assumem a independência dos testes, o
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que geralmente não é o caso), novas técnicas têm sido propostas mais recentemente, como o controle para taxas de descobertas falsas (jalse discovery rate, ou FDR, em inglês), que determina uma porcentagem de testes falsospositivos entre aqueles considerados significativos 12 • De modo geral, além das abordagens estatísticas, uma recomendação geral é que se limite o número de testes a ser realizados a partir de definições a priori baseadas na plausibilidade biológica da interação3 .
Interações biológicas Uma das abordagens possíveis para a definição de interações biológicas baseia-se na identificação de interações mecanísticas, geralmente referindo-se à noção de reações físicas ou químicas diretas ou a seus subprodutos. A descrição do mecanismo pelo qual tais interações ocorrem, entretanto, não leva necessariamente a predições sobre observações epidemiológicas. Uma das razões para isso é o fato de que raramente determinado mecanismo é responsável por todos os casos de um dado transtorno em uma população. Dessa forma, os esforços para a definição de modelos biológicos subjacentes têm sido limitados pelo fato de que um mesmo padrão de apresentação fenotípica pode ser originado por mecanismos diferentes. Para melhor compreender tais relações, podem ser de utilidade paradigmas que não dependam de um mecanismo único e específico para a compreensão do processo patogênico. Entre os dois principais modelos causais que adotam essa visão estão o modelo de desfechos potenciais e o modelo de causa suficiente 13 • Ao desenvolverem arcabouço conceitual mais intimamente ligado à biologia, pesquisadores passaram a considerar mais recentemente aquilo que acontece em termos individuais e não somente o que ocorre em termos populacionais. Essa visão parte do pressuposto de que múltiplas rotas etiológicas (causas suficientes) podem levar a uma mesma doença, sendo que em cada via etiológica múltiplos fatores podem se combinar para causar a doença. Desse modo, uma interação passa a ser definida como a coparticipação de dois ou mais fatores na gênese de uma causa suficiente 10 . O modelo de desfechos potenciais examina as diferentes combinações entre fatores de risco e desfechos. Tome-se como exemplo um indivíduo exposto a um conjunto de fatores de risco, que pode desenvolver ou não determinada doença. No caso mais simples, em que dois fatores de risco dicotômicos ocorrem, há quatro combinações possíveis de risco (tanto genes como ambiente, apenas genes, apenas ambiente ou nenhum dos dois). De modo complementar, o modelo de causa suficiente afirma que diferentes mecanismos causais correspondem a diferentes causas suficientes para uma doença. A combinação de dois ou mais componentes para produzir uma doença é chamada de uma causa suficiente comum, po-
dendo ser resultante não apenas da sinergia (quando, por exemplo, a presença de dois fatores é necessária para causar a doença), mas também do antagonismo (quando a presença de um, mas não de dois fatores, por exemplo, causa a doença) entre fatores. Cabe ressaltar que a ocorrência dos diferentes fatores que contribuem para um dado mecanismo causal pode se dar em diferentes mo mentos do tempo, sendo o efeito conjunto, em uma perspectiva desenvolvimental, o responsável pela ausência ou presença do desfecho. Nesse modelo, ainda, acredita-se que os diferentes fatores (ou combinações deles) estejam competindo para a incidência do desfecho, dado que apenas uma causa suficiente é necessária - vide, por exemplo, o caso extremo das diferentes causas de morte, em que a ocorrência de uma causa suficiente "previne" morte por todas as demais causas. Unificando as concepções do modelo de desfechos potenciais com o de causas suficientes, pode-se dizer que combinações completamente diferentes de suscetibilidade para causas suficientes podem produzir o mesmo tipo de resposta13 •
Metodologia para o estudo de GxE Os pesquisadores Terrie Moffitt e Avshalom Caspi, pioneiros no estudo de GxE no processo de desenvolvimento de transtornos mentais com fatores de risco genético identificado, propuseram um modelo metodológico para a realização desses estudos6. A estratégia apoia-se na necessidade de inicialmente ser definida a tríade gene, agente ambiental e fenótipo comportamental, com base em hipóteses conceituais biologicamente plausíveis. A proposta foi operacionalizada em sete passos estratégicos: 1) Consulta a modelos quantitativos de genética comportamental. Os modelos genéticos quantitativos fornecem indicativos quanto à existência ou não de GxE. O coeficiente de herdabilidade indica não apenas a contribuição de genes, mas também o efeito deles e do ambiente. Outras fontes indicativas são estudos de gêmeos e adotados que mostram que a probabilidade do transtorno é maior entre aqueles indivíduos em risco genético, quando expostos a ambientes familiares adversos. Ainda que o gene permaneça anônimo, o estressor ambiental tornase um candidato a estudos futuros para a busca da identificação desse gene6 • 2) Identificação do agente ambiental candidato. Evidências de variabilidade marcada em relação ao desfecho em estudos entre indivíduos expostos ao mesmo nível de estresse ambiental indicam que variáveis genéticas podem estar interagindo com uma situação de estresse específica. Além disso, o agente ambiental deve apresentar alguma evidência de interação com as vias neurobiológicas relacionadas ao transtorno 2 ' 6 . Uma vez selecionada a variável de estresse ambiental, deve ser testada a sua relação com o desfecho, que tem de apresentar relação causal. Para que exista uma verdadeira GxE, a variável ambiental
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não deve estar correlacionada com o risco genético. Há possíveis delineamentos de estudos que corrigem para a mediação genética, todos com limitações: estudos que alocam os indivíduos de forma aleatória para diferentes grupos; estudos longitudinais que demonstram alteração comportamental a partir de um nível basal após uma experiência ambiental; estudos de gêmeos e adotados, que controlam para a contribuição genética à variação fenotípica enquanto testam se uma variável ambiental apresenta uma contribuição adicional6. 3) Otimização da medida de risco ambiental. Devem ser privilegiadas situações de risco proximais em relação a distais. Os fatores de risco proximais são mais específicos, associando -se a hipóteses biologicamente plausíveis, enquanto os distais frequentemente operam através dos riscos proximais2 ' 6'7 . É ainda importante que seja observada a especificidade dos fatores de risco em relação à fase do desenvolvimento do indivíduo. O efeito de alguns fatores de risco ambientais parece estar limitado a períodos sensíveis de vulnerabilidade geneticamente determinados 2 • As medidas devem ser realizadas idealmente de forma prospectiva, uma vez que o relato retrospectivo é suscetível a diversos problemas, como esquecimento e viés de lembrança. Além disso, a memória sobre eventos passados pode ser influenciada por genes que, por sua vez, influenciam o comportamento e a personalidade, havendo uma correlação entre ambas as variáveis6. Medidas de variáveis ambientais devem ser capazes de definir o tempo de exposição, o número de eventos, a diversidade de estressores e a possível rede de situações encadeadas. Assim, medidas transversais dicotomizadas parecem reduzir a complexidade da exposição. O estudo focado em apenas um evento isolado, quando se considera o contexto em que ele ocorre, tanto do ponto de vista do processo desenvolvimental do indivíduo como do ponto de vista da cascata de eventos em que o estressor está inserido, limita a detecção de interações gene-ambienté 14 • 4) Identificação do gene de suscetibilidade candidato. Genes candidatos com maior potencial são aqueles com variantes polimórficas relativamente comuns na população. Caso existam evidências da associação entre determinado gene e o transtorno psiquiátrico em estudo, esse gene se constitui em candidato natural. Entretanto, a ausência de associação entre um gene e o desfecho não necessariamente exclui a possibilidade de que aquele apresente uma interação significativa com o ambiente. A base mais sólida para a seleção de um gene para o estudo da sua interação com fatores ambientais é a evidência de que ele se encontra associado à reatividade do organismo ao agente ambiental, o que não implica, necessariamente, que esteja associado isoladamente ao desfecho 6 • 5) Teste da interação. O modelo de estudo longitudinal é o mais informativo para que a interação gene-ambiente seja adequadamente testada. Esse modelo permi-
te que seja estudada uma amostra representativa da população quanto à distribuição do genótipo, à exposição ao estresse ambiental e aos transtornos de interesse, assim como quanto aos desfechos de saúde. Por meio de estudos de coorte é possível que sejam estimados de forma acurada a sensibilidade, a especificidade e os valores preditivos negativo e positivo para o desfecho de interesse, assim como o risco atribuível. Apesar das vantagens claras, os estudos longitudinais são onerosos e demandam um longo tempo de observação6 . 6) Avaliação da extensão da interação gene-ambiente além da tríade inicialmente conceitualizada. Essa estratégia exploratória é utilizada caso seja detectado um efeito da interação gene-ambiente. Uma variável na tríade é sistematicamente substituída por outra variável do mesmo nível, com frequência similar, enquanto as outras duas são mantidas constantes. Assim, podem-se avaliar a especificidade da interação e quanto ela se estende além dos fatores inicialmente conceitualizados6 . 7) Replicação e metanálise. Estudos de genética psiquiátrica são caracterizados pela frequente não replicação de achados, o que também ocorre com estudos de GxE. Entre outras razões, a diversidade metodológica entre os estudos parece estar bastante implicada nesse fenômeno, como poder insuficiente associado a tamanhos amostrais inadequados, correlações gene -ambiente, variabilidade restrita nas medidas dependentes e independentes e no processo de amostragem, níveis de medida inapropriados e modelagem linear imprópria de relações não lineares 14. A replicação de achados em amostras independentes é fundamental para a consolidação dos achados. Ainda, as metanálises apresentam maior poder para corroborar ou não achados iniciais6• Entretanto, é importante considerar que o valor de uma metanálise reside na qualidade dos estudos originais que agrega e na possibilidade de comparação entre as amostras quanto à distribuição do genótipo dos fatores ambientais em estudo. Uma das recentes discussões na literatura relacio nada a GxE refere-se à forma mais adequada para a realização de revisões de literatura e metanálises. Abordagens mais restritivas, que englobam apenas estudos com desenhos e medidas semelhantes, podem produzir resultados diferentes dos obtidos com abordagens mais inclusivas, que partem da hipótese de interesse, porém abarcando resultados de estudos de delineamentos diversos. Por exemplo, do ponto de vista estatístico, o maior poder para a identificação de uma interação entre duas variáveis categóricas ocorre quando as frequências alé licas e de exposição ambiental são de 50%. A obtenção de tais proporções, entretanto, é pouco provável em estudos populacionais (em que a ocorrência é determinada pela natureza), de modo que estudos de casos e objetos-controles, apesar de possuírem outras limitações, também podem ser de grande relevância para a compreensão do fenômeno GxE.
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De especial interesse também são aqueles estudos que se focam em fenótipos intermediários (também chamados de endofenótipos), com os quais presumivelmente se pode encontrar associações mais robustas na rota causal entre fatores de risco e desfecho 15 • Endofenótipos podem ser estudados por medidas neuropsicológicas, neuroanatômicas, neurofisiológicas ou neuroquímicas, o que proporciona, por definição, a avaliação de um desfecho menos complexo do ponto de vista genético, se comparado ao fenótipo como um todo, estando mais próximo ao produto gênico propriamente dito e fazendo parte de uma das vias fisiopatológicas para o desenvolvimento do transtorno. Indo além do cálculo estatístico de uma metanálise, a observação de GxE em estudos com diferentes populações e delineamentos (apenas casos, casos e objetos-controles, desenhos transversais ou longitudinais, experimentos com exposição controlada, modelos animais) também pode ser considerada um indicador robus to de GxE, na medida em que o achado sobreviveu aos ruídos de diferentes tipos de estudo 16 • Além disso, uma abordagem mais abrangente também poderá identificar padrões de semelhança entre estudos que não replicaram achados iniciais. No caso de associações entre o delineamento dos estudos e os achados encontrados, mais do que um questionamento aos achados positivos, deve-se buscar compreender as razões pelas quais a heterogeneidade ocorre. Nesse sentido, uma nova forma de avaliar a pesquisa em GxE tem sido proposta 16 • Sem desconsiderar a importância de estratégias puramente ateóricas e estatísticas para a redução de falsos -positivos, uma abordagem de validação de construto também parece ser fundamental para o entendimento dos fenômenos subjacentes à GxE. Do ponto de vista estatístico, o que se busca é a replicação exata dos achados iniciais. Elementos como amostragem, medidas fenotípicas e ambientais, o polimorfismo em questão, modelo genético e direção do efeito devem ser iguais, e amostras maiores recebem um peso maior, dado que, mantidas todas as condições, o poder do estudo passa a ser a questão fundamental. Uma visão mais abrangente defende a ideia de que, quando se avalia a GxE em relação a genes candidatos (caso em que a probabilidade a priori é maior do que zero), uma visão meramente estatística não é suficiente. Uma abordagem mais inclusiva é informativa sobretudo em relação a medidas de exposição am biental, para as quais pode ser bastante difícil obter padronização, principalmente em termos qualitativos (p. ex., existem muitas formas de estresse ambiental). Desse modo, uma abordagem que examina a validade do construto - e não apenas a replicação estatística - preza a heterogeneidade de delineamentos, buscando entender (p. ex., por meio de análises de metarregressão) as fontes de dissonância.
Evidências de GxE em transtornos mentais e desenvolvimento O campo dos estudos de GxE em saúde mental tem tido um crescimento importante na última década, quando se observa um aumento da produção sobre o assunto na ordem de dez vezes, em revistas de psiquiatria e neurociências na primeira década do século XXI. A seguir, serão apresentadas algumas das principais evidências recentes sobre GxE na etiologia de transtornos mentais. Não é objetivo deste capítulo uma revisão exaustiva das evidências disponíveis e serão elencados os achados com maior plausibilidade biológica, com replicações ou embasados por hipóteses inovadoras.
Comportamento antissocial Maus-tratos na infância compõem um fator de risco conhecido e bem estudado para comportamento antissocial na vida adulta17 . No entanto, uma proporção significativa de indivíduos que sofreram maus -tratos na infância não apresenta comportamento antissocial ao longo do seu desenvolvimento, o que leva à hipótese de que influências genéticas teriam um efeito moderador sobre esse estressor5 . Além disso, o efeito de estressares ambientais parece ser mais marcado nas crianças e nos adolescentes com risco genético. A partir dessas evidências, foi avaliada a interação de um polimorfismo candidato com variáveis ambientais de risco 18 • Em um estudo inovador, Caspi et al. 18 avaliaram o efeito da interação de um polimorfismo funcional na região promotora do gene para a enzima monoamino-oxidase A (MAO -A) com situações de maus-tratos na infância sobre o desenvolvimento de comportamentos antissociais na vida adulta. Os autores selecionaram o gene MAO -A em razão de evidências que apontam para a sua relação com agressividade, tanto em modelos animais como em humanos. Essa enzima metabaliza neurotransmissores como a noradrenalina, serotonina e dopamina, sendo que sua atividade reduzida disporia o organismo a uma hiper-reatividade neural a ameaças. Tendo em vista essa base conceitual sólida, os autores estudaram uma amostra prospectiva de nascimento de 1.037 crianças avaliadas a cada dois anos entre 3 e 15 anos e, depois, aos 18, 21 e 26 anos de idade. A presença de maus-tratos na primeira década de vida foi definida como rejeição materna, perda repetida de um cuidador, disciplina agressiva, abuso físico e sexual. Em relação a comportamento antissocial na adolescência e início da vida adulta, foram utilizados quatro indicadores: i) diagnóstico de transtorno de conduta a partir dos 11 anos de idade; ii) registros policiais de condenações judiciárias por crimes graves; iii) questionário autorrespondível de inclinação a comportamentos violentos; iv) sintomas de comportamento antissocial aos 26 anos de idade relatados por um informante próximo ao indiví-
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duo. A atividade da MAO -A não apresentou um efeito principal sobre esse índice; já os maus-tratos na infância apresentaram um efeito significativo sobre o desfecho combinado, assim como a interação de maus -tratos na infância com aMAO-A, principalmente quando a enzima sinalizava baixa atividade. Após o estudo de Caspi et al. 18, outras pesquisas fo ram realizadas com o mesmo objetivo 19-24 . Elas foram agregadas em uma metanálise publicada em 200725 que mostrou que, ao combinar os estudos até então disponíveis, o polimorfismo estudado na região promotora do gene MAO-A influencia a vulnerabilidade a situações de maus-tratos na infância para o desenvolvimento de transtorno de conduta ou comportamentos violentos na adolescência ou na vida adulta. Desde a publicação dessa metanálise, ao menos cinco outros estudos já foram publicados26-30. Três deles encontraram alguma evidência de GxE para sintomas de conduta e agressividade, um deles demonstrou GxE para sintomas de hiperatividade (e não para sintomas de conduta) e outro não encontrou ne nhuma evidência de GxE. Outro estudo recente buscou observar se havia GxE entre tabagismo materno na gestação e polimorfismos do gene MAO-A para o desenvolvimento de comportamento antissociaP 1. Esse estudo foi delineado com base no conhecimento de que o uso de tabaco reduz a atividade da enzima MAO -A e de que a enzima MAO -B não está ativa no período pré-natal, de modo que alterações precoces nessas vias podem ser determinantes na gênese do sistema catecolaminérgico. Efeitos opostos foram encontrados conforme o sexo, sendo que meninos com baixa atividade enzimática e exposição prénatal ao tabaco apresentaram um risco aumentado para transtorno de conduta. Uma análise abrangente dos achados da literatura até o momento ainda está por ser realizada, sobretudo para compreender as possíveis razões para a não associação em diversos estudos. Entre os fatores que merecem especial atenção estão a heterogeneidade na definição e na intensidade de maus-tratos nos diferentes estudos, além do reconhecimento de variabilidade em aspectos desenvolvimentais (não apenas a diferença de idade entre as populações estudadas, em que, por exemplo, a sintomatologia antissocial mais grave apareceria apenas em momentos mais tardios, mas também a compreensão do encadeamento entre sintomas de hiperatividade na infância e manifestações de conduta na adolescência).
Depressão Ao longo do ciclo vital, eventos adversos que envolvem ameaça à vida, perdas, humilhações e privações estão implicados no desenvolvimento de depressão 32·33 . Há, no entanto, marcada variabilidade da resposta entre indivíduos a esses eventos. Para certas pessoas, eventos estressores desencadeiam um episódio depressivo, enquanto ou-
tras, submetidas a eventos tão ou mais estressantes, não desenvolvem o transtorno mental. Muitos sujeitos, após terem sofrido eventos estressores, têm o seu aparato emo cional fortalecido, indicando um efeito benéfico de eventos potencialmente depressiogênicos34·35 . Mais ainda, o peso de fatores genéticos e ambientais no desencadeamento da depressão parece sofrer uma influência do momento do desenvolvimento do indivíduo, com eventos estressores precoces apresentando um efeito de sensibilização ao transtorno ao longo do desenvolvimento36 • Esses achados são fortes indicativos da presença de interação de fatores ambientais com fatores genéticos no processo etiológico da depressão. Os genes do sistema serotoninérgico são candidatos lógicos para o estudo dos componentes genéticos da depressão, considerando que medicações eficazes para esse transtorno agem sobre esse sistema37 . O gene transportador da serotonina (5-HTT) tem recebido particular atenção, tendo sido demonstrado o seu papel como gene candidato para a depressão por estudos de associação37. Considerando os fortes indicativos de existência de GxE na etiologia desse transtorno, Caspi et al.38 estudaram o papel moderador de um polimorfismo funcional na região promotora do 5-HTT sobre eventos de vida estressantes no desenvolvimento de de pressão. Indivíduos com alelo curto (s) no polimorfismo 5-HTTLPR apresentaram um impacto significativamente maior dos eventos estressores em relação aos indivíduos homozigotos para o alelo longo (1), com um efeito de dose-resposta. Mais recentemente, uma metanálise buscou avaliar a interação de polimorfismos do 5-HTT com a ocorrência de eventos estressores para o desenvolvimento de depressão39. Utilizando dados publicados e reanálise de dados originais, 26 estudos foram encontrados. Entretanto, a aplicação de critérios estritos para inclusão na metanálise fez com que apenas catorze estudos fizessem parte da análise final (para dez estudos, dados individuais estavam disponíveis), totalizando 14.250 indivíduos. Deles, 1. 769 foram classificados como tendo depressão. As análises combinadas indicaram que a medida ambiental (número de eventos estressores) esteve significativamente associada com o desfecho depressão, porém nenhuma associação foi encontrada, seja com o polimorfismo do 5-HTT, seja na análise de GxE. Tais achados, contudo, foram questionados por uma revisão mais abrangente da literatura 16, que buscou resultados de múltiplas linhas de evidência para compreender a hipótese do efeito de variantes do 5-HTT na sensibilidade ao estresse ambiental: i) estudos observacionais sobre polimorfismos do 5-HTTLPR, sensibilidade ao estresse e depressão; ii) estudos de neurociência experimental sobre fenótipos biológicos relevantes à resposta humana ao estresse (p. ex., medidas de respos ta no eixo hipotálamo-hipófise-adrenal); iii) estudos de variações do 5-HTT e sensibilidade ao estresse em primatas não humanos; e iv) estudos de sensibilidade ao estres-
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se e mutações geneticamente programadas no gene 5-HTT em roedores. Sugere-se que a existência de achados positivos em estudos com diferentes medidas, delineamentos e populações seja uma evidência substancial de validade do construto mais abrangente de GxE entre variações do 5-HTT e estresse ambiental. Os genes envolvidos no eixo hipotálamo -hipófiseadrenal (HPA), além de genes do sistema serotoninérgico, também são fortes candidatos a fatores de risco com efeito principal sobre o desenvolvimento de depressão. Além disso, como o eixo HPA está relacionado à reatividade do organismo diante de estressores ambientais, é possível que o efeito dos estressores sobre o desenvolvimento de depressão seja moderado por genes do HPA. Amparado por essa robusta base conceitual, Bradley et al. 40 avaliaram em um estudo transversal se o efeito do relato retrospectivo de abuso na infância sobre a presença de sintomas depressivos era moderado por um haplótipo no gene para o receptor 1 de hormônio de liberação da corticotrofina (CRHRl). Os resultados foram positivos em ambas as amostras. Entretanto, a natureza retrospectiva do estudo e a origem restrita das amostras limitam a generalização dos resultados. Assim, em duas coortes longitudinais, representativas da população da Inglaterra (E-Risk Study) e da Nova Zelândia (Dunedin Study), Polanczyk et. alY replicaram esses achados. Curiosamente, foram detectados resultados na mesma direção dos obtidos no estudo de Bradley et al. 40 apenas quando a definição de abuso na infância foi a mesma, indicando a importância da consistência metodológica entre os estudos para garantir a ausência de replicação 41.
Psicose Evidências de diferentes fontes sugerem que variações na enzima catecol-0 -metil-transferase (COMT) desempenhem um papel relevante na etiopatogenia da psicosé2 • Achados de neurociência básica demonstraram que essa enzima é responsável pela degradação de neurotransmissores como dopamina e noradrenalina, desempenhando um papel fundamental sobretudo em regiões como o córtex pré-frontal. Estudos que avaliaram asso ciação e ligação com polimorfismos genéticos e atividade enzimática, além do fato de o gene COMT estar mapeado na região 22q 11 (para a qual uma deleção origina uma síndrome associada a índices elevados de psicose), reforçam tal hipótese. Entretanto, assim como nas situações anteriormente mencionadas, mesmo os achados mais promissores do ponto de vista genético explicam apenas uma reduzida parcela dos casos, de modo que a investigação do papel de fatores ambientais e de sua interação com o substrato genético também se mostra como uma ' . . estrateg1a promissora. O uso de cannabis em idades mais precoces é reconhecido como um fator de risco ambiental para o desen-
volvimento de uma gama de apresentações clínicas que variam desde os sintomas psicóticos até quadros plenos de esquizofrenia; a maioria dos usuários de cannabis, entretanto, não desenvolve tais manifestações. Em um estudo pioneiro que buscou integrar informações genéticas e ambientais43, não foi observada uma associação entre polimorfismos funcionais da COMT e sintomas psicóticos ou diagnóstico de transtorno esquizofreniforme. Contudo, quando se investigou a GxE relacionando as alterações no gene e o uso de cannabis na adolescência, a associação se mostrou significativa. De modo curioso, a interação com o uso de cannabis apenas a partir da idade adulta não foi significativa, o que ressalta os aspectos desenvolvimentais (como maturação e momento de exposição) envolvidos em mecanismos de GxE.
Desenvolvimento cognitivo Estudos preliminares sugeriram uma associação positiva entre aleitamento materno e inteligência, baseando -se sobretudo no dado de que componentes do leite materno como ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa são necessários para o desenvolvimento inicial do cérebro infantil44. Do ponto de vista epidemiológico, contudo, tal relação tem sido questionada na medida em que estudos observacionais que demonstraram escores de QI mais altos em crianças que receberam aleitamento materno podem ser resultado da ação de confundidores como nível socioeconômico e educação parental, ambos associados com QI e com a decisão de amamentar ou não. Além disso, dados de diversos estudos indicam que, quando se controla a análise para QI materno, a associação entre aleitamento e QI da criança desaparece. Para tentar desvendar os mecanismos subjacentes à possível associação entre aleitamento materno e inteligência, um estudo recente investigou a GxE, considerando comovariável genética um polimorfismo do gene FADS2, um gene envolvido no controle de vias metabólicas de ácidos graxos. Dados obtidos a partir da observação longitudinal de 1.037 crianças evidenciaram que a associação entre aleitamento e QI é moderada por uma variante do gene FADS2, mesmo levando em consideração explicações alternativas como crescimento intrauterino, nível socioeconômico, capacidade cognitiva materna, bem como genótipo materno e seus efeitos sobre leite e aleitamento44. Dessa forma, a presença de um ou mais alelos C esteve associada a uma vantagem de aproximadamente 7 pontos de QI na comparação entre crianças amamentadas e não amamentadas - efeito não identificado em indivíduos homozigóticos GG. Tais achados, que sugerem uma ação genética por meio de exposição ambiental, foram confirmados em uma segunda amos tra com 2.140 indivíduos pelo mesmo grupo de pesquisa, porém ainda devem ser investigados em estudos adi. . cwna1s.
12 INTERAÇÃO GENE-AMBIENTE: MECANISMOS CAUSAIS E FATORES PROTETORES
Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade Apesar de o transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) apresentar uma alta herdabilidade, variações na apresentação de sintomas associados a ele também são atribuídas à exposição a fatores ambientais. Entre os agentes candidatos estão os corantes e aditivos alimentares, que poderiam causar danos ao sistema nervoso central por mecanismos ainda incertos, estando a liberação de histamina potencialmente envolvida nesses processos45. Utilizando dados de um ensaio clínico randomizado controlado por placebo, que demonstrou o efeito de corantes ou aditivos alimentares sobre o comportamento de crianças45, um estudo recente de GxE avaliou o papel desempenhado por polimorfismos de um gene relacionado ao sistema histaminérgico. A análise de dois grupos etários, incluindo 153 crianças de 3 anos e 144 crianças entre 8 e 9 anos, revelou que um polimorfismo funcional do gene para a histamina-N -metil-transferase (HNMT) modera a relação entre alimentos e sintomas de TDAH46. Além de apresentar um desenho bastante interessante (um ensaio clínico randomizado, no qual a variável de exposição ambiental pode ser controlada, o que não é possível em estudos observacionais), esse trabalho também demonstrou a importância do reconhecimento de novas vias não tradicionalmente investigadas na fisiopatologia do TDAH.
Implicações, desafios e perspectivas O estudo de GxE apresenta importantes implicações para a comunidade científica e leiga. Para os cientistas, o estudo de GxE permite o entendimento mais detalhado acerca de processos etiológicos dos transtornos mentais, possibilitando insights sobre mecanismos. Além disso, a identificação de indivíduos de risco perante estressares ambientais pode aumentar a eficiência de estratégias de promoção da saúde e prevenção de doenças. Ao mesmo tempo, a elucidação de mecanismos envolvidos na resiliência pode orientar estudos etiológicos e o desenvolvimento de estratégias de prevenção. Para a comunidade leiga, o estudo de GxE contribui para o entendimento de que os genes não determinam a saúde ou a doença, mas que as pessoas, ao adotar determinados comportamentos, têm a oportunidade de modular as possibilidades de desen volver certas condições de saúde. O estudo de GxE também apresenta significativos desafios. Para a sua detecção, é fundamental a formulação de hipóteses a priori baseadas em fenômenos biologicamente plausíveis. Assim, a escolha da tríade gene, fator ambiental e fenótipo comportamental é um passo central nessas pesquisas e deve ser amparada por evidências robustas, geralmente proveninentes de diferentes tipos de investigação, como estudos com modelos animais e de neuroimagem4. Além disso, as estratégias metodológicas adotadas influenciam de forma decisiva a detecção ou não
do efeito de interação. Nesse sentido, diversas evidências apontam para a definição do fator de risco ambiental e para a precisão com que ele é mensurado como passos centrais. A detecção do efeito de interação também depende da frequência combinada da exposição ambiental e das variantes alélicas envolvidas, sendo portanto necessários tamanhos amostrais maiores que aqueles usualmente suficientes para detectar efeitos principais. O estudo de GxE apresenta perspectivas promissoras, em grande parte relacionadas a avanços metodológicos e tecnológicos. Entre os avanços metodológicos, destaca-se o estudo de grandes amostras longitudinais, com identificação de fatores de risco de diferentes naturezas47. Entre os avanços tecnológicos, destaca-se a incorporação de tecnologias de associação de genoma completo para o estudo de interação com fatores ambientais (gene-environment-wide association studies). Essa tecnologia, apesar de não ser orientada por hipóteses, tem potencial significativo para trazer novos conhecimentos para o campo48.
Conclusão O estudo de GxE possibilita identificar mecanismos pelos quais fatores genéticos e ambientais atuam em conjunto, aumentando a probabilidade de resiliência ou de doença. O campo evoluiu de forma significativa ao longo da última década e evidências consistentes foram acumuladas para vários transtornos mentais. O avanço futuro dessa linha de estudo dependerá da sua agregação a novos enfoques e da incorporação de novas tecnologias. Modelo aditivo: na ausência de G, a diferença de risco para E é 4 (5 -1); na presença de G, a diferença de risco para E passa a ser 6 (8 -2), de modo que o efeito de E é maior quando G está presente. Modelo multiplicativo: na ausência de G, a razão de risco para E é 5 (511); na presença de G, a razão de risco para E passa a ser 4 (8/2), de modo que o efeito de E é menor quando G está presente. Questões 1. Assinale a afirmativa correta: a) A interação gene-ambiente refere-se a um fenômeno estatístico, não observável do ponto de vista biológico. b) A presença de interação estatística afasta a possibilidade da existência de interação biológica. c) A interação gene-ambiente refere-se ao fenômeno de mediação do efeito do estressar ambiental pelo perfil genético do indivíduo. d) A correlação gene-ambiente refere-se ao fenômeno de moderação do efeito do estressar ambiental pelo perfil genético do indivíduo. e) Pode ocorrer interação gene-ambiente se o gene de interesse não se associa de forma independente ao transtorno de interesse.
133
134
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
2. Todas as situações abaixo são indicativas da presença de interação gene-ambiente, exceto: a) Variabilidade na resposta dos indivíduos diante de estressares ambientais. b) Herdabilidade do transtorno de aproximadamente 50%. c) Estressares ambientais associados ao transtorno e a vias neurobiológicas específicas. d) Fatores de risco ambiental associados a diferentes transtornos. e) Fatores de risco genético associados a diferentes transtornos. 3. Sobre as estratégias metodológicas para o estudo de GxE. é incorreto afirmar que: a) Endofenótipos em estudos de GxE seriam desvantajosos em razão da dificuldade de mensurá-los. b) Estudos de gêmeos podem fornecer indicativos de GxE. c) A correlação gene-ambiente deve ser excluída. d) A mensuração de estressares ambientais deve ser realizada da forma mais acurada possível. e) Fatores de risco genético com implicações funcionais estão entre os candidatos mais interessantes. 4. Entre os genes implicados em GxE para depressão, transtorno de déficit de atenção/hiperatividade, psicose, desenvolvimento cognitivo. transtorno de conduta. encontram-se. respectivamente: a) 5-HTI. ADRA2A, COMT, MAO-A, FADS2.
b) 5-HTI. DATl, MAO-A, COMT, FADS2. c) 5-HTI. HNMT, COMT, BDNF, MAOA. d) CRHRl, HNMT, COMT, FADS2, MAOA. e) CRHRl, DATl, MAOA, BDNF, COMT. 5. São desdobramentos de estudo de GxE. exceto: a) Entendimento dos mecanismos pelo quais estressares ambientais impactam o SNC. b) Perspectiva de que os transtornos mentais são condições complexas. c) Entendimento de que o ambiente apresenta impacto de menor magnitude do que os genes para o desenvolvimento de transtornos mentais. d) Esclarecimento sobre as causas da variabilidade dos efeitos de eventos estressares. e) Entendimento sobre mecanismos implicados na resiliência.
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12 INTERAÇÃO GENE-AMBIENTE: MECANISMOS CAUSAIS E FATORES PROTETORES
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Fatores de Risco e Proteção para Morbidade Psiquiátrica Rica rdo Barcelos-Fe rre ira Cáss io Machado de Campos Bottino Débora Pastare Bassit Tânia Corrêa de Toledo Ferraz A lves
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 136 Morbidade psiquiátrica e fatores determinantes, 137
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Fatores de risco e proteção, 137 Fatores de risco para MP, 138 Fatores de risco não modificáveis, 138 Fatores de risco modificáveis, 140 Fatores de proteção para MP, 142 Morbidade psiquiátrica e comorbidades clínicas, 144 Depressão e cardiopatias, 144 Depressão e diabetes melito, 144 Depressão e distúrbios da tireoide, 145 Depressão e obesidade, 145 Depressão e hiper-reatividade do eixo hipotálamo-hipófiseadrenal, 145 Depressão e câncer, 145
1. Definir morbidade psiquiátrica (MP).
2. Identificar os fatores de risco e proteção para MP. 3. Conhecer as principais MP secundárias a doenças clínicas. 4. Identificar os principais transtornos psiquiátricos primários e suas
características epidemiológicas. 5. Identificar as principais doenças clínicas que aumentam o risco de
MP. 6. Conhecer alguns focos de intervenção preventiva para MP. Z Conhecer algumas medidas para promoção de saúde mental. 8. Identificar as principais MP relacionadas ao risco de suicídio. 9. Ter acesso a referências bibliográficas atualizadas dos estudos acerca de MP.
Depressão e dor crônica, 145 Depressão e doenças neurológicas, 146 Comprometimento cognitivo, demências e risco cardiovascular, 146 Transtornos psiquiátricos maiores, 147 Transtornos do humor, 147 Transtornos ansiosos, 148 Esquizofrenia e transtornos psicóticos, 148 Transtornos alimentares, 148 Transtornos relacionados ao uso/abuso de substâncias, 149 Suicídio, 149 Considerações finais, 150 Questões, 150 Referências bibliográficas, 150
Introdução Estudos epidemiológicos sobre transtornos mentais têm dentre os principais objetivos a identificação de fatores que possam ter influência causal ou determinante no surgimento e desenvolvimento de doenças psiquiátricas. É a partir desses estudos que se conhece a frequência das do-
enças e as características relacionadas aos seus atenuantes e agravantes. Um estudo atual, que reuniu pesquisadores de vários países, conduzido pelo International Consortium in Psychiatric Epidemiology (ICPE), encontrou altas prevalências de transtornos mentais, em algum momento da vida, em indivíduos residentes na comunidade. Os índices variaram de 35 a 50%, sendo que depressão, ansiedade e uso nocivo/dependência de substâncias, foram as doenças mais frequentes. Além disso, o estudo evidenciou que a maior parte dos transtornos tem início na segunda e terceira décadas da vida, com medianas de 15 anos para transtornos de ansiedade, 26 anos para transtornos de humor, e 21 anos para uso nocivo/dependência de substâncias'. Informações como essa são de fundamental importância para a avaliação de fatores que possam influenciar a ocorrência dos transtornos mentais na população em geral. Tal constatação permite identificar acontecimentos mais prováveis e frequentes nesse período da vida, possi-
13 FATORES DE RISCO E PROTEÇÃO PARA MORBIDADE PSIQUIÁTRICA
bilitando o desenvolvimento de estratégias de intervenção e prevenção dos agravos à saúde mental. Esses acontecimentos são contextualizados por fatores relacionados ao risco e proteção para doenças mentais. O objetivo do presente capítulo é abordar esses fatores e sua influência no adoecimento populacional em relação aos transtornos psiquiátricos e descrever algumas ações que podem ser desenvolvidas para promoção de saúde e prevenção desses transtornos.
características imutáveis e próprias do indivíduo, como idade, gênero, herança genética e doenças preexistentes, sendo chamados fatores não modificáveis. Por outro lado, os fatores modificáveis são aqueles passíveis de intervenções que possam alterar suas características, estando geralmente inseridos no ambiente ou nos hábitos de vida do indivíduo2 • Fatores de risco e de proteção são circunstâncias que podem modificar (melhorar ou piorar) a reação adaptativa de uma pessoa a um determinado risco ambiental ou social, tendo como desfecho possível uma morbidade psiquiátrica (MP)3. MP é definida como uma síndrome ou padrão comportamental ou psicológico clinicamente importante, que ocorre em um indivíduo e que está associada com sofrimento emocional ou incapacitação4 . Portanto, seu conceito abrange os transtornos psiquiátricos, maiores ou menores, que preencham os critérios diagnósticos do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais/DSM- IV4 ou da Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento/CID-10 5, incluindo quadros secundários a doenças clínicas. A seguir, serão abordados detalhadamente os principais fatores associados com MP na população em geral. Serão considerados os fatores com maiores evidências na literatura científica atual, sendo descritos inicialmente as variáveis sociodemográfico-ambientais e clínicas e, em seguida, os principais transtornos psiquiátricos e suas características epidemiológicas. Os fatores de risco e proteção relacionados à herança genética e às características da personalidade serão discutidos em outro capítulo.
Morbidade psiquiátrica e fatores determinantes Os fatores preditivos de morbidades em geral podem estar relacionados ao paciente ou ao ambiente em que vive. No primeiro caso, os fatores são consequência de
Ambiente social
Resposta individual o Comportamento o
Biolo~ia
Dotação genética
Ambiente físico
l•
i l -------,
1
Saúde & funcionamento
Cuidados com a saúde
Doença
~----__,, ·~------~ ' - - - - - - - - - Bem-estar
Fatores de risco e proteção Figura 1
Há fortes evidências acerca dos fatores de risco e proteção e de suas correlações com o desenvolvimento de
Fatores determinantes de vulnerabilidade e risco para morbida-
de psiquiátrica.
Hábitos de vida (p. ex., fumar) Fatores de risco vasculares Doenças vasculares Depressão Traumatismo craniano TRH (?)
Fatores de risco
Fatores de risco genético
Fatores relacionados a CSE
l
1
1 o
20
f Nível educacional elevado
Fatores de proteção
Figura 2
Hábitos de vida (p. ex., fu mar) Hipertensão e outros fatores de ri sco vasculares Exposição ocupacional
1 40
f
Medicamentos anti-hipertensivos
1 60
f Rede social ampla Atividades cognitivas Atividades físicas
Dieta: peixe e vegetais Consumo moderado de álcool Medicamentos anti-hipertensivos, estatinas, NSAID, TRH (?)
Fatores de risco e proteção para demências em geral. AINH: anti- inflamatório não hormonal; CSE: classe socioeconômica; TRH: terapia de repo-
sição honnonal.
137
138
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
MP6 . Ambos os fatores podem ser de natureza individual, familiar, social, econômica e ambiental. Na maioria dos casos, há o efeito cumulativo de múltiplos fatores de risco, da ausência de fatores de proteção e da interação de situações de risco e de proteção que predispõem o indivíduo a uma perturbação emocional, e em seguida, a uma doença mental propriamente dita. Há também inter-relações entre saúde mental e física, como ocorre na doença cardiovascular, que pode le var à depressão e vice-versa. Tanto a saúde mental quanto a física pode estar associada a fatores de risco comuns, levando a prejuízo de ambas. Maior compreensão é necessária acerca das relações entre os diferentes transtornos mentais e a saúde física, e sobre o desenvolvimento dos fatores de risco, específicos e gerais, que levam ao adoecimento psiquiátrico.
Fatores de risco para MP A epidemiologia define como fatores de risco variáveis sociais ou biológicas que, quando presentes, aumentam a probabilidade de ocorrência de uma dada doença, seja por meio de sua influência na vulnerabilidade individual, ou do aumento na capacidade de determinadas experiências causarem adoecimento mentaF. Em caráter ilustrativo, a Tabela I cita alguns exemplos de fatores biológicos e psicológicos que estão frequentemente associados à MP.
Fatores de risco não modificáveis Gênero
Há pouca dúvida de que as mulheres experimentam uma elevada MP em relação aos homens. Gove e Tudor8 revisaram dados de inquéritos populacionais, estudos de admissão e de ambulatórios desde a Segunda Guerra Mun-
Tabela I
Fatores de risco para MP em geral
Biológicos
Psicológicos
Insônia crônica
Insucesso acadêmico e desmoralização escolar
Dor crônica
Déficits de atenção
Gravidez precoce
Desvios da comunicação
Fatores de risco genéticos
Imaturidade emocional e descontrole
Baixo peso ao nascer
Uso excessivo de substâncias
Doença médica
Solidão
Desequilíbrio neuroquímico
Competência para o trabalho e maus hábitos
Complicações perinatais
Deficiência de leitura Deficiências sensoriais ou dificuldade orgânica Incompetência social
dial e concluíram que as mulheres apresentavam prevalência de doença mental superior à dos homens. Tal conclusão foi criticada por alguns autores, entre outras razões por terem sido excluídos os diagnósticos de distúrbio da personalidade e do alcoolismo. Em relação a esse diferencial feminino/masculino para MP, existe um forte consenso na literatura para ansiedade, depressão e somatização 10 • Os dados mais consistentes são referentes aos transtornos depressivos. Levantamentos epidemiológicos apontam duas mulheres deprimidas para cada homem, sendo essa relação ainda maior em certos subtipos depressivos. A desproporção mulher/homem é mais evidente no período reprodutivo, podendo as prevalências ser semelhantes antes da puberdade e também após alguns anos do climatério 11 • O estudo "São Paulo Megacity: pesquisa sobre saúde, bem -estar e estresse", desenvolvido por pesquisadores do Ipq-HCFMUSP, que avaliou indivíduos adultos residentes na região metropolitana de São Paulo (39 municípios), verificou que as mulheres apresentaram maiores prevalências de transtornos afetivos, transtornos ansio sos (exceto TOC), transtornos dissociativos, somatoformes e transtornos alimentares. Por outro lado, os homens apresentaram maiores taxas de uso nocivo ou dependência de drogas, incluindo álcool e tabaco 12 • Alguns autores sugeriram possíveis explicações para a maior frequência de depressão em mulheres, como fatores socioculturais relacionados às experiências psicológicas negativas e uma maior suscetibilidade a eventos estressantes13. Há aproximadamente três décadas, Weissman e Klerman 10 sugeriram a influência de fatores metodológicos (maior propensão em relatar sintomas), psicopatológicos (maior vulnerabilidade para eventos estressantes) e sociais (p. ex., discriminação de mulheres no mercado de trabalho). Para Almeida (1999) a taxa de viuvez, o isolamento social e a privação de estrogênio podem contribuir para uma maior prevalência de depressão em mulheres idosas 13 . Um estudo brasileiro mostrou que as mulheres possuem uma maior preocupação com a saúde e tendem a procurar mais os serviços de saúde do que os homens 14 • Além disso, vários programas de saúde pública são direcionados às mulheres (pré-natal e prevenção de câncer de mama, cólon e útero), tornando-as mais sujeitas ao uso de fármacos e seus respectivos efeitos adversos. Entre estas medicações, pode-se citar aquelas que são usadas exclusivamente por mulheres, como contraceptivos orais, terapia de reposição hormonal e dispositivos químicos intrauterinos. Outros autores sugeriram que a maior prevalência de depressão em mulheres poderia ser provocada pela maior sobrecarga de responsabilidades que elas assumem na sociedade em razão de suas funções de esposa, mãe, professora e dona de casa. Deve-se também considerar a influência do ciclo reprodutivo na saúde mental das mulheres. Estudos epide-
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miológicos e clínicos suportam a noção de que algumas mulheres podem apresentar risco aumentado para MP, durante os períodos da vida associados aos eventos do cielo reprodutivo, como o período da menarca, gestação, pós-parto e da transição para o climatério. Esses períodos são marcados não apenas por variações hormonais extremas, mas também pela ocorrência de fatores estressantes e mudanças significativas na vida pessoal, familiar e profissional, levando a um aumento na vulnerabilidade das mulheres 15 . Acredita-se na possibilidade de uma influência significativa dos hormônios femininos ( estrógeno e progesterona) na gênese dessa vulnerabilidade. Isso porque o papel central do estrógeno nos ritmos biológicos femininos (menstruação e menopausa) pode desestabilizar ou sensibilizar mecanismos neurotransmissores, neuroendocrinológicos e o "relógio biológico", contribuindo para o desenvolvimento de transtornos cíclicos do humor 11. Em contraposição a essas evidências, alguns estudos relataram que nas mulheres que sofrem com transtornos psíquicos relacionados ao ciclo reprodutivo (como o transtorno disfórico pré-menstrual ou a depressão puerperal) a flutuação hormonal é idêntica à de controles saudáveis 16 . A reprodução desses achados poderá sugerir a existência de uma provável vulnerabilidade cerebral às flutuações hormonais fisiológicas, o que predisporia algumas mulheres ao desenvolvimento de transtornos mentais, en quanto outras menos vulneráveis apresentariam um comportamento adaptativo. Ainda no que diz respeito aos períodos da vida da mulher, as fases pré-natal e pós-natal também constituem períodos de significativa vulnerabilidade para doenças mentais. A depressão é o transtorno mental de maior prevalência durante a gravidez e o período puerperaP 7 e está associada a fatores de risco, como antecedentes psiquiátricos, dificuldades financeiras, baixa escolaridade, gestação na adolescência, falta de suporte social, eventos estressares e história de violência doméstica. Além disso, a depressão gestacional é o principal fator de risco para depressão pós-natal, sendo esta, muitas vezes, uma continuação da depressão iniciada na gestação 18 • No que se refere à esquizofrenia e sua relação com o gênero, evidências sugerem que haja diferenças relacionadas à idade de início da doença, funcionamento pré-mórbido, curso, prognóstico e resposta ao tratamento, tendendo ao favorecimento das mulheres 19 . Uma das explicações para essas possíveis diferenças seria um efeito protetor relacionado ao estrogênio. Alguns estudos mostraram que os níveis desse hormônio podem influenciar a sintomatologia e a resposta ao tratamento da esquizofrenia. Adicionalmente, encontrou-se que os estrogênicos modulam os receptores dopaminérgicos D2, podendo ter um suposto efeito "antipsicótico", aumentando a eficácia desses medicamentos nas mulheres20 • A despeito dessa possibilidade, um estudo duplo-cego controlado, conduzido pelo IPq-HCFMUSP,
não encontrou diferenças significativas quanto ao efeito dos estrogênios na eficácia terapêutica dos antipsicóticos, ao comparar o grupo estrogênio com o grupo placebo20 • Em relação à doença de Alzheimer (DA), tanto a prevalência quanto a incidência sofrem influência do gênero, havendo uma proporção de duas mulheres para cada homem2 1. Alguns estudos evidenciam que a presença de comprometimento cognitivo e funcional, mesmo sem preencher critérios diagnósticos para DA, é também mais prevalente entre as mulheres 22 • Idade
A associação entre faixa etária e depressão tem recebido atenção considerável, e apesar de haver dados conflitantes em alguns estudos, os idosos tendem a apresentar menor prevalência de depressão maior e uma maior prevalência de sintomas depressivos, em relação aos adultos jovens23 . Em relação aos transtornos mentais em geral, a faixa etária entre 15 e 49 anos apresenta o maior risco para desenvolvimento de MP 2\ e com exceção dos transtornos cognitivos, os indivíduos com mais de 65 anos apresentam as menores prevalências. Além disso, indivíduos de ambos os sexos e na faixa etária de 25 a 54 anos apresentam maiores frequências de MP e maiores chances de transtornos associados, como abuso ou dependência de substâncias 12 • Por outro lado, Gérshon e Hamovit25 propuseram a influência do período de nascimento, como um viés dos estudos, considerando que as pessoas que nasceram após a Segunda Guerra Mundial teriam maior risco de desenvolver depressão. Além disso, a mortalidade e o risco de demência aumentam com a idade, o que pode influenciar a prevalência de depressão em idosos, em função da relação entre depressão e risco de demência e maior probabilidade de hospitalização e de institucionalização, o que afastaria esses pacientes da comunidade 13 . Outra doença mental que sofre influência da idade na condição de fator de risco é a doença de Alzheimer (DA). Segundo estudos prévios, a prevalência de DA duplica a cada cinco anos a partir dos 65 anos, aumentando de 1,5% nessa idade para 40% aos 85 anos. A incidência global atinge cerca de 1% e também aumenta com a idade26 . Esses números começam a diminuir a partir dos 90 anos. Ainda no que diz respeito à faixa etária, o suicídio está entre os desfechos possivelmente influenciados. Apesar de estudos recentes alertarem para um constante aumento das taxas de suicídio entre os jovens de 15 a 25 anos27 , a prevalência do suicídio tende a aumentar com a idade. As demais características do suicídio serão abordadas em um tópico separado, no final do capítulo. Estado civil
Apesar de as características de um relacionamento estável poderem ser modificadas para uma convivência
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saudável, o estado civil, no meio científico, é considerado um fator não modificável, uma vez que, por bom senso, a mudança de um estado a outro não é recomendada como medida preventiva contra doenças mentais. Sendo assim, é importante considerar a presença do companheiro como um possível fator de risco ou proteção para MP, pois a dinâmica familiar é algo imprescindível para a compreensão do ser humano enquanto elemento social, e é no meio familiar que ele empreende sua constituição individual, o desenvolvimento psicológico, a organização da identidade e a formação e desenvolvimento das características básicas da personalidade. Gove e Tudor8 revisaram vários estudos, a maioria nos EUA, e observaram que as mulheres casadas apresentavam prevalência de distúrbios mentais não psicóticos superior à dos homens casados. O diferencial de prevalência, no entanto, era menor ou inexistente quando ambos não eram casados. Outros estudos, conduzidos posteriormente, também obtiveram resultados similares28 . Um estudo brasileiro, conduzido por Coutinho et aF, descobriu que o maior risco de MP encontrado entre os casados se mostrou restrito aos indivíduos de baixa escolaridade, independentemente do gênero, da idade, de ocuparem ou não o lugar de chefe da família e da presença de filhos pequenos. Tal achado sugere que certos fatores so ciodemográficos, como escolaridade e condição econômica, tenham influência significativa na relação entre estado civil e MP, podendo essa influência ser negativa quando se trata de fatores socioeconômicos desfavoráveis. O estudo Megacity relatou que a separação e o divórcio são fatores de risco importante para MP em geraF2. No entanto, não há regras definidas para a relação entre MP e estado civil, sendo ainda necessários novos estudos que possam esclarecer os dados encontrados e sugerir maiores evidências.
Fatores de risco modificáveis Extrato socioeconômico-ambiental
Os distúrbios mentais têm sido amplamente associados a variáveis como escolaridade, ocupação e renda, sejam elas tomadas isoladamente ou combinadas em algum índice de classe social. Dohrenwend & Dohrenwend9 revisaram todos os estudos comunitários, até 197 4, e observaram que, dos 33 que incluíram classe social como variável, 28 apresentaram prevalências de doença mental maiores nos extratos inferiores. Estudos posteriores também observaram esse padrão7. As principais causas socioeconômicas e ambientais determinantes da saúde mental estão relacionadas a situações mais complexas, como pobreza, guerras e injustiça social. Isso porque populações mais pobres tendem a viver sem lideranças comunitárias que lhes garantam os direitos à segurança e participação social. São frequentemente desprovidas de alimentação saudável, moradia, educação
e saúde adequadas. Consequentemente, essas populações apresentam risco aumentado para MP e doenças clínicas, além de um menor bem-estar subjetivo30 . Outros fatores, como a urbanização, as migrações, a discriminação racial e a instabilidade econômica, estão ligados a níveis mais elevados de sintomas psiquiátricos menores e MP. Estudos referem também que guerras e situações relacionadas estão comumente associadas a do enças como depressão, ansiedade, transtorno do estresse pós-traumático e desordens relacionadas ao álcool edrogas. Além disso, podem provocar aumento da vulnerabilidade para MP em descendentes de pais vitimados31. Ainda que exista uma forte correlação entre os indicadores de nível social, alguns poucos estudos têm sugerido que a variável escolaridade apresenta algumas vantagens sobre a renda na investigação de fatores de risco para MP. Embora os indivíduos possam apresentar uma grande mobilidade em sua condição profissional ao longo da vida, o nível educacional é determinado fundamentalmente na adolescência, havendo posteriormente uma maior tendência à estabilidade. Cochrane & Stopes-Roe 29 encontraram associações mais fortes com a presença de transtornos mentais para a variável escolaridade que para a variável ocupação. Uma possível explicação para essa constatação seria a relação entre maior escolaridade e estabilidade ocupacional encontrada nesses estudos. Desemprego
A relação entre desemprego e saúde mental começou a ser investigada por ocasião da depressão econômica dos anos de 1930. Os estudos apresentaram como conclusão geral que indivíduos desempregados sofriam de instabilidade emocional, depressão maior, depressão reativa, distorção da percepção temporal, perda do moral, da autoconfiança, do prestígio e da autoestima7. Em uma revisão dos primeiros estudos sobre desemprego e saúde mental, KasP 3 observou ser a redução da autoestima a ca, . . . ractensttca mais consistente. Estudos com delineamento ecológico e seccional encontraram uma correlação entre as taxas de internação em hospitais psiquiátricos e os índices de desemprego 34 . No Brasil, inquéritos conduzidos por Almeida Filho et aP 5, dentre outros autores, também encontraram uma relação inversa entre transtornos mentais e a condição de estar empregado. Estudos de coorte também têm observado uma probabilidade maior de transtornos mentais entre indivíduos desempregados36 • O papel do gênero e do nível socioeconômico, na relação entre desemprego e transtornos mentais, também tem sido objeto de estudo. Enquanto alguns autores observaram um efeito do desemprego independentemente do gênero37, outros encontraram associação entre desemprego e transtornos mentais apenas no gênero masculino29. Bhugra32 refere que os trabalhadores administrativos (white collars) apresentaram menos sintomatologia
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psíquica que os trabalhadores braçais (blue collars), quando desempregados. Morrel et al.3 6 , em sua coorte australiana, encontraram um risco maior de MP entre homens e mulheres desempregados cujos pais haviam sido classificados como trabalhadores braçais. Além disso, a quantidade de trabalhos sobre saúde mental de profissionais da saúde, em especial médicos, vem aumentando na literatura científica. Em revisão sobre a saúde mental de estudantes de medicina e de médicos, Martins38 relata que o estresse gerado na formação e prática médicas seria um possível fator etiológico na gênese dos problemas de saúde mental, o que incluiria abuso e dependência de substâncias psicoativas, síndrome da sobrecarga de trabalho e estresse profissional (burn out), entre outras. Destaca ainda que esses problemas não são exclusivos de médicos, sendo encontrados também entre profissionais que executam atividades envolvendo alto grau de contato emocional com outras pessoas39 . Maus-tratos na infância e adolescência
Os maus-tratos contra crianças e adolescentes são definidos por violência física, crueldade mental, abuso sexual, ou negligência grave, levando a consequências para o desenvolvimento físico e psicológico, e podendo notavelmente resultar em lesão física grave e morte. Além disso, suas consequências psicológicas podem afetar de forma aguda a saúde mental da criança até sua entrada na idade adulta40 • Quatro tipos de maus -tratos são comumente reconhecidos: abuso físico, abuso sexual, abuso emocional (ou psicológico) e negligência. Estão associados a um espectro diverso de consequências psiquiátricas, aumentando o risco de problemas comportamentais, incluindo comportamento internalizado (ansiedade, depressão) e externalizado (agressão, actingout). Há evidências claras de que crianças que sofrem maus-tratos possuem um risco aumentado de depressão na adolescência e na idade adulta4 1. Em razão do fato de que a depressão é uma MP comum, cerca de um quarto a um terço das crianças maltratadas preencherão os critérios diagnósticos para depressão maior quando chegarem aos 20 anos de idade4 1 • Para muitas dessas crianças, a depressão começa na infância, sendo importante manter o foco na intervenção precoce antes do surgimento dos sintomas. Além disso, alguns pesquisadores encontraram uma resposta relacionada à intensidade do agravo, sendo a depressão mais frequentemente relacionada ao abuso físico brutal ou grave do que às formas de menor gravidade42 . Em relação à mortalidade, evidências sugerem que o abuso físico ou sexual na infância/adolescência duplica o risco de tentativa de suicídio em jovens que são acompanhados até os 20 anos de idade. Mello et al. 41 investigaram outros transtornos psiquiátricos na idade adulta, que pudessem estar associados aos maus-tratos na infância, e encontraram dados signi-
ficativos para os transtornos de personalidade, abuso ou dependência de álcool, transtornos alimentares, transtornos de ansiedade, e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Eventos estressantes de vida
Na América Latina e no Brasil, em particular, vários são os fatores que contribuem para a elevada prevalência de eventos estressantes de vida e de transtornos mentais na população, como processos acelerados de urbanização e industrialização, acesso desigual aos cuidados de saúde, condições de moradia inadequadas, distribuição desigual da renda, desemprego e altas taxas de violência e criminalidade4 3• Na cidade de Pelotas no Rio Grande dos Sul, autores investigaram a prevalência de transtornos mentais comuns, encontrando uma taxa de 22,7%, que aumentava com a idade. Nessa população, a presença de eventos de vida produtores de estresse, com exceção de migração e acidentes, estava positivamente associada à MP, e a probabilidade desta aumentou linearmente com o número de eventos desfavoráveis. Neste tópico, serão citados os eventos estressantes de vida mais comuns na população em geral43 • Violência familiar e social
A violência é um fenômeno complexo que envolve indivíduos, relações interpessoais, comunidades e a sociedade. Durante as últimas décadas, ela tem se tornado um dos principais problemas de saúde pública, já que há consistentes evidências de que é uma das principais causas de mortalidade e morbidade em todas as partes do mundo. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, mais de 1,6 milhão de pessoas morreram no ano 2000 como resultado de violência. Mais de 90% dessas mortes ocorreram em países em desenvolvimento. Os índices de violência são particularmente altos nas Américas, onde a taxa média de homicídios para os anos 2000-2004, estimada em 17,8 homicídios por 100.000 habitantes, foi a mais alta no mundo. Nessa região, em 2001, três países (Brasil, Colômbia e México) respondiam por 82% de todos os homicídios 44• A maioria dos estudos publicados até a atualidade explorou o surgimento do TEPT em resposta à exposição a algum tipo grave de violência, observando uma diferença significativa quanto ao impacto do trauma na população em geral44• Essas diferenças podem ser vistas entre homens e mulheres, havendo notáveis distinções de gênero nos padrões de exposição a eventos traumáticos. Enquanto os índices de prevalência de violência sexual e conjugal foram mais altos em mulheres do que em ho mens, eventos como presenciar alguém ser assassinado ou ferido, presenciar chacina ou massacre, sofrer acidentes que colocam em risco a vida, violência física cujo autor não tivesse laços familiares ou conjugais com a vítima, ser agredido fisicamente com ou sem uma arma, ser sequestrado ou torturado, e ferir ou matar alguém acidentalmente foram mais comuns em homens44 •
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Em relação à violência contra a mulher, os índices de prevalência são altos em vários países. Ludemir et al. 45 relataram que metade das brasileiras entre os 15 e 49 anos de idade sofreram alguma forma de violência por parte do cônjuge durante suas vidas. Na Etiópia, 48% das mulheres em idade reprodutiva relataram pelo menos uma experiência de violência física, sexual e/ou emocional ao longo da vida46. Na Turquia, 35,1% das mulheres não grávidas entre 15 a 49 anos de idade já vivenciaram algum tipo de violência doméstica, enquanto 29,2% relataram violência verbal e 34,8% violência econômica47 , a qual deve ser entendida como a privação de recursos financeiros e materiais a fim de obter controle sobre a pessoa. Diante de prevalências tão altas, não é difícil entender que a violência contra a mulher está relacionada a vários problemas de saúde mental nos diversos países. No Chile, por exemplo, as razões de chance de sintomas de depressão e ansiedade foram 3,2 vezes mais altas em mulheres que tinham sido expostas a violência psicológica e 9,7 vezes mais altas em mulheres vítimas de violência sexual, em comparação a mulheres não expostas a violência44. No Brasil, a razão de chance de transtornos mentais comuns foi duas vezes mais alta entre vítimas de violência conjugal física e psicológica, em comparação a mulheres não vitimadas. A violência por parte do cônjuge teve relação também com transtornos mentais comuns na Índia, onde em comparação a mulheres que não sofreram abusos, as razões de chance foram de 3,3 para vítimas de abuso psicológico e de 4,4 para abuso sexual45. Além disso, a violência conjugal esteve relacionada a índices elevados de sofrimento emocional (OR = 2,6) na Nicarágua48 e ideação suicida em Bangladesh46 . Finalmente, Alonso Castillo et al. 49 relataram que a violência ocupacional era um dos preditores de abuso de álcool em mulheres trabalhadoras no México, no Peru e no Brasil49. Acontecimentos mais recentes, como a ocupação histórica das favelas do Complexo do Alemão e Vila Cruzeiro no Rio de Janeiro, que culminou com a expulsão de protagonistas do narcotráfico, revelam as repercussões macrossociais da violência. Nessas favelas, as comunidades viveram durante décadas como vítimas e, ao mesmo tempo, mantenedoras desse quadro social, ao passo que em uma possível tentativa de sobrevivência, se viram obrigadas a inserir essa realidade em sua rotina diária. O impacto desse tipo de violência vai muito além do adoecimento mental, criando fontes inesgotáveis de risco para altas taxas de morbidade e mortalidade na população, além do potencial malefício para gerações futuras. Outro fato recentemente veiculado pela mídia foi a morte do professor universitário Kássio Vinícius Castro Gomes, docente do Instituto Metodista Izabela Hendrix de Belo Horizonte, vítima de uma facada proferida pelo próprio aluno, que não aceitou a reprovação pelo fracasso no desempenho letivo. Essa realidade denuncia abanalização da violência, quando o jovem por um motivo
torpe subtrai a vida de um ser humano. Casos de violência dessa gravidade estão cada vez mais frequentes, sendo quase imprevisível a magnitude do impacto na saúde mental da população. Fatores familiares
Os fatores de risco e proteção familiares para MP podem ser de ordem biológica, emocional, cognitiva, comportamental, interpessoal e relacionada ao contexto familiar. Eles podem ter um impacto mais intenso em períodos mais sensíveis da vida (p. ex., infância e adolescência) e também afetar gerações inteiras. Como exemplo, sabe-se que abuso infantil e doença mental em um dos pais, durante a infância, podem causar ansiedade e depressão mais tarde na vida da criança, bem como afetar gerações futu ras50. Além disso, comportamento materno de risco durante a gestação (p. ex., uso de drogas e álcool) e eventos estressantes precoces na vida do infante provocam vulnerabilidade neuropsicológica51. De forma semelhante, a discórdia conjugal pode preceder problemas de comportamento em crianças, depressão entre as mulheres e problemas relacionados ao álcool em ambos os pais52. Adolescentes, filhos de pais divorciados apresentam maior probabilidade de gravidez nesse período da vida, casamento precoce, abandono dos estudos, comportamento antissocial, uso de substâncias, internalização/externalização de problemas, desenvolvimento social e acadêmico diminuídos, relacionamentos infelizes, divórcio e mortalidade prematura. A morte de um dos pais está associada a níveis elevados de sintomas ansiosos e depressivos, incluindo depressão clínica, além de prejuízos escolares e alterações de comportamento53. Portanto, são vários os fatores e situações relacionados à família que têm influência significativa na saúde mental. Apesar de ainda não ser possível estabelecer uma relação direta e específica entre esses fatores e o surgi mento de MP, sabe-se que intervenções preventivas a nível familiar oferecem proteção individual e coletiva contra os principais transtornos psiquiátricos na população em geral.
Fatores de proteção para MP Como visto no início do capítulo, os fatores de proteção para MP referem-se às condições ambientais, bio lógicas, comportamentais, cognitivas e emocionais que melhoram a resistência das pessoas aos fatores de risco e às doenças mentais. Também são classificados quanto a serem ou não modificáveis. Geralmente, os fatores de proteção individual são idênticos às características de uma saúde mental positiva, como a autoestima, a resiliência emocional, o pensamento positivo, as habilidades sociais e de resolução de problemas, as habilidades de gerenciamento de estresse e os sentimentos de autocontrole. Por essa razão, as intervenções preventivas destinadas a re -
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forçar os fatores de proteção se sobrepõem em grande parte à promoção da saúde mental. Neste tópico, serão descritos os principais fatores de proteção, bem como sua relação com as MPs mais fre quentes. Cabe ressaltar que, do ponto de vista científico, a ausência de fatores de risco não significa necessariamente proteção contra o surgimento das doenças, sendo necessárias evidências de uma relação causa/ efeito entre o fator e a MP estudada. Atividade física Atividade física pode ser conceituada como qualquer movimento corporal produzido pelos músculos esqueléticos que resulta em gasto energético maior do que o dos níveis de repouso. No entanto, o exercício físico propriamente dito é uma atividade física planejada, estruturada e repetitiva, que tem como objetivo aumentar ou manter a saúde e/ou aptidão física54 . Atualmente, há um número crescente de ensaios clínicos randomizados controlados, de base populacional, que sugerem uma associação significativa entre atividade física e redução de sintomas depressivos em adultos55. Apesar disso, nenhum mecanismo claro para a associação entre atividade física e depressão foi estabelecido. Além do benefício das alterações neurofisiológicas secundárias à atividade física, alguns autores sugerem quatro hipóteses para explicações psicossociais dessa associação. A primeira é a hipótese do "lazer': que postula que é o "tempo de distração" obtido durante a prática da atividade física que beneficia o humor, antes mesmo do início dos efeitos bioquímicas ou fisiológicos já conhecidos55. A segunda explicação, a hipótese do "domínio': sugere que é a conclusão de uma tarefa (como aprender um novo esporte) que traz a sensação de realização pessoal, promovendo a melhora do humor55'57. A terceira explicação refere-se ao efeito indireto que a atividade física exerce sobre o humor por meio do fornecimento de maiores oportunidades para a interação social. Por meio da participação em aulas de ginástica ou em esportes de equipe, o apoio social pode tornar-se mais disponíveJ5 6,57 . Finalmente, a atividade física pode estar relacionada com o humor mediante a melhora da autoestima. Aqueles que se engajam em programas de atividade física têm potencial para modificar a forma do corpo, levando a uma melhora na auto imagem55. Os benefícios da atividade física são também observados em populações idosas. Estudos têm sugerido que os índices de depressão são menores em idosos que praticam atividade física, ocorrendo melhora no aspecto emocional, com aumento da auto-estima, melhora do humor, sensação de bem-estar e diminuição da ansiedade e da tensão psíquica58 . Além disso, parece haver uma relação inversa entre o nível de atividade física e os sintomas de depressão, com o exercício físico tendo possivelmente um efeito protetor59. Hamer et al. 60, em um estudo de duração de quatro anos (n = 4.323), destacaram que, em comparação com in-
divíduos sedentários, idosos que se exercitaram em intensidade moderada e vigorosa demonstraram uma redução de risco de depressão de 52 e 65%, respectivamente. No estudo prospectivo de Blumenthal et al. 61, observou-se que a eficácia do exercício aeróbio, supervisionado ou não, era comparável à medicação antidepressiva (sertralina, 50-200 mg ao dia). Em relação aos efeitos do tipo de exercício realizado, Colcombe et al. 62 investigaram a mudança de volume cerebral de idosos, submetidos a dois protocolos de intervenção, sendo eles o exercício aeróbio na intensidade de 40 -50% e 60 -70% da frequência cardíaca de reserva e o exercício de tonificação e flexibilidade muscular, em sessões de uma hora por semana. Apenas o exercício aeróbio mostrou aumento no volume cerebral dos idosos, sugerindo que esse tipo de exercício está relacionado à saúde do sistema nervoso central e funcionamento cognitivo. Tendo em vista os possíveis benefícios físicos e psicológicos provenientes da atividade física em geral, e em particular do exercício físico, a sua prática por indivíduos depressivos promoveria a redução de sintomas, podendo beneficiar a prevenção de recaídas e de novos episó dios. Espiritual idade Nas últimas duas décadas, milhares de artigos têm sido publicados sobre a relação entre religião e saúde na literatura médica. De fato, muitas escolas médicas têm a espiritualidade integrada no currículo. Nos EUA, 84 das 126 escolas médicas credenciadas oferecem cursos sobre a espiritualidade na medicina 111 . As definições de religiosidade e espiritualidade têm sido uma perene fonte de controvérsias. De acordo com Batson & Ventis63, logo em 1912, o psicólogo James Leuba havia identificado 48 definições distintas de religião. No presente tópico, serão consideradas as definições de religião sugeridas por Koenig et al. 64 , as quais são descritas a seguir: 1) Religião: é um sistema organizado de crenças, práticas, rituais e símbolos concebidos para facilitar a proximidade com o sagrado ou transcendente (Deus, força maior, ou o conceito final de verdade/realidade). 2) A espiritualidade é a busca pessoal por respostas para as questões sobre a vida, sobre o seu significado, e a relação com o sagrado ou transcendente, o que pode (ou não) levar a ou originar-se do desenvolvimento de rituais religiosos e da formação de uma comunidade religiosa. Espiritualidade e bem-estar psicológico Estudos recentes que têm utilizado medidas de espiritualidade, principalmente bem -estar espiritual, têm encontrado correlações positivas com bem -estar psicológico e outros indicadores de saúde mental. Uma das possíveis explicações para esse achado é a constatação de que a maioria das práticas religiosas incentiva e determina que os há-
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bitos saudáveis de vida (p. ex., alimentação saudável, não fumar, evitar etílicos e drogas) são essenciais para se alcançar a intimidade com o que é sagrado 11 1. De 100 estudos que examinaram a associação das práticas e comportamentos religiosos com indicadores de bem-estar psicológico (satisfação com a vida, felicidade, afeto positivo e moral mais elevado), 79 relataram pelo menos uma correlação positiva significativa entre essas variáveis64. Apenas um estudo, com uma amostra pequena e não aleatória de estudantes universitários, encontrou uma correlação negativa. Enquanto as correlações são geralmente modestas, muitas vezes elas se igualam ou superam as relações entre bem-estar e outras variáveis psicossociais como suporte social, estado civil ou renda. Essa associação positiva tem sido consistentemente semelhante em amostras de diferentes países, envolvendo uma diversidade de religiões, raças e faixas etárias. Embora a maioria dos estudos seja transversal, 10 dos 12 estudos longitudinais replicaram essa correlação positiva. A maioria desses estudos mostrou uma associação entre religiosidade e bem-estar, mesmo após o ajuste por idade, sexo e nível socioeconômicolll.
excessivas tendem a ser mais seguras e desenvolvem a maturidade de saber o que devem ou não fazer. Tal capacidade permite o desenvolvimento da autonomia ( distinguir entre certo e errado, saudável e nocivo etc.), o que aumenta as chances de uma reação adaptadora diante de limites e frustrações. Um cuidado adequado aos filhos durante toda a infância (incluindo assistência à saúde), bem como um lar estruturado onde as intervenções não tenham sido tão restritivas e impositivas, está relacionado a uma vida mais saudável na adolescência, capacitando esse indivíduo, quando adulto, a desempenhar um bom papel social e familiar53. Na adolescência, a presença dos pais é tão importante quanto durante a infância, uma vez que seu papel é o de estar atento, mobilizar sem dirigir, apoiar nos fracassos e incentivar nos êxitos. São situações que têm grande impacto na diminuição dos conflitos entre pais e filhos, sendo fatores determinantes em potencial para o adoecimento mental53 .
Espiritualidade e depressão
Depressão e cardiopatias
Uma recente metanálise resumiu os resultados de 147 inquéritos independentes, envolvendo um total de 98.975 indivíduos sobre a associação entre religiosidade e sintomas depressivos 11 1 • Os autores descobriram que a religiosidade esteve modesta, mas significativamente associada a um menor nível de sintomas depressivos. A intensidade dessa associação, embora modesta, foi semelhante à encontrada entre gênero e sintomas depressivos. A associação entre religiosidade e depressão não variou entre as diferentes idades, gêneros e grupos étnicos. Espiritual idade e abuso de substâncias
Um estudo conduzido nos EUA avaliou uma amostra de 2.616 gêmeos adultos, investigando a relação entre várias dimensões da religiosidade e a prevalência de MP. Apesar das várias dimensões da religiosidade estarem comumente associadas a menores prevalência de depressão maior, transtornos de ansiedade e de personalidade antissocial, a associação mais significativa foi encontrada entre a maioria das dimensões religiosas e menores taxas de uso de nicotina, álcool e abuso ou dependência de drogas 65 • Fatores familiares
Para que uma criança cresça saudável e venha a se tornar um adulto saudável, é necessário garantir-lhe condições adequadas de vida. Planejamento familiar, alimentação adequada, vacinação completa, educação e suporte familiar e social são fundamentais para um desenvolvimento saudável. É função da família proporcionar um ambiente em que a criança aprenda a lidar com limites e frustrações. Crianças que crescem com regras claras e não
Morbidade psiquiátrica e comorbidades clínicas
A depressão é uma síndrome psiquiátrica altamente prevalente, estimando-se que acometa 3 a 5% da população em geral. Já em populações clínicas, a incidência é ainda maior, atingindo 5 a 10% dos pacientes ambulatoriais e 9 a 16% dos internados81. A importância da associação entre depressão e comorbidades clínicas é determinada pela constante influência negativa das doenças clínicas no surgimento e na evolução dos transtornos de humor. O excesso de mortalidade decorrente de doenças cardiovasculares em pacientes depressivos já é descrito desde 1937, representando cerca de 40% das causas de morté6. Em portadores de insuficiência coronariana (ICo) ou após infarto agudo do miocárdio (pós-IAM) a prevalência de depressão maior varia de 17 a 27%, podendo ser ainda mais elevada se forem considerados transtornos depressivos subsindrômicos. Para isso, podem contribuir variáveis como: uma "reação catastrófica" em pacientes pós-IAM confinados em unidades coronarianas, a gravidade do prejuízo funcional pós-IAM, risco médico geral elevado, histórico prévio de IAM, histórico prévio de depressão e baixo suporte social67 •
Depressão e diabetes melito Em uma metanálise recente, avaliando estudos que utilizaram grupos-controle normais, a prevalência de depressão em pacientes diabéticos foi de 11 a 31%, enquanto a presença de diabetes aumentou em duas vezes o risco de depressão em relação aos grupos-controle, independen-
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te de ser tipo 1 ou 2 68 . Pacientes com depressão também apresentam maior risco de desenvolver diabetes tipo 2 69. Os mecanismos biológicos envolvidos na associação entre diabetes e depressão ainda não estão claros. Algumas evidências sugerem que as alterações no transporte de glicose em regiões específicas do cérebro poderiam ocorrer em pacientes diabéticos, favorecendo o desencadeamento da depressão70. Maiores estudos serão necessários para investigar essa associação.
Depressão e distúrbios da tireoide Tanto o hipotireoidismo como o hipertireoidismo estão associados a sintomas de astenia, lentificação, alteração de apetite e sono, dificultando o diagnóstico diferencial dessas patologias com a depressão. Ainda assim, pacientes com depressão podem apresentar alterações tireoidianas com frequência, sendo mais comum o hipotireoidismo, que pode ocorrer em formas subsindrômicas em até 17% dos pacientes com transtornos do humor71. Pacientes agudamente deprimidos que apresentam aumento nos níveis de T4livre no liquor, e níveis séricos baixos de T3 estão mais propensos à recorrência de quadros depressivos 72 • Baixos níveis de hormônios tireoidianos livres e maiores índices de hormônio estimulante da tireoide (TSH), mesmo dentro dos níveis normais, estão associados ao atraso na resposta terapêutica, tanto na depressão bipolar quanto unipolar71 . Distúrbios da função tireoidiana estão francamente relacionados à evolução e à resposta ao tratamento antidepressivo, sendo muitas vezes necessária a reposição de T4 no hipotireoidismo, ou potencialização com T3, na resistência ao tratamento antidepressivo. Apesar dessas constatações, não há evidências que sugiram que tireoidopatias possam ser a causa principal de francos episódios depressivos.
Depressão e obesidade A ocorrência de depressão na adolescência constitui fator de risco para ter excesso de peso na fase adulta, sendo o contrário também verdadeiro, pois a obesidade em jovens pode aumentar o risco de depressão na idade adulta73. Várias são as hipóteses que tentam explicar a relação entre obesidade e depressão. A possível concomitância de fatores de risco em comum, como maus-tratos na infância, aspectos genéticos, padrão similar de comportamento alimentar, atividade física, e manutenção de estados de estresse crônico, causadores de hipercortisolemia, parece ser a principal hipótese. Além disso, o tratamento da depressão pode aumentar o peso, sendo que a diminuição deste está frequentemente associada à melhora do humor e da resposta terapêutica74 • Essas relações merecem estudos mais amplos, para se definir com maior clareza como a obesidade pode influenciar o surgimento de quadros depressivos.
Depressão e hiper- reatividade do eixo hipotálamo- hipófise-adrenal Aproximadamente 50% dos pacientes deprimidos apresentam aumento da reatividade do eixo hipotálamohipófise-adrenal (EHHA), representado pelo aumento do hormônio de liberação de corticotrofina (CRH)?5• Esse aumento pode levar a inúmeras alterações fisiológicas, que explicariam uma série de consequências comuns à síndrome depressiva, como as alterações metabólicas (resistência periférica à insulina, dislipidemia, hipertensão, obesidade), alterações na função tireoidiana, desequilíbrio do sistema imunológico e das funções cognitivas76 . Além disso, pacientes com doença de Cushing (hipersecreção de cortisol) ou pacientes em uso de altas doses de corticosteroides apresentam quadros afetivos com maior frequência. Apesar dessas hipóteses, permanece obscuro o mecanismo que determina a relação entre depressão e alterações do EHHA.
Depressão e câncer A grande maioria dos pacientes portadores de câncer apresentará algum sintoma de estresse emocional, especialmente no momento do diagnóstico. Com frequên cia são observados sentimentos intensos como sensação de "choque" ou descrença, seguidos por período turbulento, no qual são evidentes os sintomas de ansiedade, tristeza, irritabilidade, alteração do sono e mudança do apetite. A possibilidade da incapacitação, da perda do status social, da alteração na imagem corporal e da dependência ou perda de controle, são vivências comuns. Aproximadamente 1O a 25% dos indivíduos com câncer apresentarão episódio de depressão maior e/ou de ansiedade77 • Por outro lado, os transtornos psiquiátricos afetam negativamente a qualidade de vida dos pacientes, prejudicando a adesão ao tratamento e prolongando as internações hospitalares, com consequente aumento da mortalidade. Dentre algumas hipóteses para essa relação, há a possibilidade de que os sintomas depressivos sejam secundários à neoplasia, de que elegeriam pacientes com maior propensão ao desenvolvimento de neoplasias ou de que seja apenas mera coincidência.
Depressão e dor crônica Pacientes com dor crônica apresentam comorbidade psiquiátrica com frequência, sendo que 30 a 54% dessas pessoas preenchem critérios para depressão e 40% abuso de álcool. Entre esses pacientes parece haver forte associação entre dor, depressão e história familiar de alcoolismo. Pelo menos quatro neurotransmissores estariam relacionados à modulação central da dor: serotonina (5HT), noradrenalina (NA), substância P e fator de liberação de corticotrofina, sendo que a serotonina e a no-
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radrenalina são os principais envolvidos na fisiopatologia da depressão 81. Dor grave está associada a maior frequência de pensamentos suicidas, tentativas de auto extermínio e suicídi o consumado78 . A abordagem eficiente da depressão em pacientes com transtornos dolorosos crônicos depende do diagnóstico e tratamento adequados dos problemas clínicos de base, e do tratamento antidepressivo incisivo, buscando a remissão completa dos sintomas depressivos.
Depressão e doenças neurológicas Grande parte dos pacientes com transtornos neurológicos apresenta depressão, tanto pelas alterações neurofisiológicas implicadas na gênese da depressão, como pelas consequências adversas para a adaptação psicossocial dos pacientes. A epilepsia é um bom exemplo de doença neurológica associada a sintomas psiquiátricos, pois os pacientes epilépticos podem ser vítimas de preconceito social e familiar. A prevalência de depressão é considerada alta em pacientes epilépticos, atingindo de 20 a 55% dos pacientes com crises recorrentes, e 3 a 9% dos pacientes estabilizados. Além disso, pacientes epilépticos têm até seis vezes mais chance de ter história de depressão que controles normais, sendo que a depressão pode também ser consequência dos tratamentos antiepilépticos farmacológicos e cirúrgicos, por vezes apresentando quadros atípicos81. O suicídio é a principal causa de morte entre epilépticos, podendo ser até dez vezes mais frequente que na população geral. A doença de Parkinson pode apresentar comorbidade com depressão em até 50% dos pacientes, tanto pela reação psicológica à incapacitação gerada pela doença, quanto pela neurodegeneração, principalmente no circuito gânglios da base-tálamo-córtex pré-frontal e frontal, com consequente redução da atividade serotoninérgica, dopaminérgica e noradrenérgica. O uso de antidepressivos causa preocupação pelos efeitos indesejáveis, seja pelos efeitos hipotensores e cognitivos, seja pela piora dos sintomas extrapiramidais. Apesar disso, a eficácia antidepressiva é observada na prática clínica, com raras intercorrências relevantes81 . Depressão pós-acidente vascular cerebral (AVC) foi extensamente estudada, ocorrendo entre 19 e 23% dos casos79. Depressão na fase aguda pós-AVC está associada a pior recuperação e maior mortalidade, independentemente da localização ou magnitude das lesões. Episódios depressivos tendem a ocorrer em lesões do hemisfério esquerdo, enquanto quadros maníacos ocorrem mais com lesões em hemisfério direito incluindo áreas subcorticais80 . O tratamento antidepressivo pode ser feito tanto com drogas noradrenérgicas como serotoninérgicas, com possível maior eficácia das primeiras79 . Há evidências tam-
bém de que o tratamento antidepressivo pode prevenir episódios depressivos futuros, melhorar a recuperação e diminuir a mortalidade79 . Outras doenças neurológicas como a doença de Alzheimer e a esclerose múltipla seguem o padrão dos já citados, com alta prevalência de depressão (até 50%) e piora importante no prognóstico81.
Comprometimento cognitivo, demência e risco cardiovascular Várias alterações estruturais cerebrais ocorrem em função do envelhecimento, desde redução da densidade neuronal até diminuição do volume cerebral. Recentemente, diversos estudos vêm investigando o papel dos fatores de risco cardiovascular (FRCV) na evolução dessas alterações e no desenvolvimento de quadros demenciais no idoso82 . Estudos epidemiológicos sugerem que a presença de FRCV (p. ex., ICo, H.A.S e aterosclerose) pode ser subjacente ao desenvolvimento dos prejuízos cognitivos e participar de forma direta na fisiopatologia da doença de Alzheimer (DA), com uma correlação entre risco de DA e número de doenças cardiovasculares presentes no indivíduo83 . A sobreposição de FRCV, como a presença de aterosclerose e da doença cerebrovascular na demência vascular por múltiplos infartos (DVMI) e na DA, particularmente envolvendo o polígono de Willis, reforça essa associação. Alguns autores destacaram o papel da redução crônica do fluxo sanguíneo cerebral (FSC) global84 . Alves et al. 85 verificaram que a presença de insuficiência cardíaca se associa à redução de FSC regional envolvendo áreas muito semelhantes àquelas observadas em estágios iniciais da DA, mais especificamente o precuneus e o cíngulo posterior. Já em relação à substância cinzenta, observamos que a presença de FRCV em idosos se associa a atrofia cortical de regiões temporoparietais, principalmente envolvendo o hemisfério direito 85 . A redução do FSC conduziria à diminuição do aporte de glicose e oxigênio e microembolismo cerebral. A aterosclerose pode estreitar o território carotídeo-basilar e reduzir o suprimento de oxigênio e nutrientes86 . Em condições de hipoperfusão cerebral crônica, eventos vasculares poderiam desencadear o processo patológico cerebral da DA86 . A presença de tais alterações, envolvendo regiões cerebrais e afetando regiões importantes para memória e outras funções cognitivas, tais como hipocampo, cíngulo posterior e precuneus, poderia atuar como desencadeante de alterações celulares que culminam com a produção de beta amiloide e proteína TAU, os principais marcadores da DA86 . As Tabelas II e III ilustram os principais fatores de risco já estudados para o surgimento e desenvolvimento da DA eDVMI.
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Tabela 11
Fatores de risco para DA - 1995-2004
Tabela 111
Fatores de risco para DA e DV
Fator de risco
RRou OR
Polimorfismo ApoE4
História familar de demência (1Qgrau)
RR 2,5-3,5
Hipercolesterolemia
Genótipo e4
OR 11,2
Baixo nível educacional
OR 11,7 para analfabetos comparados com > 3
Exposição a pesticidas Trauma craniano TSH
i
Hipertensão
RR 2,39 OR 1,58 (15 estudos caso-controle) OR 3,8 para demência
TSH ..),
OR 3,5 para DA
Hiper- homocisteinemia Diabetes mellitus Síndrome metabólica Tabagismo Inflamação sistêmica Aumento de consumo de gorduras e obesidade Fonte: Casserly e Topol, 2004. DA: doença de Alzheimer; DV: demência vascular.
HAS
OR 1,97 para DA
Hipercolesterolemia
OR 2,3 para demência
Homocisteína
i
RR1,4
DM
RR 1,3- 1,65 para DA
AVC
RR 1,6
História de depressão ma1or
RR 2- 4 (130fo de aumento do risco com cada episódio levando a internação)
Fonte: Scalco & van Reekum, 2006. DA: doença de Alzheimer.
Transtornos psiquiátricos maiores Tran stornos do humor Como visto anteriormente, o início da depressão e suas recorrências são influenciados por uma série de fatores de risco e proteção, em diferentes estágios da vida, até mesmo durante a infância. São fatores biológicos, psicológicos, familiares e sociais que são desigualmente distribuídos na população, concentrados nas chamadas populações de risco 53 . Na depressão, já foram identificados alguns fatores de risco específico (depressão parenta!) e geral (eventos estressantes de vida, pouco suporte social), e os fatores de proteção, como amor-próprio, suporte social e resiliência98 . A síndrome depressiva em pacientes cardiopatas tem características clínicas próprias, sendo associada a alterações inflamatórias, presença de lesões envolvendo a substância branca (SB) e redução do FSC, envolvendo áreas temporais mediais, bem como o desenvolvimento de prejuízo cognitivo 88·89 . Esses aspectos foram abordados por Fraguas et al. 87 que verificaram que os sintomas de despertar matinal e de aumento da atividade simpática estavam associados a depressão em cardiopatas. Andrei et al.88 observaram a presença de correlações significativas entre escores de depressão e lesões de substância branca e do córtex frontal, redução do FSC regional em hipocampo e giro para-hipocampal, além de níveis aumentados de proteína C-reativa. Essas evidências apontam para diversos aspectos associados a cardiopatia que podem contribuir para o sur-
gimento da depressão 90. Na depressão de início tardio, por exemplo, há maior prevalência de transtornos demenciais, relacionados à presença de atrofia cortical e/ou lesões profundas da SB, e menor resposta terapêutica a antidepressivos91. Finalmente, vale ressaltar que a presença de FRCV e de lesões de SB, além de se associar à depressão de início tardio, esteve associada ao surgimento de episódios maníacos em pacientes idosos, conforme apontado por um estudo desenvolvido por nosso grupo92 • Em relação ao transtorno do humor bipolar (THB), um dos principais fatores de risco biológico é a herança genética. Pacientes com história familiar positiva de THB, THB em várias gerações e hipomania farmacológica têm maior risco de se tornar bipolares93 . O THB é encontrado com maior frequência em adultos jovens, viúvos/se parados/ divorciados, de baixa condição socioeconômica e transtorno de abuso de substâncias e álcool 94. Além disso, episódios depressivos de início precoce, depressão psicótica ou atípica, depressão recorrente, depressão pós-parto e depressão refratária, são fatores de risco para desenvolvimento de THB no futuro 95 . O transtorno apresenta uma característica mensal, com a piora significativa durante a TPM, e uma sazonal, que parece ocorrer por influência das variações na exposição à luz solar, as quais promoveriam alterações no metabolismo da melatonina. Eventos estressantes, como violência física e sexual na infância, e perdas graves (parentes próximos), parecem estar relacionados a maiores prevalências de THB96. Estudos epidemiológicos revelam uma prevalência de 3,3% ao longo da vida. Há dados conflitantes quanto às diferenças na prevalência por gênero em relação ao THB II, ao passo que o THB I é mais frequente em mulheres. Grande parte dos estudos revela cifras semelhantes, com homens apresentando mais eventos maníacos, início precoce e episódios de longa duração. Por outro lado, as mulheres apresentam mais episódios depressivos e mistos, além de buscarem tratamento com mais frequência. O THB I está mais frequentemente associado a transtornos de uso de substâncias, ansiedade e
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transtornos de personalidade, principalmente dos tipos borderline e histriônico96 •
Transtornos ansiosos Assim como a depressão, transtornos ansiosos estão entre as doenças psiquiátricas mais prevalentes, independentemente das diferenças culturais e étnicas. Eles geralmente se concentram em jovens (25 a 44 anos), mulheres, pessoas com pouca escolaridade, não casados e sem filhos 97• Dentre as populações de risco para o desenvolvimento desses transtornos, encontram-se filhos de pais ansiosos, crianças vítimas de abuso, violência, guerra ou desastres naturais; refugiados de guerra ou exilados; profissionais sob risco de violência (roubo, sequestro) e que trabalham no atendimento a vítimas de traumatismos em geral. Os fatores de risco modificáveis para ansiedade incluem eventos traumáticos de vida, déficits no processo de aprendizagem da infância (p. ex., pais ansiosos), sentimentos de perda de controle, de pouca capacidade, estratégias de ajustamento e suporte social. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, os eventos estressantes de vida, quando ocorrem precocemente, criam uma vulnerabilidade neurobiológica que predispõe a transtornos ansiosos, por meio das modificações nos mecanismos cognitivos de adaptação98 •
Esquizofrenia e transtornos psicóticos Existem evidências de que a esquizofrenia é uma doença cerebral, na qual aspectos determinados geneticamente e lesões causadas por traumas e infecções levam a uma vulnerabilidade neurológica. Por conta disso, os pacientes ficam sujeitos às manifestações da doença na vigência de fatores de estresse ambiental (uso de drogas psicoativas e estressares psicossociais). Nesse modelo, chamado de estresse-vulnerabilidade, a remissão e a recorrência dos sintomas são vistos como produtos da interação entre a vulnerabilidade neurológica e os estressares ambientais99 • A apresentação clínica das psicoses tende à similaridade, apesar das diferenças na linguagem, cultura, religião e grau de urbanização da população. O início da doença geralmente ocorre entre 18 e 40 anos, mas pode ocorrer na infância ou em idosos. Homens e mulheres apresentam igual frequência, porém homens têm um pico de idade de início de esquizofrenia entre 15 e 25 anos enquanto as mulheres têm dois picos, um maior entre 20 e 29 anos, e um menor, entre 40 e 45 anos, na época da menopausa. Além disso, as mulheres geralmente têm melhor prognóstico nas fases iniciais da doença, tendo maior taxa de remissão, melhor desempenho social e menos sintomas negativos, além de ter melhor resposta ao tratamento com antipsicóticos99 . A maior prevalência entre pessoas mais pobres nas áreas urbanas pode decorrer das perdas funcionais da es-
quizofrenia, que levam a desemprego e pobreza, mas também ser uma consequência de piores condições de vida. Similarmente, uma maior prevalência em solteiros pode refletir os efeitos da doença ou dos sintomas prodrômicos no funcionamento social, dificultando a construção de um relacionamento estável e duradouro. Outros fatores de risco incluem complicações obstétricas e história familiar de esquizofrenia. Em grande parte dos casos, é comum que o abuso de substâncias precipite o surgimento dos primeiros sintomas, além da possibilidade dos sintomas serem secundários ao abuso 100 • Esquizofrenia e complicações obstétricas e infecções virais na gestação
Complicações obstétricas em geral, causadoras de anóxia cerebral, tanto no parto como durante a gestação, são mais frequentes em pacientes esquizofrênicos. Há evidências de que infecções virais no segundo trimestre da gestação aumentam o risco para esquizofrenia 101 • Esses dois fatores podem influir no desenvolvimento cerebral do sistema límbico, especialmente do hipocampo, e também da região pré-frontaP 02 • Geralmente, as consequências das alterações no neurodesenvolvimento ficam quiescentes até a adolescência, quando as áreas cerebrais comprometidas passam a ser mais solicitadas, levando ao surgimento dos primeiros sintomas. Esquizofrenia e estressares ambientais
Os eventos estressantes de vida podem desencadear a doença ou a recorrência dos sintomas em pessoas vulneráveis. O histórico de ocorrência desses eventos é mais frequente em pacientes esquizofrênicos do que em controles saudáveis. São exemplos de eventos estressantes, comumente associados ao surgimento da doença, o término de uma relação íntima, alistamento militar, trabalho ou faculdade e estressares biológicos, como o abuso de substâncias. Relações familiares estressantes podem causar ou resultar da exacerbação frequente da doença. Alguns dos fatores protetores que diminuem o efeito desses estressares são a reabilitação e serviço de apoio comunitário, além de psicoterapias individual e familiar 103 .
Transtornos alimentares A anorexia nervosa é a terceira condição crônica mais comum entre adolescentes nos EUA, após a obesidade e a asma. Entre as adolescentes, 5 a 15% estão usando métodos insalubres de controle dietético, como vômitos autoinduzidos, laxantes e diuréticos 104 . O início da anorexia nervosa ocorre mais comumente entre 14 e 18 anos, enquanto o da bulimia é no período de transição da adolescência para a idade adulta. Embora a incidência e a prevalência dos transtornos alimentares sejam baixas, são graves as suas consequências. Aproximadamente 25 a 33% dos pacientes com ano-
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rexia ou bulimia nervosa desenvolvem doença crônica. Além disso, os distúrbios alimentares apresentam altos níveis de comorbidade com transtornos de abuso de substâncias, depressão e transtornos de ansiedade. Eles ocorrem principalmente em mulheres adolescentes e adultas, especialmente em atletas do sexo feminino, estudantes de balé e culinária e modelos98 . Dieta pouco saudável, preocupações excessivas quanto a peso e forma e insatisfação com o corpo são identificadas como importantes fatores de risco comportamentais, bem como influências familiares e sociais, quanto à modificação do comportamento baseada no conceito de beleza magra. Insegurança excessiva, abuso físico e se xual, assédio moral, baixa autoestima e dificuldades em lidar com eventos estressantes e conflitos afetivos têm sido identificados como fatores de risco geral para transtornos alimentares98 . Esses dados reforçam a importância do suporte familiar na determinação dos valores e no desenvolvimento da autonomia do ser humano, podendo ser fonte de intervenções preventivas e educativas na promoção da saúde mental.
Transtornos relacionados ao uso/abuso de substâncias Os transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de substâncias psicoativas incluem intoxicação aguda, uso nocivo e dependência. O termo "substâncias psicoativas" abrange o uso de tabaco, álcool e drogas ilícitas (p. ex., opioides, canabinoides e cocaína), bem como medicamentos psicoativos e solventes. Globalmente, o tabaco como um fator de risco é causa de 4,1% do total da carga de incapacidade 105 . No século atual, estima-se que o tabaco será causa de um bilhão de mortes no mundo, com três quartos dessas mortes ocorrendo em países de baixa renda. Mundialmente, cerca de dois bilhões de pessoas consomem bebidas alcoólicas e mais de 75 milhões são diagnosticadas com transtornos do uso de álcool42. O álcool como fator de risco é responsável por 4,0% da carga total de incapacidade. Seu consumo é o principal fa tor de risco para incapacidade em países de baixa renda e baixa mortalidade 106 . Além dos efeitos diretos da intoxicação e da dependência, que resultam em transtornos por uso de álcool, estima-se que ele seja causa de 20 a 30% de condições como o câncer de fígado e esôfago, cirrose hepática, epilepsia, homicídios e acidentes automobilísticos. Como se não bastasse, o uso de álcool e drogas durante a gestação está associado a vários riscos para a criança. Malformações fetais, prematuridade e baixo peso, agressividade/impulsividade/irritabilidade, déficits de atenção, ansiedade/depressão, e baixo QI, são os prejuízos mais frequentes 107 . Fatores como risco aumentado de acidentes (trânsito, domicílio, trabalho), overdose em combinação com outras drogas, tentativas de suicídio (especialmente em depressão), ati-
tudes antissociais, problemas na interação interpessoal, redução da capacidade de trabalho e desemprego são as consequências gerais associadas ao etilismo crônico mais apontadas pela literatura 108 . As hipóteses a respeito das diferenças de gênero no consumo de álcool provêm inicialmente de aspectos biológicos e socioculturais 109. A mesma quantidade de álcool consumida por um homem e uma mulher de mesmo peso produzirá maior concentração de álcool no sangue da mulher por diversas razões, como a menor quantidade de líquido corporal, a menor concentração da enzima álcool desidrogenase, características do metabolismo e níveis hormonais na mulher 107. Interagindo com os fatores biológicos, há as influências socioculturais no comportamento de beber, principalmente no que diz respeito à abstinência, intoxicação e comportamento sexual relacionado 109 . No final de 1990 foi estimado que 4,2% da população mundial com idade de 15 anos ou mais consumiam drogas ilícitas, sendo causa de 0,8% do total da carga de incapacidade 106. Além disso, a associação entre MP e risco para outras doenças mentais é bastante conhecida. Pacientes com transtorno bipolar em geral, por exemplo, têm risco seis vezes maior para desenvolver transtornos de ansiedade (pânico, agorafobia, ansiedade generalizada, TOC e fobia social), além de apresentarem risco elevado para abuso de substâncias e álcool, e transtorno de controle dos impulsos, quando comparados a pessoas saudáveis94.
Suicídio Apesar de não ser definido como uma MP, o suicídio é incontestavelmente a mais grave consequência do fracasso de um tratamento clínico. As maiores evidências acerca dos fatores de risco para o suicídio apontam as doenças psiquiátricas (principalmente depressão e esquizofrenia), eventos estressantes de vida, recentes ou antigos (maus-tratos na infância, desemprego, isolamento social, problemas econômicos), suicídio em parentes, amigos ou amantes, ausência de ajuda psicológica e fácil acesso aos meios possíveis para se cometer autoextermínio 110 . Em relação ao gênero, as mulheres tentam o suicídio com uma frequência duas a três vezes maior que os homens, apesar de estes últimos consumarem o suicídio três vezes mais. Quanto ao método utilizado, os homens costumam utilizar armas de fogo e enforcamento, enquanto mulheres fazem uso da ingestão de medicamentos e envenenamento110. Além disso, entre os idosos, os homens cometem suicídio quase sete vezes mais que as mulheres, sendo as prevalências, no Brasil, maiores em pacientes acima dos 65 anos. Para provedores de saúde mental (médicos, psicólogos, enfermeiros, fisioterapeutas, assistentes sociais etc.), o suicídio é de particular relevância. De acordo com al guns pesquisadores, até 90% dos pacientes que cometem suicídio nos países ocidentais sofrem de pelo menos um
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transtorno psiquiátrico significativo, sendo que muitos deles estiveram em contato com serviços de saúde nos 30 dias precedentes à atuação. Embora sejam prováveis as variações nesse cenário em diversos países e culturas, isso destaca o significado das relações entre as doenças mentais e o suicídio. A identificação dos fatores de risco é de fundamental importância para auxiliar o profissional no diagnóstico de situações que impliquem risco eminente de suicídio.
Considerações finais Como se pode ver, são inúmeros os fatores determinantes de MP na população em geral. A possibilidade de interações entre esses fatores torna mais complexo o real entendimento das implicações na saúde mental. Apesar disso, as evidências destacam os fatores socioeconômicoambientais e as próprias doenças psiquiátricas como principais envolvidos na relação entre fatores de risco e proteção para o surgimento de MP. De maneira geral, fica claro que as intervenções psicoeducativas e de suporte social são medidas imprescindíveis na prevenção das doenças e na promoção da saúde mental, devendo ter como foco principal o contexto familiar, a assistência às demandas da infância e adolescência, o acompanhamento pré e pós-natal, além do tratamento adequado das doenças clínicas e psiquiátricas. A importância da atividade física como protetora para as doenças em geral se mostra cada vez mais evidente. Destaca-se aqui o benefício das ações básicas de saúde, onde o Programa de Saúde da Família tem papel importante na veiculação das medidas promocionais e preventivas, além de possibilitar a mobilização social necessária para uma saúde coletiva.
Questões 1. Os fatores determinantes de MP mais referidos na literatura N
a) b) c) d) e)
sao: Herança genética. Fatores sociodemográficos. Comorbidades clín icas. Suicídio AVC
2. Em relação aos transtornos psiquiátricos maiores, pode-se afirmar que: a) Frequentemente pacientes com doenças clínicas apresentam sintomas psiquiátricos. b) Depressão secundária ao AVC não oferece riscos graves aos pacientes não portadores de diabetes melito ou doença cardiovascular. c) As cardiopatias mais relacionadas à depressão maior são prolapso valvar mitral, insuficiência coronariana e síndrome de Marfan.
d) As medidas preventivas para MP, com eficácia inquestionável, incluem o aconselhamento genético. e) O suicídio somente pode ser considerado MP quando relacionado a doenças mentais.
3. Dentre as medidas preventivas para MP, é correto afirmar que: a) Em pacientes portadores de comorbidades clínicas deve-se sempre aval iar o risco de suicídio. b) O planejamento fa miliar não tem impacto na prevalência de depressão maior em pacientes sem histórico familiar de transtornos de humor. c) A esquizofrenia somente pode ser evitada, com medidas ambientais, em pacientes com histórico familiar de transtornos psicóticos. d) Não existem medidas preventivas para maus-tratos na infância e adolescência. e) A abordagem do risco de suicídio em pacientes com doenças clínicas somente é recomendada quando houver uma doença mental primária. 4. Quanto aos fatores sociodemog ráficos, todas as alternativas estão corretas, exceto: a) O gênero está entre os principais fatores determinantes conhecidos para MP em geral. b) Apesar das hipóteses sugeridas, não há evidências científicas que esclareçam a relação entre estado civil e MP em geral. c) Os transtornos mentais secundários a doenças clínicas não devem ser considerados em pacientes portadores de MP pri' . mana. d) A influência da faixa etária na prevalência de MP é frequente em pacientes portadores de doenças clínicas. e) Não se pode afirmar que o ciclo reprodutivo da mulher é fator de risco invariável para MP em geral. 5. Quanto às M Ps, marque a resposta correta: a) MP pode ser definida como o conjunto de doenças mentais que atingem populações comunitárias, excluindo pacientes hospitalizados ou institucionalizados. b) Os principais fatores determinantes de MP estão relacionados à herança genética. c) Os fatores de risco ditos modificáveis incluem, dentre outros, o estado civil, as comorbidades clínicas e as características culturais. d) Apesar de ser frequente, a depressão pós-AVC somente deverá ser tratada em pacientes com doença psiquiátrica primá. na. e) Não há fatores de risco exclusivos para transtornos psicóticos.
Referências bibliográficas 1. Andrade L, Caraveo-Anduaga JJ, Berglund P, Bijl RV, De GraafR, Vollebergh W, et ai. The epidemiology of major depressive episodes. Int J
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13 FATORES DE RISCO E PROTEÇÃO PARA MORBIDADE PSIQUIÁTRICA
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 2
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Desenvolvimento Cerebral nas Diversas Fases da Vida Marcelo Q. Hoexter Euripedes Constantino Miguel Andrea P. Jackowski Guilherme Vanoni Polan czyk
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 154 Neurodesenvolvimento cerebral normal, 154 O desenvolvimento celular do sistema nervoso central: da
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
concepção à idade adulta, 154 Maturação cerebral: trajetórias de desenvolvimento cortical, 155 Maturação cerebral e citoarquitetura cortical, 156 Maturação cerebral e evolução, 158 Diferenças na maturação cerebral entre gêneros, 159 Maturação cerebral e puberdade, 159 Influências genéticas e ambientais no desenvolvimento cerebral, 159 Neurodesenvolvimento atípico, 160 Autismo, 160 Esquizofrenia de início precoce, 160 Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, 161 Considerações finais, 161 Questões, 162 Referências bibliográficas, 162
Introdução A investigação da maturação cerebral ao longo da vida, desde a concepção até a idade adulta, tem sido um importante passo para o entendimento das alterações emocionais e comportamentais que ocorrem durante o desenvolvimento normal e patológico. A observação de que muitos transtornos psiquiátricos se iniciam na infância ou adolescência tem amparado a concepção de que os transtornos psiquiátricos são transtornos do neurodesenvolvimenta. Graças à evolução das técnicas de neuroimagem e da possibilidade de analisar amostras mais representativas, pôde-se estudar o perfil de maturação de estruturas e circuitos cerebrais de maneira muito mais detalhada. Por intermédio dessas técnicas, hoje é possível mensurar longitudinalmente mudanças em tempo, velocidade, magnitude e trajetória da maturação cerebral.
1. Entender as alterações emocionais e comportamentais que ocorrem durante o desenvolvimento normal e patológico pela investigação do processo de maturação cerebral. 2. Conhecer o que mostram estudos longitudinais com exames de ressonância magnética seriados. 3. Conhecer detalhes sobre o desenvolvimento de indivíduos com autismo, com esquizofrenia de início precoce ou com transtorno de déficit de atenção/hiperatividade.
Neste capítulo, procuramos descrever as principais mudanças estruturais que ocorrem no cérebro de indivíduos normais desde a sua concepção até a idade adulta, tendo como referência estudos de neuroimagem estrutural realizados com ressonância magnética (RM) de crânio. Na primeira parte deste capítulo, abordaremos o neurodesenvolvimento cerebral normal a partir das seguintes perspectivas: maturação celular, maturação de estruturas cerebrais, diferenças estruturais entre gêneros, neurodesenvolvimento cerebral e evolução. Na segunda parte, exploraremos brevemente as evidências que dão suporte ao modelo de que os transtornos psiquiátricos são transtornos do neurodesenvolvimento, destacando as trajetórias atípicas de desenvolvimento cerebral observadas no autismo, na esquizofrenia e no transtorno de déficit de atenção/hiperatividade. Finalmente, na terceira parte do capítulo, discutiremos as limitações e perspectivas futuras a respeito desse tipo de estudo.
Neurodesenvolvimento cerebral normal O desenvolvimento celular do sistema nervoso central: da concepção à idade adulta O sistema nervoso central começa a se desenvolver no feto humano a partir da neurulação, ou formação do
14 DESENVOLVIMENTO CEREBRAL NAS DIVERSAS FASES DA VIDA
tubo neural, que ocorre na segunda semana após a concepção 1. Por volta da quinta semana, o tubo neural originário da ectoderme, fecha-se completamente, dando início ao processo de diferenciação e proliferação celular2 • O aumento no número de neurônios atinge seu pico máximo por volta da 28ª semana de gestação, o que representa quarenta vezes mais neurônios do que o observado em um adulto. Orientadas pelas células da glia por um processo mediado por diversas moléculas de adesão 3, células neuronais migram para formar as diferentes estruturas cerebrais. As células neuronais que nascem na zona ventricular migram radialmente, usando as células da glia como uma espécie de "andaime: nas quais se apoiam e pelas quais são direcionadas, dando origem às células piramidais. Já os interneurônios corticais são gerados na porção ventral do encéfalo embrionário e migram tangencialmente, seguindo feixes de axônios até o córtex. A partir da segunda metade da gestação até os primeiros anos de vida, mecanismos de morte neuronal programada (apoptose) passam a ocorrer. 2 Ao final da gestação, dá-se o aumento significativo da densidade sináptica4 e dendrídica5, que atinge picos de proliferação nos primeiros anos de vida. É interessante notar que o processo de formação de sinapses, ou sinaptogênese, ocorre em tempos diferentes em cada região cerebral; por exemplo, regiões do córtex primário sensório-motor atingem picos de arborização sináptica mais precocemente do que áreas associativas superiores6. Também ao final da gestação, passa a ocorrer a mielinização axonal, que persiste até o início da idade adulta. Em suma, a formação do córtex cerebral é um processo temporal e espacialmente organizado, caracterizado pela formação de ondas sucessivas de proliferação, migração, diferenciação e morte celular. Neurônios proliferam-se intensamente e migram de forma programada para outras regiões. Praticamente todo o processo de proliferação e migração neuronal ocorre antes do nascimento. Até o final da infância, um intenso processo de arborização sináptica e dendrítica se realiza, sendo acompanhado por mecanismos de poda neuronal. O último processo a ocorrer é a mielinização sináptica, que começa antes do nascimento e se estende até o início da idade adulta. A Figura 1 resume os eventos celulares envolvidos no desenvolvimento do sistema nervoso central no ser humano.
na idade adulta do que na infância7 · 9• A observação da diminuição de substância cinzenta cortical na idade adul ta poderia estar associada: 1) ao intenso processo de mielinização, desde o final da gestação até o início da fase adulta, que englobaria fibras neuronais periféricas antes não mielinizadas, de modo a reduzir a quantidade relativa de substância cinzenta; 2) ao processo intenso de poda sináptica que ocorre entre os 2 e os 16 anos 10 . Em função da limitação de estudos transversais em determinar a trajetória temporal dos acontecimentos, foram realizados es tudos longitudinais com exames de RM seriados. Dentre esses estudos, destacam-se aqueles realizados por investigadores do setor de Psiquiatria da Infância do National Institute of Mental Health (NIMH) nos EUA. O primeiro estudo feito por esse grupo investigou 145 crianças com idades entre 4 e 21 anos, avaliadas com intervalos de aproximadamente dois anos. Os principais resultados obtidos nesse estudo mostraram existir (Figura 2) 11 : 1) aumento linear no volume de substância branca em todas as regiões cerebrais ao longo do desenvolvimento; 2) correlações quadráticas entre o volume de substância c inzenta de diferentes regiões corticais (córtex frontal, parietal e temporal) e idade, isto é, o volume de substância cinzenta dos lobos cerebrais apresenta um desenvolvimento sob a forma de uma curva em U invertida. Mais precisamente, ocorre aumento de substância cinzenta até o início da adolescência, havendo um pico de desenvol vimento aproximado aos 12 anos para o córtex frontal e parietal e pico aos 16 anos para o córtex temporal, seguido por diminuição no volume de substância cinzenta em todas as regiões corticais. Um estudo mais recente, que investigou treze in divíduos por um período de oito a dez anos, demonstrou que a diminuição da espessura cortical se inicia na puberdade e ocorre de maneira não uniforme 12 • A perda de substância cinzenta inicia-se primeiramente em regiões do córtex parietal dorsal (áreas sensório-motoras primárias), expandindo-se rostralmente para áreas do córtex frontal, ventral, e caudalmente para regiões parieto-occipitais e, finalmente, para áreas do córtex temporal associativo (giro temporal superior e inferior). No polo fron -
Nascimento Concepção
Maturação cerebral: trajetórias de desenvolvimento cortical As primeiras investigações a respeito da trajetória do desenvolvimento cortical cerebral foram baseadas em estudos transversais que comparavam medidas de volume cerebral, obtidas através de RM estrutural de crânio, de indivíduos com diferentes idades, da infância até a idade adulta. Esses estudos mostraram que o volume de substância cinzenta em diferentes regiões corticais era menor
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Figura 1 Eventos celulares durante a trajetória de desenvolvimento. Fonte: Marsh R et ai?
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
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22
Idade (a nos)
Trajetórias de crescimento do volume de substância cinzenta e branca ao longo do desenvolvimento. Fonte: Giedd JN, et al.11 •
tal, o córtex pré-frontal dorsolateral é a área que matura mais tardiamente, ao final da adolescência. Portanto, parece existir uma sequência temporal na maturação cortical em que regiões cerebrais relacionadas aos processos sensório-motores primários se desenvolvem antes do que regiões relacionadas a processos associativos superiores, como funções cognitivas. Evolutivamente, parece ser importante que funções primárias básicas como regulação sensorial e motora estejam afinadas para que processos cognitivos mais complexos possam ocorrer na sua plenitude. O perfil não uniforme de maturação cortical pode ser observado no site: http://www.loni. ucla.edu/ ~thompson/ D EVEL/ dynamic.html
Maturação cerebral e citoarquitetura cortical A observação de que o padrão de desenvolvimento cortical não é uniforme sugere que estruturas filogeneticamente mais antigas do córtex cerebral maturam antes do que estruturas mais novas 13 . Entender a citoarquitetura do córtex cerebral e como a maturação ocorre ao longo do neurodesenvolvimento é fundamental para a compreensão funcional desse processo. Estudos histológicos classificam o córtex cerebral humano em alocórtex e isocórtex14. O alocórtex é formado por três camadas celulares mais primitivas e está associado a processos instinti-
vos básicos de preservação, olfação e comportamento emocional. Esses processos instintivos também são compartilhados por vertebrados inferiores. Já o isocórtex, filogeneticamente mais recente, apresenta seis camadas celulares e está envolvido em processos associativos mais complexos, que dão suporte às atividades cognitivas superiores15-17. Existe também um córtex com propriedades celulares intermediárias entre o alo córtex e isocórtex, denominado córtex de transição. Utilizando uma técnica de análise de imagem de RM de crânio que permite mensurar a espessura cortical cerebral, um estudo avaliou longitudinalmente 375 indivíduos entre 3 e 33 anos com o objetivo de investigar a trajetória do desenvolvimento de diferentes tipos de córtex cerebral 13 • A partir da análise de 764 exames realizados ao longo do tempo, observou-se que a trajetória da maturação cortical pode assumir uma forma linear, quadrática ou cúbica de acordo com a citoarquitetura da região cerebral (Figura 3). Regiões que apresentam isocórtex (regiões frontotêmporo -laterais, parietais e occipitais) têm uma trajetória cúbica de neurodesenvolvimento, isto é, a espessura cortical dessas regiões aumenta durante a infância, diminui durante a adolescência e finalmente se estabiliza durante a fase adulta. Por outro lado, sub-regiões da ínsula e córtex do cíngulo anterior apresentam um desenvolvi-
14 DESENVOLVIMENTO CEREBRAL NAS DIVERSAS FASES DA VIDA
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Trajetórias de desenvolvimento de diferentes regiões corticais. Fonte: Shaw P, et al. 13•
mento quadrático em que se observa aumento da espessura cortical na infância, seguido por diminuição na adolescência, sem que exista um período de estabilização nas três primeiras décadas de vida. Já em outras regiões corticais com citoarquitetura mais primitiva (alocórtex), tais como porções do córtex do cíngulo subgenual, do córtex temporal mediai e córtex têmporo-occipital mediai, observa-se diminuição linear na espessura cortical. Áreas do lobo temporal formadas por alocórtex, como o córtex piriforme, apresentam desenvolvimento predominantemente linear. Regiões de isocórtex localizadas no córtex temporal lateral têm uma trajetória cúbica, enquanto áreas de transição, como o córtex entorrinal, apresentam trajetórias quadráticas. A maturação do córtex orbitofrontal segue esse mesmo padrão. Regiões mais anteriores do córtex orbitofrontal, formadas por isocórtex, também apresentam trajetória de desenvolvimento cúbica; ao passo que regiões posteriores, formadas por alocórtex ou cór-
tex intermediário, exibem trajetória de desenvolvimento linear ou quadrática. Esse estudo também detecta variações temporais da trajetória de desenvolvimento das diferentes áreas cerebrais. Regiões de isocórtex, localizadas em áreas sensório-motoras primárias, têm seu pico de desenvolvimento antes das áreas adjacentes secundárias e antes do pico de áreas associativas superiores. Por exemplo, áreas do córtex somestésico atingem o pico de espessura cortical por volta dos 7 anos de idade, seguidas por áreas visuais primárias localizadas no córtex occipital, cujo pico se dá em torno dos 8 anos. Regiões associativas parieto-occipitais atingem pico de maturação ao redor dos 9- 10 anos. No lobo frontal, áreas motoras primárias registram pico ao redor dos 9 anos; em regiões do córtex suplementar motor, o pico de maturação ocorre aos 1O anos e, naquelas relacionadas a funções superiores cognitivas, como o córtex pré-frontal dorsolateral, esse pico é atingido ao r e-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
dor dos 10,5 anos. Em suma, existe uma forte relação entre a trajetória do neurodesenvolvimento estrutural e a citoarquitetura cortical. A existência da relação entre a trajetória do neurodesenvolvimento estrutural e a citoarquitetura cortical parece apoiar-se em mecanismos evolutivos que privilegiam a maturação de regiões estrutural e funcionalmente menos complexas seguida da maturação de regiões associativas superiores. Por exemplo, áreas posteriores do córtex orbitofrontal relacionadas ao sistema emocionallímbico e ao sistema nervoso autonômico apresentam desenvolvimento linear e atingem pico de maturação mais precocemente. É de esperar que áreas como essas, fundamentais para o controle de processos vitais básicos como punição/recompensa e controle homeostático, apresentem desenvolvimento mais precoce. Por outro lado, regiões isocorticais do córtex orbitofrontal, normalmente atreladas a funções cognitivas superiores mais elaboradas, mostram uma trajetória de desenvolvimento mais complexa e a maturação se processa mais tardiamente. A transição entre a infância e o início da adolescência é uma fase particularmente importante para o desenvolvimento de habilidades executivas, como flexibilidade cognitiva, memória de trabalho, planejamento, e coincide exatamente com a maturação do córtex pré-fron tal dorsolateral 18' 19. Ou seja, para que a aquisição adequada de habilidades cognitivas superiores possa ocorrer de maneira efetiva, regiões corticais primárias como o exemplo do córtex visual têm de estar desenvolvidas.
Maturação cerebral e evolução Há cerca de 25 milhões de anos, o ser humano começou a divergir evolutivamente em relação aos primatas não
humanos 20. Muito dessa divergência deveu-se à expansão de estruturas corticais que ocorreu no homem. Atualmente, a superfície cortical do cérebro humano é cerca de dez vezes maior e mais complexa do que a superfície cortical cerebral de macacos21-23 . O padrão não uniforme de desenvolvimento cortical que ocorre no ser humano (após o nascimento até a idade adulta) assemelha-se às mudanças evolutivas que o diferenciam de seus ancestrais24 • Um estudo recente com RM estrutural de crânio avaliou o crescimento da superfície cortical em doze recémnascidos a termo e o comparou ao de doze adultos saudáveis25. Observou-se que o desenvolvimento da superfície cortical após o nascimento até a idade adulta não é uniforme. Embora houvesse aumento da superfície cortical em todas as áreas corticais, algumas regiões dos córtices temporallateral, parietallateral e pré-frontal expandiram-se cerca de quatro vezes desde o nascimento até a idade adulta, enquanto esse aumento foi da ordem de duas vezes para outras regiões localizadas nos córtices occipital media!, temporal media! e insular. Nos recém-nascidos, regiões do córtex temporal lateral (área que tem sua superfície aumentada em quatro vezes) apresentam bem menos invaginações em sua superfície em relação às de adultos. Por outro lado, regiões mediais do córtex temporal pouco diferiram no perfil das invaginações nos dois grupos (Figura 4). Ou seja, as regiões corticais que se expandem mais ao longo do desenvolvimento são as mesmas regiões que sofrem maiores alterações em suas invaginações. É sabido que muitas regiões mediais do cérebro estão associadas ao controle homeostático, enquanto regiões laterais exercem função associativa relacionada a habilidades cognitivas. Os autores também investigaram as áreas corticais humanas que se expandiram evolutivamente em relação às de primatas
Figura 4 Padrões de invaginações da superfície cortical em recém- nascidos e adultos. A- C: regiões do córtex temporal lateral com expansão rápida. D -F: regiões dos córtices temporal e occipital com expansão lenta. Fonte: Hill J, et al.25 . 0/eja imagem colorida no encarte.)
14 DESENVOLVIMENTO CEREBRAL NAS DIVERSAS FASES DA VIDA
não humanos. Os resultados sugerem que regiões dos córtices temporal lateral, parietal e frontal se expandiram muito ao longo da evolução, enquanto regiões dos córtices temporal mediai e occipital pouco se expandiram. É interessante notar que o padrão de expansão cortical observado evolutivamente é extremamente similar ao padrão de desenvolvimento cortical observado após o nascimento no ser humano, ou seja, parece existir uma sobreposição entre o processo de evolução dos humanos e o desenvolvimento desde o nascimento até a idade adulta. As evidências apontam para a hipótese de que regiões corticais que apresentam menor expansão sejam estrutural e funcionalmente mais maduras ao nascimento do que estruturas que se expandem mais. Nos córtices visual e auditivo (regiões que se expandem pouco), a densidade sináptica ao nascimento encontra -se próxima ao pico de desenvolvimento e é cerca de 50 a 100% maior do que a densidade sináptica de áreas corticais que se expandem significativamente, como o caso do giro frontal médio4. Em primatas não humanos, os córtices visual e auditivo apresentam ao nascimento praticamente toda a ramificação dendrítica alcançada ao longo do neurodesenvolvimento, enquanto em regiões pré-frontais e temporais laterais, a densidade dendrítica é cerca de metade da observada na idade adulta26· 27. Em humanos recémnascidos, o consumo de glicose em regiões dos córtices visual e temporal mediai (áreas de "pouca expansão") é de 15 a 25% maior que o consumo de glicose em regiões associativas superiores do córtex pré-frontal dorsolateral (área de "grande expansão") 28 . Sendo assim, regiões corticais de "grande expansão" são mais suscetíveis à influência de eventos ambientais25. Estudos de anatomia comparada mostram que as maiores diferenças corticais entre o cérebro humano e o de outros primatas não humanos encontram-se nas regiões associativas superiores localizadas nos córtices laterais temporal, parietal e frontaF9. Nesse sentido, regiões com "alta expansão" podem ter sofrido uma pressão evolutiva para permanecer imaturas durante a gestação. A imaturidade de certas regiões associativas superiores corticais ao nascimento pode ter as seguintes funções evolutivas: 1) permitir que o ambiente exerça influência sobre o neurodesenvolvimento; 2) economizar fontes de energia na manutenção de regiões que no momento do nascimento não apresentam tanta relevância para a sobrevivência, como é o caso de regiões associadas ao desenvolvimento de habilidades cognitivas; 3) limitar o tamanho do cérebro durante a gestação, de modo a facilitar o parto.
Diferenças na maturação cerebral entre gêneros Estudos de neuroimagem também investigaram a possível diferença entre os gêneros na trajetória do de senvolvimento cerebraP0-32. Parte desse interesse vem da observação de que os homens apresentam melhor desem-
penho em tarefas visuoespaciais33, enquanto as mulheres têm melhor desempenho em tarefas de fluência verbal e de memória30 . Os estudos mostram que a maturação cortical nas mulheres atinge seu pico um a dois anos antes do que nos homens 11 • Além disso, as mulheres parecem ter maior volume de substância cinzenta em regiões fron tais32 e maior espessura cortical de regiões têmporo-parietais31, embora achados divergentes tenham sido encontrados32. Uma possível explicação para as diferenças na maturação cortical estaria relacionada aos efeitos dos diferentes hormônios aos quais meninos e meninas são expostos na puberdade34 .
Maturação cerebral e puberdade A puberdade caracteriza-se por uma série de mudanças comportamentais e físicas decorrentes de uma cascata de alterações hormonais35 . Durante esse período, o cérebro sofre um intenso processo de maturação, caracterizado por mielinização, formação de novas sinapses e ramificações dendríticas, apoptose e expressão de novos receptores 36. Estudos em modelos animais mostram que a exposição a hormônios sexuais produz alterações estruturais cerebrais que se manifestam por uma série de comportamentos de interação social e busca de novidade37· 38 . A constatação recente de que reduções de substância cinzenta na região pré-frontal (região importante para aregulação de processos organizacionais e inibitórios) continuam na fase adulta39 corrobora a conjectura de que alterações emocionais e comportamentais, como impulsividade, na adolescência podem ser reflexo da imaturi dade cerebral, que vai refinar-se com o tempo, proporcionando maior autocontrole e clareza de julgamento.
Influências genéticas e ambientais no desenvolvimento cerebral Os exatos mecanismos neurobiológicos responsáveis pela regulação da maturação cortical ao longo do desenvolvimento não são totalmente entendidos. Uma ampla gama de fatores genéticos, hormonais e ambientais parece estar envolvida nesse processo40-43. Investigações recentes relatam que muitas habilidades cognitivas e traços de personalidade são altamente hereditários 44.45 • Estudos de neuroimagem estrutural realizados com gêmeos sugerem que o volume cerebral total e o volume de algumas estruturas corticais localizadas nos lobos frontal, temporal e parietal superior sofrem influência genética importanté3·46.47• Da mesma forma, polimorfismos identificados no gene da catecol-0 -metiltransferase (COMT) e do transportador de serotonina (SHTT) também influenciam o volume e a espessura de estruturas corticais48.49 . Fatores ambientais também são importantes na determinação de alterações de estruturas corticais46. Inúmeros estudos realizados com modelos animais têm sugeri-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
do que o desenvolvimento cortical pode ser modulado por experiências individuais durante períodos críticos do neurodesenvolvimento 50 - 52 . Estresse durante a puberdade, enriquecimento do ambiente social e de estímulos de aprendizado têm efeitos modulatórios na regulação de estruturas cerebrais4 1•42 .
Neurodesenvolvimento atípico Entender a trajetória típica da maturação cortical ao longo do neurodesenvolvimento tem implicações importantes para a investigação de transtornos psiquiátricos53 -55 . A fisiopatologia desses transtornos pode estar relacionada, em parte, a processos alterados da trajetória de maturação cerebral. A seguir, descreveremos alguns transtornos psiquiátricos que podem ser entendidos como o resultado de alterações no processo de neurodesenvolvimento normal.
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O autismo é considerado um transtorno do neurodesenvolvimento que se associa a uma série de alterações estruturais em diversas regiões cerebrais, incluindo o córtex cerebral. Um dos achados mais consistentes nessa população é o rápido aumento do volume cerebral durante o início da infância, tanto da substância cinzenta quanto da substância branca5\ acompanhado por um período de perda acelerada de substância cinzenta na fase da préadolescência, que estaria relacionada a uma desregulação no mecanismo de poda neuronal (Figura 5) 54•56•57 .
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Perda de substância cinzenta ao longo dos anos em adolescentes sem transtorno mental e em adolescentes portadores de esquizofrenia. A perda de substância cinzenta em regiões dos córtices parietal, suplementar motor, motor e frontal superior ocorre acentuadamente em portadores de esquizofrenia. Fonte: Thompson PM, et ai. 55 • (Veja imagem colorida no encarte.)
Figura 6
14 DESENVOLVIMENTO CEREBRAL NAS DIVERSAS FASES DA VIDA
infância não é um evento comum, porém parece ser clínica e neurobiologicamente semelhante ao de formas mais tardias58 . Estudos longitudinais com RM estrutural de crânio mostram que pacientes com esquizofrenia de início precoce apresentam uma perda de substância cinzenta mais acelerada ao longo do tempo quando comparados a indivíduos normais de mesma idade. A perda de substância cinzenta tem uma evolução progressiva e não uniforme, iniciando-se primeiramente em regiões parietais (áreas relacionadas a processamento visuoespacial e associativo), progredindo anteriormente para os lobos temporais e córtex pré-frontal (Figura 6)55 • O aumento normal na quantidade de substância branca que se inicia no lobo frontal e se expande posteriormente para o lobo parietal não é observado em crianças com esquizofrenia de início precoce59 . Ou seja, crianças com início precoce de sintomas psicóticos apresentam tanto uma aceleração na perda de substância cinzenta no sentido posteroanterior quanto uma alteração no padrão de mielinização da substância branca no sentido anteroposterior.
Transtorno do déficit de atenção e hiperatividade O transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) é a disfunção do neurodesenvolvimento mais comum na infância. Acomete cerca de 5% de crianças com idade escolar60 • Estudos longitudinais de neuroimagem estrutural demonstraram que a sequência de maturação cortical entre crianças com TDAH e com controles normais é basicamente a mesma, em forma de curva em U invertida61 • O que separou os dois grupos foi o tempo em que a maturação cortical aconteceu, isto é, crianças com TDAH apresentaram um atraso no desenvolvimento cortical quando comparadas a controles (Figura 7) 61 • Em média, crianças com desenvolvimento típico tiveram um pico de desenvolvimento cortical ao redor dos
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Figura 7 Trajetória do desenvolvimento da espessura cortical em indivíduos sem transtorno mental e portadores de TDAH. Fonte: Shaw P, et al.6 ' .
7,5 anos, enquanto crianças com TDAH tiveram pico ao redor dos 10,5 anos. Essas diferenças foram mais proeminentes na região do córtex pré-frontal mediai, com cerca de cinco anos de atraso no desenvolvimento em crianças com TDAH em relação aos controles. Em regiões do córtex temporal (giros temporal superior e médio), o pico de crescimento para as crianças com TDAH ocorreu aos 10,6 anos, enquanto para controles normais ocorreu aos 6,8 anos. Entretanto, o córtex motor primário parece atingir seu pico de crescimento mais precocemente nas crianças com TDAH em comparação com as do outro grupo (7 anos versus 7,4 anos). Ou seja, a maturação precoce de regiões primárias motoras associada à maturação tardia de regiões responsáveis por habilidades superiores como controle inibitório cognitivo/motor e funções executivas pode refletir a dificuldade de crianças com esse transtorno em regular funções motoras e cognitivas. O perfil de expansão de diferentes regiões corticais pode ser observado no site: http:/I www.pnas.org/content/104/49/19649/suppl!DCl.
Considerações finais A maturação do cérebro humano, desde o momento da concepção até a idade adulta, é um processo progressivo em complexidade, ordenado temporalmente e não uniforme, que fornece substrato neuroanatômico para o desenvolvimento adequado de funções mentais superiores associadas a habilidades cognitivas, interação social, controle inibitório e motivação. A investigação da magnitude e do tempo em que esse processo acontece pode trazer novas informações para a compreensão dos mais diversos transtornos psiquiátricos. Com o advento dos estudos de neuroimagem realizados longitudinalmente em populações normais e em populações acometidas por transtornos neuropsiquiátricos (como autismo, psicose, TDAH), foram produzidas muitas informações a respeito da trajetória do neurodesenvolvimento. Estudos futuros devem investigar de que forma fatores genéticos, biológicos e ambientais podem influenciar essa trajetó ria. Por exemplo, estudos de neuroimagem longitudinais realizados com gêmeos monozigóticos e dizigóticos podem agregar novas informações a respeito das influências genéticas e não genéticas no perfil de maturação cerebral. Outros estudos longitudinais que investiguem populações com alto risco de desenvolver algum transtorno psiquiátrico podem comparar as diferentes trajetórias de desenvolvimento cerebral daqueles indivíduos que no decorrer do tempo apresentaram o transtorno com as daqueles que estavam em risco mas não ficaram doentes. Mais do que isso, em populações de risco, estudos longitudinais podem investigar os efeitos modulatórios das intervenções precoces no desenvolvimento cerebral. O uso integrado de diferentes métodos de neuroi magem, estruturais e funcionais (ressonância magnética funcional, ressonância magnética estrutural, imagens por
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162
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
tensor de difusão, espectroscopia, magnetoencefalografia), pode facilitar a compreensão dos fenômenos biológicos que ocorrem no cérebro ao longo do neurodesenvolvimento. Estudos translacionais que associem modelos animais, estudos in vivo e post mortem certamente permitirão a melhor compreensão do neurodesenvolvimento típico e atípico, até a sua expressão como doença mental. Por fim, o uso de todo esse arsenal investigativo permitirá o desenvolvimento de marcadores biológicos e preditores mais específicos que possibilitem a detecção e a intervenção precoce dos transtornos mentais e, quem sabe, a prevenção de doenças.
Questões 1. Qual a melhor sequência que descreve temporalmente os even-
a) b) c) d) e)
tos que ocorrem durante o desenvolvimento do sistema nervoso central? proliferação neuronal - migração neuronal - sinaptogênese/ poda neuronal - mielinização sinaptogênese/poda neuronal - proliferação neuronal - migração neuronal - mielinização proliferação neuronal - mielinização - migração neuronal - sinaptogênese/poda neuronal sinaptogênese/poda neuronal - mielinização - proliferação neuronal - migração neuronal proliferação neuronal - mielinização - migração neuronal - sinaptogênese/poda neuronal
2. Qual das alternativas abaixo está correta? a) Diferentes regiões corticais apresentam velocidades de maturação distintas. b) O volume de substância branca diminui durante o desenvolvimento cerebral. c) O volume de substância cinzenta em regiões corticais aumenta após a adolescência. d) O processo de maturação cerebral ocorre na gestação. e) Nenhuma das anteriores. 3. Assinale a alternativa que melhor preenche as lacunas: O é formado por camadas celulares mais primitivas, enquanto o é filogeneticamente mais recente. Regiões cerebrais relacionadas sofrem pico de maturação mais precoce em comparação a regiões cerebrais relacionadas ______ a) alocórtex - isocórtex - ao sistema límbico emocional - a funções cognitivas superiores b) isocórtex - córtex de transição - ao sistema límbico emocional - a fu nções cognitivas superiores c) alocórtex - isocórtex - a funções cognitivas superiores - ao sistema límbico emocional d) isocórtex - alocórtex - a funções cognitivas superiores - ao sistema límbico emocional e) córtex de transição - isocórtex - ao sistema límbico emocional - a fu nções cognitivas superiores
4. Assinale a alternativa errada: a) Os picos de maturação cortical ocorrem mais precocemente em homens do que em mulheres. b) Homens apresentam melhor desempenho em tarefas visuoespaciais, enquanto mulheres têm melhor desempenho em tarefas de fluência verbal e memória. c) O cérebro sofre importante período de maturação cortical durante a puberdade. d) Fatores genéticos, hormonais e ambientais estão envolvidos no processo de maturação cerebral. e) Todas as afirmativas anteriores estão corretas. 5. Assinale a alternativa que melhor associa a trajetória do desenvolvimento atípico ao respectivo transtorno psiquiátrico: I. perda progressiva, não uniforme e acelerada de substância cinzenta ao longo de todo o desenvolvimento. 11. o processo de maturação cerebral ocorre mais tardiamente. 111. rápido aumento do volume de substâncias cinzenta e branca durante a infância, seguido por perda acelerada de substância cinzenta no período da pré-adolescência. a) esquizofrenia de início precoce; TDAH; autismo b) TDAH; autismo; esquizofrenia de início precoce c) autismo; esquizofrenia de início precoce; TDAH d) esquizofrenia de início precoce; autismo; TDAH e) TDAH; esquizofrenia de início precoce; autismo
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14 DESENVOLVIMENTO CEREBRAL NAS DIVERSAS FASES DA VIDA
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Desenvolvimento Cognitivo e Socioemocional nas Diversas Fases da Vida Jônia Lacerda Felício Camila Tarif Ferreira Folquitto Giovanna Kliemann Sca rpari Cristi ana Castanho de Almeida Rocca
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução: histórico das práticas sociais sobre o desenvolvimento humano, 164
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Principais perspectivas teóricas, 166 Desenvolvimento cognitivo: aspectos neuroanatômicos da infância à vida adulta, 167
1. Conhecer os estudos e as teorias clínicas da área do
desenvolvimento cognitivo. 2. Inteirar-se sobre as teori as em psicologia do desenvolvimento.
Desenvolvimento cognitivo, 169 Teoria ambientalista, 169
3. Saber como se caracteriza a maturação cognitiva, o controle
Teoria inatista, 169 Teoria evolucionista, 169 Teoria construtivista, 170
4. Conhecer as teorias psicodinâmicas para o entendimento do
inibitório e a impunidade da infância à vida adulta. desenvolvimento socioemocional.
Teoria sociointeracionista, 174 Desenvolvimento socioemocional: teorias psicodinâmicas, 175 Fase oral: nascimento até cerca de 1 ano de idade, 176 Fase anal: 2 anos até aproximadamente 3 anos de idade, 177 Fase fálico-edipiana: 3 anos até aproximadamente 6 anos de idade, 177 Fase da latência: anos pré-púberes, 178 Fase da adolescência, 178 Genitalidade adulta, 179 Considerações finais, 179 Questões, 179 Referências bibliográficas, 180
Introdução: histórico das práticas sociais sobre o desenvolvimento humano Dos pontos de vista cognitivo, afetivo, emocional e social, o termo desenvolvimento aborda o amadurecimento das pessoas do nascimento à velhice, nos aspectos que marcam a humanização do primata homem. A espécie humana lida com um neonato mais imaturo ao nascimento que os filhotes de outros mamíferos; é um bebê que só completa seus potenciais genéticos caso seus cuidadores
respondam adequadamente à sua condição de dependência absoluta. Nessa lacuna biológica, de uma condição orgânica que se desenvolve no contexto da interação e aprendizagem social e emocional, se fortalece a natureza simbólica e cultural do gênero humano. Assim, para além da biologia, mas sempre em interação com ela, o bebê, a criança, o adolescente e o adulto dependem das relações afetivas e da imersão simbólica junto à coletividade, cultura e linguagem, para que alcancem e exerçam a condição humana, distinguindo -se dos outros animais ' . Entretanto, a história das ideias sobre o desenvolvimenta humano indica que apenas no início do século XIX foram sistematizados estudos de particularidades específicas no ciclo vital, além dos fatos observáveis de imaturidade ou senilidade biológica. Na análise de pinturas e outras obras culturais, Ariês 2 apontou indícios de que o sentimento do que seria a infância, tal como se concebe hoje, com características e necessidades próprias, teria surgido apenas na Modernidade. Do século XII ao século XVII, a primeira idade era o período que se iniciava aos 7 anos, quando a criança era inserida na cadeia produtiva, acompanhando pais e mães em seus ofícios. Antes dessa idade, o ser chamado enfant havia nascido, e ele era dis-
15 DESENVOLVIMENTO COGNITIVO E SOCIOEMOCIONAL NAS DIVERSAS FASES DA VIDA
tinto por não falar ou mal articular a linguagem; seguiase a idade em que se plantam os dentes, um momento de vida sem a racionalidade, como já apontavam Platão e Santo Agostinho. Por isso, a passagem de uma etapa de vida a outra não era algo a se levar em grande conta: na caracterização da imaturidade da criança ou da senilidade da velhice, se raciocinava em torno da comparação com o adulto, este sim o homem pleno, que pensa, raciocina e age. E por não haver percepção social de características próprias às fases não adultas da existência humana, as crianças eram consideradas adultos em miniatura; assim que a prontidão biológica as tornasse minimamente capazes, partilhava-se tudo com elas: tarefas, assuntos e brincadeiras, por mais grosseiras ou sexuais que fossem. Compreendia-se que esse era o percurso necessário para que as crianças amadurecessem e assumissem gradativamente funções e papéis sociais adultos. A perspectiva utilitária da infância nesses séculos correspondeu a momentos de altos índices de mortalidade e a práticas de infanticídio, aceitos com naturalidade, no entendimento de que havia necessidade de se conseguir espécimes melhores, futuros adultos fortes e saudáveis. Segundo Rocha 3, o sentimento de amor materno não existia como hoje é entendido. Ao nascimento, havia o costume de entregar a criança a outras famílias e a amas de leite, que a fortaleciam até o momento em que ela estivesse apta a ser inserida na família e no trabalho. No século XVII houve mudanças significativas na percepção do que era infância e do cuidado a ser ali dispensado, sob a influência de uma cristianização mais profunda dos costumes, que trazia a consciência da imortalidade da alma infantil. As crescentes práticas higienistas e de saúde, a partir do século XIV, eram muito direcio nadas à infância e correspondiam a uma ênfase cultural na figura da criança mística, a criança-anjo, associada ao Menino Jesus, que deveria eliciar ternura e cuidados nas pessoas. A própria família passa a cuidar de seus filhos desde o nascimento, assumindo pelo menos dois padrões de cuidado junto a ela, paparicação e apego. "Paparicação" corresponde à compreensão de uma infância bela e ingênua, incitando uma relação de bichinho de estimação do adulto junto à criança. Os gracejos da criança eram mostrados efusivamente aos amigos, não mais como prova de imaturidade da razão e sim como espelho da inocência. A perda desses amados e protegidos filhos passou a ser vivida como muito dolorosa, enfrentada apenas pela força da resignação religiosa. Filósofos como Montaigne4 (1994) ressentiam-se dessas novas práticas sociais: [... ] não posso conceber essa paixão que faz as pessoas beijarem crianças recém-nascidas, que não têm ainda movimento na alma, nem forma reconhecível no corpo pela qual se possam tornar amáveis, e nunca permiti de boa vontade que elas fossem alimentadas na minha frente [... )2.
As posturas sociais do "apego" surgem a partir do século XVII, como reação contra a "paparicação", separando a criança do adulto em dispositivos de educação cada vez mais formais e severos, como forma de fortalecer nelas as competências da racionalidade. O surgimento do homem moderno e as considerações filosóficas do iluminismo, claras na obra de Rousseau 5, já no século XVIII, apontavam que "o homem é bom por natureza. É a sociedade que o corrompe': ou "a única instituição que ainda se constitui natural é a Famílià: traduzindo as novas mentalidades sobre o que de fato seria uma criança. Historiadores mais recentes6 relativizam a análise de Arü~s, que pode ter sido comprometida pelo uso de muitas fontes que se referiam às vivências de famílias abastadas, como o diário de Luís XIII. Registros históricos das classes populares, de acesso mais difícil, mostram diferenças entre as percepções e práticas sociais das crianças pobres em comparação às ricas, especialmente os meninos, enclausurados em intensos estudos empreendidos na intimidade familiar sobre etiqueta, cultura e dotes artísticos. Os pobres filhos de camponeses e artesãos participavam de todas as atividades com os adultos, ora na intimidade familiar compartilhada, ora em praças e outros lugares públicos e coletivos, e eram vistos como livres e sem modos, pois o conceito de pudor e vergonha são valores de maior proximidade histórica com as classes sociais ricas e poderosas. Entretanto, em ambas as situações, não seria cautelosa a consideração de Aries de que o sentimento de infância seria uma experiência moderna. Tanto crianças pobres quanto ricas seriam atores de uma infância que constituía uma etapa de aprendizagem e socialização pela convivência, de educação e desenvolvimento resultantes do compartilhamento das experiências que nascem dos laços entre crianças e adultos. Contudo, ainda são os estudos precursores de Aries que amparam o entendimento de que a mentalidade da moderna sociedade ocidental é que fortalece dispositivos sociais como a família nuclear, as instituições escolares e de saúde. Essas estruturas influenciam e são simultaneamente pressionadas pelas concepções, normas e regras que estabelecem os parâmetros de educação e controle social; em certo sentido, o que se estuda em psicologia do desenvolvimento constitui um guia sobre o que é esperado ou não naquela idade, grupo social e momento histórico. Um estudo contemporâneo de psicologia social com a Teoria de Representações Sociais, sobre os significados criados pelos homens para explicar sua inserção no mundo 7 , verificou que, na sociedade brasileira, a infância é associada com brincadeiras, inocência e dependência; a ado lescência com transformações no corpo, crises existenciais e sexualidade; a fase adulta com produtividade, trabalho, estabilidade; e a velhice com sabedoria e experiência. São conformações históricas que dialogam com os estudos em psicologia do desenvolvimento, uma ciência que se sistematiza desde o século XIX, em constantes revisões,
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
na procura do esclarecimento do que constitui afinal os fatores e processos inerentes ao amadurecimento humano. Foi nesse período que se montou na Sorbonne um laboratório de psicofisiologia para o estudo de crianças que demonstravam ter déficits de desenvolvimento, assim como dos processos cognitivos envolvidos na habilidade de se jogar xadrez; em 1905, Alfred Binet e Theodore Simon, membros desse laboratório, estruturaram, a pedido do Estado francês, uma escala de inteligência mental que descrevia as habilidades esperadas em cada idade. No momento atual, o estudo do desenvolvimento aborda, por meio de uma série de perspectivas teóricas, como as pessoas crescem do ponto de vista físico e neurológico; da cognição, incluindo linguagem; ou dos padrões e trocas afetivoemocionais, que também levam em conta o desenvolvimento social e moral, assim como da identidade e do gênero.
Principais perspectivas teóricas A teoria psicanalítica estrutura-se no seio da experiência de Sigmund Freud com a psicoterapia de adultos e enfatiza as identificações e vínculos afetivos que marcam as relações com os cuidadores, especialmente os pais, ao longo das fases do desenvolvimento psicossexual, desde a infância até a genitalidade adulta. É uma teoria sobre as motivações conscientes e inconscientes da experiência emocional e da interação humana, e se fortaleceu nas contribuições posteriores de autores ingleses como Melanie Klein e Donald Winnicott, psicoterapeutas que também analisavam crianças. Atualmente, a contribuição freudiana subsidia pesquisas controladas sobre conceitos como os estilos de apego, concebidos por John Bowlby, e em estudos sobre as relações objetais, que abarcam os fundamentos da tradição da psicanálise inglesa. A abordagem freudiana subsidia a teoria do desenvolvimento psicossocial, elaborada por Erik Erikson, muito influente, constituída na descrição de oito etapas de desenvolvimento, que chegam aos processos emocionais do envelhecimento; tratase de uma abordagem neofreudiana, pois relativiza a ênfase na pulsão sexual como motor dos desenvolvimentos afetivos, focalizando-se na noção de crises egoicas ao longo do ciclo vital. Os parâmetros comportamentais observados a partir do conceito de relações objetais são inusitadamente próximos ao que se observa nas pesquisas científicas sobre cognição social, relacionadas às teorias de aprendizagem social, que provêm da teoria cognitivo-comportamental. Esta é um desdobramento do associacionismo ambientalista de John Watson e Burrhus Skinner, constituído em estudos essencialmente experimentais com pessoas e animais, que delineiam as relações entre respostas comportamentais e eventos ambientais subsequentes, dando lugar a pesquisas sobre a contingência e contiguidade dos estímulos. As teorias comportamentais
trazem um conceito importante para as teorias de desenvolvimento: o desamparo aprendido, que surgiu nas pesquisas de Martin Seligman sobre a exposição a estímulos não contingentes ou incontroláveis, explicando sintomas depressivos. Albert Bandura, o grande autor da teoria cognitivocomportamental, admite que as consequências ambientais determinam a frequência e modalidade de ocorrência dos comportamentos, mas propõe que aspectos da consciência e cognição, na forma de expectativas e crenças, são fundamentais para o valor que esses efeitos têm para o sujeito. Nesse caso, subentende-se um papel menos passivo da pessoa em suas aprendizagens e desenvolvimento, uma problematização epistemológica que acontece também nas diferenças internas das teorias cognitivas, delineadas a partir do construtivismo de Jean Piaget, que estabelece os estágios do conhecimento do mundo desde o primeiro ano de vida. Eles foram observados nas brincadeiras das crianças e são produtos da interação entre as condições proporcionadas pela maturação biológica e a ativa exploração ambiental que é realizada com esse instrumental orgânico. A teoria piagetiana é mais inatista do que a teoria sociointeracionista de Lev Vygotsky, que aponta o caráter estruturante das relações e mediações sociais no desenvolvimento das funções psicológicas superiores, como memória, atenção, percepção e pensamento. Os estágios descritos por Piaget implicam uma maior predeterminação na apropriação intelectiva do mundo; já Vygotsky enfatiza o caráter interpessoal da internalização do conhecimento, que acontece na interação entre os par. ce1ros soc1a1s. A teoria piagetiana dá conta de aspectos do desenvolvimento da consciência moral8 , mas é Lawrence Kohlberg quem sistematiza etapas claras do desenvolvimento moral, em pesquisas realizadas por meio da análise dos comentários das pessoas acerca de histórias com dilemas morais. Ele descreve um nível de moralidade pré-convencional, a partir do primeiro estágio da moral heterônoma, entre 3 e 5 anos, quando a pessoa decide os conflitos em obediência e temor à autoridade, que castigaria a desobediência aos seus preceitos. Entre 5 e 7 anos, haveria uma orientação mais individualista, direcionada a escolha de ações que trariam mais benefícios pessoais; no nível convencional, entre 8 e 11 anos, esperam-se decisões em conformidade com os estereótipos sociais, de procura de aprovação social, e que evoluem, por volta dos 14 anos, ao respeito aos valores que garantiriam a ordem social. O nível pós-convencional, a partir dos 15 anos, aponta orientações morais de teor mais legalista, dos direitos básicos e valores morais preponderantes em relação à procura de bem-estar por grupos particulares; apenas depois desse desenvolvimento seriam observadas orientações de teor plenamente ético, regidas pelas noções universais de justiça, dignidade humana, direitos humanos e igualdade de direitos.
15 DESENVOLVIMENTO COGNITIVO E SOCIOEMOCIONAL NAS DIVERSAS FASES DA VIDA
Quanto ao desenvolvimento das famílias ao longo do ciclo de vida, Carter e McGodrick9 concebem ciclos de vida nos quais famílias e indivíduos passam por etapas evolutivas, exigindo mudanças nas percepções re lacionais e nos padrões de condutas. São seis estágios, estudados em famílias americanas: o primeiro caracterizado pela saída do jovem da casa dos pais, implicando maior independência financeira e responsabilidade emocional relacionadas à maior consistência na capacidade de empreender relacionamentos íntimos. O segundo estágio diz respeito às tarefas vitais envolvidas na formação do novo casal; o terceiro momento é marcado pela aprendizagem do papel parental com o nascimento dos filhos; no quarto estágio, tem-se a necessidade de auto nomia e o início das escolhas vocacionais pelos filhos adolescentes, que exigem uma vivência de autenticidade e diferenciação em relação aos valores parentais. A quinta etapa é a dos filhos adultos, que deixam o lar dos pais; e o sexto estágio trata das famílias enfrentando o declínio fisiológico inerente ao avanço da idade. Cerveny e Berthoud 10 encontram especificidades no ciclo de vida vivenciado por famílias brasileiras, como as que mostram mais envolvimento vital dos jovens casais com as
Quadro I
aquisições sociais necessárias à distinção com a família parental. As grandes vertentes teóricas desse campo, dos psicanalistas que detalham o desenvolvimento afetivo e emocional até a descrição do ciclo de vida na família realizada por terapeutas familiares, estão sistematizadas no Quadro I.
Desenvolvimento cognitivo: aspectos neuroanatômicos da infância à vida adulta A estrutura cerebral é constituída de uma série de interações genéticas e ambientais". Estudos apontam que mudanças estruturais no cérebro coincidem com o de senvolvimento das capacidades cognitivas, processo que envolve tanto uma maior ativação de áreas cerebrais (ou a ativação de novas áreas) como uma diminuição da ativação de outras 12 - 14. As mudanças que ocorrem no cérebro durante o desenvolvimento são resultantes de um longo processo que pode depender das primeiras duas décadas de vida, po, . . . . . rem os pnnctprus processos maturacwna1s ocorrem na vida intrauterina e durante a infância 14.
Teorias em psicologia do desenvolvimento
Teoria
Autores
Contribuições
1. Teoria psicossexual do desenvolvimento emocional
Sigmund Freud (desenvolvimento psicossexual); Melanie Klein e Donald Winnicott (relações objetais); Margareth Mahler (simbiose-individuaçãosepraração); John Bowlby (apego).
Aborda o desenvolvimento da personalidade, da fase oral inicial à genitalidade adulta, segundo uma crescente capacidade de diferenciação da identidade, dos afetos e de outros recursos interpessoais.
2_ Teoria psicossocial do desenvolvimento emocional
Erik Erikson
Descreve oito crises vitais no desenvolvimento psicossocial, etapas que possibilitam aquisições socioemocionais específicas, fortalecendo evolutivamente o ego ou enfraquecendo-o diante das exigências sociais.
3. Teoria construcionista da cognição
Jean Piaget
Aponta quatro diferentes estágios no desenvolvimento cognitivo, segundo as modalidades de apreensão do mundo, ancoradas em pré-condições biológicas.
4. Teoria sociointeracionista da cognição
Lev Vygotsky
Descreve o funcionamento de processos mentais superiores, transformados na interação com mediadores histórico-culturais.
5. Teoria do desenvolvimento moral
Lawrence Kohlberg
Caracteriza três níveis evolutivos de dilemas morais, consciência de regras e normas e quanto ao tipo de razões e motivações levantadas para justificar julgamentos.
6. Teoria da aprendizagem social
Martin Seligman (desamparo aprendido a partir da teoria comportamentalista); Albert Bandura (cognição social e autoeficácia, na teoria comportamental cognitiva).
Relaciona o desenvolvimento à modelagem que se processa na observação e imitação de modelos, até a gradual integração dos comportamentos aprendidos no repertório de respostas do indivíduo.
7. Escalas de desenvolvimento
Arnold Gesell
Detalha as relações entre a maturação neurológica com o desenvolvimento da inteligência, da afetividade e das relações sociais, sistematizando escalas de desenvolvimento que descrevem os comportamentos típicos de cada faixa etária.
8. Teoria do desenvolvimento no ciclo de vida familiar
Betty Carter e Monica Mcgoldrick
Indica que o desenvolvimento do indivíduo na família passa por seis estágios previsíveis, compondo o ciclo de vida familiar.
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VERTENTES DO CONHECIMENTO
Desde a vida intrauterina, o córtex e a substância cinzenta subcortical se desenvolvem por meio de uma sequência de processos, como a proliferação de células, migração e maturação 14. No momento em que uma criança nasce, existem bilhões de neurônios, porém, a maioria das conexões ainda não se desenvolveu. Para que ocorra esse processo, são necessárias estimulações provindas da luz, do som e do contato social. A privação dessas experiências pode fazer com que o cérebro se organize de uma maneira disfuncional. O desenvolvimento esperado envolve períodos sensitivos, em que áreas específicas do cérebro são extremamente responsivas a tipos particulares de experiências 15 . Nos primeiros dois anos de vida, o cérebro atinge 80% do seu peso adulto, período em que há uma superprodução de sinapses 16. É ness momento que se inicia a linguagem, que aos 3 ou 4 anos de idade já está bem desenvolvida e aos 12 anos já está praticamente completa. Concomitantemente, ocorre o desenvolvimento das capacidades motoras: entre 1 e 3 meses de idade o bebê já é capaz de apontar a mão a um objeto para manuseá-lo; entre 8 e 11 meses já realiza o movimento de "preensão em pinçà' 17. Estudos apontam uma relação entre o desenvolvimento motor e o desenvolvimento cognitivo na infância, pois ambos podem envolver as mesmas estruturas cerebrais, como o neocerebelo e o córtex pré-frontal dorsolateral, regiões que amadurecem tardiamente 18,19. Piek et al. encontraram uma relação significativa entre o desenvolvimento da coordenação motora grossa e o de senvolvimento cognitivo, principalmente em funções como velocidade de processamento e memória operacional. Aos 6 anos de idade, o cérebro atinge 95% do seu volume máximo". Esse desenvolvimento revela uma interação de processos simultâneos progressivos (p. ex., sinaptogênese, proliferação de neurônios e mielinização) e regressivos (p. ex., morte celular e poda - eliminação seletiva de conexões neurais desnecessárias) em diferentes regiões, cada uma seguindo diferentes padrões de desenvolvimento12. A sinaptogênese e a apoda primeiramente ocorrem nas áreas sensoriomotoras primárias, em seguida nos polos frontais (envolvidos no processamento do paladar e olfato) e occipitais (córtex visual primário), e posteriormente em áreas destinadas à linguagem. Por último, ocorrem nas áreas de associação superiores (na direção do parietal para o frontal), como o córtex pré-frontal, parietal inferior e giro temporal superior, as quais integram as funções primárias. Filogeneticamente, as áreas mais antigas do cérebro amadurecem anteriormente às áreas mais novas 's, t6,2o. No lobo parietal, o ápice do crescimento de substância cinzenta é atingido aos 7,5 anos nas meninas e aos 9 nos meninos; no lobo frontal, isso ocorre aos 9,5 anos nas meninas e 10,5 nos meninos; no lobo temporal, ocorre
aos 1O anos em meninas e aos 11 em meninos. Em torno dos 10,5 anos nas meninas e 14,5 nos meninos, o cérebro atinge seu volume total'6. Entretanto, esse aumento não representa a maturação dessas regiões cerebrais, pois esse processo só terá início na adolescência. Após os 12 anos de idade, há um declínio no volume da substância cinzenta, ao mesmo tempo em que há um aumento da substância branca durante a infância e a adolescência 13' 21 . Esse declínio na substância cinzenta está relacionado a uma diminuição na espessura cortical na adolescência e a um melhor funcionamento cognitivo22 . O mesmo processo maturacional que ocorre na vida intrauterina, caracterizado por uma grande pro dução de sinapses e posterior eliminação delas, parece continuar com o surgimento da adolescência: há uma perda gradual de algumas sinapses (poda) e o fortalecimento das conexões sinápticas remanescentes 16. Ao mesmo tempo, ocorre a mielinização dos axônios (aumento da substância branca), que permite um aumento na velocidade de processamento das informações 13 e de integração das redes corticais23 . Dessa maneira, algumas regiões cerebrais podem se tornar mais envolvidas em um aspecto da cognição, enquanto outras se tornam menos envolvidas. Ocorre uma mudança de um funcionamento mais difuso para um funcionamento mais focal 12 • O aumento na velocidade de processamento, decorrente do processo de mielinização dos axônios, pode resultar em uma codificação mais rápida e eficaz das informações na memória operacional, de maneira que avelocidade de processamento é um fator preditivo no desenvolvimento da memória operacionaF4. Consequentemente, esse processo auxilia na transição do pensamento concreto para o pensamento abstrato 25 • O córtex pré-frontal é uma das últimas áreas a se desenvolver, principalmente a região dorsolateral 13, e sua maturação está relacionada ao desenvolvimento cognitivo de crianças e adolescentes23 . Ele está associado às funções executivas, que envolvem habilidades linguísticas, raciocínio e a organização de uma sequência de ações direcionadas a uma meta e à tomada de decisões 23'26. A tomada de decisão relacionada às funções executivas "quentes" (que envolvem escolhas de grande valência emocional - motivação e afeto) está relacionada ao crescimento dos sistemas neurais envolvendo o córtex orbitofrontal e se desenvolve rapidamente durante o período pré-escolar. Comparando o desempenho de crianças de 3 e 4 anos em tarefa que mede essa habilidade ( Children's Gambling Task), nota-se que as mais velhas, após várias tentativas, já são capazes de fazer escolhas mais vantajosas quando comparadas às mais novas (ou seja, conseguem adiar a recompensa que trará mais benefícios a longo prazo em detrimento de ganhos imediatos, porém com maiores prejuízos)27. Dessa forma, pode-se dizer que a maturação cognitiva é caracterizada por habilidades como: automonitoramento das ações, sem que elas sejam baseadas em com-
15 DESENVOLVIMENTO COGNITIVO E SOCIOEMOCIONAL NAS DIVERSAS FASES DA VIDA
portamentos inapropriados e impulsivos (controle inibitório); a ação baseada na manutenção e manipulação de informações na mente (memória operacional); e a capacidade de se adaptar rápida e flexivelmente às situações (flexibilidade cognitiva). Todas essas funções são componentes importantes do controle cognitivo e das funções executivas28 . Essas funções amadurecem da metade até o final da adolescência24. O controle inibitório se desenvolve rapidamente entre os 3 e 5 anos de idade. Em uma tarefa de resolução de problemas, crianças mais novas tendem a utilizar mais o controle inibitório quando comparadas às crianças mais velhas, que utilizam uma função significativamente mais desenvolvida: a memória operacional. O motivo pelo qual a criança mais nova depende mais do controle inibitório do que a mais velha pode estar relacionado ao fato de que essa função se desenvolve anteriormente às outras habilidades. Assim, crianças pequenas possuem a habilidade para suprimir respostas inapropriadas quando há demanda do ambiente, mas são bastante suscetíveis à distração e mais impulsivas, pois essa função atinge maior maturidade somente por volta dos 14 anos29. Isso indica que a maturação da capacidade de inibir uma resposta envolve o aperfeiçoamento de uma habilidade que já existe e não a aquisição de novos processos cognitivos24 . O controle inibitório tem um importante papel no desenvolvimento do raciocínio analógico, um processo que envolve a busca da solução de um problema considerando várias alternativas. Diante de um problema, crianças pequenas (6 anos) escolhem uma solução sem antes estabelecer uma análise mais detalhada. Aos 8 anos, já são capazes de despender tempo analisando cada alternativa. Aos 14 anos, já sabem o tipo de resposta que está sendo procurada e inibem respostas competitivas30. O desenvolvimento dos processos de controle inibitório está envolvido no aprendizado cognitivo e social durante a infância e adolescência e em funções sociais e emocionais 13' 26 . A cognição social é um dos componentes-chave do comportamento adaptativo e pode estar relacionada às funções executivas; à inteligência verbal e não verbal e à integridade de substância branca31. O controle inibitório encontra-se prejudicado em diversas patologias, como no transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtorno obsessivo compulsivo (TOC) e síndrome de Tourette. Nesses casos, tal déficit se traduz por dificuldades de inibir pensamentos e comportamentos não apropriados 13 • A impulsividade está relacionada a uma falta de controle inibitório, em que o sujeito é incapaz de suprimir uma resposta em favor de um ganho imediato32 . O controle inibitório e a memória operacional são processos interdependentes, de maneira que o aperfeiçoamento na habilidade de inibir respostas não apropriadas é a companhado pelo desenvolvimento da memória operacional24.
Com relação à memória operacional, crianças muito novas (pré-escolares) possuem a capacidade de manter em mente algumas informações. Com o desenvolvimento, há uma maior capacidade de decodificar precisamente essas informações, indicando um maior progresso e complexidade dessa função, que chega à plena maturação aproximadamente aos 19 anos24,29 . A flexibilidade cognitiva é uma função que atinge a maturação na adolescência. Aos 11 anos, crianças podem se utilizar mais dessa função ao realizar uma tarefa clássica que avalia essa habilidade. Aos 15, utilizam-se não só da flexibilidade cognitiva como da memória operacional; aos 21 anos, utilizam em maior complexidade a memó ria operacional33. Com o desenvolvimento das funções executivas, a idade adulta é caracterizada por planos mais elaborados, tomadas de decisões mais ponderadas, aumento do raciocínio indutivo e dedutivo e maior restrição da impulsividadé6. Para que o desenvolvimento atinja essa maturidade, toda a gama de alterações na estrutura e no desenvolvimento cerebral durante a infância e a adolescência é decorrente de experiências complexas de estimulação, que influenciam o comportamento posterior. A infância é um período crítico para o desenvolvimento cognitivo e so cial, de maneira que vínculos seguros e experiências po sitivas são essenciais para o desenvolvimento cognitivo e emocional 13' 15' 17'34 .
Desenvolvimento cognitivo Teoria ambientalista Segundo os teóricos ambientalistas, como Skinner e Watson, que conduziram o movimento behaviorista, as crianças nascem como tábulas rasas e ao longo do desenvolvimento e são capazes de aprender tudo o que o ambiente pode oferecer via processos de reforço.
Teoria inatista Teóricos como Chomsky são mais claramente inatistas, na crença de que as crianças já nascem com tudo que precisam na sua estrutura biológica para se desenvolver. Nada é aprendido no ambiente, mas apenas disparado por ele.
Teoria evolucionista A perspectiva evolucionista foi influenciada pela teoria de Fodor, o qual postula que o desenvolvimento das características humanas e as variações individuais são decorrentes do produto de uma interação de mecanismos genéticos e ecológicos, envolvendo experiências únicas de cada indivíduo desde antes do nascimento.
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Teoria construtivista Para Piaget35 , existiriam duas questões principais no estudo da psicologia da criança: a questão da realidade (ou seja, a maneira como a partir de sua experiência a criança adquire capacidades que lhe permitem pensar sobre as coisas que a cercam) e o problema da causalidade (isto é, como as crianças buscariam as explicações para o que ocorre no mundo). No conjunto de sua obra, o autor buscou compreender como se dá a aquisição de conhecimento, a maneira como os indivíduos distinguem a realidade externa da interna e as explicações que constroem para entender o mundo. Dessas observações, Piaget elaborou uma teoria que, entre outros aspectos, contempla estágios do desenvolvimento, tendo como foco principal o modo como progressivamente a criança, ao buscar compreender o mundo e as coisas ao seu redor, constrói também capacidades cognitivas e afetivas que possibilitam um avanço em seu desenvolvimento. Assim, o construtivismo, tão associado aos escritos piagetianos, corresponderia a esse mútuo crescimento, a essa interação do indivíduo com o ambiente, que, ao construir conhecimento, acaba descobrindo a si mesmo e desenvolvendo suas capacidades. Fatores do desenvolvimento mental
Para Piaget36, o desenvolvimento psicológico é resultado de construções sucessivas que se integram progressivamente, cada uma prolongando as anteriores. Essas construções obedecem a alguns critérios básicos, como a ordem de sucessão constante dos estágios, apesar de as idades previstas serem médias e variáveis. Assim, o desenvolvimento pode sofrer atrasos ou acelerações; entretanto, a ordem de sucessão dos estágios é necessariamente a mesma. Outro critério fundamental consiste no fato de que cada estágio é caracterizado por uma estrutura conjunta, da qual fazem parte aquisições particulares e fundamentais, que não podem ser conquistadas a não ser nessa estrutura de conjunto, resultante e integrada na estrutura de conjunto precedente e preparatória das estruturas futuras. Existiriam quatro fatores fundamentais para a construção dessas estruturações. O primeiro deles é a maturação do sistema nervoso, que forneceria, biologicamente, as condições necessárias para o desenvolvimento mental. Porém, essas condições não são suficientes, pois é necessário também que as possibilidades dadas pela maturação neurológica possam ser realizadas na experiência. Assim, o segundo fator fundamental seria o papel do exercício e da experiência. Sobre a experiência, o autor diferencia dois tipos: a experiência física e a experiência lógico-matemática. A experiência física diz respeito à ação sobre os objetos, na tentativa de abstrair suas propriedades particulares. Já a experiência lógico -matemática seria a tentativa de agir sobre os objetos, para conhecer as coordenações dos objetos entre si. Nesse caso, o conhecimen-
to é abstraído das relações entre as ações, das transformações que ocorrem a partir da experiência do indivíduo sobre os objetos. Dessa forma, as experiências lógico-matemáticas não surgem pela pressão do mundo físico, mas são resultados das coordenações das ações dos sujeitos sobre os objetos, e representadas no pensamento37 • O terceiro fator fundamental é composto pelas interações sociais no desenvolvimento psicológico do indivíduo, que só serão eficazes se a criança promover uma assimilação ativa delas, o que supõe instrumentos operatórios, cognitivos e afetivos que independem do conteúdo social. Sobre o quarto fator, pode-se pensar que a maturação, a experiência e as interações sociais conduziriam ao modelo de pensamento adulto; entretanto, apesar de haver uma meta fornecida por esse tipo de pensamento, a criança não compreende esse "plano de pensamento" de antemão, antes de haver conquistado capacidades intelectuais para tanto. Então, o quarto fator fundamental é a consideração das dimensões ontogenética e social, que refletem o mecanismo do próprio construtivismo de Piaget. Quando a criança se depara com o real, podem surgir duas diferentes atitudes: a assimilação e a acomodação. A assimilação resultaria do movimento do indivíduo em conhecer o meio externo, do qual não encontraria muita resistência; dessa maneira, o sujeito assimilaria as características externas da maneira como lhe é possível, não realizando um esforço adaptativo. Já quando o meio apresenta algum obstáculo para a pessoa, que assim necessita de uma mudança em seus esquemas cognitivos para poder assimilá-lo, fala-se em acomodação, que implica uma modificação do ponto de vista do indivíduo. No contato com o mundo, por meio da assimilação, as ações e os pensamentos da criança são induzidos a acomodações sucessivas, na medida em que surge alguma mudança externa. Quando ocorre o equilíbrio entre assimilação e acomodação, tem lugar a adaptação. Assim, o desenvolvimento mental apa, - em sua organ1zaçao . . como uma recera, entao, progressiva adaptação sempre mais precisa à realidade38 • Portanto, o equilíbrio é o fator organizador das contribuições feitas pela maturação, a experiência dos objetos e as experiências sociais, e é o processo que possibilita a formação das estruturas responsáveis pelo desenvolvimento psicológico, já que explica a passagem de um patamar de menor equilíbrio para um outro, de equilíbrio maior e melhor37 • É necessário fazer a ressalva de que esses fatores não devem ser considerados como responsáveis apenas pelo desenvolvimento das capacidades intelectuais, visto que, para Piaget, toda conduta é única e pressupõe uma estrutura e uma dinâmica; afetividade e inteligência são, portanto, aspectos irredutíveis e inseparáveis em qualquer ação 39 • Assim, para Piaget38, o desenvolvimento psíquico seria uma constante e dinâmica busca de equilibrações progressivas. É a partir da noção de equilibração como fator
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do desenvolvimento e, depois como modelo explicativo, que o autor constrói sua teoria dos estágios do desenvolvimento. Em todas as idades, os sujeitos são movidos por interesses, que desencadeiam determinadas ações, e pela inteligência, que também participa dessas ações e busca compreendê-las. O que será variável, de acordo com a idade, são as formas de organização da atividade mental, que, com a construção progressiva dos estágios, incorporam as características dos estágios anteriores. Os estágios piagetianos do desenvolvimento cognitivo
Esquematicamente, seria possível apresentar a teo ria piagetiana dos estágios de desenvolvimento como na Tabela I, ressaltando que as idades exibidas representam médias variáveis que podem ser influenciadas pelos fatores de desenvolvimento discutidos anteriormente. Para o recém-nascido, a organização da vida mental baseia-se inicialmente no exercício de atos reflexos e instintivos. O bebê assimila o mundo por meio de suas estruturas reflexas, como o reflexo de sucção, por exemplo. Inicialmente, ele é rígido e restrito ao ato de mamar; entretanto, com o passar do tempo e a prática dessa atividade, o bebê inicia uma generalização, ainda que rudimentar, dessa atividade a outros objetos que não o seio: passa a sugar o vazio ou os seus dedos, quando os encontra por acaso. Por volta dos 3 meses de vida, os exercícios reflexos, por meio de sua prática constante, tornam-se mais flexíveis, constituindo hábitos. A capacidade de preensão permite à criança manipular objetos e constituir atividades coordenadas entre dois movimentos, aparecendo os primeiros "esquemas sensório- motores'~ No decorrerdes se período, denominado por Piaget como sensório-motor, que é subdividido em seis subestágios e estende-se até aproximadamente os 2 anos de idade, as reações circulares vão sendo aprimoradas e incorporam novos objetos, na medida em que a criança adquire a capacidade de coordenar meios para atingir um fim determinado. A organização do mundo pela criança inicialmente se dá a partir de imagens não integradas que aparecem e somem de seu campo visual. Dessa maneira, o bebê não vê a imagem de sua mãe, mas imagens descontínuas e desintegradas de sua mão, seu seio, etc., que não permanecem após desaparecerem do campo visual. Suas percepções são baseadas exclusivamente na sensorialidade e em
Tabela I
Estágios piagetianos do desenvolvimento cognitivo
Estágio do desenvolvimento
Período
Sensório-motor
Nascimento - 2 anos
Pré-operatório
2 a 617 anos
Operatório Operatório concreto
7all/12anos
Operatório formal
A partir dos 12 anos
seus reflexos; na medida em que eles se diferenciam e tornam-se hábitos, abre -se a possibilidade da estabilidade do campo visual, que lhe permite, pela primeira vez, ver os objetos de forma integrada e total. Posteriormente, a criança passará de uma fase de simples reprodução de efeitos interessantes para um momento de experimentação propriamente dita, no qual os primeiros esquemas motores vão sendo testados de diferentes maneiras, a partir da manipulação de objetos. É nesse momento que, para Piaget, surgem os primeiros atos de inteligência prática, pois ainda sem ter uma finalidade previamente determinada, a criança realiza um conjunto de ações na tentativa de conseguir fortuitamente o objetivo esperado. Em seguida, como consequência de sua interação com o meio, ela constrói a noção de permanência dos objetos. As coisas, que anteriormente só existiam quando presentes em seu campo visual, passam a adquirir uma relativa estabilidade, que permite à criança ir à procura desse objeto quando ele desaparece, bem como coordenar dois ou mais esquemas (preensão, sugar, puxar, etc.), para atingir um fim determinado. A partir dessa conquista, a manipulação de objetos se torna mais intensa, e a criança consegue elaborar novas construções de esquemas, passando a procurar os objetos perdidos por conta de seus deslocamentos. No final do estágio sensório-motor, por volta dos 12 a 18 meses, a criança já possui uma conceitualização do espaço e dos objetos que lhe permite diferenciar-se, ainda que rudimentarmente, das pessoas e coisas à sua volta, bem como utilizar-se de seus conhecimentos práticos e da permanência de objeto para manipular coisas e construir esquemas progressivamente mais complexos. As ações da criança são mais intencionais, e ocorre o nascimento dos primeiros atos inteligentes por parte da criança, pois eles se constituem a partir de imagens mentais que se conservam e são o prenúncio de todo desenvolvimento mental posterior. A partir dos dois anos, aproximadamente, a criança exercita a capacidade de diferenciar os significantes de seus significados (função simbólica ou semiótica), e consequentemente de evocar, em pensamento, objetos ausentes do campo perceptivo. A função simbólica é um marco no desenvolvimento da criança, permitindo a interiorização e a estabilidade do pensamento, o aparecimento da linguagem para comunicar o pensamento e o desenvolvimento da socialização. Inicia-se, portanto, o período pré-operatório. Inicialmente, a função simbólica ainda é associada aos processos imitativos, como um prolongamento da atividade sensório-motora. Com o aprimoramento dos processos representativos, surge o jogo simbólico, quando, contrariamente aos processos imitativos nos quais a acomodação é predominante, ocorre um predomínio da assimilação, que transforma o real de acordo com a vontade da criança. Como seu pensamento ainda não é reversível nem necessita de comprovações na realidade, a
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criança possui um egocentrismo inicial que não lhe permite coordenar ainda seus pontos de vista com os dos outros; assim, nesse período, ocorre um início da socialização da criança no plano das ações, ainda que seu pensamento não seja necessariamente socializável. Desenvolvem-se os sentimentos interindividuais e, ao mesmo tempo, começarão os sentimentos morais que constituirão progressivamente os sentimentos normativos e as escalas de valores. As transformações de pensamento que ocorrem nessa fase podem ser subdivididas em dois momentos princ1pa1s: o pensamento egocentnco e o pensamento mtmtlvo. Para Piaget, quando ocorre a passagem de um período a outro, é comum ocorrer um retorno a um "estado egocêntrico", no sentido de que o indivíduo estaria mais voltado para si mesmo do que para as coisas ao seu redor, por não conseguir, naquele momento, compreender o mundo de outra maneira. Seria um momento no qual a experiência estaria ocorrendo para incorporar verdadeiramente , . . . . . . essas caractenstlcas no SUJeito, para que a mtenonzaçao dessas habilidades ocorra e que ele tenha domínio sobre elas. Assim, no período que vai aproximadamente dos 2 aos 5 anos, a criança possui um pensamento extremamente subjetivo, no qual a deformação da realidade é predominante, e suas crenças não são confrontadas com outros pontos de vista36• Posteriormente, a criança desprende-se do egocentrismo inicial e gradativamente passa a levar em consideração o ponto de vista do outro e as características objetivas das coisas. O pensamento, nesse período, é intuitivo, porque as explicações encontradas pelas crianças são pontuais e não generalizáveis, compreendendo partes e não o todo de um sistema. Assim, a criança faz afirmações sobre a realidade, mas não faz questão de explicá-las ou as explica de maneira parcial, porque seu pensamento, por ainda não ser reversível, não consegue ir além da particularidade das coisas. A partir dos 7 anos, aproximadamente, durante o período operatório, a criança passará a procurar explicações lógicas na realidade. Inicia -se um processo de reflexão que abandona o egocentrismo e leva em consideração o ponto de vista do outro; essa reflexão é menos sugestionável que a do período anterior, e apegada aos dados concretos da realidade. Ocorre um equilíbrio entre a assimilação e a acomodação, e o pensamento, por conta de sua reversibilidade, conservação e estabilidade, se torna operatório, capaz de coordenar internamente pontos de vista, antecipar e regular ações no plano men tal. Inicialmente, a capacidade do pensamento de operar está limitada ao plano concreto: a criança necessita de confirmações concretas e visuais para suas hipóteses. A capacidade operatória permite a generalização do pensarnento para além do plano particular, possibilitando a descoberta de novas relações entre as coisas. É a partir dessa fase que a compreensão do mundo torna-se mais •
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realista, e a construção de noções como a de substância, peso, número, volume e a representação das noções de espaço, tempo e causalidade tornam-se possíveis e mais próximas à realidade. O pensamento operatório, por sua característica an. , . . . tec1patona, permite a cnança prever, em pensamento, as consequências de suas ações, bem como vislumbrar outras possibilidades de ação. Essas capacidades fazem com que o pensamento se torne menos impulsivo e mais planejado, adequando-se às realidades do momento. Por adquirir uma capacidade de coordenar pontos de vista, o pensamento se torna mais flexível e organizado, e no plano moral e afetivo a capacidade de levar em consideração as opiniões e intenções do outro faz com que os preceitos morais se tornem menos rígidos e dependentes da opinião de outrem. Por outro lado, os interesses e as valorizações vão se organizando em escalas de valores mais complexas, de acordo com as preferências da criança39 . No plano da socialização, essas características também são observadas. A criança, após os 7 anos, torna-se capaz de cooperar, em razão de sua capacidade de considerar o ponto de vista do outro. Em brincadeiras coletivas e em jogos de regras, não atuará mais egocentricamente como no período anterior, mas tenderá a respeitar as regras preestabelecidas pela coletividade. Em vez das condutas impulsivas da primeira infância, acompanhadas da crença imediata e do egocentrismo intelectual, a criança, a partir dos 7 a 8 anos, pensa antes de agir, começando assim a conquista desse processo difícil que é a reflexão" 38 • Portanto, a operação seria a conquista definitiva do domínio do pensamento lógico, inicialmente no plano concreto e posteriormente com a diminuição do egocentrismo e a interiorização dessas capacidades. A partir dos 12 anos, surge a possibilidade de pensar as relações operatórias sem depender do plano concreto, desprendendo-se do conteúdo das coisas e pensando as relações do ponto de vista formal. O pensamento operatório formal, característico do estágio que se inicia por volta dos 11 a 12 anos de idade, é hipotético -dedutivo, já que em vez de se limitar a pensar as hipóteses dadas pelo real, parte das possibilidades de pensamento para estruturar os dados percebidos. Há, então, uma inversão de sentido entre o real e o possível: não é mais o real que fornece as possibilidades de pensamento, mas o próprio pensamento que formula infinitas hipóteses de estruturação do real. A lógica do pensamento formal é a lógica proposicional, de todas as combinações possíveis de pensamento. Por ser combinatório, o pensamento formal é um sistema de segunda potência (ou seja, pode-se dizer que no período operatório formal o indivíduo adquire a capacidade de "pensar os próprios pensamentos" 38). O adolescente, então, passa a pensar o mundo de forma mais complexa e ampla, considerando não apenas o
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contexto em que vive, mas a sociedade como um todo. É por conta dessa conquista que, para Piaget, surgem na adolescência pensamentos de tipo revolucionário e a construção de teorias próprias a respeito do mundo. A ampliação dessas capacidades faz com que o adolescente entre em crise, em razão dos desequilíbrios cognitivos e afetivos decorrentes, porém serão essas mesmas capacidades que posteriormente fortalecerão o próprio adolescente, permitindo sua inserção formal na vida adulta e o desenvolvimento de sua personalidade37 . O desenvolvimento das noções espaçotemporais causais na criança
Desde o início do desenvolvimento, as categorias de objeto, de espaço, da causalidade e do tempo estão presentes na apreensão da realidade pela criança, ainda que inicialmente na forma de categorias práticas, relacionadas diretamente à ação, e não como noções de pensamento, como se constituirão posteriormente, quando ocorrer a conquista do pensamento operatório. Essas noções fo ram muito estudadas por Piaget et al. por meio das provas operatórias, um conjunto de experiências que permitiu delinear e situar essas categorias dentro da teoria do desenvolvimento piagetiano, estando estritamente ligadas, no nível representacional, à constituição do pensa, . mento operatono. Em relação à noção de tempo, Piaget40 afirma que ela constitui, juntamente com a noção de espaço, um todo indissociável, sendo a noção de tempo nada mais que a apreensão da coordenação dos movimentos. Na compreensão dos objetos e seus deslocamentos, seria possível fa lar que o espaço é um momento tomado sobre o curso do tempo, que é o espaço em movimento. Assim, as relações temporais não são intuições diretas feitas pelos indivíduos, tampouco meros esquemas intelectuais: o tempo seria a coordenação operatória dos próprios movimentos, em termos de sucessão, simultaneidade e duração. Dessas afirmações, percebe-se que a causalidade é consequência da noção de tempo: as noções causais são a apreensão das coordenações espaçotemporais dos movimentos e acontecimentos. Para testar essa hipótese, uma das experiências feitas por Piaget consistiu em mostrar imagens simples, que compunham uma pequena histó ria, para crianças de diferentes idades, pedindo a elas que seriassem as imagens na ordem de sucessão que julgassem ser a correta. Observou-se que as crianças de até 7 anos compunham histórias sem haver uma temporalidade bem definida: são capazes de ordenar as imagens compondo uma história, porém quando uma dessas era trocada de lugar, não são capazes de criar uma nova história, contemplando as mudanças temporais e causais necessárias. É somente após a conquista do pensamento operatório que a criança será capaz de realizar uma sequência irreversível dos acontecimentos, já que ela supõe a reversibilidade do pensamento37 •
A utilização da teoria piagetiana na compreensão de transtornos no desenvolvimento da criança
Barbel Inhelder, uma das principais colaboradoras dos trabalhos de Piaget, em pesquisa realizada com deficientes mentais ("oligofrênicos"), por meio de provas operatórias, constatou que o raciocínio desses pacientes era, em grande parte, semelhante ao da criança pequena, pré-operatória. Considerando, a partir da teoria de Jean Piaget, que a criança, por meio de suas estruturações mentais e no contato com o ambiente, atribui significado ao mundo à sua volta, abstraindo da experiência relações que lhe permitem adquirir noções adequadas de realidade 41, Ramozzi -Chiarottino 53 elaborou a hipótese de que crianças com dificuldades graves de desenvolvimento e aquisição de conhecimento deveriam ter um déficit em algum elemento ou em determinado momento do desenvolvimento cognitivo. Em diversos trabalhos realizados, estudou crianças que não se encaixavam em uma conceitualização diagnóstica, com dificuldades na linguagem, no contato social ou no aprendizado escolar. Constatou, nos casos estudados, dificuldades relacionadas à não construção das noções espaçotemporais e causais, o que impedia uma representação adequada da realidade, ocasionando um retardo na linguagem e no discurso. Esse déficit na linguagem limitava a comunicação da criança, o que agravava ainda mais o problema das trocas simbólicas com o mundo. A organização do pensamento era caótica, e as imagens mentais eram estáticas, limitadas à ação, e não representadas em conceitos. Folquitto37 estudou as relações entre a constituição do pensamento operatório e os sintomas apresentados por crianças com TDAH (n = 62), tendo como foco principal a construção da noção temporal nessa população e os possíveis efeitos das medicações psicoestimulantes utilizadas para o tratamento no desenvolvimento das noções operatórias nessa população. As crianças participantes da pesquisa tinham idade entre 6 e 12 anos, e foram subdivididas em dois grupos: uma amostra clínica (n = 32) e grupo-controle (n = 30). A amostra clínica foi também dividida entre crianças que faziam uso de metilfenidato e crianças não medicadas, com o intuito de observar se a medicação exerceria alguma influência no desempenho das crianças em provas piagetianas. Os resultados demonstraram haver diferença estatisticamente significativa entre o desempenho das crianças dos diferentes grupos. Crianças com TDAH apresentaram uma tendência a terem suas respostas classificadas em níveis inferiores ao esperado, quando comparadas ao grupo-controle. Em relação ao uso do metilfenidato na amostra clínica, não foi observada diferença significativa entre os grupos. Apesar de necessário no tratamento, o metilfenidato não demonstrou ser suficiente para potencializar o desenvolvimento cognitivo de crianças com TDAH, superando os déficits observados. Esses achados corroboram a hipótese de déficit na aquisição das noções operatórias em crianças com TDAH.
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Dessa maneira, ao diagnosticar e tratar crianças com transtornos psiquiátricos, torna-se imprescindível considerar aspectos presentes nas abordagens teóricas da psicologia do desenvolvimento, como é o caso da teoria de Piaget, já que tais conhecimentos podem ser essenciais na compreensão e na intervenção psicológica em transtornos do desenvolvimento infantil.
o desenvolvimento cognitivo seria o resultado do processo de internalização da interação social com os subsídios provenientes da cultura. A interação entre homem e mundo consiste em uma relação mediada, na qual entre o indivíduo e o mundo existem elementos que auxiliam a atividade humana. Esses elementos de mediação são os signos e os instrumentos.
Teoria sociointeracionista Para Vygotsky, que concebeu a teoria sociointeracionista, os processos de desenvolvimento do ser humano teriam ênfase na dimensão sócio-histórica e na interação do indivíduo com o outro no ambiente social: o indivíduo é um ser ativo e interativo. Ao contrário da abordagem piagetiana, na qual o indivíduo constrói a compreensão do mundo de forma individualizada e guiada pelo que é inato, Vygostky concebia o desenvolvimento cognitivo como sendo dependente das interações interpessoais e ambientais. Assim, o desenvolvimento humano ocorreria pelas trocas na relação interpessoal via processos de interação e mediação. Ele buscava caracterizar os aspectos tipicamente humanos do comportamento e elaborar hipóteses sobre como as características humanas se formam ao longo da história do indivíduo pela sua participação em um contexto social. Sob essa ótica, sua teoria tem raízes na teoria marxista do materialismo dialético, para o qual as mudanças históricas na sociedade e a vida material são fenômenos que produzem mudanças na natureza humana55. Segundo sua perspectiva, o desenvolvimento não precede a socialização, pois são as estruturas e as relações sociais que propiciam o desenvolvimento das funções mentais. Ele enfatiza o papel dos contextos culturais e da linguagem no processo de aprendizagem, explicando que a criança desenvolveria seus aprendizados pelos jogos e pelas brincadeiras, além da própria instrução formal. No brinquedo, a criança projeta-se nas atividades adultas de sua cultura e ensaia seus futuros papéis e valores; aspectos importantes da vida da criança tornam-se tema do jogo. Assim, o brinquedo antecipa o desenvolvimento que só será plenamente atingido na interação ativa com pares de mesma idade, bem como com as pessoas mais velhas. As primeiras relações com a linguagem ocorrem no ambiente familiar, na interação entre seus membros. A linguagem, para Vygotsky, é o instrumento de mediação entre o indivíduo e o contexto social, favorecendo todo o processo de desenvolvimento. Duas funções da linguagem seriam assim descritas: a de intercâmbio social e a de formar o pensamento generalizante, traduzido pela palavra que nomeia um conjunto de significados e organiza o que é real. Isso implica que a internalização dos signos culturais faz com que seja possível desenvolver a capacidade de uma ordem de pensamento mais elevada. Nesse sentido,
Signos e instrumentos - o papel da linguagem para o desenvolvimento
Os signos internalizados são compartilhados pelo grupo social, permitindo o aprimoramento da interação social e a comunicação entre os sujeitos e auxiliando nas ações concretas e nos processos psicológicos (atenção, memória e formação de conceitos). A internalização é relacionada ao recurso da repetição, pelo qual a criança se apropria da fala do outro e a torna sua. As funções psicológicas superiores aparecem, no desenvolvimento da criança, em dois momentos. O primeiro momento é marcado pela interação social e o segundo pela interação individual, em um nível interpsicológico, o que daria o direcionamento do desenvolvimento de um nível social para o individual. A linguagem, na sua fase pré-verbal do desenvolvimento do pensamento e na fase pré-intelectual no seu desenvolvimento, possibilita à criança se apropriar de instrumentos que possam auxiliá-la no planejamento e na solução de tarefas difíceis, controlando e monitorando ' . comportamento. seu propno Em torno do segundo ano de vida, a fala da criança torna-se intelectual e generalizante, adquirindo sua função simbólica. O pensamento torna-se verbal e fica mediado pelos significados fornecidos pela linguagem. É no significado da palavra que a fala e o pensamento se unem em pensamento verbal. Esse processo decorre da inserção da criança no meio cultural, pela sua interação com adultos que têm a linguagem estruturada. O grupo culturalé o responsável por inserir o indivíduo em um ambiente estruturado, no qual os elementos são carregados de significado cultural. O pensamento e a linguagem surgem pela fala social, seguindo para um estágio no qual a fala é egocêntrica, para posteriormente atingir o estágio no qual a fala se torna internalizada e o pensamento reflexivo. Na fala egocêntrica, a criança fala alto para si mesma, independentemente de ter ou não um interlocutor como apoio ao planejamento das atividades a serem seguidas. No entanto, é necessário considerar que nos momentos iniciais do desenvolvimento, a fala do outro é que dirige o comportamento da criança e ela utiliza a fala para também influenciar a ação do outro. Dessa forma, entende-se que durante esse processo a compreensão da mensagem que é transmitida pelo outro leva a criança a fazer uso dessa fala do outro e usá-la para regular a in-
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teração interpessoal. Nesse momento, a fala para si mesma assume uma função autorreguladora e capacita a criança a se tornar capaz de atuar sobre suas próprias ações. O surgimento da fala egocêntrica indica a traj etória da criança pela via de um pensamento que transita primeiro por processos socializados e, em seguida, para os processos internalizados. A linguagem interna (fala interior) é dirigida ao indivíduo e não a um interlocutor externo. Não tem a finalidade de comunicação com outros, constituindo-se como uma espécie de "dialeto pessoal': que se caracteriza por sua forma fragmentada e abreviada. Seu desenvolvimento ocorre mediante um acúmulo de mudanças estruturais que fazem com que as estruturas de fala que a criança domina se tornem as estruturas básicas de seu próprio pensamento, que nasce por meio das palavras na relação da criança com a fala do outro em situações de interlocução. O ser humano se estrutura como ser pela linguagem, e a partir daí se dá o processo de aprendizado, o processo de conhecimento. A conexão entre desenvolvimento e aprendizagem se faz por meio da zona de desenvolvimento proximal, definida como a distância entre os níveis de desenvolvimento potencial (necessidade de receber ajuda para resolver problemas) e nível de desenvolvimento real (soluções para problemas que a criança já é capaz de estabelecer sozinha). Níveis de desenvolvimento real e potencial
Vygotsky descreveu dois níveis de desenvolvimento, o real e o potencial. O desenvolvimento real refere-se ao que a criança consegue fazer por si própria, enquanto o potencial concretiza-se a partir da capacidade de aprender com as outras pessoas. A distância entre o desenvolvimento real e o potencial cria as chamadas zonas de desenvolvimento proximal. A zona de desenvolvimento real compreende fun ções psíquicas já dominadas pelo indivíduo e que podem ser exploradas pelos testes psicológicos (é o conhecimento já adquirido). A zona de desenvolvimento proximal se refere às habilidades nas quais o indivíduo pode ser bem-sucedido se receber auxílio de pessoa mais experiente; são habilidades ainda em desenvolvimento (é o conhecimento que poderá ser adquirido). Sendo assim, no que se refe re à relação entre desenvolvimento e capacidade de aprendiz agem, para Vygotsky, ao contrário de Piaget, o desenvolvimento ocorre por processos de internalização de conceitos propiciados pela aprendizagem social e escolar. Nesse sentido, não é apenas o aparato biológico da espécie que o capacita para realizar uma tarefa. É neces sário que o indivíduo participe de ambientes e práticas específicas que favoreçam e propiciem essa aprendizagem. Na teoria proposta por Vygotsky, a criança é reconhecida como ser pensante, com capacidade para vincular sua ação à representação de mundo constituído pela
cultura. A escola seria um espaço e um período no qual o processo de ensino-aprendizagem envolveria diretamente a interação entre os indivíduos.
Desenvolvimento socioemocional: teorias psicodinâmicas Conforme resenha de Bradley e Westen 42, é irônico que as abordagens psicodinâmicas, de herança psicanalítica, tenham se tornado escassas no meio científico no exato momento em que pesquisas empíricas corroboram alguns de seus mais postulados significativos, como a importância dos processos afetivos e emocionais, de nível consciente ou inconsciente; a primazia dos vínculos primários de apego para os desenvolvimentos patológicos; o papel da personalidade na diástase de muitos transtornos e as funções dos processos relacionais com o terapeuta nas psicoterapias. Assim, conclui o autor, na medida em que essas abordagens levam em conta os domínios da representação e da regulação emocional que subjazem aos relacionamentos interpessoais, distinguem-se das outras teorias pela primazia do raciocínio focado no desenvolvimento quando empreendem estratégias terapêuticas junto aos pacientes. Foi no início do século XX que Sigmund Freud revisou em profundidade a questão da racionalidade humana, a partir de observações retrospectivas em detalhados estudos de caso. Ele demonstrou que tanto em relação à racionalidade consciente quanto em relação à pulsão sexual, entre outras características psicológicas, não se poderia entender que elas estavam presentes no adulto e ausentes na infância, nas deficiências ou na loucura. A abordagem freudiana inaugura um uso definitivo da concepção de fases, mais tarde apropriada pela ciência do desenvolvimento como um todo: todas as características humanas são compreendidas como potencialidades crescentes, sempre presentes ao longo do ciclo de vida, modificando-se gradualmente em ênfases particulares a cada etapa. Para a psicanálise, verifica -se também a primazia das marcas dos primeiros anos de vida para o desenvolvimento da estrutura de uma personalidade mais adaptada, que alcançaria um razoável grau de resolutividade social e satisfação pessoal; a importância das primeiras experiências relacionais é relativizada em pesquisas específicas, mas validada enquanto conceito geral nos estudos controlados43 . Além disso, aponta-se que o desenvolvimento humano requer condições externas e recursos internos suficientemente bons, esse um termo winnicottiano, indicando que as necessidades próprias a cada etapa devem estar presentes em um nível razoável, não pleno, pois tanto o excesso quanto a falta de satisfação criam inibições evolutivas no amadurecimento pessoal. Essa observação está indicada nos conceitos de progressão, relativo a quanto a vivência em uma etapa é influenciada pela qualidade do
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que aconteceu em um momento posterior; de fixação, indicando que uma excessiva gratificação causa resistências na passagem aos processos da fase seguinte; e frustração, decorrente de experiências insuficientes, provocando uma interminável busca de compensações futuras. Considerando uma apresentação teórica que sintetiza ideias tanto de Freud como de Erikson, segue-se com a descrição das principais fases do desenvolvimento socioemocional.
Fase oral: nascimento até cerca de 1 ano de idade Observa-se a pulsão vitallibidinal direcionada à autopreservação, nesse momento mais ligada à situação de alimentação. O nascimento impõe perdas na indiferenciação psíquica característica da vida uterina e determina que a tarefa emocional dessa fase seja a diferenciação do self pelo bebê. Margareth Mahler44 desenvolveu a teoria que trata dessa tarefa de diferenciação oral, destacando pro cessos emocwnrus estruturantes nos tres pnmetros anos de vida da criança. Eles são determinados inicialmente pela dotação genética do bebê, que o impulsiona para o vínculo com o meio ambiente e o capacita a aceitar os cuidados proporcionados pela mãe; e, segundo, a maternagero, relativa à presença de uma mãe que proporcione cuidados de qualidade. Ela descreve a fase autística normal, do nascimento até o primeiro mês, quando o recém-nascido, em dependência vital do cuidador materno, nem se dá conta das próprias necessidades. Do primeiro ao quinto mês, os bebês vivenciam a fase simbiótica normal, de aprendizagens iniciais sobre o mundo e estabelecimento do vínculo interpessoal significativo com suas mães. Estímulos e atenção positiva, além da resposta às necessidades fisiológicas, propiciam bases para a capacidade de vivência prazerosa e confiança emocional nos afetos e vínculos humanos. Dos cinco aos dez meses, acontece a fase de diferenciação, por meio do crescente interesse e experiência com o meio externo, representado tanto pela figura da mãe quanto pelo entorno ambiental. Esses momentos exigem segurança na presença e acesso aos cuidadores, pois a criança empreende tentativas mais ousadas de separação em relação a eles. Dos 1O aos 16 meses, tem-se uma subfase de prática nessa exploração autônoma do ambiente, mas ainda sem capacidade de uma separação mais estendida; dos 16 aos 24 meses, há uma busca ansiosa de reaproximação do bebê em relação à mãe, correspondendo a uma melhor noção do self individual, separado e distinto do cuidador. Dos 24 aos 36 meses ocorre uma consolidação da compreensão de que a separação com os adultos significativos é tolerável, considerando a recém-adquirida capacidade de constância objetai, a noção de que as pessoas continuam a existir quando estão fora da percepção direta. Na fase oral, compreende-se a necessidade de recursos maternos mínimos, indispensáveis ao crescimento da •
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criança, como a capacidade empática de reconhecer e responder às necessidades dos filhos; a capacidade da alteridade, de percepção e aceitação do filho como diferente de suas fantasias e expectativas; e a capacidade de prover proteção e apoio de forma realista, o que inclui restringir a agressividade e destrutividade da criança sem se sentir culpado. Além disso, as características do bebê influenciam nos desenvolvimentos orais, pois eles são diferentes no temperamento ao nascimento nos traços de voracidade e tolerância à frustração. Existem bebês de cuidado "fácil': regulares e tranquilos na vivência de suas necessidades; os "difíceis': de ajuste muito lento a novas rotinas, com reações de protesto vigorosas; e os bebês de "aquecimento lento': mais regulares que os "difíceis", mas que aceitam mudanças depois de algumas estratégias de manejo mais trabalhosas 45. Como se pode imaginar, as mães, por suas próprias características pessoais, identificam-se e respondem melhor a um tipo ou outro de bebê, o que traduz essa noção de que a boa maternagem é relativa não apenas aos recursos maternos, mas às especificidades de cada criança, isso tudo sem adentrar na questão do apoio ambiental como um todo, que permite ou não a dedicação e envolvimento necessários a essa relação inicial entre criança e mãe. O conceito de diferenciação do self também é central na teoria dos vínculos do apego elaborada por Bowen46, tanto com relação aos aspectos intrapsíquicos como interpessoais, pois as pessoas que alcançam uma melhor diferenciação têm mais habilidade de manejar afeto e intelecto. Apego diz respeito à conexão relaciona! envolvida na troca de conforto, cuidado e prazer e é um dos aspectos centrais no desenvolvimento das relações amorosas. Bowen enfatiza que a tendência a formar fortes vínculos emocionais de apego é uma característica humana que emerge no início do desenvolvimento em etapas com características próprias: inicialmente, corresponde à necessidade de manter proximidade; depois, pode-se vivenciar uma tranquilidade paradisíaca na presença da figura de apego, provedor que traz tranquilidade e segurança contra estados de medo e ameaça; a seguir, a figura de apego pode ser vivida como uma base que remete à segurança para a exploração mais livre e ativa do ambiente; e, finalmente, verifica-se uma ansiedade de separação nas etapas em que é possível um distanciamento da pessoa a quem se é apegado. Essas experiências se refletiriam na constituição de estilos de apego presentes ao longo da vida, conforme apresentação das pesquisas na obra clássica de Ainsworth 47• Basicamente, seriam observadas crianças com um padrão seguro de apego, capazes de confiar e vivenciar os cuidadores como uma base segura de apego nos momentos de insegurança e adversidade; por isso, no domínio interpessoal, mostram-se mais calorosas e estáveis do ponto de vista afetivo. Outras crianças teriam apego ansioso, com dois estilos de resposta a isso: o ansioso-evasivo e o ansiosoambivalente. As crianças de comportamento evasivo apa-
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rentam um certo desinteresse e pouca necessidade da presença dos cuidadores, pois na verdade preferem esse distanciamento e uma menor intimidade por insegurança quanto à possibilidade de serem acolhidos e ajudados. As crianças com um estilo ansioso-ambivalente expressam protestos e resistência à separação dos cuidadores de maneira muito dramática, pois percebem o meio como pouco constante em recursos e disponibilidade. Finalmente, vale lembrar que a ênfase nos desenvolvimentos do primeiro ano de vida traz a marca das observações clínicas de Melanie Klein, a psicanalista inglesa que nos anos de 1940 fortaleceu o entendimento de que se deveria utilizar linguagens próprias à infância, como o brincar na psicoterapia com crianças, dando origem ao que hoje é conhecido como ludoterapia. Em relação ao amadurecimento emocional, essa autora antecipou que os primeiros cinco meses de vida correspondem a uma perspectiva relaciona! primária, muito básica, que ela chamou de posição esquizoparanoide. Esse nome traduz o caráter paranoide das ansiedades do início de vida, quando a extrema dependência do bebê implica uma sensação de aniquilamento nos momentos vividos como abandono e separação. As realidades interna e externa frustrantes são experimentadas como completamente falhas e perigosas, e mecanismos de cisão psíquica as mantêm separadas dos momentos pessoais mais seguros e amorosos. Assim, a posição emocional primária, que pode ser marcante ao longo da vida caso não aconteçam outros amadurecimentos, é de extrema intolerância aos aspectos frustrantes da realidade, correspondendo a uma tendência a expectativas implacáveis e irreais diante das pessoas, metas ou coisas, que teriam que ser ideais para serem consideradas boas. O que Klein chamou de posição depressiva corresponde a uma ótica mental mais evoluída, quando a criança pequena gradualmente aprende que o amor sobrevive à imperfeição, habilitando-se à tolerância quanto às falhas dos cuidadores e em relação à suas próprias inconstâncias emocionais, das vivências de raiva e culpa. A expressão "depressiva" denota então o reconhecimento de que a realidade não é ideal, o que traz um importante ganho emocional de conseguir experimentar as dificuldades como tristes, mas não ' . persecutonas.
Fase anal: 2 anos até aproximadamente 3 anos de idade Erik Erikson se refere a essa etapa como a que marca a aquisição de um senso mais tranquilo de responsabilidade pessoal e autossuficiência, relativo ao prazer na própria autonomia, ou, ao contrário, ocasionada por uma experiência vital que incorreu em dúvidas e vergonha persistentes quanto ao próprio valor. Suas observações ampliam o que Freud verificou em sua clínica quanto às personalidades mais rígidas e obsessivas, traumatizadas por histórias difíceis nesse momento do ciclo vital, em que a
criança experimenta maior independência na relação com os cuidadores. De modo geral, verificou-se que no período em que a criança passa a andar, falar e controlar os esfíncteres, ocorre também uma atribuição de valor pessoal e ambiental a essa necessidade de independência e autocontrole; não por outro motivo, da mesma forma em que é marca da fase oral, a aquisição de um sentido de diferenciação do próprio self em relação à realidade externa, a necessidade de controle e o domínio nas relações interpessoais são traços fundamentais das aquisições emocionais da fase anal. A transição entre uma posição anterior, passiva, para outra predominantemente ativa, de autonomia motora e de linguagem, determina em algum grau a qualidade da integração dos aspectos mais assertivos e agressivos da personalidade, na medida em que as atitudes familiares e culturais diante das iniciativas das crianças no aprendizado do controle dos esfíncteres, de lavar as mãos, escovar os dentes, manter-se arrumado, ordenar-se e ser educado trazem tanto prazer quanto angústia. Vale lembrar que, nesse momento, a internalização dos valores éticos ainda depende do meio e da cultura, e caso haja demasiada incoerência nas normas e expectativas ambientais, a criança será vencida por inseguranças quanto ao valor pessoal, sem conseguir determinar se é realmente limpa, correta ou suficientemente educada. Assim, traços de excessiva parcimônia, perfeccionismo, necessidade de limpeza ou controle são paralelos ao prazer em reter a agressividade, e alternam-se com o prazer de expulsar e expelir aspectos mais sádicos da personalidade, denotando a qualidade caracteristicamente ambivalente das experiências afetivas da fase anal.
Fase fálico-edipiana: 3 anos até aproximadamente 6 anos de idade Antes da predominância das aprendizagens sociais mais complexas de escolarização e alfabetização, por volta dos 6 anos, tem-se ao final da primeira infância o desenvolvimento de competências relacionais mais complexas, ditas triangulares, pois implicam a compreensão e tolerância de nuances nas relações na família como um todo (pai, mãe, irmãos), além de transcorrer nos vínculos duais entre criança e o cuidador na fase oral. O que Freud chamava de complexo de Édipo referia-se ao fato de a criança empreender um percurso de amadurecimento emocional e social sob a égide da força de seus afetos dirigidos aos pais. Ela agora se habilita a compreender e responder a esse mundo afetivo intrafamiliar: o significado da distinção sexual entre pais, tios e irmãos; o caráter erótico dos afetos entre pais e namorados; a tolerância aos conflitos por ciúme, competição e rivalidade, emoções que emergem na medida em que ela entende que os afetos não são dirigidos apenas a ela.
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Os processos emocionais edípicos levam ao início da aprendizagem dos padrões de identificação sexual, que são uma busca por soluções não incestuosas aos fortes afetos entre criança e pais. O desafio do desenvolvimento emocional desse período é que essas disputas, ciúmes edipianos e sensação de castração, sejam tranquilizados; caso não sejam, trazem, segundo Erikson, uma persistente culpa e confusão na luta pela identidade pessoal. Situações ambientais mais difíceis incorrem, por exemplo, no risco de superidentificação com o próprio pênis ou com outros aspectos secundários do papel sexual, em reação ao medo de castração e temor à passividade anal; essas pseudossoluções são subjacentes a funcionamentos emocionais aparentemente resolutos e seguros, mas na verdade estereotipados, preconceituosos e reativos a sentimentos de inferioridade e confusão. Nesse sentido, identificações reativas com caracteres sexuais mais concretos remetem ao risco de uma internalização pobre dos aspectos secundários dos papéis sexuais, vivenciados mais como arma para disputa de poder social do que como meios e fins para trocas emocionais genuína, . mente mhmas. As pesquisas detêm-se longamente em análises do impacto do funcionamento e dos modelos familiares no desenvolvimento infantil, já delineado no conceito de complexo de Édipo, que Freud chamava de "o complexo nuclear das neuroses". Esses estudos são prementes, pois, além da constatação da família ser o núcleo de socialização fundamental, depara-se com uma constante evolução das estruturas familiares nas sociedades ocidentais. Assim, estuda-se de forma controlada o impacto das situações gravemente negligentes e abusivas, tanto do ponto de vista moral como físico; a questão dos estilos de disciplina; das habilidades parentais; as consequências no desenvolvimento emocional de se crescer em lares de famílias separadas, reconstituídas ou homoparentais, comparando-as às crianças educadas em famílias de estrutura mais tradicional.
Fase da latência: anos pré- púberes Freud apontou a latência como uma etapa, nos anos pré-puberes, de ensaio sublimatório dos papéis sociais e sexuais aprendidos nos modelos intrafamiliares na fase precedente. Isso é possível em razão de um certo apaziguamento na tensão identificatória que marca a fase fálica. Em geral corresponde então a uma tentativa das crianças em aprofundarem a compreensão do que seria a própria identidade quanto a papéis sociais e de gênero no grupo social ampliado para além da família ("quem eu vou ser quando crescer?"). Por isso, verifica-se aqui uma nítida disponibilidade e competência da criança no investimento em experiências culturais, escolares, de papéis e valores sociais, tentativas essas que devem ser estimuladas como primeiros ensaios do papel e funcionamento no meio social ("você ajuda muito arrumando seu quarto!': "você é mesmo um grande goleiro!"). Esses ensaios de identidade pessoal e pa-
pel social também acontecem em relação ao papel de gênero: os grupos escolares nessa fase tendem a ser monossexuais, de meninos e meninas andando separados, desprezando "coisas de menino/meninà: Esses grupos possuem regras rudimentares da socialização adulta, com diferentes papéis, inclusive de liderança, e embora sejam acolhedores e aconchegantes em muitas situações, podem chegar a uma crueldade que exige o monitoramento por parte de um adulto, como o que se vê na atribuição de apelidos depreciativos, que dizem respeito a processos de pertinência ou exclusão dos grupos.
Fase da adolescência As urgências biológicas, principalmente quanto a libido sexual, implícitas no desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários, tornam impossível o acompanhamento das posições socioemocionais da latência. A adolescência difere do conceito de puberdade, que é relativo ao amadurecimento puramente biológico e des creve como o indivíduo responde social e psiquicamente às mudanças corporais. Erik Erikson48 é o grande autor relativo a esses processos, tendo escrito que a crise de identidade era normal nos adolescentes que ele observava nos movimentos sociais juvenis da cultura ocidental nos anos de 1960. Ele concluiu que o investimento amo roso do filho nos pais e no mundo adulto tem que ser diferente daquele vivido pela criança. Na infância, é estruturante a idealização dos pais, bases de confiança para um enfrentamento menos temeroso de um mundo que a criança não consegue dominar. Contudo, no jovem, essa idealização infantil continuada traz o risco de pouca experimentação, necessária para o autoconhecimento e autenticidade pessoal. Mais que isso, a idealização infantil poderia tornar incestuosos os afetos filiais (ou seja, em certa medida, é a decepção e visão mais realística dos pais que impõe a procura pelos pares geracionais para que o jovem satisfaça, direta ou simbolicamente, as ne cessidades de caráter erótico, típicas desse momento biológico). A passagem de uma visão de mundo mais infantil para outra mais triste, mas também mais produtiva, estaria expressa nos rituais de passagem, presentes em diversas culturas humanas. Assim, em um desenvolvimento saudável, o adolescente vivencia em algum grau uma decepção entristecida, raiz de profundos questionamentos e enfrentamentos junto à autoridade adulta, expressa de forma mais ou menos auto e heterodestrutiva, dependendo das condições e possibilidades socioculturais. Na verdade, essas mudanças são muito difíceis também para os pais e a sociedade, que podem não estar preparados para responder às diferentes posturas junto aos filhos: não se pode abdicar da função parenta!, pois isso aumentaria a sensação de luto da dependência infantil no jovem, mas não há mais como exigir o tipo de submissão à autoridade tal como se con-
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segue junto a uma criança. Por isso, as habilidades parentais de tolerância, orientação e negociação são essenciais nessa etapa. Entretanto, embora os estudos confirmem que a etapa da adolescência traz maior grau de conflito familiar, depressão e comportamentos de risco que em outras fases da vida49 , uma completa rebeldia não é o padrão geral: na verdade, constatou-se que a maioria dos adolescentes que frequentam escola no meio norte-americano partilha opiniões sobre assuntos importantes com os pais e valoriza a aprovação deles 50 • Outros processos emocionais dizem respeito ao papel social e sexual: observa-se uma frequente necessidade de os jovens adotarem grupos de pares de identidade provisória, não mais monossexuais como na latência, mas diferenciados uns dos outros por marcas identitárias bastante rígidas ("patricinha", "nerd", "gótico", entre outras). Alguns desses grupos dizem respeito às descobertas quanto ao próprio corpo e sexualidade e dão ao jovem algumas certezas transitórias, necessárias em meio à desilusão com o mundo adulto; por isso, caso não sejam excessivamente transgressivos, como quando constituem um grupo de compartilhamento para uso abusivo de drogas, podem ser estruturantes até o final da adolescência, quando se espera que aconteça uma relativização nos ritos de adesão. Esse abrandamento acontece no momento em que o jovem adulto direciona suas forças para a configuração de pro jetos mais individuais que grupais. Em relação à sexualidade, considera-se que embora ela faça parte de um processo gradual, que acontece desde os primeiros vínculos de apego oral, passando pelas tentativas identificatórias da fase edipiana, é na adolescência que se verifica uma vivência mais consistente das próprias necessidades e orientação sexual. Esses desenvolvimentos dos aspectos sexuais são fundamentais para a consolidação da identidade, e, como visto, embora te nham base biológica, são definidos no entorno cultural e social. Nesse sentido, pesquisas com gêmeos idênticos não revelam perfeita concordância com relação ao comportamento homossexual, indicando claramente que causas não genéticas estão envolvidas no desenvolvimento sexual. Além disso, é claro que fatores distintos operam nas diferentes pessoas, explicando distinções como a idade em que uma atração homossexual começa a surgir51 •
Genitalidade adulta Freud não se deteve na análise dos processos adolescentes; ele descreveu a genitalidade adulta como um todo, que consistiria na soma e integração dos prazeres e habilidades relacionais parciais das fases precedentes em uma procura e desempenho que traduz uma capacidade efetiva e sublimatória de "amor e trabalho" junto a seus pares. Foi Erikson que descreveu as etapas intermediárias da vida adulta, com respectivas tarefas vitais específicas:
em torno dos 20 anos, a pessoa teria que se habilitar ao estabelecimento de relacionamentos interpessoais próximos e confiáveis, inclusive aqueles que sustentam os papéis ocupacionais; o adulto maduro sentiria uma urgência de investimentos de caráter menos individual, mais intergeracionais, visíveis, por exemplo, nas conquistas no mundo do trabalho e da família. Já o envelhecimento corresponderia à necessidade de elaborar emocionalmente a perda da beleza e integridade juvenil; de adequação às reorientações culturais amplas, pois o entorno apresenta um mundo muito diferente daquele em que se fez as maio res aprendizagens; às mudanças no papel e função ocupacional; e, finalmente, ao enfrentamento de lutos de amigos e parentes. Por isso, Erikson descreve a possibilidade de se adquirir nessa etapa uma sensação de integridade, relativa à sabedoria dos velhos enfatizada em uma série de culturas; caso não se alcance isso, há o risco de se enfrentar uma série de penosas dificuldades emocionais, que provocariam até a regressão no amadurecimento alcançado em fases precedentes, que ele chamou de possibilidade de desespero.
Considerações finais Justificamos essa síntese das posições essenciais dos estudos e teorias clássicas, não detalhando mais extensivamente as descobertas constantes e paulatinas da área do desenvolvimento neurocognitivo, emocional, moral e social, por entender que os autores mais marcantes desse campo cumpriram a função de delinear a qualidade de gradual integração e próxima inter-relação entre os vários domínios da experiência do corpo, psique e sociedade no percurso do amadurecimento humano, servindo de parâmetro confiável para a continuidade dos estudos e das observações desses fenômenos.
Questões 1. É verdadeiro, com relação às perspectivas históricas e teóricas em psicologia do desenvolvimento: a) A história das ideias sobre o desenvolvimento humano ind ica que desde no século XII eram sistematizadas observações de uma série de particularidades no bebê, então chamado enfant e são esses estudos que tiveram continuidade nos levantamentos modernos sobre a infância e outras etapas do ciclo de vida. b) As percepções e práticas sociais sobre as crianças pobres diferiram do que acontecia com crianças ricas. pois essas últimas sempre tiveram meios para aderir às atividades praticadas por adultos. em praças e lugares públ icos. sem todos os pudores impostos aos pobres. c) Os parâmetros comportamentais observados a partir do conceito de relações objetais, da psicanálise inglesa, são opostos ao que se verifica nas pesquisas científicas sobre cognição social, pois elas provêm da teoria cognitivo-comportamental.
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d) A sistematização de Kohlberg sobre as etapas do desenvolvimento moral demonstra que já por volta dos oito anos a criança considera direitos básicos e valores morais de teor plenamente ético. e) Também em relação ao desenvolvimento das famnias ao longo do ciclo de vida, compreende-se que aconteçam ciclos e etapas, embora muitos deles só tenham plena comprovação na observação dos padrões da cultura contemporânea norte. amencana.
2. Com relação ao desenvolvimento cognitivo na infância, podese afirmar que: a) Não existe associação entre o desenvolvimento motor e o desenvolvimento cognitivo, uma vez que ambos envolvem diferentes regiões cerebrais. b) Os principais processos maturacionais também podem ocorrer na vida adulta, uma vez que se deve levar em conta a plasticidade cerebral. c) O córtex pré-frontal é uma das primeiras áreas a se desenvolver. principalmente a região dorsolateral. d) A privação de determinadas experiências na infância pode fazer com que o cérebro se organize de uma maneira disfuncional. e) O ápice do crescimento da substância cinzenta está diretamente relacionado à maturação de diversas reg iões cerebrais. 3. Em relação à teoria de Jean Piaget, pode-se afirmar que: a) Valoriza as características inatas do indivíduo, ao descrever o desenvolvimento humano, afirmando que ele depende exclusivamente das condições orgânicas do sujeito. b) É uma teoria de tipo construtivista, pois para Piaget o desenvolvimento ocorre a partir das construções presentes no ambiente da criança, e alguns ambientes inadequados não permitiriam o seu desenvolvimento. c) Prioriza a cognição, pois em sua teoria dos estágios do desenvolvimento analisa a evolução da inteligência, não mencionando os aspectos afetivos e morais. d) Piaget estudou como era possível ao sujeito conhecer o mundo, elaborando uma teoria do desenvolvimento que pressupõe uma interação entre ambiente e indivíduo, que dessa maneira se desenvolve em seus aspectos afetivos, cognitivos e . mora1s. e) O campo de aplicação prática dessa teoria é o educacional, pois Piaget tinha como objetivo auxiliar os processos de aprendizagem; portanto, não é possível utilizar os conceitos estudados por esse autor para além da educação. 4. Sobre as teorias do desenvolvimento, relacione o conceito a seu pressuposto: I. Teoria ambientalista. 11. Teoria inatista. 111. Teoria evolucionista. IV. Teoria construtivista. V. Teoria sociointeracionista.
a) Pressupõe que as crianças nascem como tábulas rasas e ao longo do desenvolvimento são capazes de aprender tudo o que o ambiente pode oferecer via processos de reforço. b) As crianças já nascem com tudo que precisam na sua estrutura biológica para se desenvolver. Nada é aprendido no ambiente e sim apenas disparado por ele. c) Postula que o desenvolvimento das características humanas e das variações individuais é decorrente do produto de uma interação de mecanismos genéticos e ecológicos, envolvendo experiências únicas de cada indivíduo desde antes do nascimento. d) Essa teoria contempla estágios do desenvolvimento, tendo como foco principal o modo como progressivamente a criança, ao buscar compreender o mundo e as coisas ao seu redor. constrói também capacidades cognitivas e afetivas que possibilitam um avanço em seu desenvolvimento. e) Os processos de desenvolvimento do ser humano teriam ênfase na dimensão sócio-histórica e na interação do sujeito com o outro no ambiente social: o indivíduo é um ser ativo e interativo.
5. Com relação às fases do desenvolvimento socioemocional, considera-se verdadeiro: a) A aquisição de competências emocionais de tolerância à separação temporária e diferenciação do se/f em relação à figura do cuidador são marcas do amadurecimento da fase oral, assim como a necessidade de controle e domínio nas relações interpessoais é uma experiência fundamental à fase anal. b) O complexo de Édipo refere-se às soluções de identificação da criança com seus pais, mas observações sistematizadas da diversidade dos modelos de famnia na modernidade não confirmam essa previsão teórica de que a família seria um foco nuclear dos processos de socialização. c) Os grupos de crianças pré-púberes possuem regras rudimentares de socialização adulta, proporcionando espaço estruturante e acolhedor para a aprendizagem de diferentes papéis, inclusive de liderança, o que torna desnecessário o monitoramento dessas experiências por adultos. d) Pesquisas apontam um seguimento tranquilo no ciclo de vida da maioria dos adolescentes, o que torna a noção de rebeldia adolescente um mito; conflitos familiares acontecem em uma mesma intensidade em qualquer momento do ciclo de vida. e) Em relação à sexualidade, considera-se que ela se desenvolva desde as primeiras experiências prazerosas nos vínculos de apego primário; assim, é exagero dizer que vivências mais consistentes quanto à orientação sexual tendem a se firmar em momentos mais tardios, já na adolescência.
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Desenvolvimento Cognitivo e Psicomotor
Daniel Fuentes Silviane Pinheiro Campos de Andrade Leandro Fernandes Malloy-D iniz Candida Helena Pires de Camargo
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 182 Desenvolvimento cognitivo e psicomotor normal, 182
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Desenvolvimento fetal, 183 Desenvolvimento pós-natal, 183 Algumas condições que alteram o desenvolvimento cognitivo e psicomotor. 184 Desordens cromossômicas e genéticas, 184 Desordens adquiridas no desenvolvimento do cérebro, 185 Desordens devido a anormalidades estruturais do SNC. 186 Desordens associadas a substâncias tóxicas- período pré-natal, 186
1. Inteirar-se sobre o desenvolvimento cognitivo e psicomotor
normal. 2. Conhecer as condições que afetam o desenvolvimento cognitivo e psicomotor (síndromes genéticas, desordens neurológicas, transtornos invasivos do desenvolvimento, transtorno psiquiátricos, etc.). 3. Entender o desenvolvimento das funções cognitivas como atenção, memória e linguagem. 4. Avaliar o desenvolvimento cognitivo e psicomotor.
Transtornos invasivos do desenvolvimento, 186 Transtornos psiquiátricos, 186 Desenvolvimento das funções cognitivas, 187 Atenção, 187 Memória, 187 Linguagem, 188 Avaliação do desenvolvimento cognitivo e psicomotor, 188 Minicaso clínico, 189 Questões, 190 Referências bibliográficas, 190
Introdução O termo cognição refere-se a um conjunto de processos mentais que nos permitem adquirir conhecimentos, registrá-los, relembrá-los e elaborá-los, determinando a nossa forma de interagir com o meio 1• Essa capacidade é determinada por fatores ambientais, sociais, genéticos e biológicos. O bom desenvolvimento cognitivo pressupõe condições adequadas desde a gestação, uma vez que uma má nutrição da mãe ou o uso de substâncias tóxicas afetam a maturação cerebral. Inicialmente, neste capítulo, serão abordados o desenvolvimento cognitivo e psicomotor normal, destacando marcos importantes desse desenvolvimento, e as condições
em que esse desenvolvimento é afetado, destacando síndromes genéticas, desordens neurológicas, doenças congênitas e transtornos invasivos do desenvolvimento. Por fim, será discutido o desenvolvimento de algumas funções cognitivas e como avaliar essas funções, referindo os instrumentos, bem como o processo de avaliação. Será utilizada a abordagem biológico-maturacional para descrever o desenvolvimento cognitivo e psicomotor, sendo esta baseada na neurociência cognitiva, que enfatiza basicamente que o processo da mudança cognitiva ocorre devido à dotação genética e à maturação cerebraF.
Desenvolvimento cognitivo e psicomotor normal A cognição envolve processos mentais que compreendem uma gama de funções como atenção, percepção, linguagem, praxia, memória e funções executivas necessárias para resolução de problemas, capacidade de julgamento, dentre outros. O bom funcionamento dessas fun ções possibilita um desempenho cognitivo adequado e pressupõe um desenvolvimento cerebral normal. Contudo, essas funções não se desenvolvem ao mesmo tempo,
16 DESENVOLVIMENTO COGNITIVO E PSICOMOTOR
considerando que elas têm substratos neurais específicos, sua maturação se correlaciona com o desenvolvimento cerebral e, como este se dá de uma forma posteroanterior, conclui-se que as últimas funções a se desenvolverem são as funções executivas, uma vez que estão localizadas nos lobos frontais. Segundo Toga3, as primeiras áreas a amadurecerem são aquelas relacionadas com as funções mais básicas, tais como áreas sensitivas e motoras. Em seguida, por volta dos 11 a 13 anos, desenvolvem-se as áreas envolvidas na orientação espacial e linguagem (lobos parietais). As áreas com funções mais complexas, que integram informação dos sentidos, do raciocínio e execução (córtex pré-frontal) são as últimas, no final da adolescência. Considerando que desde a condição fetal o cérebro começa a ser formado e, a partir de então, vai se desenvolvendo e amadurecendo, podemos esperar que sua capacidade se amplie a cada novo estágio. Segundo Romanelli4, a noção de maturação nervosa é uma das mais fundamentais para se explicar o processo de aprendizagem. O conhecimento da célula nervosa é essencial para entender o funcionamento do sistema nervoso e seus processos maturacionais, pois os neurônios são dotados de extensa plasticidade e adaptabilidade, o que lhes permite serem os grandes responsáveis pelos sistemas de informação e comunicação dos seres vivos. O desenvolvimento psicomotor é restringido pela maturação das células cerebrais. Como exemplo, considera-se que embora os bebês e as crianças sejam capazes de fazer movimentos complexos, os níveis de coordenação e controle motor fino só serão alcançados após o término da formação da mielina, na adolescência5.
Desenvolvimento fetal O desenvolvimento fetal inicia-se desde o período embrionário, quando por volta da terceira semana já se inicia a formação do tubo neural. Nessa fase, o desen volvimento é muito rápido, porém está sujeito a inúmeras interferências (químicas, mecânicas e infecciosas), pois podem já ocorrer alterações que acarretam distúrbios como anencefalia, mielomeningocele, hidrocefalia, neurofibromatose, esclerose tuberosa, dentre outras. Todos esses distúrbios podem acarretar retardo neuropsicomotor. Por volta da sexta e oitava semanas continuando até a vigésima quinta semana gestacional ocorre a migração neuronal, que é um processo fundamental para a formação do córtex cerebral6 . Interferências nessa fase podem ocasionar retardo mental, epilepsia de difícil controle, alterações motoras, agenesia do corpo caloso, dentre outros7 • No segundo semestre da gestação inicia-se a mielinização, continuando em algumas áreas até a idade adulta, uma vez que o processo de mielinização é específico para cada área cerebral, pois as estruturas que têm função
precoce tendem a se mielinizar primeiro. Dessa forma, os neurônios motores se mielinizam antes das células sensitivas e de uma forma ascendente (caudo-encefálico), de tal forma que as áreas de funções corticais superiores se mielinizam mais tardiamenté. Essa fase é essencial para o funcionamento adequado das fibras nervosas, sendo necessária para a maturação das áreas cerebrais e das vias de intercomunicação e fundamental para o desenvolvimento cognitivo, motor e sensorial.
Desenvolvimento pós-natal No recém-nascido as observações referentes a um desenvolvimento normal por volta do primeiro mês de vida relacionam-se com o tônus e os reflexos, como capacidade de sucção e de busca, resposta tônico -cervical, resposta de preensão palmar e plantar, reação de retirada, de moro e de apoio plantar e marcha. No terceiro mês de vida, o desenvolvimento neuropsicomotor normal pressupõe início do reconhecimento do próprio corpo (jogo das mãos), sustentação da cabeça, sorriso social e manifestação do temperamento (bebês calmos ou agitados). Por volta do quarto e sexto meses observa-se uma fase de hipotonia apendicular, a criança começa a rolar sobre si mesma, transfere objetos de uma mão para outra, senta em tripé e apresenta períodos de sono prolongado. No sétimo e nono meses a criança começa a compreender a permanência de objetos e pessoas, elegem pessoas afetivamente, demonstrando ansiedade frente a pessoas estranhas, maior observação e apreensão dos objetos realizando movimento de "pinçà' com as mãos, além de sentar, engatinhar e ficar de pé com apoio. Por volta do décimo mês ao décimo segundo, a criança é capaz de colocar-se em pé sozinha, desloca-se com apoio, imita brincadeiras, é capaz de colocar um bloco sobre o outro, apresenta linguagem receptiva (entende ordens), fala duas ou três palavras e manifesta traços do temperamento, por vezes apresentando acessos de raiva. No décimo quinto ao décimo oitavo mês a criança já apresenta independência motora, começando a andar e já apresenta aumento do vocabulário para cinco ou dez palavras. Aos três anos a linguagem compreensiva e expressiva já está totalmente adquirida, com enriquecimento do vocabulário, e a criança é capaz de estruturar frases, além do aparecimento do eu, embora a criança faça referência a si mesma ainda em terceira pessoa. Quanto ao desenvolvimento motor, crianças de 2 a 6 anos estão com as habilidades motoras em pleno desenvolvimento, contudo ainda confundem direção, esquema corporal, temporal e espacial. O controle motor refinado ainda não está totalmente estabelecido, embora esteja desenvolvendo-se rapidamente, pois os lobos frontais, regiões responsáveis pelo planejamento, organização das tarefas, inibição de estímulos irrelevantes e pelos processos atencionais do cérebro ainda não estão totalmente mielinizados9 • Na segunda in-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
fância (dos 6 aos 10 anos), as crianças apresentam a preferência manual, contudo, ainda apresentam tempo de reação lento, o que dificulta a coordenação manual' 0 • Na adolescência, o desenvolvimento de habilidades motoras mais complexas é proporcionado pelo aprendizado motor e pela maturação da área pré-frontal associada às experiências da criança5 • Nesta idade, há uma maturação progressiva da região pré-frontal, o que permite melhor planejamento do movimento, permitindo associar de forma consciente dois ou mais movimentos. Essa associação de movimentos planejada no córtex pré-frontal se torna cada vez mais refinada. Embora a mielinização da área pré-frontal ocorra nesta fase, ela não está completa e continua a acontecer durante as próximas fases, até aproximadamente os 18 anos.
causa mais frequente de retardo mental, após a síndrome de Down. É mais frequente em homens do que em mulheres, sendo 1/1.350 do sexo masculino e 1/2.033 casos no sexo feminino. O diagnóstico é feito por exame genético. Apresenta como sintomas comportamentais: hipotonia muscular, maneirismos de mãos, onicofagia precoce, comportamento autista, depressão, isolamento, ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), otites de repetição, hiperatividade, desatenção, impulsividade e raiva incontida, dentre outros. Em relação ao fun-
Quadro 11
Indicadores de risco para o desenvolvimento cognitivo
1° mês Ausência total de sustentação da cabeça Anormalidades nos reflexos primitivos. Ex.: sucção
Algumas condições que alteram o desenvolvimento cognitivo e psicomotor
Sinais oculares anormais
Desordens cromossômicas e genéticas
Alterações no comportamento: a) bebê hipertônico e irritável; b) bebê hipotônico e apático; c) movimentos anormais - tremores I clônus
São geralmente descritas como genéticas, mas são muito diferentes na origem. As desordens herdadas envolvem transmissão genética, são perpetradas por genes ou combinações de genes e são as desordens primárias do metabolismo. Já as desordens cromossômicas ocorrem devido à formação defeituosa do material genético em si mesmo (cariótipo) e resultam numa construção cromossômica anormal e irreversível no embrião, podendo haver a presença de cromossomos extras (trissomia, translocação, deleção de parte do cromossoma). A seguir serão descritas algumas dessas desordens: • Síndrome do X frágil: foi descoberta por Herbert Lubs em 1969, sendo decorrente de uma alteração cromossômica produzida por uma alteração molecular ou uma quebra na cadeia do cromossomo X. É a segunda
Perímetro craniano e fontanelas
3° mês Ausência do "jogo das mãos" e preensão ao contato Estrabismo; sinal do sol poente; nistagmo Falta da dissociação do tônus muscular Hiperexcitabilidade; distúrbio de sono Ausência do reflexo cócleo-palpebral Pobreza afetiva; alteração do comportamento
Rigidez de membros inferiores Persistência de reflexos primitivos Presença de movimentos anormais ou hiperexcitabilidade Persistência do jogo das mãos
Quadro I
Desenvolvimento do sistema nervoso humano
Eventos maiores
Tempo de ocorrência
1) Placa neural
3a SG
2) Indução neuronal 2.1) Indução dorsal (tubo-neural) 2.2) Indução ventral (septações)
3íl a 7a SG 5a a 6a SG
3) Proliferação neuronal
ga a 25a SG
4) Migração neuronal e agregação seletiva
ga a 34a SG
5) Organização neuronal 5.1) Diferenciação neuronal e formação de padrões específicos de conexões 5.2) Morte neuronal e eliminação seletiva de sinapses
6) Mielinização neuronal
Distúrbios de sono; qualidade do choro Indiferença a estranhos; olhar vazio 7º a 9º mês
Rigidez de membros inferiores; atitude anormal de membros superiores, como mãos fechadas; braços fletidos sobre os antebraços Assimetria do tônus Apreensão, quando existe, pode revelar atetose Persistência de reflexos primitivos
10° a 12° mês 5a SG a 4 anos I pós-natal
Reforço dos sinais neurológicos alterados observados anteriormente Ausência de sinergia mãos- pés
2ª SG a 16+ anos I pós- natal 25a SG
Adaptada de Herschkowitz, 1988 11 ; Volpe, 2001 12 ; SG: semanas de gestação.
Brincadeira monótona, perseverante Criança desligada do meio exterior, voltada para si mesma Fonte: Fonseca LF, 2002' 3 .
16 DESENVOLVIMENTO COGNITIVO E PSICOMOTOR
cionamento cognitivo apresenta desde dificuldades de aprendizagem até retardo mental grave, dependendo do número de células afetadas. No caso de apenas 4% de células afetadas, tem-se nível cognitivo normal. Em relação à linguagem apresenta fala rápida, ecolalia, ritmo desordenado, volume alto, uso frequente de frases automáticas. O fenótipo apresenta-se com faces alongadas, orelhas grandes e macroquidia. Quanto ao desempenho cognitivo, observa-se que portadores de X-frágil apresentaram redução significativa na ativação das regiões frontais e parietais durante prova de memória e localizações de objetos, em comparação ao grupo controle, assim como em córtex pré-frontal evidenciado em prova de inibição de respostas automáticas. Esses portadores apresentam fraquezas consistentes nas habilidades atencionais, distraibilidade, habilidades organizacionais prejudicadas e dificuldades em transições 14 . • Síndrome de Turner: desordem relacionada ao cromossomo sexual, ocorrendo no sexo feminino ( cariótipo XO). Apresenta como características pequena estatura, pescoço curto e grosso, linha posterior do cabelo baixa, peito amplo com espaços alargados entre as costelas, curvatura do antebraço estendido, desvio da linha média do corpo, características sexuais pobremente desenvolvidas, disfunção sexual na puberdade e vida adulta, esterilidade. Os achados neuropsicológicos mostram distração, déficits perceptuais (forma e espaço) e desorientação espacial. Quanto ao comportamento apresentam inadequação e dificuldades de interação com o meio ambiente 15 • • Esclerose tuberosa: descrita pela primeira vez porDésiré-Magloire Bourneville em 1880 16, é causada por mutações nos genes TSC1 e TSC2, que codificam respectivamente as proteínas hamartina e tuberina, que agem como supressoras do crescimento de tumores. É uma doença genética rara, multissistêmica que causa tumores benignos que crescem no cérebro e em outros órgãos vitais como rins, coração, olhos, pulmões e pele. Uma combinação de sintomas pode incluir convulsões, atraso no desenvolvimento, problemas de comportamento, anormalidades na pele e doença nos pulmões e rins. • Neurofibromatose: foi descrita pela primeira vez por Wishart em 1822. Refere-se a duas desordens genéticas distintas, a neurofibromatose tipo 1 e a neurofibromatose tipo 2. A neurofibromatose tipo 1 é também conhecida como neurofibromatose de Von Recklinghausen ou neurofibromatose periférica. Os portadores podem ter manchas café com leite na pele e tumores benignos pelo corpo chamados neurofibromas. No bebê com menos de 18 menos há um desenvolvimento atípico com atraso motor. Os achados neuropsicológicos mostram déficits de aprendizagem, prejuízo na percepção visuomotora e na memória, com risco de deficiência intelectual leve. Também apresentam desordens comportamentais, podendo manifestar sintomas de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).
A neurofibromatose tipo 2 é também conhecida como neurofibromatose do neurinoma do acústico bilateral ou neurofibromatose central. Manifesta-se normalmente na fase de jovem adulto (entre 20 e 30 anos). Portadores de neurofibromatose tipo 2 costumam apresentar tumores benignos no nervo auditivo (neurinomas do acústico) podendo levar a surdez por compressão. Ambas provocam a formação de tumores ao redor dos nervos, acarretando macrocefalia, convulsões e dificuldades de aprendizagem até deficiência mental. Os achados neuropsicológicos estão relacionados a déficits correlacionados com a área em que se localiza o tumor 17. • Síndrome de Williams: condição genética rara (1/20.000). Afeta homens e mulheres na mesma proporção. Apresenta uma face característica com nariz pequeno e empinado, cabelo encaracolado, lábios cheios, dentes pequenos e sorriso frequente. As características faciais tornam-se mais proeminentes com a idade. Apresenta alterações médicas como problemas cardíacos, circulatórios, renais, hipercalcemia, baixo peso e baixa estatura. Quanto às manifestações comportamentais observa-se personalidade amigável, grande sociabilidade, entusiasmo exuberante, grande sensibilidade com as emoções alheias e afinidade musical. Quanto ao desempenho cognitivo apresentam habilidades verbais (linguagem receptiva e expressiva) normais, excelente memória para pessoas, nomes e locais, contudo déficits atencional, visuoespaciais, dificuldade em compreensão de conceitos matemáticos e temporais, com prejuízo na capacidade de conservação, seriação e classificação múltipla 18 . • Síndrome de Prader-Willi: descoberta em 1956, tem uma incidência de 1:10.000, é uma alteração no cromossomo 15, sendo responsável por 1% dos casos de retardo mental. Apresenta-se com hipotonia, baixa estatura, dificuldade de aprendizagem e fala, instabilidade emocional e imaturidade na interação social, além de alterações hormonais, levando a um atraso no desenvolvimento sexual. Ao nascerem, os indivíduos afetados apresentam peso normal e temperamento agradável, contudo, na idade pré-escolar passam a ter hiperfagia, tornando se obesos e apresentando comportamento de raiva e agressividade, com presença de autoinjúria repetitiva, como por exemplo, cutucar a pele compulsivamente 19 •
Desordens adquiridas no desenvolvimento do cérebro • Paralisia cerebral: lesão em alguma área cerebral que pode ocorrer durante a gestação, durante o parto ou após o nascimento, podendo ser provocada muitas vezes pela falta de oxigenação no cérebro. Antes do nascimento, as principais causas decorrem da ameaça de aborto, exposição a raios X nos primeiros meses de gravidez, incompatibilidade entre fator Rh dos pais, infecções contraídas pela mãe durante a gravidez (rubéola, sífilis, to -
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VERTENTES DO CONHECIMENTO
xoplasmose), mãe portadora de diabetes ou com toxemia de gravidez, hipertensão da gestante. As principais causas durante o parto são anóxia, trabalho de parto demorado, mau uso do fórceps, manobras obstétricas violentas, bebês prematuros pesando menos de 2 quilos. Após o nascimento, as principais causas são febre prolongada e muito alta, desidratação com perda significativa de líquidos; infecções cerebrais causadas por meningite ou encefalite, falta de oxigênio por afogamento ou outras causas, envenenamento por gás, por chumbo, traumatismo cranioencefálico até os três anos de idade. A paralisia cerebral atinge diversas regiões do cérebro. Dependendo de onde ocorre a lesão e da quantidade de células atingidas, diferentes partes do corpo podem ser afetadas, alterando o tônus muscular, a postura e provocando dificuldades funcionais com movimentos involuntários, alterações do equilíbrio, do caminhar, da fala, da visão, da audição e da expressão facial. Em casos mais graves pode haver comprometimento mentaF0 .
Desordens devido a anormalidades estruturais do SNC São geralmente de origem indeterminada (exceção para talidomida). Resultam do fechamento precoce dos ossos (crânio -estenose) ou fechamento incompleto das membranas do cérebro e da medula espinal (meningoencefalocele - protrusão das meninges e do cérebro e meningomielocele - protrusão do cordão espinhal e suas membranas através de um defeito na coluna vertebral). Distinguem -se pela falta parcial ou completa de desenvolvimento do cérebro (anencefalia); desenvolvimento pequeno (microcefalia, micropoligiria); cabeça muito grande, muitas vezes com hidrocefalia (macrocefalia) em que as dificuldades dependem do tamanho e localização da lesão. Os indivíduos portadores de hidrocefalia apresentam funções intelectuais em nível de retardo leve ou médio-inferior, com baixa concentração, dificuldades visuoespaciais, estereognosia e disgrafia. O comportamento manifesta-se por depressão, agressividade, oscilações de humor e queixas somáticas21 •
Desordens associadas a substâncias tóxicas período pré- natal • Síndrome alcoólica fetal (SAF): constitui um complexo quadro clínico com manifestações diversas decorrentes da exposição da criança ao álcool durante o período da gravidez, causando interferência na proliferação normal e na migração dos neurônios em que certas estruturas cerebrais não se desenvolvem totalmente, acarretando alterações congênitas (cardíacas, esqueléticas, renais, oculares, auditivas, lábio leporino ), anomalias do sistema nervoso central (tamanho do crânio diminuído ao nascimento, anomalias de estruturas do cérebro ou si-
nais neurológicos como má coordenação motora e do movimento dos olhos), retardo de crescimento (baixo peso). Quanto ao desenvolvimento cognitivo e comportamental observa-se retardo da maturação psicomotora e desenvolvimento intelectual diminuído, com dificuldade de aprendizagem, alterações no rendimento escolar, transtornos de conduta, problemas de atenção e de memória e dificuldades em cálculos matemáticos22 •
Transtornos invasivos do desenvolvimento • Autismo: caracteriza-se pela presença da tríade de sintomas: dificuldade na interação social, atraso da linguagem e um repertório restrito de atividades e interesses. A dificuldade de interação é percebida pelo fato da criança não manifestar nenhum interesse em fazer amizades, ter dificuldade de participar de jogos ou brincadeiras, por vezes não perceber a presença de outros, chegando a ignorar outras crianças, ter dificuldade de inferir sobre os sentimentos e necessidades do outro (Teoria da Mente), assim como incapacidade para brincadeiras imaginárias. O prejuízo na comunicação é marcante, podendo haver atraso ou ausência total da fala. Em crianças que chegam a falar, o timbre, a entonação, a velocidade, o ritmo ou a ênfase podem ser anormais, bem como uma dificuldade na compreensão de metáforas e piadas. Em relação ao comportamento, evidenciam-se movimentos estereo tipados, interesse em rotinas e rituais. Apresentam interesses específicos, com presença de hiperfoco para determinados assuntos ou objetos. Dentro do espectro autista, pode-se encontrar nível intelectual preservado até deficiência mental. Os achados neuropsicológicos referem-se a alterações na percepção sensorial, nas funções simbólicas, na atenção e na linguagem, contudo, existe uma variação relacionada com o espectro, se autismo de baixo ou alto funcionamento. Alguns autores, ao pesquisar a atenção de indivíduos autistas constataram a flutuação entre os estados de atenção, com rápidas mudanças de hiper para hipo atenção, quando eles mostram-se extremamente focados respondendo a apenas um tipo de estímulo ambiental, ignorando todos os demais, não conseguindo compartilhar a atenção e deslocá-la para outro lugar. Em relação à linguagem, as crianças autistas de baixo funcionamento não desenvolvem a linguagem comunicativa, mesmo aquelas que aprendem a falar muitas vezes não fazem uso para a interação com o outro, mas sobretudo, utilizam a fala para suas necessidades, como solicitar que alguém pegue um objeto ou ainda, a fala se constitui apenas quando está relacionada com seu foco de interesse23•24 •
Transtornos psiquiátricos • Transtorno de humor depressivo: na infância os sintomas depressivos podem se apresentar de forma clássica, manifestando tristeza, ansiedade, alterações de sono, falta
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16 DESENVOLVIMENTO COGNITIVO E PSICOMOTOR
de apetite, anedonia, dentre outros. Contudo, na maioria das crianças a sintomatologia da depressão é atípica, com prevalência de irritabilidade, agressividade, hiperatividade e rebeldia. A depressão na criança e/ou adolescente pode ter início com perda de interesse pelas atividades que habitualmente eram interessantes, manifestando-se como uma espécie de aborrecimento constante diante dos jogos, brincadeiras, esportes e sair com os amigos, além de apatia, adinamia, perda de confiança em si mesmo, sentimentos de inferioridade e baixa autoestima, ideias de culpa e inutilidade, tendência ao pessimismo e, dependendo da gravidade, ideação suicida. De forma complementar aparece alteração da atenção e da concentração, com diminuição do rendimento acadêmico 25 .
o 2 4 6 8 10 12 14 16 18 20 2224 26 28 3032 3436 38 404244 48 52 11 111
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ALERTA ORIENTAÇÃO ESPACIAL Movimento ocular suave Sacadas oculares rápidas Desengajamento Inibição de retorno
ATENÇÃO PARA OBJETOS Sensibilidade para cor/forma Componentes de cor/forma Mudanças intraestrmulos Dominância do objeto pista
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ATENÇÃO ENDÓGENA Mudanças intraestrmulos Atenção sustentada 11 111
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o 2 4 6 8 10 12 14 16 18 20 2224 26 28 3032 3436 38 404244 48 52 Idade pós-natal (semanas)
Desenvolvimento das funções atencionais na infância. Fonte: Colombo J, 2001 29 .
Figura 1
Desenvolvimento das funções cognitivas
Atenção Considerando que nos 12 primeiros meses de vida as áreas visuais apresentam intenso desenvolvimento, a avaliação da atenção nessa fase envolve a modalidade visuaF6, já que não é possível utilizar instruções verbais e repostas motoras precisas. Para a capacidade atencional de estímulos visuais, estudos têm mostrado três estruturas cerebrais integrantes desse sistema atencional posterior27, sendo uma estrutura responsável pelo engajamento ( colículo superior do tálamo ), outra responsável pela capacidade mudar a atenção de um foco a outro (núcleo pulvinar do tálamo), e ainda uma terceira estrutura (córtex parietal posterior), relacionada com a habilidade de desengajar a atenção de um foco e reorientá-lo para outro alvo 28. Existe um segundo grupo de estruturas cerebrais que formam o sistema atencional anterior que é responsável de recrutar a atenção para uma ação e de detectar estímulos e controlar áreas cerebrais para a realização de tarefas cognitivas complexas. Esse sistema é constituído pelos córtices frontal e cingulado anterior e pelos gânglios da base. A Figura 1 resume o desenvolvimento das funções atencionais na infância.
Memória Considerando as diferentes modalidades de me mória, explicitaremos o desempenho infantil em cada uma delas.
varia de acordo com a idade, sendo para uma criança de dois anos uma média de dois itens, enquanto que aos nove anos é de aproximadamente seis itens31 . Ampliando o conceito de memória de curto prazo, Baddeley32 propôs um modelo dinâmico, em que ocorre a manipulação mental da informação, necessitando de outros componentes que retém e manipulam informações visuo-espaciais e verbais, sendo eles respectivamente: esboço visuo-espacial e a alça fonológica e um sistema executivo central que tem a função de controlar as informações, recuperar conteúdos da memória de longo prazo, manter a atenção e planejar a resposta. A alça fonológica tem por função recapitular subvocalmente a informação verbal para que a mesma se mantenha. Essa capacidade de reverberação inicia-se por volta dos 7 anos 33. Para o funcionamento do esboço visuo -espacial também observa-se a idade de 7 anos como um marco inicial, uma vez que crianças menores têm dificuldade de guardar material visual provavelmente porque não possuem ainda a capacidade de gerar códigos fonológicos para os estímulos visuais 34. Contudo, em tarefas que não necessitam serem convertidas para a forma fonológica, observa-se um aumento no desempenho na amplitude de memória visual entre os 5 e os 11 anos 35 . Embora haja uma limitação de estudos, parece existir um aumento do desempenho com a idade em tarefas complexas de memória de trabalho, o estudo de SiegeP6 indica que existe um aumento regular entre os 6 e os 15 anos de idade. Memória declarativa ou explícita
Memória de curto prazo ou memória de trabalho
A memória de curto prazo é uma capacidade limitada de guardar informações por um curto espaço de tempo. Pode ser medida pela quantidade de caracteres que o indivíduo pode guardar por alguns segundos imediatamente após ter ouvido o estímulo. A amplitude de me mória para dígitos de um adulto é da ordem de aproximadamente 7 + 2 itens30. Essa capacidade na criança
Entende-se por memória declarativa a capacidade de lembrar-se de informações de maneira consciente. Alguns autores referem que a memória de bebês até 1 ano é considerada apenas procedimentaP7 • Sabe-se que a partir dos 3 anos, a criança já possui memória explícita. Em relação à capacidade de recordar informações no longo prazo, observa-se, através de recordação de lista de palavras, que está praticamente inexistente em crianças até 6
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anos de idade, embora haja capacidade de reconhecimento. Isso provavelmente porque até essa idade, a capacidade de utilizar estratégias de memorização ainda é muito precária38 . Memória não declarat iva ou implícita
A tentativa de medir a capacidade de memória implícita em crianças através de tarefas de exposição prévia (priming) apresenta dados inconclusivos, não se observando evolução na sua quantidade39 .
Linguagem A linguagem é uma habilidade inata exclusiva do ser humano. Luria40 refere que a necessidade de comunicação entre os indivíduos envolvidos num processo de trabalho, socialmente dividido, fez surgir, nos primórdios da humanidade, provavelmente, uma linguagem gestual para depois esta ir-se transformando numa linguagem sonora. A criança, com desenvolvimento normal, no primeiro ano de vida já inicia a aquisição da linguagem, uma vez que as estruturas cerebrais para o seu processamento já estão presentes em recém-nascidos e vão amadurecendo com o aumento da mielinização das vias neurais, aumento e fortalecimento das sinapses, bem como maior interação entre as diferentes áreas cerebrais, possibilitando uma complexa rede funcional 41. A linguagem possibilita que a criança amplie o seu mundo, uma vez que pode representar objetos, sensações e percepções através da linguagem, além de intensificar as interações sociais. Durante os primeiros dias de nascido, o bebê se comunica por intermédio do choro e do grito em que predomina a vocalização da letra A, que tem como objetivo exclusivo satisfazer suas necessidades. Por volta dos dois meses já amplia a emissão de sons com a produção de sons vocálicos e consonantais. A partir do quarto ou quinto mês, aparece o balbucio. Nessa fase, os sons já expressam algum sentido e se caracterizam pela repetição de uma mesma sílaba várias vezes seguidas: ba-bá; má-má, bu-bu. O balbucio não é uma verdadeira forma de linguagem, uma vez que não possui o propósito de comunicação, mas uma atividade lúdica. Até aproximadamente o 12° mês de vida, considera-se o período pré-linguístico, sendo este caracterizado por vocalizações incompreensíveis, quando por volta dos nove meses surgem algumas palavras, porém mal formuladas, que dificilmente são compreendidas. Por volta dos 12 meses, há o aparecimento da palavrafrase (holofrase), na qual uma única palavra funciona como uma frase inteira. A criança fala "suco", mas isto pode significar "quero um suco", caracterizando a fala sincrética, em que o comprimento médio de uma emissão é de um morfema. Nesse período em que a criança utiliza as primeiras palavras, ela ainda não consegue estabelecer uma correspondência com os objetos, de tal
forma que sua compreensão está relacionada aos ges tos, à entonação e ao contexto em que a palavra é falada. Apenas por volta dos 15 a 18 meses, a criança passa a fazer a referência objetai, quando passa a designar nomes para os objetos e pessoas mais familiares. É importante observar que a criança, ao utilizar suas primeiras palavras, ou ao compreender as primeiras ordens, ainda não possui uma referência objetai, ou seja, uma relação exata entre a palavra e o objeto. O significado da palavra pode depender da situação em que se encontra a criança ou de quem pronuncia as palavras. Por exemplo, algumas crianças pequenas só entendem o que a mãe diz com determinados gestos e entonações. Assim, tanto a palavra dita pela criança ou ouvida, de início, não possuem uma referência objetai estável, pois a palavra ainda não se separa dos gestos, das entonações, das ações. Gradativamente, a referência objetai vai se desenvolvendo. Nesse período inicia-se o surgimento de frases com duas palavras, mesmo que não se utilizem estruturas gramaticais como artigos, conjunções, verbos, caracterizando a fala telegráfica, por exemplo, "mamãe, água': que significa "mamãe, quero água 11 . Aos dois anos, começam a aparecer elementos gramaticais, a criança já faz uso dos pronomes pessoais na primeira pessoa e já é capaz de fazer perguntas do tipo "cadê o papai?". A partir daí a linguagem vai tornando-se mais complexa com a produção de sentenças simples, depois sentenças complexas, em que a criança desdobrará a frase simples em períodos compostos por coordenação e, mais tarde, utilizará subordinações 13 •
Avaliação do desenvolvimento cognitivo e psicomotor A avaliação do funcionamento cognitivo infantil é um tipo de avaliação complexa, em que se devem contemplar as diversas esferas cognitivas, tais como nível intelectual, memória, atenção, linguagem, percepção, visuo-construção e funções executivas. Esse tipo de avaliação requer por parte do examinador conhecimento em psicologia do desenvolvimento, psicopatologia, psicometria, neuropsicologia, dentre outras áreas. A avaliação deve conter dados de entrevista, observação e testagem. Segundo Antunha42, a bateria de testes neuropsicológicos a serem utilizados em crianças deve contemplar a organização e o desenvolvimento do sistema nervoso da criança, a variabilidade dos parâmetros de desenvolvimento entre crianças da mesma idade e a estreita ligação entre o desenvolvimento físico, neurológico e a emergência progressiva de funções corticais superiores. O processo deve-se iniciar com a realização de anamnese, buscando-se informações acerca das condições de gestação, parto, dos marcos do desenvolvimento, bem como de questões relacionadas ao comportamento da criança, buscando-se informações nos vários contextos nos quais a
16 DESENVOLVIMENTO COGNITIVO E PSICOMOTOR
Tabela I
Linguagem
Período
Idade
Descrição
Pré-linguístico
Nascimento a 12 meses
Jogo vocal e balbucio
Palavra isolada
de 12 a 18 meses
Palavras de referências (bebê, suco). Uso da entonação para transmitir diferentes significados (Pão = Quero um pão! Ou Pão? Onde está o pão?)
Estágio I
de 18 a 24 meses
Fala telegráfica com omissão de várias estruturas gramaticais como pronome, negação (Olha trem, Nenê dormiu)
Estágio 11
de 24 a 36 meses
Surgimento de alguns elementos gramaticais como pronome, negação (Não vai lá)
Estágio 111
de 36 a 36,5 meses
Produção de sentença simples
Estágio IV
de 36,5 meses a 4 anos
Produção de sentenças complexas
Estágio V
de 4 a 5 anos
Coordenação de sentenças simples com uso de conjunções (e, ou, antes, depois)
Adaptada de Mello et al. 4 '.
Tabela 11
Instrumentos para a avaliação das funções cognitivas
Função cognitiva
Instrumento
Nível intelectual global
Bayley Pré-WISC Matrizes Progressivas de Raven - escala especial
R-2 Columbia WISC 111 Atenção
TAVIS CPT 11 Teste de Cancelamento de Letras e Símbolos de Mesulam Teste de Trilhas A e B Teste de Stroop
Funções executivas
Wisconsin Card Sorting Test lowa Gambling Task Torre de Hanói Torre de Londres Teste de Trilhas
Memória
Linguagem
Rey Auditory Learning Test Figuras de Rey A e B Teste Gestáltico de Bender Wide Range Assessment of Memory and Learning Teste de nomeação de Boston Confias TOE Fluência verbal Prolec Subtestes Informação, Vocabulário e Compreensão - WISC 111
Visuoconstrução
Figuras complexas de Rey A e B Teste Gestáltico de Bender Desenho do cubo
Comportamento e personalidade
HTP Escala EACI-P CBCL - Chi/d Behavior Check/ist
criança está inserida. É importante entender a dinâmica familiar, estabelecer quem são as pessoas de referência para a criança, pesquisar a presença de outros cuidadores além dos pais, além da investigação de condições médicas. Após essa investigação, o examinador monta uma bateria de testes que deverá utilizar em cada caso, segundo a queixa trazida. A aplicação dos instrumentos deve sempre ser em condições adequadas, tendo o profissional estabelecido o rapport com a criança para que ela sinta-se à vontade, colaborando com o processo. Realizadas as sessões de avaliação, procede-se com uma sessão de devolutiva aos pais com objetivo de revelar-lhes os achados do desenvolvimento cognitivo e psicomotor da criança, tirando-lhes todas as dúvidas de forma empática, possibilitando que eles possam expressar suas questões diante de resultados não satisfatórios. Nesse momento, fazem -se também os encaminhamentos necessários para os profissionais de que a . . ' cnança necessitara. Na Tabela li são ilustrados quais os instrumentos utilizados para a avaliação de cada função cognitiva. Minicaso clínico
M.S.M .. 9 anos, apresentando como queixas as alterações comportamentais e dificuldade de aprendizagem. Ele é uma criança adotada que veio para o convívio dos pais adotivos aos 2 anos. não tendo o orfanato onde ele estava informações sobre suas condições de gestação e parto. apenas sobre sua chegada ao orfanato com 1 mês em condições de risco. Aos dois anos mostrava ser uma criança esperta. tinha muita energia. era obediente. mas balbuciava apenas umas três palavras. Começou a andar com 2 anos. mas com muitos tropeços. Ele começou a estudar aos 3 anos, quando já havia queixa da escola de sua inquietação e dificuldade de se concentrar. Passou para o sistema de inclusão escolar. por não conseguir acompanhar. Quanto ao comportamento. os pais referem que apresenta emoções intensas. com reações desproporcionais às situações. Aos 2 anos e meio imitava o gesto de fumar (utilizava um palito. batendo até as cinzas) e falava muito sobre bebida.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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VERTENTES DO CONHECIMENTO
ped indo aos pais para provar. além de fazer imitação de colocar bebida num copo. A criança manifestava esses comportamentos mesmo não convivendo com pessoas que tinham esses hábitos. Diante de uma situação complicada. fica agressivo. ou às vezes. nega ou debocha. A mãe refere que. mesmo quando manifesta carinho. machuca. No geral, ele se relaciona bem. mas às vezes confunde brincadeira com ag ressão. Quanto às queixas cogn itivas. os pais referem que o filho é muito inteligente. Contudo. tem dificuldade no raciocínio matemático e de compreender algumas coisas. não tem organização espacial. não consegue pegar o talher com destreza. É desastrado. esbarra nas coisas. tem problema em motricidade fina. embora a ampla seja boa. Não tem fluência verbal. ao contar uma história são necessárias intervenções. além de ter um vocabulário restrito. em que repete muito as palavras. Entretanto. é muito observador. fotografa tudo nos lugares que passa. Avaliação: a investigação das fu nções cognitivas e do comportamento mostra tratar-se de criança com nível intelectual dentro da média. Observaram-se preservadas a percepção visual, a definição semântica. o julgamento de regras sociais. a memória episódica. a amplitude atencional e o cálculo. Foi observada dificu ldade em automonitoração. visuoconstrução. abstração de conceitos e planejamento. Prejuízo foi identificado em atenção. demonstrando impulsividade e desatenção. em velocidade de processamento. funções executivas, sequenciamento lógico-temporal e leitura. Somando-se a isso. observaram-se alterações comportamentais importantes. Posteriormente. os pais adotivos de M. adotaram outra criança que é irmã biológica de M. e que também chegou no orfanato em condições de risco. apresentando síndrome fetal alcoólica. Esse dado nos faz inferir que a mãe biológica de M. fez uso importante de álcool mesmo durante a gestação - o que pode ter acontecido também na gravidez dele. O padrão de funcionamento neuropsicológico apresentado por M. confere com o descrito na literatura como alterações presentes em síndrome fetal alcoólica.
Questões 1. Correlacione cada aspecto do desenvolvimento com a idade ( ( ( ( (
gestacional. ) Sorriso social ) Linguagem receptiva (entende ordens) ) Engatinhar ) Sono da 8 a 12 horas ) Sucção
1. Primeiro mês de vida 2. Terceiro mês de vida 3. Quarto - sexto mês de vida 4. Sétimo - nono mês de vida 5. Décimo - décimo segundo mês de vida
Marque a sequência correta. a) 3 54 2 1 b) 2 4 53 1 c) 2 3 4 5 1 d) 2 54 3 1
2) Em relação ao autismo. é FALSO afirmar: a) Pode apresentar deficiência intelectual.
b) Caracteriza-se pela tríade de sintomas: dificuldade na interação social. atraso de linguagem. hiperfoco em atividades e/ou objetos de interesse. c) É um transtorno invasivo do desenvolvimento. d) O diagnóstico só é possível de ser feito após os 7 anos de idade.
3. Marque verdadeiro ou falso: ( ) Na síndrome do X frágil não se apresenta atraso cognitivo. ( ) Na síndrome alcoólica fetal observamos alterações comportamentais. como transtorno de conduta. ( ) Na sínd rome de Prader-Willi as crianças em idade pré-escolar apresentam hiperfagia. ( ) A síndrome de Turner apresenta tumores em vários órgãos. Marque a resposta correta : a) FVVV b) F V F F c) F VV F d) F FV F
4. Em relação ao desenvolvimento das funções cognitivas podemos afirmar: a) Ocorre de forma simultânea independentemente da área cerebral relacionada. b) As últimas funções a se desenvolverem são as relacionadas com os lobos frontais. c) Em crianças de 1 ano é possível avaliar a atenção utilizando conteúdo verbais e respostas motoras. d) A memória explícita está presente antes mesmo de 3 anos de idade. 5. Em relação à avaliação do desenvolvimento cognitivo e psicomotor marque verdadeiro ou falso: ( ) A avaliação deve contemplar as diversas fu nções cognitivas. como nível intelectual. atenção. memória. percepção. visuoconstrução e praxia. ( ) A avaliação deve ser feita por um profissional que tenha conhecimento apenas em psicometria. ( ) A avaliação consiste na realização de entrevistas. observação. testagem e devolutiva. ( ) Para fins diagnósticos. deve-se levar em consideração apenas os resultados encontrados nos testes. Marque a resposta correta : a) VV FV c) V V F F
b) d)
V F FV V FV F
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Ambiente Familiar e Transtornos Mentais: Uma Visão da Psicologia Analítica
Na iro de Souza Vargas
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 192 Alguns conceitos de psicologia analítica, 193 Influência do ambiente familiar sob o ponto de vista psicodinâmico, 194 Novas estruturas familiares, 196
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Considerações finais, 197 Minicaso clínico, 197 Questões, 198 Referências bibliográficas, 198
Introdução Nascemos e nos desenvolvemos no ambiente familiar. Parece desnecessário acentuar, pela obviedade, a importância da influência familiar na etiopatogenia dos transtornos mentais. No mundo atual, a família está sofrendo grandes transformações. Em sua acepção mais ampla, é uma instituição tão antiga quanto o homem. Viver em família ainda é a maneira mais frequente de se viver. Para a grande maioria, o fato é que nascemos, somos criados, formados e educados no seio de famílias. Outras instituições terão importância em nossa formação e educação, como a escola, frequentada cada vez mais precocemente pela criança. No entanto, o sistema familiar é um referencial muito básico para nossa estrutura e desenvolvimento emocionais. Que razões teriam levado e ainda levam a grande maioria dos seres humanos a acasalar-se e a viver em família? Seriam razões genéticas próprias de nossa espécie? Parece que não, pois as minorias que não viveram e não vivem desse modo não são anormais. O que propiciará a estrutura familiar tão frequentemente aos seres humanos que leva a grande maioria a optar por essa maneira de viver? Certamente ela deve aten-
1. Reconhecer como o ambiente familiar é importante e influencia psicodinamicamente o desenvolvimento da personalidade. 2. Compreender como esse ambiente psicodinamicamente pode originar e/ou influenciar o desenvolvimento de transtornos mentais sob o ponto de vista da psicologia analítica.
der a muitos desejos e necessidades básicas do homem, daí ser uma opção tão frequente como maneira de viver. Há tempos se fala que o casamento e a família são instituições em crise. Como é usual que aconteça, há os que querem reafirmar tais instituições nos seus modos tradicionais e ortodoxos e os que querem aboli-la como se elas fossem a causa de quase todos os males. O difícil é encontrarmos o caminho do equilíbrio, do meio, que nos permita estruturar uma família funcional, que pro picie uma vida de crescimento e desenvolvimento saudável para seus membros. A existência dessa crise aponta para a necessidade de reformulação e mudanças. Estas, porém, penso que deveriam ser no sentido de enriquecer e flexibilizar tal instituição, mantendo entretanto as características básicas que fizeram dela um sistema privilegiado para a estruturação e desenvolvimento de nossas personalidades. As famílias são fundamentais no processo de nossa criação, formação e desenvolvimento, sendo riquíssimas em propiciar vivências indispensáveis para nossa completude 1• Nossa espécie é gregária e necessita do "outro" para se tornar viável e se desenvolver. Não é novidade que nascemos extremamente vulneráveis e dependentes de "outro" para sobrevivermos, sermos cuidados, alimentados
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e protegidos. A família propicia esse "outro" maternal. Para a continuidade de nosso desenvolvimento necessitamos de um "outro" patriarcal que nos ensine os limites, as leis e as discriminações. Necessitamos depois aprender também a nos vincular dentro de uma perspectiva de alteridade, de igualdade simétrica e dialética. Esses aprendizados podem ser muito propiciados pela família. A fa mília também pode nos trazer vivências de transcendência, de sabedoria de vida, transmitidas por seus membros mais vividos. Diante de tanta importância que a família tem para nossa sobrevivência e desenvolvimento, é claro que ela, na medida em que funcione mal, que seja disfuncional, poderá trazer sérias distorções, prejuízos e transtornos para a formação de nossa personalidade, podendo despertar ou agravar transtornos mentais.
Alguns conceitos de psicologia analítica Nossa proposta de compreensão psicodinâmica da influência do ambiente familiar na etiopatogenia dos transtornos mentais é centrada basicamente na psicologia analítica. Alguns conceitos básicos desta teoria a serem utilizados nesta exposição serão apresentados de maneira sucinta. Será compreendida como patológica toda situação que paralise ou distorça o processo de desenvolvimento de uma personalidade, trazendo sofrimento, sintomas repetitivos e fixações. Com relação à compreensão psicodinâmica do adoecer psíquico, penso termos no referencial junguiano um . . . campo nco que se presta a mvestlgaçao. Jung, um psiquiatra suíço, trouxe, a nosso ver, notável contribuição para a compreensão do ser humano por meio de sua psicologia analítica. Modificada e enriquecida por inúmeros outros profissionais e por seus livres seguidores, sua teoria arquetípica e da individuação é um instrumento rico para a compreensão do ser humano, de seu desenvolvimento e de seus transtornos mentais 2 • Jung propõe que o ser humano não nasce uma tábula rasa, mas nasce com arquétipos, que são padrões de comportamento herdados enquanto espécie, ou seja, próprios do ser humano3· Ele verificou que nos sonhos, contos de fada, mitos, símbolos religiosos, nas fantasias e sintomas de muitas pessoas, inclusive de neuróticos e psicóticos, apareciam imagens e elementos que não são individuais e nem poderiam fazer parte da experiência pessoal daqueles que as produziram. Essas representações, próprias da espécie humana, uma vez que aparecem de modo universal, são imagens que reproduzem padrões organizadores arcaicos de nossa espécie. Chamamos de instinto os impulsos fisiológicos percebidos pelos sentidos. O conceito de arquétipo é mais abrangente e os inclui (arquétipo manifestado no biológico) já que além disso subentende as manifestações "instintivas" reveladas através das fantasias e imagens simbólicas coletivas, mitos, contos de fada, símbolos religiosos etc. \
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Jung descreve, em sua obra, vários arquétipos, dando-lhes nomes interessantes, uma vez que estes intuitivamente revelam a quais comportamentos esses arquétipos se referem. Assim ele descreveu o arquétipo da Mãe, do Pai, do Herói etc. A psicologia analítica caracteriza-se pela visão do ser humano que nasce para individuar, ou seja, para "tornarse si mesmo': realizar as possibilidades que potencialmente sempre teve. Para a psicologia analítica, nosso desenvolvimento psicológico estende-se desde que nascemos até nossa morte. Outro conceito fundamental para a psicologia analítica é o de símbolo3 • Mais fácil de reconhecer do que ser definido ou explicado, Jung entendia-o como "a melhor expressão de si mesmo': ou seja, a melhor expressão de alguma coisa que não pode ser completamente entendida apenas pela consciência. Somente será um símbolo vivo para o observador o que for a expressão melhor e mais plena do pressentido e ainda não totalmente consciente. Ele funciona como um intermediário entre o consciente e o inconsciente. Presente também nos sintomas, os símbolos sempre querem vir a ser alguma coisa, por isso são símbolos. Por meio deles, potencialidades inconscientes podem atingir o ego (centro da consciência), promovendo a estruturação e o crescimento da consciência. Aqueles símbolos que por uma desproporção entre sua intensidade e a força do ego não conseguem penetrar e se integrar a ele, formarão a sombra. Essa, ao tentar entrar no campo da consciência, de modo repetitivo, produzirá o sintoma. O inconsciente encerra não só aspectos sombrios e reprimidos como também é fonte de criatividade, de vida e de transformação. Todos esses símbolos, sejam os livres ou os aprisionados na sombra, podem estruturar nossa consciência2. A libido (energia psíquica) é canalizada pelos símbolos, que funcionam como intermediários entre o inconsciente e o consciente. O inconsciente na sua dimensão coletiva ou arquetípica (comum, portanto, a todos) é a matriz da consciência e é nele que estão os germes de novas possibilidades de realizações na vida. O ego é o centro da consciência da mesma forma que toda nossa psique (consciente e inconsciente) tem outro centro, que é o self. Ter um centro organizador significa que a dinâmica da personalidade não é aleatória. Esta tem uma organização com padrões próprios de nossa espécie (arquétipos), tendo um sentido de autorrealização de seus potenciais, a que Jung chamou de processo de individuação4 . Assim, a vida tem esse sentido de desenvolvimento e de amadurecimento, de busca de realização dos potenciais. É útil que possamos discriminar o maior número de variáveis dentro da patologia. Galiás propõe uma acurada semiologia arquetípica que facilita uma melhor compreensão psicopatológica dos distúrbios do ambiente familiar que poderão influir no surgimento ou desenvolvimento de transtornos mentais5 . Ela chama de relações assimétricas aqueles vínculos eu-outro regidos pelos arquétipos parentais: da Mãe (M) e do Pai (P). São assimé-
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tricos entre o Eu e o Outro, funcionando um como mais ativo-doador e o outro como mais passivo-receptor. As teorias do vínculo e do papel coordenam-se e se integram perfeitamente com a Psicologia Analítica, enriquecendo e facilitando nossa compreensão psicodinâmica dos transtornos mentais, sendo muito úteis na clínica. A teoria do vínculo procura compreender o homem a partir da estrutura de um vínculo. O indivíduo é mais uma resultante da inter-relação estabelecida entre o sujeito e os objetos, internos e externos. Para a psicologia analítica o ser humano nasce com seus potenciais arquetípicos, que são determinantes apenas quanto a formas, mas particularizados individualmente nos conteúdos pelos "humanizadores" desses potenciais. Diante deles e das demais vicissitudes da vida de cada um, as personalidades se estruturarão de maneiras muito específicas e próprias, sempre diante de um "outro': Denominamos "humanizadores" de determinado arquétipo para uma pessoa tudo que estabeleça com ela uma relação de funcionamento no dinamismo próprio daquele arquétipo, ou seja, que o simboliza. Por exemplo, se uma pessoa (babá, por exemplo) se relacionar com a criança alimentando-a, estará "humanizando" o arquétipo da Mãe para a criança. O ego existirá como díade na polaridade eu-outro. Não existe de uma maneira isolada, mas sim, como um eu-outro, podendo esse outro estar presente em qualquer das dimensões arquetípicas (corpo, ideações e emoções, sociedade e natureza) e ser vivido ativa ou passivamente em qualquer dos ciclos arquetípicos (matriarcal, patriarcal, alteridade e de sabedoria) 6 . A teoria dos papéis relaciona-se intimamente com a teoria do vínculo7 • Os vínculos são unidades de interação, ao passo que os papéis são os polos individuais das interações, uma unidade de conduta. Em psicologia analítica, os papéis incluem não só a parte egoica2 (estruturada pelos arquétipos em interação com os "humanizadores"), mas também as partes distorcidas ou reprimidas da Sombra e da Persona, ou seja, partes inconscientes, próprias do dinamismo arquetípico de determinado papel. O arquétipo da Grande Mãe (M) estrutura nossa consciência mediante dois papéis por Galiás denominados mãe ou matriarcal (papel M) e de filho do matriarcal (papel Fm). O primeiro é o ativo-doador e o Fm, o passivo-receptor5 . O arquétipo do Pai (P) estrutura nossa consciência mediante dois papéis, o de pai ou patriarcal (papel P), ativo -doador e o papel filho do patriarcal (Fp) que é o passivo-receptor. Esses quatro papéis, presentes em toda personalidade e durante toda a vida, tanto nos homens como nas mulheres, são importantes papéis relacionais. Eles es tarão se estruturando durante toda nossa vida, sendo fun damental que possam ser proporcionalmente simétricos, numa imagem, como nossos braços e pernas.
Com a ativação do arquétipo da Alteridade (Animus para a mulher e Anima para o homem), a interação euoutro tenderá a ser simétrica e dialética. Para que esse funcionamento seja possível, é fundamental que esses quatro papéis citados (M e Fm) e (P e Fp) estejam em interação simétrica e dialética entre si, se não a relação de alteridade não poderá acorrer. Em seguida teremos o dinamismo cósmico ou de sabedoria, no qual poderá haver transcendência de todas as polaridades e a busca de um sentido maior para a vida. Esse dinamismo é o que nos preparará para a vivência do fim da vida, para o retorno ao todo de onde viemos (arquétipo da sabedoria). As dinâmicas arquetípicas acontecem de maneira complexa e variada, vão se estabelecendo e se manterão ao longo de nossas vidas como comportamentos possíveis, sempre com possibilidades de amadurecimento e crescimento e, eventualmente, com pioras e distorções. Por meio da dialética entre o ego (polaridades conscientes) e o inconsciente (polaridades contrapostas às que estão na consciência) é que flui e caminha o desenvolvimento. A estruturação da consciência processa-se, portanto, através de elaborações simbólicas. Esse processo não se faz aleatoriamente nem depende somente de vivências pessoais, mas é coordenado pelos arquétipos, principalmente os estruturantes, através dos ciclos matriarcal, patriarcal, de alteridade e de sabedoria. Esse processo, que se mantém em toda a vida, é auxiliado por duas estruturas, também arquetípicas, que são a Sombra (símbolos negados e reprimidos) e a Persona (máscara social). Outra contribuição importante de Jung é a sua tipologia psicodinâmica8 • Por herança genética, que poderá sofrer mudanças psicodinâmicas no decorrer da vida, teríamos maneiras preferenciais de funcionar de nossa consciência. Jung descreveu então duas atitudes: introvertida e extrovertida e quatro funções, sendo duas racionais: pensamento e sentimento e duas irracionais: intuição e sensaçao.
Influência do ambiente familiar sob o ponto de vista psicodinâmico A família é um importante e fundamental sistema para o desenvolvimento de nossa personalidade, podendo proporcionar boas condições para nosso desenvolvimento ou propiciar o surgimento ou agravamento de transtornos mentais, quando disfuncional. Ela é um sistema arquetlpico, uma vez que se constitui num padrão de modo de existir presente em todas as culturas e épocas. Porém, como acontece com todos os arquétipos, seu conteúdo é preenchido de maneira própria e particular. Como é de conhecimento geral, uma das características de nossa espécie é a de nascermos extremamente frá•
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geis e dependentes e necessitarmos, portanto, para nossa sobrevivência, de um sistema que em nosso início de vida nos cuide e alimente, propiciando nosso desenvolvimento. Isso é fundamentalmente proporcionado pela figura materna, frequentemente, mas nem sempre a mãe pessoal e por tudo que possa simbolizar o arquétipo da Mãe. Nascemos com características diferentes, com aptidões e potenciais diversos que poderão ou não se desenvolver, para o bem ou para o mal, dependendo de como somos cuidados e tratados. Poderemos nascer com disponibilidades e predisposições maiores, menores ou ausentes, para o desenvolvimento de transtornos mentais. O eventual surgimento e a possível evolução de um transtorno mental dependerão muito significativamente, embora não só, de como funcionarão suas famílias. Todos os dinamicistas concordam com o ponto de vista de que a família é fundamental para a boa ou má estruturação de nossas personalidades, embora sejam tão diversas as ' . . caractenstlcas com as qua1s nascemos. Obviamente ela não é a única influência importante. Mesmo em casos em que exista significativa participação de fatores genéticos, o desenvolvimento ou não, em diferentes graus, de transtornos mentais sofrerá significativas influências das famílias. Na psicologia analítica, admite-se que o ser humano nasce com arquétipos, padrões herdados de sua espécie, de comportamentos. São formas básicas que necessitarão para o seu funcionamento e preenchimento específicos de seus conteúdos, de "humanizadores" desses padrões. Esses "humanizadores", frequentemente os mais importantes, no caso dos arquétipos estruturantes (Mãe, Pai, Alteridade e de Sabedoria), são membros das famílias, que ajudarão ou atrapalharão a "humanização" desses arquétipos e a estruturação de papéis fundamentais em nossas personalidades. Winicott fala da "mãe suficientemente boa" 9 como aquela que atende as necessidades da criança na medida adequada, por exemplo, alimentando-a quando ainda não é capaz de fazê-lo sozinha, mas permitindo que ela aprenda a se alimentar sozinha quando já tem condições para isso. Em psicologia analítica diríamos que "mãe suficientemente boà' é a mãe que propicia à criança viver os dois lados ou polos do arquétipo da Mãe, a "boa e a má", estruturando nossa personalidade em toda a dinâmica do arquétipo da Mãe, predominante e regente de nosso desenvolvimento nessa fase inicial de vida. Famílias "suficientemente boas" são aquelas que "humanizam" os dois lados ou polos do arquétipo que nesse início é o da mãe, batizado por Jung como arquétipo da Grande Mãe ou, simplesmente, da Mãe. Aos poucos vai se constelando o arquétipo do Pai, propiciador do estabelecimento dos limites, das leis, do certo e do errado, do devo-não devo etc. Nesses dois ciclos arquetípicos, que se instalam e permanecem funcionando no decorrer de toda nossa vida, estruturar-se-ão
nossos papéis filho do maternal (Fm) e filho do patriarcal (Fp ). É fundamental no primeiro ciclo a formação de um apego seguro da criança com a figura materna 10 • A desejável "paixão", dos que humanizam o arquétipo da mãe para a criança, é a base da formação de um saudável narcisismo para ela. A criança formará então uma boa autoimagem e terá fortificada a sua resiliência. No mito de Narciso, no qual a mãe, temendo por sua idealizada beleza, não permitiu que ele se visse, ou seja, não conseguiu tirar a idealização de seu filho, continuou vendo -o tão lindo quanto um deus. Narciso, ao permanecer idealizado, não se via e não via os outros 11 • Fascinado por si mesmo, Narciso fica inviável para a vida. No ciclo patriarcal, a família deverá proporcionar a vivência edípica para a criança. Esta aos poucos vai percebendo-se distinta do "outro': deixando de ser "um" com o outro, vivência própria do dinamismo matriarcal. A criança passa a viver a relação triangular, tão bem expressa no mito de Édipo 12 • Classicamente, o triângulo edípico é uma problemática da infância, tendo uma resolução diferente para o menino e para a menina13 • Para a estruturação da identidade sexual, tanto para o menino como para a menina, é fundamental o contato com as figuras parentais do mesmo sexo e do sexo oposto. Se esse contato não se der, ou se ele se der de maneira inadequada, precária ou excessiva, conhecem-se os riscos que isso pode trazer para o desenvolvimento do menino ou da menina, que deve identificar-se com o genitor do mesmo sexo e se diferenciar do genitor do sexo oposto. O( a) filho(a) competirá com o genitor do mesmo sexo e "namorará" simbolicamente o genitor de sexo oposto, protegido(a) pelo tabu do incesto. Os papéis Fm e Fp, caso não adequadamente vividos na triangulação edípica, trarão dificuldades, principalmente numa fase adulta, quando serão desempenhados os papéis M e P, quer com filhos concretos quer com abstratos, diante de quem desempenhamos os papéis M e P. Um desvio da triangulação edípica é o descrito por Galiás como síndrome da retificação do triângulo edípico 14 • Essa situação existe quando em vez do triângulo, temos uma reta. Esta poderá ser de três tipos: o filho no meio da mãe (M) e do pai (P), o filho ao lado da mãe (M) e o filho ao lado do pai (P). O contato do filho poderá, por exemplo, se dar diretamente só com M, assim, só através de M, o filho se relacionará com P, ou o contrário. Também poderemos ter o filho no meio de M e P. Será uma espécie de pombo-correio entre pai e mãe com forte tensão entre seus papéis Fm e Fp. Uma questão que merece nossa atenção no grupo familiar é também a problemática com os irmãos, quando existirem. Estes também, é claro, poderão sofrer inadequações quanto a narcisogênese da dinâmica matriarcal ou perturbações na fase edípica, o que poderá complicar e agravar situações familiares propiciadoras de transtornos mentais.
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Uma família funcional criará boas condições para a estruturação dos papéis F e também para uma primeira estruturação dos papéis M e P, inicialmente com a própria criança (o "outro" em si mesmo) e depois aos poucos com o outro concreto (o outro fora de si mesmo). Na adolescência, quando menino e menina devem passar pelo processo de distanciamento do casal parenta!, ambos terão que relativizar seu contato com as figuras parentais. Com a ativação do arquétipo da alteridade ou do Animus para as meninas e da Anima para os meninos, a interação eu -outro tenderá a se estabelecer num padrão simétrico, de igualdade e dialético. Novo desafio para a família compreender e ajudar nessa mudança, que não é fácil para os jovens e nem para as figuras parentais, que viverão de maneira complementar a mesma mudança de padrão de relacionamento com seus filhos, de assimétrico para simétrico. É nesse período que o processo de desidealização dos genitores pelos filhos ganha força e subentende também a desidealização dos filhos pelos genitores. Para que esse padrão de comportamento vá se implantando, é necessário que os quatro papéis das dinâmicas matriarcal (Fm eM) e patriarcal (Fp e P) estejam em simetria e relação dialética entre si, além de "suficientemente bem estruturados': se não a personalidade funcionará mal cada vez que necessitar usar um deles. Nesse padrão de alteridade se instala a crise de transformação que deve levar o jovem a ir deixando de ser identificado como filho e ir tornando -se adulto. Os genitores deverão recolher as projeções dos papéis Filho em seus filhos para exercerem os papéis de Mãe e Pai de si mesmos. Da mesma maneira, os filhos estarão recolhendo as projeções dos papéis Me P nos genitores para passarem a exercer os papéis Me P de si mesmos. Nesse período, confirmando o provérbio popular "de que filho criado significa trabalho dobrado", a família vive tam bém um momento crítico, de transformações, que deve conter e propiciar boas condições de crescimento para o filho. É um período em que influências externas à família, como amigos, namoradas etc. podem influenciar mais marcantemente o despertar ou o desenvolvimento de transtornos mentais. Nesse período, o comportamento adequado da família pode ser de grande ajuda. Se ao contrário a família não lidar bem com essas variáveis, poderemos ter o desencadeamento ou o agravamento de transtornos mentais. Outro aspecto a ser abordado é o desafio que a existência de um filho com graves problemas (autismo, deficiência mental, esquizofrenia, droga-adição etc.) pode trazer para o sistema familiar. Essa família, se não forcapaz de lidar suficientemente bem com esses problemas, auxiliando o doente sem abandonar ou sobrecarregar os outros, poderá despertar ou agravar transtornos mentais inclusive nos outros membros do sistema familiar.
Finalmente, na estruturação da dinâmica cósmica ou do velho( a) sábio( a), os avós e idosos que convivem com a família podem ser seus despertadores e humanizadores. Essa dinâmica frequentemente só ganhará mais significado no adulto mais velho, que vai transcendendo as polaridades, buscando um sentido maior para a vida e preparando-se para o fim dela, exercendo o desapego e a contemplação. Outro aspecto no qual a família pode ajudar ou atrapalhar o desenvolvimento de nossas polaridades é quanto à tipologia. Quando genitores não são capazes de respeitar características tipológicas dos filhos, por exemplo, quando forçam uma criança do tipo introvertido a se comportar como extrovertido, podem "patologizar" um comportamento normal introvertido.
Novas estruturas familiares A ocorrência da família reconstituída é um fenômeno cada vez mais comum e desafiador. Pela falta de expectativas predefinidas de comportamento de seus membros, ela pode ser extremamente criativa e estruturante na mesma medida que pode ser extremamente desestruturante para o desenvolvimento das personalidades dos filhos, que terão diferentes genitores e às vezes meio -irmãos ou filhos do marido da mãe ou da esposa do pai. O vínculo de casamento dos genitores é um vínculo duplo, conjugal e parental 15 • A boa convivência do casal como marido e mulher e como genitores, de maneira equilibrada e harmônica, será uma condição muito facilitadora para a adequada estruturação da personalidade dos filhos. Quando um dos cônjuges está muito perturbado ou quando um deles sufoca ou anula o outro, teremos uma condição que poderá ser muito disfuncional para a adequada estruturação da personalidade dos filhos, podendo despertar ou agravar transtornos mentais. A violência familiar que leva ao abandono, a carências matriarcais e patriarcais, a abusos sexuais ou de poder ou a inadequadas superproteções poderá trazer distúrbios para os filhos. Outro aspecto que traz desafios para o adequado comportamento familiar são as relações fraternas entre seus membros e principalmente entre os irmãos, quando existirem. A vivência fraterna é rica, propiciando a alteridade, a vivência de pares dentro da família. Mas, às vezes, pode trazer também complicações. Muitas vezes encontramos, quando existem muitos filhos, um "loteamento" de qualidades e defeitos com estereótipos que fazem muito mal: o burro, o feio, o inteligente, o malandro, o vagai etc. que distorcem o desenvolvimento, criando estigmas. Na família reconstituída esse fenômeno é ainda mais complexo. A família também pode sofrer situações traumáticas que poderão provocar transtornos em seus membros, como tragédias, perdas (orfandade precoce, viuvez precoce, perda de filhos, de irmãos etc.), dramas, abusos e
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Tabela I
Resumo por faixa etária
Infância
Narcisogênese, papéis "filho" (Fm e Fp). Édipo e suas retificações. Idealização cruzada. Fratria.
Adolescência e senescência
Desidealização cruzada. Papéis M e P.
Adulto
Conjugalidade e parentalidade.
Idoso
Contenção familiar - abuso e abandono, contemplação e desapego.
tantas outras intercorrências que poderão afetar profundamente seus membros e neles determinar ou agravar transtornos mentais. A relação com a família maior ou expandida (tios, primos, avós, sogro, sogra, cunhados etc.) poderá ser fonte de ajuda ou de transtornos, na medida em que alguns de seus membros possam ter distúrbios mentais ou transtornos de comportamento que poderão ajudar ou atrapalhar os processos de individuação dos membros da família. Finalmente, a maneira como uma família contém e trata seus idosos pode trazer ganhos e enriquecimento ou, ao contrário, quando os abandona ou os trata com desrespeito e abuso, poderá ocasionar ou agravar transtornos mentais nos mais velhos, alguns até comuns do envelhecimento, e transmitir aos mais novos um exemplo ruim, de maldade e por vezes de desrespeito, falta de reconhecimento e de gratidão, não usufruindo de possíveis sabedorias de que os mais velhos muitas vezes são dotados.
Considerações finais É fundamental que a criança, além de cuidada, alimentada e protegida receba no início de sua vida uma "narcisogênese" suficientemente boa de modo a formar, por meio de um apego seguro com as figuras maternas, uma autoimagem positiva e de valor. É fundamental que ela se perceba sendo amada e motivo de alegria, orgulho e satisfação para seus genitores. A figura materna, embora a maior humanizadora do arquétipo da Grande Mãe, não é a única e esta poderá vir inclusive de outras dimensões, como o corpo, a natureza e o social. Por exemplo, uma criança poderá ter uma "má mãe" no corpo, na medida em que tenha um problema orgânico grave, que lhe traga muitas dores e sofrimento. Ou pode ter uma mãe negativa na "mãe naturezà', como uma catástrofe (p. ex., terremoto), ou no social, como uma guerra. Todas essas são situações em que sua vivência matriarcal poderá se estruturar de maneira inadequada, comprometendo uma boa estruturação do papel Fm, não aprendendo a pedir e receber cuidados matriarcais. Da mesma maneira, a figura paterna como maior "humanizador" do papel Fp deverá ser um "pai suficientemen-
te bom" estruturando na criança um adequado papel Fp, através do qual aprenderá a receber ordens, aceitar e respeitar as leis e os limites. Assim, a criança viverá bem a triangulação edípica, podendo identificar-se com o pro genitor do mesmo sexo, competindo em bons termos com ele e podendo "namorar" simbolicamente o progenitor do sexo oposto. A inadequada estruturação dos papéis Filho e também dos papéis M e P, tanto numa hipertrofia como numa hipotrofia, trará muitos transtornos para a personalidade. A chegada da adolescência assinala um período crítico no qual genitores e filhos deverão desidealizar-se mutuamente. Filhos deixando de ser filhos, "matando simbolicamente" os pais. O mesmo processo, às vezes até mais difícil, deve ocorrer com os genitores em relação aos filhos. Para que esse processo possa ocorrer suficientemente bem, a estruturação dos papéis M, P e de filhos (Fm e Fp) devem estar suficientemente bem estruturados nos genitores e filhos. A vivência da adolescência de maneira "suficientemente boà' poderá nos conduzir para a vivência de alteridade, de igualdade e respeito às diferenças. Finalmente, se estamos atualizando nosso processo de individuação, realizando nossos potenciais, poderemos nos vivenciar como alguém que está vivendo validamente sua própria vida. Assim, poderemos enfrentar com sabedoria esse novo ciclo de vida, podendo perceber nossa morte como o coroamento da vida, como uma grande transformação, e não uma tragédia. Uma boa e adequada estruturação da personalidade, devida de modo muito significativo a uma família funcional, é o melhor que podemos esperar psicodinamicamente, no sentido de estimular uma criativa e forte resiliência nessa personalidade 16· Assim, podemos ter na família tanto um fator de risco como um fator de proteção, com relação ao desencadeamento de um transtorno mental.
Minicaso clínico Jovem (M.S.). 19 anos. filha única. com quadro de transtorno al imentar. anorexia nervosa. há 2 anos. Quando criança era mais gordinha. o que lhe criava problemas com colegas na escola que a chamavam de "gorda". Desde muito pequena sempre foi muito ligada à sua mãe. Seu pai sempre foi muito trabalhador. vivia para a empresa que possuía. pouco participando da vida familiar. Teve muito sucesso financeiro. porém. há pouco tempo , quase faliu, devido a "golpes" de seu ex-sócio. Atualmente está tentando se reerguer e por isto trabalha ainda mais. preocupado com o dinheiro que está muito regulado. Sua mãe é dona de casa. não se profissionalizou, não tem ganho próprio e depende econômica e financeiramente de seu pai. Seus pais sempre brigaram muito. não se entendendo e não se "dando bem". Sempre foi mais próxima da mãe de quem se sen-
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te muito dependente. Era muito distante de seu pai - para ela quase um "estranho". Agora que está doente, seu pai está querendo interferir em sua vida propondo a ela que vá trabalhar com ele em sua empresa. A paciente e sua mãe acham que o pai precisa ganhar muito dinheiro pois elas gostam de coisas boas. de viajar e também querem sentir-se seguras financeiramente. A paciente (M.S.) fez curso de teatro e de moda, porém, nunca trabalhou efetivamente nessas áreas. Tem dúvida se vale a pena tentar trabalhar com o pai pois ele tem uma indústria metalúrgica e ela estudou moda. Ela e a mãe sempre criticaram muito o comportamento do pai. Sua mãe é magra e preocupa-se com o peso e seu pai é desleixado com o corpo. M.S. preocupa-se muito com seu corpo, achando-se gorda e fazendo dieta, procurando ingerir só alimentos que não engordam e fazendo muito exercício.
Questões 1. O relacionamento familiar. em relação ao transtorno alimentar da paciente: a) Não interferiu. b) Funcionou como fator de risco. c) Funcionou como fator de proteção.
2. a) b) c)
O vínculo dos pais é: Criativo e estruturante para a personalidade da filha. Conjugal bem estruturado e parenta! insuficiente. Disfuncional tanto o conjugal como o parenta!.
3. a) b) c)
O vínculo mãe-filha é: Suficientemente bom. Apego excessivo. Muito distante.
4. a) b) c)
O vínculo pai-filha é: Adequado. Inadequado e não estruturante. Adequado para a triangulação edípica.
5. a) b) c)
Em relação à dupla mãe-filha, o pai: Exerce a interdição paterna necessária. Permanece como o terceiro excluído. Participou de forma estruturante.
Referências bibliográficas 1. Vargas NS. A família e o casamento como caminho de individuação. Junguiana- RSBPA. 1989;7:101-12. 2. Jung CG. Estudos sobre psicologia analítica. 2. ed. Petrópolis: Vozes; 1981. VolVI. 3. Jung CG. O desenvolvimento da personalidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes; 1981. Vol XVII. 4. Jung CG. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes; 2001. Vols. IX, X. S. Galiás I Psicopatologia das relações assimétricas. Junguiana - RSBPA. 2000;18: 113-32. 6. Byington CAB. Introdução à psicologia simbólica da dinâmica familiar. Junguiana - RSBPA. 1988;6:47 -118. 7. Moreno JL. Fundamentos de la Sociometria. Buenos Aires: Paidos; 1962. 8. Jung CG. Tipos psicológicos. Rio de Janeiro: Zahar; 1967. 9. Winnicott DW A criança e o seu mundo. 3. ed. Rio de janeiro: Zahar; 1975. 10. Bowlby J. Apego. São Paulo: Editora Martins Fontes;1984. 11. Brandão JS. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes; 1987. Vol II. p. 17390. 12. Brandão JS. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes; 1987. Vol III. p. 23371. 13. Freud S. Edição standard das obras completas. Rio de Janeiro: Imago; 1974. Vol II. p. 256-68. 14. Galiás I. Síndrome da retificação do triângulo edípico. Junguiana - RSBPA. 1988;6: 149-66. 15. Vargas NS. Terapia de casais. São Paulo: Madras; 2004. 16. Araújo CS. Psicoterapia dos transtornos do desenvolvimento. In: Assumpção Jr, FB e Reale D (eds.). Práticas psicoterápicas na infância e na adolescência. Barueri: Manole; 2002.
Influência do Ambiente Familiar e Social sob a Perspectiva da Neurociência Neuropsicanálise Flávio Shansis Rodrigo Machado-Vieira Maurício Marx e Silva
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 199 O surgimento da neuropsicanálise, 199
Após este capítulo você estará apto a:
A questão da consiliência, 200 Conceitos importantes, 200 Norma de reação, 200 Períodos críticos do desenvolvimento, 201 Neotenia, 201
1. Conhecer os principais conceitos em neuropsicanálise. 2. Entender o modelo da consiliência. 3. Reconhecer a influência do ambiente familiar. 4. Compreender a influência do ambiente social.
Afetos como reguladores homeostáticos, 201 Memória implícita e explícita, 202 A influência do ambiente familiar: a Teoria do Apego revisitada, 202 A influência do ambiente social: o cérebro social, 203 Considerações finais, 204 Questões, 205 Referências bibliográficas, 205
Introdução Os nossos pais são o meio ambiente primário no qual nossos cérebros jovens se adaptam e as suas mentes inconscientes são a nossa primeira realidade. Louis Cozolino 1
A Psiquiatria, desenvolvida em sua maior parte ao longo do século XX, foi marcada por uma dicotomia que é referida por alguns autores como uma "alma partida'' 1 • De um lado, uma Psiquiatria que lutava por reconhecimento como uma especialidade médica, coerente com os desenvolvimentos da biologia, fundamentada científicamente e com resultados mensuráveis. De outro, as abordagens subjetivistas, tendo como principal representante a Psicanálise. Essa, cuja fundamentação era baseada em teorias especulativas - e, para muitos, idiossincrásicas - e em consensos clínicos que muitas vezes não apresentavam muita concordância, era vista pela comunidade científica como muito discutível, senão "demasiado caótica'', para ser considerada com pretensões científicas.
O presente capítulo pretende discutir o tema da influência do ambiente familiar e social sob a perspectiva da neuropsicanálise. Para tanto, aborda brevemente como surgiu essa nova disciplina do conhecimento e como se faz necessária a conciliação entre diferentes formas de abordar as manifestações psíquicas para melhor compreendê-las. Após, revisa de forma sucinta alguns conceitos que se fazem necessários para o melhor entendimento das teorias a seguir. Após, são abordados os dois temas chaves propostos: • a influência do ambiente familiar: a partir da Teo ria do Apego de Bowlby e revisitada à luz dos conhecimentos atuais em neurociência da evolução cerebral. • a influência do ambiente social: a partir do conceito de cérebro social que entende que é a "socialização" do cérebro que permitirá formas gradativamente mais sofisticadas de comunicação. Ao término do capítulo, são feitas considerações finais que retomam a necessidade de uma compreensão mais ampla e complementar dos fenômenos psíquicos a partir dos paradigmas da psicanálise e das neurociências.
O surgimento da neuropsicanálise Como visto na introdução, boa parte da comunidade acadêmica polarizava-se ao escolher um desses dois extremos: a Psiquiatria ou a Psicanálise. No entanto, mui-
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tos psiquiatras menos comprometidos com os interesses associados a cada polo, e tentando dar conta dos desafios cotidianos oferecidos por pacientes em sofrimento psíquico, encontravam nas abordagens subjetivas instrumentos para lidar com questões que a psiquiatria mais objetiva não podia fazer nada além de desconsiderar. Pacientes que, por todos os critérios exteriores, eram muito bem-sucedidos e sem sintomas, mas que secretamente nutriam sentimentos de vazio e falta de sentido para a vida, ou ainda apresentavam fantasias sexuais ou narcísicas incompreensíveis dentro do conhecimento psiquiátrico objetivo. Também podiam apresentar dificuldades no desenvolvimento de relações afetivamente satisfatórias. Talvez por reconhecerem isto é que nomes como Eric Kandel - Nobel de Medicina por suas pesquisas sobre memória -, mesmo apontando diversos problemas quanto à cientificidade da psicanálise, afirmou que ela ainda era "a visão do psiquismo humano mais intelectualmente satisfatória''2 • O começo do século XXI observou uma tentativa de cura para esta "alma partida': Certamente não a primeira, mas talvez a com mais chances de melhor integrar. No ano de 2000, em Londres, foi realizado o primeiro Simpósio Internacional de Neuropsicanálise, com convidados ilustres de ambos os lados, destacando-se os cientistas Antônio Damásio, Oliver Sacks e Jaak Panksepp pelo lado da neurociência3-5, que se uniram a representantes da Sociedade Psicanalítica de Nova York e do Centro Anna Freud de Londres, além de avulsos de diversas procedências. Esse simpósio foi uma tentativa de desenvolver aproximações entre as duas metades desta "alma': Foi, então, criada a Sociedade Internacional de Neuropsicanálise, a qual tem realizado congressos anuais desde então em diferentes países.
A questão da consiliência Em função da polarização existente na comunidade científica, como exposto acima, para muitos a esperança de uma conciliação entre estas diferentes formas de abordar as manifestações psíquicas é mínima. Seja isso pela não aceitação do modelo médico por parte de muitos psicanalistas, ou pela falta de verificação objetiva de fundamentos e resultados por parte da psicanálise, sem falar na ausência de uma linguagem comum. Felizmente, um modelo surgiu como proposta de início de diálogo entre estes pontos, aparentemente, irreconciliáveis. A proposição da "consiliência'' feita por Edward Wilson6 , influente biólogo de Harvard, pode ser considerada uma medida de "primeiros socorros" para esta "fratura da alma'' (Figura 1). Wilson6 propôs retomar um antigo conceito da filosofia da ciência, a consiliência, obtendo receptividade de alguns autores explicitamente3•5•7 e de muitos na prática clínica. Nesse modelo, ao se estudar determinado fenômeno, observa-se um trânsito por meio das diversas disciplinas que podem ter algo a contribuir. Esse modelo propõe que o que
Psico
Bio
Sócio
Fís/Quím
Figura 1
Modelo de consiliência proposto por Edward Wilson 6 .
foi descoberto ou proposto por uma disciplina traz reforço ou questionamento para o que foi proposto por outra. Este trânsito consiliente serviria como uma espécie de teste para as teorias, em que se poderia verificar se a teoria apresenta, além da coerência interna (entre seus pró prios elementos), também coerência externa, com "os outros". Não se pode esquecer, por exemplo, que somente coerência interna pode estar presente até em um delírio bem sistematizado, ou em um quadro de folie à deux ou plusieurs. Diferentemente do modelo de multidisciplinaridade tradicional, no modelo da consiliência as diferentes disciplinas não estariam lado a lado contribuindo soberanamente com seu saber, mas sim permeáveis à modificação umas pelas outras. Este processo favoreceria tanto o aperfeiçoamento de cada disciplina quanto o desenvolvimento de uma interface de linguagem comum, além de poder gerar a criação de novas áreas, em geral com nomes híbridos como neuropsicanálise, neurofilosofia, psicologia evolucionista, etc. Enquanto, portanto, a psicanálise aguarda o desenvolvimento de instrumentos de verificação objetiva do seu método que não distorçam demasiadamente a sua natureza, existe, hoje em dia, já a possibilidade de ampliar uma interface consiliente com a neuropsicologia e a neurobiologia por meio da neuropsicanálise. Antes de serem abordados, no presente capítulo, alguns dos resultados de pesquisas, tanto pré-clínicas quanto clínicas, sobre as influências do ambiente familiar e social, serão brevemente revisados alguns conceitos que facilitam este diálogo consiliente entre as neurociências (aqui em um sentido amplo, englobando desde a biologia molecular, passando pela genética do comportamento e neurofisiologia) e as psicologias, desde a psicologia evolucionária até a psicanálise.
Conceitos importantes Norma de reação Quando esse conceito é aplicado à genética do comportamento, diz respeito à gama completa de comportamentos possíveis quanto à algum fenótipo comportamental (p. ex., o comportamento maternal, ou a norma de reação
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cooperação/competição) permitida pela estruturação do sistema nervoso, determinada pelo genótipo, uma vez experimentados todos os nichos (ambientes) possíveis de sobrevivência de uma espécié. A genética dita a gama de possibilidades, as experiências escolhem ou fixam alguma faixa dessas possibilidades. Uma mesma experiência ocorrendo em diferentes períodos do desenvolvimento (ou mesmo diferentes padrões de neuroplasticidade), provavelmente resultará em desfechos muito diferentes, tanto em termos de amplitude de efeito, quanto de resistência à mudança. Isso ocorre uma vez que os mecanismos neurobiológicos são diferentes em cada um desses períodos, como p. ex., desde LTPs (aumento persistente na atividade sináptica, associado ao aumento na atividade neuroplástica e novos aprendizados) até a modificação permanente na densidade de receptores específicos em certas sinapses, como receptores CRH, em amígdala e lo cus coeruleus8 •
Períodos críticos do desenvolvimento A genética delimita uma "norma de reação", dentro da qual a experiência é necessária para acionar a expressividade gênica, a qual por sua vez influenciará a estruturação das redes neurais. Estas redes neurais poderão assumir várias formas - dependendo da experiência - e resultar em diversos tipos de comportamento. Se certas experiências não ocorrem quando o organismo está "à espera da experiência" (período crítico ou janela de maturação), a oportunidade é perdida9•10• Em algumas espécies, p. ex., se não há contato e ambiente adequado na época certa, a mãe pode não reconhecer a cria como sua, rejeitando-a e levando a sua morte. Se observarmos melhor o que ocorre na espécie humana, as normais sociais não permitem a rejeição sumária dos filhos, mas não tão raro existem situações de vínculos maternos que falham a todo o momento (p. ex., são as notícias de crianças "esquecidas" em um estacionamento de um shopping center o que acaba, às vezes, até em morte). Quanto aos períodos críticos na espécie humana, onde a pesquisa é bastante limitada por questões éticas, uma área bastante interessante de ser estudada, e que não apresenta impedimentos desta natureza, é a área da linguagem. Em um trabalho sobre os períodos críticos para aquisição da linguagem, foi verificado que a capacidade para a identificação de certos fonemas ocidentais não é perdida em orientais se eles forem expostos a esses fone mas ocidentais nos primeiros anos de vida. Importante dado desse estudo é de que a exposição a gravações não tinha nenhum efeito. Era necessária que esta exposição ocorresse por meio de uma relação humana, p. ex. uma babá e, dessa forma, uma exposição humana mínima era o suficiente para evitar "a poda das redes neurais". Este efeito era mais intenso se a língua ocidental fosse a única dominada pela cuidadora, ou seja, mais essencial para a comunicação e estabelecimento do vínculo9 .
Figura 2
Neotenia: a retenção de características imaturas na espécie humana em comparação com os chimpanzés. Gould, S. J., Ontogeny and Phylogeny, 1977 12•
Sabe-se, também, que até o canto dos pássaros precisa ser aprendido de outro pássaro, e a predisposição genética se evidencia pela constatação que eles aprendem muito mais facilmente o canto da própria espécie do que o de outra, em casos em que são criados por uma mãe adotiva de outra espécie 11.
Neotenia Esse conceito diz respeito à mutação de genes reguladores do desenvolvimento - no sentido de retardo da maturação na espécie humana em relação a outros primatas - conduzindo a um prolongamento da neuroplasticidade12.14(Figura 2). Segundo esse conceito, a neuroplasticidade teria uma correlação inversa com a maturação neural e direta com o aprendizado, em detrimento de respostas não condicionadas (predeterminadas pela evolução) 15. A relativa imaturidade neural humana tornaria nossa espécie mais capaz de aprendizado e prolongaria o crescimento cortical pós-natal, mas, ao mesmo tempo, prolongaria a dependência da família para a sobrevivência.
Afetos como reguladores homeostáticos Os afetos podem ser entendidos como marcadores da relevância das experiências para o indivíduo (organismo) e, portanto, como mediadores da plasticidade para a interação com o ambiente3•16. Os afetos seriam reforçadores primários, atuando em áreas subcorticais e no córtex órbitafrontal, como estímulos não condicionados. Na realidade, eles seriam pré-condicionados pela evolução e inscritos geneticamente na estruturação própria do sistema nervoso central (SNC). Seriam pré-associados com afetos positivos ou negativos, predeterminando os rumos da interação com o ambiente. Na realidade, todas as experiências positivas ou negativas adquiridas terão associação com estímulos predeterminados como relevantes para o organismo. Essa é, p.
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ex., uma das ferramentas no trabalho psicanalítico. Na transferência que deve ocorrer em um setting psicanalítico, o uso de um vínculo afetivamente intenso, pode ser entendido como uma oportunidade para obtenção de nova plasticidade: ou seja, aprender uma "língua novà:
Memória implícita e explícita Brenda Milner, em 1954, descobriu que o lobo temporal mediai e o hipocampo estão diretamente envolvidos com o que agora é reconhecida como memória declarativa (ou explícita, a memória consciente para pessoas, objetos e lugares). No ano de 1962, ela fez uma nova descoberta sobre outro tipo de memória, que atualmente é chamada de procedural (ou implícita) que são memórias completamente inconscientes. O uso desses dois sistemas de memória é a regra, mais do que a exceção. Na realidade, esses dois sistemas de memória se sobrepõem e são comumente utilizados juntos. As experiências de aprendizado recrutam ambos os tipos de memória. De fato, a repetição constante de uma informação pode transformar memória declarativa em memória procedural2 •
A influência do ambiente familiar: a Teoria do Apego Revisitada Para os bebês humanos, a sobrevivência não depende de quão rápido eles podem correr, se eles podem escalar árvores, ou se eles podem perceber a diferença entre um cogumelo comestível de um venenoso. Mais que isso, eles sobrevivem baseados nas habilidades de seus cuidadores em detectar as suas necessidades e nas intenções naqueles que os circundam. Para os humanos, as outras pessoas são o nosso meio ambiente primário. Louis Cozolino 1
Em 1969, John Bowlby editou um livro chamado Attachment ("Apego"), o qual fundou uma das mais importantes teorias na área da Psiquiatria 17 . No seu livro, Bowlby argumentava que os observadores clínicos e os pesquisadores deveriam se focar mais em organismos que estão se desenvolvendo, ou seja, em processo de maturação. Mais especificamente, ele chamava a atenção para mecanismos ontogenéticos fundamentais nos quais um organismo imaturo é moldado por meio de seus relacionamentos primordiais com um membro adulto maduro de sua espécie. Ou seja, ele sugeria a importância de se estudar mais a fundo como se dão as ligações de apego entre a mãe e o bebê. Ele afirmava que essas ligações de apego são o produto da interação de uma carga genética única com um ambiente particular, e que as capacidades sociais, psicológicas e biológicas que daí emergem no bebê não poderiam ser compreendidas apartadas de sua relação com sua mãe 10 • Mais adiante, em 1973, Bowlby define mais precisamente qual seria o foco do sistema de apego, e afirma que,
mais do que a proximidade entre mãe-bebê, a importância estaria em um vínculo do bebê com uma figura que fosse emocionalmente disponível e responsiva 18 • Dizia que a função essencial do apego era a de promover a sincronia e a regulação de sistemas biológicos e comportamentais. Segundo esse autor, a partir do vínculo o bebê construiria seus modelos internos de funcionamento. Nesses modelos o bebê iniciaria a pensar "em como o mundo físico é esperado a ocorrer, em como sua mãe e outras pessoas importantes são esperadas a se comportar, em como ele próprio se espera comportar e em como cada uma dessas partes interage com a outrà: Baseado na teoria do comportamento instintivo de Freud, Bowlby propõe um modelo alternativo no qual , . . . sugere que o apego e um comportamento mstmtlvo associado à autopreservação e que, portanto, o vínculo seria um produto da interação da carga genética com o ambiente precoce em que o bebê se encontra. Ele salientava que o apego dependia muito de expressões faciais, postura, do tom de voz, mudanças fisiológicas, movimentos e que tudo isso poderia ser sentido pelo bebê como algo - prazeroso. prazeroso ou nao Ele concluiu que o vínculo mãe-bebê é acompanhado por fortes sentimentos e emoções, de felicidade ou não, e que a capacidade de o bebê de lidar com o estresse estaria correlacionada com certos comportamentos maternos. Ele sugeria que o sistema de apego estaria prontamente ativado até o final do terceiro ano de vida, quando a capacidade da criança lidar com a separação melhoraria "abruptamente" ao passar para um novo limiar de maturação.Sob a perspectiva mais atual das Neurociências, a teoria do apego de Bowby poderia estar lo calizada anatomicamente, segundo Allan Schore 10 , no córtex órbito-frontal, uma área que alguns autores chamam de "o executor sênior das emoções cerebrais". Baseados na teoria de Bowlby, autores têm sugerido que o sistema límbico seria o local de mudanças desenvolvimentais associadas ao aumento de comportamentos de vínculo. De fato, o período específico dos 7 aos 15 meses do bebê tem sido postulado como o período crítico para a mielinização e, portanto, para a maturação de áreas associativas corticais e límbicas rapidamente desen volvidas nessa fase. As áreas límbicas do córtex cerebral humano mostram maturação anatômica aos 15 meses. Estudos mais recentes vêm demonstrando que a sincronia dos afetos face -a-face entre o cuidador e o bebê influencia diretamente o imprinting, a circuitaria do córtex orbital pré-frontal. Essa área córtico-límbica é conhecida por iniciar uma importante mudança maturativa dos 10 aos 12 meses e de completar um período crítico de crescimento do meio ao final do segundo ano de vida. Dessa forma, a integridade do córtex órbito-frontal é necessária na aquisição de formas muito específicas de conhecimento que regulam comportamentos interpessoais e SOCiaiS.
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A região do córtex pré-frontal está especialmente expandida no hemisfério direito, o qual é especializado no controle inibitório, e atua na função de controle executivo para todo o cérebro direito. Esse hemisfério, que é dominante para os processos inconscientes, computa, de mo mento a momento, a saliência afetiva do estímulo externo. Levando em consideração as descrições iniciais de Bowlby, esse sistema lateralizado recebe cargas afetivas positivas e negativas, de acordo com a calibragem dos graus de prazerdesprazer. Ele também contém um "léxico afetivo não verbal" nas palavras de Bowlby, que seria um vocabulário para sinais afetivos não verbais como expressões faciais, gestos, tom vocal e prosódia. Dessa forma, o hemisfério direito é muito mais rápido que o esquerdo em realizar avaliações automáticas de expressões afetivas faciais. Existe uma série de trabalhos mostrando que a maturação precoce do hemisfério direito do bebê é especificamente impactada por experiências sociais precoces 19. Um importante estudo na área utilizando SPECT demonstrou que o hemisfério direito é dominante em bebês humanos pré-verbais, sendo, por conseguinte, dominante nos primeiros três anos de vida. Schore 10 sugere que essa mudança ontogenética de dominância do hemisfério direito para o esquerdo, após esse período, poderia explicar a descrição de Bowlby sobre a diminuição do sistema de apego ao final do terceiro ano de vida que seria devido a uma passagem "abruptà' para um limiar de maturação. Estudos neuropsicológicos indicam que as experiências emocionais dos bebês são desproporcionalmente armazenadas e processadas no hemisfério direito durante os estágios de formação da ontogenia cerebral. Os bebês "confiariam'' primariamente na sua memória procedural durante os primeiros dois a três anos de vida. Dessa forma, o hemisfério direito conteria "a representação cerebral do próprio passado de alguém'' e o substrato da memória afetiva autobiográfica. Esses achados sugerem que os modelos de formação interna precoce das relações de apego são processados e armazenados em sistemas de memória implícita no hemisfério direito. Hoje em dia, sabe-se que o hemisfério direito medeia a cognição empática e a percepção de estados emocionais de outros seres humanos. A fun ção órbito-frontal é essencial para a capacidade de inferir os estados dos outros. Essa capacidade adaptativa pode ser, portanto, o melhor desfecho em decorrência de um bom vínculo com um cuidador. Cabe lembrar, ainda, que o eixo hipotálamo-hipófiseadrenal, assim como o eixo simpático-adrenomedular estão, ambos, sob controle principal do córtex cerebral direito. Esse hemisfério contém um sistema de resposta único preparando o organismo para lidar de maneira eficiente com desafios externos e, por isso, suas funções adaptativas medeiam a resposta humana ao estresse. Pesquisas básicas sobre a fisiologia do estresse têm demonstrado que a resposta comportamental e fisiológica de um indivíduo a um estressor específico é consistente ao longo do tempo.
Finalmente, é importante ressaltar que essas experiências de apego são fixadas na memória implícita (procedural) como modelos internos duradouros, os quais são convertidos em estratégias de lidar com a regulação de afetos que mantêm a regulação básica e o afeto positivo mesmo em face de desafios ambientais. O modelo psicanalítico da Teoria do Apego de John Bowlby poderia agora ser conceitualizado, à luz das neurociências, como "um modelo de processamento mental de informação baseado na cognição e no afeto para criar modelos de realidade': como afirmam Crittenden et al. 20. A rede límbica pré-frontal anterior, que interconecta o córtex pré-frontal orbital e mediai com o lobo temporal, cíngulo e amígdala, está envolvida em respostas afetivas a eventos e no processamento e armazenamento mnemônico dessas respostas. Essa rede constitui um sistema mental de controle que é essencial para ajustar o pensamento e o comportamento à realidade. Um indicador definitivo de que um apego seguro é resiliente frente a um estresse, se baseia na capacidade flexível de regular estados emocionais via autorregulação e regulação interativa. Contudo, ambientes precoces que causem vínculos inseguros inibem o crescimento desse sistema de controle mental. Dessa forma, não seria errôneo afirmar que os cuidados maternos durante a infân. serv1nam . . c1a para programar'' respostas comportamentais ao estresse nos seus filhos 8 • Achados neurobiológicos durante o desenvolvimento suportam a idéia de que experiências precoces de bebês com suas mães (ou até a ausência dessas experiências) podem vir a influenciar em como eles responderão aos seus próprios bebês quando forem adultos. Allan Schore 10 sugere que a transmissão transgeracional da dificuldade de lidar com o estresse ocorreria no contexto de ambientes que são inibidores do desenvolvimento de circuitos córtico-límbicos regulatórios esculpidos por experiências precoces. As psicopatologias relacionadas ao apego são, dessa forma, expressas na desregulação de funções sociais, comportamentais e biológicas que estão associadas com um imaturo sistema de controle fronto-límbico e um ineficiente hemisfério direito. Essa nova conceitualização de Schore conduz diretamente à antiga afirmação de Bowlby de que a Teoria do Apego poderia ser usada para modelar as etiologias precoces de um grupo diverso de transtornos psiquiátricos e das mudanças neuropsicológicas que os acompanham. ((
A influência do ambiente social: o cérebro social É o poder de estar com os outros que molda nossos cé-
rebros. Louis Cozolino 1
Antes de se abordar, em mais detalhes, a questão da influência do ambiente social, é necessário atentar para uma afirmação de Louis Cozolino que diz: "as amizades, o casamento, a psicoterapia - de fato, qualquer relacionamento
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significativo - pode reativar processos neuroplásticos e realmente mudar a estrutura cerebral" 1• É sob essa perspectiva, portanto, que detalharemos, a seguir, os fatores sociais como fatores capazes de promover neuroplasticidade. O mesmo autor também cita: "As relações são o nos so habitat natural". Também, a expansão do córtex em primatas ocorre em associação direta com o aumento dos grupos sociais. Enquanto muitos animais necessitam nas cer imediatamente preparados para desafios de sobrevivência, os bebês humanos apresentam o privilégio de ter vários anos de total dependência durante os quais os seus cérebros podem se desenvolver, se adaptar e serem moldados por experiências muito específicas 1• À medida que o tamanho dos grupos de primatas se expande, as lambidas, os grunhidos e os gestos de mãos, que são adequados em pequenos grupos, são gradualmente moldados para uma linguagem mais complexa1 • Ser membro de uma sociedade complexa requer um cérebro que já nasça pronto para aprender uma vasta quantidade de informação social que leva muitos anos para dominar. Ao mesmo tempo, o cérebro social nasce relativamente imaturo e necessita um longo período de dependência. Os humanos possuem os cérebros mais complexos e a mais intrincada sociedade, e têm o período mais prolongado de dependência do que qualquer outra espécie 1• Sabe-se que apenas o cérebro neomamífero é capaz de comunicação consciente e verbal, o que traz funda mentais consequências para as relações sociais (Quadro I). Como citado anteriormente, os períodos de exuberante crescimento neuronal são referidos como períodos críticos ou sensíveis. Durante o segundo ano de vida, p. ex., um rápido crescimento ocorre no hemisfério esquerdo. Nós aprendemos a gatinhar e, após, a caminhar assim que nos tornamos familiarizados com o mundo. Uma explosão de habilidades verbais e de aumento de locomoção nos leva a explorar o mundo físico e social. Nos lobos frontais, há uma mudança de direcionamento no desenvolvimento de áreas órbito-mediais para dorsolaterais, as quais se conectam com outras regiões
Quadro I
Sistemas que facilitam a conexão e a regulação interpessoal
Sistemas de estresse e de medo: luta e fuga, evitação. Sistemas de recompensa: vínculo, ligação, motivação social. Sistemas de engajamento: regulação afetiva, modulação do medo, redução do estresse, esquema de apego. Sistemas visuais sociais: orientação a faces, reconhecimento de faces, expressões faciais. Sistemas de espelhos: imitação, aprendizado, comunicação, empatia, teoria da mente. Sistemas simbólicos: objetos internos, palavras, metáforas, narrativas. Adaptada de Louis Cozolino, 2006, p. 2991.
corticais que organizam e desenvolvem a nossa rede de linguagem. Nesse caminho, os movimentos das mãos e dos olhos se tornam conectados a estímulos visuais e palavras. O corpo caloso inicia a se desenvolver a partir do final do primeiro ano de vida. A maturação do corpo caloso permite a integração das capacidades semânticas do hemisfério esquerdo com as redes emocionais e somáticas centradas no hemisfério direito 1 • A socialização do cérebro permite o fundamento para formas gradativamente sofisticadas de comunicação, a emergência da linguagem e o nascimento, portanto, da cultura. A evolução da cultura, por sua vez, permite altos níveis de complexidade biológica, comportamental e tecnológica que emergem não apenas em indivíduos selecionados, mas por meio de grupos como um todo 1• As relações entre humanos permitiram que um funcionamento simbólico e a cultura emergissem do esforço de milhões de indivíduos durante incontáveis gerações. Assim, quanto mais inter-relacionados os organismos individuais se tornarem, mais um grande grupo começa a agir como sendo apenas um indivíduo. Como afirma Cozolino 1 : Seja um enxame de abelhas, um grupo de onças correndo nas savanas ou milhares de humanos seguindo a última moda; dos neurônios aos insetos, dos macacos aos humanos, estar junto de uma forma nova e criativa pode aumentar a sobrevivência.
Considerações finais Jacques Monod21 , prêmio Nobel de biologia molecular, referindo-se ao empreendimento científico, inspirou-se em outro prêmio Nobel, desta vez de literatura, Albert Camus, para sugerir qual deveria ser a posição do cientista. Em sua releitura do mito de Sísifo, o qual desafiou os deuses e foi condenado a rolar uma rocha montanha acima apenas para vê-la rolar de volta e ter que recomeçar, por toda a eternidade, Camus22 afirmou que era necessário que fôssemos capazes de imaginar um Sísifo feliz apenas com o fato de tentar, e com sua liberdade de espírito, apesar da prisão que lhe foi imposta. Monod lembrou que o pesquisador também não deve almejar garantia de sucesso nem resultados permanentes, mas pode ser capaz de ter prazer na tentativa, mesmo que seja apenas para ver a rocha rolar montanha abaixo logo após. Talvez a tentativa de consiliência entre áreas do conhecimento objetivas e subjetivas esteja fadada a rolar montanha abaixo infinitas vezes, mas o crescimento que se obtenha neste empreendimento provavelmente valha a pena. Munidos de boa vontade e pendendo para o lado da cooperação, dentro da norma de reação cooperação-competição, alguns psicanalistas e alguns neurocientistas têm conseguido dialogar e tirar deste diálogo algumas propostas interessantes, e uma linguagem mais aproximada. E até algumas surpresas, como o fato de que um vínculo humano
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intenso como ponto de apoio para a alavancagem psicoterápica faça todo o sentido do ponto de vista da neurociência dos afetos, na medida em que estes aumentam a plasticidade para o aprendizado, adaptação e resiliência, sendo acionados em situações avaliadas como relevantes para o organismo. Fora destas áreas de intersecção, cada campo mantém suas diferenças e especificidades. As neurociências também podem trazer um ponto de vista necessário ao equilíbrio entre a psiquiatria e psicanálise, num primeiro plano focando no estudo do funcionamento fisiológico, e num segundo momento carregando este conhecimento para a compreensão da disfunção, da patologia. Tanto a psiquiatria, quanto a psicanálise costumam partir da patologia para às vezes chegar à fisiologia, o que pode acarretar distorções e lacunas de compreensão do funcionamento do psiquismo. Em conclusão, o presente capítulo objetivou prover subsídios para descrever a potencial influência do ambiente familiar e social a partir de um ponto de vista consciliente, no qual se acredita ser possível um diálogo frutífero entre as contribuições objetivas dos fenômenos mentais pelas neurociências e a visão psicanalítica do psiquismo.
Questões 1. 'A genética dita a gama de possibilidades; as experiências esco-
a) b) c) d) e)
lhem ou fixam alguma faixa dessas possibilidades". Esta definição tem sido associada mais diretamente ao conceito de: Neotenia Afetos como reguladores homeostáticos Memória implícita e explícita Norma de reação Hermenêutica
2. Este autor propôs que o vínculo seria um produto da interação da
a) b) c) d)
e)
carga genética com o ambiente precoce em que o bebê se encontra. sugerindo uma nova definição para o conceito de apego: Freud Kraeplin Jaspers Bowlby Miller
3. São sistemas que não facilitam a conexão e regulação interpessoal: a) Sistemas de espelhos b) Sistemas de recompensa c) Sistemas de estresse e medo d) Sistemas simbólicos e) Sistemas virtuais
4. a) b) c) d) e)
Também conhecida como memória implícita. está associada a: Habilidades e hábitos Memória para lembrar nomes Funções cognitivas complexas Padrões morais Histeria
5. O Modelo da Consiliência. proposto por Edward Wilson. propõe
a) b) c) d) e)
que estão presentes nas manifestações psíquicas uma importante interface entre fatores. com exceção de: Fatores psicológicos Fatores biológicos Fatores parapsicológicos Fatores físicos/químicos Fatores sociais
Referências bibliográficas 1. Cozolino LJ. The nemoscience ofhuman relationships: attachment and the developing social brain. New York: 'v\TW Norton & Company, 2006. 2. Kandel ER. Psychiatry, psychonanalysis and the new biology of mind. Arlington: American Psychiatric Publishing, 2005 3. Damásio A. The feeling of what happens. London: William Heinemann, 1999. 4. Damásio A. Looking for Spinoza: joy, sorrow and the feeling brain. New York: Harcomt, 2003. 5. Panksepp J. Affective Neuroscience: the foundations ofhuman and animal emotions. New York: Oxford University Press, 1998. 6. 6. Wilson EO. Consilience: the unity ofknowledge. New York: Vintage Books, 1998. 7. Chmchland P. Catching consciousness in a recmrent net. In: Nemophilosophy at work, New York: Cambridge University Press, 2007. 8. Caldji C, Tannenbaum B, Sharma S et al. Maternal care dming infancy regulates the development of nemal systems mediating the expression of fearfulness in the rat. Nemobiology. 1998; 95(9):5335-40 9. Hensch T. Critical period regulation. Annu Rev Nemosci. 2004;27: 54979. 10. Schore AN. Affect dysregulation and the disorders ofthe self. New York: 'v\TW Norton & Company, 2003. 11. Julezs B, Kovács, I. Maturational windows and adult cortical plasticity, Santa Fe Institute Proceedings, v.XXIII, Massachusetts: Addison-Wesley, 1995. 12. Gould SJ. Ontogeny and phylogeny. London: the Belknap Press ofHarvard University Press, 1977. 13. Blanc M. Os herdeiros de Darwin. São Paulo: Scritta; 1994. 14. Bjorklund DF. The role of immaturity in human development': Psychological Bulletin 1997;122(2): 153-69. 15. Chugani H. Biological basis of emotions: brain systems and brain development. Pediatrics. 1998;102(5): 1225-9. 16. Rolls ET. The brain and emotion. Oxford: Oxford University Press, 1999. 17. Bowlby J. Attachment and Loss, vol. 1, New York: Basic, 1969. 18. Bowlby J. Attachment and Loss, vol. 2, New York: Basic, 1973. 19. Chiron J, Jambaque I, Nabbout R, et al. The right hemisphere is dominant in hmnan infants. Brain. 1997;120:1057-65. 20. Crittenden PM. Attachment an psychopathology. In: Goldberg S, Muir R, Kerr J (eds.). Attachment theory: social, developmental and clinical perspectives. New Jersey: Analytic Press, 1995. 21. Monod J. Le Hasard et la nécessité - essay sm la philosophie naturelle de la biologie moderne. Paris: du Seuil, 1970. 22. Camus A. Le Mythe de Sisyphe. Paris: Gallimard, 1942.
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Sistemas Neuroquímicos no Sistema Nervoso Central e a Psicofarmacologia Clari ce Gorenstein Tania Marcourakis Carolina Demarchi Munhoz
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 206 Mecanismos gerais de ação dos psicofármacos, 207 Neurotransmissão, 208 Neurotransmissores centrais, 208 Neurotransmissores aminoácidos, 208
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Acetilcolina (ACh). 211 Aminas bioativas, 212 Neuropeptídeos, 217 Questões, 218 Referências bibliográficas, 218
Introdução Os psicofármacos estão sujeitos aos mesmos princípios que determinam os processos farmacocinéticos ( absorção, distribuição, biotransformação e excreção) dos fármacos de ação sistêmica. As características físico-químicas do fármaco e as condições do organismo é que vão determinar sua concentração nos locais de ação. A particularidade é que os psicofármacos precisam necessariamente atravessar a barreira hematoencefálica (BHE) para exercer seus efeitos terapêuticos. A biodisponibilidade, a qual corresponde à fração inalterada do fármaco que atinge a circulação sistêmica após a administração, é o primeiro parâmetro necessário para definir a concentração que irá atingir o sistema nervoso central (SNC). Como a maioria dos psicofármacos sofre metabolismo de primeira passagem, sua biodisponibilidade é, em geral, muito inferior a um. Por exemplo, para os antidepressivos tricíclicos há uma redução de mais de 50% da dose administrada. Neurolépticos, levodopa (LDopa), bupropiona, metilfenidato, nefazodona, benzodiazepínicos são outros exemplos de fármacos que passam
1. Compreender as principais características que definem um psico-
fármaco. 2. Conhecer os principais mecanismos envolvidos na ação dos psicofármacos. 3. Descrever as vias dos principais neurotransmissores envolvidos na ação dos psicofármacos. 4. Entender os receptores envolvidos na ação dos neurotransmissores centrais. 5. Conhecer as principais funções dos neurotransmissores centrais.
pelo sistema portal diretamente para o fígado e são metabalizados antes mesmo de atingir a circulação sistêmica. A passagem dos psicofármacos pela BHE é que determina a concentração que vai atingir o encéfalo. O que limita o acesso da periferia ao SN C é a justaposição das células do endotélio dos capilares cerebrais e das células gliais pericapilares. Essa barreira, que não existe no sistema nervoso periférico, não é homogeneamente distribuída, sendo muito menos proeminente no hipotálamo e em órgãos circunventriculares que revestem o terceiro e quarto ventrículos'. Os mesmos princípios que regem a absorção definem a passagem pela BHE. Os psicofármacos são em geral lipossolúveis e, portanto, não encontram dificuldade na passagem para o SNC. Compostos com peso molecular de aproximadamente 60 mil ou mais e aqueles que se ligam às proteínas plasmáticas tendem a não penetrar no encéfalo. Muitos psicofármacos, como os antidepressivos tricíclicos e os benzodiazepínicos, ligam -se com alta afinidade às proteínas plasmáticas (mais de 90%), fazendo com que apenas uma pequena fração da dose administrada penetre no SNC. É por isso que às vezes é necessá-
19 SISTEMAS NEUROQUÍMICOS NO SNC E A PSICOFARMACOLOGIA
rio reduzir a dose nos casos de desnutrição e envelhecimento, nos quais há diminuição do conteúdo de proteínas, para evitar que o aumento da quantidade de fármaco livre produza uma exacerbação do efeito farmacológico e surgimento de reações adversas 2 •
Mecanismos gerais de ação dos psicofármacos A maior parte dos psicofármacos utilizados na prática clínica atual, por diferentes mecanismos, modula positiva ou negativamente a neurotransmissão, seja por uma ação pré ou pós-sináptica. Entre as pré -sinápticas estão as ações sobre: a) síntese de neurotransmissores: aumento (p. ex., pela L-Dopa, precursor da síntese de dopamina) ou diminuição (p. ex., p -clorofenilalanina que bloqueia a síntese de serotonina); b) liberação de neurotransmissores (p. ex., anfetamina, que aumenta a liberação de DA e NA); c) biotransformação de neurotransmissores (antidepressivos inibidores da MAO não seletivos e irreversíveis, como a tranicilpromina, fenelzina ou seletivos e reversíveis, como a moclobemida; anticolinesterásicos como a rivastigmina, donepezil, galantamina); e d) transportadores de neurotransmissores. A inibição da recaptação de neurotransmissores corresponde ao alvo terapêutico de aproximadamente 30% dos psicofármacos. Eles podem atuar seletivamente sobre serotonina (citalopram, escitalopram, fluoxetina, flu voxamina, paroxetina, sertralina), dopamina- DA (bupropiona), noradrenalina- NA (reboxetina, viloxazina) e serotonina (antidepressivos tricíclicos - amitriptilina, imipramina, clomipramina, nortriptilina, desipramina, venlafaxina, desvenlafaxina, duloxetina). A ação pós-sináptica ocorre principalmente em receptores que podem ser classificados em intracelulares e receptores de membrana, os quais estão divididos em receptores ionotrópicos e metabotrópicos. Os receptores ionotrópicos são canais iônicos operados por ligantes (p. ex., receptores GABAAe glutamatérgico). Já os receptores metabotrópicos são subdivididos em duas categorias: receptores acoplados à proteína G e receptores enzimas3 • Os acoplados à proteína G desencadeiam respostas dependentes da fosforilação de proteínas quinases que fos forilam serina/treonina, desencadeando cadeias de sinalização4,5. Esta é a maior classe de receptores conhecidos, incluindo receptores para neurotransmissores como noradrenalina (a e~), acetilcolina (muscarínicos), serotonina, dopamina, endorfinas, prostaglandinas e também para hormônios (melatonina, colecistoquinina). As propriedades dos receptores de membrana e intracelulares estão descritos no Capítulo 20. Cerca de 30% dos psicofármacos atuam em receptores acoplados à proteína G (p. ex., antipsicóticos, agomelatina, buspirona, mirtazapina), 20% em receptores ionotrópicos (p. ex., benzodiazepínicos, memantina) e 10% em canais iônicos
dependentes de voltagem (p. ex., carbamazepina, ácido valproico, lamotrigina). Além desses, há também os alvos intracelulares, tais como a enzima glicogênio sintase quinase (GSK-3), sobre a qual atua o lítio. Muitas teorias tentam explicar como a interação fármaco -receptor gera o efeito biológico. A teoria da ocupação, formulada por Clark na década de 1930, considerava que a intensidade do efeito é proporcional à fração de receptores ocupados 1• Posteriormente, Arü~ns modificou essa teoria propondo que o efeito seria proporcional à quantidade de receptores ocupados e dependeria também da atividade intrínseca do fármaco, que pode variar de Oa 1. De acordo com esse conceito, os fármacos podem ser classificados como agonistas fortes ou plenos, agonistas parciais e antagonistas. Os agonistas fortes possuem afinidade pelo receptor e atividade intrínseca igual a 1 e são capazes de produzir o efeito máximo. Os agonistas parciais, com atividade intrínseca entre O e 1, não conseguem produzir a resposta máxima por mais que a dose seja aumentada. Já os antagonistas são os fármacos que têm alta afinidade pelo receptor, porém sem atividade intrínseca (zero). A teoria de Ariens foi modificada por Stephenson, na década de 1950, que introduziu o conceito de eficácia. Os agonistas fortes podem possuir eficácias diferentes, qualquer valor acima de zero, e terão necessidade de ocupar um número diferente de receptores para produzirem o mesmo efeito. Portanto, é possível que um fármaco com eficácia muito elevada desencadeie resposta máxima sem ocupar todos os receptores, o que implica a existência de receptores de reserva. Por outro lado, fármacos com pequena eficácia (agonistas parciais) não atingem a resposta máxima, mesmo ocupando todos os receptores 1• A Teoria dos Estados do Receptor e o conceito do agonista inverso surgiram a partir da descoberta de que os benzodiazepínicos e os análogos das ~-carbolinas atuavam em um mesmo sítio do receptor ionotrópico GABAA, porém produzindo efeitos opostos. Os efeitos terapêuticos dos benzodiazepínicos (p. ex., ansiolítico e anticonvulsivante) são decorrentes do aumento da probabilidade de manter ocanal de cloreto aberto. Já os efeitos ansiogênicos e convulsivantes das ~-carbolinas são decorrentes da diminuição da abertura do canal. O flumazenil, que é antagonista competitivo do mesmo receptor, bloqueia ambos os efeitos1 • De acordo com a Teoria dos Estados do Receptor, o receptor pode estar no estado de repouso ou ativo independente da presença do agonista. Os agonistas, total ou parcial, ativam o receptor em comparação ao estado de repouso; o agonista inverso estabiliza o receptor no estado inativo, levando a uma redução funcional; o antagonista estabiliza o receptor no estado de repouso 1 • As vias intracelulares de transdução de sinais decorrentes da ativação dos receptores, bem como os principais mecanismos de plasticidade sináptica, estão descritos no Capítulo 20. É importante destacar que os efeitos da administração crônica de muitos psicofármacos estão
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
ligados a alterações plásticas celulares em consequência da criação de um novo padrão de expressão de diversas proteínas6' 7 • Por exemplo, a necessidade de várias semanas para o início dos efeitos terapêuticos dos antidepressivos e antipsicóticos está associada às alterações na expressão de receptores e outras proteínas induzidas pela sinalização intracelular associada à PKA (proteína quinase dependente de AMPc) e ao CREB (proteína de ligação ao elemento responsivo ao AMPc).
Neurotransmissão Neurotransmissores são mediadores químicos endógenos responsáveis por transmitir informações de um neurônio (pré-sináptico) para outro (pós-sináptico) por meio das sinapses. Para ser considerado um neurotransmissor, esse mediador deve8 : • ser sintetizado a partir de um precursor e armazenado no neurônio pré-sináptico; • ser liberado do neurônio pré-sináptico concomitantemente com a ativação elétrica desse neurônio (normalmente a chegada de um potencial de ação) e em concentrações suficientes para afetar o neurônio pós-sináptico; • ligar-se a receptores específicos presentes nos neuromos pos-smaptlcos; • ser degradado por mecanismos bioquímicas específicos presentes na fenda sináptica ou em células adjacentes. A
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descarboxilase do ácido glutâmico (GAD) nas terminações nervosas GABAérgicas. Uma vez formado, esse aminoácido é armazenado em vesículas nos neurônios présinápticos e liberado em resposta a um potencial de ação8 . Término da ação
O término da ação GABAérgica ocorre pela sua remoção do meio extracelular. O GABA é captado por neurônios e células da glia por transportadores de GABA (GAT) específicos. No interior das células, enzimas mitocondriais, como a GABA transaminase (GABA-T), catalisam a conversão do GABA em glutamato8 • Receptores
Os receptores GABAérgicos são divididos em três tipos principais 10 : GABA , GABA e GABA , sendo dois ionotrópicos (GABAA e ÓABAc), que são cihais de íon cloreto. Os receptores GABABsão metabotrópicos acoplados
TERMINAÇÃO NERVOSA
•
Precursor do transmissor ---.. Precursor
!®
Neurotransmissores centrais Os neurotransmissores são classificados de acordo com suas categorias químicas em aminoácidos, aminas e neuropeptídeos. A Tabela I mostra os principais neurotransmissores envolvidos na ação dos psicofármacos e resume as atividades farmacológicas de cada um deles. A Figura 1 apresenta os mecanismos gerais envolvidos na síntese, na liberação e no término de ação dos principais neurotransmissores.
Neurotransmissores aminoácidos
GABA A função do GABA (ácido gama-aminobutírico) como neurotransmissor foi identificada na década de 1950. Diferente de outros neurotransmissores, o GABA é quase exclusivamente encontrado no SNC, sendo seu principal neurotransmissor inibitório. O GABA está envolvido em várias funções, tais como atenção, sono, ansiedade, memória e tônus muscular9 • Síntese e liberação
O GABA é sintetizado a partir do glutamato que é descarboxilado e transformado em GABA pela enzima
-- -----+ T , •T
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Produtos de degradação
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' ----------------'---------------T - - - Transmissor inativado ®
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Figura 1 Este esquema apresenta os mecanismos gerais envolvidos na síntese, na liberação e no término de ação dos principais neurotransmissores (T), como NA, DA, 5-HT, GLU e GABA. A síntese inicia-se a partir de precursores, que são aminoácidos captados pelo neurônio (1). Uma vez no terminal pré -sináptico, este aminoácido sofre ação de enzimas específicas (2) para formar o neurotransmissor que é armazenado em vesículas (3). Pela propagação do potencial de ação (4), de forma dependente de cálcio (5), a vesícula funde-se com a membrana plasmática (6) e o neurotransmissor é liberado, por exocitose, na fenda sináptica, podendo interagir com receptores pós (7) e pré-sinápticos (8). O término da ação pode ocorrer pela biotransformação do neurotransmissor na fenda sináptica (9) ou pela sua recaptação pelo terminal pré-sináptico (1O), seguida por degradação por enzimas (11).
19 SISTEMAS NEUROQUÍMICOS NO SNC E A PSICOFARMACOLOGIA
Tabela I
Principais neurotransmissores envolvidos na ação de psicofármacos com seus respectivos receptores e sinalização de transdução
Transmissor
Receptor
GABA
GABAA, isoformas
Glutamato
Acetilcolina
Tipo de sinalização
p, y, o, n, E, 9, p
GABA8
Efeito pré e pós-sinápticos
GABAc
Respostas lentas e sustentadas via canais de Cl·
AMPA
Transmissão inibitória rápida clássica via canais de cátion
NMDA NMDA 1,2A-D
Transmissão excitatória lenta controlada pela despolarização de Mg2+
mGLU 1,5 (grupo I mGiuRs) mGLU 2,3 (grupo 11 mGiuRs) mGLU 4,6,7,8 (grupo 111 mGiuRs)
GPCR: modulador; regula os canais iônicos, produção do segundo mensageiro e fosforilação de proteína Acoplamento in vitro; grupo I, Gq; grupos 11 e 111, G;
Nicotina
Transmissão excitatória rápida clássica via canais de cátions
~-• e P2.4 isoformas
M,.4
GPCR: modulador M ,, M 3 : Gq, IP/ Ca 2+ M2. M.: G;, cAM P
D,.s
GPCR: O,, 0 5: G. acoplado; 0 2•3.. : G; acoplado
Muscarínico Dopam i na Noradrenalina
Serotonina
Transmissão inibitória rápida clássica via canais Cl·
GPC R: Gq111 acoplado ~A-C
GPCR: G;10 acoplado
P,.3
GPC R: G. acoplado
5-HT,A-F
GPCR: G;10 acoplado
5-HT2A·C
GPCR: Gq11 1 acoplado
5-HT3
Transmissão excitatória rápida clássica via canais de cátions
5-HT4 •7
GPRC: 5-HT4•6.,. G. acoplado 5-HT. G. acoplado
NPY
GPCR: G;10 acoplado
Neurotensina
NTSl NTS2
GPCR: Gq11 1 acoplado
Peptídeos opioides
1J CP-endorfina)
GPCR: G;10 acoplado
o (Met5-Enk) K
(Dyn A)
à proteína G e também afetam as correntes iônicas neuronais por inibirem a adenilil ciclase, diminuírem AMP cíclico e ativarem canais de potássio e os canais de cálcio regulados por voltagem. O receptor GABAc tem distribuição menos ampla que os subtipos A e B, sendo encontrado na retina, na medula espinhal, no colículo superior e na hipófise. Os ligantes dos receptores dos subtipos A e B parecem não interagir com receptores GABAc. A ligação do GABA ao receptor GABAAaumenta o influxo de Cl· e, consequentemente, provoca hiperpolarização neuronal, que por sua vez inibe a geração do potencial de ação, produzindo um efeito inibitório na neurotransmissão. Esse tipo de receptor tem uma estrutura pentamérica e no centro de suas cinco subunidades localiza-se o canal iônico. Os subtipos (ou isoformas) de receptor GABA são determinados pelo tipo de subunidaA de presentes no receptor: ex (6 isoformas), ~ (3 isoformas), y (3 isoformas), 8, €, rr, 8, p (3 isoformas). Há muitas pos-
sibilidades de combinação, porém a maioria dos receptores é composta por subunidades ex, ~ e y10•11 . Funções GABAérgicas
O GABA é o principal neurotransmissor inibitório do SNC de mamíferos e seus receptores estão amplamente distribuídos no encéfalo. O GABA modula várias fun ções: afeta a reatividade e a atenção, forma a memória, influencia na ansiedade, no sono e também no tônus muscular 12 . Disfunções dos receptores GABAAe GABAB têm sido implicadas em condições neuropsiquiátricas, tais como epilepsia, transtornos de ansiedade e afetivos e síndromes de dor 10 • Na doença de Huntington, há degeneração de neurônios GABAérgicos do núcleo estriado, responsável pelos movimentos involuntários da do ença. O papel dos receptores GABAc está sendo estudado em vários aspectos do SNC, como memória, sono, dor e miopia 13 •
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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VERTENTES DO CONHECIMENTO
Farmacologia dos neurônios GABAérgicos Os fármacos podem influenciar a neurotransmissão GABAérgica de diferentes maneiras. Alguns anticonvulsivantes inibem enzimas envolvidas na degradação do GABA, GABA-T (vigabatrina e ácido valproico) e semialdeído succínico desidrogenase (ácido valproico). Outra ação no neurônio pré-sináptico é a inibição da recaptação do GABA pelo anticonvulsivante tiagabina. Os agentes terapêuticos que ativam os receptores GABAAsão utilizados para indução da sedação e do sono, diminuição da ansiedade, relaxamento muscular e como anticonvulsivantes. Os benzodiazepínicos (BZ), usados clinicamente como ansiolíticos e hipnóticos, potencializam a transmissão GABAérgica em áreas do SNC associadas a esses efeitos. Os receptores GABAAque contêm subunidades ex. 1 parecem mais envolvidos nos efeitos sedativos e amnésticos e parcialmente nos anticonvulsivantes, enquanto aqueles que possuem subunidades ex. 2 e/ ou ex. 3 mediariam o efeito ansiolítico e relaxante muscular2. Outros fármacos também podem se ligar a sítios moduladores no receptor GABA , tais como barbitúricos, A anestésicos, esteroides, zinco e avermecetina, além dos agentes convulsivantes bicuculina, picrotoxina e pentilenotetrazol. Há também sítios adicionais de reconheci mento para etanol, propofol e clometiazona. O agonista do receptor GABAB(baclofeno) é utilizado como relaxante muscular para tratamento de espasticidade e nevralgia do trigêmeo. Potenciais novos alvos terapêuticos envolvendo a transmissão GABAérgica têm sido estudados em relação ao tratamento da ansiedade e da dor. Na busca por ligantes endógenos dos sítios de ligação de benzodiazepínicos, foi isolado um peptídeo inibidor da ligação do diazepam (DBI, diazepam binding inhibitor) com efeito ansiogênico e pró-convulsivante. O DBI, por ação em receptores periféricos de benzodiazepínicos, aumenta a síntese de neuroesteroides que, por sua vez, podem aumentar a fun ção do receptor GABAA1\ diminuindo a ansiedade. Compostos que atuam em receptores GABAAde subtipo a2/ a3 têm-se mostrado promissores na supressão da dor patológica15. Glutam ato O glutamato é o principal transmissor excitatório do SNC, sendo amplamente distribuído no encéfalo, onde sua concentração é muito maior que em outros tecidos do organismo. Fisiologicamente, o glutamato está envolvido em processos de plasticidade sináptica, aprendizado e memória. Entretanto, esse neurotransmissor pode ser um potente agente excitotóxico, desencadeando morte neuronal. Essa ação do glutamato tem sido extensamente estudada nas doenças neurodegenerativas como a doença de Alzheimer, doença de Parkinson, doença de Huntington e esclerose lateral amiotrófica9 •
Síntese e liberação A síntese de glutamato ocorre por duas vias: a partir da glicose, proveniente do ciclo de Krebs e transaminação do cx.-oxoglutarato, e a partir da glutamina, sintetizada pelas células da glia, principalmente os astrócitos, e capturada pelos neurônios. Nos neurônios glutamatérgicos, a glutamina sofre ação da enzima glutaminase e é convertida em glutamato. O glutamato produzido é armazenado em vesículas e liberado na fenda sináptica, quando da chegada de um potencial de ação, por um mecanismo de exocitose dependente de Ca2+ 8 . Término da ação A concentração de glutamato é regulada e controlada por mecanismos de recaptação dependentes de Na+, que envolvem diversas proteínas transportadoras de aminoácidos excitatórios no SNC (EAAT). A expressão desses transportadores ocorre de forma diferente nas regiões do SNC. Por exemplo, o EAATl e o EAAT2 são principalmente encontrados nas células da glia, o EAAT3localiza-se preferencialmente em neurônios e o EAAT4, no cerebelo. Quando o glutamato é recapturado pelas células gliais, ele é convertido em glutamina pela ação da enzima glutamina sintetase que é transportada por um processo de baixa afinidade para os neurônios vizinhos, onde será novamente convertida em glutamato. A rápida remoção deglutamato pelo sistema de recaptação de alta afinidade não serve somente para terminar o sinal excitatório e reciclar o glutamato, mas também tem uma função importante na manutenção dos níveis extracelulares de glutamato abaixo dos que poderiam induzir excitoxicidade8 . Receptores Os receptores de glutamato são do tipo ionotrópico e metabotrópico. Até o momento, três subtipos de receptores ionotrópicos foram clonados: NMDA (N-metil-D aspartato), AMPA e cainato. Os receptores NMDA estão associados ao aumento dos níveis de Ca2+ intracelular; já os receptores AMPA e cainato estão relacionados ao aumento de íons sódio. No tecido encefálico de mamíferos adultos, os receptores glutamatérgicos NMDA e AMPA localizam-se em aproximadamente 70% das sinapses, possuindo alta densidade no córtex encefálico, no hipocampo, no estriado, no septo e na amígdala 16 . A ativação da sinapse glutamatérgica ocorre em etapas. O receptor AMPA é o primeiro a ser estimulado na presença de glutamato e produz de forma característica um sinal sináptico excitatório. A ativação do receptor NMDA também é feita pelo glutamato, porém requer a presença de um coagonista, como a glicina ou a D -serina, sendo esta última presente exclusivamente nas células da glia. Entretanto, a ligação do glutamato e do coagonista não é suficiente para a abertura do canal iônico, uma vez que, quando o potencial de membrana está em repouso, o receptor NMDA encontra-se bloqueado por íons Mg2+.
19 SISTEMAS NEUROQUÍMICOS NO SNC E A PSICOFARMACOLOGIA
Somente com a despolarização da membrana, após a ativação dos receptores AMPA ou cainato, é que ocorre o deslocamento dos íons Mg2 +, permitindo a entrada de íons Na+ e Ca2 +. Os receptores cainato, por sua vez, podem ser encontrados pré e pós-sinapticamente e possuem propriedades semelhantes aos receptores AMPA8, 16 • O receptor metabotrópico pode ser de oito subtipos mGluR1_8 organizados em três grupos (I, II e III), de acordo com a homologia de suas sequências, transdução de sinal e farmacologia. Os receptores do grupo I causam excitação neuronal por aumento do Ca2+ intracelular pela ativação da via fosfolipase C (PLC) - trifosfato de inositol (IP3), ou pela ativação da adenilil ciclase e pelo aumento de AMP cíclico. Já os receptores dos grupos II e III causam hiperpolarização das células neuronais por inibirem a adenilil ciclase, diminuírem o AMP cíclico, ativarem canais de potássio e inibirem canais de cálcio regulados por voltagem8, 16. Funções do sistema glutamatérgico
O sistema glutamatérgico está envolvido nos mecanismos de plasticidade neuronal, aprendizado e memória. Os receptores NMDA possuem papel importante na regulação da plasticidade sináptica, atuando nos mecanismos de potenciação de longo prazo (LPT) e depressão de longo prazo (LTD) 9' 17 • Esses mecanismos são a base para modelos de estudos de aprendizado e memória e serão abordados no Capítulo 20. Farmacologia dos neurônios glutamatérgicos
A excitotoxicidade causada pelo glutamato está relacionada à estimulação excessiva dos receptores iono trópicos do tipo NMDA e, por esse motivo, esses recep tores representam importante alvo farmacológico. Um exemplo dessa abordagem é o uso do antagonista, a memantina, no tratamento da doença de Alzheimer 18 • A amantadina, outro antagonista NMDA não competitivo, está sendo usada, em associação com a L-Dopa, para o tratamento da discinesia observada nos pacientes com doença de Parkinson. Antagonistas de receptores AMPA e NMDA também têm sido muito utilizados como fármacos anticonvulsivantes por impedirem o início das convulsões ou diminuírem sua intensidade e sua duração, respectivamente. Outro exemplo de uso de antagonistas do receptor NMDA é o riluzole no tratamento da esclerose lateral amiotrófica 17 • Fármacos que atuam em receptores glutamatérgicos têm sido pesquisados para o tratamento da esquizofrenia, da depressão e dos transtornos de ansiedade 19 ' 20.
Acetilcolina (ACh) No SNC, a acetilcolina tem participação importante nos processos de cognição e controle motor. Os fármacos que alteram a transmissão colinérgica central têm sido
usados para atenuar a progressão de quadros de demência. Seu papel como neurotransmissor é conhecido desde meados dos anos 19208 . Síntese e liberação
A acetilcolina é sintetizada a partir de dois precursores: a colina e a acetilcoenzima A (AceCoA). A colina pode ser proveniente de três fontes: da degradação da acetilcolina pela ação das enzimas colinesterases, da dieta na forma de fosfatidilcolina e de estoques corporais na forma de fosforilcolina. A AceCoA é produzida no processo de glicólise pela enzima piruvato desidrogenase. A síntese desse neurotransmissor nos neurônios colinérgicos pré-sinápticos ocorre em uma única reação catalisada pela enzima colina acetiltransferase (ChAT). Diferente das monoaminas, o passo limitante da reação de síntese da ACh não é mediado pela ChAT, mas sim pela captura de colina nos neurônios pré-sinápticos por meio de transportadores específicos de alta afinidade e dependentes de sódio. Uma vez sintetizada, a ACh é armazenada em vesículas e, assim como os demais neurotransmissores, com a chegada do potencial de ação, essas vesículas fundemse com a membrana celular em um processo dependente de cálcio, liberando a ACh na fenda sináptica 1' 8 • Término da ação
A principal via de degradação da ACh é sua quebra em colina e AceCoA pela enzima acetilcolinesterase presente na fenda sináptica. Existem dois tipos de colinesterases, a acetilcolinesterase (AChE), ou colinesterase verdadeira, e a butirilcolinesterase (BuChE), ou pseudocolinesterase, presente principalmente em células da glia. Alguns estudos sugerem que a BuChE pode participar, em menor escala, do desenvolvimento neural inicial como correguladora de ACh e também pode estar envolvida na fisiopatologia da doença de Alzheimer. Embora ambas possam degradar a ACh, o principal processo no SNC é pela ação da AChE. A ação desta enzima é extremamente rápida (menos de 1 milissegundo) e eficiente, fazendo com que a ação da ACh nos seus receptores seja muito breve (menor que 10 milissegundos). A colina gerada pela degradação da ACh é então capturada pelo neurônio présináptico, quando, então, participará da próxima produção deste neurotransmissor 1'8 . Circuitos colinérgicos
Os neurônios colinérgicos podem atuar como interneurônios no caudado putâmen, núcleo acumbens, bulbo olfatório e no complexo das ilhas de Calleja. Entretanto, eles também atuam como projeções de neurônios que conectam diferentes regiões do encéfalo (Figura 2). Os neurônios colinérgicos do núcleo basal, do núcleo septal mediai e da banda diagonal de Broca fornecem as principais vias colinérgicas para o neocórtex e para o hipocampo. Os neurônios originados do núcleo basal de Meynert são os
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
responsáveis pela inervação do córtex, enquanto as projeções provenientes dos núcleos tegmentallaterodorsal e pedúnculo -pontino fornecem a inervação colinérgica ao tronco encefálico e ao tálamo. Essa via é importante na indução do estado de vigília corticaF 1• Receptores
Existem dois tipos de receptores colinérgicos, os nicotínicos (nAChR), que são receptores ionotrópicos e aumentam o influxo de íons sódio, e os receptores muscarínicos (mAChR), que são metabotrópicos. Os receptores colinérgicos nicotínicos são ativados pela ligação simultânea de duas moléculas de ACh nos sítios de ligação do receptor. Essa ligação gera uma alteração de conformação na estrutura do receptor, fazendo com que se forme o poro seletivo para íons sódio e po tássio através da membrana celular. Dessa maneira, quando ativados, os receptores nicotínicos aumentam o influxo de sódio, gerando despolarização das células nervosas. A estimulação de vários nAChR pode gerar potenciais de ação e abrir canais de cálcio dependente de voltagem. A ligação da AChao nAChR é bastante dinâmica e, quando esse neurotransmissor se dissociado receptor nicotínico, ele é degradado pela AChE 16 • Foram clonados cinco subtipos de receptores muscarínicos (M" M 2, M 3 , M 4 e M 5 ), todos acoplados à proteína G. Como os efeitos da ativação dos receptores nAChR dependem da formação de segundos mensageiros, proteínas quinases e modulação da transcrição gênica, há uma latência de pelo menos 100 a 250 milissegundos para a resposta muscarínica, que é dita lenta quando comparada à ação dos canais nicotínicos8 .
Os receptores muscarínicos estão amplamente distribuídos no organismo, estando presentes em quase todos os órgãos, tecidos e tipos celulares. A transmissão colinérgica central está associada à regulação de várias funções cognitivas, comportamentais, processamento sensorial e motor, sono, humor, resposta ao estresse, motivação e recompensa, além das funções autônomas desse neurotransmissor9 . Os receptores M 1, M 3 e M 5 são acoplados à proteína Gq e transduzem seus sinais pela ativação da enzima fos folipase C (PLC) a qual gera diacilglicerol (DAG) e trifosfato de inositol (IP3), aumentando os níveis de cálcio intracelular. O DAG ativa ainda a proteína quinase de pendente de cálcio (PKC), que fosforila resíduos de serina/treonina em inúmeras proteínas, resultando em respostas fisiológicas diferenciadas. Ainda, a ativação desses receptores pode levar à ativação de outra proteína, a fos folipase A (PLA), e liberar ácido araquidônico da membrana celular, aumentando a síntese de eicosanides, entre eles as prostaglandinas, resultando na ativação parácrina/autócrita de adenilil ciclase. Já os receptores M 2 e M 4 estão associados à proteína Gi que atuam na inibição da adenilil ciclase, diminuindo AMP cíclico, o que ativa os canais de potássio e inibe os canais de cálcio regulados por voltagem, causando hiperpolarização das células nervosas ' . Funções colinérgicas
No SNC, a acetilcolina participa de várias funções, tais como processamento motor e sensorial, sono, nocicepção, humor, resposta ao estresse, atenção, vigília, motivação e humor, sendo considerada um importante mediador nos processos que envolvem a memória22•23 • Farmacologia da neurotransmissão colinérgica
lnterneurônios estriatais
Nesse sentido, fármacos capazes de estimular a sinalização colinérgica são utilizados em pacientes portadores de doenças que alteram a memória, como as demências associadas a processos neurodegenerativos, por exemplo, doença de Alzheimer e de Parkinson24 . Os inibidores da acetilcolinesterase, como o donepezil, têm sido o tratamento de primeira escolha na doença de Alzheimer25. O sistema colinérgico tem sido estudado como um alvo putativo no tratamento de esquizofrenia26 e de dependência de drogas 23 •
Aminas bioativas ACETI LCOLINA Via septo hipocampal
Figura 2 Vias colinérgicas centrais. Am: núcleo amigdaloide, C: cerebelo, Hip: hipocampo, Hyp: hipotálamo, Sep: septo, Str: corpo estriato, SN: substância negra, Th: tálamo.
Dopamina (DA)
Até meados dos anos 1950, acreditava-se que a dopamina era simplesmente um precursor da síntese de noradrenalina (NA), porém, a diferença entre a distribuição encefálica das duas catecolaminas fez com que se demonstrasse que a DA também é um neurotransmissor e está
19 SISTEMAS NEUROQUÍMICOS NO SNC E A PSICOFARMACOLOGIA
envolvida na manutenção do controle motor, atenção, humor, gratificação e comportamento9 • Síntese e liberação
A síntese de DA inicia-se a partir da tirosina transportada através da BHE. A tirosina é um aminoácido não essencial cuja maior parte é obtida na dieta e uma pequena porção pode ser sintetizada no fígado a partir da fenilalanina. Uma vez no neurônio pré-sináptico, a tirosina é convertida em L-Dopa pela enzima tirosina hidroxilase (TH). Essa reação é a etapa limitante da síntese de todas as catecolaminas. A próxima etapa consiste na conversão da L-Dopa em DA pela enzima aminoácido aro mático descarboxilase (AADC), também chamada de Dopa-descarboxilase. A DA recém-sintetizada é transportada para o interior das vesículas secretoras por transportadores específicos. Com a estimulação da célula nervosa, as vesículas se fundem à membrana neuronal, e a DA é liberada na fenda sináptica por exocitose, de forma dependente de cálcio. A atividade da tirosina hidroxilase pode ser regulada por diversos fatores, incluindo a modulação pelo receptor pré-sináptico. Esses receptores são ativados pela liberação de DA, levando a uma inibição por feedback de sua síntese. Os autorreceptores podem modular tanto a síntese quanto a liberação de DA e representam um importante local de manipulação farmacológica das funções dopaminérgicas8 •
receptores da classe D2 estão associados à proteína Gi e causam hiperpolarização das células neuronais por inibirem a adenilil ciclase, diminuírem AMP cíclico, ativarem canais de potássio e inibirem canais de cálcio regulados por voltagem. A localização dos receptores DA varia de acordo com a região do SNC. Os receptores D 1 e D2 estão presentes em todas as regiões dopaminérgicas do encéfalo; na substância negra e na área tegmental ventral, encontram-se altas concentrações do receptor D2. O hipocampo expressa os cinco receptores de DA. O córtex frontal possui quase que exclusivamente receptores do tipo D 1, sugerindo que este receptor tenha um papel importante em funções cognitivas superiores. Os receptores dopaminérgicos pré-sinápticos pertencem à classe D2 e atuam reduzindo o tônus dopaminérgico por diminuir a síntese de DA, a taxa de descarga neuronal e a liberação de DA pelo neurônio pré-sináptico 17,27• Circuitos dopaminérgicos
A remoção da DA da fenda sináptica ocorre de várias maneiras. A maior parte dela é transportada de volta ao neurônio pré-sináptico pelo transportador específico de DA, o DAT. O DAT é uma proteína de 619 aminoácidos com doze domínios transmembrana funcionando como uma bomba de Na+/K+, que recaptura a DA logo após a sua liberação de forma a manter a homeostase do neurotransmissor. No neurônio pré-sináptico, a DA pode ser rearmazenada nas vesículas para ser liberada novamente ou degradada pela ação das enzimas monoamina oxidade (MAO) ou catecol-0 -metil transferase (COMT), também responsáveis pela degradação da noradrenalina. A DA que permanece na fenda sináptica pode difundirse para fora da fenda ou ser degradada pela enzima COMT extraneuronal. A metabolização da dopamina pela MAO intraneuronal forma o ácido diidroxifenilacético (DOPAC). A ação da COMT e da MAO em sequência gera o metabólito ácido homovanílico (HVA) 1' 8 •
Ao contrário do que acontece com a serotonina e a NE cujas projeções são amplamente espalhadas, os neurônios dopaminérgicos formam circuitos mais discretos. Os principais circuitos dopaminérgicos são: nigroestriatal, mesolímbico, mesocortical e tuberoinfundibular (Figura 3). O circuito nigroestriatal é composto pelos neurônios DA que se projetam da formação reticular mesencefálica e da região pars compacta da substância negra do mesencéfalo. Esses neurônios geram axônios que cruzam o prosencéfalo mediai para inervar o núcleo caudado e o putâmen. O circuito mesolímbico consiste em neurônios DA localizados no mesencéfalo, na área tegmental ventral. Entretanto, esses axônios se originam a partir do h ipotálamo lateral e projetam-se para as estruturas límbicas, como o núcleo acumbens, bulbo olfatório, septo, complexo amigdaloide e córtex piriforme. Esse circuito inerva diversas estruturas límbicas que possuem importante função nas vias motivacional, motora e de r e compensa. Já no circuito mesocortical, os axônios vindos da área tegmental ventral projetam-se para o córtex límbico constituído das áreas pré-frontal mediai, regiões entorrinal e do cíngulo. Os neurônios tuberoinfundibulares parecem regulados em parte pelos níveis circulantes de prolactina. A prolactina aumenta a atividade desses neurônios atuando no hipotálamo basal mediai, possivelmente de modo direto nos neurônios tuberoinfundibulares. Esses neurônios, por sua vez, liberam DA, a qual inibe a liberação de prolactina pela pituitária anterior 21 •
Receptores
Funções dopaminérgicas
Os cinco subtipos de receptores dopaminérgicos (D 1 a DS) são todos acoplados à proteína G. Eles são subdivididos em duas classes: a classe D1 (Dl e DS) e a classe D2 (D2, D3 e D4). Na primeira, os receptores dopaminérgicos estão ligados à proteína Gs e sinalizam pela ativação da adenilil ciclase e aumento de AMP cíclico. Já os
Na fisiologia do SNC, a sinalização dopaminérgica afeta processos como controle motor, atenção, memória, humor, emoção. Assim, os neurônios DA, que formam a via nigroestriatal, possuem função crucial na manutenção do controle motor, sendo que a destruição desses neurônios está associada ao desenvolvimento da doença de
Término da ação
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res dopaminérgicos pode ser útil em pacientes que não respondem bem à L-Dopa 1 •
Via tuberoinfu
/""" I
Str
Via mesocortical DOPAMINA
Drogas de abuso
Os psicoestimulantes, como a cocaína e as anfetaminas, são drogas de abuso que interferem no sistema do paminérgico. Enquanto a cocaína inibe a recaptação de DA, as anfetaminas aumentam a liberação de DA na fen da sináptica e inibem sua recaptação. A sinalização mediada pelos receptores D 1 na região mesolímbica está relacionada com a sensação de prazer causada por essas drogas. Mais ainda, a estimulação dessa via ativa os mecanismos de recompensa no núcleo acumbens, desencadeando os processos de dependência17•30 • Noradrenalina (NA)
Figura 3
Vias dopaminérgicas centrais. A glâ ndula pituitária (P) inervada com fibras dopaminérgicas do hipotálamo. Ac: núcleo acumbens, Am: núcleo amigdaloide, C: cerebelo, Hip: hipocampo, Hyp: hipotálamo, Sep: septo, Str: corpo estriato, SN: substância negra, Th: tálamo.
Parkinson. A via mesolímbica é responsável por comportamentos relacionados com mecanismos associados à recompensa. Disfunções nesta via têm sido envolvidas em uma variedade de condições, como nas psicoses e na dependência de drogas de abuso 16•17. Farmacologia da neurotransmissão dopaminérgica
A sinalização dopaminérgica no SNC é alvo terapêutico para fármacos utilizados no tratamento de transtornos como esquizofrenia, doença de Parkinson e abuso de drogas. Esquizofrenia
Acredita-se que o aumento da sinalização dopaminérgica via receptores D2 esteja envolvido na fisiopato logia da esquizofrenia, uma vez que os fármacos antipsicóticos, como o haloperidol e risperidona, atuam como antagonistas desses receptores. Os antagonistas seletivos de receptores D3 e D4 também têm sido investigados no tratamento da esquizofrenia28•29 • Doença de Parkinson
A doença de Parkinson pode ser definida em termos bioquímicas como um estado deficiente de DA cansequente à degeneração de neurônios dopaminérgicos da via nigroestriatal. As principais estratégias farmacológicas nessa doença são a administração de agonistas dopaminérgicos diretos ou indiretos, inibidores da biotransformação da DA (como os inibidores da MAO e da COMT) e inibidores da recaptação de DA. O tratamento de mais sucesso tem sido a administração de L-Dopa que, uma vez captada pelo neurônio DA, é convertida no neuro transmissor DA. O uso de agonistas diretos de recepto-
A noradrenalina é o principal neurotransmissor da maior parte das fibras pós-ganglionares simpáticas e modula inúmeras funções autonômicas, sendo algumas vitais, como frequência e força de contração cardíacas. No SNC, a NA medeia respostas importantes relacionadas à cognição e ao humor9 . Síntese e liberação
A síntese da NA segue a mesma via que a da DA. Nos neurônios noradrenérgicos, a DA é convertida em NA pela ação da enzima dopamina ~-hidroxilase. Uma vez sintetizada, a NA é transportada para o interior das vesícuias secretárias pela ação de transportadores específicos dependentes de sódio8 • Término da ação
A finalização da resposta noradrenérgica ocorre por três mecanismos: recaptação da NA pelo neurônio présináptico por transportadores de membrana específicos e dependentes de sódio; metabolização da NA pelas enzimas MAO e COMT; e difusão do neurotransmissor na fenda sináptica. No neurônio pré-sináptico, a NA pode ser rearmazenada nas vesículas ou pode ser degradada pela ação da enzima MAO, a mesma enzima responsável pela degradação da 5-HT e da DA. Das duas isoformas da MAO, a MAO -A e aMAO-B, a que apresenta mais especificidade para NA é aMAO-A. A NA que fica na fen da sináptica pode ainda ser degradada pela COMT, embora essa ação seja mais significativa no sistema nervoso autônomo que no central 1• Circuitos noradrenérgicos
As vias noradrenérgicas centrais emergem do locus coeruleus, na ponte, projetando-se de forma ascendente para o hipotálamo e todas as regiões do córtex cerebral incluindo o hipocampo (Figura 4). Projeções descendentes atingem os cornos dorsal e ventral da medula espinhal e participam da regulação da dor. Os neurônios noradrenérgicos do tegmento lateral do tronco encefálico iner-
19 SISTEMAS NEUROQUÍMICOS NO SNC E A PSICOFARMACOLOGIA
vam diversas estruturas do prosencéfalo basal, incluindo o hipotálamo e o corpo amigdaloide 21 . Receptores
Os receptores noradrenérgicos são divididos em dois tipos, ex, e ~' ambos metabotrópicos, acoplados à proteína G. Os receptores do tipo ex, são divididos em duas sub classes, a1 e a2. Os receptores a1 estão acoplados à proteína Gq e transduzem seus sinais pela ativação da enzima fos folipase C (PLC) que gera diacilglicerol (DAG) e trifosfato de inositol (IP3 ), aumentando os níveis de cálcio intracelular. Esses receptores são encontrados em neurônios e células da glia envolvidas no controle motor, aprendizado, memória e medo. Os receptores a2 estão acoplados à proteína Gi/Go e atuam na inibição da adenilil ciclase, diminuindo AMP cíclico, o que ativa canais de potássio e inibe canais de cálcio regulados por voltagem. Esse subtipo pode ser um autorreceptor inibitório, controlando a liberação de NA no neurônio pré-sináptico e também pós-sináptico, envolvido em analgesia, sedação, humor e memória8•9 . Os receptores ~ -adrenérgicos são subdivididos em ~1, ~2 e ~3, acoplados à proteína Gs e ativam a enzima adenilil ciclase e aumentam os níveis de AMP cíclico. Esses receptores controlam funções autonômicas e também são expressos no SNC, porém sem funções bem definidas8. Funções noradrenérgicas
O sistema noradrenérgico central está envolvido em múltiplas funções, tais como na regulação do humor, vigília, ansiedade e medo, estresse, controle térmico, memória, analgesia entre outras9•31-33 . Farmacologia da neurotransmissão noradrenérgica
O sistema noradrenérgico é alvo terapêutico para fármacos utilizados no tratamento de transtornos depressivos, tanto pela inibição da degradação da NA pelos inibidores da MAO como pela inibição de sua recaptação ( antidepressivos tricíclicos, inibidores de recaptação de serotonina e NA e inibidores seletivos da recaptação de NA). Fármacos que bloqueiam o receptor ~- adrenérgico, como o propranolol, são utilizados no controle da ansiedade e da enxaqueca 1•34 • Serotonina (5-HD
A serotonina (5 -hidroxitriptamina ou 5-HT) pertence à classe das indolaminas e tem importante papel na modulação do humor, cognição, motivação, ciclo vigíliasono, percepção da dor e função neuroendócrina. Somente de 1 a 2% da serotonina de todo o organismo é encontrada no SNC9 . Síntese e liberação
Como a serotonina não atravessa a barreira hematoencefálica, as células encefálicas devem sintetizar seu
NORADRENALI NA
Medula espinhal
Vias noradrenérgicas centrai s. A localização dos principais grupos de corpos celulares e suas vias é apresentada em azul escuro. Em azul claro, está ilustrada a localização das terminações noradrenérgicas. Am : núcleo amigdaloide, C: cerebelo, Hip: hipocampo, Hyp: hipotálamo, LC: locus coeru/eus, MFB: feixe prosencefálico mediai, NTS: núcleo do trato solitário, RF: formação reticula r do tronco encefálico, Sep: septo, Str: corpo estri ato, SN: substância negra. Th: tálamo. Figura 4
próprio neurotransmissor. Assim, o primeiro passo importante é a captura do triptofano, um aminoácido essencial adquirido pela dieta. É interessante destacar que uma dieta pobre em triptofano pode diminuir os níveis encefálicos de serotonina. O triptofano é convertido em 5-hidroxitriptofano pela ação da enzima triptofano hidroxilase (TPH), etapa limitante da síntese. O 5-hidroxitriptofano é então rapidamente descarboxilado pela ação da enzima L-aminoácido aromático descarboxilase formando a serotonina. Uma vez sintetizada, a serotonina é armazenada em vesículas secretoras e, com a estimulação elétrica das células nervosas pela chegada do potencial de ação, liberada por exocitose na fenda sináptica, onde pode atu, . , . ar tanto nos receptores pos-smaptlcos como nos seus autorreceptores pré-sinápticos8. Diferente de outros neurotransmissores, a liberação de serotonina ocorre primariamente por varicosidades que, ao contrário das sinapses, liberam grandes quantidades de neurotransmissor a partir de vesículas presentes no espaço extracelular, estabelecendo um gradiente de concentração 17 • Término da ação
A serotonina também é removida da fenda sináptica por vários mecanismos, sendo o principal o transporte seletivo de 5-HT para o neurônio pré-sináptico. No neurônio pré-sináptico, a serotonina pode ser rearmazenada nas vesículas ou pode ser degradada pela ação da
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MAO, a mesma enzima responsável pela degradação da NA e da DA. O produto de desaminação pela MAO, o 5-hidroxiindolacetaldeído, pode ser oxidado a ácido 5-hidroxiindolacético (5 -HIAA). A serotonina que permanece na fenda sináptica pode ainda ser degradada pela enzima COMT, embora essa ação seja mais significativa no sistema nervoso periférico que no central8 • Receptores
Até o momento foram danados sete subtipos de receptores serotoninérgicos que estão divididos em quatro grupos. Os receptores do grupo S-HT 1 (S-HT 1A, 5-HT 18 , 5-HT 10, 5-HT 1E, 5-HT 1p) estão acoplados à proteína Gi/ Go e atuam na inibição da adenilil ciclase, diminuindo AMP cíclico, o que ativa os canais de potássio e inibe os canais de cálcio regulados por voltagem. O subtipo S-HT 1A está localizado principalmente no núcleo da rafe do tronco cerebral e funciona como um autorreceptor inibitório, controlando a liberação de serotonina. Os receptores do subtipo 5-HT 10 estão localizados na substância negra e nos gânglios basais e acredita-se que eles regulem a velocidade de disparo e a liberação de dopamina nas células dopaminérgicas destas regiões8 •16 . Os receptores do grupo S-HT2 (5-HT2 A, S-HT28 , 5-HT2c) estão acoplados à proteína Gq e transduzem seus sinais pela ativação da enzima fosfolipase C (PLC) que gera diacilglicerol (DAG) e trifosfato de inositol (IP3), aumentando os níveis de cálcio intracelular. Esses recep tores estão amplamente distribuídos pelo SNC, principalmente nas regiões corticais centrais e nos núcleos da base. Acredita-se que o comportamento alimentar e a susceptibilidade a crises convulsivas estejam relacionados à ativação do subtipo S-HT2c8• 16 • Os receptores do grupo 5-HT3 são os únicos que são ionotrópicos. Esses receptores geram uma rápida despo larização nas células nervosas por aumentarem o influxo de cátions. Estão localizados nos terminais parassimpáticos do trato gastrointestinal, no núcleo do trato solitário e na área postrema e atuam no controle da resposta emética8•16 • Os receptores do grupo S-HT4 (5-HT4 , S-HT5A, S-HT58, S-HT6 , 5-HT7) são acoplados à proteína Gs e ativam a enzima adenilil ciclase e aumentam os níveis de AMP cíclico. Estão localizados principalmente nos neurônios dos colículos superior e inferior e no hipocampo. Esses receptores também estão amplamente distribuídos no trato gastrointestinal, onde estimulam as secreções gástricas e facilitam o reflexo peristáltico8•16 •
ros, sendo que os núcleos mediais da rafe contêm apenas 5%. Os neurônios serotoninérgicos projetam-se amplamente pelo encéfalo, sugerindo que a serotonina possui importante papel modulatório por todo o SNC21 • Funções serotoninérgicos
A diversidade dos receptores, bem como sua ampla distribuição e sobreposição no SNC, conferem à 5-HT uma participação em uma variedade de funções fisiológicas: a serotonina controla os ciclos de sono-vigília, um importante papel no controle da fome/saciedade, está envolvida nos estados de humor, agressividade35, comportamentos impulsivos, emese, entre outros 36•37 • A serotonina está implicada na fisiopatologia de transtornos de ansiedade, obsessivo-compulsivo, do controle de impulso, depressão, distúrbios alimentares e dependência química. O papel atribuído à serotonina na ansiedade é bastante complexo. Muitas evidências apoiam a hipótese de que a serotonina desempenha papel duplo na ansiedade dependendo da via considerada38•39 . Assim, a serotonina desempenharia um papel ansiogênico no prosencéfalo e atuaria como ansiolítico na parte dorsal da matéria cinzenta periaquedutal mesencefálica. Farmacologia da neurotransmissão serotoninérgica
O sistema serotoninérgico é importante alvo terapêutico de diversos transtornos psiquiátricos. Os inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS), como citalopram, fluoxetina e sertralina, têm sido muito utilizados no tratamento de transtornos depressivos, obsessi-
SEROTONINA
Núcleo da rafe
Circuitos serotoninérgicos
Os corpos celulares que produzem serotonina originam-se no núcleo dorsal da rafe (DRN) e no núcleo mediano da rafe (MRN) do mesencéfalo (Figura 5). Os núcleos dorsais da rafe contêm aproximadamente 50% de todos os neurônios serotoninérgicos do SNC de mamífe-
Medula espinhal Figura 5
Vias serotoninérgicas centrais. Am: núcleo amigdaloide, C: cerebelo, Hip: hipocampo, Hyp: hipotálamo, Sep: septo, Str: corpo estriato, SN: substância negra, Th: tálamo.
19 SISTEMAS NEUROQUÍMICOS NO SNC E A PSICOFARMACOLOGIA
vo -compulsivo e de pânico, entre outros transtornos de ansiedade. Fármacos como a sibutramina, um inibidor da recaptação de 5-HT, NA e DA, são bastante utilizados no tratamento da obesidade9' 40 • A ondansetrona, um antagonista do receptor 5-HT3, é utilizada como antiemético, principalmente para aliviar os efeitos adversos causados pela quimioterapia em pacientes com neoplasias 1•
ação de endopeptidases e exopeptidases, que quebram as ligações peptídicas. Essas enzimas estão na membrana extracelular dos neurônios, de tal maneira que essas pequenas proteínas podem difundir-se pela fenda sináptica e atuar em células localizadas longe do local de síntese e liberação desses neuropeptídeos. Receptores e vias
Neuropeptídeos Neuropeptídeos são pequenas proteínas ou polipeptídeos que atuam como neurotransmissores no SNC. Normalmente, os receptores que transduzem os sinais gerados pelos neuropeptídeos são receptores acoplados à proteína G. Os mais de cem neuropetídeos conhecidos desempenham diversas funções no SNC, incluindo regulação do sono e vigília, emoção, recompensa, ingestão de alimentos e balanço energético, dor e analgesia, aprendizado e memória. Além de sua função como neurotransmissores, alguns neuropeptídeos, como a oxitocina e vasopressina, podem ser liberados diretamente na corrente sanguínea e atuar como hormônios 17 . Síntese e liberação
Diferente dos neurotransmissores clássicos, a síntese dos neuropeptídeos depende da transcrição do DNA em RNA mensageiro e a translação deste em proteína. Um aspecto bastante interessante dos neuropeptídeos é que um único gene pode dar origem a vários neuropeptídeos diferentes, de maneira tecido-específica. Essa diversidade pode ocorrer por splicing alternativo dos transcritos primários de RNA dando origem a diferentes RNA mensageiros. O RNA mensageiro maduro é exportado para o citoplasma, onde se dará o processo de translação. Os neuropeptídeos são sintetizados como proteínas inativas na forma de um precursor (pró-peptídeo) que é clivado por enzimas específicas, as endoproteases, em neuropeptídeos ativos 17 . Os neuropeptídeos são então armazenados em vesícuias grandes de alta densidade no complexo de Golgi e transportados para as sinapses. Normalmente, as vesículas contendo neuropeptídeos são colocalizados com as vesículas contendo os neurotransmissores clássicos, po rém, diferente destas, as vesículas contendo os neuropeptídeos podem sofrer exocitose a uma longa distância das sinapses. Para induzir essa exocitose são necessários vários potencias de ação. Dessa maneira, padrões diferentes de estimulação elétrica podem levar à liberação preferencial de um neurotransmissor clássico ou um neuropeptídeo, ou ambos 16' 17 • Término da ação
Diferente dos neurotransmissores clássicos, que têm sua ação terminada pela recaptação ou por degradação enzimática, a ação dos neuropeptídeos é terminada pela
Existem vários subtipos de receptores para os neuropeptídeos e devido ao pequeno tamanho de seus ligantes e à ausência de agonistas ou antagonistas, estudar suas propriedades torna-se bastante complexo. Embora os receptores tenham a tendência de localizar-se nas sinapses, também já foram identificados receptores na membrana plasmática dos axônios, dos corpos celulares e dos dendritos. Alguns exemplos de neuropeptídeos encontram. se a segmr. Peptídeos opioides
Opioides endógenos, como as encefalinas, endorfinas e dinorfinas, exercem papel importante na regulação da dor. Existem três subtipos de receptores opioides: 8, J.1 e K. Todos eles estão acoplados à proteína Go/Gq e inibem a adenilil ciclase, diminuindo o AMP cíclico, o que ativa os canais de potássio e inibe os canais de cálcio regulados por voltagem 41 • Taquicininas
Fazem parte dessa família, a substância P, neurocinina A, neurocinina B e neuropeptídeo K. Entre elas, a substância Pé a de maior destaque e desempenha um importante papel no SNC e no trato gastrointestinal. No SNC, a substância P está expressa no corno dorsal da medula espinhal, na amígdala, na medula, no hipotálamo, na substância negra, no córtex encefálico e no estriado, onde se colocaliza com GABA e dinorfina, um peptídeo opioide, sendo um alvo de interesse para o estudo da doença de Parkinson. A substância P é um importante neuropeptídeo que medeia a resposta à dor. Seus receptores denominados NK 1 são encontrados no corno dorsal da medula espinhal e considerados importantes para o desenvolvimento de fármacos analgésicos não opioides. Devido à sua localização na amígdala e de modelos animais de estresse, antagonistas do receptor NK 1 estão sendo estudados como possíveis fármacos antidepressivos42 . Neurotensinas
A neurotensina é um polipeptídeo de 13 aminoácidos e está expressa no encéfalo, na glândula adrenal e no trato gastrointestinal. A administração central de neuro tensina produz hipotermia e analgesia. Existem três receptores de neurotensina (NTSl, NTS2 e NTS3), sendo dois deles acoplados à proteína G, o NTSl e o NTS2. Acreditase que a neurotensina influencia a sinalização dopaminér-
217
218
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
gica e contribui para a plasticidade induzida por fármacos que agem sobre o sistema dopaminérgico central.
Neuropeptídeo Y (N PY) Esse neuropeptídeo é expresso de forma abundante no córtex encefálico, no corno dorsal da medula espinhal e no núcleo arqueado do hipotálamo. Ele se colocaliza com a NA tanto no locus coeruleus como nas terminações simpáticas. O NPY é um potente estimulador do comportamento alimentar. Seus receptores, Yl ao Y6, são acoplados à proteína Gi/Go e, assim como os peptídeos opioides, atuam na inibição da adenilil ciclase, diminuindo o AMP cíclico, o que ativa os canais de potássio e inibe os canais de cálcio regulados por voltagem. Acredita-se que a ativação dos receptores Yl na amígdala esteja associada à diminuição da ansiedade, razão pela qual os agonistas Yl estão sendo utilizados como fármacos ansiolíticos43 .
Questões 1. Assinale a alternativa correta a respeito do receptor GABAA I)
li) 111) IV) a) b) c) d) e)
do sistema GABAérgico: A ligação do GABA ao receptor GABAA permite a entrada de íons cloreto. causando uma hiperpolarização da membrana. GABA é o principal neurotransmissor excitatório do SNC. GABA é o principal neurotransmissor inibitório do SNC. A ligação do GABA ao receptor GABAA permite a entrada de íons cloreto. causando uma despolarização da membrana. I e li são verdadeiras. li e IV são verdadeiras. 111 e IV são verdadeiras. I e IV são verdadeiras. I e 111 são verdadeiras.
2. Assinale a alternativa correta a respeito dos receptores glutaa) b) c) d) e)
matérgicos: Os receptores N M DA. AM PA e cai nato são metabotrópicos. Os receptores NMDA. AMPA e cainato são ionotrópicos. Não existem receptores glutamatérgicos metabotrópicos. Todos os receptores ionotrópicos glutamatérgicos são permeáveis ao cálcio. Os receptores cainato são metabotrópicos.
3. Assinale a alternativa incorreta a respeito da dopamina: a) A síntese da dopamina depende do aminoácido triptofano. b) São utilizados antagonistas de receptores dopaminérgicos no tratamento da esquizofrenia. c) Os circuitos dopaminérgicos são: mesocortical, mesolímbico. nigroestrial e tuberoinfundibular. d) A administração de um precursor de dopamina é a estratégia para o tratamento da doença de Parkinson. e) A presença da dopamina no núcleo acumbens está envolvida com a dependência às drogas de abuso.
4. Assinale a alternativa correta a respeito da noradrenalina: a) As vias noradrenérgicas centrais emergem do núcleo da rafe. b) As vias noradrenérgicas centrais emergem do !ocus coeru/eus. c) A síntese da noradrenalina depende do aminoácido triptofano. d) Os receptores noradrenérgicos são ionotrópicos e metabotró.
piCOS.
e) A noradrenalina sofre ação da MAO, mas não da COMT.
5. Assinale a afirmação incorreta a respeito do sistema serotoninérgico: a) A serotonina possui um papel duplo na ansiedade dependendo da via. b) Os núcleos dorsais da rafe contêm aproximadamente 50% de todos os neurônios serotoninérgicos dos SNC. c) A serotonina controla os ciclos de sono-vigília, tem um importante papel no controle da fome/saciedade e transtornos de humor. d) Os agonistas do receptor 5- HT3 são utilizados como antieméticos. e) Os inibidores da recaptação de serotonina são utilizados no tratamento da depressão e transtornos de ansiedade.
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19 SISTEMAS NEUROQUÍMICOS NO SNC E A PSICOFARMACOLOGIA
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Bases Moleculares do Funcionamento Cerebral Flávio Kapczinski Gabriela Delevati Colpo Lau ra Stertz Gabriel Rodrigo Fries
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 220 Transdução de sinais, 220
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Introdução, 220 Componentes do mecanismo de transdução de sinais, 221 Plasticidade neural, 225 Introdução. 225 Tipos de plasticidade neural, 225 Neurogênese, 227 Neurotrofinas, 227 Plasticidade sináptica, 229 Considerações finais, 231
1. Conhecer as principais vias de sinalização intracelular envolvidas
em mecanismos de neuroplasticidade. 2. Compreender os diferentes tipos de plasticidade neural e suas implicações. 3. Aprender como processos de neurogênese ocorrem no cérebro adulto. 4. Conhecer as principais neurotrofinas e seus mecanismos de ação. 5. Compreender os mecanismos de plasticidade sináptica e suas implicações para os processos de memória e aprendizado.
Questões, 231 Referências bibliográficas, 232
Introdução O correto funcionamento cerebral depende de sua capacidade de se adaptar em resposta a diferentes estímulos, experiências e situações. Uma vez que o comportamento de organismos complexos é controlado pelo sistema nervoso, acredita-se que muitos transtornos psiquiátricos possam apresentar em sua fisiopatologia alterações na plasticidade neuronal, definida como a capacidade das células nervosas de se adaptar e de modificar sua estrutura em resposta a estímulos ambientais. O termo neuroplasticidade compreende dois principais tipos de plasticidade: ontogenética e adulta1• A plasticidade ontogenética refere-se às modificações do sistema nervoso durante o período embrionário, resultantes da interação entre o genoma e as informações do ambiente. A plasticidade adulta, por outro lado, envolve os mecanismos plásticos que ocorrem quando o sistema nervoso já está maduro. Ambos os tipos de neuroplasticidade podem compreender alterações morfológicas, funcionais
ou comportamentais, que envolvem axônios, dendritos ou a própria sinapse. Como veremos adiante, a plasticidade sináptica é atualmente considerada a base da memória e, portanto, da capacidade cognitiva. Neste capítulo, apresentaremos conceitos, exemplos e mecanismos gerais do funcionamento cerebral baseados na neuroplasticidade, iniciando com o estudo de diferentes vias intracelulares de transdução de sinais, seguido do estudo da neuroplasticidade propriamente dita. Por fim, discutiremos com mais detalhes um dos principais mecanismos de plasticidade no cérebro adulto, a plasticidade sináptica, e a relevância desses mecanismos para a neurobiologia de transtornos psiquiátricos.
Transdução de sinais
Introdução Os organismos multicelulares, para que possam funcionar adequadamente, necessitam de um complexo mecanismo de ajuste, com o objetivo do bem-estar do orga-
20 BASES MOLECULARES DO FUNCIONAMENTO CEREBRAL
nismo e não o da célula. Esses ajustes são controlados pelo recebimento e emissão de uma série de informações, chamado de comunicação celular. Provavelmente por isso, em termos de evolução, demoraram muito para se desenvolver - de acordo com registros fósseis, 2,5 milhões de anos separam organismos pluricelulares dos primeiros organismos unicelulares2 • A descoberta de neurotransmissores e de sinalizadores endócrinos demonstrou que a sinalização celular estava presente nas células de todos os organismos pluricelulares. Rotas de sinalização intracelular são mais bem descritas como uma teia de sinalização, com extensa conversação paralela entre rotas clássicas3 • Muitos desses sinais chegam durante o início do desenvolvimento neural para padronizar o crescimento dos axônios e a formação das sinapses. Além do desenvolvimento, esses mesmos sinais persistem em um sistema nervoso mais maduro, em que modificam a força sináptica e contribuem para a plasticidade do cérebro adulto. Essas rotas são complexas e apresentam uma forte influência na fun ção neuronal. Por exemplo, canais de cálcio são cruciais em muitas funções neuronais, incluindo liberação de neurotransm1ssores por neuromos pre-smaptlcos, e em var1as formas de plasticidade intrínseca e sináptica. O entendimento dos mecanismos de sinalização é um pré-requisito para a compreensão de quase todas as facetas de fun ção e desenvolvimento cerebrais4 . •
,.,.
1•1•
,
.
Componentes do mecanismo de transdução de sinais Quando pensamos nos componentes celulares responsáveis pela transdução de sinal, podemos pensar em basicamente três tipos: moléculas pequenas (como o AMP cíclico - cAMP), íons (como o Ca2+) e proteínas (como os canais iônicos, as proteínas de reconhecimento e as enzimas). Inicialmente, acreditava-se que a transdução de sinais era realizada por três tipos de moléculas: os receptores, um segundo mensageiro e um efetor que seria responsável pela fosforilação (regulação) de um substrato específico. Hoje já sabemos que os mecanismos de sinalização são muito complexos e envolvem uma série de pontos de integração, retroalimentação e redundância3 (Figura 1). Para fins didáticos manteremos a divisão inicial. Receptores
Independente da natureza do sinal, a célula-alvo responde por meio de uma proteína específica que chamamos de receptor, ao qual a molécula sinalizadora se liga, iniciando uma resposta. No caso dos receptores sinápticos, eles possuem duas funções: de reconhecimento de substâncias transmissoras específicas e de ativação de efetores5 (Figura 2). Os receptores sinápticos podem ser divididos em dois subtipos principais: ionotrópico e metabotrópico.
Receptor ionotrópico
Também conhecidos como receptores associados a canais iônicos ou canais iônicos com portões controlados por transmissores, os receptores ionotrópicos são aqueles envolvidos na sinalização sináptica rápida entre tipos celulares eletricamente excitáveis. Esse tipo de sinalização é mediado por pequenos neurotransmissores que temporariamente abrem ou fecham um canal iônico formado pela proteína a qual se ligam, alterando por um curto período de tempo a permeabilidade da membrana plasmática aos íons e, consequentemente, a excitabilidade da célula2 • Esses receptores pertencem à grande família das proteínas transmembrânicas multipasso. O receptor é localizado no meio extracelular, e o poro do canal iônico é embebido na membrana celular (Figura 2A). Ambos são formados pela mesma proteína, como demonstrado na figura. Fazem parte desse grupo os subtipos de receptores glutamatérgicos AMPA (a-amino-3-hidroxi-5-metil-4-isoxazole ácido propiônico), que são permeáveis ao Na+; os receptores NMDA (N-metil-d -aspartato), que são permeáveis a Na+ e Ca2+; os receptores GABA (ácido y-aminobutírico), que são permeáveis a Cl- e os receptores purinérgicos P2X (receptor purinérgico), que são permeáveis a Na+ e Ca2+ 3 • Receptor metabotrópico
São os receptores que comandam os canais iônicos indiretamente. Eles podem ser de dois tipos: associado a proteína G e tirosina quinase. Os receptores associados a proteína G estão ligados ao efetor por uma proteína trimérica ligadora de GTP (proteína G). Como exemplo temos os receptores a e p adrenérgicos, os receptores muscarínicos para ACh, os receptores GABA8 , alguns de glutamato e serotonina, os neuropeptídeos, as moléculas odoríferas e a rodopsina (Figura 2B). As proteínas G são compostas por três subunidades protéicas (a, p e y). Quando o receptor ativado estimula a proteína G, essa sofre mudanças na sua forma que ativam tanto a sua subunidade a como a subunidade py, as quais podem regular diretamente a atividade das proteínas-alvo na membrana plasmática. A subunidade a possui uma atividade GTPásica intrínseca, catalisando a quebra do GTP em GDP, levando, dessa forma, à sua desativação. A ativação e a desativação das proteínas G podem ser intensamente reguladas, tanto por proteínas que catalisam a troca de GTP por GDP como proteínas que alteram a velocidade de hidrólise do GTP3 • Os receptores tirosina quinase iniciam sua cascata de ação pela autofosforilação da quinase em seus resíduos de tirosina (Figura 2B). São ativados geralmente por hormônios, fatores de crescimento e neuropeptídeos. Mensageiros
Antigamente, os mensageiros foram chamados de segundos mensageiros, visto que eram produzidos em resposta aos primeiros mensageiros (neurotransmissores, por
221
222
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
Sinalização extracelular
A
B
Receptor Transdução primária
•o ~
~
o
Alteração do metabolismo
/l'\ o
0====0
~
~
Proteína do gene regulador
Alteração da expressao gênica
I
Amplificação
I
Integração
I
Dispersão
I
Ancoramento
I
Modulação
I
Mensageiros
~
Enzima metabólica
Liberação
Efetores
Proteína citoesquelética
Alteração do formato
Núcleo
Efetor
I
Transcrição gênica
Figura 1 A rota de sinalização ativada por um sinal extracelular. A: Exemplo de uma rota simples. A molécula ligante geralmente se une ao receptor, que está na membrana plasmática da célula- alvo e ativa um ou mais sinais intracelulares, mediados por segundos mensageiros. Finalmente, esses sinais alteram a atividade da proteína efetora e consequentemente o comportamento da célula. 8: Exemplo de uma sinalização hipotética até o núcleo celular. Neste exemplo uma série de pequenas proteínas sinalizadoras e mediadoras leva o sinal intracelular até o núcleo. O sinal é alterado (transduzido), amplificado, distribuído e modulado durante o caminho. O sinal final depende de muitos fatores. Finalmente, a rota de sinalização ativa (ou inativa) proteínas efetoras que alteram o comportamento celular. Neste exemplo, a proteína é regulatória e ativa a transcrição celular. (Modificada de Alberts 8 et ai., 2008 2.)
exemplo) e ativavam diretamente os efetores. Atualmente sabemos que o mecanismo é um pouco mais complexo. O número de substâncias conhecidas que atuam como mensageiros é bem menor que o número de neurotransmissores (que chegam ao redor de 100)5 (Figura 1). Os mensageiros podem ser divididos em duas categorias principais, os gasosos e os não gasosos. Os representantes mais conhecidos dos mensageiros gasosos são o óxido nítrico (NO) e o monóxido de carbono (CO). O NO é produzido nos neurônios por uma enzima Ca2 +/calmodulina dependente (NO sintetase), em resposta à estimulação glutamatérgica e ao influxo de Ca2 +. O CO, produzido pela enzima heme-oxigenase, também é exclusivo de neurônios, mas age em outras células. Os mensageiros
gasosos estimulam a síntese de GMP cíclico, que é outro mensageiro o qual ativa uma proteína quinase específica. A maior parte da fosforilação dependente de ativação por cGMP ocorre nas células de Purkinje e contribui para a depressão duradoura (LTD), um tipo de plasticidade5 , como veremos adiante. Os mensageiros não gasosos são os mais bem des critos na literatura. Entre eles discutiremos neste capítulo o cAMP e os produtos da hidrólise de fosfolipídios de membrana, os polifosfatos de inositol (IP) e diacilglicerol (DAG) que são liberados pela ação da fosfolipase C, e o ácido araquidônico, que é liberado pela ação da enzima fosfolipase A2. Também veremos a atividade do cálcio intracelular como mensageiro.
20 BASES MOLECU LARES DO FUNCIONAMENTO CEREBRAL
A- Recepto• ;onot•óp;/Pom
Molécula sinalizadora
Transmissor
Adelinato ciclase ativada Ativação da Gs
,.. ~
,r
Meio extracelular
7)
.,d?'
Portão
Canal
Membrana
I
J
- -
Meio intracelular
B- Receptor metabotrópico bl - Receptor ligado a proteína G Transmissor
/~
7
~~ / .. l.... .'/•
J
PKA inativa
..
....
......
.......
Proteína G
......
o ../ -+o8
Cascata mensageiro •
b2 - Receptor tirosina quinase
u
/
[1Uf
Poro
Núcleo
/Transmissor
~
"\
7
CREB fosforilado
(
~
CREB inativo
.....
-®
....._.oo ../ o o
Transcrição gênica
Cascata mensageiro
Tipos de receptores. Os receptores conhecidos podem ser divididos em dois grupos. A: Receptores ionotrópicos: uma única macromolécula possui um receptor localizado no lado extracelular e um poro iônico embebido na membrana celular. B: Receptores que indiretamente abrem canais iônicos: (b 1) receptores acoplados à proteína G ativam canais iônicos e outros substratos indiretamente pela ativação de uma proteína ligada ao GTP que geralmente está ligada à ativação de uma cascata de segundos mensageiros; (b2) receptores tirosina quinase modulam a atividade dos canais indiretamente por uma cascata de fosforilação proteica, começando com autofosforilação da quinase no seu próprio resíduo de tirosina. (Modificada de Kandel ER, et ai., 20035.) Figura 2
I
Figura 3
Relação entre aumento de cAMP e transcrição gênica. A ligação de uma molécula extracelular sinalizadora ao receptor acoplado à proteína G ativa a adenilato ciclase via Gs e catalisa a conversão do ATP (adenosil trifosfato) em cAMP, aumentando sua concentração no citosol. Esse aumento ativa a PKA, e suas subunidades catalíticas podem entrar no núcleo, onde fosforilam a proteína regulatória da expressão gênica CREB. Uma vez fosforilada, o CREB recruta o coativador CBP, que estimula a transcrição gênica. Esse processo controla muitos mecanismos celulares, desde a síntese hormonal até a produção de proteínas necessárias para a indução da formação de memória no cérebro. (Modificada de Alberts B, et ai., 2008 2.)
Cálcio
O Ca2 + é um importante sinalizador celular, que foi historicamente classificado como segundo mensageiro. A concentração de Ca2+ intracelular em condições basais é muito reduzida (na faixa de nM), enquanto a concentração externa está na faixa de mM, possibilitando um rápido aumento da concentração intracelular com a abertura de canais na membrana celular. Esses canais podem ser tanto abertos por transmissores, por exemplo, no receptor purinérgico P2X, como pelo potencial, por exemplo, nos canais de Ca2 +-dependentes de voltagem, ou por ambos, por exemplo, no receptor glutamatérgico do tipo NMDA, que por ser regulado tanto pela presença de glutamato como pelo potencial, funciona como um detector de frequência da sinalização sináptica3 • Outra forma de
aumento de Ca2+ intracelular é a liberação dos estoques intracelulares.
cAMP A ativação de proteínas G estimulatória (GJ incita a enzima adenilato ciclase (AC). Essa enzima, que é uma proteína integral de membrana, catalisa a conversão do ATP (adenosil trifosfato) em cAMP. O maior alvo da ação do cAMP é a PKA, como veremos adianté (Figura 3). Fosfo lipídio e inositol fosfato
Em adição à rota do cAMP, muitos mensageiros importantes são gerados pela hidrólise de fosfolipídios de membrana plasmática. Essa hidrólise é catalisada por duas
223
224
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
enzimas específicas, a fosfolipase C e a fosfolipase A2, cada qual podendo ser ativada por proteínas G acopladas a diferentes receptores. Essas duas fosfolipases recebem esse nome por causa da ligação éster que elas hidrolisam nos fosfolipídios. Embora elas possam ter como alvo múltiplos fosfolipídios, o mais comumente hidrolisado é o fosfatidilinositol-4,5-bifosfato (PIP2). A fosfolipase C hidrolisa a ligação do esqueleto de glicerol com o grupo polar, levando à formação de diacilglicerol (DAG) e inositol- 1,4,5 -trifosfato (IP3). O DAG, que é hidrofóbico, permanece na membrana, onde ativa a PKC. O IP3 pode se ligar aos receptores do retículo endoplasmático, liberando Ca2+ desses estoques no citoplasma. A elevação de Ca2+ intracelular pode acionar muitas reações bioquímicas, além da abertura de canais de voltagem dependentes de ligação ao cálcio na membrana plasmática5 • Efetores
As modificações mais frequentes nas proteínas feitas após a tradução é a fosforilação de resíduos de serina, treonina e tirosina. Proteínas quinases catalisam a transferência de grupos fosfato do ATP para o substrato pro teico (fosforilação), enquanto proteínas fosfatases catalisam a reação de hidrólise do fosfato ( desfosforilação). Essas duas classes de enzimas podem ser consideradas os efetores da transdução, aqueles componentes que produzem o efeito final na célula. Quinases Proteínas quinases dependentes de cAMP (PKA)
Os neurotransmissores que estimulam a formação de cAMP exercem seus efeitos intracelulares principalmente pela ativação das proteínas quinases dependentes de cAMP (PKA). A PKA, identificada por Krebs et al. 5b, é uma enzima constituída por duas subunidades regulatórias e duas catalíticas. A ligação de quatro moléculas de cAMP, duas moléculas para cada subunidade reguladora, diminui a afinidade existente entre as subunidades reguladora e catalítica, levando à dissociação entre ambas e consequentemente a ativação das subunidades catalíticas. Nesse caso, as subunidades catalíticas podem fosfo rilar proteínas (nos resíduos de Ser e Thr). Existem nos neurônios vários substratos para PKA, tais como proteína reguladora da expressão gênica, enzima envolvida com a síntese de neurotransmissores, a MAP-2 (proteína associada ao microtúbulo do tipo 2, envolvida com a definição da morfologia celular), entre outras6 . Cálcio/calmodulina quinases
As CaMK (cálcio/calmodulina quinases) são uma família de quinases ativadas pela ligação de Ca2+/CaM. Além dessa ativação, a CaMKII (um dos subtipos de CaMK) possui uma forma regulatória peculiar, que consiste de sua autofosforilação quando na presença de Ca2 +/CaM, tornando a sua atividade independente da presença do mensageiro
CaM após a ativação inicial, o que parece estar envolvido no processo molecular de memória. Muitos dos efeitos intracelulares do Ca2 + são mediados pela calmodulina, sendo que os efeitos do complexo Ca2 +-calmodulina (CaM) são obtidos pela fosforilação/ desfosforilação de proteínas. Diferentemente do sistema de fosforilação dependente de cAMP, o sistema de fosforilação CaM pode ser tanto específico como multifuncional. Essas quinases são ativadas com o aumento da concentração intracelular de Ca2+, proveniente tanto de canais de cálcio localizados na membrana plasmática como de canais sensíveis ao IP3 presentes na membrana do retículo endoplasmático. As CaMK são encontradas em todos os tipos celulares. Ao contrário da PKA, as CaMK apresentam em um único polipeptídeo os subdomínios reguladores e catalíticos6 . Proteínas quinases associadas ao sistema de sinalização do inositol fosfato (PKC)
As proteínas quinases C, ou PKC, são proteínas quinases relacionadas ao sistema de sinalização intracelular do inositol fosfato. As PKC são Ser/Thr quinases, com múltiplas funções, entre elas exocitose e endocitose de vesículas sinápticas, plasticidade neuronal, expressão gênica e regulação do crescimento e do ciclo celular. Essa família de proteínas quinases é ativada por dois tipos de sinalizadores intracelulares: o DAG, produzido pela ação da fosfolipase C sobre lipídios de membrana e o Ca2+, produzido pela ação do IP3 sobre canais de Ca2 + localizados no retículo endoplasmático. As PKC são enzimas monoméricas, ou seja, um único polipeptídeo contém os domínios reguladores e catalíticos. Assim como visto para outras quinases, a ligação dos segundos mensageiros ao domínio regulador promove o deslocamento do domínio autoinibidor, levando a ativação reversível do domínio catalítico3 . Proteínas fosfatases
As proteínas fosfatases envolvidas na sinalização neuronal são classificadas em dois tipos: fosfoserinas-fosfotreo ninas fosfatases (PSP) e fosfotirosinas fosfatases (PTP). Essas proteínas são enzimas que catalisam a hidrólise da ligação éster do aminoácido fosforilado, formando assim um fosfato inorgânico e uma proteína desfosforilada. As fosfatases controlam todos os processos celulares das proteínas quinases, incluindo a neurotransmissão, a excitabilidade neuronal, a expressão gênica, a síntese proteica, a plasticidade neuronal e o crescimento celular. As PSP são as principais fosfatases encontradas nas células. Elas são normalmente multifuncionais e podem ser classificadas em seis grupos: 1, 4, 5, 2A, 2B e 2C. Entre todas essas fosfatases, somente a fosfatase-2B (ou calcineurina) responde diretamente a um segundo mensageiro (aumento da concentração intracelular de Ca2 +). Todas as outras são ativadas quando fosforiladas pelas próprias proteínas quinases5.
20 BASES MOLECULARES DO FUNCIONAMENTO CEREBRAL
Plasticidade neural Introdução O termo plasticidade neural ou neuroplasticidade é definido como a capacidade do sistema nervoso, principalmente a dos neurônios, de transformar e adaptar sua função e estrutura frente a mudanças externas (ambientais) e internas do organismo7 . As alterações plásticas, assim como os estímulos ambientais que as provocam, podem variar de muito intensas, como após uma lesão, até extremamente sutis, como presenciar um fato novo. Em ambos os casos ocorrem mudanças neuronais denominadas plasticidade neural 1 • A neuroplasticidade começou a ser descrita em meados de 1800, observando-se que, quando havia uma lesão cerebral, a parte sobrevivente do cérebro alterava suas funções para tentar suprir as necessidades da área lesada, mas somente em 1906 esse termo foi introduzido na ciência8 • Em 1949, Hebb estabeleceu uma teoria que descreve a plasticidade como decorrente da sincronia dos neurônios pré e pós-sinápticos, e que o disparo elétrico em alta frequência levaria ao fortalecimento das respostas sinápticas, caracterizando o processo de aprendizagem9 • Alguns anos depois, pesquisadores realizaram grandes descobertas postulando que conexões neurais do córtex são intensificadas pelas diferentes experiências vividas, sendo isso um dos fatores que mais estimula a neuroplasticidade8. Trabalhos com mamíferos mostram que a experiência provoca mudanças no cérebro, como aumento de tamanho dos dendritos, aumento da atividade glial, alterações nas sinapses e aumento da atividade metabó lica. Isso demonstra que a interação entre o organismo e o meio externo promove mudanças e adaptações neuronais. Esse fenômeno pode ocorrer em qualquer período da vida, sendo mais intenso durante a infância e declinando gradativamente com o tempo, mas não se extingue na vida adulta7 . Os mecanismos básicos envolvidos na plasticidade incluem neurogênese, apoptose (morte celular programada) e atividade dependente de plasticidade sináptica, além do aumento ou da diminuição das sinapses. Juntos, esses mecanismos estão associados com mudanças físicas nos espinhos dendríticos e circuitos neuronais que influenciam o comportamento. Esses são alguns mecanismos importantes que contribuem para que o cérebro desenvolva a habilidade de se adaptar a rápidas mudanças ambientais e recuperar-se após um dano 9 • No entanto, além da plasticidade adaptativa que apresenta mecanismos de recuperação ou compensação de função perdida, bem como os responsáveis pelo aprendizado e pela memória, existem modificações cerebrais causadas por sua capacidade plástica que podem ser maladaptadas, ou seja, causar prejuízos a funções cerebrais. Muitos estudos têm mostrado o envolvimento da plasti-
cidade mal-adaptada na etiopatogenia de diversos transtornos psiquiátricos. Alguns transtornos, como esquizofrenia, autismo e retardo mental, estão associados a alterações na plasticidade do desenvolvimento, enquanto outros, como o transtorno de estresse pós-traumático, estão relacionados com mudanças ambientais intensas. Além disso, muitos transtornos mentais surgem após um fator externo desencadeante, na maioria das vezes de extremo estresse. Pelo fato de a plasticidade neural ter fortes influências no comportamento e estar alterada em muitas patologias, ela tem sido tema de muito interesse na comuni dade científica e, nos últimos anos, um grande número de publicações tem abordado esse assunto.
Tipos de plasticidade neural Existem muitos fenômenos e mecanismos envolvidos na neuroplasticidade. Para facilitar o entendimento desses processos, a plasticidade pode ser dividida em três estágios principais: desenvolvimento, dependente de experiência e após processos lesivos7 • Plasticidade do desenvolvimento
Durante o desenvolvimento embrionário do sistema nervoso central (SNC), é necessário que ocorram sucessivas fases até a formação completa do cérebro e a sua capacidade de gerar conexões complexas com sucesso. Essas fases vão desde a formação da placa neural, a neurogênese e a formação de conexões até a eliminação de células impróprias por apoptose?. Quando o cérebro humano está em desenvolvimento, é necessário que primariamente células neurais sejam geradas. Após a formação do tubo neural as células sofrem sucessivas divisões, e esse passa a ser formado por várias camadas de células. Em seguida, essas camadas sofrem um processo de diferenciação em neurônios e formam as distintas populações neuronais. Na fase de diferenciação, as células passam por mudanças morfológicas características do fenótipo neural, como o aumento do corpo celular e a emissão de prolongamentos pelo citoplasma, que se diferenciam em den dritos e axônio. No aspecto bioquímico, essas células sintetizam moléculas que garantem sua função. O fenótipo neural re sultante surge das interações do genótipo com o meio extra e intracelular e, embora todos os neurônios possuam a mesma carga genética, a expressão de diferentes genes determina o surgimento da cada tipo neuronal. Após esses processos, os neurônios de uma região devem formar conexões entre si e com regiões-alvo específicas para criarem um sistema interligado e funcional. Para isso os neurônios devem estender seus axônios, formando uma rede interligada. Essas conexões são deno minadas sinapses e permitem a passagem do impulso
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nervoso entre as células. No entanto, inicialmente, essas conexões são um pouco inespecíficas, por isso o próximo passo é refiná-las para formar ligações precisas, caracterizando o cérebro adulto. Nessas etapas do desenvolvimento, há um excesso de neurônios e, por isso, o desenvolvimento normal do sistema nervoso também inclui eventos regressivos que consistem na eliminação de células impróprias por intermédio da apoptose 10 • As primeiras fases desse processo (neurogênese, migração e diferenciação) são geralmente referidas como independentes de atividade neural, pois a transmissão do impulso nervoso entre neurônios pré e pós-sinápticos por meio de potenciais de ação e a liberação de neurotrans. - , . m1ssores nao sao necessanas para que esses processos ocorram. A diferenciação celular e a orientação dos axônios são guiadas pela presença de moléculas constitutivas geneticamente determinadas, porém a elaboração das conexões neuronais são processos dependentes de estímulo. Ainda, além da atividade neural, informações presentes nos padrões específicos de atividade também são requisitos para o refinamento das conexões7 • Plasticidade dependente de experiência
A interação entre o ambiente e os seres humanos, em qualquer fase da vida, possui a capacidade de mudar o comportamento. Esses novos padrões comportamentais indicam que fenômenos plásticos aconteceram no sistema nervoso7 • Durante o processo de aprendizagem ocorrem modificações nas estruturas e no funcionamento das células neurais e de suas conexões, ou seja, o aprendizado promove alterações plásticas como o crescimento de novas terminações e botões sinápticos, o estreitamento da fenda sináptica, aconformação de proteínas receptoras e o aumento de neurotransmissores 11• A prática de alguma atividade também induz mudanças no SNC, principalmente no mapa cortical. Estudos com músicos mostram que experiências repetitivas podem causar alterações em sistemas neurais e motores específicos, aumentando a área relacionada aos músculos flexores e extensores dos dedos. Outro exemplo é com leitores de braile, por ocorrer expansão da representação dos dedos e ativação do córtex visual quando as saliências são tocadas. Esse fenômeno de reorganização funcional dependente de atividade de neurônios adjacentes em decorrência do uso frequente é chamado de expansão de mapa, referindo-se ao aumento da representação cortical de determinada função em indivíduos com habilidades específicas 11• Experimentos de enriquecimento ambiental realizados com animais também têm demonstrado mecanismos envolvidos com plasticidade dependente de experiência. Animais que permanecem em gaiolas enriquecidas com objetos de diferentes formas, tamanhos ou texturas, ou mesmo que são mantidos com um maior número de ani-
mais dentro da mesma caixa, apresentam uma série de modificações neurais, como o aumento das ramificações dendríticas, do número de espinhos dendríticos e do tamanho das sinapses em algumas populações neuronais. Além disso, há um aumento da neurogênese hipocampal e uma integração dessas novas células dentro do circuito funcional. Também há a indução de alterações na expressão de receptores NMDA (n-metil-d -aspartato) e AMPA ( a -amino -3-hidroxi-5-metil-4-isoxazole ácido propiônico), os quais são integrantes da sinalização glutamatérgica, aumentando a plasticidade sináptica. O enriquecimento ambiental também pode aumentar os níveis de neurotrofinas, como o fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF) e o fator de crescimento do nervo (NGF), os quais possuem importantes papéis na sinalização neuronal em vias de proliferação e sobrevivência celular, abordados em seguida com mais detalhes 12 • Esses experimentos podem facilitar a elucidação da interação gene- ambiente no desenvolvimento da plasticidade neural, além de auxiliar também no fornecimento de mais informações sobre os efeitos moleculares e celulares do ambiente em patologias psiquiátricas, já que nesses casos os fatores ambientais possuem um papelchave no desencadeamento dos transtornos. Com esses esclarecimentos, podem surgir alvos moleculares inovadores para o desenvolvimento de novas classes terapêuticas. Plasticidade pós-lesão neural
As lesões do SNC, como o acidente vascular cerebral, lesão medular e traumatismo cranioencefálico, causam perdas devastadoras e muitas vezes irreversíveis. Isso acontece em decorrência da alta complexidade do SNC e dos seus mecanismos de reparo limitados. No entanto, evidências de recuperação indicam que a neuroplasticidade pós-lesão pode ocorrer em determinadas situações13. A lesão provoca no SNC uma série de eventos. Em um primeiro momento as células traumatizadas liberam seus neurotransmissores e aminoácidos, tornando os demais neurônios mais vulneráveis à lesão. Ocorre também uma ruptura de vasos sanguíneos, diminuindo os níveis de oxigênio e glicose que são essenciais para a sobrevivência das células. De acordo com o grau da lesão, o estímulo nocivo pode levar as células à necrose, ocorrendo ruptura da membrana celular e fazendo a célula liberar o seu conteúdo intracelular para o meio extracelular, afe tando o tecido vizinho e desencadeando uma resposta inflamatória. Esse estímulo pode também ativar a apoptose, na qual a célula mantém sua membrana intacta, não liberando seu material intracelular e, assim, evitando estímulos pró-inflamatórios e dano às demais células 11• Os mecanismos de reparo do SNC surgem imediatamente após a lesão e podem continuar por muito tempo. Um deles é a adaptação da área homóloga, na qual
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uma área homóloga do hemisfério oposto compensa a função perdida da área afetada pela lesão. Também há a introdução de novas aferências para uma região que foi privada de suas principais vias eferentes7 . Para aumentar os mecanismos de recuperação são necessários também estímulos externos. Realizar uma atividade nova, por exemplo, aumenta os mecanismos celulares e sinápticos da plasticidade, reduzindo a degeneração e induzindo a recuperação da região lesada em cérebros que sofreram alguma espécie de injúria. Trabalhos em primatas mostram que o córtex motor primário pode se organizar depois de uma lesão caso haja treinamento de uma habilidade motora14 • Estudos realizados em seres humanos que sofreram acidente vascular cerebral também mostram que treinamentos de atividades motoras reorganizam o córtex e induzem plasticidade neural após uma lesão 15 •
Neurogênese Por muitos anos, a comunidade científica não acreditou que o cérebro seria capaz de gerar novos neurônios durante a fase adulta. No entanto, há poucos anos observou-se que algumas regiões do cérebro possuem a capacidade de repor células neurais. Esse processo é chamado neurogênese, ou seja, capacidade de proliferação neuronal. Sempre se soube que a neurogênese é ativa durante as primeiras fases do desenvolvimento, cessando em seguida para dar lugar aos mecanismos de posicionamento e diferenciação dos neurônios. Porém, não se sabia que algumas regiões do sistema nervoso permaneciam com essa capacidade até a vida adulta 1• O avanço nos estudos da neurogênese ocorreu na década de 1990 com o surgimento do análogo sintético da timidina, o BrdU (5 -cromo-3' -deoxiuridina). Esse composto é captado pelas células durante a fase S da mitose, o que o torna um marcador de células em proliferação. A marcação dos núcleos com BrdU pode ser observado pela técnica de imunocitoquímica 16 . Em tecidos que podem se autorreparar, como a pele e o fígado, a regeneração ocorre pela proliferação de células vizinhas que substituem as células lesadas ou ainda pela ativação de células-tronco indiferenciadas com potencial de gerar diferentes tipos celulares. No SNC a única forma de regeneração é pelas células-tronco que podem dar origem a novos neurônios. No entanto, no cérebro adulto a neurogênese ocorre apenas em duas regiões. Uma delas é a zona subventricular (SVZ), localizada nas paredes dos ventrículos laterais. Essa região gera novos neurônios recrutados para o bulbo olfatório. A outra região é a zona subgranular do giro denteado, que dá origem a um tipo diferente de neurônios chamado de célula granular. Nessa área existe uma contínua renovação fisiológica de neurônios, indicando que novas células substituem as que estão morrendo. Em outras regiões do SNC, as células progenitoras contribuem para a formação de células como
astrócitos e oligodendrócitos, mas não dão origem a células neuronais7 • O controle preciso dos mecanismos de neurogênese é fundamental para a maturação e o funcionamento do sistema nervoso. Durante a fase de desenvolvimento, alterações nesse processo podem tornar-se incompatíveis com a vida e ser a causa de abortos espontâneos. Na fase pré-natal, a inibição da neurogênese acompanhada de apoptose excessiva de neuroprogenitores é observada em pacientes com síndrome de Down 17 • Na fase adulta, esse mesmo mecanismo está associado com o desenvolvimento de doenças neurodegenerativas. Na doença de Parkinson, por exemplo, há uma depleção dopaminérgica resultante de uma deficiência neurogênica observada na zona SVZ e na zona subgranular do giro denteado 18 . Por outro lado, o aumento da neurogênese nessas regiões pode não ser benéfico, uma vez que estudos sugerem que uma neurogênese excessiva no hipocampo pode estar relacionada com o surgimento de epilepsia 19 • Estudos com pacientes depressivos mostram uma diminuição e atrofia do hipocampo. Essa perda neuronal pode estar relacionada a uma neurotoxicidade mediada pelo estresse, pela liberação de glicocorticoides associada com episódios recorrentes de depressão. Baseando-se nessas informações, pesquisadores propuseram que a diminuição da neurogênese induzida pelo estresse poderia ser um fator etiológico do fenômeno depressivo. Além disso, estudos em animais com antidepressivos, como a fluoxetina e a tianeptina, mostram um aumento de neurogênese hipocampal, sugerindo uma relação entre diminuição da neurogênese e sintomas depressivos. No entanto, mais estudos ainda são necessários em seres humanos para confirmar esses dados 16. Nos últimos anos, tem-se observado que o processo de neurogênese no SNC sofre influência de uma grande variedade de estímulos. Em modelos animais, observou-se um aumento da neurogênese hipocampal em resposta ao enriquecimento ambiental, ao exercício físico e à administração de estrógenos, melhorando o desempenho dos animais em tarefas de aprendizado dependentes do hipocampo. No entanto, situações que diminuem a neurogênese hipocampal, como o estresse e o uso de corticosteroides, levaram a um prejuízo associado a essas tarefas7 . Mesmo sem o completo esclarecimento sobre os mecanismos envolvidos na neurogênese, principalmente na fase adulta, sabe-se do seu envolvimento em diversas patologias, e, por esse motivo, novas estratégias terapêuticas estão facadas no processo neurogênico.
Neurotrofinas As neurotrofinas fazem parte de uma família de pequenas proteínas secretadas pelo sistema nervoso, as quais estão fortemente ligadas à neuroplasticidade. Dentro desse grupo, encontra-se o fator de crescimento do nervo
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(NGF), o fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF), a neurotrofina-3 (NT-3), a neurotrofina-4/5 (NT-4/5), a neurotrofina-6 (NT-6) e a neurotrofina-7 (NT-7) 20• A primeira proteína dessa classe a ser identificada foi o NGF na década de 195021 . Após essa descoberta, a neurobiologia ampliou-se para a identificação e a elucidação de muitas funções celulares. Em 1982, o BDNF foi a segunda neurotrofina identificada, seguido pelas demais 22 • Somente em 1991, os receptores para essas proteínas foram descobertos, trazendo mais avanços para a neurociência. As neurotrofinas ligam-se a uma família de receptores tirosina quinase chamados Trk, que é composta por três receptores que podem ser ativados por uma ou mais neurotrofinas. A presença de TrkA, TrkB ou TrkC confere responsividade ao NGF, ao BDNF ou à NT-4/5 e à NT3, respectivamente (Figura 4). O receptor pan-neurotrofina, p75NTR, também regula a resposta aos receptores Trk. Na presença de p75NTR, o NT-3 é muito menos efetivo em ativar a TrkA, e o NT-3 e o NT-4/5 são menos efetivos em ativar a TrkB. Portanto, a presença de p75NTR aumenta a especificidade do TrkA e do TrkB aos seus ligantes primários, NGF e BDNF, respectivamente23 • O BDNF é considerado a principal neurotrofina do cérebro. É produzido pela glia e secretado em pequenas quantidades pelos núcleos dos neurônios, apresentando expressão abundante em hipocampo, neocórtex, amígdala e cerebelo. Em níveis fisiológicos, modula diferentes funções sinápticas, induzindo a maturação, a nutrição, o crescimento e a integridade neuronal 24• A sua ligação ao receptor TrkB promove a dimerização e a autofosforilação em resíduos intracelulares de tirosina quinase do receptor, evento este que desencadeia cascatas intracelulares pela ativação da proteína quinase ativada por mitógeno (MAPK), fosfatidilinositol3-quinase (PI3K) ou fosfolipase Cy (PLCy) 25 (Figura 5). A via desencadeada com base na MAPK influencia eventos de transcrição,
como o aumento do fator de transcrição CREB (proteína de ligação ao elemento responsivo ao AMPc), e regula a síntese proteica dependente de plasticidade. A ativação de PI3K induz a ativação da proteína Akt, que está envolvida em muitas funções, como sobrevivência celular, tradução e transporte de proteínas envolvidas na manutenção da plasticidade sináptica. A via da fosfolipase C está envolvida com alterações nos níveis de cálcio intracelular, liberação de neurotransmissores e transcrição de CREB. Além disso, a ligação do BDNF no receptor TrkB modula a transmissão sináptica por meio de alterações pré-sinápticas na liberação de neurotransmissores26• Portanto, o BDNF está envolvido em uma série de vias de sinalização intracelulares, como sobrevivência, divisão e crescimento celular, regulando também a plasticidade das células neuronais. Outra característica importante do BDNF é o seu poder de inibição da cascata de morte celular. Várias evidências mostram que essa proteína inibe a morte celular ao ativar a via da MAPK e aumentar a expressão da proteína antiapoptótica Bcl-2 27 • Vários estudos mostram que as neurotrofinas, em especial o BDNF, parecem estar envolvidas em muitas doenças neurológicas e psiquiátricas. Algumas evidências sugerem que a via de sinalização do BDNF/TrkB está en-
BDNF TrkB
Shc
Grb2 SOS
~
Gabl
\..
---...._
~ / @ ~
(@ ---...._
~\
\E) O NGF
t
0 NT4, BDNF
t
0 NT3
t
0
t
NGF,BNDF, NT3,NT4
~
I
I~,./
Expressão gênica
Domínio f - de morte
TrkA
TrkB
TrkC
p75
Figura 4 Esquema mostrando os diferentes tipos de receptor tirosina quinase (Trk) e suas diferentes afinidades para as neurotrofinas. A ligação de neurotrofinas resulta na dimerização de cada receptor. (Modificada de Chao MV, 2003 33.)
(;Tõit ~~ Síntese proteica
Figura 5 O BDN F se liga com alta afinidade ao receptor TrkB para induzir a dimerização e a autofosforilação dos resíduos de tirosina do receptor, servindo como sítios de ligação a moléculas efetoras e ativando três principais vias intracelulares: Plüy, PI3K e MAPK. Essas vias levam à fosforilação e à ativação do fator de transcrição CREB, que medeia a transcrição de genes essenciais para a sobrevivência e a diferenciação de neurônios. O re crutamento da PLGy aumenta os níveis intracelulares de Ca 2+ e leva à ativação de CaMKII, fosforilando CREB. PI3K pode ser ativada pelo complexo Shc/Grb2/SOS pela Gabl e IRSl/2. Os produtos lipídicos gerados pela ativação da PI3K se ligam e ativam a proteína quinase Akt. A cascata ERK pode ser ativada tanto pelo complexo Shc/Grb2/SOS como pelo PI3K. A fosforilação de ERK leva diretamente à fosforilação de CREB. Tanto Akt como ERK ativam mTOR, responsável por aumentar a tradução proteica. (Modificada de Cunha C, et ai., 201 034.)
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volvida na fisiopatologia das doenças psiquiátricas, bem como na ação dos antidepressivos e dos estabilizadores de humor28 . Em modelos animais de estresse, os níveis de BDNF encontram-se diminuídos 29 . Outros estudos mostram ainda que a administração de drogas antidepressivas e estabilizadoras do humor aumenta a expressão de BDNF em cérebro de ratos 30 • Diversos trabalhos têm sugerido que a indução do BDNF/TrkB é um dos mecanismos responsáveis pelos efeitos terapêuticos dos estabilizadores do humor e dos antidepressivos3 1• Por exemplo, tem sido demonstrado que o uso do lítio modula a fosfo rilação (atividade) do receptor TrkB e do CREB. Ainda, estudos com tratamento crônico com antidepressivos também mostram que esses fármacos regulam vários fatores envolvidos nas rotas de sobrevivência celular como CREB, BDNF, Bd-2 e MAPK32.
Plasticidade sináptica Uma das formas mais comuns de neuroplasticidade no cérebro adulto normal é a chamada plasticidade sináptica. Mecanismos de plasticidade sináptica são capazes de alterar a força das sinapses (atividade elétrica gerada no neurônio pós-sináptico), fortalecendo-as em condições de ativação específicas. A chegada de um potencial de ação no terminal axonal de um neurônio pré-sináptico promove a despolarização de sua membrana e a consequente entrada de íons Na+ para a célula. A entrada de íons Na+, por sua vez, promove a liberação de íons Ca2 + para o citoplasma por meio de reservatórios intracelulares (principalmente o retículo endo plasmático), que ativamente promovem a exocitose de vesículas contendo neurotransmissores. Uma vez liberados na fenda sináptica, os neurotransmissores reconhecem e se ligam a receptores presentes na membrana do neurônio pós-sináptico, promovendo sua mudança de potencial e a consequente passagem do sinal elétrico. Dependendo do tipo de neurotransmissor liberado e o receptor pós-sináptico ativado, o potencial pós-sináptico pode ser excitatório (caso promova entrada de cátions Na+ e/ou Ca2+ para o neurônio pós-sináptico, despolarizante) ou inibitório (caso haja entrada de ânions cl-, hiperpolarizante). Há, portanto, uma relação de proporcionalidade entre a quantidade de neurotransmissores liberados na fenda sináptica e a frequência de potenciais de ação no neurônio pós-sináptico. Quanto maior a intensidade do estímulo (e liberação de neurotransmissores), maior a frequência dos potenciais de ação que atingem as células do sistema nervoso central43 . Estudos mostram que a experiência e o aprendizado são capazes de promover alterações neuroanatômicas e sinápticas em cérebros adultos, o que sugere fortemente o envolvimento de mecanismos de plasticidade sináptica nesses eventos'. Acredita-se que esses mecanismos sejam os responsáveis pela capacidade que o cérebro tem
de armazenar informações, baseado no fortalecimento sináptico e na consolidação de diferentes circuitos neurais. De fato, diversos trabalhos têm sugerido fenômenos eletrofisiológicos e bioquímicas atualmente aceitos como mecanismos básicos da formação e da consolidação de ' . memonas. Memória e a potenciação de longa duração
Denomina-se memória a aquisição, o armazenamento e a evocação (aprendizado) de informações. As memórias podem ser classificadas de acordo com diferentes critérios: função (trabalho vs. referência), conteúdo (declarativa/explícita vs. de procedimento/implícita), duração (imediata ou de curta duração vs. remota ou de longa duração), natureza (associativa vs. não associativa), ou motivação (apetitiva/recompensa vs. aversivaY, Do ponto de vista eletrofisiológico, acredita-se que a modificação dependente do uso de sinapses é um dos mecanismos celulares primários responsáveis pela formação de memória e pelo aprendizado. Um dos mecanismos eletrofisiológicos mais estudados na formação de memórias é a chamada potenciação de longa duração (LTP). Esse fenômeno corrobora a hi pótese de que o aprendizado envolve plasticidade sináptica e é definido como um aumento prolongado da magnitude da resposta sináptica de um neurônio pós-sináptico após uma estimulação curta e de alta frequência de um neurônio pré-sináptico 1 (Figura 7 A). A LTP já foi observada em diferentes regiões do SNC (hipocampo, córtex cerebral, amígdala e cerebelo) e é um fenômeno típico de sinapses excitatórias glutamatérgicas. A maioria dos experimentos com LTP tem utilizado o hipocampo como região de escolha em decorrência da relativa simplicidade celular de sua estrutura e da suarelevância para os mecanismos envolvidos na memória declarativa. Um experimento típico de indução de LTP é realizado em preparações de fatias cerebrais mantidas in vitro, possibilitando ao pesquisador estimular eletricamente células de regiões específicas e registrar as consequentes
Via sinal ext erno
cCAMP Norepinefrina
~adrené rgico
Receptor Transdutor
~fet?~
Segundo mensageiro
l Efetor secundário
Adenilato ciclase
Gs
pnmano
l
Fosfoinositol ACh
,--
Muscarínico Gq
l cAMP
l PKA
Ácido araquidônico Histamina
Histamina
PLCy
l
I I
IP3
l DAG
l Ca 2 •
PLA2
G?
PKC
I I
Ácido araquidônico
l Li poxigenase;
cicloxigenase
Figura 6 Sistema de segundos mensageiros identificados. (Modificado de Kandel ER, et ai., 2003 5.)
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respostas sinápticas. Muito do que se sabe a respeito da LTP foi estudado em sinapses formadas entre as colaterais de Schaeffer e os neurônios do tipo piramidais da re gião CAl do hipocampo (Figura 7B). Tipicamente, um estímulo fraco no colateral de Schaeffer forma um potencial excitatório pós-sináptico (PEPS) fraco nos dendritos de CAl, assim como um estímulo um pouco mais forte permite o registro de um PEPS maior. No entanto, após os axônios da região CA3 receberem uma pequena sequência de estímulos elétricos de alta frequência (estímulo tetânico), a relação de proporcionalidade entre estímulo elétrico aplicado e PEPS registrado se perde: estímulos fracos passam a produzir PEPS bem maiores do que produziam antes. Nota-se, portanto, que o estímulo tetânico modifica de alguma forma as sinapses estimuladas, tornando-as mais efetivas. Além disso, essa modificação se prolonga por um longo período, podendo durar várias horas e até vários dias 44 • O que acontece nas sinapses entre as colaterais de Schaeffer e os dendritos de CAl? Acredita-se que modificações celulares tanto no neurônio pré como no pós-sináptico sejam necessárias para tal fenômeno. Sabe-se que os receptores de glutamato são os responsáveis pela transmissão sináptica excitatória no hipocampo, tanto do tipo AMPA como NMDA. A ligação do neurotransmissor ao AMPA promove o influxo de Na+ pelo receptor e a consequente promoção de PEPS na sinapse (Figura 7C). A despolarização da membrana pós-sináptica, por sua vez, permite o deslocamento de um íon Mg2+ que bloqueava o canal formado pelo receptor NMDA. Este, após ligação de glutamato, permite o influxo de íons Ca2 + (além de íons Na+) da fenda sináptica para o interior da célula (Figura 7c) 1,4s . No neurônio pós-sináptico, o aumento da concentração intracelular de Ca2 + ativa duas diferentes proteínas quinases: a proteína quinase C (PKC) e a proteína quinase dependente de cálcio-calmodulina II (CaMKII). As diferentes vias de sinalização intracelular ativadas culminam com a fosforilação de receptores AMPA localizados na membrana (o que aumenta a condutância iônica do canal) e com a inserção de outros receptores AMPA na membrana pós-sináptica, o que resulta em uma maior sensibilidade da membrana ao glutamato e justifica a quebra da relação de proporcionalidade entre o estímulo elétrico e a PEPS gerada na sinapse. Ainda há evidências de que modificações no neurônio pré-sináptico aumentam a liberação de glutamato na fenda sináptica, o que pro move uma maior ativação dos receptores AMPA e NMDA na membrana pós-sináptica e, portanto, aumenta a força da sinapse45 • De uma forma geral, a LTP é dividida em três fases sequenciais: potenciação de curta duração, potenciação de longa duração precoce (E-LTP) e potenciação de longa duração tardia (L-LTP) 46. A potenciação de curta duração e a E-LTP são transitórias e independentes de transcrição
gênica, enquanto a L-LTP dura horas e requer mudanças na expressão gênica e síntese de novo de proteínas. A longa persistência da L-LTP a tornou um candidato promissor para um análogo molecular da memória de longa duração. Acredita-se que a indução da L-LTP dependa da síntese local de proteínas no dendrito e da transcrição nuclear. A sinalização para o núcleo de moléculas como a proteína quinase A (PKA), a CaMKII e a quinase regulada por sinal extracelular (ERK) ativa fatores-chave de transcrição, como o CREB, que levam à síntese de proteínas promotoras da manutenção da L-LTP. De qualquer maneira, a forma como a sinalização é enviada dos espinhos dendríticos para o genoma da célula pós-sináptica ainda não está bem definida47 • Acredita-se que a manutenção da L-LTP também é mediada por um remodelamento estrutural das sinapses onde ocorre a LTP. Essas mudanças morfológicas incluem o crescimento de novos espinhos dendríticos e o alargamento de espinhos preexistentes e são mediadas por mudanças no citoesqueleto de actina. LTP e o fator neurotrófico derivado do cérebro (BDN F)
Existem evidências de um envolvimento da sinalização induzida pelo receptor TrkB na LTP in vitro e in vivo em modelos de aprendizado34 • Alguns trabalhos mostram, por exemplo, que a atividade neuronal que leva à LTP aumenta fortemente a expressão de BDNF em neurônios hipocampais em fatias cerebrais, sugerindo que sinais sinápticos fisiológicos podem induzir a liberação póssináptica de BDNF endógeno. Da mesma maneira, a deleção do gene Bdnf em camundongos knockout prejudica a indução normal da E-LTP na região CAl em fatias hipocampais. Ainda, a importância do BDNF na consolidação da L-LTP tem sido sugerida por estudos que mostram que essa neurotrofina estimula a síntese e o rápido transporte para os dendritos de moléculas de mRNA codificadas pela proteína Are (proteína associada ao citoesqueleto regulada pela atividade de immediate early genes), cuja função na L-LTP já foi anteriormente mostrada25 • Achados recentes indicam também que a síntese de BDNF durante a L-LTP é crucial para a persistência da memória, o que corrobora ainda mais a hipótese de que a estimulação do TrkB é fundamental para os mecanismos de plasticidade sináptica. É possível que o tétano indutor de L-LTP ative a síntese e/ou o processamento de proBDNF, e que o BDNF recém-sintetizado seja responsável pelas mudanças funcionais e estruturais existentes na L-LTP na sinapse de CAl. Depressão de longa duração
Determinadas situações podem diminuir a efetividade da sinapse, modulando a plasticidade sináptica de uma maneira inversa à LTP. A chamada depressão de longa duração (LTD) leva a uma diminuição duradoura do potencial pós-sináptico após uma estimulação tetânica
20 BASES MOLECULARES DO FUNCIONAMENTO CEREBRAL
prolongada de baixas frequências dos terminais pré-sinápticos (Figura 7 A) 44 • Esse fenômeno já foi observado em cerebelo, hipocampo e córtex cerebral, e no hipocampo envolve o mesmo circuito que a LTP (sinapses dos colaterais de Schaeffer com os neurônios piramidais de CAl). Curiosamente, da mesma forma que a LTP, a LTD também é iniciada pelo influxo de íons Ca2 + nos receptores NMDA, porém enzimas fosfatases (desfosforilantes) são ativadas (em vez de quinases). O que determina se qui-
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Despolarização
LTP e LTD em sinapses da região CA 1 do hipocampo. Experimentos ilustrando a LTP e a LTD na região CA 1 do hipocampo. A força sináptica, definida como a amplitude do PEPS (em porcentagem do controle), está expressa em função do tempo. A: O gráfico à esquerda demonstra a LTP induzida por uma estimulação tetânica de alta frequência (1 00 Hz por 1 s; seta preta). O gráfico à direita ilustra a LTD obtida após uma estimulação de baixa frequência (5 Hz por 3 min, aplicado duas vezes com intervalo de 3 min; seta azul). B: Diagrama esquemático de uma preparação de fatia hipocampal de roedor, demonstrando as regiões CA 1 e CA3, assim como o giro denteado (GD) (CS = colateral de Schaeffer; FM = fibras musgosas). Eletrodos estão posicionados para estudar a plasticidade sináptica nas sinapses das colaterais de Schaeffer em neurônios de CA 1 (um eletrodo para estímulo elétrico e outro para registro da PEPS). C: Modelo de transmissão sináptica em sinapses excitatórias. Durante a transmissão sináptica basal (figura à esquerda), o glutamato liberado na fenda sináptica se liga tanto ao receptor AMPA (AMPAR) quanto ao NMDA (NMDAR), mas há apenas influxo de Na+ pelo AMPAR (o NMDAR está bloqueado por um íon Mg2+). A despolarização da membrana pós-sináptica libera o Mg 2+ do NMDAR e permite o influxo tanto de Na+ como de Ca 2+ para o neurônio. O aumento de Ca 2+ intracelular nos espinhos dendríticos é o responsável pela ativação de eventos subsequentes que levam à plasticidade sináptica. (Modificado de Citri A, et ai., 2008 45 .).
nases ou fosfatases serão ativadas é a concentração de Ca2+ internalizado: altas concentrações ativam as quinases, e baixas concentrações ativam fosfatases. Uma vez ativas, as fosfatases desfosforilam receptores AMPA da membrana pós -sináptica e promovem a sua internalização por endocitose, diminuindo a sensibilidade da membrana póssináptica e, consequentemente, a PEPS44 •
Considerações finais Como discutido neste capítulo, diversos tipos de neuroplasticidade são necessários para um bom funcionamento cerebral. Mecanismos plásticos são necessários tanto no cérebro em desenvolvimento (quando ocorrem com maior frequência e são responsáveis pela formação da estrutura altamente organizada do sistema nervoso) como no cérebro adulto (em menor escala, ativados em resposta a estímulos externos e após lesões). Esses mecanismos parecem ser importantes também em processos cognitivos complexos como aqueles envolvidos no aprendizado e na memória (em se tratando de plasticidade sináptica), exemplificados por fenômenos como a LTP e a LTD. Dependendo do tipo de plasticidade, diferentes vias de transdução de sinais podem ser ativadas e, não raramente, várias são ativadas simultaneamente e interagem entre si. O compartilhamento desses mecanismos com aqueles ativados por neurotrofinas evidencia o papel fundamental que esta família de proteínas tem em mecanismos de regeneração, neurogênese e modificação da estrutura e da função neuronal, corroborando a hipótese de que elas estejam envolvidas na neurobiologia dos transtornos psiquiátricos. Além disso, cada vez mais tem se evidenciado a importância de neurotrofinas e vias envolvidas em neuroplasticidade no mecanismo de ação de fármacos psicotrópicos eficazes na clínica, o que torna o seu estudo obrigatório e de grande interesse em psiquiatria.
Figura 7
Questões 1. A maioria dos processos de transdução de sinal envolve se-
a) b) c) d) e)
quências ordenadas de reações bioquímicas dentro da célula. que são realizadas por: proteínas e lipídios. receptores. segundos mensageiros e efetores. íons. cálcio. receptores tirosina quinase.
2. Os receptores sinápticos podem ser divididos em dois subti.
a) b) c) d) e)
.
.
pos pnnc1pa1s: gasosos e não gasosos. ligados a cálcio e tirosinas. ionotrópicos e metabotrópicos. MAPK e ERK. ionotrópicos e MAPK.
23 1
232
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
3. Em relação à plasticidade neural: a) é um mecanismo de adaptação do cérebro característico dos primeiros anos de vida. b) ocorre somente após uma lesão cerebral. c) caracteriza-se pela capacidade do cérebro de se alterar após a interação entre o ambiente e o organismo. d) a neurogênese no cérebro adulto ocorre no giro denteado e na área tegumentar ventral. e) durante o desenvolvimento neural as fases de neu rogênese, migração e diferenciação são dependentes de atividade neural como transmissão do impulso nervoso e liberação de neurotransmissores. 4. Sobre as neurotrofinas pode-se afirmar: a) são moléculas produzidas exclusivamente por células do sistema nervoso central. b) são proteínas secretadas pelo sistema nervoso central que se ligam a receptores acoplados à proteína G. c) a ligação do BDN F ao seu receptor induz a transcrição gênica, mas não modula a tradução de proteínas. d) o receptor pan 75 regula a resposta dos receptores tirosina . qu1nase. e) o BDNF é fundamental somente na última fase da LTP. 5. Com relação à plasticidade sináptica: a) é uma característica inerente ao cérebro em desenvolvimento, não ocorrendo no cérebro adulto. b) a intensidade do potencial de ação pós-sináptico (PEPS) estimulado depende apenas da quantidade de neurotransmissor liberado na fenda. c) o fenômeno de potenciação de longa duração (LTP) é comumente estudado nas sinapses entre as fibras musgosas e as células de CA3 do hipocampo. d) a LTP depende da entrada de íons Ca 2+ no neurônio pós-sináptico nos receptores AM PA. e) a depressão de longa duração (LTD) inicia-se com o influxo de Ca2+ em receptores N M DA no neurônio pós-sináptico.
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233
Epilepsia e Transtornos Psiquiátricos: Aspectos Relacionados ao Neurodesenvolvimento Kette Dualibi Ramos Valente Natasha Cardoso da Fonseca Rudá Alessi Sigride Thomé de Souza Lia Arno Fiare
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 234 Classificação das crises e síndromes epilépticas, 235
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Classificação das crises epilépticas, 235 Classificação das síndromes epilépticas, 235 Etiologia das epilepsias, 236 Epilepsia e neurodesenvolvimento, 236 Epilepsia na infância e adolescência, 237 Epilepsia no adulto e idoso, 237 Transtornos psiquiátricos, epilepsia e neurodesenvolvimento, 238 Infância e adolescência, 238 Adultos e idosos, 240 Metodologia em neurofisiologia, 241 Tratamento, 241 Recomendações em relação ao tratamento da epilepsia em pacientes com comorbidades psiquiátricas, 243 Recomendações em relação às drogas psicoativas nos pacientes com epilepsia e transtornos psiquiátricos, 243 Considerações finais, 244 Referências bibliográficas, 244
Introdução Dois pesquisadores são considerados os introdutores dos conceitos modernos sobre a epilepsia: John Hughlings Jackson, que caracterizou uma crise epiléptica como um evento desencadeado por uma descarga elétrica excessiva e súbita proveniente do córtex cerebral, e William Richard Gowers, que contribuiu enriquecendo os dados sobre as características clínicas de várias formas de epilepsia e foi um dos primeiros a formular conceitos relativos ao tratamento e prognóstico 1• Desde os artigos iniciais, nossa compreensão sobre a epilepsia aumentou imensamente em razão de inúmeros fatores, dentre eles: (i) o surgimento de um número maior de pesquisas sobre sua epidemiologia; (ii) os avanços na classificação das síndromes e crises epilépticas;
1. Definir epilepsia e crises epilépticas.
2. Entender o sistema de classificação das síndromes epilépticas. 3. Compreender as diferenças da epilepsia relacionados à faixa etária. 4. Diferenciar os transtornos psiquiátricos em pessoas com epilepsia de diferentes faixas etárias. 5. Compreender melhor a abordagem diagnóstica e as recomendações para o tratamento.
(iii) a introdução de métodos de investigação mais sensíveis e (iv) o aprimoramento de tratamentos medica. ' . mentosos e Cirurgicos. O conceito atual de epilepsia é de uma condição caracterizada por uma predisposição permanente para gerar crises epilépticas e por suas consequências neurobiológicas, cognitivas, psicológicas e sociais2. Convencionalmente, seu diagnóstico é baseado na presença de duas ou mais crises recorrentes e espontâneas, sem levar em conta o contexto clínico3.4. A definição mais atual requer a ocorrência de pelo menos uma crise epiléptica associada à predisposição de recorrência de crises epilépticas2 • As crises epilépticas, por sua vez, são descritas pela ocorrência transitória de sinais e/ou sintomas em consequência a uma atividade neuronal encefálica síncrona, excessiva e anormaF·5 • Essa atividade paroxística é, em geral, intermitente e autolimitada. O córtex cerebral é o elemento principal na formação de uma crise, mas não é o único. Em algumas circunstâncias, elas podem se originar do sistema talamocortical ou do tronco encefálico. A apresentação clínica da crise epiléptica depende de uma grande variedade de fatores, como do local de início da atividade epileptiforme no córtex cerebral, dos seus
21 EPILEPSIA E TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS, ASPECTOS RELACIONADOS AO NEURODESENVOLVIMENTO
padrões de propagação, da maturação encefálica, dos processos patológicos associados, do ciclo sono-vigília e de medicações em uso. As crises epilépticas podem afetar a consciência, o estado emocional, a memória, a cognição, o comportamento, bem como as funções sensoriais, motoras e autonômicas. Nem todas as crises afetam todas essas funções, mas todas as crises afetam pelo menos uma delas.
Classificação das crises e síndromes epilépticas Classificação das crises epilépticas Os critérios de classificação das crises de 1981 3 e das síndromes epilépticas de 19896 , que eram amplamente aceitos e utilizados, não incluem os conhecimentos recentemente adquiridos com os avanços da neuroimagem, genética e biologia molecular. Dessa forma, inúmeras revisões 5•7 -10 foram realizadas para tentar suplantar essa deficiência e tornar as classificações mais próximas dos conhecimentos atuais. As crises epilépticas, por representarem uma entidade diagnóstica única, têm sua classificação baseada em mecanismos fisiopatológicos, substratos neuronais, res posta às drogas antiepilépticas (DAEs), padrões de EEG interictal, padrões de propagação e características do pósictal e síndromes epilépticas associadas5 • Elas podem ser
Quadro I •
Classificação das crises epilépticas - adaptado de Berg et al7
Crises generalizadas o Crises com manifestações tônico-clônicas (em qualquer
combinação) o Ausência
•
Ausência típica
•
Ausência atípica
•
Ausência com características especiais -
Ausência mioclônica
-
Mioclonia palpebral
o Mioclonias
•
Crises mioclônicas
•
Crises mioclônicas-atônicas (previamente chamadas mioclôn icas-astáticas)
•
Crises mioclônicas e tônicas
o Crises clônicas o Crises tônicas o Crises atônicas
• •
Crises parciais/ focais Crises de origem indeterminada o Espasmos epilépticos
classificadas de acordo com diferentes critérios. Em relação à sua duração, elas são divididas em autolimitadas e contínuas (estado de mal epiléptico). Em 20 1O, foi publicado um informe especial com as recomendações deliberadas pela comissão da ILAE para uma atualização da classificação e terminologia das crises epilépticas autolimitadas (Quadro 1) 5•7 • As características eletroclínicas das crises epilépticas as diferenciam como generalizadas ou parciais/focais. As crises generalizadas são conceituadas como crises originadas em uma determinada região encefálica, com rápido envolvimento de conexões distribuídas bilateralmente. Essas conexões bilaterais podem envolver tanto estruturas corticais quanto subcorticais, mas não necessariamente incluem todo o córtex. Embora o início de uma crise possa parecer localizado, o local e a lateralização não são consistentes entre uma crise e outra. Por fim, as crises generalizadas podem ser assimétricas5•7 • As crises parciais/focais são conceituadas como originárias de cadeias neuronais limitadas a um hemisfério, podendo se originar de estruturas subcorticais. Elas podem ter origem em áreas de dimensões variadas, podendo ser bem restritas ou mais amplas. Em cada crise, a localização de início coincide com as demais, com um padrão de propagação preferencial, que pode envolver o hemisfério contralateral. Em alguns casos, entretanto, existe mais de uma cadeia de neurônios iniciando a atividade epileptiforme, bem como mais de um tipo de crise, mas cada tipo de crise tem um início consistente entre si5•7 . Nas crises parciais/focais, é relevante que seja referida a alteração do nível de consciência, caracterizada pela perda ou não de contato com o meio (Quadro II). Os espasmos exemplificam um tipo de crise que pode ter origem generalizada ou focal, dependendo da sua etiologia. Dessa forma, não se pode enquadrá-los nem como crise focal, nem generalizada, terminando como desconhecida ou indeterminada7 •
Classi fi cação das síndromes epilépticas A epilepsia engloba diferentes condições com diferentes etiologias, apresentações clínicas, eletrográficas e mecanismos fisiopatológicos. Como a classificação das
Quadro 11 Descrição das crises focais de acordo com a alteração do nível de consciência - adaptado de Berg et ai? Sem alteração do nível de consciência ou alerta (parcial simples) Com componentes motores ou autonômicos observáveis Envolvendo fenômenos sensitivos subjetivos ou psíquicos somente Com alteração do nível de consciência ou alerta (parcial complexa) Generalização secundária: evolução para crise epiléptica bilateral ou com fenômenos motores (envolvendo componentes tônicos, clônicos ou tônico-clônicos)
235
236
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
crises epilépticas não inclui a heterogeneidade da doença, tenta-se classificar a epilepsia por meio das síndromes epilépticas. A síndrome epiléptica é constituída pela etiologia, tipo de crises e idade de ocorrência que quando analisados conjuntamente definem uma condição reconhecível e distinta5•8•9 • O reconhecimento adequado das síndromes possibilita uma conduta, quanto à terapêutica e ao prognóstico, de forma mais direcionada. A epilepsia também pode ser caracterizada quanto a sua evolução em encefalopatia epiléptica. A encefalopatia epiléptica compreende uma condição na qual a atividade epiléptica contribui diretamente para o declínio cognitivo e comportamental, que tem uma gravidade além do esperado para a patologia de base, por s?·8 •
Etiologia das epilepsias Quanto a sua etiologia, a epilepsia é classificada em: 1) Idiopática: grupo que tem um início relacionado à idade, com características clínicas e eletrográficas específicas e etiologia genética presumida. 2) Sintomática: secundária a uma lesão determinada por exame de imagem (p. ex., tumor, displasias corticais etc.), genético (p. ex., trissomia do cromossomo 21, síndrome de Angelman etc.) ou metabólico (p. ex., hiperglicinemia não cetótica etc.). 3) Criptogênica: etiologia não detectável pelos métodos diagnósticos disponíveis, embora seja possivelmen. ' . te smtomatlca.
Tabela I
Epilepsia e neurodesenvolvimento A epilepsia é uma das doenças neurológicas mais comuns do mundo. Nos países em desenvolvimento as taxas de incidência anual da epilepsia são de 122 a 190 para cada 100.000 indivíduos 11 . Contudo, a epilepsia é uma doença de evolução crônica. Dessa forma, a prevalência é maior do que a incidência. A prevalência mundial estimada de epilepsia é de 0,5 a 1%, sendo de aproximadamente 1,5% nos países em desenvolvimento12-14.
Principais alterações na terminologia e conceitos para classificação das epilepsias e crises epilépticas - adaptado de Berg et al.7
Etiologia
Crises epilépticas
Epilepsias
A nova proposta para classificação etiológica (Quadro IIIF também divide as epilepsias em três grupos, denominados: os de causa genética; estrutural ou metabólica; desconhecida. 1) Genética: epilepsia resultante de defeitos genéticos conhecidos ou presumidos, na qual a crise epiléptica é o sintoma cardinal do distúrbio. A designação da natureza fundamental do distúrbio como genética não exclui a possibilidade de fatores ambientais, contribuindo para a expressão da doença. 2) Estrutural/metabólica: entidade na qual existe uma lesão estrutural, metabólica ou doença distinta, que esteja associada com um risco aumentado para o desenvolvimento de epilepsia. As lesões estruturais podem ser adquiridas (p. ex., AVC, trauma) ou de origem genética (p. ex., esclerose tuberosa), no qual há um distúrbio distinto interposto entre o defeito genético e a epilepsia. 3) Causa desconhecida: epilepsia na qual a etiologia subjacente ainda é desconhecida.
Termos e conceitos atuais
Nova proposta (20 1O)
ldiopática (presumidamente genética)
Genética (defeitos genéticos que contribuem diretamente para a epilepsia). Crises são os sintomas cardinais
Sintomática: secundária a uma afecção encefálica subjacente conhecida ou presumida do encéfalo
Estrutural-metabólica (causada por um insulto estrutural ou metabólico ou uma afecção encefálica)
Criptogênica (presumidamente sintomática)
De causa desconhecida (pode ser genética. estrutural ou metabólica)
Generalizada (envolvimento inicial de ambos os hemisférios)
Generalizada (surgindo em uma região encefálica e rapidamente se difundindo para conexões distribuídas bilateralmente)
Focal/parcial (ativação de um sistema de neurônios limitado a uma região de um hemisfério)
Focal (originando-se em conexões dentro de um hemisfério)
Espasmos (não eram reconhecidas)
Adição de espasmos epilépticos (classificados como tipo de crises epilépticas desconhecidas em razão de evidências insuficientes para classificação como focal, generalizada ou ambos)
Parcial complexa e simples, secundariamente generalizada
Termo/classificação abandonada, favorecendo uma descrição precisa das crises focais, quanto à semiologia ictal
Generalizada (epilepsia com crises generalizadas)
Termo/classificação abandonada
Focal/parcial (epilepsia com crises focais)
Termo/classificação abandonada
21 EPILEPSIA E TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS, ASPECTOS RELACIONADOS AO NEURODESENVOLVIMENTO
Estima-se que cerca de 5% da população geral irá apresentar uma ou mais crises em alguma época da vida4 .
Epilepsia na infância e adolescência Estima-se que 10,5 milhões de crianças em todo o mundo têm epilepsia ativa, representando 25% da população global. De cada 3,5 milhões de novos casos anuais de epilepsia, 40% são constituídos por crianças menores de 15 anos e 80% provenientes de países em desenvolvimento. Dos indivíduos que iniciaram suas crises epilépticas na infância, 64% estarão em remissão na vida adulta; destes pacientes, somente 16% ainda estará em uso de medicação 15 • A maioria das crianças com epilepsia pode ser classificada em quatro grandes grupos: 1) epilepsias benignas (20-30%), nas quais a remissão ocorre após poucos anos do início das crises epilépticas e o tratamento pode ser frequentemente evitado (p. ex., epilepsia rolândica); 2) epilepsias farmaco -sensíveis (30%), nas quais o controle das crises é facilmente atingido por medicações e remissão espontânea ocorre após alguns poucos anos (p. ex., epilepsia ausência); 3) epilepsias farmacodependentes (20%), nas quais o tratamento medicamentoso controla as crises epilépticas, porém a remissão espontânea não ocorre e a suspensão do tratamento é seguida de recorrência das crises (exemplo: epilepsia mioclônica juvenil e muitos casos de epilepsia focal sintomática) e 4) epilepsias farmacorresistentes (13 a 17% dos pacientes), epilepsias refratárias com prognóstico reservado 15 . As epilepsias idiopáticas da infância têm como sua principal característica uma evolução benigna, mesmo que por um período da sua evolução cursem com crises frequentes. A maioria dos pacientes evolui sem sequelas neurológicas ou cognitivas. As epilepsias benignas focais são as síndromes epilépticas mais frequentes da infância. Elas têm um curso idade-dependente e podem acometer mais de um membro da família. A resposta a drogas antiepilépticas é, em geral, satisfatória; porém, é incerto se o tratamento modifica o prognóstico. As epilepsias idiopáticas generalizadas são frequentes e têm o seu início na infância e na adolescência. Elas são geneticamente determinadas e a maioria das crianças tem boa resposta terapêutica, porém, a resposta é dependente de uma correta escolha da medicação 15•16 • As epilepsias focais sintomáticas são responsáveis por 40% de todas as epilepsias que acometem crianças. As epilepsias sintomáticas da infância podem estar asso ciadas a um grande número de patologias, como as anormalidades do desenvolvimento cortical ( correspondem a 40% das epilepsias refratárias), as doenças hipóxico-isquêmicas (responsáveis por 40 a 65 % das epilepsias no período neonatal), as facomatoses, os tumores benignos e a própria esclerose mesial temporal. As lesões extratemparais contribuem para a maior parte dos casos. Em crianças, a esclerose mesial temporal isolada tem sido descri-
ta em 15 a 43% dos casos de epilepsia do lobo temporal, sendo mais comum acima dos 5 anos. O prognóstico clínico das epilepsias sintomáticas é bastante variável, e o tratamento cirúrgico deve sempre ser considerado quando o tratamento medicamentoso for ineficaz4•15•16 . Dentre as epilepsias que ocorrem nos primeiros três anos de vida, 40% se enquadram na classificação de encefalopatia epiléptica. As encefalopatias epilépticas englobam um grupo de condições nas quais ocorre uma deterioração das funções cognitivas, sensoriais e/ou motoras, em função da atividade epiléptica. Embora nesses casos o tratamento precoce e enérgico seja advogado, para a maioria dessas condições não existe um objetivo bem estabelecido e as drogas são escolhidas empiricamente 15 • A adolescência é a transição entre a infância e a vida adulta. Esse período inclui algumas epilepsias da infância que estariam em resolução e grande parte das epilepsias da vida adulta, que aqui se iniciam. As síndromes epilépticas da adolescência geralmente se manifestam como crises generalizadas e as epilepsias generalizadas idiopáticas representam cerca de 70% das epilepsias dessa idade 17 • Dentre as epilepsias focais sintomáticas, a epilepsia mesial temporal com esclerose do hipocampo apresenta quadro sindrômico bem definido. Na faixa etária entre 15 e 24 anos, trauma é uma das causas mais importante de epilepsia sintomática, também sendo um fator importante para crianças 17 •18 •
Epilepsia no adulto e idoso A epilepsia é uma doença com início nos extremos da idade, com uma incidência alta na infância, declinando em adultos jovens e aumentando em pessoas acima dos 55 anos. Por outro lado, a prevalência é maior em pacientes adultos e idosos. Em adultos, as lesões focais mais implicadas em epilepsia são as displasias corticais, esclerose hipocampal, tumores, malformações vasculares, lesões vasculares e pós-traumáticas sequelares. A epilepsia do lobo temporal é a principal causa de epilepsia refratária no adulto 16•19 . Em pacientes com tumores intracranianos, epilepsia é relatada em 20 a 70% dos adultos e somente em 1 a 2% das crianças 18 . Estudos epidemiológicos demonstram que a incidência de epilepsia é significativamente maior em idosos (pessoas maiores de 65 anos) do que em outras faixas etárias20 . Comparados com indivíduos mais jovens, os idosos têm uma maior chance de desenvolver crises epilépticas, seja secundária a doenças agudas ou sem um fator precipitante evidente. A incidência anual de epilepsia aumenta de 85,9 para cada 100.000 pessoas entre 65 a 69 anos para mais de 135 para cada 100.000 pessoas em maiores de 80 anos. Idosos com epilepsia têm uma taxa de mortalidade 2 a 3 vezes maior, comparada à da população geral. A dicionalmente, 30% das crises epilépticas agudas se apresen-
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tam como estado de mal epiléptico, que carrega uma expressiva taxa de mortalidade de 40% 6•26 . Existem algumas peculiaridades desta faixa etária com relação à etiologia diferenciada, com mais causas vasculares, menor incidência de crises tônico-clônica generalizadas, mais crises parciais e melhor resposta às drogas antiepilépticas21 . A causa identificável mais comum de epilepsia no idoso é acidente vascular encefálico prévio, correspondendo a 30 a 40% dos casos de epilepsia nessa faixa etária. O risco de desenvolver epilepsia é duas vezes maior para acidente vascular hemorrágico, quando comparado ao isquêmico20 • Outras causas importantes de epilepsia no idoso são: distúrbios metabólico-sistêmicos, traumatismo cranioencefálico, infecções do sistema nervoso, abstinência alcoólica, intoxicações, tumores de sistema nervoso central e doenças degenerativas associadas com declínio cognitivo, especialmente doença de Alzheimer. Embora em muitos casos a causa provável seja identificada, em aproximadamente metade dos pacientes idosos a etiologia é considerada como criptogênica20•21 .
Transtornos psiquiátricos, epilepsia e neurodesenvolvimento As comorbidades psiquiátricas exercem um impacto negativo nas respostas terapêuticas farmacológicas e cirúrgicas dos pacientes com epilepsia. Além disso, estudos demonstram que os transtornos psiquiátricos, em especial os distúrbios do humor, são fatores de risco independentes para uma pior qualidade de vida entre os pacientes com epilepsia. O erro no diagnóstico dos transtornos psiquiátricos e, consequentemente, a ausência do tratamento efetivo e precoce está correlacionado com um aumento de encargos dos serviços de saúde e aumento dos custos individuais, familiares e da sociedade, em geral22 • A etiologia das comorbidades psiquiátricas em pacientes com epilepsia é multifatorial, envolvendo fatores neurobiológicos e psicossociais. Os determinantes neurobiológicos em potencial incluem idade de início da epilepsia, frequência e gravidade das crises epilépticas, tipo de epilepsia, localização do foco epiléptico e medicações em uso, tanto em relação ao tipo, quanto ao número. Os possíveis fatores psicossociais incluem estigma percebido, número elevado de eventos estressares prévios, não aceitação da epilepsia, estresse financeiro, problemas profissionais e início precoce da epilepsia22 . As comorbidades psiquiátricas são mais frequentes nas epilepsias focais, especialmente na epilepsia do lobo temporal secundária a esclerose mesial hipocampal e na epilepsia do lobo temporal. Taxas de prevalência de depressão, ansiedade e psicose são significativamente maiores nas epilepsias do lobo temporal, quando comparadas a outros tipos de epilepsia22 .
Os transtornos depressivos não são restritos a pacientes com crises epilépticas farmacoresistentes e, frequentemente, precedem o início das crises, o que sugere uma relação bidirecional entre essas duas entidades22 -24 . Estudos com modelos animais e com neuroimagem funcional em humanos sugerem a existência de um mecanismo patogênico operante comum em ambas as condições, facilitando o desenvolvimento de um distúrbio na presença do outro. Os mecanismos patogênicos comuns incluem anormalidades no potencial de ligação de receptores de diversos neurotransmissores do sistema nervoso central, especialmente os de serotonina, noradrenalina, dopamina, ácido y -aminobutírico e glutamato; alterações estruturais se apresentando como atrofia do lobo temporal, do lobo frontal e, em menor grau, do tálamo e dos gânglios da base; anormalidades funcionais nos lobos temporais e frontais, incluindo diminuição de receptores de serotonina nas estruturas mesiais, núcleo da rafe, tálamo e giro do cíngulo e anormalidades funcionais do eixo hipotálamo-pineal-adrenal22 -24 • Outro alvo de pesquisas clínicas é a análise de uma correlação anatômica entre epilepsia e psicose. Estudos com pacientes psicóticos sem epilepsia demonstraram anormalidades estruturais e funcionais nas regiões frontais e pré-frontais. No entanto, outros autores também associaram o lobo temporal ao desenvolvimento desses sintomas22 •25 . Os transtornos psiquiátricos dos pacientes com epilepsia geralmente diferem dos apresentados por pacientes sem epilepsia, sendo habitualmente classificados como atípicos. Uma característica típica dessa comorbidade nos pacientes com epilepsia é a relação temporal dos sintomas com a ocorrência das crises. Baseados nessa relação, os sintomas psiquiátricos são, então, classificados em préictais (precedem as crises epilépticas por pelo menos dois dias), ictais (representam uma expressão da crise epiléptica), interictais (ocorrem independentemente das crises epilépticas) e pós-ictais (ocorrem em qualquer período dentro de cinco dias após as crises epilépticas )22 •
Infância e adolescência Os distúrbios do comportamento que acometem crianças e adolescentes com epilepsia podem diferir consideravelmente, tanto em início quanto em curso, daqueles que acometem adultos com epilepsia, tornando mais difícil seu reconhecimento. Um estudo retrospectivo populacional com crianças e adolescentes com epilepsia recém-diagnosticada demonstrou prevalência de transtornos psiquiátricos de 51%, com queda para 40,4% ao se excluírem pacientes com diagnósticos associados de deficiência mental e/ou transtornos globais do desenvolvimento. Os diagnósticos mais comuns entre os pacientes desse estudo foram: transtorno do déficit de atenção e hiperatividade - TDAH
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(17%), transtornos do humor (12%) e distúrbios de ajustamento (10%)26 . A epilepsia é um fator predisponente de déficits de atenção em crianças, podendo acarretar uma interferência no processo de aprendizagem desses pacientes. A prevalência de TDAH entre crianças em idade escolar, da população em geral, é em torno de 3 a 5%. Em estudos entre crianças com epilepsia, utilizando medidas padronizadas para avaliação dos sintomas de TDAH, a prevalência encontrada foi de 30 a 40%. Esses estudos mostraram um predomínio do tipo déficit de atenção (24%), seguido pelo tipo combinado ( 11%) e por fim o tipo h iperativo (2%); diferindo de estudos com crianças da população em geraF6 . A depressão em crianças, em geral, requer um tratamento de longo prazo, em decorrência das altas taxas de recorrência e persistência dos sintomas na vida adulta. Problemas de atenção podem ser secundários a uma depressão não diagnosticada. Nesses pacientes, é importante avaliar as necessidades para seu desenvolvimento, os possíveis fatores psicossociais estressares, o ambiente escolar e o funcionamento da família. O objetivo do tratamento de pacientes com depressão é uma melhora tanto das crises epilépticas quanto dos sintomas depressivos 26 • Os sintomas depressivos em crianças com epilepsia podem se manifestar por meio de alterações emocionais, como irritabilidade, raiva, tristeza persistente e sensibilidade exacerbada a rejeição; alterações comportamentais, como regressão do comportamento, isolamento social, comportamento negligente, perda de interesse em atividades e abuso de álcool e drogas; alterações cognitivas, como baixa autoestima e pensamentos de menor valia, sentimento de culpa inapropriada, sentimentos de não ser amado, dificuldade de concentração e prejuízo escolar; e também, por meio de sintomas físicos como somatização, mudança do apetite e do sono26 • Pacientes com depressão podem vivenciar sintomas emocionais, comportamentais, cognitivos e físicos, in cluindo pensamentos recorrentes de morte e suicídio. Depressão é possivelmente o principal motivo de uma maior frequência de ideação e tentativas de suicídio entre os pacientes com epilepsia, quando comparados com a população em geral. A presença de outras comorbidades, em crianças com epilepsia e depressão, pode aumentar o risco de suicídio26 • Ansiedade é uma comorbidade frequente em crianças e adolescentes com epilepsia. Essa predisposição pode ser resultado de crises imprevisíveis, reações de medo e estresse de familiares e medo da morte. Outros fatores associados com aumento da ansiedade nesses pacientes incluem uma comorbidade com transtornos de aprendizagem e comportamentais e politerapia26 • Existem poucos estudos de prevalência de sintomas psiquiátricos em adolescentes com epilepsia. Dentre os adolescentes com epilepsia, ressalta-se uma forma de epi-
lepsia generalizada idiopática, a epilepsia mioclônica juvenil (EMJ). Alguns autores encontraram uma prevalência aumentada de transtornos de personalidade (23 a 30%), mas não de depressão nas epilepsias generalizadas idiopáticas. Existem inúmeros relatos da associação de EMJ com aumento na prevalência de traços/transtornos de personalidade do cluster B, caracterizados por instabilidade emocional, imaturidade, instabilidade, falta de disciplina, irresponsabilidade, impulsividade e mudanças rápidas do humor. Um estudo desenvolvido pelo nosso grupo demonstrou a presença de endofenótipos distintos nos quais pudemos observar pacientes com EMJ sem traços impulsivos e de fácil controle e pacientes com traços impulsivos e de difícil controle medicamentoso. Em concordância com outros autores, acreditamos que essas características possam fazer parte dessa síndrome, quando conseguimos diferenciar subgrupos específicos22•27•28 • Baker et al. 29 estudaram o impacto da epilepsia em adolescentes do Reino Unido. Nesse estudo foi encontrada maior taxa de depressão, com manifestação de anedonia e problemas interpessoais nos adolescentes que tinham epilepsia, quando comparados a adolescentes-controle. Esse grupo de adolescentes com epilepsia também apresentou maiores taxas de ansiedade e sintomas obsessivos. Os resultados também demonstraram que a maior frequência das crises está significativamente associada com baixa autoestima29 • Camfield e Camfield30 selecionaram pacientes com epilepsia generalizada com crises tônico-clônica generalizadas de uma coorte populacional da Nova Escócia e avaliaram os efeitos médicos e sociais após um acompanhamento médio de 20 anos. A prevalência encontrada da síndrome epiléptica estudada foi de 5,8%. Dos pacientes que completaram o acompanhamento, nenhum apresentava incapacidades neurológicas ou intelectuais e 92% tinham atingido remissão das crises com suspensão das drogas antiepilépticas. Foram selecionados 30 pacientes maiores de 21 anos (75% da amostra original) para avaliação dos efeitos sociais. Desses pacientes, 77% relataram dificuldades de aprendizagem nos anos escolares, sendo que 60% completaram o ensino médio, 33% apresentaram alterações comportamentais significativas referidas pelos pais, 43% precisaram de visitas de saúde mental durante curso clínico da epilepsia e 27% foram diagnosticados com transtornos psiquiátricos, incluindo 20% com quadro de depressão suficientemente importante para tratamento medicamentoso. Ao final do acompanhamento, 23% viviam sozinhos e 14% viviam com seus pais, 43% apresentaram gestação não planejada, 33% estavam desempregados e eram sustentados por seus pais, companheiro/a ou assistência governamental. Nenhum paciente apresentou abuso alcoólico ou de drogas e 7% tinham uma condenação penal. Os problemas sociais encontrados, como desemprego, gestação não planejada, condenação legal, morar sozinho e transtornos psiquiátricos, foram semelhantes aos
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de pacientes com epilepsia mioclônica juvenil, excetuando maior índice de alterações comportamentais e menor número de pacientes terminando o ensino médio nessa coorte. Esses problemas sociais devem ser alvo de intervenção precoce durante a infância e adolescência, mesmo com remissão das crises epilépticas, para evitar as implicações sociais na vida adulta.
Adultos e idosos A prevalência de comorbidades psiquiátricas varia ampiamente entre os diferentes estudos da literatura, com maiores taxas naqueles realizados com pacientes em avaliação pré-cirúrgica e menores taxas em estudos populacionais. Estudos relatam taxas de incidência que variam de 19 a 80%. A heterogeneidade dos grupos, a falta de instrumento de avaliação padronizado, a ausência de controles adequados, as diferenças nos tipos de estudos e gravidade dos pacientes com epilepsia são fatores que poderiam explicar essa grande variabilidade. Apesar dessa grande variabilidade, existe um consenso geral de que os distúrbios psiquiátricos são mais prevalentes nos pacientes com epilepsia22• Um grande estudo no Canadá identificou uma prevalência de 35,5% de transtornos mentais em pacientes com epilepsia, sendo 24,4% de transtornos do humor, 34,2% de transtornos do humor incluindo distimia, 17,4% de transtorno depressivo maior, 22,8% de distúrbios de ansiedade e 6,6% de síndrome do pânico ou agorafobia. Transtornos de humor e de ansiedade são as comorbidades mais frequentes nos pacientes adultos com epilepsia. Em um estudo de revisão da literatura, os transtornos depressivos representaram a comorbidade psiquiátrica mais frequente em pacientes com epilepsia (30%), seguidos por transtornos de ansiedade (10-25%), transtornos psicóticos (2 -7%) e transtornos de personalidade (1 -2%). A maioria dos estudos demonstra que pacientes com epilepsia têm um risco 2,5 vezes maior de desenvolver sintomas psicóticos do que a população. A prevalência de ideação suicida também é elevada nessa população (30%), com alta taxa de suicídio (11,5%), comparada com a população em geral (1,5%)22 • Os transtornos do humor, especialmente os transtornos depressivos, são heterogêneos em sua manifestação e curso. Os sintomas podem se manifestar nos pacientes com epilepsia de forma idêntica a pacientes não epilépticos, porém, embora se apresente com um curso crônico e um efeito incapacitante como os transtornos depressivos incluídos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais Versão IV (DSM-IV), eles frequentemente não preenchem todos os critérios. Por essa razão, Blumer et aP 1 consideraram como uma entidade diferente, propondo o termo transtorno disfórico, referindo-se ao seu curso intermitente e manifestações clínicas pleomórficas, que incluem sintomas de anedonia, irritabilidade, ansiedade, euforia e dor.
Os transtornos ansiosos podem ocorrer associados temporariamente às crises ou como um evento interictal. Muitos pacientes referem sensação de medo durante as crises e aproximadamente 15% relatam esse sintoma como a expressão clínica principal de aura. A semiologia principal do transtorno ansioso generalizado, na maioria dos casos, consiste em inquietação associada com sintomas somáticos de fadiga, diminuição da concentração, alterações do sono, irritabilidade e tensão muscular. Os transtornos de fobia, especialmente agorafobia e fobia social, são comuns quando as crises epilépticas não estão controladas. Sintomas de ansiedade pós-ictal aparecem em 45% dos pacientes com epilepsia sem controle das crises e estão frequentemente associados com transtornos do humor. O reconhecimento de ansiedade em pacientes com depressão é de grande importância, em razão do risco aumentado de suicídio22 • Estima-se que TDAH persista em 50 a 75% dos adultos que receberam esse diagnóstico na infância. Pacientes, em geral, se apresentam com transtorno de atenção, com ou sem impulsividade, irritabilidade e baixa tolerância à frustração em situações adversas. Frequentemente está associado com ansiedade, transtornos do humor, alcoolismo e abuso de drogas. Em muitas ocasiões, por causa da complexidade de sua manifestação clínica, é interpretado como transtorno de personalidade. A prevalência de transtornos psicóticos varia de 2 a 9%. Psicose interictal se manifesta como alucinações e delírios sem alteração do pensamento, ou seja, do raciocínio. A preservação da personalidade é uma das diferenças principais entre transtornos esquizofreniformes primários e psicose interictal da epilepsia. Eles têm sido mais associados com epilepsia do lobo temporal e malformações corticais22' 25 • Os transtornos psicóticos em pacientes com epilepsia também podem ter manifestações clínicas diferentes, quando comparados aos transtornos psicóticos primários. As diferenças consistem em um curso mais benigno, menor frequência de deterioração da personalidade e da interação social e melhor resposta à farmacoterapia em pacientes com psicose interictal da epilepsia. Além disso, observa-se uma idade de início mais tardia dos sin. ' . tomas pstcohcos. Psicose pré-ictal e ictal precede e acompanha o es tado ictal, respectivamente. A psicose ictal é, em geral, identificada no contexto de epilepsia crônica e refratária. Possivelmente a causa mais comum de eventos relacio nados ao estado ictal são os fenômenos de aura prolongados ou as crises parciais complexas ocorrendo na forma de estado de mal não convulsivo. Os episódios psicóticos ocorrem associados com alterações da consciência associados com manifestações motoras e comportamentais. Em geral, ocorre perda da memória e do estado de alerta durante o episódio. A psicose pós-ictal vem sendo identificada com maior frequência na avaliação de pacientes pré-cirúrgicos. Ela
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aparece após um período lúcido de 24-72 horas após uma crise epiléptica. Elas são autolimitadas com uma duração variando entre algumas horas e quatro semanas. A psicose é polimórfica frequentemente associada com temas paranoides, afetivos e religiosos. Crises epilépticas secundariamente generalizadas, descargas epileptiformes interictais bilaterais no eletroencefalograma e crises com focos de origem bilaterais e independentes carregam um risco aumentado de psicose pós-ictaP2 • Apesar da alta prevalência, as comorbidades psiquiátricas ainda permanecem subdiagnosticadas. Consequentemente o tratamento não é precoce ou eficaz, implicando altas taxas de morbidade e mortalidade. Além disso, há uma piora da qualidade de vida desses pacientes, com consequentes problemas sociais.
Metodologia em neurofisiologia O diagnóstico de uma crise epiléptica é baseado na apresentação clínica dos sinais e sintomas característicos, dependendo principalmente de uma anamnese detalhada, acompanhada de um exame neurológico do paciente. Após a formulação da hipótese diagnóstica, são realizados os testes complementares para confirmação do diagnóstico e pesquisa etiológica. Em 2001, a comissão de classificação e terminologia do ILAP propôs um esquema diagnóstico, que é dividido em cinco eixos, para facilitar a investigação e a abordagem clínica em pacientes com crises epilépticas e epilepsia, de forma individualizada. Eixo 1: descrição da semiologia ictal; eixo 2: caracterização do tipo ou tipos de crises ( caracterizando a localização e os fatores precipitantes para crises reflexas); eixo 3: caracterização sindrômica, quando possível; eixo 4: especificação da etiologia, quando esta for reconhecida; e eixo 5: designação opcional do grau de comprometimento ou prejuízo do paciente. Baseada nos eixos, proposto por Engel8 , a comissão do ILAE4 sugeriu, em 2003, um roteiro de quatro etapas para o diagnóstico e manejo de pacientes com epilepsia: 1a etapa: caracterização da crise, dos fatores precipitantes e do diagnóstico diferencial, 2a etapa: confirmação do diagnóstico, 3a etapa: pesquisa etiológica e 4a etapa: classificação sindrômica. A etapa inicial para o diagnóstico da epilepsia consiste na caracterização da semiologia ictal e identificação do tipo de crise epiléptica. Essa etapa depende principalmente de informações obtidas após uma entrevista detalhada com o paciente e pessoas próximas que presenciaram as crises, a fim de obter informações quanto ao evento ictal, bem como dos sinais e sintomas precedendo (aura) e/ou seguindo (pós-ictal) a crise epiléptica. A pesquisa de fatores precipitantes também é importante no direcionamento do diagnóstico, já que algumas crises podem ser desencadeadas por privação de sono, ingestão alcoólica e determinados estímulos (como estímulo sonoro, luz e toque).
Durante a avaliação clínica, deve-se tentar distinguir crise epiléptica de eventos não epilépticos como síncopes, tiques, distonias paroxísticas, certos tipos de cefaleia, ataques isquêmicos transitórios e crises psicogênicas. Estas, por sua vez, são os eventos não epilépticos mais frequen tese seu diagnóstico, muitas vezes, não é tão evidente, sendo necessária a realização da monitoração videoeletroencefalográfica (VEEG) para o diagnóstico diferencial. Após o diagnóstico clínico, são necessárias ferramen tas diagnósticas como o eletroencefalograma (EEG), a tomografia computadorizada (TC) de crânio e/ou a resso nância magnética (RM) de encéfalo. O achado da atividade epileptiforme no EEG (atividade interictal ou atividade ictal) confirma o diagnóstico e estabelece substrato para a caracterização das crises em focais (Figura 1) ou generalizadas (Figuras 2 e 3). Os exames de neuroimagem são essenciais para determinar a etiologia da epilepsia. A RM de encéfalo é o exame de eleição no diagnóstico por neuroimagem. Emhora a TC de crânio seja um exame de fácil acesso, sua sensibilidade é muito baixa para esse fim. Nas epilepsias idiopáticas (genéticas), os exames de imagem nem sempre se fazem necessários, sendo mais importante outra abordagem diagnóstica quanto à etiologia, como testes genéticos e moleculares que estejam disponíveis4 •32 • Deve-se ressaltar que, nesse caso, esses exames não são essenciais para o diagnóstico, que é realizado em bases clínicas e eletroencefalográficas. Em alguns desses pacientes, mesmo após seguir esse roteiro, o diagnóstico clínico não será bem definido, tornando-se necessário um procedimento mais sofisticado, a monitoração videoeletroencefalográfica (V-EEG). A última etapa no processo diagnóstico é tentar enquadrar a epilepsia em uma determinada síndrome, de acordo com os critérios da ILAE. Essa classificação é importante para que haja uma melhor orientação quanto ao tratamento e prognóstico dos pacientes. Entretanto, é importante ressaltar que nem sempre é possível enquadrar um paciente em um diagnóstico sindrômico reconhecido8.
Tratamento As drogas antiepilépticas (DAEs) fornecem um controle satisfatório das crises epilépticas na maioria dos pacientes com epilepsia. A decisão de se iniciar um tratamento medicamentoso em um paciente com epilepsia requer uma avaliação individual quanto ao risco-benefício. Embora alguns estudos mostrem que as DAEs sejam capazes de diminuir o risco de recorrência e da gravidade das crises, os efeitos colaterais devem ser considerados. O tratamento é indicado quando a epilepsia é incapacitante ou quando existe uma alta chance de recorrência com possíveis efeitos deletérios, mesmo após uma primeira crise, suplantando os efeitos colaterais das DAEs4•33•34 •
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Figura 2
Paciente do sexo feminino, 32 anos. EEG e\'idenc.ando atMdad e epileptiforme generalizada interictal, caracterizada por com -
plexo de espícula-onda lent a, a 3 Hz, com dur ação de 3 segurldos, sem manifestação clínica associada.
Deve ~e•· feita umn abordagem individualizada na ~scol ha d.1 droga c ~U·l do~ntgcm, considcr.•ndo tipo d e uh~ c dt: cpikp~ta, c1 idade do p.1dcnt~, a situação finan ~ ceira. os fatores de risco e a aderênoa. A mQnoterapia é ~empre preferível. sendo a droga de escolha determinada peJo ~c u cspcclr<> de aç;lo c t:t tol()rabilid.tdc mdiv1dual. Em pacient~s rdratários podc-~e tenhu' politerapia. entretanto, ~l!u manejo deve ~er cuido
doso, levando-se em consideração reações adversas e idiossincráticas4 . Quando dois ou mais regimes não alcançam o controle efetivo das crises, o diagnóstico da epilepsia ou sindrômico deve ser reavaliado. Além do erro diagnóstico, outras causas comuns de falhas terapêuticas são informações errôneas ou insuficientes, erro na escolha e na dose das drogas, má aderência, interação medicamentosa, do-
21 I PIILP!ó i A l 'TRANSJORN
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I IÁTRICOS, ASPECTOS RELACIONADOS AO NEURODESENVOLVIMENTO
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Figura 3
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pfcula o mulliespfcula onda lenUI reiterados de pro,oçOo generohz~da, durante a fotoestimulação. Essa atividade foi acompanhada de mioclonias em salvas (crise clínico -eletrográfica).
ença subjacente progressiva e epilepsia refratária. Em casos de epilepsia refratária confirmada, pacientes devem ser avaliados quanto à possibilidade cirúrgica4•33•34 • Cabe ressaltar que 70% dos pacientes com epilepsia são curáveis ou tratáveis com a medicação ou as medicações apropriadas33 . Os 30% restantes devem ser considerados potenciais candidatos cirúrgicos e avaliados quanto às suas possibilidades de sucesso com a cirurgia. Destes, 50% dos pacientes irão se beneficiar total ou parcialmente do procedimento cirúrgico, os demais devem ser considerados para tratamentos alternativos, como a dieta cetogênica, estimulação do nervo vago, estimulação magnética transcraniana etc. 35
Recomendações em relação ao tratamento da epilepsia em pacientes com comorbidades psiquiátricas A presença de transtornos psiquiátricos influencia diretamente a escolha da droga antiepiléptica a ser usada, assim como a presença de epilepsia pode influenciar na escolha da droga psicoativa a ser utilizada (Quadro IV). Drogas como a carbamazepina, ácido valproico, lamotrigina, gabapentina e pregabalina possuem propriedades psicotrópicas positivas. Carbamazepina, ácido valproico e lamotrigina possuem propriedades estabilizadoras do humor, enquanto a carbamazepina e o ácido valproico possuem efeito antimania e a lamotrigina efeito antidepressivo em pacientes bipolares22 • Em contraste, fenobarbital, vigabatrina, topiramato, primidona, levetiracetam e tiagabina possuem propriedades psicotrópicas negativas. Politerapia também
aumenta o risco com cada droga antiepiléptica adicio nada ao esquema terapêutico e muitos sintomas psiquiátricos melhoram ao se reduzir o número e a dose das drogas antiepilépticas22 • Barbitúricos estão associados tradicionalmente a transtornos do humor, com um risco dez vezes maior de depressão ao se comparar tratamento entre fenobarbital e carbamazepina. Além disso, existe um aumento de ideação suicida em crianças com histórico familiar positivo para depressão. Vigabatrina e topiramato também foram associados com alteração do humor e levetiracetam com alteração comportamental em crianças e irritabilidade e depressão em adultos 22 • Ideação suicida foi identificada em 15% dos pacientes com epilepsia farmacorresistentes e foi associada com o uso de certas drogas antiepilépticas, especialmente barbitúricos, vigabatrina, topiramato e levetiracetam. Agentes que produzem efeitos adversos cognitivos, como os benzodiazepínicos e barbitúricos, devem ser evitados em crianças e adolescentes, sempre que possível. Alguns sintomas comportamentais podem ser agravados por esses agentes 26 .
Recomendações em relação às drogas psicoativas nos pacientes com epilepsia e transtornos psiquiátricos Na escolha da droga psicotrópica, devem ser consideradas as interações farmacocinéticas e farmacodinâmicas entre as drogas psicotrópicas e as drogas antiepilép ticas, assim como o impacto da droga psicotrópica no limiar das crises epilépticas.
243
244
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
O uso de drogas psicotrópicas em altas doses deve ser evitado em pacientes com epilepsia. Drogas psicotrópicas a serem evitadas nesses pacientes incluem: clormipramina, amoxapina, maprotilina e bupropiona. Dentre os antipsicóticos atípicos, a clozapina. Os inibidores seletivos de recaptação da serotonina (ISRS) são as drogas de primeira linha para tratamento dos transtornos do humor, com estudos tanto em adultos como em crianças com epilepsia, demons trando sua eficácia e segurança no tratamento dos sintomas depressivos 36•37 . Os inibidores de recaptação da serotonina-noradrenalina devem ser considerados se não houver remissão completa dos sintomas com os ISRS. Embora os antidepressivos tricíclicos, como a amitriptilina e a imipramina, sejam considerados seguros e eficazes em doses adequadas, eles são considerados drogas de terceira linha, em razão da maior asso ciação com efeitos colaterais22 . Algumas drogas antiepilépticas, como carbamazepina, fenobarbital, fenitoína, primidona e topiramato, acima de determinadas doses, agem como indutores da enzima P-450, resultando em queda dos níveis séricos de antidepressivos tricíclicos e ISRS, enquanto o ácido valproico age como inibidor dessa enzima. Por outro lado, os inibidores de recaptação da serotonina, como a fluo xetina e a paroxetina, podem inibir o metabolismo de carbamazepina, fenobarbital e fenitoína; tornando necessário ajuste de dose, para se evitar toxicidade. Drogas como sertralina, citalopram e escitalopram não possuem essa interação com drogas antiepilépticas, constituindo-se numa boa escolha22•26.
O tratamento de TDAH é semelhante ao de pacientes sem epilepsia. Os estimulantes do sistema nervoso central não interagem com as drogas antiepilépticas e não diminuem o limiar de crises epilépticas22•26 • O uso de drogas antipsicóticas pode ser necessário em pacientes com psicose interictal ou pós-ictal, ou com sintomas agressivos e transtornos de comportamento. É recomendado o uso de antipsicóticos atípicos, com menos sintomas adversos do que os clássicos. Com exceção da clozapina e, possivelmente, da olanzapina, o uso de outros antipsicóticos atípicos não aumenta o risco de crises epilépticas, porém, recomenda-se início com doses baixas22. Outros tratamentos disponíveis para pacientes com epilepsia refratária e comorbidades psiquiátricas são: cirurgia, estimulação do nervo vago e eletroconvulsoterapia22•35.
Considerações finais A epilepsia está entre as doenças mais comuns que afetam o SNC, sendo de acordo com dados da OMS, a segunda causa de procura por centros neuropsiquiátricos, depois da depressão. Existe maior prevalência de comorbidades psiquiátricas nesses pacientes, com maior risco de ideação suicida e suicídio. Porém, o diagnóstico do transtorno psiquiátrico em muitos casos não é realizado ou é feito com um grande atraso. Além da falta de reconhecimento clínico, o receio do uso de drogas psicotrópicas leva a um adiamento do tratamento dos sintomas psiquiátricos, contribuindo para maior impacto social e na qualidade de vida desses pacientes.
Referências bibliográficas Tabela 11
Recomendações para o tratamento psiquiátrico em
pacientes com epilepsia 1
Avaliar a relação temporal dos sintomas psiquiátricos com a crise epiléptica: ictal, peri-ictal ou interictal.
2
Escolher uma droga antiepiléptica avaliando seus efeitos psicotrópicos.
3
Colaboração do psiquiatra no diagnóstico, escolha terapêutica e acompanhamento. Avaliações especiais quanto ao risco de suicídio.
4
Escolha da droga psicotrópica relacionando com efeitos no limiar das crises e interação medicamentosa com drogas antiepilépticas.
4a
Iniciar em doses baixas.
4b
Identificar dose mínima tolerada
4c
Evitar t ratamentos complexos
4d
Caso ocorra deterioração clínica e/ou do EEG, avaliar mudança da droga psicotrópica
e efetiva.
e politerapia.
e otimização da droga antiepiléptica.
Adaptada de García-Morales et al.22 •
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245
Psiconeuroimunologia
Marni N. Silverman Euthymia B. A. Prado Julian F. Thayer
Esth er M . Sternberg Renan K. Muniz Andrea Horvath M arques
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 246 Perspectiva histórica, 248
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Definição moderna de estresse: desde a resposta de "luta ou fuga" até a carga alostática, 250 Princípios básicos do sistema imunológico, 251 Imunidade inata. 251 Imunidade adaptadora, 251 Imunidade mediada por células, 252
1. Definir estresse e entender sua consequência para a saúde.
2. Entender a interação entre os sistemas imunológico e endocrinológico. 3. Reconhecer o papel desempenhado pelo sistema imunológico (inflamação) e endocrinológico nos quadros psiquiátricos, sobretudo os depressivos.
Geração de respostas humorais, 252 Geração de respostas mediadas por células, 252
4. Reconhecer o papel desempenhado pelas citocinas, induzindo a comportamento de enfermidade e quadros depressivos.
Citocinas, 253 lmunorregulação, 254
5. Reconhecer a importância de prevenir e tratar quadros depressivos associados ao uso de alfa- interferon.
Interações entre os sistemas neuroendocrinológico e imunológico, 255 Interações entre o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal e o sistema imunológico, 256
6. Identificar a associação entre quadros clínicos e transtornos psiquiátricos, com destaque para o quadro depressivo.
Efeitos do estresse agudo vs. crônico sobre o sistema imunológico, 258 Interações entre os sistemas nervoso autônomo e imunológico, 259
7. Reconhecer os fatores biológicos e psicológicos que influenciam o
Implicações clínicas das interações neuroendocrinológicas e imunológicas nos transtornos psiquiátricos, 260
8. Saber a importância de diagnosticar e tratar adequadamente
desenvolvimento de quadros tanto depressivos como de câncer e doenças cardiovasculares. quadros psiquiátricos associados a doenças clínicas.
Teoria do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal na depressão, 260
9. Reconhecer novos e possíveis tratamentos para depressão.
Teoria da inflamação na depressão, 262 Intervenções psicológicas: possível impacto sobre o humor e a saúde, 269
1O. Reconhecer métodos não invasivos para avaliar estresse.
Abordagem psicoterápica e psiconeuroimunologia: uma ferramenta importante para melhoria da saúde, 269 Os efeitos benéficos da música, 270 Metodologias não invasivas e novas para acesso à resposta ao estresse. 271 Avaliação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal: cortisol salivar, 271 Avaliação do sistema nervoso autônomo: alfa-amilase salivar e variabilidade da frequência cardíaca, 271 Avaliação neuroimunológica de biomarcador: adesivos cutâneos para coleta de suor, 272 Considerações finais, 273 Minicaso clínico, 274 Discussão, 274 Referências bibliográficas, 275
Introdução Nos últimos trinta anos, um novo campo da ciência - a psiconeuroimunologia- permitiu uma melhor compreensão e elucidação das interações entre os sistemas nervoso, endocrinológico e imunológico. Evidências crescentes têm demonstrado que o estresse é capaz de influenciar o sistema imunológico e, inversamente, que esse sistema pode alterar o comportamento e as emoções e até mesmo deflagrar transtornos psiquiátricos. No entanto, as alterações de saúde induzidas pelo estresse são o resul-
22 PSICONEUROIMUNOLOGIA
tado de uma rede complexa de interações entre muitos sistemas do corpo, nos quais o sistema imunológico de sempenha papel essenciaF-3 . O estresse pode ser definido como um estado de alteração da homeostase provocada por mudança no ambiente interno ou externo ao indivíduo (ou seja, de natureza física ou psicológica), o que resulta em respostas fisiológicas e comportamentais necessárias para o organismo se adaptar à demanda de modificação do ambiente e restabelecer a homeostase. Foi descrito que o estresse, via ativação dos sistemas neuroendócrinos do estresse, do eixo hipotálamo-hipófise -adrenal (eixo HPA; libera glicocorticoides, como o cortisol) e do sistema nervoso simpático (libera catecolaminas, como a adrenalina), induz efeitos paradoxais sobre o sistema imunológico: tanto supressão como intensificação. Contudo, o principal papel biológico desempenhado pela resposta fisiológica ao estresse pode ser promover/favorecer a sobrevida, ativando os sistemas neuroendócrinos para desencadear a reação de luta ou fuga e preparar o sistema imunológico para desafios potenciais4. De fato, em resposta ao estresse agudo, a função imune é na verdade intensificada, o que funciona como um papel adaptador na antecipação de ficar doente e/ ou sofrer aumento no risco de infecção. Conforme o estresse se torna prolongado, a ativação persistente de glicocorticoides começa a exercer efeitos imunossupressores, trazendo a ativação imune inicial de volta ao nível basal e evitando a exacerbação das respostas inflamatórias. Contudo, quando o estresse se torna crô nico, os efeitos imunossupressores de altos níveis de glicocorticoides inibem certos aspectos da imunidade abaixo do nível "saudável"; por meio disso, esses efeitos deixam de ser adaptadores, tornando o sistema imunológico ineficaz no combate à infecção. Além disso, a atividade muito acentuada ou muito baixa dos glicocorticoides pode ser nociva à saúde de qualquer indivíduo. Embora se acredite que a superprodução/hiperatividade de glicocorticoides contribua diretamente para muitas das sequelas comportamentais (ou seja, psiquiátricas) e fisiológicas (ou seja, neurológicas, cardiovasculares, metabólicas, imunológicas) adversas associadas com estresse crônico, há evidências crescentes de que a sinalização insuficiente de glicocorticoides (ou seja, hipocortisolismo ou resistência a esses hormônios) e, portanto, ativação imune/inflamação desenfreada (ou seja, não controlada) pode desempenhar um papel significativo no desenvolvimento e na manifestação de doença em casos de transtorno relacionado ao estresse5'6 • Por essa razão, o estresse crônico é associado não somente com supressão demasiada do sistema imunológico e aumento da suscetibilidade a infecções e câncer, mas também com hiperativação desse sistema, exercendo papel nos processos de deflagração e exacerbação de doenças autoimunes e inflamatórias4'7 • De fato, estudos identificaram muitos fatores biológicos e psicológicos envolvidos nesse processo aparentemente paradoxal,
como diferentes tipos de estresse (psicogênico, físico, imune), duração do estresse (agudo vs. crônico), intensidade, concentração dos hormônios de estresse (doses fisiológicas vs. farmacológicas; endógenos vs. sintéticos), sincronização do estresse em relação à resposta imune, tipo de resposta imune e histórico individual (genética, sexo, idade, estágio evolutivo, percepção do estresse, enfrentamento etc.)4. Esses fatores podem afetar significativamente a relação entre a função imune, o estresse e os transtornos psiquiátricos, como a depressão. De grande importância, o aumento crescente de dados sugere que a resposta inflamatória inata desempenha papel relevante na fisiopatologia da depressão. Realmente, estudos têm demonstrado que a estimulação sistêmica do sistema imunológico com lipopolissacarídeo (LPS - um componente importante da membrana externa de bactérias Gram -negativas), ou com as próprias citocinas pró-inflamatórias, deflagra a produção local e central de citocinas que, por fim, atuam sobre o cérebro de forma a provocar o que é co nhecido como comportamento de enfermidadé9 . Quando a ativação do sistema imunológico periférico é prolongada, em virtude de infecção sistêmica, câncer, doença autoimune ou outros desequilíbrios da homeostase, a sinalização imune intensificada ao cérebro pode levar à exacerbação desse comportamento e ao desenvolvimento de sintomas depressivos em indivíduos vulneráveis 10' 11 . Além disso, estudos recentes têm demonstrado que a fun ção das células T (imunidade adaptadora) também pode exercer impacto significativo sobre a depressão pela subregulação prejudicada das respostas inflamatórias crônicas12-14. Foi demonstrado que essa rede neuroendócrina imune complexa tem seu papel na fisiopatologia de transtornos psiquiátricos (ver adiante em "Implicações clínicas das interações neuroendocrinológicas e imunológicas nos transtornos psiquiátricos") e na associação entre esse tipo de transtorno e doenças clínicas, como doença cardiovascular, distúrbios auto imunes e câncer. Ademais, a melhor compreensão de como o sistema imunológico interage com vias fisiológicas relevantes para transtornos psiquiátricos (como depressão) abriu novos horizontes para terapias com alvo sobre esse sistema. Por fim, estudos também enfatizaram a importância de intervenções comportamentais como psicoterapia, música, mudanças do estilo de vida (p. ex., exercício, dieta mais saudável, interrupção do tabagismo) e aspectos do ambiente (local de trabalho, espaço físico) na redução do impacto exercido pelo estresse 15'16 . Basicamente, essas intervenções podem contribuir para um estilo de vida mais saudável, induzindo a efeitos significativos sobre a saúde física e mental 17. O presente capítulo revisará essas várias facetas das interações entre estresse e sistema imunológico. Também serão descritas brevemente as metodologias não invasivas aplicadas para avaliar os sistemas neuroendocrinológico e imunológico, que regulam os transtornos relacionados ao estresse.
247
248
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 2
VERTENTES DO CONHECIMENTO
Perspectiva histórica As interações entre as emoções e o corpo (saúde e doença) foram descritas desde a antiguidade grega. No Corpus hipocrático (latim: Corpus hippocraticum), uma coleção de trabalhos médicos antigos associados com Hipócrates ( 450-460 a.C. - 377 a.C.) e seus seguidores, as emoções são descritas como um fenômeno mental que possui conexões com o corpo. Hipócrates propôs a teoria dos "quatro humores" para explicar estados emocionais e doença. Acreditava-se que o aumento ou a redução em um dos quatro humores (sangue, flegma [muco], bile negra e bile amarela) afetava a saúde e o temperamento. Por exemplo, Hipócrates considerava que os sentimentos de tristeza e depressão - a chamada melancolia - eram decorrentes do excesso de bile negra no corpo; já o excesso de bile amarela estava relacionado aos sentimentos de raiva e impulsividade. Esses quatros humores (latim: humore, que significa líquido) sofreriam aumento e declínio, dependendo de dieta, atividade física e "evacuações" corporais (p. ex., sangue, urina, fezes, perspiração etc.). A cura era restabelecida por meio de processos naturais, como repouso, dieta de boa qualidade, ar fresco e higiene pessoal. Embora a teoria dos humores em relação aos estados emocionais considerasse principalmente as emoções como simples resultado de alteração humoral, os fatores psicológicos também eram descritos como elemento causal nas mudanças de estado emocional. Por exemplo, a dor de luto (geralmente causada pela perda de ente querido) poderia levar a estados de depressão, medo e fala incoerente ou mudança comportamental como comportamentos compulsivos de puxar e arrancar cabelo, chorar e rir. A teoria dos quatro humores e a teoria de causas emocionais foram expandidas e disseminadas por Galena (131 -201 d.C.) e outros. No tratado Sobre os temperamentos, Galeno enfatizou a importância do equilíbrio dos quatro humores para obtenção de saúde e disposição corporal (temperamento). Indivíduos com grande quantidade de sangue eram considerados sanguíneos ( despreocupados, confiantes e arrogantes); aqueles com quantidade demasiada de flegma eram considerados flegmáticos (calmos, racionais e não emotivos); outros com excesso de bile amarela eram coléricos (apaixonados, cheios de energia, temperamentais, nervosos) e aqueles com muita bile negra eram melancólicos (perfeccionistas, deprimidos) (Figura 1). De maior importância, Galeno salientou a distinção entre doenças atribuídas a causas orgânicas daquelas decorrentes de causas emocionais. Após descartar as causas orgânicas (explicação humoral), ele sugeriu que as causas emocionais poderiam contribuir para o desenvolvimento de doença. É interessante notar que um importante indício diagnóstico para Galeno era a irregularidade do pulso 18 • Além disso, Galeno também sugeriu que indivíduos com temperamento melancólico eram mais propensos a desenvolver câncer, realçando o papel de -
Figura 1 nsm.
Os quatro humores. Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Humo-
sempenhado pelas emoções no desenvolvimento dessa doença. De fato, estudos recentes estão elucidando a função exercida pelo estresse no câncer19 . A teoria dos quatro humores exerceu impacto importante sobre as práticas médicas ocidentais até o final do séc. XVIII e início do séc. XIX. No séc. XVIII, com a melhor descrição da anatomia humana, as doenças eram descritas como resultado de lesões em certas partes do corpo e não por causa de desequilíbrio dos humores. Mais tarde, com o desenvolvimento da microbiologia, foram introduzidos novos conceitos de doença, particularmente em razão da melhor compreensão de mecanismos celulares (RudolfVirchow, 1821 -1902) e à descoberta de doenças específicas causadas por bactérias específicas (Robert Kock 1843-1910). Portanto, acreditava-se que a doença era o resultado de alteração anatômica, disfunção celular e/ou agentes infecciosos, minimizando o papel do sistema nervoso no desenvolvimento do processo patológico. Apesar disso, com a expansão da teoria localística da doença, alguns médicos como William Cullen (1710-1790) e Robert Whytt (1714-1766) também acreditavam que as lesões orgânicas no cérebro poderiam ser responsáveis pelos transtornos mentais. Contudo, na ausência de lesão importante na estrutura cerebral ou quando não havia sinais clássicos de inflamação, tais médicos sugeriam que uma alteração na atividade neuronal poderia estar contribuindo para a fisiopatologia das doenças - chamando-as de distúrbios funcionais ou neuroses. No final do séc. XVIII, as neuroses foram associadas com disfunção do sistema nervoso ou causa emocional. Robert Whytt descreveu-as como distúrbios que mimetizavam problemas somáticos comuns, mas que não tinham causa orgânica, e que poderiam ser
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deflagrados por "imaginação" intensa - como quando um paciente cai em ataques convulsivos ao ver alguém em crise epiléptica. O estudo de neuroses intensificou-se no séc. XIX e médicos importantes como Pierre Briquet, Jean Martin Charcot, JosefBreuer e Sigmund Freud apoiaram uma explicação psicogênica para as neuroses e contribuíram para o desenvolvimento do campo da psicanálise 18•20 . Enquanto isso, no final do séc. XIX e início do séc. XX, dois importantes estudos na área de emoção e doença foram realizados por Pasteur (1878) e Ishigami (1919). Esses cientistas pioneiros foram capazes de demonstrar que o estresse físico e emocional alterava a função do sistema imunológico. Em 1927, Julius Wagner-Jauregg ganhou o prêmio Nobel em Fisiologia e Medicina pela observação clínica ( 1917) de que a ativação do sistema imunológico por algum agente infeccioso (ou seja, inoculação de malária) poderia tratar de modo bem-sucedido a paresia geral caracterizada por psicose súbita, comprometimento da memória, crises convulsivas e anormalidades dos reflexos musculares e pupilares, causados por neurossífilis21 • Outro importante marco na história da psiconeuroimunologia foi estabelecido em 1936, quando Hans Seyle introduziu o conceito de estresse (Figura 2). Ele observou que animais submetidos a estresse físico ou emocional desenvolviam respostas biológicas inespecíficas e reproduzíveis que levavam à ativação do sistema nervoso centrai (SNC) e finalmente à liberação de "hormônios doestresse", cortisol e adrenalina, pelas glândulas adrenais. Seyle nomeou esse evento como síndrome geral de adaptação, alternativamente conhecida como a síndrome do estresse. Em resposta a algum evento estressante ( estresse agudo, denominado primeiramente como agentes no -
Figura 2 Hans Seyle. Fonte: http://www.bing.com/images/sea rch?q= hans+selye+pictures&FORM= IGRE&qpvt= hans+ selye+pictures#.
civos por Seyle), ativa-se uma "reação de alarme" e o corpo se prepara para a "resposta de luta ou fuga''. Em um estágio avançado, o corpo desativa a "reação de alarme" para atingir a homeostase prévia (termo inventado por Walter Cannon em 1932). Por fim, se a duração do estresse for suficientemente longa ou repetitiva (estresse crônico), o corpo acaba entrando em estágio de exaustão, podendo ocorrer diversas consequências fisiológicas. Essas substâncias liberadas pela glândula adrenal e capazes de afetar a função imune constituíam uma das indicações iniciais da existência de interações significativas entre os sistemas neuroendocrinológico e imunológico. De fato, em 1850, Thomas Addison descreveu um paciente com insuficiência adrenal que exibia excesso de linfócitos circulantes, fornecendo com isso algumas das primeiras evidências de relação recíproca entre hormônios adrenais e parâmetros imunológicos. Nos anos de 1920, H. Jaffe demonstrou que ratos adrenalectomizados exibiam hipertrofia do timo e, inversamente, nos anos de 1930, Hans Seyle relatou que animais expostos a diversos estressares exibiam aumento de volume das glândulas adrenais associado com involução tímica. Nos anos de 1940, Philip Hench descobriu que pacientes com distúrbios autoimunes, como artrite reumatoide, produziam uma substância endógena sob condições "estressantes"; tal substância tinha propriedades anti-inflamatórias/imunossupressoras e, consequentemente, melhorava os sintomas da doença autoimune. O isolamento e a caracterização desse composto endógeno por Edward Kendall e Tadeus Reichstein levaram à descoberta do esteroide adrenal, a cortisona (composto E) que, juntamente a outros glicocorticoides, tornou-se a base do tratamento de doenças autoimunes e inflamatórias. Deve-se notar que Hench, Kendall e Reichstein dividiram o prêmio Nobel em Fisiologia e Medicina por sua descoberta em 195022 . Embora os efeitos imunomoduladores dos glicocorticoides fossem suposta e inicialmente mediados por concentrações farmacológicas e não fisiológicas de esteroide, o seminário ministrado por Hugo Besedovsky e colegas nos anos de 1970 e 1980 confirmou o papel fisiológico desempenhado pelos glicocorticoides na regulação das respostas imunes. Besedovsky também foi um dos primeiros a demonstrar que a atividade do sistema imunológico podia influenciar a liberação de glicocorticoides. De fato, seu trabalho demonstrou que os glicocorticoides circulantes aumentam no rato durante a resposta imune a antígenos estranhos (ou seja, hemácias de ovinos). Além disso, ratos submetidos à injeção do sobrenadante de cultura obtido de células do sangue periférico ou do baço es timuladas por mitógenos in vitro produziram aumentos nos níveis plasmáticos de glicocorticoides similares em termos de magnitude àqueles atingidos no pico da resposta imune após exposição antigênica. Besedovsky e colegas concluíram que as células linfoides produzem fator( es) de aumento de glicocorticoide, completando um
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VERTENTES DO CONHECIMENTO
circuito imunorregulatório de feedback, em que as células imunológicas secretam "hormônios" que estimulam a liberação de glicocorticoides adrenais; esses glicocorticoides, por sua vez, exercem feedback negativo sobre as células imunológicas, impedindo a hiperatividade e preservando a especificidade das respostas imunes. Ademais, Besedovsky et al. observaram alterações na atividade elétrica hipotalâmica e no turnover (renovação) de norepinefrina em ratos submetidos à injeção de hemácias de ovinos, concomitantemente com o pico da resposta imune e de corticosterona, sugerindo que o cérebro esteja envolvido na regulação imunoneuroendócrina23. Em meados dos anos de 1980, uma série de artigos do periódico Science demonstrou que a citocina IL-1 próinflamatória derivada de monócitos preenchia os requisitos de um fator de aumento de glicocorticoide. Esses estudos revelaram que a administração de IL-1 em ratos e camundongos aumentava os níveis plasmáticos do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) e da corticosterona23-25, por conta da atuação em múltiplos níveis do eixo hipotálamo -hipófise -adrenal, inclusive na liberação do hormônio liberador da corticotropina ( CRH) pelo hipotálamo. Subsequentemente a esse trabalho de referência inicial, diversos estudos avaliaram o impacto direto de várias citocinas (p. ex., IL-1, IL-6, TNFcx, [fator de necrose tumoral-alfa], IFNs [interferons], IL-2), isoladamente ou em combinação, sobre a função do eixo hipotálamo -hipófise-adrenal26. O conceito de comunicação bidirecional entre os sistemas imunológico e neuroendócrino tornou-se firmemente arraigado com o trabalho de Edwin Blalock et al. nos anos de 1980. Esses pesquisadores demonstraram a síntese/expressão de ligandos e receptores comuns nos sistemas imunológico e neuroendócrino, como neuropeptídeos nas células imunes e citocinas nas glândulas endócrinas27. Outro estudo de referência foi publicado por Ader e Cohen em 1975, mostrando que os processos de aprendizado podiam influenciar o sistema imunológico - um dos primeiros estudos de condicionamento em imunologia28 . Os autores demonstraram que a imunossupressão podia ser induzida em animais, com solução oral de sacarina (estímulo condicionado), quando esse estímulo era prévia e repetidamente pareado com algum agente imunossupressor (estímulo não condicionado), estabelecendo a conexão intrincada entre os sistemas nervoso e imunológico. Desde então, estudos científicos rigorosos estão revelando a interação bidirecional entre os sistemas neuroendócrino e imunológico26,29-31 . Neste capítulo, serão abordados alguns tópicos da área de psiconeuroimunologia que têm esclarecido o papel desempenhado pelo estresse em distúrbios psiquiátricos e clínicos, a função exercida pelo sistema imunológico em transtornos psiquiátricos (p. ex., depressão) e a associação entre depressão e distúrbios clínicos, como doença cardiovascular, distúrbios autoimunes e cancer. A
Definição moderna de estresse: desde a resposta de "luta ou fuga" até a carga alostática Uma definição moderna de estresse é proposta por Firdaus Dhabhar e Bruce McEwen. Eles descreveram estresse como uma série de eventos constituídos de algum estímulo (estresso r físico ou psicológico) que deflagra uma reação no cérebro (percepção do estresse), levando à ativação dos sistemas de luta ou fuga (resposta fisioló gica do estresse) 4 • As duas principais vias por meio das quais o estresse é retransmitido do cérebro para o corpo consistem no eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, com a consequente liberação de glicocorticoides ( cortisol em seres humanos e primatas; corticosterona em roedores), e no sistema nervoso simpático (SNS), com a consequente liberação de catecolaminas (noradrenalina/adrenalina). Esses dois sistemas neuroendocrinológico/neural do estresse coordenam a resposta de muitos outros sistemas fisiológicos a algum estressar, incluindo os sistemas imunológico e cardiovascular, bem como a produção/utilização de energia e o comportamento, permitindo que o indivíduo atenda de modo bem -sucedido às demandas do desafio e depois conduza o corpo de volta à homeostase32 . Em conjunto com as catecolaminas, os glicocorticoides orquestram a resposta de "luta ou fuga'', que consiste na rápida mobilização de energia (glicose, aminoácidos e ácidos graxos) dos locais de armazenamento para músculos críticos e o cérebro, concomitantemente com aumento da frequência cardíaca, pressão arterial e frequência respiratória, para facilitar o rápido transporte de nutrientes e oxigênio a tecidos relevantes. Durante tais situações de emergência, a ativação do eixo HPA também auxilia o corpo no desvio de recursos metabólicos dos processos de crescimento, digestão, reprodução e certos aspectos da imunidade para o desafio mais imediato em questão. De acordo com Allan Munck33, a função fisiológica de aumentos induzidos pelo estresse nos níveis de glicocorticoides é proteger não contra a fonte/ origem do estresse em si, mas sim contra as reações normais de defesa (p. ex., resposta imune/inflamação) ativadas pelo estresse; os glicocorticoides executam esse papel pela desativação das reações de defesa, impedindo com isso a exacerbação dessas reações e o risco à homeostase por tais reações. Portanto, algumas ações de glicocorticoides podem ajudar a mediar a recuperação da resposta ao estresse, em vez de mediar a resposta ao estresse em si. McEwen e D habhar propuseram que a resposta ao estresse deve ser encarada no contexto de espectro do próprio estresse - desde estresse agudo (curta duração, minutos a horas) até estresse crônico (estresse repetido ou prolongado). Eles denominaram carga alostática as alterações "psicofisiológicas" (depreciação/desgaste do corpo) que ocorrem quando diferentes sistemas biológicos
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são ativados para manter um estado de equilíbrio (alostase) em resposta às demandas impostas por indutores internos ou externos de estresse crônico. Sugeriram ainda que uma situação de alta carga alostática resultaria em desregulação do corpo e supressão da função imune. Contudo, o corpo tem a capacidade de retornar ao seu equilíbrio, o que depende de uma série de aspectos psicológicos (como mecanismos de enfrentamento, otimismo, apoio social, experiências precoces de vida, aprendizado e genética) e fisiológicos (como reatividade neuroendócrina, genética, ambiente, nutrição e sono )4 . É importante enfatizar que a resposta ao estresse é um mecanismo relevante que permite responder imediatamente a estímulos externos e internos. Isso é essencial para a sobrevida e, na verdade, benéfico no curto prazo (estresse agudo ou eu estresse [o estresse positivo]). Contudo, essa resposta pode se tornar nociva quando prolongada ( estresse crônico ou diestresse [o estresse negativo]). Portanto, estudos na área de estresse têm de levar em consideração não somente as características do estresse (duração e intensidade), mas também os aspectos psicológicos e fisiológicos do indivíduo que serão importantes para determinar a recuperação ou a suscetibilidade ao desenvolvimento de doença. Antes de descrever a resposta ao estresse e a interação com o sistema imunológico, serão resumidos brevemente alguns aspectos da resposta imune inata e adaptadora.
Princípios básicos do sistema imunológico Será feita uma breve revisão sobre o funcionamento do sistema imunológico, a fim de fornecer o conhecimento básico para acompanhar o volume crescente de literatura especializada em psiconeuroimunologia. Para uma compreensão mais abrangente desse assunto, reco menda-se a leitura adicional sobre imunologia básica, sobretudo os textos em que essa revisão foi baseada34,35 •
Imunidade inata Os mecanismos envolvidos na imunidade inata estão presentes desde o nascimento e não revelam especificidade. Tais mecanismos estão imediatamente disponíveis, têm alta eficácia e não se tornam mais eficientes em exposições subsequentes. O reconhecimento de invaso res estranhos como non-selj(não próprios) baseia-se principalmente na diferenciação de padrões moleculares por receptores tipo Toll (TLRs) situados nas superfícies de células imunes. A especificidade de ligação do TLR limita as respostas inflamatórias a patógenos estranhos, mas não a tecidos próprios do organismo. Os componentes da imunidade inata incluem: 1. Barreiras anatômicas: superfícies epiteliais, indusive líquidos lacrimais e salivares, muco, movimentos ciliares e peristálticos, lisozima e fosfolipase, defensinas e surfactantes.
2. Barreiras humorais: essas barreiras são mecanismos envolvidos em inflamação aguda, com importantes agentes efetores humorais. Sistema do complemento: principal mecanismo humoral inespecífico, que é constituído por inúmeras moléculas ativadas em cascatas e leva ao aumento da permeabilidade vascular, recrutamento de células fagocitárias, lise e opsonização de microrganismos. • Sistema de coagulação, que também pode induzir ao aumento da permeabilidade vascular e à quimiotaxia. • Lactoferrina e transferrina, que limita o crescimento bacteriano por competição pelo Fe (ferro) como nutriente. • citocinas: IFN-a e~ (alfa-interferon e beta-interferon): resistência a infecções virais. • IFN- y (gama-interferon): ativação de macrófagos. • IL-1 (interleucina-1), TNF-alfa (fator de necrose tumoral-alfa), IL-6 (interleucina-6): febre e inflamação. • IL-12 (interleucina-12): produção de IFN -y por células natural-killer (exterminadoras naturais [NK]) e células T. • IL-15 (interleucina-15): proliferação de células NK. • IL-10 (interleucina-10) e TGF- ~ (fator de crescimento de transformação beta): controle da inflamação. 3. Barreiras celulares: os componentes celulares da resposta inflamatória são constituídos por neutrófilos polimorfonucleares, eosinófilos e macrófagos. Essas células participam da fagocitose e morte intracelular de microrganismos, reparo de tecidos, apresentação de antígenos e indução de resposta imune específica. O recrutamento de leucócitos é fundamental para qualquer processo inflamatório. Esse processo é dependente da expressão de moléculas de adesão celular (selectinas, integrinas), sendo mediado por citocinas (TNF, IL-1). Enzimas proteolíticas, produtos reativos de oxigênio e óxido nítrico são potentes moléculas pró -inflamatórias liberadas no processo fagocitário. As células NK e células NK ativadas por linfocinas (LAK) podem eliminar células infectadas por vírus de forma inespecífica. Tais células fazem parte da resposta inespecífica à imunidade viral e tumoral. A ativação da imunidade inata pode deflagrar res postas secundárias específicas adaptadoras a microrganismos. A ativação de linfócitos requer um modelo de duas sinalizações: antígeno (sinalização 1) e moléculas produzidas durante a ativação da imunidade inata, como coestimuladores (B7-1, B7-2), citocinas e fragmentos do complemento (sinalização 2).
Imunidade adaptadora Há dois tipos de imunidade adaptadora: humoral e celular. Ambas são específicas, necessitam de mais tempo para serem desencadeadas e geram memória. A imunidade humoral é mediada por anticorpos. Os linfócitos
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B ativados são diferenciados em plasmócitos, células secretoras de anticorpos ou células de memória. Os anticorpos são altamente específicos para cada antígeno e diferentes classes de anticorpos ativam mecanismos efetores distintos de defesa. As principais funções são: reconhecimento do antígeno, neutralização da infectividade do microrganismo e opsonização. A imunidade humoral constitui o principal mecanismo de defesa contra microrganismos e toxinas extracelulares. Os antígenos dependentes de células T exigem as células Te B para produção de anticorpos, com reconhecimento do antígeno envolvendo a restrição do complexo de histocompatibilidade maior (MHC), a apresentação do antígeno (por macrófagos ou células dendríticas) e a ativação de citocinas.
Imunidade mediada por células A imunidade mediada por células requer a interação entre as células em respostas imunes específicas. O papel central é atribuído às células T H (auxiliares [do inglês heiper]) chamadas células T efetoras CD4+. Os subgrupos de células T CD4+ diferem no modo de ativação, no perfil de citocinas produzidas e em suas funções efetoras. Os principais subgrupos são células T H1 inflamatórias e T H2 antiinflamatórias. A diferenciação das células T H2 é controlada pelas interleucinas IL-4 e IL-5, enquanto os mediadores IL-12 e IFN-y são associados com a geração de células TH1. As citocinas produzidas pelas células T H1 (especialmente IFN-y) relacionam-se à ativação de macrófagos, enquanto aquelas geradas pelas células T H2 ativam as células B, resultando na produção de anticorpos. As citocinas das células T H2 também ativam os granulócitos. Cada subpopulação é capaz de exercer influências inibitórias sobre a outra. A IFN-y produzida pelas células T H1 inibe a proliferação de células T H2, ao passo que a IL-1O gerada pelas células T H2 inibe a produção de IFN -y pelas células T H1. A resposta imune é direcionada ao tipo de resposta necessária para lidar com o patógeno encontrado: respostas humorais para patógenos extracelulares ou respostas mediadas por células para patógenos intracelulares. É interessante notar que doenças comuns em seres humanos foram associadas com desequilíbrio entre citocinas produzidas por células T H1 e T H2. Por exemplo, uma resposta T H2 dominante com superprodução de histamina e desvio para produção de IgE está associada com doença alérgica, como asma, rinite alérgica sazonal e perene, eczema e alergia alimentar mediada por IgP6 . Nessas doenças, as interleucinas IL-4, IL-13 e IL-5 desempenharão papel importante (Figura 3). Por outro lado, uma resposta T H1 dominante está associada com artrite reumatoide, esclerose múltipla, diabete tipo I, doença de Crohn e tireoidopatia autoimune, em que se observam excesso de IL-12, TNF-alfa e deficiência de IL- 1037. Além disso, um desequilíbrio entre as citocinas produzidas por célu-
las T H1 e T H2 também é descrito em pacientes com depressão, deficiência de citocinas imunorreguladoras anti-inflamatórias e excesso de citocinas inflamatórias. Esses achados apoiam o papel desempenhado pelas citocinas na depressão e serão abordados mais adiante na seção "Implicações clínicas das interações neuroendocrinológicas e imunológicas nos transtornos psiquiátricos':
Geração de respostas humorais Respostas humorais primárias e secundárias
Antígenos dependentes de células T: esses antígenos necessitam de interação entre as células e podem ativar a síntese de diversas classes de imunoglobulinas (Ig). Na resposta primária, as células T H2 se deparam com o antígeno apresentado pelas células dendríticas ou pelos macrófagos e interagem com as células B, que possuem peptídeos antigênicos em associação com moléculas MHC de classe II. A ligação do antígeno à Ig de superfície, associada ao engajamento do ligando CD40/CD40 durante a interação entre as células T H2/B, e as citocinas produzidas pelas células T H2 ajudam na proliferação e diferenciação das células B em plasmócitos secretores de anticorpos. Na resposta secundária, são recrutadas células Te B de memória. As células B de memória com receptor de Ig de alta afinidade apresentam o antígeno em uma concentração muito menor e ativam as células T de memória com maior facilidade. As interações entre as células B e T são suficientes para gerar as respostas humorais secundárias. A mudança de classe de anticorpos é modulada por citocinas produzidas pelas células T H2. Por exemplo, a IL-4 induz a produção de IgG 1 e inibe as imunoglobulinas IgG2a, IgG3, IgE e IgM, enquanto a IL-5 induz ageração de IgA em murinos. Antígenos independentes de células T: alguns antígenos não necessitam da interação entre as células para estimular as respostas humorais. Eles são de natureza polimérica e ativam uma subpopulação de células B chamadas células B CD5+ (também conhecidas como célula B1), que produzem principalmente IgM polirreativa de baixa afinidade.
Geração de respostas mediadas por células Linfócitos T citotóxicos: os linfócitos T citotóxicos (células T CD8+) derivam de células T CD8+ naive (ingênuo, sem experiência) de forma similar. Esses linfócitos eliminam células infectadas, que expressam fragmentos de antígenos associados ao MHC de classe I, o que deflagra a proliferação e diferenciação de células CD8+ nai"ve. A morte mediada pelos linfócitos T citotóxicos é específica ao antígeno e requer contato com a célula, sendo deflagrada quando esses linfócitos reconhecem o antígenoalvo associado à molécula de MHC na superfície celular. Os linfócitos T citotóxicos utilizam diversos mecanismos
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Antígeno
APC
I L-1 2 IFN-a
ThO
l
IL- 12 IL- 18
IL-4
NK
IFN-r IL-12
I FN-r
IL-2 TFN-p IFN-r
APC
IL-1' IL-5' IL-8' IL-12 IL- 18, TNF-a
IL- 13
IL- 1O
~
IL-4' IL-5' IL-1 0, IL-1 3
Produção de anticorpos Ativação de eosinófilos Degranulação de mastócitos Respostas alérgicas
Ativação de macrófagos Ativação de linfócitos T Hipersensibilidade tardia / Imunidad e celular
Figura 3
Inflamação
Imunidade humora l
Citocinas TH1 e TH2.
para eliminar as células-alvo, incluindo morte mediada por Fas e TNF, morte mediada por granulócitos e apoptose mediada por TNF-alfa/beta e gama-interferon. Para ter função efetora, os linfócitos T citotóxicos devem obrigatoriamente se diferenciar a partir de um "prélinfócito T citotóxico' em resposta a duas sinalizações: antígeno específico associado com MHC de classe I de uma célula estimuladora e citocinas produzidas pelas células TH1, especialmente IL-2 e IFN-y. Ativação de macrófagos: os macrófagos estão envolvidos nas defesas iniciais como parte do sistema imunológico inato, na apresentação de antígeno às células T H1 e em várias outras funções efetoras, como produção de citocinas, além de atividades bactericidas e tumoricidas. A ativação dos macrófagos exerce função na imunidade e no reparo/ reorganização tecidual, mas pode danificar os tecidos durante os processos inflamatórios. Algumas funções dos macrófagos podem ser realizadas somente depois de alterações quantitativas na expressão de vários produtos gênicos; tais produtos, por sua vez, capacitam os macrófagos ativos a realizarem certas funções que não podem ser executadas por macrófagos em repouso. A ativação dos macrófagos é uma função das células TH1, após liberação de IFN-y. O lipopolissacarídeo de bactérias ou o TNF-a de macrófagos expostos a produtos bacterianos constituem a segunda sinalização necessária para ativar os macrófagos. Os mecanismos efetores empregados pelos macró fagos são: apoptose induzida por TNF-a; óxido nítrico e outros intermediários reativos ao nitrogênio; intermediá-
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A
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r
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nos reativos ao ox1gemo; protemas cat10mcas e enzimas hidrolíticas; bem como citotoxicidade celular dependente de anticorpos. Ativação de células NK: as células T H1 ativadas pro duzem citocinas, especialmente IL-2 e IFN-y, e ativam as células NK, que se transformam em células LAK. As células LAK são capazes de eliminar tanto células infectadas por vírus como células tumorais de forma não restrita pelas moléculas de MHC. Os mecanismos efetores utilizados pelas células NK e LAK são semelhantes aos dos linfócitos T citotóxicos.
Citocinas Em princípio, as citocinas foram identificadas como produtos de células imunológicas que atuam como mediadores e reguladores de processos imunes e inflamatórios. Essas citocinas são classificadas com base em suas propriedades pró- e anti-inflamatórias, sua atividade antiviral e tumoricida, bem como na estimulação da hematopoiese. Também são categorizados tipos específicos de citocinas, de acordo com o tipo celular que as produzem: • monocinas: citocinas produzidas por células fago citárias mononucleares (macrófagos e suas contrapartes neurológicas [SNC], micróglias); • linfocinas: citocinas geradas por linfócitos ativados, geralmente células T H; • interleucinas: citocinas que atuam como mediadores entre os leucócitos;
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• qmm10cmas: pequenas cltocmas pnmanas responsáveis pela migração de leucócitos. A sinalização das citocinas é bastante flexível e pode induzir respostas tanto protetoras como nocivas. Uma única citocina frequentemente influencia a síntese de outras citocinas. Elas podem produzir cascatas ou então aumentar ou suprimir a produção de outras citocinas. Muitas citocinas individuais são produzidas por vários tipos celulares envolvidos na resposta imune inata e adaptadora, mas podem atuar sobre muitos tipos celulares (ou seja, elas são pleiotrópicas) e, em muitos casos, possuem ações similares (ou seja, elas são redundantes): A redundância deve-se à natureza dos receptores de citocina. Eles são heterodímeros e podem ser agrupados em famílias: • Receptores de citocinas tipo 1 (família IL-2R): esse grupo constitui a maior família de receptores de citocinas, que é dividida em três subgrupos, com base em componentes comuns: IL2Ry, cadeia p comum e gp130. Tais receptores carecem de atividade intrínseca da proteína tirosina quinase. Incluem receptores para: IL-2, IL-3, IL-4, IL-5, IL-6, IL-7, IL-9, IL-11, IL-12, IL-13, IL-15, GM-CSF (fator estimulador de colônias de granulócitos e macrófagos) e G-CSF (fator estimulador de colônias de granulócitos). • Receptores de citocinas tipo 2 (família IFNR): os domínios extracelulares das subunidades possuem cisteínas conservadas e domínios semelhantes a imunoglobulinas em sequência (tandem). Tais receptores também apresentam atividade intrínseca de tiro sina quinase. Incluem receptores para: IFN-a/p, IFN-y, IL-10, IL-20, IL24 e IL-26. • Receptores da família IL-1: essa família tem em comum um receptor Toll/IL-1 (TIR) em sequência na região citosólica. Incluem receptores para: IL-1 e IL-18. • Receptores TNF: tais receptores possuem domínios extracelulares ricos em cisteína e mecanismos de sinalização intracelular que induzem processos de apoptose e/ou expressão gênica. Incluem receptores para: TNF-a, TNF-p, LT, CD-40, Fas e OX40. • Receptores com 7 -alfa-hélices transmembrana: também conhecidos como receptores serpentina; as vias de sinalização envolvem a proteína G. Incluem recepto . . . res para as qmm10cmas. As respostas celulares a citocinas costumam ser lentas (horas), pois necessitam de novo RNAm e síntese proteica. Citocinas mediadoras de imunidade natural (respostas imunes inatas)
Tais citocinas incluem: TNF-a, IL-1, IL-1O, IL-12, interferons tipo I (IFN-a e INF-~), IFN-y, IL-6, IL-15, IL18, IL-23, IL-27 e quimiocinas. Essas citocinas são produ* Além dos tipos de células imunológicas, as citocinas também são sintetizadas e liberadas por células não imunológicas, como células do endotélio vascular, fibroblasto s e células endócrinas.
zidas principalmente por macrófagos ativados e medeiam a resposta inflamatória aguda. As quimiocinas atraem leucócitos; as citocinas TNF-a e IL- 1 são potentes agentes pró -inflamatórios; as interleucinas IL-12 e IL-18 ativam macrófagos; IFN -y e IFN -a têm atividade antiviral; e as interleucinas IL-23 e IL-27 regulam as respostas inflamatórias dependentes de células T. Citocinas mediadoras de imunidade adaptadora
Tais citocinas incluem: IL-2, IL-4, IL-5, IL-1O, TGF-p, IFN-y, linfotoxina (LT), IL-13 e IL-17. Essas citocinas são produzidas principalmente por linfócitos-T estimulados por antígeno. A IL-2 é um regulador essencial de crescimento e respostas das células T e IL-4 estimula o desenvolvimento de respostas TH2, enquanto a IFN-y ativa os macrófagos e a IL-17 está associada com a regulação da autoimunidade. Citocinas estimuladoras de hematopoiese
Tais citocinas incluem: GM -CSF, M -CSF, G-CSF, IL-7 e IL-3. Os fatores estimuladores de colônias são essenciais para proporcionar os processos de diferenciação e expansão de muitas linhagens celulares, como granulócitos, fagócitos mononucleares e linfócitos a partir de células-tronco.
lmunorregulação Os mecanismos reguladores da resposta imune estão presentes em todas as fases dessa resposta: fase de reco nhecimento do antígeno, fase de ativação e fase efetora. O padrão final da resposta imunológica será determinado pela ativação relacionada ao antígeno e pelas influências regulatórias negativas. A regulação pode resultar em anergia, sub-regulação da ativação de células T, atividades estimulatórias ou inibitórias de citocinas, regulação idiotípica/anti-idiotípica e respostas Th diferenciais à exposição dependente da dose e da via do antígeno. Regulação por células T regulatórias (fregs)
Tregs, também conhecidas como células T supressoras, são células regulatórias capazes de suprimir as respostas tanto TH1 como TH2. Elas podem ser divididas em diferentes subtipos: • Tregs de ocorrência natural: mecanismo não estabelecido; • Tregs induzidas: a ação supressora de Tr 1 e Tregs induzidas é dependente da secreção de IL-1O e TG F- p, respectivamente; • Tregs CD8+: induzidas por IL-1O e demonstradas apenas in vitro. Recentemente, funções regulatórias significativas fo ram atribuídas às células T H17, células produtoras de IL17 e seu equilíbrio com as células Tregs. A resposta T H17 é importante na indução de doenças autoimunes e na proteção contra doenças infecciosas. A função das Tregs é
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controlar as respostas excessivas de células T efetoras. A geração de células Tl7 a partir de células T naive depende de IL-6 e TGF- ~, enquanto a IL-6 inibe a diferenciação da Treg induzida por TGF- ~. A regulação do equilíbrio entre Treg/Tl7 pela IL-6 é crítica nos processos de imunidade e imunopatologia34,35,38 . Afora o sistema imunológico, fatores neurais e neuroendócrinos, como o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, o sistema nervoso autônomo - incluindo além dos nervos simpáticos e parassimpáticos, outros nervos periféricos (sensoriais) - são potentes imunomoduladores. Por outro lado, o funcionamento do SNC, do sistema nervoso periférico e dos eixos neuroendócrinos (ou seja, eixo hipotálamo-hipófise-adrenal) pode ser influenciado pelo sistema imunológico. Na próxima seção, serão abordadas as interações bidirecionais entre os sistemas neuroendocrinológico/neural e imunológico.
Interações entre os sistemas neuroendócrino e imunológico Atualmente, está consolidado que os sistemas nervoso e imunológico se comunicam de forma bidirecional26,29,30,39-42. Conforme previamente mencionado, o estresse psicológico é retransmitido ao corpo por meio do eixo HPA e do sistema nervoso simpático, resultando em resposta adaptadora ao estresse (se finalizada com eficiência), o que envolve mudanças de comportamento e alterações na função dos sistemas metabólicos, cardiovasculares e imunológicos. Por outro lado, a manutenção da homeostase durante algum desafio imune envolve ativação do sistema imunológico, resolução do desafio (ou seja, desaparecimento do patógeno) e proteção do hospedeiro contra processos inflamatórios potencialmente nocivos. Em relação ao último, as interleucinas (IL)/citocinas (TNF-a, IL- 1 e IL-6, em particular) ativam as mesmas vias de estresse para coordenar uma resposta imune apropriada26'29'43. Foram detectados receptores de citocinas em todos os níveis do eixo HPA e, por essa razão, cada nível pode servir como um ponto de integração para as sinalizações imunológicas e neuroendocrinológicas26 . Na sequência, os glicocorticoides exercem feedback negativo sobre as células imunológicas de forma a suprimir maior síntese e liberação de moléculas pró-inflamatórias inatas. Os glicocorticoides também moldam a imunidade por influenciar a diapedese ou transmigração de células imunológicas aos locais de inflamação e alteram as respostas imunes adaptadoras a jusante por causar desvio das respostas imunes do tipo celular (THl/inflamatórias) para a humoral (TH2/anti-inflamatórias) 4'44 • Por esse motivo, em contraste com a visão tradicional de glicocorticoides como hormônios imunossupressores, eles são conceituados com maior precisão como hormônios imunomoduladores capazes de estimular e suprimir a função imune, dependendo da sua concentração, do tipo de resposta imune, do
compartimento do sistema imunológico e do tipo celular envolvido. A ativação ou a inibição do sistema imu nológico também pode depender das características do estressar, tais como duração do estresse (agudo versus crônico). Isso será abordado com mais detalhes na seção "Eixo hipotálamo-hipófise-adrenal" 4. Os glicocorticoides também desempenham papel importante na regulação do sistema nervoso simpático. Além de promover efeitos permissivos sobre enzimas sintéticas relevantes e receptores de catecolaminas, os glicocorticoides endógenos refreiam as respostas do sistema nervoso simpático após o estresse45 • Além das interações entre o eixo HPA e o sistema imunológico, há fortes evidências de interações entre esse sistema e o sistema nervoso autônomo (vias tanto simpáticas como parassimpáticas) e os nervos periféricos. O ramo simpático do sistema nervoso autônomo pode induzir a liberação de agentes pró- e anti-inflamatórios, dependendo do tipo de receptor; por outro lado, também foi demonstrado que o ramo parassimpático (tanto aferente como eferente) exerce efeitos imunomoduladores. De grande significância, o nervo vago (ramo parassimpático) também serve como uma importante fonte de feedback negativo para o sistema imunológico, sendo o cérebro uma estação de retransmissão integral41'42. Mais detalhes a respeito das interaçoes entre o sistema nervoso autonomo e o sistema Imunológico serão abordados na seção "Interações entre os sistemas nervoso autônomo e imunológico"39 . Por fim, os neuropeptídeos liberados de nervos periféricos, como a substância P, tendem a ser pró-inflamatórios30 . Como as citocinas são peptídeos grandes e solúveis, foi dada atenção especial ao modo de penetração através da barreira hematoencefálica e à forma de ativação das vias do SNC por essas substâncias. Tais vias incluem os neurônios produtores do hormônio liberador da corticotropina no núcleo paraventricular (PVN) para estimular o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal. Foram identificados diversos mecanismos, que não são mutuamente exclusivos. As citocinas podem: 1. Estimular os aferentes viscerais (vagais) que se projetam em direção ao núcleo do trato solitário (NTS) no tronco encefálico, ativando a liberação de norepinefrina dos terminais catecolaminérgicos (do feixe noradrenérgico ventral [VNAB] no núcleo paraventricular. 2. Atravessar passivamente a barreira hematoencefálica nas regiões "permeáveis" onde essa barreira não estiver intacta, como órgãos circunventriculares (p. ex., órgão vascular da lâmina terminal, órgão subfornical e área postrema) e ativar diretamente os neurônios que se pro jetam para o hipotálamo. 3. Exercer efeito direto sobre os terminais nervosos que contêm CRH na eminência mediana. 4. Atuar sobre as células endoteliais da vasculatura cerebral ou as células gliais dos órgãos circunventriculares, induzindo à síntese/liberação de segundos mensageiros, -
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como citocinas centrais, prostaglandinas ou óxido nítrico, que, por sua vez, ativam os neurônios hipotalâmicos. 5) Atravessar a barreira hematoencefálica via transporte ativo. Há evidências que apoiam todas essas vias, dependendo da dose de citocina, do intervalo de tempo e da via de administração46,47 (Figura 4). A desregulação de qualquer um desses sistemas de estresse pode levar à desregulação de múltiplos sistemas fisiológicos e comportamentais, levando a resposta maladaptadora ao estresse32 • De fato, a desregulação de interações neural-imunes é descrita em muitos distúrbios relacionados ao estresse, inclusive doença inflamatória, autoimune, metabólica e cardiovascular, bem como transtornos psiquiátricos e somáticos. É interessante notar que as consequências de sinalização insuficiente por glicocorticoide (resistência a esse hormônio), incluindo hiperativação do sistema nervoso simpático e aumento da inflamação, resultam em efeitos deletérios similares aos da sinalização hiperativa por glicocorticoide, como alteração das funções metabólicas, cardiovasculares, imunológicas, neurológicas e comportamentais6 .
Interações entre o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal e o sistema imunológico A ativação do eixo HPA começa com a liberação do hormônio liberador da corticotropina (CRH). Os neurônios secretores de CRH surgem na divisão parvocelular do núcleo paraventricular do hipotálamo e terminam na camada externa da eminência mediana, liberando o CRH na circulação portal hipofisária. O CRH, por sua vez, atua sobre os receptores CRH-Rl presentes em corticotrofos da hipófise anterior de forma a estimular a rápida liberação do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) de reservas celulares e, após um tempo, a síntese do peptídeo precursor de ACTH e a pró-opiomelanocortina (POMC), para repor as reservas de ACTH, que é liberado na circulação periférica e estimula a liberação de glicocorticoides do córtex da adrenal, atuando sobre o receptor MC2-R (receptor de melanocortina tipo 2)48. Enquanto CRH-Rl e MC2- R são receptores acoplados à proteína G ligada à membrana celular (ligados à via da adenilato ciclaseAMPc-PKA), os receptores de glicocorticoides (GRs) são receptores esteroides citosólicos que, quando ativados pela ligação de seu ligando (glicocorticoides), translocam-se em direção ao núcleo para interagir com outros fatores de transcrição relevantes (p. ex., NFKB ou AP-1) ou alterar diretamente a transcrição de genes sensíveis ao glicocorticoide (pela ligação a algum elemento de resposta ao glicocorticoide [GRE] em sua região promotora). Toda célula nucleada do corpo expressa os receptores de glicocorticoides; por essa razão é que se observam os efeitos disseminados desses hormônios sobre praticamente to-
* * *. * *
Estressares
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Linfonodos Medula óssea
Sistema imunológico (células e órgãos)
Figura 4 Diagrama das vias de comunicação entre o cérebro e o sistema imunológico, incluindo o eixo hipotálamo- hipófise- adrenal, o sistema nervoso autônomo e as interações de citocinas com ambos os sistemas. Sistema nervoso central (SNC); sistema nervoso simpático (SNS); sistema nervoso periférico (SN P); hormônio liberador da corticotropina (CRH); arginina- vasopressina (AVP); hormônio adrenocorticotrófico (ACTH); linha preta sólida: estimulação; linha tracejada cinza: inibição. Reimpressa com modificações por permissão de Marques- Deak et ai., 2005 2 .
dos os sistemas (p. ex., metabólico, endocrinológico, nervoso, cardiovascular e imunológico). Os neurônios secretores de CRH do núcleo paraventricular servem como uma via final comum do estresse, recebendo impulsos convergentes de múltiplas áreas do cérebro e fazendo com que o CRH coordene as respostas comportamentais, neuroendocrinológicas e autônomas ao estresse49 . Essas vias aferentes incluem projeções de: 1. Vias noradrenérgicas ascendentes do tronco encefálico (oriundas da medula ventrolateral e do núcleo do trato solitário) que retransmitem informações senso. . na1s v1scera1s; 2. vias corticolímbicas descendentes (provenientes do septo, da amígdala [tonsila cerebelar] e do hipocampo) pelo núcleo do leito da estria terminal, que retransmitem informações cognitivo-emocionais; 3. conexões intra-hipotalâmicas que recebem inervação do tronco encefálico e de estruturas límbicas; 4. órgãos circunventriculares (p. ex., órgão vasculoso/ vascular da lâmina terminal, órgão subfornical), que retransrnitem sinais quimiossensoriais de origem sanguínea.
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Portanto, os neurônios hipotalâmicos secretores de CRH estão estrategicamente situados de forma a interceptar e dispersar os sinais que entram e saem do corpo sobre o ambiente interno e externo. Em resposta ao estresse prolongado, a expressão de RNAm do CRH hipotalâmico e da POMC hipofisária aumenta, juntamente à hipersecreção de CRH e ACTH. Contudo, ao sofrerem exposição contínua ao CRH, os receptores CRH - R1 da hipófise exibem sub - regulação, dessensibilizando o corticotrofo hipofisário aos sinais do CRH e reduzindo com isso a liberação do ACTH em resposta ao estressar primário48. Embora a expressão de arginina-vasopressina (coexpressada nos neurônios secretores de CRH) na divisão parvocelular do núcleo paraventricular seja baixa em relação ao valor basal, ela aumenta substancialmente em resposta ao estresse crônico. Na presença de CRH (embora não somente nessa situação), a arginina-vasopressina atua de forma sinérgica, potencializando a liberação de ACTH via receptor V1b da vasopressina (ligado à via PLC - Ca2+/DAG - PKC) (sem afetar a transcrição da POMC)48,50. Portanto, a ação da arginina-vasopressina sobre os corticotrofos hipofisários é capaz de manter sua responsividade e, com isso, a liberação de ACTH a novos estressares após ativação repetida do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, apesar da dessensibilização concomitante do CRH-R1. A atividade do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, por si só, deve ser mantida sob controle; por essa razão, os glicocorticoides exercem f eedback negativo no hipotálamo e na hipófise de forma a inibir a síntese e a secreção de CRH e POMC/ACTH, respectivamente. Além disso, o feedback negativo exercido pelo glicocorticoide provoca declínio na expressão de RNAm do CRH-R1 do corticotrofo e aumento na sub-regulação do CRH-R1, levando a redução no número de receptores CRH-R1 e, consequentemente, a dessensibilização do corticotrofo aos efeitos estimulatórios do CRH sobre a liberação do ACTH. Ademais, o hipocampo, que exibe alta densidade de receptores de glicocorticoides, inibe o núcleo paraventricular e, portanto, também a atividade do eixo hipotálamo -hipófise -adre nal51. De acordo com Paul Plotsky52 , pode -se especular que a atenuação da resposta secretária do ACTH pelo feedback exercido por glicocorticoide preserva a capacidade de resposta do eixo HPA a subsequentes estressares, mas atua de forma a limitar a duração da exposição tecidual total ao glicocorticoide, minimizando com isso os efeitos catabólicos, antirreprodutivos e imunossupressores e neutralizando a tendência de resposta exacerbada do circuito central a algum estressar repetido. Assim que os glicocorticoides são liberados, a manutenção de atividade apropriada desses hormônios é efetuada pela regulação teciduallocal da disponibilidade de glicocorticoide por certos fatores, tais como globulina ligadora de corticosterona (CBG), 11~-hidroxiesteroide desidrogenase (11 ~- HSD), transportador de resistência a múltiplos medicamentos (MDR) e, por fim, sua ação mediada
pelos dois tipos de receptores de corticosteroides, o receptor de glicocorticoides e o de mineralocorticoides29,31 . Os receptores de mineralocorticoides, ou receptores do tipo I, possuem uma afinidade aproximadamente dez vezes maior para esteroides adrenais endógenos, em comparação com os receptores tipo II (receptores de glico corticoides); portanto, os receptores tipo I são ocupados e ativados sob concentrações mais baixas de hormônio, como durante o nadir diurno de liberação do glicocorticoide (PM em humanos e AMem roedores). Por outro lado, os receptores de glicocorticoides têm alta afinidade pela dexametasona (glicocorticoide sintético), porém baixa afinidade pelos esteroides adrenais endógenos53 . Portanto, os receptores de glicocorticoides são ocupados e ativados por altas concentrações de hormônio (juntamente aos receptores de mineralocorticoides), como durante o pico diurno de liberação do glicocorticoide e em res posta ao estresse. Os padrões de distribuição desses receptores no cérebro e no sistema imunológico também são diferentes. Enquanto o receptor de glicocorticoides está amplamente distribuído em todo o cérebro (sobretudo em regiões relevantes do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, como hipocampo e núcleo paraventricular do hipotálamo) e, consequentemente, desempenha papel importante no feedback negativo sobre os circuitos ativados pelo estresse, a expressão do receptor de mineralocorticoides fica mais restrita ao hipocampo e acredita-se que ele desempenhe papel tônico/permissivo na função cerebral54 • Além dos receptores de glicocorticoides, a presença dos receptores de mineralocorticoides nas células imunológicas sugere que esses últimos receptores também podem ser importantes na regulação das interações entre os glicocorticoides e o sistema imunológico. Existe considerável heterogeneidade entre tecidos e células do sistema imunológico no grau de expressão dos receptores de mineralocorticoides e glicocorticoides, bem como na magnitude de ativação do receptor após exposição a determinado hormônio. Por exemplo, o timo (que carece da expressão dos receptores de mineralocorticoides) é extremamente sensível a glicocorticoides, o que é compatível com o alto grau de expressão dos receptores de glicocorticoides juntamente à evidência de ativação significativa do receptor após aumentos induzidos por estresse na exposição a esses hormônios55 • Além disso, a sensibilidade das células T aos glicocorticoides oscila entre estado modulado por glicocorticoide durante altas concentrações desse hormônio e estado insensível a glicocorticoide durante suas baixas concentrações56. Em contraste, o baço (que coexpressa os receptores de mineralocorticoides e glicocorticoides) é relativamente resistente aos efeitos de glicocorticoides endógenos, tanto no nível do receptor de glicocorticoides como no nível dos efeitos desses hormônios sobre a função imunológica (a expressão dos receptores de mineralocorticoides pode exercer inibição tônica
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sobre a expressão dos receptores de glicocorticoides) 57. Ademais, como consequência da expressão dos receptores de mineralocorticoides juntamente aos receptores de glicocorticoides, os linfócitos esplênicos são predominantemente influenciados pela atividade dos primeiros receptores mencionados durante o vale do ciclo diurno de glicocorticoide, o que pode resultar não somente em efeitos reduzidos dos receptores de glicocorticoides, mas também em efeitos opostos mediados pelos receptores de mineralocorticoides58. Portanto, em tecidos em que ambos os receptores são coexpressados, o complexo glicocorticoidereceptor de mineralocorticoide pode atuar como antagonista funcional do complexo glicocorticoide-receptor de glicocorticoide, com o ritmo diurno de liberação de glicocorticoide influenciando o grau desse efeito.
Efeitos do estresse agudo sistema imunológico
vs. crônico sobre o
Conforme previamente mencionado, o estresse ou a atividade do glicocorticoide, em particular, exercerá efeitos estimulantes ou supressores sobre o sistema imunológico, dependendo de uma série de fatores. De acordo com Dhabhar4 e McEwen et al. 4\ muitos fatores estão envolvidos nesse processo aparentemente paradoxal, como duração do estresse (agudo vs. crônico), intensidade do estresse/ concentração dos hormônios do estresse (doses fisiológicas vs. farmacológicas; endógenos vs. sintéticos), sincronização do estresse em relação à resposta imune, tipo de resposta imune e qual compartimento imune está sendo mensurado. Da mesma forma que a resposta ao estresse agudo prepara os sistemas cardiovascular, musculoesquelético e neuroendocrinológico para luta ou fuga, seria adaptador preparar o sistema imunológico para desafios, como ferimentos e infecções provavelmente atribuídas às ações do estressor. Contudo, também é crucial deter a resposta inflamatória inicial a tempo, para evitar quaisquer consequências nocivas de alguma resposta imune hiperativa. No início da resposta ao estresse (minutos), a ativação do sistema nervoso simpático (epinefrina) promove migração (fenômeno conhecido como diapedese) de leucócitos dos "quartéis" (locais de armazenamento, como o baço) para a circulação. Além disso, os níveis basais de glicocorticoides atuam de forma permissiva para facilitar as ações imunoativadoras das catecolaminas. Conforme o estresse continua (agudo/horas) e os níveis de glicocorticoides começam a subir, as células imunológicas são mobilizadas da circulação para os "campos de batalha" ou primeira linha de defesa, como pele, pulmões, tratos gastrointestinal e urogenital, superfícies de mucosas e linfonodos, no preparo para desafios imunológicos subsequentes (ferimentos/infecções). À medida que o estresse se torna prolongado, a ativação mais contínua de glicocorticoides começa a exercer efeitos imunossupressores, trazendo a ativação imune inicial de volta aos níveis basais e evi-
tando a exacerbação das respostas inflamatórias. Contudo, quando o estresse fica crônico, os efeitos imunossupressores de altos níveis de glicocorticoides inibem certas facetas da imunidade (celular/inflamatória) abaixo do nível basal "saudável" (p. ex., inibindo a redistribuição dos leucócitos por completo, tais células permanecem "emperradas" nos locais de armazenamento como o baço); por meio disso, esses efeitos deixam de ser bem adaptados, tornando o sistema imunológico ineficaz no combate a infecções e câncer. A exposição crônica a glicocorticoides também pode levar ao estado de resistência a esses hormônios, podendo tornar o indivíduo mais suscetível ao desenvolvimento de distúrbios autoimunes/inflamatórios. É interessante notar que os mecanismos mediadores dos efeitos imunomoduladores diferenciais de glicocorticoides não são os mesmos sob todas as condições. Foi demonstrado que os glicocorticoides exercem funções imunoestimulantes, tais como indução de proteínas de fase aguda59, aumento da diapedese de leucócitos para a pele e, consequentemente, hipersensibilidade do tipo tardia (uma resposta imune mediada pelas células T) 60, estimulação de mitogênese sanguínea e esplênica das células T 56,58 , bem como aumento da produção de óxido nítrico e/ou citocinas pró-inflamatórias por macrófagos61 e micróglias62. Em todos esses casos, a corticosterona exerceu funções imunoestimulantes quando ocorreu a administração aguda de baixas doses, enquanto essas funções foram suprimidas por corticosterona em altas doses ou administração crônica. Foi demonstrado que os efeitos antagônicos de corticosterona em baixas doses vs. altas doses são mediados pela ligação aos receptores de mineralocorticoides (imunoestimulantes) e de glicocorticoides (imunossupressores), respectivamente, para mitogênese das células T e função das micróglias. Contudo, apesar da expressão concomitante dos receptores de mineralocorticoides nas células T e nos macrófagos, foi demonstrado que os efeitos distintos de corticosterona em baixas doses vs. altas doses sobre a migração pró-inflamatória de leucócitos à pele (reação de hipersensibilidade do tipo tardia) e a atividade dos macrófagos atuam principalmente por meio dos receptores de glicocorticoides. Uma explicação para a dicotomia entre as ações pró - e anti-inflamatórias que ocorrem nesses últimos casos independentes da sinalização dos receptores de mineralocorticoides pode estar mais relacionada à exposição aguda vs. exposição mais intensa/crônica a corticosterona/estresse, o que pode exercer diferenças de sinalização nos receptores de glicocorticoides pela duração e pelo grau de ocupação desses receptores63 • Por fim, embora o estresse psicogênico comprovadamente aumente os marcadores pró-inflamatórios na periferia e no cérebro, estudos recentes também demonstraram que esse tipo de estresse é capaz de sensibilizar ou "preparar" as micróglias para as respostas inflamatórias induzidas por algum desafio imune sistêmico subsequente, como exposição a lipopolissacarídeo 64 • De fato, isso
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pode ser um dos mecanismos pelos quais o estresse psicogênico precoce (eventos no início da vida) exerce impacto sobre subsequentes respostas a fatores estressares ao longo da vida do indivíduo.
Interações entre os sistemas nervoso autônomo e imunológico O sistema nervoso autônomo é geralmente concebido por ter dois ramos principais - o sistema simpático, associado com mobilização de energia, e o sistema parassimpático, associado com funções vegetativas e restauradoras. Normalmente, a atividade desses ramos está em equilíbrio dinâmico. Quando isso muda para um desequilíbrio estático (p. ex., sob pressões ambientais), o organismo tornase vulnerável a doenças. O desequilíbrio autônomo, em que um dos ramos do sistema nervoso autônomo predomina sobre o outro, está associado à falta de flexibilidade dinâmica e de saúde. Em termos empíricos, existe amplo conjunto de evidências sugestivas de que o desequilíbrio autônomo, caracterizado tipicamente por sistema simpático hiperativo e sistema parassimpático hipoativo, esteja associado a várias doenças65. Em particular, quando o ramo simpático predomina por longos períodos, a demanda de energia sobre o sistema torna-se excessiva e acaba não sendo atendida, resultando em morte. Do mesmo modo, o estado prolongado de alarme associado com emoções negativas impõe uma demanda de energia excessiva sobre o sistema, de maneira que o envelhecimento prematuro e o desenvolvimento de doença caracterizam um sistema dominado por afeto negativo e desequilíbrio autônomo. Sobrepostas à estrutura anatômica de especificidade funcional de células e órgãos do sistema imunológico, encontram-se a estrutura e a especificidade das vias neurais responsáveis pela inervação desses órgãos. O sistema nervoso simpático regula a imunidade em um nível regional, por meio da inervação de órgãos do sistema imunológico, como baço, timo e linfonodos30,40. As influências simpáticas podem ser tanto pró- como anti-inflamatórias, dependendo do tipo de receptor adrenérgico (receptor alfa ou beta-adrenérgico) ao qual a catecolamina se liga39,66 . O sistema nervoso simpático tem seu papel na redistribuição imediata de populações de células imunológicas, mas também pode ser imunossupressor, afetando a função dessas células durante condições de liberação maciça de norepinefrina dentro desses órgãos, como ocorre durante o estresse4°,67 . Os efeitos clinicamente relevantes da norepinefrina constatados nos estudos tanto em seres humanos como em animais sugerem que essa substância esteja envolvida na cicatrização de feridas 68,69 . O sistema nervoso periférico regula a imunidade em locais de inflamação no corpo, onde quer que isso ocorra. Os neuropeptídeos liberados dos nervos periféricos tendem a ser pró-inflamatórios e basicamente são responsáveis pelos aspectos carac-
terísticos de "calor, rubor e dor" (quente, vermelho e dolorido) nos locais de inflamação30. Também foi demonstrado que o sistema nervoso parassimpático desempenha papel crucial na imunomodulação. Acredita-se que a atividade parassimpática tanto aferente como eferente exerça função nessa imuno modulação30'41'70. Pela natureza de sua trajetória "errante'' através do corpo, o nervo vago pode estar excepcionalmente estruturado de modo a fornecer um sistema de alerta precoce eficaz para a detecção de patógenos, bem como a representar uma fonte de feedback negativo para o sistema imunológico após a eliminação dos patógenos71 . A grande maioria das fibras vagais (mais de 80%) é de natureza sensorial e, com isso, confere cobertura eficaz para a detecção de invasores no organismo71. A anatomia do nervo vago aferente foi descrita com detalhes por Berthoud e Neuhuber71, mas foi demonstrado em muitas espécies, inclusive em seres humanos, que esse nervo vago tem conexões com o coração, os pulmões, o esôfago e o fígado, entre outros órgãos. Além disso, o nervo vago aferente possui receptores de interleucina-1 expressos por células paragangliais situadas nos gânglios parassimpáticos30'72 • A presença de citocinas, tais como IL- 1 na periferia, é retransmitida pelo nervo vago a estruturas do SNC, sendo o núcleo do trato solitário uma das estruturas mais importantes. Nesse núcleo, os ramos aferentes e eferentes do sistema nervoso parassimpático se encontram. Portanto, ele constitui uma estação de retransmissão importante da comunicação neural-imune. 30. Na face aferente, os aferentes vagais terminam no núcleo do trato solitário de forma somatotópica, resultando em divisões funcionais desse núcleo43 . Essa organização somatotópica pode conferir alto grau de localização e especificidade de comunicação entre o sistema imunológico e o cérebro. Isso é importante, já que a localização anatômica dos patógenos transmite informações necessárias para determinar uma localização específica e, por meio disso, montar uma resposta imune mais eficaz. Ademais, o núcleo do trato solitário tem conexões diretas e indiretas com uma ampla variedade de estruturas neurais, conferindo com isso ao nervo vago a capacidade de influenciar um conjunto amplo de processos73 . Na face eferente, o núcleo gera impulso no núcleo motor dorsal do vago e no núcleo ambíguo. Essas são as origens dos sinais eferentes, que inervam muitos dos órgãos associados com o sistema imunológico, inclusive coração, fígado e trato gastrointestinal. A acetilcolina liberada do nervo vago modula as respostas imunes, pelo menos, em parte, via receptores nicotínicos-7-alfa, que inibem o fator nuclear kappa-B e, consequentemente, a síntese e a liberação de citocinas pró-inflamatórias74. Deve-se notar que a fonte da acetilcolina regulatória é ambígua; sugere-se que essa acetilcolina possa ser derivada de células imunológicas e não liberada das terminações nervosas75 . Consideradas em conjunto, essas vias parassimpáticas formam a chamada via anti-inflamatória colinérgica41,76 .
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Implicações clínicas das interações neuroendocrinológicas e imunológicas nos transtornos psiquiátricos Nos últimos trinta anos, com a melhor compreensão da interação bidirecional entre os sistemas neuroendocrinológico e imunológico, foram reveladas supostas vias biológicas que corroboraram a fisiopatologia dos transtornos neuropsiquiátricos. Além disso, um conjunto crescente de evidências sugeriu que a depressão pode ser causa ou consequência de algumas doenças clínicas. Nas próximas seções, serão abordados os mecanismos neuroendocrinológicos e imunológicos associados com o desenvolvimento de depressão. A depressão é um transtorno heterogêneo que se o rigina de interações entre fatores biológicos, genéticos, comportamentais e ambientais. Foram propostas diversas teorias biológicas e psicológicas para explicar a patogênese da depressão, inclusive a hipótese das monoaminas77, a disfunção do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal78, as teorias cognitivo-comportamentais79,80, a hipótese da neurogênesé 1, a teoria inflamatória11 e a hipótese neurodegenerativa82 (para mais detalhes, consulte o Capítulo 54 desta obra). A seguir, serão abordadas algumas teorias sobre a possível contribuição dos sistemas endocrinológico e imunológico para o desenvolvimento de depressão. Será dada ênfase ao papel desempenhado pelo eixo HPA e o sistema imunológico.
Teoria do eixo hipotálamo- hipófise-adrenal na depressão Os glicocorticoides afetam uma série de processos biológicos, tais como crescimento, metabolismo, desenvolvimento, comportamento e respostas imunes ao estresse. Além disso, estudos demonstraram que eles têm seu papel na função cerebral, incluindo neurogênese, sobrevida neuronal, humor e cognição83 . Portanto, alterações na função do eixo HPA podem exercer impacto sobre distúrbios relacionados ao estresse e sobre transtornos psiquiátricos, como depressão. De fato, desde o final dos anos de 1950, a hiperatividade do eixo HPA foi descrita em pacientes com depressão. A partir de então, muitos es tudos, utilizando diferentes metodologias, demonstraram que um subgrupo de pacientes com depressão exibe uma variedade de desregulações do eixo HPA (Tabela I). A hiperatividade do eixo HPA pode ser consequência da produção alterada de cortisol, conforme foi evidenciado por níveis elevados de cortisol, comprometimento do ritmo circadiano de secreção do cortisol (nadir elevado e, consequentemente, achatamento do ritmo circadiano) e secreção irregular desse hormônio. Contudo, a hiperatividade do eixo HPA também pode se originar da resposta reduzida de feedback negativo ao cortisol (ou seja, resistência a glicocorticoide) no nível desse eixo. Isso pode ser avaliado pelo teste de supressão com
dexametasona (DST). Estudos demonstraram uma não supressão da produção de cortisol após administração de dexametasona em alguns pacientes com depressão. De fato, uma ampla meta-análise revelou que o teste de supressão com dexametasona constitui potente indicador de mau prognóstico e também de preditor de suicídio em casos de depressão. Contudo, pelo fato de que a dexametasona possui perfis farmacodinâmicos e farmacocinéticos distintos do cortisol (a dexametasona liga-se apenas aos receptores de glicocorticoides [não aos receptores de mineralocorticoides] e não se liga à globulina ligadora de corticosterona nem atravessa a barreira hematoencefálica em virtude do transportador de resistência a múltiplos medicamentos) e por conta da baixa sensibilidade do teste de supressão com dexametasona em detectar pacientes com depressão, foram desenvolvidos novos testes para avaliar o feedback negativo do cortisol, como teste de desafio com dexametasona/hormônio liberador de corticotropina e teste com prednisolona, na tentativa de identificar os pacientes sob risco. O teste com dexametasona/CRH combina o teste de supressão com dexametasona (administração oral de uma única dose de dexametasona às 23 horas) e o teste de estimulação com CRH ( bolus intravenoso desse hormônio no dia seguinte às 15 horas). Estudos demonstraram que o teste combinado com dexametasona/CRH possui especificidade mais alta que o teste de supressão com dexametasona na detecção de disfunção do eixo HPA em pacientes com depressão, em comparação ao teste de supressão com dexametasona isolado. Os pacientes com depressão tendem a exibir uma falta de inibição das respostas do ACTH ao CRH após pré-tratamento com dexametasona, o que representa uma inibição prejudicada do feedback no nível da hipófise. Apesar de ser uma metodologia invasiva e dispendiosa, estudos demonstraram que esse teste pode predizer recidivas de depressão e desfechos ruins em pacientes sob tratamento. Recentemente, um teste novo e não invasivo feito com o uso de prednisolona, outro glicocorticoide sintético, foi desenvolvido por Pariante et al. Algumas de suas vantagens se devem à similaridade da farmacodinâmica e da farmacocinética da prednisolona ao cortisol endógeno. Dessa forma, a prednisolona e o cortisol apresentam afinidade similar aos receptores de mineralocorticoides e de glicocorticoides (duas vezes maior) e à globulina ligadora de corticosterona. Além disso, ambos possuem meias-vidas comparáveis e capacidade semelhante de penetração no cérebro. Estudos conduzidos com o uso desse teste demonstraram que pacientes com depressão exibem resposta normal de supressão ao teste com prednisolona, concomitantemente com resposta reduzida de supressão ao teste com dexametasona. Esses achados refletem preservação da atividade dos receptores de mineralocorticoides, mas redução da sensibilidade dos receptores de glicocorticoides, sugerindo possível dissociação entre a função de ambos os receptores em subgrupo de pacientes com depressão.
22 PSICONEUROIMUNOLOGIA
Tabela I
Desregulação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal em pacientes com depressão
Achados em paciente com depressão
Referências bibliográficas
Níveis de cortisol
ii ii ii
Nemeroff et ai., 198497
Ritmo circadiano de cortisol
i i Nadir
Teste Produção de cortisol
Cortisol no plasma Cortisol livre urinário de 24 horas Cortisol no líquido cerebroespinal
Carrol et ai., 200790
Ritmo circadiano achatado Secreção irregular de cortisol Resistência a glicocorticoides no eixo hipotálamo-hipófise-adrenal: feedback negativo comprometido Teste de supressão com dexametasona
Não supressão do cortisol após administração de dexametasona
Holsboer et ai., 1991 98, Holsboer et ai., 200099
Teste com dexametasona/CRH, que combina o DST e o teste de estimulação com CRH
Falta de inibição das respostas do ACTH ao CRH após prétratamento com dexametasona
Watson et ai., 2006 100
Teste com prednisolona e teste de supressão com dexametasona
Resposta normal de supressão ao teste com prednisolona, concomitantemente com resposta reduzida de supressão ao DST: atividade reduzida dos receptores de glicocorticoides com atividade preservada dos receptores de mineralocorticoides
Pariante CM e Lightman SL, 200878
cosn
Resistência a glicocorticoides no sistema imunológico In vitro: produção de citocinas em resposta à administração de dexametasona in vitro
Não supressão da produção de IL- 1 após administração de dexametasona
Maes et ai. 1991 84
In vitro: proliferação de linfócitos em resposta à administração de dexametasona in vitro
Não supressão da proliferação de linfócitos induzida por mitógeno após administração de dexametasona
Maes et ai., 1991 84
Teste de supressão com dexametasona e avaliação do leucograma
A dexametasona normalmente induz a leucocitose, linfocitopenia, monocitopenia e neutrofilia - não observadas em pacientes com depressão
Maes, 199485 ; Pace e Miller, 2009 86
Mensurações de CRH
Níveis elevados de CRH no líquido cerebroespinal
Roy et ai., 1987 101
Teste com ACTH
Secreção aumentada de cortisol
Owens et ai., 1993 102
Dados de técnicas de diagnóstico por imagem: glândulas adrenais e hipófise
Aumento de volume das glândulas adrenais e hipófise
Owens, 1993 102 ; Pariante, 2004 103
Receptores CRH-R1
Sub-regulação dos receptores CRH- R1 em regiões cerebrais frontais de pacientes suicidas post mortem
Merali 2004 104
Expressão do CRH
Expressão aumentada do CRH em neurônios hipotalâmicos de pacientes post mortem
Raadsheer et ai., 1994 105
Produção de CRH
'
CRH: hormônio liberador de corticotropina; CRH-Rl : receptor do hormônio liberador da corticotropina; ACTH: hormônio adrenocorticotrófico; DST: teste de supressão
com dexametasona.
Além disso, alguns estudos demonstraram a resis tência a glicocorticoides em células imunológicas de pacientes com depressão. Dessa forma, após exposição à dexametasona, alguns pacientes revelaram não supressão da produção de IL-1 beta, não supressão da proliferação de linfócitos induzida por algum mitógeno e resistência da dexametasona ao aumento de neutrófilos e à redução de linfócitos, células T CD4+ no sangue periférico84•85 • A resistência a glicocorticoides pode estar relacionada em parte à função comprometida dos receptores desses hormônios (conforme discussão anterior), bem como à desregulação de vários fatores que influenciam a disponibi-
lidade local de glicocorticoides, como globulina ligadora de corticosterona, 11~ -hidroxiesteroide desidrogenase e transportador de resistência a múltiplos medicamentos. É interessante notar que todos esses fatores são influenciados por citocinas3 1• Alguns estudos enfatizaram que, na verdade, a resistência a glicocorticoides é elemento essencial de alterações do eixo HPA na depressão, apoiado pelo fato de que a administração de antidepressivos em seres humanos, animais e modelos celulares tende a aumentar a função dos receptores de glicocorticoides86 -89• Por outro lado, alguns autores também sugeriram que a hipercortisolemia relatada em pacientes com depressão
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possa estar relacionada à hipersecreção de CRH. Essa evidência é apoiada por vários achados em pacientes com depressão, incluindo concentração elevada de CRH no líquido cerebroespinal; respostas enfraquecidas/ embotadas do ACTH ao desafio com CRH; aumento de volume da hipófise; sub-regulação dos receptores CRH-Rl nas regiões cerebrais frontais de pacientes suicidas post mortem; e expressão aumentada de CRH em neurônios hipotalâmicos em pacientes post mortem (Tabela I). Apenas uma porcentagem de pacientes com depressão exibe hiperatividade do eixo HPA90 . Alguns fatores que podem contribuir para esses resultados aparentemente controversos são: presença de comorbidades com transtornos de ansiedade, histórico de estresse no início da vida, subtipos de depressão, gravidade dos sintomas e ativação imune com excesso da produção de citocinas pró inflamatórias inatas. Por fim, é muito provável que diferentes subtipos de depressão possam estar associados com padrões distintos de desregulação do eixo hipotálamo hipófise-adrenal. De fato, estudos demonstraram que a hiperatividade do eixo HPA está associada com certos subtipos de de pressão. Sendo assim, a hipercortisolemia (particularmente um nadir mais alto) é mais comum em pacientes com depressão grave, tanto do tipo melancólico como psicótico. Também foi descrito que o comprometimento do f eedback negativo exercido por glicocorticoides é mais intenso em pacientes deprimidos com maior comorbidade com transtornos de ansiedade. Além disso, um estudo populacional recente revelou que pacientes deprimidos mais idosos apresentam dois padrões distintos de atividade do eixo HPA. Aqueles com hipoatividade do eixo HPA tendiam a ser mulheres com artropatia e maiores taxas de tabagismo, ao passo que a hiperatividade desse eixo era mais prevalente em homens com doenças cardiovasculares e uso mais elevado de agentes anti-inflamatórios não esteroides91. Deve-se notar que a hipoatividade do eixo HPA também foi observada em outros transtornos psiquiátricos, como transtorno do estresse pós-traumático92 • As alterações no eixo HPA também podem ser influenciadas por hormônios sexuais. Estudos demonstraram que ratas secretam níveis mais altos de ACTH e glicocorticoides em resposta a algum estressor, em comparação aos ratos machos. Essa diferença sexual pode estar relacionada ao efeito do estrogênio na regulação da secreção de CRH por meio do receptor estrogênico. O papel desempenhado pelos hormônios sexuais na modulação do eixo HPA, do sistema imunológico e dos transtornos de humor não será abordado neste capítulo 93-95 . Por fim, as alterações do eixo HPA em transtornos psiquiátricos também podem ser influenciadas pela ativação do sistema imunológico por citocinas pró-inflamatórias. Conforme será discutido a seguir, as citocinas são capazes de estimular a liberação de glicocorticoides e também alteram a sua disponibilidade e a função dos seus re-
ceptores. Sob certas condições, podem favorecer um estado de resistência a glicocorticoides86,96 . Em suma, os pacientes com depressão apresentam alterações no eixo HPA, que foram relacionadas à hipersecreção de cortisol, resistência a glicocorticoides e secreção demasiada de CRH. Como a depressão se trata de um transtorno complexo e heterogêneo, é provável que diferentes mecanismos e diferentes sistemas (neural, endocrinológico e imunológico) possam estar associados com o desenvolvimento e a evolução dos sintomas. A hipótese do eixo HPA fornece apenas uma explicação parcial e provavelmente complementar para a patogênese da depressão.
Teoria da inflamação na depressão Nos últimos trinta anos, estudos demonstraram que a ativação da resposta imunológica inata e a inflamação podem desempenhar papel na fisiopatologia e/ou sintomatologia da depressão. A hipótese das citocinas para depressão sugere que fatores psicossociais externos e estressares internos possam deflagrar esse quadro por vias inflamatórias. De fato, estudos revelaram que a estimulação sistêmica com lipopolissacarídeo deflagra a produção local e central de citocinas; tais citocinas, por sua vez, acabam atuando sobre o cérebro a ponto de causar o que é conhecido como comportamento de enfermidade8'9. Quando a ativação do sistema imunológico periférico é prolongada por causa de infecção sistêmica, câncer, doença autoimunológica ou desequilíbrio da homeostase, a sinalização acentuada do sistema imunológico ao cérebro pode levar à exacerbação do comportamento de enfermidade e ao desenvolvimento de sintomatologia depressiva em indivíduos vulneráveis 10 • Também é importante enfatizar a ocorrência concomitante de sintomas depressivos e inflamação em muitos distúrbios, como doença infecciosa, doença cardiovascular, processos inflamatórios (p. ex., artrite), doença autoimune (lúpus), bem como em terapias à base de citocinas (p. ex., alfa-interferon para hepatite C) e câncer 106,107. Portanto, a inflamação pode ser uma das vias responsáveis pela alta prevalência de depressão nesses quadros clínicos (ver seção adiante sobre depressão e quadros clínicos). Curiosamente, estudos também demonstraram que pacientes com depressão apresentam níveis elevados de biomarcadores inflamatórios, tais como citocinas, proteínas de fase aguda e proteína C-reativa5 • Outra linha importante de evidência que demonstra o papel desempenhado pela inflamação na fisiopatologia da depressão provém de estudos baseados na avaliação do efeito anti-inflamatório da terapia antidepressiva. Além disso, mais recentemente estudos discutiram o uso de agentes anti-inflamatórios e 1munossupressores como novos agentes terapeutlcos para depressão 108 -111 . Por fim, pesquisas demonstraram que a ativação do sistema imunológico - as vias inflamatórias em particular - pode levar a alterações no metabolismo de neurotransmissores e na função do sistema neuroendocri•
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nológico. Essas vias explicam um dos mecanismos por meio dos quais as citocinas podem deflagrar sintomas e transtornos neuropsiquiátricos5·11 ·111. Recentemente, demonstrou-se que o papel desempenhado pela função das células T no controle da inflamação é um colaborador em potencial para o desenvolvimento de depressão 12-14. Na Tabela li, serão abordadas algumas evidências importantes que contribuem para a associação entre depressão e desregulação do sistema imunológico. Associação entre citocinas e comportamento de enfermidade e depressão
Foi demonstrado que as citocinas induzem uma série de sintomas conhecidos como "comportamento de enfermidade': que é uma experiência comum que ocorre durante a evolução de processos infecciosos e consiste em interação reduzida com o ambiente, diminuição do apetite, mal-estar, fadiga, apatia, hiperalgesia e até mesmo confusão mental 10. Esse conjunto de sintomas pode ser não só decorrente de infecções, mas também surgir em indivíduos e animais saudáveis pela aplicação sistêmica de indutores de citocinas, tais como lipopolissacarídeo e vacinação contra Salmonella typhi (causadora da febre tifoide) ou pela administração das próprias citocinas pró-inflamatórias (p. ex., alfa-interferon), que são liberadas por monócitos e macrófagos ativados durante a resposta do hospedeiro a infecções124. É interessante notar que os sintomas do comportamento de enfermidade se sobrepõem a muitos aspectos da depressão (letargia, sonolência, fadiga, anedonia, redução do apetite e da locomoção, comprometimento do sono e déficits cognitivos) 5•10 • Contudo, deve-se observar que o comportamento de enfermidade também apresenta sintomas (como pirexia) não associados tipicamente com a depressão. Por outro lado, a depressão exibe sintomas cognitivos, tais como sentimentos de inutilidade e pensamentos recorrentes de morte, que não estão presentes no comportamento de enfermidade. Esse fato suge-
Tabela 11
re que vias similares e, em alguns casos, vias distintas possam estar envolvidas nesses distúrbios. Foi descrito que as similaridades entre depressão e comportamento de enfermidade estão associadas com a produção de citocinas próinflamatórias endógenas e a desregulação do eixo HPA 25 . Curiosamente, sintomas neurovegetativos descritos no comportamento de enfermidade (como letargia/fadiga e anorexia) são menos responsivos a tratamentos antidepressivos clássicos e necessitam de abordagem terapêutica diferente em comparação a outros sintomas depressivos, como humor deprimido e déficit cognitivo 125-126. Deve-notar que o comportamento de enfermidade se refere a uma resposta transitória e, portanto, de adap tação por meio da ativação do sistema imunológico, já que a produção cerebral de citocinas pró-inflamatórias é sub-regulada por citocinas anti-inflamatórias e glicocorticoides. Quando a rede de citocinas permanece ativada com o passar do tempo, uma resposta crônica e mal-adaptada advinda da ativação do sistema imunológico, sobretudo em decorrência de estresse crônico e/ou inflamação, pode culminar em distúrbios do humor e da cognição, tais como depressão 10. Terapia com alfa-interferon e depressão
Há evidências adicionais que apoiamo papel desempenhado pelas citocinas na depressão pelo fato de que a administração da terapia com alfa-interferon, para pacientes com hepatite C ou certos tipos de câncer (p. ex., melanoma), foi associada com o desenvolvimento de sintomatologia depressiva em 20 e até 50% dos pacientes. Um único estudo demonstrou que a sintomatologia de depressão induzida por citocinas é bastante similar àquela de estado depressivo clássico, exceto pelo fato de que os pacientes tratados com citocinas relataram mais ano rexia/perda de peso e retardo psicomotor, porém menos sentimentos de culpa, em comparação à depressão idio pática127. É interessante notar também que a fadiga, um
Evidências quanto à associação entre depressão e desregulação do sistema imunológico
Evidências
Referências bibliográficas
Associação de citocinas com comportamento de enfermidade e depressão
Dantzer et ai., 20098
Depressão induzida por alfa- interferon
Capuron e Miller, 2004 112; Maddock et ai., 2005 11 3
Associação de depressão com quadros clínicos: doença cardiovascular e câncer
Myers, 2008 114 ; Benton et ai., 2007 115 ; Frasure-Smith et ai., 201 0 116; Frasure-Smith et ai., 2007 117; Goldston e Baillier, 2008 118; Septhon et ai., 2009 119
Níveis elevados de biomarcadores inflamatórios: citocinas pró- inflamatórias, proteínas de
Raison et ai., 20065 ; Howren et ai., 2009 120 ; Dowlati et
fase aguda, proteína C- reativa e moléculas de adesão celular
ai., 2010 121
Efeitos antidepressivos sobre a inflamação e o receptor de glicocorticoides
Pace e Miller, 200986
Agentes anti- inflamatórios e imunossupressores: novos agentes terapêuticos para depressão Mecanismos de indução de depressão por citocinas
Miller et ai., 2009 11 ; Kenis e Maes, 2002 86 ; Pace e
Efeitos das citocinas sobre o eixo hipotálamo- hipófise-adrenal, os neurotransmissores e a
Miller, 2009 122 ; Hayley et ai., 2005 123
neuroplasticidade Teoria das células T
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sintoma comum na depressão, foi descrita no tratamento com alfa-interferon e associada com alteração do metabolismo de glicose nos núcleos dos gânglios da base 128 . Vale notar que ela também foi associada com padrões alterados dos gânglios da base tanto no tratamento com alfa -interferon129 como em indivíduos após a administração da vacina contra febre tifoide 130. Considerados em conjunto, esses dados sugerem que as citocinas podem levar à fadiga pela atuação sobre os gânglios da base. De fato, foi demonstrado que o tratamento com alfa-interferon induz duas síndromes comportamentais distintas: 1. Uma síndrome neurovegetativa que aparece no início, persiste e é minimamente responsiva a antidepressivos clássicos. 2. Outra síndrome de humor/cognição, caracterizada por humor deprimido, ansiedade e disfunção cognitiva, que aparece mais tarde e é responsiva a antidepressivos clássicos (ou seja, inibidores seletivos de recaptação da serotonina). Além disso, parece que essas duas categorias distintas de sintomas são mediadas por mecanismos biológicos diferentes. Nesse caso, o comprometimento das vias dopaminérgicas (gânglios da base) pode desempenhar papel mais proeminente no subgrupo neurovegetativo, enquanto o aumento do CRH e a redução da serotonina podem exercer função mais importante no subgrupo de humor/cognição 112• Ademais, foi demonstrado que os antagonistas de citocinas reduzem o déficit de humor/cognição e a fadiga em pacientes com distúrbios autoimunes ou inflamatórios e, por essa razão, podem servir como um tratamento mais eficaz para tratar a depressão como um todo. A terapia com alfa-interferon também foi associada com alterações do sono, como distúrbio do sono não-REM, aumento do tempo acordado após o início do sono, redução da eficiência do sono, diminuição dos estágios 3 e 4 do sono e transtorno do sono de onda lenta m . Tais padrões de alteração do sono também são relatados em pacientes com depressão e muitos quadros clínicos, como doença cardiovascular, câncer e distúrbios autoimunes/inflamatórios ou após exposição a altas doses de citocinas e indutores dessas substâncias131 -136. Por outro lado, também foi demonstrado que a terapia com alfa-interferon induz o aumento da latência do sono REM - o oposto ao que é observado em pacientes com depressão que exibem redução dessa latência segundo relatos m . Esses achados levantam algumas possíveis associações e explicações para a ligação entre depressão e doença clínica em indivíduos com fonte conhecida de ativação crônica do sistema imune inato; nesse caso, um único e distinto fenótipo do sono REM poderia diferenciar a depressão idiopática da depressão induzida por citocinas. Níveis elevados de biomarcadores inflamatórios em pacientes com depressão
Muitos estudos revelaram que pacientes com depressão exibem evidências de inflamação acentuada, tais como
níveis elevados de proteínas de fase aguda, proteína C-reativa, leucócitos e moléculas de adesão celular5,11,12,120,121,137, 138 . Além disso, em um grupo de pacientes com depressão, foi descrito o aumento nos níveis de citocinas pró-inflamatórias (p. ex., IL- 1, IL-6, TNF-alfa) em diferentes líquidos corporais, inclusive plasma, líquido cerebroespinal e suor. Recentemente, dois estudos de meta-análise confirmaram uma associação positiva entre depressão e IL-6, IL- 1, TNFa e proteína C-reativa120' 121 • Algumas pesquisas também demonstraram níveis reduzidos de citocinas pró-inflamatórias após tratamento antidepressivo e recuperação da depressão. Ademais, foi descrita uma correlação positiva entre os níveis de citocinas pró-inflamatórias e a gravidade dos sintomas depressivos, bem como a hiperatividade do eixo hipotálamo-hipófise-adrenaP 19,125 • Recentemente, estudos também se concentraram sobre a associação reguladora entre citocinas pró- e anti-inflamatórias, enfatizando que o ambiente inflamatório crônico observado no contexto de depressão também pode ser atribuído à ausência de efeitos neutralizantes das citocinas anti-inflamatórias4. Alguns dos achados que apoiam essa hipótese incluem: • Pacientes com depressão apresentam níveis séricos mais baixos de IL- 1O e relações mais altas de IL-6/IL10\ além de produção reduzida de IL- 10 após estimulação mitogênica (por leucócitos sanguíneos) 139,140. • O tratamento antidepressivo aumenta a produção de IL- 10 por leucócitos estimulados ex-vivo. • Relação reduzida de alfa-interferon/IL-1O em leucócitos in vivo tratados com serotonina antes da estimulação com lipopolissacarídeo 119. Curiosamente, a condição de deficiência de serotonina demonstrada em casos de depressão pode contribuir para o aumento da relação de citocinas pró-/anti-inflamatórias. No entanto, conforme será discutido adiante, estudos demonstraram que citocinas pró -inflamatórias podem, por sua vez, precipitar a deficiência de serotonina (ver seção sobre citocinas e neurotransmissores) 11 • Dessa forma, a dúvida sobre quem vem primeiro, a deficiência de serotonina ou o aumento das citocinas pró-inflamatórias ainda precisa ser esclarecida4. Entretanto, ambas as vias podem estar contribuindo para o desenvolvimento de endofenótipo similar observado em pacientes com depressão. Também é preciso admitir que foram descritos resultados conflitantes a respeito dos níveis de expressão das citocinas pró- e anti-inflamatórias em pacientes deprimidos. Essa falta de concordância entre os achados pode ser explicada por alguns fatores importantes, como heterogeneidade, subtipos de transtornos depressivos e comorbidades. Além disso, o aumento de marcadores inflamatórios pode ser mais proeminente e exibido apenas em um subgrupo de pacientes com depressão, conforme foi demonstrado naqueles com depressão resistente a tratamento 11 ,141.
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Terapia antidepressiva e imunossupressora Antidepressivos: efeitos sobre a inflamação e a função dos receptores de glicocorticoides
Outra importante linha de evidências que demonstra o papel exercido pela inflamação na fisiopatologia da depressão provém de estudos conduzidos para avaliação do efeito anti-inflamatório da terapia antidepressiva. Estudos clínicos em animais revelaram redução de marcadores inflamatórios após o uso de antidepressivos convencionais ou experimentos in vitro 11 ' 122 • Pesquisas demonstraram que os antidepressivos também podem aumentar a função dos receptores de glicocorticoides por atuação sobre a bomba de glicoproteína-p transportadora de resistência a múltiplos medicamentos e sobre as vias de sinalização do AMPc. Recentemente, foi descrito que os antidepressivos ativam a via da proteína quinase A (PKA). É interessante notar também que a via de sinalização da PKA desempenha papel essencial não somente na função dos receptores de glicocorticoides, mas também na inibição das vias de sinalização inflamatórias. Alguns autores sugerem que o comprometimento da via da PKA pode explicar a ligação entre resistência a glicocorticoides induzida por citocinas em pacientes com depressão. Portanto, foi sugerido que agentes farmacológicos com alvo sobre a função da PKA, aumentando a função dos receptores de glicocorticoides e reduzindo a inflamação, podem se tornar uma nova estratégia terapêutica para o tratamento de pacientes com depressão e inflamação elevada86. Novas terapias: terapia anti-inflamatória . e 1munossupressora
Os tratamentos disponíveis para depressão ainda não são suficientes para tratar pelo menos um terço dos pacientes acometidos por esse quadro. Portanto, uma me lhor compreensão da fisiopatologia da depressão pode ajudar a desenvolver novas estratégias terapêuticas. O entendimento da conexão bidirecional complexa entre os sistemas neuroendocrinológico e imunológico abriu novos horizontes terapêuticos com alvo sobre os sistemas endocrinológico e imunológico. Alguns ensaios demonstraram que a adição de agentes anti-inflamatórios, como ácido acetilsalicílico (bloqueia a ciclo -oxigenase 1 e 2, bem como a produção de prostaglandinas) ou inibidor seletivo da ciclo-oxigenase 2, como celecoxibe, com antidepressivos-padrão (fluoxetina e reboxetina) induz ao aumento das taxas de remissão109. Recentemente, estudos demonstraram melhora do humor em pacientes acometidos por distúrbios inflamatórios e tratados com inibidores do fator de necrose tumoral (TNF), como etanercepte, ou agentes anti-inflamatórios, como inibidores da ciclo -oxigenase 108 - 110. Curiosamente, estudos revelaram que pacientes deprimidos resistentes ao tratamento apresentam ativação do sistema imunológico" . Portanto, o uso de agentes imunossupressores pode ter grande eficácia em pacientes de-
primidos que são resistentes ao tratamento e também se apresentam com ativação acentuada do sistema imuno lógico. Estudos também demonstraram que a terapia anti-TNF-alfa em pacientes com doenças autoimunes, como doença de Crohn e artrite reumatoide, leva ao aumento da função e do número das Tregs 142 . Por essa razão, agentes anticitocina/TNF podem estar atuando em duas vias diferentes relacionadas à depressão - resposta imune inata e função das células T. Outra opção terapêutica interessante consiste no uso de triptofano. Shlaefer et al. descreveram três casos em que seu uso, como estratégia de reforço ou como mono terapia para sintomas depressivos, foi associado com melhora da depressão em pacientes que desenvolveram esse distúrbio após terapia com alfa-interferon 143 . Contudo, alguns autores sugeriram que antes de aumentar os níveis de triptofano, o aumento de 5- HTP, precursor imediato da serotonina, pode ser uma opção melhor 144 . Por fim, a citocina anti-inflamatória IL-1Oe/ou fato res que resultam em aumentos endógenos dessa interleucina constituem outros agentes terapeutlcos potenciais e novos para depressão, conforme foi proposto por Dhabhar4. Como discutido na seção, a ausência dos efeitos neutralizantes de citocinas anti-inflamatórias sobre citocinas próinflamatórias pode contribuir para o ambiente inflamatório no contexto da depressão. Contudo, há necessidade de pesquisas mais profundas para determinar o potencial de uso de abordagens imunomoduladoras para o tratamento de, no mínimo, alguns pacientes com depressão. •
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Sistema imunológico e depressão: possíveis mecanismos indutores de sintomas neuropsiquiátricos
Há várias hipóteses que explicam as vias pelas quais as citocinas podem exercer impacto sobre o comportamento e, consequentemente, transtornos psiquiátricos. Em primeiro lugar, estudos demonstraram que as citocinas são capazes de influenciar a função do eixo HPA por alterar o ritmo circadiano do cortisol - achatando/aplainando a curva do cortisol e aumentando o cortisol vespertino 145 . Em segundo lugar, foi demonstrado que as citocinas influenciam o metabolismo de neurotransmissores, como serotonina, norepinefrina e dopamina. Pesquisas também revelaram que as citocinas têm impacto sobre os processos de apoptose, estresse oxidativo, metabolismo neuronal eramificação neuronal 123,146. Anteriormente foi abordado opapel exercido pelo eixo HPA na depressão e a conexão bidirecional entre as citocinas e o eixo mencionado. Nesta seção, será discutida a influência das citocinas sobre os neurotransmissores e a neuroplasticidade. Além disso, será descrita brevemente a contribuição da função das células T nos quadros de inflamação e depressão. Citocinas e neurotransmissores
Volumes crescentes de dados têm demonstrado que as citocinas ou os indutores dessas substâncias podem afe-
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tar o metabolismo de serotonina, norepinefrina e dopamina 11. Estudos com animais e seres humanos revelaram que as citocinas pró-inflamatórias podem levar a níveis reduzidos do triptofano (aminoácido precursor da serotonina) por ativar a enzima indoleamina 2-3 dioxigenase (ID0) 147 (Figura 5). As citocinas (p. ex., gama-interferon, TNF-alfa) ativam essa enzima pela estimulação de múltiplas vias de sinalização inflamatórias, incluindo transdutor de sinal e ativador de transcrição la (STATla), fator regulador de interferon (DF) - 1, fator nuclear kappa B (NF-KB) e proteína quinase p38 ativada por mitógeno (MAPK) 148. Na ativação da IDO, o triptofano é convertido em quinurenina (KYN), um precursor de metabólitos neu roativos, reduzindo com isso sua disponibilidade para a síntese de serotonina 10• Estudos com seres humanos demonstraram uma associação entre níveis reduzidos de triptofano e níveis aumentados de quinurenina em pa cientes que desenvolveram depressão após administração da alfa-interferon 147• Além disso, estudos com animais revelaram que a administração da quinurenina isolada pode levar a comportamento tipo depressivo, inibido pelo bloqueio da ID0 149 • Isso mostra que a quinurenina também tem efeito sobre o humor, independentemente da dispo nibilidade reduzida da serotonina. É interessante notar que também foram demonstradas alterações desses metabólitos em doenças inflamatórias150. Além disso, a quinurenina é convertida em ácido quinurênico (KA), em astrócitos e ácido quinolínico (QUIN) em micróglias (Figura 5). O ácido quinurênico foi associado com a inibição da liberação de glutamato, levando a neuroproteção. Por outro lado, o ácido quino línico promove a liberação de glutamato pela ativação dos receptores N -metil-D aspartato (NMDA) e induz a estresse oxidativo, que contribui para neurodegeneração 11. Alguns autores admitem a hipótese de que a via indutora de aumento do estresse oxidativo pode mediar a associação entre inflamação e depressão 151 ; no entanto, isso não foi observado em um amplo levantamento baseado na população nos Estados Unidos, o National Health and Nutritional Examination Survey 137 • Citocinas e neuroplasticidade
A influência das citocinas sobre os sintomas neuropsiquiátricos também pode resultar da capacidade dessas substâncias em modular a função neuronal durante a vida - desde o desenvolvimento cerebral precoce até a plasticidade neuronal no adulto. Estudos demonstraram que as citocinas têm efeito sobre os processos de apoptose, estresse oxidativo, metabolismo e ramificação neuronais, bem como sobre a expressão de fator de crescimento 123 • A plasticidade neuronal é processo crítico para a regulação normal do humor, da cognição e do comportamento. Estudos revelaram que a exposição prolongada a citocinas pró-inflamatórias pode comprometer a plasticidade neuronal, contribuindo para o desenvolvimento de défi-
cits cognitivos e alteração do humor 152 • De grande importância, estudos demonstraram a presença de citocinas no cérebro saudável e em algumas áreas relevantes à fisiopatologia depressiva e à cognição (p. ex., hipotálamo, hipo campo e córtex apresentam uma concentração mais alta de receptores de citocinas [IL-1 beta, IL-6 e TNF-alfa]) 153,154 . Além disso, pesquisas mostraram que o alfa-interferon induz a ativação de micróglias e perda neuronal dopaminérgica 155 e que níveis cerebrais elevados de IL- 1 beta e TNF-alfa são associados com dano a expressão de fato res de crescimento (p. ex., fatores neurotróficos derivados do cérebro [BDNF], fator de crescimento do endotélio vascular [VEGF]), neurogênese, gliogênese, plasticidade neuronal e potenciação no longo prazo 156-158 . Considerados em conjunto, estressares psicogênicos e imunológicos são capazes de induzir alterações similares do sistema neuroendocrinológico e de neurotransmissores, bem como dano à expressão de fatores de crescimento, sensibilizando com isso o cérebro a estressares subsequentes e, logo, provocando um estado de vulnerabilidade aumentada ao estresse e à sintomatologia depressiva123 • Com a troca de micróglias neuroprotetoras em repouso por micróglias neurotóxicas ativas e a perda de astrócitos (importantes na recaptação de glutamato e, portanto, para a neuroproteção), a produção de fatores neurotróficos e citocinas anti-inflamatórias sofre redução. A descoberta de que a eficácia de antidepressivos relacionados aos monoaminérgicos depende do aumento da expressão de BDNF e da neurogênese no hipocampo apoia o papel desempenhado por esses fatores em transtornos depressivos; além disso, os antidepressivos revertem os efeitos antiproliferativos do estresse crônico sobre astrócitos no córtex pré-frontal 158 . Função das células T na recuperação do estresse e na depressão
Embora exista uma pletora de pesquisas concentradas no papel desempenhado pelo aumento das respostas pró-inflamatórias inatas em sintomatologia depressiva5,10, 11, a função exercida pelas respostas das células T entrou recentemente em foco outra vez. O comprometimento no número e na função de células T periféricas foi demonstrado tanto em indivíduos estressados como deprimidos 138 . Curiosamente, estudos recentes revelaram que as células T ativadas podem desempenhar papel neuroprotetor importante no contexto de estresse e inflamação 12- 14. Foi demonstrado que as células T autorreativas, por meio da imunização com antígenos específicos do SNC, revertem os declínios da neurogênese no hipocampo (e na expressão do BDNF) induzidos pelo estresse e o comportamento tipo depressivo em roedores. Além disso, foi constatado que a diapedese das células T ao cérebro após estresse, relacio nada em parte com os glicocorticoides, diminui o comportamento tipo ansiedade induzido pelo estresse. As células T regulatórias também podem desempenhar papel na depressão pela sub-regulação das respostas inflamatórias crô-
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TFN-a IFN-y
Tri ptofano
~o 5-Hidroxi-
KYN
triptofano
KH
KA (Astrócitos)
Inibição receptor ----~ NMDA
Neuroproteção
MAD KMO Serotonina Estresse oxidativo QUIN (Micróglia)
Ativação Neurotoxici dad e
receptor NMDA BDN F
Figura 5
Metabolismo do triptofano.
nicas. Com base na noção de que podem promover ações neuroprotetoras e anti-inflamatórias durante os processos de estresse e inflamação, a função comprometida dessas células pode contribuir diretamente para o desenvolvimento de depressão. De fato, o aumento da sensibilidade à apoptose, bem como a redução da responsividade aos glicocorticoides, pode não somente reduzir a disponibilidade das células T em pacientes deprimidos, mas também diminuir a capacidade de deslocamento ( diapedese) dessas células até o cérebro em resposta a estímulos neuroendocrinológicos ou imunológicos relevantes. Considerados em conjunto, semelhantemente ao que Dhabhar e McEwen 4 demonstraram em relação ao aumento da diapedese e da vigilância imunológica na pele induzido por estresse agudo (a linha de frente de defesa para patógenos invasores), Schwartz et al. 13' 14 mostraram que os aumentos da diapedese e da vigilância imunológica no cérebro, induzidos pelo estresse agudo, talvez sejam necessários para estados saudáveis de humor, cognição e recuperação global do estresse. Dessa forma, o incremento de função das células T pode representar uma estratégia alternativa para tratamento de depressão e transtornos de ansiedade. Associação de depressão com outros quadros clínicos: doença cardiovascular e câncer
A depressão é mais prevalente entre aqueles com quadros clínicos crônicos comparados à população geral e está associada com altos índices de morbidade e mortalidade em pacientes com doença crônica. Evidências atuais sugerem uma relação bidirecional entre depressão e doenças clínicas; em vista disso, a depressão pode ser causa ou consequência de algumas patologias, como doença cardiovascular, síndrome metabólica, doença autoimune/inflamatória, câncer, acidente vascular cerebral (AVC), HIV etc. 115, 159 Conforme discutido anteriormente, há evidências abundantes de que a depressão envolve alterações em múltiplos aspec-
tos da imunidade, o que pode contribuir para o desenvolvimento ou a manutenção de alguns quadros clínicos. Por outro lado, a inflamação crônica presente em várias doenças clínicas pode contribuir para o desenvolvimento da depressão127. A seguir será feita uma breve relação de depressão com doença cardiovascular e câncer. Depressão e doença cardiovascular: Variabilidade da frequência cardíaca
Além da inflamação acentuada (considerada como fator comum em doença cardiovascular e alguns subti pos de depressão), outro fator que deve ser de interesse é a variabilidade da frequência cardíaca. Por que aqueles interessados em depressão precisam saber alguma coisa sobre variabilidade da frequência cardíaca? Há várias razões. Em primeiro lugar, muitos estados e disposições psicopatológicas, incluindo depressão e sintomas depressivos, foram associados com baixa variabilidade da fre quência cardíaca. Em segundo lugar, a depressão está emergindo como fator de risco de doença cardiovascular (ver adendo). Além disso, admite-se a hipótese de que a ligação entre depressão e doença cardiovascular seja via baixa variabilidade da frequência cardíaca. Em terceiro lugar, uma característica central da depressão, ruminação ou mais comumente cognição perseverativa, foi associada com baixa variabilidade da frequência cardíaca. Em quarto lugar, essa variabilidade pode estar relacionada à gravidade e ao curso evolutivo da depressão, bem como aos resultados terapêuticos. Portanto, a variabilidade da frequência cardíaca pode ser útil na compreensão da etiologia, natureza, evolução, gravidade e terapia da depressão, bem como sua associação com a saúde física. A literatura especializada existente sobre a associação entre depressão e variabilidade da frequência cardíaca foi recentemente revisada160. Tanto em participantes saudáveis como naqueles com sistema cardiovascular comprometi-
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do, a diferença média entre participantes deprimidos e não deprimidos nas medidas de variabilidade da frequência cardíaca foi de aproximadamente um terço do desvio -padrão, com os participantes deprimidos exibindo variabilidade mais baixa dessa frequência. Isso é considerado um tamanho pequeno a médio do efeito e refletiria uma diferença na raiz quadrada da média das diferenças sucessivas entre intervalos R-R (RMSSD) entre 5 e 10 milissegundos aproximadamente. Contudo, existem grandes diferenças individuais, a tal ponto que alguns estudos verificaram diferenças significativas em termos estatísticos, enquanto outros não constataram qualquer diferença fidedigna ou até mesmo uma diferença na direção oposta. Dessa forma, há uma literatura especializada ampla, porém mista, sobre a relação entre depressão e variabilidade da frequência cardíaca mediada pelo nervo vago. Compatível com a literatura veterinária, que expõe o papel desempenhado pela ativação de vias vagais (parassimpáticas) na supressão de citocinas pró -inflamatórias (ver seção sobre sistema nervoso autônomo), os adultos saudáveis que exibem maior variabilidade da frequência cardíaca de alta frequência (HF-HRV, indicador de atividade vagai cardíaca mais alta) também produziram níveis mais baixos de citocinas pró-inflamatórias induzidas por lipopolissacarídeo. Portanto, a função desregulada do sistema nervoso autônomo, conforme é exemplificado por tônus simpático aumentado e tônus parassimpático reduzido, características encontradas em alguns pacientes deprimidos, pode ser um mecanismo que vincula as respostas individuais ao estresse psicossocial com suscetibilidade à doença inflamatória 161. Um estudo demonstrou que pacientes deprimidos assintomáticos para doença cardíaca coronariana apresentam perfil de biomarcadores indicativo de risco elevado para esse tipo de doença: desequilíbrio autonômico com predominância do tônus simpático (variabilidade da frequência cardíaca reduzida) e inflamação aumentada/disfunção endotelial (potencialmente inter-relacionadas). Assim, pode ser benéfico reduzir a inflamação em pacientes deprimidos com disfunção endotelial e inflamação logo no início, antes da manifestação dos sintomas de doença cardíaca coronariana162. Além disso, em pacientes com depressão e doença cardíaca coronariana concomitantes, o tratamento antidepressivo com inibidores seletivos de recaptação da serotonina melhorou a função endotelial e reduziu os marcadores inflamatórios (IL-6 e proteína C -reativa), além de diminuir os sintomas depressivos 163 . Adendo: Evidência epidemiológica que avalia a ligação entre depressão e doença cardiovascular
Desde os anos de 1980, estudos têm demonstrado que a depressão está associada com doença cardiovascular116-118 • Ela é mais comum em pacientes com doença cardíaca co ronariana do que naqueles sem cardiopatia. É também associada com aumento da mortalidade por qualquer cau-
sa e/ ou eventos cardiovasculares fatais e não fatais em pacientes acometidos por doença cardíaca coronariana preexistente. Isso foi demonstrado em várias revisões sistemáticas e meta-análises, nas quais os riscos relativos para mortalidade por qualquer causa variaram de 1,08 a 6,64 e nas duas meta-análises foram de 2,38 (intervalo de confiança de 95%: 1,76-3,22) e 2,24 (1,37-3,6) 118•164·165 . Por outro lado, nove revisões sistemáticas e duas meta-análises, incluindo mais de 138.807 indivíduos, demonstraram que a depressão está associada com aumento das chances de desenvolver doença cardíaca coronariana em indivíduos saudáveis 118 • Os dois estudos de meta-análise relataram o mesmo risco relativo de 1,64 (intervalo de confiança de 95% = 1,29-2,08 e intervalo de confiança de 1,41 1,90)166·167. Recentemente, um estudo de caso-controle internacional, incluindo mais de 23.000 pacientes, revelou que a depressão é um fator de risco para o desenvolvimento de doença cardíaca coronariana e que a razão de chances era comparável àquela relatada para fatores de risco maiores desse tipo de cardiopatia (razão de chances 1,55; intervalo de confiança 1,42-1,69) 168 . Embora os mecanismos que relacionam depressão e doença cardiovascular não sejam bem compreendidos, estudos têm demonstrado que mecanismos biológicos, comportamentais e sociais podem responder por essa relação. Este capítulo não abordará todo esse assunto, mas enfatizao papel desempenhado pelo eixo HPA (desregulação neuro-hormonal), sistema nervoso autônomo (alteração na variabilidade da frequência cardíaca) e sistema imunológico (inflamação) como fortes colaboradores para essa associação 118 . Depressão e câncer
Pacientes com câncer frequentemente desenvolvem alterações físicas e mentais identificadas por se relacio narem à doença e ao tratamento. Elas incluem sintomas como dor, fadiga, falta de ar, distúrbio do sono, déficit cognitivo, ansiedade, alterações do humor e depressão. Com base em pesquisas clínicas e experimentais, alguns autores admitem a hipótese de que citocinas pró -inflamatórias possam desempenhar papel crucial na fisiopatologia dos sintomas relacionados ao câncer e da depressão relacionada a essa patologia 114·115·169 . Estudos têm demonstrado que a depressão é quatro vezes mais comum em pacientes com cancer que na população geral. Estima-se que as taxas de prevalência estejam em torno de 24%, variando de 1,5 a 50%. Não é uma tarefa fácil determinar a prevalência exata, pois muitos fatores influenciam as taxas de prevalência do câncer, inclusive o tipo de câncer, a gravidade da doença, os medicamentos quimioterápicos, as comorbidades, os fatores ' . genetlcos etc. Fatores psicossociais e biológicos podem contribuir de forma sinérgica para o desenvolvimento de depressão em pacientes com câncer, tais como estresse do diagnóstico, baixa adesão ao tratamento antineoplásico, engaja•
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mento em comportamentos adversos à saúde, nutrição, tratamentos quimioterápicos, metástases cerebrais, distúrbios endocrinológicos e problemas clínico-psiquiátricos subjacentes. Além disso, algumas evidências sugerem que a liberação de citocinas pró -inflamatórias durante dano e destruição teciduais possa estar associada com o desenvolvimento de depressão 115 • Por outro lado, a depressão foi associada com imunossupressão (p. ex., imunidade mediada por células - crítica para proteção contra alguns tumores), o que pode aumentar o risco de câncer em indivíduos suscetíveis e exercer impacto negativo so bre a evolução do câncer 119'170'171 • Contudo, a evidência de depressão como indicador/previsor de câncer ainda é confusa, embora a depressão e os eventos estressantes duran te a vida tenham sido associados com a evolução acele rada da doença119'172' 173 • De fato, estudos conduzidos tanto em animais como em seres humanos revelam que o estresse crônico e a depressão suprimem a imunidade mediada por células mecanismo relevante para defesa contra o câncer4' 119 • De fato, os estudos com animais e seres humanos demonstraram que a supressão da imunidade mediada por células pode acelerar a evolução do tumor. É interessante notar que essa supressão da imunidade mediada por células também está associada com desregulação do ritmo circadiano do eixo hipotálamo -hipófise-adrenal, um achado replicado em subgrupo de pacientes com depressão 4 . Portanto, o desenvolvimento de depressão em pacientes com câncer pode causar não somente angústia significativa e adesão insatisfatória ao tratamento, mas também produzir impacto negativo sobre o sistema imunológico e, consequentemente, sobre a evolução do câncer 11 , 169 . Em suma, as interações bidirecionais entre os sistemas neuroendocrinológico e imunológico podem levar ao aumento da comorbidade por câncer e depressão. Levando -se em conta que a depressão é associada com mau prognóstico e mortalidade elevada em pacientes com câncer174'175 e que alguns tratamentos contra o câncer podem induzir sintomas depressivos (p. ex., alfa-interferon), alguns autores sugerem a administração de terapia antidepressiva profilática em pacientes com câncer tratados com alfa-interferon, a fim de diminuir o risco de desenvolvimento da depressão 176 .
lntetvenções psicológicas: possível impacto sobre o humor e a saúde Um biomarcador indicativo de envelhecimento celular consiste no tamanho e na taxa de encurtamento da região do DNA, chamada telômero. Esses telômeros são moléculas protetoras localizadas na extremidade dos cromossomos, responsáveis por sua estabilidade. Sua manutenção é necessária para promover duplicação celular apropriada e proteger os cromossomos, mas exige a enzima telomerase, que adiciona DNA telomérico a telômeros encurtados, esten-
dendo assim o comprimento do telômero. Estudos demonstraram que o encurtamento do telômero e a atividade mais baixa da telomerase são associados com doença e mortalidade precoce, além de risco elevado, evolução e mortalidade prematura em diferentes tipos de câncer177,178 . Curiosamente, estudos revelaram que o estresse crônico, bem como a depressão, estava associado com telô meros mais curtos 179' 180 . Por outro lado, mudanças positivas no estilo de vida (dieta, exercício, terapias e técnicas de controle do estresse) parecem estar associadas com reversão desse padrão 178 . Há pouco tempo, um estudo demonstrou que o estresse fisiológico agudo aumentava a atividade da telomerase, o que também estava positivamente relacionado a níveis (agudamente) maiores de cortisol e negativamente associado com estresse crônico 177 • Esses achados enfatizam o efeito benéfico do estresse agudo e a consequência nociva do estresse crônico, conforme discussão prévia neste capítulo. A seguir serão brevemente descritos alguns desses fatores comportamentais intervencionistas no estilo de vida e ambientais, que demonstraram ter impacto sobre o estresse pela modulação dos sistemas neuroendocrinológico e imunológico (ou seja, diminuição do eixo HPA hiperativo, do sistema nervoso simpático e da atividade inflamatória).
Abordagem psicoterápica e psiconeuroimunologia: uma ferramenta importante para melhoria da saúde No início dos anos de 1950, pesquisadores da área de psicossomática e observações preliminares por psicanalistas salientaram a importância de fatores psicológicos em desfechos relacionados à saúde, mas tais profissionais não abordaram a disfunção neuroendocrinológica ou imunológica envolvida. Muitos artigos redigidos nesse período estavam buscando associações de vários tipos de câncer com fatores psicológicos e traços de personalidade181. Avanços no campo da psiconeuroimunologia tam bém relacionaram estressares psicológicos e físicos a diversos quadros clínicos, como infecções, doenças inflamatórias/autoimunes e câncer, no contexto de carga aiostática e do impacto exercido por estresse agudo e crônico sobre a função do sistema imunológico 182 . Emoções como medo, ansiedade, raiva e angústia/ aflição são características importantes na evolução de muitas doenças (p. ex., no diagnóstico e tratamento de câncer e infecção por HIV). Emoções negativas e estresse psicológico em si podem predispor o indivíduo a doenças clínicas, por afetar a função do eixo HPA e do sistema imunológico. A dúvida que naturalmente surge é a possibilidade de que intervenções psicoterapêuticas possam modular os estados de saúde e doença, contribuindo para a reversão de disfunção neuroendocrinológica e imunológica.
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A complexidade desse assunto é vista no enorme número de variáveis apresentadas em artigos recentes. Diversas intervenções psicoterapêuticas foram incluídas em protocolos clínicos, como terapia cognitivo-comportamental, controle cognitivo-comportamental do estresse, hipnose, hipnose com a sugestão hipnótica junto ao sistema imunológico (p. ex, a hipnose é aplicada imediatamente antes da indução de hipnose com sugestão hipnótica de resposta não imune), meditação, visualização, relaxamento sistemático, biofeedback", yoga, intervenção de divulgação (p. ex., os participantes escrevem ou falam sobre alguma experiência estressante não abordada ainda de forma extensiva com outros) etc. As avaliações imunológicas incluíram: parâmetros da resposta imune humoral e celular, como contagem de células T CD4+, resposta proliferativa de linfócitos aos mitógenos fito -hemaglutinina (PHA) e concanavalina A (Con A), níveis de imunoglobulina, título de anticorpos contra herpes-vírus, títulos contra o vírus de Epstein-Barr, linfócitos Th, linfócitos Te, produção de IL-2, fator de necrose tumoral-alfa (TNF-a), gamainterferon (IFN-y) e outros. Os perfis hormonais avaliados compreenderam: eixo HPA (cortisol) e ativação simpática (catecolaminas), além de outros hormônios, como melatonina, deidroepiandros tenediona (DHEA) e hormônio de crescimento (GH). A promoção de mudanças no estilo de vida abrangeu interrupção do tabagismo, dieta, exercício etc. Por fim, essas medidas foram avaliadas não só em indivíduos saudáveis, mas também em pacientes com câncer de mama, HIV, infecção, artrite reumatoide e síndrome do pânico. Alguns desses estudos estão resumidos neste capítulo. O impacto das intervenções psicoterapêuticas sobre os sistemas neuroendocrinológico e imunológico foi avaliado em uma meta-análise que incluiu 59 ensaios, com 2.135 participantes que fizeram uso de diferentes técnicas psicoterapêuticas, como controle do estresse, relaxamento, intervenção de divulgação, hipnose com sugestão hipnótica junto ao sistema imunológico e intervenções condicionantes183 . Esse estudo revelou apenas um impacto modesto sobre a imunomodulação, especificamente em participantes submetidos aos ensaios de hipnose e condicionamento. Uma revisão recente conduzida para avaliação do impacto de práticas cognitivo-comportamentais contidas na tradição indo -tibetana (p. ex., hipnose, meditação, visualização, relaxamento sistemático) sobre o sistema imunológico demonstrou um impacto significativo sobre os sistemas protetores e reguladores do corpo, sugerindo efeitos anti-inflamatório, antiestresse e antioxidante. Reduções nas citocinas pró-inflamatórias TNF-a, IL-2 e IFN-y, bem como atenuação nas respostas inflamatórias a uma série de antígenos e alérgenos, foram associadas a ** Técnica baseada no controle de impulsos naturais do corpo de forma voluntária e consciente, com a ajuda de terapeuta.
meditação e práticas semelhantes (auto-hipnose, relaxamento sistemático, imaginação guiada) 184. Além disso, estudos com enfoque sobre pacientes com câncer de mama ou infecção por HIV submetidos a intervenções psicoterápicas revelaram resultados promissores. O diagnóstico e o tratamento do câncer de mama constituem eventos estressantes bem conhecidos. Estudos demonstraram que o controle cognitivo-comportamental do estresse em pacientes com diagnóstico de câncer de mama leva a adaptações psicossocial (menos sintomas de ansiedade específica do câncer relatada pelo paciente e ansiedade classificada pelo entrevistador) e fisiológica (nível mais baixo de cortisol, níveis maiores de citocinas Thl) mais satisfatórias185. Recentemente, uma meta-análise que avaliou as intervenções cognitivo-comportamentais em pacientes HIV-positivos demonstrou melhora dos sintomas de depressão e ansiedade, bem como redução dos sentimentos de raiva/ira e estresse. Contudo, observou-se um impacto limitado sobre a contagem das células T CD4+186 . Em suma, apesar do volume crescente de dados que apoiam a hipótese do papel desempenhado pela emoção (ou controle emocional) sobre a saúde por meio de modulação das vias neuroendocrinológica e imunológica, os estudos conduzidos para avaliação do impacto exercido pela psicoterapia sobre a função imune ainda precisam solucionar desafios metodológicos importantes a fim de revelar as vias biológicas por meio das quais a psicoterapia melhora a qualidade de vida e a saúde.
Os efeitos benéficos da música Foram observados efeitos benéficos da musicoterapia para o tratamento de depressão, mas a solidez das condusões foi limitada pelo modelo dos estudos e/ou tamanho da amostra. Em uma revisão recente chamada Cochrane Coliaboration Systematic Review (Revisão Sistemática de Colaboração Cochrane), foram identificados 16 estudos potencialmente relevantes, mas apenas cinco deles foram eleitos para inclusão com base no rigor metodológico817. Dos estudos incluídos, quatro indivíduos envolvidos ouviam música 187-191 , mas apenas o estudo de Hanser 191 solicitou que os indivíduos ouvissem música individualmente. Os estudos remanescentes 188-190 empregaram sessões de audição em grupo. Com o objetivo de fornecer evidências adicionais sobre o efeito potencial da musicoterapia no tratamento de depressão leve a moderada, Brandes et al. 192 conduziram um ensaio-piloto, randomizado e controlado por placebo de duas formas de musicoterapia receptiva para adultos com depressão moderada. A resposta terapêutica na depressão foi definida como uma redução maior que 50% nos sintomas depressivos, conforme avaliação por instrumentos padronizados como HAM-D (Hamilton Rating Scale for Depression) 19 • Brandes et al. 192 relataram, em média, uma redução superior a 60% nos escores de HAM-D entre os indivíduos que participaram de suas condições de musicote-
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rapia receptiva. Esses achados sugerem que a musicoterapia receptiva no curto prazo pode ser benéfica como tratamento complementar para depressão moderada.
Metodologias não invasivas e novas para acesso à resposta ao estresse A mensuração de hormônios, citocinas e substâncias neuroativas frequentemente representa um problema para clínicos e pesquisadores pela necessidade de coleta de sangue ou realização de exames invasivos. As metodologias não invasivas e ambulatoriais de coleta de biomarcadores podem superar as várias limitações intrínsecas aos métodos invasivos, como redução do estresse deflagrado pela coleta de sangue em si e possibilidade de aplicação mais ampla no campo e na comunidade. Por fim, a avaliação simultânea dos sistemas neural e imunológico com técnicas não invasivas pode ajudar a elucidar as interações subjacentes desses sistemas e o papel desempenhado por eles na suscetibilidade a doenças e evolução de transtornos relacionados ao estresse. A seguir serão brevemente descritos os métodos não invasivos para avaliar o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, o sistema nervoso autônomo e o sistema imunológico pela coleta de suor e saliva, bem como a mensuração da variabilidade da fre quência cardíaca 193 •
Avaliação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal: cortisol salivar Como o eixo HPA é um sistema de feedback dinâmico autorregulado e o cortisol é secretado de forma pulsátil, mensurações pontuais isoladas e únicas do cortisol não podem ser interpretadas em termos de função do eixo mencionado. Uma avaliação adequada da função do eixo HPA requer amostragem seriada múltipla (para avaliar a atividade basal e os perfis circadianos) ou teste dinâmico, utilizando desafios farmacológicos ou psicológicos (para avaliar a reatividade/sensibilidade do feedback). Mais recentemente, a resposta do cortisol salivar ao acordar recebeu considerável atenção científica e demonstrou ser sensível para detectar desregulação do eixo HPA relacionada aos estados de estresse e doença 194 . Contudo, talvez haja necessidade de várias mensurações diárias para avaliar, de forma ideal, a resposta do cortisol salivar ao acordar 195 . Quando coletado no contexto de tais protocolos de amostragem, o cortisol pode ser fidedignamente mensurado na saliva como índice da função do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal 196• A maior parte do cortisol circulante encontra-se ligada à globulina ligadora de corticosteroide, o que inativa as ações biológicas do cortisol. Apenas a fração livre do cortisol é biologicamente ativa e pode se ligar aos receptores de glicocorticoides para influenciar a expressão gênica e a síntese proteica. Na saliva, pode ser mensura-
da somente a fração livre do cortisol. Foi demonstrado que as mensurações de cortisollivre na saliva refletem de forma confiável a quantidade de cortisollivre circulante na corrente sanguínea196. Em estudos com enfoque sobre as ações do cortisol nos sistemas-alvo, é vantajoso mensurar a fração livre e biologicamente ativa do cortisol. No entanto, para estudos interessados na avaliação da produção total de cortisol pela glândula adrenal ou nas relações de cortisolligado:livre e na atividade da globulina ligadora de corticosteroide, há necessidade de mensurações sanguíneas. Essas diferenças devem ser obrigatoriamente consideradas ao se interpretar os dados obtidos em estudos do cortisol salivar.
Avaliação do sistema nervoso autônomo: alfa-amilase salivar e variabilidade da frequência cardíaca Como a transferência de norepinefrina do sangue para a saliva leva cerca de 1 hora 197 (muito tempo para a avaliação precisa de alterações induzidas pelo estresse), a alfaamilase salivar, uma enzima digestiva, tornou-se um biomarcador emergente para o estresse como indicador da atividade do sistema nervoso simpático. Tanto os ramos simpáticos como parassimpáticos do sistema nervoso autônomo inervam as glândulas salivares, local onde a estimulação do sistema nervoso simpático eleva a secreção de proteína e a estimulação do sistema nervoso parassimpático aumenta a velocidade do fluxo salivar 198 . Repetidas vezes, foi constatado que a alfa-amilase salivar aumenta em resposta ao estresse ou exercício físico, bem como ao estresse psicológico, e também se correlaciona com as respostas plasmáticas da norepinefrina aos mesmos estressares (embora em um grau menor ao estresse psicossocial) 199. A concentração da alfa-amilase salivar também pode servir como índice de desregulação patológica do sistema nervoso autônomo em condições clínicas e subclínicas específicas, como transtornos de ansiedade e transtornos somáticos 199. Uma importante advertência para a mensuração da alfa-amilase salivar é que, na presença de estresse e ativação do sistema nervoso simpático, o sistema nervoso parassimpático é inibido, o que leva à redução na velocidade do fluxo salivar e, consequentemente, na pro dução de saliva. Por essa razão, os aumentos na alfa-amilase salivar induzidos pelo estresse podem ser confundidos com declínios paralelos no volume salivar, que aumentam a concentração dessa enzima. A avaliação do sistema nervoso autônomo também pode ser realizada de forma não invasiva pela mensuração da variabilidade da frequência cardíaca. O coração está sob controle tônico por influências parassimpáticas. A frequência cardíaca é caracterizada por variabilidade entre os batimentos, o que também implica predomínio vagai, pois a influência simpática sobre o coração é muito lenta para produzir variabilidade rápida entre os bati-
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mentos. A variabilidade da frequência cardíaca é uma expressão que descreve as variações tanto da frequência cardíaca instantânea como do intervalo entre batimentos consecutivos. Uma variação circadiana proeminente na variabilidade da frequência cardíaca, com aumentos significativos durante a noite e declínios expressivos durante o dia, é observada em indivíduos saudáveis. Estudos prévios demonstraram que esse aumento na variabilidade da frequência cardíaca à noite é embotado por estresse agudo e que a redução na variabilidade da frequência cardíaca está associada com cortisol urinário noturno elevado e citocinas pró-inflamatórias/proteínas de fase aguda elevadas 200 • A variabilidade da frequência cardíaca diminuída, indicativa de tônus parassimpático/vagal reduzido, constitui fator de risco independente em termos de morbidade e mortalidade. Os dados básicos para o cálculo de todas as medidas de variabilidade da frequência cardíaca consistem na sequência de intervalos de tempo entre os batimentos cardíacos. Essa série de intervalos é utilizada para calcular a variabilidade no momento do batimento cardíaco. O coração é duplamente inervado pelo sistema nervoso autônomo, de tal modo que aumentos relativos nas atividades simpática e parassimpática são associados, respectivamente, com elevações e declínios da frequência cardíaca. Dessa forma, os aumentos relativos da atividade simpática fazem com que o tempo entre os batimentos cardíacos (o intervalo entre os batimentos) fique mais curto, enquanto os incrementos relativos da atividade parassimpática tornam o intervalo entre os batimentos mais longo. As influências parassimpáticas são difundidas sobre a faixa de frequência do espectro de potência da frequência cardíaca, ao passo que as influências simpáticas "se desenrolam'' em torno de 0,15 hertz. Portanto, a variabilidade da frequência cardíaca de alta frequência representa principalmente as influências parassimpáticas com frequências mais baixas (abaixo de -0,15 Hz), apresentando um misto de influências autônomas simpáticas e parassimpáticas. Os efeitos diferenciais do sistema nervoso autônomo sobre o nó sinoatrial e, consequentemente, sobre a sincronização dos batimentos cardíacos, devem-se aos efeitos diferenciais dos neurotransmissores nos sistemas nervosos simpático (noradrenalina) e parassimpático (acetilcolina). Os efeitos simpáticos são lentos, na escala de tempo em segundos, enquanto os efeitos parassimpáticos são rápidos, na escala de tempo em milissegundos. Por essa razão, as influências parassimpáticas são as únicas capazes de produzir alterações rápidas na sincronização entre os batimentos do coração. Medidas da variabilidade da frequência cardíaca
Uma variedade de medidas foi usada para operacionalizar a variabilidade da frequência cardíaca. Foram utilizadas, sem exceção, medidas no longo prazo (como o desvio -padrão de todos os intervalos entre os batimentos em 24 horas), medidas no curto prazo (como odes-
vio-padrão de intervalos de cinco minutos) e medidas entre os batimentos (como a raiz quadrada da média das diferenças sucessivas entre intervalos R-R). A arritmia sinusal respiratória constitui outra medida, sendo definida como a alteração no período cardíaco correspondente com as fases inspiratória e expiratória do ciclo respiratório. Além disso, a análise espectral de potência da série de intervalos de tempo entre os batimentos é frequentemente empregada para quantificar a variabilidade da frequência cardíaca. O espectro de potência da série temporal no curto prazo contém dois componentes importantes, um componente de frequência alta (O, 15-0,40 Hz) e outro de frequência baixa (0,01 -0,15 Hz), refletindo as influências vagais cardíacas e o misto de influências vagais/simpáticas, respectivamente. A arritmia sinusal respiratória, a RMSSD e o componente de alta frequência do espectro de potência estão estritamente relacionados, mas todos refletem influência cardíaca vagai. Mais recentemente, empregaram-se medidas derivadas de dinâmicas não lineares para descrever aspectos da variabilidade da frequência cardíaca. Uma dessas medidas consiste na entropia aproximada (ApEn), que quantifica a complexidade ou a irregularidade dos dados em uma série temporal. Esse e outros parâmetros derivados de "caos" mostraram-se valiosos na área de patologia cardiovascular, por exemplo, para discriminar grupos de pacientes cardíacos em relação à dinâmica de seu sistema cardiovascular.
Avaliação neuroimunológica de biomarcador: adesivos cutâneos para coleta de suor Outra abordagem não invasiva e não estressante para avaliar os sistemas neural e imunológico consiste na coleta de suor. Recentemente, nosso grupo validou uma metodologia para avaliação simultânea de amplo conjunto de biomarcadores neurais e imunológicos no suor, coletado por meio de adesivos cutâneos e mensurado por cromatografia de imunoafinidade por reciclagem (RIC) acoplada com fluorescência induzida por laser20 1. O adesivo cutâneo para coleta de suor está disponível no mercado nos Estados Unidos, além de ser aprovado pela FDA. É facilmente aplicado em qualquer hora do dia e pode ser usado por período prolongado com mínimo desconforto. Além disso, como a coleta do suor é feita durante um período de 24 horas, em vez de uma única coleta pontual, o uso desse adesivo pode superar a variabilidade circadiana exibida por analitos de interesse. A metodologia da cromatografia de imunoafinidade por reciclagem foi desenvolvida pelo Dr. Terry Phillips do George Washington University Medicai, sendo utilizada para mensurar as citocinas no plasma e nas secreções cervicais uterinas202- 205 , no sangue do cordão umbilical e no soro pós-natal de recém-nascidos206 e, mais recentemente, no suor e no plasma de mulheres saudáveis na fase de prémenopausa e mulheres com depressão 201 •207 • Em poucas
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palavras, os analitos do suor são extraídos (a vácuo) do adesivo, o conteúdo de proteína é normalizado antes da aplicação do extrato em um sistema de ordenação da coluna de imunoafinidade e os resultados são verificados pelo sequenciamento por espectrometria de massa (MS, mass spectrometry) e pela ionização/dessorção de matriz assistida por laser - tempo de voo (MALDI-TOF, matrix assisted laser desorption/ionization time-of-flight). A cromatografia de imunoafinidade por reciclagem é um sistema de anticorpo isolado que usa um conjunto de colunas de imunoafinidade por cromatografia líquida de alto desempenho em série, sendo cada coluna imunoespecífica para algum analito fluorescente marcado como alvo202 • A vantagem dessa metodologia é que ela é altamente sensível e específica, além de permitir mensurações de um número muito maior de analitos por unidade de líquido em comparação ao detectável com outros métodos. Além disso, os volumes-minuto do líquido podem ser analisados (p. ex., há necessidade de um volume de amostra de apenas 25 microlitros). Uma desvantagem da tecnologia de RIC está no fato de ser um método trabalhoso e, portanto, não é facilmente aplicável no ambiente clínico-laboratorial, embora novos desenvolvimentos em RIC à base de chip estejam aperfeiçoando essa circunstância pela automação do sistema e necessidade de amostras menores. Os estudos estão em andamento para validar outras metodologias mais acessíveis do ponto de vista clínico, dotadas de alta taxa de transferência e sensíveis para quantificação de analitos. Com a aplicação dessa metodologia, demonstra-se que os níveis de biomarcadores neuroimunes no suor estão fortemente correlacionados com os níveis plasmáticos em um grupo de controles saudáveis201 e outro grupo de pacientes com transtorno depressivo maior basicamente em remissão 207 • Além disso, verificou-se que mulheres com transtorno depressivo maior, até mesmo em remissão clínica, exibiam níveis mais altos de citocinas pró -inflamatórias, bem como neuropeptídeos simpáticos (NPY [neuropeptídeo Y]) e sensoriais (substância P e CGRP [peptídeo relacionado ao gene da calcitonina]), mas níveis reduzidos de neuropeptídeos parassimpáticos (VIP [peptídeo intestinal vasoativo]) no plasma e no suor, em comparação com controles saudáveis. Esse padrão é compatível com alteração no transtorno depressivo maior (de tônus parassimpático para simpático) e com algum estado pró-inflamatório subjacente que pode responder pelo aumento na suscetibilidade a comorbidades sabidamente expressas com transtorno depressivo maior, como osteoporose, diabetes e doença cardiovascular. Além disso, os níveis de biomarcadores neuroimunes correlacionavamse fortemente com sintomas de depressão e ansiedade, sugerindo que a gravidade dos sintomas (e não a classificação da doença em si) pode estar relacionada a essas desregulações na expressão de biomarcadores. Por fim, essas metodologias não invasivas podem fornecer uma espécie de "assinatura molecular" para sub-
tipos clínicos dentro de algum distúrbio heterogêneo, a ser utilizada para fins diagnósticos e prognósticos; para permitir intervenção mais precoce em condições assintomáticas; para otimizar regimes terapêuticos individualizados; para monitorar o paciente em áreas remotas (ou seja, distantes) ou em pesquisas epidemiológicas de gran de escala; para monitorar os pacientes para os quais metodologias invasivas são impraticáveis, sobretudo populações vulneráveis, incluindo gestantes, bebês, crianças e idosos; e para esclarecer os mecanismos subjacentes a vulnerabilidade ou recuperação individual ao desenvolvimento de doenças/ distúrbios relacionados ao estresse.
Considerações finais Pesquisas na área de psiconeuroimunologia têm ajudado a elucidar as interações bidirecionais entre os sistemas nervoso, endocrinológico e imunológico. Estudos têm demonstrado que, em virtude dessa rede complexa de interações, o estresse pode influenciar o sistema imunológico e, inversamente, esse sistema pode alterar o comportamento e as emoções. O principal papel biológico de resposta ao estresse agudo é promover a sobrevida, ativando o sistema neuroendocrinológico (eixo HPA e sistema nervoso simpático) e preparando o sistema imunológico para desafios em potencial. Contudo, o estresse crônico pode se tornar deletério se o sistema imunológico permanecer hiperativado ou quando esse sistema fica suprimido. A desregulação dos sistemas neuroendocrinológicos de resposta ao estresse está associada não somente com hiperativação do sistema imunológico, desempenhando papel na deflagração e exacerbação de doenças autoimunes e inflamatórias, mas também com supressão do sistema imunológico, aumentando a suscetibilidade a infecções e câncer. Estudos identificaram muitos fatores biológicos e psico lógicos envolvidos nesse processo aparentemente paradoxal e ainda esclareceram os diferentes mecanismos associados com doença induzida por estresse e saúde. Volumes crescentes de dados sugerem que as respostas inflamatórias inatas desempenham papel importante na fisiopatologia da depressão. De fato, estudos demonstraram que a ativação do sistema imunológico com pro dução de citocinas pró-inflamatórias causa o que é co nhecido como comportamento de enfermidade e pode estar associada com o desenvolvimento de sintomas depressivos/depressão em indivíduos vulneráveis. Além disso, estudos recentes também revelaram que a função das células T (imunidade adaptativa) também pode exercer impacto significativo sobre a recuperação do estresse e a depressão por meio de sub -regulação das respostas inflamatórias crônicas. Deve-se notar que fatores psicogênicos e imunológicos indutores de estresse podem levar a alterações similares do sistema neuroendocrinológico e de neurotransmissores, bem como comprometimento da
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expressão de fator de crescimento que inibe a neuroplasticidade, sensibilizando com isso o cérebro a subsequentes estressares. Por meio desses mecanismos sobrejacentes, os estresses psicogênico e imunológico podem atuar de forma sinérgica de modo a induzir a um est ado de vulnerabilidade elevada ao estresse e sintomatologia depres. SlVa.
Em suma, foi demonstrado que essa rede neuro-endócrino-imunológica complexa tem seu papel na fisio patologia de transtornos psiquiátricos e transtornos relacionados ao estresse, bem como na associação entre transtornos psiquiátricos e doenças clínicas, como do ença cardiovascular, distúrbios autoimunes e câncer. Além disso, a melhor compreensão de como o sistema imunológico interage com vias fisiopatológicas relevantes aos transtornos psiquiátricos (como depressão) abriu novos horizontes para terapias direcionadas a esse sistema como alvo. Ademais, como foi demonstrado que o estresse exerce influência importante na saúde, as intervenções comportamentais (p. ex., psicoterapia, música e mudanças no estilo de vida) capazes de ajudar a reduzir o impacto imposto pelo estresse são ferramentas importantes, que devem ser aplicadas para promover a saúde. Basicamente, essas intervenções podem contribuir para um estilo de vida mais saudável, levando a efeitos significativos sobre a saúde física e mental. Por fim, o u so de metodologias não invasivas para avaliar os sistemas neuroendocrinológicos e imunológi co esclarecerá de forma mais eficiente os mecanismos de base de transtornos relacionados ao estresse e transtornos psiquiátricos. Isso pode levar à descoberta de novos rumos terapêuticos que finalmente ajudarão a reduzir o sofrimento dos pacientes. Agradecimentos: Dr. Terry M. Phillps e Sra. Estela Marques.
Minicaso clínico Paciente do sexo masculino. branco. 70 anos. casado, bancário, natural e procedente de São Paulo. Procurou o pronto-socorro do hospital com queixa de jato urinário fraco progressivo há um ano. associado a disú ria. polaciúria e hematúria. Foi ao hospital por apresentar quadro de dor há dois meses na coluna lombar. de forte intensidade, em aperto. constante. sem fatores de melhora e que piorava ao se deitar. No atendimento, negava fraturas ósseas recentes e relatava emagrecimento de 1Okg nos últimos seis meses. Tinha histórico de tabag ismo (75 maços/ano). negou etilismo. referiu alimentação com dieta hipercalórica e hiperlipídica e sedentarismo. Referiu história de hipertensão arterial sistêmica há dez anos. sem outras comorbidades ou cirurgias prévias e sem outras queixas de outros sistemas. Relatou falecimento do pai aos 60 anos por câncer de próstata. Ao exame físico. apresentava-se em estado geral regular. descorado 2+/4+. hidratado, acianótico. anictérico. afebril, taquipneico e com humor depressivo . Referia dor de forte intensidade à palpação da coluna vertebral. Ao toque
retal. a próstata encontrava-se endurecida e com limites imprecisos. O restante do exame físico não teve alterações. Posteriormente o paciente foi internado na enfermaria da clínica médica do hospital para investigação cl ínica e laboratorial. Foi diagnosticado câncer de próstata com metástase óssea. permanecendo internado por quatro semanas. durante as quais evoluiu com piora dos sintomas depressivos. principalmente após receber o diagnóstico. O quadro depressivo foi caracterizado por humor depressivo. afeto hipotônico. hipotímico e hiporressoante, presença de anedonia, fadiga, apatia. atitude reservada e discurso lentificado, empobrecido e monossilábico. Atenção espontânea diminuída e voluntária sem alteração. com lentificação psicomotora e sem alteração de memória. Mantinha quadro de anorexia e alteração do sono. caracterizada por insônia (dificuldade para iniciar o sono. sono entrecortado e despertar precoce). Negava ideação suicida ou sentimentos de culpa. Os familiares relataram que. nos últimos meses. o paciente já apresentava alteração de comportamento. caracterizado por tristeza. isolamento. falta de iniciativa, cansaço intenso, anorexia. perda de peso e insônia. Durante a internação. estava em uso das seguintes medicações: heparina 5.000 U 8/8 h SC; hidroclorotiazida 25 mg 1xd VO; captopril 25 mg 12/12 h VO; morfina 30 mg 6/6 h VO; morfina 15 mg + SF 0,9% 5 ml EV s/n e metoclopramida 5 mg 8/8h s/n. Durante a internação. o grupo clínico decidiu pelo não tratamento do quadro depressivo e. portanto. não foi realizada interconsulta da psiquiatria. A decisão baseou-se no fato de que o paciente estava em uso de muitas medicações e de possível quadro reacional ao diagnóstico de câncer. não sendo necessário o tratamento da depressão. O paciente permaneceu internado por mais algumas semanas. evoluindo com piora do quadro clínico e óbito.
Discussão 1. Diagnóstico diferencial entre episódio depressivo maior e transtorno de ajustamento com humor depressivo. 2. Diagnóstico diferencial entre transtorno depressivo maior e transtorno do humor decorrente de causa orgânica. como episódio tipo depressivo relacionado ao câncer. 3. Dificuldade de diferenciar entre sintomas relacionados ao câncer e depressão. 4. Falta de integração entre clín ica médica e psiquiatria.
Esse caso caracteriza a importância do diagnóstico de depressão associado ao câncer. Pri meiramente destaca-se a importância de diferenciar o episódio depressivo maior (EDM) e a reação de ajustamento decorrente de um fator estressar psicossocial. Nesse relato. apesar de o paciente apresentar sintomas e tempo suficiente para caracterizar episódio depressivo maior. o diagnóstico não foi realizado em razão da comorbidade com câncer. O segundo aspecto relevante sobre essa situação é o diferencial entre EDM e transtorno do humor decorrente de causa clínica - nesse caso. a condição clínica deve estar presente e ser responsável diretamente pela causa do transtorno do humor. contrastando com o fato de ser causado pelo estresse psicológ ico do diagnóstico per si. É importante ressaltar a dificuldade e subjeti-
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vidade intrínseca nesse tipo de diagnóstico. o que pode levar, como ocorreu nesse caso. a uma falha diagnóstica e a um pior prognóstico do paciente. Além do mais, algumas condições clínicas. como hipotireoidismo e câncer de pâncreas. estão já comprovadamente associadas a quadros depressivos. Porém. baseando-se nos estudos relatados neste capítulo. outras doenças clínicas. como doença cardiovascular, doenças autoimunes e câncer também podem compartilhar semelhantes mecanismos fisiopatológicos e. consequentemente. o desenvolvimento de uma dessas doenças pode corroborar para o desenvolvimento de outra (câncer-depressão ou depressão-câncer) . Além do mais. como relatado, pacientes com câncer frequentemente desenvolvem sintomas físicos e psíquicos relacionados e/ ou causados pela própria doença per si ou pelo tratamento do câncer. como alterações cognitivas. ansiedade, alteração do hu mor. fadiga e depressão. Com base em estudos clínicos e experimentais. alguns autores sugerem que as citocinas pró-inflamatórias podem exercer papel importante na fisiopatologia dos sintomas relacionados ao câncer e no quadro depressivo associado ao câncer. Estudos também vêm demonstrando que depressão e estresse crônico pioram a evolução e o prognóstico dos pacientes com câncer. Esses fatores ressaltam a importância de diagnosticar e tratar quadros depressivos relacionados a essa patologia. Por fim. ressalta-se a importância da integração entre diferentes especialidades. o que definitivamente pode contribuir para a realização de diagnósticos cada vez mais precisos e com isso colaborar para a melhora da evolução e da qualidade de vida dos pacientes.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 2
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Seção 3 •
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em1o o 1a ao • nóstico em SI uiatria Editor: Táki Athanássios Cordás
23. Sistema de Classificação - Diagnóstico em Psiquiatria, 282 24. Anamnese Psiquiátrica na Infância e Adolescência, 295 25. Anamnese Psiquiátrica no Adulto, 308 26. Anamnese Psiquiátrica no Idoso, 323 27. Avaliação Neuropsicológica, 333 28. Exames Laboratoriais, Marcadores Genéticos e Biomarcadores Humorais, 347 29. Exames de Imagem Cerebral, 361 30. Nosologia dos Fenótipos Prodrômicos, Pré-mórbidos e Endofenótipos, 368 31. Avaliação da Personalidade, 376 32. Avaliação do Sono, 392 33. Avaliação da Sexualidade no Ciclo de Vida, 400 34. Saúde da Mulher, 422 35. O Papel da Eletrencefalografia Quantitativa nos Transtornos Neurológicos e Psiquiátricos, 438
Iniciando esta seção, Yuan-Pang Wang e Laura de Andrade introduzem a discussão sobre os sistemas de classificação e sobre o processo de diagnóstico, base e instrumento para o adequado planejamento terapêutico. O capítulo aborda não apenas questões pragmáticas, mas também, por meio da história das classificações em psiquiatria, apresenta as questões conflitantes e as perspectivas futuras. Posteriormente Ênio Andrade e Miguel Boarati contemplam os pontos-chave da anamnese psiquiátrica na infância e adolescência, atentando para as particularidades das técnicas de abordagem nessa faixa etária. Débora Bassitt, Camila Pedro e Fábio Armentano destacam o papel fundamental das informações familiares e principalmente da paciência médica quando da anamnese com idosos. Os déficits cognitivos são destacados como de grande relevância nessas situações. A avaliação neuropsicológica desempenha hoje papel de grande relevância prática e teórica dentro das neurociências e seu uso no estabelecimento do diagnóstico e prognóstico é destacado por Fuentes, Andrade e Biase. Os exames laboratoriais para suporte do diagnóstico diferencial e monitoramento de segurança do uso de psicofármacos além da importância presente e potencial futuro dos biomarcadores humorais no diagnóstico dos transtornos psiquiátricos são destacados no Capítulo 28. Breno Satler et al. oferecem um capítulo robusto onde destacam que o papel dos fatores genéticos destacados de maneira bastante detalhada devem ser sempre entendidos em interação com os aspectos ambientais do indivíduo. Zanetti, Ferraz Alves e Geraldo Busatto discorrem sobre as indicações para a solicitação de um exame de imagem cerebral, a tecnologia envolvida e o desenvolvimento de novos modelos.
Os autores não se furtam a destacar o campo amplo que se descortina com o uso das técnicas de neuroimagem na pesquisa dos aspectos etiopatológicos dos transtornos . ., . ps1qmatncos. Fontenelle discorre sobre os limites diagnósticos entre os aspectos prodrômicos, as personalidades pré-morbidas, os endofenóticos e seus papéis na instação dos transtornos psiquiátricos. O capítulo mescla a modernidade dos conceitos e de suas explorações com uma robusta revisão dos aspectos históricos psicopatológicos. No Capítulo 31, Antonio de Pádua Serafim revê os diferentes modelos teóricos sobre o conceito de personalidade e a partir disso introduz os principais instrumentos de avaliação em uso. No Capítulo 32, escrito por Stella Tavares e Rosa Hasan, as autoras, para salientar a importância do tema, relembram os aforismos de Hipócrates: "A doença existe, quando o sono ou vigília são excessivos" logo no início de seu capítulo. Na avaliação do sono, os diários de sono, as medidas subjetivas e objetivas traçam um perfil abrangente desse importante parâmetro fisiológico. A sexualidade normal, as parafilias, as disfunções sexuais e os transtornos da identidade sexual além da necessária delicadeza da anamnese do indivíduo e do casal (quando for o caso) para o planejamento terapêutico, são os temas do Capítulo 33 de Carmita Abdo. Joel Rennó, Renata Camacho e Hewdy Ribeiro traçam um panorama das principais diferenças nos transtornos psiquiátricos em mulheres. Os autores abordam as principais síndromes psiquiátricas, os aspectos psiquiátricos do ciclo gravídico puerperal e as perspectivas futuras de classificação, em particular, no DSMV
Sistema de Classificação Diagnóstico em Psiquiatria Yua n-Pang Wang Lau ra Helena Silveira Guerra de Andrade
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 282 Histórico de classificação em psiquiatria, 283
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Como se faz diagnóstico em psiquiatria?, 283 Definições de terminologia e classificação, 284 Tipos de classificação, 286 Classificação hierárquica ou vertical, 286 Classificação multiaxial ou horizontal. 286 Classificação circumplexa, 286 Classificação categoria! e dimensional, 287 Classificações modernas, 287 Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados de Saúde (CID), 288 Diagnostic and Statistical Manual o f Mental Disorders (DSM). 288
1. Compreender a importância de um diagnóstico psiquiátrico. 2. Conhecer os principais métodos de avaliação diagnóstica em psiquiatria. 3. Aplicar os princípios gerais de classificação em psiquiatria. 4. Conhecer os principais tipos de classificação em psiquiatria.
5. Aprofundar os principais problemas da atual classificação
psiquiátrica.
6. Conhecer os sistemas modernos de classificação: CI D- 1O e DSM-IV. Z Discutir as principais metas do novo DSM-V.
A validade do diagnóstico psiquiátrico, 289 Problemas de classificação da doença mental, 291 Tendências futuras, 293 Questões, 293 Referências bibliográficas, 294
Introdução Toda vez que o clínico classifica um paciente e atribui um nome para o seu transtorno mental, ocorre um processo de diagnóstico do seu problema, para que um tratamento adequado lhe seja recomendado. Esse ato é uma etapa imprescindível do trabalho clínico, pois é por meio dele que o médico desenvolve um raciocínio lógico sobre as causas e os motivos do estado alterado do paciente, sendo formulados modos eficazes de reduzir, controlar ou erradicar o problema detectado. A classificação e o diagnóstico de uma patologia ocorrem em todas as áreas médicas. Isso não é diferente em Psiquiatria. A importância do diagnóstico não se restringe às práticas clínicas de saúde em que há envolvimento do paciente. Podem -se sentir os seus efeitos em várias áreas relacio-
nadas. É por meio do diagnóstico recebido por um paciente que as companhias de seguro determinam quais são as condições que devem receber tratamento, serem pagas ou reembolsadas. As agências de fomento à pesquisa, por sua vez, indicam quais investigações científicas sobre determinados transtornos devem ser financiadas. As indústrias farmacêuticas moldam os seus ensaios clínicos apoiados nos diagnósticos. E, finalmente, os legisladores determinam os orçamentos de saúde e os formuladores de políticas públicas de saúde são informados sobre as áreas que devem ser priorizadas com investimentos e verbas. Os procedimentos de classificação e rotulação de uma dada condição em Psiquiatria são indissociáveis às suas consequências, posto que um diagnóstico sempre influencia a prática clínica. De acordo com um antigo ditado chinês: "O início da sabedoria é chamar as coisas pelo seu nome correto:' Este adágio foi comparado por Paul McHugh 1 aos esforços históricos da construção do DSMIII. Ainda, esta argumentação pode ser complementada pela observação do célebre taxonomista Carl Linnaeus
23 SISTEMA DE CLASSIFICAÇÃO -DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
( 1707 - 1778): "If you do not know the name o f things, the knowledge o f them is lost too" 2 . Portanto, classificar em Psiquiatria parece inescapáveP. Entretanto, como o ato de diagnosticar é imprescindível à prática clínica - um terreno em que interesses variados determinam esse ofício - , os debates sobre este procedimento são repletos de posições controversas. O processo de diagnóstico e a classificação em Psiquiatria são discutidos neste capítulo sob os aspectos pragmáticos de modus operandi de se chegar ao diagnóstico e como podem ser agrupados os transtornos mentais sob um sistema de classificação útil que reflita a realidade. Revemos a história e os conceitos importantes das classificações e do diagnóstico em Psiquiatria, as principais classificações nosológicas em uso corrente, para apontar os problemas clínicos no cenário atual, bem como as propostas e perspectivas de alterações nas novas classificações.
Histórico de classificação em psiquiatria Ordenar sistematicamente as doenças por meio de princípios científicos permite identificar quais são os casos que devem receber tratamento, a sua resposta terapêutica, bem como o seu desfecho clínico. Tentativas de catalogar os comportamentais alterados datam dos tempos gregos na Antiguidade, mas uma classificação sistemática das doenças mentais só teve início na taxonomia do século XVIII, impulsionado pelos trabalhos de Carl Linneaus na taxonomia botânica2 • Tradicionalmente, os quadros mentais eram descritos no século XVIII como entidades categoriais homogêneas (ou monotéticas), apresentando características particulares que devem estar invariavelmente presentes em todos os quadros. Com a descrição da paralisia geral progressiva (PGP) em 1822, Bayle uniu, em diferentes estágios evolutivos da aracnoidite crônica, as três síndromes clássicas de Pinel (monomania, mania e demência). Inicialmente recusado pela comunidade acadêmica do século XIX, esse trabalho de Bayle foi logo aclamado como o pioneiro da classificação etiológica, baseado no modelo médico, promovendo uma corrida dos alienistas franceses e neuropsiquiatras alemães a investigar no cérebro a etiologia da doença mental4•5 • Infrutíferas tentativas de identificar e localizar no cérebro as causas da doença mental impeliu os psiquiatras do final do século XIX a adotarem critérios clínicos para fazer diagnóstico. Por exemplo, Kahlbaum e Kraepelin propuseram que diversos quadros psicóticos poderiam ser diferenciados pela sua apresentação psicopatológica e evolução clínica. A proposta de Kraepelin6 apoiou-se numa classificação categoria! condicionada à evolução do quadro geral do paciente, em que um indivíduo portador de doença maníaco-depressiva seria mutuamente exclusivo de um outro portador de dementia praecox. As classificações modernas, tais como Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder, 4. ed.
(DSM-IV)l e Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, 1O. rev. (CID 1O)8 são consideradas como classificações neokrapelinianas, na medida em que constituem aprimoramentos do sistema categoria! acrescidos de regras operacionais, com descrição de síndromes politéticas. Ou seja, nem todos os sintomas devem estar presentes para se fazer um diagnóstico, gerando uma série heterogênea de quadros similares à sua descrição prototípica. A divulgação e a aceitação das teorias psicanalíticas pela comunidade acadêmica no início do século XX começaram a rivalizar com os teóricos que acreditavam na necessidade de diagnóstico. Os discípulos de Freud ajudaram a disseminar a ideia de influência do ambiente e suas raízes psicodinâmicas sobre a formação dos sintomas mentais, abolindo a descrição psicopatológica como a fonte primária de classificação e diagnóstico. Assim, a tarefa de diagnóstico foi relegada a plano secundário. Além disso, a partir da década de 1950, ocorreu um grande desestímulo do estudo do diagnóstico psiquiátrico baseado no questionamento do conceito da doença mental por alguns autores. Thomas Szasz9 propôs que o conceito de doença mental fos se abandonado, uma vez que os ditos casos de doença mental não apresentam lesão fisiopatológica demonstrável. Outros autores, como Cooper 10 , propuseram que a doença mental seria um produto de uma construção ideológica ou política. Entre outros argumentos contra o diagnóstico psiquiátrico, constavam o mau uso deste, como na antiga União Soviética, na qual a rotulação psiquiátrica era usada como um instrumento para exercer a perseguição política. Atualmente, para desenvolver novas formas de terapêutica em psicofarmacologia, aliado aos progressos na compreensão do adoecimento psiquiátrico e a expansão das neurociências, iniciou-se um movimento nos Estados Unidos para aperfeiçoar o diagnóstico psiquiátrico. Inspirado nos critérios diagnósticos de Saint Louis 11 e do Research Diagnostic Criteria (RDC) 12, foram criados os critérios operacionais do DSM-III da Associação Psiquiátrica Americana (1980) 13, e as suas sucessivas revisões (DSM-III -R, DSM-IV, DSM-IV-TR), as quais foram extensamente adotadas no final do século XX, com críticas e ressalvas, pela comunidade acadêmica internacional. No início do século XXI, entusiastas dos avanços em neuroimagem, genética e psicofisiologia propuseram uma nova revisão do sistema DSM 14, na sua quinta edição, tentando incorporar achados biológicos que pudessem conferir maior validade à etiologia dos transtornos mentais.
Como se faz diagnóstico em psiquiatria? O recurso mais comum e valioso para alcançar um diagnóstico em Psiquiatria ainda é por meio da entrevista com o paciente, na medida em que ainda faltam à disciplina psiquiátrica instrumentos objetivos que possam substituir o trabalho do clínico. Cabe ressaltar, antes de
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tudo, que os critérios diagnósticos pretendem refletir os modos como os clínicos experientes chegam a um parecer sobre o estado mórbido do paciente. Isto é, estabelecem um limiar entre a saúde e doença, como um índice de quem deve ou não receber tratamento. A coleta de dados pelas entrevistas psiquiátricas pode ser feita por entrevistas clínicas abertas, nas quais o médico deve estar isento, evitando intervir na entrevista, favorecendo a livre expressão do paciente. Entrevistas estruturadas são aquelas em que o entrevistador (médico ou leigo) deve seguir uma sequência específica e lógica de perguntas, lendo-as, sem interpretações, visando assegurar a fidedignidade do procedimento, a partir dos critérios operacionais do diagnóstico. O maior problema na detecção de sintomas psicopatológicos é a sua baixa confiabilidade e o uso idiossincrático da terminologia gerando confusão conceitual, borrando os limites da díade saúde/doença. As técnicas de entrevista são variáveis e a sua abrangência pode não apresentar cobertura adequada. Na Tabela I, estão listadas algumas entrevistas diagnósticas comuns, as quais são utilizadas principalmente em pesquisas. É importante diferenciar as entrevistas padronizadas das escalas psicométricas para determinar os sintomas clínicos. Para efetuar tanto a entrevista estruturada como a entrevista livre, o clínico deve receber treinamento com
Tabela I
supervisão e calibração constante, sob o risco de alcançar diagnósticos idiossincráticos e sem concordância com outros colegas. Muitas das condições clínicas só conseguem ser diagnosticadas após um julgamento clínico que se acumula com a experiência do entrevistador. As escalas psicométricas de avaliação, por sua vez, não requerem esse treinamento. Elas foram desenvolvidas para registrar a evolução de sintomas específicos de transtornos mentais e monitorizar a resposta ao tratamento, mas não permitem realizar o diagnóstico clínico 15 .
Definições de terminologia e classificação O termo classificação designa o procedimento de construir grupos ou categorias baseados nos "seus atributos ou relações compartilhadas': As entidades (transtornos ou pessoas) assim identificadas são agrupadas sistematicamente nessas categorias. O produto desse procedimento consiste em uma série não arbitrária (ordenada) de categorias chamada de sistema de classificação. O processo de designar uma entidade ainda não classificada para a sua categoria apropriada denomina-se identificação. Em situações clínicas, em que as entidades compreendem padrões de atributos clínicos ou os pacientes possuem tais atributos, esta identificação é referida como diagnóstico.
Entrevistas diagnósticas padronizadas
Nome
Autor(es)
Características principais
Present State Examination (PSE) e programa CATEGO
Wing et ai. (1974)
Entrevista estruturada do estado mental. Descrição da psicopatologia sintomática feita pelo clínico treinado. O programa CATEGO classifica os dados do estado mental, fornece perfil sindrômico.
Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia (SADS)
Endicott e Spitzer (1978)
Entrevista desenvolvida para coletar as informações necessárias para fazer diagnóstico (presente ou ausente) pelo sistema RDC. Leva de 1 hora e 30 minutos a 2 horas para ser feita. Requer treino para a sua aplicação, podendo ser feita por psiquiatra, psicólogo ou assistente social.
Nationallnstitute of Mental Health Oiagnostic lnterview Schedule (NIMH-DIS)
Robins et ai. (1979)
Desenvolvida para ser utilizada junto com os critérios de Feighner (podendo ser ancorada com RDC). Entrevista estruturada fixa, com duração de 1 hora a 1 hora e 30 minutos. Sem hierarquização dos diagnósticos. Os diagnósticos são classificados como presente, provável ou ausente. Pode ser aplicada por clínico ou leigo treinado.
Structured C/inicallnterview for OSM-IV (SCI O)
Spitzer et ai. (1987); First et ai. (2002)
Entrevista semiestruturada que permite avaliar a presença da doença no presente ou no passado de acordo com o sistema do DSM. O diagnóstico é classificado como presente, subliminar ou ausente. Aplicado por clínicos treinados, leva de 30 minutos a 1 hora para ser completada. Versões: SCID-1/P, SCID-1/NP, SCID-11, SCID-CV http://www.scid4.org
Composite lnternational Oiagnostic lnterview (C I DI)
Robins et ai. (1988)
Combinação de OIS e PS E. Incorpora os critérios diagnósticos de Feighner, RDC, CI D-1O e DSM-IV. Pode ser aplicada por clínicos ou leigo treinado. http://www3.who.int/cidi/
Schedule for Clinicai Assessment in Neuropsychiatry (SCAN)
WHO (1994)
Aperfeiçoamento do PSE, baseado em princípios semelhantes de entrevista semiestruturada. Deve ser aplicada por clínico treinado. http:/I gd p.ggz.ed u/sca ndocs/sca ndex.htm
Versões: SADS, SADS-L e SADS-C
RDC: Research Oiagnostic Criteria.
23 SISTEMA DE CLASSIFICAÇÃO -DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
A palavra diagnóstikós vem do grego: dia- significa separar uma parte da outra e -gnosis, conhecimento, percepção. Esse termo representa a forma de referir e descrever, por meio dos elementos que compõem as unidades subjacentes, construtos humanos e explicar as alterações observadas na natureza. Isto é, são cunhados a partir de agrupamentos de sinais ou sintomas. Usualmente o termo está associado à busca de patologias e transtornos. Analogamente, um determinado diagnóstico também pode estar associado à avaliação de funcionamento social e ocupacional, por exemplo. Contudo, a utilidade do diagnóstico em Psiquiatria não se dá, assim como em outras áreas médicas, somente no reconhecimento de um conjunto de sintomas e indicação de condutas mais adequadas (investigação clínica, tratamentos), há ainda implicações legais em pesquisas científicas, hipóteses explicativas e no prognóstico do paciente. O termo taxonomia é aplicado para sistemas de classificação científica, referindo-se ao processo de agrupar e arranjar as entidades de interesse científico em categorias naturais baseadas em características-chave que compartilham ou de conceitos que eles possuem em comum. Esse termo pode ser, em outras vezes, aplicado ao estudo sistemático e metateórico do processo de classificação em si, compreendendo a lógica, os princípios e os métodos de construir sistemas categoriais, bem como as regras pelas quais a identificação é executada. No domínio clínico, enquanto a palavra nosologia se relaciona com a taxonomia de fenômenos patológicos (p. ex., transtornos e doenças), a expressão nomenclatura refere-se à lista dos nomes ou rótulos que são utilizados para designar as categorias taxonômicas por meio de regras explícitas. Cada categoria de um sistema taxonômico (nosológico) é chamada de taxon ou unidade taxonômica, que representa um grupamento de entidades clínicas com características semelhantes. As unidades taxonômicas podem ser divididas em manifestas ou latentes. As unidades manifestas compreendem as categorias que são baseadas em características comuns observáveis ou fenotípicas, por exemplo, um comportamento observável. Por outro lado, as unidades taxonômicas latentes pertencem às categorias for-
Tabela 11
Critérios definidores de endofenótipos
O endofenótipo está associado com a doença na população; O endofenótipo é hereditário; O endofenótipo é primariamente estado- independente, isto é, manifesta num indivíduo independente da doença estar ativa ou não; Dentro das famílias, o endofenótipo e a doença cossegregam; O endofenótipo encontrado nos membros afetados de uma família também é encontrado entre os membros não afetados daquela família nas unidades taxonômicas numa frequência maior que na população geral. Fonte: adaptada de Gottesman e Gould 17•
madas com base em derivações matemáticas abstratas ou de deduções proposicionais de uma teoria, cada uma das quais representando a presença ostensiva de características comuns (muitas vezes genotípicas). As unidades latentes podem denotar tanto a origem etiológica do transtorno ou similaridades intrapsíquicas. Como um taxon não precisa estar necessariamente vinculado à causa biológica subjacente, este conceito permite potencializar a busca de modelos causais na Psiquiatria16 . Um exemplo de taxon intermediário entre o modelo manifesto e o latente é o conceito de "endofenótipd' (Tabela li) que vem ganhando cada vez mais aceitação entre os pesquisadores 17 • Na tradição psiquiátrica, duas abordagens distintas foram propostas para classificar as doenças mentais: a nominalista e a essencialista. Cada qual apresenta suas imperfeições e dificuldades para serem implantadas nos sistemas atuais de classificação. A abordagem nominalista denomina os sintomas (psicopatologia e comportamentos) ou a constelação de sinais e sintomas (síndromes) com um nome, sem considerar a sua etiologia, na medida em que as causas exatas da maioria das doenças ainda são desconhecidas. Epônimos como doença de Parkinson, doença de Alzheimer, doença de Wilson, doença de Korsakoff, síndrome de Cotard etc. são utilizados na prática clínica com grande aceitação. Esses nomes constituem, na verdade, modos fáceis de lembrar o grupo de sinais e sintomas daquela doença, bem como o seu curso clínico, embora sejam pouco informativos sobre a etiologia da condição. A abordagem nominalista descreve um padrão típico de ocorrência de certa condição patológica. A abordagem essencialista, por sua vez, busca classificar as entidades nosológicas a partir das causas de uma condição patológica, independente dos seus sinais e sintomas. Por exemplo, confirmar uma infecção estreptocóccica por meio de exame de cultura bacteriana permite explicar a etiologia de febre, infecção urinária, pneumonia que acometem concomitantemente o mesmo indivíduo, bem como o antibiótico mais adequado para o seu tratamento. Uma classificação etiológica é muito mais útil e robusta que a psicopatológica, na medida em que fornece indicadores confiáveis de curso, evolução e tratamento. Infelizmente, na Psiquiatria, a abordagem etiológica é de difícil aplicação, uma vez que a causação dos sintomas psiquiátricos parece ser multifatorial. Os conceitos antigos de histeria (útero errante), a teoria dos humores corporais dos gregos (inclui aqui a descrição da melancolia) e a teoria da degenerescência da espécie humana dos alienistas franceses constituem tentativas equivocadas de prover um explicação etiológica pela abordagem essencialista5. O modelo etiológico aplicado por Bayle, na descrição de paralisia geral progressiva (PGP), constitui o primeiro exemplo de como a abordagem essencialista contribui para a classificação dos transtornos mentais6 • O projeto de revisão do DSM-V propõe essa ambiciosa ta-
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refa de incluir indicadores etiológicos na sua nova classificação14. Muitas vezes, um sistema de classificação resulta do produto de mera especulação nosológica ou um capricho arbitrário do taxonomista. Para minimizar o caráter especulativo e arbitrário dessas criações, os teóricos e nosologistas devem lembrar sempre de alguns princípios e padronizações que garantem a otimização da validade e utilidade dos diagnósticos. Estes princípios podem ser aplicados aos atributos diagnósticos que constituem as unidades taxonômicas e àqueles relevantes para a estrutura nosológica 18.
Tipos de classificação Classificação hierárquica ou vertical Observa-se, na prática clínica, que quadros "puros" ou monossintomáticos são difíceis de serem encontrados e a comorbidade parece ser a regra. Nessa medida, é necessário hierarquizar diagnósticos, tentando compreender os sintomas como parte de uma patologia maior, em vez de fazer diferentes diagnósticos para um mesmo paciente. No topo da hierarquia, vêm os transtornos mentais orgânicos. Se há evidências de organicidade - clínica, estrutura cerebral alterada (neuroimagem), disfunção eletrofisiológica (p. ex., eletroencefalografia, brain mapping) ou prejuízo cognitivo, esses dados suplantariam todas as outras considerações, independente de quaisquer outros . . . . , . smtomas que o paciente possa apresentar, seJa ps1cot1co ou neurótico, o diagnóstico deve ser de transtorno mental orgânico. Estas regras hierárquicas foram extensamente adotadas na tradição psiquiátrica, como uma prerrogativa do princípio de hierarquização de Jaspers 19 . A consequência imediata do abandono das regras de ordenação hierárquica, por exemplo no DSM-IV, é que se tornou extremamente difícil decidir o que fazer com grande número de indivíduos que apresentam simultaneamente sintomas que preenchem os critérios operacionais de vários transtornos do mesmo nível hierárquico. Por exemplo, depressão maior associada à ansiedade generalizada, transtorno de pânico e agorafobia. Além disso, abolição das regras hierárquicas de diagnóstico pode ensejar a proliferação de diagnósticos comórbidos. Tornou-se comum listar todos os diagnósticos possíveis como comórbidos, sem nenhuma tentativa de estabelecer qualquer relação hierárquica (temporal ou causal) entre os diagnósticos. Esse fenômeno chega a atingir cerca de 1/3 dos casos vistos na população geraF0 •
Classificação multiaxial ou horizontal Um avanço no diagnóstico psiquiátrico foi a criação de classificações multiaxiais, que proporcionam uma visão global do paciente, articulando diversos parâmetros
Tabela 111
Os cinco eixos da classificação multiaxial do DSM- IV
Eixo
Dimensão coberta no eixo
Eixo I
Transtornos clínicos maiores Outras condições que podem ser foco de atenção clínica (p.ex., comportamentos desadaptativos afetando uma condição médica)
Eixo li
Transtornos de personalidade Retardo mental
Eixo 111
Condições médicas gerais (CMG)
Eixo IV
Problemas psicossociais e ambientais
Eixo V
Avaliação global do funcionamento
•
Escala de funcionamento defensivo (Apêndice B) Escala de avaliação global do funcionamento relaciona! (Apêndice B) Escala de avaliação do funcionamento social e ocupacional (Apêndice B) Formulação cultural e síndromes ligadas à cultura (Apêndice I)
• Propostas de novos eixos
do funcionamento do paciente e da doença. Inicialmente proposto por Leme Lopes e Ernst Kretschmer, este tipo de arranjo está incorporado ao sistema do DSM7•13 • Cada eixo é praticamente independente dos demais, podendo ser tipológico ou dimensional. Os eixos mais comumente utilizados são: síndrome psiquiátrica, personalidade e nível intelectual, doenças físicas, estressares psicossociais e função adaptativa, alguns autores ainda citam a etiologia e curso e evolução da doença. A Tabela III mostra os eixos do sistema DSM7 e as propostas em estudo. Uma importante área se refere à questão da formulação cultural dos diagnósticos psiquiátricos. Vários quadros mentais se apresentam com características inusitadas que não são classificáveis pelos critérios ocidentais como DSM-IV7 e CID-108 • A diversidade cultural na psicopatologia é vista essencialmente como um efeito da influência patoplástica que distorce ou modifica a apresentação dos transtornos mentais definidos nas classificações psiquiátricas. Tanto o DSM-IV como a CID-1Onegligenciam a existência de linguagens culturalmente específicas na saúde mental, embora explicitamente tentem incorporá-la nas suas classificações21 . Alguns países possuem a sua própria classificação para os transtornos mentais. Prover um sistema de classificação que seja utilizável internacionalmente e equivalente para diferentes culturas constitui um desafio para os nosologistas modernos.
Classificação circumplexa O modelo circumplexo permite o arranjo das unidades taxonômicas e atributos clínicos numa estrutura circular. Este tipo de classificação não ganhou atenção nas classificações psicopatológicas formais, mas teve a sua aplicação como um instrumento para ordenar os traços
23 SISTEMA DE CLASSIFICAÇÃO -DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
interpessoais, processos de personalidade 18. A disposição circular dos signos do zodíaco ilustra um exemplo popular deste tipo de modelo.
Classificação categoria! e dimensional Tradicionalmente, na Medicina, tendemos a utilizar diagnósticos categoriais ou tipológicos, em que o paciente está ou não doente, dentro de agrupamentos fechados de sintomas. Esta abordagem apresenta uma divisão para as diferentes categorias, em que os casos são descritos por meio dos limites de saúde e doença, de normalidade e subnormalidade. Uma de suas principais vantagens é que, por determinar diagnósticos unitários, permite a determinação de condutas específicas de diagnóstico, isto é, se o conjunto de sintomas permite o diagnóstico de um transtorno X ou Y, podemos indicar este ou aquele tratamento, além de sua facilidade para formar conceitos e serem descritas. Na Tabela IV, há uma comparação das vantagens e desvantagens da perspectiva categorial e dimensional. Uma das discussões envolvendo diagnósticos psiquiátricos no DSM-V é a mudança de uma classificação categoria!, para uma classificação dimensional 14' 22, em que o paciente pode apresentar alguns sintomas em diversas categorias e não são criados limites artificiais. Assim, pacientes que apresentam poucos sintomas, podem estar no limite da normalidade, ou no limite entre dois transtornos, como esquizofrenia e transtornos afetivos. À medida que as teorias sobre as doenças conseguem descrever e prover uma base sólida de conhecimentos sobre as anormalidades no funcionamento biológico e psicológico, os aspectos dimensionais de mensuração dentro e entre as síndromes clínicas se tornam mais aparentes. O modelo de espectro (spectrum) é uma forma complementar de descrever e avaliar a psicopatologia. As avaliações deste modelo começam pelos critérios sintomáticos bem conhecidos, estendendo-as ao halo subjacente de fenômenos clínicos. Esses fenômenos incluem as manifestações clínicas associadas já descritas na entidade nosológica, bem como sintomas, comportamentos desadaptativos e traços temperamentais que não aparecem na gama de sintomas definidores. Este tipo de avaliação ti-
Tabela IV
picamente obtém um perfil dimensional, em oposição ao diagnóstico categoria!. De acordo com o modelo de espectro, as características patológicas são vistas num continuum de intensidade, em que um único sintoma pode ter importância clínica, reduzindo a necessidade categoria! de pontos de corte para definir um limiar diagnóstico. A nova revisão do DSM propõe incorporar a metodologia dimensional no seu sistema de classificação 14. Ambas as abordagens - categoria! e dimensional são necessárias para o avanço da nosologia. Conforme a necessidade, ambas deve ser utilizada, sem que haja incongruência entre elas. Um sistema de mensuração clínica não pode ser puramente categoria! ou puramente dimensional. Um exemplo óbvio da abordagem dimensional são os especificadores de gravidade para vários tipos de sintoma, por exemplo, sintoma depressivo. O modelo de AkiskaF3 para o transtorno bipolar se enquadra neste modelo. O estudo da taxometria tem favorecido uso de métodos pluralistas na classificação psiquiátrica - alguns transtornos se ajustam melhor ao modelo categorial (como melancolia e transtornos alimentares) e outros para o dimensional (como depressão, ansiedade generalizada e transtorno de estresse pós-traumático) 16 •
Classificações modernas Com ceticismo, o professor Assen Jablensky24 esclarece que os psiquiatras continuam invocando e utilizando os conceitos do discurso clínico formulados no século XIX. Isso aproxima as classificações de uso corrente em vários aspectos às classificações populares e folclóricas, em que o seu formato descritivo fornece categorias não mutuamente exclusivas, sendo possível a aplicação de regras hierárquicas ad hoc. Este sistema natural de classificação tem sobrevivido aos mais rigorosos ataques científicos, pois a sua utilidade e pragmatismo estão bem adaptados às necessidades da prática cotidiana. Frequentemente, autores como Kraepelin, Bleuler e Freud ainda são referenciados como autoridades substanciais, sem questionar as limitações teóricas do seu sistema psiquiátrico. A continuidade conceitual repousa essencialmente na forma aplicada de modelos de psicopatologia descritiva, fenomenologia, teoria psicodinâmica e o modelo médico de doença
Comparação entre as abordagens categoria! e dimensional
Vantagens do diagnóstico categoria!
Vantagens do diagnóstico dimensional
Familiaridade para profissionais psiquiatras ou não.
Sintomas típicos e atípicos são contemplados.
O conceito envolvido é similar ao utilizado em outras áreas da medicina.
Transmite maior número de informações, permitindo utilização dos dados em pesqu1sas.
Com o diagnóstico categoria I é mais fácil estabelecer as condutas.
Não restringe o diagnóstico a preencher certos critérios operacionais, evitando criar falsos limites entre saúde/doença.
Maior aceitabilidade pelos profissionais.
Permite o resgate de similaridades entre populações em diferentes c/usters sintomatológicos.
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mental. Provavelmente, porque o paradigma teórico em relação ao diagnóstico e classificação psiquiátrica pouco mudou desde então, a despeito dos recentes avanços conceituais e metodológicos, variando desde genética, neuroimagem e epidemiologia, cujos achados são gradativamente incorporados à prática clínica de Psiquiatria.
Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados de Saúde (CID) No final da década de 1960, a Organização Mundial de Saúde ( OMS), iniciou uma revisão crítica do diagnóstico e a classificação em Psiquiatria que resultou num glossário de transtornos mentais para a ga revisão da CID, além de classificação multiaxial para transtornos de início na infância e uma entrevista semiestruturada ligada a um algoritmo de computador - o sistema PSE/CATEGO. Estes avanços foram reforçados pela emergência da escola neokraepeliniana de pensamento nos Estados Unidos e tenta incorporar as inovações introduzidas com o DSM-III 13 . Atualmente, em sua 10ª edição, a CID é uma classificação que tem como objetivo ser um instrumento internacional de comunicação, em educação e pesquisa, e permitir estatísticas internacionais sobre morbimortalidade, sendo projetada de maneira que expansões possam ser feitas sem uma alteração substancial de toda a classificação. Esta classificação foi realizada para todas as áreas da Medicina. As patologias psiquiátricas foram agrupadas sob o índice 'F' e a maioria das categorias possui critérios para a prática clínica e de pesquisa (Tabela V). Os trabalhos para sua confecção se iniciaram em 1983, tendo o seu uso na prática ocorrido depois de dez anos. Neste período, foram realizados diversos testes, em mais de 50 países, produzindo comentários dos centros para correções, adequação, aceitação e confiabilidade desse sistema. A tentativa de equiparação da CID -108 e DSM-IV7 consumiu uma cooperação próxima com a Asso-
Tabela V
ciação Psiquiátrica Americana para que várias características possam convergir e chegar a uma "linguagem comum internacional': compartilhando conceitos-chave de uma classificação baseada em critérios operacionais para diagnóstico dos principais transtornos mentais. O termo transtorno (disorder) na CID- 108 é um equivalente hierarquicamente superior à expressão síndrome. Muitas das regras aplicadas nesta classificação ainda necessitam ser respaldadas por observações clínicas que refletem com precisão as condições do paciente. Embora a maioria dos critérios diagnósticos ainda permaneça pro visória, alguns deles são francamente arbitrários. O texto final foi redigido em forma de critérios operacionais que permitem testagem científica - para serem confirmados, mudados ou rejeitados de acordo com os procedimentos habituais de testagem de hipótese. Quase vinte anos já decorreram desde o lançamento da CID- 108, o impacto de seu uso já pode ser sentido em várias áreas. Os principais efeitos da CID- 10 foram: a) aumentar a concordância diagnóstica entre os clínicos e a melhoria nos relatórios estatísticos de morbidades psiquiátricas, o uso de serviços, tratamentos e a evolução dos transtornos mentais; b) adotar padrões diagnósticos rigorosos na pesquisa psiquiátrica; c) reduzir as idiossincrasias observadas no ensino da Psiquiatria, em que padrões internacionais de referência devem ser seguidos; e d) melhorar a comunicação entre os usuários da CID- 1O, cuidadores e a população leiga, desmistificando os diagnósticos psiquiátricos e divulgando a sua lógica para não profissionais24 •
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) A terceira edição ou DSM -III 13 sofreu mudanças radicais, bastante diferentes das edições anteriores. O seu objetivo principal é estabelecer critérios confiáveis e replicáveis, sendo compilada a partir do conhecimento acumu-
Principais categorias diagnósticas da CID- 1O
Código
Transtornos Mentais e do Comportamento - CID- 1O
FOO-F09
Transtornos mentais orgânicos, incluindo transtornos mentais sintomáticos
F10-F19
Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de substância psicoativa
F20-F29
Esquizofrenia, transtornos esquizotípico e transtornos delirantes
F30-F39
Transtornos do humor
F40-F49
Transtornos ansiosos, relacionados ao estresse e somatoformes
F50-F59
Síndromes comportamentais associadas a perturbações fisiológicas e físicas
F60-F69
Transtornos de personalidade e de comportamentos em adultos
F70-F79
Retardo mental
F80-F89
Transtornos do desenvolvimento psicológico
F90-F98
Transtornos de comportamento e emocionais com instalação usualmente durante a infância e a adolescência
F99
Transtorno mental não especificado
23 SISTEMA DE CLASSIFICAÇÃO -DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
lado nas décadas anteriores, mas ainda sem estudos de confiabilidade ou validação. O DSM-IV adotou o uso de uma classificação multiaxial (Tabela III), permitindo registro sistemático de cinco séries de informações diferentes: Eixo I - síndrome clínica; Eixo II - transtorno de personalidade ou transtornos crônicos de desenvolvimento; Eixo III condições físicas associadas; Eixo IV - gravidade do estresso r psicossocial; e Eixo V - funcionamento global no último ano. As síndromes clínicas do eixo I foram rearranjadas em nova sequência (Tabela VI), sendo abandonada a distinção tradicional entre neuroses e psicoses. Além disso, quase todos os termos diagnósticos foram despidos de sua conotação etiológica, sendo deslocados por novas expressões. Como resultado, muitos termos tradicionais de Psiquiatria, como histeria, doença maníaco-depressiva, e mesmo psicose/neurose foram descartados e substituídos por termos "utilitários" que descrevem o transtorno somatoforme, transtorno factício e parafilia. Atualmente, está na quarta versão - DSM-IV7 , que foi inicialmente publicada em 1994, formulada em conjunto com o grupo de trabalho da CID- lO. Nenhuma mudança fundamental foi introduzida na revisão do DSMIII em 1987, sendo ajustados alguns problemas de redação, retificados alguns termos e definição no glossário. Como os seus trabalhos só se iniciaram em 1987, quando parte dos grupos de trabalho da CID- 10 já havia iniciado as testagens de campo, há ainda diferenças consideráveis entre as duas classificações. Sua versão revisada, DSM-IV-
Tabela VI
Principais categorias diagnósticas do DSM-IV
TR7, publicada em julho de 2000, apresenta correções menores, tanto para permitir uma maior similaridade com a classificação da OMS, quanto para a correção de problemas menores com a classificação, relacionados a ambiguidades ou outros erros relacionados 25 • São inegáveis os ganhos que trouxeram os atuais sistemas de classificações, entretanto, alguns "efeitos colaterais" de um sistema provisório aberto para mudanças são aparentes. Primeiro, os critérios explícitos do DSM-IV7 ainda sofrem da falta de coerência teórica, portanto, é vulnerável às influências das forças ideológicas, políticas e mercadológicas. Segundo, as falhas ainda não suplantadas no desenho desse sistema de classificação limitam a sua utilidade e permite interpretações errôneas ou mau uso dos seus critérios. Em virtude do seu sucesso internacional, tais críticas não têm recebido atenção suficiente dos pesquisadores. Pode-se dizer que o uso dos sistemas atuais de classificação trouxe certa estabilidade à prática do diagnóstico psiquiátrico, principalmente na área de pesquisa clínica e psicofarmacológica. Entretanto, considerando o seu objetivo final - prover indicadores para validação noso lógica dos conceitos diagnósticos sobre os quais estas classificações estão ancoradas - , tal estratégia tem provocado crescente descrença na comunidade acadêmica na medida em que fracassa em satisfazer o propósito inicial. Com raras exceções, tanto os diagnósticos da CID-10 como do DSM-IV não repousam inteira ou primariamente sobre sinais objetivos ou testes.
A validade do diagnóstico psiquiátrico
Principais diagnósticos do DSM- IV Transtornos geralmente diagnosticados pela primeira vez na infância ou adolescência De/irium, demência, transtornos amnésticos e outros tra nstornos
cognitivos Transtornos mentais devidos a condições médicas gerais sem outras especificações Transtornos relacionados a substâncias Esquizofrenia e outros transtornos psicóticos Transtornos do humor Transtornos de ansiedade Transtornos somatoformes Transtornos factícios Transtornos dissociativos Transtornos sexuais e de identidade de gênero Transtornos alimentares Transtornos do sono Transtornos do controle de impulsos não classificados em outro local Transtornos de ajustamento Transtornos da personalidade Outras condições que podem ser foco de atenção clínica
Há várias formas de avaliar a validade, embora nem todas elas sejam utilizadas para avaliar os diagnósticos psiquiátricos. De fato, a definição de validade apresenta vários significados conforme o contexto em que se utiliza o seu conceito26• A validade pode ser definida como a real capacidade de um diagnóstico (instrumento) de avaliar (medir) aquilo que ele se propõe a avaliar. Isto é, se a categoria diagnóstica realmente identifica o fenômeno em questão e se esta categoria é diferenciável de outras de sua classe quanto aos aspectos específicos de prognóstico para permitir o planejamento terapêutico do paciente. Diferente da confiabilidade, a validação de um conceito é um processo infindável, na medida em que as tentativas de demonstrar a essência de um conceito de interesse devem ser tão completas e acuradas quanto possível. Portanto, a compreensão teórica do conceito é necessária para garantir a acurácia de sua mensuração ( diagnóstico). No processo de validação, avaliam-se as relações empíricas entre um diagnóstico (instrumento) e os critérios escolhidos que ele pretende medir. A validade apresenta dois componentes principais: conceitual e operacional. A validade conceitual do diagnóstico representa um julgamento subjetivo, por parte do
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
avaliador, sobre a capacidade de um diagnóstico avaliar o que deveria medir. Usualmente, esse tipo de validade é chamado de validade "de face", ou seja, significa o conceito teórico de um determinado diagnóstico ser aceito consensualmente entre os clínicos ou especialistas. Portanto, a validade de face sofre influências do contexto histórico e das teorias vigentes em cada momento ou local. Não há meios de avaliar estatisticamente o componente subjetivo desse tipo de validade. Quanto ao componente operacional, os aspectos mais importantes da validade são verificados por meio devalidade de conteúdo, de critério e de construto (Tabela VII). Partes desses conceitos podem ser avaliadas por meio de técnicas estatísticas multivariadas, como análise discriminante, análise fatorial exploratória e confirmatória, regressão múltipla e logística etc. 26 • Em geral, os diagnósticos baseados na etiologia geram melhor validade. Entretanto, a demonstração causal da maioria dos casos psiquiátricos só é possível numa minoria de casos, como os transtornos mentais orgânicos e em algumas reações de ajustamento. Em Psiquiatria, não há testes laboratoriais para identificar os casos psiquiátricos. Esta característica torna especialmente difícil de
Tabela VIl
demonstrar a validade dos diagnósticos psiquiátricos27, sendo este um problema central na prática clínica. O DSM-III 13 e as entrevistas psiquiátricas estruturadas têm solucionado apenas o problema de confiabilidade dos diagnósticos clínicos. Os psiquiatras conseguem, pelo menos, comunicar-se um com outro e apresentar resultados reprodutíveis apesar das diferenças nas suas premissas sobre quais os sintomas são nucleares3. No entanto, Kendell acredita que nenhum progresso foi feito para desenvolver os critérios mais válidos. Este autor define a validade no contexto de psiquiatria clínica como "afirmações sobre o poder preditivo e, portanto, sobre a utilidade prática"28 . Nesse sentido, a validade de um diagnóstico pode variar com contexto no qual os diagnósticos são utilizados. Portanto, a validade não é uma qualidade absoluta dos diagnósticos psiquiátricos. Ele ainda sugere seis maneiras de validar uma síndrome clínica, cinco dos quais eram similares aos critérios do Robin e Guze: 1) Descrição da síndrome: o clínico deve fazer uma identificação e descrição acuradas das síndromes clínicas. As síndromes são constituídas pela intuição clínica ou pela análise de agrupamentos ( cluster analysis).
Componentes e formas de validade, conceitos e sinônimos
Componente
Forma de validade
Conceitos
Sinônimos
Operacional
de conteúdo
Julgamento sobre o grau em que um diagnóstico avalia todos os aspectos relevantes de um domínio conceitual ou comportamental que se pretende medir. A cobertura completa (representatividade) das características de um conceito é essencial.
Fatorial ou estrutural
de critério
Indica o quanto um diagnóstico (A) discrimina os sujeitos que diferem em determinada(s) característica(s) de acordo com um critério padronizado (B). Permite estabelecer o quanto os indicadores conseguem prever um dado conceito (critério) bem estabelecido.
de construto
Conceitual
de face
Fonte: adaptada de Goldstein e Simpson 26 •
O diagnóstico (A) é feito antes do critério (B) e verifica-se o quanto o primeiro prevê o segundo.
Preditiva ou prospectiva
O diagnóstico (A) e o critério (B) são medidos ao mesmo tempo, para verificar o grau de correlação entre os dois.
Concorrente
O diagnóstico (A) é feito após a mensuração do critério (B) e verifica-se a relação entre os dois.
Retrospectiva
Demonstração de que o diagnóstico realmente representa aquilo que ele se propõe a avaliar. O grau em que medidas múltiplas de um mesmo construto demonstram concordância ou convergência.
Convergente
O grau em que medidas múltiplas de diferentes conceitos são distintas.
Discriminante
Capacidade que uma determinada medida (X) apresenta de prover maior ou menor poder explicativo que outra medida (Y) para prever um critério relevante (Z).
Incrementai
Julgamento subjetivo, impressão superficial sobre o grau em que um conceito "parece" medir no que se propõe. Consenso conceitual.
23 SISTEMA DE CLASSIFICAÇÃO- DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
2) Delimitação de outros transtornos (bem como es-
tados mentais normais): demonstrar claramente os limites entre as síndromes, de modo que casos limítrofes se. Jam raros. 3) Estudo dos correlatos biológicos, correspondendo aos estudos laboratoriais: o principal critério é o de correlações biológicas, com conhecimentos de etiologia e patogênese, biológicos (histológicos, bioquímicos, mo leculares), psicológicos e ambientais específicos. 4) Estudos de seguimento para demonstrar que o transtorno prediz o curso e não se transforma num transtorno diferente com o tempo. A história natural da evo lução de uma síndrome possibilita predizer e modificar seu curso. As síndromes podem diferir na duração, tenciência a recaídas, estabilidade da sintomatologia, mortalidade e desfecho final. Deve haver diferença entre os diagnósticos da evolução que não seja atribuível a outros fatores, como personalidade pré-mórbida, início de sintomas, nível socioeconômico etc. 5) Estudos de família que demonstra uma prevalência aumentada do mesmo transtorno entre os parentes próximos: determinar se os parentes de primeiro grau têm maior risco de apresentar a síndrome. Esta influência pode ser atribuída tanto a aspectos genéticos como culturais e ambientais. 6) Resposta ao tratamento, assumindo que as drogas reconhecidas efetivas para tratar um transtorno particular devem ser inefetivas num paciente com um diagnóstico diferente. Entretanto, a resposta ao tratamento é um critério preconizado, mas muito falho, pois os tratamentos não são específicos. Os nosologistas ainda discordam sobre o melhor construto que deve ser utilizado para os transtornos psiquiátricos. Incapazes de conciliar resultados conflitantes obtidos das pesquisas, a questão de como separar ou fun dir as diversas categorias diagnósticas ainda divide a opinião dos especialistas. Entre as propostas de abordagem científica29 incluem: (1) prover um critério claro pelo qual se possa avaliar a proposta nosológica; (2) prevenir as rápidas mudanças em razão dos "modismos" nosológicos sem devido respaldo nos achados da literatura; (3) aumentar o prestígio e a aceitabilidade do nosso sistema nosológico para indivíduos fora da Psiquiatria; e (4) aperfeiçoar a confiabilidade e validades dos nossos construtos diagnósticos.
Problemas de classificação da doença mental As discussões sobre a classificação e o diagnóstico de transtornos mentais invariavelmente convergem sobre o consenso de que uma classificação definitiva das doenças mentais deve ser baseada em etiologia. Apesar de constituir um ramo da Medicina, a Psiquiatria ainda se esforça para obter uma classificação válida e útil para a prática clí-
nica, por meio de diagnóstico confiável de transtornos mentais. Diferente de outras especialidades médicas que ordenam as etiologias das doenças em infecciosas, neo plásicas, vascular, autoimune e genética-hereditária, a Psiquiatria não possui o privilégio de ter a etiologia da maioria dos seus quadros mentais suficientemente elucidada. Para tanto, reformulações periódicas das classificações provisórias são propostas, sem que a sua utilidade tenha um evidente benefício na realidade clínica. A Psiquiatria aguarda, pois, descobertas importantes para confirmar a validade das entidades nosológicas descritas. Enquanto isso, o processo de diagnóstico psiquiátrico continua baseado na descrição do quadro clínico e a sua mensuração permanece vulnerável à contaminação subjetiva dos avaliadores. Portanto, continua-se a trabalhar em Psiquiatria com síndromes clínicas temporárias para organizar o nosso conhecimento, sem que estas síndromes traduzam verdadeiras entidades nosológicas. As constantes reformulações dos sistemas de classificação têm recebido críticas de especialistas30, atacando os seus efeitos nocivos e os limites de novas classificações31. Um problema prático da atual nosografia diagnóstica em Psiquiatria é que o sistema não fornece explicações de como ocorre e o porquê de um determinado evento patológico, mas apenas permite estabelecer a sua gravidade (p. ex., suicídio) ou persistência. Uma vez que nem todos os pacientes podem se conformar a determinado rótulo, a discordância entre os avaliadores que se utilizam de diferentes pressupostos teóricos é inevitável. Cunhar um nome para certa condição anormal pode fornecer uma impressão espúria de compreender algo sobre paciente, mas pouco diz sobre o transtorno em si. Determinar se um indivíduo sofre de esquizofrenia, depressão ou transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), diz pouco sobre o mesmo. O diagnóstico psiquiátrico, na forma como é praticado hoje, reflete nada mais do que uma coleção de sinais e sintomas observáveis em indivíduos avaliados, sem nada afirmar sobre a sua causalidade. Ao lado dessa imperfeição do processo diagnóstico, a conotação pejorativa associada à doença mental ainda é enorme, alguns rótulos como "neurótico", "psicótico", "histérico", "esquizofrênico" acabam por estigmatizar mais ainda os pacientes. Outras vezes, a prática de diagnosticar uma determinada condição corre o perigo de "reificação': pois os médicos passam a tratar da "doença'' em vez do paciente, por convemenc1a. Apesar dessas consequências indesejáveis, a formulação clínica de cada caso de paciente é inescapável. O clínico deve identificar as características do paciente para determinar se ele é um caso psiquiátrico ou não. Agrupar as características do paciente pode ser desnecessário ou impossível se todos os sintomas clínicos forem iguais ou completamente diferentes. Para cada paciente existem tantas características heterogêneas quanto possível para alcançar os vários diagnósticos disponíveis. Apesar das falhas dos sis• A
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela VIII
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SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Propostas apresentadas no esboço do DSM-V
Transtornos psicóticos Subtipos antigos prévios para a esquizofrenia são abolidos. O diagnóstico será feito baseado em sintomas comuns, tais como alucinações e alterações do pensamento, bem como a sua duração e gravidade. O rótulo de síndrome de risco de psicose será proposto para indivíduos com sinais de alerta, tais como delírios, alucinações ou discurso desorganizado, e vivenciamento de sofrimento. Enquanto os seus críticos temem que essa categoria possa estigmatizar muitos jovens, os defensores advogam que a sua identificação precoce poderia ajudá- los na intervenção terapêutica e prevenção. Transtornos do humor O DSM- IV lista nove sintomas para basear o diagnóstico de depressão. Esta destaca três dimensões básicas: depressão com ansiedade, com abuso de substância e com risco de suicídio. Um novo diagnóstico de transtorno misto de ansiedade-depressão é proposto. O limiar para o diagnóstico de transtorno bipolar é reduzido ligeiramente, para acomodar depressão com somente um ou dois episódios de mania. Esta mudança reconhece a capacidade de alguns antidepressivos desencadearem um episódio maníaco em indivíduos vulneráveis. Transtornos de ansiedade A principal mudança é a expansão dos transtornos do spectrum obsessivo-compulsivo (OC). que agora comprime os transtornos de várias seções distantes do DSM- IV. Estes incluem o transtorno de Tourette, transtorno dismórfico corporal e tricotilomania. Transtorno de entesouramento (hoarding disorder. acúmulo de objetos desnecessários) também foi adicionado ao spectrum OC. Debate-se ainda se os TOC devem receber uma denominação separada dos transtornos de ansiedade. Transtornos da personalidade A velha lista do DSM com 12 transtornos de personalidade será reduzida para cinco: esquizotípico, limítrofe (borderline), evitador, OC e antissocial/ psicopático. O termo psicopata, antes evitado no DSM- IV, agora está de volta. Os outros diagnósticos serão substituídos por uma lista de sintomas de "mistura e combinação" que refletem dois tipos de patologias nucleares: distúrbios associados e aqueles relacionados ao funcionamento interpessoal, como o cooperativismo e a empatia. Adição e tran stornos relacionados A nomenclatura está sendo revisada. A dependência, que implica a dependência física, e não necessariamente a dependência psicológica, foi abolida. O termo abuso também foi banido por não apresentar respaldo científico. Em vez disso, diferentes graus de transtorno relacionados ao uso, como transtorno por uso de álcool, são propostos. Os transtornos de jogo patológico atingiram o status de adição, com base nas semelhanças comporta mentais e biológicas de adição à substância. A categoria de dependência da internet está em discussão, sem muito entusiasmo. Transtornos alimentares O transtorno de compulsão alimentar (binge eating) é a nova inclusão, o qual foi deslocado a partir do apêndice do DSM para representar um transtorno maior. Transtornos sexuais e da identidade de gênero O transtorno de identidade de gênero foi mantido apesar da pressão dos ativistas da transexualidade. Vários novos diagnósticos são propostos. inclusive o transtorno de interesse sexual e distúrbio de excitação nas mulheres. A proposta mais polêmica é a inclusão do transtorno da hipersexualidade, envolvendo fantasias, impulsos e comportamentos sexuais que ocorrem de forma recorrente e desconfortável. Transtorno de déficit de atenção-hiperatividade (TDAH) e comporta mentos disruptivos As alterações em relação aos diagnósticos dos transtornos de atenção ainda se encontram em debate. O grupo propõe um novo subtipo de transtorno de conduta que inclui traços insensíveis e falta de emoção (tais como a falta de culpa ou remorso), em resposta a evidências recentes de que este subgrupo de crianças e adolescentes pode ser mais propenso ao comportamento violento crônico e requer diferentes tipos de tratamento. Transtornos da infância e do adolescente Inclusões propostas envolvem os critérios específicos para diagnosticar o transtorno de estresse pós-traumático em crianças pré- escolares e transtorno da desregulação do humor com disforia, caracterizado por intensas eclosões de raiva alternadas com estados de afeto negativo. As crianças com esse problema são frequentemente diagnosticadas como transtorno bipolar juvenil no DSM- IV. Transtornos neurocognitivos Esta categoria agruparia vários diagnósticos do DSM- IV, dividindo-os em transtornos maiores e menores. Os principais transtornos neurocognitivos (como as várias formas de demência) envolvem um declínio funcional que interfere com a vida independente e autonomia. Os transtornos menores incluem o comprometimento cognitivo leve, um conjunto de problemas de memória e outras dificuldades considerando um possível prelúdio da demência de Alzheimer. Ao elevar o comprometimento cognitivo leve para um diagnóstico formal poderia facilitar a realização de ensaios clínicos que visam prevenir Alzheimer. Transtornos do neurodesenvolvimento Vários diagnósticos do DSM- IV serão consolidados em um único grupo amplo do transtorno do spectrum do autismo. Este grupo inclui a síndrome de Asperger, uma forma funcional do autismo. Embora não haja uma justificativa científica para adotar este termo, a sua mudança foi veementemente rejeitada por defensores da síndrome de Asperger. Além disso, o retardo mental seria substituído por "deficiência intelectual". Transtornos do sono-vigília O DSM- IV distingue a insônia primária de insônia causada por outras condições. Estes quadros seriam fundidos em um único diagnóstico em DSM-V, no qual os clínicos devem anotar as condições associadas, tais como depressão ou doença do coração. A síndrome das pernas inquietas seria elevada a um diagnóstico formal na nova versão. Transtornos somáticos Vários diagnósticos que envolvem queixas corporais são abarcados em um novo grupo diagnóstico de transtornos do complexo de sintomas somáticos, fundamentado no fato de que os diagnósticos do DSM- IV, tais como o transtorno de somatização e hipocondria, apresentam características comuns, tais como queixas físicas crônicas e percepções distorcidas dos sintomas. Fonte: adaptada de http://www.dsm5.org. (Acesso em 31/8/20 10).
23 SISTEMA DE CLASSIFICAÇÃO -DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
temas modernos de classificação psiquiátrica, ainda é a única opção viável no atual estado-de-arte da ciência.
Tendências futuras Nos últimos vinte e cinco anos, a disciplina Psiquiatria sofreu uma mudança dramática em termos de tecnologia de pesquisa científica e organização dos serviços de saúde mental. Previamente dissociadas uma da outra, esses dois aspectos de Psiquiatria começam a se conectar como um conjunto paralelo de desenvolvimento. O diagnóstico e a classificação dos transtornos psiquiátricos constituem o "calcanhar de Aquiles" dessa façanha, cujo papel de conferir credibilidade científica à definição da doença mental e legitimar a prática clínica de psiquiatria permite ligar a pesquisa à clínica24 • Até o presente mo mento, não há respostas inequívocas ou absolutas para as várias questões focalizadas na taxonomia psicopatológica, sejam questões de seleção dos atributos, escolha da estrutura mais adequada ou opção por um método de construção ou outro. Embora os recentes avanços científicos na área de neurociências, neurofisiologia e genética te nham sido consideráveis, essas informações só têm fornecido combustível para aumentar a complexidade de algumas questões básicas da Psiquiatria e a sua classificação, em vez de esclarecê-las. O temor de que a neurociência clínica possa substituir eventualmente a psicopatologia no diagnóstico dos transtornos mentais, ou que o estudo fenomenológico das experiências subjetivas que afetam os pacientes psiquiátricos perca a sua influência num fu turo próximo, parece que ainda aguarda significativas revoluções teóricas no campo de diagnóstico e classificação para se concretizar. Os procedimentos empático-introspectivos exercidos por clínico treinado continuam imprescindíveis na prática clínica e ainda figuram como o elemento-chave de qualquer processo diagnóstico. O cronograma para a produção do DSM-V 14,22 (www. dsmS.org), que se iniciou em 1999, estabeleceu um provável lançamento para não antes de 2013. A proposta para o DSM-V é que os diagnósticos não sejam firmados a partir de estudos anteriores, mas a partir de estudos que validem os critérios sugeridos 14. Estes critérios não necessariamente devem ser baseados nos critérios utilizados no DSM-IV7, uma vez que muitos destes apresentam evidentes defeitos, como instabilidade temporal de alguns diagnósticos, comorbidades frequentes, similaridades genéticas associadas, respostas similares a tratamento, fraca discriminação de prognóstico etc. 14 . Imperfeições à parte, o processo de revisão da CID- 11 (http:/ /www.who.int/ classifications/ icd/I CDRevision/ en!index.html) também está em andamento, com a grande preocupação de equiparar aos critérios do DSM-V 32,33 . No início de 2010, a Associação Psiquiátrica Americana disseminou para a comunidade científica o primeiro esboço do DSM-V (Tabela VIII), confirmando a
dificuldade de implementar uma nosografia dimensional baseada em etiologia. O fracasso de formular um modelo etiológico tem apontado para o uso de validadores biológicos, como um estágio intermediário para uma classificação essencialista33 • Os 11 validadores considerados para agrupar os transtornos mentais são: fatores de risco genético compartilhados; história familiar; fatores de risco ambientais específicos compartilhados; substratos neurais compartilhados; marcadores biológicos compartilhados; antecedentes compartilhados de temperamento; processamento compartilhado de anormalidades cognitivas ou emocionais; similaridade sintomática; alta taxa de comorbidade; curso da doença; e resposta ao tratamento. Os idealizadores também se apoiaram em modelos dimensionais, extraídos através de análises multivariadas de dados populacionais, que são difíceis de serem incorporados na nosografia34 . Entre as questões levantadas33 -35, ainda persiste o debate sobre se os diagnósticos serão categoriais ou dimensionais, a relação entre transtornos do eixo I e do eixo II, a redução da distância entre o DSM e a CID 32, a validação em diferentes contextos culturais e a sua adaptação para uso de não especialistas. Baseados em dados populacionais, os transtornos bipolares foram especialmente questionados quanto ao grupo diagnóstico que deveriam pertencer35 . A questão de diagnósticos transculturais e as pectos específicos de certas patoplastias, que parecem representar apresentações diferentes de uma síndrome, modificadas por aspectos culturais não foram contemplados a contento. Linhas de pesquisa que, como querem os próprios organizadores do DSM-V 14' 22, talvez só estejam presentes em futuras edições da classificação são: a mudança para uma nosologia totalmente baseada em etiologia, e não mais em sintomatologia; e a busca de critérios de risco para a prevenção primária. Este pluralismo metodológico, tentando cobrir todos os aspectos da nosologia, representa os esforços contra o reducionismo científico e contribui para construir uma nosologia psiquiátrica mais sólida. Finalmente, guardadas as devidas diferenças, o sistema classificatório atual continua sendo descritivo, sendo metodologicamente semelhante à nosologia feno menológica e descritivo-comportamental praticada há pouco mais de cem anos. Novas teorias, abordagens integrativas e essencialistas são necessárias para construir uma nosologia válida e robusta.
Questões 1. Assinale a alternativa correta. A melhor classificação de doena) b) c) d) e)
ças deveria ser: Sindrômica Ateórica Etiológica Monotética Dimensional
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
2. Assinale a alternativa correta. A principal meta da nova classificação da Associação Psiquiátrica Americana, o DSM-V, pretende: a) Unificar os critérios do DSM-V com a CID. b) Basear a nosologia em princípios etiológicos. c) Mudar as categorias do DSM- IV para dimensões. d) adotar uma classificação baseada em hierarquia de importân.
Cla.
e) Abolir a possibilidade de comorbidade de transtornos psiquiátricos.
3. Assinale a alternativa correta. Em geral, os diagnósticos efetuados por clínicos são: a) Confiáveis e fidedignos, quando baseados em critérios operacionais como DSM e CID. b) Válidos e úteis, quando baseados em critérios operacionais como DSM e CID. c) Desprovidos de valor. quando não se baseiam em sistemas modernos de classificação. d) Desestigmatizantes, por rotular um paciente psiquiátrico. e) baseadas em teorias psicodinâmicas ou evidências biológicas. 4. Assinale a alternativa correta em relação à ocorrência de comorbidade em psiquiatria: a) A comorbidade é um artefato de sistema de classificação, pois as entidades nosológicas são puras e mutuamente exclusivas. b) A etiologia dos transtornos mentais não se relaciona com a comorbidade, pois a comorbidade é sempre um fenômeno natural. c) Dois transtornos que ocorrem simultaneamente indica que um transtorno causou ou precipitou o surgimento do segu ndo. d) Adotar um modelo dimensional de doença mental pode abolir a presença de comorbidade. e) A comorbidade é mais regra do que exceção em Psiquiatria. 5. Um diagnóstico dimensional tem as seguintes características, exceto: a) Cria limites claros entre saúde e doença. b) Tanto sintomas típicos como atípicos são contemplados. c) Transmite informações adequadas, as quais podem ser utilizadas para pesquisa. d) Permite comparar as similaridades entre mais de um transtorno. e) Nem sempre são mais válidos que o diagnóstico categoria!.
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Anamnese Psiquiátrica na Infância e Adolescência A
Enio Roberto de Andrade Miguel Ange lo Boarati
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 295 Características particulares da anamnese psiquiátrica na infância e na adolescência, 296
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Avaliação clínica -aspectos gerais, 297 Avaliação nas diferentes fases da vida, 303 Crianças pequenas (bebês e crianças pré-escolares), 303 Crianças em idade escolar (6 a 12 anos), 304 Adolescentes, 305 Avaliações complementares, 305 Uso de instrumentos de avaliação, 306 Considerações finais, 306 Questões, 306 Referências bibliográficas, 307
1. Conhecer importantes peculiaridades da anamnese psiquiátrica na infância e na adolescência quando comparada à realizada em adultos. 2. Inteirar-se sobre a anamnese na psiquiatria infantil e sobre o uso de técnicas lúdicas e não verbais, principalmente em crianças pequenas ou com alterações do desenvolvimento emocional, cognitivo ou de linguagem. 3. Saber quais dados provenientes de diferentes settings em que vivem a criança ou o adolescente são necessários e como deve ser o contato com os demais profissionais que realizam o acompanhamento. 4. Conhecer o papel das diferentes fontes de informação (pais/ cuidadores, outros familiares, professores, criança/adolescente) na entrevista clínica e no processo diagnóstico.
Introdução
5. Identificar os principais desafios e dificuldades da entrevista psiquiátrica nas diferentes fases da vida. 6. Utilizar estratégias diversificadas na condução da entrevista
A anamnese psiquiátrica na infância e na adolescência guarda características muito particulares quando comparadas às avaliações clínicas feitas em outras fases da vida. Esses pontos serão abordados com mais profundidade ao longo deste capítulo. Contudo, é importante ressaltar já nesse início que adaptações e adequações no estilo da entrevista e o uso de técnicas complementares, além de um tempo maior para essa avaliação, são fundamentais. Outro ponto bastante importante e que também será alvo de discussão é a necessidade de uma avaliação mais global do entorno do paciente. Dados da família, estrutura dinâmica e aspectos acadêmicos, sociais e do desenvolvimento físico, cognitivo e emocional serão fundamentais dentro do processo de avaliação e não poderão ser negligenciados. A anamnese varia também conforme a idade do indivíduo, sendo necessário o uso de técnicas não verbais, principalmente em crianças menores ou com prejuízo do
diagnóstica frente à recusa da criança ou adolescente em participar do processo de avaliação clínica.
desenvolvimento da linguagem. Além disso, diferentes condições psicopatológicas podem acometer a criança ou o adolescente. Entretanto, pela precocidade de sua apresentação, não é incomum que aspectos de sua apresentação clínica não sejam claros o suficiente para que o diagnóstico definitivo seja feito logo nas primeiras entrevistas 1•2 • Isso faz com que o diagnóstico possa e deva ser revisado constantemente, pois a apresentação inicial e o curso clínico da doença muda ao longo do desenvolvimento do indivíduo e das intervenções realizadas. Dessa forma, é fundamen tal que o psiquiatra da infância e da adolescência tenha uma atenção especial e bastante aguçada desde a entrevis-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
ta inicial e do seu primeiro contato com a criança ou com o adolescente e durante o seu seguimento, pois o processo de avaliação continuará ao longo desse tempo. Este capítulo visa mostrar algumas particularidades a respeito da anamnese psiquiátrica na infância e na adolescência, ressaltando a necessidade do uso de técnicas não verbais e do estabelecimento de um forte vínculo tanto com o paciente quanto com os familiares, que será parte ativa do processo de tratamento. Será feita uma rápida abordagem nas avaliações complementares (linguagem, neuropsicológica, perfil dinâmico, aprendizagem), além de instrumentos de avaliação clínica que podem ser bastante úteis no auxílio dessa anamnese, mas que podem tornar-se prejudiciais, caso sejam utilizados de forma inadequada (com o intuito de substituir a avaliação clínica direta feita pelo médico).
Características particulares da anamnese psiquiátrica na infância e na adolescência A principal característica particular que distingue a anamnese psiquiátrica na infância e adolescência das realizadas em adultos é o caráter voluntário do paciente a ser avaliado; a criança não vai ao médico, ela é levada. Dificilmente uma criança ou adolescente solicitará aos seus pais ou responsáveis esse tipo de atendimento e mesmo quando isso acontecer, por lei, esse paciente terá que ser acompanhado por um responsável. Muitas são as razões que levam uma criança ou ado lescente para uma entrevista psiquiátrica. Entre elas, estão alterações de comportamento, como agressividade, irritabilidade e hiperatividade, além de alterações do desenvolvimento neuropsicomotor, cognitivo ou emocional. Problemas no desempenho acadêmico, alterações no padrão de sono e alimentação, oscilações de humor e alteração no relacionamento social também estão entre algumas das razões que motivam essa avaliação 1'2 • O paciente é trazido para avaliação a partir da in dicação de um terceiro elemento, que poderá ser um ou ambos os pais, outros familiares, pessoas próximas (como vizinhos ou amigos) ou a escola. Essas alterações são observadas em um ou mais desses settings e os dados fornecidos por esses participantes são de extrema importância, sobrepondo com frequência queixas objetivas da criança ou do adolescente, que, muitas vezes, em razão de seu nível de desenvolvimento cognitivo e emocional, por resistência ou falta de confiança (que precisará ser conquistada ao longo das entrevistas), pode recusar-se a falar do que está acontecendo ou sentindo, ou até mesmo permanecer em mutismo. Um adulto, quando vai a uma consulta psiquiátrica para si, consegue ter maior clareza sobre as razões que o trazem ao atendimento psiquiátrico, pois tem a capacidade de avaliar, quantificar e mensurar suas queixas clínicas. Já crianças e adolescentes, principalmente as me-
nores ou com o nível de desenvolvimento cognitivo e emocional comprometidos, não conseguem. A coleta de dados terá que ser a mais ampla possível, porém esses dados deverão ser organizados de forma coerente e lógica, sob o risco de não possibilitarem o desenvolvimento de um raciocínio clínico adequado, tornando-os obsoletos e cansativos. É fundamental que os dados obtidos na entrevista com os pais, familiares, professores e a criança/adolescente tenham uma sequência cronológica adequada. Os sintomas devem ser pontuados quanto a tempo, forma que foram desenvolvidos e intensidade de sua apresentação, se houve fatores desencadeantes/agravantes ou o surgimento de outros sintomas simultaneamente aos principais e quais foram as repercussões que eles tiveram no comportamento, no funcionamento global e no desenvolvimento dessa criança/adolescente. Outro ponto bastante peculiar da anamnese psiquiátrica na infância e na adolescência é a necessidade de uma investigação dos ambientes nos quais a criança e o adolescente se desenvolvem. Dificilmente um psiquiatra de adulto precisará conversar com o chefe de trabalho de um paciente. Entretanto, é fundamental que o psiquiatra da infância e da adolescência mantenha um contato (mesmo que indireto, por meio de relatórios e e-mails) com professores, coordenadores pedagógicos, profissionais que o atendem (como psicólogos, fonoaudiólogos, psicopedagogos etc.). Esses profissionais, muitas vezes, foram os primeiros a observar sintomas e alterações significativas no processo de desenvolvimento da criança e do adolescente, além de serem fontes para descreverem o contato com os pais. A anamnese e o tratamento de um adulto, sobretudo em quadros como os transtornos ansiosos e depressivos, na maioria das vezes, não exige a participação dos familiares. No caso de crianças e adolescentes, essa presença será fundamental desde o início, tanto no fornecimento de dados para a avaliação diagnóstica como durante o tratamento clínico e psicoterápico. Os pais ou responsáveis são quem garantirão a manutenção desse tratamento, fornecendo dados sobre a evolução, administrando a(s) medicação( ões) e avaliando situações de risco ou piora clínica que exijam intervenções de urgência. Por vezes, serão observadas divergências entre os relatos do pai e da mãe com respeito aos comportamentos alterados apresentados pela criança ou pelo adolescente3, que deverão ser investigados e confrontados com outros relatos e a própria observação do clínico. Não é incomum que a criança e o adolescente se recusem a colaborar com a entrevista diagnóstica. Frequentemente eles comparecem sem prévia consulta e alheios à sua vontade, muitas vezes não entendendo a razão para aquele atendimento. Podem demorar de forma significativa para estabelecer vínculo de confiança com o médico, pois ele é visto como um "parceiro" dos pais ou professores no intuito de enquadrá-lo em um padrão de comportamento mais
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adequado ou puni-lo por seus erros. Serão necessárias paciência e habilidade desse profissional para estabelecer uma aliança terapêutica com o paciente, para que dados complementares e fundamentais da história clínica, que até então eram ignorados pelos mais próximos, como ideação suicida, história de abuso físico ou sexual, restrição alimentar, delírios e alucinações, possam ser obtidos. Os transtornos psiquiátricos, quando iniciados na infância e na adolescência, apresentam algumas peculiaridades próprias do início prodrômico, não sendo possível, muitas vezes, fechar-se um diagnóstico durante al gum tempo pela falta de elementos clínicos suficientes para atender os atuais critérios diagnósticos seja do DSMIV ou do CID- 104•5 • Sintomas bastante inespecíficos - irritabilidade, agressividade e agitação - podem estar presentes em diferentes quadros psicopatológicos, como transtornos de humor, transtornos hipercinéticos e transtornos de conduta (TC) 6 • Em adultos, é comum que os sintomas estejam mais bem estabelecidos e o quadro clínico mais definido, o que facilita o diagnóstico. Além do mais, a maioria dos sistemas classificatórios foi elaborada primariamente para adultos e posteriormente adaptados para infância e adolescência. Quadros clínicos que normalmente se iniciam no final da adolescência e início da vida adulta, como transtorno bipolar (TB) e esquizofrenia, costumam ter uma gravidade significativamente maior quando surgem na infância ou na adolescência precoce7 . Ultimamente, nota-se que em outras condições as quais anteriormente se iniciavam na adolescência, como transtornos alimentares, transtornos ansiosos e uso e abuso de substâncias psicoativas8, estão ocorrendo em idades mais precoces, contribuindo para um maior prejuízo no desenvolvimento físico, cognitivo, emocional, social e acadêmico dessas crianças. Já os transtornos do desenvolvimento, como os transtornos globais do desenvolvimento (TGD) (ou espectro autista), as síndromes genéticas que cursam com alterações do desenvolvimento e do comportamento e os trans tornos disruptivos, transtornos de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH), transtorno desafiador e de oposição (TDO) eTC apresentam -se mais precocemente, muitas vezes em períodos pré-verbais (em TDAH). Esses quadros precisam ser adequadamente avaliados e tratados, evitando-se o não reconhecimento ou o diagnóstico inadequado. Por isso, quando uma criança ou adolescente estiverem em uma avaliação psiquiátrica, exigirão sempre uma investigação aprofundada, por causa do caráter evolutivo, maior gravidade clínica, forte impacto sobre o desenvolvimento e a maior associação com outras patologias psiquiátricas e clínicas ao longo da vida9 - 12. Esses são alguns dos aspectos que tornam a anamnese em psiquiatria infantil bastante particular quando comparada à avaliação em adultos, sendo um grande desafio que requer do psiquiatra um amplo conhecimento de fenomenologia, crescimento e desenvolvimento (as-
pectos físicos, cognitivos e emocionais), além de exigir grande habilidade no trato com os diversos personagens desse processo (pais, familiares, escola e principalmente a criança e o adolescente).
Avaliação clínica - aspectos gerais A anamnese psiquiátrica na infância e na adolescência exige habilidade, experiência clínica e boa capacidade empática do entrevistador, tanto no contato com criança ou adolescente, quanto com os adultos que a acompanham. Normalmente, a avaliação é feita em vários encontros, antes que hipóteses diagnósticas sejam levantadas e o tratamento clínico seja estabelecido. É importante não se deixar envolver em excesso com as angústias, as expectativas e os medos dos pais com relação ao diagnóstico clínico dessa criança ou adolescente. Atualmente, considerando-se o fácil acesso às informações por intermédio dos meios de comumcaçao, e comum que os prus Ja apresentem suas suspeitas sobre esse diagnóstico e tentem induzir o psiquiatra a confirmar ou não aquela suspeita. Por exemplo, alguns pais, tendo lido sobre o TDAH, apresentam como características semelhantes a esse diagnóstico hiperatividade, agitação e não envolvimento em atividades especialmente de grupo (sinalizando um provável sintoma de desatenção). Após avaliação, pode ficar claro que a criança é portadora de TGD (quadro muitas vezes suspeitado e temido) e a confirmação se torna muito difícil, pois os pais muitas vezes não trazem informações que seriam importantes para a realização do diagnóstico. Além disso, frequentemente o diagnóstico apresentado não é aceito. A coleta dos dados de história é fundamental e deve ser ampla e completa. O Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência (SEPIA) do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) já há muitos anos utiliza-se nos diferentes programas de atendimento desse serviço - um padrão de anamnese clínica bastante abrangente (Figura 1). Dependendo da especificidade do grupo que atende a essa criança (transtornos afetivos, transtornos ansiosos, TDAH, psicoses, TGD etc.), algumas perguntas são mais bem elucidas. Mas de qualquer forma essa é uma entrevista prática, adequada e de fácil utilização. Não existe um padrão formal para a primeira entrevista e com quem ela deverá ser realizada primeiro. Alguns profissionais preferem ter o contato inicial com a criança e o adolescente para estabelecer um vínculo e investigar queixas e sintomas que porventura tenham motivado sua vinda para a entrevista, sem a interferência inicial do olhar externo. Outros já preferem um contato inicial com os pais ou responsáveis, levantando as queixas principais, dados do desenvolvimento e de terceiros (como a escola), permitindo que os pais se sintam •
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SERVIÇO DE PSIQUIATRIA DA INFÂNCIA E DA ADO LESCÊNCIA (SEPIA) DO IPq-HCFMUSP Identificação: Queixa Principal: HMA: Antecedentes gestacionais Gravidez planejada ( ); gravidez desejada ( ); gravidez bem aceita ( ); mãe fez pré-natal ( ); mãe teve problema de saúde ( ); mãe bebia ou usava outras drogas ( ); mãe usou remédios ( ); mãe fez RX ( ); mãe teve hemorragia e quase abortou ( ); mãe teve sintomas psiquiátricos ( ); mãe sofreu agressões físicas e/ou psicológicas ( ) Outros: ________________________________________ Condições do parto e pós-parto Nasceu com kg; altura: em; APGAR: /_ Nasceu pré-maduro ( ); nasceu de parto normal ( ) ou cesárea ( ) ; tomou banho de luz ( ) ; (Cianose/hipotonia/tocotraumatismo/reanimação) _________________________ Descreva: A criança passou mal no berçário ( ) ; a mãe passou mal depois do parto ( ) Descreva: Antecedentes patológicos Teve catapora ( ); sarampo ( ); caxumba ( ); rubéola ( ); teve desmaio ( ); teve convulsão ( ); teve TCE ( ); tinha ou tem asma/bronquite ( ) ; teve meningite ( ) ; já fez tratamento com psicólogo/psiqu iatra ( ) ; já fez ou faz tratamento clínico ( ). Descreva: - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Se for menina: Primeira menstruação com _ _ anos; na menstruação tem cólica ( ) ou fica mais nervosa ( ) Hábitos Usou ou ainda usa chupeta ( ); chupava ou chupa polegar ( ) ; morde ou mastiga roupa ( ) ; rói unha ( ); tem ou teve tiques ( ) ; gagueja ou gaguejava ( ) ; não quer tomar banho ( ) ; não escova os dentes ( ) Alimentação Come muito pouco ( ) ; come muito ( ); não come alimentos duros ( ) ; só toma lanche ( ) ; sempre engasga ( ); não sabe comer sozinho ( ) ; já fez regime para emagrecer ( ) Escolaridade Teve problemas no ensino infantil ( ) ; teve problemas no ensino fundamental ( ) ; teve problemas no ensino médio ( ) Não gosta de ir para escola ( ); não se interessa por estudos ( ); está na série ( ); tem notas ruins ( ); já repetiu de ano ( ); não se comporta na escola ( ); professores reclamam muito da criança ( ) Antecedentes familiares Pai: Idade Profissão Nível de instrução_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ Situação atual: empregado ( ) desempregado ( ) Já fez tratamento com psiquiatra ou psicólogo ( ) DoençasPQU:TAB( );TOM( );Alcoolismo( ); T. pânico( );TAG( );TOC( ); TIC( );Játentousuicídio() Outros:_________________________________
Figura 1 Padrão de anamnese clínica do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência (SEPIA) do IPq- HCFMUSP (conunua) .
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Mãe: Idade Profissão Nível de instrução ____________ Situação atual: empregada ( ) desempregada ( ) Já fez tratamento com psiquiatra ou psicólogo( ) Doenças PQU: TAB ( ); TOM ( ); alcoolismo ( ); T. pânico ( ); TAG ( ); TOC ( ); TI C ( ); já tentou suicídio ( ) Outros:._________________________________ Tem irmãos ( ) Idades: _ _ _ _ _ _ __ Tem irmãs ( ) Idades:_ _ _ _ _ _ _ __ Já fizeram tratamento com psiquiatra ou psicólogo ( ) Doenças PQU: TAB ( ); TOM ( ); alcoolismo ( ); T. pânico ( ); TAG ( ); TOC ( ); TIC ( ); já tentou suicídio ( ). Outros: Avós: Já fizeram tratamento com psiquiatra ou psicólogo ( ). Descreva: _________________ Tios: Já fizeram tratamento com psiquiatra ou psicólogo ( ). Descreva: Primos: Já fizeram tratamento com psiquiatra ou psicólogo ( ). Descreva: _________________ Estudo familiar Mora em casa própria ( ); de aluguel ( ); emprestada ( ); divide com outras pessoas ( ) Os pais são separados ( ); não mora com os pais ( ) ; mora só com o pai ou só com a mãe ( ) : mora com parentes ( ) Quem sustenta a casa: _ _ _ _; quem educa a criança PAI ( ) ou MÃE ( ); coloca de castigo ( ); bate ( ); Só conversa ( ); outros métodos: - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Renda familiar por mês R$_ _ _ _ _ _ __ Interrogatório sobre os diferentes aparelhos Cabeça e pescoço: Aparelho ca rdiovascular: Aparelho respiratório: Aparelho digestivo: Aparelho locomotor: Aparelho geniturinário: Exame do Estado Mental Descrever os comportamentos ou transcrever as palavras do paciente sempre que possível, pois esses podem ser necessários e de grande va lor para a compreensão do estado mental das crianças • Aparência, percepção e recepção ao entrevistador e modo de contato inicial (visual/físico) • Nível de consciência neurológica • Postura. comportamento e eventuais movimentos • Contato verbal e tipo de discurso (fluência, coerência, tonalidade da voz e adequação com idade cronológ ica) • Atenção e concentração · Memória • Afetividade (humor, tônus, ressonância e modulação) • Pensamento (curso. forma e coerência com tema e realidade) • Produção intelectual (adequado ou não ao esperado para a idade cronológ ica) • Iniciativas e planejamento de seus atos • Juízo e crítica • Pragmatismo
Figura 1 (Continuação) Padrão de anamnese clínica do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência (SEPIA) do IPq- HCFMUSP.
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à vontade para verbalizar suas angústias e apreensões sem a presença do paciente. Nesse momento, algumas orientações podem ser realizadas. Entretanto, deve-se em algum momento conversar com a criança ou o adolescente separado de seu responsável e vice-versa. Alguns pontos fundamentais devem ser explorados, independentemente da queixa que fez com que os pais ou responsáveis trouxessem a criança ou o adolescente para a avaliação. Outros, a depender da queixa principal, precisarão ser mais bem investigados. A seguir, serão pontuados alguns itens da anamnese que necessitam ser explorados: 1) Dados da identificação: esse é um item que muitas vezes é negligenciado, mas pode fornecer informações importantes. Ao se especificar a idade do entrevistado, a escolaridade, o local de nascimento e de residência, a religião, a fonte de encaminhamento e o acompanhante do paciente, é possível obter dados como nível socioeconômico, sua inserção (ou não) no processo educacional, estrutura educacional e formação moral, grau de envolvimento das figuras parentais (ou responsável) no processo diagnóstico e terapêutico, possíveis situações de risco psicossocial etc. 2) Queixa principal: em poucas palavras será colocado o eixo principal que motivou o atendimento psiquiátrico. Esse item deverá ser o eixo principal da entrevista, devendo ser abordado com bastante profundidade e todos os aspectos relacionados a ele precisam ser levantados e anotados na história da moléstia atual. 3) História da moléstia atual: esse será o corpo da entrevista clínica. Nele deverão estar primeiramente o início dos sintomas que motivaram aquela consulta. Pontos, como fatores desencadeantes, mantenedores ou agravantes, deverão ser ressaltados; o quanto a presença desses sintomas prejudicou (e ainda prejudica) essa criança/ adolescente nos vários aspectos da vida e do seu desenvolvimento, se houve ou não regressão das habilidades adquiridas etc. Muitas vezes os pais chegam nesse mo mento com diagnósticos pré-estabelecidos, ou porque leram em alguma fonte (confiável ou não) ou porque já submeteram o paciente a alguma avaliação psiquiátrica ou psicológica anterior. É preciso evitar prender-se a esse diagnóstico, porque muitas vezes ele pode ser incorreto, incompleto ou tendencioso podendo prejudicar o pro cesso diagnóstico que está sendo realizado nesse momento. Dados referentes a tratamentos anteriores devem ser anotados de forma organizada temporalmente, indu indo terapêuticas farmacológicas (classes medicamentosas, doses, associações realizadas, tempo de uso e efeitos observados). Muitas vezes os pais ou responsáveis têm alguma dificuldade em obter tais dados, sendo necessária a solicitação de prontuários ou cópias de receitas anteriores, visando à mais completa coleta dessas informações. É importante tentar desenhar em um gráfico de como foi a evolução clínica dos sintomas e das suas abordagens ao longo do tempo.
O diagnóstico clínico não deve ser fechado nesse momento, permitindo que os dados possam ser colhidos com os pais, com outros elementos e com a própria criança ou o adolescente. Contudo, é fundamental que haja algum direcionamento nas perguntas, caso alguns dados se mostrem relevantes ou precisem ser mais bem explorados. Os exemplos acima mostram que um mesmo diagnóstico feito em idade semelhante apresentou cursos clínicos completamente distintos a depender de vários fatores. Isso também ocorre em outras condições psicopatológicas (esquizofrenia, transtornos ansiosos, transtornos alimentares, etc.). É importante evitar que principalmente os pais, em razão da intensa ansiedade gerada pelo processo todo, tragam dados de forma desconexa e desorganizada nesse momento da entrevista, não sendo possível juntá-los dentro de um padrão evolutivo da doença. Caso haja informações relevantes do desenvolvimento ou de antecedentes familiares, elas deverão ser colocadas posteriormente, evitando-se perder o foco sobre a queixa principal e os sintomas mais relevantes. Isso evita que a história da moléstia atual se torne confusa e pouco elucidativa. 4) Antecedentes pessoais: esse é um item muito importante na anamnese psiquiátrica da infância e da adolescência, porque conterá dados evolutivos dos processos que antecedem ao nascimento da criança/adolescente e que muitas vezes são fortes determinantes no desenvolvimento de transtornos mentais. É necessário que sejam pontuados dados com as condições da gravidez (planejamento e aceitação), saúde física e emocional da mãe, presença de estressares psicológicos e ambientais, realização de pré-natal, uso de medicações e desenvolvimento de patologias obstétricas. As condições e as forma do parto, bem como as condições ao nascimento e a necessidade de assistência neo natal devem ser anotadas, quando possível por meio do cartão de pré-natal. As condições físicas e emocionais da mãe no pós -parto, bem como a existência de dificultadores no cuidado precoce com o bebê (depressão materna, impossibilidade de aleitamento materno etc.) são pontuadas nesse momento. Deve-se relatar de forma cronológica o desenvolvimento neuropsicomotor no primeiro ano de vida, a existência de atrasos na maturação neurológica (engatinhar, sentar, andar, falar, controle de esfíncteres) e a ausência de interação social (sorriso social ou falta de interação com a mãe ou cuidado r mais próximo). Esses são itens que sugerem alterações neurológicas ou a possibilidade de quadro de TGD, devendo ser investigados o mais precocemente possível. É possível observar o desenvolvimento da comunicação não verbal já no primeiro ano de vida. A tentativa de estabelecer contato e interagir com o ambiente vaiampliando-se ao longo dos meses. Deve ser anotado temporalmente o desenvolvimento dos primeiros sons, palavras, frases e discurso, assim como a qualidade dessa língua-
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gem. Déficit na interação social e no desenvolvimento da linguagem são os sinais mais precoces dos TGDs. O eventual atraso no desenvolvimento neuromuscular (sustentar o pescoço, sentar sem apoio, ficar em pé, andar e correr) pode indicar a presença de síndromes genéticas, quadros de paralisia cerebral ou degenerativos, como a síndrome de Rett (em meninas a partir dos 5 meses) ou transtorno desintegrativo da infância. O desenvolvimento adequado da linguagem e do controle motor, incluindo o controle dos esfíncteres, precisa ser pontuado e anormalidades funcionarão como subsidiários da necessidade de uma investigação de quadros neurológicos. Os antecedentes mórbidos, como doenças e viroses da infância, traumas e acidentes, cirurgias, infecções (principalmente do SNC), crises epilépticas, alergias e uso de medicações controladas, devem ser anotados, mesmo que as condições já tenham sido sanadas e não tenha havido possíveis complicações ou sequelas. É importante anotar o histórico vacina! da criança e se fez acompanhamento de puericultura, pois alterações precoces da evolução pôndero -estatural são percebidas nessa fase. A presença de alterações pré-mórbidas (ou seja, mudanças comportamentais que antecedam o início dos primeiros sintomas que motivaram a consulta psiquiátrica) é pista importante e necessita ser avaliada. É necessário investigar a qualidade do sono e a presença de parassonias (bruxismo, sonambulismo, terror noturno, pesadelos, sonilóquios, insônia, sono agitado etc.) 13 - 1\ alterações no controle esfinctérico (presença de enurese e encoprese), hábitos alimentares (aleitamento materno, processo de transição dos alimentos, dificuldades no aceite, problemas no desmame), presença de alterações do hábito alimentar inespecífico, ansiedade de separação, fobia escolar, dormir só ou no escuro, medo de animais, tiques, inquietação, agitação, rigidez, obsessões e compulsões etc. Muitas alterações presentes, como hábitos pré-mórbidos, podem constituir sintomas prodrômicos do quadro clínico atual. É preciso também descrever condutas e comportamentos pré-mórbidos, relacionando principalmente o temperamento apresentado pela criança ou pelo adolescente antes do surgimento das primeiras manifestações da psicopatologia. A Tabela I mostra alguns traços de conduta e comportamento que precisam ser pesquisados durante a anamnese da criança e do adolescente, tentandose correlacionar o quanto essas características podem estar associadas direta ou indiretamente com o início dos sintomas clínicos. 5) Antecedentes familiares: a avaliação dos antecedentes familiares é fundamental no sentido de se obter informações que sugiram quadros psicopatológicos que apresentem incidência familiar, como o transtorno de humor, TDAH, dependência química etc. Além disso, esses antecedentes nos fornecem dados fundamentais da dinâmica familiar e da existência de es-
Tabela I
Condutas, traços de temperamento e comportamentos pré-
mórbidos Labilidade emocional
A criança se irrita facilmente, apresentando acessos de raiva e baixa tolerância a frustrações.
Instabilidade psicomotora
Criança extremamente inquieta e agitada, facilmente estimulável e com difícil controle motor. É desajeitada e "hiperativa".
Auto ou heteroagressão
Em situações simples, a criança/adolescente se descontrola, tem atitudes violentas em diferentes locais (casa, escola). Envolve-se em brigas facilmente ou se automutila quando tomada por sentimentos ruins.
Sintomas
Criança/adolescente bastante preocupada, ansiosa, teme ser criticada ou até mesmo avaliada. Evita situações consideradas ansiogênicas, sendo bastante insegura e dependente. Timidez excessiva.
anSIOSOS
Atitudes imaturas
Necessidade constante de aprovação, atitudes infantis diante de conflitos, age como criança menor, dependência constante dos pais.
Medo de tudo
Medos exagerados e infundados. Medo de dormir sozinha, no escuro ou em seu quarto. Medo de animais e situações cotidianas.
Tendência a depressão
Criança mais triste, emburrada e chorona. Adolescente complexado com o corpo, sente-se feio e desinteressante. Declara que ninguém lhe tem apreço. Chora por qualquer motivo. Tem poucos amigos e acidenta-se com frequência. Recusa-se a experiências novas.
Manifestações de ciúme
Rivalidade excessiva com irmãos e outras crianças pela atenção e objetos. Não aceita dividir nada do que e- seu.
Traços obsessivos
Rigidez no comportamento, necessidade de uniformidade, rigor com a forma e a ordem. Não brinca para não se sujar. Sofre excessivamente com as mudanças e com as críticas.
Fugas de casa
Não volta para casa para dormir. Passa o dia todo na rua.
Atos antissociais
Pequenos furtos, ameaças e brigas. Mentiras com a finalidade de fugir das responsabilidades. Não assume seus erros.
Mitomania
Relata fatos irreais, vivenciando-os por vezes sem a crítica adequada. Vive no mundo da fantasia.
Dificuldades de socialização
Não consegue se inserir em um grupo novo, pois teme ser rejeitado ou desprezado. Consegue iniciar o contato com crianças novas, mas é incapaz de manter e consolidar a amizade por não tolerar ser confrontado ou desacatado. Quer que tudo seja do seu jeito sempre. Inabilidade no contato social. Não consegue lidar com a diferença. Quando existe a suspeita de TGD: ausência de contato visual ou verbal, não aceita contato físico, não se aconchega no colo. Seus interesses são particulares e restritos, não se encaixa no contexto do grupo.
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tressores ambientais que favoreçam ou intensifiquem os sintomas clínicos apresentados pela criança e pelo adolescente na presente avaliação. Muitos comportamentos que são evidenciados durante a entrevista do paciente podem apresentar raízes no comportamento apresentado pelos pais e cuidadores. Um grande exemplo disso é o comportamento alimentar da criança, que sofre forte influência do aprendizado social, sendo os pais grandes "educadores" nesse processo 15 . Não é incomum que os pais tragam como queixa principal que a criança não se alimenta adequadamente ou que apresenta um comportamento bastante restritivo e, ao se investigar com certo cuidado, observa-se que o mesmo comportamento está presente em um ou ambos os pais. Outros comportamentos também são aprendidos dentro do contexto familiar, principalmente os medos, comportamento agressivo e as restrições que a criança por ventura apresente. Sendo assim, é muito importante a detecção desse padrão de comportamento disfuncional para que se possa, mesmo durante o processo de avaliação, realizar orientações específicas aos pais e cuidadores. Muitas vezes não é possível evidenciar claramente a presença de antecedentes familiares positivos para um ou mais transtornos psiquiátricos na família, seja por ausência de diagnóstico ou pela não avaliação prévia de membros da família. Contudo, atitudes e comportamentos mais disfuncionais (agressividade, hiperatividade, sintomas depressivos, uso abusivo de álcool e outras substâncias psicoativas, descontrole financeiro, entre outros) podem ser bons indicativos de que existem dentro do contexto familiar ou próximo (em familiares de segundo e terceiro graus) elementos de risco, tanto considerando fatores genéticos como fatores psicossociais. É importante nesse momento citar cada membro da família, considerando a idade, função, presença ou não de transtornos psiquiátricos confirmados ou suspeitos, presença de doenças clínicas crônicas (diabetes, hipertensão arterial, doenças cerebrovasculares, outras doenças crônicas). Esses dados também são importantes em parentes mais distantes como tios, primos e avós, caso convivam muito próximo ao paciente (às vezes no mesmo ambiente). 6) Estudo familiar: é importante fazer o registro de dados do nível socioeconômico, renda mensal e pessoas responsáveis pela manutenção da estrutura familiar. Casos em que pais portadores de transtornos mentais mo derados a graves apresentem sério comprometimento ocupacional não são incomuns, ficando a manutenção da casa a cargo de um avô ou tio. Por vezes, essa situação proporciona um estressar contínuo que funciona como um perpetuador daquela estrutura patológica, por meio de cobranças e ameaças constantes. Na Tabela li estão elencados os principais itens que devem ser levantados durante a entrevista clínica. 7) Exame físico e exames laboratoriais: o exame físico visa a descartar a presença de patologias médicas ou
do desenvolvimento concomitante ao transtorno psiquiátrico em investigação, além de mensurar se esse desenvolvimento está ocorrendo a contento; entretanto, pela própria especificidade do atendimento psiquiátrico (p. ex., diante da suspeita de uma síndrome genética). Nesses casos, sugere-se que essa avaliação mais pormenorizada seja feita por um especialista. Um exame neurológico sumário e dados antropométricos, no entanto, devem ser aferidos, principalmente porque ao longo do tratamento haverá mudanças no peso e na altura que exigirão adequação na dose das medicações, bem como na monitorização de alguns dos efeitos colaterais presentes em alguns psicofármacos. Exames laboratoriais gerais (hemograma, função renal, tireoidiana, enzimas hepáticas e pancreáticas, perfil glicêmico e lipídico) deverão ser solicitados sempre na primeira consulta (caso não tenham sido solicitados recente-
Tabela 11
Estrutura e organização familiar
Nível socioeconôm ico
Renda familiar, responsável Os) por essa renda, tipo de habitação (própria, alugada, emprestada), loca I da residência etc.
Estruturação da família
Quantas pessoas vivem na casa, principais cuidadores, situação de saúde de todos os membros, presença de estressares crônicos ou agudos dentro do ambiente familiar.
Relacionamento entre os membros da família
Situação conjugal, quanto tempo de casado, presença de filhos de outro casamento, tipo de relacionamento entre esses membros, presença de agressão ou sinais de desestrutura e caos familiar.
Situação dos pa1s ou responsáveis
Nível de escolaridade, situação ocupacional, personalidade e temperamento, presença de eventos de riscos (alcoolismo, brigas, ameaças). É importante salientar o grau de envolvimento e concordância de ambos os pais ou responsáveis sobre o processo de avaliação ao qual a criança ou o adolescente está sendo submetido.
Situação dos demais membros da família
Presença coexistente de outros membros da família, presença de transtornos mentais ou de personalidade, nível de influência sobre o paciente (positiva ou negativa), grau de interferência sobre a educação do paciente. Presença de rivalidades entre os irmãos.
Métodos educacionais empregados
Forma como a criança ou o adolescente são educados, existência de castigos físicos, educação permissiva e sem limites precisos. Se há utilização de métodos inadequados e violentos na forma de educar.
Hábitos religiosos
Presença de prática religiosa na família e o quanto essa prática se mostra saudável ou pode tornar-se prejudicial, promovendo ou evitando o diálogo e a resolução de conflitos.
Prática de lazer
Verificar o hábito da família de desenvolver momentos de lazer juntos como viagens, passeios e visitas a familiares e amigos.
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mente por um clínico) e repetidos periodicamente a fim de monitorizar doses e efeitos colaterais dos psicofármacos. Exames de eletroencefalograma (EEG) poderão ser solicitados na suspeita de quadros epilépticos, que muitas vezes cursam com alterações de comportamento, agitação e agressividade. Já os exames de neuroimagem (principalmente a tomografia computadorizada e a ressonância magnética) são obrigatoriamente solicitados diante da suspeita de malformação cerebral ou doenças que afetem o desenvolvimento precocemente, como os TGDs e o retardo mental. 8) Exame psíquico: o exame psíquico visa a avaliar o estado mental da criança ou do adolescente no momento do primeiro contato. Ele se realiza desde o instante em que o paciente entra na sala de consulta e só termina ao final da entrevista. Os itens a serem avaliados e anotados devem guardar direta relação com a fase do desenvolvimento físico, cognitivo e emocional em que o paciente se encontra. Discrepâncias entre o que está sendo observado e o que é esperado para aquela faixa etária devem ser anotadas. Os itens do exame psíquico são: a) Aparência, percepção, receptividade com o entrevistador - nesse momento é possível avaliar a capacida de de contato e desenvolvimento de relação da criança/ adolescente. Crianças menores, algumas vezes, não aceitam ficar sozinhas com o examinador. O ideal é que a entrevista seja em um momento em que elas possam ser observadas sem a interferência externa, mas quando necessário é possível permitir a presença de um acompanhante nas primeiras entrevistas, procurando-se observar dados da relação entre paciente e cuidador. b) Nível de consciência neurológica - permite avaliar a presença de alterações no nível de consciência e suspeitar de fatores que possam contribuir para esse estado, como status epiléptico ou superdosagem de medicações . ' . psicotropiCas. c) Postura, comportamento e eventuais movimentos. d) Contato verbal, qualidade do discurso - é possível verificar o nível do desenvolvimento da linguagem verbal, da capacidade de abstração e a qualidade e características da forma oral de comunicação. Alterações grosseiras de linguagem são bastante perceptíveis, outras mais sutis necessitarão de avaliação fonoaudiológica posteriormente. e) Atenção, concentração e memória - Durante o desenvolvimento da entrevista, é possível observar em vários momentos o grau de atenção e concentração que a criança mantém sobre o que está sendo tratada. Testes simples para avaliar a atenção e a memória podem ser solicitados, como contar uma história e pedir para que ela repita ou verificar se consegue manter o fluxo da conversa ou constantemente se dispersa com qualquer agente distrator. f) Pensamento - é importante adaptar a avaliação do pensamento ao nível de desenvolvimento cognitivo
do paciente. Crianças menores apresentam um pensamento mais concreto, com quebras no discurso, cuja avaliação por si só é mais prejudicada. Já em adolescentes, o pensamento é mais abstrato, sendo possível se avaliar de forma fidedigna alguma eventual alteração. g) Afetividade - avalia-se o humor, tônus, ressonância e modulação afetiva. h) Produção intelectual - deverá ser adequada à faixa etária do paciente. i) Iniciativas e planejamento de seus atos - pode-se avaliar a intenção que a criança ou o adolescente tinham em determinado comportamento ou ação. Em crianças maiores e adolescentes, já é possível se verificar a capacidade de avaliação das consequências e a introjeção de regras sociais e de convivência (noção de certo e errado). j) Juízo e crítica - avaliar a capacidade de julgamento crítico, a partir da realidade do próprio paciente.
Avaliação nas diferentes fases da vida Uma característica bastante peculiar da anamnese psiquiátrica na infância e na adolescência, quando comparada com aquela realizada em adultos e também em idosos, é que ela se modifica substancialmente a depender da faixa etária e do nível de desenvolvimento em que essa criança ou adolescente se encontra. Em bases gerais, a investigação ativa dos sintomas clínicos é a mesma, mas a forma de abordagem, as técnicas utilizadas e também a apresentação clínica a ser observada é muito diferente. Crianças menores exigem habilidades lúdicas e uso de técnicas não verbais, já adolescentes necessitam de um bom rapport e estabelecimento de vínculo de confiança para que os dados sejam o mais próximo da realidade. A seguir, serão descritas algumas técnicas mais apropriadas para a realização da anamnese nas diferentes etapas da infância e da adolescência.
Crianças pequenas (bebês e crianças pré- escolares) A avaliação psiquiátrica nessa faixa etária é um grande desafio, além de bastante controversa e polêmica. Primeiramente, em razão da dificuldade de subdividir essa faixa etária em outras subfaixas, considerando desenvolvimento físico, neuropsicomotor, cognitivo e emocional. Em segundo lugar, porque sintomas presentes e que são sugestivos de algum transtorno psiquiátrico são bastante inespecíficos nesse período. Além disso, médicos, professores e pais muitas vezes não sabem dizer se psiquiatras da infância e da adolescência avaliam crianças muito pequenas que apresentem alterações comportamentais e emocionais. Alterações dessa natureza nessa faixa etária costumam ser avaliadas por neuropediatras, que, ao descartarem alterações neurológicas ou do desenvolvimento neuropsicomotor,
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não prosseguem em uma investigação mais abrangente, incluindo a avaliação de aspectos emocionais e fenomenológicos, até por sua própria formação. Muitos são os fatores que levantam a necessidade de se iniciar a avaliação psiquiátrica nessa faixa etária. Na Tabela III, foram elencados alguns dos principais fatores dentro de um espectro de competências. De maneira geral, alterações do neurodesenvolvimento, desenvolvimento cognitivo e social, dificuldades relacionadas ao controle das emoções e do comportamento e desafios na educação dessas crianças são os principais deles. A avaliação de crianças pequenas exigirá uma investigação aprofundada dos dados pré-natais e das condições de parto e de desenvolvimento em razão da precocidade do surgimento dos sintomas. Uma investigação neurológica completa, associada a EEG e avaliação por neuroimagem, deverá ser relacionada a fim de descartar a presença de lesões cerebrais. Normalmente a entrevista com os pais e responsáveis deve preceder a avaliação da criança, visto que dados como o comportamento em diferentes settings, além da resposta emocional a diferentes situações, deverão ser pontuados. A entrevista com a criança deverá ser associada à observação lúdica, desenhos e outros recursos não verbais 16 , principalmente quando o desenvolvimento da linguagem estiver atrasado ou incompleto. O processo de avaliação deve ser bastante minucioso e detalhista e não deve ser atropelado pela ansiedade de pais, familiares e escola, na busca de uma resposta definitiva.
Tabela 111 Principais sinais e sintomas que indicam a necessidade de avaliação psiquiátrica na fase pré-escolar Áreas de desenvolvimento
Principais sintomas observados
Desenvolvimento neuropsicomotor
Atraso ou parada do desenvolvimento motor (sustentar o pescoço, sentar, andar). perda do tônus muscular, parada do crescimento físico e da circunferência craniana.
Desenvolvimento da linguagem
Atraso na fala, problemas de articulação, ausência de linguagem.
Desenvolvimento cognitivo
Alterações no nível de inteligência, memória, atenção, aprendizado.
Desenvolvimento emocional
Ausência de contato afetivo (ausência de contato visual, rejeição do contato afetivo), controle das emoções, hipersensibilidade a estímulos externos (explosões afetivas, crises de birra). resposta emocional inadequada e desproporcional.
Desenvolvimento social
Contato familiar, sociabilização, participação de grupos, contato com outras crianças.
Comportamentos inadequados
Agitação, agressividade, hiperatividade, impulsividade, comportamentos bizarros, hipersexualidade, enurese e encoprese.
Sono, alimentação
Sono agitado, insônia e outras parassonias. Comer compulsivamente, restrição alimentar, pica.
Crianças em idade escolar (6 a 12 anos) As indicações de avaliação psiquiátrica em crianças na idade escolar concentram-se principalmente em alterações que afetam direta ou indiretamente o processo de escolarização. As principais queixas apresentadas por pais e professores durante o processo de avaliação consistem em hiperatividade, impulsividade, desatenção, agressividade, mau rendimento escolar, mudanças no padrão de humor, sintomas ansiosos, dificuldades específicas de aprendizagem, entre outras. É um período particularmente delicado dentro do desenvolvimento da criança, no qual novos desafios se somam a urna expansão do mundo infantil, antes restrito à família e ao meio social próximo. Esse processo se inicia mais precocemente hoje em dia, por causa do início também mais precoce da inserção da criança na escola. Nesse momento, podem surgir queixas referentes a sociabilidade, respeito a regras e figuras de autoridade, queixas ansiosas e depressivas, além de flutuações do humor e problemas relacionados ao processo de aprendizagem formal. Alterações cognitivas e emocionais podem ser mais evidentes. Apesar disso, os sintomas relacionados a transtornos psiquiátricos ainda são muitas vezes inespecíficos, não permitindo um diagnóstico definitivo. Com relação às dificuldades escolares, é importante avaliar o nível e o tipo de dificuldade apresentada. Testes simples, como solicitar a leitura de pequenos textos ou a realização de operações matemáticas básicas, podem dar uma noção do tipo de dificuldade apresentada. É importante que seja adequado o nível de escolarização em que a criança se encontra. Análises mais detalhadas deverão ser realizadas por meio da avaliação psicopedagógica e fonoaudiológica, que serão discutidas logo mais neste capítulo e também em outras seções deste livro. A anamnese psiquiátrica nesse período, diferentemente da fase anterior, pode utilizar-se de recursos verbais de uma entrevista psiquiátrica padrão. O estabelecimento do vínculo com a criança também pode necessitar de abordagens não verbais, com características lúdicas e abordagens indiretas (desenhos, jogos, brincadeiras etc.) 16• Dados fornecidos pela escola são fundamentais nesse processo, por ser o local onde a criança passa grande parte do seu dia e aspectos alterados de comportamento, relacionamento e emoções se tornam bastante evidentes. Não é incomum que haja discrepância entre os dados fornecidos pelos pais e pela escola. A entrevista com a criança poderá apresentar alguns elementos dificultadores, por exemplo, a criança estar agitada, agressiva ou hostil, recusando-se a falar ou até mes mo permanecer na sala. É importante que o médico mantenha-se receptivo e tente outras formas de aproximação como brincadeiras ou conversar sobre assuntos de interesse da criança (futebol, games, herói, etc.). Essa atitude possibilitará a criação de vínculo e diminuirá a desconfiança e hostilidade do paciente em relação à situação de
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consulta (lembrar que muitas vezes a criança comparece contrariada ao atendimento). É importante que se estabeleça um contato direto com o professor, pois além de fornecer dados essenciais no processo de avaliação diagnóstica, ele terá um papel fundamental no tratamento clínico, monitorando a evolução e a resposta clínica, e na administração de medicações (como acontece no caso dos psicoestimulantes).
Adolescentes A adolescência é um período intermediário entre a total dependência financeira, afetiva e legal em relação às figuras parentais presentes na infância e a autonomia, a segurança e a liberdade presentes na vida adulta. O jovem oscila entre esses dois pontos a todo o momento e isso torna esse período particularmente crítico e muitas vezes confuso em sua vida17 • O início de muitos transtornos mentais ou uma melhor caracterização de sintomas inespecíficos surgidos na infância ocorre nesse período. Essa é a fase de maior ocorrência do primeiro episódio de mania, depressão, psicose, ataques de pânico, restrição alimentar e também do contato com substâncias psicoativas 18 . Além disso, o jovem é por natureza mais desconfiado e necessita de um tempo maior para que confie a um adulto (principalmente um estranho, que esteja diretamente associado aos pais, como é caso do psiquiatra) suas questões, dúvidas, questionamentos e também sintomas clínicos. É fundamental dentro do processo de anamnese a conquista da confiança e da aliança terapêutica com esse jovem. Não é incomum que ele compareça para a entrevista contrariado com o atendimento, negando-se a verbalizar possíveis motivações para a presente consulta. Especialmente nos casos de comportamentos antissociais, contato com drogas e queixas escolares por comportamentos disruptivos, comumente os adolescentes se negam a participar da entrevista. Também em quadros depressivos graves ou em um episódio de mania/hipomania, pode haver a recusa de participar da avaliação clínica. Não há consenso quanto à melhor forma de abordagem do adolescente no processo de anamnese psiquiátrica e se ela deverá preceder a entrevista com os pais ou res ponsáveis. Por outro lado, por causa de sua característica mais desconfiada, é comum que, após iniciado um contato direto com o adolescente, o médico tenha dificuldades de realizar uma entrevista apenas com os pais sob o risco de quebra do vínculo de confiança. Não é incomum que os pais depositem no médico a função de "checar" e "investigar" a vida do jovem para saber se ele está envolvido com drogas ou se já iniciou a vida sexual. É importante que o jovem não sinta na figura do psiquiatra nem um amigo (para quem pode contar tudo e que nunca vai dizer nada aos pais, apesar dos riscos aos quais ele se coloca) nem um "detetive" contratado pelos pais, que irá
investigá-lo e repassar um relatório completo sobre sua vida fora do contexto familiar. O papel do psiquiatra deverá ser centrado na figura externa ao contexto familiar, que procurará, por meio de diferentes abordagens, auxiliá-lo em seu sofrimento e a continuar seu processo de desenvolvimento de forma saudável e adequada, além de auxiliar a família a compreender e ajudar o jovem a enfrentar essa situação. Por outro lado, a questão do sigilo a respeito de fatos relevantes poderá ser estabelecido entre o psiquiatra e o adolescente, desde que a sua integridade física e psíquica esteja assegurada.
Avaliações complementares As avaliações complementares à anamnese clínica, como a avaliação neuropsicológica, do perfil emocional, psicopedagógica e do desenvolvimento da linguagem, são de extrema importância para se analisar o panorama completo que a criança e o adolescente apresentam, considerando suas reais possibilidades de desenvolvimento, fragilidades e potenciais deficiências. Características específicas dessas avaliações possuem uma descrição mais pormenorizada em outras seções deste livro. Nesse ponto, cabe ressaltar a possibilidade que essas avaliações permitem, associadas a uma história clínica bastante completa, de um conhecimento mais completo sobre fatores de proteção e de risco tanto para o início de um transtorno psiquiátrico, como para definir melhor o prognóstico e as abordagens terapêuticas mais indicadas. A avaliação neuropsicológica, por meio de testes específicos, permite mensurar de forma qualitativa os recursos cognitivos da criança e do adolescente. Déficits cognitivos presentes na infância e na adolescência interferem de maneira bastante grave no processo de aprendizagem e na adaptação psicossocial dessa criança/adolescente 19 • Essas interferências podem levar a prejuízos que perduram por toda a vida do indivíduo. Já a avaliação do perfil emocional, por meio de testes projetivos como TAT, CAT e desiderativo, permite compreender como se processa o desenvolvimento dos recursos emocionais a estruturação do ego e os principais mecanismos de defesas utilizados em cada fase da vida20 . Crianças e adolescentes com transtornos que afetam globalmente o desenvolvimento costumam apresentar alterações cognitivas e também emocionais que trarão consequências importantes ao longo da vida. O mesmo ocorre na vigência de transtornos afetivos, ansiosos e quadros psicóticos, entre outros. Alterações no desenvolvimento da linguagem, na fluência verbal de conteúdos semânticos ou fonológicos e alterações no processamento auditivo podem estar presentes em muitos quadros psicopatológicos na infância e na adolescência e a avaliação fonoaudiológica permite observá-las e realizar intervenções precocemente, para corrigir as distorções e minimizar os prejuízos tardios. A avaliação psicopedagógica permite o diagnóstico diferen-
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cial dos transtornos específicos da aprendizagem, bem como das alterações provocadas pelas diferentes psicopatologias nesse processo. Todas essas avaliações não substituem a avaliação clínica e não devem ser solicitadas com a intenção de se fazer um diagnóstico clínico, pois esse é um processo ligado à atuação do psiquiatra. Entretanto, elas permitem mensurar a gravidade e as consequências que a presença de um ou mais diagnósticos psiquiátricos tem sobre o desenvolvimento da criança e do adolescente.
Uso de instrumentos de avaliação As escalas de avaliação clínica são entrevistas e questionários (podendo ser abertas, semiestruturadas e estruturadas, a depender do padrão das perguntas) que permitem uma uniformização da coleta de dados e têm sido amplamente utilizadas tanto na prática clínica como em pesquisas. O seu uso permite que não seja esquecido ou negligenciado nenhum ponto que deveria ser investigado. Existem diversas escalas que já estão traduzidas e são bastante utilizadas na prática clínica e em pesquisas. Entre elas, pode-se citar o K-SADS PL (Schedule for Affective
Disorders and Schizophrenia for School-Age Children-Present and Lifetime Version), que também foi validado para o uso em idade pré-escolar21 -22, WASH-U-SADS (Washington University in St. Louis Kiddie Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia) 23 e o CBCL (Child Behavior Checklist)24, sendo algumas específicas para determinadas psicopatologias como o MASC (ansiedade), CDRS e CDI (depressão), YMRS (mania), SNAP-IV (TDAH) etc. O uso das escalas permite o treinamento dos critérios diagnósticos do DSM-IV, automatizando perguntas fundamentais para a investigação dos diferentes quadros clínicos, avaliação de sintomas, seu curso e intensidade, e presença de comorbidades. Entretanto, a aplicação de escalas exige treinamento e prática clínica, para que sejam observados, durante a entrevista, pontos e detalhes importantes que os instrumentos não contemplam. As escalas também apresentam, como qualquer forma de avaliação, limitações e indicações de uso e não substituem em nenhum momento a entrevista clínica face a face, tanto com a criança ou com o adolescente quanto com os pais e responsáveis.
Considerações finais O presente capítulo ressalta algumas peculiaridades presentes na anamnese psiquiátrica na infância e na adolescência: diferenças entre as abordagens, dificuldades e desafios apresentados, além da adequação de acordo com a faixa etária, nível de desenvolvimento emocional e cognitivo, presença de deficiências e a necessidade de dados provenientes de outros elementos (pais, familiares, amigos, escola etc.). Destaca-se a necessidade de amplo conhecimento em crescimento e desenvolvimento normal da infância e adolescência, além de especial habilidade e experiência
clínica na entrevista com essa população, visando detectar alterações. É necessário o uso de técnicas não verbais e outras formas de desenvolver a relação com a tríade médico-paciente-família. Uma análise bem feita necessitará de múltiplos dados e de avaliações complementares, além da investigação de possíveis causas orgânicas associadas ao quadro clínico que motivou o atendimento. Não se deve precipitar a conclusão e o diagnóstico clínico deverá ser reavaliado periodicamente, mesmo depois de instituídas as múltiplas abordagens terapêuticas. O contato com outros profissionais, como psicólogos, pedagogos, fonoaudiólo gos, entre outros e com a escola, são fundamentais ao longo de todo o processo.
Questões 1. Com relação à anamnese na psiquiatria infantil, não é correto a)
b)
c)
d) e)
afirmar que: Ela exige experiência e habilidade do clínico na coleta e na organização dos dados de história clínica, principalmente em crianças ou adolescentes com alterações de linguagem, atraso no desenvolvimento ou outras alterações no contato. As informações provenientes dos pais são fundamentais, porém não se pode abrir mão da aplicação de escalas de avaliação clínica (K-SADS, CBCL etc.). sem as quais o diagnóstico clínico e diferencial não pode ser concluído. Necessita de várias entrevistas diagnósticas com os pais e a criança (sendo ela avaliada com os pais e sozinha). bem como de informações provenientes da escola e de outros profissionais. Deve ser feita de forma cautelosa, evitando-se diagnósticos precipitados diante de demandas parentais_ Por vezes necessitará de exames complementares, como exames bioquímicas e de neuroimagem, principalmente diante da suspeita de lesão cerebraL
2. Alterações muito precoces e que interferem no desenvolvimen-
a) b) c) d)
e)
to global da aquisição das habilidades cognitivas, sociais e de linguagem da criança, além de dificuldade no contato afetivo, associado a restrições no campo de interesses, podem ser indicativos de: Alterações emocionais, sendo necessário a testagem do perfil emocional. Alterações cromossômicas, sendo necessário o cariótipo_ Alterações ambientais, sendo necessário o encaminhamento para terapia famil iar. Alterações globais do desenvolvimento, sendo necessário descartar alterações do SNC e alterações genéticas, além do encaminhamento para tratamento multidisciplinar. Alterações físicas, sendo necessário investigação com pediatra.
3. Uma importante diferença entre a esquizofrenia de início precoce e o autismo infantil se faz por meio de: a) Observação do início dos sintomas, sendo mais precoce no pri. me1ro caso.
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b) Gravidade da apresentação clínica. sendo sempre mais grave no autismo infantil. c) Avaliação de um desenvolvimento normal no caso da esquizofrenia. seguido de perdas significativas a partir do início dos sintomas. d) Presença de marcadores biológicos bem definidos no caso do autismo. e) Ineficácia a qualquer abordagem psicofarmacológica no tratamento do autismo.
4. Existem importantes diferenças entre a avaliação clínica de crianças e de adolescentes. sendo que a(s) principal(is) seria(m) : a) A dificuldade no segundo grupo de elencar os principais sintomas. pois eles se confundem com as questões próprias da adolescência. b) Na necessidade muitas vezes da utilização de técnicas lúdicas e não verbais. principalmente em crianças menores. pela fase do desenvolvimento emocional e cognitivo que esse grupo se encontra. em poder manifestar claramente os sintomas. sobretudo os internalizantes. c) A inexistência de técnicas específicas para avaliação de crianças. sendo que apenas achados indiretos (queixas do pai e da escola) seriam as únicas fontes de informações confiáveis no caso. d) O fato de adolescentes normalmente se recusa rem a serem submetidos a avaliação psiquiátrica. por se sentirem coagidos e pressionados pelos pais. e) Patologias que afetam os adolescentes, como depressão. ansiedade e transtorno bipolar. não acometerem crianças. 5. Frente à recusa ou resistência em participar da entrevista cl ínica por parte da criança ou adolescente. a conduta mais adequada a ser adotada pelo psiquiatra será: a) Contrapor a essa resistência de forma firme e incisiva. obrigando o paciente à colaboração. b) Suspender a entrevista, propondo o encaminhamento do caso. c) Utilizar-se de formas e abordagens alternativas. como demonstrando interesse por assuntos gerais de interesse do paciente. afastando-se temporariamente do foco da consulta. d) Manter o seguimento somente com os pais. pois são eles que fornecerão informações confiáveis. e) Considerar esse comportamento sempre como parte integrante do transtorno de conduta, e adotar terapêutica apropriada para o caso.
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Anamnese Psiquiátrica no Adulto
Renato Del Sant Renato Luiz M archetti
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 308 A prática do exame psiquiátrico, 308 Entrevista clínica psiquiátrica, 309
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
O vínculo na entrevista clínica psiquiátrica, 31 O Procedimentos da entrevista clínica psiquiátrica, 313 Técnicas da entrevista clínica psiquiátrica, 315 O exame do estado mental, 317 Os métodos psicopatológicos, 318 Os exames biológicos complementares, 321 Testes psicológicos, 322 Questões, 322 Referências bibliográficas, 322
1. Reconhecer o papel central da anamnese na prática psiquiátrica. 2. Saber quais são as características centrais da entrevista clínica psiquiátrica. 3. Conhecer os processos e etapas da entrevista clínica psiquiátrica. 4. Conhecer os principais tipos de vínculos e como implementá-los. 5. Conhecer os principais procedimentos que se realizam durante a entrevista. 6. Identificar as principais técnicas de vínculo e de informação. 7. Saber quais são as diretrizes para se realizar o exame do estado
mental. 8. Conhecer as principais informações psicopatológicas relevantes do exame do estado mental. 9. Conhecer os principais métodos psicopatológicos utilizados durante a anamnese.
Introdução
1O. Conhecer o papel de outros exames na complementação da anamnese psiquiátrica.
A psiquiatria é uma especialidade médica que emprega conhecimentos das ciências naturais (física, química, biologia) e das ciências humanas - filosofia, psicologia, história, sociologia, antropologia, linguística e outrase é isto que a diferencia das demais especialidades. Em virtude desta dualidade, a psiquiatria necessita de uma metodologia própria para o seu estudo e sua prática, a psicopatologia. Devemos ao psiquiatra e filósofo alemão Karl Jaspers os fundamentos metodológicos desta especialidade, descritos em sua portentosa obra "Psicopatologia Geral': em 191 O, que, em pleno século XXI, serve como o modelo mais aprimorado para o entendimento dos doentes mentais. 1
A prática do exame psiquiátrico A psiquiatria avançou muito nos últimos anos: estudos epidemiológicos, biologia molecular, novos tratamentos farmacológicos, neuropsiquiatria. Apesar de todo este avanço, ainda hoje, a aplicação de todos esses conhecimentos ao paciente depende da apreensão correta do adoecimento psíquico por meio dos sintomas e sinais psicopa-
tológicos. Não há exames que substituam o exame clínico do paciente com problemas mentais. A psicopatologia, uma ciência bastante complexa, depende, por sua vez, da entrevista clínica psiquiátrica para a identificação de sinais e sintomas e para a motivação do paciente para a comunicação dos mesmos. Ela é, para o paciente, a porta de entrada para o processo de resolução dos seus problemas. Mas é também neste mo mento que concentram-se seus anseios e temores, sua necessidade de ser compreendido e ajudado. A realização de uma boa entrevista clínica psiquiátrica exige muita experiência do profissional. É uma tarefa árdua investigar as vivências do paciente, seus rendimentos psíquicos, apreender onde o psíquico se objetiva no mundo compartilhado dos demais seres, dar um significado sobre o que o paciente reflexiona sobre seu próprio vivenciar, tentar estabelecer relação de causas somáticas entre corpo e mente, considerar que esta mente é historicamente condicionada e, portanto, analisar as influências sociocultu-
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rais, apresentar a biografia deste paciente e, finalmente, dar um nome a tudo isto, ou seja, um diagnóstico, visto que o psiquiatra é um clínico e deve realizar um diagnóstico. Uma boa entrevista clínica psiquiátrica deve ser longa, mas nem toda entrevista longa, entretanto, é boa. ' Para essa prática, é fundamental que logo no início do encontro entre psiquiatra e paciente exista um clima especial. O médico precisa conseguir transmitir por meio de uma linguagem e um comportamento espontâneo, que ele está realmente interessado em compreender o que se passa com o paciente. Não é um interrogatório. Também não é exatamente uma conversa informal, embora possa às vezes parecer, mas um "encontro onde existe intenção de entrar numa relação afetiva e reflexiva com o outro". É o que denominamos de empatia. Não quer dizer envolver-se emocionalmente com o paciente, mas tentar experimentar como o paciente está suportando suas vivências, por-se no lugar dele. Tarefa impossível, mas que pode ser realizada de uma forma bastante aceitável, desde que exista treinamento. Empatizar com o paciente e ao mesmo tempo refletir racionalmente sobre o que esta havendo com ele. O psiquiatra executa dois movimentos: pessoal humano e visar algo racionalmente definido; por isso a entrevista cansa o profissional. A boa entrevista clínica psiquiátrica tem sido regularmente considerada como arte: resultado de talento natural ou aprendizado intuitivo, não sistemático. Há, no entanto, método por trás da arte. A boa entrevista é um processo de comunicação complexo, composto por múltiplas tarefas realizadas ao mesmo tempo, por entrevistador e entrevistado. O profissonal de saúde mental, ao tornar este processo mais consciente, organizado e estrategicamente direcionado, é capaz de cometer menos erros e realizar uma entrevista mais natural, humana e eficiente. O psiquiatra deve desenvolver as suas habilidades de entrevistar pacientes com diferentes problemas mentais e tornar as suas entrevistas apropriadas para o seu reconhecimento, integrando a psicopatologia à sua atividade clínica, de maneira prática e aprofundada.
Entrevista clínica psiquiátrica Uma entrevista pode ser conceituada como um processo de comunicação entre entrevistador e entrevistado, no qual ocorre a passagem de informação entre os mesmos. A principal tarefa do entrevistador é tornar esta comunicação eficiente, ou seja, obter informação confiável, válida e útil para o que se destina, dentro das limitações do tempo e local na qual ocorre. No entanto, o entrevistado também exerce um papel ativo, fundamental neste processo. O bom entrevistador deve ter a capacidade para uma interação sensível com o entrevistado, adaptando a entrevista às características do entrevistado. Existem diferentes tipos de entrevistas (por exemplo, entrevista jornalítica, entrevista admissional, etc.), e eles se distinguem por diferentes objetivos, ambientes em que ocorrem, diferentes regras e métodos de realização. Uma entrevista psiquiátrica tem como objetivo princi-
pai a obtenção de informações a respeito dos problemas mentais do paciente entrevistado. Há diferentes métodos de entrevista psiquiátrica, tais como: as entrevistas psicodinâmicas, as estruturadas e padronizadas, as para escalas e, finalmente, as entrevistas clínicas psiquiátricas.2 O objetivo da entrevista clínica psiquiátrica é a obtenção de informação confiável, válida e útil a respeito dos problemas mentais, que deverá ser elaborada e codificada de acordo com os diferentes métodos psicopatológicos, com o objetivo de planejar e implementar tratamentos, motivando o paciente para esses tratamentos e criando e mantendo uma relação terapêutica sustentável. 2 - 5 Ela tem como pressupostos a existência da doença mental e a possibilidade de abordá-la racionalmente.2 Tem como referências teóricas a psicopatologia e o pensamento médico. Requer-se do entrevistador eficiência, naturalidade e humanidade e do paciente "colaboração e eficiência': Por eficência, queremos dizer clareza, precisão, abrangência e concisão na comunicação de seus problemas. Porém a entrevista clínica psiquiátrica tem como paradoxo e desafio o fato de que os problemas mentais que devem ser esclarecidos podem afetar essa "colaboração e eficiêncià', trazendo dificuldades ao processo de comunicação, ao mesmo tempo em que trazem informações úteis para os diagnósticos e tratamentos decorrentes. Embora a boa entrevista clínica psiquiátrica deva parecer um evento natural, está na verdade bem longe disso. Para se atingir esta meta, é necessário preparação de longo prazo, sob a forma de aprendizado teórico e prático, além de preparação de curto prazo (local e pessoal), pois os diferentes locais onde a entrevista pode se realizar, o arranjo do ambiente e o posicionamento do entrevistador e entrevistado influenciam as carcaterísticas que aquela irá tomar. Antes de cada entrevista é necessário estar preparado física e psicologicamente. Tal preparação é necessária porque a entrevista clínica psquiátrica desenrola-se dentro de uma perspectiva estratégica. Tal perspectiva implica na realização da entrevista de maneira planejada e individualizada. Denominamos "estratégia de entrevistà' o planejamento e a adequação global da mesma aos diferentes problemas mentais e diferentes pacientes. 3•4•6•7 Denominamos "tática de entrevista" o planejamento e a adequação da entrevista ao momento, tema ou etapa que se desenrola. Ao analisarmos como se desenrola a entrevista ao longo das suas diferentes etapas, verificaremos que um conjunto de conteúdos variados é abordado, envolvendo problemas mentais, pessoais, existenciais, filosóficos, de relacionamento, econômicos e sociais (trabalho, escola, etc.). Durante a comunicação desses conteúdos uma série de atividades ou processos se desenvolve em paralelo, estando alguns dele sob controle consciente do entrevistador e outros funcionando de maneira automática. De maneira didática, podemos dividir os processos da entrevista nos seguintes: o controle do vínculo com o paciente, a realização de procedimentos específicos, a apli-
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DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
cação de técnicas de entrevista, a avaliação do estado mental e a elaboração das informações obtidas de acordo com os diferentes métodos psicopatológicos. Também de maneira didática, podemos dividir a etapas da entrevista em introdução, abertura, corpo da entrevista, devolutiva e encerramento (Figura 1).
O vínculo na entrevista clínica psiquiátrica Vínculo é o canal ou ambiente de comunicação, criado por entrevistador e paciente durante a entrevista e pelos papéis exercidos por cada um destes, assim como pelas regras estabelecidas implícita ou explictamente durante este processo de comunicação. O vínculo define o "clima da entrevista clínica psiquiátrica'' e a força da ligação entre o entrevistador e o paciente, a que chamamos rapport, que os une na realização desta tarefa comum. 2 •4 O processo de manejo do vínculo com paciente envolve em primeiro lugar abrir o "canal de comunicação': após o que são necessários aprofundamento e consolidação da ligação (rapport). Mesmo quando esta ligação foi construída de maneira satisfatória, há momentos da entrevista em que ela se encontra ameaçada, o que obriga o entrevistador a uma atitude ativa na resolução desse problema. Além disso, para que ele possa concluir as suas tarefas satisfatoriamente, dentro das limitações impostas pelas circunstâncias, o entrevistador deve exercer controle e direcionamento, de maneira eficiente, porém, sensível. Tais tarefas do processo de manejo do vínculo são exercidas pelos chamados "tipos básicos de vínculo': São eles o vínculo de autenticidade, de empatia, de conhecimento, da aliança terapêutica e de liderança. 2 •3 Os diferentes tipos de vínculo assinalados acima são implementados pelas técnicas de vínculo, divididas em técnicas facilitadoras e técnicas para comportamentos desadaptativos e disruptivos. O vínculo de autenticidade é utilizado para se abrir o "canal de comunicação': sinalizando para o paciente que o psiquiatra está disponível para ajudá-lo. Também é um intrumento poderoso para controlar a insegurança e ansie-
ETAPAS
dade do paciente, mas também do entrevistador, e reduzir a tensão em momentos difíceis da entrevista. Ao exercer o vínculo de autenticidade, você estará transmitindo a seguinte mensagem para o paciente: "Eu sou como você': Para isso, é necessário que você foque a sua atenção no paciente, e não no seu desempenho pessoal como entrevistador, o que é muito comum, particularmente no início da entrevista. É preciso adequar suas linguagens verbal e não verbal à do paciente e exercitar de maneira definitiva as suas habilidades sociais. Com elas conseguirá transmitir espontaneidade e consistência. O vínculo de autenticidade é o responsável pela sensação de que uma boa entrevista clínica psiquiátrica foi natural e muito parecida com uma conversa de bar. Como dissemos anteriormente, nada mais longe disso. No entanto, é ao utilizar as técnicas facilitadoras de autenticidade, apresentadas no Quadro I, que damos ' mesmos e para o paciente . para nos esta sensaçao. O vínculo de empatia facilita e aprofunda a ligação com o paciente, sinalizando a este que o psiquiatra o compreende e sente pesar pelo seu sofrimento. Ele "libera'' reações emocionais espontâneas e autênticas do paciente, que permite a obtenção e validação de sintomas e sinais. Por meio da empatia chega-se à "compreensão" do problema do paciente sob uma perspectiva humana, psicológica. Para exercer o vínculo de empatia de uma maneira eficiente procuramos sinalizar para o paciente a seguinte mensagem: "Eu o compreendo".2 Nem sempre isto é fácil. Para tal é preciso focar nas emoções e sofrimento do paciente, estabelecer bom contato visual e exercer um necessário autoconhecimento. Diferentes tipos de pacientes e atitudes por eles tomadas provocarão reações emocionais variadas no psiquiatra, facilitando ou dificultando o exercício da empatia e da compreensão. Esse exercício e o da compaixão pelo outro, só sobrevivem quando há o mínimo de julgamento moral e preconceito. Para facilitarmos a implementação do vínculo de empatia, utilizamos as técnicas detalhadas no Quadro I. Como afirmado acima, as técnicas de vínculo de empatia em geral aprofundam o rapport com o paciente mas, paradoxalmente, podem bloquear o vínculo em um subgru-
Quadro I
Técnicas facilitadoras para a empatia
Qualificação (Ex.: Você foi muito corajoso admitindo isto.) VINCULO
Reforço (Ex.: Muito bem!) Expressão de compreensão fenomenológica - compreensão da emoção e nomeação (Ex.: Você me parece muito triste!)
PROCEDIMENTOS V\
o
TtCNICAS
V\ V\
w
Expressão de compreensão genética - compreensão dos motivos e interpretação (Ex.: Parece que isto acontece porque você se sente impotente frente a estas situações, muito semelhante ao que lhe aconteceu na infância, quando foi abusado!)
u
o
ESTADO MENTAL
CC:
0...
MtTODOS PSICOPATOLÓGICOS
1 INTRODUÇÃO
2
3
ABERTURA
CORPO DA ENTREVISTA
4 DEVOLUTA
5 ENCERRAMENTO
Figura 1 Os processos e etapas da entrevista clínica psiquiátrica (modifi -
cado e adaptado de Othmer & Othmer 1994).
Expressão de compaixão (Ex.: É horrível isto ter acontecido com você... Sinto muito!) Revelação pessoal (Ex.: Numa situação parecida do passado, eu também fiquei muito triste ...)
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po de pacientes, que podem não aceitar uma determinada perspectiva que seja veiculada pela técnica ou mesmo não querem vivenciar o estado emocional "liberado" por estas técnicas. Pacientes em defesivos, paranoicos, retraídos ou mesmo psicóticos podem ter mais dificuldade de aceitação de técnicas de empatia, em especial as técnicas de expressão de compreensão e de compaixão, apresentando uma propensão maior a respostas em "espiral paranoica"4 (Quadro II). Para entendermos melhor como se desenvolve uma espiral paranoica ao aplicarmos uma técnica de vínculo de empatia, precisamos analisar as características formais desta técnica e a maneira de utilizá-la. Expressões de compreensão fenomenológica apresentam as seguintes dimensões formais: intensidade de afeto transmitido pela no meação, vivacidade representativa, convicção e intimidade. Expressões de compreensão genética podem ser analisadas de acordo com as seguintes dimensões: linguagem, perspectiva e abrangência interpretativa. Diferentes graus dessas dimensões podem influir no efeito empático e também no efeito paranoico. Em resumo, tais técnicas podem ser divididas em dois grupos: de um lado as técnicas básicas, com menor efeito empático, porém mais conservadoras, menos arriscadas; e as técnicas complexas, com maior efeito empático, porém mais arriscadas no sentido de poderem provocar mais facilmente o aparecimento de uma espiral paranoica 4 (Quadros III e IV). Além dos aspectos formais das técnicas de expressão de compreensão, devemos estar atentos à frequência e oportunidade de aplicação de tais técnicas. Embora a aplicação frequente de técnicas facilitadoras de empatia seja um elemento poderoso no aprofundamento da ligação do entre-
Quadro 11
Exemplo de espiral paranoica
Paciente:
Meu marido é um homem estranho. Ele é um demônio. Ele fica fazendo o joguinho do divórcio para me fazer parecer doida, para então se divorciar de mim.
Entrevistador:
O que você quer dizer com isso?
Paciente:
Por três meses eles me espionam. Eu acho que eles usam telescópios e sondas mentais para me observar.
Entrevistador:
É amedrontador estar sendo espionado pelos outros.
Paciente:
O que você quer dizer com isso? Como você poderia saber o que estou sentindo?
Entrevistador:
Bem, pela situação que você descreve, é amedrontador.
Paciente:
Amedrontador o suficiente para deixar alguém louco?
Entrevistador:
Bem, isto é difícil de se dizer...
Paciente:
Paciente: Qual é, doutor? Amedrontador o suficiente para deixar alguém louco, não é? Pois preste bem atenção, eu não sou louca não, ouviu? Quero ir embora daqui!
vistador com o paciente, deve-se estar seguro do momento oportuno para o início da sua aplicação. Após a aplicação de cada técnica, deve-se observar o resultado e corrigir o rumo, conforme necessário e de acordo como o descrito na análise de cada círculo empático4 (Quadro V). Para se evitar a espiral paranoica, é preciso estar atento ao comportamento defensivo ou paranoico do paciente. Também é necessário ter a atenção voltada para outros comportamentos de resistência. Com pacientes que manifestam estas características, é melhor evitar o uso de técnicas de vínculo de empatia complexas, principalmente no início da entrevista. Em alguns casos, não utilizar técnicas de vínculo de empatia é a melhor solução (Quadro VI). Embora seja importante para o paciente sentir que o profissional que o atende é semelhante a ele e o compreende, raramente o psiquiatra será procurado por tais motivos. Psiquiatras e outros profissionais de saúde mental são considerados capacitados para a resolução destes problemas e é isto, em última instância, o que se espera deles. Uma vez aprofundado o vínculo, deve-se dar ao paciente a oportunidade de consolidar a ligação com o psiquiatra. Conseguese isso com a ajuda do vínculo de conhecimento, por meio do qual este sinaliza que está interessado nos sintomas (visão médica) e problemas daquele e que tem familiaridade com os mesmos. 2 Também é por meio do exercício deste tipo de vínculo que são obtidos e validados os sintomas, chegando ao diagnóstico e à "explicação" do problema sob a perspectiva médica. A mensagem transmitida é: "Eu conheço o seu problema': Para tal, é necessário focar-se nos fatos e sintomas, usar um estilo de linguagem mais técnico e assumir atitude de objetividade, postura investigativa e didatismo. O objetivo fundamental desse tipo de vínculo é o de tornar o paciente mais seguro com relação à capacidade do profissional, mas deve-se sempre utilizá-lo com a moderação necessária, pois facilmente pode se tornar um exercício de tendências narcísicas encobertas e um veículo para a alienação do sentimento de identidade pessoal do paciente por meio de rótulos diagnósticos. Para implementar este vínculo podemos utilizar as técnicas presentes no Quadro VII. Mesmo após termos aberto o canal de comunicação e aprofundado e consolidado de maneira satisfatória a ligação com um paciente, há momentos em que corremos o risco de "por tudo por água abaixo: A principal ameaça à ligação com um paciente nasce da dificuldade de conciliação de visões que existe entre este e o psiquiatra. Embora isto possa ocorrer, de maneira sutil, em quase todo tipo de caso clínico, e nos pacientes ps1Cot1cos que se constrm como que uma parede entre a visão médica, "objetiva e realista" e a visão particular, "subjetiva e delirante': do paciente. Não entraremos aqui na discussão de natureza psicopatológica ou filosófica sobre estas difíceis questões, mas tentaremos abordá-las sob a perspectiva da realização da entrevista e da necessidade de se manter uma boa ligação com o paciente, para então conseguirmos criar uma relação terapêutica sustentável. Muitos médicos, principalmente os mais jovens, sentem -se coagidos a impor a sua visão do problema a pacienI
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Quadro 111 Exemplos de expressões de compreensão fenomenológica básicas e complexas
Quadro V
Análise do círculo empático
Fase 1 - Paciente expressa um sentimento
Dimensão analisada
Técnica básica
Técnica complexa
Intensidade do afeto
Você me parece chateado.
Você me parece arrasado.
Você me parece perdido.
Você me parece sem rumo, como numa noite escura.
Fase 5 - O paciente dá feedback para a técnica
Você me parece triste.
Com certeza você está triste!
Quadro VI
A gente sente a perda, não é?
Paciente:
Vivacidade representativa Convicção Intimidade
Você está sentindo a perda.
Fase 2 - O entrevistador percebe e compreende o sentimento Fase 3 - O entrevistador aplica técnica de vínculo de empatia Fase 4 - O paciente recebe a técnica
Exemplo de como evitar uma espiral paranoica Meu marido é um homem estranho. Ele é um demônio. Ele fica fazendo o joguinho do divórcio para me fazer parecer doida, para então se divorciar de mim.
Quadro IV Exemplos de expressões de compreensão genética básicas e complexas
Entrevistador:
O que você quer dizer com isso?
Dimensão analisada
Paciente:
Por três meses eles me espionam. Eu acho que eles usam telescópios e sondas mentais para me observar.
Linguagem
Perspectiva
Abrangência interpretativa
Técnica básica
Parece-me que você se sentiu exposto, ao ter que competir.
Técnica complexa
Parece-me que você é afetado por um complexo de inferioridade
Parece-me que você se sentiu exposto, ao ter que competir. (perspectiva subjetiva)
Parece-me que você se sentiu diminuído, ao ter que competir. (perspectiva do entrevistador)
Parece-me que você se sentiu exposto, ao ter que competir naquela situação.
Parece-me que em todas as situações de competição você se sente exposto.
tes psicóticos delirantes, antes de eles estarem preparados para isso. Normalmente, o resultado dessa prática não é apenas não terapêutica, como também contribui fortemente para a criação de situações de impasse que caminham rapidamente para o rompimento da relação. Para evitar isso, utilizamos a aliança terapêutica, por meio da qual sinalizamos ao paciente que aceitamos a sua visão do problema e que somos seu aliado. Essa postura é especialmente importante ao se comunicar um diagnóstico ao paciente, para estabelecer uma estratégia de tratamento e firmar um contrato de tratamento. A mensagem que lhe enviamos é: "Eu estou ao seu lado'~ 2 • 3 Para tanto, neste ponto da entrevista devemos nos fo car na visão subjetiva do paciente, avaliar a sua crítica com relação à realidade dos fatos (crítica plena, parcial ou ausente) e, munidos de um certo grau de criatividade, desenvolver uma atitude de aceitação e cumplicidade. Vejamos no Quadro VIII as técnicas para se implementar a aliança terapeutlca. Embora a entrevista clínica psiquiátrica seja um empreendimento realizado entre o psiquiatra e seu pacienA
'
Entrevistador:
Paciente:
E como você sente sendo espionada pelos outros? O que você acha? Em cada lugar que eu vou, tem gente atrás de mim. A gente vai ficando acuada...
Entrevistador:
Bem, eu nunca vivi esta situação, mas imagino que seria muito difícil.
Paciente:
Às vezes eu acho que estou ficando louca...
Entrevistador:
Talvez eu pudesse ajudá-la com esta sensação...
Paciente:
Eu acho que estou precisando de um calmante, senão eu vou ficar louca mesmo.
te, espera-se que esse tenha um certo grau de controle sobre o que se desenrola e direcionamento para que consiga atingir os objetivos autopropostos e esperados pelo paciente. Assim, enfatizamos: embora tudo pareça muito natural e espontâneo, durante toda a entrevista o profissional terá que exercer um controle ativo, mas sutil. Tal controle e direcionamento é dado pelo vínculo de lide rança, por meio do qual é sinalizado ao paciente que se está interessado na sua melhora e que tem condições de guiá-lo até lá. Esta ascendência só pode ser conquistada pelo psiquiatras nestas condições, conseguindo, assim, motivação para mudança e tratamento, o estabelecimento de metas e limites. A mensagem do psiquiatra será "Pode contar comigo". 2 Foque na detecção de resistências, defesas e comportamentos disruptivos. Seja assertivo e assuma a iniciativa. Demonstre interesse no bem-estar do paciente. Dependendo da situação, você poderá utilizar diferentes técnicas para implementar o vínculo de liderança. Como assinalado na discussão sobre aspectos estratégicos e táticos de uma entrevista clínica psiquiátrica, devese haver flexibilidade de papéis e adequação ao paciente e ao momento da entrevista procurando, assim, um equilíbrio de papéis exercidos durante os diferentes tipos de vínculo.
25 ANAMNESE PSIQUIÁTRICANOADULTO
Quadro VIl Técnicas facilitadoras para o conhecimento
Quadro VIII Técnicas facilitadoras para aliança terapêutica
Doença em perspectiva social (Ex.: Este é um problema que atinge boa
Expressão de aceitação (Ex.: Ser perseguido por inimigos poderosos é
parte da população...)
muito estressante!)
Termos técnicos (Ex.: É chamado de síndrome de...)
Expressão de empatia e compaixão (Ex.: Eu compreendo o que você
Informações especializadas (Ex.: Acomete indivíduos com tais características...) Familiaridade (Ex.: Tivemos muitos casos semelhantes na nossa clínica ...) Lidar com dúvida (Ex.: Percebo que você tem dúvidas... Procure
sente e me preocupo com isto...) Aliança com a "parte sadia" do paciente (Ex.: Você precisa estar emocionalmente fortalecido para enfrentar tal situação!) Estabelecimento de objetivos comuns - agendas aberta e encoberta (Ex.: Esta medicação tomará você invulnerável aos seus inimigos! - E também reduzirá ou curará os seus delírios...)
informações adicionais com outros especialistas no assunto. O mais importante é você se sentir seguro a respeito do seu problema e tratamento ...)
Procedimentos da entrevista clínica psiquiátrica Durante a entrevista clínica psiquiátrica são realizadas algumas atividades especializadas, necessárias para o sucesso da entrevista como ato médico. Nós as chamamos procedimentos das entrevista clínica psiquiátrica. Esses procedimentos estão associados à coleta de informações e realização do diagnóstico e ao contrato de tratamento, garantindo a continuidade e adesão do paciente ao mesmo?- 10 No Quadro IX vemos os principais procedimentos. O local da exame deve ser adequado para a tarefa. Silêncio, privacidade garantida, conforto. Apresentar-se ao paciente, cumprimentá-lo formalmente, identificar-se e explicar o objetivo da conversa; esta é a maneira de iniciar a entrevista, mesmo nos casos onde o paciente é involuntário ao tratamento. É a apresentação. Neste momento, uma questão importante a se definir é: quem entre na sala? A regra básica é inicialmente o paciente entrar sozinho, de maneira que seja preservada a sua privacidade. No entanto, poderá ser necessária a quebra desta regra em função da idade do paciente, estado de dependência, incapacidade pessoal, demanda de paciente ou familiares e outras questões. Outra exceção é nos casos de potencial periculosidade física do paciente, onde medidas de segurança ao psiquiatra devem ser tomadas (porta semiaberta, auxiliares e pessoal de segurança em alerta). É importante lembrar que é o paciente quem indica a preferência de estar só ou acompanhado de alguém ao exame. O importante é estarmos atentos às diferentes dinâmicas de coleta de informação e outros problemas que podem surgir em decorrência dessas diferentes situações. Qual o nível de formalidade que devemos usar ao cumprimentar o paciente? Não há regra estabelecida, porém, sempre é mais seguro começar com um nível de formalidade superior àquele que você imagina que se estabelecerá ao final da entrevista. Há diferentes posicionamentos possíveis na sala, e cada um deles estabelece um padrão inicial de comunicação, facilitando ou dificultando diferentes tipos de vínculo. Cadeiras uma à frente da outra podem parecer ameaçadoras para pacientes defensivos. 4 Mesa entre entrevistador e paciente reforça vínculo de conhecimento, reforçando a imagem mé-
dica, mas pode distanciar e dificultar o vínculo empático. Questões de segurança também devem ser consideradas ao se organizar o ambiente e posicionar os móveis. A identificação e coleta de informações básicas envolvem a sua identificação como profissional e a identificação do paciente: nome, sobrenome, apelido, forma de tratamento preferida. As informações básicas devem ser anotadas: sexo, cor, raça, idade, estado civil, profissão, ocupação e moradia. Saber quem é a pessoa é o primeiro passo para tentar ajudá-la a resolver os seus problemas mentais. Também nos ajudará a estabelecer a etiqueta do relacionamento e a não invadir áreas sensíveis. Ao final dos procedimentos descritos acima, se encerrará a fase de introdução da entrevista, e começará o que chamamos de fase de abertura. É neste momento que se inicia a investigação dos problemas do paciente e quado realizamos a anamnese psiquiátrica. Essa anamnese se inicia com a chamada investigação inicial: motivo da consulta, motivo do encaminhamento, queixa principal. Em seguida, caminhamos para a investigação principal: história do problema principal e varredura dos problemas secundários. Após termos desenvolvido uma visão aprofundada e abrangente dos principais problemas do paciente partimos para a fase do corpo da entrevista e montamos a nossa base de dados: história de problemas passados, de uso de drogas, médica e de exames subsidiários, do desenvolvimento, social, de personalidade e comportamento e médica familiar. Devido à necessidade que sempre se impõe de controle do tempo de entrevsita, uma questão importante a se resolver é a abrangência em oposição ao detalhamento. Possivelmente teremos que completar a coleta de informações num segundo encontro, mas temos que decidir rapidamente quais serão nossas prioridades em termos de informações que terão que ser colhidas já na primeira entrevista. Anotações durante a entrevista devem ser parcimoniosas, e convém pedir a licença ao paciente para fazê-lo. Anotações extensas podem tirar a sua atenção do paciente ou causar nele insegurança quanto ao sigilo. Não se preocupe demais com partes da entrevista que possa esquecer. É infinitamente melhor compreender o paciente que anotar toda a vida dele num papel. A necessidade de realização de exame físico geral e especializado e exame neurológico deve ser definida pelo problema e contexto apresentados pelo paciente. Esses exames
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro IX
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SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Principais procedimentos da entrevista clínica psiquiátrica
Apresentação Identificação pessoal e informações básicas Anamnese psiquiátrica Exame físico e neurológico Comunicação de diagnósticos e prognósticos Explicações sobre os problemas Proposta de tratamento Orientações e prescrições Marcação de nova entrevista I consulta e despedida
poderão ser postergados para um segundo encontro, ou realizados por um especialista? Qual a urgência e importância deles para a definição das condutas iniciais a serem tomadas ao final da primeira entrevista? Há risco significativo de presença de problema somático ou neurológico? Caso se decida pela realização do exame, atente para a necessidade de haver acompanhante ou outro profissional presente. A realização do exame físico pode provocar algum tipo de impacto negativo posterior na relação médico-paciente? Há problemas de segurança envolvidos neste ato? O exame físico deve ser sempre realizado. É comum o paciente ser encaminhado por um clínico ou cirurgião, nesses casos torna-se desnecessário novo exame somático, desde que o psiquiatra tenha se certificado da realização do mesmo pelos encaminhadores do paciente. Às vezes o exame físico é postergado devido ao comportamento não cooperativo do paciente, estados de agitação, agressividade ou pela intuição do psiquiatra, nos casos onde se percebe que o paciente não está preparado psicologicamente (quadros persecutórios, neuroses transferenciais ). Muitos psiquiatras, por questões terapêuticas, preferem que o exame físico seja realizado por outro colega. Nas emergências psiquiátricas a realização do exame é difícil pelo comportamento inadequado do paciente, sendo então muito importante a constante observação dos parâmetros vitais pela enfermagem. Certos achados físicos em psiquiatria apresentam algumas peculiaridades e devem ser procurados. Observar o estado geral do paciente, sinais físicos sugestivos de doença aguda ou crônica, obesidade, emagrecimento, deformidades. A pele pode exibir lesões, equimoses ou cicatrizes, indicando quadros de auto-mutilações, crises epilépticas, uso de drogas. Observar caracteres sexuais secundários como voz, mamas, cabelos e pelos pubianos. Posturas podem indicar desconfortos, algias, mal-estar, abatimento. Higiene corporal, perda do controle esfincteriano, hálito ( cetônico, etílico), temperatura, pressão arterial e pulso. A constituição física, biotipo - muito estudado pela escola de Kretschmer, descrevendo os biotipos pícnico ( endomórfico), atlético (mesomorfo) e leptossomático (ectomórfico )- , podem ajudar na compreensão de certas correlações com o temperamento do paciente. Os endomórficos propendem
a expressar mais facilmente suas afetividades, os ectomórficos são mais reservados nessa área e os mesomórficos necessitam de mais atividade motora. O exame neurológico é importante, devido a proximidade de doenças neuropsiquiátricas. Deve ser examinado motilidade, sensibilidade, marcha, tônus estático, paresias, contraturas, discinesias, praxias, linguagem e sinais localizatórios focais. Também o exame dos demais aparelhos, cardiovascular, respiratório, digestivo, genito-urinário, que seguem os padrões da propedêutica médica tradicional, devem ser feitos. Após toda essa investigação, inicia-se a fase da devolutiva da entrevista, com a comunicação de diagnósticos e prognósticos. É quando se fala sobre a presença ou ausência de transtornos, doenças, problemas e os prognósticos dos mesmos. O que se deve comunicar? Como comunicar? Quando se deve comunicar? Obviamente estas três pequenas perguntas mereceriam várias páginas de considerações sobre as questões envolvendo reações psicológicas à presença de problemas de saúde em geral e mentais em particular, problemas de adesão a tratamento e outros. Não resolveremos essas questões no âmbito atual, mas lembramos que nesse momento da entrevista são cruciais as perspectivas desenvolvidas quando falamos sobre a aliança terapêutica. Faz parte da devolutiva da entrevista a necessidade de darmos explicações sobre os problemas. É o momento da "aula sobre a doença'', ou algo do gênero. Pode ser útil material didático impresso, sugestão de leitura de livros e a consulta de sites na internet. Nada, no entanto, substitui a velha e boa conversa olho a olho, com a necessária adaptação de linguagem, que tem como objetivos transmitir conhecimento e credibilidade e, ao mesmo tempo, diminuir o máximo possível a insegurança. Ainda durante a devolutiva da entrevista realizamos a proposta de tratamento. Explicamos todo o possível so bre o tratamento, discutimos diferentes opções e, junto com o paciente, definimos a estratégia e quem fará o tratamento. Nesse momento se esboçam, com relativa frequência, as diferentes perspectivas sobre o problema e o seu tratamento, que podem prejudicar ou mesmo impossibilitar a implementação deste. Há as preferências do médico e as preferências do paciente. Sempre que possível, negociaremos e tentaremos chegar a uma situação de decisão compartilhada, de novo, no contexto da aliança terapêutica que foi previamente estabelecida. 11 Terminamos a devolutiva com as orientações e prescrições. Há tanto orientações e prescrições verbais quanto escritas, como as receitas de medicamentos. Há também os "contratos" escritos e verbais, por meio dos quais se procura grantir a adesão do paciente. São imperativos a clareza e a simplicidade. Verifique se o paciente compreendeu a prescrição. Talvez seja necessário fazer o mesmo com o acompanhante. Ao caminharmos para o encerramento da entrevista, realizamos a marcação de nova entrevista ou consulta e despedida. Isso pode incluir a marcação de contato a distância em período intermediário (telefone, e-mail, etc.) e
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a orientação sobre procedimentos e contatos em casos de intercorrências e situações de emergência. Também não devemos nos esquecer da cobrança de honorários e outros. Quando nos despedimos, transmitimos apoio, qualificação e sempre uma mensagem de esperança.
Técnicas da entrevista clínica psiquiátrica Chamamos técnicas da entrevista clínica psiquiátrica os instrumentos especializados de comunicação que utilizamos para controlar o vínculo (técnicas de vínculo) e para coletar informações (técnicas de informação). Com o uso das técnicas realizamos o processo da comuicação propriamente dito. É a "execução da entrevistà~ 2 Na Figura 2 apresentamos a "grande famílià' das técnicas de entrevista clínica. Abordaremos inicialmente as técnicas de informação. Antes de tudo, elas precisam ser práticas, isto é, deve ser fácil e rápido aplicá-las, precisam transmitir um sentido de autenticidade e espontaneidade e devem ser facilmente aceitas pelos pacientes. Mas nada disso conta se não ajudarem a conquistarmos confiabilidade devido sua aplicação (consistência temporal e entre indivíduos) e validade (precisão). As diferentes técnicas têm graus variáveis de sensibilidade (detecção de casos), especificidade (detecção de não-casos) e validade de conteúdo (cobertura diagnóstica). Observamos no Quadro X as regras gerais para melhorar a validade por ocasião da aplicação de técnicas de entrevista. 2 Para entendermos melhor as técnicas de informação, devemos nos lembrar quais maneiras os pacientes usam para comunicar os seus problemas. De um modo geral, podem fazê-lo sob a forma de uma queixa - em que opaciente revela para o entrevistador, sem reservas, qual é o seu problema - , sob a forma de uma resistência - quando o paciente oculta passagens do entrevistador, por algum desconforto associado à sua comunicação - ou ainda sob a forma de uma defesa - quando o problema se oculta inclusive para o paciente, que não o percebe e por isso não pode comunicá-lo. 2
Técnicas de , entrevista clínica .ti
Técnicas de vínculo
As técnicas de queixas são divididas em técnicas de abertura, que têm como objetivo a obtenção das queixas; as técnicas de esclarecimento, que têm como objetivo a tradução das queixas veiculadas pelo paciente em informação psicpatologicamente relevante (usualmente os chamados sintomas); e as técnicas de direcionamento, com as quais cobrimos e transitamos enre as diferentes queixas. 2 Classificamos as técnicas de abertura em questões abertas, focadas e fechadas2•4•6 (Quadro XI). As abertas têm um foco temático aberto e induzem a respostas abertas, autênticas, espontâneas e pessoais. Porém tendem a ser respostas longas, vagas, incompletas e com baixa confiabilidade. São úteis para acessarmos a queixa principal e obtermos a expressão emocional e a perspectiva subjetiva do paciente, o que valida os sintomas. Tendem a ser bem aceitas por pacientes comunicativos, histriônicos e promovem a "compreensão" e o vínculo empático. Ajudam a formular hipóteses diagnósticas. As questões focadas possuem um foco temático fechado, restringindo o assunto a ser abordado, mas permitem respostas abertas, autênticas e individuais. Têm tempo de resposta, precisão, abrangência e confiabilidade intermediários. Apesar de restringirem o foco, permitem o surgimento de informações novas, não pressupostas pelo examinador. São úteis para as queixas secundárias e para a realização de uma cobertura ampla de diferentes tópicos. São bem aceitas de uma maneira geral, promovem o vínculo de conhecimento e testam hipóteses diagnósticas. Já as questões fechadas possuem o foco fechado e propiciam respostas fechadas, rápidas, precisas e com alta confiabilidade. Podem, no entanto, induzir a repostas falsamente positivas e tendem a inibir a expressão emocional. Também inibem a visão subjetiva do problema pelo paciente, favorecendo a perspectiva pressuposta pelo examinador. As questões fe chadas são úteis para excluir sintomas e para a realização de uma lista de verificação de sintomas de cobertura completa. São bem aceitas por pacientes reservados, obsessivos. Promovem o vínculo de liderança mas podem facilitar uma postura autoritária por parte do examinador. Aumentam a confiabilidade e a eficiência temporal com pacientes prolixos, vagos ou confusos. Excluem hipóteses diagnósticas.
Quadro X
Regras gerais para melhorar a validade da informação
Alerta para sinais de que paciente oculta ou forja problemas e/ou informações
Técnicas de informação
Adequação da técnica ao tipo de informação explorada
Técnicas facilitadoras
Técnicas para comportamentos desaptativos/ diruptivos
I Técnicas de abertura
Técnicas de queixas
.1
Técn1cas de esclarecimento
Técnicas de resistências
.I
Técn1cas de direcionamento
Técnicas de defesas
I Inventários
Figura 2 A "grande fam nia" das técnicas de entrevista clínica psiquiátrica.
Reconhecimento das áreas difíceis e autoconsciência no uso de técnicas Evitar: • Indução explícita ou implícita (Ex.: "Você com certeza tem problemas para dormir, não é mesmo? " - indução afirmativa; ou "Você não tem insônia, não é?" - indução negativa). • Falta de uso de técnicas de esclarecimento • Questões-metralhadora (Ex.: "Como estão o seu sono, apetite e energia física?")
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Como já afirmado, as técnicas de esclarecimento têm como objetivo a tradução das queixas veiculadas pelo paciente em informação psicpatologicamente relevante. 2 São muito importantes na entrevista clínica psiquiátrica porque não raramente o processo comunicativo, prejudicado pelos problemas mentais do paciente, encontra-se danificado e o discurso se torna vago, impreciso, confuso. A especificação é necessária quando o examinador carece de respostas precisas e o paciente é vago ou monossilábico. Há várias modalidades de pedido de especificação; questões focadas ou fechadas podem ser utilizadas. Pode-se devolver resposta como questão ou mesmo o seu entendimento da resposta como questão. Pode-se pedir uma descrição de evento. A generalização é utilizada quando o examinador necessita de respostas sobre padrões gerais de problemas ou comportamentos, mas o paciente oferece informação específica. Para isso pode-se utilizar expressões generalizadoras ou então fazer uma exploração eventual de cada situação específica para chegar a uma avaliação global. A quantificação é necessária quando o examinador necessita quantificar problemas ou comportamentos mas o paciente se sente incapaz de fazer isso. Pode-se induzir o paciente a fazê-lo a partir de questões fechadas, sugestão de extremos improváveis ou então pedir estimativa, diminuindo a importância da exatidão. A verificação de sintomas é feita quando o paciente é vago ou pouco fluente. Pode-se verificar sintomas pelo uso de questões focadas ou fechadas sobre sintomas, seguidas por contra-checagem para obter confirmação. Usa-se a sondagem quando um paciente atribui um significado bizarro ou muito pessoal para uma vivência e não é claro quanto às suas razões; para esclarecer natureza delirante, crítica. Também a usamos para obter expressão emocional e conhecer as motivações. Para sondar, utilizamos questões sobre os pensamentos e sentimentos do paciente a respeito do evento ou da vivência. Quando o paciente relaciona eventos de maneira ilógica é necessário um esclarecimento por meio da técnica de inter-relacionamento, que é implementada de maneira simples, com um pedido de explicação. Com frequência nos deparamos com pacientes vagos, circunstanciais, que apresentam associações frouxas ou fuga de ideias. Usamos o sumário para focar a atenção do paciente e devolver para ele o que nós achamos que ele quis dizer, possibilitando uma contra-checagem. É útil, após fazermos o sumário, pedir uma correção, se necessário, de modo a não induzir opaciente ao erro. As principais técnicas de esclarecimento são exemplificadas no Quadro XII. As técnicas de direciona-
Quadro XI
Exemplos de técnicas de abertura
Questões abertas (Ex.: "O que posso fazer por você?" "O que o traz aqui?'') Questões tocadas (Ex.: "O que acontece quando você tenta dormir?" "Como tem estado o seu humor?'') Questões fechadas (Ex.: "Você tem problema para dormir?" "Você tem se sentido deprimido?")
mento permitem-nos gerenciar o fluxo de informação e o andamento da entrevista, ajuda-nos a cobrir e transitar entre as diferentes queixas, de maneira a dar uma eficiência global para a questão temporal da entrevista.2 São muito importantes para lidarmos com o que chamamos de entrevistas divagantes, nas quais um paciente prolixo, circunstancial ou tangencial tende a perder o foco do que quer falar para você e você, do que queria explorar.4 O uso de técnicas de direcionamento, além do exercício do vínculo de liderança, são essenciaias para a realização prática de uma boa entrevista clínica psiquiátrica. Quando o paciente está no rumo certo, nós o encorajamos a se manter na história por meio da técnica de continuação, implementada por gestos afirmativos, manutenção do contato visual e afirmações ou sinais confirmatórios. Também podemos encorajar o paciente a continuar ou elaborar, aprofundar a parte da história mais significativa a partir da técnica de eco, repetindo aspectos selecionados do discurso do paciente. Às vezes precisamos encorajar o paciente a não sair do assunto principal. Isso pode ser necessário em pacientes com discurso circunstancial, tangencial, com fuga de ideias ou que discutem o problema dos outros. Podemos fazer isso com gestos gentis de interrupção e convite a voltar para o assunto principal, o que chamamos de redirecionamento. As transições permitemnos mudar de assunto de maneira a podermos cobrir diferentes áreas de investigação. Elas são, em parte, responsáveis pelo aspecto mais ou menos elegante que se desenrola na convesação. As transições suaves encorajam o paciente a passar para um novo tópico de maneira que pareça haver uma conexão entre eles. Podem ser usadas as conexões causais ou temporais. As transições acentuadas enfatizam a passagem para um novo tópico. São utilizadas quando se quer passar para uma outra fase da entrevista (testes, por exemplo). Também podem ser usadas para focar a atenção do paciente para a entrevista. Normalmente uma transição acentuada é feita com a introdução de um novo tópico, precedida por sumário do tópico anterior ou por uma explicação preliminar do que se fará a seguir. As transições abruptas forçam a passagem para um novo tópico. Podem ser utilizadas para surpreender pacientes que mentem ou simulam sintomas. 3 Introdução de um novo tópico ou procedimento sem sumário ou explicação preliminar, transições repetidas (ir para frente e para trás) e cruzadas (checar a mesma queixa de diferentes modos, sem que o paciente se prepare) podem ser utilizados com este objetivo. Fora deste contexto, são em geral erros técnicos 2 (Quadro XIII). As técnicas de resistências ajudam o paciente a revelar algum problema que incialmente ocultaram do examinador.2 As causas mais comuns de resistência são: desejo de ser aceito, preservar sua imagem frente ao examinador e medo de ser rejeitado ou parecer ridículo. Ele também pode sentir vergonha ou culpa de falar sobre o tema ou sentir desconfiança ou medo das consequências sociais de revelar algo sobre o assunto. Isso pode ser observado por diferentes tipos de comportamento que expressam resistência, como relutância ou recusa a conversar sobre certos assuntos, fal-
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ta de clareza no discurso (prolixidade, respostas breves, vagas, circunstanciais) ou pelo comportamento de diminuir a importância ou mudar de assunto. Comportamentos não verbais também podem expressar resistências, tais como evitar o contato visual, manifestações físicas de tensão, inquietação, hostilidade, ou a presença de sinais autonômicos como rubor facial, palidez, sudorese e tremor. Quando o paciente expressa relutância mas não se nega completamente a falar sobre o seu problema por estar preocupado em parecer ridículo, podemos encorajá-lo, verbalizar o que está implícito ou expressar que o aceitamos, independente de julgamentos morais. Denominamos esta técnica de aceitação. Podemos usar a confrontação, chamando a atenção do para o comportamento expressa resistência, como enrubescer, desviar o olhar, tensão, inquietação, ou tenta dissimular ou desviar o assunto ... No caso da confrontação com consequências, quando opaciente expressa resistência por meio de recusa a conversar ou abordar o assunto, procuramos chamar a sua atenção para as consequências desta postura e procuramos explorar algum desejo seu que possa ser gratificado pelo ato de falar. Procuramos, assim, mostrar as desvantagens da resistência e as vantagens da exposição do problema. Quando o paciente expressa resistência por meio da recusa a conversar ou abordar o assunto em função de culpa ou vergonha, pode-se usar a mudança de perspectiva, ajudando-o a se sentir livre para falar. Outra possibilidade, quando um paciente mmto severo consigo mesmo expressa resistencia a expor pequenas falhas ou problemas, é a técnica do exagero, em que se compara o problema do paciente com um problema muito sério ou grave, para mostrar a sua aceitação e induzir humor. Ao contrário, a indução de vaidade pode ser usada com paciente com baixo senso moral (tendências antissociais) que expressa resistência de expor graves falhas ou problemas dos quais na verdade se orgulha, apenas por medo da reação do entrevistador. Com esta técnica induz o paciente a contar vantagem e se sinaliza que aceitamos o seu comportamento. (Quadro XIV). •
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As técnicas de defesas ajudam o paciente a revelar algum problema que estava oculto não apenas para o examinador, mas também para o próprio paciente. 2•7 Em geral, há uma situação externa ou um conflito interno estressante. As defesas são caracterizadas por um comportamento observável (eventualmente desadaptativo), um mecanismo ou processo de ligação entre o comportamento observável e a situação ou conflitos (mecanismo de defesa) e graus variáveis de consciência e controle voluntário. Os componentes inconscientes podem ser conhecidos apenas por inferência e ou revelação posterior à consciência.2•7 •12 Não abordaremos os diferentes mecanismos de defesa e as técnicas principais de revelação das defesas, mas basta lembrar-mos que se tratam de técnicas de natureza predominantemente interpretativa.2•7
O exame do estado mental O exame do estado mental é uma atividade complexa que tem a psicopatologia como referência fundamental. Há diferentes métodos de realização e de sistematização desse exame e parece que nenhum deles tem a primazia sobre os outros.2, 13•14 Está claro, entretanto, que é necessário algum método para se organizar a sua realização. É importante que esse método se adeque ao referencial cognitivo do entrevistador, aos problemas apresentados pelo paciente e às circunstâncias em que o exame se realiza. Três perspectivas fundamentais direcionam o exame do estado mental do paciente durante a entrevista clínica psiquiátrica: ordenação segundo o canal ou processo de coleta de informações, detecção de sinais de transtornos mentais e detecção de situações de emergência. 2•4•6•10•13 A ordenação segundo o canal ou processo de coleta de informações organiza o exame do estado mental de acordo com a forma pela qual acessamos os fatos psicopatológicos, ou seja: observando o paciente, conversando
Quadro XIII Quadro XII
Exemplos das principais técnicas de esclarecimento
Exemplos das principais técnicas de direcionamento
Continuação (Ex.: "Certo ..:' "Compreendi.. :· "Huhumm ..:') Eco (Ex.: "A noite inteira acordado?" 'Todas as noites?")
Especificação (Ex.: "De que maneira o seu sono é horrível?" "O que significa dias horríveis?")
Redirecionamento (Ex.: Gesto de interrupção - "Espere, vamos voltar ao seu problema de sono".)
Generalização (Ex.: "Como é o seu sono na maioria das noites?") Quantificação (Ex.: "Quanto durou este perído de insônia, dez anos, uma noite?") Verificação de sintomas (Ex.: "Você tem dificuldade para pegar no sono?" "Você perde o sono no meio da noite?" "Você acorda antes da madrugada?") Sondagem (Ex.: "Por que você acha que tem perdido o sono?") Inter-relacionamento (Ex.: "Como você acha que os problemas políticos atuais e a sua insônia se relacionam?") Sumário (Ex.: "Você me contou que tem tido dificuldade de pegar no sono de maneira persistente desde o início das demissões no governo e acha que isto acontece pelo excesso de preocupação, está correto?")
Transição suave (Ex.: "E estes problemas de sono afetam o seu humor?" - conexão causal; "Nestes períodos de insônia e depressão você tem outras dificuldades?" - conexão temporal.) Transição acentuada (Ex.: "Você já me deu uma boa ideia do seu problema: tem tido períodos de depressão associados a insônia, dificuldade de concentração e extremo cansaço. Agora eu gostaria de saber algumas coisas a respeito da sua vida pessoal..:' - sumário e transição acentuada para novo tópico.) Transição abrupta (Ex.: "O que você fez de bom neste sábado?" (Paciente responde que foi ao cinema); "Eu quero que você se concentre nestes três nomes e os repita para mim: carro, banana, justiça" (Paciente refere ter problema de memória); "Sobre que era o filme?" (Paciente conta a história do filme.)
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de maneira casual com ele, conversando sobre os seus problemas e realizando testes. Cada uma dessas atividades acessa diversas informações psicopatológicas relevantes de diferentes naturezas, tais como funções psíquicas simples e complexas, comportamentos significativos, rendimentos, vivências e outros atributos com conteúdo informativo significativo. (Quadro XV). Além da ordenação acima descrita, dois outros princípios de organização do exame do estado mental são a detecção de sinais indicativos de transtornos mentais e a detecção de situações de emergência. O exame do estado mental é sempre direcionado para a detecção dos problemas apresentados pelo paciente e sempre rastreamos sinais da sua existência. Dividimos tais sinais em soft signs e hard signs. Soft signs (Quadro XVI) são aqueles sinais que nos deixam com a "pulga atrás da orelhà: São sugestivos de transtornos, mas não específicos (múltiplas causas são possíveis). Em geral, não fazem parte dos critérios diagnósticos de transtornos mentais ou de personalidade. Em geral, tornam-se evidentes precocemente, no início da entrevista e quando presentes, sugerem pesquisa de certas áreas de problemas. Já os hard signs (Quadro XVII) nos dão a "certeza do problemà: Indicativos de transtornos com alguma especificidade, geralmente fazem parte dos critérios diagnósticos de transtornos mentais ou de personalidade. Evidenciam-se durante o corpo da entrevista, por ocasião da coleta da história psiquiátrica. Devem ser pesquisados ativamente, sempre que há evidências de transtornos (em geral sugeridos por soft signs). Além da detecção dos problemas mentais, o entrevistador também deve estar atento às situações em que há "perigo a vistà: Sua perspectiva deve estar orientada para problemas emergentes, graves ou necessitando investigação ou conduta imediata. Os sinais de alerta são inespecíficos, há muitas causas possíveis para eles. Podem se tornar evidentes de imediato, logo ao início da entrevista, ou passarem despercebidos por completo, ou mesmo omitidos intencionalmente pelo paciente. Devem "sempre" ser pesquisados ativamente, mesmo quando não há evidências de transtor-
Quadro XIV
Técnicas de resistências
Aceitação (Ex.: "Eu não estou aqui para julgá-lo. Muitas vezes certos impulsos íntimos estão além da nossa vontade. Se você puder falar, talvez eu possa ajudá-lo com isso".) Confrontação (Ex.: "Eu notei que mesmo sendo bastante controlado, você não pode evitar ficar corado e tenso ao mencionarmos tal assunto".) Confrontação com consequências (Ex.: "Eu não tenho como evitar. Infelizmente você não poderá sair de alta, a não ser que conheçamos com detalhe os motivos do seu comportamento..:') Mudança de perspectiva (Ex.: "Você deve ter tido motivos além da sua capacidade para fazer o que fez" "A culpa não deve ser sua ..:') Exagero (Ex.: (Paciente oculta falha menor) "Você deve ter feito algo muito grave, tal como assaltar um banco ..:') Indução de vaidade (Ex.: "Você parece ser bom de briga. Quantos já levaram a pior com você?')
nos, pois a sua identificação leva a condutas importantes e o não reconhecimento, ao contrário, implica em riscos significativos (Quadro XVIII). Por se destacar entre os sinais de alerta pela sua fre quência e gravidade, a ideação de suicídio deve sempre ser pesquisada. Para tal é necessário que não se deixe de discutir o tópico, que deve ser abordado de maneira natural, numa atmosfera de segurança e envolvimento emocional. Evite emitir sinais de desconforto ao explorar ideias de suicídio e use termos específicos (matar-se, cometer suicídio, etc.). Também evite questões indutoras-negativas (Ex.: "Você certamente não tem o desejo de se matar, não é?"). Não aceite o primeiro não como resposta definitiva, especialmente quando não convincente,e volte ao assunto, mais tarde, se ficou dúvida. Aos pesquisar ideação de suicídio, monitore os sinais corporais do paciente e esteja atento à negação devida a ideias de que há sinal de fraqueza, imoral ou pecado. Para alguns pacientes falar de suicídio é tabu, outros temem ser vistos como loucos. Opaciente também pode ter medo de ser internado por causa da ideação de suicídio e pode ainda querer realmente morrer sem que ninguém saiba ou atrapalhe.
Os métodos psicopatológicos O primeiro passo fundamental deste exame é o de representar o que realmente o paciente vivencia em sua consciência, descrevendo da forma mais precisa possível os estados psíquicos vivenciados pelo paciente. O psiquiatra obtém estas descrições pelos relatos do próprio paciente durante seu contato pessoal. Dos conteúdos descritos pelo paciente, a tarefa do psicopatologista é identificar as alterações formais psíquicas. Ao paciente, importa os conteúdos do relato; ao psicopatologista que emprega o exame fenomenológico, a forma das vivências. Essa é a ferramenta básica da psicopatologia, denominada de fenomenologia da vida psíquica mórbida, ou seja, a descrição dos fenômenos subjetivos desta vida psíquica. 1•15 É nesta primeira etapa do exame que apreendemos as vivências de como opaciente percebe os objetos, seu próprio corpo e as imaginações, como vivencia o transcorrer do tempo e espaço, como percebe seus afetos, seus impulsos e sua vontade, como vivencia a realidade e seu eu interior e de ter consciência global de todos estes fenômenos. É uma tarefa árdua que exige muita habilidade e experiência do psicopatologista. Completando o exame fenomenológico, procuramos também apreender onde o psíquico aparece nos rendimentos do indivíduo, utilizando certas condições que incitam o paciente a objetivar seu psíquico. 1 Serão apreendidas outras funções rendimentais como a memória, atenção, orientação temporal e espacial, a inteligência, motricidade, linguagem, forma de pensamento e as elaborações do juízo. Onde o diálogo não consegue penetrar, o distanciamento de uma testagem pode fazê-lo. Depois de apreendida a vida psíquica pelas vivências e rendimentos, passamos a investigar as relações de com-
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Quadro XV Ordenação do exame do estado mental segundo o canal ou processo de coleta de informações psicopatológicas relevantes
Observação Vigília Aparência Idade aparente Estado geral Estado nutricional Particularidades físicas Cuidados pessoais Vestimenta Postura Expressão facial Motricidade Conversação causal Consciência objetiva Responsividade Alerta, ativação e atenção espontânea Atenção voluntária (concentração e tenacidade) Apercepção e orientação Curso da atividade mental Cognição Memória Raciocínio e capacidade de julgamento Inteligência Abstração Comunicação Linguagem (compreensão, fluência e expressão) Discurso Pensamento formal Contato visual Comportamento na entrevista Comportamento social Participação na entrevista Contato e atitude com o examinador Comportamento afetivo objetivo Afetos predominantes observados Humor observado Expressividade emocional Reatividade emocional Integração, controle e maturidade emocional Conversação exploratória Consciência subjetiva Nível de consciência Amplitude do campo da consciência Estrutura fenomenológica da consciência (corpo, espaço, tempo, realidade, familiaridade) Consciência do eu Sensopercepção Afetividade subjetiva Humor vivenciado Afetos vivenciados predominantes Pulsões e motivações Complexos Determinação afetiva do comportamento Conteúdos do pensamento Autoavaliação Capacidade de reflexão e auto-consciência Crítica Juízo de realidade Co nação Energia Impulsos Desejos Intenções Iniciativa Decisão Vontade Testes
Quadro XVI
Exemplos de soft signs de psicose
Observação "Envelhecimento", descuido pessoal, vestimentas bizarras, postura robotizada, maneirismos, agitação Conversação casual Ausência de contato visual, desconfiança, puerilidade, comportamento inadequado, esquisito, hostil, discurso vago, lacônico, longas latências de resposta, discurso "não social", falta de expressão emocional, risos imotivados Conversação exploratória Preocupação com um incidente do passado distante, fixação em um assunto, recusa a conversar sobre certos temas, outros comportamentos de resistência ou defesa
Quadro XVII
Exemplos de hard signs de psicose
Observação Comportamento desorganizado ou bizarro Comportamento "alucinatório" Sinais catatônicos Conversação casual Distúrbio formal de pensamento grosseiro (perda das associações, neologismos, etc.) Conversação exploratória Delírios Alucinações
preensibilidade entre estas vivências 1: como uma vivência origina outra, como o paciente procura dar um significado ao juízo das representações que tomam parte de seu mundo de significados. É neste momento que o psicopatologista se deparará com uma experiência de compreender ou incompreender psicologicamente o conteúdo desses significados vividos pelo paciente. Já será a primeira indagação de uma possível formulação diagnóstica, onde quadros psicogeneticamente compreensíveis levam ao diagnóstico de desenvolvimentos da personalidade ou de psicoses reativas, e os psicologicamente incompreensíveis característicos dos processos (esquizofrenias e quadros orgânicos mentais) e das fases (bipolares). 1 Continuando o exame, investiga-se onde a essência psíquica do examinado aparece no mundo objetivo significativo dos demais seres humanos. 1 É uma outra tarefa difícil para o examinador. É o estudo da expressão do psíquico no corpo, em sua fisionomia e mímica; seu comportamento; o modo de vida e hábitos do paciente; suas obras criativas; em seus desenhos, escritos, trabalhos manuais e artísticos; e finalmente da maneira de como o paciente concebe e conforma o mundo à sua volta. Tarefa muito extensa onde descrevemos os comportamentos e condutas sociais tais como atos suicidas, impulsos, fugas, comportamento alimentar e sexual (inclusive de risco), uso de drogas ilícitas e de bebidas. Como o paciente cuida de si mesmo, com higiene, controle esfincteriano, seu incômodo perante a sujeira, seus rituais e suas fixações libidinosas. De que modo dorme, tipo de sono, suas fases intermediárias entre sono e vigília, períodos de sonolência, sonhos e pe-
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Quadro XVIII
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Sinais de alerta
ldeação de suicídio ldeação de homicídio Agitação psicomotora Comportamento violento Estupor e catatonia Alteração de consciência Mau estado de saúde (geral ou nutricional)
sadelos, condutas no dormitório (há pacientes que passam o dia todo na cama). Da sexualidade deve ser investigada dos atos mais privados aos atos que se projetam na atmosfera social, impotência, ejaculação prematura, frigidez, masturbações, perversões, rechaço das relações amorosas (apragmatismo sexual), narcisismo, sublimações. Dos hábitos alimentares, investigar a fase de amamentação enquanto lactente, anorexias e bulimias, caprichos alimentares, insaciabilidade na sede ou fome, dipsomanias. Importância de descrever a vida familiar, seu grau de depenciência material e afetiva, comportamentos de oposição frente aos pais ou de submissão excessiva, conflitos entre ciúmes e ódios, fugas do lar e capacidade de lograr a formação da própria família. A vida escolar e profissional deve ser extensivamente investigada, suas irregularidades, rendimentos, aprovações, promoções, demissões, trocas contínuas, ideias de referência e de perseguição nesses ambientes, a angústia para adaptação e vadiagem. A investigação de possíveis atos antissociais, já que a doença mental se correlaciona com estas formas de comportamento, se atem a história de tentativas suicidas, sua forma de prepará-las, meditação a respeito ou impulso incoercível, manipulações de terceiros ou utilização de meios (inclusive os engenhosos) para consumar a morte. Automutilações e castrações, pedofilia, incesto, sadomasoquismo extremo, tipo de roubo - se impulsivo, estereotipado, obsessivo, esdrúxulo, simbólico. Se houve conduta homicida na vida do paciente, de que forma foi cometida: se em estado crepuscular, em série, premeditado longamente, delirante, celotípico, desmotivado ou motivo torpe, obedecendo avozes mandadas, se existe remorso. Investigar também condutas piromaníacas, estupro e infanticídio. A religiosidade, espiritualidade e a crença em alguma forma de divindade devem ser inquiridos, já que a maioria das pessoas em todo o planeta dizem serem crentes em Deus. 15 Continuando o exame da vida psíquica, é chegado o momento da investigação cultural e social. 1 O homem é um ente natural e cultural: já existe um mundo antes do ser humano nascer. A educação, ambiente, cultura e tradição tornam o homem um ente cultural e social: não existe o psíquico isolado, mas inserido numa sociedade. Sabemos que os distúrbios psiquiátricos produzem tensões com a comunidade e a pressão da cultura também interfere na saúde mental. A vida psíquica anormal pode influenciar uma sociedade e certamente algumas personalidades anormais a influenciaram. A civilização também gera estados
psíquicos anormais (profissões, proliferação do capitalismo brutal, tecnificação, dissolução do ambiente natural, uso de substâncias, necessidade da repressão dos instintos, etc.). A fisiologia humana não se adapta com tal velocidade. É necessário, portanto, que o psiquiatra realize a anamnese social, para saber sobre o mundo de significados do paciente. Importante indagar como o paciente lida com as pressões sociais, sua luta para sobreviver, seus ideais, aprimoramento e desenraizamento cultural (emigrantes, refugiados ) . É o momento do exame em que podemos detectar a vulnerabilidade suicida, as neuroses de renda causadas pelos conflitos profissionais, a educação recebida, etnias fechadas e que se cruzam com maior frequência, os que não suportam a sociedade e cursam vida paralela. Investigar sobre a prevalência das psicoses nos solitários, solteiros, imigrantes, trabalhadores não qualificados; a insuficiência espacial comprometendo o desenvolvimento normal de uma criança. Atualmente, o homem precisa superadaptar-se para viver em sociedade, bastando uma nova exigência para desequilibrar-se psiquicamente: as exigências socioeconômicas com o bombardeio de propagandas, com as quais o homem se sente manipulado; a atitude dos nossos tempos de constante vigilância frente ao corpo, saúde e desempenho; o momento da civilização onde realmente houve queda dos valores espirituais, filosóficos e ideológicos; a comunicação com o outro é distante e fria; competitividade, rivalidade; tecnologia que embrutece gerando agressividade; consumismo e maior individualismo; nossa sociedade tecnocrata impele ao racionalismo absoluto, não deixando espaço para a elaboração das vivências de perda ou frustração; alcoolismo e toxicomanias aumentam progressivamente. É uma etapa investigatória onde se exige do examinador também um aprimoramento cultural e muito tempo para elaborar o mundo alheio. Mas certamente trará uma estupenda visão deste homem doente, facilitando enormemente a feitura diagnóstica e conduta terapêutica. 16 Finalmente completamos esta etapa do exame elaborando a biografia do paciente. 1 A biografia psiquiátrica procura, mais do que descrever especificamente uma pessoa, um significado existencial. Não é meramente a descrição da sucessão regular da vida de um homem, mas conseguir chegar a uma configuração qualitativa. Descrevendo vivências, datas, acontecimentos, realizações, crises, frustrações, atos, obras, apreendemos onde o psíquico se configura e aparece na existência daquela pessoa, e é isto o que interessa ao psiquiatra. A biografia de alguém tem necessariamente ligações com o biológico do indivíduo, herança, família, comunidade, sociedade. Para Karl Jaspers, conhecer a biografia que revela o todo existencial de um indivíduo é condição necessária para posteriormente o psiquiatra analisar se o transtorno psicopatológico acontece por processo, reação, fase ou desenvolvimento. Obviamente não existe uma definitividade completa de alguém, pois o homem é um ser incompleto e aberto para todas as possibilidades existenciais, dado o seu grau de liberdade existencial. Biografia completa de al-
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guém apenas com a morte, aí sim teremos o indivíduo concluído. O psiquiatra precisa exercitar como colher o material biográfico (relatos, acontecimentos, escritos), e o mais difícil, de como apresentar esse material, onde a psique aparece no mundo. Não é uma biografia literária: em uma biografia psiquiátrica devemos descrever o indivíduo em suas etapas biológicas, infância, puberdade, vida adulta, velhice. Como o indivíduo foi lidando com as possibilidades quase infinitas da mocidade e o estreitamento destas com o passar dos anos. Veremos a diferença daquele homem que simplesmente viveu daquele que buscou um significado para a vida. Quem se realizou e arriscou existencialmente, terá uma velhice mais confortável. Importante descrever aqueles que tiveram medo de crescer, que não suportaram os riscos das opções, dos que lutaram para não serem adultos. Os fatos da realidade decidirão por este homem. Uma excelente biografia psiquiátrica pode mostrar muito mais do desenvolvimento normal ou anormal de alguém, do que o exame psíquico transversal. Uma boa história sempre deve ser longa e pode fazer o diagnóstico de uma doença. 1 O estabelecimento de uma relação causal entre organicidade e efeito psicopatológico não é fácil. Num organismo, notadamente o humano, existem muitos elos entre causa e efeito, sendo raro o evento ser exclusivo de uma única causa direta, mas sim encadeamento de várias causas. O homem não é um objeto físico, não é um organismo estático, mas sim mutável, variável no tempo e extremamente dinâmico, bio e psiquicamente. E nem sempre uma causa leva inevitavelmente a um efeito psíquico, devendo-se levar em consideração o papel das circunstâncias, que podemos chamar de condições, sem as quais aquela causa não levaria a tal efeito. Além disso, em psiquiatria, um mesmo evento psicopatológico pode ter origem de várias causas e uma única causa pode produzir diversos efeitos psicopatológicos. Vemos então como é complexa a etiopatogenia de uma doença mental, bem como e elaboração de uma completa anamnese. Em psiquiatria sempre devemos investigar a interação das influências orgânicas com as disposições psíquicas individuais. Em neurologia, a vinculação anatomia- função, ou seja, a relação lesão- sintoma, é praticamente setor exato em medicina. Na psiquiatria não existe tal relação biunívoca. No fundo, transtorno mental não é doença cerebral. Um mesmo tipo de tumor cerebral pode determinar distintas síndromes psiquiátricas em cada tipo de paciente: síndrome confusional, demencial, esquizofreniforme, afetiva, catatônica, psicastênica, histeriforme, transtorno de personalidade entre outras, variando de indivíduo para indivíduo. O álcool pode exercer efeitos diversos, em um mesmo indivíduo, segundo a situação existencial. Em muitas doenças não psiquiátricas o primeiro sintoma pode ser psicopatológico, como no caso de infecções, Huntington, esclerose múltipla, demência de Pick. Para se chegar a uma explicação causal, não podemos empregar os métodos da intuição compreensiva, mas obrigatoriamente utilizar-se dos métodos das ciências naturais, físicos, químicos, biológicos. A investigação
orgânica necessita de uma comprovação ou de uma forte evidência. O diagnóstico só pode ser feito pela investigação somática e não pela intuição compreensiva. É fundamental estabelecer a relação entre organicidade (cerebral ou extracerebral) e distúrbio psicopatológico, onde o somático é causa do psicopatológico.
Os exames biológicos complementares Não existem exames para diagnosticar transtornos mentais funcionais (endógenos). Nenhum método laboratorial substitui o exame psicopatológico para diagnosticar esquizofrenia, transtornos do humor, neuroses, psicopatias e outros desenvolvimentos anômalos da personalidade ou formas especiais do existir humano (perversões, anorexias, impulsividades). Os exames complementares são imprescindíveis para o diagnóstico diferencial dos quadros somáticos ou para firmar o diagnóstico dos quadros psiquiátricos de causa somática (síndromes orgânicas cerebrais, reações exógenas, delirium). Os exames laboratoriais não devem ser solicitados de rotina, assim como não devem ser valorizados isoladamente, mas inseridos num contexto global, na anamnese clínica e psicopatologia. Devem ser solicitá-los quando há evidências, na história ou em exame físico, de algum tipo de síndrome orgânica ou suspeita de causalidade do transtorno psíquico formal. Os exames laboratoriais também seguem os indicados pela propedêutica clínica da medicina interna. Quadros hematológicos, tireoideanos, renais, hepáticos e hidroeletrolíticos, que frequentemente determinam síndromes orgânicas cerebrais, às vezes de sintomatologia funcional, são facilmente demonstráveis por simples testes sanguíneos. Nas demências é importante pesquisar as funções paratireoideanas, pois são quadros reversíveis destas afecções. O eletroencefalograma é um exame importante para a pesquisa de processos cerebrais, abusos de substâncias, distúrbios metabólicos, delirium e aspectos neuropsiquiátricos da epilepsia. A polissonografia, um exame derivado do EEG, é extremamente útil na avaliação causal das desordens do sono. O potencial evocado, que utiliza dados fornecidos da resposta do sistema nervoso central a estímulos em diversas regiões, pode ser utilizado nos casos de desordens cognitivas. O simples RX de crânio ainda encontra utilidade, por ser bastante simples e prático, para evidenciar neoplasias e calcificações (neurocisticercose). A tomografia computorizada, método bem mais sofisticado, encontra importante uso no diagnóstico de processos vasculares cerebrais, neoplasias e atrofias cerebrais, processos demenciais, alcoolismo com desordens cognitivas crônicas, anorexia nervosa com acentuado depauperamento físico. A ressonância magnética diferencia nitidamente a substância branca da cinzenta, colaborando enormemente nas evidências de atrofias neuronais em áreas localizadas, de grande utilida-
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de para auxílio do diagnóstico de pseudodemência depressiva, além da propedêutica cerebral na anorexia grave e alcoolismo com demenciação. Lembramos que a tomografia e a ressonância magnética cerebrais deveriam ser solicitadas nos casos de primeiro episódio psicótico, confusão mental, transtornos de personalidade e quadros de transtornos de humor, que se iniciaram após os 50 anos. Em crianças com quadros suspeitos de retardo mental (oligofrenias) e nas investigações das anomalias genéticas, corroborando no diagnóstico dos erros inatos de metabolismo (fenilcetonúria) e anomalias cromossômicas (síndrome do X frágil, síndrome XYY).
Testes psicológicos Os testes psicológicos são métodos indiretos para se investigar o psíquico. Não são métodos exclusivos e suas indicações dependem do que se precisa investigar. São realizados por profissionais especiais, os psicólogos. O psiquiatra apenas indica que função ou pesquisa pretende investigar, cabendo ao psicólogo a escolha do teste mais adequado. Para a semiologia do temperamento e caráter são utilizados testes projetivos como o Rorschach e TAT, indicados nos quadros de anomalias no desenvolvimento da personalidade. Os testes neuropsicológicos para os quadros psico-orgânicos crônicos, focais ou globais, e os testes de nível de inteligência, para se medir o rendimento intelectual, nos casos de retardo mental e avaliação das deficiências rendimentais nas demências.
Questões 1. Qual o papel da anamnese psiquiátrica na elucidação das do-
a) b) c) d) e)
enças mentais? Nenhum papel, pois é prática ultrapassada. Apenas complementa os dados obtidos nos exames, que são o essencial. É método fu ndamental para se acessar a psicopatologia apresentada pelo paciente, sem o que não se faz psiquiatria. As doenças mentais tem base biológica, portanto o essencial é o exame neurológico. Listas de sintomas são suficientes para se chegar ao diag nóstico de transtornos mentais.
2. Qual das seguintes afirmações sobre a entrevista clínica psiquiátrica é falsa? a) Privilegia-se a perspectiva estratégica e tática. b) Deve ser individualizada para os diferentes tipos de paciente. c) Ela depende apenas de talento e arte. d) É composta por cinco processos que se realizam ao longo de cinco etapas. e) Há diferentes tipos de entrevista psiquiátrica; a entrevista clínica psiquiátrica é um deles. 3 É correto se dizer sobre o vínculo na entrevista clínica psiquiátrica:
a) A empatia é o único vínculo que importa. b) Não tem influência sobre a confiabilidade e validade das informações colhidas. c) O manejo do vínculo é exercido por diferentes tipos de vínculo de maneira complementar e equilibrada ao longo da entrevista. d) Devemos convencer o paciente de que ele tem uma doença mental, mesmo quando ele não concorde com isso. e) O contato com paciente deve sempre ser formal e com distanciamento, para se evitar a transferência. 4. Qual das seguintes é uma técnica de informação que deve ser evitada na maior parte das situações? a) Continuação. b) Transição suave. c) Questão aberta. d) Indução. e) Verificação de sintomas. 5. Qual dos seguinte não é um método psicopatológico que se usa para elaborar as informações obtidas durante a entrevista? a) Fenomenologia. b) Avaliação dos rendimentos. c) Medicina baseda em evidências. d) Estudo do mundo objetivo significativo. e) Investigação da biografia do paciente.
Referências bibliográficas 1. Karl Jaspers. Psicopatologia geral. São Paulo: Atheneu; 1973. 2. Othmer E, Othmer SC. The clinicai interview using DSM-VI. Volume 1: Fundamentais. Washington: American Psychiatric Press; 1994. 3. Othmer E, Othmer SC. The clinicai interview using DSM-VI. Volume 2: The Difficult Patient. Washington: American Psychiatric Press; 1994. 4. Shea SC. Psychiatric interviewing: the art of understanding. 2.ed. Philadelphia: WB Saunders; 1998. S. Miller WR, Rollnick S. Entrevista motivacional: preparando as pessoas para a mudança de comportamentos adictivos. Porto Alegre: Artmed; 2001. 6. Carlat DJ. Entrevista psiquiátrica. 2.ed. Porto Alegre: Artmed; 2007. 7. MacKinnon RA, Michels R, Buckley PJ. A entrevista psiquiátrica na prática clínica. 2.ed. Porto Alegre: Artmed; 2008. 8. Morrison]. 1he first interview: revised for DSM-IV. New York: The Guilford Press; 1994. 9. Pridmore S. The psychiatric interview. A guide to history taking and the mental state examination. Scarborough: Harwood Academic; 2000. 10. Robinson DJ. Three spheres. A psychiatric interviewing primer. Michigan: Rapid Psychler; 2000. 11. Tasman A, Riba MB, Silk KR. The doctor-patient relationship in pharmacotherapy. Improving treatment effectiveness. New York: The Guilford Press; 2000. 12. Vaillant GE. Ego mechanisms of defense: a guide for clinicians and researchers. Washington: American Psychiatric Press; 1992. 13. Robinson DJ. Brain calipers. A guide to successful mental status exam. Michigan: Psychler; 1997. 14. Trzepacz PT, Baker RW The psychiatric mental status examination. New York: Oxford University Press;1993. 15. Henri Ey, Bernard P, Brisset CH, Toray-Masson. Tratado de psiquiatría. Barcelona; Toray-Masson; 1975. 16. Alonso-Fernández. Fundamentos dela psiquiatria actual. 4.ed. Madrid: Paz Montalvo; 1979.
Anamnese Psiquiátrica no Idoso
Débora Pastare Bassitt Camila Muniz de Souza Pedro Fabio Armentano
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 323 Anamnese psicogeriátrica, 324
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Identificação, 324 Queixa e duração, 324 História da moléstia atual, 324 Antecedentes pessoais, 325 Antecedentes familiares, 325 História pessoal, 326 Interrogatório sobre os diversos aparelhos, 326 Exame do estado mental, 326 Exame físico, 327 Instrumentos de avaliação cognitiva/atividades de vida diária/ depressão, 327 Hipótese diagnóstica, 329 Exames complementares, 329 Considerações finais, 330 Minicaso clínico, 330 Questões, 331 Referências bibliográficas, 332
Introdução A anamnese do idoso portador de transtorno psiquiátrico é a base para a assistência médica adequada, do mesmo modo que nos pacientes com patologias psiquiátricas em geral. Porém, a era atual do desenvolvimento tecnológico e das entrevistas padronizadas não valoriza o essencial, que é a arte da entrevista clínica1 • Obter a história geriátrica e avaliar o estado mental do idoso são tarefas longas e complexas, pois o paciente vive há mais de seis décadas e frequentemente apresenta diversas comorbidades, tanto neurológicas quanto clínicas2 • A entrevista psicogeriátrica pode ser realizada em diferentes espaços físicos: no leito da enfermaria, em consultório médico, em instituição de longa permanência, no hospital-dia e até mesmo na residência do paciente. O local de
1. Reconhecer os pontos principais e as peculiaridades para a realização da anamnese psiquiátrica no idoso, incluindo história da moléstia atual, antecedentes familiares e pessoais, interrogatório sobre os diversos aparelhos, história pessoal e exames psíquico, físico e neurológico. 2. Utilizar as principais escalas de avaliação cognitiva e de verificação de atividades de vida diária. 3. Saber quais são os exames complementares essenciais para a avaliação do idoso com patologia psiquiátrica.
realização da entrevista pode determinar a quantidade e a qualidade dos dados coletados. Por exemplo, no ambulatório, não será possível avaliar por completo a capacidade funcional de um paciente portador de demência, ou seja, é mais difícil avaliar o desempenho de atividades do cotidiano, realizadas no domicílio, no dia a dia do paciente e que são fundamentais para sua independência e autonomia2 • Por outro lado, avaliar adequadamente causas reversíveis de demência ou pesquisar delirium só será possível em ambiente hospitalar, onde há acesso a exames complementares. A participação da família ou do círculo de convívio imediato deve ser sistemática durante a avaliação do idoso com ou sem comprometimento cognitivo. É importante confirmar ou não o relato do paciente, pois em muitos casos o diagnóstico depende da capacidade dos familiares de relatar uma história coerente3 . Além disso, um membro da família é o melhor informante da personalidade prévia do paciente, cujos traços podem se alterar ou exacerbar no contexto de uma variedade de transtornos psi.' . cogenatncos. A entrevista deve ser conduzida em clima de confiança, atenção e respeito. A paciência é a regra. O idoso é frequentemente mau ouvinte, lento, inquieto e pode não tolerar uma entrevista longa e detalhada, principalmen-
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te se ele for portador de transtornos mentais graves e/ou de prejuízos cognitivos3 . Atenção especial deve ser dada aos pacientes que apresentam déficits sensoriais auditivos e visuais e cognitivos, condições comuns em idosos. A entrevista deve ser realizada em ambiente silencioso, o entrevistador deve sentar-se próximo do paciente, certificar-se de que opaciente está em uso de lentes corretivas ou de próteses auditivas, falar devagar, pausadamente e com repetições frequentes, podendo utilizar dispositivos de amplificação do som se julgar necessário. Além disso, deve prover tempo amplo para respostas, pois os idosos, além de poderem apresentar déficits sensoriais e/ou cognitivos, geralmente são mais cautelosos para responder ao médico4 •
os transtornos cognitivos, pois alguns deles manifestamse diferentemente nesse grupo de pacientes. Delirium, também conhecido como estado confusional agudo, é um transtorno caracterizado por quadro flutuante de alterações da atenção, da consciência, da cognição e do comportamento, além de delírios e alucina-
Tabela I
Cuidados na anamnese psiquiátrica de idosos
Manter ambiente silencioso e calmo Falar devagar e pausadamente Repetir perguntas e orientações se necessário Dar tempo para as respostas Verificar presença de deficiência auditiva e/ou visual
Anamnese psicogeriátrica
Verificar uso de próteses auditivas/lentes corretivas
Identificação A identificação da anamnese psicogeriátrica deve conter: data da realização da anamnese, nome completo, sexo, idade, data de nascimento, local de nascimento, procedência, local de moradia, informações sobre residência do paciente em instituição de longa permanência - se houve e por quanto tempo- , estado civil - casado, separado ou viúvo e há quanto tempo - , irmãos- nomes e idades - , filhos - nomes e idades - , escolaridade, profissão e ocupação especificar se aposentado e há quanto tempo, questionar se exerce atividades na comunidade - , religião5 • Acrescentar os nomes do cuidador e do informante e a confiabilidade das informações fornecidas.
Identificação
+ Queixa e duração
+ História da moléstia atual
+
Antecedentes familiares
+
Antecedentes pessoais
Queixa e duração
+
Embora seja óbvia a importância dos principais motivos da consulta e a duração deles, que são apresentados pelo idoso e/ou por familiares, com frequência eles não expressam o problema mais relevante, que será identificado somente ao longo da anamnese.
História pessoal
+
Interrogatório sobre os diversos aparelhos
+ História da moléstia atual O objetivo da história da moléstia atual é documentar a sequência temporal do desenvolvimento dos sintomas (afetivos, cognitivos, comportamentais e físicos) e a relação dos sintomas com o ambiente e com as atividades diárias do idoso. É importante recordar todas as mudanças ambientais, os eventos de vida e os estressares recentes (perdas, separações, alterações na rotina e/ou na rede de apoio) que, no idoso, podem precipitar ou exacerbar transtornos afetivos, psicóticos, cognitivos e doenças físicas. O examinador precisa estar familiarizado com a história natural e a sintomatologia dos transtornos mentais mais comuns em idosos, como o delirium, a depressão e
Exame psíquico
+
Exame físico/ neurológico
t Avaliação cognitiva/AVO
+ Hipótese(s) diagnóstica(s)
~ Exames complementares
Figura 1
Avaliação psicogeriátrica de idosos.
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Tratamento
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ções visuais, e está associado à alta taxa de mortalidade na população geriátrica. Idosos frágeis e portadores de prejuízo cognitivo são particularmente predispostos ao delirium por mínimos acometimentos tóxicos, metabólicos ou infecciosos. Nesse contexto, é necessário elucidar as medicações de uso contínuo, suas doses e suas modificações recentes para pesquisar possível delirium medicamentoso, que ocorre principalmente em idosos polimedicados7. É importante também pesquisar, na história recente, outros fatores associados ao delirium: febre, dores, cefaleia, tonturas, desmaios, disfagia, dispneia, dor precordial, incontinência urinária, disúria, diarreia ou constipação, quedas, traumatismo craniano, fraqueza muscular, cirurgias (principalmente por fratura de quadril), alterações nutricionais e padrão de ingesta hídrica8 • A depressão é um transtorno comum em idosos, e sua manifestação pode ser caracterizada por: pouco ou nenhum sintoma clássico como tristeza e choro fácil; queixas somáticas, hipocondria e agitação que podem parecer "histriônicas" para familiares; além de negativismo com recusa a alimentar-se, beber ou mover-se. O médico deve avaliar mudanças abruptas no padrão do sono que ultrapassem as alterações normais do envelhecimento, como o aumento da frequência de despertares noturnos. Avaliar também mudanças no padrão do apetite e alterações do peso corporal, além de diminuição da energia e da libido2 • A entrevista com familiares é essencial na suspeita de transtornos cognitivos que afetam, além de memória e linguagem, a sensopercepção, o humor, o pensamento, a personalidade e a capacidade funcional. Por exemplo, no início da demência de Alzheimer, o paciente perde objetos pessoais, troca ou esquece nomes de pessoas familiares, apresenta dificuldades para recordar informações novas e para encontrar palavras durante o discurso. Traços de personalidade podem exacerbar-se e podem surgir a apatia, os sintomas depressivos e os delírios de roubo. As condições que mais comumente afetam o idoso, como depressão ou sintomas depressivos e as demências, principalmente a de Alzheimer e a vascular, prejudicam a capacidade funcional do indivíduo. Assim, é importante questionar o paciente e/ou o informante sobre a capacidade de executar tarefas pessoais diárias, as atividades básicas da vida diária (ABVD), que são: banhar-se, vestir-se, cuidar da higiene pessoal, transferir-se do leito para a cadeira, manter continência, alimentar-se e deambular. As atividades instrumentais da vida diária (AIVD) também devem ser avaliadas, pois estão relacionadas com a capacidade do indivíduo de assumir e tomar decisões no dia a dia acerca da própria vida, de acordo com regras e referências: capacidade de preparar refeições, tomar remédios, fazer compras, controlar seu dinheiro, usar o telefone, realizar pequenas tarefas domésticas e sair de casa para lugares mais distantes.
Declínios funcionais agudos levantam suspeita de acidente vascular encefálico ou acidente isquêmico transitório. Pequenos infartos cerebrais podem passar despercebidos por não produzirem sintomas neurológicos focais e são diagnosticados somente quando surgem alterações comportamentais, de humor ou de personalidade e a demência vascular9 . Outras questões a serem exploradas na história da moléstia atual são: relações interpessoais, crenças culturais, aceitação de tratamentos, comportamentos adaptativo ou mal-adaptativo durante e simultâneos a eventos estressantes, desenvolvimento educacional e intelectual (reserva funcional) e nível de funcionamento social.
Antecedentes pessoais • Antecedentes psiquiátricos: registrar evolução dos sintomas ao longo da vida, tentativas de suicídio, diagnósticos psiquiátricos prévios e psicofármacos utilizados com e sem sucesso, especificando doses utilizadas, efeitos colaterais, data de início e duração dos tratamentos. As internações psiquiátricas em hospital fechado também devem ser registradas com local, data, duração e motivos das internações. • Antecedentes clínicos: detalhes de diagnósticos clínicos atuais e prévios, hospitalizações, tratamentos, traumatismos e cirurgias. Deve ser avaliada a presença de comorbidades clínicas comuns em idosos que contribuem para, ou se apresentam como, sintomas e sinais psiquiátricos: hipertensão arterial, hipotireoidismo e hipertireoidismo, diabetes mellitus, dislipidemia, anemias, ataques isquêmicos transitórios e acidentes vasculares encefálicos, arritmias cardíacas, infartos miocárdicos, bloqueio cardíaco, hepatites, infecções urinárias, hiperplasia prostática benigna e neoplasias. Descrever detalhadamente todas as medicações em uso com data de início do tratamento, doses e horários de administração, registrando também medicamentos utilizados que não necessitam de prescrição médica, como: vitaminas, minerais, suplementos alimentares, remédios populares, anti-inflamatórios, aspirina e anti-histamínicos que podem ser neurotóxicos mesmo em doses mo deradas ou podem interagir com outros medicamentos. • Hábitos e vícios: questionar tabagismo e uso, abusoou dependência de álcool e drogas ilícitas. Avaliar também frequência de atividade física e hábitos alimentares, incluindo o padrão de ingesta hídrica, pois idosos têm risco maior de desidratação, que pode se manifestar por meio de sintomatologia psiquiátrica e delirium.
Antecedentes familiares • Antecedentes psiquiátricos: uma forma de avaliar a distribuição de transtornos mentais na família é por meio do genograma, que deve incluir o histórico psiqui-
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átrico e comportamental de pais, tios consanguíneos, irmãos, cônjuges, filhos, netos e bisnetos. Especificar ocorrência de transtornos afetivos, esquizofrenia, transtornos de personalidade, abuso ou dependência de álcool e drogas, tentativas de suicídio e suicídio consumado por familiares dos pacientes4 . É importante pesquisar a idade de aparecimento e curso de declínio cognitivo em parentes dos idosos entrevistados, pois 60% dos casos de Alzheimer precoce, ou seja, que se manifesta antes dos 65 anos de idade, são casos de Alzheimer familial 10 • • Antecedentes clínicos: a história familiar inclui o estado de saúde de pais, tios, irmãos, filhos e netos, especificando os diagnósticos de cada um deles. Estabelecer causa e data do falecimento de familiares de, no mínimo, três gerações, se possível.
tema nervoso central (SNC), como acidente vascular encefálico, tumor ou doença desmielinizante, por isso devem ser avaliados com cuidado. • Garganta e dentes: pesquisar uso de próteses dentárias e dor, que pode ser indicativa de processo infeccioso. • Trato geniturinário: avaliar incontinência urinária e disúria, que podem ser causadas por infecção urinária aguda e retenção urinária. • Trato gastrointestinal: pesquisar vômitos e sangramenta digestivo alto, alterações do hábito intestinal, como diarreia ou constipação, e alteração na coloração ou presença de sangue nas fezes. • Aparelho osteomuscular: pesquisar utilização de próteses ortopédicas, risco de quedas, imobilidade, presença de escaras de decúbito e alterações da marcha.
Exame do estado mental História pessoal Uma revisão do ciclo de vida do idoso ajuda a estabelecer as capacidades pré-mórbidas de ajustamento a importantes eventos de vida e evita erros diagnósticos baseados em avaliações transversais do paciente. A história sexual (orientação, atividades, prática e como os transtornos mentais afetam essas funções) também deve ser colhida. Esse tipo de informação deve, sempre que possível, ser elucidada pelo paciente com a confrontação e a complementação de familiares e amigos próximos. Informações sobre a personalidade prévia, o nível educacional, as atividades físicas, os passatempos e os históricos ocupacional e social auxiliam não somente na formulação diagnóstica, mas também na estimativa do impacto dos problemas identificados sobre o paciente, facilitando a elaboração do plano de reabilitação mais adequado.
Interrogatório sobre os diversos aparelhos O interrogatório sobre os diversos aparelhos consiste na realização de perguntas sobre sintomas específicos ligados aos diversos aparelhos, aos sistemas e às regiões do corpo. Deve ser individualizado, ou seja, o entrevistador deve realizar apenas as perguntas que julgar necessárias para concluir sua avaliação. A anamnese psicogeriátrica completa requer a avaliação das principais síndromes geriátricas que podem ser pesquisadas nesse momento se ainda não contempladas previamente. • Olhos e ouvidos: avaliar comprometimento visual e auditivo, que podem estar associados à disfunção social e de comunicação, o que prejudica a qualidade de vida do idoso e a coleta de informações durante a anamnese. O déficit visual ou auditivo também predispõe ao surgimento de alucinações provenientes do sensório afetado, além de ilusões e ideias paranoides. Os prejuízos sensoriais podem ainda ser sintomas de acometimento do sis-
A aparência geral do paciente geriátrico pode sugerir o diagnóstico psiquiátrico subjacente. Observar como o paciente está vestido, se as roupas são limpas e apropriadas para a ocasião, observar se o paciente está penteado, se as unhas estão limpas etc. A postura, a feição e os movimentos (por exemplo, tremores) podem refletir distúrbios do humor ou do pensamento e podem ser afetados por diversas condições neurológicas e drogas psicotrópicas2 . O discurso e a fala devem ser avaliados em relação a velocidade, quantidade e qualidade. Idosos deprimidos podem ter discurso monótono e achatado, e pacientes com afasia podem trocar letras ou errar palavras (parafasias). O examinador deve avaliar o pensamento, observando presença de ideação suicida, preocupações excessivas, obsessões, tangencialidade, fuga de i dei as, circunstancialidade, frouxidão dos laços associativos e delírios. Delírios associados à demência são comuns e incluem delírio de roubo, de ciúme, persecutório e de reencarnação. As alterações da sensopercepção incluem: ilusões e alucinações auditivas, visuais, táteis e olfativas e podem ser sintomas tanto de transtornos psiquiátricos quanto de doenças neurológicas e clínicas, como o delirium. Humor e afeto podem e devem ser analisados durante toda a entrevista. O afeto é o tônus emocional de prazer ou desprazer que acompanha a produção cognitiva do paciente, ou seja, varia durante a entrevista. O afeto de um idoso depressivo pode não atingir o grau de disforia de um adulto jovem (evidenciado por choro ou desespero), já o humor, que é mais sustentado ao longo da avaliação, pode ser mais discernível no final da entrevista11 . A capacidade de raciocínio abstrato pode ser avaliada de forma sucinta com a interpretação de provérbios e a categorização. A psicomotricidade de idosos acometidos por transtornos psiquiátricos, com exceção dos portadores de demência avançada, tem maior probabilidade de apresentar-se como hiperatividade e agitação. Pacientes com
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demência leve a moderada, especialmente vascular, são distraídos, levantam -se frequentemente da cadeira e perambulam pelo consultório. As informações obtidas na anamnese devem ser utilizadas pelo examinador para determinar se a doença mental interfere na capacidade de julgamento crítico do idoso. O insight refere-se à capacidade do paciente de reconhecer e entender a sua doença e a necessidade de tratamento. O julgamento crítico e o insight de idosos frequentemente estão prejudicados em condições como demências, transtornos afetivos com sintomas psicóticos . ' . e outros transtornos psicotiCos.
Tabela 11
Principais causas de delirium
Drogas Hipnóticos Anticolinérgicos Polifarmácia Abstinência de substâncias Doenças neurológicas primárias AVC Hematoma subdural Meningite/enceta Iite Doenças clínicas
Exame físico Ao psiquiatra que se propuser a tratar pacientes ido sos, é aconselhável trabalhar conjuntamente com médicos de outras especialidades, principalmente o geriatra e o neurologista, sempre que possível, pois normalmente doenças e sintomas psiquiátricos são precipitados e/ou complicados por doenças físicas. Certamente, não é possível discutir sobre avaliação psiquiátrica completa sem considerar o exame físico detalhado, particularmente nessa faixa etária2' 12' 13 • O exame físico do paciente idoso com sintomas de doença mental segue, em grande parte, os mesmos preceitos básicos utilizados na avaliação primária do paciente adulto jovem. É comum na prática da psiquiatria clínica a busca por sintomas sugestivos de hipotireoidismo, anemia ou hipovitaminose para pacientes que apresentem sintomatologia depressiva, bem como a pesquisa por indícios físicos de hipertireoidismo, hipoglicemia, arritmias cardíacas ou doenças pulmonares em pacientes que desenvolvam um quadro ansioso ou de síndrome do pânico, por exemplo. Porém, ao trabalhar-se com pessoas de idade mais avançada, deve-se ficar atento a outras condições que possam levar o paciente a apresentar quadros agudos ou até mesmo crônicos de mudanças psicopatológicas, em especial a desenvolver quadros de delirium. A busca por focos infecciosos é essencial nesses casos e, para isso, é recomendável que se proceda a uma inspeção cutânea com busca ativa por lesões, percussão e ausculta pulmonar, semiologia para quadros infecciosos de vias aéreas superiores, abdominais e geniturinários. Também é importante a busca por sinais de desidratação, distúrbios hidroeletrolíticos, anemia, alterações de hábito intestinal, sinais de trombose venosa profunda e trauma 14. O exame neurológico também é essencial para que se possa avaliar de forma precisa o quadro clínico apresentado pelo paciente idoso. Além da avaliação cognitiva, que será discutida mais à frente, os exames de nervos cranianos, coordenação motora, marcha, tônus e força muscular, reflexos superficiais e profundos e sistema sensorial e vascular devem fazer parte do arsenal diagnósti-
Infecções Hipóxia Choque Anemia Desidratação Desnutrição Diminuição de albumina sérica Distúrbios hidroeletrolíticos Cirurgia Ambiente Contenção física Múltiplos procedimentos Dor Estresse Privação prolongada de sono
co do psiquiatra 15• O exame neurológico pode ser direcionado para os sinais e os sintomas presentes.
Instrumentos de avaliação cognitiva/ atividades de vida diária/depressão Diante das queixas de declínio cognitivo, a avaliação neuropsicológica do paciente é necessária porque obtém maiores detalhes sobre as características dessa perda, tais como: subdomínios mais afetados, graduação dos déficits, prejuízo funcional, alterações de personalidade. Existem, porém, alguns instrumentos de avaliação cognitiva breve que são de grande valia na avaliação inicial do paciente, permitindo que se obtenha algumas informações objetivas importantes para diagnóstico e mensuração de impacto funcional. Tais testes não substituem a avaliação neuropsicológica mais aprofundada, mas guardam seu valor no fato de permitirem fácil e rápida aplicação. Os dados obtidos com os testes devem ser documentados com a pontuação e também devem ser descritos no exa' . me ps1qmco.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela 111
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SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Exame neurológico
Exame do estado mental Cooperação Orientação Linguagem Memória imediata, recente e remota Nervos cranianos I - Olfato 11 - Acuidade visual, campo visual, fundo de olho 111, IV, VI -Tamanho e reação da pupila, mobilidade extraocular V - Reflexo córneo e sensibilidade facial VIl - Força da musculatura facial superior e inferior, paladar VIII - Acuidade auditiva IX, X. XI - Articulação, movimentação do palato e reflexo faríngeo XII - Movimentação da língua Sistema motor Força de membros Espasticidade, flacidez ou fasciculações Movimentos anormais (tremores, coreia) Reflexos Tendíneo profundo: bíceps, tríceps, braquiorradial, quadríceps, aquileu Patológicos: Babinski, sinais de liberação frontal (grasping, snouting) Sensibilidade Posição, vibração e esterognosia Dolorosa Sistema cerebelar Oismetria (dedo-nariz) Alternância rápida de movimentos Marcha
Certamente, o mais difundido e utilizado teste de rastreio cognitivo é o Miniexame do Estado Mental (MMSE). Trata-se de um questionário composto por 30 perguntas que avaliam orientação, memória, atenção, cálculo e linguagem, tem fácil aplicação e razoáveis propriedades psicométricas (sensibilidade entre 44 e 100% e especificidade entre 46 e 100%). Ainda existem algumas discussões quanto à pontuação a ser adotada, tendo em vista as diferenças culturais e a influência que o grau de escolaridade exerce sobre os resultados. Dessa forma, Bertolucci et al. em 1994 sugeriram que fosse utilizado ponto de corte de 19/20 para idosos sem escolaridade e 23/24 para aqueles com, no mínimo, 4 anos de escolaridade 16. O teste do desenho do relógio ( CDT) também é bastante utilizado, principalmente como complemento do MMSE, tendo em vista que sofre menos influência do grau de escolaridade e avalia de forma mais precisa a função executiva (organização, planejamento e processamento),
a praxia e o controle inibitório. Consiste em pedir que o paciente desenhe um relógio, com os números e os ponteiros marcando uma hora determinada. Existem diversas maneiras de aplicá-lo e pontuá-lo, sendo os mais conhecidos aqueles desenvolvidos por Shulman et al., Sunderland et al., Wolf-Klein et al., Mendez et al., Tuokko et al., Manos & Wu e Shua-Haim. As diferenças residem principalmente no tempo de aplicação, nas instruções fornecidas ao paciente e na pontuação estipulada e, aparentemente, não há divergências sobre quais os domínios avaliados em todos eles 17 • O teste de fluência verbal de animais, parte do CAMCOG 18•19, é útil para avaliar de modo breve a linguagem e o vocabulário e, por vezes, desvela a presença de perseveração (quando o paciente repete o nome de um animal várias vezes seguidas), além de ser também instrumento para verificar a memória de fixação. Consiste em pedir que o paciente diga o nome de quantos animais lembrar no período de um minuto. O desempenho normal é acima de dez animais. Outro instrumento simples que pode ser utilizado na avaliação inicial é a bateria breve, também parte do CAMCOG 18•19, que consiste em mostrar dez figuras ao paciente e, depois, pedir que ele evoque os nomes uma vez. O procedimento é repetido mais duas vezes da mesma maneira; em seguida, é dada uma tarefa distratora e, após cinco minutos, solicita-se que o paciente evoque novamente os nomes. Esse teste permite a avaliação da memória mais ampla e específica do que o MMSE. O nível de corte é de quatro palavras na primeira tentativa, seis na segunda, sete a oito na terceira e três a quatro após cinco minutos. Para a avaliação do desempenho cognitivo ser mais aprofundada e ampla, o CAMCOG do Cambridge Examinationfor Mental Disorders ofthe Ederly (CAMDEX) é indicado. Contém 67 questões, sendo um total de 107 pontos possíveis. Em sua composição, constam alguns testes de rastreamento, tais como: questões do MMSE, teste de fluência verbal (animais), teste do desenho do relógio. Tem como objetivos avaliar orientação (espacial, temporal), linguagem (compreensão, expressão), memória (recente, remota, aprendizado), atenção, cálculo, praxia (ideacional, ideomotora, cópia), funções executivas (pensamento abstrato, fluência ideacional, fluência verbal, raciocínio visual) e percepção visual. Admite-se comovalor de corte para déficit cognitivo 79/80 18•19 • Visando à avaliação funcional do paciente, o Informant Questionnaire o f Cognitive Decline in the Elderly (IQCODE) é um instrumento amplamente utilizado, baseado em informações fornecidas por um cuidador ou familiar próximo, com o objetivo de comparar as alterações de desempenho do paciente em um período de dez anos. Originalmente, é composto por 26 questões, que devem ser pontuadas de 1 a 5 cada uma, sendo: 1 - muito me lhor; 2 - um pouco melhor; 3 - não houve mudança; 4 -
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um pouco pior; 5 - muito pior. O resultado final é obtido dividindo-se a pontuação total pelo número de questões respondidas, e o ponto de corte sugerido no estudo o riginal foi de 3,3020•21 • Para a avaliação de quadros depressivos, um dos instrumentos mais utilizados é a Geriatric Depression Scale (GDS), que traz 30 questões em sua versão original e 10, 15 e 20 questões em versões posteriormente desenvolvidas.
Hipótese diagnóstica É elaborada com base em todos os dados coletados na anamnese completa, nos sinais e nos sintomas observados nos exames físico, neurológico e psíquico (incluindo alterações constatadas nas escalas). Deve ser sindrômica e seguida de hipóteses diagnósticas específicas (p. ex.: síndrome demencial, doença de Alzheimer, demência vascular etc.). Essa hipótese guia a solicitação de exames complementares e deve ser refeita após o resultado dos exames. Com a hipótese diagnóstica é realizado o planejamento terapêutico, que pode ser modificado de acordo com a evolução do quadro e se houver mudança de hipótese diagnóstica.
Exames complementares É preciso salientar que nenhum achado em testes ou
exames laboratoriais é patognomônico de qualquer do ença psiquiátrica primária, independentemente da faixa etária considerada. Apesar disso, mantêm sua vital importância na avaliação inicial e no acompanhamento clínico, especialmente na população idosa, tendo em vista que a identificação de doenças físicas que possam resultar em sintomas psiquiátricos faz-se obrigatória. A escolha dos exames a serem utilizados deve ser criteriosa, visando sempre às melhores taxas de sensibilidade e especificidade possíveis, sob o risco de a avaliação tornarse excessivamente onerosa e até mesmo financeiramente inviável em termos de saúde pública. Nos quadros sugestivos de delirium, esses exames complementares são essenciais, uma vez que o delirium pode ser secundário a causas clínicas 14 • No Brasil, o Departamento Científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia publicou, em 2005, um consenso cujo objetivo era orientar condutas para o diagnóstico clínico de doença de Alzheimer. Nele, os autores recomendam que o diagnóstico de demência seja feito utilizando-se os critérios do DSM-IV e o diagnóstico de doença de Alzheimer seja firmado com base nos critérios do National Institute ofNeurological and Communicative Disorders and Stroke e do Alzheimer's Desease and Related Disorders Association (NINCDS-ADRDA)2 1• Nesse caso, a investigação inicial visa descartar a presença de causadores de
demência potencialmente reversíveis e pesquisar doenças comórbidas que possam, de alguma forma, afetar o tratamento e o curso. São recomendados: • hemograma completo + dosagem de vitamina B12 : detecção de anemia megaloblástica por deficiência de vitamina B12, umas das principais causas de demência potencialmente reversível; • glicemia de jejum: tanto hiper quanto hipoglice mia podem levar à letargia e estado confusional agudo; • dosagem sérica de ureia e creatinina: investigação da função renal, principal via de eliminação da maioria das medicações que podem ser utilizadas; • cálcio sérico: tanto a hipocalcemia quanto a hipercalcemia (decorrentes de hiperparatireoidismo e hipoparatireoidismo, respectivamente) podem levar a quadros psicóticos, agitação psicomotora e déficits cognitivos; • enzimas hepáticas (TGO, TGP e gama-GT): grande parte das medicações é metabolizada no fígado e pode lesá-lo. A dosagem sérica de marcadores de lesão hepática antes de iniciar tais drogas pode ser útil diante da suspeita de hepatotoxicidade em avaliações posteriores; • albumina plasmática; • hormônio tireoestimulante (TSH) + T4livre: hipotireoidismo, mesmo que subclínico, pode levar ao aparecimento de sintomatologia depressiva e a prejuízos de desempenho cognitivo. Quadros de hipertireoidismo podem mimetizar sintomas maniformes e ansiosos; • sorologias para sífilis e HIV Além desses, outros exames também podem ser úteis, tanto na pesquisa por outras causas de quadros demenciais potencialmente reversíveis, quanto na busca por outras doenças que podem mimetizar sintomas psiquiátricos primários. São exemplos: • dosagem de eletrólitos (sódio, potássio e magnésio); • análise de sedimento urinário, nas ocasiões em que há queixas sugestivas de infecção do trato urinário; • raio X de tórax, quando há sinais e sintomas sugestivos de infecção de vias aéreas; • eletrocardiograma. Exames de imagem cerebral também costumam ser indicados na avaliação inicial do paciente idoso, tendo em vista que algumas das principais causas de demência potencialmente reversíveis estão ligadas a danos estruturais do cérebro. Atualmente, existem algumas indicações bastante precisas em que é obrigatória a realização de tomografia computadorizada ou ressonância magnética de encéfalo: início de quadro demencial antes dos 60 anos, rápido declínio cognitivo (1 a 2 meses), trauma cranioencefálico recente, sinais e sintomas neurológicos inexplicados ( cefaleia ou convulsões de início recentes, sinais localizatórios, alterações de marcha e de continência urinária), história pessoal de câncer (especialmente aqueles com predisposição para metástases cerebrais), uso de anticoagulantes orais ou história de distúrbios da coagula-
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ção, apresentação atípica de sintomas depressivos, ansiosos, psicóticos ou de declínio cognitivo. Caso haja suspeita de infecção do SNC, a coleta do líquido cefalorraquidiano está indicada, atentando-se à análise citológica e bioquímica, associadas a bacterioscopia e cultura. Também podem estar indicadas a coleta de sorologias para sífilis, toxoplasmose, cisticercose e criptococose. Eletroencefalograma, videoeletroencefalograma, análises funcionais (PET-CT) e de perfusão cerebral (SPECT) também podem ser úteis para a elucidação diagnóstica.
Considerações finais A avaliação dos idosos com patologias mentais é a base para a assistência médica adequada. Deve ser feita em ambiente silencioso e calmo, com alguns cuidados por parte do entrevistador, como verificação da capacidade do paciente de entender o que é dito, repetição de perguntas se necessário e presença de outro informante para complementar e verificar os dados informados. A anamnese inclui a investigação de sintomas afetivos, cognitivos, comportamentais e físicos, além da verificação da capacidade de exercer as atividades de vida diária. É importante a pesquisa de possíveis fatores desencadeantes para o quadro, incluindo fatores estressares ambientais e decorrentes de doenças clínicas. Também devem ser pesquisados os antecedentes pessoais e familiares, além de ser necessário o interrogatório sobre os diversos aparelhos. Em seguida, é realizado o exame psíquico e físico e o neurológico (que pode ser direcionado para os sinais e sintomas presentes). Nos idosos, complementa-se o exame psíquico clássico com testes que verificam com maior precisão comprometimento cognitivo, como MMSE, teste do relógio, fluência verbal e bateria breve. Se necessário é feito o CAMCOG e, em seguida, o neuropsicológico. Além desses testes podem ser usadas as escalas para avaliar a capacidade de realização de atividades de vida diária, como o IQCODE, e as escalas para avaliar depressão, como a GDS. Alguns exames complementares são essenciais, principalmente na avaliação de quadros demenciais e de delirium, incluindo exames gerais e de imagem, mas de modo geral devem ser realizados com base na anamnese. Concluindo, a anamnese, realizada de forma cuidadosa e completa, é fundamental para a elaboração de hipótese(s) diagnóstica(s) e para a solicitação dos exames adequados que permitem o diagnóstico preciso e o plano de tratamento adequado. Minicaso clínico
Identificação J.E., masculino, 65 anos, casado há 28 anos, pai de dois fi lhos (um filho de 26 anos e uma filha de 25 anos). estudou até completar o ensino superior em odontologia, não trabalha há dois anos, católico não praticante.
Informante Esposa que está se sentindo sobrecarregada por excesso de preocupações e cuidados com o paciente. Queixa e duração Atos autoagressivos há dois anos. História da moléstia atua l Esposa referiu que, dois anos atrás, o paciente era dono de uma empresa de odontologia, na qual passava a maior parte do tempo, em detrimento do convívio familiar. Era desorganizado com as fina nças, o que lhe rendeu, ao longo dos últimos quinze anos, diversas dívidas e culminou com a falência da empresa. Nesse período de dificuldades financeiras, apresentou desânimo, desmotivação, falta de energia, alteração do apetite e emagrecimento. Continuou trabalhando como empresário na área de produtos odontológicos, apesar da piora acentuada de sua capacidade de organização. Procurou ajuda médica psiquiátrica e iniciou tratamento irregular com imipram ina por hipótese diag nóstica de episódio depressivo. Apresentou melhora parcial dos sintomas após quinze dias de medicação. Há oito anos, o paciente foi encontrado desmaiado na empresa onde trabalhava, asfixiado por uma matriz odontológica que tentava engolir. A família ficou surpresa e assustada, pois não entendeu como isso poderia acontecer. Após avaliação e estabilização clínica, foi encaminhado à psiquiatria, que indicou internação em hospital fechado por hipótese diagnóstica de episódio depressivo grave com tentativa de suicídio. O paciente não sabia explicar o seu comportamento, e a esposa disse que a única explicação possível seria tentativa de suicídio, em razão das dificuldades financeiras e do trabalho, pois depois da falência ele não voltou mais a ser o mesmo, passou a ficar muito parado e desanimado mesmo sem queixas depressivas. Após trinta dias de internação, o paciente recebeu alta hospitalar, retornando às suas atividades rotineiras, sem sintomas depressivos, mantendo dificu ldade de organização e planejamento no trabalho. Manteve tratamento medicamentoso com antidepressivo (não lembra qual) por um ano, suspendendo por conta própria. Há dois anos, o paciente apresentou quadro súbito de desvio de rima e disartria diagnosticado como acidente vascular encefálico. Após um mês desse evento, o paciente passou a ficar muito isolado, não saía mais de casa, sem iniciativa, muito calado, não conseguia mais trabalhar. Em casa, ficava andando de um lado a outro sem propósito ou ficava muito tempo parado. Reclamava de dificuldade de reagir. dizia que sua vida havia chegado ao fim. que queria morrer e, segundo esposa, deixou de se preocupar com a família e com as dificuldades financeiras que enfrentavam. Ficou frio, distante e vazio. Além disso, iniciou comportamento incontrolável de colocar diversos objetos na boca, tentando engolir alguns deles: cortador de unha, folhas de plantas, bonequinhas de decoração, gaze do curativo etc. A vigilância constante da família não o impedia de colocar objetos na boca, o que a deixava muito preocupada, irritada e frustrada, pois parecia que ele estava sendo teimoso e inconsequente, embora não fosse de seu feitio. Esposa disse que não entendeu o motivo do comportamento
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e, quando o questionava, ele dizia não saber por que tentava engolir objetos, mas não consegu ia evitar, mesmo depois do episódio de asfixia e dos engasgos. Em razão do risco de morte, a esposa interpretava as atitudes como tentativas de suicídio, o que a deixava preocupada e indignada, não só pela vida dele, mas também por causa de suas crenças religiosas, que condenam o suicídio. Não houve outro tipo de autoagressão ou de "tentativa de suicídio" mais violenta ou de grande risco de morte, e o quadro não se modificou, apesar do uso de paroxetina 30 mg/dia durante um mês. O paciente foi encaminhado para a internação em enfermaria de psicogeriatria para controle do quadro. Antecedentes familiares Pai falecido de causa desconhecida há 21 anos, hipertenso e portador de insuficiência renal crônica; mãe falecida há dez anos sem causa conhecida, também hipertensa.
Discussão O paciente apresentou quadro de apatia importante e impulsividade oral, associado a prejuízo cognitivo importante, mais acentuado para funções executivas, sem sintomas depressivos graves. Durante a internação, foi possível avaliar que o paciente tentava ingerir objetos por impulso sem intenção de morrer. Além disso, o quadro piorou após evento vascular encefálico, o que sugere quadro de demência vascular com predomínio frontotemporal. É necessário obter-se história psiquiátrica detalhada durante avaliação de idosos, com mais de um informante se possível, além de avaliação clínica, neurológica e cognitiva, pois os quadros demenciais apresentam variadas manifestações clínicas, que podem ser confundidas ou estar sobrepostas a diversos transtornos psiquiátricos, dentre eles a depressão com apatia.
Questões 1. A anamnese de idoso portador de doença psiquiátrica:
Antecedentes pessoais Paciente hipertenso; portador de insuficiência renal crônica (faz hemodiálise há oito anos, três vezes por semana); dois episódios depressivos prévios; uma internação psiquiátrica por suposta tentativa de su icídio; acidente vascu lar encefálico há dois anos. Uso de: paroxetina 20 mg/dia; clonazepam 5 gotas à noite; captopril 50 mg 3 x/dia; anlodipina 5 mg 2 x/dia; ácido fólico 5 mg 2 x/dia. Exame psíquico de entrada O paciente é entrevistado na enfermaria, onde se encontra sentado no refeitório, com vestimentas limpas e apropriadas ao ambiente hospitalar. Seu olhar é vago, parado e não transmite emoção, e sua mímica facial é indiferente. Apenas responde a perguntas de maneira simples, direta e com poucas palavras, não desenvolve um diálogo. Seu discurso está organizado, tem conteúdo restrito e empobrecido, com ideias de morte sem plano suicida. Demonstra prejuízo da iniciativa, apatia, passividade, psicomotricidade lentificada e não apresenta delírios ou alterações da sensopercepçao.
-
Exame neurológico Hemiparesia esquerda (desvio de rima e ptose palpebral); força global grau IV; reflexos osteotendíneos à direita menores do que à esquerda, membros superiores maiores do que inferiores; sinais de li beração frontal (exaltação de reflexos axiais da face, sucção, palmomentoniano e de preensão); ataxia cerebelar axial e apendicular esquerda. Avaliação cognitiva Miniexame do estado mental: 24/30; fluência verbal de animais: 1O. Ressonância magnética de crânio Imagens de hipersinal em substância branca subcortical frontotemporal, sugestivas de gliose ou microangiopatia e redução volumétrica de região frontotemporal.
a) b) c) d) e)
Pode ser feita em vários locais. Pode ser feita somente com o paciente. Pode ser substituída por exames laboratoriais. Pode ser feita com sons em volume alto ao lado. Pode ser realizada rapidamente.
2. a) b) c) d) e)
É importante obter dados acerca de: Local de moradia. Pessoa(s) com quem mora. Sintomas afetivos, cognitivos, comportamentais e físicos. Mudanças ambientais, eventos de vida e estressares recentes. Traumas na infância.
3. Na avaliação do paciente com suspeita de demência, não é importante: a) Avaliar as atividades de vida diária. b) Pesquisar sintomas depressivos. c) Pedir inicialmente uma série de exames. d) Fazer testagem cognitiva. e) Realizar exame neurológico. 4. a) b) c) d) e)
Entre as causas de de/irium, não se pode listar: Infecções. Obstipação intestinal. Incontinência urinária. Medicações. Estresse.
5. Paciente de 65 anos, casado, dentista aposentado com episódio depressivo há quinze anos e episódios repetidos de tentativa de deglutição de objetos há oito anos, com anedonia, apatia, sinais de liberação frontal e hemiparesia esquerda e MMSE de 24. O diagnóstico mais provável é: a) Depressão. b) Demência vascular. c) Dissociação. d) Conversão. e) Transtorno afetivo bipolar.
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Avaliação Neuropsicológica
Daniel Fuentes Silviane Pinheiro Campos de Andrade Mirella Baise
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Um breve histórico da neuropsicologia, 333
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Avaliação neuropsicológica, 335 Objetivos da avaliação neuropsicológica. 335
1. Compreender o papel da neuropsicologia dentre as neurociências.
Indicações para a avaliação neuropsicológica, 335 A prática da avaliação neuropsicológica, 336 Funções cognitivas, 337 Atenção, 337 Funções Executivas, 338 Neuroanatomiada funções executivas, 338 Avaliação da funções executivas, 339 Memória, 340 Linguagem, 341 Percepção, 343 Questões, 344 Referências bibliográficas, 345
Um breve histórico da neuropsicologia Desde os primórdios da civilização humana as questões cérebro-comportamento já despertavam interesse. Isto era evidenciado pelos achados paleontológicos de crânios pré-históricos com trepanações realizadas ainda em vida. Papiros egípcios de mais de 3.000 anos também documentam esta relação e mais especificamente o papiro de Edwin Smith, datado de 1700 a.C. e creditado a Imhotep, traz entre 13 descrições de casos com lesões cerebrais seguidas de alterações comportamentais, um sujeito com prejuízos da linguagem após ferimento no osso temporal 1• No passado pensava-se sobre uma dicotomia entre o corpo, este sendo entendido como algo material e divisível, e a mente como algo imaterial e adimensional. Renê
2. lnterar-se sobre a utilidade da avaliação neuropsicológica no estabelecimento do diagnóstico e prognóstico. 3. Conhecer quais as principais funções neuropsicológicas e seus subdomínios; além do instrumental comumente utilizado.
Descartes postulou a célebre frase "Penso, logo existo", questionada por Damásio que ressalta que, quando viemos ao mundo e nos desenvolvemos, começamos por existir, e só mais tarde pensamos; daí, "existimos e depois pensamos e só pensamos na medida em que existimos, visto o pensamento ser, na verdade, causado por estruturas e operações do ser'~ É neste universo entre o cérebro e a mente que se situa a neuropsicologia. Dentre as neurociências, a neuropsicologia é aquela que busca estabelecer as relações entre o funcionamento do sistema nervoso central e as funções cognitivas e o comportamento, tanto nas condições patológicas quanto normais 1; sendo que as descobertas e descrições providas por esta abordagem foram validadas pelos métodos de investigação estrutural e funcional do cérebro2 • Diante do entendimento da correlação estruturafunção, o anatomista Franz Joseph Gall (1757-1828) desenvolveu uma teoria baseada no localizacionismo, chamada frenologia. Gall e seus seguidores acreditavam que o cérebro poderia ser compartimentalizado em várias estruturas com suas funções mentais ou comportamentos específicos, que cada estrutura cerebral se desenvolvia de acordo com a caixa craniana e que quanto mais desenvolvida uma função mental, maior seria o volume cerebral correspondente; portanto passível de avaliação por meio da análise da superfície do crânio.
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Grande contribuição para a neuropsicologia foram os estudos de Broca e Wernicke, que estudaram as correlações anatomoclínicas entre lesões cerebrais e patologias da linguagem. Em 1861, Paul Broca realizou um estudo anatomoclínico e mostrou a relação entre lobo frontal esquerdo e a produção da fala. Suas conclusões, baseadas em avaliações clínicas e estudos anatômicos são considerados o marco inicial da neuropsicologia. Pela primeira vez, portanto, havia-se localizado uma função mental complexa em uma área específica do córtex, mostrando também uma diferenciação entre os hemisférios cerebrais. Em 1874, o neurologista alemão Carl Wernicke descreveu a relação causal entre a lesão no primeiro giro temporal esquerdo e a compreensão da linguagem. Broca associou o hemisfério esquerdo com a linguagem e com a ideia de dominância manuaP, embora estudos posteriores mostrem a grande contribuição do hemisfério direito para a linguagem, como por exemplo, a prosódia. Embora a frenologia tenha contagiado grande parte dos pensadores da época, acabou por ser rechaçada pela comunidade científica, já que praticamente todas as suas hipóteses não foram confirmadas. No início do século XX, a partir de estudos experimentais com animais, o psicólogo Karl Lashey postulou que as funções cerebrais requerem a participação de grandes massas cerebrais de tecido nervoso, formulando uma teoria de funcionamento cerebral denominada de "ação de massà: que diminui a importância dos neurônios individuais, das conexões neuronais específicas e das regiões cerebrais distintas, funcionalmente especializadas. Segundo esta teoria, portanto, seria a massa cerebral, e não seus componentes neuronais, importante para o fun cionamento cerebral. Seus achados, se por um lado questionavam a possibilidade de localização de funções, por outro fomentaram o desenvolvimento da neuropsicologia moderna. O psicólogo Alexandr Romanovich Luria é considerado o fundador da neuropsicologia moderna. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele avaliou e mapeou as le sões cerebrais de seus pacientes e observou as alterações comportamentais que surgiram. Ele tinha como principal objetivo a compreensão das bases neurológicas do comportamento e a ênfase na construção dos processos mentais ao invés, simplesmente, de sua localização, sem perder de vista a perspectiva humanista. Na concepção de Luria, os processos corticais superiores funcionam como sistemas funcionais complexos dinamicamente localizados3. Para Luria, a localização de sistemas funcionais não poderia ser definida em áreas limitadas do cérebro ou de seu córtex. Passou, então, a denominá-las como zonas ou áreas funcionais, nas quais cada área possui uma função dentro de uma área maior. Sendo assim, as funções men-
tais organizam-se em sistemas de zonas, cada qual exercendo seu papel específico dentro deste sistema. Porém, se ocorrer uma lesão em um único local ou se lesões ocorrerem em locais diferentes, todo o sistema funcional pode ser perturbado. Esta é a teoria que foi elaborada por ele - a teoria do sistema funcional - ainda muito utilizada atualmente. Na segunda metade do século XX, a neuropsicologia firmou -se efetivamente enquanto área de estudo, e embora a linguagem tenha sido a área mais amplamente investigada, diversos temas têm sido enfatizados nos úl. - memona, , . tlmos anos, como a atençao, percepçao, aprendizagem e funções executivas. Entre os avanços obtidos, destaca-se o aperfeiçoamento dos instrumentos de avaliação neuropsicológica, e o desenvolvimento de métodos de intervenção com o objetivo de obter a restauração de funções psíquicas superiores comprometidas por lesão cerebral. Atualmente, as modernas técnicas de neuroimagem têm possibilitado casa vez mais o entendimento do funcionamento cerebral e as consequências de lesões neurológicas. Hoje é possível não apenas fazer a correlação estrutura-função, como também ver o cérebro em funcionamento. Dentro desse contexto, a neuropsicologia, tendo como uma de suas formas de atuação a avaliação neuropsicológica, contribui para diagnósticos de disfunções cerebrais. Com o uso dessas técnicas, a avaliação neuropsicológica mudou seu eixo de investigação, concentrando seu interesse não mais na localização, mas no estabelecimento da extensão, do impacto e das consequências cognitivas, comportamentais e na adaptação emocional e social que lesões ou disfunções cerebrais podem promover nas pessoas4 • No Brasil, as primeiras incursões sobre neuropsicologia são creditadas ao neurologista e psicólogo Antonio Branco Lefevre que em 1950 defendeu tese de doutorado sobre afasia em crianças5 . Em 1971, o neurocirurgião Raul Marino Jr. fundou a Divisão de Neurocirurgia Funcional do Instituto de Psiquiatria da FMUSP e implementou o primeiro serviço de neuropsicologia do país, a Unidade de Neuropsicologia, junto à então estudante de Psicologia Candida Helena Pires de Camargo. Logo em seguida, em 1975, Antonio Lefevre criou o Setor de Atividade Nervosa Superior junto à Clínica Neurológica da FMUSP, onde sua esposa, a psicóloga Beatriz Helena Lefevre, passou a atuar em neuropsicologia. Candida Camargo e Beatriz Lefevre podem ser consideradas as grandes responsáveis pela neuropsicologia no Brasil, pela contribuição clínica e científica e por serem responsáveis direta e indiretamente pela formação dos neuropsicólogos que ampliaram e consolidaram a neuropsicologia neste país. Com a Resolução n. 002/2004 do Conselho Federal de Psicologia que regulamenta a prática da neuropsicologia como especialidade da psicologia e reconhecem, por meio do registro e titulação, os profissionais especializados nes-
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te campo de atuação, o papel do neuropsicólogo nas e quipes interdisciplinares ganhou maior destaque, colaborando com a formação de profissionais da saúde, na produção científica e atuando na clínica diagnóstica e terapêutica.
Avaliação neuropsicológica A avaliação neuropsicológica avalia o funcionamento cerebral, podendo ser útil para definir a natureza e a gravidade de problemas comportamentais e emocionais resultantes de lesões ou disfunções cerebrais. Estabelece também informações sobre a cognição, características de personalidade, comportamento social, estado emocional e adaptação a limitações do paciente. Consiste num exame complementar importante para a medicina no estabelecimento tanto do diagnóstico quanto do prognóstico 1'2'4'6 • Embora possa existir certo consenso quanto a uma definição geral do campo, não é possível identificar uma abordagem metodológica hegemônica. Embora a linguagem tenha sido uma área amplamente estudada em neuropsicologia, diversos outros tópicos vêm sendo enfatizados nesses últimos trinta anos, tais como: atenção, percepção visual e auditiva e memória. Influenciada pelos avanços da bioquímica, a neuropsicologia interessa-se pelos substratos orgânicos das emoções, reconsiderando funções de áreas subcorticais e corticais e reanalisando as consequências de lesões pré-frontais7 .
Objetivos da avaliação neuropsicológica Segundo Lezak et al. 6 , os objetivos da avaliação neuropsicológica podem ser subdivididos em: diagnóstico, cuidados com o paciente, tratamento (desenvolvimento de programas individuais) e pesquisa. Na prática clínica, a avaliação neuropsicológica é solicitada por um profissional de saúde, na maioria das vezes médicos que necessitam de informações adicionais para estabelecer um diagnóstico. Geralmente a avaliação visa responder questões relacionadas com a origem e a dinâmica da condição dos pacientes, cujo objetivo é saber qual o problema, como ele se apresenta e qual a sua extensão, buscando-se, muitas vezes, um diagnóstico diferencial entre quadros que têm manifestações clínicas semelhantes ou passíveis de serem confundidas4' 6 • Feito o diagnóstico, muitas vezes faz-se necessário estabelecer o curso evolutivo da desordem a longo prazo. Essa previsão relaciona-se com o tipo de patologia e, no caso de lesão, com a extensão da mesma; além de fatores como nível prévio, idade, educação, estrutura familiar, recursos pessoais e ambientais para fins de reabilitação6 .
Indicações para avaliação neuropsicológica Condições nas quais os pacientes apresentam alterações cognitivas, afetivas e sociais decorrentes de lesões
que atingiram primária ou secundariamente o SNC são indicativos para a avaliação neuropsicológica. Pacientes encaminhados para avaliação neuropsico lógica se enquadram em três grupos. O primeiro refere-se a pacientes com distúrbios cerebrais conhecidos, como: dano cerebral traumático, doença de Alzheimer, doença de Parkinson, distúrbios cerebrovasculares, esclerose múltipla, tumores, convulsões e infecções. O segundo referese a pessoas com um fator de risco conhecido para distúrbio cerebral, nas quais alterações da personalidade e do comportamento poderia ser o resultado do transtorno; por exemplo, pessoa que levou um golpe na cabeça por um acidente de carro. O terceiro refere-se a pacientes que não têm fator de risco conhecido para distúrbio cerebral, mas apresentam alteração comportamental. Nesse caso, o diagnóstico é feito por exclusão de outros diagnósticos. Por exemplo, distúrbio metabólico, endócrino, deficiência vitamínic a, neoplasia, infecção, microisquemias6 • Em resumo deve-se buscar avaliação neuropsicoló gica em: a) condições nas quais ocorreram prejuízos ou modificações cognitivas, afetivas e sociais, devido a eventos que atingiram primária ou secundariamente o SNC; b) condições nas quais o potencial adaptativo não é suficiente para o manejo da vida prática, acadêmica, profissional ou social, pelo fato dos indivíduos apresentarem formas e organizações de suas funções mentais diferentes ou discrepantes do que é esperado; c) condições geradas ou associadas a uma desregulação no balanço bioquímico ou elétrico do cérebro, decorrendo disto modificações ou prejuízos cognitivos/afetivos. A neurospicologia se aplica a inúmeras situações e patologias, desde crianças e adolescentes até adultos e idosos. Podem realizar a avaliação neuropsicológica indivíduos com disfunções decorrentes de doenças degenerativas, doenças neurológicas, quadros psiquiátricos e metabólicos, dificuldades de aprendizagem, traumatismo cranioencefálico e no pré e pós-cirúrgico. Muitas vezes, o paciente tem uma série de dificuldades, mas nenhum exame anatômico, fisiológico ou funcional identifica alguma alteração. Nestes casos, a avaliação neuropsicoló gica é importante para traçar o melhor tipo de abordagem e tratamento. A aplicabilidade da avaliação neuropsicológica pode ser vista em clínicas, consultórios particulares, hospitais (geral e psiquiátrico), fóruns, juizados, pesquisas e reabilitação neuropsicológica. O exame neuropsicológico da criança
O trabalho com crianças exige conhecimento do universo infantil, somados a técnica de avaliar e compreender os aspectos cognitivos, as etapas esperadas para cada faixa etária e os marcos do desenvolvimento infantil. Considerando que estamos diante de um cérebro em desenvolvimento, com novas conexões em todos os momentos, o exame neuropsicológico da criança envolve maior
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dificuldade na análise de seus comportamentos e das suas funções 8•9 . O exame neuropsicológico da criança geralmente é solicitado por profissionais da saúde, escolas ou pais/responsáveis, para, na maioria das vezes, verificação de queixas de problemas de aprendizagem e de comportamento, porém há casos de patologias diversas ou sequelas de lesões cerebrais. A avaliação neuropsicológica infantil pode ser subdividida cinco etapas: 1) Queixa e anamnese: estudo da problemática apresentada ao neuropsicólogo. Trata-se de buscar informações a respeito desta criança e conhecer o seu universo. Para compreensão de uma linha evolutiva da criança opta-se por entender aspectos desde a concepção, amamentação, controle dos esfíncteres, introdução da alimentação e desenvolvimento neuropsicomotor. Os cadernos escolares e a comunicação com professores são extremamente importantes nos casos de problemas de aprendizagem. 2) Entrevistas com outros profissionais que atendam a criança: realizada com a intenção de conhecer e observar a dinâmica das relações da criança com seus pais ou informante, no ambiente escolar e social. 3) Seleção dos instrumentos para avaliação: depois de formulada a hipótese diagnóstica, por meio das entrevistas e anamnese, o neuropsicólogo propõe uma bateria de testes de acordo com a necessidade da criança. 4) Aplicação dos testes: esta etapa de realização dos testes e tarefas terá duração variável, dependendo da bateria neuropsicológica proposta e do ritmo de execução de cada criança. 5) Entrevista devolutiva: o neuropsicólogo irá entregar o relatório de avaliação e "devolver" aos pais e à criança os aspectos observados durante a entrevista e testagem, quais suas forças (habilidades preservadas) e fraquezas (habilidades deficitárias) e reações frente à situação de testagem. Considera-se a individualidade e a maturação infantil, seu desenvolvimento neuropsicomotor para compreensão da dinâmica infantil. O exame neuropsicológico do adulto
O processo de avaliação inicia-se com a entrevista de anamnese que tem como objetivo conhecer o indivíduo, obter dados sobre queixa, início do aparecimento dos sintomas, antecedentes familiares, histórico pessoal, comorbidades, uso de medicamentos, resultado de exames em geral; além dos demais dados de qualquer anamnese psicológica. Com estas informações o neuropsicólogo formula suas hipóteses, seleciona os instrumentos e verifica o perfil cognitivo/emocional. Durante a realização dos testes pré-selecionados o profissional pode perceber a necessi-
da de de incluir alguns e/ou retirar outros, de acordo com o desempenho do paciente 10 • N a análise dos resultados são avaliados os dados quantitativos e qualitativos para então estabelecer o perfil neuropsicológico, identificar funções preservadas e comprometidas e realizar as conclusões necessárias para o fechamento do caso. Estas informações farão parte de um relatório que será entregue ao paciente e/ ou família na entrevista de devolutiva, quando também serão feitos os encaminhamentos necessários e as possibilidades de reabilitação 10 • O exame neuropsicológico do idoso
A avaliação neuropsicológica tem-se mostrado extremamente relevante no diagnóstico inicial de doença de Alzheimer 11 •12 ou mesmo no diagnóstico diferencial entre os esquecimentos decorrentes dos processos de senescência normal e transtorno cognitivo leve, em que o paciente tem comprometimento de memória, contudo, ainda é funcional. É muito importante um diagnóstico nessa fase, uma vez que o transtorno cognitivo leve pode progredir para um quadro demencial 13 . A avaliação neuropsicológica auxilia nesse diagnóstico, possibilitando que o paciente já inicie tratamento farmacológico e cognitivo precocemente.
A prática da avaliação neuropsicológica Seria extremamente benéfico para minimizar a ansiedade do paciente, bem como possibilitar seu engajamento no processo da avaliação, que os encaminhadores preparassem o paciente para tal exame, explicando-lhe o objetivo e ressaltando a necessidade de estimar, mediante a observação de atividades que o cérebro processa como capacidades mentais, de que forma está funcionando. Na maioria dos casos, os pacientes devem saber qual o objetivo da avaliação de suas competências cognitivas e emocionais e que estas informações auxiliarão no aconselhamento, na psicoeducação e no planejamento do tratamento6 . Para que a avaliação seja conduzida de forma aresponder a dúvida diagnóstica, é esperado que os encaminhamentos incluam uma descrição sucinta do caso, bem como as razões pelas quais a avaliação está sendo solicitada. Isto facilita o planejamento da avaliação em situações específicas, como por exemplo, se é destinada para fins jurídicos ou para reabilitação, ou ainda para intervençao neuroctrurgiCa. A primeira sessão consiste em coletar os dados de anamnese, que incluem a história da doença, a queixa principal, o início dos sintomas, além de ser extremamente relevante investigar sobre alterações comportamentais, queixas cognitivas, outras condições médicas, antecedentes familiares, condições sociais, acadêmicas/profissionais, exames e tratamentos realizados. Neste momento o neuropsicólogo elege as hipóteses neuropsicológicas. -
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As demais sessões compreendem a avaliação propriamente dita em que, diante do caso, o neuropsicólogo selecionará os testes a serem utilizados. Usualmente, o neuropsicólogo monta uma bateria de testes que possa abranger as principais funções cognitivas, tais como nível intelectual, memória, atenção, percepção, linguagem, raciocínio, cálculo, funções executivas, além de aspectos emocionais e comportamentais. Para tanto, pode-se fazer uso de baterias fixas ou flexíveis. As baterias fixas constituem um conjunto de subtestes que avaliam cada uma dessas funções e geram um escore total como somatório de todos eles. Já as baterias flexíveis são compostas por subtestes de diferentes baterias fixas, que permitem análise do resultado separadamente do escore total, além de testes isolados específicos. Existe uma dúvida de qual a necessidade de uma avaliação neuropsicológica compreensiva (abrangendo diversas funções cognitivas), quando muitas vezes, a queixa do paciente refere -se a apenas um domínio cognitivo. Primeiro, devemos resgatar o entendimento do funcionamento cerebral como um todo integrado, de tal forma que uma função cognitiva não é pura. Cada função cognitiva específica é influenciada e influencia as demais funções cerebrais. Portanto, devemos investigar não apenas o prejuízo em determinada função, mas o quanto que ela pode estar prejudicando outras e vive-versa. Outro fator é que o paciente desconhece, por exemplo, o termo funções executivas. Dificilmente um paciente chega ao consultório dizendo estar com problemas nas suas funções executivas; ele é capaz de dizer que está com problema de memória ou mesmo atencional, mas por vezes desconhece os termos flexibilidade mental, tomada de decisão, dificuldade em resolução de problemas e planejamento cognitivo da ação. Modalidades estas comuns em diversos transtornos psiquiátricos, como transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, transtorno afetivo bipolar, transtorno obsessivo-compulsivo, dentre outros. Portanto, muitas vezes é necessário investigar inclusive o que não é queixa do paciente, daí a necessidade de uma avaliação compreensiva; caso contrário, podemos incorrer em inferências erradas acerca do seu perfil cognitivo e, consequentemente, em diagnósticos errados. Para o início da aplicação de testes, faz-se necessário avaliar o nível de alerta do paciente, seu nível de consciência, bem como checar fatores intervenientes ao de sempenho nos testes, como as condições de sono, fome, cansaço, se usa ou não óculos, a capacidade auditiva, se é daltônico, se sabe ler e escrever, dentre outras, pois esses são fatores que influenciam sobremaneira nos resultados encontrados. Isso é importante de ser analisado, pois segundo a Teoria da Medida, nenhuma medida é isenta de erro. Contudo, quanto mais pudermos minimizar os fatores que influenciam na medida, mais fidedignos serão os resultados do sujeito. Além de testes, faz-se
uso também de escalas comportamentais relacionadas ao caso e a observação clínica. Esta é a principal razão pela qual o neuropsicólogo deva ter conhecimentos de neurologia, psiquiatria, psicopatologia, psicofarmacologia e psicologia para fazer uma compreensão dinâmica do caso. Estes recursos técnicos possibilitam uma compreensão global do paciente e são essenciais, sobretudo em condições em que os resultados encontrados nos testes não são tão claros ou que não correspondem com a fenomenologia clínica do caso; como por exemplo, no transtorno do déficit de atenção e hiperatividade no adulto, no qual o discurso do paciente, suas queixas e de seus familiares corroboram os critérios diagnósticos, mas os resultados formais dos testes não deixam isto claro. Condição essa em que o paciente, ao longo da vida, para conseguir êxito acadêmico, teve que lançar mão de estratégias compensatórias, mas ainda assim sofre com os sintomas do transtorno. As sessões de testagem devem ser programas de tal forma que todos os testes de uma única função não sejam aplicados todos no mesmo dia, para não exigir demais de uma mesma circuitaria cerebral e fadigar o paciente. Portanto, deve-se organizar uma sequência dos testes das mais diversas funções, bem como alternar entre provas verbais e não verbais. Durante a avaliação, as hipóteses neuropsicológicas levantadas são descartadas ou confirmadas de acordo com os resultados obtidos nos testes. Terminada as sessões de avaliação, cabe ao neuropsicólogo elaborar um relatório constando de todas as informações relevantes obtidas e marcar uma sessão devolutiva para explicar essas informações ao paciente, bem como orientá-lo, sugerindo algumas condutas terapêuticas.
Funções cognitivas A seguir apresentaremos as principais funções cognitivas constituintes de uma avaliação neuropsicológica, seus correlatos neuroanatômicos e alguns exemplos de testes desenvolvidos e validados para sua investigação.
Atenção Embora não haja um consenso sobre a natureza dos processos atencionais 14, é sabido que a mente humana não pode processar, simultaneamente, todos os estímulos que recebe de fontes internas e externas, cabendo à atenção o papel de selecionar, filtrar e organizar informações em unidades controláveis e significativas. A complexidade conceitual, neuroanatômica e neurofuncional da atenção faz com que ela não possa ser reduzida a uma simples definição, nem estar ligada a uma única estrutura anatômica ou explorada por um único teste 15. Desta forma, a atenção não é uma entidade úni, . . ca; tem vanos componentes, trus como concentraçao, mo-
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nitoramento, tempo de reação, vigilância, focalização de estímulos relevantes e inibição de estímulos distratores, além da capacidade de alternar o foco atencional quando se fizer necessário. A capacidade atencional do indivíduo não é constante, pois sofre interferência tanto de um contexto externo quanto de elementos intrínsecos que incluem excitação, estado afetivo, impulso e motivação 16 • Também a atenção pode ser regulada por processos automáticos quando não requerem um controle ativo por parte do sujeito. Isto é observado em situações em que ocorreu um treino prévio e a tarefa desempenhada pelo indivíduo foi automatizada, sofrendo pouco efeito de interferências; como exemplo, podemos citar o ato de dirigir. Contudo, existem tarefas complexas que demandam recursos de processamento em que o desempenho depende de um recrutamento voluntário da atenção.
sionais e sociais. Além disso, outras funções cognitivas são diretamente influenciadas pela atenção; por exemplo, a memória20. De tal forma que uma avaliação completa da atenção requer não apenas o uso de testes, mas também entrevista minuciosa para verificar o funcionamento do indivíduo no dia a dia, escalas e questionários, além de observação comportamental direta. Também deve-se avaliar possíveis comorbidades associadas, visto o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade ter alta correlação com ansiedade, depressão, transtorno bipolar, dentre outros. Muitas são as escalas e questionários utilizados para investigação dos déficits de atenção, como a Adult SelfReport Scale (ASRS -18)21 e a SNAP-IV22 . Na Tabela I mostramos testes neuropsicológicos que podem ser utilizados para a avaliação da atenção.
Neuroanatomia da atenção
Filogeneticamente, as funções executivas são um conjunto de habilidades que atingiram seu ápice na espécie humana e diferenciam o ser humano dos demais animais. Segundo Lezak et al., as funções executivas fazem parte da cognição, porém cujo objetivo, juntamente com as emoções, é a regulação do nosso comportamento. Elas não são uma entidade única, correspondem a um conjunto de habilidades que, de forma integrada, permitem ao indivíduo direcionar comportamentos a metas, avaliar a eficiência e a adequação desses comportamentos, abandonar estratégias ineficazes em prol de outras mais eficientes e, desse modo, resolver problemas imediatos, de médio e longo prazo31 . Com isso, elas envolvem-se nos âmbitos cognitivo, emocional e sociaP2.
Segundo Mesulan 17 , a atenção é mediada pela interação de redes neurais. Não sendo ela um processo unitário, envolve várias estruturas anatômicas como o sistema ativador reticular, tálamo, corpo estriado, córtex pariental posterior não dominante, córtex pré-frontal, giro cingulado anterior e o sistema límbico. Considerando os sistemas voluntário e automático da atenção, há uma correlação do primeiro com o circuito cingulado anterior. Já o sistema automático da atenção é mediado por um circuito envolvendo o córtex parietal superior, o pulvinar do tálamo e os colículos superiores. O sistema de vigilância estaria relacionado com o lócus ceruleus, sistema colinérgico, núcleos da base, núcleo talâmico intralaminar e o córtex pré-frontal do hemisfério direito 18•19 •
Funções executivas
Neuroanatomia das fun ções executivas
Avaliação da atenção
A avaliação da atenção deve envolver muitos elementos para conclusões precisas do real funcionamento do indivíduo, pois as condições padronizadas de testagem num consultório ou laboratório estruturado e livre de distratores podem amenizar ou mesmo mascarar as dificuldades atencionais enfrentadas em ambientes acadêmicos, profis-
O córtex pré-frontal estaria mais relacionado às fun ções executivas33, daí justificam-se todas as habilidades relacionadas a essas funções o fato dessa região cerebral comunicar-se com todo o encéfalo, recebendo aferências diretas e indiretas de áreas corticais ipsilaterais, bem como contralaterais por meio do corpo caloso, além de aferên-
Tabela I Instrumentos comumente utilizados no exame das funções atencionais
Instrumentos
Modalidades atencionais
CPT IF3
Atenção sustentada, tempo de reação, alerta e controle inibitório
TAVIS-324
Atenção seletiva, dividida e sustentada
Teste de Trilhas 25
Automonitorização e atenção dividida
Teste d226
Atenção concentrada
Dígitos - ordem direta (WISC-11127; WAIS-111 28)
Amplitude atencional auditiva-verbal
Cubos de Corsi (WMS-111)29
Amplitude atencional visoespacial
Test Stroop de palavras-cores 25 ; Matching Familiar Figures Test 20 (MFFT-20)3o
Alerta; controle inibitório
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cias subcorticais como o sistema límbico, sistema reticular, hipotálamo e sistemas neurotransmissores. Embora exista essa correlação das funções executivas com o cortex pré-frontal, é mais correto classificar tais funções como decorrentes da atividade cerebral distribuída em diferentes circuitos neurais3 1• Bradshaw34 descreve a existência de cinco circuitos frontais subcorticais paralelos, sendo três relacionados com as funções executivas: dorsolateral, lateral orbitofrontal e cíngulo anterior. Circuito dorsolateral
Disfunção no circuito dorsolateral contribui para uma pobre organização de estratégias, prejuízo de memória e comprometimento em alternância e manutenção do alerta e déficits de memória de trabalho 35 . O circuito dorsolateral origina-se no córtex pré-fron tal dorsolateral, projeta-se para a parte dorsolateral do núcleo caudado, que também recebe sinais do córtex parietal e da área pré-motora, e tem conexões com as porções dorsolaterais do globo pálido e da substância negra reticulada rostral. O circuito continua para a região parvocelular dos núcleos talâmicos dorsolateral e ventral anterior. Do tálamo, por sua vez, são emitidas projeções de volta para o córtex pré-frontal dorsolateral. A região pré-frontal dorsolateral é uma área de convergência multimodal, estando interconectada com outras áreas de associação cortical, e está relacionada a processos cognitivos de fluência verbal e não verbal, resolução de problemas, monitoração da atenção, autorregulação e flexibilidade cognitiva36 • Circuito orbitofrontal
O circuito orbitofrontal regula as seguintes funções: controle inibitório, regulação emocional e capacidade de adiar a resposta. Esse circuito parece estar envolvido também em alguns aspectos do comportamento social, como empatia e o cumprimento de regras sociais36,37. As consequências do comprometimento no circuito orbitofrontal estão geralmente associadas a comportamentos de risco e alteração da personalidade caracterizada por redução da sensibilidade às normas sociais, infantilização e dependência de reforço evidente e baixa tolerância à frustração. Há também prejuízo no julgamento social e no aprendizado baseado em emoções. O paciente passa a apresentar dificuldades nos processos de tomada de decisões pela não antecipação de futuras consequências de suas atitudes38 • O circuito orbitofrontal origina-se no córtex préfrontal lateral inferior e ventral anterior e projeta-se para o núcleo caudado ventromedial, que também recebe sinais de outras áreas de associação corticais, incluindo o giro temporal superior (processamento auditivo) e o giro temporal inferior (processamento visual), como também de regiões do tronco encefálico (formação reticular). O circuito continua para o globo pálido dorsomedial e para
a porção rostromedial da substância negra reticulada. Projeta-se para a região magnocelular dos núcleos ventral anterior e dorsomedial do tálamo e então retorna para o córtex orbitofrontal31 • Circuito cíngulo anterior
O circuito do cíngulo anterior regula a motivação e o processamento emocional35• Lesões bilaterais do circuito do cíngulo anterior podem causar acinesia e mutismo, em que há diminuição de consciência, do início do discurso e ausência de sensibilidade e espontaneidade38 • Estes doentes são muitas vezes referidos como apáticos, adinâmicos ou pseudodepressivos40 • Esses déficits podem se manifestar como baixa velocidade de processamento de informação e dificuldades de inibição em tarefas de go-no go35 • O circuito cingulado anterior origina-se no cíngulo anterior e se projeta para o estriado ventral-núcleo accumbens e tubérculo olfatório41 , que recebe sinais adicionais do córtex de associação paralímbico, incluindo polo temporal anterior, amígdala, hipocampo inferior e córtex entorrinal. O circuito continua para o pálido ventral e a substância negra rostrodorsal e segue para o núcleo talâmico dorsomedial, de onde retorna ao cíngulo ante rior. Esse circuito é importante para motivação, monitoração de comportamentos, controle executivo de atenção, seleção e controle de respostas.
Avaliação das funções executivas Devido ao nível de complexidade das funções executivas, bem como elas serem compostas por vários domínios, a avaliação das funções executivas demandam a utilização de vários testes. Esses podem estar agrupados numa
Tabela 11 Instrumentos comumente utilizados no exame das funções executivas Instrumentos
Modalidades das funções executivas
Semelhanças (WISC-1IF7; WAIS- 111 28), Teste Wisconsin de Classificação de Cartas 44
Categorização
Torre de Londres 45 , Torre de Hanoi46, Figura Complexa de Rey47
Planejamento
Dígitos - ordem inversa; Números e letras (WISC-11 127 ; WAIS- 111 28)
Memória operacional (worJ
Teste Sroop de palavras-cores 25
Controle inibitório
Códigos, Procurar símbolos (WISC- 111 27; WAIS-11128)
Velocidade de processamento
Teste de Trilhas25
Automonitoração
lowa Gambling Task48 ; Chidren Gambling Task49
Tomada de decisão
Teste Wisconsin de Classificação de Cartas 45
Flexibilidade mental
Arranjo de Figuras (WISC-11 127 ; WAIS-11128)
Sequenciamento lógico-temporal
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bateria fixa ou em baterias flexíveis, sendo os testes esco lhidos pelo examinador de acordo com a demanda. Como exemplo de baterias fixas para avaliação das funções executivas podemos citar a Behavioral Assessment of the Dysexecutive Syndrome (BADS) 42 e o Delis-Kaplan Executive Function System (D -KEFS) 43 . Outros exemplos de testes que podem compor baterias flexíveis para a avaliação das funções executivas são mostrados na Tabela li.
Memória Memória pode ser definida como a capacidade de codificar, armazenar e evocar informações. Ao passo que nos permite remeter a experiências impressivas passadas, compará-las com experiências atuais e projetarmos consequências futuras, a memória, se configura como ferramenta fundamental para os processos de aprendizagem e comportamento adaptativo. Ela nos dá o sentido de continuidade, colabora grandemente com a formação da noção de self e permite que conservemos nossa identidade. Os estudos sobre a memória tiveram um grande impulso com o caso de grande importância na literatura neuropsicológica que ficou conhecido como HM50 • Esse paciente apresentava quadro de epilepsia de lobo temporal refratária e, após ser submetido a tratamento cirúrgico com ablação bilateral do hipocampo, evoluiu com uma incapacidade de reter na memória todos os fatos ocorridos após a cirurgia. Ele conservava sua capacidade intelectual e sua memória de curto prazo estava normal. Era capaz de reconhecer e lembrar tudo que acontecera antes, mas perdeu a capacidade de lembrar novos fatos de forma durável5 1• O paciente HM não perdeu a capacidade de memória para habilidades motoras aprendidas inconscientemente, contudo não era capaz de lembrar-se de certas informações que exigiam conhecimento consciente de pessoas, lugares e fatos. O estudo desse paciente possibilitou o entendimento de que a memória tem múltiplos domínios, como memória de curto e longo prazo, memória implícita e explícita, memória retrógrada e anterógrada e abriu as portas para a maior compreensão da relação entre memória e adequação social, área promissora de exploração nesta interface entre psiquiatria e neuropsicologia52 . A memória de curto prazo guarda pequenas informações num espaço de tempo reduzido (menos que um minuto), tendo, portanto, uma capacidade limitada. Essa capacidade de memória imediata é definida como span, que é a capacidade máxima de estímulos que uma pessoa pode guardar num curto espaço de tempo. Um adulto sadio armazena em média sete elementos, independentemente se verbais ou visuais. Para armazenar uma quantidade maior do que sete elementos é necessário fazer alguma associação; caso contrário, o oitavo ou nono elemento "apagam" os primeiros, fenômeno conhecido por esquecimento por deslocamento 53 •
Acrescentando ao conceito de memória de curto prazo, Baddeley54 propôs o modelo de memória operacional (working memory) que se refere ao arquivamento tempo rário da informação para que várias tarefas cognitivas sejam executadas, sendo responsável pela manipulação online da informação para a resolução de problemas. Ela gerencia a organização e o reagrupamento de um fluxo de informação que ultrapassa o span, por isso não é a mesma coisa da memória de curto prazo, embora comumente confundida. A memória operacional é formada por um conjunto de subsistemas. O mais importante relaciona-se com o controle da atenção, sendo denominado de executivo central. Os outros dois subsistemas são relacionados a modalidades específicas de estímulos, sendo um responsável pelos estímulos visuoespaciais, sendo denominado de esboço visuoespacial e o outro responsável por co dificar informações fonéticas, denominado por alça fono lógica. Por ultimo, existe o subsistema que gerenciaria os estímulos dos dois anteriores juntando as informações armazenadas na memória de longo prazo transformando-os numa representação unitária. A memória de longo prazo, responsável pelo armazenamento duradouro das informações não se constituem como um único sistema. Contudo, parece haver um consenso entre os estudiosos da área e o modelo de memória mais amplamente utilizado atualmente engloba os conceitos de memória implícita e explícita, episódica e semântica e memória de procedimento55 • A memória explícita, também denominada de declarativa, refere-se à capacidade do indivíduo ter consciência do conhecimento da informação. É caracterizada pela habilidade do indivíduo em recontar os detalhes de um evento passado. Subdivide-se em episódica que se relaciona a eventos autobiográficos; e semântica que representa o conhecimento da cultura geral, um saber uni ver-
Central executiva
(S.A.S)
t Alça visuoespacial
Retentor episódico
Alça fonológica
t
t
t
Memória decl. visual
Memória declarativa episódica
Linguagem
Modelo de memória operacional proposto por Baddely. As áreas em azul representam os componentes atencionais e de retenção temporária de infonmações, e a área em cinza, os sistemas de retenção de longa duração (adaptada de Baddeley).
Figura 1
27 AVA LI AÇÃO NEUROPSICOLÓG ICA
Memória de longa duração Implícita
Explícita Fatos
~
Eventos
Condicionamento clássi co
Lobo temporal mediai (diencéfalo)
r Habilidades e hábitos
Pré-ativação
Estriad o Figura 2
Aprendizagem não associativa
Neocóetex
Vias refl exas
r Respostas . . emOCIOnaiS Amígdala
Respostas esqueláticas Cerebelo
Taxonomia dos sistemas de memória de longa duração (adaptado de
Squire & Konwlton).
sal sobre o mundo que nos rodeia, além de conceitos abstratos, fatos bem aprendidos, significado das palavras. A memória não declarativa ou implícita refere-se à habilidade para realizar algum ato ou comportamento aprendido por intermédio de certo esforço, no qual a recordação, não necessariamente, é um ato consciente. Ela refere-se à memória adquirida pelas formas de aprendizagem associativa, que tem como exemplo os condicionamentos clássico e operante; pela aprendizagem não associativa que pode ser exemplificada pela habituação e sensibilização, além da pré-ativação, dos hábitos e das habilidades. A Figura 2 mostra um esboço dos componentes da memória de longo prazo, com suas áreas anatômicas relacionadas.
Avaliação da memória
A memória é passível de ser investigada desde o primeiro contato com o paciente, uma vez que, ainda na anamnese solicita-se que ele forneça as informações sobre a história da doença, além de informações autobio gráficas. A grande demanda para avaliação de memória é de pacientes idosos com hipótese diagnóstica de demência ou para diagnóstico diferencial entre transtorno cognitivo leve e senescência normal e pacientes acometidos por insultos cerebrais, epilepsia de lobo temporal e candidatos à intervenção cirúrgica nos lobos temporais. É
Tabela 111
muito comum nestes pacientes os achados de neuroi magem revelarem atrofia ou lesão hipocampal, contudo, nem sempre esses achados se correlacionam com a clínica ou restam dúvidas do quanto esse comprometimento estrutural pode estar interferindo na funcionalidade do paciente56 . Existem baterias específicas para a avaliação de me mória, tais como: a Weschler Memory Scale (WMS-IV)29 , o Wide Range Assessment of Memory and Learning-2 (WRAML)5 7, com uma proposta mais ecológica, o Ri-
vermead Behavioural Memory Test-Third Edition (RMBT) 58 e o Teste Breve de Performance Cognitiva (SKT) 61 ,6 2 , para aplicação em suspeita de comprometimento cognitivo leve e em estágios de leve e moderado de demência. A Tabela 111 apresenta sugestões de instrumentos de avaliação de memória.
Linguagem A linguagem é a capacidade de codificar ide as em sinais para a comunicação com o outro por meio de signos convencionais (p. ex. sonoros, gráficos e gestuais), podendo ser percebida pelos diversos órgãos dos sentidos; o que leva a distinguirem-se de várias formas, tais como visual, auditiva e tátil63 • A avaliação da linguagem não pode ser concebida de forma dissociada de componentes lingüísticos, cognitivos e sociais. O componente cognitivo refere-se à transformação dos múltiplos inputs do ambiente em conhecimento, sendo responsável pela organização, armazenamento, recuperação e transformação. O componente linguístico diz respeito aos aspectos fonológicos e sintáticos, organizados segundo regras, e aos aspectos semânticos e pragmáticos, que refere -se ao conteúdo lexical e os discursos. O componente social relacionase com o modo como as intenções comunicativas são expressas e percebidas, que também decorre de construtos culturais64 • Neuroanatomia da linguagem
Os estudos das bases neurais da linguagem basearamse em indivíduos que sofreram lesões cerebrais. A partir de 1970, o surgimento de técnicas de neuroimagem e a contribuição da linguística conduziram à compreensão mais precisa do funcionamento cerebral da linguagem. A inves-
Instrumentos comumente utilizados no exame da memória
Instrumentos
Modalidades de memória
Dígitos direto - WISC-111 27; WAIS-(1128
Memória de curto prazo
Memória lógica - WMS-IV29
Memória episódica verbal (estímulos contextualizados)
Reprodução visual - WMS-IV29
Memória episódica visual
Informações - WISC-11 !27 ; WAIS-11 (28
Memória semântica
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SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
tigação post mortem de pacientes com alterações de linguagem pelos neurologistas Broca e Wernicke levaram a conclusões de que a expressão da fala estaria correlacionada a uma região correspondente à terceira circunvolução do córtex frontal lateral esquerdo e a compreensão da fala à primeira circunvolução temporal esquerda. Considerando que as alterações (afasias) desses pacientes localizavamse no hemisfério esquerdo, concluíram que este era o hemisfério dominante para a linguagem. Contudo, estudos posteriores ressaltam sobre a especialização de ambos os hemisférios, pois embora o hemisfério esquerdo seja responsável pela compreensão e produção da fala, o hemisfério direito responsabiliza-se pela prosódia. Técnicas de neuroimagem estrutural e funcional revolucionaram a compreensão acerca da localização das lesões cerebrais relacionadas com as afasias. Descobertas baseadas nessas técnicas mostram que: 1) A codificação de palavras ativa as áreas visuais e auditivas que, embora distintas, ambas têm acesso aos sis temas de processamento articulatório e semântico; 2) A expressão da linguagem oral (fala) ativa aregião do opérculo do córtex motor bilateralmente, o córtex pré-motor esquerdo e a área motora suplementar bilateralmente;
Relacionada com expressão da fala
Córtex motor primário
' Area de Broca
I
I
Córtex auditivo ' Area de Wernicke
Figura 3
Relacionada com compreensão da fala
Neuroanatomia da linguagem.
Tabela IV
As tarefas de associação semântica ativam o córtex pré-frontal esquerdo e a porção anterior do giro do cíngulo; 4) Escutar palavras ativa o córtex superior temporal e têmporo-parietal (ativação bilateral do córtex auditivo primário e periauditivo); 5) A atividade do córtex auditivo aumenta proporcionalmente ao ritmo de audição das palavras; 6) O reconhecimento de fonemas específicos relaciona-se a aumento da atividade nas regiões mais ante riores dos primeiros giros temporais, um pouco mais intenso à esquerda; 7) Com o tratamento das palavras há ativação as simétrica da região posterior da primeira circunvolução temporal esquerda; 8) A nomeação a partir de pistas semânticas ou fo nológicas provocam ativações muito extensas das superfícies laterais e mediais do lobo frontal esquerdo, além de ativação do córtex temporal inferolateral esquerdo e a parte posterior e inferior do lobo parietal esquerdo; 9) A nomeação de imagens ativa a parte inferior e posterior do lobo temporal; 1O) A repetição de palavras ativa o córtex sensóriomotor primário (ativações simétricas perisilvianas); 11) A leitura em voz baixa ativa o córtex estriado e extra-estriado (área 37 de Brodmann). Resumindo, uma grande região do córtex perisilviano (vizinho à fissura lateral) no hemisfério esquerdo está claramente envolvida na produção e na compreensão da linguagem65 • Esse processamento se dá quando o som é captado pela área auditiva primária (giro de Heschllocalizado no giro temporal superior) que recebe o estímulo e este é analisado pela área auditiva secundária. No caso de sons vocais humanos são processados, principalmente, na região inferior do giro temporal superior, na direção do pianum temporale, em ambos os hemisférios, porém com diferenças, uma vez que as vogais e as tonalidades puras são operacionalizadas no hemisfério direito, responsável pelos aspectos paralinguísticos da comunicação; e as sílabas e fonemas são processados no hemisfério esquerdo, responsável pelo processamento linguístico. A análise fonética envolve áreas frontais (região fron tal inferior esquerda), temporais (giro temporal inferior 3)
Instrumentos comumente utilizados no exame da linguagem
Instrumentos
Modalidades de linguagem
Bedside Eva!uation Screening Test of Aphasia (BESt-2)67
Bateria de rastreio para exame da compreensão auditiva, conversação e leitura.
The Boston Diagnosôc Aphasia Examinaôon68·69
Bateria abrangente para exame da compreensão e da produção oral e escrita.
Protocolo Montreai-Toulouse de Exame Linguístico da Afasia (MT-86)7°
Bateria abrangente para o exame da compreensão e da produção oral e escrita, repetição e fluência.
Token Test7 1•72
Bateria reduzida para exame da compreensão verbal
27 AVA LI AÇÃO NEUROPSICOLÓG ICA
·~ A'reas de proJeçao . • Áreas de associação unimodal (hemisfério ~ primária (nos esquerdo) ~ dois hemisférios)
~
Cl
z
..__ A udição -
::J
(§ o
J~
Giro de Heschl
•-<
~
Áreas de associação plurimodal pré-frontal, temporoparietal (hemisfério esquerdo)
Análise auditivofonêmica
..
-
Decodificação do léxico e das relações sintáticas
~ 0/anum temporate Semântica
I I I
UJ
o
UJ
0:::
Repetição independente da semântica
••
dos componentes dos componentes léxicos e prosódicos e morfossintáticos emocionais (hemisfério esquerdo (hemisfério direito preferencial) preferenciaO
Atenção e tónus cortical
I
I I I I I I I I I I
SRAA Tálamo Gânglios da base Córtex límbico (predominância hemisférica direita) J
+ Articulação .. .,
......
Circunvolução frontal ascendente
Programação fonológica Área de Broca pars opercu/aris (posterior)
-
~
+ Formulação e
•
l
"'l'p-to-g~ra_m'!!'a-çã_o_J_
morfossintática
Acesso lexical
Area de Broca pars opercu/aris (anterior)
Diagrama simplificado dos processos de linguagem oral com indicações de estruturas nervosas. SARA: sistema ativador reticular ascendente. Fonte: Narbona, 2005.
Figura 4
I
Prega curva e área pré-frontal
e giro fusiforme), parietais (giro supramarginal esquerdo), além do giro do cíngulo. O processamento sintático necessita além da ação do córtex frontal inferior esquerdo, da memória operacional e do córtex temporal perisilviano. Toda tarefa semântica envolve estratégias cognitivas para acessar sua representação, portanto buscam na memória a seleção da resposta, a tomada de decisão e a memória de trabalho para seu processamento. O giro fron tal inferior está particularmente implicado nesses aspectos executivos relacionados à semântica. O giro do cíngulo e a área motora suplementar fazem a conexão do sistema límbico com o córtex motor possibilitando a iniciativa e a programação motora da fala. Estruturas subcorticais como os núcleos da base e cerebelo parecem ter relação com a linguagem; uma vez lesionados os núcleos da base, podem gerar: 1) Disartria e apraxia pela ruptura dos circuitos córticosubcorticais; 2) Mutismo pela ruptura da conexão da área motora suplementar e do giro do cíngulo com a subcorticalidade; 3) Afasias, por lesões subcorticais esquerdas, envolvendo o núcleo ventral lateral do tálamo esquerdo (a parte anterior da área de Broca comunica-se com a área de Wernicke via tálamo) ou por ruptura do circuito córtico-subcortical que controla o fluxo verbal e a organização da mensagem. Lesões cerebelares foram descritas como causas de mutismo em crianças e de disprosódia, agramatismo e anomia em adultos (lesões do lobo posterior do cerebelo) 66 •
Em resumo, para o processamento da linguagem há o envolvimento de várias regiões, tanto corticais quanto subcorticais, a saber: córtex pré-frontal bilateral, área motora suplementar bilateral, córtex límbico bilateral, tálamo, gânglios da base bilaterais e áreas perissilvianas. A Figura 4 esquematizao processamento da linguagem. Avaliação da linguagem
Considerando a linguagem em seus diversos componentes como fala, leitura, escrita, compreensão, expressão, prosódia, uma avaliação completa da linguagem deve contemplar todos esses aspectos. A Tabela IV mostra alguns instrumentos de avaliação.
Percepção Define-se percepção como a capacidade de integração das impressões sensoriais em informações com significado. Existem várias modalidades sensoriais que possibilitam a percepção dos estímulos, são elas: tátil, auditiva, visual e sinestésica. Alterações na capacidade perceptiva são conhecidas como agnosias, sendo estas caracterizadas como uma falha no reconhecimento, mesmo quando não há alterações sensoriais, distúrbios atencionais, anomia afásica ou falta de familiaridade com o estímulo apresentado. Os critérios de reconhecimento dos estímulos pos suem três formas de respostas. A primeira relaciona-se com a capacidade de identificar o objeto apresentado, podendo apontar, nomear. A segunda forma refere-se
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344
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA • SEÇÃO 3 DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Tabela V
Instrumentos comumente utilizados no exame da percepção
Instrumentos
Modalidades de percepção
Funções Visuais de Luria 74
Discriminação visual
Hooper Visual Organization Test' 5
Síntese visual
Teste Bender76
Percepção visomotora
ao conhecimento semântico sendo possível separar ou agrupar objetos com base em suas características funcionais e a terceira forma de resposta envolve a capacidade de discriminar o objeto podendo-se fazer uso espontâneo do mesmo. Considerando a modalidade visual, temos dois principais tipos de agnosias: 1) Agnosia aperceptiva, correspondendo à incapacidade de sintetizar/integrar a percepção de um de terminado objeto a partir de suas partes. Pode ser manifestada pela incapacidade de desenhar um objeto de forma integrada, de realizar classificações de objetos em relação à forma ou à função. Contudo, o objeto é reconhecido quando apalpado. Na agnosia aperceptiva são observadas lesões bilaterais e posteriores em lobos paneto -temporo -ocCipltats. 1) Agnosia associativa, incapacidade de identificar um objeto específico à modalidade, com habilidade preservada de copiar ou comparar estímulos. Manifesta-se pela incapacidade de o indivíduo apontar objetos nomeados pelo examinador73 . Há também uma classificação de subtipos de agonosia visual relacionado ao conteúdo, como incapacidade no reconhecimento de faces (prosopagnosia), de cores (acromatopsia), de palavras escritas (alexia). Além da incapacidade de reconhecer estímulo tátil (textura, tamanho e peso), sendo denominada de estereognosia. Geralmente determinada por lesões envolvendo o giro pós-central (somatossensório) contralateral73 • A Tabela V apresenta sugestões de instrumentos de avaliação da percepção. •
A
•
•
•
Questões 1. Sobre memória é correto afirmar que: I) A memória semântica inclui símbolos verbais, fatos e símbolos . . VISUaiS. li) A memória para fatos é do tipo explícita e para eventos é do tipo implícita. 111) As memórias de curto e longo prazo possuem sistemas diferenciados. a) b) c) d) e)
Somente as afirmações I e li são verdadeiras. Somente as afirmações li e 111 são verdadeiras. Somente as afirmações I e 111 são verdadeiras. Todas as afirmações são verdadeiras. Nenhuma das afirmações é verdadeira.
2. A partir do capítulo lido. é correto afirmar que: a) A neuropsicologia tem natureza multidisciplinar. apoiando-se nos fu ndamentos das neurociências e da psicologia. visando estabelecer as relações entre o sistema nervoso central e as funções cognitivas e o comportamento. b) A associação entre os processos mentais e o comportamento tem despertado interesse a partir das últimas décadas com a consolidação da psicologia enquanto disciplina humanista. c) Sendo o cérebro o órgão responsável pelos processos mentais e comportamento, pode-se afirmar que cada uma de suas regiões seria responsável por uma função mental ou um comportamento específico. d) O neuropsicólogo atua na avaliação, o exame neuropsicológico, mas não no tratamento das consequências das disfunções do sistema nervoso central. e) Todas as alternativas anteriores estão corretas. 3. Sobre a avaliação neuropsicológica das funções executivas é correto afirmar que: a) Envolve a aplicação de diferentes testes que devem ser agrupados em bateria flexíveis. as quais possibilitam o mapeamento de diferentes componentes deste grupo de processos cognitivos. permitindo comparação ao longo do tempo nas reavaliações de seguimento. b) Requer que a bateria de teste seja fixa. uma vez que a caracterização de uma disfunção executiva exige o mapeamento de diferentes componentes de grupo de processos cognitivos. c) Considerando o desenvolvimento ontogenético, as funções executivas atingem seu ápice de maturidade logo nos primeiros anos de vida. mais intensamente entre os 3 e 4 anos. quando a criança precisa aprender observando o comportamento dos outros. Neste sentido. é importante considerar na avaliação de crianças pequenas, atividades que requeiram que elas sigam modelos. d) Provas que requeiram controle inibitório, memória operacional e tomada de decisão são fundamentais no exame do funcionamento executivo, pois possibilitam o delineamento de déficits cognitivos relacionados à disfunção executiva. e) Todas as alternativas estão corretas. 4. Sobre neuropsicologia e linguagem, é correto afirmar que: a) Lesões na área de Broca caracterizam a afasia de compreensão, na qual o paciente é capaz de apresentar fluência do discurso. mas não é capaz de compreender a fala do interlocutor. b) A classificação das afasias em compreensivas e expressivas é utilizada para facilitar o diagnóstico. caracterizando que pacientes com déficits expressivos mantém o nível de compreensão intacto, enquanto o discurso fluente ocorre apenas no paciente com déficit de compreensão. c) Lesão frontal esquerda caracteriza a afasia de Wernicke. na qual se observa dificuldades no planejamento da linguagem oral quanto ao uso de regras gramaticais. bem como problemas na compreensão da leitura.
27 AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÚGICA
d) Lesões na área de Broca causam dificuldades na articulação da faça, que podem tornar o discurso incompreensível. A expressão da fala é limitada podendo-se observar agramatismo. e) Todas estão corretas. 5. Sobre atenção é correto afirmar que: I) A atenção é mediada pela interação de diferentes redes neurais, envolvendo diversas estruturas anatômicas. Dentre elas podemos citar o córtex pré-frontal. o corpo estriado e o tálamo. li) O que se entende por atenção compreende aspectos cognitivos diferentes; o que exige a aplicação de tarefas generalizadas para sua avaliação. 111) Devido à diversidade de aspectos cognitivos envolvidos na atenção. há a necessidade de se utilizar testes específicos. a) b) c) d) e)
Somente as afirmações I e li são verdadeiras. Somente as afirmações li e 111são verdadeiras. Somente as afirmações I e 111 são verdadeiras. Todas as afirmações são verdadeiras. Nenhuma das afirmações é verdadeira.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 3
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Exames Laboratoriais, Marcadores Genéticos e Biomarcadores Humorais Breno Satl er de Oliveira Diniz Raquel Stabellini Martinus T. van de Bilt
Carolina Cappi Helena Brentani Orestes Vicente Forlenza
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 347 Exames laboratoriais, 347
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Exames laboratoriais para suporte ao diagnóstico diferencial, 347 Monitoramento de segurança do uso de psicofármacos, 348 Marcadores genéticos, 349 Testagem genética em transtornos do neurodesenvolvimento e neurodegenerativos, 349 Aplicações clínicas da fannacogenética, 351 Biomarcadores: racionais, 354 Biomarcadores humorais, 356 Biomarcadores liquóricos, 357 Considerações finais, 358 Questões, 358 Referências bibliográficas, 359
Introdução O diagnóstico dos transtornos mentais é um processo eminentemente clínico, no qual o médico lança mão quase que exclusivamente dos dados obtidos pela anamnese e pelo exame do estado mental para determinar qual o diagnóstico mais provável de seu paciente. Apesar do amplo conhecimento sobre as manifestações psicopatológicas dos principais transtornos mentais, o diagnóstico em psiquiatria é um processo basicamente subjetivo. Portanto, em muitas situações, o diagnóstico dos transtornos mentais tem baixa confiabilidade e reprodutibilidade, mesmo após o surgimento de classificações diagnósticas estruturadas1. Nas últimas décadas, os avanços no conhecimento das bases fisiopatológicas dos principais transtornos mentais propiciaram rápido desenvolvimento de estratégias propedêuticas complementares e o uso de biomarcadores humorais e genéticos na prática psiquiátrica. A principal finalidade do desenvolvimento dos biomarcadores em psiquiatria é o seu uso para aumentar a
1. Indicar os exames subsidiários à propedêutica psiquiátrica. 2. Conhecer as bases teóricas e as indicações dos testes genéticos de aplicação clínica em psiquiatria. 3. Conhecer as potenciais aplicações clínicas da farmacogenética. 4. Compreender o potencial do uso de biomarcadores humorais no diagnóstico dos transtornos neuropsiquiátricos.
confiabilidade do diagnóstico clínico dos transtornos mentais. Entretanto, esse objetivo ainda está longe de ser alcançado na prática clínica. Entre outras aplicações importantes do uso dessas ferramentas propedêuticas, destaca-se a caracterização dos transtornos mentais secundários a causas orgânicas, mas também auxiliam no manejo terapêutico, na avaliação de efeitos adversos ao tratamento, no estadiamento dos quadros progressivos e na predição do ' . seu prognostico. Neste capítulo serão abordadas as principais aplicações dos exames laboratoriais na clínica psiquiátrica, com destaque para o desenvolvimento de novos marcadores humorais e genéticos para o diagnóstico precoce e para o manejo avançado dos transtornos neuropsíquicos. Serão discutidos ainda os aspectos ético-legais associados ao desenvolvimento e o uso desses marcadores para a prá. . ., . tlca ps1qmatnca.
Exames laboratoriais Exames laboratoriais para suporte ao diagnóstico diferencial A principal aplicação dos exames laboratoriais na prática psiquiátrica é a exclusão de transtornos mentais secundários a uma causa orgânica. A identificação de cau-
348
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro I
•
SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Exames laboratoriais básicos em Psiquiatria
Hemograma completo Glicemia de jejum lonograma: sódio, potássio Função renal: ureia, creatinina Função tireoideana: TSH, T4 total e T4 livre Função hepática: proteínas totais e frações, bilirrubina total e frações, transaminases (AST, ALn e gama GT fosfatase alcalina
Quadro 111 Sinais de alerta para provável etiologia orgânica de sintomas psiquiátricos Início abrupto dos sintomas Ausência de história psiquiátrica prévia Idade avançada Apresentação atípica Evolução atípica dos sintomas Quadro com sintomatologia pleomórfica
Colesterol total e frações
Quadro 11 Doenças clínicas que cursam comumente com sintomas psiquiátricos Doenças endócrino-metabólicas - Hipotireoidismo - Hipertireoidismo - Doença de Cushing - Síndrome da secreção inapropriada do hormônio antidiurético - Hiperparatireoidismo - Hipoparatireoidismo - Síndrome do ovário policístico - Feocromocitoma Deficiências nutricionais - Deficiência de tiamina - Deficiência de folato - Deficiência de vitamina B12 - Deficiência de niacina Doenças infecciosas - Sífilis - Complexo HIV/AIDS - Hepatites (B e C) - Doença de Lyme - Neurobrucelose Doenças neurológicas - Epilepsia - Doença cerebrovascular - Doença de Alzheimer - Demência frontotemporal - Demência por corpúsculos de Lewy - Esclerose múltipla - Doença de Huntington - Doença de Wilson - Doença de Parkinson - Tumor cerebral - Trauma cranioencefálico - Encefalite - Doença de Fahr Doenças inflamatórias e autoimunológicas - Lúpus eritematoso sistêmico - Artrite reumatoide - Vasculites sistêmicas e do SNC - Psoríase - Doença de Crohn - Retocolite ulcerativa
sas orgânicas para transtornos mentais é uma etapa fundamental da avaliação psiquiátrica, já que o tratamento correto dessas condições subjacentes é a principal orientação terapêutica e, em alguns casos, suficiente para o controle dos sintomas psiquiátricos. Entretanto, apesar
da grande importância na tomada de decisões, esse processo é muitas vezes negligenciado na prática clínica. Exames laboratoriais para avaliar o estado geral da saúde dos pacientes devem ser sempre solicitados durante a avaliação inicial dos quadros psiquiátricos (Quadro 1)2. Além de possibilitarem a avaliação mais global do estado de saúde dos pacientes, eles podem identificar causas secundárias ou fatores agravantes dos sintomas psiquiátricos. Diversos quadros clínicos podem se apresentar primariamente por meio de sintomas psiquiátricos, com destaque para as doenças endócrino-metabólicas, inflamatórias, autoimunológicas (tanto sistêmicas quanto do sistema nervoso central) e doenças neurológicas. Outros quadros comuns são as doenças infecciosas e deficiências nutricionais (Quadro II)2. O Quadro III mostra alguns sinais de alerta que indicam maior probabilidade de organicidade nos quadros psiquiátricos nos quais a investigação laboratorial complementar é mandatória.
Monitoramento de segurança do uso de psicofármacos Diversas medicações usadas na clínica psiquiátrica estão associadas a efeitos adversos com importantes implicações para a saúde e bem-estar dos pacientes. Alguns desses efeitos podem ser monitorados por meio de exames laboratoriais e devem ser solicitados para todos os pacientes de modo rotineiro. O uso de antipsicóticos atípicos está associado a maior risco de desenvolvimento de alterações metabólicas significativas a curto e longo prazo3. Alguns efeitos metabólicos indesejados incluem ganho de peso excessivo e obesidade, hiperglicemia e hipercolesterolemia. Em decorrência disso, alguns pacientes podem desenvolver diabetes melito tipo 2, dislipidemia e a síndrome metabólica e, consequentemente, aumento do risco cardiovascular. Portanto, os pacientes em uso de antipsicóticos atípicos devem ser monitorados periodicamente quanto ao seu perfil metabólico3. Além dos efeitos metabólicos indesejáveis associados aos antipsicóticos atípicos, o uso da clozapina se associa a um risco aumentado de desenvolver alterações hematológicas, em especial a agranulocitose. Portanto, os pacientes em uso des-
28 EXAMES LABORATORIAIS, MARCADORES GENÉTICOS E BIOMARCADORES H UM ORAIS
sa medicação devem realizar hemogramas seriados para monitorar o surgimento desse efeito adverso (Tabela I). Anticonvulsivantes são frequentemente usados na prática psiquiátrica e seu uso está associado a discrasias sanguíneas (p. ex., carbamazepina) e alteração das enzimas hepáticas (p. ex., carbamazepina e o ácido valproico). Essas alterações devem ser monitoradas regularmente nos pacientes em uso dessas medicações. O uso prolongado do carbonato de lítio, mesmo em níveis terapêuticos, está associado a maior incidência de alterações renais (p. ex., insuficiência renal crônica) e tireoidianas (p. ex., hipotireoidismo). Portanto, a função renal e tireoidiana deve ser monitorada rotineiramente nos pacientes em uso dessa medicação. Outra aplicação importante dos exames laboratoriais é a monitorização de níveis séricos e de medicações usadas no tratamento de quadros psiquiátricos. Diversas medicações, em particular anticonvulsivantes, estabilizadores do humor e antidepressivos tricíclicos, podem ter o seu nível dosado no sangue. Apesar do nível sérico das medicações não estar, em geral, diretamente correlacionado com a sua eficácia terapêutica (com exceção de alguns antidepressivos tricíclicos, como a clomipramina e a imipramina, e o carbonato de lítio), a dosagem sérica de drogas é importante para avaliar a aderência do paciente ao tratamento, monitorar o surgimento de efeitos colaterais e o risco de toxicidade pela medicação. Isso é
Tabela I
particularmente importante para drogas nas quais os níveis séricos terapêuticos são muito próximos dos níveis tóxicos (janela terapêutica "estreita"), como o carbonato de lítio e anticonvulsivantes.
Marcadores genéticos Testagem genética em transtornos do neurodesenvolvimento e neurodegenerativos O papel da genética na etiologia dos transtornos neuropsiquiátricos é evidente há muitos anos, desde as primeiras descrições que envolvem agregação familiar desses fenótipos e estudos de gêmeos. A descoberta de marcadores genéticos moleculares levou a um progresso extraordinário na genética humana e na elucidação das bases moleculares de muitas doenças, principalmente as de características mendelianas4 • Na última década, o sequenciamento do genoma humano 5, o mapeamento de polimorfismos de base única (single nucleotide polymorphisms - SNPs) 6 e a conclusão do projeto HapMap7 trouxeram grande progresso para a compreensão da fisiologia do genoma humano e seu impacto na etiologia de diversas doenças. Sendo assim, o resultado dos primeiros estudos que envolveram milhares de pacientes e controles e centenas de milhares de SNPs mostrou associações significativas para muitas doenças comuns8 . No
Medicações comumente usadas em psiquiatria: nível sérico, efeitos adversos e monitorização laboratorial dos efeitos adversos
Medicação
Níveis séricos
Efeitos adversos comuns
Monitorização laboratorial
Periodicidade
Antipsicóticos atípicos
NA
Ganho de peso Oislipidemia Hiperglicemia Síndrome metabólica
Glicemia Colesterol total e frações Triglicérides
Visita inicial Semestral
Clozapina
NA
Agranulocitose vide antipsicóticos atípicos
Hemograma
Visita inicial Semanal (por 6 meses) mensal (após 6 meses)
Risperidona
NA
Hiperprolactinem ia vide antipsicóticos atípicos;
Nível sérico de prolactina
Indicação clínica
Lítio
0,5 - 1,2 mEq/L
Hipotireoidismo Insuficiência renal Diabetes insipidus nefrogênico• Intoxicação aguda*
TSH, T41ivre Creatinina, ureia C/earance de creatinina Osmolalidade urinária*
Visita inicial; Semestral; • indicação clínica
Carbamazepina
8 - 12 1-Jg/ml
Agranulocitose Elevação de enzimas hepáticas
Hemograma Enzimas hepáticas
Visita inicial Trimestral
Ácido valproico
45 - 125 1-Jg/ml
Elevação de enzimas hepáticas Oiscrasias sanguíneas Hiperamonemia
Hemograma Enzimas hepáticas Amônia sérica•
Visita inicial Trimestral
lmipramina
100 - 250 1-Jg/ml
Intoxicação aguda*
Clomipramina
100 - 250 1-Jg/ml
Intoxicação aguda*
Nortriptilina
50 - 150 1-Jg/ml
Intoxicação aguda*
Amitriptilina
90 - 140 1-Jg/ml
Intoxicação aguda*
NA: não avaliado de rotina ; •: indicação clínica.
• • • • •
349
350
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
entanto, esses estudos geraram novos questionamentos sobre a base genética das doenças complexas, e as estratégias utilizadas, até o momento, para identificar os Zoei de suscetibilidade. Embora a detecção de genes específicos com papel na etiologia dos transtornos neuropsiquiátricos de forma geral venha se mostrado difícil, o número de genes alte rados que vem sendo descrito não deixa de crescer. No caso específico do retardo mental, o número de publicações que envolve esse tipo de transtorno ainda ocupa um lugar estável dentre os tópicos de psiquiatria infantil em uma análise desde o ano de 1960 até 20079 • Com a descoberta das causas genéticas de algumas doenças mendelianas, surge a possibilidade da implementação de testes genéticos diagnósticos, para confirmar suspeitas geradas na análise clínica dos pacientes. Entretanto, torna-se igualmente viável o uso de testes preditivos em indivíduos pré-sintomáticos. A discussão ética acerca desses testes gira ao redor das doenças de início tardio, como as neurodegenerativas, e das testagens pré-implatação, nas quais embriões provindos de famílias em risco podem ser testados antes de transferidos para o útero durante práticas de fertilização in vitro. Outro tipo de teste cujo uso é questionado é o de suscetibilidade genética para doenças complexas, em que vários genes estão envolvidos na etiologia. Nesses casos, os resultados gerados são transformados em valores estatísticos que representam risco ou predisposição genética do indivíduo para desenvolver a doença. Os testes genéticos de qualquer natureza podem ainda ser destinados à identificação de portadores, ou seja, indivíduos saudáveis com risco de transmissão da doença que acomete sua família, para seus filhos. Os resultados de tais testes podem influenciar as decisões reprodutivas desses indivíduos em razão do seu status (ou não) de portador. Um teste genético pode ser definido como um ensaio laboratorial que é usado para identificar um genótipo particular (ou grupos de genótipos) para uma doença em particular em uma determinada população com um propósito específico 10. Ele pode compreender a análise do DNA, RNA, de um cromossomo ou de proteínas humanas para detectar alterações relacionadas a desordens hereditárias. Neste capítulo, serão enfocados alguns testes do DNA (moleculares) e cromossômicos (citogenéticos) que vêm sendo empregados no mundo e, a grande maioria, no Brasil em escala comercial para diagnosticar, predizer ou testar suscetibilidades para transtornos do neurodesenvolvimento e neurodegenerativos (Tabela II)"-18 . Vale salientar que os testes genéticos são importantes ferramentas para identificar a suscetibilidade de desenvolver doenças complexas e mendelianas. Por meio desses testes, inaugura-se uma nova tendência na prática médica - a medicina preditiva, em que o olhar muda
do diagnóstico para a predição da doença, do tratamento para a prevenção. Porém, o resultado da publicidade em torno dos avanços genéticos na área médica e a sensibilização do público para esse componente têm contribuído para uma "supervalorização" do componente ge nético nas doenças neuropsiquiátricas. Muitas vezes, essa valorização leva a uma ideia simplista sobre o conceito de risco de desenvolver uma doença, provocando importantes consequências sociais 19 • Independentemente do tipo de teste genético, deve-se ter em mente as possíveis implicações psicológicas inerentes à sua prática. É indispensável o papel de uma abordagem multidisciplinar sistemática, incluindo a avaliação e a intervenção psicológica a fim de minimizar o impacto emocional dos resultados dos testes 20 • Austin et alY discutem a importância do aconselhamento genético para a compreensão dos fatores de risco de desenvolver uma doença mental dentro de uma família com afetados. Falar de risco de desenvolver uma doença mental pode ajudar a família a se planejar para cuidar de uma doença e melhorar sua qualidade de vida, além de desenvolver estratégias para proteger ou postergar o desenvolvimento da doença. Porém, o resultado do teste para o risco de desenvolver uma doença sem uma compreensão sobre o seu significado pode trazer o efeito contrário 22 • Além disso, a maior parte dos estudos sugere que a variação genômica e os fatores de risco ambientais, se considerados separadamente, têm um efeito modesto na etiologia das doenças mentais. Contudo, a interação entre ambos teria um efeito determinante nesses transtornos 23,24 • Fatores genéticos têm um importante papel, mas sua natureza é complexa, ou seja, muitos genes de pequeno efeito podem estar envolvidos. Muitos dos transtornos do neurodesenvolvimento e neurodegenerativo devem ser, portanto, doenças poligênicas multifatoriais. Assim, torna-se importante também determinar os fatores ambientais de risco envolvidos, tanto quanto os fatores genéticos de suscetibilidade ou predisposição. Os testes genéticos são extremamente importantes para a compreensão das doenças e desenvolvimento de , . . . estrategias preventivas, mas precisam sempre ser compreendidos dentro do contexto que a maior parte das doenças neuropsiquiátricas apresenta uma herança poligênica e que o resultado do teste tem consequências tanto positivas como negativas, dependendo da forma que é abordado 25 . Além dos testes genéticos para a compreensão da etiologia das doenças mentais e prevenção, a área de farmacogenômica utiliza as descobertas genéticas para a compreensão das respostas aos fármacos. Portanto, os testes farmacogenéticos surgem dentro de um contexto clínico e de prescrição personalizada. Informações detalhadas sobre esse assunto poderão ser obtida no Capítulo 90 deste livro, "Farmacogenética na Psiquiatrià').
28 EXAMES LABORATORIAIS, MARCADORES GENÉTICOS E BIOMARCADORES H UM ORAIS
Aplicações clínicas da farmacogenética A partir do impacto da farmacogenética em outros campos da medicina, como na oncologia e infectologia, áreas como a psiquiatria passaram a trabalhar com a perspectiva real da utilização de informações oriundas das . ' pesqmsas na area. Em psiquiatria, o objetivo principal da farmacogenética é a aplicação clínica da informação genética para otimizar o tratamento de cada paciente individualmente2 6 • Um teste farmacogenético é uma ferramenta de auxílio à decisão clínica já que pode fornecer informações sobre a probabilidade de sucesso de uma medicação em um determinado paciente. Entretanto, a maior parte dos estudos atuais em farmacogenética mostram um valor preditivo limitado, com odd ratios para alelos individuais ou genótipos entre 1,5 e 2 27 • Um teste farmacogenético tem algumas vantagens sobre outros testes preditivos, como níveis plasmáticos de fármacos, observações clínicas no início e durante o tratamento, tais como: a) O teste genético só precisa ser realizado uma vez e permanece válido por toda a vida. b) O teste genético não requer emprego do fármaco e pode ser usado para a escolha do melhor fármaco antes do início do tratamento. c) A utilidade do teste depende da correlação custo/ benefício da resposta que ele procura predizer. Por exemplo, um teste com um valor preditivo leve que pode evitar um óbito pode ter grande utilidade clínica. Porém, uma importante limitação dos testes farmacogenéticos é a necessidade de sua validação em diferentes cenários clínicos e étnico-populacionais, o que limita sua implementação29 • A exceção atual é a genotipagem de polimorfismos que codificam enzimas hepáticas responsáveis pela metabolização de fármacos, i.e. as enzimas do citocromo P450 (CYP450). A genotipagem destes polimorfismos permite determinar a capacidade que um paciente tem de metabolizar alguns fármacos, o que pode aumentar a eficácia terapêutica em 1O a 15% e reduzir a incidência de efeitos colaterais em 15 a 20%28 • Cerca de 50 enzimas CYP450 foram identificadas até o momento e, em humanos, pelo menos 17 famílias de genes que codificam as CYP450 foram definidas e mais de 30 derivados (produtos) genéticos foram identificados30•3 1• Eles são expressos principalmente no retículo endoplasmático liso dos he patócitos, mas podem ser encontrados na mucosa intestinal, no rim, no tecido pulmonar, na pele e no cérebro32 • Enzimas com 40% ou mais de sequência de DNA homóloga são classificados dentro de uma mesma família; enzimas com 55% ou mais de sequência homóloga são classificados dentro da mesma subfamília. Por exemplo, a notação CYP3A4 indica que esta enzima CYP pertence à família 3, subfamília A, produto genético 433. São características importantes dos genes das enzimas CYP: • Todos apresentam polimorfismos.
• Podem apresentar modificações em um único nucleotídeo. • Apresentam pequenas deleções e inserções. • No caso do CYP2D6, podem apresentar deleção, duplicações ou multiplicação de todo o gene34 • As enzimas codificadas pelos genes CYP2D6 e CYP2C19 são relevantes na metabolização de fármacos usados no tratamento da depressão, esquizofrenia, transtorno bipolar, controle da droga, controle hormonal de reincidência de câncer de mama e doenças cardiovasculares. São investigados os alelos com repercussão funcio-nal mais importante dentre os mais prevalentes na população. No caso do gene CYP2D6, são investigados cerca de 16 alelos (Tabela III) e, com relação à enzima CYP2C19, são investigados quatro alelos 34-37• É importante lembrar que, além dos fatores genéticos, a atividade das enzimas CYP pode ser alterada pelo uso de fármacos inibidores ou indutores usados, comumente empregados na prática clínica. Em 2005, a agência regulatória norte-americana Food and Drugs Administration (FDA) aprovou para uso nos Estados Unidos o primeiro teste de farmacogenética para a prática clínica em psiquiatria. Tal teste investiga polimorfismos de dois genes, sendo 27 alelos do gene que codifica o citocromo CYP450 2D6 (CYP2D6) e três alelos do gene do citocromo P450 2C19 (CYP2C19). O CYP2D6 é importante para o metabolismo de antidepressivos tricíclicos, venlafaxina, antipsicóticos típicos e risperidona. O CYP2C19, por sua vez, é importante na metabolização de drogas como antidepressivos tricíclicos, citalopram, escitalopram e sertralina. Com o auxílio dessa informação, os clínicos podem decidir pelo uso ou não de determinado medicamento com base no perfil de metabolização hepática do paciente (metabolizador lento, normal, intermediário, rápido), utilizando o que é chamado de "safety pharmacogenetics" (farmacogenética de segurança). Apesar de representar um enorme avanço, essa ferramenta permite apenas avaliar os níveis séricos que provavelmente opaciente obterá com certa dose de determinada droga. Isso poderia explicar a intolerância a certas medicações (metabolizadores lentos) ou a ausência de resposta (metabolizadores ultrarrápidos) nas doses terapêuticas habituais. No entanto, a relação custo-benefício apropriada para o uso corrente desses testes ainda é questionável. A genotipagem da enzimas CYP não deve ser avaliada isoladamente; sua interpretação deve se dar em conjunto com outras variáveis clínicas de cada paciente. O uso rotineiro da genotipagem pelos psiquiatras ainda é pequeno. Concorrem para tanto evidência baseada em pesquisas ainda pequena, desconhecimento quanto à rápida diminuição do custo da testagem e insegurança na interpretação de resultados, principalmente quando mais de dois genes são pesquisados38 • Porém, já existem iniciativas como a da Royal Dutch Society for the Advancement o f Pharmacy, que sugere recomendações de doses baseadas na farmacogenética, segundo uma revisão sistemáti-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela 11
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SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Transtornos do neurodesenvolvimento e neurodegenerativos e seus possíveis testes genéticos 11 · ' 8 Resumo das características clínicas
Gene ou região alterada
Deficiência no desenvolvimento com comprometimento significativo do funcionamento intelectual e das habilidades adaptativas. Pode estar associada a outras características fenotípicas (RM sindrômico) ou ocorrer de maneira isolada, como único sintoma clínico (RM não sindrômico). O campo da psiquiatria infantil tem um interesse crescente nesses indivíduos em razão de sua propensão a apresentar comportamentos não adaptativos e diversas alterações psiquiátricas.
Origem genética variada, mas há um enriquecimento na descoberta de genes localizados no cromossomo X
Síndrome do cromossomo X-Frágil
É a forma mais prevalente de RM de origem monogênica e de RM herdado. Afeta mais frequentemente e mais severamente homens que mulheres. Os pacientes apresentam retardo mental (moderado a profundo em homens, e leve em mulheres). características faciais típicas e atraso na aquisição da fala. Podem também manifestar transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, características do espectro autista e outras alterações comportamentais.
FMR7 (Xq27.3)
Síndrome de Rett
A síndrome de Rett afeta primariamente mulheres. Após um período que pode variar de 6 a 18 meses de desenvolvimento aparentemente normal, há uma fase curta de estagnação, seguida pela rápida perda das capacidades motoras e da fala previamente adquiridas. Progressivamente as crianças afetadas passam a apresentar hipotonia, microcefalia e retardo mental. A interação social se torna defectiva, sendo que muitas meninas desenvolvem características autísticas, convulsões, ataques de pânico e ansiedade, e a maioria apresenta movimentos estereotipados das mãos. Em meninos, o quadro clínico apresentado pode variar consideravelmente com a apresentação de uma encefalopatia severa de início neonatal acompanhada de microcefalia, ou de um quadro de retardo mental severo associado ao transtorno bipolar. sinais piramidais, elementos parkinsonianos e macro-orquidismo (uma síndrome chamada PPM-X).
MECP2 (Xq28) (síndrome
Retardo mental (RM) lntellectua/ disabifity)
de Rett clássica)
A mesma região crítica no cromossomo 15 (15q 11 -q 13) se encontra alterada nas síndromes de Prader-Willi e Angelman, apesar da grande diferença clínica que existe entre elas.
Síndrome de Prader-Willi (SPW)
A síndrome caracteriza-se por hipotonia severa e dificuldades de alimentação no início da primeira infância, seguidas por hiperfagia e obesidade na infância. O desenvolvimento motor e da linguagem são atrasados, e todos os indivíduos possuem algum nível de comprometimento cognitivo. O hipogonadismo em geral está presente, assim como baixa estatura e características faciais típicas. Um fenótipo comportamental típico inclui teimosia, comportamento manipulador e características obsessivo-com pu lsivas.
Síndrome de Angelman (SA)
ASA é caracterizada por atraso grave do desenvolvimento físico e mental, ataxia e limitações severas na fala e linguagem. Microcefalia, convulsões e desordem do sono também são comuns. O atraso no desenvolvimento pode ser notado a partir dos seis meses, embora as outras características clínicas da síndrome só se manifestem após um ano de idade. Além disso, a SA está associada com um padrão de comportamento característico que envolve hiperatividade e uma aparência feliz, com paroxismos de risadas inapropriadas Qustificando o fato de aSA também ser conhecida por síndrome da marionete feliz).
Síndrome de DiGeorge
O quadro clínico dos pacientes é muito variado. Os sinais faciais dismórficos são comuns (face alongada, nariz proeminente com base nasal larga, fissura palpebral estreita e oblíqua para cima, retrognatia - mandíbula inferior reduzida e para trás, ou queixo pequeno e para trás). assim como a ocorrência de fissura de palato, insuficiência velofaríngea, defeitos cardíacos congênitos, alterações do timo e distúrbios de comportamento.
A maioria dos casos é causada pela perda de um segmento submicroscópico de DNA (microdeleção do cromossomo 22, na região 22q11.2)
Síndrome de Williams-Beuren (SW)
É uma síndrome que cursa com alterações vasculares, problemas cardiovasculares, particularmente estenose aórtica supravalvular (ESVA), anomalias do tecido conjuntivo e hipercalcemia. Há também retardo mental associado a comportamento hipersocial e loquaz.
Há deleção cromossômica submicroscópica do braço longo do cromossomo 7 (7q 11.23), incluindo o gene da elastina (ELN)
28 EXAMES LABORATORIAIS, MARCADORES GENÉTICOS E BIOMARCADORES H UM ORAIS
Padrão de herança (PH) e etiologia
Teste diagnóstico, pré-sintomático e/ou de suscetibilidade
A maioria dos casos tem etiologia exclusivamente genética (p. ex., anormalidades cromossômicas estruturais ou numéricas, mutações em genes específicos). O PH é variado, abrangendo casos de herança autossômica dominante, autossômica recessiva e ligado ao X. Fatores ambientais também podem ter papel na etiologia do RM (p. ex., na síndrome alcoólico-fetal, anoxia perinatal, desnutrição grave, entre outros).
Se há suspeita de uma síndrome cuja origem genética já tenha sido identificada, o teste pode ser específico (p. ex., FISH ou cariótipo para detecção de deleção do braço curto do cromossomo 5 para diagnóstico da Síndrome de Cri-du-chat, sequenciamento da região codificante do gene ATRX em caso de suspeita de Talassemia tipo alfa com retardo mental, etc.). Quando a busca for inespecífica, o destaque fica com o crescente uso de Array-cGH para detecção de microalterações cromossômicas como complemento diagnóstico nos casos em que a análise cariotípica foi inconclusiva.
Herança ligada ao X. O PH é complicado pela característica específica da mutação dinâmica que ocorre na grande maioria dos casos em que há expansão do número de repetições de uma trinca de nucleotídeos (CGG) na porção 5' não traduzida do gene FMR7. Alelos com 5 a 40 repetições são geralmente encontrados na população normal. As trincas estão repetidas mais de 200 vezes nos afetados. Essa grande expansão leva à hipermetilação da região, o que impede a expressão do gene e, consequentemente, a produção da proteína FMR1, resultando no quadro clínico da síndrome. Os indivíduos com alelos contendo de 41 a 200 cópias dos trinucleotídeos pertencem à uma faixa intermediária ou pré-mutada e seus alelos são instáveis, podendo sofrer expansão durante a meiose nas células da linhagem germinativa. Dessa forma, esses indivíduos com a pré-mutação (principalmente as mulheres) possuem risco elevado de ter um filho com a mutação completa, e o risco varia conforme o número de repetições da pré-mutação.
Para a detecção de alelos com números normais ou intermediários de trinucleotídeos, em geral é utilizada a técnica de PCR. Já a análise por Southern-Biot permite a detecção de alelos em todas as faixas de tamanho. Além disso, o padrão de metilação do gene FMR7 também pode ser investigado. A detecção da pré-mutação também vem sendo indicada aos familiares não afetados pela síndrome do X- frágil. As mulheres com alelos pré-mutados podem apresentar menopausa precoce ou insuficiência ovariana primária (POI), e os homens acima dos 50 anos possuem risco de desenvolver síndrome de tremor e ataxia associada ao X- frágil (FXTAS, MIM 10 300623) 12·13
Herança ligada ao X. O gene alterado pela síndrome é um membro da família das proteínas que se ligam a dinucleotídeos CpGs meti lados, agindo como um repressor transcricional. Casos raros foram descritos de meninos afetados com as características clássicas da Síndrome de Rett e que apresentavam mosaicismo somático ou um cromossomo X extranumerário.
Para a detecção de variações da sequência do MECP2 pode ser usado o sequenciamento ou outras técnicas de busca de mutações (p. ex., SSCP ou DHPLC). Para os casos em que não foi possível detectar uma mutação pela análise da sequência de MECP2, é possível buscar por duplicações ou deleções parciais ou do gene inteiro (p. ex., por PCR quantitativa ou Array-cGH).
As duas síndromes (SPW e SA) constituem exemplos clássicos de erros de imprinting, que pode ser definido pela expressão gênica diferencial conforme a origem parenta!. As marcas que denotam a origem parenta! são modificações epigenéticas diferenciais impressas durante a gametogênese paterna e materna. Para que esses genes que sofrem imprinting funcionem corretamente durante o desenvolvimento dos indivíduos, são necessários um alelo de origem materna e outro de origem paterna. A SPW é causada pela ausência de uma cópia funcional de origem paterna da região 15q 11 -q 13. Já na síndrome de Angelman, a ausência de um alelo funcional materno da mesma região é a causa genética do quadro clínico. Em ambas as síndromes, essa perda de "alelo funcional" pode se dar por: - erros epigenéticos (anormalidades no padrão de metilação do DNA) na região controladora de imprinting (I CR) presente em 15q 11 -q 13; - alterações na sequência de bases da região controladora de imprinting ou de genes específicos presentes em 15q 11 -q 13; - dissomia uniparental, em que erros de meiose levam à presença no embrião em desenvolvimento de dois cromossomos 15 de mesma origem parenta!; - deleção de um fragmento ou de toda a região crítica do cromossomo 15 (a mais comum causa genética de ambas as síndromes).
A análise do padrão de metilação da região Prader-Willi/ Angelman em geral é feita por MS-PCR (ou Methylationsensitive PCR). e é capaz de detectar erros de imprinting em 15q 11 - 13. Esse teste determina se a região foi herdada exclusivamente de um dos pais (apenas da mãe nos casos da SPW, e apenas do pai na SA). Além disso, testes para a busca de mutações na região crítica das síndromes também são utilizados, por meio de sequenciamento ou outros métodos moleculares de busca de alterações genéticas. Para detecção de deleções são utilizadas análises cromossômicas (p. ex., cariótipo de alta resolução ou FISH) ou moleculares (p. ex., PCR quantitativa). A presença de dissomia uniparental é geralmente detectada pela análise de marcadores moleculares do tipo microssatélite.
PH autossômico dominante
O teste consiste na triagem por PCR, baseado em perda da heterozigosidade de microssatélites da região crítica do cromossomo 22 (22q11.2).
PH autossômico dominante. Cerca de 700/o das deleções se origina na meiose dos pais como resultado de erros de recombinação entre dois homólogos do cromossomo Z As demais decorrem de rearranjos intracromossômicos entre cromátides irmãs
O teste diagnóstico recomendado é o FISH, usando sonda para o gene da elastina. Trata-se de método rápido e confiável para confirmar uma suspeita clínica. No entanto, uma pequena porcentagem dos pacientes com SW (5- 1O%) não apresenta a deleção da elastina, indicando que a presença de duas cópias do locus da elastina não afasta o diagnóstico. (continua)
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela 11
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SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Transtornos do neurodesenvolvimento e neurodegenerativos e seus possíveis testes genéticos 11 · ' 8 Resumo das características clínicas
Gene ou região alterada
Doença de Huntington (OH)
Trata-se de uma doença degenerativa que afeta o sistema nervoso central e provoca movimentos involuntários dos braços, das pernas e do rosto. Desenvolve-se lentamente, ocasionando uma degeneração progressiva do cérebro. É caracterizada por sintomas psiquiátricos, motores e cognitivos progressivos. Os sintomas psiquiátricos, como agitação, sintomas depressivos, maniformes, delírios e alucinações podem ocorrer em até 50% dos casos antes das manifestações neurológicas.
Doença de Parkinson (DP)
O parkinsonismo caracteriza-se pela alteração ou morte dos neurônios produtores da dopamina no sistema nervoso central. O local mais importante é a substância negra; entretanto, outras estruturas podem estar envolvidas (locus ceruleus, núcleo dorsal da rafe, núcleo pedúnculo-pontino). levando a alteração de outros neurotransmissores, como a serotonina, a acetilcolina e a noradrenalina. As zonas afetadas no parkinsonismo têm funções de controle motor extrapiramidal (ou seja, elas controlam os movimentos inconscientes, como os dos músculos da face ou os das pernas quando o indivíduo está de pé). Manifestações não motoras também podem ocorrer, como comprometimento da memória, depressão, alterações do sono e distúrbios do sistema nervoso autônomo.
Genes envolvidos com o padrão mendeliano autossômico dominante: PARK7, 3, 4, 5 e 8. PH autossômico recessivo: PARK 2, 6, 7, 9 e 7O. Genes de suscetibilidade: NR4A2, Synphi/in- 7 e
A DA é a forma mais comum de demência progressiva em idosos. Caracteriza-se pela presença de emaranhados neurofibrilares e agregados de proteína beta-amiloíde (achados post mortem). O primeiro sintoma mais comum é a perda de memória. com a progressiva perda cognitiva.
APP (proteína precursora da beta-amiloide, 21q21); APOE (19q13.2); PSEN 7 (14q24.3); PSEN2 (1 q31 -q42); A2M (a-2 macroglobulina. 12p 13.3-p 12.3)
Doença de Alzheimer (DA)
ca da literatura, integrando essas recomendações em um sistema computadorizado de prescrição de medicamento e farmacovigilância. As recomendações de dose estão disponíveis aos clínicos para o tratamento de pacientes já genotipados39. Tais iniciativas facilitam a interpretação dos dados e indicam uma tendência à individualização da prescrição farmacológica nos próximos anos. A próxima etapa no desenvolvimento dos testes em farmacogenética será integrar as informações sobre farmacodinâmica àquelas sobre farmacocinética e, assim, permitir ao clínico decidir qual o medicamento a ser utilizado com maior probabilidade de apresentar resposta adequada e sem efeitos adversos em seu paciente, achamada "efficacy pharmacogenetics" (farmacogenética de eficácia). Idealmente, esses testes deverão considerar a complexidade de interações moleculares em um tecido altamente especializado como o cérebro, incluindo os fenomenos ep1genet1cos. A
•
I
•
HTT (4p 16.3)
Tau.
Biomarcadores: racionais Nas últimas décadas, tem-se observado o crescimento do uso de biomarcadores, principalmente na pesquisa dos transtornos psiquiátricos, e em menor escala na prática clínica. Em uma definição abrangente do termo, os biomarcadores são características biológicas que podem ser mensuradas quantitativamente40 • Portanto, alterações de neuroimagem, desempenho cognitivo, analitos biológicos mensurados no plasma, urina e liquor podem ser considerados como potenciais biomarcadores. Idealmente, um biomarcador deve refletir com fidedignidade um processo biológico subjacente, deve ser de fácil mensuração, de custo acessível, e o procedimento para obtenção da matriz biológica para a sua avaliação deve ser simples e causar o mínimo de desconforto ou lesão ao paciente4 1 • As principais aplicações dos biomarcadores são o diagnóstico de condições patológicas, predição prognós-
28 EXAMES LABORATORIAIS, MARCADORES GENÉTICOS E BIOMARCADORES H UM ORAIS
Padrão de herança (PH) e etiologia
Teste diagnóstico, pré-sintomático e/ou de suscetibilidade
PH autossômico dominante. Como no caso da síndrome do X-Frágil, a mutação na OH é dinâmica e consiste na repetição exagerada do trinucleotídeo CAG no braço curto do cromossomo 4 (4p16.3).
O achado de atrofia do núcleo caudado em exames de neuroimagem sugere o diagnóstico de OH, mas a confirmação diagnóstica é realizada pela pesquisa genética da expansão do CAG com 40 ou mais repetições. O exame genético positivo apresenta 1ooo;o de especificidade e 98,8% de sensibilidade. Em 80fo dos pacientes a história familial é negativa em função da morte de ancestrais antes da manifestação da OH, paternidade trocada ou expansões CAG de novo de alelos intermediários instáveis.
A DP é marcada pela heterogeneidade genética, sendo observados casos de herança autossômica dominante, recessiva, transmissão materna (mitocondrial) e antecipação genética com provável envolvimento de trinucleotídeos de repetição. O conceito de doença poligênica associada a fatores ambientais (herança multifatorial) é "atraente" em uma doença como a DP, que apesar da tendência familiar, apresenta uma taxa de segregação mais baixa do que o esperado de uma doença dominante.
Os testes genéticos podem revelar a existência de novos genes ainda não identificados, porém estão disponíveis apenas para pesquisa científica. O diagnóstico da DP é clínico e as doenças para o diagnóstico diferencial devem ser excluídas para todos os casos. O encaminhamento do indivíduo afetado para grupos de apoio deve ser realizado.
Cerca de um terço dos casos de DA apresenta familiaridade e é transmitido de acordo com um padrão de herança monogênica autossômica dominante. Os demais casos isolados apresentam uma herança poligênica, e a manifestação clínica em geral é de início mais tardio.
• Teste do APOE (predisposição): o envolvimento do alelo e4 com o desenvolvimento da DA em casos esporádicos e familiais. assim como o fator protetor do alelo e2, são achados sólidos para a predisposição da doença, repetidos em diversas populações, incluindo um recente estudo em amostra brasileira. A herança de um ou dois desses alelos eleva até cinco vezes a probabilidade de desenvolvimento da doença. Porém, deve-se lembrar que a variante e4 do gene APOE é um fator de risco e não uma causa determinante de DA. Existem indivíduos que possuem os dois alelos de apoE na forma e4 e não apresentam DA, e também indivíduos que apresentam apenas alelos e2 ou e3, mas encontram-se acometidos pela DA. • Testes diagnósticos: - sequenciamento completo do Gene APP (para busca de mutações); - teste MLPA do gene APP (para detecção de deleções e duplicações); - teste apenas dos exons 16 e 17 do gene APP; - sequenciamento completo do gene PSEN7 (para busca de mutações); - sequenciamento completo do PSEN2 (para a busca de mutações).
tica42, avaliação dos processos biológicos subjacentes aos transtornos mentais43 , o efeito de intervenções (farmacológicas ou não farmacológicas) sobre esses processos, e o seu uso como marcador substituto ("surrogate marker") de resposta clínica em estudos de intervenção em pacientes com transtornos mentais44 • Entretanto, um mesmo biomarcador pode ter diferentes aplicações de acordo com o contexto em que é avaliado (p. ex., ser um biomarcador diagnóstico e de predição prognóstica) 45• O processo de desenvolvimento de biomarcadores envolve uma série de etapas distintas. A primeira fase é a descoberta e identificação de um biomarcador em potencial. Atualmente, esse processo é geralmente realizado pelo rastreamento de múltiplas moléculas com técnicas laboratoriais específicas (p. ex., por meio da análise proteômica de um fluido biológico46 . No entanto, análises focadas em um processo fisiopatológico conhecido de uma doença também podem ser uma fonte adequa-
da para a identificação de biomarcadores. Após a sua identificação, o biomarcador deve passar por diversas etapas iniciais para sua validação, por exemplo, com o desenvolvimento de métodos laboratoriais de análise, avaliação da plausibilidade biológica da relação entre o biomarcador e a doença em estudo, avaliação da dinâ mica do biomarcador em condições fisiológicas e patológicas. As etapas seguintes compreendem a avaliação da validade clínica do biomarcador, na qual se verifica quais as suas aplicações clínicas, o melhor contexto para a sua utilização (p. ex., rastreio ou confirmação diagnóstica de uma doença) e a reprodutibilidade dos achados em outras amostras clínicas e não clínicas. Em muitos casos, essas etapas de desenvolvimento estão sobrepostas e à medida que o conhecimento sobre as propriedades de um biomarcador avança, novas relações com processos fisiopatológicos primários são identificadas e novas aplicações potenciais desenvolvidas47 •
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela 111
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SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Fenótipos identificados para a enzima CYP2D6
Fenótipo
Repercussão metabólica
Metabolizadores lentos ou pobres (poor metabolizers)
Deficiência funcional da enzima
17%
Metabolizadores intermediários
Heterozigotos para um alelo deficiente ou que causam redução da atividade enzimática
11 Ofo
Dois alelos normais; sem alteração na atividade enzimática
630fo
Múltiplas cópias do gene: aumento da atividade enzimática
90fo
(intermediate metabolizers)
Metabolizadores extensivos (extensive metabolizers)
Metabolizadores ultrarrápidos (ultra- rapid metabolizers)
Tabela IV
Distribuição na população
Fenótipos identificados para a enzima CYP2D19 Distribuição na população
Fenótipo
Repercussão metabólica
Metabolizadores lentos ou pobres (poor metabo/izers)
Deficiência funcional da enzima
160fo
Metabolizadores normais
Dois alelos normais
600/o
Um alelo normal e um alelo lento
?
(extensive metabolizers)
Metabolizadores intermediários (intermediate metabolizers)
Metabolizadores rápidos (rapid metabolizers)
Aumento da atividade enzimática
240fo
Em psiquiatria, a busca de biomarcadores é guiada principalmente pelo objetivo de se aumentar a confiabilidade do diagnóstico clínico dos transtornos mentais. Apesar do grande esforço de pesquisa nas últimas décadas, tem-se tido pouco sucesso no desenvolvimento de bio marcadores diagnósticos para os transtornos psiquiátricos que podem ser aplicados rotineiramente na prática clínica. Alguns fatores responsáveis pela limitação dos biomarcadores diagnósticos em psiquiatria são a falta de critérios padrão-ouro para o diagnóstico psiquiátrico, as limitações inerentes ao diagnóstico clínico e, por consequência, a heterogeneidade das amostras incluídas nos estudos de validação de biomarcadores, e o desconhecimento dos processos fisiopatológicos primários dos transtornos mentais. Mais recentemente, o uso dos biomarcadores tem sido avaliado para outras aplicações, em especial a predição prognóstica e estadiamento de doença48 .
Biomarcadores humorais A disfunção do eixo hipófise-pituitária-adrenal (HPA) tem sido o biomarcador mais avaliado na clínica psiquiátrica para o diagnóstico clínico de episódio depressivo maior49. Nas décadas de 1970 e 1980, vários testes que ava-
liam a função do eixo HPA (p. ex., o teste da supressão da dexametasona, cortisol sérico) foram avaliados para o diagnóstico de um episódio depressivo maior. Apesar do sucesso inicial, a avaliação da disfunção do eixo HPA apresenta baixa especificidade e sensibilidade para diferenciar os pacientes deprimidos de controles na prática clínica. Dessa maneira, seu uso foi abandonado como marcador diagnóstico para depressão maior49. No entanto, estudos subsequentes demonstraram que as alterações do eixo HPA são específicas dos pacientes com episódios depressivos do subtipo melancólico e que a persistência de alterações do eixo HPA é um importante preditor da ocorrência de sintomas depressivos residuais e maior risco de recorrência de um novo episódio depressivo maior. Logo, a avaliação da função do eixo HPA em pacientes deprimidos pode ter grande aplicabilidade na prática clínica, principalmente na predição prognóstica de recorrência de quadros depressivos50,51. Diversos outros biomarcadores humorais foram avaliados em transtornos psiquiátricos, em especial os metabólitos do metabolismo de neurotransmissores monoaminérgicos, marcadores relacionados a cascatas inflamatórias, neurotróficas, de estresse oxidativo e função mitocondrial, metabolismo do cálcio. Esses biomarcadores carecem de especificidade diagnóstica para os transtornos mentais, já que estão alterados em diferentes quadros neuropsiquiátricos e em doenças clínicas. Entretanto, podem ser úteis para outras importantes aplicações, como predição prognóstica (p. ex., risco de suicídio em pacientes deprimidos com baixos níveis de 5-HTAA) 52, como marcador substituto de resposta antidepressiva (p. ex., níveis séricos de BDNF em pacientes tratados com antidepressivos) 53 , para estadiamento das alterações fisiopatológicas de quadros psiquiátricos (p. ex., níveis de BDNF em pacientes com transtorno bipolar e com comprometimento cognitivo leve) 40,41 ou para avaliar aspectos importantes da fisiopatologia e prognóstico dos transtornos psiquiátricos (p. ex., alterações em cascatas inflamatórias, de estresse oxidativo, do metabolismo intracelular de cálcio) 54-59 . Além do plasma/soro, o sangue periférico fornece outras matrizes biológicas que podem servir como fonte para o desenvolvimento de biomarcadores em transtornos mentais, em especial os leucócitos e as plaquetas. Diversas linhas de evidência sugerem que há uma grande semelhança no funcionamento de várias cascatas intracelulares entre neurônios, plaquetas e leucócitos. Portanto, alterações em processos fisiopatológicos no SNC podem se refletir em alterações semelhantes nessas matrizes biológicas periféricas60. Um exemplo dessa inter-relação é a atividade do grupo de enzimas da fosfolipase A2 (PLA2). Essas enzimas são responsáveis pelo metabolismo dos fosfolípides da membrana celular e estão envolvidas em várias cascatas intracelulares importantes para a homeostase celular61. A sua atividade no SNC está alterada em diversos transtornos mentais, como na esquizofrenia (i. e., aumento da atividade enzimática) 62 e na doença de Alzheirner (DA) (i. e., re-
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dução da atividade enzimática)63 . Essas alterações identificadas no SN C têm correlação significativa com a atividade enzimática medida em plaquetas64 • Nos pacientes com DA, a redução da atividade da PLA2 pode ser encontrada nos pacientes em estágios pré-demenciais (i. e., nos pacientes com comprometimento cognitivo leve) 65 . Neles, uma menor atividade da PLA2 pode predizer o risco de um paciente progredir para os estágios demenciais da DA. Outro biomarcador plaquetário que tem sido avaliado para o diagnóstico e predição de risco de DA é a razão entre fragmentos curtos e longos da proteína precursora do amiloide (em inglês, Amyloid Precursor Protein, APP). A razão de APP reflete o balanço entre as suas duas vias de metabolismo: a via não amiloidogênica (representada pelo fragmento de 120- 130 kDa) e a via amiloidogênica (representada pelo fragmento de 110 kDa). Nos pacientes com DA e nos com CCL, subtipo amnéstico, observa-se uma redução significativa da razão (120-130/110) da APP, indicando, pois, o predomínio do metabolismo da APP pela via amiloidogênica nesses pacientes66 . A atividade da enzima glicogênio sintase quinase-3beta (GSK-3~) tem recebido grande atenção nos últimos anos tanto como um biomarcador periférico como em diversos transtornos mentais67. Em geral, a sua atividade encontra-se diminuída, em plaquetas e leucócitos, em pacientes com transtornos afetivos (depressão unipolar e transtorno afetivo bipolar) e na doença de Alzheimer68·69 . A alteração na atividade enzimática correlaciona-se significativamente com aspectos clínicos importantes desses quadros psiquiátricos, como os déficits cognitivos e a gravidade da sintomatologia depressiva70-71 • Dada a inespecificidade da alteração de sua atividade, a GSK-3 ~ não é um marcador diagnóstico ideal para diferentes transtornos psiquiátricos; entretanto, ela pode representar um importante marcador prognóstico e de estado patológico nesses quadros. Outra aplicação possível da atividade da GSK-3~ é como marcador substituto de resposta terapêutica no desenvolvimento de novos estabilizadores do humor, antidepressivos e drogas antidemência.
Biomarcadores liquóricos Os biomarcadores para o diagnóstico da doença de Alzheimer (DA) têm apresentado grande evolução nos últimos anos e, atualmente, a sua análise sistemática tem sido incorporada à propedêutica complementar e aos critérios diagnósticos dessa doença72 • Os biomarcadores liquóricos mais estudados para DA são o peptídeo beta-amiloide (A~42), a proteína Tau total (T-Tau) e a proteína Tau fosforilada (PTau)31. Eles refletem as características patológicas primárias relacionadas à DA e o procedimento para obtenção da matriz biológica (punção lombar) é minimamente invasivo e com baixa incidência de complicações. Na década de 1990, diversos estudos avaliaram esses biomarcadores para o diagnóstico da doença de Alzheimer. Em geral, esses trabalhos mostraram que a sensibilidade e especificidade desses mar-
cadores para diferenciar os pacientes de idosos controles saudáveis estava acima de 80%; porém, esses valores eram significativamente menores para o diagnóstico diferencial dos pacientes com DA em relação a outros quadros demenciais73. Apesar da elevada sensibilidade e especificidade alcançada por esses biomarcadores, eles eram semelhantes aos encontrados para o diagnóstico clínico e não aumentavamo poder preditivo diagnóstico para DA, o que limitava a sua aplicabilidade clínica. Dada a necessidade de se aprimorar a identificação dos pacientes em maior risco de evoluir das fases pré-clínicas para as fases clínicas da DA, esses biomarcadores passaram a ser avaliados quanto ao seu poder para predizer o risco de um determinado paciente evoluir para as fases clínicas da DA74. Isso tem uma grande importância prática, já que a avaliação clínica tem um baixo poder preditivo para identificar os pacientes que vão progredir para DA75·76. Nesses estudos, a assinatura patológica da DA no liquor (i. e., baixas concentrações do A~ 42 e altas concentrações das proteínas Tau total e fosforilada) demonstrou sensibilidade e especificidade diagnóstica acima de 80 a 90% e elevado poder preditivo para se identificar os pacientes que iriam evoluir para as fases clínicas da DA77• Além disso, mantinha sensibilidade e especificidade diagnóstica adequadas para discriminar os pacientes que evoluíram para DA dos que evoluíriam para outros quadros demenciais. Esses achados têm sido replicados em settings clínicos distintos e em populações de idosos de diferentes países78·79 . Recentemente, esses dados foram replicados de modo bastante consistente em estudo clínico com idosos brasileiros sob risco de desenvolver quadros demenciais80. Nesse estudo, não se encontrou diferenças significativas no padrão de biomarcadores em liquor entre os pacientes caracterizados com comprometimento cognitivo leve (CCL) e os idosos-controles na avaliação inicial (baseline). Entretanto, na avaliação longitudinal, os pacientes com CCL que progrediram para DA tinham concentrações liquóricas significativamente reduzidas do peptídeo ~-amiloide 42 e aumentadas das proteínas Tau total e fosforilada em comparação com os pacientes com CCL que não progrediram para DA e com os idosos-controles. Portanto, o uso desses biomarcadores liquóricos tem grande potencial de aplicação clínica para a identificação dos pacientes com DA em suas fases pré-clínicas e prodrômicas e para a predição do risco de progressão para o quadro demencial na DA. Em vista disso, a avaliação sistemática desses biomarcadores tem sido incorporada sistematicamente às revisões mais recentes dos critérios diagnósticos da DA72 • A avaliação desses biomarcadores em liquor também pode fornecer informações importantes sobre características clínicas e fisiopatológicas na doença de Alzheimer. Estudos recentes mostraram que idosos sem diagnóstico clínico de demência, menores níveis da proteína ~-amiloide42 e maiores níveis da proteína Tau fosforilada no liquor se correlacionavam significativamente com pior desempenho
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
funcional, menores volumes hipocampais e lentificação do traçado no eletroencefalograma81 -84 • Portanto, alterações comumente encontradas nos pacientes com DA podem ser observadas, em menor intensidade, em idosos sem queixas cognitivas ou com déficits cognitivos incipientes que já tiveram alterações sutis no padrão de biomarcadores liquóricos associados à DA. Outra aplicação desses biomarcadores que tem sido muito estudada é o seu uso como marcadores substitutos de desfecho em ensaios clínicos com intervenções modificadoras da história natural da DA45. Nesse contexto, eles são úteis tanto para avaliar o potencial de diferentes intervenções em modificar parâmetros biológicos associados com a progressão das alterações fisiopatológicas na DA quanto como prova de conceito de mecanismos de ação de novas drogas.
e) Efeitos adversos de medicamentos podem ser monitorados por meio de exames laboratoriais, e a sua correta indicação ao longo do tratamento faz parte da boa prática clínica. 2. A realização periódica de exames laboratoriais para a avalia-
a) b) c)
Considerações finais A busca por marcadores biológicos e genéticos é um campo de pesquisa em rápida evolução em psiquiatria. Seu objetivo final é o aprimoramento do diagnóstico dos transtornos mentais, do seu estadiamento e prognóstico, e, em última instância, uma maior personalização dos diferentes tratamentos para cada paciente. Apesar dos avanços observados, o uso dessas tecnologias ainda não é uma realidade na prática da clínica psiquiátrica. Alguns fatores que limitam a sua ampla utilização, em muitos casos, são a baixa especificidade diagnóstica para diferentes transtornos mentais e, por consequência, o pequeno valor preditivo adicionado em relação ao diagnóstico clínico, a alta sofisticação tecnológica necessária para a análise desses biomarcadores, e questões bioéticas e legais. A superação dessas questões envolve o esforço conjunto e coordenado de várias disciplinas diferentes, como a psiquiatria, a biologia molecular, diferentes especialidades farmacêuticas, a bioestatística e a bioética, etc. Questões 1. Assinale a afirmativa incorreta sobre a utilização dos exames
a)
b)
c)
d)
laboratoriais na prática clínica psiquiátrica: Os exames laboratoriais podem ser solicitados para investigar a ocorrência de transtornos mentais secundários a causas orgânicas. A mon itorização dos níveis séricos dos med icamentos é uma outra aplicação importante dos exames laboratoriais e deve ser solicitada de rotina sempre que forem feitos ajustes nas doses dos psicofármacos. Exames laboratoriais para avaliar o estado geral da saúde dos pacientes devem ser sempre solicitados durante a avaliação inicial dos quadros psiquiátricos, sobretudo tendo-se em mente o tratamento com psicofármacos. Diversas doenças méd icas podem se manifestar por meio de sintomas psiquiátricos, com destaque para as doenças endócrino-metabólicas, inflamatórias e neurológicas.
d) e)
ção de parâmetros clínicos é necessária para uma prescrição segura de medicamentos psicoativos. Assinale a alternativa que relaciona com mais exatidão exames que devem ser solicitados para monitorar funções sistêmicas durante a prescrição dos seguintes psicofármacos: clozapina, lítio, carbamazepina, ácido valproico e imipram ina: Hemograma, função renal, enzimas hepáticas, amônia sérica e eletrocardiograma. Coagulograma, função tireoidiana, função renal, tomografia cerebral e teste ergométrico. Eletrencefalograma, função renal, genótipo, paratormônio e níveis séricos. Dosagem séria de ácido fólico, urografia excretora. ultrassonografia de abdome, enzimas hepáticas e eletrólitos. Exame de urina tipo I, função renal, colonoscopia, amônia sérica e prova de função pulmonar.
3. Assinale a afirmativa incorreta sobre os marcadores genéticos
a)
b)
c)
d)
e)
nos transtornos do neurodesenvolvimento: Um teste genético pode ser definido como um ensaio laboratorial que é usado para identificar um genótipo particular (ou grupos de genótipos) para uma doença em particular em uma determ inada população com um propósito específico. Os testes genéticos são importantes ferramentas para identificar a suscetibilidade de desenvolver doenças complexas e mendelianas. Os transtornos do neurodesenvolvimento são doenças poligênicas multifatoriais, sendo irrelevante determinar os fatores ambientais de risco envolvidos. A síndrome do cromossomo X-frágil corresponde à forma mais prevalente de retardo mental de origem monogênica e de retardo mental herdado. Na síndrome de Rett. que afeta primariamente mulheres, observa-se rápida perda de previamente adquiridas capacidades (sobretudo motoras e da fala), após um período de desenvolvimento aparentemente normal que pode variar de 6 a 18 meses.
4. As enzimas codificadas pelos genes da
são relevantes na metabolização de diversos fármacos usados no tratamento de doenças clínicas e psiquiátricas. Metabolizadores ____ apresentam deficiência funcional dessas enzimas, razão pela qual tendem a apresentar incidência de efeitos colaterais e são mais suscetíveis a efeitos tóxicos das medicações que necessitam dessas isoenzimas para sua _ _ mesmo em _ __ Assinale a alternativa que contém as palavras que completam corretamente esse trecho: a) CYP2D6 e CYP2C19; ultrarrápidos; menor; biotransformação sináptica; doses terapêuticas. b) CYP1A2 e CYP3A3/4; extensivos; maior; absorção; subdoses.
28 EXAMES LABORATORIAIS. MARCADORES GENÉTICOS E BIOMARCADORES HUMORAIS
c) Apolipoproteína E; rápidos; menor; excreção renal ; doses supraterapêuticas. d) FM R1 (Xq27.3); ultrarrápidos; menor; metabolização; doses IniCiaiS.
e) CYP206 e CYP2C19; lentos ou pobres; maior; metabolização hepática; doses terapêuticas. 5. Assinale a afirmativa incorreta sobre os biomarcadores: a) São características mensuráveis por métodos laboratoriais ou de imagem que refletem processos biológicos subjacentes. b) As aplicações clínicas e/ou experimentais dos biomarcadores incluem o suporte ao diagnóstico etiológico e a predição de um determinado desfecho evolutivo. c) Em psiquiatria, a busca de biomarcadores é guiada principalmente pelo objetivo de se aumentar a confiabilidade do diagnóstico clínico dos transtornos mentais. d) Embora seja uma matriz biológica confiável. a pesquisa de biomarcadores no líquido cefalorraquidiano é contra indicada, uma vez que a punção lombar é um procedimento invasivo não justificável para a obtenção de amostras para análise bioquímica. e) Em pacientes idosos com comprometimento cognitivo leve do tipo amnéstico, uma redução das concentrações liquóricas do peptídeo beta-amiloide. ao lado de um aumento das concentrações da proteína Tau (total e fosforilada). são indícios de uma possível evolução para demência nos anos subsequentes.
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359
360
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
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Exames de Imagem Cerebral
Marcus Vinicius Zanetti Tânia Corrêa de Toledo Ferraz Alves Geraldo Busatto Filho
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 361 Indicações para solicitar exame de imagem cerebral na prática psiquiátrica hoje, 362 Potencial diagnóstico da neuroimagem nos transtornos neurodegenerativos, 363
1. Entender quais são as indicações para se solicitar um exame de imagem cerebral na prática clínica hoje.
Discriminação diagnóstica nos transtornos psiquiátricos funcionais, 364
2. Saber que os métodos de neuroimagem evoluem tanto na tecnologia envolvida na aquisição de imagens cerebrais como no desenvolvimento de novos modelos para processamento e análise de imagens médicas.
Considerações finais, 365 Minicaso clínico, 366
3. Reconhecer uma análise por curva ROC.
Questões, 366 Referências bibliográficas, 366
4. Conhecer a situação atual dos estudos que buscam desenvolver ferramentas de auxílio diagnóstico para a prática clínica psiquiátrica.
Introdução
5. Compreender os resultados recentes avaliando o desempenho diagnóstico de técnicas de imagem cerebral nos transtornos neurodegenerativos, psicóticos e do humor.
Hoje, o uso de técnicas de imagem cerebral na prática clínica psiquiátrica restringe-se quase que exclusivamente à exclusão de causas secundárias de transtornos mentais. Até poucos anos atrás, o uso da neuroimagem como ferramenta de auxílio diagnóstico e prognóstico de pacientes com alterações do comportamento era tido como algo pouco provável. Isso porque os estudos utilizando técnicas de imagem tanto estrutural (tomografia computadorizada, ressonância magnética, imagem por tensor de difusão) como funcional (PET, SPECT e ressonância magnética funcional) na avaliação de casos psiquiátricos (psicoses, transtornos do humor, transtornos neurodegenerativos, etc.), em comparação com controles saudáveis, produziam resultados bastante inconsistentes, com sobreposição de medidas biológicas entre pacientes e controles, mesmo que a diferença da média dos grupos fosse significativa 1•2 • Porém, observou-se um grande desenvolvimento das técnicas de neuroimagem nas últimas décadas, permitindo o estudo cada vez mais detalhado da estrutura e do funcionamento do cérebro humano in vivo. Esse desenvolvimento ocorreu tanto na tecnologia envolvida na aquisição
de imagens cerebrais como no desenvolvimento de novos modelos para processamento e análise de imagens médicas2 • Uma descrição detalhada das diversas técnicas de imagem cerebral e da metodologia para análise de dados pode ser encontrada no Capítulo 156 (Neuroimagem em Psiquiatria). Resumidamente, podemos dividir os métodos de análise de imagens médicas em três grandes grupos: inspeção e quantificação visual (realizada geralmente por um radiologista experiente); análise por região de interesse (region-ofinterest, ROI), na qual se delineia manualmente uma ou mais estruturas cerebrais de interesse para estudo, de forma a se obter valores absolutos (área, volume e intensidade de sinal do voxel, etc.); métodos voxel-a-voxel, nos quais as imagens originais são transformadas espacialmente por meio de modelos matemáticos complexos para se conformarem a um espaço anatômico em comum2•3 . Existem diversas variações desses métodos e novas rotinas para processamento de imagens cerebrais são quase que diariamente propostas na literatura. Recentemente, a aplicação de métodos conhecidos como reco-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
nhecimento de padrões morfológicos complexos em neuroimagem tem demonstrado, porém, que o desenvolvimento de técnicas com o objetivo de se classificar casos clínicos em nível individual é factível em psiquiatria, como discorreremos melhor adianté-4 • Além de contribuírem para uma melhor compreensão da fisiopatologia dos transtornos neuropsiquiátricos, os estudos de neuroimagem vêm procurando testar o quanto medidas cerebrais específicas podem ser utilizadas para corroborar o diagnóstico na prática clínica. Estes trabalhos buscam verificar o desempenho diagnóstico de diferentes métodos por meio de uma análise por curva ROC (receiver operating characteristic), na qual o desvio de cada medida biológica individual em relação à média do grupo controle (chamado de escores Z) é incluído em um gráfico de taxa verdadeiro-positiva (eixo y) versus taxa de falso -positivo (eixo x), permitindo obter medidas de acurácia diagnóstica (área sob a curva, Az), sensibilidade e especificidade (Figura 1). O presente capítulo discutirá as indicações para se solicitar um exame de imagem cerebral na nossa prática clínica hoje, e descreverá o atual estado do uso de técnicas de neuroimagem visando o auxílio diagnóstico e prognostico em transtornos neuropstqmatncos, bem como seu potencial de aplicação na prática clínica num futuro próximo. I
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Indicações para solicitar exame de imagem cerebral na prática psiquiátrica hoje Lesões cerebrais de diferentes naturezas - malformações vasculares, insultos isquêmicos ou hemorrágicos, doenças desmielinizantes, tumores, processos infecciosos, etc. - podem provocar uma miríade de síndromes psiquiátricas dependendo de sua localização topográfica no encéfalo. São os chamados trans tornos mentais orgânicos, que incluem as alterações orgânicas da personalidade.
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Figura 1
Análise por curva ROC (recliver operating characterisâc).
Na avaliação ou condução clínica de um quadro de alteração do comportamento, um exame de imagem cerebral deve ser solicitado nas seguintes situações: • Primeiro episódio psicótico, independentemente da idade; • Transtornos afetivos de início tardio (após os 50 anos); • Transtornos mentais que se mostrem resistentes aos tratamentos habituais; • Presença de alucinações visuais ou sintomas catatomcos; • Indícios de alteração da personalidade (em adultos); • Pacientes que apresentem déficits neurológicos focais, flutuação intensa de sintomas, alterações do nível de consciência, crises epilépticas, ou história de trauma craniano recente; • Presença de comprometimento cognitivo ou suspeita de síndrome demencial; • Como parte da avaliação clínica para tratamento com eletroconvulsoterapia, etc. Exceto na investigação de síndromes cognitivas, para a maioria das situações descritas anteriormente a realização de um exame de imagem estrutural é suficiente, como, por exemplo, tomografia computadorizada ou, preferencialmente, ressonância magnética de crânio. As alterações observadas, se presentes, depen derão da patologia de base e de sua localização no encéfalo. Porém, é sempre importante solicitar pelo me nos sequências pesadas em T1 e T2/ FLAIR para exames de ressonância magnética de crânio. Há uma série de relatos na literatura sugerindo que a localização do insulto no cérebro pode estar mais frequentemente associada a algumas síndromes comportamentais específicas. Lesões acometendo o hemisfério direito estão associadas a síndromes maníacas e de desinibição do comportamento, enquanto lesões acometendo o lobo frontal esquerdo estão mais relacionadas a depres sões orgânicas5 • Além disso, agravos acometendo o córtex orbitofrontal comumente se associam a descontrole de impulsos e alterações orgânicas da personalidade. No entanto, o correlato topográfico nem sempre é tão claro, e lesões afetando regiões fronto-límbico-estriatais podem associar-se tanto às manifestações afetivas como à ocorrência de sintomas psicóticos 5. Na investigação de síndromes cognitivas, além daressonância magnética de crânio, a realização de algum exame para avaliação funcional do cérebro pode trazer informações relevantes para o diagnóstico, como veremos mais adiante. Nesse sentido, os exames mais utilizados são: mapeamento de glicose por tomogafia por emissão de pósitrons (PET) após injeção venosa de fluorodeoxiglicose marcada com flúor-18 (FDG-PET), mapeamento de fluxo sanguíneo cerebral por PET após injeção venosa de água marcada com oxigênio-15 (H2 150), ou por tomograA
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fia por emissão de fóton único (SPECT) por meio da injeção de aminas altamente lipofílicas marcadas com tecnécio-99m.
Potencial diagnóstico da neuroimagem nos transtornos neurodegenerativos Estudos de neuroimagem demonstraram que tanto o transtorno cognitivo leve (TCL) como a doença de Alzheimer (DA) estão associados a reduções de substância cinzenta que acometem estruturas mesiais temporais como hipocampo, amígdala, córtex entorinal e giro para-hipocampaF. Com a evolução da doença e na transição do TCL para a DA, parece haver atrofia progressiva das estruturas mesiais temporais - principalmente do hipocampo - além de espraiamento de alterações estruturais e funcionais para outras regiões cerebrais, principalmente para córtex temporoparietal e o precuneo6,7 • Além disso, a presença de atrofia em córtex associativo posterior e precuneo/cíngulo posterior parece estar associada a uma idade de início mais precoce e velocidade mais rápida de progressão da doença 2 • Diversos estudos têm verificado o potencial das medidas obtidas por meio de imagem cerebral de corroborar o diagnóstico clínico de demência ou aumentar a capacidade preditiva da evolução de TCL para DA. Nas últimas duas décadas, a FDG-PET tem sido utilizada para mensurar o metabolismo de glicose cerebral - que guarda relação com atividade neuronal - na DA. Diversos estudos demonstraram que reduções na captação de glicose cerebral ocorrem precocemente na DA, correlacionam-se com progressão de doença e predizem diagnóstico histopatológico8 • Um estudo prospectivo e comunitário conduzido na Austrália9 avaliou 102 indivíduos com suspeita de demência de início precoce com FDG-PET, obtendo uma amostra final de 49 pacientes com DA, 29 pacientes com outras demências, 11 pacientes deprimidos e 13 pacientes com outros diagnósticos clínicos. A inspeção visual das imagens de FDG-PET distinguiu os pacientes com DA do restante da amostra com 78% de sensibilidade e 81% de especificidade, atingindo 95% de especificidade na discriminação entre DA e outras demências9 • Em outro estudo, Lim et al. 10 demonstraram que a inspeção visual de imagens de FDG-PET parece corroborar na diferenciação de casos de DA daqueles de demência com corpos de Lewy com sensibilidade e especificidade de, respectivamente, 83 e 93%. Estudos empregando medidas individuais derivadas de análises voxel-a-voxel de imagens de FDG-PET para avaliar o desempenho desta técnica na diferenciação de DA de controles cognitivamente preservados encontraram valores de acurácia diagnóstica variando de 89 a 100% 11 14. Yakushev et al.l\ ao utilizarem a mesma abordagem com pacientes com TCL amnéstico, encontraram uma taxa de classificação global de até 92% na diferenciação
de indivíduos saudáveis. Esses dados sugerem que o uso de FDG-PET cerebral, mesmo que por meio de inspeção visual, possui grande potencial diagnóstico na confirmação de casos de DA e parece ter alta especificidade no diagnóstico diferencial com outros tipos de demência. No entanto, mais estudos ainda são necessários tanto para consolidar os dados discutidos anteriormente, como para avaliar o desempenho de FDG-PET na identificação precoce de DA, ou seja, casos de TCL que irão progredir para DA num futuro próximo. Outra abordagem promissora baseada em PET foi o desenvolvimento de ligantes seletivos para marcação de proteína ~-amilóide no cérebro, como o Pittsburgh Compound-B (PiB), que permite estimar a carga de depósito de emaranhados fibrilares no córtex in vivo 15• Estudos recentes revelaram que a retenção cortical global de PiB é maior em pacientes com DA em relação a voluntários cognitivamente preservados, sendo que indivíduos com TCL demonstram um padrão intermediário de captação de PiB 13, 15 . Além disso, trabalhos empregando análises voxel-a-voxel semiautomatizadas para se obter captação global cortical de PiB por PET demonstraram acurácia variando de 75 a 92% na distinção de indivíduos com DA de idosos saudáveis 13 ' 15 ' 16. Essa técnica parece ser útil, também, na seleção de candidatos a terapias antiamiloide com anticorpos monoclonais 17, bem como na monitoração desse novo tipo de tratamento para DA 18 . Ainda é incerto o potencial dessa técnica em distinguir indivíduos com TLC que irão evoluir para DA daqueles que não irão converter para tal demência. Ademais, apesar do uso de PET com múltiplos marcadores (p. ex., FDG e PiB) ser em teoria interessante, o custo e a toxicidade para o paciente dificultam sua viabilidade clínica. Estudos de RM estrutural com análise por ROI demonstraram que a volumetria manual ou semiautomatizada de estruturas mesiais temporais (hipocampo, amígdala, córtex entorinal e giro para-hipocampal) consegue discriminar pacientes com DA de controles saudáveis com uma acurácia de até 89% utilizando medidas isoladas (particularmente para o giro para-hipocampal e hipocampo), e de até 90% se medidas de diferentes estruturas forem combinadas 19,20 • Outros trabalhos utilizaram medidas cerebrais extraídas de análises por VBM e, aplicando uma análise por função discriminativa e curva ROC, obtiveram valores de sensibilidade, especificidade e acurácia total que variaram, respectivamente, de 74-85%, 80-92%, 83-92% e 83-96%, mesmo em estágios iniciais de DA2 • Testa et al. 19 demonstraram que combinando medidas de volumetria manual de hipocampo com aquelas derivadas de análises por VBM pode-se obter uma acurácia diagnóstica de até 99% na discriminação entre paciente com DA e voluntários saudáveis. Esses resultados demonstram que medidas cerebrais obtidas por meio da neuroimagem têm o potencial de corroborarem o diagnóstico de DA na prática clínica. Porém, métodos de mais fácil execução e,
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portanto, totalmente automatizados, são desejáveis para que sua utilização em rotinas clínicas seja factível. Além disso, técnicas que consigam diferenciar satisfatoriamente indivíduos com TCL que irão converter para DA daqueles que não irão seriam extremamente desejáveis como ferramentas de detecção precoce e seleção de pacientes candidatos a intervenção específica visando prevenção secundária. Como mencionado na introdução, nos últimos anos a aplicação de técnicas de reconhecimento de padrões morfológicos - há tempos utilizada pela engenharia - à área da neuroimagem vem demonstrando ser possível desenvolver métodos que permitam a classificação au tomatizada de pacientes psiquiátricos em nível individual baseando-se em exames de imagem cerebral. Diferentemente dos métodos por ROI e da morfometria baseada em voxel (VBM) tradicional (ver Capítulo 156), estes métodos, também conhecidos como classificação de padrões cerebrais complexos, ponderam relações não lineares entre as diferentes estruturas cerebrais e são multivariados, isto é, consideram os valores de densidade teci dual de cada um dos três principais compartimentos cerebrais (substância cinzenta, substância branca e espaço liquórico) para cada voxel no encéfalo na comparação entre grupos 1'4,2 1,22 • Assim, são capazes de detectar alterações morfoló gicas discretas, sendo adequados para a discriminação individualizada de exames de neuroimagem estrutural e funcionaF-4,21' 22 . Para tanto, baseiam-se em rotinas robustas de registro de imagens - semelhante a outros méto dos voxel-a-voxel - e em etapas de aprendizado computacional, nas quais o software primeiramente obtém um padrão de características morfológicas ou funcionais que melhor define os grupos em estudo e, em seguida, aplica essa "assinatura morfológica" individualmente e de forma cega para determinar o diagnóstico de cada indivíduo por meio de seu exame de imagem4,2 1,22 • Estudos recentes vêm demonstrando a validade e confiabilidade desses classificadores, assim como um bom desempenho diagnóstico desses métodos na avaliação de transtornos neurodegenerativos: • Acurácia de 90% na discriminação entre indivíduos com TCL e controles saudáveis, com sensibilidade e especificidade > 85%23 , podendo chegar a 100% quando combinando imagens de RM estrutural e H 2 150 - PET2 4; • Taxa de classificação de até 100%, com alta sensibilidade e especificidade na diferenciação entre pacientes tanto com DA como com demência frontotemporal de indivíduos cognitivamente preservados25,26; • Acurácia, sensibilidade e especificidade na discriminação de indivíduos com DA daqueles com demência frontotemporal de até, respectivamente, 89,2%, 83,3% e 94,7%25,26. O desempenho desses métodos quando aplicados na diferenciação de indivíduos com TCL que subsequente-
mente converteram para DA daqueles que permaneceram estáveis (15 meses de seguimento) revelou-se um pouco inferior àquele obtido nas situações clínicas descritas anteriormente: acurácia de 77%, com sensibilidade e especificidade ao redor de 70%27 . Porém, tem se tentado criar um índice a partir da "assinatura morfológica" obtida para pacientes com DA para predizer atrofia cerebral e declínio cognitivo futuros: quanto maior esse índice, mais próximo o indivíduo está da conversão para DA28 • Uma grande vantagem desses métodos é o fato de eles serem totalmente automatizados. Em resumo, tanto exames por FDG-PET como métodos utilizando RM estrutural demonstram grande potencial para confirmar suspeita diagnóstica de DA, bem como no diagnóstico diferencial de outras síndromes neurodegenerativas. No entanto, o número de estudos conduzidos até o momento e as populações envolvidas ainda são pequenos, de forma que estudos maiores, preferencialmente multicêntricos e com um grande número de pacientes com síndromes cognitivas diferentes - incluindo aquelas associadas a transtornos afetivos - seriam desejáveis para que recomendações de uso clínico fossem traçadas. Além disso, poucos estudos obtiveram uma caracterização prognóstica de indivíduos com TCL clinicamente satisfatória, a situação clínica que talvez mais se beneficiasse de uma ferramenta de auxílio diagnóstico. Por fim, a combinação de diferentes técnicas de neuroimagem em um mesmo paciente e também a combinação destas com outros biomarcadores de declínio cognitivo (concentração de amiloide ~42 e proteínas tau no liquor; genotipagem de apolipoproteína E, medidas neuropsicológicas, etc.) tendem a aumentar o poder diagnóstico. Porém, determinar qual estratégia apresenta o melhor equilíbrio entre desempenho diagnóstico, invasividade para o paciente, disponibilidade na rede e custo ainda depende de estudos futuros.
Discriminação diagnóstica nos transtornos psiquiátricos funcionais Nas últimas décadas, a aplicação de técnicas de neuroimagem em estudos de pesquisa permitiu a identificação, de forma bastante consistente, de anormalidades cerebrais em grupos de pacientes portadores de transtornos afetivos e psicóticos comparados a controles saudáveis. Diversos estudos utilizando ressonância magnética (RM) encontraram alterações cerebrais em indivíduos portadores de esquizofrenia, sendo que o achado estrutural mais replicado é o alargamento do sistema ventricular, principalmente ventrículos laterais e terceiro ventrículo, além de reduções volumétricas em regiões como córtex frontal, amígdala, cíngulo anterior, hipocampo e giro para-hipocampal, tálamo, córtex insular, e giro temporal superior29'30 . Algumas dessas anormalidades - principalmente alargamento de ventrículos e reduções de volume cerebral to-
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Figura 2
Classificador de padrões morfológicos complexos. (Veja imagem colorida no encarte.)
tal e hipocampo - já estão presentes em pacientes com primeiro episódio psicótico, mas tendem a ser mais extensas e pronunciadas em indivíduos com esquizofrenia crônica e de pior prognóstico (maior recorrência e hospitalizações, e pior resposta ao tratamento) 29,30. Já no campo dos transtornos do humor, alterações morfométricas em estruturas fronto -límbico-estriatais foram frequentemente descritas em pacientes com transtorno bipolar e depressão unipolar, incluindo reduções volumétricas de córtex pré-frontal, cíngulo anterior, tálamo, núcleo caudado e putâmen, amígdala, hipocampo e cerebelo31,32 . Porém, uma grande variabilidade de achados é observada entre os estudos, com baixa reprodutibilidade e muitos resultados negativos, principalmente nos trabalhos com transtorno bipolar e naqueles avaliando alterações morfométricas longitudinais em indivíduos psicóticos30. Além disso, essas alterações morfométricas observadas em pacientes com transtornos afetivos e psicóticos não são identificadas de forma confiável na inspeção visual de exames de RM, necessitando de métodos de análise sistematizada e auxiliados por computador para sua correta mensuração. A aplicação de classificação de padrões cerebrais complexos no estudo de transtornos psiquiátricos fun cionais vem demonstrando um bom desempenho diagnóstico desses métodos na discriminação entre indivíduos com esquizofrenia4 ou em risco para o desenvolvimento de psicose33 e controles saudáveis. Nestes estudos, os classificadores de padrões morfológicos complexos diferenciaram satisfatoriamente pacientes portadores de esquizofrenia de controles saudáveis com uma acurácia de até 91,8%4'34 . Além disso, Koutsouleris et al. 34 seguiram adultos jovens em estado mental de risco - caracterizado pela presença de sintomas psicóticos prodrômicos e sublimiares - por um período de 4 anos. Ao final, aplicaram a mesma técnica nas imagens de RM obtidas no início do acompanhamento (TO) e demons-
traram que o classificador obteve uma acurácia de 82% na discriminação entre pacientes que converteram para psicose (n = 15) e aqueles que não converteram (n = 18), com 83% de sensibilidade e 80% de especificidade 33 . Todos esses estudos utilizaram somente imagens T1 de RM 1,5T, amplamente disponíveis nos serviços médicos. Resultados preliminares de um estudo conduzido pelo Laboratório de Neuroimagem em Psiquiatria (LIM21) da FMUSP mostraram que o classificador de padrões morfológicos complexos obteve uma acurácia total de até 87% na discriminação de pacientes com primeiro episódio de mania psicótica (n = 20) e controles (n = 37), com sensibilidade de 81% e especificidade de 90% 35 (Figura 1). Para tanto, a assinatura morfológica - conjunto de características morfológicas que melhor define um grupo em estudo - utilizada pelo classificador englobava 11 áreas de alteração volumétrica, envolvendo tanto substância cinzenta como branca (Figura 2). Nem sempre é fácil diferenciar clinicamente se um primeiro episódio psicótico é afetivo (p. ex., mania psicótica) ou primário (p. ex., esquizofrenia). Dessa forma, há grande interesse em se testar quão bem esses classificadores distinguem diferentes transtornos psicóticos, já que essa informação pode ser útil na escolha do tratamento mais adequado.
Considerações finais Os resultados de estudos que utilizam exames de imagem cerebral tanto estruturais como funcionais demonstram que o desenvolvimento de ferramentas de auxílio diagnóstico e prognóstico em psiquiatria é factível em um futuro próximo. A inspeção visual de imagens FDG-PET fornece boa acurácia na confirmação de suspeita clínica de DA, mas o seu uso no diagnóstico diferencial de outras síndromes cognitivas ainda carece de mais estudos. Além disso, apesar de métodos automatizados (classificadores
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de padrões cerebrais complexos) e semiautomatizados (volumetria de hipocampo) também demonstrarem desempenho diagnóstico clinicamente satisfatório na diferenciação entre indivíduos com TCL ou DA e controles cognitivamente preservados, a melhor caracterização prognóstica dos casos de TCL - ou seja, quais progredirão para demência - ainda permanece um desafio. Por fim, os classificadores de padrões morfológicos complexos têm revelado uma capacidade diagnóstica clinicamente satisfatória quando aplicados em p acientes com esquizofrenia, transtorno bipolar e indivíduos em risco para o desenvolvimento de psicose, o que os torna com potencial interessante para aplicação clínica em psiquiatria.
Minicaso clínico Homem jovem de 24 anos começa a apresentar isolamento social e comportamentos estranhos após término de relacionamento, ocorrido há 3 meses. Seus pais buscam ajuda psiquiátrica e relatam que o paciente tem expressado ser vítima de um complô internacional que divulga fotos suas pela internet, desenvolveu rituais em que não pode tocar nas pessoas. recusa-se a sair de casa e fala sozinho em seu quarto, por vezes em voz alta. Família nega sintomas psiquiátricos prévios. Ao exame. nota-se discurso com delírios grandiosos e persecutórios. associação frouxa de ideias e alucinações auditivas em 3ª pessoa. Não se observam déficits neurológicos focais. Pergunta-se: a) Você pediria um exame de neuroimagem para este caso? Se sim, com qual objetivo? b) O que você esperaria encontrar no exame, caso você solicitasse algum? c) Quais patologias neurológicas poderiam evoluir com uma síndrome parecida?
Questões 1. Qual das seguintes situações não constitui uma indicação para a) b) c) d) e)
realização de imagem cerebral na prática clínica psiquiátrica: Primeiro episódio psicótico. Transtornos do humor com início após os 50 anos. Avaliação de síndrome demencial. Terror noturno. Alteração da personalidade em adultos.
2. Sobre os estudos de neuroimagem em transto rn os mentais conduzidos nas últimas décadas. assinale a alternativa correta: a) Hoje, os estudos de neuroimagem permitem elucidar completamente os mecanismos fisiopatológicos dos transtornos mentais e constituem importante ferramenta diagnóstica na prática clínica. b) Os estudos conduzidos na década de 1980 com tomografia computadorizada foram infrutíferos. e os resultados passaram a ser significativos apenas com o advento da ressonância magnética de crânio.
c) Estudos empregando técnicas de imagem estrutu ral e funcional na comparação entre pacientes com transtornos mentais e controles contribuíram para um melhor entendimento da fisiopatologia dessas condições. mas observa-se grande sobreposição de medidas biológicas entre pacientes e controles. apesar da média entre os grupos poder ser significativa. d) O uso de PET com múltiplos marcadores possui grande potencial para auxnio diagnóstico e está disponível para pronta aplicação clínica. e) Redução volumétrica de hipocampo é um achado específico para o diagnóstico de depressão unipolar. 3. Os classificadores de padrões cerebrais complexos podem ser aplicados a qual dos seguintes tipos de imagem cerebral: a) Ressonância magnética de crânio. b) Imagem por tensor de difusão (DTI). c) SPECT. d) PET. e) Todas as alternativas.
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Nosologia dos Fenótipos Prodrômicos, Pré-mórbidos e Endofenótipos Leo nardo F. Fontenelle
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 368 Pródromos, 368
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Transtornos psicóticos, 369 Transtorno bipolar, 369 Outros transtornos psiquiátricos, 370 Personalidade pré-mórbida. 370 Transtornos psicóticos, 370
1. Diferenciar pródromos, personalidade pré-mórbida e
endofenótipos. 2. Identificar estados prodrômicos, personalidade pré-mórbida e endofenótipos dos transtornos psiquiátricos mais comuns. 3. Diagnosticar e tratar estados mentais em risco.
Transtorno bipolar, 371 Outros transtornos psiquiátricos, 371 Endofenótipos, 371 Estados mentais em risco de psicose, 371 Os critérios de Melbourne, 373 Os critérios de Colônia, 373 Considerações finais, 374 Questões, 374 Referências bibliográficas, 374
Introdução Os limites diagnósticos entre os pródromos, as personalidades pré-mórbidas e os endofenótipos podem parecer tênues. De fato, todas essas condições envolvem características potencialmente identificáveis antes da instalação de um transtorno psiquiátrico. Além disso, a diferenciação entre os três construtos é complicada pelo fato de seus conceitos originais não excluírem claramente uns aos outros, como descrito adiante. O resultado dessa inconsistência é uma sobreposição entre as três condições. Por exemplo, traços de personalidade pré-mórbidos podem se confundir com estados prodrômicos (ao sofrerem agravamento agudo durante períodos de estresse1) ou mesmo com uma série de endofenótipos (p. ex., afetividade negativa2 ). Ainda assim, é possível listar algumas características que permitem diferenciar essas três condições. Do ponto de vista conceitual, o pródromo é um estado, a persa-
nalidade pré-mórbida é um traço e o endofenótipo é uma condição biológica duradoura (Figura 1). Clinicamente, a diferença mais óbvia entre essas condições é a proximidade do momento em que se instala o transtorno psiquiátrico (ou seja, maior nos quadros prodrômicos, intermediária na personalidade pré-mórbida e menor nos endofenótipos). Além disso, as implicações da caracterização dessas condições são diferentes. Por exemplo, enquanto a identificação dos estados prodrômicos e traços pré-mórbidos pode permitir o tratamento precoce e a prevenção da instalação de um novo transtorno psiquiátrico, o reconhecimento de endofenótipos pode contribuir mais diretamente para o entendimento da etiologia dos transtornos psiquiátricos, em particular, de sua rela- com o genotlpo. ' . çao
Pródromos A palavra pródromo vem do grego prodromos, que significa "o precursor de um evento" 3. No contexto dos transtornos psiquiátricos, especialmente das psicoses, o pródromo diz respeito aos sinais, sintomas e incapacidades que antecedem a instalação completa de uma determinada doença (ou seja, um período de distúrbios pré-mórbidos em que são observadas alterações nos pensamentos, experiências e comportamentos típicos de uma dada pessoa). Como mui-
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Endofenótipo
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LL.
Curso da doença Personalidade pré mórbida
: Pródromo
Doença instalada Tempo
Figura 1 Gráfico ilustrativo da relação entre personalidade pré- mórbida, pródromo e endofenótipo.
tos pacientes que apresentam quadros prodrômicos não evoluem para a instalação completa da doença, alguns autores preferem o termo estados mentais em risco ou pacientes em risco ultraelevado para psicose\ embora esse conceito inclua também outras características pessoais e familiares, examinadas adiante. A maior parte da literatura sobre os pródromos de transtornos psiquiátricos é originária da literatura sobre os transtornos psicóticos.
Transtornos psicóticos O fato de que os transtornos psicóticos, como a esquizofrenia, iniciam-se com uma fase prodrômica é conhecido desde as primeiras descrições psicopatológicas da doença, que incluíam relatos meramente retrospectivos. Em um estudo realizado com soldados alemães, Klaus Conrad (1905-1961) descreveu o estado mental que antecede o processo esquizofrênico como "tremá' ou humor delirante difuso, um fenômeno que teria como sintoma central a sensação ou percepção de que algo muito importante está prestes a se revelar5 • De acordo com Conrad, durante o "tremá: o ambiente assumiria características totalmente novas (isto é, aquilo que está na periferia da atenção, por trás ou fora do foco temático se torna, para opaciente, uma ameaça potencial, embora ainda pouco precisa). Os sintomas prodrômicos não são considerados francamente psicóticos com base em sua intensidade (ou seja, sintomas psicóticos atenuados [attenuated psychotic symptoms ou APS]), frequência e duração (sintomas psicóticos intermitentes, limitados e breves [brief intermíttent límíted psychotíc symptoms ou, simplesmente, BLIPS]). Como esses sintomas podem ser observados em pessoas normais, são considerados inespecíficos6 . A experiência clínica demonstra que muitos pacientes com essas queixas que buscam tratamento e vêm a desenvolver transtornos psicóticos apresentam também outros sintomas difusos, como humor deprimido, ansioso ou
irritado, insônia, perda da iniciativa ou do dríve, dificuldades de concentração, isolamento social, agressividade, abuso de substâncias e deterioração do funcionamento global4 . Estudos prospectivos, com critérios diagnósticos bem definidos, permitiram confirmar o papel desses sintomas prodrômicos como preditores do desenvolvimento subsequente de transtornos psicóticos e abriram uma porta para a intervenção precoce e prevenção da instalação dessas condições. A experiência de sintomas prodrômicos e a conversão para um estado psicótico estão associadas a modificações notáveis no funcionamento neuroendócrino e na estrutura e no funcionamento cerebrais4 • Em um estudo neurocognitivo, o comprometimento da memória de trabalho em uma amostra de pacientes em risco ultraelevado para psicose foi preditor da conversão subsequente para um transtorno psicótico7 • Outros estudos, comparando pacientes em risco ultraelevado para psicose que desenvolveram transtornos psicóticos vs. aqueles que não desenvolveram tais condições, encontraram, dentre os primeiros, níveis inferiores de cortisol, volumes reduzidos dos lobos temporais, aumento do volume da hipófise e menor volume da substância cinzenta em córtex frontal4 • Um interessante estudo, conduzido por Pantelis et al. 8, demonstrou que pacientes em risco ultraelevado para psicose que desenvolveram algum transtorno psicótico apresentaram uma retração da substância cinzenta em giro do cíngulo, giro para-hipocampal esquerdo, giro fu siforme esquerdo, córtex orbitofrontal esquerdo e córtex cerebelar esquerdo após um ano de seguimento, achados que não foram observados em pacientes em risco ultraelevado para psicose que não desenvolveram transtorno psicótico após o mesmo período.
Transtorno bipolar A existência dos sintomas anteriores ao início do transtorno bipolar é um achado consistente em estudos retrospectivos e prospectivos9 , embora até 50% desses pacientes não descrevam esse fenômeno 10 . De fato, uma diversidade de sintomas pode estar presente em muitos pacientes durante meses ou anos antes do diagnóstico definitivo do transtorno bipolar. Isso sugere que pode haver uma fase prodrômica relativamente prolongada nessa condição, ao contrário das crenças anteriores de que ela seria breve 11 • A fase prodrômica do transtorno bipolar inclui sintomas afetivos atenuados, como humor depressivo, "altos e baixos" e sintomas comuns a vários outros transtornos psiquiátricos, como irritabilidade, raiva e descontrole9. A natureza flutuante dos sintomas prodrômicos do transtorno bipolar é uma característica marcante que ajuda a diferenciá-los em relação aos pródromos dos transtornos psicóticos9 • Os sintomas prodrômicos do transtorno bipolar dividem-se naqueles que estão associados a uma elevada es-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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pecificidade e baixa sensibilidade (como sintomas depressivos, irritabilidade ou humor elevado com duração superior a 6 h/dia, viscosidade afetiva e alucinações auditivas) e elevada sensibilidade e baixa especificidade (como irritabilidade ou humor elevado com duração superior a 1 h/ dia e "altos e baixos"). A prescrição de estabilizadores do humor a pacientes que apresentam sintomas prodrômicos do transtorno bipolar associados a uma elevada especificidade e baixa sensibilidade é adequada. Por outro lado, intervenções psicológicas (incluindo psicoeducação e aconselhamento) parecem ser mais pertinentes diante da presença de sintomas prodrômicos associados a uma elevada sensibilidade e baixa especificidade. Com essa estratégia em mente, o clínico evita prescrever medicamentos associados a efeitos colaterais potenciais àqueles indivíduos que provavelmente não se beneficiariam de sua administração, mantendo auxílio aos pacientes que necessitam de tratamento.
Outros transtornos psiquiátricos Estudos retrospectivos em pacientes com uma série de outros transtornos psiquiátricos sugerem que essas condições estão associadas a sinais e sintomas prodrômicos, incluindo o transtorno depressivo maior 12, o transtorno do pânico 13 , o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) 14 e a bulimia nervosa15 . Boa parte dos estudos modernos sobre sinais e sintomas prodrômicos em transtornos não psicóticos e não bipolares foi conduzida pelo grupo de Giovanni Fava, no início da década de 1990, utilizando uma versão modificada da entrevista clínica para depressão de Paykel. Esse grupo estudou sintomas pro drômicos nos seis meses anteriores ao desenvolvimento do humor deprimido em quinze pacientes no primeiro episódio de depressão maior 12 • Nesse estudo, todos os pacientes descreveram ter apresentado pelo menos um sintoma prodrômico. Ansiedade generalizada esteve presente em treze casos e irritabilidade em nove. Outros sintomas comuns foram redução da iniciativa, fadiga, insônia inicial e tardia e dificuldades no trabalho. Em um outro estudo do mesmo grupo, a maior parte dos pacientes com transtorno do pânico e agorafobia descreveram a existência de evitação agorafóbica, ansiedade generalizada, medos e crenças hipocondríacas antes do primeiro ataque de pânico 13 • Esse interessante achado sugere que, ao contrário da crença vigente, a maior parte dos pacientes com transtorno do pânico não desenvolve seus sintomas ago rafóbicos como consequência, mas sim como causa do ataque de pânico. A identificação de sintomas prodrômicos pode ser complicada em doenças que se caracterizam por um início muito insidioso e precoce, como o TOC. Nesses casos, os pacientes podem ter bastante dificuldade em selembrar dos fenômenos anteriores ao início dos sintomas subclínicos da doença. Apesar disso, Fava et al. 14 observaram
que a grande maioria dos pacientes com TOC (93%) apresentou pelo menos um sintoma prodrômico não obsessivo-compulsivo. Em aproximadamente metade dos pacientes, foram descritas ansiedade generalizada, irritabilidade, indecisão, ansiedade fóbica e sintomas somáticos. Também foram comuns os sintomas depressivos, tais como fadiga, baixa autoestima, humor depressivo, pessimismo, culpa e problemas no desempenho no trabalho. Já a presença de sintomas obsessivo-compulsivos associados a história familiar de TOC foi associada ao desenvolvimento da do ença ao final de dois anos de seguimento 16. Finalmente, a exemplo dos demais transtornos psiquiátricos estudados por Fava et al., a maior parte dos pacientes com bulimia nervosa (27/30) descreveram a ocorrência de pelo menos um sintoma antes da instalação da doença. Anorexia, baixa autoestima, humor deprimido, anedonia, generalizada ansiedade e irritabilidade foram os sintomas prodrômicos mais comuns. Em resumo, os achados descritos enfatizam o caráter inespecífico de muitos sintomas prodrômicos em diferentes transtornos psiquiátricos, incluindo uma série de sintomas depressivos e ansiosos potencialmente presentes antes de diferentes condições.
Personalidade pré-mórbida Embora o termo personalidade seja amplamente utilizado em psiquiatria, pouca atenção tem sido dada à sua definição. A situação é diferente na psicologia. Ainda em 1937, o psicólogo Gordon Allport (1897-1967) já listava mais de 50 definições 17 • Desde então, diferentes conceitos de personalidade continuam a proliferar. No entanto, existe um consenso relativo sobre os dois elementos essenciais que constituem a personalidade, ou seja, uma configuração de características coerente e organizada que inclui uma maneira regular e consistente de pensar, perceber, sentir e agir 17. A relação entre personalidade e as doenças mentais é tópico de interesse da psiquiatria há muito tempo. Por exemplo, em seu segundo livro, Korperbau und Charakter, Ernst Kretschmer (1988-1964) sugeriu que a personalidade poderia preceder e fazer parte do substrato a partir do qual emergem as psicoses endógenas 18 • De fato, os transtornos de personalidade estão entre as comorbidades mais frequentes dos transtornos psiquiátricos, o que levou revisores da edição atual do DSM a propor que o DSM-V deve classificar alguns transtornos de personalidade junto a condições descritas no chamado eixo P 9 •
Transtornos psicóticos O transtorno de personalidade esquizotípico, quando acompanhado de comprometimento no funcionamento recente e importante, é parte do critério PACE "traço e estado" para pacientes em risco ultraelevado4 • Em estudo transversaF0 realizado em pacientes psicóticos jovens, fo -
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ram encontradas correlações significativas entre traços de personalidade pré-mórbidos esquizotípicos, esquizoides e antissociais (sociopáticos) e a dimensão positiva, negativa e desorganizada da esquizofrenia, respectivamente. Mais recentemente, em um estudo de seguimento, um diagnóstico de transtorno de personalidade esquizotípico na linhabase, de acordo com o International Personality Disorder Examination, foi capaz de prever o início de um quadro psicótico após um a dois anos 21 . Em particular, crenças estranhas e pensamentos mágicos na linha de base foram os preditores de psicose mais significativos no seguimento.
Quadro I
Critérios para caracterização de um endofenótipo
1. Está associado com a doença na população em geral. 2. É hereditário. 3. É estado- independente (manifesta-se em um indivíduo com ou sem a doença ativa). 4. Cossegrega-se com a doença em famílias. 5. É encontrado em membros da família afetados e em membros da família não afetados em uma taxa maior do que na população geral.
Estudos com filhos de pacientes com transtornos de ansiedade 24 demonstraram que transtornos diagnosticados na infância (em particular a ansiedade de separação e transtorno de ansiedade generalizada) estão associados com a presença de transtornos de ansiedade em adultos, que o quadro chamado por Kagan de inibição comportamental é um preditor da instalação de fobia social em adultos, que níveis elevados de sensibilidade à ansiedade estão associados com o desenvolvimento posterior de transtorno de pânico, e que a chamada afetividade negativa prevê um amplo espectro de psicopatologia, incluindo transtornos de ansiedade.
po25 . Um endofenótipo pode ser neurofisiológico, bioquímico, neuroendócrino, neuroanatômico, cognitivo ou neuropsicológico. Em comparação com as doenças clássicas (que são um produto de uma interação entre ambiente e genótipo), os chamados endofenótipos representam uma consequência direta do genótipo25 . Por isso, carregam consigo o potencial de resultar em análises genéticas mais simples e bem -sucedidas, ajudando de maneira significativa no estudo da etiologia dos transtornos mentais. No entanto, para serem úteis em estudos genéticos, os endofenótipos para transtornos psiquiátricos devem atender a determinados critérios, incluindo o fato de serem estáveis e independentes da fase da doença (Quadro I). Na Tabela I, é listada uma série de endofenótipos associados a diferentes transtornos psiquiátricos. Como se pode notar, um mesmo endofenótipo pode estar associado a diferentes diagnósticos, o que provavelmente reflete o envolvimento dos mesmos genes em indivíduos expostos a diferentes ambientes. O conceito de endofenótipo não está livre de críticas. Estudos recentes, que incluíram avaliações neuropsicológicas e neuroanatômicas de pacientes antes e após o desenvolvimento de transtornos psicóticos, indicam que muitas das alterações descritas como endofenótipos são inicialmente ausentes ou leves e não são claramente identificáveis até o surgimento ou após os primeiros anos da doença32. Com base nesses estudos, alguns autores sugerem que o conceito clássico de endofenótipo não pode ser utilizado em pacientes com esquizofrenia e outros transtornos psiquiátricos que se desenvolvem durante a adolescência (como o TOC, a síndrome de Tourette e o transtorno do déficit de atenção, dentre outros). Para esses autores, é necessário considerar que muitos endofenótipos representam anormalidades na maturação cerebral e que genes relacionados com essas doenças podem se expressar somente após a finalização de todo esse processo.
Endofenótipos
Estados mentais em risco de psicose
Endofenótipos ou fenótipos intermediários são características duradouras, mensuráveis, invisíveis a olho nu e que se situam no meio do caminho entre um fenótipo (p. ex., doença neuropsiquiátrica complexa) e um genóti-
Como os sintomas prodrômicos descritos acima são inespecíficos, tentativas de se caracterizar pacientes em risco para o desenvolvimento de um dado transtorno mental com base exclusivamente na presença desses sin-
Tran storno bipolar Em um estudo de seguimento de pacientes com diferentes transtornos de personalidade, pacientes com transtorno de personalidade borderline foram significativamente mais propensos a apresentar comorbidades com transtorno bipolar I ou II do que pacientes com outros transtornos de personalidade e mais propensos a apresentar o início de novos episódios de transtorno bipolar I ou Il 22 . Em um revisão de prontuários de mais de 1.000 pacientes atendidos em quadros depressivos, Akiskal23 notou que uma série de características de temperamento e personalidade seriam preditivas de um diagnóstico de transtorno bipolar II, incluindo poliglotismo, eminência, realização criativa, instabilidade profissional, abuso de múltiplas substâncias psicoativas e de álcool, comorbidades múltiplas (de eixo I e eixo II), vários casamentos, excessos sexuais (incluindo "breves intervalos de homossexualidade"), impulsividade, além de ornamentação excessiva e exuberância do vestir (com o uso de vermelho e outras cores fortes dominantes).
Outros tran stornos psiquiátricos
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela I
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Endofenótipos potenciais em uma série de transtornos psiquiátricos
Esquizofrenia26
Transtorno depressivo maior27
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Transtorno bipolar
Transtorno obsessivo-compulsivo 29
Transtornos alimentares 30·31
Volume ventricular
Humor deprimido (viés de humor em direção a emoções negativas)
Déficits de atenção
Comprometimento da inibição de resposta
Comprometimento da mudança do cenário
Volume do planum temporale
Anedonia (Comprometimento do sistema de recompensa)
Déficits de aprendizagem verbal e memória
Comprometimento da mudança de cenário extradimensional
Estratégias ' ' ' organ1zac1ona1s disfuncionais
Volume do giro temporal supenor
Comprometimento da aprendizagem e da memória
Déficits cognitivos após a depleção de triptofano
Estratégias organizacionais disfuncionais
Comprometimento do aprendizado e condicionamento
Ativação durante uma tarefa cognitiva (2-back task)
Variação diurna dos sintomas
Instabilidade do ritmo circadiano
Comprometimento do planejamento
Comprometimento em testes de teoria da mente
Inibição pré-pulso
Velocidade de resposta
Desequilíbrio do sistema de motivação e recompensa
Redução da substância cinzenta no córtex orbitofrontal ou frontal inferior
Respostas autonômicas atípicas
P50
Alterações psicomotoras
Redução do volume do cíngulo anterior
Aumento da substância cinzenta no córtex parietooccipital
Redução do potencial de ligação da paroxetina às plaquetas
P300
Aumento da sensibilidade ao estresse
Anormalidades na substância branca
Redução da integridade da substância branca parietal direita
N400
Alterações do sono REM
Sensibilidade à privação do sono
Aumento da integridade da substância branca frontal mediai direita
Movimentos oculares de perseguição
Aumento da atividade amigdalina
Sensibilidade a psicoestimulantes
Ativação reduzida do córtex orbitofrontal durante aprendizado inverso
Movimentos sacádicos dos olhos
Diminuição da atividade no cíngulo subgenual
Sensibilidade a drogas colinérgicas
Ativação reduzida do córtex parietal posterior durante aprendizado inverso
Dominância
Redução do volume do cíngulo anterior
Alterações neuromotoras
Redução do volume do hipocampo
Desempenho no teste de seleção de cartas de Wisconsin
Redução do potencial de ligação dos receptores 5-HTlA
Desempenho na tarefa de desempenho contínuo
Resposta emocional à depleção de triptofano
Resposta visoespacial tardia
Resposta emocional à depleção de catecolaminas
Reação cutânea à niacina
Teste de supressão da dexametasona e de estimulação do hormônio liberador da corticotrofina
Dismorfias físicas
Disfunção do hormônio liberador da corticotrofina
30 NOSOLOGIA DOS FENÓTIPOS PRODRÔMICOS, PRÉ-MÓRBIDOS E ENDOFENÓTIPOS
tomas levariam a taxas de falsos-positivos inaceitavelmente altas. Por isso, pesquisadores lançaram mão de diferentes critérios, combinando sintomas prodrômicos com personalidade pré-mórbida e história familiar, dentre outras características, na tentativa de melhor caracterizar indivíduos com estados mentais em risco. Dados terapêuticos promissores sugerem que é possível evitar a conversão desses indivíduos para psicose. Até o momento, no entanto, tentativas consagradas de se operacionalizar os estados mentais em risco incluíram somente os pacientes em risco de desenvolver transtornos psicóticos.
Os critérios de Melbourne A Personal Assessement and Crisis Evaluation (PACE) Clinic, de Melbourne, Austrália, utilizou uma estratégia "estrità' (closed-in) para identificação de indivíduos sob risco aumentado de desenvolver psicose. Esses critérios incluem a combinação de múltiplos fatores de risco, incluindo idade, busca por tratamento, e pelo menos um dos seguintes fenômenos: sintomas psicóticos atenuados; sintomas psicóticos intermitentes, limitados e breves; e história familiar de primeiro grau de um transtorno psicótico ou transtorno de personalidade esquizotípico com declínio no funcionamento no ano anterior. O resultado desses critérios rígidos é a criação de uma coorte "enriquecidà' que, mesmo tratada com diferentes estratégias (como aconselhamento e antidepressivos), apresenta uma taxa de conversão para psicose de 35% ao final de doze meses 4 • Os indivíduos com esse estado mental foram denominados pacientes em risco ultraelevado 4 ou pacientes com síndrome de risco para psicose3 • Em um estudo controlado, a eficácia de um pacote de tratamento que incluía terapia cognitivo-comportamental intensiva e doses baixas de risperidona foi comparada à eficácia de terapia de apoio isoladamente na taxa de conversão para psicose em um grupo de pacientes que preencheu os critérios PACE para risco ultraelevado de psicose33 • Uma taxa significativamente menor de conversão para psicose foi observada no primeiro grupo em relação ao último ao final de seis meses. Essa diferença não foi estatisticamente significativa após doze meses de seguimento. Esses achados sugerem que ocorreu um adiamento da conversão para psicose no grupo que foi tratado com terapia cognitivo-comportamental e risperidona. Como o tratamento psicológico foi associado ao tratamento farmacológico, esse estudo não permitiu determinar qual estratégia foi responsável pelo efeito terapêutico final ou se elas foram sinergísticas.
Os critérios de Colônia Autores alemães descreveram os sinais e sintomas prodrômicos como "sintomas básicos" e buscaram enfatizar dois pressupostos: que esses sintomas fornecem o ter-
ritório psicopatológico no qual os sintomas schneiderianos de primeira ordem irão se desenvolver e que refletem o processo neuropatológico em curso de forma mais fidedigna do que os sintomas positivos34 • Esses sintomas "básicos" incluem interferências, perseverações, pressões ou bloqueios do pensamento, prejuízo na linguagem receptiva, capacidade reduzida de discriminar entre ideias e percepções e fantasias ou memórias verdadeiras, ideias de referência, desrealização e distúrbios perceptivos visuais ou auditivos. Com base nesses sintomas, um grupo alemão (Früh-Erkennungs und Therapie-Zentrum für Psychische Krisen [FETZ]) propôs uma classificação do pródromo em estados prodrômicos iniciais (EPI) e tardios (EPT). Os critérios para EPI (um sintoma prodrômico e/ou o critério PACE "traço e estado" e ausência de sintomas psicóticos atenuados ou transitórios) visam identificar um grupo de pacientes que se encontra sob um risco incipiente mas não iminente ou imediato para psicose. Esse estado seria tratável com uma abordagem meramente
Tabela 11
Critérios PACE para indivíduos em risco ultraelevado para
pSICOSeS
1. idade entre 14 e 30 anos; 2. necessidade de tratamento; e 3. pelo menos um dos seguintes grupos Grupo 1: sintomas psicóticos positivos atenuados
• Presença de pelo menos um dos seguintes sintomas: ideias de referência, crenças estranhas ou pensamento mágico, distúrbios de percepção, ideação paranoide, ou pensamento. comportamento, discurso e aparência estranhos • Frequência de sintomas: pelo menos várias vezes por semana • Recência de sintomas: presentes no último ano • Duração dos sintomas: apresentam pelo menos uma semana e não mais de cinco anos
Grupo 2: sintomas psicóticos intermitentes, limitados e breves
• Presença de pelo menos um dos seguintes sintomas: ideias de referência, crenças estranhas ou pensamento mágico, distúrbios da percepção, ideação paranoide ou pensamento. comportamento, discurso e aparência estranhos • Duração do episódio: menos de 1 semana • Frequência de sintomas: pelo menos várias vezes por semana • Os sintomas desaparecem espontaneamente • Recência de sintomas: deve ter ocorrido no último ano
Grupo 3: fatores de risco "traço e estado"
• Transtorno esquizotípico de personalidade do indivíduo identificado, ou um parente de primeiro grau com um transtorno psicótico • Queda significativa no estado mental ou funcional, mantida por pelo menos 1 mês e não mais de 5 anos • Esse declínio no funcionamento deve ter ocorrido no ano passado
Adaptada de Yung et ai., 2009 4 •
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cognitivo-comportamental, cuja eficácia (isto é, redução da taxa de conversão para um transtorno psicótico ou para EPT ao final de doze meses) foi comprovada em um estudo controlado com uma terapia de apoio 35 • Já os critérios para EPT são baseados nos critérios PACE "sintomas psicóticos atenuados" e "sintomas psicóticos intermitentes breves" e buscam identificar um grupo de pacientes sob um risco imediato de desenvolver psicose. Esse estado seria tratável por meio de antipsicóticos, cuja eficácia foi comprovada em um estudo comparativo entre uma intervenção de crise mais amilsulpirida vs. intervenção de crise isoladamente36.
2. O quadro em crianças que demonstrou ser preditivo do desena) b) c) d) e)
volvimento de fobia social em adultos é chamado de: Inibição comportamental. Sensibilidade à ansiedade. Afetividade negativa. Ciclotimia. Esquizotimia.
3. Segundo os critérios de Melbourne. a taxa de conversão para psicose de pacientes com estado mental em risco é de: a) 100%. b) 75%. c) 500/o.
Considerações finais As potenciais implicações de uma boa caracterização dos estados prodrômicos são muitas. Por exemplo, a identificação de tais estados prospectivamente e o oferecimento de tratamento precocemente pode evitar, minimizar ou adiar a instalação completa da doença e a incapacidade que resulta de seu desenvolvimento. Obviamente, questões éticas importantes podem surgir a partir desse tipo de abordagem. Pacientes "falsos-positivos" (isto é, indivíduos que, apesar de apresentarem sinais e sintomas prodrômicos, nunca evoluiriam para uma instalação completa de um transtorno psicótico) poderiam, em tese, sofrer com o estigma de ser um "psicótico" em potencial e receber tratamento inadequado, associado a diferentes efeitos colaterais4 • Por outro lado, indivíduos verdadeiramente em risco elevado para psicose podem não desenvolver um transtorno psicótico por modificações espontâneas ou inadvertidas do ambiente, que podem incluir, por exemplo, redução do estresse ou interrupção de uma droga de abuso ("falsos falsos-positivos"). No entanto, acredita-se que o fato de os critérios para estados em risco incluírem a busca espontânea por tratamento minimizam os dilemas éticos associados ao tratamento desses pacientes. De qualquer forma, os pródromos, a personalidade pré-mórbida e os endofenótipos são conceitos que devem continuar a ser investigados, não apenas nas psicoses, mas também em outros transtornos psiquiátricos.
Questões 1. O conceito clássico de endofenótipo inclui: a) Características geneticamente determinadas que desaparecem durante o período prodrôm ico. b) Características determinadas pelo ambiente e restritas ao período pré-mórbido. c) Características geneticamente determinadas e restritas ao período prodrômico. d) Características determinadas pelo ambiente que desaparecem após a instalação da doença. e) Características geneticamente determinadas e estado-independentes.
d) 35%. e) 10%.
4. Segundo os critérios de Melbourne. os estados prodrômicos ajua) b) c) d)
e)
dam a identificar pacientes em risco ultraelevado para psicose: Quando observados em indivíduos jovens. Quando observados em indivíduos idosos que buscam tratamento. Quando observados em indivíduos jovens que buscam tratamento com transtorno de personalidade borderline. Quando observados em indivíduos idosos que buscam tratamento. com transtorno de personal idade esquizotípico e história familiar de transtorno psicótico. Quando observados em indivíduos jovens que buscam tratamento. com transtorno de personalidade esquizotípico ou história familiar de transtorno psicótico e queda do funcionamento global recente.
5. Segundo os critérios de Colôn ia. os estados prodrômicos iniciais de transtornos psicóticos devem ser manejados com: a) Antipsicóticos. b) Terapia cognitivo-comportamental. c) Terapia cognitivo-comportamental e antipsicóticos. d) Antidepressivos. e) Terapia cognitivo-comportamental e antidepressivos.
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30 NOSOLOGIA DOS FENÓTIPOS PRODRÔMICOS, PRÉ-MÓRBIDOS E ENDOFENÓTIPOS
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375
Avaliação da Personalidade
Antonio de Pádua Serafim
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 376 Alterações da personalidade, 378 Estudo do temperamento e do caráter, 379
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Estudo dos modelos fatoriais, 380 Neuroticismo, 380 Cinco grandes fatores, 381 Exame da personalidade: avaliação e diagnóstico, 381 Processo da avaliação da personalidade, 382 Entrevista clínica, 383 Instrumentos para avaliação da personalidade, 383 Entrevista clínica estruturada para DSM-IV-SCID, 383
1. Compreender os mecanismos constitucionais da personalidade. 2. Conhecer o modelo psicobiológico. 3. Conhecer o modelo dos cinco grandes fatores. 4. Identificar os critérios para avaliação da personalidade. 5. Conhecer as técnicas de entrevistas para avaliação da personalidade: entrevista clínica e entrevista estruturada. 6. Conhecer os instrumentos psicológicos para avaliação da personalidade: testes projetivos e instrumentos psicométricos.
Inventário de temperamento e caráter, 384 Instrumentos psicológicos de avaliação da personalidade, 384 Testes projetivos, 384 Instrumentos psicométricos, 388 Considerações finais, 390 Questões, 390 Referências bibliográficas, 390
Introdução A ação humana deriva um complexo biológico, psicológico e social. A expressão da atitude humana implica numa interação com o meio, norteada por aprovações, reprovações, aceitação do outro e da sociedade. Esse conjunto de ações e atitudes irá definir o padrão de comportamento e da relação do indivíduo com o meio. A fundamentação dessa interação é produto da personalidade de cada um. O termo "personalidade" se configura por conceitos complexos, diversidade de definições e explicações distintas. Para Kurt Schneider 1, compreende os sentimentos e tendências não corpóreas e a vontade. Para a Classificação Internacional de Doenças2, a personalidade compreende a expressão característica da maneira de viver do
indivíduo e de seu modo de estabelecer relações consigo próprio e com os outros. Já para o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV) 3 , são padrões persistentes no modo de perceber, relacionar-se e pensar sobre o ambiente e sobre si mesmo, exibido em uma ampla faixa de contextos sociais e pessoais. Segundo Kaplan e Sadok\ a personalidade se apresenta como uma totalidade relativamente estável e previsível de traços emocionais e comportamentais que caracterizam a pessoa na sua vida cotidiana, sob condições normais. Os traços são padrões persistentes no modo de perceber, relacionar e pensar sobre o ambiente e sobre si mesmo, exibido em uma ampla faixa de contextos sociais e pessoais. Ainda segundo Kaplan, a organização dinâmica dos traços é formada a partir de genes herdados, existências singulares e percepções individuais. Essa organização torna cada indivíduo único em sua maneira de ser e de desempenhar seu papel social. O traço se traduz no modo de perceber, relacionar-se e pensar sobre o ambiente. Entretanto, quando esses traços se apresentam inflexíveis e mal adaptativos, causando prejuízo funcional ou sofrimento subjetivo, a pessoa com estas características apresentaria forte tendência para um transtorno.
31 AVALIAÇÃO DA PERSONALIDADE
Já Susan Cloninger5 define que a personalidade constitui a matriz que produz ação, define condições e modalidade para a ação. Constitui-se também de causas subjacentes do comportamento e da experiência individual. Seu processo de investigação engloba as diferenças individuais (questões descritivas), a adaptação, o ajustamento, os processos cognitivos e a sociedade (questões desenvolvimentais). Myra Y. Lopes6 traduz a personalidade como "a síntese funcional do organismo humano, a pessoa é uma, inteira, indivisa e como tal deve ser compreendida'~ Já Pichof define que personalidade é a integração dinâmica dos aspectos cognitivos (intelectuais), conativos (pulsionais e da vontade), afetivos e uma composição dos aspectos fisiológicos e morfológicos da pessoa. A personalidade pode ser entendida como resultado do processo dinâmico e contínuo de conciliar características individuais, ao ambiente, determinando a qualidade de interação do sujeito com o seu meio. Essas características individuais estão presentes desde a infância e a adolescência, e, em sua maioria, permanecem imutáveis ao longo da vida. Constituída de um caráter, pautado nos aspectos cognitivos e um temperamento adicio nado dos fatores afetivos-conativos8 . Nesse contexto, considerando a complexidade dos componentes da personalidade, ao estudarmos os indivíduos encontraremos alguns que compartilham algumas características, no entanto o conjunto de traços que consolidam a personalidade é ímpar, como descreveram Kluckhohn e Murray9 •
Essa abrangência se justifica uma vez que, ao estudioso da personalidade interessa-lhe tanto a pessoa como um todo, como as características individuais que os torna diferentes entre si. Como ressaltou Pervin e John 10, estudar a personalidade não restringe o pesquisador a identificar apenas os aspectos e processos psicológicos de forma descritiva, mas e também, compreender como esses aspectos e processo interagem no mundo psíquico do indivíduo para formar um todo. Frente ao exposto, ressalta-se a necessidade do conhecimento prévio quanto a alguns pressupostos teóricos no tocante às áreas que compreendem o estudo da personalidade, ou seja, a estrutura, os processos da personalidade (ou dinâmica), crescimento e desenvolvimento e psicopatologia e modificação comportamentaP0 • A Tabela I explica de forma objetiva cada um desses tópicos. A síntese do quadro acima nos direciona no sentido de que o que fundamenta o estudo da personalidade é a maneira como a pessoa processa a informação, a analisa e a interpreta e qual o desfecho dessa análise e interpretação, ou seja, a resposta ou comportamento. O processo de avaliação da personalidade surge em decorrência do entendimento de que essa "personalidade'' pode sofrer alterações e essa premissa já vem desde o tempo de Hipócrates com as descrições dos transtornos mentais. Durante as duas últimas décadas, instrumentos destinados a avaliar os transtornos, traços não adaptativos e
Tabela I
Todo homem é, sob certos aspectos, como todos os outros homens, como certos homens, como nenhum outro homem.
Visto isso, depreende-se então que investigar a personalidade é antes de tudo considerar as diferenças individuais. A personalidade em sua essência se constitui de: • um conjunto de propriedades morfológicas e bioquímicas transmitidas ao indivíduo pela herança genética; • um temperamento resultante direto do funcionamento da constituição que modula as respostas primitivas frente aos estímulos ambientais; • um caráter formado por reações adquiridas ao longo das vivências do indivíduo ante as diferentes classes de estímulos e situações. Esse fator expressa a maneira peculiar e habitual de cada pessoa ao atuar e proceder no meio social. Como pode ser visto, a temática personalidade no campo seja da psiquiatria, seja da psicologia, se reveste de uma extensa complexidade que abrange desde as ques tões conceituais, passando pelas teorias e por fim chegando à avaliação da suas possíveis alterações.
Áreas de estudo da personalidade
Áreas
O que investigar
Estrutura
Os aspectos mais estáveis e duradouros da personalidade, tais como os "traços e os tipos". Traços: padrão de respostas do indivíduo a uma série de situações, características específicas da personalidade. Tipos: configura-se como um conjunto de traços que vai caracterizar o padrão de funcionamento da pessoa
Processo (ou dinâmica da personalidade)
A maneira como a pessoa interage com as outras pessoas e com o meio decorrente do conjunto de traços
Crescimento e desenvolvimento
Ênfase na investigação dos: fatores genéticos e biológicos fatores psicológicos - a história pessoal do indivíduo, experiências de vida etc. fatores ambientais - cultura, classe social, família, contato com coetâneos etc.
Psicopatologia e modificação com portamental
Ênfase na investigação dos transtornos da personalidade (TEP), bem como na investigação das modificações do comportamento de indivíduos que apresentam alguns traços acentuadamente desviantes, porém, não preenchem critérios para um TEP.
377
378
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
as dimensões da personalidade proliferaram8 • De acordo com Blashfield e Intoccia 11 , Patrick, Curtin e Tellegen 12, Farmer e Chapman 13 importantes movimentos foram imprescindíveis para essa proliferação. Um deles deve-se à organização dos transtornos da personalidade com um eixo específico na descrição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM- III) e, a partirdesse momento, cresce tanto o interesse clínico como o da pesquisa em transtornos de personalidade e, consequentemente, a necessidade de instrumentos de avaliação aumentou como resultado 14 . Além disso, na área da psicologia, os campos da personalidade e psicopatologia por décadas se desenvolveram por caminhos distintos, mas nos últimos anos sua estreita interdependência se tornou foco de muita pesquisa. Investigadores da personalidade e da psicopatologia começaram a reconhecer que o conhecimento acumulado sobre o funcionamento normal da personalidade produziria medidas eficazes que poderiam servir de parâmetros no domínio da psicopatologia, permitindo assim estabelecer critérios para classificação entre a personalidade normal e a anormaF 5 - 17 • Para Davison e Neale 18 essa crescente de pesquisas sobre a personalidade proporcionou dois importantes aspectos. O primeiro referente à publicação de critérios específicos de diagnóstico e o segundo, pelo desenvolvi mento de entrevistas estruturadas, desenvolvidas especificamente para avaliar os transtornos da personalidade.
Alterações da personalidade O funcionamento adequado dos fatores da personalidade permite ao indivíduo uma capacidade de adaptação e ajustamento social adequados. Entretanto, vários fatores etiológicos podem desencadear perturbações importantes de adaptação, ocasionando um transtorno de personalidade 19-22 • Essa inadequação de adaptação social pela ótica da nosologia vai caracterizar os transtornos específicos da personalidade (TEP)23 • A Organização Mundial da Saúde (OMS) 2 estabelece que o TEP é uma perturbação grave da constituição caracterológica e das tendências comportamentais do indivíduo, usualmente envolvendo várias áreas da personalidade e sempre associado a uma considerável ruptura pessoal e social. O TEP abrange padrões de comportamento profundamente arraigados e permanentes, manifestando-se como respostas inflexíveis a uma ampla série de situações pessoais e sociais. Eles representam desvios extremos ou significativos do modo como o indivíduo médio, em uma dada cultura, percebe, pensa, sente e, particularmente, se relaciona com os outros. Tais padrões de comportamento tendem a ser estáveis e a abranger múltiplos domínios
de comportamento e funcionamento psicológico. Eles estão frequentemente, mas não sempre, associados a graus variados de angústia subjetiva e a problemas sociais.
Karl Jaspers 24 abordou o fato de que as personalidades anormais representam variações não normais da natureza humana, que apresentam alterações perenes docaráter, caracterizando não a maneira de estar no mundo, mas, sobretudo a maneira de a pessoa ser. Um TEP tende a aparecer no final da infância e ou na adolescência e se estende à vida adulta. Todavia, seu diagnóstico é apropriado a partir dos 18 anos. MeehF5 alerta que a observação de três fatores é imprescindível para se chegar ao diagnóstico de um transtorno específico da personalidade: 1) O uso do comportamento é constante. Isto é, o padrão de funcionamento do indivíduo com TEP no geral é idêntico para todas as situações. 2) O nível do comportamento é mais extremo. As características comportamentais são mais arraigadas e rígidas (funciona com organização excessiva). 3) Os comportamentos resultam em problemas sérios e prolongados no tocante ao fator adaptação. Um aspecto de destaque em sujeitos com TEP é que eles apresentam maior vulnerabilidade a manifestarem outras perturbações psiquiátricas como depressão, ansiedade, quadros delirantes, como também a se envolverem em condutas delituosas. A falta de regulação dos impulsos, modulação afetiva e controle da ansiedade são as principais causas26 • a Outro importante aspecto no estudo contemporâneo dos TEP é o seu enquadre em quatro domínios psicobiológicos a serem investigados (Figura 1). Parte das alterações no funcionamento da personalidade está relacionada à modulação afetiva. Sendo assim, a emoção se configura como o modulador do desenvol-
Domínios psicobiológicos nos TEP
Regulação dos impulsos
Organização cognitiva
Modulação afetiva
Controle da ansiedade
Desadaptação social
O diagrama expressa o encadeamento dos domínios psicobiológicos que podem culminar tanto para um TEP quanto para um inadequado funcionamento da personalidade, aspectos estes que justificam uma avaliação da personalidade. Figura 1
31 AVALIAÇÃO DA PERSONALIDADE
vimento da interação social, visto que a junção de mecanismos biológicos e cognitivos propicia, principalmente aos seres humanos, a capacidade de analisar, planejar e executar um padrão de ação diante dos estímulos agradáveis ou desagradáveis, bem como na organização dos mecanismos de controle dos impulsos. Essa organização afetiva por vezes se apresenta acentuadamente disfuncional em pessoas que apresentam transtornos ou desvios da personalidade, visto que a experiência emocional que compreende uma vivência cognitiva e afetiva frente a uma situação, o comportamento emocional que se refere ao padrão de ações do indivíduo e as alterações fisiológicas relacionadas à ativação do sistema nervoso autônomo, também são vivenciadas de forma alterada por constantes distorções na interpretação dos fatos, modificando o processo da resposta emocional27, a saber: • Intensidade do sentimento: - o indivíduo com um funcionamento inadequado de sua personalidade, em relação à raiva, por exemplo, poderá variar de uma leve irritação a uma fúria violenta. • Nível de tensão: - refere-se ao grau de tensão despertado no indivíduo diante da situação geradora de resposta emocional, isto é, o impulso para a ação; - nesse caso uma pessoa pode sentir-se obrigada a responder a uma situação ameaçadora com enfrentamento ou fuga. O que vai caracterizar essa resposta é o grau de excitação, fundamentado nas experiências anteriores e nas interpretações (memória, pensamento) de cada indivíduo. • Caráter hedonista: - as expenenc1as emoc10na1s vanam quanto as sensações de prazer ou desprazer, interpretadas dentro do espectro de adequação; - a mesma resposta emocional em diferentes contextos pode ser interpretada como socialmente adequada ou não, nos caso dos transtornos de personalidade haverá sempre a tendência de entender que sua ação foi correta, sendo o outro responsabilizado por essa ação. • A
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Além da modulação afetiva, dois outros seguimentos para a avaliação da personalidade são considerados, o estudo do modelo psicobiológico que engloba o temperamento e o caráter e os modelos fatoriais baseados nas teorias dos traços.
Estudo do temperamento e do caráter Os estudos dos fatores temperamento e caráter, indubitavelmente reportam aos modelos de investigação da organização da personalidade fundamentados nos aspectos psicológicos e biológicos. Dentro dessa conceituação, Cloninger28 estruturou o modelo psicobiológico de investigação da personalidade.
Esse modelo se baseia na divisão clássica da personalidade em dois componentes: o temperamento e o caráter. Para Cloninger, o temperamento engloba os traços de determinação hereditária e genética, e que a expressão dessas características sofre influências parciais da interação do indivíduo com o meio. Para o fator caráter, Cloninger refere àqueles traços moldados ao longo do desenvolvimento do indivíduo decorrentes das experiências de aprendizagem, decorrentes dos resultados das diferentes influências da interação do indivíduo com o meio. Gaston Berger, em seu livro Traité pratique d 'analyse du caractere, de 1950, descreve: O caráter não é o conjunto da personalidade, e sim apenas o núcleo. O que a sociedade dá são as ideias feitas, comportamentos determinados, isto é, em suma, a matéria. O que diz respeito ao caráter é a forma. A família ou a escola fazem do jovem um católico ou um comunista. O caráter o fará terno, brutal, místico ou materialista28 •
Uma correta estruturação do caráter determinará uma adequada ou inadequada adaptação dos traços hereditários do indivíduo frente aos vários eventos ambientais ao longo de sua vida29 • O modelo psicobiológico de Cloninger se apresenta como um importante instrumento para avaliação da personalidade, pois, além de avaliar os fatores do temperamento, é possível também estabelecer uma possível predição de aspectos de vulnerabilidade aos transtornos da personalidade, por meio dos fatores do caráter que avaliam as diferenças individuais quanto aos conceitos a respeito de si mesmo e a percepção dos próprios objetivos e valores. Sendo assim, a avaliação da personalidade resulta na identificação de três subgrupos: • Grupo A - caracterizado por indivíduos que apresentam uma reduzida dependência de gratificação, comum nos quadros dos transtornos da personalidade: - paranoide; - esquizoide; . , . - esqmzotlpiCo. • Grupo B - composto por indivíduos que apresentam um padrão de funcionamento caracterizado por uma elevada sensibilidade ao tédio e à busca de novidades, típicos do transtorno da personalidade: - antissocial;
- borderline; - histriônico; ' . - narClSlCO; - nos quadros de psicopatia. • Grupo C: engloba indivíduos com padrões comportamentais com tendências a elevada esquiva ao dano, típico do transtorno da personalidade obsessiva-compulsiva.
379
380
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela 11
•
SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Modelo psicobiológico de Cloninger
Estrutura
Fatores
Dimensões
Temperamento
Busca de novidades: tendência hereditária de ativação e iniciação de comportamentos exaltados/excitados para estímulos novos. Esquiva ao dano: tendência hereditária a inibir ou cessar comportamentos frente aos sinais de estímulos aversivos para evitar punição Dependência de gratificação: tendência hereditária a responder de maneira intensa a sinais de recompensa visando à obtenção de gratificação Persistência: tendência hereditária a persistir em responder de determinada forma, a despeito de um reforçamento intermitente (fadiga e/ou frustração).
Excitabilidade exploratória vs. rigidez; extravagância vs. reserva; impulsividade vs. reflexão; desordenação vs. organização.
Caráter
Autodirecionamento: identificação de si próprio como um indivíduo autônomo Cooperatividade: identificação de si próprio como uma parte integral da humanidade e da sociedade Autotranscendência: identificação de si próprio como parte integral da unidade de todas as coisas, de um todo interdependente
Para Fuentes et al. 31 , o modelo estruturado por Cloninger (Tabela II) estabelece que o desenvolvimento da personalidade é um processo epigenético interativo, no qual os aspectos hereditários de temperamento, como a busca de novidade, esquiva ao dano, dependência (gratificação) e persistência funcionam como ativadores iniciais do desenvolvimento do caráter de cada indivíduo como os aspectos autodirecionamento (percepção de si como sujeito autônomo), cooperatividade (percepção de si como parte da sociedade e humanidade) e a auto transcendência (percepção de si como membro integrante de um todo e de todas as coisas). Esse mecanismo de funcionamento modifica o significado e a rele vância dos estímulos aos quais o indivíduo interage e responde. Para Mulder et alY, há uma relação recíproca no processo de desenvolvimento do fator temperamento e caráter no indivíduo, no qual um influencia o outro. Inadequações nesse processo tende a desenvolver indivíduos com problemáticas importantes na suas relações interpessoais por uma deficiência na formação, utilização e manutenção da empatia33 .
Estudo dos modelos fatoriais É uma versão moderna da Teoria de Traço, princi-
palmente da teoria de Alport, o qual conceituava a coerência dos comportamentos, emoções e interpretações ao meio. Os fatores de maior nível geralmente dominam os mais específicos. E como a personalidade é a organização dinâmica, no indivíduo, dos sistemas psicofísicos que determinam seu comportamento e seu pensamento carac-
Preocupação antecipatória vs. otimismo; timidez vs. sociabilidade; medo da incerteza vs. confiança; fatigabilidade e astenia vs. vigor. Sentimentalismo vs. insensibilidade; apego vs. desapego; dependência vs. independência. Persistência vs. falta de determinação
Responsabilidade vs. atribuição de culpa a outrem; desembaraço vs. apatia; determinação vs. metas não objetivas; autoaceitação vs. autorrecusa Aceitação social vs. intolerância ; utilidade vs. inutilidade; generosidade vs. egoísmo; empatia vs. desinteresse social; compaixão vs. vingança. Altruísmo vs. autoconsciência; aceitação espiritual vs. materialismo e identificação transpessoal
terísticos, decorrentes de traços comuns: características marcantes em uma dada cultura, que todos reconhecem . e nome1am. Nesse contexto a estruturação dos modelos fatoriais para avaliação da personalidade se reveste hoje com um salto conceitual e empírico no campo da personalidade, visto que, descreve e mede com propriedade as dimen sões humanas básicas de forma consistente e replicável. O resultado da estruturação dos modelos fatoriais corroborou para dois seguimentos importantes para a avaliação da personalidade. O primeiro refere-se a investigação e desenvolvimentos de instrumentos que consideram o neuroticismo e o segundo, organização dos chamados "cinco fatores da personalidade".
Neuroticismo Num conceito mais amplo3 \ considera-se neuroticismo uma tendência global a apresentar respostas de an siedade exagerada, de ser neurovegetativamente hiperreativo, de mostrar maior fatigabilidade física e mental, de ser vulnerável à frustração e resistente a mudar os hábitos desadaptativos. O neuroticismo pode ser entendido como a maneira de viver daquele que tem neurastenia. Caracteriza um indivíduo que parece depender, psico e neurologicamente, da atividade do sistema límbico e do sistema nervoso autônomo (vegetativo), normalmente determinado por fatores genéticos e constitucionais. O neuroticismo representa uma das variáveis do funcionamento negativo da personalidade mais estudada na literatura psicológica a nível clínico, mas também social e educacionaP4 •
31 AVALIAÇÃO DA PERSONALIDADE
Tabela 111 Sintomas psíquicos e psicossomáticos prevalentes em indivíduos com elevado neuroticismo Alterações psíquicas
Alterações psicossomáticas
Conotações cognitivo-afetivas: lnadaptações de diversas ordens, ansiedade, timidez, angústia, manifestações fóbicas e obsessivo-compulsivas, sensibilidade exagerada e irritabilidade, tensão e fraqueza, insegurança, tendência a depressão, amnésia.
Insônia, vertigens, transpiração, perturbações na vista e na fala, na respiração e na pele, distúrbios cardíacos e gastrintestinais, transtornos alimentares e mesmo convulsões.
Quadro I Características psicológicas e comportamentais de acordo com o modelo dos cinco grandes fatores
Cinco grandes fatores
Características psicológicas e comportamentais
I - Extroversão
Pessoas com alto grau de extroversão tendem a ser sociáveis, ativas, falantes, otimistas e afetuosas; pessoas com baixo grau de extroversão tendem a ser reservadas, sóbrias, indiferentes, independentes e quietas
11 - Socialização/
Pessoas com alto grau de socialização tendem a ser generosas, bondosas, afáveis, prestativas e altruístas. Costumam ser responsivas e empáticas e acreditam que a maioria das outras pessoas quer fazer o mesmo e agirá da mesma forma
cordialidade
111 - Realização/
Os principais sintomas psíquicos e psicossomáticos em indivíduos com elevado índice de neuroticismo estão expressos na Tabela III. De um modo geral considera-se o neuroticismo um funcionamento perturbado, mais ou menos estável da personalidade, mesmo que se possa aligeirar ou agravar a sua carga conforme as diversas circunstâncias e momentos do sujeito, porém não necessariamente irá se constituir em um transtorno específico da personalidade.
Cinco grandes fatores O modelo dos cinco grandes fatores ( CGF), conhecido na literatura como Big Five derivou das teorias fatoriais e traços de personalidade, tendo seu principal precursor McDougalP5, que sugeriu a análise da linguagem natural para entender a personalidade, sendo esta analisada por meio de cinco fatores independentes, que, na época, denominaram-nas como caráter, temperamento, consciência, disposição e humor 15 . Ainda seguindo a linha da teoria dos traços ao longo das décadas, os estudos sobre a personalidade consolidaram os cinco grandes fatores como variáveis confiáveis para um instrumento de avaliação, acrescendo ao neuroticismo os fatores extroversão, conscienciosidade, cordialidade e abertura37 (Quadro I). A estruturação das escalas fundamenta-se nos marcadores de traço (avaliação de seus construtos) e na descrição dos Transtornos da Personalidade do DSM-rv, conforme a Tabela IV
Exame de personalidade: avaliação e diagnóstico O exame de personalidade tem como objetivo apurar as condições da dinâmica e estrutura do funcionamento do indivíduo, diferenciando -as e equacionando o peso de cada uma delas no equilíbrio daquela personalidade, indicando, por fim, o grau de perturbação ou desvio que ele impõe ao comportamento.
conscienciosidade
Pessoas com alto grau de realização tendem a ser organizadas, confiáveis, trabalhadoras, decididas, pontuais, escrupulosas, ambiciosas e perseverantes; por outro lado, pessoas com baixo grau de realização tendem a não ter objetivos claros, não são confiáveis, são preguiçosas, descuidadas, negligentes e hedonistas.
IV - Neuroticismo
Pessoas com alto grau de neuroticismo geralmente apresentam vulnerabilidade, desajustamento psicossocial, ansiedade e depressão
V - Abertura
Pessoas com alto grau de abertura são curiosas, imaginativas, criativas, divertem-se com novas ideias e com valores não convencionais. Baixo grau de abertura sinaliza tendência ao convencionalismo nas crenças e atitudes, preferências. Além de ser característica de pessoas dogmáticas e rígidas, que tendem também a serem menos responsivas emocionalmente.
Tabela IV Sintomas psíquicos e psicossomáticos prevalentes em indivíduos com elevado neuroticismo Fator
Transtornos da personalidade
Neuroticismo
Transtorno dependente C+), ansiedade C+), depressão C+)
Extroversão
Histriônica C+), esquizeide C-) e de esquiva C-)
Socialização
Paranoide C-). antissocial C-). narcisista C-) e dependente C+)
Realização
Obsessivo C+) e antissocial C-)
Abertura
Esquizotípico C+) e histriônico C+)
+ =maior sensibilidade diagnóstica; - = menor sensibilidade diagnóstica.
A síntese desse exame desemboca na verificação da organização dos afetos impulso versus controle (função volitiva - traduzida na capacidade de autodeterminação, também presente na capacidade de adaptação socioafetiva), podendo levar o profissional a um possível diagnóstico de um transtorno específico da personalidade.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
O termo diagnóstico se aplica adequadamente ao estudo da personalidade, uma vez que, etimologicamente significa identificar, descrever e/ ou reconhecer o "todo" por meio das partes. Sendo assim, para se chegar a um entendimento do funcionamento da personalidade, fazse necessário o estudo detalhado da vida do indivíduo, principalmente pela avaliação comportamental do indivíduo. Pelo expresso, entende-se que a personalidade e o comportamento são processos inter-relacionados. A personalidade se fundamenta com uma matriz que produz ação, define condições e modalidade para a ação (comportamento), numa inter-relação com os fatores orgânicos, psicológicos e sociais. Nesse contexto, depreende-se que a avaliação da personalidade abrange conhecer, dentro do praticável, o mundo psíquico do indivíduo de forma a lhe ser possível construir hipóteses capazes de explicar sua conduta. Para a compreensão das motivações conscientes e inconscientes do sujeito para sua ação, é interessante que se conheça: • os fatos • as atitudes • o contexto cultural e social • a história de vida • os componentes hereditários • a forma própria de construir significados e elaborar suas expenenc1as pessoais. De modo geral pode-se resumir a avaliação da personalidade como o processo que visa a esclarecer a organização psíquica particular de cada personalidade sobre como o indivíduo opera entre os mundos interno e externo, e entre a percepção de si próprio e do outro. O exame da personalidade destina-se a: • Diagnóstico diferencial: estabelecer um paralelo na identificação de sinais e sintomas para diferenciar distintas patologias. • Avaliação compreensiva: investigar o funcionamento psicológico do indivíduo para fins de intervenção " . terapeutlca. • Avaliação preventiva: utilizado para avaliar fatores de riscos e potencialidades para enfrentamento de situa- novas. çoes • Prognóstico: avaliar as condições evolutivas do caso. Ao final desse processo, o que se busca ao avaliar a personalidade é: • Dentro da dinâmica psíquica, qual pode ser o disparador do padrão de comportamento? • Quais as variáveis que influenciam o indivíduo na execução daquele comportamento? • Qual a natureza de sua percepção e consciência sobre o seu próprio funcionamento psicológico? • Há aptidão para avaliar e discernir tanto a realidade psíquica como a realidade externa? • A
•
•
Traços não adaptativos
TEP
Padrões específicos de comportamento
_
___,,..~
Levando a uma dificul dade na adaptação social
~ o que é visível a todos
Figura 2 dade.
Processo do raciocínio diagnóstico para avaliação da personali-
• Como se dão os intercâmbios entre o mundo interno e o externo? • Haveria condições para antecipar mentalmente suas ações? • Haveria condições de buscar alternativas para sua conduta, tais como atitudes mais adaptadas e socialmente gratificantes? • Quais são os controles e defesas com relação à própria impulsividade? • Em que medida e de que forma sua conduta é o resultado de reflexões e elaborações ou é o fruto de atuações impulsivas, com ou sem autocrítica? O exame da personalidade se configura como um processo retrospectivo que vai determinar se a dificuldade de adaptação social é decorrente de um TE ou em decorrência de traços não adaptativos ou de imaturidade emocional.
Processo de avaliação da personalidade Segundo Nunes et al.38 , a avaliação da personalidade representou um desafio para psicólogos e psiquiatras em decorrência da carência de instrumentos validados no Brasil, bem como divergências quanto aos métodos que são mais adequados para esse fim. Todavia, o que se tem de consenso na literatura científica é o apontamento da utilização dos resultados de avaliações objetivas da personalidade com aspectos obtidos a partir de entrevistas, como também da utilização dos testes projetivos, sugerindo uma abordagem que incorpore formas múltiplas de avaliação, o que aumenta a validade dos seus resultados e sua eficácia39 -41 • Para Hutz et al. 42, a personalidade é um tópico de grande relevância no âmbito da psicologia e da psiquiatria, tendo, nos últimos anos, recebido especial atenção nas dimensões que compõem sua avaliação. Como já foi relatado anteriormente, o processo de avaliação da personalidade se caracteriza por uma ação conjunta, necessitando tanto da avaliação psiquiátrica quanto psicológica. Visto isto, ressalta-se que os profissionais da psicologia e psiquiatria devem assegurar-se de que todo o pro-
31 AVALIAÇÃO DA PERSONALIDADE
cedimento de avaliação da personalidade esteja de fato pautado em uma investigação clínica abrangente que englobe história, forças e fraquezas e estado psicossocial. O processo da investigação da personalidade implica em ações interdisciplinares. Por um lado, a avaliação psiquiátrica por meio da entrevista, como por exemplo, o uso da entrevista clínica estruturada para o DSM -IV para os Transtornos da Personalidade SCID- II. Por outro lado, têm-se os testes psicológicos, instrumentos utilizados na prática do psicólogo que fornecem importantes informações para a elaboração de um diagnóstico, quando do processo de avaliação. Para que os testes sejam úteis e eficientes, eles devem passar por estudos que comprovem suas qualidades psicométricas, assim como devem atender determinadas especificações que garantam reconhecimento e credibilidade por parte da comunidade científica e de leigos43 • Para Costa44 é imprescindível que o psicólogo, no processo de avaliação da personalidade, quando escolhe seus instrumentos de avaliação, saiba( e aqui incluem -se os profissionais da psiquiatria): • quais são as perguntas cujas respostas buscam-se obter por meio dos instrumentos; • o que cada instrumento pode oferecer, isto é, seus limites e abrangência; • quais processos psíquicos cada instrumento mobilizam; • quais são contraindicações para a utilização de determinado instrumento; • duração do tempo gasto na aplicação, correção e análise. Para o desenvolvimento desse processo, não um modelo-padrão, porém, recomendam-se as seguintes etapas: • entrevistas iniciais, pertinentes tanto à prática da psiquiatria quanto da psicologia; • escolha dos instrumentos de avaliação.
Entrevista clínica Fundamentada pela escuta clínica (entrevista clínica), que se perpetua como um pilar, visto que se configura como um conjunto de técnicas de investigação, cujo objetivo é descrever e avaliar aspectos pessoais, relacio nais, sistêmicos e sintomáticos4 5• Uma vez que a entrevista é soberana na prática clínica, ela propicia ao entrevistador treinado o acesso amplo e profundo ao outro, bem como ao modo de sua estruturação e a sua forma de se relacionar45 • Segundo Tavares46 , a entrevista clínica se constitui de um procedimento com alto grau de flexibilidade que permite a adaptação da avaliação de casos individuais e o aprofundamento dos aspectos importantes, além de se ajustar à especificidade e à necessidade do contexto da avaliação, o que sem sombra de dúvidas se aplica estritamente à avaliação da personalidade.
Ao se realizar uma entrevista clínica para o possível diagnóstico de transtorno da personalidade, não é demasiado ressaltar que espera-se entrevistador conhecimentos avançados em psicologia do desenvolvimento, psicodinâmica, psicopatologia e técnicas de exame psicológico. Golder47 recomenda que, para a aplicação das entrevistas, o profissional subdivida esse processo pelo menos em dois distintos momentos. O primeiro definido como entrevista inicial (não estruturada), no qual o propósito seria mais de acolhimento e redução da ansiedade e até resistências que próprias do paciente, e em particular dos possíveis portadores de um transtorno da personalidade e o segundo seria o processo de investigação mais detalhada do funcionamento psicológico e comportamental. Esse apontamento tem fundamentação, visto que se entende que nem toda queixa trazida, seja pelo próprio paciente ou por familiares, acerca do seu comportamento, venha necessariamente configurar um transtorno específico da personalidade. Enfatiza-se que é com base no segundo momento que o profissional terá um arsenal de informações suficientes para guiá-lo no tocante à escolha dos instrumentos a serem utilizados em termos de entrevistas diagnósticas. Cooper48 ressalta que para o psiquiatra a eficácia do diagnóstico depende principalmente de três estágios. Primeiro estágio (entrevista com o paciente)
• Capacidade para estabelecer uma relação médicopaciente pautada na confiança. • Capacidade para facilitar a expressão do paciente em relação sua queixa ou comportamentos problemas. • Competência para detecção das alterações psico patológicas ou aspectos disfuncionais. Segundo estágio (percepção do psiquiatra em relação ao paciente, com base nos dados da anamnese)
• Aplicação de entrevistas com paciente e familiares. • Investigação das hipóteses previamente formuladas. Terceiro estágio (análise das informações coletadas)
• Dados de antecedentes pessoais e familiares. • Traços pré-mórbidos. • Dados do exame os psíquico (sinais e sintomas). • Fatores psicológicos e sociais. • Exames complementares (no tocante à avaliação da personalidade, ao uso de instrumentos e à solicitação da avaliação psicológica da personalidade.
Instrumentos de avaliação da personalidade Entrevista clínica estruturada para o DSM-IV- SCID Para a área psiquiátrica, principalmente, o tipo de entrevista mais utilizado é a SCID - Entrevista Clínica Estruturada para o DSM-IV3. A SCID é uma técnica de en-
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DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
trevista semiestruturada, projetada para ser administrada por um médico ou profissional de saúde mental treinado, cujo objetivo engloba a avaliação sistemática dos principais transtornos mentais40 • Sua estrutura compõe-se de três versões específicas. A SCID-P é direcionada para verificação dos transtornos mentais do Eixo I. A SCID-NP, para pessoas sem sinais psicopatológicos e a SCID-II, para os transtornos da personalidade. A SCID é dividida em módulos separados correspondentes a categorias de diagnóstico. A maioria das seções começa com uma pergunta de entrada que permite ao entrevistador "pular" as questões associadas se não forem cumpridas. Para todos os sintomas diagnósticos são codificados como presente, subliminar, ou ausente. O diagnóstico do transtorno de personalidade se dá pela correspondência do escore total, conforme as pontuações abaixo. O = ausente ou falso 2 = subliminares 3 = presente ou verdadeiro
personalidade: os testes projetivos (visuo-verbais e gráficos) e os testes objetivos (psicométricos) como os inventários, os questionários e as escalas. A palavra teste deriva da língua inglesa e do latim testis, que significa "prova''. Sua finalidade consiste em medir as diferenças existentes quanto a determinada característica, entre diversos sujeitos, ou então o comportamento do mesmo indivíduo em diferentes ocasiões diferença inter e intra-individual, respectivamente. Ressalta-se aqui que cabem a essas provas os limites e cuidados inerentes ao instrumento, habilitação do técnico para utilizar e interpretar, mas também, e principalmente, o estudo da teoria de personalidade, ou psicológica, que o sustenta. Somente desse modo é possível alcançar um grau de confiabilidade preditiva dos seus resultados. A seguir será apresentado um resumo dos principais instrumentos para avaliação da personalidade normatizados para população brasileira entre as técnicas projetivas visuo -verbais, gráficas e os testes psicométricos.
Inventário de temperamento e caráter
Testes projetivos
De acordo com Veríssimo 49 outro instrumento que tem sido usado consistentemente nos exames de personalidade é o inventário de temperamento e caráter (ITC)29 . Constitui-se de 226 afirmações que devem ser dadas como verdadeiras ou falsas. O inventário é composto de sete fatores de personalidade, sendo quatro de temperamento e três de caráter, os dados normativos de Cloninger et al.2 9 , estão expressos em cada escala do ITC.
As técnicas projetivas permitem que o indivíduo reorganize os estímulos externos, segundo um modelo interno de organização. Permite identificar os níveis de elaboração dos processos mentais, a força de ego, a maturação afetiva e relaciona!. O desempenho conativo, as concepções ligadas ao self, e a natureza dos mecanismos de defesa organizam-se, em cada indivíduo, dentro de um equilíbrio hierárquico e dinâmico, cujo resultado é um funcionamento psíquico coerente. Bem como o modo que indivíduo percebe, elabora e comunica suas respostas à estimulação objetiva reflete as configurações da estrutura interna de personalidade. Nas técnicas projetivas, quanto menor for a direção e a estruturação do estímulo, maior será a possibilidade de surgir material emocionalmente significativo. Nesse caso, espera-se que os núcleos significativos da personalidade possam manifestar-se.
Fatores de temperamento
• Busca de novidades - BN (NS - Novelty Seeking, escore de O a 40, dado normativo: 19,2 + 6). • Esquiva ao dano - ED (HA - Harm Avoidance, escore de O a 35, dado normativo: 12,6 + 6). • Dependência de gratificação - DG (RD: Reward Dependence, escore de O a 24, dado normativo: 15,5 + 4,4). • Persistência - PE (P - Persistence, escore de O a 8, dado normativo: 5,6 + 1,9). Fatores de ca ráter
• Autodirecionamento - AD (SD - Self-Directedness, escore de O a 44, dado normativo: 30,7 + 7,5). • Cooperatividade - CO (C - Cooperativeness, esco re de O a 42, dado normativo: 32,3 + 7,2). • Autotranscendência - AT (ST - Self-transcendence, escore de O a 33, dado normativo: 19,2 + 6,3).
Instrumentos psicológicos de avaliação da personalidade Já em relação aos instrumentos específicos da psicologia, são duas as naturezas dos testes para avaliação de
Técnicas visuo-verba is Teste de Zulliger
O teste de Zulliger constitui-se de três pranchas: • prancha I - aspectos primitivos da personalidade; • prancha II - afetividade/ emoções; • prancha III - relacionamento. Sua aplicação pode ser individual ou coletiva, para toda e qualquer finalidade (psicodiagnóstico, avaliação da personalidade, seleção de pessoal, avaliação de desempenho etc.). A interpretação integrada das três pranchas propicia uma visão muito aprofundada da personalidade humana, seja em sua estrutura ou em sua dinâmica, especialmente em relação aos seus aspectos afetivo-emo cionais, bem como em termos de intelectualidade, pen-
31 AVALIAÇÃO DA PERSONALIDADE
sarnento, objetivos de vida, sociabilidade, relacionamento interpessoal etc. 50•51 • Teste de apercepção temática
CTAD
O teste de apercepção temática (TAT) foi desenvolvido por Henry Murray e Christiana Morgan em 1943 nos Estados Unidos. Consiste de uma série de 30 lâminas com figuras representativas e um cartão em branco. Destas, onze lâminas são aplicáveis a todos os sujeitos independentemente de idade e sexo. Algumas são mais indicadas para homens adultos, enquanto outras atendem melhor mulheres adultas. Algumas das lâminas são recomendadas para os jovens do sexo masculino e outras, para as jovens do sexo feminino 44 • Cada figura tem um significado predeterminado e explora questões específicas. Pode-se aplicar todas as lâminas (aplicação em sua forma completa) ou somente aquelas cuja temática mostra-se especialmente incitante para o periciando (aplicação em sua forma abreviada). As figuras são apresentadas ao indivíduo e lhe é solicitado que conte uma história. As histórias são interpretadas em função das relações do sujeito com figuras de autoridade, com pessoas coetâneas de ambos os sexos e em termos dos ajustes entre o id, o ego e o superego, e as necessidades de cada uma dessas instâncias. Por meio das histórias relatadas, presume-se que o sujeito expresse seus próprios desejos, vontades e conflitos. Tanto a sua capacidade de crítica como a natureza de suas defesas são consideradas, compondo um importante dado para o diagnóstico em pauta. Os aspectos motivacionais do comportamento da pessoa submetida ao TAT são assinalados através dos temas das figuras e analisados de acordo com as variáveis descritas no Quadro li.
Quadro 11
O TAT se configura mais para um teste que vai descrever aspectos mais da dinâmica da personalidade ao um quadro nosológico, daí a necessidade de utilizá-lo junto de outros instrumentos que apresentem recursos para o diagnóstico nosológico. Teste das pirâmides coloridas - Pfister
Consiste de etiquetas de dez cores distribuídas em várias tonalidades compondo um total de vinte quatro quadrículas na medida 2,5 X 2,5 em em, uma folha de anotações para o examinador e três cartões onde, em cada um, encontra-se desenhada uma pirâmide quadriculada contendo quinze campos sobre os quais o examinando deve colocar as etiquetas coloridas. O examinando arranjará as etiquetas sobre o modelo de pirâmide segundo a escolha das cores que ele julgue mais adequada, conforme a instrução fornecida 52 • O examinador deve anotar todas as escolhas e trocas de cores, rejeições, gestos, atitudes e comentários, assim como a confecção final da pirâmide. A interpretação consiste da análise de vários aspectos, entre eles, a maneira de executar a tarefa e de estruturar a pirâmide. Além de analisar a maneira de executar a tarefa (o método utilizado na colocação dos quadrículas sobre o esquema-base da pirâmide até a cobertura final. Essa análise permite que o avaliador observe, por exemplo, um indivíduo que já se sinalize uma maneira metódica ou sistemática, outros apresentam uma execução ordenada ou desordenada), avalia-se também o modo de colocação (ascendente, descendente, direta, inversa, em zigue-zague, simétrica, simultânea, diagonal, em manto ou espacial. O modo de colocação traz dados a respeito da maturidade emocional e do potencial intelectual, podendo
Interpretação do Teste de apercepção temática
Aspectos avaliados
Interpretação
Necessidades e impulsos
De aceitação, de dominação, de submissão, de autonomia, de agressão, de realização, de afiliação, de proteção, de evitar a reprovação, de reagir, de se defender, de evitar o sofrimento, de intelecção e de ordem.
Relação com o ambiente
Como o sujeito percebe o meio ambiente e como reage a ele, indicando como é a realidade para ele.
Conflitos significativos
Investiga a contraposição entre duas forças antagônicas, de igual intensidade. Possibilita também a investigação da oposição entre as instâncias intrapsíquicas da personalidade (id x ego x superego).
Natureza das ansiedades
Descrevem as situações que despertam medo, reações de tensão ou pressão e quais as dificuldades enfrentadas pelo sujeito, geralmente de dano físico ou castigo, de desaprovação, de falta ou perda de amor, de ser abandonado, de ser dominado e estar indefeso, de causar um dano físico.
Mecanismos de defesa
Como as defesas se organizam contra situações que podem despertar sentimentos desagradáveis, temerosos ou ameaçadores.
Severidade ou rigidez do
Investiga o grau de intensidade do superego. Verifica-se a presença de conteúdos de castigo ou punição na
superego
narrativa.
Desenlace e integração do ego
Refere- se ao nível geral de funcionamento da personalidade. Favorece a compreensão da força do ego. Possibilidade de identificar a maneira como o sujeito enfrenta, resolve os seus conflitos.
Outros personagens
Investigação da percepção em relação às outras figuras e como o sujeito reage a elas (relações com as figuras parentais, figura materna ou paterna, figura feminina, figura masculina, entre outras).
Síntese dinâmica
Análise dos aspectos mais importantes, que demonstra a dinâmica de sua personalidade.
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DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
revelar importantes indícios de perturbações no desenvolvimento emocional. O teste das pirâmides permite a identificação de transtornos específicos da personalidade. Apesar de não se aplicar o transtorno de personalidade para menores de 18 anos, este teste pode ser aplicado a partir dos 7 anos. Psicodiagnóstico de Rorschach O Teste de Rorschach, idealizado por Hermann Rorschach em 1921, consiste de 10 pranchas com manchas de tinta que obedecem a características específicas quanto à proporção, angularidade, luminosidade, equilíbrio espacial, cores e pregnância formal. Esses aspectos facilitam a rápida associação, intencional ou involuntária, com imagens mentais que, por sua vez, fazem parte de um complexo de representações que envolvem ideias ou afetos, mobilizando a memória de trabalho 53 • O procedimento de aplicação consiste de duas fases e de maneira individual (crianças, adolescentes e adultos). A primeira de associação, que é a fase de construção livre do examinando mediante a apresentação das pranchas uma de cada vez, sendo solicitado ao examinando que diga o que vê nelas e o que essas manchas parecem para ele. E a segunda, a fase do inquérito, que consiste na reapresentação de todas as pranchas ao examinando a fim de se levantar as associações realizadas, cujo objetivo é a compreensão do processo de percepção utilizado e a forma como elaborou cada resposta 54 • Segundo Silveira53, o conjunto de respostas do examinando irá revelar o status da representação da realidade em cada indivíduo, trazendo dados a respeito do desenvolvimento psíquico, das funções e dos sistemas cerebrais, dos recursos intelectuais envolvidos na construção das diferentes imagens, das articulações intrapsíquicas e da natureza das relações interpessoais. Segundo Coelho 55 , o diagnóstico de um transtorno mental extraído dos dados do psicograma de Rorschach consiste na distinção patogenética da esfera e dos sistemas da personalidade primordialmente afetados e suas consequências nos demais setores da personalidade. A aplicação do Rorschach se consolida como um instrumento útil para o diagnóstico diferencial de um transtorno mental, o qual irá determinar se o mesmo decorre de uma condição afetiva (necessidades primárias e sentimentos), cognitiva (diferentes níveis de processamento das informações e integração à realidade) ou conativa (expressão subjetiva relacionada aos processos e atividades motoras)55• Outro importante aspecto na utilização da prova de Rorschach e que se aplica ao objetivo deste capítulo é sobre sua abrangência no tocante a avaliação das características específicas do temperamento do indivíduo examinado (combinação específica de traços de personalidade relacionados à capacidade intelectual, disposição afetiva e condições conativas) e suas manifestações no comportamento 55 .
Sendo assim, em função das características do psico grama, é possível a inferência de traços específicos de personalidade que afetam o modo atual do examinando reagir ao ambiente, mas também ele permite a distinção entre a expressão dinâmica desses traços e a configuração do caráter, isto é, é possível identificarmos um transtorno específico da personalidade, bem como descrever que aquele padrão de comportamento não se aplica a um conjunto de traços que configurem um transtorno específico de personalidade, e sim da preponderância de um determinado traço que gera disfuncionabilidade no examinando. Técnicas gráficas A aplicação das técnicas gráficas tem se mostrado profícuo, sobretudo para o início do processo diagnóstico. Na prática clínica, por exemplo, o uso das técnicas gráficas permite uma introdução do paciente agente no processo de avaliação de uma forma mais indireta e me. . nos mvas1va. Segundo Costa4\ de uma maneira geral, a atividade de desenhar estimula verbalizações mais francas e menos defendidas. Através dos desenhos, o psicólogo pode apreender a visão particular que o paciente traz de sua própria identidade, de seu ambiente externo e de quais são os seus principais interesses. De acordo com o comportamento do paciente durante a execução dos desenhos, obtém-se também dados a respeito de seu padrão de relacionamento e de expressão, quer verbal, quer gráfica ou atitudinal. Pelo modo como o indivíduo aceita a tarefa, suas respostas, questões e atitudes podem ser obtidos também parâmetros importantes para a construção de hipóteses diagnósticas. Psicodiagnóstico miocinético (PMK) O PMK é uma prova de expressão gráfica que se propõe a explorar a personalidade, estudando sua fórmula atitudinal mediante a análise das tensões musculares involuntárias, que revela as tendências fundamentais de reações, constituídas por suas peculiaridades temperamentais e caracterológicas. O PMK também tem sido útil no diagnóstico de problemas toxicológicos e neurovegetativos56 • Trata-se de uma prova psicomotora baseada na simbiose dos músculos com os movimentos. A base teórica repousa na Teoria Motriz da Consciência, que postula que toda intenção ou propósito de reação acompanha-se de uma modificação do tônus postura!, que propende a favorecer os movimentos contrários. O teste exige para sua aplicação uma mesa especialmente desenhada e planejada para tal e o uso de folhas impressas, padronizadas, anteparos e lápis especiais56 . O teste originalmente se constitui de oito folhas, mas, no Brasil, é mais utilizada uma forma resumida: folhas 1, 2, 5 e 6. Ressalta-se que para uma avaliação mais aprofundada é necessário que se realize o teste em sua forma completa composta pela execução de movimentos moto res nas condições:
31 AVALIAÇÃO DA PERSONALIDADE
• • • • • •
lineogramas (vertical, horizontal e sagital); zigue-zague (sagital); escadas e círculos (verticais); cadeias (verticais e sagitais); paralelas (egocífugas sagitais) e Us (verticais); paralelas (egocípetas sagitais) e Us (sagitais);
Desenho da figura humana
Esse teste é muito utilizado em seleção de pessoal, psicodiagnóstico, avaliações periciais, entre outras finalidades, por facilitar a compreensão da personalidade humana no tocante a sua estrutura e dinâmica, revelando aspectos da essência, bem como das possibilidades de atitude na interação com o ambiente conforme os fatores investigadas descritas no Quadro III. Teste palográfico
Trata-se de um teste de personalidade baseado na realização de traçados pelo sujeito. O teste fornece dados de ritmo e qualidade de trabalho, fatigabilidade, inibição, elação, depressão, temperamento, constituição tipológica etc. 57 • Pode ser aplicado a partir dos 18 anos, desde analfabetos até nível superior, de forma individual ou coletiva, com tempo de duração de 7 minutos e 30 segundos.
Quadro 111
Fatores e variantes da personalidade investigadas pelo
Sua aplicação é rápida e muito simples. Requer apenas folhas de papel sulfite e lápis. É pedido ao sujeito que desenhe uma pessoa. Se o desenho for uma figura incompleta, pede-se que ele desenhe em outra folha uma figura completa. Se o desenho incluir caricaturas ou desenhos estereotipados, pede-se que desenhe outra vez, outra pessoa. Ao terminar o desenho, pede-se ao sujeito que desenhe outra figura humana de outro sexo. Em geral, obtém-se, com o desenho da figura humana, o modo como o indivíduo concebe a própria imagem de corpo. Por isso, em geral, as pessoas desenham, no primeiro instante, uma pessoa do próprio sexo. Contudo, é importante lembrar que essa imagem pode basear-se, em maior ou menor intensidade, nas convenções, nas sensações ou estruturas somáticas e na transposição simbólica das atitudes em características somáticas. Cada pessoa apresenta interferências mais marcantes na sua produção gráfica, quer com relação a um treinamento artístico mais diferenciado, uma reprodução de uma figura humana culturalmente apreendida ou, ainda, uma expressão mais espontânea de seus próprios aspectos caracteriológicos. Em função dessa condição, a análise dos desenhos implica treino e conhecimento da dinâmica emocional para interpretá-los adequadamente e não desperdiçar material44 •
PMK Fatores
Variantes
Tônus vital
Elação e depressão
Agressividade
Hetero e autoagressividade
Reação vivencial
Extra e intratensão
Emotividade
Variante de emotividade
Dimensão tensional
Excitabilidade e inibição
Predomínio tensional
Impulsividade e rigidez/controle
CASA
Desenho da casa, árvore e pessoa - HTP
Configura-se como um adendo aos trabalhos sobre o desenho da figura humana como um instrumento de avaliação da personalidade John Buck65 , que incluiu no vos componentes para essa técnica: o desenho da casa e da árvore44• A aplicação consiste em solicitar ao examinando que desenhe primeiramente a casa, depois a árvore e, por último a pessoa, em folhas separadas, apresentadas hori-
ÁRVORE
PESSOA
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Ilustração da aplicação do teste HTP. Adaptado de Buck, 2003 65•
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SEÇÃO 3
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zontalmente para o desenho da casa e verticalmente para o desenho da árvore e da pessoa. Essa ordem deve ser obedecida para que o indivíduo seja levado gradualmente de um desenho mais neutro (casa/árvore) para aquele de maior envolvimento pessoal (pessoa). Após a fase gráfica, há uma fase verbal, na qual algumas questões padronizadas e estruturadas são colocadas ao periciando. O objetivo desse inquérito é apreender a natureza da projeção do examinando em sua expressão gráfica e verbal e o quanto esses aspectos estão mais próximos ou distantes da consciência. A análise de um HTP, portanto, ao exemplo do desenho da figura humana, implica três momentos distintos: a análise da expressão gráfica (traços, uso do espaço na folha, sequência dos detalhes e construção da figura, tamanho, pressão do lápis no papel e simetria), a interpretação do conteúdo do desenho em si (omissões, distorções ou atribuição de detalhes em cada desenho) e a análise do conteúdo verbal (advindo do inquérito aplicado).
Instrumentos psicométricos Instrumentos padronizados têm sido cada vez mais utilizados como auxiliares na avaliação de diferentes aspectos da saúde mental de crianças e adolescentes. Na prática clínica, tais instrumentos permitem a documentação do atendimento clínico e muitas vezes podem ser importantes auxiliares no diagnóstico e na avaliação da eficácia do tratamento a ser realizado58 •
Inventário fatorial de personalidade - I FP
O instrumento visa especificamente à investigação de 15 necessidades ou dimensões da personalidade (Quadro IV), cada uma das 15 necessidades ou escalas é composta por nove frases. O IFP possui ainda uma subescala de validade, que permite verificar se os itens foram respondidos devidamente. A aplicação consiste em solicitar do examinado que responda aos 155 itens que compõem o IFP, escolhendo uma única alternativa dentre as opções, composta de sete pontos que variam progressivamente de 1 ("nada característico") a 7 ("totalmente característico"). Os itens são de fácil compreensão, de modo que, embora extenso, o instrumento é de aplicação simples e relativamente rápida. O IFP possui propriedades psicométricas adequadas, uma vez que foi validado e padronizado para a população brasileira. É um instrumento que privilegia a investigação de traços acerca dos quais os sujeitos podem, teoricamente, possuir maior conhecimento consciente. Escala fatorial de ajustamento emocional/neuroticismo
A escala fatorial de ajustamento emocional/neuroticismo (EFN) é um instrumento autoadministrável, baseado no modelo dos cinco grandes fatores, que permite uma avaliação rápida e objetiva de uma dimensão da personalidade humana denominada neuroticismo/estabilidade emocional.
Quadro IV Dimensões da personalidade segundo o IFP (baseado em Pasquali et al.59) Dimensões
Conceitos
Assistência
Tendência a auxiliar e tratar as pessoas com compaixão e ternura
Ordem
Tendência a manter a ordem e a valorizar a limpeza. o equilíbrio e a precisão dos objetos do mundo exterior
Denegação
Tendência a se entregar passivamente às forças externas, a se resignar perante as dificuldades e até mesmo a apresentar desejos de dor e autodestruição
lntracepção
Tendência a se deixar conduzir por sentimentos e inclinações difusas
Desempenho
Necessidade de vencer obstáculos, realizar ações difíceis e executar tarefas de maneira independente e com o máximo de rapidez
Exibição
Necessidade de impressionar. entreter e fascinar as pessoas
Afago
Tendência a buscar ajuda, proteção, consolo e perdão
Heterossexualidade
Necessidade de planejar e manter relações heterossexuais
Mudança
Necessidade de mudar. mediante o próprio esforço. uma determinada situação ou certas características das pessoas
Persistência
Tendência a se dedicar intensamente a uma tarefa até concluí-la, ainda que, para tanto, seja necessário desrespeitar os próprios limites
Agressão
Necessidade de atacar, lutar. opor-se a algo ou alguém, mediante o uso da força. e revidar a injúria
Deferência
Necessidade de admirar. prestigiar. apoiar, honrar, elogiar. imitar ou se sujeitar a um modelo ou superior, ou ainda se conformar com os costumes e tradições
Autonomia
Tendência a ser independente, libertar-se de restrições, resistir à coerção
Afiliação
Necessidade de se ligar afetiva mente e permanecer fiel a alguém, fazer amizades e mantê-las e se tornar íntimo de alguém
Desejabilidade social
Indica se o examinado tentou se apresentar conforme os desejos de outras pessoas
31 AVALIAÇÃO DA PERSONALIDADE
A escala é composta por 82 itens em quatro subescalas: vulnerabilidade, desajustamento psicossocial, ansiedade e depressão. Os itens avaliam quão adequadamente cada sentença aplica-se aos indivíduos e foram construídos na forma de frases que descrevem atitudes, crenças e sentimentos dos participantes. Por exemplo: "Frequentemente sinto que coisas muito ruins estão por acontecer, mesmo sem nenhum motivo aparente': Os indivíduos fornecem suas respostas numa escala de sete pontos ( 1 - completamente inadequada, "a sentença não descreve nenhuma característica minha"; 4 - neutro, "mais ou menos"; e 7 - perfeitamente adequada, "a sentença me descreve perfeitamente bem"). A avaliação do teste resulta em escores percentuais nas quatro dimensões do neuroticismo. A escala geral deve ser interpretada a partir de sua conversão em um escore padronizado. O instrumento apresenta boa consistência interna (alpha = 0,94) e boa capacidade de discriminação, servindo como um recurso útil para a indicação de transtornos de personalidade60 . Bateria fatorial de personalidade
A bateria fatorial de personalidade (BTF) é um instrumento psicológico construído para a avaliação da personalidade a partir do modelo dos cinco grandes fatores (CGF), que inclui as dimensões extroversão, socialização, realização, neuroticismo e abertura para novas experiências. Sua aplicação permite avaliar traços tais como vulnerabilidade ao sofrimento, passividade, ins tabilidade, nível de comunicação, dinamismo, assertividade, competência, ponderação, extroversão, nível de comunicação, empenho, realização, busca por novidade, entre outros.
Quadro V
Composta de 126 itens, sua aplicação geralmente não ultrapassa 30 minutos. Indicado para avaliar adultos com escolaridade a partir do ensino médio, normatizado para todas as regiões brasileiras. Inventário de personalidade NEO PI- R
O inventário de personalidade NEO é um instrumento de avaliação da personalidade normal, baseado nos cinco grandes fatores de personalidade (Big Five): neuroticismo, extroversão, abertura a experiências, amabilidade e conscienciosidade. Composto de 240 questões que avaliam 30 subfatores, organizadas em cinco grandes fatores e um dos instrumentos em crescente uso 36,61,62 : • neuroticismo: ansiedade, raiva/hostilidade, depressão, embaraço/constrangimento, impulsividade e vulnerabilidade; • extroversão: acolhimento, gregarismo, assertividade, atividade, busca de sensações e emoções positivas; • abertura a experiências: fantasia, estética, sentimentos, ações variadas, ideias e valores; • amabilidade: confiança, franqueza, altruísmo, complacência, modéstia e sensibilidade; • conscienciosidade: competência, ordem, senso do dever, esforço por realizações, autodisciplina e ponderaçao. Sua aplicação é direcionada para adultos a partir dos 18 anos de idade até os 60 anos, com escolaridade mínima correspondente ao ensino médio completo, de forma individual ou coletiva. O tempo de aplicação do NEO PI- R é variável entre 40 a 60 minutos. Sua correção é informatizada através de um crivo eletrônico. Essa correção fornece uma tabela de percentis e gráfico (em barras ou em linhas).
Testes psicológicos para avaliação da personalidade
Teste
Categoria
Zulliger
Tendência a auxiliar e tratar as pessoas com compaixão e ternura
Visuo -verbal
Tendência a se entregar passivamente às forças externas, a se resignar perante as dificuldades e até mesmo a apresentar desejos de dor e autodestruição
Teste de Apercepção Temática (TAD
Visuo -verbal
Pirêmides Coloridas de Pfister
Visuo -verbal
Psicodiagnóstico de Rorschach
Visuo -verbal
Psicodiagnóstico Miocinético PM K
Gráfico
Palográfico
Gráfico
Desenho da Figura Humana
Gráfico
Desenho da Casa, Árvore e Pessoa (HTP)
Gráfico
Inventário Fatorial de Personalidade OFP)
Inventário/escala
Escala Fatorial de Ajustamento Emocionai/Neuroticismo (EFN)
Inventário/escala
Bateria Fatorial de Personalidade (BFP)
Inventário/escala
Inventário de Personalidade NEO PI- R
Inventário/escala
Desejabilidade social
Indica se o examinado tentou se apresentar conforme os desejos de outras pessoas
389
390
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Considerações finais Ao longo deste capítulo foi possível dissertar o quanto a temática personalidade, seja na área da psiquiatria, seja na área da psicologia, reveste-se de uma extensa complexidade que abrange desde as questões conceituais, passando pelas teorias e por fim chegando à avaliação da suas possíveis alterações63 • Quando se aborda a avaliação da personalidade, está se buscando mecanismos para entender o que chamamos de pessoas ou pacientes "difíceis': pautados por uma desadaptação social em todas as áreas, presença de impulsividade e por vezes agressividade e a dificuldade de adesão ao tratamento, seja ele médico ou psicológico. Enfim, estamos lidando com pessoas que sofrem e fazem os outros sofrerem. Visto isto, de fato percebe-se uma crescente no estudo dos métodos de avaliação da personalidade. Essa crescente também demonstra que os autores concordam que avaliação da personalidade representa um desafio para os psicólogos e psiquiatras, primeiro pela carência de um número considerado de instrumentos validados no Brasil, embora já vislumbre uma mudança neste aspecto. E segundo, pelas divergências quanto aos métodos que são mais adequados para esse fim, aspecto este comum a outras realidades. Frente ao exposto, encontramos na literatura científica várias indicações da utilidade em associar resultados de avaliações objetivas da personalidade com aspectos obtidos a partir de entrevistas, e acrescento aqui, a incorporação dos resultados dos testes projetivos, sugerindo assim um protocolo que agregue uma prática interdisciplinar de avaliação, o que certamente aumenta a validade dos seus resultados e sua eficácia para um se chegar diagnóstico 13'39'40. Esse procedimento sem sombra de dúvidas evitará, por exemplo, que o profissional se baseie apenas nas descrições generalizadas do comportamento, levando-o a suposições cada vez mais distantes e inexatas da real condição da pessoa avaliada. Sabe-se que o uso de instrumentos para avaliação da personalidade não consiste em uma total neutralidade e a maioria deles não apresenta eficácia de 100%. Entretanto, essa premissa não implica que os mesmos sejam descartados64. Cabe ao cada profissional, seguir as pré-condições, ter conhecimento e domínio de sua aplicação e avaliação. Além disso, se faz imprescindível o domínio nas matérias psicopatologia, psicologia da personalidade e técnicas de exame psicológico e técnicas de entrevistas diagnósticas. Essas condições irrestritas por si só eliminarão uma considerável contaminação subjetiva de suas percepções e julgamentos.
Questões 1. Ao se estudar a personalidade antes de tudo deve-se considerar as diferenças individuais, uma vez que a personalidade em sua essência se constitui de: a) Fatores unicamente modulados pelo ambiente.
b) Temperamento resultante direto do funcionamento da constituição que modula as respostas primitivas frente aos estímulos ambientais. c) Fatores estritamente biológicos. d) Características apenas estruturais que não se modifica ao longo dos anos. e) Constituição hereditária.
2. O domínio das áreas de psicopatologia e modificação comportamental são imprescindíveis para avaliação da personalidade, pOIS:
a) Facilita tanto a verificação tanto de um TEP quanto de disfunção de um traço específico da personalidade. b) Indica o tipo de teste adequado. c) Indica o tipo de transtorno visto a facilidade de detectar esses transtornos. d) Essa condição é mais necessária para o psiquiatra e não tanto para o psicólogo. e) Permite ao avaliador já estabelecer diagnóstico. Para caracterizar um TEP se faz necessário considerar: A presença de impulsividade A presença de agressividade A presença de prejuízo social associado à presença de comportamento disfuncional. d) A presença de quadros alucinatórios e delirantes e) A presença do isolamento é constante
3. a) b) c)
4. Considerando o modelo psicobiológico, para considerarmos um transtorno de personalidade são necessários os seguintes domínios, exceto a alternativa: a) Regulação dos impulsos b) Modulação afetiva c) Julgamento moral d) Organização cognitiva e) Controle da ansiedade 5. Para a condução adequada em processo de avaliação, ressaltase que o profissional apresente as seguintes condições, exceto: a) Capacidade para facilitar a expressão do paciente em relação sua queixa ou comportamentos problemas. b) Competência para detecção das alterações psicopatológicas ou aspectos disfuncionais. c) Capacidade para estabelecer uma relação médico- paciente pautada na confiança. d) Aplicação de várias entrevistas com paciente e familiares. e) Utilizar um único instrumento de avaliação.
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31 AVALIAÇÃO DA PERSONALIDADE
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391
Avaliação do Sono
Stella M arcia Azevedo Tava res Rosa Hasa n
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 392 Avaliação clínica, 392 Diários de sono, 393
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Medidas subjetivas, 393 Avaliação da sonolência excessiva, 394 Avaliação da qualidade do sono, 394 Avaliação de pacientes em risco de apneia de sono, 394 Medidas objetivas, 394 Polissonografia, 394 Teste das latências múltiplas de sono, 398
1. Aprofundar os conhecimentos de semiologia voltada para os transtornos do sono, com ênfase na anamnese. 2. Compreender a importância do uso de diários de sono. 3. Conhecer as escalas e questionários mais utilizados na avaliação dos transtornos do sono. 4. Conhecer a importância da polissonografia na avaliação dos transtornos do sono. 5. Conhecer as indicações da polissonografia.
Outros métodos, 398 Actigrafia, 398
6. Conhecer o teste das latências múltiplas de sono e suas
Questões, 398 Referências bibliográficas, 399
Z Conhecer a actigrafia e suas indicações.
Introdução Queixas de "sono ruim'' são conhecidas desde a Antiguidade e Hipócrates já alertava no século V a. C, que "a doença existe, quando sono ou vigília são excessivos" (Aforismo LXXI). Alterações dos padrões de sono são comuns na prática médica e com frequência fazem parte dos critérios diagnósticos de vários transtornos psiquiátricos1. Assim, é indispensável que, frente a um paciente com qualquer queixa de sono, seja feita uma investigação adequada para diagnosticar se ela representa um transtorno primário de sono, doença clínica ou psiquiátrica, alterações relacionadas ao envelhecimento ou até mesmo uma variação do sono normal 2•3 •
Avaliação clínica A história de sono é fundamental e constitui um dos primeiros passos para a identificação da natureza do problema4. Essa anamnese visa a definir o transtorno específico de
indicações.
sono, avaliar a evolução clínica ao longo dos anos e o impacto na vida do paciente e a diferenciar entre os vários transtornos de sono. Deve ser muito detalhada e necessariamente inclui a avaliação do padrão de sono e dos sintomas ao longo das 24 horas, sua variabilidade em dias de semana, feriados e férias, e se ocorrem contínua ou intermitentemente. Muitas vezes, é necessário que o(a) parceiro(a) também seja interrogado(a), pois o paciente pode não estar ciente de eventos que estejam ocorrendo durante a noite. Algumas questões são imprescindíveis e incluem: a) grau de satisfação com a qualidade do sono; b) sensação de bem -estar ou cansaço ao acordar e ao longo do dia; c) presença de sonolência diurna e situações nas quais ela se manifesta (p. ex., atividades monótonas ou de risco como na direção de um veículo) e ocorrência de cochilos (duração, frequência, horário e grau de satisfação ao acordar). d) sinais e sintomas associados como ronco, episódios de parada respiratória, cefaleia matinal, cataplexia,
32 AVALIAÇÃO DO SONO
há suspeita de transtornos circadianos do ciclo sono-vigíla, em alguns quadros de insônia, avaliação de hábitos de higiene de sono, caracterização do padrão de sono e presença de cochilos5 • Geralmente, o paciente registra o horário de ir para a cama e de dormir, o tempo que demora para adormecer, o número e a duração de despertares durante a noite, o horário de acordar e de sair da cama, a qualidade do sono ao acordar, a presença e a duração de cochilos diurnos, o uso de medicações e álcool. Dados como atividades do paciente podem ser relatados. Esses parâmetros são então tabulados obtendo-se uma visão geral do padrão de sono do paciente.
alucinações hipnagógicas, paralisia do sono, comporta, . . . mentos automatiCos, ass1m como smtomas que possam afetar o sono (p. ex., rinite, tosse, dispepsia, queimação retroesternal, dispneia, respiração bucal, dor, prurido, parestesias, entre outros); e) uso de medicamentos; f) horário da ingestão, dose, relação com padrão de sono; g) consumo de álcool, cafeína, tabaco, drogas ilícitas; h) hábitos de higiene de sono; i) condições físicas do ambiente de dormir como presença de barulho, luz, ronco do cônjuge; j) tratamentos já realizados e resultados; k) história clínica e psiquiátrica do paciente e da família, investigando-se a presença de distúrbios psiquiátricos ou psicopatológicos (p. ex., transtornos do humor, ansiedade, estresse) e de doenças clínicas (p. ex., hipotireoidismo, acromegalia, doença de Parkinson, demên cias); I) rotina de sono em dias de semana, finais de semana, feriados e férias, bem como a rotina diurna (exercício, exposição à luz, atividades estressantes etc.)
Medidas subjetivas O preenchimento de questionários padronizados e validados pode ser um instrumento adicional para a investigação dos transtornos de sono, podendo traçar opadrão de sono do indivíduo e avaliar condições específicas do sono. Existem vários modelos utilizados na literatura. Instrumentos para medidas subjetivas podem ser utilizados como rotina clínica pra fins diagnósticos, monitoração da resposta aos tratamentos, estudos epidemiológicos e pesquisa clínica. A escolha do instrumento a ser utilizado deve se pautar na sua finalidade, na facilidade de aplicação, na confiabilidade e na validação.
Diários de sono O preenchimento de um diário de sono por 2 a 3 semanas pode ser um instrumento adicional na avaliação do sono (Figura 1). É indicado principalmente quando
Nome: Dia
Ano:
Mês
Assinale com "X" as horas de sono
Tomei comprimido para dormir Sim
Não
20h
21 h
22h
23h
Oh
1h
2h
3h
4h
5h
Qualidade do Atenção durante sono (1 -3) o dia (1-3) 6h
7h
8h
9h
Pontuação de escala 1 =ruim; 2 = bom; 3 = ótimo. Assinal e com um "X" o tempo que permaneceu dormindo. Marque com seta para baixo ( que você saiu da cama.
Figura 1
Diário do sono.
. L ) a hora que você foi para a cama; com uma seta para cima ( i
) a hora
393
394
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Avaliação da sonolência excessiva
Avaliação de pacientes em risco de apneia de sono
Escala de Sonolência de Epworth6 Essa escala contém 8 itens (situações soporíferas do dia a dia), sendo graduada de zero a 3 pontos (Quadro I). Avalia sonolência subjetiva de baixa até alta intensidade. É autoaplicável e o valor de corte é menor do que 1Opontos. É a escala mais utilizada na prática clínica e citada em protocolos de pesquisa. A graduação da sonolência excessiva diurna é feita da seguinte maneira: • Leve (11 a 16 pontos): ocorre em situações sedentárias que exigem pouca atenção, como ao assistir televisão, no cinema, na leitura, no lugar de passageiro em veículos. Não está necessariamente presente todos os dias e o paciente não apresenta prejuízo importante de desempenho. • Moderada (17 a 20 pontos): ocorre diariamente, aparecendo em atividades físicas, situações de atenção, reuniões. Acarreta em moderada incapacidade do desempenho. • Acentuada (21 a 24 pontos): praticamente o tempo todo, ocorrendo inclusive em atividades que exigem bastante atenção, como dirigir um automóvel. É bastante incapacitante.
Questionário de Berlim 8 Esse questionário é utilizado para avaliar fatores de risco para apneia obstrutiva do sono. É composto por 11 itens, divididos em 3 categorias (Quadro II). Pode ser um instrumento útil para triagem, sendo que o diagnóstico definitivo é feito pela polissonografia.
Avaliação da qualidade de sono Escala de Pittsburgh para avaliação da qualidade do sono 7 É constituído por 18 questões que avaliam os últimos 30 dias decorridos. Os parâmetros avaliados são: qualidade do sono, duração do sono, eficiência do sono, latência para o sono, sintomas de transtornos do sono, uso de medicações e funcionamento diurno.
Quadro I
Medidas objetivas Polissonografia (PSG) 5·9 ·1 o A PSG consiste no registro de múltiplas variáveis fisiológicas durante o período principal do sono de um indivíduo e é uma ferramenta importante para a avaliação objetiva e diagnóstica dos transtornos do sono. Tipos de exames O padrão-ouro da PSG é o exame de noite inteira com o registro simultâneo e contínuo de parâmetros neurofisiológicos, cardiorrespiratórios e outros, realizado em um laboratório especializado, sob supervisão contínua de um técnico habilitado em PSG. O exame é chamado de "basal" quando tem finalidade diagnóstica. A "PSG para titulação de CPAP" consiste na regulação de pressão aérea positiva (PAP), com a indicação dessa terapia após ter sido feito o diagnóstico de apneia obstrutiva do sono (AOS) em uma PSG basal. Normalmente são avaliados o eletroencefalograma, eletro-oculograma, eletromiograma, eletrocardiograma, fluxo aéreo (nasal e oral), esforço respiratório (torácico e abdominal), saturação arterial de oxigênio, ronco e posição corporal.
Escala de sonolência Epworth
Qual é a probabilidade de você "cochilar" ou adormecer nas situações que serão apresentadas a seguir, em contraste com estar sentindo-se simplesmente cansado? Isso diz respeito ao seu modo de vida comum, nos tempos atuais. Ainda que você não tenha feito ou passado por nenhuma dessas situações, tente calcular como poderiam tê-lo afetado. Utilize a escala apresentada a seguir para escolher o número mais apropriado para cada situação O= nenhuma chance de cochilar 1 = pequena chance de cochilar 2 = moderada chance de cochilar 3 = alta chance de cochilar SITUAÇÃO: Sentado e lendo Vendo televisão Sentado em um lugar público (ex. sala de espera, igreja ) Como passageiro de trem, carro ou ônibus andando uma hora sem parar Deitando-se para descansar à tarde, quando as circunstâncias permitem Sentado e conversando com alguém Sentado calmamente após almoço sem álcool Se tiver carro, enquanto para por alguns minutos quando pega trânsito intenso TOTAL
CHANCE DE COCHILAR:
32 AVALIAÇÃO DO SONO
Quadro 11
Questionário de Berlim
Instruções: As questões abaixo se relacionam aos fatores de risco para a síndrome da apneia obstrutiva do sono. Contém 11 itens e você deve optar por apenas O1 opção em cada item. Categoria 1 1. Seu peso mudou nos últimos tempos? a) aumentou b) diminuiu c) não mudou
Pontuação (1)
(O) (O)
2. Você ronca?
a) sim b) não c) não sei 3. Seu ronco é? a) um pouco mais alto que respirando b) tão alto quanto falando c) mais alto que falando d) muito alto, ouvido nos quartos próximos 4. Com que frequência você ronca? a) praticamente todos os dias b) 3 a 4 vezes por semana c) 1 a 2 vezes por semana d) 1 a 2 vezes por mês e) nunca ou praticamente nunca 5. O seu ronco incomoda outras pessoas? a) sim b) não 6. Com que frequência seu companheiro notou que você para de respirar quando dorme? a) praticamente todos os dias b) 3 a 4 vezes por semana c) 1 a 2 vezes por semana d) 1 a 2 vezes por mês e) nunca ou praticamente nunca f) Não aplicável - o paciente dorme sozinho
(1)
(O) (O) (O)
(O) (1) (1) (1)
(1)
(O) (O) (O) (1)
(O) (1) (1)
(O) (O) (O) (O)
Total Categoria 2 7. Você se sente cansado ao acordar? a) praticamente todos os dias b) 3 a 4 vezes por semana c) 1 a 2 vezes por semana d) 1 a 2 vezes por mês e) nunca ou praticamente nunca
8. Você se sente cansado durante o dia? a) praticamente todos os dias b) 3 a 4 vezes por semana c) 1 a 2 vezes por semana d) 1 a 2 vezes por mês e) nunca ou praticamente nunca 9. Você alguma vez dormiu enquanto dirigia? a) não b) não aplicável - o paciente não dirige Se sim, quantas vezes isso ocorreu c) praticamente todo dia d) 3 a 4 vezes por semana e) 1 a 2 vezes por semana f) 1 a 2 vezes por mês g) nunca ou praticamente nunca
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Total Categoria 3 1O. Você tem pressão alta? a) sim b) não c) não sei 11. Valor do indice de Massa Corporal (IM C) Peso = Altura = Total Categorias 1 e 2: positivas se somar 2 ou mais pontos Categoria 3: positiva se somar 1 ponto ou IMC maior que 30 Duas ou mais categorias positivas indicam grande possibilidade de distúrbios do sono.
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CLÍN ICA PS IQUIÁTRICA
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SEÇÃO 3
DA SEMIO LOG IA AO D IAGNÓSTICO EM PS IQU IATRIA
Na avaliação chamada split-night, o registro inicial é feito para o diagnóstico de quadro de AOS, seguido, na segunda metade da noite, de titulação de PAP. Esse tipo de exame pode ser uma alternativa em casos graves de AOS, mas não se recomenda que seja utilizado rotineiramente, pois pode acarretar em erros diagnósticos e regulação incorreta do nível pressórico adequado para o tratamento. Outro tipo de exame que pode ser realizado em um laboratório de sono é o vídeo -PSG. Além dos parâmetros rotineiramente avaliados na PSG, são colocados os eletrodos comumente realizados na eletroencefalografia e o paciente é necessariamente filmado durante a noite. Esse exame pode ser indicado quando houver necessidade de diagnóstico diferencial de comportamentos anormais durante o sono (parassonias e crises epilépticas durante o sono). Com o advento dos aparelhos computadorizados, é possível realizar uma PSG completa (parâmetros neuro fisiológicos e cardiorrespiratórios) na residência do paciente, mas ainda não há evidências de que apresente vantagens sobre o padrão-ouro. A monitoração cardiorrespiratória, também denominada "registro portátil", consiste na avaliação de apenas alguns parâmetros (fluxo aéreo, movimentos torácico e abdominal, eletrocardiograma, oximetria), sem possibilidade de analisar o padrão de sonou. Esse exame pode ser domiciliar ou pode ser realizado no laboratório de sono. É uma avaliação restrita à investigação dos transtornos respiratórios do sono, devendo ser indicada em casos bem selecionados com grande suspeita de AOS, com sintomas graves em que a PSG não é possível, em pacientes que não podem ser estudados em laboratório e como exame de controle de tratamento em pacientes prer-
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A PSG fornece vários dados objetivos, os quais devem ser correlacionados com a história clínica. Os parâmetros mais comumente utilizados são: a) latência de sono NREM - é o tempo que leva desde o apagar das luzes até o início do sono; o valor normal para adultos jovens é de até 30 minutos; b) latência de sono REM - é o tempo entre o início do estágio 2 e o início do primeiro episódio REM durante a noite. É um dado bastante utilizado na PSG desde o trabalho de Kupffer em 1976, descrevendo o encurtamento da latência de sono REM em transtornos depressivos 12 • O valor normal em adulto jovem é de 70 a 120 minutos; c) eficiência de sono - representa a quantidade do tempo total de sono em relação ao tempo total de registro e o valor normal é > 85% no adulto jovem; d) porcentagem e distribuição das fases de sono - em um adulto saudável a distribuição dos estágios de sono é de 20 a 25% de sono REM, até 8% de estágio N1, 50 a 55% de estágio N2 e 15 a 25% de sono de ondas lentas (N3); e) índice - vários eventos são descritos através de um índice, o qual define o número desse evento por hora de sono: • índice de eventos respiratórios (apneias-hipop neias), que é o número de pausas respiratórias dividido pelo número de horas de sono: - leve= 5 a 15/hora - moderado= 15 a 30/hora - grave > 30/hora
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Gráficos representam a noite de sono de dois indivíduos adultos. O primeira (ao alto) mostra o padrão de sono compatível com a normalidade; o segundo (abaixo) mostra padrão de sono com fragmentação devido à despertares e ausência de sono de ondas lentas (estágio N3). (Veja imagem colorida no encarte.)
32 AVALIAÇÃO DO SONO
rios e movimentos de membros), durante uma noite de avaliação, exemplificando algumas correlações. Outro ponto importante é o conhecimento da medicação utilizada pelo paciente, bem como a que foi suspensa nos últimos dias. Várias drogas interferem na arquitetura do sono e outras podem alterar o padrão respiratório. Por exemplo antidepressivos de maneira geral são supressores de sono REM e benzodiazepínicos e barbitúricos podem aumentar o número de pausas respiratórias durante o sono.
• índice de movimentos periódicos de membros inferiores: - leve= 15 a 25/hora - moderado = 25 a 50/hora - acentuado > 50/hora ou > 25/hora quando associados a microdespertar • índice de micro despertares (eventos com duração entre 3 e 15 segundos). O valor normal é considerado entre 10 a 15/hora; f) arritmias cardíacas; g) alteração de gases sanguíneos - o parâmetro mais utilizado é a saturação arterial da oxi-hemoglobina obtido pela saturação da oximetria digital, sendo essencial na avaliação de transtornos respiratórios durante o sono; h) hipnograma - é a representação gráfica da arquitetura do sono, ou seja, da distribuição dos estágios do sono ao longo da noite. Pode ser bastante útil para se ter uma avaliação global do padrão de sono (sono normal e fragmentado) (Figura 2).
Indicações da PSG3·5•13
A PSG é o exame de rotina para investigação dos transtornos respiratórios do sono e para titulação da PAP, assim como na avaliação da resposta de tratamento como cirurgias, aparelhos intraorais e perda de peso 10•13 . Nos casos de sonolência excessiva, o exame não está indicado quando esse sintoma for claramente decorrente de privação de sono (quantidade de sono insuficiente) ou estiver associado ao uso de alguma medicação. Quando houver suspeita de narcolepsia, a PSG deve ser seguida pelo teste das latências múltiplas de sono 14 • Nos casos das insônias, a PSG pode ser indicada para complementação diagnóstica ou para avaliação subjetiva do padrão de sono 13•15. Não é necessária para o diagnóstico de síndrome das pernas inquietas. Em casos de comportamentos anormais durante o sono, a vídeo -PSG pode ser indicada para o diagnóstico diferencial entre os diferentes tipos de parassonias e crises epilépticas 13•16 • É importante salientar que a PSG não deve ser realizada quando o paciente não estiver em seu estado habitual, como com quadro gripa! ou febril, após privação prévia de sono ou regimes irregulares de sono, mudança de fuso horário, entre outros.
Interpretação dos achados polissonográficos
Ao se avaliar um exame polissonográfico, é necessário considerar os dados da arquitetura de sono com especial atenção à latência de sono NREM e de REM, tempo acordado após o início do sono, despertares e distribuição dos estágios de sono, sendo importante a visualização gráfica destes achados. Quanto aos eventos respiratórios e movimentos periódicos, além da visualizarão gráfica é importante também analisar as tabelas anexas ao laudo, nas quais podem ser feitas correlações com estágios de sono, posição corporal, etc. As Figuras 3 e 4 mostram exemplos de gráficos completos (hipnograma, saturação de oxigênio, frequência cardíaca, posição corporal e eventos (respirató-
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Figura 3 Correlação entre o estágio REM de sono e as pausas respiratória s. (Veja imagem colorida no encarte.)
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
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Se o paciente estiver fazendo uso de medicações que alterem a arquitetura de sono (por exemplo, antidepressivos, ansiolíticos, hipnóticos, estimulantes do sistema nervoso central, antipsicóticos), este deve ser suspenso antes do exame somente quando não houver contraindicação clínica e por pelo menos um período equivalente a cinco vezes o da duração da meia-vida da droga (geralmente 14 dias sem a medicação) 5•14 •
Teste das latências múltiplas de sono (TLMS) 14 O TLMS é um exame que avalia a sonolência diurna de modo objetivo, sendo o método mais utilizado para a quantificação objetiva de sonolência diurna. É realizado durante o período diurno e consiste de 4 a 5 registros poligráficos, obtidos em intervalos de 2 horas, com duração de 20 minutos para cada registro. Deve ser feito após uma PSG noturna. O paciente é orientado a não resistir ao sono e, em cada registro, mede-se a latência de sono. Depois, é calculada a latência média de sono; um valor inferior a 5 minutos é considerado anormal (o valor de corte para normalidade é de 10 minutos). Esse teste também tem a finalidade de detectar a presença de sono REM precoce nos registros diurnos, importante para o diagnóstico de narcolepsia, sendo que são necessários 2 registros de sono REM para confirmação diagnóstica desse quadro. É fundamental que o paciente suspenda medicações que suprimam sono REM para evitar falsos positivos ou falsos negativos, como por exemplo antidepressivos, hipnóticos, ansiolíticos e estimulantes do SNC pelo menos duas semanas antes da realização desse teste.
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Figura 4 Correlação entre a posição supina e as pausas respiratórias. (Veja imagem colorida no encarte.)
Outros métodos Actigrafia 3•5 Consiste em um método de avaliação indireta de sono e vigília, utilizando um instrumento portátil, que infere o sono e a vigília por meio de algoritmos específicos, baseados em um acelerômetro que detecta movimentos. Os dados são arquivados em um sistema de memória inserido em dispositivos do tamanho de um relógio de pulso usado no membro superior ou inferior não dominante. Alguns parâmetros podem ser inferidos, como latência do sono, tempo de vigília após o início do sono e tempo total de sono. Pode ser uma alternativa para pacientes que não conseguem preencher um diário de sono, como crianças, idosos com transtornos neurocognitivos, em casos de insônias e em transtornos do ciclo circadiano.
Questões 1. A latência normal de sono REM em adulto jovem é de: a) b) c) d) e)
1 a 1Ominutos 10 a 30 minutos 30 a 60 minutos 70 a 120 minutos maior que 120 minutos
2. O Teste de Latências Múltiplas do Sono é muito utilizado para o diagnóstico de: a) narcolepsia b) fibromialgia
32 AVALIAÇÃO DO SONO
c) crises epilépticas d) depressão e) ansiedade
3. Assinale a alternativa correta: a) A polissonografia é o exame auxiliar de excelência para diagnóstico de insônia. b) O diagnóstico de certeza da síndrome das pernas inquietas é feito pela polissonografia. c) A polissonografia deve ser indicada quando houver suspeita de transtorno respiratório do sono (apneia do sono) e de transtornos motores durante o sono (movimentos periódicos) . d) Quando o paciente estiver fazendo uso de medicações como antidepressivos, hipnóticos, ansiolíticos, recomenda-se que essas medicações sejam suspensas entre 1 e 3 dias antes da realização de uma polissonografia. e) A polissonografia pode ser indicada mesmo quando o paciente não estiver em seu estado habitual de saúde (p. ex. com gripe, febre, em estados infecciosos) ou após privação de sono.
4. Assinale a alternativa correta: a) Índice de apneias-hipopneias de 15/ hora é considerado índice normal. b) Em um adulto saudável a distribuição dos estágios de sono é de 30% de sono REM. até 15% de estágio N1, 50 a 60% de estágio N2 e 15 a 25% de sono de ondas. c) A eficiência de sono normal é> 750/o no adulto jovem. d) A latência de sono normal em um adulto jovem é de 45 minutos. e) Um índice de apneias-hipopneias > 30/hora é considerado índice grave.
5. Assinale a alternativa correta: a) A polissonografia considerada padrão-ouro é o exame realizado no domicnio do paciente, sem supervisão de técnico especializado, com registro de variáveis neurofisiológicas e cardiorrespiratórias e outras. b) O exame do tipo split night pode ser indicado como rotina nos casos de apneia do sono. c) Na anam nese de uma queixa de sono, é essencial interrogar sobre os hábitos de sono que o paciente apresenta durante os dias de trabalho e em fins de semana e férias.
d) A polissonografia domiciliar já apresenta dados científicos comprovando ser mais eficaz que a polissonografia padrão-ouro. e) O diário de sono não tem utilidade na investigação de transtornos circad ianos do sono.
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399
Avaliação da Sexualidade no Ciclo de Vida Carmita Helena Najjar Abdo
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 400 Entrevista sexológica, 403
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Entrevista biopsicossexual. 404 Instrumentos de avaliação dos transtornos da preferência sexual (parafi lias). 404 Instrumentos de avaliação dos transtornos da identidade sexual, 405 Instrumentos de avaliação das disfunções sexuais, 406 Índice da Função Sexual Feminina (FSFI), 406
1. Desenvolver entrevista para avaliar a presença de transtornos da
sexualidade. 2. Identificar o tipo de transtorno da sexualidade (disfunção sexual, transtorno da preferência sexual ou transtorno da identidade sexual). 3. Categorizar esses transtornos, segundo critérios de avaliação.
Índice Internacional de Função Erétil OIFE). 406 Instrumentos de avaliação das disfunções sexuais elaborados
4. Valorizar elementos de história, exames psíquico e físico para essa
para a população brasileira, 406 Quociente sexual - versão masculina (QS-M), 414
5. Utilizar-se de instrumentos de avaliação sexológica.
Quociente sexual - versão feminina (QS-F), 416 Exame físico, 417 Instrumentos psicofisiológicos, 417 Investigação laboratorial, 418 Formulação diagnóstica, 418 Considerações finais, 419 Questões, 419 Referências bibliográficas, 420
Introdução Os transtornos da sexualidade se dividem em três grandes grupos, a saber: disfunções sexuais, transtornos da preferência sexual (ou parafilias) e transtornos da identidade sexual (ou de gênero)1.2. As disfunções sexuais são definidas como a incapacidade do indivíduo de participar do ato sexual com satisfação. Essa dificuldade deve ser persistente ou recorrente, além de vivenciada como algo indesejável, desconfortável e incontroláveF. Tais disfunções impedem que o ciclo de resposta sexual (desejo, excitação, orgasmo e resolução) se processe com sucesso e/ ou de modo adequado. Dependendo da(s) fase(s) em que ocorre(m) essa(s) dificuldade(s), a disfunção será categorizada como:
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do desejo e/ou da excitação e/ou do orgasmo. Tais quadros constituem a grande maioria dos transtornos da sexualidade, manifestando-se por meio de falta, exemplificada pela disfunção erétil (falta de ereção), pela inibição do desejo sexual (desejo sexual hipoativo) e pela ausência de orgasmo (anorgasmia); excesso, cujo exemplo é o impulso sexual excessivo; desconforto, representado pela ejaculação precoce (no homem) e pelo vaginismo (na mulher); ou dor durante a relação ( dispareunia), que pode acometer tanto mulheres quanto homens. O sexo saudável almeja a obtenção de prazer e/ou a procriação. A parceria natural para essa prática é um ser humano adulto e vivo, de acordo com a Associação Psiquiátrica Americana. Quando, de forma exclusiva ou repetitiva, a finalidade e/ou a parceria diferem das anteriormente referidas, caracteriza-se o transtorno da preferência sexual2 , também denominado parafilia 1 (no passado, perversão sexual). As parafilias mais frequentes são: • Fetichismo - dependência de objetos inanimados (peças de vestuário, calçados, mechas de cabelos, adornos etc.) para excitação e satisfação sexuais; • Exibicionismo - tendência persistente a expor os genitais em lugares públicos, sem pretensão de contato
33 AVALIAÇÃO DA SEXUALIDADE NO CICLO DE VIDA
íntimo, mas com o intuito de excitação, seguida de masturbação; • Voyeurismo - observação rotineira de pessoas em atividade sexual ou se despindo, o que leva à excitação e à masturbação, sem que as pessoas observadas tenham conhecimento disso; • Pedofilia - preferência sexual persistente por crianças; alguns pedófilos sentem atração só por meninas; outros, só por meninos; e há os que se interessam por crianças de ambos os gêneros; • Sadomasoquismo - preferência por atividade sexual que implica sofrimento e dor física e/ ou moral, à qual o indivíduo se submete (masoquista), enquanto seu(sua) parceiro(a) a inflige (sádico). São também transtornos da preferência sexual ou parafilias: a necrofilia (atração por cadáveres), a zoofilia (atração por animais), a urofilia (prazer somente se urinar no parceiro), a coprofilia (prazer somente se evacuar no parceiro), o parcialismo (atração por partes do corpo do parceiro e não pelo todo) e tantos outros "desvios" da preferência. Traços de vários desses comportamentos, com exceções (como a pedofilia), são comuns no relacionamento sexual de pessoas não parafílicas. O diagnóstico de transtorno da preferência só se faz se essa atividade "aprisionar" e restringir o indivíduo e/ ou o casal numa única e repetitiva forma de excitação e prazer sexual. Três condições compõem os transtornos da identidade sexual2 ou de gênero 1• Uma delas é o transexualismo, manifestado pelo desejo irreversível de viver e ser aceito como pertencente ao sexo oposto, acompanhado geralmente por sensação de grande desconforto em relação ao próprio sexo anatômico. Consequentemente, o indivíduo busca "corrigir esse erro da naturezà' por meio de hormônios, cirurgias, maquiagem e vestimentas próprias do sexo almejado. Outro transtorno da identidade sexual é o travestismo de duplo papel, representado pelo uso de roupas próprias do gênero oposto durante parte do tempo, para usufruir da experiência de também pertencer ao outro gênero, temporariamente. Não há aqui desejo de "adequação" física. Uma terceira situação é o transtorno da identidade sexual da infância, quando a criança apresenta desejo persistente de ser (ou insistência de que é) do sexo oposto ao anatômico próprio. Essa condição se inicia antes da puberdade e é mais frequente entre meninos. Pode ou não se prolongar na vida adulta. Considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), até o início dos anos de 1990, um transtorno da preferência, a orientação sexual homossexual, por si só, não mais faz parte das classificações diagnósticas atuais. Por outro lado, a não aceitação da própria orientação sexual e o desejo de modificá-la caracterizam uma egodistonia, que, quando presente, exige tratamento. A avaliação dos transtornos da sexualidade é essencialmente clínica. Sendo assim, a queixa do( a) paciente e/
ou do( a) parceiro(a), aliada à presença de outros elementos de anamnese, é fundamental. Deve-se observar um mínimo de seis meses de sintomatologia, como critério indispensável para a caracterização desses transtornos 1• Somese a isso a investigação das condições do( a) parceiro( a), para afastar possíveis erros de interpretação, diante do quadro apresentado e/ou referido pelo( a) paciente. Desta feita, por exemplo, o portador de ejaculação precoce pode levar sua parceira equivocadamente a se considerar anorgásmica, quando, de fato, a falta de controle dele, resultando em precocidade ejaculatória, é o que a impede de concluir o ciclo de resposta sexual com êxito. Portanto, se o estímulo sexual recebido for inadequado, quanto ao foco, à intensidade e/ou à duração, exclui-se o diagnóstico de disfunção de desejo, excitação ou orgasmo 1• Recomenda-se, ainda, considerar a idade e a experiência sexual do( a) paciente. Jovens ou principiantes podem apresentar temporariamente dificuldades de ereção e/ou do controle da ejaculação (os homens) e da lubrificação/relaxamento (as mulheres), o que é compreensível e não significa disfunção, mas falta de experiência3 . O diagnóstico, o planejamento terapêutico e o prognóstico devem contemplar a distinção entre disfunções sexuais primárias (ao longo da vida) ou secundárias (adquiridas), bem como entre disfunção generalizada (presente em qualquer circunstância) ou situacional (manifestada somente em determinadas circunstâncias e/ou parcerias). A Tabela I sintetiza o raciocínio diagnóstico para as disfunções sexuais.
Tabela I
Sumário do raciocínio diagnóstico para disfunções sexuais. segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR) e a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (C ID- 10)1·2
A. Alteração nos processos próprios do ciclo de resposta sexual ou presença de dor associada ao intercurso. B. Acentuado sofrimento ou dificuldade interpessoal. C. Não é mais bem explicada por outro transtorno do eixo I e não está relacionada exclusivamente aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância ou de condição médica geral. Considerar os subtipos pela identificação de início, contexto e fatores etiológicos associados ao transtorno, aspectos socioculturais, religiosos e relativos à idade e ao gênero do indivíduo: • ao longo da vida - coincide com o início da atividade sexual; • adquirido - presente após período de funcionamento normal; • generalizado - não se limita a determinados padrões de estimulação, contextos ou parcerias; • situacional - condicional a determinados padrões de estimulação, contextos ou parcerias, podendo esses padrões auxiliar no diagnóstico diferencial; • devido a fatores psicológicos - que desencadeiam, agravam, exacerbam ou mantêm a disfunção, sem a participação de condições médicas e substâncias; • devido a fatores combinados - fatores psicológicos desencadeiam, agravam, exacerbam ou mantêm a disfunção, concomitantemente à condição médica geral ou ao uso de substâncias.
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402
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Quanto aos transtornos da preferência sexual ou parafilias, deve-se investigar a presença de fantasias, anseios sexuais ou comportamentos recorrentes, intensos e sexualmente excitantes, envolvendo objetos não humanos, crianças ou adultos. O estímulo parafílico pode incluir dor ou humilhação - própria ou do( a) parceiro( a) - , sendo obrigatória ou fundamental para que haja excitação e resposta sexual satisfatória2 • Devem-se considerar o tempo de duração (maior que seis meses), a presença de sofrimento e as dificuldades interpessoais decorrentes1. A Tabela II auxilia no raciocínio diagnóstico dos transtornos da preferência sexual. Por sua vez, os elementos a serem valorizados para o diagnóstico dos transtornos da identidade sexual (de gênero) estão resumidos na Tabela III. Vale ter em mente que a orientação sexual (hétero, homo ou bissexual), bem como a identidade sexual e a preferência sexual não estão totalmente definidas à época da iniciação sexual. A partir do exposto até aqui, depreende-se a importância de o médico investigar de rotina a função sexual do( a) paciente. Este( a), muitas vezes, não traz a queixa espontaneamente, por constrangimento, vergonha ou timidez. A investigação, entretanto, justifica-se em função do diagnóstico e do resgate da atividade sexual do( a) pa-
Tabela 111
Tabela 11
Sumário do raciocínio diagnóstico para transtornos da
preferência sexual (parafilias). segundo o DSM- IV-TR e a CID- 10'·2
A Fantasias ou comportamentos sexuais intensos e recorrentes, envolvendo objetos não humanos, crianças ou adultos, sem o consentimento destes, que infligem sofrimento ou humilhação a si próprio ou ao parceiro, por um período mínimo de seis meses. B. O comportamento, os desejos ou as fantasias sexuais provocam acentuado sofrimento, prejudicando o funcionamento social ou ocupacional ou de outras áreas importantes da vida.
Comentários: para a pedofilia, o indivíduo deve ter, no mínimo, 16 anos, sendo ao menos cinco anos mais velho do que a(s) criança(s) envolvida(s). Nesse diagnóstico, deve-se especificar se a atração sexual está direcionada a meninos, a meninas ou a ambos, assim como se está limitada ao incesto. Deve-se também relatar se é do tipo exclusivo, ou seja, atração apenas por crianças, ou do tipo não exclusivo, direcionado a crianças e adultos.
ciente e de sua(seu) parceira( o). E, também, porque a disfunção sexual costuma refletir a presença subjacente de patologias orgânicas ou psiquiátricas. No caso dos transtornos da identidade e da preferência sexual, por sua vez, são notórias as repercussões sobre a qualidade de vida do(a) paciente, bem como os desdobramentos que acometem os familiares e a sociedade como um todo.
Sumário do raciocínio diagnóstico para transtornos da identidade sexual (de gênero). segundo o DSM- IV-TR'
A Forte e persistente identificação com o gênero oposto (não meramente um desejo de obter qualquer vantagem cultural percebida pelo fato de ser do sexo oposto) Em crianças, o transtorno é manifestado por quatro (ou mais) dos seguintes quesitos
1. Declarou repetidamente o desejo de ser, ou a insistência de que é, do sexo oposto 2. Preferência pelo uso ou simulação de roupas do sexo oposto 3. Comportamento e preferências intensas e persistentes por papéis do sexo oposto (brincadeiras ou fantasias) 4. Intenso desejo de participar de jogos e passatempos estereotípicos do sexo oposto 5. Forte preferência por companheiros do sexo oposto
Em adolescentes e adultos, o
1. Desejo declarado de ser do sexo oposto
transtorno se manifesta pelos seguintes sintomas
2. Passar-se frequentemente por alguém do sexo oposto 3. Desejo de viver ou ser tratado como alguém do sexo oposto, ou a convicção de ter os sentimentos e as reações típicas do sexo oposto
B. Desconforto persistente com seu sexo ou sentimento de inadequação no papel de gênero deste sexo Em meninos
1. Afirmação de que seu pênis ou seus testículos são repulsivos, declaração de que seria melhor não ter pênis, aversão a brincadeiras, jogos e atividades típicos do sexo masculino
Em meninas
2. Rejeição a urinar sentada, afirmação de que desenvolverá um pênis, afirmação de que não deseja desenvolver mamas ou menstruar ou acentuada aversão a roupas caracteristicamente femininas
Em adolescentes e adultos
3. Preocupação em ver-se livre de características sexuais primárias ou secundárias (por exemplo, solicitação de hormônios, cirurgia ou outros procedimentos para alterar fisicamente as características sexuais, com o objetivo de simular o sexo oposto) ou crença de ter nascido com o sexo errado
C. A perturbação não é concomitante a uma condição intersexual física O. A perturbação causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo Além dos critérios A, B. C e O, deve-se especificar, nos casos de indivíduos sexualmente maduros, se a atração sexual é por homens. por mulheres, por ambos os sexos ou por nenhum dos sexos
33 AVALIAÇÃO DA SEXUALIDADE NO CICLO DE VIDA
Entrevista sexológica Após a apresentação dos conceitos fundamentais dos transtornos da sexualidade, pode-se estabelecer um roteiro de anamnese que cubra os aspectos necessários ao raciocínio diagnóstico e à escolha do tipo de tratamento adequado a cada caso. • Identificação geral do( a) paciente o nome, idade, naturalidade e procedência, estado civil, grau de instrução, profissão, religião e raça. • Queixa e duração o informação sucinta e objetiva, com palavras do( a) próprio(a) paciente, incluindo o tipo de queixa e o tempo de evolução. • História pregressa da moléstia atual (HPMA) ' o epoca - ao longo da vida (transtorno primário) ou adquir ida (transtorno secundário); D
. ' . llllClO
- insidioso ou agudo; o ocorrenc1a - situacional ou generalizada; o desenvolvimento (evolução) - persistente ou recorrente; o tratamentos anteriores e resultados desses tratamentos. • Antecedentes familiares o auxiliam no reconhecimento dos possíveis fatores predisponentes, desencadeantes, agravantes e/ ou mantenedores do transtorno sexual (Tabela I). Devem ser investigados: • tipo de educação recebida e capacidade de adaptação a novas situações de vida; • doenças familiares e respectivos tipos de tratamento; • cirurgias sofridas pelos familiares e respectivos resultados; • histórico de transtornos psiquiátricos na família e desdobramentos; • número de irmãos; posição do( a) paciente na sequência de nascimentos. • Antecedentes pessoais (AP) • cumpre investigar hábitos, estilo de vida e presença de condições médicas que possam conduzir às disfunções sexuais. São os chamados fatores de risco, ou seja, aqueles que fazem aumentar a probabilidade de deflagração e manutenção de dificuldades sexuais. São eles: sedentarismo, tabagismo, consumo excessivo de álcool, uso de drogas ilícitas, dieta hipo/hipercalórica, doenças, uso e abuso de medicamentos, traumas físicos e cirurgias, conflitos e traumas psicológicos e exames invasivos. • Antecedentes pessoais sexuais Devem ser avaliados: o caracteres sexuais secundários femininos (mamas, distribuição dos pelos, contornos corporais, menarca) e A
•
masculinos (distribuição dos pelos, massa muscular, voz, poluções noturnas); o importância do sexo para o(a) paciente (desde a infância até o momento); o valores culturais, religiosos e familiares; o educação recebida (conceitos, percepção e vivência da sexualidade); o primeiras experiências sexuais (idade, tipo de experiência, desempenho, orientação sexual, abuso sexual); o fantasias sexuais (ocorrência, tipo e aceitação); o orientação sexual atual (hétero, homo ou bissexual); o identidade sexual; o frequência das relações sexuais (vezes/dia; vezes/ semana; vezes/mês); o parcerias sexuais (características); o práticas sexuais (ocorrência e aceitação, incluindo masturbação); o preliminares (foco, intensidade e duração, tipos de estímulos preferidos); o desejo sexual (características); o ereções (matinais, noturnas, à masturbação, nas relações sexuais); o lubrificação vaginal (ocorrência e manutenção); o ejaculação (tempo, controle, características doesperma); o orgasmo (no clitóris e/ou na vagina; orgasmo masculino); o dor (antes, durante ou após o intercurso, não relacionada ao intercurso); o contrações vaginais; o sangramentos (relacionados ou não ao intercurso); o gravidez (idade, aceitação, número, tipo de parto e intercorrências); o abortamentos (época, tipo, número e circunstâncias); o uso de medicamentos ou estimulantes para o sexo (prescritos ou auto administrados, início do uso, frequência, dose e resultados); o doenças sexualmente transmissíveis (DST) (tipos, tratamento, resultados, repercussões na vida sexual); o período de resolução (pós-intercurso: satisfação ou não; intervalo até a próxima relação); o vida afetiva (envolvimento físico e emocional); o informações sobre o(a) parceiro(a): habitual ou esporádico( a); sexualmente disponível ou não; queixas e disfunções sexuais do( a) parceiro( a); relacionamento geral; vínculo (afetivo, sexual, convivência). • Para mulheres no climatério e na menopausa e para suspeita de diminuição do nível androgênico em homens acima de 40 anos, pesquisar: o deficiência hormonal (mulheres) ou diminuição do nível de testosterona (homens), por meio das alterações e dos sintomas físicos (perda muscular, sudorese excessiva, perda óssea, adiposidade visceral, diminuição
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404
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Etiologia da disfunção sexual
Biológica
Hipertensão Endocri nopatia Doenças crônicas (diabetes) Doenças cardiovasculares Doenças urológicas Doenças ginecológicas Efeitos de medicamentos
Figura 1.
Psicológica
•
Estresse Depressão Outras doenças psiquiátricas História de abuso sexual Ansiedade, culpa, hostilidade Baixa autoestima e autoimagem negativa
Conflitos conjugais Disfunção sexual do(a) parceiro(a) Relacionamento extraconjugal Conflito de orientação sexual Conflito religioso Criação dos filhos
Fatores biológicos, psicológicos e interpessoais envolvidos na etiologia das disfunções sexuais (adaptada de Oerogatis, 2008 4).
dos pelos, dores musculares, fadiga); presença de depres são ou de outras manifestações psiquiátricas; reações psicológicas; dinâmica familiar (estrutura, mudanças, conflitos e perdas); desinteresse sexual situacional ou generalizado. • Interrogatório sobre os diversos aparelhos (ISDA) o podem estar implicados na origem do problema sexual ou serem passíveis de sua consequência: cabeça e pescoço; aparelho respiratório; cardiovascular; gastrintestinal; locomotor; geniturinário [doenças, dor, aderências, corrimentos, sangramentos, DSTs, tamanho, volume e forma dos genitais externos (aceitação, satisfação)]; lubrificação, ejaculação (características); menstruação (características e anomalias). • Exame físico dos diferentes aparelhos o caso um ou mais deles estejam comprometidos, podem interferir negativamente no desempenho e na satisfação sexual: aparelho respiratório, cardiovascular, gastrintestinal, locomotor, geniturinário (exame urológico ou ginecológico). Cabe o exame físico sempre que o ISDA identificar (ou sugerir) possível comprometimento de algum dos aparelhos. • Exame psíquico o para pesquisar comprometimento psicológico e/ ou presença de doença psiquiátrica, que podem ser causa ou consequência da disfunção sexual. Deve-se atentar para: • apresentação; • fácies; • funções cognitivas: - nível de consciência (vígil, obnubilada) - atenção (voluntária e espontânea) - memória (recente e remota) - inteligência; • pensamento (ritmo, curso e conteúdo); • afeto (humor, tônus afetivo, ressonância afetiva); • juízo e crítica; • sensopercepção; • pragmatismo e psicomotricidade.
Entrevista biopsicossexual A meta da entrevista biopsicossexual é reconhecer os fatores que, em diferentes momentos, foram responsáveis pela deflagração e pelo desenvolvimento da disfunção sexual. A Figura 1 sintetiza esses fatores. Para melhor compreensão dos conceitos aqui apresentados, recomenda -se acessar as classificações das disfunções sexuais, segundo o DSM-IV-TR' e a CID-102, que podem ser encontradas neste livro, no capítulo "Transtornos da Sexualidade: Disfunções Sexuais, Impulso Sexual Excessivo e Comportamento Sexual Impulsivo, e Parafilias". A avaliação clínica das disfunções sexuais abrange tanto o(a) paciente quanto sua(seu) parceira( o), se possível. A entrevista biopsicossexual inclui a discussão do problema atual e dos fatores predisponentes, desencadeadores e mantenedores que regem a origem e a manutenção do problema sexual5. A Tabela IV fornece uma visão geral desses fatores. Embora possa ser difícil diferenciar os fatores predisponentes dos desencadeadores e/ ou mantenedores, é útil tentar determinar quais foram os disparadores ime diatos de uma queixa sexual recente. A avaliação de fatores perpetuadores ou mantenedores inclui o contexto sexual atual que afeta a expressão sexual6 .
Instrumentos de avaliação dos transtornos da preferência sexual (parafilias) Além dos critérios diagnósticos do DSM-IV-TR, das entrevistas clínica e sexológica, de testes psicológicos e, em alguns países, do teste de pletismografia peniana, são poucos os instrumentos desenvolvidos para a mensuração e avaliação do comportamento parafílico e seu impacto sobre o indivíduo e a sociedade7·8 • Entre esses instrumentos, citam-se o teste falométrico para pedofilia9 , o Clarke Sexual History Questionnaire-Revised 10 , o Multiphasic Sex Inventory II 11 , o Intensity of Sexual Desire and
33 AVALIAÇÃO DA SEXUALIDADE NO CICLO DE VIDA
Tabela IV
Fatores a serem investigados na avaliação sexual (adaptada de Graziottin, 20055l Fatores predisponentes
Fatores desencadeadores
Fatores mantenedores
Biológicos
Anomalias endócrinas, distúrbios do ciclo menstrual, história de cirurgia ou condição médica, tratamento com drogas que afetam a regulação hormonal e o ciclo menstrual, doenças benignas
Mudanças hormonais decorrentes de menopausa ou de envelhecimento masculino, câncer, uso de medicamentos ou drogas, condições médicas
Tratamento com drogas ou hormônios, doenças metabólicas ou malignas, outras condições médicas crônicas
Psicossexuais
História sexual passada (tanto positiva quanto negativa), experiências sexuais não desejadas, história de estupro, violência, coerção, preocupação com a imagem corporal, traços de personalidade e de temperamento (extrovertido vs. introvertido, inibição vs. excitação), história de relacionamentos (do passado e atual), recursos de enfrentamento, papéis sociais/profissionais e responsabilidades
Insatisfação com o relacionamento atual, transtornos afetivos (ansiedade, depressão), perda de afeto em relação ao (à) parceiro(a) como resultado de traição, decepção, frustração etc.
Ansiedade, tensão, problemas de comunicação
Conceitos étnicos/religiosos/culturais, expectativas, receios, acesso socioeconômico a cuidado e informação médica. rede de suporte social
Conflito no relacionamento, eventos estressares (divórcio, separação), perda ou morte de amigos próximos ou de familiares, dificuldade de acesso a tratamento médico/psicológico, dificuldades econômicas, preocupações
Mitos culturais
Contextuais
Symptoms Scale 12 , o Screening Scale for Pedophilic Interests13 e o Attitudes about Sadomasochism Scale 14 . Esses instrumentos, entretanto, têm sido alvo de crítica por padronizar o diagnóstico e o tratamento de indivíduos com parafilias, não valorizando os aspectos que levam à manifestação parafílica em cada um deles. Nesse sentido, Gijs 15 propõe que a avaliação das parafilias na prática clínica deva também contemplar quatro dimensões: a fenomenológica, a biológica, a psicopatológica e a social. Duas outras dimensões podem ser acrescentadas, embora não sejam relevantes para todas as parafilias: a forense e a da periculosidade. A fim de contemplar essas dimensões na avaliação diagnóstica, o autor sugere questões que investiguem os fatores determinantes, facilitadores ou inibidores das manifestações parafílicas (Tabela V).
Instrumentos de avaliação dos transtornos da identidade sexual Os transtornos da identidade sexual, em adultos, são diagnosticados por meio de autorrelatos. O diagnóstico é feito pelas entrevistas clínica e sexológica, baseado na história do desenvolvimento psicossexual, na identificação de gênero, na orientação sexual e nos sentimentos relacionados às características sexuais e ao papel social do seu sexo designado 16 • Embora tenham sido desenvolvidos instrumentos para o diagnóstico dos transtornos da identidade sexual, estes carecem de validação e adaptação transcultural ou não foram publicados 17 • O Feminine Gender Identity Scale for Males 18 e o Masculine Gender Identity Scale for Females 19 são utilizados somente em estudos clínicos. A Tabela VI
Questões diagnósticas para avaliação das parafilias (adaptada de Gijs, 2008 15)
Tabela V
1. Qual é a fenomenologia da parafilia? a. Como foi o início, a intensidade e a frequência do desejo sexual parafílico? b. A parafilia é experimentada como egossintônica ou egodistônica? c. Como a parafilia se manifesta na prática? d. Quais são as consequências da parafilia/comportamento parafílico? e. Em que medida se dá a ativação ou a expressão da situação parafílica específica? 2. Trata-se de patologia supostamente física? a. Há indícios de anormalidades genéticas, hormonais ou cerebrais? b. Há comorbidades relevantes para o comportamento parafílico? 3. Há psicopatologia? a. Qual é a gravidade da parafilia? b. Que comorbidade psiquiátrica está presente? c. Que importância a parafilia tem para a identidade pessoal do(a) paciente? 4. Qual é o ambiente do(a) paciente? a. Qual é sua identidade social? b. Quais são suas habilidades sociais? c. Qual é sua rede social? d. Como é o ambiente no qual vive o(a) paciente e quais são as consequências para a intensidade/frequência da parafilia e sua comorbidade? 5. Há aspectos forenses? a. O(A) paciente está envolvido(a) com a criminalidade? b. É uma situação que envolve aspectos judiciais? c. Em caso afirmativo, quais são as implicações para o tratamento? 6. Qual é o potencial de perigo? a. Há risco de suicídio? b. Há risco para outras pessoas?
405
406
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela VI
•
SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Medidas de identidade sexual e papel de gênero em adolescentes e adultos (adaptada de Zucker. 2005 11)
Instrumento
Informante
Tipo
Gender Dysphoria lnterview20
Adulto
Entrevista
Gender Dysphoria/ldentification Questionnaire 20
Adulto
Questionário
Gender ldentity Questionnaire for Adults21
Adulto
Questionário
Draw-a-Person 22
Adolescente
Teste
Recalled Childhood Gender ldentity/Gender Role Questionnaire20·23
Adulto
Questionário
Gender-Role Assessment Schedule for Adolescents and Adults24·25
Adolescente/adulto
Entrevista
Masculine Gender ldentity Scale for Females 19•25
Adulto
Questionário
Feminine Gender ldentity Scale for Males18
Adulto
Questionário
Childhood Play Activities Questionnaire 26
Adulto
Questionário
Sex Role Behavior Scale 26
Adulto
Questionário
Activity and Occupational lnterests27
Adolescente
Questionário
Gender ldentity/Gender Dysphoria Questionnaire for Adolescents and Adults (GIDYQ-AA) 28
Adolescente/ ad uIto
Questionário
apresenta os principais instrumentos aplicados em diferentes países para a avaliação dos transtornos da identidade sexual.
Instrumentos de avaliação das disfunções • sexua1s Questionários padronizados de autorrelato podem ser úteis para agilizar a identificação dos aspectos relevantes e fornecer direção ou maior foco para a entrevista e a avaliação de seguimento. Há vários instrumentos com boa confiabilidade e validade que investigam os bloqueios nas diversas fases da resposta sexual, bloqueios esses que podem sobrepor-se, atingindo mais de uma fase. Embora esses instrumentos possam ser úteis para auxiliar no diagnóstico e no tratamento, nenhum deles substitui a entrevista clínica, muito mais abrangente e empática6 • A título de ilustração, são descritos a seguir dois instrumentos internacionais (adaptados e validados para o português do Brasil) utilizados para avaliar, respectivamente, a função sexual da mulher e a função sexual do homem: o Índice da Função Sexual Feminina (Female Sexual Function Index - FSFI) 29 e o Índice Internacional de Função Erétil (International Index of Erectile Function - IIEF)3°. ,
lndice da Função Sexual Feminina (FSFI) Questionário com 19 itens que avaliam seis domínios: desejo, excitação subjetiva, lubrificação, orgasmo, satisfação e dor 29 • O FSFI mostrou excelente confiabilidade teste-reteste para cada domínio, com coeficientes de confiabilidade entre 0,79 e 0,96. Alta consistência inter-
na também foi determinada, usando o alfa de Cronbach, que alcançou mais de 0,82. Diferenças de pontuações médias altamente significantes entre mulheres com transtorno da excitação sexual e mulheres-controles atestam a validade de construção da escala (p < 0,001). São sugeridas adaptações nesse instrumento, a fim de que mulheres não sexualmente ativas obtenham melhores pontuações no FSFP 1•32 • Na Tabela VII é reproduzida a versão do FSFI validada no Brasil33 •
Índice Internacional de Função Erétil (li FE) Inventário de 15 itens desenvolvido para a avaliação da função erétiP0 • Foi traduzido para mais de 32 idiomas e investiga função erétil, desejo sexual, orgasmo, satisfação sexual e satisfação geral. A consistência interna e a confiabilidade teste-reteste são satisfatórias. A sensibilidade e a especificidade também são muito boas. Na Tabela VIII é reproduzida a versão do IIFE validada no BrasiP4. Uma forma abreviada (com cinco questões) foi desenvolvida posteriormente35 , tendo sido também validada no Brasil36 (Tabela IX).
Instrumentos de avaliação das disfunções sexuais elaborados para a população brasileira Dois instrumentos foram elaborados no Brasil para facilitar a identificação das disfunções sexuais masculinas e femininas. A linguagem é acessível à população brasileira e a aplicação é bastante simples. Tais instrumentos receberam a denominação de Quociente Sexual - Versão Masculina (QS -M) e Quociente Sexual - Versão Feminina ( QS-F), respectivamente37 A1•
33 AVALIAÇÃO DA SEXUALIDADE NO CICLO DE VIDA
Tabela VIl
Índice da Função Sexual Feminina (reproduzida com autorização de Thiel et ai.. 200833)
Instruções: • • • • o o o
Estas perguntas são sobre seus sentimentos e respostas sexuais nas últimas 4 semanas. Por favor, responda às seguintes perguntas da forma mais clara e honesta possível. Suas respostas serão mantidas em completo sigilo. As definições (explicações) que seguem são aplicadas para responder o questionário: Atividade sexual: pode incluir carícias, estimulação sexual preliminar, masturbação e coito vaginal. Relação sexual é definida como a penetração (entrada) do pênis na vagina. Estimulação sexual: inclui estimulação sexual preliminar com o parceiro, autoerotismo (masturbação) ou fantasia sexual.
Para cada item, marque apenas uma resposta O desejo ou interesse sexual é um sentimento que abrange a vontade de ter uma experiência sexual, a receptividade às iniciativas sexuais do parceiro e pensamentos ou fantasias sobre o ato sexual. 1. Durante as últimas 4 semanas, com que frequência você sentiu desejo ou interesse sexual? ( ) Sempre ou quase sempre ( ) Muitas vezes (mais da metade do tempo) ( ) Às vezes (aproximadamente a metade do tempo) ( ) Poucas vezes (menos do que a metade do tempo) ( ) Nunca ou quase nunca
2. Durante as últimas 4 semanas, como você classificaria seu nível (grau) de desejo ou interesse sexual? ( ) Muito alto ( ) Alto ( ) Moderado ( ) Baixo ( ) Muito baixo ou nenhum
A excitação sexual é uma sensação com aspectos físicos e mentais. Pode aparecer uma sensação de calor ou de vibração na genitália, lubrificação (umidade) ou contrações musculares. 3. Durante as últimas 4 semanas, com que frequência você se sentiu excitada durante o ato ou atividade sexual? ( ) Sem atividade sexual ( ) Sempre ou quase sempre ( ) Muitas vezes (mais da metade do tempo) ( ) Algumas vezes (metade das vezes) ( ) Poucas vezes (menos da metade do tempo) ( ) Nunca ou quase nunca
7. Durante as últimas 4 semanas, com que frequência você ficou lubrificada ("molhada') durante a atividade sexual? ( ) Sem atividade sexual ( ) Sempre ou quase sempre ( ) Muitas vezes (mais da metade do tempo) ( ) Algumas vezes (aproximadamente a metade do tempo) ( ) Poucas vezes (menos da metade do tempo) ( ) Nunca ou quase nunca
4. Durante as últimas 4 semanas, como você classificaria seu nível (grau) de excitação sexual durante a atividade sexual? ( ) Sem atividade sexual ( ) Muito alto ( ) Alto ( ) Moderado ( ) Baixo ( ) Muito baixo ou nenhum
8. Durante as últimas 4 semanas, qual foi o grau de dificuldade para ficar lubrificada ("molhada') durante a atividade sexual? ( ) Sem atividade sexual ( ) Extremamente difícil ou impossível ( ) Muito difícil ( ) Difícil ( ) Pouco difícil ( ) Nada difícil
5. Durante as últimas 4 semanas, qual foi seu grau de confiança sobre sentir-se excitada durante a atividade sexual? ( ) Sem atividade sexual ( ) Altíssima confiança ( ) Alta confiança ( ) Moderada confiança ( ) Baixa confiança ( ) Baixíssima ou nenhuma confiança
9. Durante as últimas 4 semanas, com que frequência você manteve sua lubrificação até o final da atividade sexual? ( ) Sem atividade sexual ( ) Sempre ou quase sempre ( ) Muitas vezes (mais da metade do tempo) ( ) Algumas vezes (aproximadamente a metade do tempo) ( ) Poucas vezes (menos da metade do tempo) ( ) Nunca ou quase nunca
6. Durante as últimas 4 semanas, com que frequênciavocê ficou satisfeita com seu nível (grau) de excitação durante a atividade sexual? ( ) Sem atividade sexual ( ) Sempre ou quase sempre ( ) Muitas vezes (mais da metade do tempo) ( ) Algumas vezes (aproximadamente a metade do tempo) ( ) Poucas vezes (menos da metade do tempo) ( ) Nunca ou quase nunca
1O. Durante as últimas 4 semanas, qual foi o grau de dificuldade para manter sua lubrificação até terminar a atividade sexual? ( ) Sem atividade sexual ( ) Extremamente difícil ou impossível ( ) Muito difícil ( ) Difícil ( ) Pouco difícil ( ) Nada difícil Continua
407
408
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela VIl
•
SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Índice da Função Sexual Feminina (continuação)
11. Durante as últimas 4 semanas, na atividade sexual ou quando
( ( ( ( ( (
sexualmente estimulada, com que frequência você atingiu o orgasmo (clímax)? ) Sem atividade sexual ) Sempre ou quase sempre ) Muitas vezes (mais da metade do tempo) ) Algumas vezes (aproximadamente a metade do tempo) ) Poucas vezes (menos da metade do tempo) ) Nunca ou quase nunca
12. Durante as últimas 4 semanas, na atividade sexual ou quando sexualmente estimulada, qual foi o grau de dificuldade para atingir o orgasmo (clímax)? ( ) Sem atividade sexual ( ) Extremamente difícil ou impossível ( ) Muito difícil ( ) Difícil ( ) Pouco difícil ( ) Nada difícil 13. Durante as últimas 4 semanas, qual foi o grau de satisfação com sua habilidade de chegar ao orgasmo (clímax) durante a atividade sexual? ( ) Sem atividade sexual ( ) Muito satisfeita ( ) Moderadamente satisfeita ( ) Indiferente ( ) Moderadamente insatisfeita ( ) Muito insatisfeita 14. Durante as últimas 4 semanas, qual foi o grau de satisfação com a quantidade de envolvimento emocional entre você e seu parceiro durante a atividade sexual? ( ) Sem atividade sexual ( ) Muito satisfeita ( ) Moderadamente satisfeita ( ) Indiferente ( ) Moderadamente insatisfeita ( ) Muito insatisfeita
15. Durante as últimas 4 semanas, qual foi o grau de satisfação na relação sexual com seu parceiro? ( ) Muito satisfeita ( ) Moderadamente satisfeita ( ) Indiferente ( ) Moderadamente insatisfeita ( ) Muito insatisfeita 16. Durante as últimas 4 semanas, de forma geral, qual foi o grau de satisfação com sua vida sexual? ( ) Muito satisfeita ( ) Moderadamente satisfeita ( ) Indiferente ( ) Moderadamente insatisfeita ( ) Muito insatisfeita 17. Durante as últimas 4 semanas, com que frequência você sentiu desconforto ou dor durante a penetração vaginal? ( ) Não houve tentativa de penetração ( ) Sempre ou quase sempre ( ) Muitas vezes (mais da metade do tempo) ( ) Algumas vezes (aproximadamente a metade do tempo) ( ) Poucas vezes (menos da metade do tempo) ( ) Nunca ou quase nunca 18. Durante as últimas 4 semanas, com que frequência você sentiu desconforto ou dor após a penetração vaginal? ( ) Não houve tentativa de penetração ( ) Sempre ou quase sempre ( ) Muitas vezes (mais da metade do tempo) ( ) Algumas vezes (aproximadamente a metade do tempo) ( ) Poucas vezes (menos da metade do tempo) ( ) Nunca ou quase nunca 19. Durante as últimas 4 semanas, como você classificaria seu grau (nível) de desconforto ou dor durante ou após a penetração vaginal? ( ) Não houve tentativa de penetração ( ) Altíssimo ( ) Alto ( ) Moderado ( ) Baixo ( ) Baixíssimo ou nenhum
Escore das respostas para cada questão do instrumento
1. Durante as últimas 4 semanas, com que frequência você
sentiu desejo ou interesse sexual?
(5) Sempre ou quase sempre (4) Muitas vezes (mais da metade do tempo) (3) Às vezes (aproximadamente a metade do tempo) (2) Poucas vezes (menos do que a metade do tempo) (1) Nunca ou quase nunca
2. Durante as últimas 4 semanas, como você classificaria seu nível (grau) de desejo ou interesse sexual?
(5) Muito alto (4) Alto (3) Moderado (2) Baixo (1) Muito baixo ou nenhum
3. Durante as últimas 4 semanas, com que frequência você se sentiu excitada durante o ato ou a atividade sexual?
(O) Sem atividade sexual (5) Sempre ou quase sempre (4) Muitas vezes (mais da metade do tempo) (3) Algumas vezes (metade das vezes) (2) Poucas vezes (menos da metade do tempo) (1) Nunca ou quase nunca Continua
33 AVALIAÇÃO DA SEXUALIDADE NO CICLO DE VIDA
Tabela VIl
fndice da Função Sexual Feminina (continuação)
4. Durante as últimas 4 semanas, como você classificaria seu nível (grau) de excitação sexual durante a atividade sexual?
(O) Sem atividade sexual (5) Muito alto (4) Alto (3) Moderado (2) Baixo (1) Muito baixo ou nenhum
5. Durante as últimas 4 semanas, qual foi seu grau de confiança sobre sentir-se excitada durante a atividade sexual?
(O) Sem atividade sexual (5) Altíssima confiança (4) Alta confiança (3) Moderada confiança (2) Baixa confiança (1) Baixfssima ou nenhuma confiança
6. Durante as últimas 4 semanas, com que frequência você ficou satisfeita com seu nível (grau) de excitação durante a atividade sexual?
(O) Sem atividade sexual (5) Sempre ou quase sempre (4) Muitas vezes (mais da metade do tempo) (3) Algumas vezes (aproximadamente a metade do tempo) (2) Poucas vezes (menos da metade do tempo) (1) Nunca ou quase nunca
Z Durante as últimas 4 semanas, com que frequência você ficou lubrificada ("molhada') durante a atividade sexual?
(O) Sem atividade sexual (5) Sempre ou quase sempre (4) Muitas vezes (mais da metade do tempo) (3) Algumas vezes (aproximadamente a metade do tempo) (2) Poucas vezes (menos da metade do tempo) (1) Nunca ou quase nunca
8. Durante as últimas 4 semanas, qual foi o grau de dificuldade para ficar lubrificada ("molhada") durante a atividade sexual?
(O) Sem atividade sexual (1) Extremamente difícil ou impossível (2) Muito difícil (3) Difícil (4) Pouco difícil (5) Nada difícil
9. Durante as últimas 4 semanas, com que frequência você manteve sua lubrificação até o final da atividade sexual?
(O) Sem atividade sexual (5) Sempre ou quase sempre (4) Muitas vezes (mais da metade do tempo) (3) Algumas vezes (aproximadamente a metade do tempo) (2) Poucas vezes (menos da metade do tempo) (1) Nunca ou quase nunca
1O. Durante as últimas 4 semanas, qual foi o grau de dificuldade para manter sua lubrificação até terminar a atividade sexua I?
(O) Sem atividade sexual (1) Extremamente difícil ou impossível (2) Muito difícil (3) Difícil (4) Pouco difícil (5) Nada difícil
11. Durante as últimas 4 semanas, na atividade sexual ou quando sexualmente estimulada, com que frequência você atingiu o orgasmo (clímax)?
(O) Sem atividade sexual (5) Sempre ou quase sempre (4) Muitas vezes (mais da metade do tempo) (3) Algumas vezes (aproximadamente a metade do tempo) (2) Poucas vezes (menos da metade do tempo) (1) Nunca ou quase nunca
12. Durante as últimas 4 semanas, quando sexualmente estimulada, qual foi o grau de dificuldade para atingir o orgasmo (clímax)?
(O) Sem atividade sexual (1) Extremamente difícil ou impossível (2) Muito difícil (3) Difícil (4) Pouco difícil (5) Nada difícil Continua
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela VIl
•
SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Índice da Função Sexual Feminina (continuação)
13. Durante as últimas 4 semanas, qual foi o grau de satisfação com sua habilidade de chegar ao orgasmo (clímax) durante a atividade sexual?
(O) Sem atividade sexual (5) Muito satisfeita (4) Moderadamente satisfeita (3) Indiferente (2) Moderadamente insatisfeita (1) Muito insatisfeita
14. Durante as últimas 4 semanas, qual foi o grau de satisfação com a quantidade de envolvimento emocional entre você e seu parceiro durante a atividade sexual?
(O) Sem atividade sexual (5) Muito satisfeita (4) Moderadamente satisfeita (3) Indiferente (2) Moderadamente insatisfeita (1) Muito insatisfeita
15. Durante as últimas 4 semanas, qual foi o grau de satisfação na relação sexual com seu parceiro?
(5) Muito satisfeita (4) Moderadamente satisfeita (3) Indiferente (2) Moderadamente insatisfeita (1) Muito insatisfeita
16. Durante as últimas 4 semanas, de forma geral, qual foi o grau de satisfação com sua vida sexual?
(5) Muito satisfeita (4) Moderadamente satisfeita (3) Indiferente (2) Moderadamente insatisfeita (1) Muito insatisfeita
17. Durante as últimas 4 semanas, com que frequência você sentiu desconforto ou dor durante a penetração vaginal?
(O) Não houve tentativa de penetração (1) Sempre ou quase sempre (2) Muitas vezes (mais da metade do tempo) (3) Algumas vezes (aproximadamente a metade do tempo) (4) Poucas vezes (menos da metade do tempo) (5) Nunca ou quase nunca
18. Durante as últimas 4 semanas, com que frequência você sentiu desconforto ou dor após a penetração vaginal?
(O) Não houve tentativa de penetração (1) Sempre ou quase sempre (2) Muitas vezes (mais da metade do tempo) (3) Algumas vezes (aproximadamente a metade do tempo) (4) Poucas vezes (menos da metade do tempo) (5) Nunca ou quase nunca
19. Durante as últimas 4 semanas, como você classificaria seu grau (nível) de desconforto ou dor durante ou após a penetração vaginal?
(O) Não houve tentativa de penetração (1) Altíssimo (2) Alto (3) Moderado (4) Baixo (5) Baixíssimo ou nenhum
Cálculo dos escores Domínios
Questões
Variação do escore
Fator
Escore mínimo
Escore máximo
Desejo
1' 2
1- 5
0,6
1,2
6,0
Excitação
3,4,5,6
0- 5
0,3
6,0
Lubrificação
7, 8, 9, 1o
0- 5
0,3
Orgasmo
11' 12, 13
0- 5
0,4
o o o
Satisfação
14, 15, 16
O (ou 1) - 5
0,4
0,8
6,0
Dor
17, 18, 19
0- 5
0,4
o
6,0
2,0
36,0
Escore total
6,0 6,0
Escore
33 AVALIAÇÃO DA SEXUALIDADE NO CICLO DE VIDA
Tabela VIII
Índice Internacional de Função Erétil (reproduzida com autorização de Ferraz e Ciconelli, 199834)
• Estas questões referem -se ao efeito que os seus problemas de ereção têm acarretado na sua vida sexual nas últimas quatro semanas. • Por favor, responda estas questões o mais honestamente e claramente possível. • Por favor, responda a cada questão marcando um "x" no quadradinho correspondente O. • Se você não tem certeza de como responder, por favor, dê a melhor resposta que você puder. • Ao responder estas questões, observe as seguintes definições: * Relação sexual É definida como penetração (entrada) na vagina da parceira. ** Aôvidade sexual Inclui relação sexual, carícias, brincadeiras amorosas e masturbação. *** Ejaculação É definida como a ejeção de sêmen pelo pênis (ou a sensação desta ejeção). **** Estimulação sexual Inclui situações como brincadeiras amorosas com uma parceira, olhar fotos eróticas etc. 1. Nas últimas 4 semanas, com que frequência você foi capaz de ter uma ereção durante uma relação sexual*? Por favor, marque com um x somente um quadradinho. - Sem atividade sexual . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . - Quase sempre ou sempre. . . . . . . . . . . . . . . . .. . - A maioria das vezes (muito mais que a metade das vezes). - Algumas vezes (aproximadamente a metade das vezes) . - Poucas vezes (muito menos que a metade das vezes) . - Quase nunca ou nunca . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
.o .o .o .o .o .o
2. Nas últimas 4 semanas, quando você teve ereções com estimulação sexual****, com que frequência suas ereções foram duras o suficiente para penetração? Por favor, marque com um x somente um quadradinho. .O - Sem estimulação sexual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . - Quase sempre ou sempre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .O - A maioria das vezes (muito mais que a metade das vezes). .O - Algumas vezes (aproximadamente a metade das vezes) . .O - Poucas vezes (muito menos que a metade das vezes) . .O - Quase nunca ou nunca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .O As próximas três questões irão perguntar sobre as ereções que você pode ter tido durante a relação sexual*. 3. Nas últimas 4 semanas, quando você tentou ter relação sexual*, com que frequência você foi capaz de penetrar (entrar) na sua parceira? Por favor, marque com um x somente um quadradinho. - Não tentei ter relação sexual . . . . . . . . . . . . . . . . . - Quase sempre ou sempre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . - A maioria das vezes (muito mais que a metade das vezes). - Algumas vezes (aproximadamente a metade das vezes) . - Poucas vezes (muito menos que a metade das vezes) . - Quase nunca ou nunca . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
.o .o .o .o .o .o
4. Nas últimas 4 semanas, durante uma relação sexual*, com que frequência você foi capaz de manter sua ereção após ter penetrado (entrado) na sua parceira? Por favor, marque com um x somente um quadradinho. - Não tentei ter relação sexual . . . . . . . . . . . . . . . . . - Quase sempre ou sempre. . . . . . . . . . . . . . . . . .. - A maioria das vezes (muito mais que a metade das vezes). - Algumas vezes (aproximadamente a metade das vezes) . - Poucas vezes (muito menos que a metade das vezes) . - Quase nunca ou nunca . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
.o .o .o .o .o .o
5. Nas ú/ômas 4 semanas, durante a relação sexual*, o quanto foi difícil para você manter sua ereção até o fim da relação? Por favor, marque com um x somente um quadradinho. - Não tentei ter relação sexual . - Extremamente difícil. - Muito difícil . - Difícil. . . .. - Pouco difícil . - Não foi difícil.
.o .o .o .o .o .o (Continua)
411
41 2
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela VIII
•
SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Índice Internacional de Função Erétil (continuação)
6. Nas úlômas 4 semanas, quantas vezes você tentou ter relação sexual*? Por favor, marque com um x somente um quadradinho. - Não tentou . . - 1-2 tentativas - 3-4 tentativas - 5-6 tentativas - 7- 1O tentativas . - 11 ou mais tentativas . 7.
Nas úlômas 4 semanas, quando você tentou ter relação sexual*, com que frequência ela foi satisfatória para você? Por favor, marque com um x somente um quadradinho. - Não tentei ter relação sexual . . . . . . . . . . . . . . . . . - Quase sempre ou sempre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . - A maioria das vezes (muito mais que a metade das vezes). - Algumas vezes (aproximadamente a metade das vezes) . - Poucas vezes (muito menos que a metade das vezes) . - Quase nunca ou nunca . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
.o .o .o .o .o .o .o .o .o .o .o .o
8. Nas úlômas 4 semanas, o quanto você aproveitou a relação sexual*? Por favor, marque com um x somente um quadradinho - Não teve relação sexual. . - Aproveitou extremamente - Aproveitou muito . . . . - Aproveitou um pouco . . - Aproveitou muito pouco - Não aproveitou . . . . .
.O .O .O .O .O .O
9. Nas úlômas 4 semanas, quando você teve estimulação sexual**** ou relação sexual*, com que frequência você teve uma ejaculação***? Por favor, marque com um x somente um quadradinho. - Não teve estimulação sexual ou relação sexual. . . . . . . - Quase sempre ou sempre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . - A maioria das vezes (muito mais que a metade das vezes). - Algumas vezes (aproximadamente a metade das vezes) . - Poucas vezes (muito menos que a metade das vezes) . - Quase nunca ou nunca . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
.O .O .O .O .O .O
1O. Nas úlômas 4 semanas, quando você teve estimulação sexual**** ou relação sexual*, com que frequência você teve a sensação de orgasmo com ou
sem ejaculação***? Por favor, marque com um x somente um quadradinho. - Não teve estimulação ou relação sexual. . . . . . . . - Quase sempre ou sempre .. . . . . . . . . . . . . . . - A maioria das vezes (muito mais que a metade das vezes). - Algumas vezes (aproximadamente a metade das vezes) . - Poucas vezes (muito menos que a metade das vezes) . - Quase nunca ou nunca . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
.o .o .o .o .o .o
As próximas 2 questões referem -se ao desejo sexual. Vamos definir desejo sexual como uma sensação que pode incluir querer ter uma experiência sexual (por exemplo, masturbação ou relação), pensamento sobre sexo ou sentimento de frustração devido à falta de sexo. 11 . Nas últimas 4 semanas, com que frequência você tem sentido desejo sexual?
Por favor, marque com um x somente um quadradinho. - Quase sempre ou sempre. . . . . . . . . . . . . . . . . - Frequentemente (muito mais que a metade do tempo) . - Algumas vezes (aproximadamente a metade do tempo) - Poucas vezes (muito menos que a metade do tempo) - Quase nunca ou nunca . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . .
12. Nas últimas 4 semanas, o quanto você consideraria o seu nível de desejo sexual? Por favor, marque com um x somente um quadradinho. - Muito alto . - Alto. . . . . - Moderado . - Baixo . . . . - Muito baixo ou inexistente .
.o .o .o .o .o .o .o .o .o .o Continua
33 AVALIAÇÃO DA SEXUALIDADE NO CICLO DE VIDA
Tabela VIII
Índice Internacional de Função Erétil (continuação)
13. Nas últimas 4 semanas, de modo geral, o quão satisfeito você tem estado com sua vida sexual? Por favor, marque com um x somente um quadradinho. - Muito satisfeito . . . . . . . . . . . - Moderadamente satisfeito . . . . . - Igualmente satisfeito e insatisfeito . - Moderadamente insatisfeito - Muito insatisfeito . . . . . . . . . .
.o .o .o .o .o
14. Nas úlumas 4 semanas, o quão satisfeito você tem estado com o seu relacionamento sexual com a sua parceira? Por favor, marque com um x somente um quadradinho. - Muito satisfeito . . . . . . . . . . . - Moderadamente satisfeito . . . . . - Igualmente satisfeito e insatisfeito . - Moderadamente insatisfeito - Muito insatisfeito . . . . . . . . . .
.o .o .o .o .o
15. Nas ú/Umas 4 semanas, como você consideraria a sua confiança em conseguir ter e manter uma ereção? Por favor, marque com um x somente um quadradinho. - Muito alta . - Alta . . . . . - Moderada . - Baixa . . . . - Muito baixa
.o .o .o .o .o
Cálculo dos escores* Domínios
Questões
Variação do escore
Escore máximo
Disfunção erétil
1' 2, 3, 4 ' 5, 15
0- 5
30
Orgasmo
9, 1o
0- 5
10
Desejo
11' 12
1- 5
10
Satisfação com o intercurso
6, 7, 8
0- 5
15
Satisfação geral
13, 14
1- 5
10
Escore
Escore total 75 *As alternativas das questões 1, 2, 3, 4, 7, 8, 9 e 1O são codificadas como O, 5, 4, 3, 2, 1; das questões 5 e 6, como O, 1, 2, 3, 4 e 5; e as das questões 11, 12, 13, 14 e 15 são codificadas como 5, 4, 3, 2. 1. Interpretação clínica Domínio
Disfunção erétil
Escore
Interpretação
o- 6
Disfunção grave Disfunção moderada Disfunção moderada a leve Disfunção leve Sem disfunção
7 - 12 13 - 18 19 - 24 25 - 30
o- 2 Orgasmo
3579-
4 6 8 10
o- 2 Desejo
3579-
4 6 8 10
Disfunção grave Disfunção moderada Disfunção moderada a leve Disfunção leve Sem disfunção Disfunção grave Disfunção moderada Disfunção moderada a leve Disfunção leve Sem disfunção
Domínio
Satisfação com o intercurso
Escore
Interpretação
o- 3
Disfunção grave Disfunção moderada Disfunção moderada a leve Disfunção leve Sem disfunção
4- 6 7- 9
o- 12
1
13 - 15
o- 2 Satisfação geral
3579-
4 6 8 10
Disfunção grave Disfunção moderada Disfunção moderada a leve Disfunção leve Sem disfunção
413
414
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela IX
•
SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Índice Internacional de Função Erétil - Versão Resumida (reproduzida com autorização de Rhoden et ai. 200 P 6)
Instruções ao paciente A saúde sexual é uma parte importante das condições físicas e emocionais das pessoas. A disfunção erétil, também conhecida como impotência, é um tipo muito comum de problema médico que afeta a saúde sexual. Felizmente, existem muitas opções diferentes para tratar a disfunção erétil. Este questionário foi preparado para ajudar você e seu médico a identificar se você está apresentando disfunção erétil. Se estiver, você pode optar por discutir as opções de tratamento com o seu médico. Cada pergunta tem diversas respostas possíveis. Circule o número da resposta que melhor descreve sua situação. Selecione uma e somente uma resposta para cada pergunta. Nos últimos 6 meses 1.
2.
3.
4.
5.
Como você classificaria sua confiança em conseguir ter e manter uma ereção? Muito baixa
Baixa
Moderada
Alta
Muito alta
1
2
3
4
5
Quando teve ereções com estimulação sexual, com que frequência suas ereções foram rígidas o suficiente para a penetração na sua parceira? Sem atividade sexual
Quase nunca ou nunca
Poucas vezes (muito menos da metade das vezes)
Algumas vezes (cerca da metade das vezes)
Muitas vezes (muito mais da metade das vezes)
Quase sempre ou sempre
o
1
2
3
4
5
Durante a relação sexual, com que frequência você pôde manter sua ereção após ter penetrado sua parceira? Não tentei ter relações
Quase nunca ou nunca
Poucas vezes (muito menos da metade das vezes)
o
1
2
Algumas vezes (cerca da metade das vezes)
Muitas vezes (muito mais da metade das vezes)
Quase sempre ou sempre
3
4
5
Durante a relação sexual, qual foi a dificuldade em manter sua ereção para completar a relação? Não tentei ter relações
Extremamente difícil
Muito difícil
Difícil
Pouco difícil
Sem dificuldade
o
1
2
3
4
5
Quando tentou ter relação sexual, com que frequência ela foi satisfatória para você? Não tentei ter relações
o
Quase nunca ou nunca
Poucas vezes (muito menos da metade das vezes)
Algumas vezes (cerca da metade das vezes)
Muitas vezes (muito mais da metade das vezes)
Quase sempre ou sempre
1
2
3
4
5
Interpretação clínica Some os números correspondentes às respostas das questões 1 a 5. Se o resultado for 21 ou menos, o assunto de disfunção erétil (DE) deve ser abordado. O resultado do questionário IIFE-5 caracteriza o grau de disfunção erétil da seguinte maneira: 22-25 pontos = Sem disfunção erétil 17-21 pontos = Disfunção erétilleve 12- 16 pontos = Disfunção erétil leve a moderada
Quociente Sexual -Versão Masculina (QS-M) O QS-M foi desenvolvido no Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Para a derivação do QS-M, as questões desenvolvidas passaram por análise fatorial pelo método dos componentes principais, usando rotação varimax39• Fatores com índice de Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) > 1 e com coeficiente de correlação > 0,30 foram selecionados. A consistência interna foi verificada por meio do coeficien-
8- 11 pontos = Disfunção erétil moderada 5-7 pontos = Disfunção erétil completa
te alfa de Cronbach40. A validação foi feita pela comparação das médias dos escores de homens com disfunção sexual e de outros que não apresentavam disfunção, utilizando-se o teste de Mann-Whitney. Ambos os grupos foram constituídos por indivíduos pareados quanto às características sociodemográficas, o que foi comparado pelo teste t de Student, para amostras independentes, e pelo teste qui-quadrado, para variáveis categóricas. Valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos. O questionário, conforme ficou constituído, é composto por dez questões, cada qual devendo ser respondi-
33 AVALIAÇÃO DA SEXUALIDADE NO CICLO DE VIDA
Tabela X
Quociente Sexual - Versão Masculina (QS-M) 37•38
Responda esse questionário, com sinceridade, baseando-se nos últimos 6 meses de sua vida sexual e considerando a seguinte pontuação: O= nunca 1 = raramente 2 = às vezes 1.
3 = aproximadamente metade das vezes 4 = a maioria das vezes S = sempre
Seu interesse por sexo é suficiente para você querer iniciar o ato sexual?
os
oo 2.
Sua capacidade de sedução dá a você confiança de se lançar em atividade de conquista sexual?
os
oo 3.
As preliminares de seu ato sexual são agradáveis e satisfazem você e sua(seu) parceira(o)?
os
oo 4.
Seu desempenho sexual varia conforme sua(seu) parceira(o) seja ou não capaz de se satisfazer durante o ato sexual com você?
os
oo S.
Você consegue manter o pênis ereto (duro) o tempo que precisa para completar a atividade sexual com satisfação?
os
oo 6.
Após o estímulo sexual, sua ereção é suficientemente rígida (dura) para garantir uma relação sexual satisfatória?
os
oo 7.
Você é capaz de obter e manter a mesma qualidade de ereção nas várias relações sexuais que realiza em diferentes dias?
os
oo 8.
Você consegue controlar a ejaculação para que seu ato sexual se prolongue o quanto você desejar?
os
oo 9.
Você consegue chegar ao orgasmo nas relações sexuais que realiza?
os
oo 1O.
Seu desempenho sexual o estimula a fazer sexo outras vezes, em outras oportunidades?
os
oo Como calcular o resultado
da numa escala de O a S. O resultado da soma dessas respostas deve ser multiplicado por 2, o que resulta num índice entre O e 100 (Tabela X). Como inte rp retar o QS-M O QS-M pode ser interpretado em termos de escore total, avaliando a qualidade geral do desempenho/satisfação sexual do homem. Por abranger todas as fases do ciclo de resposta sexual, é também um instrumento que indica em quais domínios dessa resposta está(ão) a(s) dificuldade(s) de cada paciente. Essa indicação deve, a posteriori, ser confirmada pelo médico, por meio da anamnese e de exames complementares, quando necessários. Escores baixos (< 2) para a questão 1 sugerem desejo sexual hipoativo. A questão 2 pesquisa autoestima e autoconfiança sexual, enquanto a questão 3 avalia a qualidade das preliminares do ato sexual. Já a questão 4 trata da capacidade do homem de sintonizar-se com a excitação da( o) parceira( o). As questões 5, 6 e 7 avaliam três aspectos da ereção, e a questão 8 avalia a qualidade do controle ejaculatório. A frequência do orgasmo é verificada pela questão 9, assim como a satisfação com o de sempenho sexual geral o é pela questão 10. Respostas com baixos escores ( < 2) para as questões 3, 4, 8 e 10 sugerem a presença de ejaculação precoce. A disfunção erétil é caracterizada por menores escores ( < 2) nas questões 5, 6, 7 e 1O, especialmente. São sugestivos de desejo sexual hipoativo escores baixos ( < 2) para as questões 1, 2, 4, 5, 6, 7, 9 e 10. Ou seja, a falta de desejo interfere em vários domínios da função sexual, prejudicando-os, sucessivamente. A Tabela XI apresenta a correlação entre as questões do QS-M e os respectivos domínios pesquisados. Portanto, pela aplicação do QS-M, além de se poder concluir a respeito do quociente sexual geral do homem, pode-se conhecer como está cada um dos domínios sexuais (e saber em quais deles há dificuldade), interpretando-se as respostas apresentadas pelo paciente, questão por questão. O QS-M é, portanto, um instrumento útil à investigação da atividade sexual masculina, podendo ser utilizado tanto para a estratificação de pacientes em estudos clínicos ou observacionais quanto para a mensuração da eficácia de intervenção que objetiva o tratamento das disfunções sexuais do homem.
1º Some os pontos assinalados em cada questão (Q = questão)
O, + 0 2+ 0 3+ 0 4+ Os+ Os+ O, + Oa+ Qg+ O 10 2g Multiplique por 2 o total da soma e confira com o resultado abaixo Padrão de desempenho sexual 82 - 100 pontos
~
bom a excelente
62 - 80 pontos
~
regular a bom
42 - 60 pontos ~ desfavorável a regular 22 - 40 pontos ~ ruim a desfavorável O - 20 pontos
~
nulo a ruim
Correlação entre as questões e os domínios da função sexual avaliados pelo QS-M
Tabela XI
• • • • • •
Desejo (questão 1) Autoconfiança sexual e autoestima (questão 2) Qualidade da ereção (questões S, 6 e 7) Qualidade do controle da ejaculação (questão 8) Capacidade de atingir o orgasmo (questão 9) Satisfação geral do indivíduo (questões 3, 4 e 1O) e de sua parceira (questões 3 e 1O) com as preliminares e o intercurso
415
41 6
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Quociente Sexual - Versão Feminina (QS- F) O QS-F foi desenvolvido no Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do IPq- HCFMUSP 41 • Para aderivação do QS-F, as questões constituídas passaram por análise fatorial pelo método dos componentes principais, usando rotação varimax39 • Fatores com índice de KMO > 1 e com coeficiente de correlação > 0,30 foram selecionados. A consistência interna foi verificada por meio do coeficiente alfa de Cronbach40 • A validação foi feita pela comparação das médias dos escores de mulheres com disfunção sexual e de outras que não apresentavam disfunção, utilizando-se o teste de Mann-Whitney. Ambos os grupos foram pareados quanto às características sociodemográficas, o que foi comparado pelo teste t de Student, para amostras independentes, e pelo teste qui-quadrado, para variáveis categóricas. Valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos. O instrumento, conforme ficou constituído, é composto por dez questões, cada qual devendo ser respondida numa escala de O a S. O resultado da soma das dez respostas deve ser multiplicado por dois, o que resulta num índice total que varia de O a 100. A sétima questão requer tratamento diferente, ou seja, o valor da resposta dada (de O a 5) deve ser subtraído de 5 para se obter o escore final dessa questão (Tabela XII).
Tabela XII
Responda esse questionário, com sinceridade, baseando-se nos últimos 6 meses de sua vida sexual e considerando a seguinte pontuação: O= nunca 1 = raramente 2 = às vezes 1.
3 = aproximadamente metade das vezes 4 = a maioria das vezes S = sempre
Você costuma pensar espontaneamente em sexo, lembra de sexo ou se imagina fazendo sexo?
oo 2.
02
03
04
os
O seu interesse por sexo é suficiente para você participar da relação sexual com vontade?
oo 3.
02
4.
02
02
02
02
02
02
03
04
os
03
04
os
03
04
os
03
04
os
03
04
os
Você consegue atingir o orgasmo (prazer máximo) nas relações sexuais que realiza?
oo 1O.
os
Você consegue se envolver, sem se distrair (sem perder a concentração), durante a relação sexual?
oo 9.
04
Você costuma sentir dor durante a relação sexual, quando o pênis penetra em sua vagina?
oo 8.
03
Durante a relação sexual, você relaxa a vagina o suficiente para facilitar a penetração do pênis?
oo 7.
os
Durante a relação sexual, à medida que a excitação do seu parceiro vai aumentando, você também se sente mais estimulada para o sexo?
oo 6.
04
Você costuma ficar lubrificada (molhada) durante a relação sexual?
oo S.
03
As preliminares (carícias, beijos, abraços, afagos etc.) a estimulam a continuar a relação sexual?
oo
Como interpretar o QS-F
O QS-F pode ser interpretado em termos de escore total, avaliando a qualidade geral do desempenho/satisfação sexual da mulher. Por abranger todas as fases do cielo de resposta sexual, além de domínios correlatos, é também um instrumento capaz de indicar em quais deles se situa(m) a(s) dificuldade(s) de cada paciente. Essa indicação deve, a posteriori, ser confirmada pelo médico, por meio da anamnese e de exames complementares, quando for o caso. Portanto, mediante dez questões autorresponsivas, o QS-F avalia todas as fases do ciclo de resposta sexual, contemplando ainda outros domínios sexuais, a saber: desejo, fantasias e interesse sexual (questões 1, 2 e 8); preliminares (questão 3); excitação pessoal e sintonia com o parceiro (questões 4 e 5), conforto (questões 6 e 7), orgasmo e satisfação (questões 9 e 10). Escores baixos ( < 2) para as questões de número 1, 2 e 8 significam que o desejo sexual não é suficiente para que a mulher se interesse e se satisfaça com a relação. As questões 3, 4, 5 e 6 avaliam diferentes aspectos da fase de excitação feminina durante a relação sexual (resposta às preliminares, lubrificação, sintonia com o parceiro e recepção à penetração). Escores baixos(< 2) para essas questões significam pouca capacidade de envolvimento e baixa resposta ao estímulo sexual. Dificuldade para o orgasmo e pouca ou nenhuma satisfação com o relacio namento sexual são evidenciadas por escores baixos
Quociente Sexual - Versão Feminina (QS-F)•1
02
03
04
os
O grau de satisfação que você consegue com a relação sexual lhe dá vontade de fazer sexo outras vezes em outros dias?
oo
02
03
04
os
Como calcular o resultado 1° Some os pontos assinalados em cada questão (Q = questão)
0 1+0 2+ QJ + 0 4+ Os+ Os+[S - Q,)+ Oa+ Qg+ 0 10 2° Multiplique por 2 o total da soma e confira com o resultado abaixo Padrão de desempenho sexual 82 - 100 pontos
~
bom a excelente
62 - 80 pontos
~
regular a bom
42 - 60 pontos ~ desfavorável a regular 22 - 40 pontos ~ ruim a desfavorável O - 20 pontos
~
nulo a ruim
33 AVALIAÇÃO DA SEXUALIDADE NO CICLO DE VIDA
Tabela XIII Correlação entre as questões e os domínios da função sexual avaliados pelo QS-F
• • • • •
Desejo, fantasias e interesse sexual (questões 1, 2 e 8) Preliminares (questão 3) Excitação pessoal e sintonia com o parceiro (questões 4 e 5) Conforto (questões 6 e 7) Orgasmo e satisfação (questões 9 e 1O)
( < 2) para as questões 9 e 1O. Em relação à questão 7, chama-se atenção para o fato de que, quanto maior o escore, mais intensa é a presença de dor à relação; quanto menos dor à relação, menor esse escore. A Tabela XIII apresenta a correlação entre as questões do QS-F e os respectivos domínios pesquisados. Portanto, além de se poder concluir a respeito do quociente sexual geral da mulher, pode-se conhecer como está cada um dos domínios (e saber em qual deles há dificuldade), interpretando-se as respostas dadas pela paciente, questão por questão. O QS -F é, portanto, um instrumento útil à investigação da atividade sexual feminina, podendo ser aplicado tanto para a estratificação de pacientes em estudos clínicos ou observacionais, quanto para a mensuração da eficácia de intervenção que objetiva o tratamento das disfunções sexuais da mulher. Avalia o desempenho e a satisfação sexual feminina de forma geral (pela soma dos escores de todas as questões). Também avalia domínio por domínio desta atividade, pela consideração individualizada das questões pertinentes aos diferentes aspectos investigados.
Exame físico Um exame físico é recomendado por razões de cautela e certeza no diagnóstico. Também é um recurso para expiorar percepções, crenças e atitudes do( a) paciente sobre sua própria anatomia. Torna-se particularmente importante para identificar ou descartar elementos físicos, quando há queixas do tipo perda de sensibilidade ou dor6.4 2. Na mulher, o exame ginecológico deve incluir avaliação do controle voluntário da musculatura do assoalho pélvico, tônus da musculatura do assoalho pélvico, presença de prolapso da parede vaginal, sinais de atrofia vaginal, tamanho do introito, presença de corrimento ou evidência de infecção (aguda ou crônica), alterações do epitélio e/ou dor, perda sensorial vulvar, atrofia ou hipertrofia43-45 • O exame físico para o homem deve observar: pressão arterial, palpação dos pulsos periféricos, pesquisa de edema de membros inferiores (para investigar arteriopatias periféricas); distribuição de pelos (para investigar patologias genéticas ou disfunções hormonais); exame do pênis para identificar placas de fibrose da túnica albugínea (doença de Peyronie, acompanhada de dor e curvatura do pênis na ereção); processos inflamatórios (balanopostites) e fimose46 -49 •
Instrumentos psicofisiológicos Ao longo das três últimas décadas, várias técnicas fo ram desenvolvidas para avaliar alterações genitais (físicas) em resposta a estímulo sexual. A técnica mais utilizada em mulheres é a fotopletismografia vaginal50 . Embora seu uso tenha sido considerado de grande valor, por indicar o estado de excitação da vagina por si, ainda não está esclarecido o que significa exatamente a amplitude do pulso vaginal (AVP) 51, fato que pode ser explicado, em parte, pela falta de uma escala absoluta. A AVP é medida em uma escala ordinal, em vez de uma escala de intervalo ou razão, o que dificulta a utilização dessa medida como método diagnóstico individual da responsividade genital52•53 • Estudos que compararam mulheres com e sem dificuldades sexuais falharam na tentativa de encontrar diferenças significantes de AVP nos dois grupos54 -62 . Ao usar definição diferente para "transtorno de excitação sexual genital" (que foca na falta de sensação genital), um estudo encontrou AVP com diferença significativa entre mulheres com alterações apenas nos aspectos subjetivos da excitação sexual63. Esses achados sugerem que a responsividade genital em mulheres fisicamente saudáveis, ao menos como definido no DSM-IV-TR1, talvez não tenha papel relevante nas dificuldades sexuais femininas. Pesquisa com mulheres com AVP alterada concluiu que não é a presença de problemas de excitação sexual, mas a presença de alguma condição física, que influencia a resposta genital55 • Outros métodos alternativos, embora menos estudados, foram desenvolvidos para medir a resposta genital fe minina: eletrodo de oxigênio aquecido, termistor labial, fotopletismografia labial, fotopletismografia clitoridiana, medição do pH vaginal, ultrassonografia (USG) Doppler colorida clitoridiana, imagem térmica, ressonância magnética da área pélvica e USG dinâmica64 -66 • Atualmente, as técnicas psicofisiológicas têm seu uso restrito a ensaios clínicos e não são padrão na avaliação clínica em mulheres, em parte devido à sua natureza invasiva. Embora a fotopletismografia vaginal seja um instrumento sensível, por fornecer a melhor medida de pesquisa que se conhece, não é útil para diagnóstico porque não pode ser calibrada. São necessários mais estudos para explorar se esses métodos possuem utilidade em discriminar subgrupos clínicos67• Achados de pesquisas psicofisiológicas sugerem que em mulheres fisicamente saudáveis o potencial para que se tornem genitalmente excitadas não está alterado63 . Nos homens, uma das técnicas mais utilizadas para investigar a função erétil é o teste de ereção fármaco-induzida (TEFI). Substâncias capazes de provocar ereção do pênis (prostaglandina El, clorpromazina, papaverina, histamina ou fentolamina) são injetadas nos corpos cavernosos. Para reduzir a ansiedade e evitar resultado falso negativo, pode-se favorecer o estímulo audiovisual sexual68•69• Injetada a substância nos corpos cavernosos,
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
considera-se que não há DE quando ocorre ereção plena, mantida por 15 minutos pelo menos. O resultado é parcialmente positivo se há apenas tumescência sem rigidez peniana suficiente para a penetração. A resposta é negativa se não ocorre tumescência ou se ela é mínima, sem rigidez46,47,70,7I. A USG Duplex/Doppler das artérias penianas é outro procedimento realizado em conjunto com o teste de ereção fármaco-induzida. Permite medir o diâmetro das artérias cavernosas, antes e depois da injeção intracavernosa, bem como avaliar a velocidade do fluxo no interior dessas artérias, investigando mais detalhadamente o sistema vascular. Por USG obtém-se a localização exata das artérias, enquanto o Doppler mede o fluxo sanguíneo no interior delas. Tal exame está indicado quando o teste de ereção fármaco-induzida for parcialmente positivo72•73 . É essencial que a pacientes submetidos a esses instrumentos psicofisiológicos sejam aplicados questionários ou escalas de autopreenchimento, como o IIFE3\ que investigam os componentes psicogênicos da disfunção erétil, cuja etiologia pode ser orgânica, psicológica ou mista (orgânica e psicológica). Quanto à ejaculação precoce (EP), tanto o DSM-IVTR quanto a CID-10 definem essa disfunção sexual com base no curto tempo até a ejaculação, após a penetração. No intuito de identificar a duração dessa fase pré-ejaculatória do portador de EP, foram desenvolvidos vários estudos74-76, tendo-se concluído, para efeito de ensaios clínicos, que o tempo de latência ejaculatória intravaginal (Intrava ginal Ejaculatory Latency Time - IELT) menor que 1 minuto indica latência inferior à da população geraF?. Em estudos para a investigação e o tratamento da EP, o IELT é utilizado como instrumento diagnóstico e/ou de eficácia74. A avaliação da EP na prática clínica, entretanto, difere daquela das pesquisas. Como a EP tem definição subjetiva (baseada em falta de controle ejaculatório, latência intravaginal curta ou nula e sofrimento do paciente e/ou da parceira) e métodos padronizados de medida e interpretação do IELT não estão suficientemente estabelecidos, essa medida não é utilizada de rotina para diagnóstico, e sim a própria impressão clínica, bem como o desconforto e a preocupação manifestados pelo paciente78 •
gonadismo no homem acima de 40 anos com sintomatologia que inclui redução da libido e/ ou disfunção erétil, sendo necessárias duas dosagens hormonais (com intervalo de, no mínimo, 15 dias) para confirmar o diagnóstico79·80 . Outros exames auxiliam na identificação de comorbidades, como diabetes, dislipidemias e hipo/hipertireoidismo, que exercem impacto negativo sobre a função sexual de homens e mulheres.
Formulação diagnóstica Com base em abrangente avaliação biopsicossexual de cada um dos parceiros sexuais, individualmente e em conjunto (quando possível), e em exames físicos, psicológicos e hormonais, o médico chega à formulação diagnóstica do(s) problema(s) sexual(is). Graham e Bancroft descrevem uma abordagem de ''três janelas", útil para contextualizar fatores que influenciam a queixa sexual (ver Figura 2) 81. A primeira janela descreve aspectos da situação atual (comunicação pobre, dificuldades de relacionamento, fadiga ou falta de privacidade). Na segunda janela estão os fatores de vulnerabilidade individual às queixas (atitudes persistentemente negativas sobre si e seu corpo, história de abuso sexual ou trauma). A terceira janela convida o médico a considerar os fatores relacionados à saúde que repercutem sobre a resposta sexual (depressão, ansiedade, problemas no controle neural do desejo e excitação, anomalias no suprimento vascular dos genitais, disfunção endócrina e doenças metabólicas). Um importante aspecto dessa terceira janela inclui a influência de medicamentos (autoadministrados ou prescritos) na resposta sexual. Recomenda-se que apenas queixas que perdurem no mínimo seis meses sejam consideradas para o diagnóstico82-86. Essa duração foi fixada após o levantamento NATSAU7, que encontrou falta de interesse em sexo no último mês como significativamente mais comum (40,6%) do que a falta de interesse nos últimos seis meses (10,2%). Queixas de curto prazo (que podem ser atribuídas a mudanças transitórias na saúde ou no relacionamento) não devem ser diagnosticadas como disfunção sexual. Se a di-
Tabela XIV
Investigação laboratorial Um inventário genérico de exames laboratoriais, utilizados para avaliar funções biológicas de "primeira linha" (quanto ao funcionamento sexual de homens e mulheres), é apresentado na Tabela XIV. Usualmente, os testes laboratoriais não fornecem a etiologia definitiva da disfunção sexual, mas indicam se há alguma condição anômala, que mereça ser mais bem investigada4 • Por exemplo, níveis abaixo de 300 ng/ dL para testosterona total e 7,3 ng/dL para testosterona livre são indicativos de hipo-
Exames laboratoriais recomendados para o diagnóstico
de disfunções sexuais (adaptada de Derogatis, 2008 4) Estradiol plasmático
Perfil lipídico (colesterol, triglicérides)
Testosterona total e frações
DHEA
SHBG
Glicemia de jejum
FSH, LH
HbAlC
Prolactina
Perfil tireoideano
Albumina
Hemograma completo
SH BG: g lobulina carreadora de hormônios sexuais; OH EA: dehidroepiandrosterona ; HbA 1C: hemoglobina g licolisada; LH: hormônio luteinizante; FSH: hormônio fol ículo- estimulante.
33 AVALIAÇÃO DA SEXUALIDADE NO CICLO DE VIDA
1. Situação atual • Problemas de relacionamento • Comunicação pobre entre os parceiros • Falta de tempo
2. Vulnerabilidade do indivíduo • Atitudes negativas • Necessidade de manter o autocontrole • Experi ência de abuso ou trauma sexual • Propensão à inibição sexual
3. Fatores relacionados à saúde que alteram a função sexual • Saúde mental • Saúde física • Efeitos adversos de medicamentos • Antid epressivos • Psicotrópicos
Figura 2
Abordagem de três janelas para compreender os fatores que influem na queixa sexual (adaptada de Graham e Bancroft, 2009 81 )
ficuldade ocorre ao longo da vida, ou é adquirida, generalizada ou situacional, deve ser codificada de acordo com o DSM-IV-TR. Entretanto, um problema sexualmente incômodo que seja exclusivamente situacional não deve ser diagnosticado como disfunção, embora o tratamento desse problema possa ser efetuado.
Exames laboratoriais e outros tipos de investigação armada auxiliam na identificação da etiologia e confirmam (quando alterados) a suspeita que o raciocínio clínico levantou. A queixa do( a) paciente pode não ser espontânea e geralmente não o é. Cabe ao profissional de saúde a iniciativa de incluir a entrevista sexológica entre os procedimentos a ser aplicados para a formulação diagnóstica. Saber investigar e identificar transtornos da preferência e transtornos da identidade sexual é imprescindível ao psiquiatra e ao médico de qualquer especialidade. Questionários e escalas, de uso habitual em estudos populacionais e ensaios clínicos, devem apenas preceder a anamnese sexual, no atendimento clínico. São úteis, nesse caso, para otimizar o tempo da consulta e orientar a entrevista, mas não a substituem. Vale salientar que a disfunção sexual pode anteceder outras manifestações de doenças sistêmicas (por exemplo, a disfunção erétil precede outros sintomas de doenças cardiovasculares), o que torna o seu diagnóstico precoce fundamental para um melhor prognóstico da doença de base.
Questões 1. Questionários, escalas e inventários que avaliam os transtor-
Considerações finais Estar bem com sua própria sexualidade é condição que favorece o profissional de saúde na avaliação do( a) paciente, superando as restrições impostas pelo constrangimento do(a) referido(a) paciente. Ter conhecimentos básicos sobre a função sexual é imprescindível para identificar e ampliar a pesquisa dos sinais e sintomas apresentados ou sugeridos pelo(a) paciente. A entrevista sexológica deve contar com tempo para a escuta (livre) e tempo para o direcionamento aos elementos a serem identificados. A sequência dessa coleta não é importante nem deve ser rígida, dando oportunidade à expressão do(a) paciente. Mas todos os aspectos devem ser avaliados. As expectativas do( a) paciente devem ser conhecidas e adequadas. O diagnóstico e o tratamento dos transtornos da sexualidade devem ser efetuados preferencialmente por equipe multidisciplinar, a fim de que todos os fatores que compõem o bom desempenho e a satisfação sexual do( a) paciente sejam considerados, avaliados e trabalhados. O diagnóstico dos transtornos da sexualidade - disfunções sexuais, transtornos da preferência sexual (parafilias) e transtornos da identidade sexual (de gênero) - é essencialmente clínico. Portanto, depende de anamnese e exame psíquico bem detalhado. Preferencialmente devem ser entrevistados o( a) paciente e a(o) parceira( o) separadamente e, depois, em conjunto.
a) b) c) d) e)
nos da sexualidade (assinale a alternativa correta): substituem a entrevista clínica e sexológica. não substituem a entrevista clínica e sexológica. auxiliam no diagnóstico e no tratamento. "b" e "c" estão corretas. fornecem resu ltados conclusivos.
2. QS-M e OS-F são (assinale a alternativa correta):
a) exames laboratoriais para identificar disfunção sexual. b) substâncias utilizadas para favorecer o desempenho sexual. c) questionários brasileiros de avaliação da função sexual masculina e feminina. d) itens a serem pesquisados na história sexual do(a) paciente. e) instrumentos psicofisiológicos para investigar a função sexual. 3. Para diferenciar a DE orgânica da psicogênica, utilizam-se (as-
a) b) c) d) e)
sinale a alternativa correta): teste de ereção fármaco-induzida e Doppler das artérias pe. n1anas. IIFE e Doppler das artérias penianas. li FE, Doppler das artérias penianas e teste de ereção fármaco-induzida. somente li FE. medição do IELT
4. Na disfunção sexual femin ina importa avaliar (assinale a alter-
nativa correta): a) o tipo de início. b) a(s) fase(s) do ciclo de resposta sexual acometida(s).
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CLÍN ICA PS IQUIATRICA
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SEÇÃO 3
DA SEMIO LOG IA AO D IAGNÓSTICO EM PS IQU IATRIA
c) a função sexual do(a) parceiro(a). d) o uso de substâncias. e) todas as alternativas estão corretas. 5. O I ELT que identifica a presença de ejaculação precoce em estudos clínicos (assinale a alternativa correta): a) é menor que 5 minutos. b) é igual ou menor que 1 minuto. c) não há um padrão definido de tempo. d) é variável, conforme a idade do homem. e) é maior que 5 minutos.
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33 AVALIAÇÃO DA SEXUALIDADE NO CICLO DE VIDA
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421
Saúde da Mulher
Joel Renn ó Jr. Renata Sciorilli Camacho Hewdy Lobo Ribeiro
SUMÁRIO
Introdução, 422 Diferenças entre os gêneros nas principais síndromes psiquiátricas, 423 Transtorno depressivo, 423
Particularidades que envolvem as mulheres histerectomizadas, 433 Conclusão, 435 Minicaso clínico, 435 Questões, 436 Referências bibliográficas, 436
Transtorno afetivo bipolar (rAB). 423 Transtornos de ansiedade, 423 Esquizofrenia, 423 Abuso e dependência de álcool e substâncias, 424 Novas perspectivas para classificação em saúde mental da mulher: a
PONTOS-CHAVE
CID- 11 e o DSM-V, 424 Síndrome pré-menstrual e o transtorno disfórico pré-menstrual
1. Conhecer as principais diferenças entre os gêneros e sua influência nos transtornos psiquiátricos.
(rDPM). 425 Diagnóstico do TDPM, 425 Etiologia do TDPM, 426 Tratamento do TDPM, 426 Transtornos psiquiátricos na gestação e no pós-parto, 427 Etiologia, 427
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
2. Conhecer as principais perspectivas de classificação em saúde mental da mulher para a CID- 11 e o DSM-V. 3. Realizar o diagnóstico e o tratamento de disforia pré-menstrual. 4. Conhecer as principais teorias que envolvem a etiologia da depressão pós-parto.
Fatores de risco e prevalência, 427 Prevenção da depressão pós-parto, 428
5. Familiarizar-se com as escalas mais utilizadas em depressão na
Sobre escalas de depressão para uso na gravidez e no pós-parto, 428
6. Avaliar riscos e benefícios de tratar ou não um transtorno
Tratamento da depressão na gestação e no pós-parto, 428 Depressão na gestação e as consequências na prole. 429 Relação risco vs. benefício em tratamento para depressão na gestação e no pós-parto, 430 Opções de tratamentos não farmacológicos, 430 Climatério e saúde mental, 430 Etiologia e fatores de risco, 430 Tratamento da depressão no climatério, 432 O câncer de mama e a saúde mental da mulher, 432
Introdução Existem algumas peculiaridades nos transtornos psiquiátricos em mulheres. Isso ocorre em termos epidemiológicos, características clínicas e até mesmo em tratamento e prognóstico e, por esse motivo, atualmente, as diferenças entre os gêneros têm sido amplamente estudadas.
gestação e no pós-parto. psiquiátrico na gestação e no puerpério e conhecer algumas opções de tratamento. 7. Entender dados e controvérsias sobre hormônios, saúde mental e
climatério. 8. Avaliar a relação entre o câncer de mama e o estado psíquico da mulher e escolher o antidepressivo mais indicado para as mulheres em uso de hormonioterapia. 9. Entender as influências da histerectomia na saúde mental da mulher.
Haveria um grupo de mulheres que seria mais sensível a alterações hormonais em qualquer fase de suas vidas, e sahemos que essas oscilações ocorrem principalmente na menarca, no período pré-menstrual, na gestação, no puerpério, no climatério e até mesmo sob o uso de anticoncepcionais orais. Nesses períodos, as mulheres estariam mais vulneráveis aos transtornos do humor, podendo haver exacerbação
34 SAÚDE DA MULHER
dos transtornos preexistentes e também o surgimento de novas doenças nas pacientes com predisposição, o que costuma ocorrer principalmente no puerpério 1• Neste capítulo, abordaremos temas importantes da saúde da mulher nessas fases e discorreremos a respeito das diferenças entre os gêneros. Trataremos também de algumas patologias relacionadas à saúde psíquica das mulheres, como o câncer de mama e as particularidades que envolvem as pacientes histerectomizadas. Faremos também uma breve discussão a respeito das novas perspectivas em classificação na saúde mental da mulher, com enfoque na Classificação Internacional das Doenças ( CID- 11) e no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V).
Diferenças entre os gêneros nas principais síndromes psiquiátricas Transtorno depressivo Mulheres apresentam risco para transtorno depressivo maior ao longo da vida em uma proporção de 1,7 a 2,7 em relação aos homens. Essa diferença ocorre entre os períodos da menarca e menopausa, nos quais a mulher sofreria influência hormonal, principalmente nos períodos perimenstrual, no pós-parto e na perimenopausa. A prevalência de episódio depressivo ao longo da vida seria de 21,3% nas mulheres e 12,7% nos homens, nas idades entre 15 e 54 anos. Em contraste, as taxas de depressão nas crianças até os dez anos de idade seria a mesma para ambos os sexos. Existem algumas diferenças no que se refere à sintomatologia do transtorno depressivo: mulheres apresentam maior predisposição à depressão atípica e maior comorbidade com ansiedade. Também apresentam maior número de queixas somáticas. Tentam o suicídio três vezes mais, mas os homens efetivam o ato em maior proporção. Fatores ambientais e estressares externos parecem exercer maior influência no humor das mulheres. Além disso, o episódio depressivo costuma aparecer em idade mais precoce nessa população2 • O gênero também influenciaria a resposta aos antidepressivos. Estudos demonstram que mulheres teriam melhor resposta a antidepressivos como os inibidores seletivos da recaptura da serotonina (ISRS) e aos inibidores da monoamina oxidase (IMAOs). Os homens teriam melhor resposta aos antidepressivos tricíclicos (ADTs) e essa diferença nao ocorrena na pos-menopausa, ou seJa, apos esse penodo, homens e mulheres apresentariam respostas semelhantes em relação às classes dos antidepressivos3 • -
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Transtorno afetivo bipolar (TAB) Estudos epidemiológicos demonstram que não há diferença na distribuição da doença entre homens e mulheres, sendo que a proporção ficaria em 1:1. No entanto, haveria diferenças na apresentação dessa doença entre as duas populações. Um estudo prospectivo acompanhou 711 pacientes com TAB durante sete anos, e dentre homens e mulheres,
concluiu que as mulheres passam mais tempo em episódios depressivos em comparação aos homens. Mulheres também apresentaram maior chance para ciclagem rápida e maior comorbidade com ansiedade. Não houve diferença em relação aos episódios de mania ou hipomania para os bipolares tipo I, já nos casos de TAB tipo II os homens passaram mais tempo em hipomania do que as mulheres. Os homens com TAB também apresentaram maior risco relativo para o uso de substâncias4. O motivo para essas diferenças não ficou claro, no entanto, sabe-se que as disfunções tireoidianas são mais comuns nas mulheres, o que poderia favorecer a ciclagem rápida. As mulheres também são mais vulneráveis ao hipotireoidismo, que pode ser causado pelo carbonato de lítio, e por esse motivo a função tireoidiana deve ser monitorada a cada 6 meses no mínimo. No caso das mulheres, deve-se saber que medicações como a carbamazepina, a oxcarbazepina e o topiramato reduzem a eficácia dos anticoncepcionais orais. Outra observação importante seria que o uso dos anticoncepcionais orais pode reduzir em até 60% a eficácia da lamotrigina, devendo haver ajuste da dose nesses casos5•
Transtornos de ansiedade Mulheres possuem uma probabilidade duas vezes maior do que os homens para desenvolver ao longo da vida transtorno de ansiedade generalizada, transtorno do pânico e transtorno do estresse pós-traumático. As mulheres apresentariam também uma probabilidade 1,5 vezes maior do que os homens para desenvolver transtorno obssessivo-compulsivo (TOC) e fobia social ao longo da vida. As características clínicas também são diferentes, sendo que as mulheres apresentam mais comorbidades psiquiátricas e relatam maior gravidade dos sintomas. Acredita-se que pode haver fatores genéticos envolvidos e um possível papel dos hormônios sexuais femininos6 . Um estudo com 609 pacientes que apresentavam critérios diagnósticos para transtorno de pânico ou ataques de pânico foi realizado para avaliar-se a diferença entre os gêneros com relação aos sintomas do pânico e concluiu que as mulheres teriam mais dificuldades respiratórias durante os ataques, náuseas e sensação de sufocação7 • Um estudo com 220 pacientes pretendia observar a diferença entre os gêneros em relação à apresentação clínica e genética no TOC e encontrou os seguintes resultados: nos homens, o início da doença é mais precoce e a presença dos tiques é mais comum. Mulheres com TOC relataram maior incidência de abuso sexual na infância do que os homens. além de observarem alterações dos sintomas nos períodos perimenstrual, na gestação, no pós-parto e na perimenopausa. Diferenças genéticas também foram observadas entre os dois grupos8 •
Esquizofrenia Existem diferenças significantes no curso e manifestações da esquizofrenia entre homens e mulheres. Uma me-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
tanálise recente das últimas duas décadas mostrou que a incidência da doença é entre 1,31 e 1,42 vezes maior nos homens. Os autores do estudo dizem que a prevalência da doença vem aumentando nos homens nos últimos anos, o que poderia ocorrer em razão do maior uso de drogas ilícitas, que é maior nessa população, e que precipitaria a doença nos indivíduos com predisposição genética à esquizofrenia. A doença costuma manifestar-se entre as idades de 15 e 24 anos nos homens. Nas mulheres, há dois picos de incidência: o primeiro entre 20 e 29 anos e o segundo por volta dos 45 a 49 anos, que ocorreria na pósmenopausa por causa do declínio do estrógeno, que teria um efeito protetor, já que apresentou efeitos dopaminobloqueadores em estudos com animais9 . Mulheres com esquizofrenia apresentariam mais sintomas positivos e afetivos e menos sintomas negativos que os homens e estariam menos propensas a apresentar anormalidades estruturais cerebrais. Alguns pesquisadores acreditam que a esquizofrenia seria mais hereditária nas mulheres e mais decorrente de fatores ambientais nos homens, por exemplo, complicações no parto. Alguns estudos sugerem também que as mulheres responderiam melhor ao tratamento antes da menopausa, e necessitariam de doses mais elevadas de medicação após a menopausa, o que mais uma vez falaria a favor do efeito protetor do estrógeno nas mulheres5 •
Abuso e dependência de álcool e substâncias A prevalência da dependência de álcool em homens é mais de duas vezes maior do que em relação às mulheres. A prevalência nas mulheres é de 6% e está aumentando nos últimos anos principalmente entre as mulheres jovens, que cada vez mais vêm apresentando estilo de vida e hábitos sociais semelhantes aos dos homens 10 • Mulheres precisam de doses menores de álcool para que ocorra a intoxicação alcoólica, e isso poderia ocorrer porque a enzima que metaboliza o álcool (aldeído desidrogenase) seria menos ativa nas mulheres, ou também devido à maior porcentagem de gordura corpórea no gênero, havendo menor porcentagem de água corpórea, na qual o álcool se dilui e facilita sua metabolização. Dessa forma, doenças relacionadas ao álcool instalam-se com maior frequência nas mulheres (por exemplo, úlcera péptica, doenças do fígado, anemia e atrofia cerebral). Em relação ao uso de drogas, a prevalência do uso de alucinógenos e opioides é maior entre os homens. Mulheres tendem a utilizar anfetaminas e cocaína na mesma proporção que os homens, talvez pela inibição do apetite que essas drogas causam e pela preocupação com o peso, comum nas mulheres na sociedade atual. É comum o aumento do abuso de substâncias no período pré-menstrual, possivelmente para o alívio dos sintomas ansiosos e depressivos. Sendo assim, tratar a síndrome pré-menstrual seria uma maneira de diminuir o consumo de substâncias em uma parte das mulheres5 •
Novas perspectivas para classificação em saúde mental da mulher: a CID-11 e o DSM-V Atualmente, a saúde mental da mulher é um tema que tem sido amplamente estudado, incluindo suas dimensões e influências na prole, mas ainda não há especificação para essas patologias na Classificação Internacional de Doenças (CID -10) em Saúde Mental, a não ser como diagnóstico de exclusão, no caso dos transtornos relacionados ao puerpério (F53). No capítulo XV (Gravidez, parto e puerpério), encontra-se a classificação 099.3 "Transtornos mentais e doenças do sistema nervoso complicando a gravidez, o parto e o puerpério': que exclui depressão pós-parto (F53.0) e psicose puerperal (F53.1). Não há mais nada descrito em termos de diagnóstico para esses transtornos na CID 1O. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, na sua 4a edição e com texto revisado (DSM-IVTR), não distingue os transtornos do humor do pós-parto dos que acontecem em outros períodos, exceto como especificador "com início no pós-parto", que é utilizado quando o início dos sintomas ocorre no período de até quatro semanas após o parto 11 • Um grupo de pesquisadores denominou os transtornos psíquicos relacionados ao ciclo reprodutivo feminino como reproductive related disorders (RRD) ou "doenças ligadas à reprodução': Haveria um grupo de mulheres mais sensíveis às alterações hormonais que ocorrem ao longo da vida, e essas mulheres seriam mais vulneráveis, de maneira desfavorável, a qualquer flutuação hormonal (pré-menstrual, gestação e puerpério e perimenopausa, por exemplo). Haveria um componente genético e a irritabilidade e a impulsividade seriam sintomas comuns. O tratamento envolve o uso de antidepressivos (principalmente ISRSs) ou até mesmo a intervenção hormonal. Acredita-se que essa "patologia'' possa ser reconhecida com uma nova entidade em termos de classificação em um futuro próximo 12 • Atualmente, os estudos tendem a enfocar os transtornos psiquiátricos no puerpério e dar menor importância aos transtornos na gestação, por acreditar-se que essa fase da vida da mulher exerceria um efeito protetor para os transtornos psiquiátricos, o que não é verdade. Sabe-se que o risco para ocorrer um transtorno depressivo na gestação é o mesmo que em qualquer fase da vida da mulher, e tendo em vista que muitas gestantes interrompem o uso do antidepressivo ao descobrirem-se grávidas, a chance de recaída pode aumentar bastante. A depressão na gestação pode aumentar muito o risco de depressão pós-parto e pode levar a graves consequências inclusive no pré-natal e na prole. Pensando nisso, um autor propõe uma classificação para o DSM-V 13 , na qual a depressão seria considerada "perinatal': o que envolveria a gestação e o pós-parto, levando em consideração a qualidade do parto, a saúde dos bebês e a qualidade da relação mãe-bebê. Sendo assim, teríamos as seguintes descrições clínicas:
34 SAÚDE DA MULHER
1) transtorno depressivo perinatal; 2) estresse pós-traumático relacionado ao trabalho
de parto (tendo em vista que algumas mulheres vivenciam o trabalho de parto como um evento traumático); 3) distúrbios do relacionamento mãe-bebê; 4) patologias relacionadas ao luto ou perda materna (para os casos de natimortos, abortamentos ou mortes no puerpério). Essa classificação visaria a uma melhor detecção das doenças depressivas nessas mulheres, facilitando o diagnóstico e a intervenção por parte dos profissionais da área da saúde. Um outro autor defende que a depressão pós-parto não deve ser reconhecida como uma entidade à parte, pois acredita que não há etiologia, sintomatologia ou curso específicos da doença. A depressão pós-parto seria influenciada pela situação hormonal e social da paciente, e estes poderiam ser fatores desencadeantes em uma mulher que já teria a predisposição à doença em qualquer fase da vida. Para ele, a diferença entre os gêneros deve ser considerada, sabendo-se que pode influenciar fortemente as características dos transtornos mentais em geral; no entanto, o autor defende que não há pesquisas ou instrumentos fidedignos o suficiente para diferenciarmos as patologias como entidades diferentes, considerandose as diferenças entre os gêneros. A sugestão seria acrescentar uma especificação aos transtornos mentais já existentes, algo como "no período do pós-parto". Em suma, muito ainda será discutido a respeito da classificação das patologias relacionadas ao ciclo reprodutivo feminino para o DSM-V e a CID-11 14 •
Síndrome pré-menstrual e o transtorno disfórico pré-menstrual (TDPM)
vo, ansiedade acentuada, marcante instabilidade afetiva e interesse diminuído por atividades rotineiras. Esses sintomas são relatados com ocorrência regular durante a última semana da fase lútea na maioria dos ciclos menstruais durante o ano anterior, e remitem após alguns dias do início da menstruação, ficando ausentes na semana seguinte 16 • Os critérios utilizados para pesquisar a presença do TDPM, segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico da Associação Psiquiátrica Americana estão no Quadro I. A utilização dos critérios do DSM-IV, em associação ao preenchimento de diários prospectivos por pelo menos dois ciclos menstruais consecutivos, é atualmente reconhecido como o modo prático de confirmação diagnóstica 16 • O TDPM é então caracterizado por sintomas físicos, afetivos e comportamentais que estão associados à fase lútea do ciclo menstrual e que são aliviados logo no início da menstruação. Trata-se de um quadro crônico e que afeta a capacidade produtiva das mulheres que são acometidas. Aproximadamente 6% das mulheres em idade reprodutiva preenchem os critérios estritos para esse diagnóstico e 20% possuem critérios parciais para essa entidade clínica 18 • Outros dados estatísticos relatam que cinco por cento das mulheres menstruando
Quadro I trual
Critérios para a presença do transtorno disfórico pré-mens-
A. Os sintomas devem ocorrer durante a semana anterior à menstruação e remitirem poucos dias após o início desta. Cinco dos seguintes sintomas devem estar presentes e pelo menos um deles deve ser o de número 1, 2, 3 ou 4: 1. Humor deprimido, sentimentos de falta de esperança ou
pensamentos autodepreciativos.
O transtorno disfórico pré-menstrual (TDPM) está incluso como um diagnóstico do Apêndice B no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSMIV), 4a edição de 1994, da Associação Americana de Psiquiatria. Trata-se de uma entidade clínica cujos critérios foram obtidos do consenso de especialistas de modo que pode ser considerado experimental, mas que é usado para fins de pesquisa 15•16 . Uma característica diferente no modo de diagnosticar esse transtorno é porque ele depende de um acompanhamento prospectivo dos sintomas por dois ciclos menstruais. Os conflitos com parceiro, limitações no trabalho, busca inadequada dos serviços de saúde e uso de medicações inespecíficas são consequências importantes desse transtorno não reconhecido ou sem tratamento 17 .
2. Ansiedade acentuada, tensão, sentimentos de estar com os "nervos à flor da pele". 3. Significativa instabilidade afetiva. 4. Raiva ou irritabilidade persistentes e conflitos interpessoais aumentados. 5. Interesse diminuído pelas atividades habituais. 6. Sentimento subjetivo de dificuldade em se concentrar.
7. Letargia, fadiga fácil ou acentuada falta de energia. 8. Alteração acentuada do apetite, excessos alimentares ou avidez por determinados alimentos. 9. Hipersônia ou insônia. 1O. Sentimentos subjetivos de descontrole emocional. 11. Outros sintomas físicos, como sensibilidade ou inchaço das mamas, dor de cabeça, dor articular ou muscular, sensação de inchaço geral e ganho de peso. B. Os sintomas devem interferir ou trazer prejuízo no trabalho, na escola, nas atividades cotidianas ou nos relacionamentos. C. Os sintomas não devem ser apenas exacerbação de outras
Diagnóstico do TDPM As características desse transtorno incluem sintomas psíquicos, como humor acentuadamente depressi-
doenças. O. Os critérios A, B e C devem ser confirmados por anotações prospectivas em diário durante pelo menos dois ciclos consecutivos.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
têm esses sintomas graves do transtorno disfórico prémenstrual e outras, que apresentam esses sintomas em menor intensidade, chegam a 29% 17• As pesquisas e oreconhecimento clínico desse transtorno evitam negligenciar esse grave problema feminino. Mesmo havendo controvérsias, há autores que consideram esse transtorno uma entidade clínica do humor distinta de sintomas puramente pré-menstruais ou da depressão maior 15 • Realçar as características da lista de sintomas do humor por meios estatísticos pode servir para classificar, subclassificar e diferenciar o transtorno disfórico de um quadro de depressão breve. O uso de meios estatísticos para comparar sintomas do humor entre mulheres com transtorno disfórico pré-menstrual e depressão breve com controles normais usou da autoavaliação de sintomas como a tristeza e, nesse estudo que durou entre 50 e 120 dias, buscou tornar o diagnóstico mais preciso por meio de meios estatísticos mesmo que esteja como quadro clínico em definição no DSM-IV 19 . A síndrome pré-menstrual e o TDPM parecem constituir um continuum sem limites claros. Na síndrome pré-menstrual os sintomas existem, mas não são graves o suficiente para causar prejuízos sociais ou de relacionamentos às pacientes, o que ocorre no TDPM. Desde que o DSM-IV fez sua descrição diagnóstica em 1994 facilitou por causa do estabelecimento de critérios sintomatológicos correspondentes a este quadro clínico mais severo. Um estudo objetivando pesquisar esse transtorno em uma amostra não clínica pesquisou 632 estudantes que apresentavam menstruação regular e média de idade de 24,4 anos. Ao final, sugeriu-se que o refinamento do constructo para esse diagnóstico em estudos futuros deve focar nos sintomas psicopatológicos mais que nos outros sintomas20.
Etiologia do TDPM A etiologia do TDPM é multifatorial, mas particularmente parece haver implicação na desregulação da serotonina e da alopregnanolona 17 • Durante anos, diferentes hipóteses envolvem os hormônios ovarianos esteroides para explicar a gravidade de sintomas pré-menstruais na fase lútea. Destas, uma forte possibilidade é que as diferenças nas concentrações dos hormônios esteroides ovarianos possam piorar o humor e causar um desequilíbrio psicológico, mas mesmo essa explicação é considerada inconsistente e mantém-se controversa. Um trabalho que analisou os hormônios esteroides ovarianos no ciclo menstrual em mulheres com ou sem sintomas claros de disforia menstrual verificou níveis de estradiol (E2), globulina ligadora dos esteroides sexuais (SHBG) e progesterona durante um mês e fizeram também auto avaliações de sintomas. Verificou-se que na fase lútea a concentração de E2 livre e SHBG diferem significativamente entre mulheres com e sem disforia pré-menstrual, mas isso não consiste em uma conclusão definitiva21 •
Tratamento do TDPM Há várias opções farmacológicas para tratamento do TDPM, incluindo os antidepressivos inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS). Para as mulheres que fazem tratamento anticoncepcional, uma dose ajustada deste pode ter efeito terapêutico. Diferentemente do tratamento para transtorno depressivo e outros transtornos mentais, nos quais os antidepressivos são prescritos continuamente, a indicação da prescrição é restrita à fase lútea, nas duas semanas que antecedem a menstruação 18• Os antidepressivos ISRS constituem a primeira linha de tratamento. Fluoxetina, sertralina e paroxetina são recomendadas inclusive pelo Food and Drug Administration (FDA) nos Estados Unidos 22 . Como opção de tratamento acrescenta-se, além dos ISRS, contraceptivos orais que contenham etinilestradiol e drospirenona. Outras opções são hormônios que suprimem a ovulação, e a terapia cognitiva e o suporte vitamínico com cálcio também podem ser úteis 17 • A abordagem terapêutica com supressão de ovulação é reservada como alternativa para casos onde uso de ISRS e outros psicofármacos não obtiveram resultados ou tiveram efeitos adversos que inviabilizaram o seu uso. Benzodiazepínicos, espironolactona (diurético) e anti-inflamatórios não esteroides podem ser usados como suporte para alívio dos sintomas. Além do tratamento medicamentoso, a abordagem psicoterapêutica por meio da terapia cognitiva-comportamental é reconhecida como eficaz. Por falta de evidências de um tratamento absolutamente efetivo, adotar um estilo de vida mais saudável e exercícios físicos constituem a primeira linha no tratamento, e podem ser a única intervenção quando se tratar de um quadro com sintomas leves. Vitaminas e outros suplementos têm efeito indefinido no tratamento desses sintomas. A escolha do tratamento deve ser baseada nos sintomas específicos e na história médica individual de cada paciente, levando -se em consideração a necessidade de anticoncepção22 • A segurança e a eficácia do tratamento do TDPM com ISRS pôde ser provada no relato de um caso em que uma profissional da aviação restabeleceu sua capacidade de voo depois de tratada com sertralina 25 mg/dia para transtorno disfórico pré-menstrual. Ela demonstrou a melhora por meio da evolução positiva no desempenho cognitivo em avaliações neuropsicológicas comparadas antes e depois do uso da medicação. Independentemente dessa ocupação, este ISRS foi uma opção segura para a profissional23 • O transtorno disfórico pré-menstrual também parece deixar a mulher mais suscetível à instalação de outras morbidades psíquicas, pois aquelas com esse transtorno que também relatam histórico de trauma ou abuso físico estão mais sujeitas a apresentar uma resposta neuroen-
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dó crina diferenciada após exposição a um fator ou evento estressante, com maior risco de desenvolverem também transtorno de estresse pós-traumático24. Além de considerar os aspectos biológicos, há artigos criticando esse foco do TDPM como uma entidade do processo saúde e doença sem levar em consideração aspectos muito peculiares do gênero feminino e das condições sociais em que a paciente está inserida25 .
Transtornos psiquiátricos na gestação e no pós-parto Etiologia A desregulação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal é uma alteração endócrina observada em modelos animais para pacientes deprimidos. Sabemos que a exposição ao estresse influencia o eixo e que a gestação e o pós-parto podem ser considerados momentos de estresse elevado, não só físico, mas também emocional. Sabemos também que após o parto ocorre uma queda brusca de hormônios, anteriormente produzidos pela placenta. Nesta fase o estrógeno, que antes do parto havia sofrido uma elevação da ordem de 1.000 vezes o seu valor basal, cai rapidamente. Os níveis de progesterona também sofrem um decréscimo súbito significativo após o parto. Em algumas mulheres mais sensíveis às flutuações hormonais ocorreria uma espécie de "abstinêncià: e naquelas que já apresentam predisposição genética e/ou fatores psicossociais associados, o quadro depressivo poderia instalar-se mais facilmente26. Bloch et al. 1 realizaram uma revisão da literatura a fim de correlacionar os fatores endócrinos e hereditários com a etiologia desse transtorno. Não se constatou relação genética diferente daquela já esperada em quadros não puerperais. Levantou-se a hipótese de que algumas mulheres seriam mais sensíveis às variações hormonais em qualquer momento de suas vidas, incluindo-se período pré-menstrual, menarca, gestação, puerpério, menopausa e até mesmo durante o uso de anticoncepcionais orais.
Fatores de risco e prevalência Existe a crença de que a gestação é um período de bem-estar e alegria para a maior parte das mulheres, no entanto, observa-se que esse período não pode ser considerado um fator protetor em termos de transtornos psiquiátricos. Por outro lado, a gestação também não pode ser considerada um fator de risco para os transtornos psiqwatncos, ou seJa, a gestaçao por s1 so nao aumentana o risco para o aparecimento ou piora dos transtornos psiquiátricos pré-existentes27. Uma revisão sistemática da literatura avaliou os principais fatores de risco para sintomas depressivos na gestação e encontrou que cerca de 12,7% das gestantes apresentam transtorno depressivo maior, sendo que os principais fatores de risco associados •
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a sintomas depressivos na gravidez seriam ansiedade materna, evento de vida estressor, história de depressão prévia, precário suporte social, violência doméstica, gravidez não desejada, dificuldades financeiras, baixo nível educacional, pouca idade, precárias condições de moradia, pouca qualidade nos relacionamentos em geral, uso de tabaco, álcool ou drogas ilícitas e passado obstétrico complicado. Destes, aqueles que teriam associação mais consistente seriam ansiedade materna, eventos de vida negativos, pouco suporte social e dificuldades maritais28. A depressão na gestação seria um dos principais fatores de risco para depressão pós-parto e um estudo com 1.558 mulheres encontrou a presença de sintomas depressivos na gravidez tardia da ordem de 17%, 18% no puerpério imediato e 13% entre a sexta e a oitava semanas do puerpério. O mesmo valor (13%) foi encontrado no sexto mês do puerpério29. Um autor estimou prevalência de depressão na gravidez da ordem de 7,4% no primeiro, 12,8% no segundo e 12% no terceiro trimestre da gestação30 . Uma metanálise de 59 estudos mostrou uma estimativa de prevalência de depressão pós-parto da ordem de 13% 31. Em um estudo com 1.800 puérperas, os principais fatores de risco para depressão pós-parto foram: história de transtorno disfórico pré-menstrual, sintomas depressivos até o 4° dia do puerpério e antecedente de sintomas do humor com o uso dos anticoncepcionais orais, indicando maior sensibilidade hormonal nessas mulheres. Mulheres com gravidez precoce e história de depressão maior ou depressão pós-parto prévia também foram incluídas no grupo de alto risco 32 . Nas adolescentes, foi verificada prevalência entre 16 e 44%, quase duas vezes mais elevada do que nas gestantes adultas, o que pode estar relacionado à falta de maturidade
Tabela I Principais fatores de risco para o desenvolvimento de depressão na gestação Biológicos
Psicossociais
História de transtorno do humor ou ansiedade
Abuso sexual na infância
História de depressão pós- parto
Gravidez precoce
História de transtorno disfórico pré- menstrual
Gravidez não planejada
Doença psiquiátrica na família
Gravidez não desejada ou não aceita Mães solteiras Ter muitos filhos
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Reduzido suporte social Violência doméstica ou conflitos no lar Baixo nível de escolaridade Abuso de substâncias/tabagismo Fonte: Adaptada de Ryan et ai., 200535•
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afetiva e de relacionamentos dessas pacientes, bem como ao fato de que grande parte delas tem que abandonar seus estudos em razão da maternidade33 • O outro estudo com 425 mulheres avaliou fatores de risco sociais para depressão pós-parto, encontrando como principais fatores o baixo suporte social, evento estressar nos últimos 12 meses, idade inferior a 16 anos, história de doença psiquiátrica pessoal ou familiar e personalidade/ estilo de vida. Conflitos conjugais e ter um bebê do sexo oposto ao esperado também aumentariam o risco para depressão pós-parto34 .
Prevenção da depressão pós-parto Os estudos apontam para a importância da intervenção precoce, visto que apenas 18% das mulheres com depressão maior na gestação procuram ajuda36 • Fala-se a respeito da possibilidade do uso de questionários padronizados nas gestantes e no puerpério imediato, o que demandaria uma abordagem multidisciplinar. A ideia seria uma ação preventiva, diminuindo os riscos decorrentes da depressão pós-parto. Um estudo com 99 mulheres com risco para depressão pós-parto mostrou que 20% das mulheres que se mantiveram com os cuidados pré-natais básicos desenvolveram a depressão pós-parto, enquanto apenas 4% das que tiveram apoio da psicoterapia interpessoal desenvolveram o quadro clínico37 • Uma revisão sistemática da literatura avaliou intervenções psicossociais e psicológicas voltadas para a prevenção da depressão pós-parto. Quinze estudos com 7.697 mulheres foram incluídos e concluiu-se que o suporte pós-natal realizado por profissional da área da saúde foi mais eficaz do que medidas antenatais, e que intervenções individuais foram mais eficazes do que em grupo. Apesar disso, no geral, diversas intervenções psicossociais ou psicológicas não reduziram significativamente o número de mulheres que desenvolveram a depressão pós-parto 38 •
Sobre escalas de depressão para uso na gravidez e no pós-parto Autores têm utilizado a Edinburgh Postnatal Depression Scale (EPDS) com a finalidade de detectar a depressão na gestação. Um estudo americano testou o Inventário de Depressão de Beck (BDI) - uma escala para depressão geral - durante a gravidez e obteve o seguinte resultado com o ponto de corte em 16: sensibilidade de 83%, especificidade de 89%, valor preditivo positivo de 50% e valor preditivo negativo de 98% 39 • Provavelmente, o autor obteve baixo valor preditivo positivo pelo fato de o BDI conter itens de sintomas físicos que se confundem com um quadro normal da gravidez. Também têm sido utilizadas na gravidez escalas que abordam preditores de depressão pósparto. O Pregnancy Risk Questionnaire é uma escala de 18 itens que lista fatores de risco psicossociais para depressão pós-parto. Um outro instrumento com a mesma finalida-
de é o Postpartum Depression Predictors Inventory, um checklist que idealmente deve ser preenchido em cada um dos três trimestres de gravidez e que também acessa fatores de risco psicossociais 11 • Existem duas escalas desenhadas especificamente para rastreamento de depressão pós-parto: a EPDS e a Postpartum Depression Screening Scale (PDSS). Ambas possuem tradução para o português e validação no Brasil40,41 • A EPDS foi o primeiro instrumento encontrado na literatura desenvolvido para triar especificamente a depressão pós-parto. A EPDS é um instrumento de autorregistro que contém 1Oquestões de sintomas comuns de depressão e que utiliza formato de respostas do tipo Likert. A mãe escolhe as respostas que melhor descrevem o modo como tem se sentido na última semana. A PDSS também é uma escala de autoavaliação do tipo Likert. O instrumento tem 35 itens que avaliam sete dimensões: distúrbios do sono/apetite, ansiedade/insegurança, labilidade emocional, prejuízo cognitivo, perda do eu, culpa/vergonha e intenção de causar dano a si. Cada dimensão é composta de cinco itens que descrevem como uma mãe pode estar se sentindo após o nascimento de seu bebêl 1•
Tratamento da depressão na gestação e no pós-parto Os riscos de não tratar
Sabemos que apenas 18% das mulheres com transtorno depressivo maior procuram o tratamento, e quando não ocorre o tratamento adequado podem ocorrer algumas complicações como baixo ganho de peso; baixa aderência ao pré-natal; aumento do uso de substâncias por parte da mãe e aumento da chance de prematuridade. Alguns estudos associam estresse, depressão e ansiedade durante o parto a baixo peso ao nascer, menores índices de Ápgar, circunferência cefálica no recém-nascido (RN) diminuída e baixa idade gestacional ao nascer36. É muito comum que as gestantes interrompam o uso do antidepressivo quando se descobrem grávidas, o que pode levar a altas chances de recaída. Um estudo com 20 1 gestantes mostrou que a recaída para aquelas que não descontínuararo o tratamento foi da ordem de 26%, enquanto dentre aquelas que descontinuaram o uso do antidepressivo foi de 68%, o que também demonstra que a gravidez realmente não é um fator protetor para depressão, ao contrário do que alguns teóricos imaginam42 • Os riscos de tratar
A teratogenicidade para antidepressivos ainda é incerta, mas estudos sugerem que hipertensão pulmonar persistente no neonato com ISRS e prematuridade têm relação com antidepressivos em geral. Estudos recentes têm relacionado o uso da paroxetina com aumento de risco para malformações cardíacas fetais, o que não ocorreria com outros ISRS. Consideram-se também efeitos como
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Nos últimos sete dias ... 1. Eu tenho sido capaz de rir e achar graça das coisas: C ) Como eu sempre fiz C ) Não tanto quanto antes C ) Sem dúvida, menos que antes C ) De jeito nenhum 2. Eu sinto prazer quando penso no que está por acontecer em meu dia a dia: C ) Como eu sempre senti C ) Ta lvez. menos que antes C ) Com certeza menos C ) De jeito nenhum 3. Eu tenho me culpado sem necessidade quando as coisas saem erradas: C ) Sim, na maioria das vezes C ) Sim, algumas vezes C ) Não muitas vezes C ) Não, nenhuma vez 4 . Eu tenho me sentido ansiosa ou preocupada sem uma boa
razão: C ) Não, de maneira alguma C ) Pouquíssimas vezes C ) Sim, algumas vezes C ) Sim, muitas vezes 5. Eu tenho me sentido assustada ou em pân ico sem um bom motivo: C ) Sim, muitas vezes C ) Sim, algumas vezes C ) Não muitas vezes C ) Não, nenhuma vez
6. Eu tenho me sentido esmagada pelas tarefas e acontecimentos do meu dia a dia: C ) Sim. Na maioria das vezes eu não consigo lidar bem com eles C ) Sim. Algumas vezes não consigo lidar bem como antes C ) Não. Na maioria das vezes consigo lidar bem com eles C ) Não. Eu consigo lidar com eles tão bem quanto antes
7. Eu tenho me sentido tão infeliz que eu tenho tido dificuldade de dormir: C ) Sim, na maioria das vezes C ) Sim, algumas vezes C ) Não muitas vezes C ) Não, nenhuma vez 8. Eu tenho me sentido triste ou arrasada: C ) Sim, na maioria das vezes C ) Sim, muitas vezes C ) Não muitas vezes C ) Não, de jeito nenhum 9. Eu tenho me sentido tão infeliz que eu tenho chorado: C ) Sim, quase todo o tempo C ) Sim, muitas vezes C ) De vez em quando C ) Não, nenhuma vez
1O. A ide ia de fazer mal a mim mesma passou pela minha cabeça: C ) Sim, muitas vezes, ultimamente C ) Algumas vezes nos últimos dias C ) Pouquíssimas vezes, ultimamente C ) Nenhuma vez
Nota: Forma de pontuação da EPDS - nos itens 1, 2 e 4 a pontuação para a sequência de alternativas de resposta é O, 1, 2 e 3. Nos demais itens, a pontuação da sequência de alternativas de resposta é 3, 2, 1 e O.
Figura 1 Escala de Depressão Pós-parto de Edinburgh (EPDS) - anexo 11.
abstinência/descontinuação nos neonatos das mães que utilizaram antidepressivos na gestação tardia, levando a tremores, má adaptação, irritabilidade, aumento do tônus muscular. Pode haver também sintomas de intoxicação no neonato como, por exemplo, sonolência no RN. Essas descrições clínicas são encontradas em estudos escassos, e os dados ainda são insatisfatórios para que possamos ter conclusões mais precisas. Pouco se sabe a respeito de possíveis sequelas no desenvolvimento neurológico infantil, pois há poucos estudos a longo prazo43 . Um estudo publicado em 2007 no New England fournal of Medicine com 9.622 casos e 4.092 controles não estabeleceu nenhuma associação significante entre o uso dos ISRS durante a gravidez e aumento do risco para malformação fetal44.
Depressão na gestação e as consequências na prole Um estudo com 151 mulheres com depressão maior participantes do STAR*D avaliou os filhos delas (STAR*DChild) até que atingissem 1 ano de idade a fim de verificar as consequências do humor das mães em seus filhos. O STAR*D é um estudo multicêntrico designado para comparar a eficácia e aceitação de várias opções de tratamento para pacientes adultos com depressão maior não psicótica. O STAR*D-Child avaliou essas crianças após o início do tratamento para depressão. Concluíram que a redução dos sintomas depressivos nas mães estava diretamente relacionada à redução dos sintomas depressivos em sua prole45.
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Um outro estudo com 570 mulheres e seus filhos no terceiro mês do puerpério encontrou 10,2% das mães deprimidas. Os filhos dessas mulheres apresentaram dificuldades para dormir ou se alimentar, menor expressão vo cal e comunicação visual, menor interação corporal e sorriso social diminuído. A interação mãe-bebê encontrava-se prejudicada e essas mães sentiam-se mais cansadas para cuidar dos seus bebês (dar banho, por exemplo )46.
Relação risco vs. benefício em tratamento para depressão na gestação e no pós- parto De acordo com as questões colocadas nos tópicos anteriores, conclui -se que na depressão leve a psicoterapia deve ser a primeira escolha e na depressão moderada-grave, com antecedente de recorrência/ sintomas graves, deve-se considerar fortemente o uso de antidepressivos 43 . Deve-se levar em consideração que a maior parte dos psicotrópicos apresenta risco B ou C pela Food and Drug Administration (FDA), sendo assim: Risco B: sem evidência de risco em humanos. Ou os achados em animais demonstram risco, mas os achados em humanos não, ou se estudos adequados em humanos não têm sido feitos, achados em animais são negativos. Risco C: risco não pode ser excluído. Faltam estudos em humanos, e os estudos em animais são ou positivos para o risco fetal ou faltam também. Contudo, potenciais benefícios podem justificar o risco potencial. Dessa maneira, a escolha de tratar ou não tratar deve ser multidisciplinar e envolver não só o psiquiatra, mas também o obstetra e até mesmo o pediatra. A opinião da paciente e do companheiro deve ser considerada, e todos os riscos e benefícios devem ser expostos ao casal, a fim de que possam decidir com o profissional o rumo a seguir. Em relação à amamentação, é importante sabermos que devemos incentivá-la por trazer muitos benefícios ao bebê, como passagem de anticorpos da mãe e outros importantes componentes para a maturação do sistema digestivo do bebê. A amamentação também favorece a intimidade no relacionamento mãe-bebê, o que pode ser saudável para ambos. Quando o uso de medicações não pode ser evitado, deve-se saber que sempre ocorre passagem para o leite materno, mas sabe-se que a concentração entre os ISRS é baixa, principalmente para sertralina. Como o número de relatos de caso tem aumentado bastante e muitos demonstram que não há sérias advertências em relação aos antidepressivos, os clínicos têm prescrito essas medicações com um pouco mais de segurança. Em linhas gerais, os benzodiazepínicos devem ser evitados, dando preferência a doses isoladas daqueles que tem meia-vida curta, quando não puderem ser evitados. O lítio está contraindicado pela Academia Pediátrica Americana, pelo fato de o rim no neonato ainda ser imaturo e poder haver intoxicação. Pode haver também alterações no eletrocardiograma (ECG) do neonato com essa medicação. Já a carba-
mazepina seria uma boa escolha na amamentação. Ácido valproico pode ser prescrito com cautela, sob monitorização constante da função hepática nos bebês e hemogramas seriados em razão de um relato de trombocitopenia e anemia de um bebê de 3 meses cuja mãe estava usando essa medicação. O uso dos antipsicóticos não é contrainclicado pela Academia Pediátrica Americana, mas deve-se atentar para aumento de sonolência nos bebês. Antipsicóticos atípicos ainda são pouco estudados5 •
Opções de tratamentos não farmacológicos A psicoterapia, incluindo a psicoterapia interpessoal e a terapia cognitivo-comportamental, parecem ser eficazes na depressão na gestação e na prevenção da depressão pós-parto. A fototerapia também parece ser um tratamento promissor. Nos casos mais graves, a eletroconvulsoterapia (ECT) pode ser considerada um tratamento seguro, utilizando-se as medidas de segurança adequadas. Exercícios físicos também parecem ser positivos para o humor durante a gestação. Estudos pilotos com ômega-3 também vêm sendo realizados e pareceram ser bem aceitos e tolerados em gestantes e puérperas43 • Há na literatura dois relatos de casos favoráveis à estimulação magnética transcraniana (EMT) na depressão na gestação47'48 e alguns autores apontam para um resultado favorável nesses casos no que se refere à eficácia e à segurança.
Climatério e saúde mental Etiologia e fatores de risco A contribuição dos hormônios reprodutivos para o humor eutímico tem sido o foco de muitas pesquisas. Os resultados de estudos clínicos e epidemiológicos têm sido inconsistentes e continua indefinido se as alterações séricas dos níveis de hormônios por meio da transição menopáusica estão ligados claramente à causa de sintomas de depressão nessa fase. A avaliação da relação entre o nível sérico de hormônios e a intensidade dos sintomas depressivos foi verificada em uma amostra de mulheres na meia idade. Esse estudo longitudinal foi baseado em amostras de comunidades de vários locais em que se estudava a menopausa. Os dados foram coletados em uma base anualmente de dezembro de 1995 a janeiro de 2008. A fase folicular foi precocemente avaliada com amostras séricas analisadas para níveis de estradiol, hormônio folículo estimulante, testosterona e sulfato de dehidroepiandrosterona em sete comunidades. O número de 3.302 mulheres continha várias etnias e idades entre 42 e 52 anos que estavam menstruando e não usavam hormônios reprodutivos exógenos. Os sintomas de depressão eram registrados com o Center for Epidemiological Studies Depression Scale (CES -D). O efeito primário era um escore
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CES-D de 16 ou mais. O nível de testosterona foi significativamente associado com escores de 16 ou mais. O aumento da testosterona nas visitas anuais associavam com aumento nos escores de CES -D de 16 ou mais. Ressalta-se que o menor nível educacional, a descendência hispânica, sintomas vasomotores, eventos estressantes de vida e baixo suporte social a cada visita eram independentemente associados com escores de 16 ou mais. Os outros hormônios isolados não estavam associados com escores de CES -D de 16 ou maior. Por essa pesquisa, mostrou-se que maiores níveis de testosterona durante a transição menopausa! estavam associados com maiores níveis de depressão durante essa fase e essa relação é independente do período da menopausa, ficando como um preditor de intensidade de sintomas depressivos49 • O objetivo de determinar a prevalência de sintomas de depressão e fatores de risco associados entre mulheres no climatério foi realizado com um estudo transversal com senhoras de idade entre 40 e 59 anos e que estavam visitando pacientes internados em um hospital de ginecologia e obstetrícia no Equador. Elas foram investigadas com a escala Hamilton Depression Rating Scale (HDRS) de 17 itens, a escala Menopause Rating Scale (MRS), um questionário pessoal e mais obtenção de dados sobre o companheiro. Um total de 404 mulheres preencheram HDRS e MRS. A média de idade era 48,2 anos com variação de 5,7 anos. Destas 85,1% tinham 12 ou menos anos de escolaridade e 44,8% estavam em pós-menopausa, mas nenhuma realizava terapia hormonal e nem fazia uso de psicofármacos. A média dos escores da HDRS era 13 e estes eram maiores entre mulheres na perimenopausa. No total de respostas, 78,7% tinham algum grau de sintomas depressivos, tendo HDRS maior ou igual8. Dessas, 32,2% correspondiam a uma leve intensidade depressiva e 46,5% tinham escores de depressão moderada a grave. A análise de regressão logística determinou que a severidade dos sintomas de menopausa relacionavam-se com sintomas somáticos e psicológicos do MRS e com o perfil dos companheiros com baixa educação e que usavam álcool como os fatores mais determinantes para as mulheres terem maiores escores de depressão com HDRS maior ou igual a 8. Então, para essa população climatérica especificamente os sintomas depressivos foram mais prevalentes nas mulheres com maior gravidade dos sintomas menopausais somáticos e psicológicos e com as citadas características de seus companheiros50 • Um estudo que tinha como objetivo examinar a prevalência de sintomas de ansiedade e depressão relacionados com as fases da menstruação em uma grande amostra da comunidade realizou perguntas sobre fatores demo gráficos, estilo de vida, sintomas físicos e doenças somáticas em um total de 94.197 pesquisadas.
Ansiedade e depressão foram verificadas pela escala Hospital Anxiety and Depression Scale (HADS). As mulheres pesquisadas tinham idade entre 35 e 60 anos. O tipo da menstruação era definido como períodos pré, peri e pós -menopausa!, considerando o tempo da última menstruação para examinar os dados. Houve escores significativamente altos de depressão e ansiedade para as mulheres nas fases peri e pós-menopausa! comparados com o pré-menopausa!. Quando compararam os períodos pós-menopausa! com o perimenopausal, os escores para sintomas de de- eram ate' certo grau mawres . pressao que os escores para sintomas de ansiedade. Essas diferenças não alcançavam significância. Havia um efeito geral da idade nos escores de HADS -D (depressão) e nos escores de HADS -A (an siedade), com um pico no período perimenopausal indicando um forte grau de sintomas de ansiedade nesse período, que é especificamente associado com flutuações do nível sérico de hormônios gonadais51 • O conhecimento ainda é escasso sobre os fatores que predizem o primeiro episódio de depressão maior em mulheres na meia idade, bem como não se sabe claramente sobre os itens de saúde e estresse de vida colocados mais ou menos como possíveis causadores de depressão na transição menopausa!. O Structured Clinicai Interview para o DSM-IV com busca por hipóteses diagnósticas do Eixo I, que são os transtornos mentais gerais, foi usado para fazer a pesquisa durante a vida, numa comunidade com uma amostra de mulheres na pré-menopausa ou perimenopausa precoce e que eram africanas, americanas e brancas com ciclos menstruais característicos, verificadas condições psicosociais e fatores relacionados à saúde. Obtinham-se amostras anuais e faziam-se a análise do sangue para hormônios reprodutivos. 266 mulheres com história de depressão maior constituíam a base do grupo para análise. Depois de 7 anos de acompanhamento, 15,8% das mulheres encontravam-se com critérios para diagnóstico de depressão maior e frequentemente tinham sintomas vasomotores como suor noturno e ondas de calor como significantes preditores de depressão. Quando ajustados com múltiplos preditores, os sintomas vasomotores não foram muito significativos. O tempo de vida com história de ansiedade e a lista de limitações por doenças físicas e muitos eventos estressantes anteriores de vida prediziam o início do primeiro episódio de depressão maior. Conclui-se então que a história prévia de transtorno ansioso e o estresse de vida podem ser mais importantes do que sintomas vasomotores, contribuindo para um primeiro episódio de depressão durante a meia vida52 • Um estudo foi designado para verificar o efeito da extroversão como uma característica associada ao impacto da menopausa para sintomas depressivos entre mulheres numa amostra de Taiwan durante sua transição menopausa!.
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Uma amostra de 197 mulheres com idades entre 40 e 60 anos foi recrutada de uma comunidade. Aplicou-se o inventário de depressão Five-Factor Inventory-Chinese Version, a escala Menopausa[ Symptoms Scale e a Chine-
se Version da Modified Schedule of Affective Disorders na Schizophrenia-Lifetime para coletar os dados. Cada mulher respondia um esquema de perguntas semiestruturado de diagnóstico para obter os dados psiquiátricos. O menor nível de extroversão estava associado com maiores níveis de depressão ou de vulnerabilidade em todas as fases da menopausa. Esse estudo mostrou que características da personalidade podem ser um importante fator predisponente de depressão durante a menopausa53. O perfil psicopatológico foi avaliado para verificar a incidência de depressão maior em mulheres atendidas numa clínica de tratamento da menopausa. O método foi avaliar mulheres atendidas na clínica de menopausa no período de março a abril de 2005, quando foram solicitadas para preencher um questionário na sala de espera. O questionário incluía fatores demográficos e história atual ou passada do uso de drogas antide. press1vas. • Foram usados o checklist de sintomas SCL-90 e o Inventário de Depressão de Beck (BDI). • Sessenta e quatro mulheres foram inscritas no estudo. • No SCL-90-R, o conjunto de sintomas somáticos era mais frequente. • As pacientes diagnosticadas com depressão usando BDI foram 28,1 %. • Setenta por cento das mulheres com depressão tinham história positiva de depressão durante a vida e tinham escores altos em ambas as escalas. As pacientes com menos idade tinham menos depressão, sendo 53,3 anos versus 57,3 anos em média. • Houve forte correlação entre história de transtorno depressivo e recorrência de depressão na fase da menopausa54. Um interessante estudo explorou sintomas de climatério que são únicos em mulheres ou que são também experimentados por homens. A comparação dos sintomas em comum e diferentes nos gêneros masculino e feminino pesquisou 32 mulheres e 22 homens com média de idade de 48,7 anos que preencheram questionários. Os homens não reportavam sintomas de estresse, nervosis mo e irritabilidade. Todos os sintomas dos escores eram menores em pré-menopausa do que em perimenopausa, mas escores para homens e mulheres não tinham diferenças. A gravidade dos sintomas comumente associados com meno pausa no Japão não eram únicos para mulheres e tinham forte prevalência em homens. A inclusão de homens nos estudos de climatério permitiu a identificação de sintomas específicos do climatério que não eram descritos pelos homens e posteriormen-
te esse perfil de pesquisa aparentemente inusitada pode refinar os sintomas mais específicos do climatério55 . A função dos esteroides ovarianos na disforia prémenstrual e na depressão perimenopausal tem apontado para a sugestão de que essas condições representam expressões de algumas doenças básicas. Sintomas de alterações de humor no pré-menstrual foram avaliados em mulheres com e sem relato de depressão perimenopausal. Os resultados mostraram que 26% das depressivas e 9% das não depressivas reportavam sintomas pré-menstruais; 31% de mulheres depressivas e 20% de não depressivas encontraram critérios para significantes sintomas do ciclo menstrual e 21% das depressivas e 3% das não depressivas apresentavam critérios para disforia pré-menstrual. A presença de histórico de sintomas de disforia prémenstrual era, portanto, observado em mulheres com depressão na perimenopausa56 •
Tratamento da depressão no climatério Existem muitas contradições no papel da terapia de reposição hormonal e de sua influência no efeito dos antidepressivos no tratamento da depressão no climatério. Uma pesquisa a respeito do efeito das mudanças hormonais ocorridas com a menopausa e a resposta ao tratamento antidepressivo abrangendo 39 mulheres com depressão maior em pré-menopausa e 22 em pós-meno pausa mostrou que a terapia hormonal aumenta o efeito do ISRS em pacientes com depressão pós-menopausa, embora seja pequeno o conhecimento sobre a interface entre mudança hormonal e o efeito dos antidepressivos. Verificou-se também que houve efeito negativo da idade na resposta ao tratamento que era independente dos níveis hormonais e do status da menopausa57 . Na falta de resposta para terapêutica hormonal, quando os riscos superam os benefícios ou com sintomas depressivos mais graves, recomenda-se tratamento preferencialmente multidisciplinar com psicoterapia e usando antidepressivos: tricíclicos, inibi dores seletivos da recaptação de serotonina ou de ação mista58 •
O câncer de mama e a saúde mental da mulher O câncer de mama acomete cerca de 12,5% das mulheres e é o primeiro câncer em incidência no gênero no mundo. É também o segundo em termos de mortalidade, perdendo apenas para o câncer de pulmão. No Brasil, representa a primeira causa de morte por câncer entre as mulheres. Com base nas informações disponíveis dos registros hospitalares do Instituto Nacional do Câncer (INCA), nos anos de 2000 e 2001, 50% dos tumores de mama foram diagnosticados nos estágios III e IV59 • O diagnóstico de câncer geralmente representa um estresse emocional e, portanto, diagnóstico de eixo IV do DSM-rv; podendo desencadear reações de ajustamento ou
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mesmo ser o gatilho de quadros afetivos (principalmente a depressão), ansiedade ou até mesmo psicoses. Os transtornos psiquiátricos também representam uma interação complexa de fatores, entre eles, a estrutura de personalidade e a capacidade de enfrentamento de problemas. O tratamento da mulher com câncer de mama muitas vezes envolve a mastectomia (retirada da mama), o que é muito traumático, visto que a mama é um forte símbolo do feminino. Também ocorre que o câncer em geral é um diagnóstico que remete à morte, ou ao medo de morrer, e esses fatores costumam ser significativos fatores estressares e muitas vezes desencadeantes de um quadro psiquiátrico. Além disso, alguns dos medicamentos utilizados, como quimioterápicos, imunossupressores ou hormonioterapia, podem causar sintomas psiquiátricos60 • Sabendo-se que 25% das mulheres com diagnóstico de câncer de mama apresentarão depressão em algum momento da vida61, é comum pacientes com câncer de mama serem encaminhadas aos psiquiatras para acompanhamento do quadro psiquiátrico recém-instalado ou recidivado, por exemplo, a depressão ou a ansiedade. Sendo assim, algumas dessas pacientes necessitarão do uso de psicotrópicos, e portanto é importante conhecermos a interação medicamentosa que pode ocorrer entre alguns antidepressivos e o tamoxifeno. O tamoxifeno (hormonioterapia) é um dos tratamentos sistêmicos adjuvantes mais eficazes no tumor de mama, mas é eficaz somente nas pacientes que têm tumores que expressam os receptores hormonais de estrógeno e/ou progesterona. O benefício é a redução absoluta da mortalidade em mais de 10%. Os principais efeitos colaterais são os relacionados com a menopausa, por exemplo fogachos ou sintomas depressivos62 • Um estudo realizado com 2.430 mulheres usando tamoxifeno concluiu que 30% delas também utilizavam antidepressivos, e a paroxetina era o ISRS mais utilizado. Foi encontrado um aumento da mortalidade pelo câncer de mama nessas mulheres da ordem de 19,7% em cinco anos. Isso ocorreu porque a paroxetina reduziria ou até mesmo aboliria o efeito do tamoxifeno, que é metabolizado pela porção CYP2D6 do citocromo P450 para se transformar no endoxifeno, seu metabólito ativo. A paroxetina seria um inibidor irreversível dessa enzima, o que impediria a ação do tamoxifeno, que não se transformaria em endoxifeno, ficando, então, inativo. Não foi encontrado aumento da mortalidade com o uso de outros ISRS, nem com a venlafaxina, que vem sendo também utilizada para a melhoria dos fogachos que ocorrem no climatério ou decorrentes do uso do próprio tamoxifeno6 1. Uma revisão da literatura realizada em 2008 constatou que a paroxetina e a fluoxetina, que são fortes inibidores da CYP2D6, devem ser evitadas, dando-se preferência aos inibidores enzimáticos mais fracos, como o citalopram e a sertralina. A venlafaxina, que não inibe essa enzima, tem pouca interação com o tamoxifeno. O autor sugere que, dessa forma, é esperado que medicações como o escitalopram e a
fluvoxamina, que não inibem a enzima CYP2D6, também possam ser utilizadas, pois exerceriam pouco efeito na concentração sérica do endoxifeno63 • Outro estudo, realizado apenas com o citalopram como ISRS, concluiu que não houve aumento da mortalidade por recidiva da doença entre as mulheres que utilizaram tamoxifeno e citalopram em relação àquelas que utilizaram apenas o tamoxifeno64 •
Particularidades que envolvem mulheres histerectomizadas Um número notável de mulheres passam por histerectomia ao longo da vida para aliviar sintomas desagradáveis e para melhorarem a qualidade de vida65. A literatura sobre histerectomia é bem abrangente para médicos e enfermeiros, embora haja limitações de pesquisas das dimensões psicossociais da histerectomia e da respectiva menopausa cirúrgica. Mesmo com milhares de mulheres submetendo-se anualmente à histerectomia, com remoção cirúrgica de órgãos reprodutores, ainda precisa de um trabalho clínico social para informar os potenciais efeitos da histerectomia nos riscos para aspectos afetivo, social, espiritual e sexual da vida da mulher. As possíveis sequelas da histerectomia predizem consequências para a qualidade de vida da mulher e foram usados métodos quantitativos e qualitativos de pesquisa a fim de se avaliar esses domínios na experiência de vida das mulheres histerectomizadas. Os resultados dessa pesquisa com 74 mulheres su gerem que aquelas mais jovens podem ter grande risco de desenvolver depressão em comparação às mulheres com mais idade submetidas a histerectomia66 • Um estudo com objetivo de fazer avaliação retrospectiva de mulheres que foram admitidas em um hospital universitário, no departamento de psiquiatria e neurociências, de 1979 a 2008, verificou que um total de 14,5% das mulheres com depressão e 3,3% das mulheres sem depressão tinham realizado histerectomia, ooforectomia ou ambas (faixa etária variava entre 51 e 52 anos). Essa diferença foi estatisticamente significante e é consistente com informações reportadas previamente, bem como com a experiência clínica dos autores de que as mulheres, na faixa etária citada e com diagnóstico de depressão, têm grande incidência de histerectomia, ooforectomia ou ambas67 • A comparação das consequências da histerectomia abdominal subtotal e da histerectomia abdominal total considerou a influência do efeito da cirurgia sobre o bemestar psicológico pós-operatório nesse estudo. Esse trabalho prospectivo, aberto, com ensaio randomizado e multicêntrico de sete hospitais e de uma clínica privada foi realizado com duzentas mulheres listadas para histerectomia abdominal por condições benignas. Entre as avaliadas, 179 completaram a pesquisa, sendo que 94 realizaram histerectomia subtotal e 85 fizeram histerectomia total.
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Quatro testes psicométricos diferentes foram usados para verificar o bem-estar geral, depressão e ansiedade nos períodos: pré-operatório e 6 e 12 meses do pós-operatório. A análise estatística de variância e covariância foi usada e o principal efeito medido foi o do método cirúrgico sobre o bem-estar pós-operatório. Análise demográfica, clínica e dados da cirurgia incluíam complicações peri e pós-operatória. Não foi significante a diferença observada entre os dois grupos em nenhum dos testes psicométricos. Então, ambos os métodos cirúrgicos foram associados com aumento significativo do bem-estar psicológico 6 e 12 meses depois da cirurgia comparados com o período pré-operatório. Não foi encontrada diferença significativa entre os grupos que incluíam complicações operatórias como o sangramento, que ocorreram em muitas mulheres após a histerectomia subtotal. Nenhuma maior ou menor complicação pós-operatória nem concentração de hormônios sexuais alterados estavam associados com o bem-estar psicológico 12 meses depois da cirurgia, pois em ambos os grupos essa sensação positiva foi melhorada e não teve influência negativa por causa da ocorrência de complicações perioperatórias ou diferenças na concentração de hormônios sexuais68 . A função sexual é complexa e envolve a interação de muitos fatores, incluindo relação emocional, imagem corporal, saúde física e parceiro sexual funcional. Os processos de doenças como sangramento uterino anormal, incontinência urinária e prolapso de órgãos pélvicos podem ter um impacto negativo em vários parâmetros da saúde sexual. A cirurgia ginecológica pode corrigir esses processos patológicos, mas esses procedimentos não garantem melhora da função sexual e podem até provocar piora. A histerectomia, a salpingooforectomia bilateral, a ligação tubária, a cirurgia para incontinência e reconstrução pélvica na maioria dos casos melhora a função sexual e os benefícios da qualidade de vida, embora exista o potencial de resultados negativos69 . Para avaliar as mudanças na saúde sexual e do bemestar psicológico um ano após a histerectomia total ou subtotal foi feito um estudo prospectivo, controlado e randomizado. Foram selecionadas 132 mulheres em pré-menopausa para histerectomia, sem plano de ooforectomia, para doença benigna e sem história de displasia cervical ou sintoma de prolapso subtotal. O McCoy Female Sexuality Questionnaire foi usado para avaliar mudanças no bem-estar psicológico. As diferenças dos resultados antes e um ano depois da histerectomia eram calculadas para cada indivíduo e as mudanças comparadas entre os grupos. As mulheres que tinham histerectomia subtotal re latavam um significativo aumento de mudanças positivas como a frequência de orgasmo e a sensação de prazer sexual comparadas às que tinham realizado histerectomia
total. Havia um significativo aumento da saúde geral obtida para as mulheres que faziam histerectomia subtotal comparadas com as que faziam histerectomia total, mas mesmo com esses resultados esses dados precisam ser interpretados com cautela70 . Em um estudo onde o período de 6 a 8 semanas após a cirurgia mostrou mudança na qualidade de vida, fez-se a comparação entre 64 mulheres que haviam sido histe rectomizadas com 68 controles que tinham idade e estado civil similares. Foi usado o World Health Organization
Questionnaire on Quality of Life: BRIEF-Taiwan Version,
que verificou a qualidade de vida antes da cirurgia, pró ximo à cirurgia, 2 semanas e entre 6 a 8 semanas depois. O grupo controle era avaliado em três tempos: depois que iniciavam visita ao hospital, 2 semanas e entre 6 a 8 semanas depois de iniciada a pesquisa. As mulheres com histerectomia tinham significativamente menores escores para saúde na dimensão física e da qualidade de vida para todos os aspectos comparados com controles. O grupo com histerectomia vaginal tinha imediatamente menor qualidade de vida depois da cirurgia, mas que gradualmente melhorava especialmente na dimensão física. A dimensão psicológica e ambiental não demonstrou uma clara mudança para ambos os grupos de histerectomia vaginal e abdominal. Os relacio namentos sociais e a dimensão ambiental mostraram diferentes modelos para mulheres com histerectomia. A histerectomia pode aumentar saúde física, visto que no grupo com histerectomia vaginal a saúde física era aumentada significativamente especialmente de 6 a 8 semanas depois da cirurgia. No grupo com histectomia abdominal, a saúde física e relacionamentos sociais também eram melhorados depois da cirurgia. Relacionamento social e dimensão ambiental cultivavam diferentes padrões para mulheres com histerectomia. Esses dados podem ser benéficos para médicos e enfermeiros especialmente no aconselhamento de mulheres que necessitem de plano para histerectomia65 • Não há diferença significativa do bem-estar geral nos diferentes métodos cirúrgicos de histerectomia, mas a capacidade individual de lidar com o estresse influencia significativamente a recuperação do bem-estar geral. Mulheres com forte habilidade para lidar com o estresse têm maior facilidade para conseguir recuperação do bem-estar geral, embora a duração da licença para a recuperação esteja associada com a ocorrência de complicações pós-operatórias e não com essa capacidade de lidar com o estresse. A identificação de mulheres com menor habilidade de lidar com estresse e prevenção de complicações tem o poder de favorecer mais bem-estar depois da cirurgia. A avaliação prospectiva do risco para depressão maior e o impacto psicológico em 68 mulheres que se submeteram à histerectomia sem condições malignas pesquisou
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depressão, ansiedade, imagem corporal, funcionamento sexual, suporte familiar, estresse na vida e sintomas ginecológicos subjetivos 2 semanas, um mês e quatro meses depois da cirurgia. Desses fatores, depressão, ansiedade, imagem corporal e sintomas ginecológicos subjetivos melhoraram depois da cirurgia. Prevê-se que problemas emocionais, imagem corporal negativa, função sexual prejudicada e elevado estresse um mês depois da cirurgia foram fatores de risco para depressão maior depois da cirurgia e a função sexual piorou depois do procedimento cirúrgico71 • Em uma outra pesquisa, os principais resultados de avaliação da sexualidade pós-histerectomia abdominal total verificaram a frequência de dispareunia, desejo sexual, coito, masturbação e qualidade de vida sexual. Os dados mostraram que a frequência de dispareunia foi reduzida de 91,25 para 5% em seis meses após a cirurgia, a frequência de desejo sexual foi aumentada de 55 para 88,75% e a frequência de coito foi aumentada de 38,75 para 96,25%. Relacionamento sexual normal foi aumentado de 53,8 para 85% depois de 6 meses. Portanto, a sexualidade foi significantemente melhorada em vários aspectos depois da histerectomia abdominal total porque exerceu forte efeito positivo na saúde e função sexual. A histerectomia é uma das principais e mais comuns cirurgias ginecológicas realizadas nos Estados Unidos e o futuro impacto na vida sexual é uma das principais causas de ansiedade pré-operatória. Essa ansiedade raramente é relatada pela paciente ou abordada pelo médico. Relatórios sobre o impacto da histerectomia na vida sexual têm sido conflitantes, sendo parte dos estudos com avaliações adequadas e parte com avaliação insatisfatória das funções sexuais. A função sexual feminina é governada por fatores psicológico, fisiológico e social. Um novo modelo do ciclo de resposta sexual compreendendo físico, emocional e feedback cognitivo ajuda a explicar as dificuldades sexuais surgidas antes e depois da histerectomia. Evidências são carentes para disfunção sexual por lesão de nervo, sangramento ou por mudança anatômica relacionada. Remoção de ovários e histerectomia estão associados com ausência de mudança ou frequentemente com melhora da função sexual, particularmente em mulheres com terapia de reposição hormonal. Desse modo, geralmente, a histerectomia beneficia a função sexual e isso provavelmente ocorre por causa da melhoria dos sintomas que as mulheres apresentavam anteriormente e que repercutiam com efeito negativo na função sexuatn. A função sexual, em escores, foi verificada em relatórios de autoavaliação para ser considerada positiva ou negativa como consequência do acompanhamento de histerectomia e geralmente houve satisfação. A educação sobre o físico e o esclarecimento sobre a possibilidade de resultados sexuais adversos não foram
relatados nas autoavaliações. A orientação sobre a possibilidade de resultados negativos após a histerectomia geralmente prediz satisfação quando controlada por autorrelatos de resultados positivos e negativos. Sendo assim, a educação sobre o potencial negativo na sexualidade depois da cirurgia pode realçar a satisfação com a cirurgia, independentemente de outros resultados negativos sexuais experimentados - incluindo a discussão da mudança do potencial sexual depois da cirurgia, sendo benéfico o aconselhamento pré-cirúrgico de histerectomia73 •
Conclusão O estudo das especificidades da saúde mental da mulher deve fazer parte da formação e atualização de todos os profissionais de equipes que realizam assistência, pesquisa e ensino com foco nas pacientes que frequentam os serviços de ginecologia, obstetrícia e psiquiatria. O conhecimento dos possíveis impactos das mudanças hormonais em cada fase do ciclo reprodutivo feminino, mesmo com várias informações contraditórias e inconclusivas, favorece a aplicação de conhecimentos que atendam às demandas das particularidades naquelas fases específicas com maior segurança. A falta de conhecimento dos médicos não psiquiatras com o uso de psicofármacos durante a gestação, o receio dos psicólogos em encaminhar gestantes para tratamento psiquiátrico ou a omissão de assistência às mulheres no climatério, por entendimento equivocado de que se trata de uma fase na qual a depressão seria aceitável, são problemas rotineiros na desassistência especializada do gênero feminino. Neste capítulo, procurou-se habilitar o leitor para melhor avaliar as peculiaridades da prevenção, do diagnóstico e da terapêutica em saúde mental da mulher mesmo reconhecendo que se trata de uma área do conhecimento dependente de muitos esclarecimentos, mas que felizmente vem avançando de forma acelerada.
Minicaso clínico ACS, 35 anos, branca, casada, nulípara e jornalista. Procura consultório de psiquiatra encaminhada por ginecolog ista porque tem sintomas pré-menstruais graves. Todas as morbidades ginecológicas hormonais e anatômicas foram descartadas por exames laboratoriais e de imagem por ultrassonografia. Paciente queixa-se que em quase todos os ciclos menstruais sofre muito ficando com tristeza profunda, irritabilidade, agressividade imotivada, insônia e refere também que ingere grande quantidade de doces. Relata que isso tem impacto negativo em sua vida porque prejudica a relação com seu marido e sua chefe - pois fica muito irritável e impulsiva - , perdendo o controle sobre suas atitudes e sobre o que fala. a) principal hipótese diagnóstica: transtorno disfórico prémentrual; b) principal diagnóstico diferencial: transtorno depres-
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sivo; c) modalidade de psicoterapia cuja abordagem é reconhecida como terapêutica: terapia cognitivo-comportamental.
Questões 1. Em relação ao caso clínico, qual seria a melhor opção de trataa) b) c) d) e)
mento farmacológ ico: Paroxetina - uso contínuo. Midazolan - para insônia e nervosismo restrito ao período sintomático. Antipsicóticos em baixas doses. Sertralina - em média 15 dias antes do início da menstruação. Anticonvulsivantes para prevenir reações agressivas.
2. As diferenças entre os gêneros influenciam os transtornos psia) b) c) d) e)
quiátricos por causa de: Fatores hormonais. Influências psicossociais. Fatores genéticos. Fatores hormonais e psicossociais. Fatores hormonais, genéticos e ambientais.
3. Os principais fatores de risco sociais para a depressão pós-parto são: a) Antecedente de disforia pré-menstrual, depressão prévia e sintomas depressivos no puerpério imediato. b) Dificuldades financeiras, conflitos conjugais, gravidez precoce, evento de vida estressar nos últimos 12 meses. c) Gravidez precoce e história de transtorno disfórico pré-menstrual. d) Sensibilidade ao uso de anticoncepcionais orais e antecedente pessoal de depressão pós-parto. e) Antecedente familiar de depressão pós-parto e ser mãe solteira. 4. No tratamento farmacológico do transtorno disfórico pré-menstrual a preferência deve ser dada para: a) Venlafaxina - 75 mg/dia de forma contínua. b) Anticoncepcional hormonal oral. c) Fluoxetina - uso temporário geralmente 15 dias antes do início da menstruaçãoO. d) Antiinflamatórios orais combinados com benzodiazepínicos em baixas doses. e) Citalopram de 20 a 60 mg/dia quando os sintomas aparecerem.
5. Sobre a terapia de reposição hormonal e transtorno depressia) b) c) d) e)
vo pode-se afirmar: A terapia de reposição hormonal não parece exercer nenhum papel antidepressivo. Os sintomas depressivos geralmente pioram no início da TRH oral. O uso de antidepressivos duais contraindica a TRH. Alguns trabalhos sugerem que a TRH teria propriedades antidepressivas ou aumentaria a eficácia dos antidepressivos. A TRH faz interação farmacológica inadequada com antidepresSivos.
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O Papel da Eletrencefalografia Quantitativa nos Transtornos Neurológicos e Psiquiátricos Silvia de Vincentiis Kette Dualibi Ramos Va lente
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 438
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Aplicação de técnicas de EEGq nos transtornos neurológicos e psiquiátricos, 439 Epilepsia, 439
1. Conhecer a aplicação de técnicas de EEG quantitativo no estudo
Monitorização intracirúrgica, 439 Monitorização em unidades de terapia intensiva, 439 Demências, 439 Insônia, 439 Lesão cerebral traumática, 439 Transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, 440
dos transtornos neurológicos e psiquiátricos. 2. Entender a relação do EEG quantitativo com os principais transtornos neurológicos e psiquiátricos. 3. Compreender o papel do EEG quantitativo no estudo do funcionamento cerebral. 4. Analisar criticamente a aplicabilidade clínica do EEG quantitativo.
Depressão, 440 Ansiedade, 440 Esquizofrenia. 440 Considerações finais, 441 Referências bibliográficas, 441
Introdução O eletroencefalograma quantitativo (EEGq), ou seja, a análise computadorizada do sinal obtido por meio do registro eletrencefalográfico digital, desempenha um papel significativo nos estudos envolvendo o funcionamento cerebral e nos diagnósticos clínicos baseados no eletroencefalograma (EEG) convencional 1 • Existem diversas técnicas de EEGq, comumente chamadas de mapeamento topográfico ou mapeamento cerebral do EEG (brain mapping) e que podem incluir análises topográficas de voltagem e de frequência, comparações estatísticas com valores normativos e análise diagnóstica discriminativa2 • A aplicação da análise computadorizada do sinal aos registros eletrencefalográficos usando procedimentos padronizados tornou possível obter descrições quantitati-
vas da atividade elétrica cerebral em indivíduos normais e pacientes com transtornos da função ou estrutura cerebral, assim como descrição quantitativa das maneiras por meio das quais medicações que agem no sistema nervoso central (SNC) alteram essa atividade (fármaco-EEG ou "PEEG")3. Para melhorar a resolução espacial, o EEGq tem sido combinado com técnicas de obtenção de imagens, como a tomografia computadorizada (TC), a ressonância nuclear magnética (RNM) e a tomografia por emissão de pósitrons (PET). Com esses avanços, o EEGq desempenha um papel importante na pesquisa básica e em estudos clínicos sobre lesão cerebral, transtornos neurológicos, epilepsia, sono e função cerebral 1• Monitorar a função cerebral com o EEGq também é o foco de muitas pesquisas sobre os transtornos psiquiátricos. Como as alterações neurobiológicas essenciais para a depressão maior e outros transtornos psiquiátricos não são completamente compreendidos, muitos trabalhos ainda continuam a ser descritivos 4 . A seguir, serão discutidas algumas possibilidades de utilização de técnicas em EEGq em pesquisa e na prática clínica.
35 O PAPEL DA ELETRENCEFALOGRAFIA QUANTITATIVA NOS TRANSTORNOS NEUROLÓGICOS E PSIQUIÁTRICOS
Aplicação de técnicas de EEGq nos transtornos neurológicos e psiquiátricos Epilepsia A localização do foco epiléptico é de importância diagnóstica na avaliação pré-cirúrgica em pacientes com epilepsia refratária. A localização do foco por inspeção visual do EEG obtido por meio de eletrodos de superfície é qualitativa e subjetiva e, por vezes, pode ser difícil. Técnicas como a análise de espículas utilizando a teoria dos dipolos permitem analisar as características dos geradores da atividade elétrica cerebral de uma maneira quantitativa e objetiva. A modelagem por dipolos interictais e ictais revela tipos diferentes de campos de voltagem e fontes de dipolos. No entanto, essa análise apresenta dados conflitantes na literatura quanto aos resultados e confiabilidade de localização, devendo ser usada, portanto, em conjunto com os demais dados obtidos na avaliação do paciente com epilepsia refratária5.
Monitorização intracirúrgica O EEG é um dos exames mais antigos e comumente utilizados para a monitorização intracirúrgica. Este uso evoluiu para incluir o acesso à perfusão cortical e a oxigenação durante uma variedade de procedimentos neurocirúrgicos, cardíacos e vasculares. Além disso, têm sido desenvolvidos diversos algoritmos processados por computador que também auxiliam na representação visual e interpretação. As principais contribuições da tecnologia eletrencefalográfica moderna incluem o reconhecimento e/ou prevenção de insultos isquêmicos perioperatórios e a monitorização da função cerebral durante a administração de drogas anestésicas, a fim de avaliar a profundidade da anestesia e o nível de consciência. No entanto, atualmente, a falta de padronização dos métodos e de recomendações para sua aplicação limita sua utilização de rotina6 .
Monitorização em unidades de terapia intensiva A avaliação neurofisiológica em unidades de terapia intensiva (UTI) por meio do EEGq fornece acesso quantitativo ao funcionamento do SNC, sendo útil para diagnóstico (epilepsia, morte encefálica), prognóstico (encefalopatia anóxico-isquêmica, trauma cranioencefálico e transtornos neurológicos de causa tóxica ou metabólica) e seguimento do paciente crítico adulto, pediátrico e neonatal. Portanto, desempenha um papel importante na avaliação individual dos pacientes de terapia intensiva7 .
Demências A detecção precoce do transtorno cognitivo leve (TCL) e da doença de Alzheimer (DA) demanda a iden-
tificação de biomarcadores capazes de distinguir os indivíduos com transtorno cognitivo precoce de indivíduos idosos saudáveis. Muitos laboratórios estão engajados na descoberta e validação de potenciais biomarcadores8 . O EEG é uma modalidade facilmente acessível e de baixo custo, que pode ser uma arma poderosa para a identificação de alterações funcionais sutis precedendo déficits metabólicos ou estruturais no TCL progressivo. A maior parte das contribuições nesse campo avaliou as diferenças no EEGq entre indivíduos saudáveis, com TCL e DA levando a achados contraditórios por conta da sobreposição de parâmetros encontrados entre os grupos e diferenças metodológicas entre os estudos. Além disso, estudos conduzidos com a obtenção do EEG sem demanda cognitiva demonstraram sensibilidade limitada e, geralmente, não produziram diferenças nos parâmetros espectrais do EEG entre os grupos. Desde que a evolução da DA é caracterizada pela perda progressiva da conectividade funcional entre áreas de associação neocorticais, análises dinâmicas do EEG modulado por eventos que tornem possível investigar a ativação funcional de circuitos neocorticais podem representar um método mais sensível para identificar alterações precoces na circuitaria neuronal preditivas de DA entre os casos de TCU.
Insônia Nas últimas duas décadas, o EEGq tem sido amplamente usado para investigar as características neurofisiológicas da insônia. Esses estudos forneceram evidências que apoiam a hipótese de que a insônia primária é associada com estado de alerta excessivo do SNC e alteração da homeostase do sono 10 • Estes novos achados têm implicações para o tratamento. Assim sendo, o uso do biofeedback de EEG (neurofeedback), um método de autorregulação baseado no paradigma do condicionamento operante, pode se tornar uma modalidade promissora de tratamento, estabilizando a atividade eletrencefalográfica e, possivelmente, resultando na normalização do funcionamento diurno e noturno " .
Lesão cerebral traumática O biofeedback de EEG (neurofeedback) tem sido estudado também para auxiliar na reabilitação de transtornos cognitivos nos pacientes com lesão cerebral traumática (LCT). Os padrões ao EEGq são acessados nos pacientes com LCT e, então, comparados a um banco de dados normativos. Os pacientes são, então, submetidos à realização do exame em repouso e durante a realização de tarefas cognitivas. Desvios do padrão, ao serem constatados, tornam -se a base para a elaboração de um plano de intervenção12.
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440
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 3
DA SEMIOLOGIA AO DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA
Transtorno do déficit de atenção e hiperatividade Não há um perfil fisiopatológico único na base desse transtorno. Certamente, disfunções nas vias frontais/ subcorticais que controlam a atenção e a motricidade estão implicadas 13 . Estudos publicados recentemente utilizando o EEGq têm identificado padrões anormais de ativação cortical por meio da análise de potência espectral, em potenciais corticais relacionados a eventos (event-related potentials - ERPs - resposta eletrofisiológica estereotipada a um estímulo interno ou externo) e em potenciais corticais lentos, que podem servir como bases para diferenciar o transtorno do déficit de atenção e a hiperatividade de outros transtornos psiquiátricos, auxiliando na seleção de medicações, avaliando a resposta medicamentosa e melhorando as chances de sucesso de início do tratamento e manutenção 14.
Depressão O transtorno depressivo maior (TDM) é uma doença prevalente e é frequentemente associada com incapacidade significativa, morbidade e mortalidade. A despeito do desenvolvimento e da disponibilidade de numerosas opções de tratamento para o TDM, estudos têm demonstrado que antidepressivos em monoterapia produzem apenas taxas modestas de resposta e remissão 15 . Aproximadamente 50% dos pacientes com TDM respondem à primeira medicação antidepressiva prescrita, e menos de um terço apresentam remissão dos sintomas. O desafio mais significativo no manejo do TDM, portanto, é a seleção da medicação antidepressiva que mais provavelmente levará a resposta ou remissão de um paciente em particular 16 . Uma possibilidade rumo ao desenvolvimento de novas estratégias farmacoterapêuticas para o TDM envolve a identificação de "subpopulações" de pacientes com depressão que mais provavelmente serão beneficiados por um determinado tratamento existente versus placebo ou quando comparado a um segundo tratamento 15. Tem sido dada atenção à identificação dessas "subpopulações': especificamente por meio da avaliação de um dado marcador clínico ou biológico, se ele também serve como um moderador, mediador ou preditor de melhora clínica quando da utilização de antidepressivos padronizados e de primeira linha. Marcadores biológicos incluem polimorfismos genéticos, metabolismo cerebral, potenciais evocados auditivos dependentes da intensidade (loudness dependence ofauditory evoked potentials - LDAEP - um indicador não invasivo confiável da função serotoninérgica central), padrões de assimetria cerebral funcional e EEGq 15,17,18. Tanto o EEG em vigília quanto em sono fornecem biomarcadores para depressão e terapia com antidepressivos, respectivamente. A análise por meio do EEGq possibilita avaliar os efeitos dos antidepressivos sobre a ati-
vidade elétrica cerebral. O EEG em sono mostra alterações características na depressão, como prejuízo na continuidade do sono, desinibição do sono REM e alterações no sono NREM 19 . Em um contexto mais amplo, o uso do EEGq para predizer a resposta aos antidepressivos no TDM pode significar que mais pacientes poderão alcançar resposta e remissão com menor abordagem de tentativa e erro que frequentemente acompanha o tratamento com antidepressivos20.
Ansiedade Os dados obtidos por meio do EEGq em repouso nos transtornos de ansiedade tendem a se correlacionar com subpadrões de sintomas e serem exacerbados por estímulos sob condições específicas. Também é comum à maioria dos transtornos de ansiedade dificuldades con dição-específicas com gatilho sensorial e na localização e organização da atenção. Isso fica claramente evidente com avaliações de processamento de informação pelos potenciais evocados e ERPs em transtorno obsessivo -compulsivo (TOC), transtorno do estresse pós-traumático, síndrome do pânico, transtorno de ansiedade generalizada e fobias. Entretanto, há variações consideráveis por meio dos estudos, como critérios de inclusão e exclusão, me dicações em uso e seleção de grupos-controle não padro nizada. No futuro, as avaliações eletrofisiológicas funcionais provavelmente irão desempenhar um papel significativo na descrição e estudo dessas condições e no desenvolvimento de tratamentos mais específicos21.
Esquizofrenia O EEGq é amplamente utilizado para estudar as fun ções cerebrais e cognitivas na esquizofrenia22 . Na pesquisa em esquizofrenia, os métodos eletrofisiológicos têm sido utilizados para identificar biomarcadores deste transtorno, realizar diagnósticos diferenciais entre os transtornos psicóticos, fornecer indicadores prognósticos ou endofenótipos23 • A alteração cognitiva na esquizofrenia é associada com padrões alterados de interação temporoespacial associadas com múltiplas bandas de frequência no córtex. Em particular, mudanças na geração dos ritmos gama (3080Hz) e beta-2 (20-29Hz) se correlacionam com os déficits observados na comunicação entre áreas corticais distintas. Aspectos dessas alterações podem ser reproduzidos em modelos animais, principalmente naquelas envolvendo redução aguda ou crônica na comunicação sináptica glutamatérgica mediada pelos receptores N -metil-D -aspartato (NMDA). Métodos eletrofisiológicos e imunocitoquímicos in vitro oferecidos por tais modelos animais continuam a revelar muito sobre os mecanismos subjacentes à geração de ritmos ao EEG24.
35 O PAPEL DA ELETRENCEFALOGRAFIA QUANTITATIVA NOS TRANSTORNOS NEUROLÓGICOS E PSIQUIÁTRICOS
A avaliação dos ERPs e as oscilações relacionadas a eventos (EROs) extraídos do EEG em pacientes comesquizofrenia e em indivíduos não afetados que, em razão de sua história familiar e estado mental atual, são de alto risco para desenvolver esquizofrenia têm, igualmente, sido alvo de pesquisa. Os ERPs e EROs apresentam potencial como marcadores de vulnerabilidade genética, fisiopatológicos e de possível deterioração cortical e cognitiva progressivas na esquizofrenia, ainda que não sejam específicos para o diagnóstico e classificação dos transtornos psiquiátricos. Além disso, poderão ser utilizados para uma compreensão maior da fisiopatologia, da etiologia e para a detecção precoce e seleção de tratamentos mais efetivos22 •
Considerações finais O uso do EEGq apresenta inúmeras vantagens, por se tratar de método não invasivo, portátil e relativamente barato. No entanto, deve -se ter em mente que, atualmente, o uso clínico desta técnica ainda é limitado e, muitas vezes, não possibilita a realização de diagnósticos para um dado paciente em particular. Porém, como perspectiva futura, o EEGq apresenta enorme potencial de crescimento na compreensão da fisiopatologia dos transtornos neurológicos e psiquiátricos, na indicação e avaliação de resposta a tratamentos medicamentosos, na reabilitação, na pesquisa básica e clínica e no desenvolvimento de tratamentos mais eficazes e menos dispendiosos.
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Seção 4
intomas e seu • em SI u iatria
•
I n1 1ca
Editor: Táki Athanássios Cordás
36. Bases Filosóficas para a Construção do Método em Psicopatologia, 444 37. Consciência e Atenção, 451 38. Alteração das Funções Cognitivas: Memória e Inteligência, 469 39. Alterações da Sensopercepção, 489 40. Tempo e Espaço: Vivência e Rendimento, 499 41 . Alterações do Pensamento (Forma e Conteúdo) e Linguagem, 504 42. Psicopatologia do Juízo, 519 43. Afetividade, 533 44. Psicopatologia da Volição: Impulso, Instinto e Vontade, 543 45. Alterações da Psicomotricidade, 550
No princípio da Seção 4, dedicada ao estudo da Psicopatologia, ciência e base para a prática psiquiátrica, Mauro Aranha retoma as contribuições filosóficas de Paul Ricouer, Karl Jaspers, Dilthey, Husserl, entre outros na construção do conhecimento psicopatológico. Marchetti e Carvalho iniciam a avaliação psicopatológica a partir da discussão dos estados de consciência, ordenação clássica em todo estudo psicopatológico desde a seminal definição de consciência de Jaspers como o "todo da vida psíquica momentâneá: Esse capítulo é, sem dúvida, em sua elegância um grande apanhado desde os conceitos clássicos e sua evolução histórica até as avaliações psicométricas mais recentes. Ciasca e Del Sant, no Capítulo 39, retomam os clássicos conceitos sobre os distúrbios da senso percepção, atualizados inclusive com a inserção de fatores etiológicos associados aos fenômenos. O capítulo referente ao tempo e espaço retoma a clássica questão do tempo objetivo contrapondo-se ao tempo psicológico ou interno. Embora as questões espaciais sejam contempladas, os autores Del Sant e Cordás claramente coroam a questão da vivência do tempo como uma das mais ricas do ponto psicopatológico e filosófico. O capítulo 4 1 é dedicado às alterações da forma de pensamento por Wang, Biondo, Machado e Loch. Função psíquica de integração entre o mundo externo, as vivências
internas e a construção da linguagem, o pensamento humano oferece desafios importantes para seu estudo. Os autores explicitam uma das mais viciosas logo no início do capítulo, o pressuposto de que linguagem e pensamento sejam o mesmo fenômeno. A dura tarefa de integrar Jaspers, Aristóteles, Lacan e Freud no estudo da psicopatologia do juízo foi proposto por Ariel Bogochvol em seu capítulo. Nakata e Teng iniciam seu capítulo sobre a psicopatologia da afetividade expondo imediatamente as dificuldades de definição dos termos utilizados. O texto pede ajuda nessa dura batalha aos conceitos jasperianos, freudianos, à neuropsicopatologia e a neurofisiologia do sistema límbico. Não esquece, porém, que não se pode dissociar afeto e arte, emoção e poesia, fazendo com que Fernando Pessoa tenha uma participação bela e relevante no capítulo. A psicopatologia da volição, entenda-se a melhor caracterização de conceitos como impulso, instinto e vontade, classicamente gozou de infundado esquecimento no exame das funções psíquicas. Hermano Tavares, baseado em sua prática clínica, desenha um capítulo que enriquece muito essa área pouco iluminada do estudo psicopatológico. Por fim, Sallet e Gordon, no estudo da psicopatologia da motricidade, estudam a fundo as relações entre o movimento e os quadros neurológicos e psiquiátricos.
Bases Filosóficas para a Construção do Método em Psicopatologia Mauro Ara nha de Lima
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 444 Bases psicológicas e fisiológicas da psicopatologia jaspersiana, 445
Ao final desse capítulo, você estará apto a:
Fenomenologia descritiva, 445 Dilthey: distinção entre ciência da natureza e ciência humana para uma concepção da vida como totalidade biossociocultural, 446 Jaspers: a insuficiência do método ou a concepção da vida como totalidade ainda cindida, 447 Descartes e Hume: origens filosóficas da cisão, 448 Ricoeur: por uma ontologia convergente, ou a vida sem cisão, 449 Referências bibliográficas, 450
1. Explicitar a contribuição de Jaspers para a Psicopatologia
enquanto método científico. 2. Explicitar as contribuições de Brentano, Husserl e Dilthey para a Psicopatologia jaspersiana. 3. Inteirar-se dos métodos compreensivo e interpretativo para a anamnese das reações e desenvolvimentos enquanto formas do adoecer psíquico e inteirar-se do método explicativo para a anamnese do adoecer psíquico processual. 4. Compreender as limitações da Psicopatologia jaspersiana e o risco do psicopatologista cindir-se entre o historicismo e o positivismo naturalista.
Introdução
5. Compreender a necessidade de uma nova teoria da identidade
Na epígrafe abaixo, Paul Ricoeur (1913-2005) pontua, a um só tempo, o valor e a precariedade da verdade que constituem a vocação e a angústia do filósofo. O que nos remete a uma breve incursão na história da filosofia, balizamento necessário para então nos lançarmos ao desafio que aqui ora se propõe: a partir de que bases se orienta o olhar investigativo do psicopatologista?
6. Compreender a contribuição hermenêutica de Ricoeur para uma
A estreiteza de minha condição, de minha informação, de meus encontros e de minhas leituras já esboça a perspectiva finita de minha vocação de verdade. No entanto, por outro lado, procurar a verdade, quer dizer que aspiro a dizer uma palavra válida para todos, que se destaca sobre o fundo de minha situação como um universal. Não quero inventar, dizer o que me agrada, mas aquilo que é 1•
''A estreiteza de minha condição" (estreiteza própria do humano) nos remete à filosofia contemporânea que se inicia com Nietzsche, em reação ao esgotamento das contribuições fornecidas pela filosofia moderna, essa que, em reação à razão especulativa de cunho teológico, elevou ao limite o postulado e fundamentação da razão autônoma
pessoal, a partir das limitações das teorias de Hume e de Descartes. nova teoria da identidade pessoal e sua possível contribuição para um novo método em Psicopatologia fenomenológica.
e supostamente objetiva, no período que vai de Descartes a Kant, prolongando-se, em parte, a algumas contribuições de Husserl (mestre influente na formação de Jaspers, fato que este jamais omitiu ou negou). É a partir de Nietzsche que se chegará às filosofias que negam a pretensa objetividade da tradição moderna, a Freud (e a postulação do inconsciente), a Dilthey, a Heidegger e deste último ao existencialismo que vem abarcar, entre outros, o próprio Jaspers (1883 -1969). Em outras palavras, e no mesmo sentido, se a filosofia, em qualquer época, decorre do espanto ante a fragilidade das certezas e se materializa na "vocação de verdade': o filósofo estará cindido a partir da consciência da falibilidade da razão: por um lado sempre buscará a verdade e seu imperativo de universalidade; por outro, sabe que está, para sempre, limitado apenas a uma "perspectiva finita" dessa mesma verdade. Ainda mais, a verdade
36 BASES FILOSÓFICAS PARA A CONSTRUÇÃO DO MÉTODO EM PSICOPATOLOGIA
não estará doravante na correspondência entre o "puro" pensamento e a realidade (verdade como correspondência, como adaequatio rei et intellectus), como se não fos sem conaturais um ao outro, como se o pensamento não emergisse ele próprio da realidade, realidade que nas filosofias pós-Nietzsche será postulada como algo só a entremostrar-se (e de forma sempre provisória) não mais a um pensamento formalizado, abstraído da realidade vivida, pensamento imaculado que a encontra e dela se apropna, mas a um pensamento CUJa propna genese so pode se dar no seio mesmo da condição errática, contingente (e maculada) da existência. •
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Bases psicológicas e fisiológicas da psicopatologia jaspersiana Jaspers é resultado e um dos epígonos dessa cisão na história da filosofia. Pelas contingências próprias e inescapáveis da clínica psiquiátrica, em que a mente é a expressão emergente de determinações e interdependências biológicas e culturais, sua "psicopatologia geral"2, de 1913, evidencia claramente essa cisão, procurando, no entanto estreitá-la ou superá-la com a iniciativa mesmo da obra, posto que, à época, a psiquiatria se via esgarçada entre a corrente organicista kraepeliana e a recente ascensão da metapsicologia freudiana. Jaspers, então, antes mesmo de discorrer sobre o método de sua psicopatologia, reconhece que "no curso atual dos conhecimentos adquiridos nós nos servimos de vários métodos simultaneamente". Referia-se a estes métodos: a) A mera "compilação dos fenômenos individuais" ou seu entendimento "estático" em que "os fatos individuais emergem do fluxo da realidade psíquica'', fazendose necessária, para isso, a abstração das fontes teóricas que os possam agregar e relacionar, posto que eles [os fatos, ou fenômenos, individuais] devem "concernir à experiência vivida'' relatada ou expressa pelo indivíduo, objeto de estudo; b) A "investigação de suas conexões de sentido [entre os fatos ou fenômenos individuais]': ou seu entendimento "genético': a saber, a efetiva compreensibilidade ou "percepção do sentido" entre eles, configurando-se o modo da "compreensão" (Verstehen) do conjunto de fenômenos, ou, quando de sua não compreensibilidade, configurando -se a "explicação" ou a "percepção da conexão causal" (Erkliiren) entre os fenômenos; c) A "apreensão de unidades complexas': ou "totalidades", a partir da relação compreensível, ou não, entre os diversos fenômenos apreendidos num dado indivíduo observado, seja numa visada transversal (sincrônica) ou longitudinal (diacrônica) de sua existência, esclarecendo que "toda pesquisa diferencia, separa e estuda fatos individuais em que se busca descobrir certas leis gerais" ex-
tensíveis e reprodutíveis para o conjunto do humano. Esclarece que essa totalidade estrutural apreendida não é a mera soma linear (mecanicista) das partes que a compõem e que, intuída a priori na consciência do observador, é forma ( Gestalt) já esboçada que antecede e ilumina a própria delimitação das partes, mas que uma vez progressivamente emersas na consciência do observador impõem-se por si mesmas, por vezes dissonantes do todo e que, repercutindo no conjunto dinâmico das partes, podem reconfigurar o todo. Jaspers anuncia mas não tematiza a fundo essa circularidade genética entre o todo e as partes, que Dilthey, Heidegger e Gadamer, cada um a seu modo, entenderão como um "círculo hermenêutica" a condicionar a compreensão sempre em progresso da totalidade sob investigação. A falta dessa tematização do "círculo hermenêutico" metodológico e a sua não aplicação na compreensão dos fenômenos da vida psíquica condicionarão, aliás, a incompletude da psicopatologia jaspersiana, que, ainda que descreva as várias dimensões do que constitui a vida psíquica, não as integra numa postulação teórica mais estrutural ou sistêmica da mesma. Ora, na "compilação dos fenômenos individuais': em que Jaspers recomenda que nos afastemos de nossas pressuposições e que nos deixemos permear pela presença das manifestações espontâneas de nosso objeto de estudo, ele é claramente tributário de Husserl (1859 -1938), que, por sua vez, o é de Brentano ( 1838-1917), pensador que recria o conceito escolástico de intencionalidade que tanto marcou a fundação da fenomenologia por Husserl. Aqui me refiro à fenomenologia como uma epistemologia rigorosa e reativa à visão naturalista da época em que as ciências da natureza subsumem as particularidades do humano à uma matriz conceitual físico-química desenhada pelo instrumental lógico-matemático, então uma racionalidade reducionista e cega às possibilidades livres e plásticas das produções do espírito e da cultura. Mais que isso, Husserl postulava a suspensão (no grego, epoché) da "tese geral da atitude natural"3 e o deslocar-se para o que mais tarde Ricoeur nomearia "receptividade pura''\ resultado da subtração de tudo quanto pré-concebido, abertura plena e ingênua para a presença do mundo, abertura tornada possível por uma fenomenologia estritamente descritiva.
Fenomenologia descritiva Lembremos como Brentano define intencionalidade: Direção para um objeto ou objetividade imanente. Todo fenômeno psíquico contém em si alguma coisa de objeto. Na representação é alguma coisa que é representada, no julgamento é alguma coisa que é admitida ou rejeitada, no amor alguma coisa é amada, no ódio alguma coisa é odiada, no desejo alguma coisa é desejada, e assim por diante 5•
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
Esse conceito quer significar como intencionalidade a propriedade do espírito investigador mediante a qual toda sua atividade direcionada para aquilo que se lhe torna apreensível (seu conhecimento, seus juízos, valorações ou sentimentos); ela é apreensão de alguma coisa fora dele próprio e, porque essa relação intencional com o objeto só se dá pela imanência prévia deste no espírito, o espírito mesmo coincide com a coisa; a um só tempo é possuidor e despossuído de si, de tal forma que se determina livremente a apreender o mundo, tanto mais quanto mais se deixa determinar pela coisa, absolutamente aberto e receptivo à coisa mesma a ser apreendida. Para tal, deve despojar-se das representações residuais que tem do mundo, processo que Husserl chamou de redução fenomenológica. Sartre ilustra a intencionalidade e seus desdobramentos, quando da percepção de uma árvore à beira do caminho: De um só golpe a consciência está purificada, está clara como uma ventania, não há mais nada nela a não ser um movimento para fugir de si, um deslizar para fora de si; se, por impossível, vocês entrassem "dentro" de uma consciência seriam tomados por um turbilhão e repelidos para fora, para perto da árvore, em plena poeira, pois a consciência não tem "interior"; ela não é nada senão o exterior de si mesma, e é essa fuga absoluta, essa recusa de ser substância, que a constitui como consciência6•
Jaspers, assim, apropria-se das contribuições filosóficas originais de Brentano e Husserl e nos oferece o método fenomenológico descritivo para a apreensão das produções psicopatológicas dos indivíduos (método que Husserl sistematizou, em lições de 1925 que, compiladas, compõem o tomo IX da coleção Husserliana, disponível em Louvain, Bélgica, e designada já mais tardiamente como sua psicologia fenomenológica, relativa às produções do psiquismo normal. Na "investigação das conexões de sentido': entre os fenômenos apreendidos pela consciência ou na "percepção da conexão causal': entre os mesmos, Jaspers é tributário de Dilthey (1833 -1911). Antes de nos determos em Dilthey e a forma como ele contribuiu para com a psicologia e a psicopatologia enquanto ciência do espírito ou ciência humana, faz-se necessário fazermos uma remissão a HusserF, ao tomo IX da Husserliana, em que o filósofo tcheco se detém a fundar uma psicologia fenomenológica, a partir do resgate das fontes teóricas acerca do psiquismo e com vistas a dar a essa disciplina o estatuto de cientificidade. À época, na transição do século XIX para o XX, vicejava uma psicologia naturalista, representada por Fechner, Wundt e outros, sob o método experimental em fisio logia, e que era fruto da fundação filosófica do método científico, por Descartes, no século XVIII, método que se lastreava no paradigma dedutivo lógico-matemático a partir de leis elementares dadas indutivamente por axiomas, princípios e experimentação. Mas Husserl pensava que a
psicologia, enquanto ciência, necessitava referir-se também a outros paradigmas até então não evocados por seus teóricos, na medida em que a vida psíquica teria estruturas ou configurações "espirituais" cuja atividade intencional é eminentemente particular e subjetiva e que o método explicativo das ciências da natureza não conseguiria contemplar, posto que este erigia-se sob o requisito dareprodutibilidade, generalização e universalidade. Fazia-se necessário criar uma ciência dos fatos particulares, sem a necessidade precípua de generalizá-los, nem de encadeá-los a partir de generalidades já previamente estabelecidas sob a forma de leis elementares. O trabalho de Husserl seria uma proposição de reforma da psicologia, de uma psicologia explicativa para uma psicologia descritiva, num primeiro momento (como vimos, por analogia, para os fatos psicopatológicos em Jaspers), mas desdobrada, após, em uma psicologia apriórica de caráter analítico e eideticamente intuitivo (i. e., a partir da intuição de essências, dadas pela redução eidética dos fenômenos apreendidos e dispostos pela Psicologia descritiva). Esta psicologia apriórica seria, portanto, a um só tempo, um método e o objeto mesmo de estudo a que se aplica o método, e , assim, uma metatearia: na área atinente ao estudo da consciência, portanto, uma "teoria da razão" ou uma teoria do conhecimento; na área atinente ao estudo das disposições e manifestações morais, uma teoria dos valores (i. e., uma ética) e, finalmente, no estudo da vontade, uma teoria da vontade.
Dilthey: distinção entre ciência da natureza e ciência humana para uma concepção da vida como totalidade biossociocultural Foi Dilthey que, em busca de fundamentos diferenciados para o estudo da história, propôs a distinção entre ciências da natureza (Naturwissenschaften) e ciências do espírito ou da cultura ( Geisteswissenschaften), essas últimas hoje designadas como ciências humanas. A primeira tem por objeto os fatos da natureza, externos ao ho mem e que devem ser explicados mediante conexões de causa/efeito; a segunda trabalha com objetos internos ao próprio homem, posto que produzidos por ele próprio, e que devem, mediante a compreensão dos nexos que os articulam entre si, ser contínua e exaustivamente entrelaçados e integrados, ao longo do fluxo mesmo da vida, até que uma totalidade compreensiva desvele-se na consciência do investigador, como configuração ou estrutura representativa desse conglomerado de experiências vividas (vivências) como resultado da operação intersubjetiva e empática investigador/objeto investigado. Nota-se que para Dilthey essas estruturas seriam próprias e exclusivas dos fatos singulares hauridos do objeto investigado, de tal forma a coincidir com o conceito de pensamento científico idiográfico, definido por Windelband8, em que os fenômenos investigados têm uma unicidade e plasticidade que escapariam à sua abstração em
36 BASES FILOSÓFICAS PARA A CONSTRUÇÃO DO MÉTODO EM PSICOPATOLOGIA
leis ou unidades estáveis que os antecedem como ocorre nas ciências nomotéticas8, as ciências da natureza. Não imputemos a Dilthey uma visão cindida entre natureza e cultura como fossem componentes imiscíveis para a formação do homem. A separação que opera entre ciências da natureza e ciências do espírito é mais propriamente para reforçar sua concepção de que as produções do espírito necessitam de uma metodologia à parte das utilizadas pelas chamadas filosofias da representação (como a cartesiana e kantiana), pois estas foram erigidas para dar conta do entendimento dos fenômenos físicos da natureza, mais propriamente os cosmológicos. O método proposto por Dilthey para o estudo das produções culturais humanas tem como ponto de partida não a representação neutra, asséptica e formalizada do objeto na consciência (como nas ciências da natureza), mas sim o da vivência (Erlebnis) que essa tem daquele, como experiência haurida da repercussão cognitivo-afetivo-volitiva, não fragmentada, face ao objeto, na medida em que, para Dilthey, o que lhe importa é o que é dado na experiência enquanto objeto total, e é como total que ele é intuído pelo observador, até mesmo porque o objeto de que se trata (a sociedade, a história, a literatura, ou quaisquer outras expressões do espírito humano) é, ele próprio, a emergência viva e interna ao próprio espírito, fundado na totalidade da vida, assim como o é o espírito que o avalia. Dessa forma, em Dilthey, não há qualquer cisão sujeito-objeto nas ciências do homem: pois ele próprio, homem, é sujeito e objeto a um só tempo. "E todos os objetos da consciência, incluindo-se mesmo as pessoas com quem me relaciono, existem para mim como fatos da consciência: fatos da consciência que constituem o único material a partir do qual os objetos são constituídos"9 . Ora, fatos da consciência ou os fatos da vida do espírito, em sua totalidade mesma, incluirão toda a gama de condições que fundam a expressão (Ausdruck) da vida, vida enquanto bios e vida enquanto existência sociocultural. Assim, os fatos da consciência "não se separam das unidades vitais psicofísicas da natureza humana e uma teoria que queira descrever e analisar os fatos históricosociais não pode deixar de levar em conta a totalidade da natureza humana e limitar-se apenas ao espiritual"9 . O que Dilthey recusa é reduzir o estudo da consciência a meras unidades físico-químicas dadas pelo materialismo metodológico da psicologia experimental da épo ca, por demais devota às normas estreitas da causalidade e das medidas matemáticas. Assim como recusa a adesão cega ao idealismo cartesiano e ao transcendentalismo kantiano, isto é, a reduzir o espírito (a consciência) a uma realidade pensante substancial, autóctone, anterior a uma corporeidade que também lhe fundamenta e constitui. Se Dilthey foi a figura basilar que trouxe uma for mulação teórica realmente nova para as ciências do espírito, Jaspers não a desenvolveu mais a fundo em sua psicopatologia geral.
Jaspers: a insuficiência do método ou a concepção da vida como totalidade ainda cindida Jaspers, como Husserl, pretendia que nas ciências do espírito, e em especial na psicologia, as estruturas apreendidas pelo investigador pudessem, por uma operação reflexiva e "por aproximação"7, segundo Husserl, ser generalizadas em objetos universais e ideais, apreendidos e tipificados, posto que imanentes à consciência do investigador, de tal forma a serem unidades estáveis, aí sim passíveis de operações dedutivas seguras e próprias do método científico lógico-matemático mais próprio da he rança cartesiana e kantiana, de que tanto Husserl quanto Jaspers não se libertaram. Ora, o mérito da psicologia proposta por Husserl se detém basicamente na apropriação do conceito brentaniano de intencionalidade para instruir a captação ou apreensão dos dados da vida psíquica de maneira a considerá-los em sua aparição nativa, quase ainda pré-reflexiva, e em sua vocação imanente de plasticidade que pode escapar aos pressupostos teóricos rígidos da consciência do observador. Mas, no limite, o tratamento metodológico que Husserl, assim como Jaspers, aplica aos dados coletados da vida psíquica obedece à primazia e segurança metodológica das ciências da natureza. E este que é mesmo um mérito do método, tornando a psicopatologia uma disciplina científica, será também a sua limitação. Jaspers, quando propõe o terceiro passo de sua metodologia, "a apreensão de unidades complexas", tem o intento de, a partir da apreensão das unidades simples e singulares do psiquismo em estudo, agregá-las e generalizá-las em totalidades que, por um lado, referiria o investigador a eventuais unidades sindrômicas ou nosológicas, próprias da tradição médica, e, analogamente a Husserl, a unidades gerais, estáveis e reprodutíveis, como peças elementares e seguras para, no plano formal, operá-las num raciocínio teórico-clínico, assim como o é no plano das ciências lógico -matemáticas e as da natureza; e, no plano material, para viabilizar a previsibilidade da ocorrência e evolução dos transtornos mentais. Em Jaspers, o médico impõe-se ao filósofo. Inevitavelmente, a premência de tratar as pessoas que sofrem exigem do médico uma funcionalidade e pragmatismo imediatos que pode cercear as livres cogitações do pensador. Em outras palavras, se o mérito de Jaspers está na coleta "desinteressada'' de produções do psiquismo investigado, tal como estes se apresentam à consciência "reduzida'' do investigador; a sua limitação estará na cisão entre o compreensível e o explicável, como se os fundamentos orgânicos e culturais da mente não tivessem uma relação biunívoca e geradora de complexidades que requer uma proposta teórica que também esta não seja uma mera soma linear do compreensível e do explicável.
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SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
Posto isso, ainda o investigador da mente estará co locado diante de dois riscos: o do historicismo e o do positivismo. Na melhor das hipóteses para alguns fatos da vida psíquica será historicista, para outros, positivista. Ambos, positivismo (naturalismo, ou biologismo) e historicismo (antinaturalismo, ou psicologismo), apresentam, ainda que se distinguam em seus valores inspiradores (no primeiro, a vida enquanto bios, o império da necessidade; no segundo, a vida enquanto existência sociocultural, ou, no limite, o império da liberdade) exatamente o mesmo vício: o de postular indutivamente que eventos dispostos na sucessão do tempo têm uma relação linear de causalidade entre si, postulação essa que, uma vez tomada como premissa inquestionável, desdobra-se em outra, a saber, a de que podemos, também de maneira indutiva, formular previsões seguras (ou leis de sucessão, como queriam Comte e Mill) do desenvolvimento evolutivo entre esses eventos em desfechos futuros apreensíveis. Só os sistemas lógicos têm resultados necessários. E o próprio Mill é taxativo quanto a essa dupla intuição (ou indução) aparentemente inquestionável: "a lógica trata de inferências, não de verdades intuitivas" 10 • Portanto, não poderíamos "cientifizar" a psico(pato )logia sem corrermos o risco de um afastamento da realidade da mente, tal como ela é: em face de sua multifatorialidade, da tensão (viva) entre produções estocásticas e autodeterminadas, da organização sistêmica que ultrapassa a mera presença de seus elementos constituintes, o máximo que lhe podemos prever (intuitivamente) são tendências e não propriamente certezas. Ora, como quer Popper " [... ] tendências não são leis. Um enunciado que afirme a existência de uma tendência é existencial, não universal"".
Descartes e Hume: origens filosóficas da cisão Desde Hume 12 , sabemos dos enganos a que estamos propensos com as "questões de fato", aquelas que se oferecem ao pensamento investigador após sua efetuação particular na existência, sujeitas a variações dadas pelas contingências e pelo acaso; mas que, apesar disso, nos parecem encadeadas por relações fixas de causa e efeito, de tal forma que nos propiciem, indutivamente, generalizações e previsões ditas científicas: Reconhece-se que o supremo esforço da razão humana é reduzir os princípios causadores dos fenômenos naturais a uma concepção mais simples e reportar os numerosos efeitos particulares a umas poucas causas gerais por meio de raciocínios baseados na analogia, na experiência e na observação.
E, mais adiante, completa: Quanto à experiência passada, pode-se admitir que fornece informações diretas e certas apenas sobre aqueles obje-
tos precisos e aquele período de tempo de que teve conhecimento: mas por que estender essa experiência aos tempos futuros e a outros objetos que, tanto quanto nos é dado saber, podem ser semelhantes apenas na aparência?
Sobre a mente, estamos condenados às analogias com modelos teóricos mecânicos causais que, somente estes, se mostram previsíveis. E, tomando-os, passo a propor uma explicitação crítica dos modelos de mente fundados pela filosofia especulativa ocidental. Para tal tarefa, proponho que estabeleçamos os modelos propriamente da concepção do que seja o "eu" ou pessoa, ou seja, da possibilidade e da permanência no tempo de uma unidade e identidade pessoais, de maneira que possamos, a partir de tal conjunto, concebermo, . nos como umcos e sempre os mesmos. Para Hume 13 o Eu, our self, é uma concepção (imaginária) de um todo (tal como fosse substancial) que seria, em verdade, "um feixe ou uma coleção de diferentes percepções, que se sucedem umas às outras com uma rapidez inconcebível, e estão em perpétuo fluxo e movimento". O Eu é dado apenas como uma impressão de que esse conjunto de percepções tem uma tal simplicidade num dado momento e uma tal identidade ao longo do tempo que somos algo invariável e ininterrupto vida afora. Essa (falsa) impressão se dá porque as partes desse conjunto estão conectadas em relações de semelhança, contiguidade ou causalidade, de tal forma que o acréscimo ou a retirada de novas partes são graduais e insensíveis, são proporcionais ao todo e parecem ter em vista algum fim (seu telos) para o qual elas convergem. Essa continuidade extensiva no tempo e com um propósito a um fim é dada pela memória, fonte fundamental do self. E o self é imaginado como um "princípio novo e ininteligível que conecte os objetos (as diferentes percepções), impedindo sua descontinuidade ou variação". Essa visão humana do Eu dá margem, por diferentes conteúdos ou motivos, a pensar o Eu psíquico como tabula rasa, vulnerável e permeável a estímulos e contingências exteriores a ele próprio e que o informam e, mais que isso, o "enformam'' de uma tal maneira que não haja propriamente um princípio substancial e autodeterminado que o torne infenso a influências extrínsecas, heterônomas que, em seu conjunto, na verdade não só o condicionam mas são, no limite, ele próprio. Essa visão de uma absoluta ausência de autodeterminação egoica serve-nos para pensar o nível biológico da existência, quando lhe atribuímos a fundamentação prioritária do eu (como quando, no método explicativo, para designarmos o que seja um processo psíquico), assim como para pensar o nível sociocultural da existência como o determinante fundamental do eu (no método compreensivo para teorizar o que seja uma reação ou um desenvolvimento psíquico). Acresça-se a isso que, quando as partes socioculturais integradoras (e introjetadas) da personali-
36 BASES FILOSÓFICAS PARA A CONSTRUÇÃO DO MÉTODO EM PSICOPATOLOGIA
dade são interpretadas como ocultas à consciência, temos a visão do adoecer psíquico como o resultado de forças heterônomas, sub-reptícias, incontroláveis e ameaçadoras à própria integridade do eu que, defensivamente, num sentido as manifesta, permitindo-lhes a devida catexia libidinal, e em outro, as oculta de si próprio, em estruturas finais cristalizadas a que chamamos neuróticas, mediante o desenvolvimento neurótico da personalidade. Pensar, em outro extremo, em um eu substancializado que está aquém ou acima dos múltiplos fatores que o informam, que de nenhuma maneira se deixará "enformar" por eles, leva-nos a citar um outro trecho de Mill 10, em Sistema de lógica: Tudo o que compreendemos, mesmo em nossas próprias mentes, é nas palavras de James Mill um certo 'fio de consciência' (thread ofconsciousness), uma série de sentimentos, isto é, de sensações, pensamentos, emoções e volições, mais ou menos numerosos e complexos. Há alguma coisa que chamo de eu, ou minha mente, que considero distinta dessas sensações, pensamentos, etc.; alguma coisa que concebo não serem os pensamentos mesmos, mas o ser que tem os pensamentos, e que poderia subsistir eternamente num estado de quietude, sem nenhum pensamento. Mas, embora seja eu mesmo, não tenho nenhum conhecimento do que é esse ser, além da série de seus estados de consciência.
Ora, Mill, tributário de Hume, está nos dizendo que, se há um eu substancial que detém a autoria da experiência que tenho desse eu, não é possível conhecê-lo senão mediante a experiência que dele se tem. Diferentemente é a concepção cartesiana (essencialista) de homem, mais propriamente da identidade doespírito humano (ares cogitans) que não se deixa apreender, nem se determinar pelas contingências de sua experiência mesmo enquanto res extensa. O famoso argumento da cera 14 ilustra essa concepção: Um pedaço de cera, se aproximado ao fogo, exala o que lhe restava do sabor de mel, o seu odor se esvai, sua cor se modifica, sua figura se altera, sua grandeza aumenta, ele torna-se líquido, esquenta-se [... ] A mesma cera permanece após essa modificação? O que é, pois, que se conhecia deste pedaço de cera com tanta distinção? Certamente não pode ser nada de tudo o que notei nela por intermédio dos sentidos, posto que todas as coisas, que se apresentavam ao paladar, ao olfato, à visão, ou ao tato, ou à audição, encontram-se mudadas e, no entanto, a mesma cera permanece.
Permanece como ideia, como essência, ainda que não possamos constatá-lo por meio dos sentidos, como imagem, ou extensão. De qualquer forma, ao termos uma visão só essencialista da identidade, se ganhamos em suposta soberania e autodeterminação do eu perdemos qualquer
possibilidade de sua transformação, tal a sua inacessibilidade (metafísica) à ação humana. O Eu seria também aquele que não poderia mostrar-se, incapaz de dizer-se também por absoluta falta de linguagem partilhável no mundo, e sem mesmo a capacidade de compreender a si próprio mediante a experiência com outrem que, tal como a figura no espelho, instrui a reflexão de quem nele se mira.
Ricoeur: por uma ontologia convergente, ou a vida sem cisão Faz-se necessário propor, então, um outro modelo de Eu. Quero dizer que tanto a explicação biológica, a compreensibilidade fenomenológica e a interpretação freudiana da mente são apenas paradigmas que procuram desvelar a natureza última do psíquico, e que, se levados ao extremo, seja como modelos essencializados, a reificarem e imobilizarem mesmo o eu psíquico, ou, como modelos fortuitos, fulgurações intermitentes e não enraizadas no humano, ou se vistos como modelos não integrados, tornam o psicopatologista mais propenso a cometer dois dos erros que Bachelard 15 apontava como alguns dos obstáculos ao conhecimento científico, a saber o "obstáculo substancialista" e o "obstáculo do conhecimento unitário e pragmático": o primeiro, que é tornar uma conjectura em um objeto concreto (como a conjectura do "inconsciente" em objeto existente, ou mesmo a conjectura de um eu substancial cartesiano) e "a tendência quase natural [do observador] em condensar num objeto todos os conhecimentos em que esse objeto desempenha um papel, sem se preocupar com a hierarquia dos papéis empíricos"; e o segundo, é a tendência do observador em atribuir a uma proposição teórica, com validade preditiva e heurística, a única a dar conta da explanação do objeto em estudo (como a proposição de uma patogênese biológica exclusiva de um dado fenômeno psíquico em face de sua responsividade a um psicofármaco). A outra proposição de eu que se faz necessária requer uma resposta mais promissora aos desafios da clínica psiquiátrica. As dificuldades que enfrentamos na clínica se dão, entre outros, por tomarmos o "eu" como realidade substancial e como tal com estabilidade diacrônica quando se trata de submetê-lo a um diagnóstico, ainda que esse diagnóstico o seja de comorbidade. Primeiro, que não é incomum, ao longo de sua vida, a pessoa sob tratamento exibir uma sequência descontínua de diagnósticos bem formulados isoladamente, mas de difícil agregação num continuum que os integre se vistos no conjunto de toda uma vida; segundo, por vezes, num dado período da evolução clínica, o número de comorbidades para uma só pessoa é tão grande que se torna um contrassenso pretender-se categorizar tal configuração clínica em um todo homogêneo e integrado por uma suposta relação hierárquica entre as categorias. De outra forma, se tomarmos o "eu" como uma tábula rasa, um "eu" que não se imponha e resista às conceituações que o querem plasmá-lo e, por isso mesmo,
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não se revele como objeto, no sentido estrito (a etimologia latina de objetar, objetare, significando resistir), será esse "eu" mera ficção, ou miragem, formuladas pelas projeções teóricas e ideológicas do observador. As contribuições das Ontologias de Heidegger e Ricoeur, sob a chave metodológica de Gadamer, podem fornecer-nos, a nós psicopatologistas, o caminho para essa proposição necessária de um novo modelo de "eu': com identidade própria e autodeterminada, acessível à linguagem que a quer dizer e explicitar, e suficientemente dotada de vida, da vida como ela é (a empunhar-se entre necessidade e liberdade), e em direção, sempre em direção à ainda que inatingível completude. Não aprofundarei aqui as contribuições dos três pensadores contemporâneos citados. Cumpre-me apenas dizer, utilizando algumas expressões de seus léxicos filosóficos que esse novo "eu': ao dispor-se ao estudo da psico(pato) logia, condensaria, mas de forma mais dinâmica e integrada, as contribuições aqui já explicitadas de Brentano, Husserl e Jaspers, a coroar e desenvolver o projeto inacabado de Dilthey; um "eu" não mais dividido entre as reações e desenvolvimentos (sob o método da compreensão ou da interpretação) e os processos (sob o método da explicação); um "eu" dialético ou espiral, mais além do que a psicologia e a neurociência como disciplinas isoladas e não comunicantes pretendem esgotar. A apreensibilidade extensiva desse "eu" espiral pelo psicopatologista somente seria possível se a metodologia utilizada tivesse a mesma conformação geométrica da espiralidade. O que quero dizer com isso? Que mais além de uma razão dogmática (fundada pela crença e pressupostos sentenciosos); e mais além de uma razão teórica reflexiva ou transcendental (em que o conhecimento do objeto fundase, como evidência, clara e distinta, na sua referência ao Cogito, a consciência que o conhece, e cujas condições formais de apreensão e entendimento antecedem a sua aparição, percebendo-a como coisa só enquanto percebida, mas não já a coisa bruta (em Merleau-Ponty), a coisa em si (em Kant), absolutamente pura; faz - se necessário para a apreensão desse novo "eu" uma razão hermenêutica, ou razão narrativa, em que as circunvoluções ascendentes do pensamento sejam o que a espiral mesma representa: um círculo hermenêutica, que ascende da visão figurativa do todo a emergir do movimento integrativo das partes, configurando-se e refigurando-se num vai-e-vem contínuo entre todo e partes, de tal forma em que as partes modificam o todo e o todo modifica as partes, numa circularidade em torno de um só eixo, mas projetada em planos distintos e ascendentes. Chamaria esse Eu de um "eu" narrativo, uma identidade narrativa, como quer Ricoeur: "o si-mesmo como um outro" 16 . Um "eu" que se estrutura e se conhece mediante as partes e condições de sua vida e que somente pode arrematar-se enquanto totalidade, no tempo, mediante o arremeter-se a uma reflexividade que se deixe sempre surpreender, em uma trama narrativa que só ad-
quire um sentido mais sinóptico no desfecho mesmo de sua interminável compreensão. E o que deve esse "eu" representar para o psiquiatra, que é o médico comprometido com o tratamento e o cuidado de pessoas sob transtornos mentais? Para o psiquiatra, não só comprometido com sua visão médica do homem (passível de "adoecer") e com sua tarefa de restituir às pessoas sob cuidado e tratamento um mínimo suficiente de saúde mental (liberdade sob a necessidade), esse "eu': por isso e além disso, pode mirar-se e mover-se por tudo quanto lhe tornasse mais autêntico e completo, ainda que sob as contingências e precariedade da existência, para que possa cumprir-se, existindo, num cuidado atento de si, como totalidade psíquica integrada e plástica em face de horizontes, o horizonte de sua história e "tradição" 17, ressignificadas, e o horizonte a projetar-se da vontade, também sempre ressignificada, até que ambos convirjam a uma "fusão de horizontes" 17, qual seja, o ser como termo desdobrado do ente 18, fusão de horizontes sempre a refazer-se (o si mesmo do outro, o outro de si), no tempo, existência afora, pela conciliação ágil e autodeterminada entre liberdade e necessidade, identidade e alteridade consentâneos, movimento nem fora de si, nem apenas em torno de si, o ser si mesmo como um outro e com os outros, em plenitude, enquanto o tempo não cessar. Espiral (in)terminável até que a morte o liberte de si mesmo.
Referências bibliográficas 1. Ricoeur P. Histoire et vérité. Lonrai (Normandie): Éditions du Seuil; 2001. 2. Jaspers K. General Psychopathology. Baltimore: The Johns Hopkins University Press; 1997. 3. Husserl E. Idées directrices pour une phenomenologie. Mesnil-surl'Estrée: Gallimard; 2005. 4. Lima MA. Paul Ricoeur: o Cogito a jusante das palavras [dissertação]. São Paulo: Faculdade de São Bento; 2010. p. 25. S. Brentano F. Psychologie du point de vue empirique. Paris: Vrin; 2008. 6. Sartre JP. Situações I - críticas literárias. São Paulo: CosacNaify; 2005. 7. Husserl E. Psychologie phénoménologique (1925-1928). Paris: Vrin; 2001. 8. Windelband W Crítica e resignação: Max Weber e a teoria social. São Paulo: Martins Fontes; 2003. p.76. 9. Amaral MNCP. Dilthey: um conceito de vida e uma pedagogia. São Paulo: Perspectiva/Edusp; 1987. p.1-55 10. Mill, JS. Sistema de Lógica dedutiva e indutiva. Coleção Os pensadores, vol.34. São Paulo: Abril Cultural; 1974. p.75-252. 11. Popper K. Textos escolhidos. Rio de Janeiro: Contraponto/ PUC RJ; 2010. p.283-96. 12. Hume D. Investigação sobre o entendimento humano. Coleção Os pensadores, vol. 22. São Paulo: Abril Cultural; 1973. p.127-98. 13. Hume D. Tratado da natureza humana. Livro I, parte IV, seção VI. São Paulo: Unesp/Imprensa Oficial do Estado; 2001. p. 283-95. 14. Descartes R. Meditações. São Paulo: Abril Cultural; 1973. p. 104-5. 15. Bachelard G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto; 1996. p.103-61. 16. Ricoeur P. Soi-même comme um autre. Malesherbes: Éditions Du Seuil; 1996. 17. Ricoeur P. Gadamer: a hermenêutica das tradições in Ricoeur P. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. p.103-19. 18. Heidegger M. El ser y el tiempo. México: Fondo de Cultura Econômica; 2000.
Consciência e Atenção
Renato Luiz M archetti Victor Bigelli de Carvalho
SUMÁRIO
Introdução, 451 Importância evolutiva da consciência, 452 Aspectos objetivos da consciência, 452 Vigília, 453 Alerta (ativação/prontidão), 453 Atenção, 454 Responsividade, 455 Apercepção, 455 Orientação, 455 Cognição, 455 Curso da atividade mental, 456 Aspectos subjetivos da consciência, 456 Atributos básicos da consciência, 456 Níveis da consciência, 457
Estados torporosos e comatosos, 461 Estados vegetativos e de consciência mínima, 461 Estupor, 461 Delirium (hiperativo e hipoativo). 461 Estados crepusculares, fugas e transes dissociativos, 462 Crises epilépticas e crises não epilépticas conversivas/ dissociativas, 462 Alterações da consciência do eu, 462 Despersonalização, 462 Vivência de mudança de personalidade, 462 Vivências delirantes de passividade do eu, 462 Semiotécnica da consciência, 462 Minicasos clínicos, 465 Questões, 467 Referências bibliográficas, 468
Não consciência, 457 Consciência básica ou primária, 458 Consciência superior ou reflexiva, 458
PONTOS-CHAVE
Consciência clara e consciência obnubilada, 458 Campo da consciência, 458
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Estrutura fenomenológica da consciência, 459 Estados normais da consciência, 459 Estado de vigília, 459 Sono,460 Sonho,460 Estados alterados da consciência, 460 Distúrbio da atenção, 460 Estados patológicos da consciência, 461
Introdução A palavra consciência é derivada do latim "conscio", formado pela união de "cum" (com) e "seio" (saber). No seu sentido original, estar consciente de algo seria compartilhar o conhecimento daquilo com mais alguém ou simplesmente deter a sabedoria. Hoje, no entanto, do ponto de vista médico-psiquiátrico, pode-se pensar a consciência como algo muito mais complexo. Trata-se de uma qualidade subjetiva da mente que possibilita a percepção do mundo exterior, do mundo psíquico interior e de suas
1. Entender a importância evolutiva do desenvolvimento da consciência. 2. Compreender os aspectos objetivos e subjetivos da consciência. 3. Diferenciar as várias propriedades da atenção. 4. Diferenciar os estados normais, alterados e patológicos da consciência e da atenção. 5. Realizar a semiologia da consciência e da atenção.
inter-relações '. É uma visão íntima e pessoal da realidade, podendo ser traduzida como "de que forma as coisas são encaradas". O problema da consciência tem representado um grande desafio a diversas áreas do conhecimento, desde as neurosciências até a psicologia e a filosofia 2•3 • Reflexões sobre o existencialismo e sobre a percepção do mundo são frequentes. "O ser humano é o único provido de consciência ou outros animais e até mesmo os novos computadores a possuem ?"4 -6 . "De que forma mente e cérebro interagem na sua formação?" 7 • Como se pode ver, um só
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SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
capítulo neste livro seria pouco para abordar todos os aspectos da consciência, tendo em vista a grande curiosidade e a gama de dúvidas que o tema suscita. A visão de consciência torna-se ainda mais complicada se forem considerados os aspectos culturais e sociais que a ela se associam. Sabe-se que a sociedade favorece ou reprime diferentes formas de consciência. Na cultura ocidental, por exemplo, há favorecimento da vigília concentrada, em detrimento da vigília relaxada. Nessa perspectiva, também são negligenciados ou "patologizados" outros aspectos da consciência bem vistos em outras culturas, como os estados de meditação ou os transes xamânicos. Neste capítulo, porém, o tema será abordado do ponto de vista médico -psiquiátrico, sem desprezar, contudo, a importância das outras perspectivas. A consciência envolve diversos processos mentais que têm como objetivo a elaboração e a integração de diferentes tipos de informação (sensopercepções, representações, memórias, pensamentos, impulsos, desejos, afetos e comportamento motor). Além disso, possibilita o controle da ação de maneira flexível e adaptativa, principalmente por meio do uso dos mecanismos volitivos8 •
Importância evolutiva da consciência Durante a evolução dos seres vivos, o desenvolvimento da consciência representou uma grande vantagem adaptativa, na medida em que permitiu a transição de processos automáticos e involuntários para os processos conscientes5' 6'9 . Por meio do recrutamento de informações adquiridas no passado, o organismo é capaz de estabelecer diferentes conexões e formar novos conhecimentos. Com isso, tem melhor controle de suas ações porque percebe os estímulos com maior clareza, analisa a situação adequadamente, reorganiza suas prioridades e assim adapta sua resposta. Se porventura nota que há equívocos pelo caminho, é capaz de corrigi-los. Perde tempo nesse procedimento, mas ganha flexibilidade e precisão. Também é necessário destacar que todo processo descrito acima implica algum aprendizado, que permitirá um planejamento de futuro e que os mesmos erros sejam evitados9 • Para clarificar esses conceitos, imagine-se a resolução de um problema complexo de matemática nunca visto antes. Ao ler o enunciado e se deparar com a dificuldade da questão, deve-se parar, pensar, estabelecer como prioridade a resolução do problema em detrimento de outros estímulos ambientais e conversar com a própria mente, a fim de acessar todo arsenal aprendido previamente - algarismos, operações simples, equações, derivações e o próprio raciocínio matemático. Nesse procedimento, perde-se um bom tempo, mas em contrapartida ganha-se a possibilidade de solucionar esse problema novo e complexo. Da próxima vez que se deparar com questão semelhante, é provável que se tenha mais facili-
dade de resolvê -la ou pelo menos se possa diminuir os erros cometidos previamente. Por fim, o desenvolvimento da consciência atinge seu ápice no ser humano, com o alcance da capacidade de reflexão. Diferentemente de outros animais, ele consegue ter um olhar voltado para "dentro". É capaz de perceber os próprios processos mentais. Nas palavras de Sartre, a consciência reflexiva "é a consciência de que é consciente de ser consciente do seu objeto" 10. Em consequência disso, o ser humano conquista vantagens, pois, entendendo sua própria mente, pode escolher quem, o que deseja ser e para onde quer ir. Ou seja, tem livre-arbítrio. Ademais, com o processo de reflexão, o homem é capaz de desco brir um sentido para a sua existência, imaginar-se no futuro e moldar suas ações a fim de atingir tais objetivos. Apesar de muitas contribuições teóricas e do avanço significativo das neurociências nas últimas décadas, ainda não há consenso sobre de que se trata verdadeiramente a consicência. Isso ocorre tanto por dificuldades intrínsecas do tema, como pela falta de clareza metodológica. Sendo considerada por alguns algo muito abstrato, me nospreza-se a possibilidade de clarificação do conceito. Acredita-se, porém, ser possível e necessária a descrição compreensiva e estruturada da consciência. Para isso, inicialmente serão abordados os aspectos objetivos da consciência, como se apresenta para um observador externo o indivíduo consciente, como é possível descrevê-lo. Em seguida, serão discutidos os aspectos subjetivos da consciência, como ela é vivenciada "de dentro". Também se discorrerá a respeito dos estados normais, alterados e patológicos da consciência, usando situações específicas como exemplos, com a finalidade de clarificar alguns conceitos importantes. Ao final, visa-se sistematizar a maneira de avaliar os diferentes aspectos por meio da realização de um exame do estado mental.
Aspectos objetivos da consciência Como abordado antes, a consciência envolve diversos processos mentais, que têm como objetivo a elaboração e a integração de diferentes tipos de informação. No ser humano consciente, a ação é controlada de maneira flexível e adaptativa. Este responde aos estímulos de maneira coerente e de acordo com necessidades e metas. As alterações da consciência mudam de maneira significativa uma série de capacidades e desempenhos, o que pode ser apreciado clinicamente ou avaliado experimentalmente. Chama-se o método psicopatológico que estuda as performances objetivas do psiquismo de psicologia dos rendimentos11. Sob essa perspectiva, podem ser avaliados os seguintes aspectos da consciência: vigília, alerta, atenção, responsividade, apercepção, orientação, cognição e curso da atividade mental. Os termos vigília, alerta e atenção definem três estados da mente que influenciarão de modo direto a consciên-
37 CONSCIÊNCIA E ATENÇÃO
Tabela I
Características dos estados normais da consciência Comportamento
Alerta
Padrão de atenção
Hipervigília
Acordado excitado, ligado
Muito excitável
Atenção involuntária i Atenção voluntária i
Vigília concentrada
Acordado concentrado
Nível de prontidão
Atenção voluntária i i Atenção involuntária i
Vigília relaxada
Acordado relaxado, desligado
Atenção livre flutuante
Atenção involuntária
B
Ritmo alfa
Sonolência
Sonolento
Acorda com estímulos leves
Atenção involuntária
i
Alentecimento da onda alfa
Sono leve
Dormindo
Acorda com estímulos moderados
Atenção involuntária i
i
Fusos
Sono profundo
Dormindo
Acorda com estímulos intensos
Atenção involuntária i
i i
Ondas lentas difusas
Sono REM
Dormindo, movimentos oculares rápidos
Acorda com estímulos intensos
Atenção involuntária i
i i
Dessincronizado
----+
I
·-----
SUJEITO
----------------
AMBIENTE
----+
I
•----- - - Aten ção voluntátia ------ Aten ção espontânea
• •
Estresse
Natureza e direcionalidade da atenção.
Figura 1
cia, alterando de que maneira ela se organiza e os rendimentos, capacidades e atividades adaptativas que ocorrerão nas diferentes circunstâncias (Figura 1). Podem ser considerados constituintes das "bases funcionais da consciência''. Na realidade, esses estados têm funcionamento simultâneo e interdependente, porém sua diferenciação tornará a descrição dos fenômenos da consciência mais didática e de mais fácil entendimento. Já responsividade, apercepção, orientação e curso da atividade mental definem propriedades do psiquismo que descrevem objetivamente o "nível de consciência''.
Vigília Como dito anteriormente, pode-se pensar a consciência como um conjunto de fenômenos mentais cujo substrato biológico é o cérebro. Nesse sistema, diversos conteúdos estão representados no córtex cerebral: afetos, memonas, Imagens, esquemas, sensopercepçoes e movimentos. Entretanto, um pressuposto básico para que se possa acessar esses conteúdos é estar acordado. No cenário proposto, pode-se imaginar que ninguém seria capaz de ler um livro dormindo. Ainda mais, podese pensar que uma pessoa sonolenta teria muito mais dificuldade de captar o conteúdo de um livro que um indivíduo plenamente acordado. Nesse contexto, o termo vigília refere-se a uma resposta primitiva, ativada no tronco cerebral, por meio do sistema ativador reticular ascenI
•
•
-
•
EEG
i
Desssincronizado Parcialmente sincronizado
dente (SARA), que regula o quanto acordado o indivíduo está. Esse sistema emite projeções nervosas desde a me dula espinhal, passa pelos núcleos talâmicos e espalha-se por todo o córtex cerebraF2 • A vigília tem um funcionamento cíclico, alternando entre estados normais de sono (REM e não REM) e vigília, cada qual com características, padrões comportamentais e eletroencefalográficos específicos (Tabela I) 13 . Além disso, é importante destacar que há graus variáveis de vigília (normo, hipo ou hipervigília) que influenciarão de forma direta a consciência, juntamente aos estados de alerta e de atenção, que serão descritos logo em seguida 14 •
Alerta (ativação/prontidão) Outra função central que influencia diretamente a consciência é o estado de alerta do indivíduo, também denominado estado de ativação ou prontidão. Ele referese à capacidade de reagir prontamente como consequência de um estímulo qualquer 12 • Estímulos novos, intensos e relevantes provocam reações mais intensas e rápidas e aumentam o nível de alerta. Considerando-se o cenário já discutido, é mais difícil ler um livro técnico em um dia qualquer do que na véspera de uma prova. Antes da prova, o indivíduo fica em estado de excitação e pensa: "tenho que me esforçar, quero mostrar que sou bom!" Nesse momento, a leitura flui. Nada é capaz de distraí-lo, tudo fica mais fácil de entender. Infelizmente, esse entusiasmo dificilmente ocorrerá dois meses antes de sua prova, naquela tarde de do mingo ou enquanto se distrai com a bela paisagem da praia e esquece que sua vida também é feita de responsabilidades. Contudo, na mesma véspera de prova, pode fi car tenso demais e isso fará com que tenha muita dificuldade de realizar a leitura. Não consegue se concentrar, só fica pensando nas consequências de um possível fracas so e nas retaliações que sofrerá. As palavras se confundem e tem de ficar voltando várias vezes ao parágrafo anterior, pois não gravou nada do que leu.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
Nível ótimo de alerta
Esquecimentos Erros Autocobra nça Desorientação Perda do autocontrole Sintomas somáticos doecimento
o cQ)
E
-o á} 0::
Calmo
Concentrado
Estressado Alerta
Figura 2
Lei de Yerkes-Dodson.
Portanto, como ocorre na vigília, o estado de alerta apresenta uma gradação contínua entre situações de hipo, normo e hiperalerta, que biologicamente estão intimamente relacionadas ao grau de ativação do sistema nervoso autônomo. Em situações de ativação do sistema simpático, com consequente descarga de adrenalina e elevados níveis de cortisol, há predomínio dos estados de excitação e hiperalerta. Assim ocorre nas guerras e em situações de estresse e medo (vide exemplo da véspera de prova). Em contrapartida, quando o sistema parassimpático é ativado, há predomínio dos estados de relaxamento, tanto físico como mental (vide exemplo em situação de praia). Esses variados estados de alerta vão determinar diferentes níveis de consciência, influenciando a clareza com que o sujeito percebe as situações e a precisão com que executa seus atos. Portanto, os diferentes estados de alerta vão interferir no desempenho do indivíduo para as mais diversas atividades, adquirindo graficamente a forma deU invertido, o que se denomina Lei de Yerkes-Dodson (Figura 2) 15 • Até certo ponto, o alerta aumenta o rendimento do indivíduo, mas a partir daí o desempenho cai. Consequentemente, existe um nível ideal de alerta, que corresponde ao melhor rendimento possível da consciência, representando uma situação de equilíbrio entre sistema nervoso . , . . , . s1mpat1co e parass1mpat1co. Dando continuidade ao exemplo, se no dia da realização da tão esperada prova o indivíduo estiver muito relaxado, provavelmente não terá um bom desempenho fica desatento, maneja pior seu tempo e permite que erros inocentes aconteçam. Da mesma forma, contudo, se estiver muito tenso ou muito alerta, também poderá falhar - dará respostas mais impulsivas e menos precisas, qualquer estímulo exterior desvia o foco da tarefa, compro metendo assim o resultado final.
Atenção A atenção é responsável pelo direcionamento da atividade mental consciente. As atividades mentais do indivíduo podem ser direcionadas tanto para o ambiente exter-
no, como para o mundo interior. Na atenção externa, o alvo está no ambiente. Ou seja, pode-se perceber as cores do dia, o cheiro que vem da cozinha, a música que toca ao fundo, as pessoas que passam pela rua, o calor do ambiente, o conteúdo de um livro etc. Na atenção interna, a percepção volta-se para o mundo interior - para os pensamentos, memórias, preocupações e estados de ânimo (Figura 1) 14 • Um determinado tipo de atenção está associado ao alerta, quando ao responder a um determinado estímulo, de maneira involuntária, os sentimentos são dirigidos para ele. Diz-se que o estímulo chamou a atenção. Nesse caso, ocorre a denominada atenção espontânea. A atividade mental direcionada pela atenção espontânea é passiva e incidental. Já por estímulo da vontade, com maturidade e bastante treino por se tornar disciplinada e programada de acordo com os interesses do indivíduo. Para isso, entra em ação a atenção voluntária, que requer do indivíduo esforço ativo. Ao contrário, a atenção espontânea pode causar distração da tarefa principal (Figura 1) 14, 16 • Voltando ao cenário descrito, é véspera de prova e precisa estudar. Os amigos chamaram para sair, mas dessa vez não poderá ir. Por sorte, gosta da matéria e começa a ler o livro com boa disposição em seu quarto. Porém, após 15 minutos de leitura, ouve um estrondo na rua que chama a atenção. Uma batida feia entre dois carros na esquina de sua casa! Logo os bombeiros chegam. A pessoa fica com curiosidade, mas nesse momento teme não conseguir tirar uma boa nota e volta para a leitura. Durante a realização de atividade mental programada, o indivíduo necessitará dispender de maior esforço para a realização de tarefas difíceis, por meio do uso de sua capacidade de concentração, assim como durante a realização de tarefas longas, por meio do uso de sua capacidade de tenacidade 14 . Ao voltar para a leitura, a tarefa já não é tão simples. Começa a ler um capítulo particularmente difícil e isso exige maior esforço. Mesmo assim, tem dificuldade de compreender a matéria. Finalmente, inicia um capítulo mais fácil e a leitura volta a fluir. Porém, passam-se duas horas de estudo e começa a vir o cansaço. Mais uma vez, a leitura e a compreensão tornam-se tarefas difíceis. Enfim, decide parar por alguns minutos e recarregar sua energia. Portanto, fica evidente que a atenção não é algo constante e influencia o grau de consciência ou clareza com que se consegue perceber as coisas - no caso, a flutuação dos estados atencionais modifica diretamente a capacidade de compreensão do livro por parte do leitor. Como observado no cenário descrito, a capacidade de compreensão de qualquer conteúdo mental é limitada e varia de acordo com o exercício das funções atencionais. Portanto, pode-se definir a atenção como o fenômeno pelo qual se processa ativamente essa quantidade limitada de informações do enorme montante de informações disponíveis por meio dos sentidos, das memórias armazenadas e de outros processos cognitivos. Entre os
37 CONSCIÊNCIA E ATENÇÃO
diferentes tipos de processamento atencional voluntário, que facilitam a rotina e a resolução das mais variadas tarefas no dia a dia, destacam-se os seguintes: seleção, vigilância, sondagem, divisão e alternância. Quando se vai realizar qualquer tipo de tarefa, continuamente deve-se priorizar alguns estímulos em detrimento de outros. Por exemplo, ao ler um livro é preciso ignorar os ruídos externos, informações do texto irrelevantes e o desconforto com o calor do dia para compreender o essencial da leitura. A esse processo é dado o nome de seleção, uma das atividades fundamentais da atenção voluntária que permite a manipulação dos estímulos com a finalidade de possibilitar a execução de processos cognitivos mais complexos, como a resolução de problemas e a compreensão verbal 17•18 • A vigilância refere-se ao procedimento de constante expectativa na busca de um estímulo específico. Nesse caso, o estímulo perseguido é raro e só aparece eventualmente no campo de percepção. Imagine-se o caso dos controladores de espaço aéreo, que ficam observando continuamente o monitor em busca de um sinal de alerta no radar. Essa observação tem um caráter flutuante até o momento em que um sinal é percebido. Ele pode ainda representar um alarme correto (p. ex., avião inimigo invadindo espaço aéreo) ou um alarme falso (p. ex., interferência sonora no equipamento) 17•18 . Diferentemente da vigilância, em que a busca do estímulo é passiva e flutuante, no processo de sondagem, o indivíduo busca ativamente um estímulo específico. Nesse caso, sabe-se onde e o que procurar. Imagina-se um radiologista fazendo um exame de ultrassonografia abdominal em caso suspeito de colecistite aguda. Este irá posicionar adequadamente o transdutor no abdome do paciente, tentará encontrar a vesícula biliar na cavidade e possíveis cálculos dentro dela. Esse processo é feito com atenção e detalhamento, tendo cuidado para não se distrair com artefatos ou interpretar equivocadamente alguns achados 17•18 • Outra atividade que merece destaque é a divisão, que corresponde à capacidade de realizar mais de uma tarefa ao mesmo tempo (p. ex., ler um livro com televisão ligada ou dirigir falando ao telefone celular). É importante notar que nesse contexto algumas tarefas são executadas de maneira automática e outras de forma controlada. Quantas vezes ao falar ao celular enquanto dirige o indivíduo não se dá conta do caminho que fez, o que causa boa parte dos acidentes de trânsito. Pode também acontecer o contrário: não prestar tanta atenção na conversa com medo de um possível acidente e dirigir com maior cuidado 17•18 . Por fim, muitas vezes tem-se de alternar o foco de atenção entre diferentes tarefas, como ocorre nas linhas de montagem ou enquanto se assiste a uma palestra e se quer fazer anotações. Nesse caso, a atenção é dirigida para o palestrante no momento em que ele discursa e rapidamente volta-se para o caderno ao realizar algumas ano tações. Isso ocorrendo repetidas vezes como em um ciclo
contínuo de troca entre esses diferentes focos atencionais: "ouvir a palestra" vs. "fazer anotações" 17•18 •
Responsividade A consciência provê o indivíduo de um comportamento altamente interativo com o ambiente. Pacientes com reduções do grau de consciência apresentam como características marcantes alterações, reduções e interrupções da capacidade de resposta ao meio. Uma primeira estratégia da avaliação da consciência é a testagem do grau e padrão de responsividade. Mesmo indivíduos acordados e alertas podem apresentar alterações profundas da responsividade.
Apercepção O processo sensoperceptivo se inicia com a recepção de estímulos simples pelo sistema nervoso, o reconhecimento de padrões complexos em modalidades sensoperceptivas específicas e, finalmente, o reconhecimento de um significado. Esse último processo é chamado de apercepção1 1. Um mesmo conjunto de estímulos pode serreconhecido com significados distintos, dependendo da ambiguidade do objeto, do contexto global e do estado psíquico. Indivíduos com alterações da consciência têm o seu processo aperceptivo lentificado e prejudicado, dando origem a falsos reconhecimentos, mudanças súbitas e frequentes de significado do percebido e ilusões. Da mesma forma, palavras, frases e textos são apreendidos pelos seus significados. O indivíduo com problema de apreensão tem dificuldade de compreender o que lhe é perguntado, particularmente as perguntas longas e difíceis.
Orientação A orientação é um processo aperceptivo altamente complexo que permite ao indivíduo reconhecer e dar o significado correto ao conjunto global de estímulos do seu momento atual 11 • O ser humano é orientado autopsicamente e alopsiquicamente. A orientação autopsíquica situa-o em relação a si mesmo. A orientação alopsíquica situa-o em relação ao meio, sendo dividida em orientação temporal e espacial. A orientação espacial situa-o em relação ao ambiente físico. Alterações primárias da consciência provocam prejuízo da capacidade de orientação. Geralmente, é afetada em primeiro lugar a orientação temporal, em seguida a espacial e, por último, a pessoal. Por ser um processo cognitivo complexo, a orientação também se altera em várias outras condições psicopatológicas nas quais alterações da consciência não estão envolvidas 14•16 •
Cognição A consciência tem um papel central para a atividade cognitiva em geral. Em todas as ocasiões com que um in-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
divíduo se confronta com situações cognitivamente desafiadoras, ele deve antes se concentrar, estudar detalhadamente, compreender o problema, para então resolvê-lo. As funções atencionais e aperceptivas da consciência são centrais para isso. Para o registro, memorização e recuperação, para o exercício de habilidades visuoconstrutivas, para a realização de cálculos, leitura de textos e outros, a integridade da consciência é essencial. Quando a consciência se degrada, o rendimento cognitivo se torna globalmente prejudicado, o que pode ser constatado em diferentes testes neuropsicológicos. Por isso eles podem ser utilizados para uma avaliação indireta do estado da consciência.
Curso da atividade mental O indivíduo consciente demonstra lucidez mental e propósito de comportamento. Com isso se quer dizer que todos os seus processos mentais são direcionados e coerentes. Ele pensa e conversa de acordo com as regras gramaticais e de acordo com os argumentos que quer defender. Seu discurso tem começo, meio e fim e percebe-se aonde quer chegar (ou seja, qual a sua ideia principal). Da mesma forma, seu comportamento demonstra a mesma tendência. Ele não é caótico ou despropositado. Uma marca fundamental dos estados de consciência patológicos é a chamada confusão mental. O curso do pensamento é errático e pouco compreensível, com falhas na associação de ideias".
Aspectos subjetivos da consciência Como dito anteriormente, a consciência provê a mente de subjetividade e, para descrever adequadamente os atributos mentais, torna-se necessária a abordagem dos aspectos subjetivos da vida mental consciente. A discussão a respeito da possibilidade de se construir conhecimento científico sobre esses atributos, que não são diretamente observáveis, é longa e está fora do escopo deste capítulo. Basta dizer que o instrumento para isso é a fenomenologia, método psicopatológico empírico, de caráter descritivo, não explicativo e cujo objeto de estudo é a descrição rigorosa e posterior classificação dos fenômenos psicológicos subjetivos. Ela tem como pressupostos a possibilidade de objetivação da vida psicológica interior e o papel central da empatia e da introspecção". Sob a perspectiva fenomenológica e de forma didática, pode-se estudar a consciência da seguinte maneira: atributos básicos da consciência, níveis da consciência, campo da consciência e estrutura da consciência.
Atributos básicos da consciência Os atributos básicos da consciência referem-se às características necessárias e sem as quais nenhum organismo seria capaz de ter consciência. Portanto, não são características exclusivas do ser humano, mas de qualquer
animal consciente. Pode-se destacar os seguintes atributos básicos da consciência: subjetividade, intencionalidade, mudança, continuidade, seletividade, unidade e totalidade ou integração. Deve-se partir do pressuposto de que não há consciência sem subjetividade, e isso implica na constatação de que o sujeito se opõe aos outros sujeitos, aos objetos em sua volta e também ao mundo que o cerca. Dessa forma, o organismo é capaz de perceber e interagir com o ambiente de maneira íntima e pessoal9,13 . Também não existiria consciência sem a intencionalidade9'13. Os seres vivos conscientes vivem com propósitos, como sobreviver e procriar. Para isso, são dotados de instintos, que lhes dão direcionamentos. Assim, pode-se entender que o comportamento de um animal tem um significado, ou intenção. Mesmo a sensopercepção não é neutra, mas sim claramente direcionada, pois é fácil de se supor que um animal deve ter extrema facilidade de reconhecer um padrão senso perceptivo que significa um predador. Por exemplo, ao imaginar um cachorro que quando vê uma bolinha corre em sua direção pode-se concluir que ele executa essa tarefa de maneira intencional. Da mesma forma, os seres humanos, quando vão comer algo ou passear por algum local, fazem isso porque têm a intenção de fazê-lo. Ainda mais, fazem isso de uma maneira única. Ou seja, embora possam visitar os mesmos lugares e experimentar os mesmos sabores, a percepção do que foi vivido é em sua essência única e pessoal. No entanto, pode-se imaginar que não nascem completos. Ao longo do tempo, a mente se modifica. Passa-se a pensar, a ver e a interagir com o mundo de forma diferente. Opiniões tidas como verdadeiras no passado tornam-se equivocadas, aprende-se a enxergar o mundo de maneira diferente, planejamentos prévios são revistos e desfeitos, e isso dá um caráter de mudança à consciência9' 13 • Pensese no exemplo já citado - quem nunca visitou o mesmo lugar várias vezes e não teve uma percepção completamente diferente do local? Quem nunca mudou de ideia a respeito de determinado assunto? Mas é importante notar também que mudança não implica esquecimento. A consciência dá um sentido de continuidade perante o que foi vivido9' 13 • O sujeito não se torna outra pessoa pelo simples fato de ter mudado de ideia ou vivenciado outras coisas. Não esquece quem foi nem quem é, mas está em constante transformação e aperfeiçoamento. No fim, a soma de todas essas experiências, de todas essas transformações, fará parte de sua construção como indivíduo e como ser consciente (integração) 9'13 . Além disso, é importante entender que cada indivíduo tem uma experiência de vida única ao longo do tempo. É claramente absurdo pensar que para um organismo sobreviver, ele poderia abrigar duas centrais conscientes com propósitos distintos. Portanto, a consciência também dá um sentido de unidade9'13 .
37 CONSCIÊNC IA E ATENÇÃO
-
.. (tl
Ti
c
Consciência reflexiva
Autoconsciência
- ~ ----------------- .. r
Consciência focal
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u
Introspecção Sensopercepção, imagens mentais, fala interna, pensamento conceitual, memórias, afetos e vontade conhecidos
o
Z(tl
g--..-----------------------------------------------<],). ...
Consciência primária -===--------=::::::!11
..
Consciência periférica
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Estímulos vagamente conhecidos
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Informações na memória de curto prazo
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Estímulos não percebidos conscientemente, mas acessíve1s
Alto
Memórias acessíveis com esforço
Médio
.(0
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Baixo
Memórias dificilmente acessíveis
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~
,, Nenhum
Análise sensorial precoce
Processos automáticos
Memórias inacessíveis
----------------------------1----------------r-----------------l -------------Informações sensoriais
Figura 3
Memórias facilmente acessíveis
Memória de procedimentos e hábitos
Memória declarativa (semântica episódica)
Níveis da consciência.
Por último, outro atributo básico da consciência que merece destaque é a seletividade9•13 . Ou seja, pode-se dirigir a consciência para atividades que interessem mais e deixar de lado as que se julga menos importantes. Esse conceito será aprofundado um pouco mais adiante, quando será discutido o campo ou amplitude da consciência. Nesse momento, a descrição da consciência pode parecer um tanto abstrata. Porém, será visto mais ao fim do capítulo que os atributos básicos da consciência podem estar alterados em determinadas situações psicopatológicas e isso facilitará o entendimento do assunto.
Níveis da consciência Foi dito anteriormente que um indivíduo vigil e alerta percebe e compreende de maneira clara o ambiente que o cerca, seus conteúdos mentais e suas ações. A metáfora da claridade com que um foco de luz ilumina seus objetos e os diferentes níveis do contínuo de claridade desse foco é bem satisfatória para a compreensão do que é chamado níveis de consciência. Existem basicamente três diferentes níveis de consciência: não consciência, consciência primária, consciência superior, consciência clara e consciência obnubilada (Figura 3) 11 •13 • Como já descrito, esses diferentes níveis podem ser encarados de maneira horizontal - como relacionados à progressão evolutiva da consciência nos organismos vivos, no quais houve a transição de processos automáticos e involuntários para os processos conscientes - ou podem ser vistos de maneira vertical - em que esses três níveis coexistem no mesmo indivíduo, cada qual com suas características e seus processos específicos (Figura 3). Nesta seção, será abordada a consciência no ser humano em todos os seus níveis, por ser ele o objeto de maior interesse.
Não consciência Primeiramente, é necessário observar que existem diferentes níveis de não consciência. Desde um incons ciente extremo - no qual só é possível registrar as informações sensoriais, mas não percebê-las - até uma área de transição ao nível consciente (Figura 3). Quando se caminha ou se toca algum instrumento, quando se escova os dentes ou se anda de bicicleta, pro vavelmente não se dá conta de como isso é feito. Trata-se do hábito, do costume, da memória para os procedimentos mais básicos que refletem programas cognitivos e sensório-motores automáticos. Estão ligados, portanto, a aspectos da memória não declarativa de longo prazo e não apresentam acesso algum à consciência. As respostas emocionais, como o medo ou a alegria, também se enquadram nesse nível. São sentimentos despertados de maneira inconsciente e condicionada. Por exempio, após ouvir um grito de horror, fica-se imediatamente assustado e só depois se consegue refletir a respeito do ocorrido. Porém ao considerar a memória declarativa de longo prazo, tanto semântica como episódica, percebe-se que seus conteúdos transitam entre regiões totalmente inacessíveis à consciência até regiões mais facilmente acessíveis à consciência. Por exemplo, todos se lembram do ataque terrorista ocorrido no dia 11 de setembro de 2001. Essa não é uma memória em que se está focado o tempo todo, mas que é facilmente acessível quando a pessoa é impelida a lembrar. Associa-se essa data diretamente ao evento terrorista. Diferentemente, o indivíduo lembrará com maior dificuldade o que almoçou naquele dia. Afinal, sempre se come e não é frequente um ataque terrorista de tal magnitude. Porém, ao fazer um esforço e tentar estabelecer algumas conexões (como onde estava quando ouviu a notícia; em que restaurante costumava ir; por quais pessoas estava acompanha-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
---· ---· --.
•
__ ~ Periferia
-:=.-::.-------··-=---------· ---------- --~--
Foco
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SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
..
, ,..- Pe ,"' , ,, ,,,, , , ,__ .....
---___ ..... ----•=====--------· -.;--... -----------· --........... ...
Consciência superior ou reflexiva
1a
~
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Foco
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..................... ............
Periferia
,
Amplitude do campo da consciência
..
p . . . • . l V
-----------------t-------------------. (Atenção)
Maior concentração
Figura 4
Maior relaxamento
Campo da consciência.
do) terá mais chances de lembrar o que comeu naquele dia. Ou seja, existem memórias que são mais acessíveis e outras menos acess1ve1s a consc1enCia. Por fim, pode-se imaginar ainda que existem também algumas motivações que são inacessíveis à consciência. Tome-se como exemplo a pessoa que opta por seguir na carreira médica. Obviamente há motivações conscientes para essa escolha (carreira estável, poucos médicos no mercado de trabalho e possibilidade de algum retorno financeiro futuro), porém há outras nem tanto (exemplo hipotético: desejo de cuidar das pessoas, pois se sentiu abandonado quando ficou doente em sua infância). Como pode-se ver, o nível de não consciência não se refere somente ao nada, ao que não é percebido, mas sim a um conjunto complexo de conteúdos e procedimentos mentais que podem se aproximar ou não da cons." . Ciencia. I
•
'
• A
Por meio da consciência superior ou reflexiva ( também chamada de metacognição), é possível dar conta dos próprios processos mentais. Não só se percebe, mas pode-se refletir sobre eles, evitá-los, desejá-los, transformálos. O ser humano é capaz de usar da introspecção e de descobrir coisas sobre si antes desconhecidas, o que leva à autoconsciência e às revelações (insights) 9' 11 • Mas também por meio dessa capacidade, é possível olhar no fu turo, onde estará e como será em consequência dos atos, podendo decidir se quer continuar por esse caminho ou, por meio do uso da deliberação e da vontade, seguir caminhos diferentes. De certa forma, isso é o que provê do assim chamado livre-arbítrio.
•
Consciência básica ou primária Na consciência primária, além de registrar, pode-se perceber as diferentes informações e reagir segundo as intenções (desejos, inclinações) (Figura 3). Nesse nível, os conteúdos mentais (sensopercepções, representações, memórias, pensamentos, impulsos, desejos, afetos e comportamento motor) são vividos de maneira direta e permitem uma reação do organismo9' 12 • Por exemplo, enquanto se está deitado no sofá, assistindo a um filme, pode-se perceber as imagens e o som da TV Ao mesmo tempo, alguns pensamentos passam pela mente, lembrase uma conta que deve ser paga ou de alguém que se precisa encontrar. Da mesma maneira, pode-se sentir ocalor na sala e o som do ambiente. Todas essas sensações desencadearão uma resposta no indivíduo - ligar o ar condicionado, pausar o filme por um instante e pagar a conta, ou ligar para a pessoa que encontrará mais tarde. Todas essas reações são conscientes e intencionais, desencadeadas pela percepção do indivíduo de seus conteúdos mentais e do ambiente que o cerca. Algumas situações patológicas, porém, alteram a forma de perceber as informações e consequentemente desencadeiam ações equivocadas do organismo.
Consciência clara e consciência obnubilada Ainda é possível utilizar da metáfora do foco de luz com diferentes níveis de claridade para, de um ponto de vista, predominantemente clínico, classificar os diferentes graus com que se vivencia os conteúdos mentais conscientes. Fala -se assim de consciência clara, quando se está plenamente consciente, e de consciência obnubilada quando a clareza dos conteúdos não alcança essa plenitude 11 .
Campo da consciência A metáfora do foco de luz iluminando um objeto é também útil para explicar o que é conceituado como campo da consciência. Além de ser dotado de um certo grau de iluminação, um foco de luz pode ser mais estreito, ou mais largo, possibilitando a visualização de um número menor ou maior de objetos. Além disso, os objetos que estão no centro do foco estão mais bem iluminados, enquanto os da periferia estão em uma espécie de penumbra que é cercada pela escuridão completa (Figura 4) 9,ll. Basicamente, pode-se definir como campo da consciência o conjunto de diferentes possibilidades de percepção do mundo. É a maneira como a consciência é utilizada: ativamente (consciência focal) ou passivamente (consciência periférica). Na consicência focal, o indivíduo está concentrado na tarefa que executa (p. ex., ler um livro), mas isso não o impede necessariamente de ver o todo, a chamada consciência periférica. Consegue perceber também, embora de ma. . , . ne1ra ma1s vaga, o carro que passa na rua, a musiCa que toca, o seu estado de humor, alguns pensamentos que correm vagamente por sua cabeça, o calor do dia, suas preocupações, suas emoções, suas expectativas etc. Define-se como amplitude do campo da consciência todas essas possibilidades de percepção - ou seja, a soma entre os estados de consciência focal (mais nítida) e periférica (mais vaga). Esses estados estão intimamente ligados aos processos atencionais e ao atributo de seletividade da consciência.
37 CONSCIÊNCIA E ATENÇÃO
ATRIBUTOS DO EU Existência/Unidade/ Identidade/ Atividade/ Oposição/ Personalidade ESTADOS DO EU: Sentimentos/Emoções/ Estados de ânimo "MOTIVOS" DO EU Impulsos/Instintos/ Vontade/Consciência do arbítrio "REFLEXÕES" DO EU Pensamentos/ Intenções/ Desejos
Figura 5
VIV~NCIA (TOTALIDADE)
I I I I I
~
OBJ I
I I I
m:co CONTEXTO Corpo/Tempo/Espaço
ATRIBUTOS DO OBJETO Percepção x Representação Material x Imaterial Externo x Interno Definido x Indefinido Passivo x Voluntário Divisão perceptiva Intensidade Siginificação ATRIBUTOS DAS VIV~NCIAS: Realidade/ Familiaridade Clareza/ Nitidez/Abrangência
Estrutura fenomenológica da consciência.
Estrutura fenomenológica da consciência
O mundo vivido tem forma. Essa afirmação parece bem estranha e, no mínimo, poderia ser considerada mera platitude. No entanto, quando se observam as alterações formais da consciência dos doentes mentais, ela se enche de sentido. Caso se queira descrever fenomenologicamente como se vive o mundo subjetivo, é preciso falar de: vivência, fenômeno, consciência do eu, consciência do objeto, aspectos contextuais das vivências e atributos das vivências (Figura 5). A consciência pode ser vista como um fluxo de mo mentos vividos, que se perdem no passado, ligados ao momento presente e caminhando para o futuro apenas visualizado. Cada um desses momentos subjetivamente vivenciados é chamado de vivência, e cada um dos conteúdos subjetivamente vivenciados é chamado de fenômeno. Em cada vivência experimenta-se o "eu" (sujeito) e o objeto. Embora se contraponham, estão em constante interação: o "eu" é surpreendido pelas imagens e percepções que capta do ambiente externo e da mesma forma é movido internamente por seus pensamentos, estados de ânimo, desejos e aspirações 11 • Sob a perspectiva fenomenológica e para tentar apreender com maior precisão a vivência de cada sujeito, pode-se imaginar que existe uma consciência do eu ("a maneira como me percebo") e uma consciência do objeto ("maneira como o objeto é percebido) 11 • As principais propriedades da consciência do "eu" são: existência do "eu': unidade do "eu': identidade do "eu': atividade do "eu': oposição do "eu" e consciência de personalidade. A não ser em algumas situações, especialmente de natureza patológica, cada indivíduo consciente tem dentro de si a consciência de que existe (existência do "eu"). Além de existir, ele se vê como único - ou seja, "não há outros de mim" (unidade do "eu"). Além de ser único, sabe que é o mesmo desde seu nascimento, que não se transformou em novo alguém (identidade do "eu"). Ele também percebe que é o senhor de suas próprias ações: "sou eu que faço, penso, executo" (atividade do "eu"). Diferencia-se do objeto que percebe: "eu sou diferente do mundo exterior e dos objetos que vejo - existe um limite
que nos separà' (oposição do "eu"). Finalmente, tem conciência de quem é e quais as suas características (consciência de personalidade) 11 . Apesar de parecerem propriedades um tanto abstratas, elas têm importância na prática clínica, pois alguns transtornos mentais podem alterar os atributos básicos da consciência do "eu': fornecendo pistas para o diagnóstico. Com relação à consciência do objeto, é necessário destacar que há diferentes formas de percebê-lo. O indivíduo pode observá-los diretamente no campo externo ou estabelecer uma representação dele no interior de sua mente. O objeto pode ainda tomar forma material, bem definida ou simplesmente ter um caráter imaterial, me nos nítido". É fundamental ainda observar que toda interação entre sujeito e objeto implica uma vivência pessoal, que é por princípio sempre diferente da experiência vivida por outra pessoa ou da experiência vivida em outro contexto de tempo e espaço. No entanto, provavelmente por conta de pressões de natureza evolutiva, o ser humano foi dotado da capacidade de perceber os objetos no contexto "real" em que eles ocorrem (ou seja, dentro de uma matriz de espaço/ tempo na qual o corpo se situa, constituindo o que é chamado de aspectos contextuais das vivências. Além disso, cada vivência experimentada recebe como que alguns carimbos, os atributos das vivências. Assim, cada momento vivido subjetivamente pode ser considerado familiar ou não, real ou não, definido ou não, e assim por diante. Após ter descrito as bases funcionais e os aspectos fenomenológicos da consciência, torna-se necessário discorrer sobre os diferentes estados da consciência. Eles podem ser divididos nos estados normais, alterados e patológicos.
Estados normais da consciência Os estados normais de consciência são a vigília, o sonho e o sono.
Estado de vigília Como foi dito anteriormente, um pressuposto básico para poder exercer a consciência de forma plena é que se esteja acordado. Só assim pode-se elaborar e integrar os diferentes tipos de informação a que se é submetido diariamente. Porém, é preciso destacar que há diferentes formas de vigília. Pode-se estar em estados de vigília concentrada ou vigília relaxada (devaneio) 9 (Tabela I). Nos estados de vigília concentrada, predominam os processos de pensamento secundários (ou seja, processos controlados, verbais e racionais sempre voltados para a adaptação à realidade). Referem-se, por exemplo, às ocasiões em que se executa alguma tarefa - como digitar um texto ou fazer uma conta. Nesse estado, é possível ainda
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
que a pessoa se comporte de maneira mais prática em consequência da rotina e das necessidades diárias. Em oposição, no estado de vigília relaxada há predomínio dos processos de pensamento primário (ou seja, aqueles espontâneos, imaginativos, visuais e voltados para gratificação). Um bom exemplo disso é a consagrada expressão "sonhando acordado'~ Quantas vezes a pessoa não se vê imaginando a próxima viagem à praia ou aquele j antar em um belo restaurante. No entanto, é necessário destacar que a temática do devaneio irá variar de acordo com a personalidade do indivíduo e seu estado psíquico-emocional. Por exemplo, caso estivesse mais triste o devaneio não seria tão agradável como descrito. Além disso, alguns indivíduos com padrões de personalidades anormais (embora não obrigatoriamente patológicos) podem dedicar muito tempo do seu cotidiano ao que é chamado de devaneio autístico, no qual fantasiam vidas em paralelo, muitas vezes compensatórias para as deficiências da realidade que os cerca.
Sono Há duas formas básicas de sono: REM e não REM. Nelas, a percepção do meio exterior e a interação do indivíduo com esse meio está comprometida. No entanto, estímulos externos e também internos podem acordar o indivíduo, devolvendo -o ao estado de vigília. O despertar pode acontecer com maior ou menor facilidade, variando o sono de leve a profundo (Tabela I). Na maior parte do sono não REM predomina a não consciência, embora alguns indivíduos, ao serem despertados de um estágio não REM, relatem algum tipo de atividade mental semelhante a sonho.
Sonho Caracteristicamente, durante o sono REM é vivenciado o estado de consciência de sonho. Nele predominam os processos de pensamento primário, que refletem com frequência questões individuais ou inconscientes das pessoas: neles ocorrem medos, afetos e desejos. Estão envolvidos com a gratificação e não se pautam pela razão e adaptação à realidade. Nos sonhos o indivíduo está literalmente "livre para sonhar'~ Predominam as imagens visuais, as falas e as conversações. Quem sonha sempre é protagonista da história (ou seja, toda vez há participação individual). Existem sonhos mais fantásticos e outros com maior apego à realidade 13 • Nos sonhos, a vivência de tempo e de espaço também se altera. O tempo pode parecer congelado ou passar muito depressa. Lugares distantes se aproximam, pode-se ter a percepção distorcida do próprio corpo, sentir-se leve ou . voar. ate' mesmo consegmr Por fim, há pouco espaço para a reflexão sobre o que se sonha e mesmo, na maior parte das vezes, não se tem
consciência de que está sonhando. Ao acordar de um pesadelo, a pessoa respira aliviada: "Ufa, ainda bem que era só um sonho". No entanto, ocasionalmente pode-se ter uma vaga consciência de que se está sonhando e interagir com o conteúdo sonhado, mas sempre em menor amplitude do que quando está acordado.
Estados alterados da consciência Os estados alterados da consciência fogem da normalidade, na medida em que modificam o padrão global das vivências do sujeito. São estados de curta duração, reversíveis e não estão associados a problemas mentais. Neles, os processos atencionais, a capacidade de alerta e de autocontrole, a vivência do tempo e do espaço, a percepção do corpo, dos afetos e das emoções se alteram 13 . Nesses estados ocorrem processos mentais de alto nível e complexidade, podendo ser desencadeados pela imaginação, fantasia ou até mesmo pela sugestionabilidade individual. A meditação, o êxtase, o transe e a hipnose são bons exemplos dos estados alterados da consciência. Será destacado aqui o estado hipnótico, com finalidade didática e ilustrativa. Na hipnose, há uma alteração qualitativa da consciência, em que o indivíduo perde sua autonomia e espontaneidade. Trata-se ainda de um estado transitório, no qual a amnes1a apos o evento e uma ocorrenCia comum, embora não obrigatório. Nesse estado, a consciência volta-se seletivamente para conteúdos mentais próprios autoinduzidos ou sugestionados por meio de comandos de outra pessoa e é frequente a encenação de papéis não habituais. A capacidade de crítica e de testagem da realidade ficam suspensas por causa do vínculo sugestivo (vínculo hipnótico) estabelecido com o hipnotizador 13 . Ao classificar a psicopatologia da consciência encontram-se as alterações características das bases funcionais da consciência, como os distúrbios do sono e os distúrbios da atenção; as desestruturações globais da consciência, que ocorrem nos estados patológicos da consciência; e as alterações de aspectos fenomenológicos de aspectos particulares das vivências, que ocorrem em diferentes condições psicopatológicas. O capítulo se focará nas descrições dos distúrbios da atenção e nos estados patológicos da consciência. ,
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A
•
Distúrbio da atenção Os processos atencionais podem estar alterados em diversas síndromes psiquiátricas. Essas alterações ocorrem no sentido de favorecer ou desfavorecer a atenção voluntária e/ou espontânea, ou até mesmo de abolir qualquer capacidade atencional. A alteração mais comum e menos específica da atenção é a sua diminuição global, também chamada de hipoprosexia. Esse tipo de alteração é muito frequente nos estados em que há lentificação dos
37 CONSCIÊNCIA E ATENÇÃO
processos mentais, como ocorre nas depressões mais graves, no delirium hipoativo e nos estágios mais avançados da demência de Alzheimer 14 . Podem ocorrer também alterações mais marcantes tanto da atenção voluntária como da espontânea. No caso de pacientes com transtorno de déficit de atenção, por exemplo, há comprometimento importante da atenção voluntária - o indivíduo tem dificuldade de se concentrar em uma única tarefa e acaba se distraindo com tudo em sua volta. Por sua vez, nos quadros maníacos, o que fica mais evidente é o aumento da atividade da atenção espontânea - entrevistando essas pessoas pode-se notar que se distraem facilmente com qualquer estímulo novo vindo do ambiente e não focam no diálogo estabelecido. Em contrapartida, em pacientes portadores de transtorno obsessivo compulsivo há direcionamento excessivo de sua cognição para seus pensamentos e rituais, com isso cria-se um déficit relativo da atenção espontânea 14•16 . Por fim, é importante salientar que sempre quando houver favorecimento de uma natureza específica da atenção (voluntária ou involuntária) a outra estará comprometida.
Estados patológicos da consciência De maneira similar ao que ocorre nos estados alterados da consciência, a estrutura global das vivências se modifica de modo pronunciado. De forma geral, nos estados patológicos da consciência, o nível ou o campo da consciência se modificam significativamente e a capacidade de compreensão do que ocorre à sua volta e consigo mesmo está bastante prejudicada, assim como a capacidade de registrar ou consolidar as informações eventualmente captadas. Quando se observa alguma alteração pronunciada na consciência do indivíduo, deve-se estar atento a possíveis processos patológicos que podem estar ocorrendo. São estados com diferentes características clínicas e gravidade. O que deve ser procurado? • Estados torporosos e comatosos. • Estados vegetativos e de consciência mínima. • Estupor. • Delirium (hiperativo e hipoativo). • Estados crepusculares, fugas e transes dissociativos. • Crises epilépticas e crises não epilépticas conversivas/ dissociativas.
Estados torporosos e comatosos O nível da consciência pode se apresentar desde um estado de consciência total, de alerta e cooperação, até um estado de arresponsividade completa, em que o indivíduo é incapaz de reagir a qualquer tipo de estímulo externo. Pode ser alterado em consequência de diversos fatores toxicometabólicos (p. ex., coma hiperglicêmico ), cardiovasculares (p. ex., hemorragias intracranianas) ou trau-
máticos (p. ex., lesão axonal difusa). Apesar de haver dificuldade na descrição dos diferentes níveis de consciência, pode-se classificá-los da seguinte forma: • Consciência normal (vigil): o indivíduo encontrase acordado e responde adequadamente aos estímulos externos. • Obnubilação: o indivíduo encontra-se sonolento e, na ausência de estímulos, volta a dormir. • Torpor: o indivíduo encontra-se desacordado e só desperta com muita dificuldade na presença de estímulos vigorosos e logo volta a dormir; sua psicomotricidade está extremamente diminuída, mas pode haver reações abruptas de defesa. • Coma: o indivíduo encontra-se inconsciente e não acorda mesmo sob estímulos intensos; não há qualquer tipo de atividade voluntária.
Estados vegetativos e de consciência mínima Os estados vegetativos e de consciência mínima podem ocorrer com mais frequência após o coma. Neles, a respiração e a função cardiovascular estão preservadas, mantendo -se certo nível de alerta e responsividade. Além disso, o paciente preserva o ciclo de sono e vigília. Pode apresentar alguma atividade automática, como a deglutição, o choro e o riso, mas não é possível a realização de respostas intencionais 12 •
Estupor No estupor, o indivíduo se mantém acordado e preserva o ciclo de sono e vigília. Seu alerta encontra-se aparentemente preservado, mas não se move ou fala. Há diminuição significativa de sua reatividade, podendo ocorrer sinais de catatonia19 • Na medida em que esse estado sereverte, o sujeito pode ou não se lembrar do evento.
Delirium (hiperativo e hipoativo) O delirium é uma síndrome confusional aguda em que há alteração do ciclo de sono e vigília e oscilação do nível da consciência. Por definição, pressupõe-se a existência de uma causa orgânica de base correspondente. O delirium tem duas apresentações clínicas básicas: delirium hipoativo ou hiperativo20•2 1. No delirium hipoativo, o indivíduo mostra-se sonolento, hipoalerta, desorientado temporoespacialmente e com lentificação psicomotora global. Pode apresentar desorganização do comportamento, fazer falsos reconhecimentos e na conversa mostrar discurso e pensamento incoerentes. No delirium hiperativo, o indivíduo também apresenta-se confuso, porém insone. Está hiperalerta como consequência de um estado de hiperativação autonômica, mas desorientado temporoespacialmente. Pode apre-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
sentar ilusões e alucinações visuais. Delírios ocupacionais ou fantásticos são relativamente frequentes. Há importante agltaçao ps1comotora e e comum o comportamento agressivo.
maneira inequívoca que se modificou, não é mais o mesmo, que seu temperamento se modificou 11 .
Estados crepusculares, fugas e transes d issociativos
Nas vivências delirantes de passividade do eu, opaciente psicótico esquizofrênico perde a noção de que os atos e pensamentos são seus, e os sente como vindos de uma agência externa 11 .
•
-
•
I
Nesses estados há estreitamento do campo da consciência. O foco atencional do indivíduo fica restrito a conteúdos internos específicos de sua própria mente: medos, afetos, impulsos, desejos etc. Pode-se observar comportamentos automáticos, impulsivos ou agressivos. Normalmente, são estados transitórios em que é frequente que o indivíduo não se lembre do ocorrido após o evento 19 .
Crises epilépticas e crises não epilépticas convers ivas/d issociativas São crises de início súbito e natureza passageira, na maior parte dos casos durando alguns minutos, mas ocasionalmente algumas horas. Podem ocorrer durante o sono ou a vigília. É importante lembrar que nem sempre são acompanhadas de alterações da consciência, mas serão discutidas aqui aquelas em que isso ocorre. Nas crises epilépticas tônico-clônicas generalizadas, o indivíduo perde subitamente a consciência e após um período de ocorrências motoras significativas (grande contração tônica e abalos clônicos envolvendo os quatro membros) passa por período relativamente breve de coma pós-ictal, ao qual se segue um período mais longo de recuperação gradativa da consciência, em que se apresentam desorientação e confusão mental. Nas crises parciais complexas, diferentes níveis de alteração da consciência podem ocorrer, desde as mais leves às mais pronunciadas, e nesses estados são acompanhadas por automatismos simples ou complexos, posturas e vocalizações. Após as crises epilépticas, há normalmente amnésia completa ou parcial do ocorrido.
Alterações da consciência do eu Serão apresentados alguns exemplos de alterações da consciência do eu, de relevância clínica.
Despersonalização Na despersonalização, a consciência da existência do eu se perde. Apesar de todas as evidências em contrário, que mesmo ele pode reconhecer como irrefutáveis, a noção de que ele já não existe mais não pode ser desfeita 11 .
Vivência de mudança de personalidade Na vivência de mudança de personalidade, o paciente acometido por um processo esquizofrênico sente de
Vivências delirantes de passividade do eu
Semiotécnica da consciência A avaliação da consciência começa com o contato inicial com o paciente e a sua observação, progride durante a conversação casual, aprofunda-se na conversação exploratória das suas vivências e termina com a aplicação de testes para avaliar seus diferentes aspectos. Obviamente, essa sequência pode se alterar, dependendo das condições do paciente ou dos objetivos específicos da avaliação do estado mental. Diferentes aspectos objetivos ou subjetivos da consciência são avaliados de maneiras distintas, em diferentes momentos da entrevista. Não se avalia cada um desses aspectos de maneira isolada, mas sim em conjunto com os outros. No entanto, neste capítulo, com o objetivo de salientar cada um dos aspectos de maneira didática, será feita essa separação de maneira artificial, mas proposital. Para avaliar a vigília, no contato inicial com um paciente, a primeira coisa que geralmente se observa é se ele está dormindo ou acordado. Se estiver dormindo, observa-se o grau de dificuldade para despertá-lo. Se ele desperta, observa-se se ele consegue manter-se acordado. Para os indivíduos que não acordam, há toda uma semiotécnica específica para a avaliação dos estados torporo sos e comatosos. O resultado de sua avaliação pode ser apresentado de maneira padronizada, por meio da escala de Glasgow. Se o paciente estiver acordado, ele parece sonolento, boceja durante a entrevista, ou cai no sono? Se deixado só, ele volta a dormir ou continua suas atividades sem parar? O alerta pode ser avaliado mediante a observação de um paciente acordado. Ele parece relaxado ou mesmo lento, apático? Ou, ao contrário, parece excitado, impaciente, inquieto, agitado? Durante a conversação, avaliase se há uma tendência para o paciente se distrair ou assustar com facilidade, até mesmo por pequenos estímulos. Para verificar os componentes autonômicos que acompanham o alerta, deve -se verificar seus sinais vitais, verificar se há taquicardia e hipertensão, se o paciente está sudoreico e se suas pupilas estão dilatadas. Para verificar os componentes emocionais de sua ativação, verifica-se a intensidade e o grau de controle das suas emoções. Durante a conversação avalia-se a atenção, verificando se o paciente parece atento, interessado no exame. Ele parece desatento? Se pedir a ele que realize uma opera-
37 CONSCIÊNCIA E ATENÇÃO
ção mental difícil, como ele desempenha? No decorrer da entrevista ou quando se pede que realize uma tarefa não tão difícil, mas especialmente longa, ele se cansa prematuramente? Queixa-se de fadiga mental? Pode-se avaliar a atenção voluntária de maneira detalhada, verificando seus diferentes componentes com a ajuda de testes neuropsicológicos. Mesmo ao "pé do leito': pode-se verificar a sua capacidade atencional por meio dos testes de dígitos ou ainda pedir para o paciente fazer adições ou subtrações seriadas; ou contar os meses do ano de frente para trás e depois de trás para a frente. Pacientes que apresentam alteração da responsividade podem se encontrar em mutismo ou estupor. Deve-se observar o olhar do paciente, chamá-lo pelo nome e tentar estabelecer contato visual. Verifique se ele responde a estímulos do ambiente. Pode-se testar a sua responsividade ordenando-lhe comandos simples e complexos. Solicita-se respostas por sinais ou por escrito, se possível. O indivíduo que apresenta uma deficiência da sua capacidade de apercepção irá apresentar dificuldade para compreender o que lhe é dito ou perguntado. Se forem feitas perguntas mais longas e difíceis, ele manifestará perplexidade e não saberá a resposta. Deve-se apresentar objetos e pessoas, conhecidos ou não, para ele identificar. Eles poderão ser reconhecidos de maneira ilusória. Em indivíduos com delirium pode-se testar a alteração aperceptiva por meio do teste da parede ou do papel branco, ou pelo teste do globo ocular. Já no início da entrevista pode-se verificar a orientação pessoal, ao perguntar dados pessoais. O indivíduo orientado com relação a si mesmo sabe quem é (isto é, seu nome e sobrenome, sua idade e data de nascimento, profissão, estado civil e outros dados pessoais). De ma-
Quadro I
neira padronizada, para avaliar se um indivíduo está temporalmente orientado, pergunta-se a ele a data, o dia da semana, a hora do dia e pede-se que estime a passagem de um certo período de tempo (p. ex., ele deve avaliar a duração da sua conversa). O indivíduo espacialmente orientado reconhece o tipo e nome do lugar onde se encontra, onde se situa em relação às vizinhanças, a distância e o caminho para chegar a ele. Em razão de o desempenho cognitivo apresentar um prejuízo global decorrente de alterações da consciência, utilizam -se os testes cognitivos como uma medição indireta dessas alterações. Assim, em pacientes com delirium pode-se utilizar o MMS ou teste do relógio de Shulman para esse objetivo. São interessantes também porque dão a oportunidade de quantificar e avaliar a evolução desses quadros. O curso da atividade mental pode ser avaliado em pacientes em delirium, quando observados no leito, pois eles frequentemente apresentam comportamento bastante alterado. Comportam-se como se estivessem em um sonho, interagindo com os seus conteúdos mentais, ora não percebendo o ambiente que os cerca, ora integrando o ambiente às suas fantasias alucinadas. Por vezes, na enfermaria, reproduzem as atividades que realizam no seu trabalho e comportam -se como se estivessem lá (o assim chamado delírio ocupacional). O comportamento é despropositado e caótico. O mesmo ocorre durante a conversação. O seu pensamento é confuso. Mesmo em pacientes sem quaisquer alterações das propriedades objetivas da consciência, pode-se ainda assim observar alterações psicopatológicas profundas nos seus aspectos subjetivos. Tais alterações podem ser avaliadas a partir da entrevista detalhada, quando se prati-
Semiotécnica da consciência e da atenção
Aspectos objetivos da consciência Vigília: Está dormindo ou acordado? É difícil despertar? Está sonolento ou "ligado"? Alerta: Está relaxado, lento ou apático? Parece agitado, impaciente ou inquieto? Se distrai com facilidade? Verificam -se sinais vitais e tamanho de pupilas para analisar componentes autonômicos, além de intensidade e grau de controle de suas emoções. Atenção: Parece atento? Está interessado no exame? Como é seu desempenho quando realiza uma operação mental difícil? Cansa- se facilmente na realização de tarefas longas? Queixa- se de fadiga mental? Responsividade: Deve- se olhar para o paciente, chamá- lo pelo nome e observar se estabelece contato visual. Responde a estímulos do ambiente? Dá- se comandos verbais simples até complexos. Deve-se solicitar respostas por sinal ou por escrito. Apercepção: Tem dificuldade de compreender o que é dito ou perguntado? Manifesta perplexidade diante de perguntas mais longas e difíceis? Ao mostrar objetos e pessoas conhecidas, identifica- os? Orientação: Pessoal: pergunta- se nome, idade, profissão, estado civil etc. Temporal: pergunta- se a data, dia da semana, hora ou quanto tempo está durando a entrevista. Espacial: pergunta-se em que lugar se encontra, qual é a distância até sua casa e como faz para chegar lá. Cognição: Na conversação há simplesmente uma ideia básica de possíveis prejuízos cognitivos. Os testes que avaliam a consciência e a atenção quantificam esses prejuízos. Curso da atividade mental: O comportamento é despropositado ou caótico? Seu pensamento é confuso? Há delírio ocupacional? Aspectos subjetivos da consciência Estrutura fenomenológica da consciência: Buscam- se alterações na vivência do eu. Autoconsciência: Conversões ou dissociações? Alteração na identidade? Amnésia dissociativa?
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro 11
•
SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
Testagem da consciência
Comandos verbais Comandos verbais (simples ~ complexos). Levante o seu braço direito. Aponte para a janela. Mexa o seu pé esquerdo. Ponha o dedo indicador direito na orelha esquerda. Pegue este papel com a mão direita, dobre ao meio e ponha no chão. Teste da parede Pede-se ao paciente que olhe atenta e fixamente para uma parede branca (ou papel grande branco). O paciente poderá, ao fazer isso, apresentar alucinações visuais simples ou complexas. Teste do globo ocular Pede-se ao paciente que feche os olhos. Pressiona-se levemente várias vezes os globos oculares (deve-se ter cuidado com o estímulo vagai, que pode induzir bradicardias). Após tal manobra, o paciente pode experimentar alucinações visuais simples ou complexas. Glasgow Parâmetro
Resposta
Escore
Abertura ocular
Espontânea
4
Estímulos verbais
3
Estímulos dolorosos
2
Ausente
1
Orientado
5
Confuso
4
Palavras inapropriadas
3
Sons ininteligíveis
2
Ausente
1
Obedece comandos verbais
6
Localiza estímulos
5
Retirada inespecífica
4
Padrão flexor
3
Padrão extensor
2
Ausente
1
Melhor resposta verbal
Melhor resposta motora
Escores de gravidade do coma: 1-4: muito grave; 5- 8: grave; 9-1 2: moderado; > 13: leve.
Teste do relógio Apresenta-se um círculo pré-desenhado com aproximadamente 1O em de diâmetro. Instrução: "Esse círculo representa um relógio. Por favor, coloque os números como em um relógio e então marque onze horas e dez minutos" (pode-se reforçar o comando de marcação da hora após o paciente colocar os números). Escore 5 - Relógio perfeito. Organização visuoespacial e hora corretos. Ponteiros partem do centro e números são igualmente distribuídos. Escore 4- Organização visuoespacial com erros menores Ompressão geral de relógio preservada), mas hora correta. Tolera-se espaço entre dois números de até um quarto da circunferência. Escore 3 - Organização visuoespacial com erros menores Ompressão geral de relógio preservada), mas hora incorreta. Escore 2 - Desorganização visuoespacial moderada e representação de hora impossível. Escore 1 - Desorganização visuoespacial grave (semelhança remota com o relógio). Escore O- Incapacidade de representação.
ca a chamada conversação exploratória, que tem como objetivo examinar de maneira detida os conteúdos subjetivos vivenciados pelo paciente. Ao realizar essa atividade, assume-se a chamada atitude fenomenológica: treina-se a "escuta sem pré-julgamentos", mantém-se o foco na perspectiva subjetiva, dá-se especial atenção à forma
das vivências, exercita-se a empatia para representar interiormente, compreender fenomenologicamente e posteriormente an alisar e classificar os fen ôm enos. Ao se perguntar, utilizam-se expressões que favorecem descrições formais (como, de que man eira etc.) e aplicam -se técnicas de esclarecimento (especificação, sondagem, in-
37 CONSCIÊNCIA E ATENÇÃO
Quadro 111
MEEM - Miniexame do estado mental
Orientação temporal (5) "Qual é o dia da semana/data/mês/ano/hora aproximada?" Um ponto por resposta correta. Orientação espacial (5) "Onde estamos agora?" "Qual é o local/endereço/setor/cidade/país ou estado?" Um ponto por resposta correta. Retenção ou registro de dados (3) ':Agora eu vou lhe dizer os nomes de três objetos. Quando eu terminar, quero que os repita e os guarde na memória: mesa, pente, árvore. Poderia repetir esses nomes por favor?" Um ponto por resposta correta (mudar a ordem não conta como erro). Atenção e cálculo (5) ':Agora eu gostaria que você tirasse 7 de 100 e então continuasse contando para trás, tirando 7 de cada então: "Poderia soletrar mundo de trás para a frente por favor?" Um ponto por letra correta em odnum.
vez:• Um ponto por resultado correto. Ou
Memória (3) "Poderia me dizer agora os nomes dos três objetos que eu lhe falei há alguns minutos atrás?" (mudar a ordem não conta como erro). Um ponto por resposta correta. Linguagem (2) (Mostre lápis, mostre relógio) "O que é isto?" Um ponto por nome correto. (1) "Por favor, repita depois de mim: Sem ses, es ou mas:· Um ponto caso não haja nenhum erro. (3) (Aponte papel) "Pegue este papel com a sua mão direita, dobre-o ao meio e coloque-o no chão:· Um ponto por ato correto. (1) (Mostre papel com a frase escrita: "Feche os seus olhos") "Por favor, leia esta sentença e faça o que ela diz:· Um ponto se ele fechar os olhos. (1) (Dê lápis e papel) "Por favor escreva uma sentença aqui." Um ponto se for escrita uma sentença completa e inteligível. Construção (1) (Mostre pentagramas. Dê lápis e papel) "Por favor, copie este desenho:· Um ponto se o desenho lembrar a figura. Contagem total: 30. Alteração cognitiva: analfabetos < 15; 1- 11 anos de escolaridade < 22; escolaridade maior que 11 anos < 27.
ter-relacionamento, sumário) para tornar as descrições mais claras. Pode-se dessa maneira estudar as diferentes alterações fenomenológicas da consciência.
Minicasos clínicos
do exame de eletroencefalografia que demonstrou atividade epileptiforme difusa em todos os quadrantes cerebrais. Hipótese diagnóstica: Catatonia/estado de mal epiléptico não convulsivo.
Estados torporosos e comatosos
Delirium (h iperativo e hipoativo)
Paciente de 52 anos, com história de etilismo crônico por trinta anos - não bebe há dois. Faz acompanhamento na gastrologia do Hospital das Clínicas por cirrose hepática alcoólica e hepatite por vírus C. Foi internado na UTI do Instituto Central há cinco dias por piora do estado clínico geral. No momento encontra-se desacordado, ictérico 4+/4+, com abdome globoso e ascítico. Apresenta edema generalizado pelo corpo. Respira espontaneamente, mas não se move. Acorda com bastante dificuldade quando estimulado com vigor e logo volta a dormir. Hipótese diagnóstica: Estado torporoso/encefalopatia hepática.
Paciente de 39 anos, fazia uso de um litro de cachaça, diariamente. Há dois dias parou de beber por quadro de dor abdominal epigástrica intensa. Evoluiu com tremores e irritabilidade, sofrendo uma crise convulsiva em sua casa. Foi socorrido por sua família, sendo levado ao hospital prontamente, onde negaram antecedentes de trauma craniano. Foi internado no mesmo dia, com PA de 190 X 120 mmHg, FC = 120 bpm, pois se mantinha confuso, desorientado no tempo e no espaço, com intensa agitação psicomotora e tentava agredir as pessoas em sua volta. Reclamava de ver bichos subindo por seu corpo. Hipóteses diagnóstica: delirium hiperativo/síndrome de abstinência alcoólica (Delirium tremens).
Estupor
Delirium (h iperativo e hipoativo)
Paciente de 38 anos, com história de epilepsia do lobo temporal. Faz tratamento na neurologia do Hospital das Clínicas da FMUSP. Foi trazido ao Pronto-Socorro Central, pois há um dia evoluiu com perplexidade do olhar, postura bizarra, imobilidade e mutismo. Não interage com o entrevistador. Apresenta PA de 120 X 80 mmHg, FC = 82 bpm, dextro = 148 mg/dL. Foi solicita-
Paciente de 78 anos, diabética e hipertensa, vive institucionalizada em clínica de repouso. Há dois dias evoluiu com apatia e confusão mental. Pensa que está em sua casa, confunde os enfermeiros com pessoas já falecidas de sua família e passou a urinar na cama. Foi levada ao pronto-socorro para avaliação. Na consulta, não consegue manter o foco na entrevista, inclusive dorme na fren-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro IV
•
SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
Testes da atenção
Dígitos
"Eu vou lhe dizer uma série de números e gostaria que você repetisse para mim na mesma ordem. Por exemplo, 1, 2, 3" (verificar entendimento). "Eu vou lhe dizer uma série de números e gostaria que você repetisse para mim na ordem inversa. Por exemplo, 1, 2, 3" (verificar entendimento). Escore
Escore normal para dígitos diretos: 8 + 2. Escore normal para dígitos inversos: quatro a menos que o escore para dígitos diretos. Números Ordem direta Item
Conjunto I
Acerto - Erro
Conjunto 11
1
6-2-9
2-7-5
2
5-4- 1-7
8-3-9-6
3
3-6-9-2-5
6-9-4-7- 1
4
9- 1-8-4-2-7
6-3-5-4-8-2
5
1-2-8-5-3- 4-6
2-8-1-4-9-7-5
6
3-8-2-9-5- 1-7-4
5-9-1-8-2-6-4-7
Pontos 2, 1 ou o
Acerto - Erro
Total direta (máximo = 12) Ordem inversa Item
Conjunto I
Acerto - Erro
Conjunto 11
1
5- 1
3-8
2
4-9-3
5-2-6
3
3-8- 1-4
1-7-9-5
4
6-2-9-7-2
4-8-5-2-7
5
7- 1-5-2-8-6
8-3-1-9-6-4
6
4-7-3-9- 1-2-8
8- 1-2-9-3-6-5
Pontos 2, 1 ou o
Acerto - Erro
Total inversa (máximo = 12) Total (máximo = 24) Séries
"Agora eu gostaria que você tirasse 7 de 100 e então continuasse contando para trás, tirando 7 de cada vez:· "Agora eu gostaria que você tirasse 3 de 20 e então continuasse contando para trás, tirando 3 de cada vez:• "Poderia soletrar 'mundo' de trás para a frente, por favor?" "Poderia recitar os meses do ano de trás para a frente, por favor?" "Poderia recitar os dias da semana de trás para a frente, por favor?" Trilhas
Cancelamento
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Início
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• •
/ •Ã••·•• Y ••••+· 1+..-*+Ã*•Ã+ÃIÃ+* e J' Ã+Ã*ÃI*e+à J' Ã* Exemplo de teste de atenção por cancelamento
Stroop
VERDE AZUL AMARELO VERMELHO AZUL VERDE
VERMELHO VERDE AMARELO
AZUL VERMELHO AMARELO VERMELHO AZUL AMARELO
VERDE AZUL VERDE
AMARELO AZUL VERMELHO
AMARELO VERDE VERMELHO
Comparar o tempo que leva para dizer as cores das palavras nas diferentes situações acima.
37 CONSCIÊNCIA E ATENÇÃO
te do examinador. Quando estimulada, acorda, mas diz não saber onde está e logo em seguida volta a dormir. Apresenta lentificação psicomotora e discurso incoerente. Tem PA de 110 X 80 mmHg, FC = 82 bpm, dextro = 148 mgldL. Solicitou-se exame de urina I, que evidenciou 110 leucócitos por campo. Hipótese diagnóstica: delirium hipoativo/infecção do trato urinário.
pelos dados da realidade. Há uma semana passou a apresentar inquietação motora crescente, progredindo para um quadro de agitação ansiosa acompanhada de ideias de que está morto e que tudo está acabado. Durante a consulta psiquiátrica, ao ser perguntado sobre por que achava que estava morto, silenciou, mas depois continuou a dizer que estava morto, pedindo insistentemente para o médico ajudá-lo.
Estados crepusculares, fugas e transes dissociativos Paciente de 4 7 anos, desapareceu de casa após grave discussão com seu marido. Foi encontrada pela polícia dois dias depois, na estação rodoviária de uma cidade próxima, suja e aparentando estar confusa. Levada ao pronto-socorro, a paciente se apresentava acordada e era capaz de responder a comandos adequadamente, mas não respondia a quaisquer outras perguntas, apresentava um olhar distante e repetia sem cessar: "eu não quero mais .. :: Seu exame físico, neurológico e exames laboratoriais subsidiários não apresentaram alterações significativas. A assistente social, de posse de seus documentos, entrou em contato com o seu marido e avisou-o. A paciente subitamente virou para ela e perguntou o que estava fazendo lá, e começou a chorar. Hipótese diagnóstica: fuga/transtorno dissociativo.
Vivências delirantes de passividade do eu Paciente de 18 anos de idade é trazido pelos pais por passar a apresentar comportamento muito estranho no último mês, após período longo de retraimento progres sivo, com o abandono de uma série de atividades sociais. Trancou-se no quarto e cobriu as janelas com jornais presos por fita adesiva. Colocou chumaços de papel na fe chadura da porta do quarto e impedia de maneira ríspida que qualquer pessoa lá entrasse. Passava horas do dia na cama, recusava refeições de maneira persistente, o que levou a emagrecimento significativo. Quando chegou para consulta mostrava uma deterioração dos cuidados pessoais, com barba por fazer e odor indicativo de que não tomava banho fazia tempo. Após entrevista longa, na qual foi possível comprovar a ausência de quaisquer alterações objetivas da consciência, o paciente descreveu o que o preocupava. Percebia que alguns pensamentos que tinha na sua cabeça lhe pareciam muito estranhos. Não sabia dizer por que ou como, mas tinha certeza de que não eram seus. Perguntou ao psiquiatra que o entrevistava se já existia algum tipo de chip que poderia ser implantado no cérebro para transmitir pensamentos a distância. Ele mesmo achava isso meio absurdo, mas considerava que essa poderia ser uma explicação para o que lhe ocorria. "São pensamentos diferentes dos meus, eu sinto".
Crises epilépticas e crises não epilépticas conversivas/ d issociativas Paciente de 22 anos, com história de epilepsia do lobo temporal. Faz tratamento no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP, por apresentar um episódio depressivo de intensidade grave e acompanhado por ideação de suicídio importante. Durante uma consulta com seu médico residente ela subitamente interrompeu o que dizia sobre seus problemas, arregalou os olhos e ficou pálida. Começou a deglutir e a lamber os lábios automaticamente, com a mão esquerda mexeu e agarrou os papéis de seu prontuário, que estavam à sua frente, enquanto o seu braço direito assumiu postura fletida e distônica persistente. Após apresentar breves clonias no lado direito da face, a paciente pareceu se recuperar, confusa e tentando se reorientar, coçou repetidamente o nariz com a mão esquerda. Aos poucos compreendeu o que lhe ocorreu e perguntou se teve um apagão. Hipótese diagnóstica: Crise epiléptica parcial complexa desde o início com automatismos/epilepsia do lobo temporal mesial esquerdo de etiologia a esclarecer. Despersonalização Paciente de 54 anos vem apresentando quadro depressivo grave, desencadeado pela perda de seu emprego. Ao longo de um mês apresentou piora progressiva, com surgimento de sintomas vegetativos como inapetência e insônia terminal, fortes sentimentos de inadequação pessoal, ideias de culpa intensas e não justificadas
Questões 1. Assinale a alternativa incorreta: a) A consciência envolve diversos processos mentais que têm como objetivo a elaboração e a integração de diferentes tipos de informação. b) Entre os aspectos objetivos da consciência, pode-se destacar a vignia, o alerta e a atenção. c) O grau de vigília é influenciado pelo Sistema Ativador Reticular Ascendente (SARA). d) Quanto maior o alerta, melhor o rendi mento nas diferentes tarefas. e) Os diferentes estados atencionais modulam a consciência e a consciência modu la os diferentes estados atencionais. 2. Com relação aos processos atencionais, não se pode afirmar: a) Para a real ização de tarefas prolongadas é necessário que se tenha uma boa capacidade de tenacidade. b) Tarefas complexas exigem maior esforço e concentração.
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c) A atenção não é influenciada pelo treino ou amadurecimento individual. d) A atenção pode ser direcionada para o ambiente externo ou para o mundo interno do indivíduo. e) A atenção tem uma natureza voluntária e outra involuntária.
e) No coma. o indivíduo está inconsciente e não apresenta qualquer tipo de atividade voluntária. Mesmo quando estimulado intensamente, não consegue acordar.
3. Assinale a alternativa incorreta: a) Uma condição básica para a existência da consciência é a presença da subjetividade. b) Na consciência primária não é possível agir por meio da intençao. c) Diferentes conteúdos da memória transitam por diferentes níveis de consciência. d) A consciência reflexiva é um atributo exclusivo do ser humano. e) Estados alterados da consciência não representam necessariamente a presença de doença subjecente.
1. Ey H. La conciencia. Madrid: Gredos; 1967.
-
É correto afirmar sobre o delirium que: Não há comprometimento da atenção. Não existe uma causa orgânica de base. Apresenta duas formas clínicas: de/irium hipoativo e hiperativo. d) No delirium hiperativo há melhora no rendimento da consciência. e) O ciclo de sono e vigíl ia do paciente está preservado.
4. a) b) c)
5. Sobre os estados patológicos da consciência, é incorreto afirmar: a) Apresentam diversas etiologias. b) Nos transes dissociativos há aumento do campo da consciênCia.
c) Nem todas as crises epilépticas cursam com alteração da consc1enc1a. d) Indivíduos portadores de esquizofrenia apresentam com frequência alterações da consciência do "eu". '
A
'
Referências bibliográficas 2. Edelman GM. Bright air, brilliant tire: on the matter of the mind. New York:Basic Books; 1993. 3. Dennett D. Consciousness explained; 1991. 4. Churchland PM. Matéria e consciência. Uma introdução contemporânea à filosofia da mente. São Paulo: Editora Unesp; 2004. S. Eccles JC. Evolution of consciousness. Acad Sei. 6. Budiansky S. If a lion could talk: Animal intelligence and the evolution of consciousness. New York: The Free Press; 1998. 7. Koch C. The quest for consciousness. Englewood: Roberts & Company; 2004.
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Alterações das Funções Cognitivas: Memória e Inteligência Chei Tung Teng Maria Inês Falcão An a Taveira
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Memória, 469 Introdução, 469 Psicopatologia, 470 Testes de memória. 471 Inteligência, 474 Introdução, 474 Notícia histórica, 475 Definições, 479 Inteligência e criatividade, 480 Ciclo vital e inteligência, 481 Aspectos biológicos da inteligência: genótipo ou fenótipo?, 482 As funções cognitivas da inteligência, 483 Aspectos psicológicos da inteligência, 484 Aspectos sociais da inteligência, 484 Capacidade intelectual e alterações, 485 Considerações finais, 485 Memória, 485 Inteligência, 485 Minicaso clínico, 485 Questões, 486 Referências bibliográficas, 487
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Memória Introdução A memória geralmente é vista como sistemas de armazenamento múltiplo ou como formas distintas de processamento, sendo essencialmente imprescindível para o funcionamento cognitivo geral e demais funções cerebrais superiores. A memória pode ser classificada de diversas formas, como por exemplo, em memória procedimental, episódica e semântica. Na procedimental são armazenadas respostas comportamentais aprendidas; na episódica fica armazenada a memória autobiográfica (recordar a si mesmo em um episódio); e na semântica estão armazenadas representações de conhecimento. A memória também
1. Conhecer como a memória pode ser classificada. 2. Entender as várias alterações psicopatógicas da memória, dentre elas, as hipermnésias, hipomnésias, amnésias e os transtornos qualitativos como ilusões mnêmicas, alucinações mnêmicas, tabulações, dejá vu, criptomnésia e ecmnésia. 3. Conhecer baterias de testes neuropsicológicos para avaliação funcional da memória e testes baseados na aprendizagem de informações novas. 4. Entender aspectos fundamentais da memória. 5. lnterar-se sobre a investigação da inteligência. 6. Conhecer diversos estudos sobre a inteligência. 7. Reconhecer possíveis significados atribuídos aos sintomas da
inibição intelectual. 8. Entender teorias acerca da inteligência. 9. Compreender a participação de fatores genéticos na inteligência.
pode ser dividida em memória procedimental e declarativa; a declarativa seria acessível à verbalização 1 • O modelo de processamento influente descreve a memória como implícita ou explícita. A memória implícita inclui aprendizagem comportamental, emocional e perceptual devido a uma experiência passada, mas sem envolver um senso de experiência de recordação quando recuperada. Medidas indiretas de memória, tais como efeitos de priorização e economia de tempo para reaprender uma tarefa e atividade especializada previamente aprendida, são meios pelos quais a memória implícita pode ser avaliada. Priorização refere-se à maior rapidez de resgate de um item de memória. Memórias implícitas não podem ser declaradas diretamente e a pessoa pode não estar ciente de como as memórias foram adquiridas.
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A memória explícita armazena informações que podem ser verbalizadas e avaliadas por medições diretas como tarefas de recordação e reconhecimento 1 • Estudos revelaram que existem dissociações nas fun ções de memória normalmente associadas de recordação implícita e recordação explícita em diversos estados mentais. A memória explícita, por definição, implica que a pessoa pode conscientemente recordar um item a partir da memória e usar a linguagem para expressar o que é recuperado. Os pacientes com síndrome de Korsakoff revelaram dissociações entre recordação implícita (intacta) e recordação explícita (prejudicada). Correlações neuroanatômicas sugerem que o hipocampo e estruturas relacionadas são necessárias para a codificação e a recuperação da memória de longo prazo explícita ou declarativa; outras estruturas, incluindo os gânglios da base e a amígdala, são fundamentais para a memória procedimental ou implícita. Estudos dos efeitos de benzodiazepínicos sobre pessoas normais revelam uma dissociação semelhante: um funcionamento e percepção normal durante o teste, mas uma recordação explícita prejudicada no contexto de uma recordação implícita intacta. Dissociações semelhantes podem ser observadas em amnésia hipnoticamente induzida, amnésia infantil, alterações de memória, no envelhecimento e em casos de anestesia cirúrgica. No transtorno de estresse pós-traumático, a inabilidade de um paciente de recordar o evento traumático e, contudo, evitar estímulos de contexto similar ao trauma inicial e apresentar reações de susto a esses estímulos pode ser explicado pela recuperação da memória implícita que estaria intacta, mas com a recuperação de memória explícita prejudicada. Segundo Jaspers podemos entender três aspectos diversos da memória: 1) a capacidade de fixação, 2) a memória propriamente dita e 3) a capacidade de reprodução. A primeira diz respeito à capacidade de trazer material novo ao reservatório da memória. A segunda se refere ao grande reservatório de disponibilidades permanentes, capaz de vir à consciência em ocasiões apropriadas. A terceira, aquela que consiste, a dado momento, em trazer conteúdos armazenados da memória à consciência. As três áreas estão sujeitas a transtornos, que se apresentam todos com uma só designação, alterações da memória, diversificando-se muito, porém, de acordo com as modalidade em que se apresentam2 • Mesmo em condições normais, a memória falha. Não há setor em que a fidelidade, a duração e a disponibilidade da memória não tenham limites e oscilações. Dentre as relações compreensíveis que influenciam a memória, têm-se investigado experimentalmente aquelas que existem entre prazer e desprazer da vivência e das tendências, de um lado e do outro, manutenção ou esquecimento. Vivências prazerosas conservam -se mais facilmente que vivências desagradáveis; estas se mantém mais facilmente que as indiferentes2 •
A memória propriamente dita é considerada por alguns psicólogos um processo puramente fisiológico, enquanto a capacidade de fixação e a evocação das lembranças são tidas como atos psíquicos, pelo fato de serem vividos pelo indivíduo. Wernicke designou sob o nome de capacidade de fixação a aptidão para adquirir imagens mnêmicas e representações novas. A memória de fixação constltm apenas uma premissa para o acresc1mo e a complementação de nossas recordações; porém não nos oferece a verdadeira medida da capacidade da memória3 • A memória de evocação, segundo Kraepelin, abrange o contingente de imagens anteriormente adquiridas e é determinada pela força de retenção das impressões passadas. A condição indispensável para que se estabeleça uma lembrança é a compreensão do objeto observado, condição essa que depende da atenção e do interesse. A lembrança pode ser conservada mais tempo quando se percebe claramente a impressão original e reforçada quanto mais numerosas forem as suas ligações com o resto do conteúdo da consciência, ou seja, quanto maior tiver sido o interesse despertado no indivíduo. As lembranças perduram mais tempo quando são reforçadas pela repetição3 . •
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I
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Psicopatolog ia Existem vários termos que descrevem aspectos psicopatológicos relacionados à memória. Seguem alguns dos mais comuns. Hipermnésia
Para Bleuler ocorre hipermnésia quando lembranças casuais são evocadas com mais vivacidade e exatidão que comumente, ou quando são recordadas particularidades que usualmente não surgem. Hipomnésia
Diminuição do número de lembranças evocadas. Amnésia
Desaparecimento completo das representações mnêmicas correspondentes a um determinado tempo da vida do indivíduo. Amnésia anterógrada
Designa a amnésia que se refere a fatos transcorridos depois da causa determinante do transtorno, como sinônimo de alteração de fixação. Amnésia retrógrada
Refere-se à perda de memória dos fatos ocorridos antes da lesão cerebral. Amnésia transitória
Observa-se com frequência, especialmente na convalescença de doenças infecciosas graves, uma síndrome
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amnésica transitória, que se caracteriza pela incapacidade de fixar os acontecimentos recentes. Os pacientes conservam a capacidade de evocação, porém, revelam transtornos da orientação temporoespacial, fabulações e perseverações. Em alguns casos podem surgir sintomas paranoide-alucinatórios. Amnésia lacunar
Observa-se geralmente nos casos de traumatismo cranioencefálico. É caracterizada pela perda total da memória de alguns eventos específicos, delimitados no tempo, geralmente retrógrada. Os casos mais típicos e mais comuns de amnésia lacunar encontram-se na epilepsia, especialmente nas crises tônico-clônicas e nas ausências. Paramnésias
Os transtornos qualitativos da memória de evocação denominam-se paramnésias. São descritos nesse grupo as ilusões mnêmicas, alucinações mnêmicas, fabulações, fenômeno do dejá vu, criptomnésia e ecmnésia. • Ilusões mnêmicas: são constituídas pela formação das lembranças em virtude do acréscimo de elementos falsos ao núcleo da imagem mnêmica, razão pela qual esta adquire o caráter de lembrança fictícia. Como resultado imediato, os pacientes não podem evocar de imediato as suas vivências. Por essa razão, muitos deles nos dão informações fantásticas, por exemplo, que viveram milhares de anos ou tiveram milhares de filhos. • Alucinações mnêmicas: criações imaginativas com aparências de reminiscências, que não correspondem a nenhuma imagem de épocas passadas. Nos esquizofrênicos surgem, frequentemente, algumas produções psíquicas com características de lembranças reais que podem modificar de modo completo o passado do paciente. • Fabulações: o fenômeno descrito anteriormente difere em sua essência da fabulação, transtorno qualitativo da memória que se observa com frequência em pacientes com esquizofrenia paranoide, com transtornos orgânicos e em alcoolistas com síndrome de Korsakoff. Consiste no relato de coisas fantásticas que, na realidade, nunca aconteceram. Resultam de uma alteração da fixação e de uma incapacidade para reconhecer como falsas as imagens produzidas pela fantasia. O conteúdo das fabulações procede do curso habitual da vida anterior, acontecendo muitas vezes que, achando-se perturbada a capacidade de localizálas no tempo, lembranças isoladas autênticas completam erroneamente as lacunas da memória. Em alguns casos, pode-se observar a produção rica de conteúdos fabulatórios absurdos e inverossímeis, que adquirem aspecto oniroide. Em outros casos, imagens oniróicas são rememoradas e atualizadas como lembranças autênticas. • Fenômeno do dejá vu: consiste no fato do indivíduo ter a impressão de que a vivência atual já foi experimentada no passado. Pode acontecer em estados de fadiga, mesmo em indivíduos sem patologia. Nos pacientes
epilépticos com focos temporais, o fenômeno se apresenta com características especiais, principalmente como crises, e tem um grande valor como caracterização do foco. Pode-se observar também o fenômeno oposto, o jamais vu no qual o paciente é incapaz de reconhecer o ambiente por mais familiar que este o seja. • Criptomnésia: é um falseamento da memória no qual as lembranças perdem suas qualidades e aparecem ao paciente como fatos novos. • Ecmnésia: revivescência muito intensa, às vezes de duração breve, de lembranças anteriores que pareciam esquecidas.
Testes de memória Testes de memória geralmente se baseiam em aprendizagem de informações novas, podendo-se então investigar a dinâmica das aquisições. Geralmente são aplicadas em baterias de testes neuropsicológicos, para avaliação funcional da memória. Pode-se comparar: • Aquisição sem esforço versus com esforço: nas tarefas de aquisição sem esforço, uma lista de palavras é lida por vezes consecutivas para o examinando e cada vez ele precisa tentar evocar o maior número de palavras possíveis. A aquisição é considerada sem esforço porque os estímulos são repetidos em todas as apresentações. Na aquisição com esforço, uma lista de palavras é lida apenas uma vez e nas tentativas subsequentes o examinador lembra ao examinando apenas as palavras esquecidas e o examinando deve tentar recordar a lista toda. Os testes Rey Auditory Verbal Learning Teste Rey Visual Design Learning Test são provas nas quais a repetição do estímulo é feita por cinco tentativas. Já o Selective Remind Test é uma lista de palavras que o examinador lê apenas uma vez. Nas tentativas subsequentes apenas as palavras esquecidas é que são lembradas ao examinando. • Retenção imediata versus pausa/interferência: de modo geral, tarefas que avaliam memória solicitam que o examinando evoque os estímulos imediatamente após a apresentação e após uma atividade de interferência, com o objetivo de verificar o quanto uma atividade distratora pode interferir nos processos de registro do material. • Evocação tardia espontânea versus com pista: na evocação tardia o examinando deve recordar os estímulos espontaneamente. • Evocação sem pista versus reconhecimento: as tarefas de reconhecimento são compostas pelos estímulos que pertenciam à tarefa original e outros considerados distratores. A tarefa de reconhecimento mostra se o material foi registrado, mas se é difícil para o examinando evocá-lo espontaneamente. • Modalidade verbal versus não verbal: tarefas verbais são compostas por listas de palavras, histórias ou frases. As tarefas visuais são compostas por desenhos e cenas.
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Baterias de avaliação dos processos mnésticos Escala Wechsler de Memória 4
• Memória lógica I e li: avalia a memória verbal por meio da evocação de histórias. É composta por duas histórias denominadas "História ./\' e "História B': A primeira narra um assalto vivido por uma cozinheira e a segunda, a desistência do personagem em sair de casa após assistir um noticiário sobre a chegada de uma tempestade. A primeira história é lida ao examinando o qual, imediatamente após a apresentação, deve tentar lembrar o maior número de eventos possível. A segunda história é apresentada por duas vezes consecutivas e, a cada apre sentação, o examinando deve tentar relembrá-la. Após 30 minutos, pede-se ao examinando para que relembre as duas histórias. Em seguida à recordação das histórias, são feitas 30 perguntas a respeito das respectivas narrativas. • Span espacial direto e inverso: a primeira parte avalia a amplitude atencional para estímulos visuoespaciais e a segunda, a memória imediata e o controle mental. Esse subteste é composto por sequências de posições que são apontadas em um tabuleiro. A quantidade de estímulos aumenta progressivamente e em cada série há duas tentativas diferentes. As sequências são apresentadas em um tabuleiro contendo 10 cubos azuis, espalhados aleatoriamente. Pela posição que os cubos são apresentados, o examinador consegue visualizar um número impresso em um dos seus lados, mas o examinando não tem acesso a essa informação. Assim, o examinador aponta para uma série de cubos e o examinando deve, imediatamente após a apresentação, reproduzir as mesmas localizações na sequência correta. As primeiras sequências são compostas por dois movimentos e as últimas atingem nove movimentos espaciais. • Sequências de letras e números: essa prova exige atenção dividida e memória de trabalho, ou seja, requer que o examinando possa responder a duas tarefas simultaneamente ou a múltiplos elementos de uma tarefa mental complexa. Para tal, é necessário que ele mantenha na memória os elementos que compõem a atividade em questão. Consiste na apresentação verbal de sequências compostas por números e letras misturados. As sequências aumentam progressivamente a quantidade de estímulos, sendo que a primeira possui três estímulos e a última, oito; há três tentativas diferentes para cada série. • Memória para faces I e li: avalia a memória visu al por meio da evocação de faces. São apresentadas, em cartões isolados, 24 fotografias de faces humanas. O examinando deve observá-las cuidadosamente, tentando memorizá-las. Em seguida à exposição, é solicitada a identificação das faces que foram apresentadas inicialmente ("faces-alvo"), dentre 48 cartões contendo faces (24 fazem parte do grupo inicial). Após intervalo de 30 minutos, são novamente apresentadas as 48 faces e, uma vez mais, o examinando deve lembrar-se das 24 faces llllCiaiS.
• Memória para cenas I e li: avalia memória visual pela evocação de cenas. São apresentadas quatro cenas que mostram quatro personagens realizando diferentes ações em locais distintos. Os personagens que aparece ram em algumas cenas representam uma família com seis membros, sendo eles: casal de avós, casal de pais e casal de filhos, além de um cachorro. Esses personagens são primeiramente apresentados em uma foto para que o examinando os identifique. As cenas são apresentadas na sequência e são denominadas da seguinte forma: "cena do piquenique", "cena da loja'', "cena do jardim" e "cena do jantar': É solicitado ao examinando que observe com cuidado todas as situações uma vez que, após cada apresentação (com duração de 10 segundos), serão feitas perguntas a respeito de cada uma das cenas. Em seguida à apresentação das quatro cenas, mostra-se ao examinando uma folha dividida em quadrantes e pergunta-se quem eram os personagens que estavam na primeira cena ("cena do piquenique"), em qual dos quadrantes eles estavam e o que faziam naquela situação. O mesmo procedimento é feito em relação às demais cenas (cena 1). • Lista de palavras: avalia a capacidade de aprendizagem e suscetibilidade à interferência nos processos atencionais e de memória. Uma lista de 12 palavras é repetida verbalmente em quatro tentativas consecutivas (lista A). A cada tentativa o examinando deve tentar lembrar o máximo de palavras possível. A ordem de apresentação verbal das palavras para o examinador é fixa durante todas as tentativas, mas a repetição feita pelo examinando é livre. Na primeira tentativa, é dada a instrução de que será lida uma lista de palavras que devem ser memorizadas, não importando a ordem de evocação. A partir da segunda tentativa, pede-se para que tente lembrar o maior número de palavras, mesmo as que já foram mencionadas anteriormente. Ao término da quarta tentativa, uma outra lista (lista B) é apresentada ao examinando, com palavras diferentes àquelas da primeira lista. O examinando é solicitado a lembrar o máximo de palavras possível dessa nova lista, a qual é apresentada apenas uma única vez, objetivando uma atividade de interferência, uma vez que, imediatamente após a evocação da "lista B': o examinando é solicitado a mencionar as palavras da "lista ./\'. Após intervalo de 30 minutos, o examinando é novamente solicitado a evocar as palavras da "lista ./\'. Ao término desta etapa, é feita a fase de reconhecimento, na qual são lidas 24 palavras, dentre as quais 12 pertencem à "lista./\'; cabe ao examinando identificá-las. Wide Range Assessment o f Memory and Learning
(WRAML) Essa bateria existe em duas versões (WRAML e WRAML li). Na primeira, as normas foram feitas apenas para crianças de 5 anos a 17 anos e onze meses. Na versão li, tanto crianças quanto adultos até 90 anos podem ser avaliados.
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Nesta segunda versão, provas de working memory verbal e não verbal foram acrescentadas e só são aplicadas em crianças a partir dos 9 anos. A working memory é uma fun ção que pode aparecer alterada em vários quadros psiquiátricos, dada sua vulnerabilidade para estados emocionais ou de humor. Outra modificação feita na segunda versão foi a introdução de tarefas de reconhecimento, as quais são realizadas após a evocação tardia dos estímulos. Na tarefa de reconhecimento o examinando precisa identificar os estímulos-alvo entre outros considerados distratores. O desempenho nessa atividade mostra se houve registro da informação, mas espontaneamente esta não pode ser recuperada, sendo necessário se pautar em alguma pista. A bateria é composta por subtestes que oferecem estímulos visuais ou verbais. Na primeira versão do WRAML os subtestes estão divididos em escala verbal, visual e de aprendizagem. A versão II oferece as seguintes divisões: provas de memória verbal, visual e de atenção/concentração; além de subtestes opcionais e das tarefas de reconhecimento (Quadro I). Serão descritos os subtestes, para que o leitor possa se familiarizar com o tipo de material utilizado quando é necessário avaliar os processos mnésticos. • Memória para histórias: muito semelhante ao que é feito na escala Wechsler, são lidas duas histórias para o examinando, mas apenas uma vez. A recordação do material deve ser imediato e após intervalo de trinta minutos, aproximadamente. Após a recordação tardia e espontânea das histórias, o examinando realiza a tarefa de reconhecimento, na qual são feitas perguntas sobre as narrativas e em seguida são apresentadas três alternativas de resposta. • Memória para sentenças: são lidas frases que aumentam progressivamente o nível de complexidade quanto ao número de palavras. O examinando deve repeti-las com a maior precisão possível. • Número e letra: são apresentadas sequências de números misturados com letras e, diferentemente do que
Quadro I
WRAML
foi descrito na escala Wechsler, o examinando não precisa organizar os estímulos, deve apenas repeti-los exatamente como ouviu. • Aprendizagem verbal: uma lista de palavras é repetida quatro vezes consecutivas e a cada apresentação da lista o examinando deve dizer o maior número de palavras que conseguir lembrar. É uma prova de aprendizagem passiva, porque a lista toda é repetida todas as vezes para o examinando. Se ele for capaz de aplicar alguma estratégia, esta poderá ser facilitadora para o aprendizado da lista. A lista deve ser recuperada após intervalo controlado de tempo e também será realizada a tarefa de reconhecimento, na qual as palavras da lista original estão em meio a outras consideradas distratoras. • Memória para cenas: são apresentadas quatro cenas que o examinando deve observar para em seguida olhar uma outra cena parecida e identificar diferenças entre esta cena e a original. Após intervalo controlado de tempo, é realizada a tarefa de reconhecimento, na qual fragmentos das cenas são apresentados junto com outros desenhos que não faziam parte do material original. • Memória para desenhos: cinco desenhos formados por traços e figuras geométricas são apresentados por um período de exposição de cinco segundos e, após intervalo de 10 segundos, a folha de resposta é dada ao examinando e ele deve desenhar o que lembrar. Após intervalo controlado de tempo é realizada apenas a tarefa de reconhecimento, na qual fragmentos dos desenhos apresentados estão dispostos junto a outros distratores e o examinado deve reconhecer os fragmentos que compunham o desenho original. • Janelas digitais: um cartão apresenta nove furos dispostos randomicamente e o examinador aponta uma sequência de espaços, que o examinando deve seguir. As sequências, progressivamente, aumentam a quantidade de movimentos, tornando-se mais complexa. Trata-se de uma medida de atenção visuoespacial.
Apresentação da organização dos subtestes que compõem a escala de memória Wide Range Assessment of Memory and Learning (WRAML) Escala verbal Memória para histórias Memória para sentenças Número/letra
Escala visual Memória para cenas Memória para desenhos Janelas digitais
Aprendizagem Aprendizagem verbal Aprendizagem visual Som/símbolo
Memória verbal Memória para histórias Aprendizagem verbal
Memória visual Memória para cenas Memória para figuras Aprendizagem visual
Atenção/concentração Janelas digitais Número/letra
Subtestes opcionais Working memory verbal e visual Som/símbolo Memória para sentenças
Reconhecimento Histórias Figuras Cenas Aprendizagem verbal
WRAML 11
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• Aprendizagem visual: subteste da primeira versão do WRAML, na qual um tabuleiro é dividido em espaços que apresentam desenhos coloridos e abstratos. O examinador apresenta os desenhos do tabuleiro em cartões e o examinando deve localizar no tabuleiro os espaços correspondentes aos desenhos. A apresentação dos cartões é feita quatro vezes consecutivas e também após intervalo de tempo. • Som/ símbolo: o examinador mostra cartões com figuras abstratas para o examinando e cada figura está associada a um som. Após a apresentação do bloco de cartões, o examinador apresenta novamente as figuras e o examinando deve dizer o som correspondente. A apresentação do bloco de figuras com os sons correspondentes é feita quatro vezes consecutivas e cada vez o examinando precisa lembrar o som que corresponde à figura. Após intervalo controlado de tempo as figuras são novamente apresentadas e o examinando deve dizer qual é o som correspondente. • Working memory verbal e visual: essas provas exigem que o examinando manipule material e não apenas repita os estímulos. Ele precisará organizar estímulos que serão vistos ou ouvidos em uma ordem determinada. Na prova visual o examinado observa o examinador apontar sequências de números e de números em meio a letras. O examinando precisa apontar os números e as sequências que têm números e letras ordenando os estímulos e letras em sua ordem crescente e alfabética. Na prova verbal, o examinando ouvirá sequências compostas por palavras que são nomes de animais e não animais. Ele será solicitado a dizer em primeiro lugar os animais e depois os não animais. Além disso, dependendo da fase da tarefa ele também precisará organizar os elementos por ordem de tamanho.
Quadro 11
A memória auditiva pode ser avaliada pelo subteste dígitos da Escala Wechsler de Inteligência para crianças e para adultos 5, assim como a memória visual pode ser acessada pela recuperação da figura de Ref. Entretanto, esses instrumentos não são suficientes para um exame minucioso do funcionamento da memória (Quadro II). Existe uma bateria de testes para avaliar memória em crianças, adolescentes e adultos ainda não validada e padronizada para o Brasil, mas que é muito utilizada na literatura internacional.
Inteligência Introd ução Definir o construto "inteligêncià' não é tarefa fácil: diversas conceituações foram apresentadas ao longo da história, sem que se chegasse à exaustão do conceito. Assim, seja para classificação dos deficientes mentais, definição das estratégias cognitivas utilizadas durante uma atividade, investigação de estruturas cerebrais envolvidas ou conceituações psicológicas do processo intelectual, ao termo "inteligêncià' foram incorporados aspectos rele vantes para a compreensão da atitude intelectiva. Sem a pretensão de tudo abarcar, serão discutidos alguns aspectos na investigação da inteligência e os possíveis significados atribuídos aos sintomas da inibição intelectual. Conceitos de inteligência tentam clarear e organizar esse complexo conjunto de fenômenos. Embora em algumas áreas se tenha conseguido considerável clareza, nenhuma conceituação ainda respondeu a todas as questões importantes e nenhuma alcançou aceitação universal9 •
Descrição do subteste dígitos e da figura complexa de Rey
Instrumento
Descrição
Subteste Dígitos5
Trata-se de uma prova da Escala Wechsler de Inteligência para crianças, composta por duas partes. Na primeira delas, são apresentadas séries numéricas que iniciam com dois dígitos e progridem sucessivamente até alcançar nove números. As sequências são lidas pausadamente e o examinando deve repeti -las na mesma ordem que a apresentada. Cada série possui duas tentativas e a prova é interrompida quando o examinando erra as duas sequências da mesma série. Essa parte da prova avalia a amplitude atencional auditiva, ou seja, a quantidade de informação auditiva/ verbal que se consegue captar num dado momento. Na segunda parte, as sequências também começam com dois dígitos, mas as últimas apresentam oito números. As séries são lidas pelo avaliador e o examinando deve repeti-las na ordem inversa à apresentada, isto é, do último para o primeiro algarismo. Essa etapa da prova avalia a memória imediata auditiva e o controle mental em tarefa complexa. A prova é interrompida após o examinando errar duas sequências da mesma série. Segundo instruções do teste, as pontuações de ambas as partes, direta e indireta, são somadas e transformadas em resultado ponderado.
Figura complexa de Rey6
O propósito desse teste é avaliar habilidade visoconstrutiva, capacidade de planejamento, estratégias para solução de problemas e memória visual. Nesta prova, o examinando copia uma figura gráfica bidimensional complexa e após 30 minutos é solicitado a desenhar o que lembra. A pontuação é feita pela reprodução adequada das partes que compõem a figura. A validação brasileira ainda está em estudo e só é pennitido o uso para pesquisa.
38 ALTERAÇÕES DAS FUNÇÕES COGNITIVAS: MEMÓRIA E INTELIGÊNCIA
Notícia histórica Na história, não apenas no domínio da filosofia, psicologia ou medicina, o interesse pela capacidade intelectual do homem foi tema atrativo. Há relatos de exames para o serviço civil no império chinês no ano 2500 a. C.; na Grécia antiga, eram comuns os testes para aferir o domínio de habilidades físicas e intelectuais 10 . Aristóteles, por muitos considerado o pai da psicologia, acreditava que o corpo e a mente coexistiam - divergindo de Platão, com seu conceito dualista mente-corpo - , sendo a mente uma das funções do corpo. Para ele, o conhecimento provinha da capacidade da psique, a inteligência11 . Há registros de que na Idade Média também se aplicavam testes aos estudantes universitários 10. A partir do século XIX ocorre o desenvolvimento de estudos científicos sobre a inteligência, a partir das descobertas de Darwin e o evolucionismo, destacando-se Galton no estudo da hereditariedade humana. É dessa época o desenvolvimento de estudos sobre os processos perceptivos e cognitivos da inteligência, sendo os mais proeminentes o Laboratório de Psicologia Experimental, de Wilhelm Wundt, na Pensilvânia (EUA), no qual também trabalhou James Cattell, e o Laboratório Antropométrico de Galton, em Leipzig (Alemanha), com a investigação dos processos sensoriais da inteligência10·11 • A necessidade de tratamento dos desajustados mentais também fomentou estudos acerca da inteligência na França, sendo Esquirol o primeiro a propor a classificação dos sintomas de deficiência mental, atribuindo à linguagem o fator discriminatório da intelectualidade. Séguin propôsse a estudar os déficits não verbais dos deficientes mentais, promovendo avanço no tratamento dessas pessoas 10·12 • Binet, Simone Terman (também na França), e mais tarde Wechsler (nos EUA), investiram no desenvolvimento de testes a partir dos quais fosse possível investigar as capacidades mentais para a definição do que seria esperado para cada faixa etária e, na tentativa de comparação com uma média esperada para cada momento do ciclo vital, surgiu o conceito do Q.I. - quociente intelectual (Tabela !) 5•10·11 • Paralelamente, havia interesse no estabelecimento dos fatores envolvidos no construto "inteligência", elevando o status da psicometria. A partir desse momento, teorias acerca da inteligência foram formuladas, uma vez que a solução do tipo "tudo-ou-nada" (ou se é inteligente ou não se é inteligente) não mais dava suporte aos achados nessa área. Podemos citar como mais importantes as seguintes teorias: • Charles Spearman e a teoria bifatoriaP0·13 : levantou estatisticamente dois fatores envolvidos no processo intelectual, sendo um utilizado em todas as operações mentais (fator geral ou fator "g") e outro em atividades específicas (fator específico ou fator "e"); • Thorndike e a teoria multimodal da inteligência 10·13 : segundo ele, existe uma variedade de capacidades men-
Tabela I
Cálculo do quociente intelectual (QI)
O Ql, ou quociente intelectual, é calculado por meio da razão entre a idade mental (I M) e a cronológica (I C), sendo: Ql = IM/IC X 100; foi distribuído na curva de Gauss por David Wechsler de modo a se manter constante ao longo da vida 10 • Seus valores indicam a posição do sujeito em relação à média normais Ql
Faixa de desempenho
130 e mais
Muito superior
120- 129
Superior
110- 119
Médio superior
90-109
Médio
80-89
Médio inferior
70-79
Inferior (ou limítrofe)
69 e menos
Muito inferior (ou deficiente mental)
Fonte: adaptada de Wechsler, p.39 5 .
tais que se apresentam de forma altamente particularizada, ainda que inter-relacionadas; • Thurstone e a teorias das capacidades mentais primárias 10·11 ·13: a inteligência seria resultante de sete capacidades mentais que variam entre as pessoas e mesmo em cada indivíduo; • Guilford e o modelo de estrutura do intelecto 10•13 : elaborou modelo tridimensional da inteligência, com 120 capacidades distribuídas em três planos: operações, conteúdos e produtos; • Cattell-Horn-Carroll com as teorias hierárquicas10·14.16: refinaram o estudo das habilidades intelectivas, as quais são organizadas em três camadas distintas: I) capacidades específicas; II) capacidades amplas ou gerais; e III) capacidade geral. Além da preocupação psicométrica, surgiu a necessidade da elaboração de um corpo teórico que pudesse explicar a inteligência desenvolvendo-se, até os dias atuais, teorias que exploram os processos intelectuais, destacando-se aqui: • Wallon e Vygotsky, com as teorias sócio-históricas 17·18: o primeiro enfatizava a participação da emoção e o segundo, do ambiente, no desenvolvimento da inteligência; • Piaget, com a epistemologia genética 11 : hereditariedade e ambiente compõem a inteligência (veja o tópico sobre ciclo vital e inteligência, mais adiante). • Gardner e as inteligências múltiplas 10•19 : elabora sua teoria embasado nas origens biológicas de cada capacidade universal humana de resolver problemas, vinculada ao estímulo cultural. • Mayer-Salovey-Caruso e também Goleman com a inteligência emocional 10·20·21 : definida pelos primeiros como a capacidade de processar informações emocionais e usá-las favoravelmente no processo de adaptação ao ambiente, foi divulgada em um livro de Goleman. • Sternberg e a teoria triárquica da inteligência10·22·23 : a inteligência depende de três habilidades: capacidade de
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro 111
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
Contribuições ao conceito de inteligência - panorama histórico Principais contribuições Jean Etienne Esquirol (1772- 1840) psiquiatra francês
Primeiro a defender uma diferenciação entre doença e deficiência mental, definindo esta como existente desde o nascimento ou primeira infância (1838). Enfatizava a linguagem como critério de determinação do nível intelectuaP0 •
http://www.museumofdisability. org/siteimages/medicine/ Esquirol.jpg
Edouard Séguin (1812- 1880) médico francês
A idiotia não era resultado de uma malformação do SNC, mas de um problema no desenvolvimento mental. Concentrou seus esforços na educação de crianças com necessidades especiais, na formação de professores e na criação de instrumentos que viabilizassem a educação, principalmente dos sentidos, das crianças idiotas ' 2•
http://www.museumofdisability. org/original_pantheon_seguin. asp
Francis Galton (1 822- 1911) biólogo inglês
Inspirado em Darwin e o evolucionismo, estava interessado no aspecto hereditário da inteligência, a qual considerava uma capacidade cognitiva geral. Criou o laboratório antropométrico (1879): primeiro grande conjunto sistemático de dados sobre diferenças individuais em processos psicológicos simples para aferição do intelecto'0·' 3.
http://www.britannica.com/ blogs/wp-content/ uploads/2009/02/galton.jpg
Wilhelm Wundt (1832- 1920) filósofo e psicólogo alemão http://www.indiana.edu/ - intell/ wundt.shtml
James McKeen Cattell (1860- 1944) psicólogo inglês
Conhecido como "pai da psicologia experimental" e "fundador da psicologia moderna", criou em 1879 o primeiro laboratório do mundo dedicado à psicologia experimental Oaboratório de Leipzig). Dedicou-se a obter descrições generalizadas do comportamento humano, com o importante cuidado na padronização da aplicação dos testes psicológicos, o que garantiu maior cientificidade à psicologia 10·".
Trabalhou no laboratório de Wundt e foi um dos primeiros a utilizar métodos estatísticos na avaliação das capacidades intelectuais, auxiliando a psicologia americana a se desenvolver como uma ciência experimental. Elaborou uma série de testes psicofísicos em laboratório e foi o primeiro a utilizar a expressão "teste mental" 10· 11•13•
http://www.indiana.edu/ - intell/ jcattell.shtml
Charles Spearman (1863- 1945) psicólogo inglês
Elaborou a teoria dos dois fatores da inteligência (1904): fator "g" (energia subjacente e constante a todas as operações psíquicas; variável entre os indivíduos) e fator "e" (próprio de cada habilidade em particular; intra e interindividualmente variável), abandonando o entendimento da inteligência como um construto único' 0·' 3 .
http://www.galtoninstitute.org. uk/Newsletters/G IN L0003/ charle1 .gif
(continua)
38 ALTERAÇÕES DAS FUNÇÕES COGNITIVAS: MEMÓRIA E INTELIGÊNCIA
Quadro 111
Contribuições ao conceito de inteligência - panorama histórico (continuação) Principais contribuições Edward L. Thorndike (1874- 1949) psicólogo americano http:l/www.indiana.edu/ - intell/ ethorndike.shtml
Louis Leon Thurstone (1887- 1955) psicometrista inglês
Em sua teoria multimodal da inteligência, postulou a inteligência como um composto de grande número de habilidades altamente particularizadas, resultante de um número indefinido de capacidades específicas diferentes. Agrupou-as em três classes gerais de funcionamento intelectual: abstrato (lidar com ideias e símbolos); concreto (lidar com coisas do mundo físico); inteligência social (lidar em situações interpessoais) 1u 3•
Em 1938, divulgou a chamada teoria das aptidões primárias, que considerava a inteligência como resultante de algumas capacidades mentais primárias: compreensão verbal; fluência verbal; número; memória; velocidade perceptual; espaço; indução ou raciocínio geral, ampliando o conceito bifatorial da inteligência 10•13•16•
http:l/www.unc.edu/depts/ quantpsy/th urstone/i mages/llt. Jpg
Alfred Binet (1857- 1911) psicólogo francês
Nomeado pelo governo francês em 1904 para estudar processos de educação para crianças subnormais Qunto com T. Simon), criou a Escala Binet-Simon de Inteligência (1905). Considerava o julgamento como a característica principal da inteligência 10•
http:l/www.indiana.edu/ - intell/ binetshtml
Théodore Simon (1873- 1961) psicólogo francês
Coautor da Escala Binet-Simon de Inteligência (1905), encarregou Jean Piaget de administrar testes de leitura em crianças parisienses, o que entusiasmou Piaget a investigar os sucessos e fracassos de crianças, levando-o à área da psicologia infantil 11 •
http:l/www.ifits.fr/l MG/jpg/ TSarton34.jpg
Lewis Madison Terman (1877- 1956) psicólogo cognitivista francês http:l/media-2.web.britannica. com/eb- media/65/9065-0040B6CFOEB.jpg
Henri Wallon (1879- 1962) psicólogo francês http:l/www.henriwallon.com/ lconographie/BD/BERBO 1DO 1. Jpg
Ao revisar e adaptar para a população americana a Escala Binet-Simon, esta passou a ser conhecida como Escala Stanford- Binet (1916). Adotou a sugestão de Stern de que a razão entre a idade mental (IM) e a cronológica (I C) serviria como medida de inteligência (a multiplicação por 100 objetivava dispensar os decimais): surge o Q.l. = IM/IC x 100. Considerava a existência de diferenças individuais 10•11 •
Em Wallon, a emoção promove desenvolvimento da inteligência, que passa a determinar a ação humana. Organizou um sistema de estágios de desenvolvimento: impulsivo emocional, sensório-motor, projetivo, personalismo, categoria! e adolescência (todos os estágios possuem quatro categorias fundamentais: emoção, imitação, movimento, o eu e o outro, caracterizadas por atividades preponderantes) 18.
(continua)
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro 111
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
Contribuições ao conceito de inteligência - panorama histórico (conunuação) Principais contribuições Lev Semyonovich Vygotsky (1896- 1934) psicólogo Russo http://www. vygotskydocumentary.com/ images/vygotsky.jpg
Jean Piaget (1896- 1980) psicólogo suíço www.piaget.com.br/img/ fotos/ jeanpiaget1.jpg
Joy Paul Guilford (1897- 1988) psicólogo americano
Para ele, a aprendizagem e a inteligência se constroem mediante a relação da criança com o ambiente sociocultural e é definida pela internalização da linguagem social. Tal processo se constitui entre o nível de desenvolvimento real (conhecimentos incorporados) e o potencial (conhecimentos a adquirir); elaborou o conceito de zona de desenvolvimento proximal, que seria o momento em que a criança consegue fazer algo com a ajuda de outras pessoas, quando a aprendizagem seria exitosa17•18•
Para Piaget, a inteligência é uma extensão de certas características biológicas. Na dinâmica existente entre a assimilação da experiência e a acomodação ao meio ambiente, formam -se esquemas, que são modificados pela inteligência a fim de ajustá-los aos novos elementos. Na sua teoria da epistemologia genética, desenvolveu os estágios de desenvolvimento cognitivo: sensório-motor, pré-operatório, operações concretas e operações formais 11 •
Autor do modelo da estrutura do intelecto, no qual classifica os traços intelectuais em três dimensões: operações (o que o sujeito faz, ou seja, processos psicológicos básicos ou operações cognitivas); conteúdos (tipo de material ou informação em que as operações são realizadas); e produtos (formas como a informação é processada) 10.
http://www.psykologiskatest.se/ wp-content/uploads/2009/07I JP_Guilford.jpg
David Wechsler (1896- 1981) psicólogo americano
Criador das Escalas Wechsler de Avaliação da Inteligência para adultos e crianças. Segundo ele, "inteligência é a capacidade agregada ou global do indivíduo para agir intencionalmente, pensar racionalmente e lidar eficazmente com seu ambiente" 11 •
http://www.indiana.edu/- intell/ wechsler.shtml
Raymond Cattell (1905- 1998) psicólogo inglês http://www.indiana.edu/ - intell/ rcattell.shtml
John L. Horn (1928-2006) psicólogo americano
Lançou as bases da teoria da inteligência fluida e cristalizada (Gf-Gc), ambas consideradas fator geral de inteligência. A inteligência fluida estaria relacionada ao raciocínio frente a situações novas; a inteligência cristalizada seria o resultado do conhecimento e a aculturação acumulados, que refletiriam as diferenças individuais. A inteligência passa a ser vista dentro de um modelo hierárquico10· 14· 15•
Em sua revisão da teoria de R. Cattell, postula as habilidades gerais como compostas por Gf, Gc, processamentos visual e auditivo, memória e recuperação de memória a longo prazo. conhecimento quantitativo, velocidades de processamento e de decisão; as habilidades específicas estariam diretamente relacionadas às tarefas apresentadas 14"16.
http://www.indiana.edu/ - intell/ hom.shtml
(continua)
38 ALTERAÇÕES DAS FUNÇÕES COGNITIVAS: MEMÓRIA E INTELIGÊNCIA
Quadro 111
Contribuições ao conceito de inteligência - panorama histórico (continuação) Principais contribuições John B. Carroll (1916-2003) psicólogo educacional amencano http://www.indiana.edu/ - intell/ horn.shtml
Howard Gardner (1943-) psicólogo americano http:l/www.indiana.edu/- intell/ gardner.shtml
Peter Salovey psicólogo cognitivista amencano http:l/www.yale.edu/ psychology/Faclnfo/Salovey.jpg
Daniel Goleman (1946-) psicólogo americano
Elaborou a teoria das três camadas, atualmente conhecida como teoria CHC (Catteii-HornCarroll), um modelo hierárquico da inteligência, sendo a camada I representante das capacidades específicas; a camada li referente às capacidades amplas ou gerais; e a camada 111 considerada a única capacidade geral. Segundo Carroll, a Teoria CHC "especifica os tipos de diferenças individuais em habilidades cognitivas e como esses tipos de diferenças individuais estão relacionadas" 16•17•
Para ele, inteligência "é a capacidade de resolver problemas ou de elaborar produtos que sejam valorizados em um ou mais ambientes culturais ou comunitários". Em sua teoria das inteligências múltiplas, considera as seguintes competências intelectuais: musical; corporal-cinestésica; lógico-matemática; linguística; espacial; interpessoal; intrapessoal; naturalística; espiritual; existenciaP 0·19 •
Introduziu, junto com Mayer e Caruso, o conceito de inteligência emocional OE). que representaria o processamento de informações emocionais e o uso favorável no processo adaptativo. Determinaram quatro níveis de capacidades: identificar e perceber as emoções; usar as emoções para facilitar o pensamento e a cognição; conhecimento emocional de si e dos demais; capacidade de regulação emocionaP 0·20.
Baseado nos estudos de Mayer-Salovey-Caruso, publicou um livro no qual define a inteligência emocional como: capacidade de reconhecer os próprios sentimentos e dos outros, auto motivar-se e administrar as emoções nos âmbitos individual e interpessoal21 •
http:l/www.danielgoleman.info/ pics/danny.jpg
Robert J. Sternberg (1949-) psicólogo cognitivista amencano http:l/www.indiana.edu/ - intell/ sternberg.shtml
Elaborou a teoria triárquica da inteligência [bem-sucedida]. na qual um sujeito inteligente combina três habilidades: sintética (ver um problema sob novo ângulo); analítica (reconhecer as ideias que merecem ser investidas); prática-contextual (persuadir os demais sobre o valor de suas próprias ideias). de modo a "conseguir o que se deseja dentro de seu contexto sociocultural, (...)capitalizando sobre seus pontos fortes e compensando ou corrigindo suas fraquezas)" 102223 .
ver um problema por um novo ângulo (habilidade sintética), de identificar as ideias que merecem investimento (habilidade analítica) e de persuadir outras pessoas sobre o valor das próprias ideias (habilidade prática-contextual). O Quadro III favorece um panorama geral do processo histórico, com as contribuições dos principais investigadores da inteligência.
Defini ções Não existe uma "topografia" da inteligência, uma vez que ela não pode ser depreendida das estruturas cerebrais; tampouco a capacidade intelectual pode ser afe rida diretamente pelos processos cognitivos da ação do homem no seu ambiente; é necessário o entendimento
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
das condições do meio para a expressão da inteligência, bem como dos fatores estruturais e dinâmicos da personalidade que intervêm no recrutamento das funções intelectivas. No Simpósio sobre Inteligência, em 1921, em uma tentativa de organizar os conhecimentos à época sobre a questão, foram expostas várias teorias que envolviam conceitos diferentes, mas que postulavam a existência de uma inteligência geral, várias faculdades diferenciadas ou múltiplas aptidões independentes. Objetivando coesão das informações, recorreu-se ao método estatístico da análise fatorial de modo a verificar se alguns elementos estão contidos como fatores comuns em todos os tes tes correlacionados e qual o peso de cada fator em um dado teste 10•13 • Em 1986, nova análise da inteligência foi efetuada e, dessa feita, os especialistas a definiram como: Capacidade para aprender a partir da experiência, usando processos metacognitivos para melhorar a aprendizagem, e a capacidade para adaptar-se ao ambiente circundante, que pode exigir diferentes adaptações dentro de diferentes contextos sociais e culturais 14•
O Conselho de Assuntos Científicos da APA (American Psychological Association), em 1995, efetuou uma força-tarefa intitulada Intelligence: Knowns and Unknowns, objetivando "preparar um inquérito imparcial do estado da arte: tornar claro o que tem sido cientificamente provado, que está atualmente em conflito, e que é ainda desconhecido" 9 . Concluiu-se que a maior parte dos estudos está baseada em métodos psicométricos e que encontrar a resposta exige esforço compartilhado e compromisso de recursos científicos substanciais24 • Quanto às definições sobre o conceito de inteligência, os pesquisadores da APA mencionaram:
Quadro IV
Os indivíduos geralmente diferenciam-se uns dos outros em suas habilidades de entender ideias complexas, de adaptar-se efetivamente ao ambiente, de aprender através da experiência, de utilizar formas variadas de raciocínio e de superar obstáculos através do pensamento. Embora essas diferenças individuais possam ser grandes, elas nunca são inteiramente consistentes: o desempenho intelectual de uma pessoa varia em ocasiões diferentes, em domínios diferentes, e segundo for julgado por diferentes critérios24 .
Para Anastasi & Urbina 10 , o termo inteligência seria: "não qualificado, usado com ampla diversidade de significados pelos leigos". Acrescenta que a inteligência não pode ser considerada como habilidade única, mas: Um composto de várias funções, uma combinação de várias habilidades, que tendem a aumentar com o amadurecimento e que são necessárias para a sobrevivência e para o avanço em uma determinada cultura; portanto, variável10.
Ainda que não seja o escopo desse livro, torna-se extremamente necessário acrescentar as contribuições da psicanálise em relação aos aspectos psicológicos envolvidos no processo intelectual. Limitar-nos-emos a mencionar Safra25 , que assim define o processo intelectual: Pode-se conceber a inteligência como a matriz que capacita o indivíduo a conhecer a realidade externa e interna, a fim de que possa relacioná-las criativamente, para posicionarse no mundo sem perder a sua individualidade (p.llS).
Inteligência e criatividade Considerando que a inteligência envolve um conjunto de habilidades que permitem que um indivíduo lide com abstrações e situações novas, a criatividade poderia
Definições ou indefinições?
A Força-Tarefa da APA (1996) também enfatizou a necessidade de atentar às dúvidas ainda presentes sobre alguns dos achados, em "Resumo e Conclusões": 1) Existem diferenças individuais na inteligência, as quais aumentam com idade, mas não se sabe ao certo a contribuição da herança genética para tais diferenças individuais. 2) Fatores ambientais (como escolaridade) também contribuem para o desenvolvimento da inteligência, mas não há clareza sobre tais fatores ou seu funcionamento. 3) Ainda que os efeitos da desnutrição grave na infância sejam evidentes, o papel da nutrição permanece obscuro e não há suporte científico. 4) Correlações significativas entre "velocidade de processamento de informações" e "inteligência" foram obtidas, mas não há interpretação teórica consistente sobre esse achado. 5) Observa-se crescimento constante na média dos escores em testes de inteligência da população (até um desvio padrão nos últimos cinquenta anos ou mais) e a taxa de elevação pode ser maior. Por outro lado, não há evidências sobre sua causa ou seu significado. 6) As diferenças nas médias de inteligência entre negros e brancos (cerca de um desvio-padrão), as quais podem estar diminuindo, não estão diretamente relacionadas às diferenças na condição socioeconômica e, ainda que explicações baseadas em fatores de casta e de cultura possam ser apropriadas, elas têm pouco suporte empírico direto, o mesmo podendo-se dizer acerca de uma interpretação genética. Atualmente, são desconhecidas as causas dessa diferença. 7) Os testes padronizados não apresentam amostras de todas as formas de inteligência, tais como criatividade, sabedoria, senso prático e sensibilidade social. Apesar da importância dessas habilidades, sabemos muito pouco sobre seu desenvolvimento e sobre os fatores que as influenciam. Fonte: adaptado de Neisser U, et al.9 .
38 ALTERAÇÕES DAS FUNÇÕES COGNITIVAS: MEMÓRIA E INTELIGÊNCIA
estar envolvida nesse processo ou seria ela mesma um sinônimo de inteligência? Se tomados como construtos relacionados, poder-seia pensar que a alta capacidade cognitiva implicaria em maior facilidade no acesso e manipulação de informações, com eficiência na utilização do raciocínio lógico, com criação de associações entre ideias e compreensão mais abrangente sobre os vários aspectos envolvidos na resolução de um problema, tal como preconizou, em 1981, Sternberg22 • Assim, uma das principais características da criatividade seria a emergência de um novo produto, seja uma ideia ou uma invenção, com elaboração singular ou melhoria de produtos ou ideias já existentes26 • Estudos recentes procuram englobar diversos fato res, além do intraindividual, para a ocorrência da criatividade; a partir da década de 1970, os estudos se focaram na influência de fatores sistêmicos (sociais, culturais e históricos) no desenvolvimento da criatividade22 . Também o estudo da criatividade foi fonte de encontros e congressos internacionais sobre o tema, ressaltandose o do ano de 1990, na Universidade de Buffalo, quando uma conceituação mais ampla foi proposta, sendo a criatividade entendida como: resultado da interação entre processos cognitivos, características de personalidade, variáveis ambientais e elementos inconscientes, envolvendo aspectos multidimensionais27 . Segundo Barros et al. 26, a maioria das pesquisas na área se refere às medidas de pensamento divergente (i. e., solução diferente da apresentada pela maioria), mais especificamente, do processo criativo na resolução de problemas; e, ainda de acordo com os autores, objetivando definir a criatividade, as teorias da Gestalt suportam a contribuição do pensamento metafórico e analógico no processo criativo.
Quadro V
Para Solange Wechsler (1993, 1995), a criatividade deve ser compreendida como um processo global, na qual aspectos afetivos desempenham um papel decisivo na sua expressão27 . Algumas teorias sobre a criatividade foram desenvolvidas, citando-se aqui: o modelo componencial da criatividade (Amabile), a perspectiva de sistemas (Csikzentmihalyi) e a teoria do investimento em criatividade27 -30 , cujos aspectos essenciais são resumidos no Quadro V Na psicanálise, segundo Santeiro 30, quando discorria sobre o método da interpretação de sonhos (em A interpretação de sonhos, de 1900), Freud já referia que a criação poética deveria exigir uma atitude semelhante àquela utilizada pelo paciente ao associar livremente e, em 1908, Freud relacionou a criação literária do adulto ao brincar infantil, sendo aquela uma espécie de transformação deste. O psicanalista Donald Winnicott, em 1971, aprofundou o tema da criatividade, considerando o brincar como atividade que permite o ato criativo - seja da criança ou do adulto; a criatividade situa-se em um espaço que não é nem o da realidade psíquica nem o da realidade externa, mas sim um espaço potencial, o espaço transicional3 1•
Ciclo vital e inteligência Os estudos sobre o processo intelectivo durante o cielo vital propiciaram melhor compreensão dos fatores envolvidos, uma vez que a criança está em processo de desenvolvimento e, portanto, de aquisição de conhecimentos e de habilidades intelectuais e, por outro lado, o idoso apresenta um declínio no potencial cognitivo. O psicólogo Piaget, na França do século XX, contribuiu substancialmente para a compreensão dos processos mentais na inteligência da criança. Segundo ele31:
Teorias da criatividade
Modelo componencial da criatividade (Amabile, 1982)
Perspectiva de sistemas (Csikszentmihalyi, 1982)
Teoria do investimento em criatividade (Sternberg & Lubart, 1996)
• Criatividade é representada por três fatores: habilidades relevantes ao domínio (conhecimento técnico específico para a confecção de um produto e seu potencial genético para manifestação de altos níveis dessa perícia); habilidades relevantes à criatividade (características de personalidade vinculadas ao processamento heurístico de informações, às competências mnemônicas e à disciplina); e habilidades relevantes à motivação (orientação favorável à tarefa e percepção dos mecanismos de gratificação social)27.28. • A motivação é destacada pelo seu caráter vincular entre todos os demais componentes, avaliando constantemente a relação entre os custos e os benefícios de cada novo produto 28 •
• Criatividade como interação entre indivíduo (representante da história, é impulsionado pela motivação, traços de personalidade ou apropriação de conhecimentos); campo (representado pelos práticos ou especialistas da sociedade que julgam, premiam ou desencorajam a inovação com base em fatores econômicos. ideológicos. técnicos e logísticos de sua época); e domínio (representante da cultura simbólica, unindo necessidades, informações e transmitindo comportamentos às gerações vindouras2s.3o. • Neste modelo, a epistemologia sistêmica confia nas biografias e nos estudos de caso, restringindo os critérios de validade e confiabilidade à profundidade da análise e às relações que essa mesma instância possa construir28·30 •
• Criatividade tende a ser, mas não totalmente, um domínio específico e distinto da inteligência medida psicometricamente 29. • O comportamento criativo é resultado de seis fatores distintos e inter-relacionados: inteligência, estilos intelectuais, conhecimento, personalidade, motivação e contexto ambiental 28. • Confluência de três importantes habilidades intelectuais: sintética, analítica e práticacontextual22·29. • Criatividade é facilitada quando as pessoas estão dispostas a gastar tempo para pensar em novas formas. Presumivelmente, os melhores pensadores reconhecem que é melhor investir mais tempo, de modo a ser capaz de processar um problema de forma mais eficiente no futuro 29.
481
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
A inteligência constitui o estado de equilíbrio para o qual tendem todas as adaptações sucessivas de natureza sensório-motora e cognitiva, bem como todas as interações de assimilações e acomodações entre o organismo e o ambiente (p.ll).
Segundo Piaget, o indivíduo herda estruturas biológicas e em contato com o ambiente amadurece, propiciando o desenvolvimento da inteligência, através de esquemas, ou seja, de uma estrutura básica de ação ou pensamento. A adaptação às novas situações envolve os processos de assimilação (utilização de esquemas já internalizados) e de acomodação (esquemas já existentes vão sendo modificados em função das experiências das crianças no meio ambiente). O processo de equilibração, por sua vez, é o responsável pela regulação entre assimilação e acomodação de modo a fazer com que a criança possa compreender e atuar na realidade. Importante notar que a inteligência apresenta características próprias de acordo com o período de desenvolvimento que a criança se situa e, assim, Piaget estrutura o desenvolvimento cognitivo em estágios de evolução integrativa (os esquemas adquiridos são integrados no período seguinte) e com funcionamentos específicos, resumidamente apresentados a seguir32 : • Sensoriomotor (O a 24 meses): sendo um período caracterizado por um "egocentrismo" inconsciente, mas com progressiva diferenciação entre realidade interna e externa, as ações e experiências são as organizadoras da construção do conhecimento; ocorre uma evolução dos atos reflexos, mais restritos, para atos intencionais complexos e variados que caracterizam a inteligência. • Pré-operatório (2 a 7 anos): o egocentrismo setorna mais atenuado, porém persiste a dificuldade de considerar o outro com sentimentos e vida próprios. Ocorre o desenvolvimento da linguagem e dos esquemas simbólicos, mas o pensamento ainda carece de lógica (há o predomínio do pensamento mágico). • Operações concretas (7 a 11 anos): a realidade passa a ser estruturada pela lógica por meio de esquemas conceituais; o pensamento mágico é substituído por uma atitude crítica; as operações mentais se mantêm independentes de transformações perceptuais, porém dependentes de um sistema de referência. • Operações formais (12 anos em diante): o pensamento abstrato e simbólico possibilita prever e interpretar a experiência; a afetividade e a inteligência se tornam indissociáveis e essenciais para qualquer ação, sendo a primeira, fonte de motivação e a segunda, a responsável pela identificação de objetivos e meios para atingi-los, bem como de justificativas para os julgamentos e atos. Ao longo da vida adulta, o sujeito vai definindo seu estilo intelectual, moldado muitas vezes por características psicológicas; assim, um indivíduo com grande dependência do meio ambiente pode se tornar menos ambicioso intelectualmente e não desenvolver potencialidades.
Do mesmo modo, alterações psiquiátricas podem prejudicar o recrutamento da capacidade intelectiva sem que, necessariamente, o sujeito careça de recursos cognitivos. Nesses casos, torna-se mister o entendimento da dinâmica psicológica subjacente, de modo a promover intervenção adequada dos aspectos psíquicos na eficiência do uso da inteligência. No idoso, a cognição passa a apresentar-se de modo peculiar, sendo que o declínio cognitivo não é primariamente caracterizado pela perda da habilidade intelectual, ainda que muitas vezes a sintomatologia se manifeste como dificuldade em manejar a própria vida, tal como ocorria na vida adulta; obviamente, aqui também os fatores de ordem emocional devem ser levados em conta. Contudo, o funcionamento cognitivo do idoso parece alterado em relação à vida adulta em função de algum recrudescimento na velocidade de processamento das informações ou aumento na fixidez mental, observado através de certa dificuldade na resolução de novos problemas sem que, de fato, isso se deva à diminuição intelectual. Tais dificuldades decorrem de alterações quanto à inteligência fluida, ao passo que a inteligência cristalizada se mantém estável, favorecendo a capacidade de generalização da experiência. As alterações cognitivas do idoso se centram, portanto, em memória episódica, habilidades espaciais e funções executivas33 •
Aspectos biológicos da inteligência: genótipo ou fenótipo? A ciência genética procura identificar, no DNA, genes responsave1s por caractenstlcas comportamenta1s; todavia, tais características são determinadas tanto por diversos pares de genes como por sua interação com os fatores ambientais (desde o momento da fecundação do gameta feminino pelo espermatozoide, incluindo a vida intrauterina e a vida pós-natal por meio da educação recebida e das influências culturais), o que dificulta a associação "fatores genéticos" e "fenótipos comportamentais". Portanto, as pesquisas do comportamento humano devem levar em consideração fatores múltiplos, sejam eles biológicos, culturais ou de particularidades psicológicas 34 • Quanto à inteligência, apesar dos esforços da pesquisa genética, a mesma ainda não conseguiu estabelecer uma correlação direta entre genes específicos e inteligência normal, mas há evidências da participação de cerca de 300 genes no retardo mental (sendo que cerca de 20% estariam localizados no cromossomo X 34b, mas essa porcentagem pode estar supervalorizada). Como muitos genes do cromossomo X não parecem ser polimórficos na população geraP4c, as variações na inteligência podem ser resultantes de raras mutações individuais (habilidades específicas que contribuem para a inteligência geral, particularmente nas habilidades verbal e espacial). Desse modo, parece consistente a ideia de que o fator geral da inteli,
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gência (fator g) seja influenciado por genes diferentes, em diferentes graus e em indivíduos diferentes35,36 • De acordo com Dal-Farra & Prates3\ os estudos entre inteligência e fatores genéticos incluem estimativas de correlações de Q.I. em gêmeos (obtidas correlações de 0,86 em gêmeos monozigóticos criados no mesmo ambiente e 0,72 para os criados separadamente) ou entre irmãos (correlações de 0,47 para irmãos criados juntos e 0,24 para os que foram criados separadamente), segundo Atkinson et. al., 1995, indicando a participação de fatores genéticos na inteligência. Tais correlações, entretanto, podem ser a expressão de fatores genéticos associados a fatores ambientais, conforme enfatizam os autores. Em outros estudos analisados pelos autores, foram encontrados valores mais elevados de QI para indivíduos adotados do que seria esperado se tivessem ficado com os seus pais biológicos, demonstrando a importância do ambiente no desenvolvimento da inteligência34 • As inabilidades intelectuais decorrentes do retardo mental devem-se a fatores diversos, tais como37 : • Pré-natais: além dos genéticos, os fatores ambientais podem ocasionar prejuízo intelectivo como transtornos endocrinológicos maternos, hipóxia intrauterina, infecções, intoxicações pré-natais (tais como síndrome do álcool fetal e intoxicação por chumbo), nutricionais, físicos (radiação, por exemplo), imunológicos e disgenesias cerebrais. • Perinatais: tais como anóxia, traumatismo obstétrico e prematuridade. • Pós-natais: destacando-se infecções, traumatismos cranioencefálicos, fatores químicos, fatores nutricionais e privações diversas.
As funções cognitivas da inteligência O estudo das capacidades cognitivas, do estabelecimento de relações entre o cérebro e o comportamento, começou a tomar forma como ciência com os estudos de Aleksandr Romanovich Luria (1903 -1978), originando um novo ramo científico: a neuropsicologia. De acordo com Camargo et al. 38, a neuropsicologia se preocupa em compreender as lesões ou disfunções cerebrais em termos do "estabelecimento da extensão, do impacto e das consequências cognitivas, comportamentais e na adaptação emocional e social" 38 • Por meio dos estudos de Lu ria em pacientes lesionados39 , surgiu a compreensão do funcionamento cognitivo como um processo dinâmico, sendo a atividade hu mana um sistema complexo efetuado por meio de uma combinação de estruturas cerebrais que funcionam em "concerto": "cada uma das quais dá a sua contribuição peculiar para o sistema funcional como um todo" 39 • Denominou tais estruturas de "unidades funcionais" e a elas atribuiu as características de variabilidade e plasticidade, o que permite a estruturação sistêmica de processos psicológicos complexos.
Em resumo, a primeira unidade funcional é responsável pela regulação do tônus, da vigília e dos estados mentais, o que promove o equilíbrio do sistema autonômico, a regulação interna do organismo e a seletividade dos pro cessos mentais, a fim de modular o estado de atividade cerebral: tônus e vigília (regiões subcorticais e formação reticular). À segunda unidade funcional cabe o recebimento, a análise e o armazenamento de informações das divisões corticais posteriores (visuais na região occipital, auditivas nos lobos temporais e sensorial geral no lobo parietal), concorrendo ao funcionamento coordenado dos vários analisadores e à produção de esquemas-base para atividades cognitivas complexas. A terceira unidade funcional opera a programação, a regulação e a verificação da atividade humana (regiões anteriores dos hemisférios: córtex frontal, que corresponde ao primeiro terço do cérebro), por meio da comparação dos efeitos de suas ações com as intenções originais e de posteriores correções, caso necessário39 . Em relação à "inteligência'', esse termo foi inicialmente utilizado pelos neuropsicólogos para definir toda a atividade cognitiva mas, segundo Lezak40 , muitos comportamentos avaliados por testes de inteligência na verdade eram representativos de funções cognitivas específicas; as pesquisas neuropsicológicas também concluíram que os resultados em testes não mantêm relação direta com o tamanho de lesões40 • Luria4 1 referia que, por seu caráter complexo, a inteligência deveria ser compreendida como um todo, considerando que o potencial intelectual é requerido em situações nas quais: O sujeito não tem meios previamente estabelecidos para alcançar o objetivo desejado e em que ele deve analisar a situação (escolhendo seus componentes essenciais e relacionando-os uns com os outros), formular hipóteses, desenvolver uma estratégia e escolher operações táticas ou métodos definitivos para sua realização 4 1 .
Tais situações envolvem, particularmente, o r e crutamento das funções executivas, as quais consistem naquelas capacidades que, segundo García-Molina et alY, são subjacentes ao comportamento inteligente, posto se referirem às funções cognitivas responsáveis pela solução de situações complexas, imprevistas ou que se alteram de forma adaptativa. Muitos pesquisadores têm se dedicado a estudar o locus da inteligência, normalmente atribuindo aos lobos frontais, particularmente ao córtex pré-frontal, esse estatuto. Contudo, Sternberg43 faz uma crítica extremamente pertinente, alegando que a ativação de determinadas áreas do cérebro durante o pensamento inteligente não significa que sua ativação seja a causa desse processo de pensamento, o qual considera muito mais complexo43 . Stuss e Benson44 observam que a localização cerebral não corresponde à função cognitiva, o que torna mais di-
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fícil uma topografia do funcionamento cerebral; portanto, a localização não pode, por si mesma, ser vista como uma medida que delimita a função de uma área cerebral específica. Acrescentam que o cérebro atua como uma unidade integrada, e que cada sistema mantém conexões diretas e recíprocas com o córtex frontal para supervisão da execução dos comportamentos. Para eles, as patologias do lobo frontal indiretamente causam distúrbios nos demais sistemas funcionais, não alterando suas atividades básicas, mas interferindo no funcionamento executivo em decorrência de alterações no "drive parà' e na "sequência do" comportamento44, o que faz confluir a ideia da íntima relação entre os conceitos "inteligêncià' e "funções executivas"42 • Em seus estudos sobre o comportamento do sujeito após lesões, Luria4 1 verificou que a síndrome frontal era caracterizada por uma contradição inerente: a preservação em potencial da inteligência formal, mas um distúrbio profundo na atividade intelectual, notadamente por falha nas operações lógicas. Esse achado tão antigo parece devolver a luz ao fato de que pacientes com dificuldades executivas não necessariamente se saem mal em atividades psicométricas intelectuais45 . Estudos de neuroimagem procuram detectar os circuitos neuronais ativados durante atividades intelectuais. Regiões frontotemporais têm sido atribuídas aos processos inteligentes, de acordo com Jung e Haier46,47; entretanto, algumas críticas se sucederam, uma vez que os processos inteligentes não podem ser considerados apenas levando-se em conta os resultados em testes padronizados ou mesmo se reduzidos à inteligência fluida, uma vez que diversos outros fatores interferem no recrutamento intelectivo; a análise do comportamento humano deve levar em conta os processos córtico-subcorticais, muitas vezes a nível inconsciente, ainda que não necessariamente uma definição da inteligência possa se dar levando-se em conta os aspectos bioquímicos envolvidos48 • Teorias da mente que procuram estudar a capacidade humana de compreender os estados mentais dos outros e de si mesmo também se deparam com as questões da metacognição e com o envolvimento da emoção no processamento de informações mentais, abrindo longo caminho para o estudo dos processos intelectuais e sua manifestação no comportamento humano, merecendo ser tratado como assunto à parte49,50 .
Aspectos psicológicos da inteligência O desenvolvimento de conceitos que se referem ao estudo particularizado dos processos psicológicos pela decomposição em fatores específicos fornece subsídios para o entendimento do funcionamento intelectual em diferentes estágios do desenvolvimento. Todavia, não é suficiente para a compreensão integrada do sujeito. Assim, como afirma Yehia59:
O estudo do comportamento inteligente, ou outro, deve então ser feito em função da personalidade e do contexto so cial d o qual o indivíduo é integrante, sendo visto como um processo, isto é, de maneira dinâmica. [... ] Assim, quando enfocamos a produção intelectual de uma pessoa, não podemos nos esquecer da influência dos afetos e do ambiente sobre ela (p.22).
O papel dos aspectos emocionais e sociais no desenvolvimento ou inibição do potencial intelectual há muito é considerado pela ciência psicológica, desde Freud, o qual concebeu o trabalho intelectual como a forma sublimada de obter prazer, mediante um desvio do alvo pulsional51 ,52 . Para ele, a inibição intelectual seria uma das formas de inibição dos aspectos instintivos de modo a evitar o conflito entre as instâncias psíquicas 53,54 . Melanie Klein 54 apontava que os processos intelectuais dependem de experiências emocionais muito precoces na vida da criança 13,53,54 e Anna Freud55 ressaltava que, na inibição, o ego se defende dos próprios processos internos, pelo conflito entre o desejo do id e a defesa estabelecida pelo ego55 • Nas últimas décadas, Tarnopolsky, em 1995, e Safra em 1987, atentam à imbricação dos aspectos cognitivos e emocionais, culminando na necessidade de uma compreensão mais abrangente da inteligência24,56 • Gilberto Safra24 lembra que o ego é a instância psíquica responsável pelo juízo, o qual possibilita o pensamento adaptado ao princípio de realidade. Para o autor, os encadeamentos de ideias e as capacidades degeneralização de experiências e de discriminação de aspectos relevantes da realidade só se efetivam quando o sujeito consegue tolerar a angústia; caso contrário, ocorre um ataque e uma fragmentação às funções perceptivas e ao pensamento, originando a inibição intelectuaF4 • Para Tarnopolski56 a questão é urgente, pois as dificuldades escolares muitas vezes encobrem estruturas psíquicas imaturas ou menos saudáveis - mesmo pelo seu contrário, posto que nem todas as pessoas com inteligência média conseguem uma boa aprendizagem. Em uma recente pesquisa no Brasil57, crianças com queixas de dificuldade escolar e que apresentavam nível intelectual normal (medido por meio da Escala Wechsler de Inteligência para Crianças, 3. ed.), demonstravam uma inibição do impulso ligado à curiosidade e ao conhecimento; para a autora, essa inibição presumivelmente se estende à aprendizagem escolar e impede a utilização, por parte da criança, de sua capacidade intelectual57 •
Aspectos sociais da inteligência O papel da cultura, do ambiente e do entorno social para o desenvolvimento humano é indiscutível, até mesmo pelo aspecto da dependência do homem ao outro para sua sobrevivência, não só física como mental. Do mesmo modo, as condições ambientais são importantes para o
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adequado desenvolvimento cognitivo, desde os aspectos sanitários até os nutricionais e acadêmicos. As diferentes culturas também irão valorizar elementos diversos do conhecimento intelectual. Para Sternberg e Grigorenko58, as pessoas e a sociedade utilizam melhor suas habilidades, os indivíduos são reconhecidos por elas e as instituições de ensino conseguem atingir as crianças e ensiná-las mais adequadamente, quando o contexto cultural é levado em conta. Concluem dizendo que os processos intelectuais são universais, mas não suas manifestações58 • Gilberto Safra24 enfatiza a influência do fator cultural, uma vez que a criança irá utilizar o cabedal de informações que teve a oportunidade de receber do ambiente16, o que pode influenciar os resultados nas provas estandardizadas de inteligência, o que também salientam Sternberg e Grigorenko 58 •
Capacidade intelectual e alterações A partir do exposto, fica claro que as alterações da capacidade intelectiva devem ser analisadas de modo multiaxial: a) explorações sobre alterações inatas - genéticas ou decorrentes de desenvolvimento embrionário anormal; b) desvios do desenvolvimento cognitivo- atraso no desenvolvimento neuropsicomotor ou perda de habilidades anteriormente desenvolvidas pelo sujeito; c) fatores externos que promovem quebra da capacidade intelectual - traumas encefálicos, por exemplo; d) dificuldades de ordem emocional ou social interferindo no recrutamento do potencial cognitivo - desenvolvimento patológico ou fatores ambientais inibidores.
Considerações finais Memória A memória geralmente é vista como sistemas de armazenamento múltiplo ou como formas distintas de processamento, sendo essencialmente imprescindível para o funcionamento cognitivo geral e demais funções cerebrais superiores, e pode ser classificada de diversas formas. Segundo Jaspers, podemos entender três aspectos diversos da memória, quais sejam, 1) a capacidade de fixação; 2) a memória propriamente dita e 3) a capacidade de reprodução. As principais alterações psicopatológicas relacionadas à memória são a hipermnésia, hipomnésia, amnésia e as alterações qualitativas, como as ilusões mnêmicas, alucinações mnêmicas, fabulações, dejá vu, criptomnésia, ecmnésia. Testes de memória geralmente se baseiam em aprendizagem de informações novas, podendo-se então investigar a dinâmica das aquisições. Geralmente são
aplicadas em baterias de testes neuropsicológicos, para avaliação funcional da memória.
Inteligência Os processos intelectuais, por serem complexos e diretamente relacionados aos aspectos biológico, psicológico e também social, necessitam ser entendidos do ponto de vista da hereditariedade e das competências que vão sendo adquiridas durante o desenvolvimento, bem como daquelas que são inibidas em função de aspectos da personalidade ou mesmo socioculturais. Salientamos a importância da diferenciação entre capacidade e eficiência intelectual, posto que muitas vezes os indivíduos não apresentam possibilidade de desenvolvimento das capacidades intelectuais, ainda que presentes, seja decorrente de estrutura de personalidade comprometida, frágil ou imatura, seja em função de privações do ambiente sociocultural. Desse modo, apenas o entendimento multifacetado da inteligência pode vislumbrar possibilidades ao sujeito, de modo que os recursos cognitivos sejam usados não somente para adaptação ao ambiente, mas para o desenvolvimento de potencialidades e para o ato criativo. Minicaso clínico
Um menino de nove anos, cursando a 3ª série do ensino fundamental, destro, foi encaminhado para avaliação em decorrência de prejuízos na escrita, dificuldade em amarrar os sapatos e quadro de compulsividade, tendo sido levantadas hipóteses diagnósticas psiquiátricas de dislexia e inteligência limítrofe. De antecedentes familiares, tem-se o pai com diagnóstico de transtorno afetivo bipolar (TAB) e dislexia. O garoto desenvolveu-se de acordo com o esperado para engatinhar, andar e controle esfincteriano. Não há problema quanto à linguagem verbal; sem relato de distúrbios de sono ou da alimentação. Apresentou atraso da psicomotricidade, marcado pela dificuldade em amarrar os sapatos, acarretando prejuízo na linguagem escrita. Descrito pela mãe como criança metódica em relação a higiene e horários; o pai se mostra mu ito exigente com a criança. Quando estava com oito anos, apresentou comportamento de lavar as mãos a todo o momento, mesmo após secagem; perguntava se as pessoas haviam lavado suas mãos para fazer comida, após ir ao banheiro; não permitia que o tocassem. Os dados da avaliação apontaram para criança com rendimento intelectual muito acima da média, descartando a hipótese de inteligência limítrofe. As dificuldades cognitivas apresentadas estavam relacionadas ao déficit na orga nização de informações audioverbais e na velocidade de processamento de informações não verbais. O perfil em linguagem não estava relacionado diretamente com déficits na escrita, nem mesmo em compreensão ou vocabulário, o que descartou dislexia. Verificou-se, por outro lado, prejuízo da psicomotricidade, o qual parece se relacionar à dificuldade do paciente em explorar o ambiente espacial.
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O que se torna mais evidente no caso examinado relacionase à personalidade: os dados de história apontam para comportamento compu lsivo, o qual vem carregado de angústia que imobiliza o paciente. Avaliação de personalidade foi necessária nesse caso, de modo a investigar o funcionamento mental; os dados apontaram para criança com necessidade de aceitação de suas características e que não pode se desenvolver em fu nção da rigidez na estrutura da personalidade, com características obsessivas. Tal perfil impede o desenvolvimento do potencial intelectivo que dispõe, demonstrando inibição intelectual, ou seja, a capacidade está presente, mas a eficiência na vida está comprometida.
d) A memória pode ser classificada de diversas formas, como por exemplo, em memória procedimental, episódica e semântica: na procedimental são armazenadas respostas comportamentais aprendidas; na episódica fica armazenada a memória social; e na semântica estão armazenadas representações de conhecimento. e) A memória pode ser classificada de diversas formas, como por exemplo, em memória procedimental, episódica e semântica: na procedimental são armazenadas respostas comportamentais aprendidas; na episódica fica armazenada a memória autobiográfica; e na semântica estão armazenados representações de autoimagem.
Questões
3. Marque a alternativa verdadeira: a) Hipermnésia ocorre quando lembranças casuais são evocadas com mais vivacidade e exatidão que comumente ou quando se recordam particularidades que usualmente não surgem. b) Hipermnésia ocorre quando lembranças casuais são evocadas com menor vivacidade e exatidão que comumente ou quando se recordam particularidades que usualmente não su rgem. c) Hipermnésia ocorre quando lembranças importantes são evocadas com mais vivacidade e exatidão que comumente ou quando se recordam particularidades que usualmente não surgem. d) Hipermnésia ocorre quando lembranças casuais não são evocadas com mais vivacidade e exatidão que comumente ou quando se recordam particularid ades que usualmente não surgem. e) Hipermnésia ocorre quando lembranças usuais são evocadas com mais vivacidade e exatidão que comumente ou quando se recordam particularidades que usualmente não surgem.
1. Marque a alternativa verdadeira: a) A memória geralmente é vista como sistemas de armazenamenta múltiplo ou como formas distintas de processamento, não sendo essencialmente imprescindível para o funcionamento cognitivo geral e demais fu nções cerebrais superiores. b) A memória geralmente é vista como sistemas de armazenamenta variável ou como formas disti ntas de processamento, sendo essencialmente imprescindível para o funcionamento cog nitivo geral e demais fu nções cerebra is superiores. c) A memória geralmente é vista como sistemas de armazenamenta múltiplo ou como formas semelhantes de processamento, sendo essencialmente imprescindível para o funcionamento cognitivo geral e demais fu nções cerebrais superiores. d) A memória geralmente é vista como sistemas de armazenamenta múltiplo ou como formas distintas de processamento, sendo essencialmente imprescindível para o funcionamento cog nitivo geral e demais funções cerebrais superiores. e) A memória geralmente é vista como sistemas de armazenamenta único ou como formas distintas de processamento. sendo essencialmente imprescindível para o funcionamento cognitivo geral e demais funções cerebrais superiores.
2. Marque a alternativa verdadeira: a) A memória pode ser classificada de diversas formas, como por exemplo, em memória procedimental, episódica e semântica: na procedime ntal são armazenadas respostas automáticas; na episódica fica armazenada a memória autobiográfica; e na semântica estão armazenados representações de conhecimento. b) A memória possui uma classificação única, em memória procedimental, episódica e semântica: na procedimental são armazenadas respostas comportamentais aprendidas; na episódica fica armazenada a memória autobiográfica; e na semântica estão armazenados representações de conhecimento. c) A memória pode ser classificada de diversas formas, como por exemplo, em memória procedimental, episódica e semântica : na procedimental são armazenadas respostas comportamentais aprendidas; na episódica fica armazenada a memória autobiográfica; e na semântica estão armazenados representações de conhecimento.
4. Marque a alternativa verdadeira: a) Os transtornos qualitativos da memória de evocação são as ilusões mnêmicas, alucinações mnêmicas, hipemnésia, fabulações, fenômeno do dejá vu, criptomnésia e ecmnésia. b) Os transtornos qualitativos da memória de evocação são as ilusões mnêmicas, alucinações mnêmicas, fabulações, fenômeno do dejá vu, criptomnésia e ecmnésia. c) Os transtornos qualitativos da memória de evocação são as ilusões visuais, alucinações mnêmicas, fabu lações, fenômeno do dejá vu, criptomnésia e ecmnésia. d) Os transtornos qualitativos da memória de evocação são as ilusões mnêmicas, alucinações auditivas, fabulações, fenômeno do dejá vu. cri ptom nésia e ecmnésia. e) Os transtornos qualitativos da memória de evocação são as ilusões mnêmicas, alucinações mnêmicas, criptomésia, fabulações, fenômeno do dejá vu, amnésia e ecmnésia. 5. Marq ue a alternativa correta: a) O fenômeno de fabulação consiste no fato de o indivíduo ter a impressão de que a vivência atual já foi experimentada no passado. Pode acontecer em estados de fadiga, mesmo em indivíduos sem patologia. b) O fenômeno de dejá vu consiste no fato de o indivíduo ter a certeza absoluta de que a vivência atual já foi experimentada no
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passado. Pode acontecer em estados de fadiga, mesmo em indivíduos sem patologia. c) O fenômeno de dejá vu consiste no fato de o indivíduo ter a impressão de que a vivência atual já foi experimentada no passado. Acontece em estados patológicos apenas. d) O fenômeno de dejá vu consiste no fato de o indivíduo ter a impressão de que a vivência atual já foi experimentada no passado. Pode acontecer em estados de fadiga, mesmo em indivíduos sem patologia. e) O fenômeno de dejá vu consiste no fato de o indivíduo ter a impressão de que a vivência atual. nunca foi experimentada no passado. Pode acontecer em estados de fadiga, mesmo em indivíduos sem patologia.
6. Levando-se em consideração o exposto acerca dos processos intelectivos. leia as afirmativas abaixo e assinale aquela que indica um aspecto inerente ao que se denomina "inteligência". a) Os fatores cognitivos favorecem a adaptação emocional. b) A cognição define o processo intelectual, independente do fator emocional. c) As emoções podem desorganizar a capacidade de recrutar a inteligência, inibindo-a. d) Estudos de neuroimagem comprovam o /ocus cerebral da inteligência. e) Nenhuma das anteriores. 7. Leia a concepção de Neisser et al. 15 , abaixo. para assinalar a alternativa correta: Os indivíduos geralmente diferenciam-se uns dos outros em suas habilidades de entender ideias complexas. de adaptarse efetivamente ao ambiente. de aprender através da experiência, de utilizar formas variadas de raciocínio e de superar obstáculos através do pensamento. a) As diferenças individuais nunca são inteiramente consistentes. variando ao longo da vida. b) Os desacordos em relação aos conceitos de inteligência não indicam inconsistência. mas podem variar de acordo com o aspecto do processo intelectual considerado. c) O entendimento de um comportamento como "inteligente" varia de acordo com a cultura. d) A "inteligência" é uma combinação de várias habilidades que tendem a aumentar com o amadurecimento. e) Todas as anteriores.
8. Leia o texto abaixo e assinale a alternativa correta: João. 12 anos. não consegue compreender que "jornal" e "revista" são meios de comunicação. mas é capaz de reproduzir com exatidão os sons do violão. mesmo sem ter frequentado escola de música. Maria. 12 anos. possui dificuldade em efetuar cálculos matemáticos. mesmo no papel. sendo necessário contá-los com cubos; mas é a primeira aluna da aula de educação física. a) As dificuldades de ambos representam uma capacidade intelectual necessária em todas as operações mentais.
b) Através do que foi referido sobre ambos. podemos dizer que João é mais inteligente que Maria. c) Através do que foi referido sobre ambos. podemos dizer que Maria é mais inteligente que João. d) As diferenças provenientes das facilidades de João e Maria exemplificam o conceito multifacetado da "inteligência". e) As dificuldades de ambos não representam características da inteligência.
9. Analise a afirmação abaixo. de Anastasi & Urbina 10 , levando em consideração o referido no presente capítulo. e assinale V (verdadeiro) ou F (falso) : O efeito cumulativo dos traços de personalidade na direção e extensão do desenvolvimento intelectual é fator que modula o desenvolvimento cognitivo e, assim. a inteligência. Do mesmo modo. o nível intelectual pode afetar o desenvolvimento da personalidade. a) C ) Quadros psiquiátricos nos quais o sujeito apresenta dificuldade em manter-se em contato com a realidade podem alterar a capacidade intelectual. mas não sua eficiência. b) ( ) Criatividade e inteligência são sinônimos. c) C ) O desempenho intelectual também depende de fatores da personalidade. tais como motivação e sistema de valores. d) ( ) Fatores unicamente hereditários não podem explicar o conceito "inteligência". e) C ) O desenvolvimento daquilo que é considerado comportamento inteligente pode ser modificado de acordo com as estimulações do ambiente.
1 O. Analise as afirmações abaixo sobre a inteligência e ciclo vital e assinale a alternativa correta. a) A inteligência se manifesta de modos diferentes ao longo do ciclo vital. b) As capacidades intelectuais apresentam declínio na terceira idade. principalmente em inteligência cristalizada. c) Um indivíduo só pode ser considerado inteligente após o desenvolvimento psicológico completo. portanto. a partir da vida adulta. d) Quando uma criança se mostra ansiosa frente a situações sociais e não é capaz de desempenhar-se bem em uma prova acadêmica. dizemos que ela não apresenta um comportamento inteligente. e) Nenhuma das anteriores.
Referências bibliográficas 1. Squire LR, McKee RD. A biologia da memória. In: Kaplan HI, Sadock BJ (eds.). Tratado de psiquiatria. 6. ed. São Paulo: Artmed; 1995. 2. Jaspers K. Memória. In: Psicopatologia geral. vol. 1. 8. ed. São Paulo: Atheneu. 3. Paim I. Alterações da memória. In: Curso de psicopatologia. 11. ed. São Paulo: EPU; 1993. 4. Wechsler D. Wechsler Memory Scale, 3. ed. (WMS-III). San Antonio: The Psychological Corporation/Harcourt Brace & Company; 1997. S. Wechsler D. WISC-III: Escala de Inteligência Wechsler para Crianças, 3.ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2002. 322 p.
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Alterações da Sensopercepção
Saulo Vito Ciasca Renato Del Sant
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 489
Ao final do capítulo, você deverá estar apto a:
Percepção e representação: pilares da sensopercepção, 490
1. Conceituar sensação, percepção e representação e diferenciá-las em relação às suas características.
Alterações da sensopercepção, 490 Alterações da percepção na presença do objeto, 490 Alterações da percepção na ausência do objeto, 493 Fenômenos da esfera representativa, 496 Semiotécnica da sensopercepção, 497 Questões, 497 Referências bibliográficas, 498
2. Dominar a terminologia descritiva das alterações senso perceptivas e saber discriminá-las na prática clínica. 3. Familiarizar-se com os principais fenômenos da sensopercepção: ilusões, alucinações, alucinoses e pseudoalucinações. 4. Aprender a semiotécnica básica da sensopercepção. 5. Obter visão crítica da avaliação da sensopercepção como uma ferramenta fundamental do exame psíquico.
Introdução O estudo da sensopercepção trata das diferentes formas com que o indivíduo apreende e reconhece o mundo interno e externo a ele. O organismo recebe inúmeras informações sensoriais do ambiente que o cerca e, por meio delas, pode organizar suas ações voltadas à vida. Jaspers inaugura o tema da sensopercepção por meio da ótica da consciência do objeto, que é definido como tudo o que se depara e se contrapõe ao indivíduo, o que é aprendido, pensado, reconhecido, seja real ou irreal, concreto ou abstrato 1• As sensações são decorrentes de estímulos físico-químicos (calor, luz, odor e som), que são passivamente apreendidos pelos órgãos receptores (táteis, gustativos, visuais, olfativos, auditivos, etc.). O conhecimento do mundo exterior resulta das sensações dele captadas e quanto mais desenvolvidos forem os órgãos dos sentidos e o sistema nervoso do organismo, mais delicadas e variadas serão suas sensaçoes. Denomina-se percepção quando o estímulo sensorial chega efetivamente à consciência, ao palco da atividade mental. Uma pessoa vestida recebe constantemente informações sensoriais táteis (sensações) das calças se atritando à pele e do sapato nos pés, porém só passará a percebê-las quando
sua atenção for dirigida às respectivas sensações, seja por uma pedra no sapato ou outros incômodos. Além disso, as percepções diferem, qualitativamente, das características físicas do estímulo, porque o cérebro extrai delas informações e as interpretam em razão de experiências anteriores com as quais elas se associam. As ondas eletromagnéticas não são experimentadas como ondas, mas como cores, que foram anteriormente aprendidas; substâncias químicas dissolvidas no ar ou água como fragrâncias ou sabores; e to das são identificadas a partir de experiências anteriores. A percepção, ao contrário da sensação, não é uma fotografia dos objetos do mundo determinada exclusivamente pelas qualidades objetivas do estímulo. Na percepção, são acrescentados elementos da memória, do racio cínio, do juízo e do afeto 2 • Portanto, outros elementos subjetivos e próprios de cada indivíduo são acoplados às qualidades objetivas dos sentidos. Um nativo de uma tribo indígena isolada do ambiente urbano vê um carro mas não o percebe e não o significa tal qual um cidadão de uma metrópole. Dessa forma, a percepção é um fenômeno ativo e individual, um processo colorido pelo contexto sociocultural em que o sujeito está inserido, pelo histórico das ex-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
periências registradas na memória3 • Uma taça de vinho produz diferentes resultados (percepções) dependendo da experiência anterior de quem a degusta. Pode-se melhorar a capacidade de discriminar diferentes sensações, sendo a percepção a resultante final do processo. Há um conceito já consagrado relacionado à predisposição perceptual4: pode-se "calibrar" um sentido de forma a tornálo mais sensível. Assim sendo, o alimento é percebido no ambiente de forma mais rápida pelo faminto do que pelo saciado e, além disso, parece também mais apetitoso ao faminto; uma pessoa pode ser percebida por outra de uma determinada maneira antes do ato sexual e de outra, bem diferente, depois do mesmo ato. Sendo a percepção um ato mediado pela sensação, podem ser observadas influências fisiológicas em estados excepcionais associados à doença, à gravidez e à menstruação. Na mulher grávida, a capacidade para perceber os aromas é diferente. Uma mãe está geralmente mais predisposta a ouvir o choro de seu bebê do que qualquer outra pessoa. A percepção é o conhecimento integral de determinado objeto. Para o filósofo Leibniz, aperceber um objeto é percebê-lo como um todo, com clareza e plenitude, significando a completa entrada de uma percepção na consciência e sua articulação com os demais aparelhos psíquicos. Para alguns autores, assemelha-se a uma gnosia (ou seja, o pleno reconhecimento de um objeto percebido) 5.
Percepção e representação: pilares da sensopercepção É importante uma distinção conceitual entre percepção e representação. Conforme a escola psicopatológica de Jaspers, a percepção, processo elementar da atividade humana, possui as seguintes características 1' 5 (Quadro I): • nitidez e completitude (apresenta contornos definidos, com um desenho completo e determinado); • corporeidade (as percepções são corpóreas, consistentes, vivas, com todo o frescor sensorial); • externalidade/extrojeção (aparecem no espaço objetivo externo);
• constância/estabilidade (são constantes, podem ser facilmente retidas do mesmo modo, não se alteram); • independência da vontade do sujeito (são independentes da vontade, não podem ser evocadas ou modificadas arbitrariamente, o indivíduo não consegue modificá-la). As representações são imagens mentais, "fotografias" de objetos reais reveladas na mente, vivenciadas de forma única e individual, não compartilhadas. São rascunhos da realidade objetiva projetados no palco interno ou campo da consciência, também denominado espaço representativo (espaço privado e pessoal de cada indivíduo). Da mesma maneira, apresentam as seguintes características: • pouca nitidez e incompletude (contornos indefinidos, borrados, com desenho incompleto, com apenas alguns detalhes); • menor corporeidade (imagens mais fluidas, transparentes e inconsistentes); • internalidade!introjeção (aparecem no espaço objetivo interno - o "palco" mental, campo da consciência); • inconstância/instabilidade (imagens rapidamente mudam de forma, se esvoaçam e devem ser criadas no vamente); • dependência da vontade do sujeito (as representações dependem da vontade, podendo ser evocadas e mo dificadas arbitrariamente). Desta forma, olhar para os escritos desta página do livro delimita uma percepção clara e nítida dos caracteres, da textura da folha, do contorno de cada letra, todas as características com uma completude e corporeidade imutáveis e independentes da vontade do leitor. Mas ao fechar os olhos e projetar a imagem aqui descrita no "escuro dos olhos", obtém-se uma representação incompleta, com letras que se perdem, fluídicas, não obedecem a mesma linearidade, nem tampouco preservam a nitidez, podendo-se inclusive adicionar ou suprimir palavras, frases ou até imagens conforme a vontade. A compreensão e distinção entre esses dois fenômenos é de fundamental importância para o estudo das alterações sensoperceptivas, que serão apresentadas a seguir.
Alterações da sensopercepção Quadro I
Conceituando percepção e representação
Percepção
Representação
Corporeidade
Menor corporeidade
Caráter de objetividade
Caráter de subjetividade
Serão descritas nesta seção as alterações da sensopercepção mais relevantes na psicopatologia psiquiátrica. Para um panorama geral do que será abordado a seguir, ver Algoritmo 1.
Alterações da percepção na presença do objeto
Extrojeção - espaço objetivo externo
lntrojeção - espaço subjetivo interno
lninfluenciabilidade voluntária
lnfluenciável pela vontade
Completude
lncompletude
Serão descritas nesta seção as percepções anormais em que se vivenciam objetos reais de maneira distinta. Alterações na intensidade das sensações
São aceitas com a sensação de passividade
São produzidas com uma sensação de atividade
Hiperestesia é o aumento da intensidade e duração das percepções. Os sons são ouvidos em tom mais alto,
39 ALTERAÇÕES DA SENSOPERCEPÇÃO
as cores são mais brilhantes e intensas. É frequente nos pacientes em episódios maníacos, no hipertireoidismo, no tétano, na raiva (hidrofobia), em surtos psicóticos agudos, nos acessos de enxaqueca e, ocasionalmente, em alguns casos de epilepsia e em intoxicações por algumas drogas (LSD, ecstasy, cocaína e maconha) 6 • O inverso, caracterizado por uma diminuição de intensidade das percepções, é denominado hipoestesia. É, em um sentido mais amplo, caracterizada por um mundo mais escuro, insosso, sem brilho, sendo descrita na vivência de pacientes deprimidos. Pode haver diminuição da sensibilidade sensorial por causa de fatores emocionais, como no caso citado anteriormente das depressões, e também em situações neurológicas, como o estupor, nas síndromes que se acompanham de obnubilação da consciência, nos estados infecciosos e em períodos pós-trauma. No campo da neurologia, a hipoestesia é uma diminuição da sensibilidade tátil, acometendo dermátomos inteiros (em razão de lesões medulares, nas raízes dos nervos ou em neurônios periféricos) ou pequenas áreas de pele (p. ex., na hanseníase). A completa abolição da sensibilidade tátil é chamada anestesia. É observada em afecções neurológicas focais ou na secção de nervos periféricos aferentes correspondentes. Quando as alterações de sensibilidade não obedecem aos dermátomos neurofisiológicos, pode-se inferir a ocorrência de um transtorno conversivo (ou seja, de o rigem psicogenética) após a devida exclusão de possíveis causas orgânicas. Podem ocorrer em pacientes deprimidos, psicóticos graves, em estados confusionais ou mesmo em pacientes com alto grau de sugestionabilidade7 •
Alterações na qualidade das sensações
Existe, nas percepções, um conjunto de qualidades que as modulam: familiaridade, estranheza, tonalidade afetiva e estado de ânimo. Pessoas deprimidas ou em episódios de mania podem vivenciar o mundo de formas diferentes, pois irão tonalizá-lo de acordo com sua predisposição afetiva. A desrealização consiste em uma vivência de estranheza do mundo percebido 1• O mundo passa a ser dife rente, estranho, exótico, fantasmagórico, e o indivíduo não encontra palavras para descrevê-lo. Não há nesse fenô meno alterações dos elementos das sensações, nem do juízo de realidade ou apreensão do significado dos objetos, há uma alteração fundamentalmente baseada na percepção do mundo. Da mesma forma, o mundo pode se apresentar com uma beleza estonteante ou totalmente novo. Na despersonalização ocorre de forma similar uma vivência de estranhamento em relação ao próprio eu, em que o indivíduo se percebe diferente, incomum, perdendo a familiaridade consigo mesmo, porém está geralmente associada a alterações de outras funções psíquicas, seja da consciência do eu (atividade e unidade do eu) ou também do juízo de realidade e do pensamento 1• A troca da qualidade das sensações se traduz em uma mudança de uma sensação comum por outra, geralmente desagradável. Na cacosmia, o indivíduo passa a sentir um odor fétido no lugar de aromas agradáveis. As disestesias são trocas de sensações que ocorrem em receptores dérmicos (dolorosos, de temperatura, táteis e de pressão), um estímulo de calor acarretando a sensação de frio ou um es tímulo tátil extremamente sutil causando dor. De modo
Alterações da sensopercepção
, Alterações da percepção na presença do objeto
Alteraçõ es da percepção na ausência do objeto
Fenômeno da esfera representativa
I
Intensidade
Síntese
Qualidade
Ilusões
Alucinação
~ Alucinose
Imagem representativa
Alterações da representação
Agnosia
Hiperestesia o hipoestesia o anestesia
Algoritmo 1
Desrealização o despersonalização o troca de sensações o disestesia • parestesia o divisão de percepção
Sumário das principais alterações sensoperceptivas.
lmaginação o fantasia o imagem cidética o imagem fantásti ca o 1magem onírica
Pseudo-alucinação o alucinação psíquica o alucinação mnêmica o déjá-vu o jamais vu o abolição da capacidade de representação
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
semelhante, as parestesias são sensações táteis geralmente espontâneas, em que os indivíduos referem formigamentos, agulhadas, picadas ou adormecimentos em algumas áreas do corpo. São, em conjunto com as disestesias, associadas a quadros neurológicos, como neuropatias diabéticas, neuropatias carenciais por hipovitaminoses e neuropatias alcoólicas. Na divisão da percepção, o sujeito não consegue reunir os estímulos percebidos e associá-los formando uma imagem completa. Dessa forma, a visão de um cachorro passeando na rua e a audição de seu latido são dissociados, separados por um abismo, vivenciados separadamente. Alterações na síntese das percepções
Lesões corticais em áreas de associação perceptiva (lobos temporais e parietais) estão associadas a uma perda na capacidade de reconhecimento dos objetos, denominada agnosia8 . As pessoas afetadas experimentam sensações elementares, porém sofrem uma alteração no ato perceptivo, pois não conseguem integrá-las de modo a reconhecer o objeto de forma total, associando-o ao papel que desempenha e recrutando seu repertório mnêmico relacionado a ele. Na agnosia visual, o paciente não consegue identificar um objeto apesar de visualizar seus contornos, formas, cores, luzes e sombras, em razão de uma perda na capacidade de integração das sensações elementares. Apesar de poder ver e descrever uma colher, um lápis ou um rosto familiar, não consegue reconhecêlos e identificá-los. Nesses casos as lesões neurológicas afetam algumas áreas occipitais onde terminam as projeções visuais (áreas parassensoriais). A prosopagnosia é uma agnosia visual em que o sujeito não consegue reconhecer rostos humanos, inclusive o próprio. Anosognosia é um termo que denota o não reconhecimento de partes corporais. A agnosia tátil se traduz na incapacidade de reconhecer objetos por meio do tato, pela dificuldade na discriminação das diferenças de intensidade e extensão das sensações táteis, apesar da sensibilidade tátil estar normal. O paciente pega uma caneta na mão sem olhar e descreve sua textura, tamanho, formas, sem conseguir identificá-la como uma caneta. Na agnosia auditiva, o sujeito, de forma similar, ouve sons e ruídos sem conseguir compreendê-los. As agnosias, portanto, podem ser relacionadas a quaisquer órgãos dos sentidos.
em que existe a possibilidade da correção sobre a referência ingênua ao objeto (ou seja, há a possibilidade de o indivíduo corrigir a vivência imediata). As ilusões podem ocorrer por diferentes motivos: há ilusões originárias de falta de atenção (p. ex., em estados de cansaço), em que há uma complementação dos estímulos externos com elementos internos (ao ler-se um texto pode-se passar despercebido por alguns erros ortográficos e corrigi-los de acordo com o contexto) (Figura 3). Estados afetivos modulam a percepção de objetos reais, podendo ocasionar o que se denomina por ilusões afetivas (ou catatímicas). Uma criança assustada à noite pode ver um monstro horripilante entrando pela janela de seu quarto em vez de um galho da árvore mais próxima. As pareidolias são ilusões com nitidez corpórea, que não desaparecem com atenção e não são associadas a estados afetivos ou alterações de juízo, de origem voluntária (não patológicas). As imagens são originárias de estímulos imprecisos do ambiente. Dessa forma, pode-se captar imagens de formatos de nuvens (animais e figuras) ou de rachaduras na parede (rostos). A imagem captada dependerá muito das experiências anteriores e dos conhecimentos adquiridos pelo indivíduo. O teste de Rorschach se baseia nessa capacidade: a pessoa a ser testada, ao procurar organizar uma informação ambígua (ou seja, sem um significado claro), projeta aspectos de sua própria personalidade. Quando a excitação sensorial vem de um estímulo intenso, a imagem pode persistir durante algum tempo, mesmo após haver desaparecido o estímulo. Trata-se da imagem pós-óptica ou pós-sensorial. A persistência da imagem solar na retina, após direcionar o olhar diretamente para o sol, ou o som de uma sirene poderosa, que se continua a ouvir, mesmo depois de a terem silenciado.
Ilusões
Ilusões são vivências originárias de percepções enganosas, falsificadas, de um objeto real. Trata-se da percepção distorcida, deformada, de um objeto real, existente 1•5 • Não constitui, por si só, um estado mórbido, podendo ser produzida artificialmente (Figuras 1 e 2). Em outras palavras, são percepções formadas por transformações de percepções reais, em que os estímulos se compõem de tal maneira cujo efeito é a falsa percepção de algo novo. Pode-se também definir que ilusão é uma falsa percepção
Figura 1 Ilusão de movimento. Pode-se tentar, com muita concentração, reduzir esse efeito. (Veja imagem colorida no encarte.)
39 ALTERAÇÕES DA SENSOPERCEPÇÃO
A BIRD
IN THE THE HAND
Figura 2
Os círculos centrais têm o mesmo diâmetro, porém obtém-se a ilusão de serem de tamanhos distintos.
Às vezes a tensão emocional vinculada ao estímulo acarreta o fenômeno. É o que sucede, quando, após uma conversa com uma pessoa querida, fica-se com a impressão de que ela persiste diante de si, e de que a sua voz continua ressoando nos ouvidos.
Alterações da percepção na ausência do objeto Serão descritos nesta seção os fenômenos sensoperceptivos que ocorrem na ausência de um objeto real. Compreendem as alucinações e as alucinoses. Alucinações Conceito
A alucinação pode ser definida como um distúrbio psicossensorial que consiste na percepção sem o objeto. Sendo um fenômeno perceptual, é dotada de clareza, consistência, vivacidade, objetividade e externalidade. É vivenciada como "central ao eu", sendo experienciada da mesma forma que as percepções com objeto real 9 • Geralmente é acompanhada de intenso sofrimento. Cabe aqui uma distinção com o delírio: ouvir uma voz que não existe e não é compartilhada (percepção de objeto inexistente) é a alucinação propriamente dita e, interpretá-la como sendo a voz de Deus ou por transmissão telepática já faz parte do delírio, que frequentemente acompanha o fenô meno alucinatório. Quando a alucinação ocorre associada a uma supressão da atividade do eu com uma vivência de influência externa (a voz alucinada tem influência na vontade do indivíduo) ocorre a denominada alucinação imperativa. Um paciente ouve "se mata, se mata" e tenta suicídio, incapaz de insurgir-se contra. Teorias sobre a gênese das alucinações
Recentemente, muitos autores têm pesquisado teorias que procuram explicar o fenômeno das alucinações 10- 12• Sabe-se que na epilepsia a ativação de determinadas áreas corticais pode produzir efeitos alucinatórios de breve duração, geralmente com o mesmo conteúdo por irritação de um mesmo foco corticaF3 (um paciente sempre sente cheiro de gás antes de perder a consciência - crise parcial sim-
Figura 3
Ao ler a mensagem o indivíduo costuma não atentar para o fato de que existem dois "the" no triângulo. Ocorre mais comumente se o leitor estiver fatigado ou desatento.
ples). Grande parte da experiência dos autores com alucinações é proveniente da observação e relatos de pessoas usuárias de alucinógenos, como LSD, mescalina etc. O fato de esses agentes produzirem alterações neurobioquímicas nas vias centrais serotoninérgicas, dopaminérgicas e colinérgicas implica uma associação entre fenômenos alucinatórios e hiperativações nesses circuitos, fato corroborado pelo uso de antagonistas dopaminérgicos para seu tratamento 14• Os principais fármacos associados a alucinações como efeitos colaterais são listados no Quadro li. Outras formas de alucinações podem ser explicadas pela teoria da deaferentação neuronal. Pacientes idosos com presbiacusia e surdez progressiva podem experimentar alucinações auditivas em decorrência da liberação neuronal da via auditiva aferente correspondente 18, semelhante ao ocorrido na síndrome do "membro fantasma". A alucinação seria devida a uma produção do sistema nervoso para manter um nível basal de ativação, em vigência do déficit de estímulos externos pela privação sensorial. Analogamente, é correspondente à área lesada (lateralizada), e em geral pode ser modificada por estímulos ambientais (sons altos no ambiente podem fazer esse paciente idoso parar de alucinar em razão da maior estimulação aferente). Há também explicações para o fenômeno alucinatório baseadas na teoria psicodinâmica, na qual o paciente projetaria aspectos inconscientes (desejos, angústias e conflitos) para o espaço externo a ele, vivenciando-os como não pertencentes ao eu 19 •20 • De modo semelhante, alguns autores postulam que as alucinações seriam um processo decorrente da incapacidade do paciente de discriminar e monitorar seus próprios pensamentos verbais, percebendo-os como de origem externa. A alucinação seria proveniente de uma disfunção do que é deno minado linguagem interna (inner speech). 21
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro 11
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
Principais fármacos e classes associados a fenômenos
alucinatórios 14"17 ISRS - inibidores seletivos da recaptação de serotonina
ADT - antidepressivos tricíclicos Trama doi Bupropiona Venlafaxina Levodopa Quinolonas Omeprazol Efavirenz Claritromicina Antagonistas 13-adrenérgicos Colpidem e zolpiclone Donepezil Metilfenidato Anticolinérgicos - biperideno Topiramato Corticoides
Tipos de alucinações
As alucinações visuais podem ser elementares (clarões, borrões, faíscas, escotomas e fosfenas), complexas (figuras, pessoas, paisagens, entidades e partes do corpo), liliputianas (diminuídas, em geral com figuras humanoides), guliverianas (gigantescas). O paciente pode assistir passivamente às alucinações (cênicas) ou participar ativamente delas (dramáticas), sugerindo nessas últimas quadros de delirium. Alucinações visuais em geral são eventos relativamente raros nas esquizofrenias e nos quadros delirantes crônicos. As alucinações visuais complexas se manifestam sobretudo na narcolepsia com cataplexia (transtorno do sono em que a atividade REM invade a consciência vigil), na maior parte das síndromes de menciais (doença de Alzheimer, demência com corpúsculos de Lewy, demência vascular e demência na doença de Parkinson), no delirium tremens, na síndrome de abstinência alcoólica, na esquizofrenia, na presença de uma série de doenças oftalmológicas (em geral de etiologia conhecida como síndrome de deaferentação, descrita anteriormente) e intoxicação por alucinógenos (LSD, mescalina, maconha e cogumelos) 12' 22 • A síndrome de Charles Bonnet ocorre em pacientes com catarata, hemorragias retinianas e outras afecções oculares, consistindo na ocorrência de alucinações visuais complexas (o indivíduo relata a visão de cenas vívidas, detalhadas, de múltiplos ambientes e pessoas) secundárias à privação sensorial 23,24 • Alucinações visuais em geral estão também associadas à epilepsia do lobo temporal, conforme descrito anteriormente. Na vigência dessas alucinações, é imperativo, por-
tanto, uma vasta investigação de causas orgânicas, dada a sua grande frequência. Há determinadas ocasiões em que o transtorno visual alucinatório adquire a consistência de uma cena borrada e atemporal, com elementos imprecisos, como quando uma paciente vê uma carruagem passando e dela desce um príncipe. Nesse caso, fala-se em alucinações oniroides. 4 As alucinações auditivas ocorrem analogamente na forma simples (sons, ruídos, assobios e campainhas) ou complexas (chamadas audioverbais). As alucinações audioverbais são o tipo mais frequente de alucinações, sendo encontradas principalmente na esquizofrenia e outros transtornos psicóticos. As vozes ouvidas podem ter as mais variadas características: diálogos entre mais de um interlocutor, comunicação de ideias delirantes, descrever tudo o que o alucinado faz (narração e comentário dos atos) e proferir injúrias e difamações. Algumas apresentações têm um valor semiológico maior pela sua grande frequência na esquizofrenia, como quando as vozes repetem o pensamento da pessoa (eco do pensamento) e quando o paciente ouve o próprio pensamento no mesmo momento em que pensa (sonorização do pensamento), da mesma forma como ouve o restante do mundo. Alucinações musicais são uma apresentação específica de alucinação auditiva, na qual o paciente ouve tons, melodias e ritmos sem o estímulo auditivo externo no ambiente. Estão muito associadas à síndrome de deaferentação citada anteriormente, mais comum em pacientes idosos com déficit auditivo. É relativamente rara, podendo ocorrer na vigência de uso de antidepressivos, sobretudo tricíclicos, em pacientes idosos25 . Geralmente associadas a alucinações visuais, as alucinações táteis são vivenciadas na forma de agulhadas, formigamentos, espetadas, choques, queimaduras e sensações de frio ou umidade. No delirium tremens o paciente pode se sentir preso em arames, entrelaçado em uma rede de fios. A síndrome de Ekbom consiste na vivência de infestação do organismo por insetos, aranhas ou parasitoses, no qual o indivíduo experimenta alucinações táteis hipodérmicas semelhantes a formigamentos e picadas, com a sensação de larvas transitando por dentro da pele ou insetos percorrendo seu corpo26 • Portanto, alucinações táteis ocorrem principalmente nos quadros psicóticos secundários a uso de drogas (sobretudo cocaína) e psicoses delirantes crônicas. Sensações anômalas relacionadas às vísceras internas, em que doentes sentem como se tivessem seu fígado revirado, esvaziado seu pulmão, seus intestinos arrancados, o cérebro apodrecido, na ausência do correspondente somático são denominadas alucinações cenestésicas. Estão muito associadas a ideações delirantes de que o organismo está morto, ou em estado de putrefação, sendo vinculadas à síndrome de Cotard (vivência delirante que pode ser diagnosticada em pacientes com depressão psicótica grave, na qual a pessoa tem a vivência de que já morreu e seus órgãos estão apodrecendo, ou de imortalidade) 27 • Alucinações ci-
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nestésicas estão relacionadas à vivência de alterações na sensação de movimento corporal, em que um paciente descreve a sensação de que seu pênis está encolhendo (síndrome do Koro, ver Capítulo 9: "Influência da Cultura sobre a Psiquiatria''), ou de que a cabeça está aumentando ou o corpo por inteiro estar deslizando no chão. As alucinações genitais, vivenciadas pelo indivíduo como sensações de orgasmo ou contato sexual direto ou à distância, têm um grande interesse clínico, visto que ocorrem com certa fre quência nas psicoses funcionais (esquizofrenia). As alucinações olfativas são descritas por meio da sensação de odores desagradáveis (cheiro de fezes, cadáveres e queimado), até de perfumes exóticos, enquanto as gustativas denotam a experiência de sabores estranhos, insólitos, sem objeto correspondente. Estão associadas a ideias delirantes e vivências afetivas intensas, com grande impacto pessoal. Por exemplo, uma paciente tem certeza de que pessoas mesmo à distância torcem o nariz quando a v e em em decorrência de um mau hálito horrível que sai de sua garganta, por isso evita sair de casa. Essas alucinações, tanto relacionadas ao olfato quanto à gustação, são sintomas da esquizofrenia (de péssimo prognóstico) e de quadros epilépticos (estados crepusculares da consciência, crises uncinadas). No rebaixamento do nível de consciência e em menor grau na esquizofrenia podem ocorrer experiências alucinatórias diversas ao mesmo tempo, combinando diferentes órgãos do sentido. O sujeito pode ouvir uma voz, reconhecê -la como pertencente a uma pessoa que vê na sua frente e ter atividade sexual com ela, estando sozinho no quarto. Esse fenômeno é chamado alucinação combinada. Tal vivência pode ser intensificada até a fu são e troca de duas percepções de qualidades sensoriais diferentes, como ver a cor do som, associado ao uso de ecstasy. Essa alucinação combinada é denominada alu. . , . cmaçao smestesiCa. Por vezes o fenômeno alucinatório é desencadeado por um estímulo real. A pessoa ouve uma voz quando liga o carro. As denominadas alucinações funcionais são vivências perceptivas sem objeto real, desencadeadas por um gatilho real não relacionado ' . Fenômeno raro, em algumas psicoses o indiví duo pode apresentar alucinações fora do campo sensorial habitual. Uma paciente esquizofrênica vê através das pessoas, como em um raio-X, outro vê paisagens complexas atrás de si. São denominadas alucinações extracampinas. As alucinações autoscópicas são fenômenos intrigantes, muito associados a experiências de quase-morte e apesar de poderem ser relatadas por pessoas normais, ocorrem também na esquizofrenia, epilepsia, crises agudas de enxaqueca e intoxicações por alucinógenos. Nelas a pessoa se vê fora do próprio corpo, podendo ter reações variáveis. As alucinações hipnagógicas ocorrem na transição entre a vigília e o sono, no adormecer. São comuns em pessoas normais, sendo vivenciadas como sensações de
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queda livre, visões de pessoas e animais e até ouvir vozes. De forma análoga, as alucinações hipnopômpicas ocorrem no despertar, sendo relativamente menos frequen tes. O uso de hipnóticos (p. ex., zolpidem) está associado a alucinações, especificamente as hipnagógicas. Pacientes com transtornos do sono como a narcolepsia estão mais predispostos a esses fenômenos 28 • É importante a diferenciação entre alucinações verdadeiras e fenômenos alucinatórios dissociativos, muito comuns em serviços de emergência em pacientes com transtornos conversivo-dissociativos e transtornos de personalidade borderline. As alucinações dissociativas são em geral descritas como corpóreas, vívidas e bem detalhadas. Percebe-se uma intencionalidade, apesar de involuntária e inconsciente, associada a algum ganho secundário. Opaciente está atravessando algum dilema, estressar psicossocial ou acontecimento penoso no qual a alucinação aparece como solução, formação de compromisso ou saída honrosa para o problema. Tal fenômeno é reversível e pode ser produzido ou encerrado por sugestão29. Alucinoses
Atualmente o termo alucinose se refere à percepção de uma imagem patológica com todas as características de uma imagem alucinatória (principalmente com uma nitidez singular); entretanto, ao contrário das alucinações, há menor convicção de realidade e geralmente menor participação do eu (diz-se ser um fenômeno "periférico ao eu", com um distanciamento entre o eu e o fenômeno). Opaciente reconhece a experiência perceptiva como estranha, patológica. Pode-se dizer que o fenômeno ocorre sem prejuízo da crítica do estado mórbido. O termo alucinose tem sido empregado na prática em estados de delirium com vivências alucinatórias (estados de oscilações do nível de consciência com produção de alucinações auditivas, táteis, visuais, cenestésicas ou combinadas), como na alucinose alcoólica ou alucinose infecciosa30 • Está frequentemente associada a quadros orgânicos: uso ou intoxicações por algumas drogas (LSD, mescalina, ayahuasca no chá do Santo Daime, maconha, brometos, anticolinérgicos, agonistas dopaminérgicos e outros), estados infecciosos (sepse grave), metabólicos (uremias, diabetes e tireotoxicose), traumáticos (traumatismo craniano) ou ainda por foco irritative dos lobos temporais e occipital (epilepsia) 6 • Outros autores a empregam com o mesmo sentido de alucinação orgânica, com três características principais: falta de prejuízo da consciência, ausência de sinais sugestivos de uma psicose e atividade alucinatória constante e recorrente 3 1• Lesões mesencefálicas superiores e talâmicas bilaterais podem ocasionar fenômenos alucinatórios visuais complexos com uma característica onírica (semelhante a sonhos vívidos, por vezes são visualizadas cenas e pessoas com intensa nitidez), evento denominado alucinose peduncular. É um fenômeno raro, geralmente hipnagógico (na transição vigília-sono), acompanhado
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de sensação de irrealidade, podendo ser de proporção normal ou liliputiana. Estudos sugerem que a destruição da pars reticulata da substância negra é muito associada à ocorrência de alucinose peduncular. 32
Fenômenos da esfera representativa Serão descritas nesta seção as vivências que ocorrem no que será denominado espaço representativo. Ele compreende o mundo interno subjetivo, o local virtual no qual são projetados os pensamentos, as imagens representativas e as memórias (ou seja, tudo de subjetivo que pode ser vivenciado no campo da consciência). A imagem representativa
A imagem representativa, imagem mnêmica, já foi descrita anteriormente neste capítulo. Serão abordadas algumas de suas apresentações nos indivíduos com e sem doença mental. A imaginação é a criação (voluntária ou involuntária) de representações, seja por evocação de conteúdos mnêmicos ou por simples criação de elementos novos no espaço representativo, na ausência de estímulos. É de fun damental importância para a sobrevivência, visto que permite ao indivíduo a antecipação de cenários e a capacidade de estimular e desenvolver a criatividade. Chama-se fantasia a capacidade imaginativa cons ciente ou inconsciente, em que são projetados no campo da consciência elementos internos, desejos, vontades, medos, conflitos e impulsos, muito semelhantes ao fenô meno do sonho, mas que ocorrem com o indivíduo desperto. Trata-se de um produto da imaginação, muito fre quente na idade infantil 5. A imagem eidética é um fenômeno intrigante, encontrado em alguns indivíduos sem doença mental. Nele a pessoa consegue obter voluntariamente uma imagem representativa com as mesmas características de uma imagem perceptiva (ou seja, nítida e clara como uma percepção). É mais comum em crianças e tende a desa parecer na fase adulta. Um pintor fotografa uma cena em sua mente e a reproduz em uma tela fielmente. A criança "copia" o caderno na mente e o reproduz no mo mento da prova. A imagem fantástica é uma criação da atividade imaginativa e suas características gerais são as mesmas da imagem mnêmica, com a única diferença de que ela não é aceita, em condições normais, pelo juízo de realidade do agente, que a interpreta como de caráter estranho, bizarro e fantástico. Já a imagem chamada onírica, característica dos sonhos, é constituída por elementos da imagem mnêmica e da imagem fantástica. No entanto, diferentemente da imagem fantástica, essa imagem é momentaneamente aceita pelo juízo de realidade em consequência do estado de suspensão da vigília. Dessa forma, a imagem onírica é caracterizada por alguns elementos: plasticida-
de, mobilidade, introjeção (no entanto, o espaço virtual intrapsíquico é considerado como espaço extrapsíquico objetivo), falta de lógica formal e atemporalidade (a imagem onírica não se integra em um curso existencial, falta-lhe uma relação cronológica, dá-se como fenômeno isolado, instantâneo e sem duração determinada)3. Alterações da representação
O conceito de pseudoalucinação gera até hoje controvérsias. Segundo Jaspers, trata-se de um fenômeno que ocorre na esfera representativa, no qual a vivência é projetada no espaço interno e tem caráter de não ser reconhecida ' . eu, sem apresentar os aspeccomo pertencente ao propno tos vivos e corpóreos de uma imagem perceptivareal 1• É caracterizada como imagem representativa por possuir menor corporeidade, caráter de subjetividade e incompletude, porém difere da representação propriamente dita por ser constante, independente da vontade, imodificável e aceita passivamente pelo sujeito, o que determina seu núcleo patológico. O fenômeno descrito por Jaspers como pseudoalucinação tem natureza muito variável, apresentando, em sua maioria, apenas algumas dessas características. Dessa forma, surgem representações no espaço mental pouco detalhadas, mas contrárias à vontade, ou podem-se produzir arbitrariamente fenômenos bem detalhados e constantes. Henri Ey utiliza o termo alucinação psíquica como sinônimo de pseudoalucinação, em que "a atividade alucinatória é vivenciada em sua imaginação ou seu pensamento"33. Esse fenômeno seria caracterizado pela sua objetividade psíquica (é imposto ao sujeito, associado à vivência de intensa realidade), porém carece de uma ob jetividade espacial (diferentemente da alucinação verdadeira, que possui um locus objetivável). Já Paim descreve a alucinação psíquica como "imagem alucinatória sem um verdadeiro caráter sensorial". Ou seja, há a vivência de se ouvirem palavras sem som, comunicações diretas entre pensamentos, "telepáticas': sem o caráter de sensorialidade, fenômenos mais próximos à esfera do pensamento e intuição34 . As pseudoalucinações podem ocorrer na visão e na audição na forma de imagens e vozes internas. As pseudoalucinações visuais são imagens mentais involuntárias que são impostas ao sujeito (alucinação aperceptiva ou abstrata de Kahlbaum), representações mentais cênicas (pseudoalucinações de Hagen) ou imaginações muito intensas e vívidas, extraordinárias (pseudoalucinação de Kandinsky). Podem ser também conteúdos de consciência automáticos, em que as ideias são prontamente projetadas no espaço representativo do sujeito. As pseudoalucinações audioverbais se apresentam como "vozes interiores': murmúrios intrapsíquicos, transmissão do pensamento e eco de pensamento ou de leitura. Segundo Henri Ey, essas alucinações psíquicas são descritas na medida em que o próprio pensamento do indivíduo prende-se a um caráter alucinatório, e esse pensamento é essencialmente ideoverbal33.
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Entre as representações, as recordações (imagens mnêmicas) têm importância especial. Surgem com a consciência de revivescência de percepções passadas, de que seus conteúdos já foram vivenciados e de que seus objetos foram reais. A alucinação mnêmica é um fenômeno em que surge no paciente a representação de uma vivência anterior com sensação viva de recordação, enquanto na realidade trata-se de uma falsa recordação (ou seja, nada daquilo que foi "lembrado" pelo indivíduo realmente aconteceu). Ocorre na esquizofrenia, em que o paciente lembra-se subitamente de que foi um soldado da Segunda Guerra Mundial e que precisa honrar seu título. A alucinação mnêmica é imposta ao indivíduo, que a aceita passivamente, e passa a acreditar na falsa lembrança. Funciona de forma semelhante a uma inserção de pensamento, porém é vivenciada como um rendimento mnêmico. O déjà vu é um tipo de falsa recordação, no qual o indivíduo descreve a sensação, geralmente desagradável, de já ter vivenciado determinada situação, como se já houvesse ocorrido anteriormente. No jamais vu é descrita uma sensação de irrealidade perante situações ou ambientes perfeitamente conhecidos e familiares. Apesar de raro, é visto com maior frequência nos portadores de foco irritative (epiléptico) de localização no lobo temporal. Em alguns pacientes esquizofrênicos, em bipolares crônicos, em estados crônicos de cansaço e estresse pode ocorrer uma redução e até a abolição da capacidade de representação. O espaço representativo se estreita, limitando-se à disposição do pensamento abstrato. Ocorre uma maior dificuldade de se construir simbolizações, determinando um pensamento concreto, empobrecido 19 .
Semiotécnica da sensopercepção A avaliação da sensopercepção na prática clínica possui três momentos distintos, que serão descritos resumidamente a seguir. O primeiro momento é caracterizado pela observação do paciente antes de entrar propriamente na sala de atendimento: deve-se dar atenção especial à expressão mímica facial (olhar vazio, hipomimia facial), à apresentação (autocuidado, proteções nos ouvidos ou outros apetrechos "estranhos"), comportamentos "esquisitos" (atitudes de escuta, solilóquios e comportamento alucinatório). Já com o paciente dentro da sala, devem ser observadas algumas atitudes durante a conversação casual: respostas furtivas, distrações bruscas, comportamento alucinatório na conversação e hostilidade. Na exploração, deve-se evitar julgamento moral, buscar ativamente a descrição de fenômenos, facilitar a descrição detalhada, tentar determinar se são fenômenos primários, diferentes de delírios ou alterações da memória, e correlacionar achados com a história como um todo. Para maiores detalhes, ver a Seção 3 (Da Semiologia ao Diagnóstico em Psiquiatria).
Questões 1. Paciente de 46 anos. refere ouvir melodias durante o dia, como
a)
b)
c)
d)
e)
se estivesse diante de uma orquestra. há 1 semana, de forma intrusiva e desagradável. Há 3 meses recebeu diagnóstico de depressão e iniciou tratamento com imipramina. até 300mg/ dia. com remissão completa dos sintomas. Sem história de transtorno mental anterior. Nega outras queixas ou doenças. Trata-se de ocorrência de transtorno obsessivo-compulsivo. em razão da emergência de pensamentos obsessivos. egodistônicos e intrusivos. Deve-se substituir o antidepressivo pela clomipramina. que possui maior eficácia para tal quadro. O quadro mais provável é a ocorrência de alucinações musicais secundárias a transtorno psicótico orgânico. É mandatária uma investigação completa com RNM encefálica. EEG e exames laboratoriais. além de introduzir antipsicótico. Tal sintoma é comum em indivíduos com restrição de sono. fadiga. cansaço e sujeitos a fortes cargas estressantes. e é mais frequente na vigência de depressão. Devem-se estimular mudanças no estilo de vida. Trata-se de alucinações musicais. efeito colateral raro de alguns antidepressivos. principalmente da classe dos tricíclicos. Deve-se substituir a imipramina por outro antidepressivo de classe diferente e observar. O quadro mais provável é a ocorrência de sintomas obsessivos secundários a quadro orgânico. É mandatária uma investigação completa com RN M encefálica. EEG e exames laboratoriais.
2. Tais medicamentos estão associados a alucinações como efeito colateral. exceto: a) Topiramato b) Omeprazol c) Biperideno d) Amitriptilina e) Alfametildopa 3. Assinale a alternativa correta:
a) Alucinações são fenômenos da esfera perceptiva por apresentarem corporeidade e caráter de objetividade. vivenciadas no espaço objetivo externo com sensação de completude. podendo ser influenciadas pela vontade, dependendo do quadro clínico. b) Alucinoses são fenômenos semelhantes às alucinações. porém definidas por uma intensa sensação de realidade. geralmente vinculadas a quadros orgânicos como no delirium tremens.
c) Pseudoaalucinações são consideradas alterações da representação por serem vivenciadas no espaço subjetivo interno. apesar de serem constantes. independentes da vontade. imodificáveis e aceitas passivamente pelo sujeito. condições classicamente atribuídas à imagem perceptiva. d) Ilusões são deformações patológicas da imagem perceptiva. geralmente associadas à intoxicação por drogas como a maconha.
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e) A diferenciação psicopatológica minuciosa entre os diferentes fenômenos não é mais necessária na psiquiatria moderna, visto que o avanço no tratamento com medicamentos antipsicóticos possibilita a contenção de quaisquer alterações sensoperceptivas com eficácia semelhante.
4. Um paciente de 35 anos. com diagnóstico de esquizofrenia desde os 16 anos. refere com muita angústia que há algumas semanas vem sentindo sensações estranhas na pele. Inicialmente, percebia a presença de vermes entrando e saindo pela pele, sem propriamente vê-los (1). Posteriormente, os vermes passaram para o seu fígado, inchando-o (2). e também para os intestinos. fazendo-os ficarem "loucos". Sentia os intestinos se mexerem de um lado para o outro, quando os vermes passavam por eles (2). Há uma semana pôde perceber que os vermes estão querendo sair de seu corpo, chegou até a ver e sentir um com cabeça de porco saindo pelo umbigo (3). Comentou também que sente que um dos vermes controla seu braço, visto que às vezes tem a sensação de que ele se desloca para cima (4). Associe os números no texto com as respectivas alterações sensoperceptivas: a) (1) Alucinação tátil; (2) alucinação cenestésica; (3) alucinação visual; (4) alucinação cinestésica. b) (1) Alucinação cenestésica; (2) alucinação cenestésica; (3) alucinação combinada; ( 4) alucinação cinestésica. c) (1) Alucinação táti l; (2) alucinação cinestésica; (3) alucinação visual; (4) alucinação cenestésica. d) (1) Alucinação tátil; (2) alucinação cenestésica; (3) alucinação combinada; ( 4) alucinação cinestésica. e) (1) Alucinação cenestésica; (2) alucinação cinestésica; (3) alucinação visual; ( 4) alucinação cenestésica. 5. O fenômeno em que são experimentadas sensações elementares porém oconre uma alteração no ato perceptivo decorrente da dificuldade de integrá-las de forma a reconhecer o objeto de forma total, associando-o ao papel que desempenha e recrutando seu repertório mnêmico relacionado a ele, é denominado: a) Apercepção b) Agnosia c) Anosognosia d) Alogia e) Prosopagnosia
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Tempo e Espaço: Vivência e Rendimento Renato Del Sant Táki Athanássios Cordás
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 499
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
A vivência espaço-tempo, 499 A vivência espacial, 500 A vivência temporal, 501
1. Entender a diferença entre tempo objetivo e vivência do tempo.
Tempo e espaço como rendimentos psíquicos, 501 Questões, 502 Referências bibliográficas, 503
2. Reconhecer as mais frequentes alterações da vivência do espaço e as principais síndromes psiquiátricas em que podem estar presentes. 3. Reconhecer as mais frequentes alterações da vivência do tempo e as principais síndromes psiquiátricas em que podem estar presentes.
Introdução
4. Explicar o que se avalia como rendimentos psíquicos na pesquisa do tempo e espaço.
Tempo e espaço são dimensões sempre presentes na vida dos seres humanos e as suas avaliações trazem importantes informações, com grande potencial para a formulação de hipóteses diagnósticas em psiquiatria. O tempo e o espaço devem ser investigados como vivência e como rendimento psíquico. Para a fenomenologia descritiva importa como o ser humano vivencia essas dimensões e para a psicologia objetiva importa como o ser humano avalia a duração do tempo e as dimensões do espaço.
A vivência espaço-tempo Todas as vivências humanas possuem dimensões do próprio corpo, do interior do seu eu, da realidade, dos objetos exteriores e do espaço-tempo. Todas essas dimensoes estao sempre presentes nas vivenCias, tanto no estado mental normal quanto no patológico. Os filósofos foram os primeiros a estudar as estruturas temporais. O ser humano é o único animal que se projeta para o futuro, trabalha com o passado e faz história. O problema do tempo é, precocemente, abordado por Heráclito em sua doutrina do vir-a-ser e pelos paradoxos de Zenon de Eleia acerca de Aquiles e tartaruga. Aristóteles, na física, afirmava que o tempo não poderia existir, já que nenhum de seus componentes existem. O instan-
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te presente não tem duração mensurável, o passado já ocorreu e o futuro ainda não é 1 • Santo Agostinho, no livro XI de suas confissões, empenha-se em discutir a questão do tempo e da criação pelo Divino. Agostinho pergunta "O que é o tempo?" e responde com a frase que lhe ficou célebre: "Se ninguém me pergunta, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei" e ainda expressa sobre a questão da vivência do tempo: "É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas, talvez, fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras" 2 • Os físicos newtonianos do século XIX também investigaram as dimensões temporoespaciais, contudo, a física dessa época enfatizao tempo e espaço como realidades objetivas independentes do ser humano. Espaço é um receptáculo de objetos e tempo uma medida. Kant, em Estética transcedental passa a acentuar a primazia da vivência dessas estruturas, que só se tornam reais quando são objetos de conhecimento dos nossos sentidos. Portanto, tempo e espaço dependem de quem
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os vivencia. Karl Jaspers, Merleau-Ponty, Minkowski, Husserl e Bérgson compartilham dessa posição e fazem magníficos estudos das vivências de tempo e espaço. Diferentemente do tempo da física, duração, o tempo na óptica fenomenológica é particular para aquele que o vivencia. Em Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, Bergson trata de separar duas concepções diferentes de tempo, de um lado o tempo espacial do senso comum, científico, o pensar para agir e de outro o tempo interior, psíquico, da existência com duração interiormente vivida, em um fluxo contínuo3 . Heidegger expõe que o presente está impregnado pelo passado e pelo futuro. O futuro está sempre presente e o passado opera a vivência atual. A existência humana é um projeto que caminha para um futuro, o ser humano e um ser para a morte , que e ans10geno, mcerto, se expõe a riscos, mas ao abrir mão dessa "ansiedade existencial" o homem perde também a sua mais excelsa característica. A vida do ser humano nunca é definida, o futuro é aberto, não há conclusão, exceto com a morte. A noção de tempo é adquirida mais tardiamente de maneira ontogenética, sendo construída de forma mais ativa, "a existência do ser"; e a noção de espaço é construída mais passivamente, os objetos estão "diante do ser'~ A criança aprende a lidar com o espaço antes de lidar com o tempo. O ser humano vive a cada momento o aqui-e-agora. Mas a primazia do tempo sobre o espaço facilmente se percebe pela possibilidade de mudar o espaço mas não o tempo. O espaço é democrático, não é restringido, podese ir e vir, o deslocamento é feito com desenvoltura no dia a dia. O agora não, o tempo é inexorável, ditatorial, não há possibilidade de recuo, avanço ou cessação do movimento temporal. O deslocamento no espaço se oferece a qualquer instante, o deslocamento no tempo é obra de ficção científica. A apreensão da temporalidade concede e exige do homem a escolha, o planejamento e a capacidade de pos tergar o prazer quando lhe parecer conveniente. Essa prioridade do tempo sobre o espaço pode ser vista na frase de Paul Valery: "O ser humano é o animal cuja principal morada está no passado ou no futuro" 4 • I
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A vivência espacial Nos estados psicopatológicos com suma frequência se observa a manutenção da orientação do espaço e da própria pessoa, com a desorientação do tempo e espaço. Há mais estudos psicopatológicos dedicados ao tempo que ao espaço, considerando-se este último aspecto menos relevante psicopatologicamente5. Várias sensações oriundas dos órgãos sensoriais, atuam sinergicamente para que o indivíduo possa integrar o espaço em três dimensões. Já no primeiro ano de vida a criança é capaz de perceber distâncias, de compa-
rar dimensões, de identificar objetos em vários pontos do ambiente. Com 1 ano de vida ela é capaz de se ordenar nas três dimensões espaciais. A intuição do espaço, e não a sua avaliação (que será mencionada na psicologia do rendimento), é vivenciada de forma diferente segundo os estados psicopatológicos. A percepção espacial pode se alterar por várias causas. Isso costuma ocorrer nas intoxicações por drogas alucinógenas (LSD, mescalina) e nas psicoses funcionais, sobretudo na esquizofrenia. As alterações mais representativas da fenomenologia dos distúrbios espaciais são: • Dismegalopsia: as dimensões percebidas estão alteradas. O lápis se apresenta alongado e torto. • Metamorfopsia: alteram-se as formas. A esfera é percebida como um cubo. • Micropsia: percepção em tamanho reduzido dos objetos. Por exemplo, o paciente em delirium tremens enxerga seus amigos do bar em tamanho minúsculo sobre o lençol de seu leito. Aqui se colocam as clássicas alucinações liliputianas, em uma referência ao livro Viagens de Gulliver6 . • Macropsia: oposto ao anterior, os objetos setornam enormes. O rato é percebido do tamanho do ho mem. • Vertigem timopática: é a vertigem dos quadros ansiosos e depressivos, na qual o paciente perde suas referências no espaço, sente-se vacilante, com sensação de que vai cair, parece pisar em um lodaçal ou em um colchão de água É completamente diferente da vertigem labiríntica (otológica), na qual se percebe que tudo no espaço gira em redor. A descrição vivencial do paciente é importante, pois ajuda no diferencial psiquiátrico-otológico e não valoriza textualmente a queixa de "vertigem", comumente citada por pacientes em estados de ansiedade. • Espaço humorado: o espaço provoca sentimentos que podem levar a vivências desrealizantes. Não se vive o mesmo espaço de modo idêntico, pois o espaço se subordina ao tempo cronológico e ao "colorido emocional". Por exemplo, uma criança pode vivenciar um teatro na sua primeira visita como um local espetacularmente grandioso e ao retornar nesse mesmo local, agora adulta, pode se decepcionar com a percepção atual, que contradiz sua memória. Há espaços aconchegantes, intimidantes, felizes, tristes, monossexuais, frios, que escondem a verdade (os escuros), que incitam a franqueza (os claros). Nos estados não patológicos, como nos estados de êxtase místico, há descrições de vivências de que o corpo descolase de si mesmo e funde -se com o espaço cósmico.O espaço de uma praça, ou de lugares em que aparentemente a saída seja difícil, podem ser vivenciados como um infinito angustiante (agorafobia), e as avenidas repletas podem se estreitar ameaçando solapar o deprimido7 • • Alteração do espaço individual: estados patológicos em que se vivenciam violação dos limites corporais, levando a extremos afetos desprazerosos e angustiantes.
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O paranoide sente a hostilidade e ameaça pelo simples olhar do transeunte, o depressivo vê o espaço contraído, nas desrealizações o espaço se torna irreal, familiar nos quadros do "já vivido" e estranho no "jamais vivido': muito comum nos epilépticos temporais. O maníaco sente que o espaço é todo dele, invade o terreno alheio, entra sem bater, inoportunamente, não respeitando frontei ras.
A vivência temporal O tempo vivenciado é objeto da psicologia fenomenológica. Não é a avaliação particular do tempo, o saber do tempo, o tempo objetivo que será discutido adiante na psicologia dos rendimentos. A vivência do tempo é a consciência de como o tempo transcorre, entre um passado como recordação e um futuro como expectativa. É fun damental a vivência de continuidade para vivenciar o transcurso do tempo. Nas ocupações interessantes, a consciência do tempo é mais rápida e nas situações de desocupação, a vivência do transcurso do tempo é mais lenta. As ocupações e o trabalho fazem "passar o tempo" 8 • Em certos quadros psicopatológicos pode-se perder a consciência do tempo (crise de pânico), vivenciar que o tempo se imobilizou ou que retrocede (esquizofrenia), ter a impressão de que o tempo passa de maneira excessivamente lenta e o futuro já não mais existe (ruína e niilismo da melancolia) ou vivenciar que o tempo é excessivamente curto para realizar seus projetos, como nos episódios maníacos. Um dia repleto de vivências traz uma consciência temporal do passado como um dia longo, de modo que um dia com poucas situações vividas traz uma consciência temporal de um dia curto. Alguns esquizofrênicos podem supervalorizar o dia anterior, tendo consciência de que o dia durou décadas. Outros psicóticos sentem que o passado se encolheu. A vivência de deslocamento de espaço necessita também da consciência do tempo. Nas vivências de descontinuidade do tempo não se percebe o próprio translado de um local para outro. Eugene Minkowski, em sua obra maior Le temps vécu, oferece uma profunda descrição fenomenológica do tempo vivido entre pacientes com depressão. Melancólicos apresentam enorme dificuldade de se projetar para o fu turo, o que o autor chama de futuro bloqueado, e vivenciam o transcorrer do tempo de maneira muito lenta, como "um condenado a morte"9 • O maníaco vive apenas o presente em ritmo acelerado, sua existência chega a ser atemporal. O ansioso vive preocupado com o futuro, que é carregado de potencialidades perigosas, e nas ansiedades patológicas esse perigoso futuro já invade o presente e prejudica a relação adaptável com o mundo. Nos estados de angústia extrema e ataques de pânico, a vivência do tempo pode se anular. Deficientes mentais moderados são incapazes de projetar um
futuro acima de um mês. A criança de quatro anos já é capaz de avaliar o hoje, aos oito anos a semana. Pacientes com quadros demenciais vivenciam apenas o presente, por vezes é sempre "hoje': O paciente com traços ou com transtorno de personalidade histriônica necessita ser, enormemente, estimado e notado em uma situação social presente, pouco se importando com as consequências futuras sobre a sua imagem, que às vezes é ridícula nessas ocasiões. O neurótico pode viver fugindo do passado, reprimindo representações intoleráveis ou, ao contrário, pelo medo de crescer como adulto e de se arriscar na vida, refugia-se no passado, buscando uma infância perdida. O obsessivo tem seu presente dilatado, é escravo do presente, não consegue levar adiante sua existência nem seus rituais ou dúvidas anancásticas. Os farmacodependentes e alcoolistas tendem a perceber o passado individual como tenebroso e o futuro como perigoso e ameaçador. Nas intoxicações etílicas costumam repetir as histórias de seus fracassos, fazem confidências impressionantes e preenchem o futuro com fantasias irrealizáveis. O futuro dos dependentes de drogas e álcool é sempre longínquo, prometem que vão parar de beber ou de usar tóxicos, mas no mesmo dia voltam a se intoxicar. Fóbicos também sentem o futuro como ameaçador, bem como o impotente sexual. Além das distorções temporais descritas nas esquizofrenias, é digno mencionar que o esquizofrênico pode ter dupla cronologia, a real e a delirante, além de vivências de intemporalidade, tendo vivido outras eras 10 . A vivência de velocidade do tempo aumenta com a idade da pessoa. Um dia é longo para uma criança, aos 40 anos os anos passam rapidamente. O homem amadurecido enfrenta uma situação difícil sabendo esperar o momento certo de agir, evitando impulsividades, tolera a frustração e elabora uma reflexão mais racional diante do problema. Cada ser humano possui seu ritmo de tempo pessoal, que é uma característica individual, estável durante toda a vida, devendo ser levado em conta na psicologia do trabalho nas ocupações em grupo.
Tempo e espaço como rendimentos psíquicos O saber, o reconhecer objetivamente as dimensões do tempo e do espaço, difere qualitativamente de suas vivências. O saber é um rendimento psíquico, uma função complexa em que intervêm a consciência, atenção, memória, raciocínio, sensações cenestésicas, entre outras. É um complexo de funções psíquicas que permite a consciência em cada momento da situação real em que o indivíduo se acha. Esse conceito é muito próximo da consciência global 11 . Os comprometimentos rendimentais sobre espaço e tempo alteram-se nos quadros orgânicos agudos e crônicos: delirium, psicoses exógenas, demências, síndromes neurológicas focais, deficiências mentais e nos estados de gran-
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de apatia. Um esquizofrênico pode vivenciar sua presença em uma outra galáxia e em outra era e não obstante preenche corretamente um cheque quanto a data e local. A avaliação de espaço e tempo denomina-se orientação, termo derivado do francês orienter, não coincidentemente usado de início na astronomia como parâmetro de localização. A orientação aplicada ao exame psicopatológico, pro posto por Wernicke, inclui a orientação do ambiente, da cronologia do tempo e a orientação da própria personalidade e das outras pessoas. As duas primeiras orientações também são chamadas de orientação alopsíquica e a última de autopsíquica 12 . Os transtornos da orientação se originam de três formas, dependendo da gênese psicopatológica: na percepção, na memória ou no juízo. Na prática clínica, em geral, combinam-se essas três possibilidades causais. • Orientação do ambiente: inquirir onde o paciente se encontra, como se deslocou até o local do exame, reconhecimento do local e dimensões espaciais. • Orientação temporal: investiga-se a data atual, hora, tempo transcorrido da entrevista, duração do tempo em que o paciente esperou para ser atendido, sua idade cronológica e marcação subjetiva de tempo. • Orientação da própria personalidade ou autopsíquica: saber reconhecer-se, identificar-se, como faz a sua própria apresentação ao longa da existência. • Orientação dos outros: reconhecer o examinador, demais membros da equipe, familiares e estranhos. A orientação pode estar conservada em uma esfera e prejudicada em outra. No delirium e em quase todos os processos orgânicos cerebrais, o paciente apresenta desorientação alopsíquica (tempo e espaço), preservando, porém, a orientação de si mesmo. Apenas nos graus mais profundos das demências perde-se também a própria identidade. Nos quadros psiquiátricos primários, sobretudo na esquizofrenia, o paciente apresenta acurada orientação temporoespacial, mas pode ter dificuldade na orientação de si mesmo, inclusive assumindo outras personalidades. Quadros psicóticos agudos podem levar a desorientação sobre os outros, na qual os pacientes confundem familiares com o pessoal da equipe. O falso reconhecimento de pessoas pode estar presente em quadros delirantes, episódios maníacos, dissociações histéricas e confusão mental (mecanismo ilusório), além das confabulações. O falso reconhecimento está mais intimamente ligado aos distúrbios do juízo, tendo preservadas as competências cognitivas. É comum viverem dupla orientação, a falsa ao lado da correta. É o caso do paciente que trabalha como caixa em um banco mas acredita viver em plena idade média, como também o esquizofrênico que se encontra em um hospital e considera o ambiente uma verdadeira prisão camuflada 13 . Nas apatias, a despeito do paciente ter condições psíquicas para perceber com clareza o mundo externo, exis-
te um desinteresse por ele, levando à desorientação apática. Isso costuma acontecer no chamado autismo da esquizofrenia, no qual o paciente ignora data, nomes do médico e dos enfermeiros. Nas depressões inibidas graves esse desinteresse também é comum. Nos quadros de amnésia, a própria debilitação da memória impede que as vivências tenham uma ordenação e sucessão registradas, em razão do comprometimento da memória de conservação. Espaço e tempo se perdem, como no caso da síndrome de Korsakoff e nas demências. Confundem -se as pessoas e não se registra mais o tempo. Uma variante desse tipo de desorientação ocorre quando durante uma lacuna de tempo o indivíduo padece de uma obnubilação da consciência; caso do despertar de desmaios, crises epilépticas ou mesmo de um sono normal. Há a necessidade de esperar alguns momentos, por vezes, para que as condições de orientação retornem ao normal. Nas alucinações maciças também ocorre desorientação espacial, pelas falsas percepções dos objetos e do es paço. Em condições graves pode ser inútil explicar ao paciente psicótico que se encontra em uma clínica e que está protegido, pois ele não consegue superar as vivências sensoperceptivas imediatas e busca incessantemente fugir ou lutar com seus conteúdos alucinatórios. A perfeita consciência do espaço é obra de profunda reflexão e não do imediatismo vivenciado.
Questões 1. A vivência de que o tempo transcorre lentamente e o projetar-se para vivências futu ras é muito dificultoso, é indicativo a) b) c) d) e)
de: Demências Transtorno obsessivo-compulsivo Esquizofrenia Episodio depressivo Síndrome de pân ico
2. Preocupação excessiva com eventos futuros, com temores infuna) b) c) d) e)
dados de morte, catástrofes, perdas familiares, pode sugerir: Despersonalização Episódio depressivo Transtorno de ansiedade Fobia específica Esquizofrenia paranoide
3. "O paciente está preso ao presente. Detalhes, a cada instante, necessitam de sua atenção e atitudes, para prevenir a ocorrência de ameaças que surgem sob a forma de pensamentos repetidos. O tempo consumido em rituais no presente evita a elaboração de vivências passadas e não permite planos para o futuro:· Essa situação pode ocorrer em casos de: a) Transtorno obsessivo-compulsivo b) Síndrome de dependência do álcool
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c) Personalidade anancástica d) Episódio depressivo e) Transtorno de pânico
4. "O paciente trabalha em uma instituição financeira e executa
a) b) c) d) e)
adequadamente suas tarefas, mas no íntimo sabe que está no séc. XXIII e a data atual em que ele opera nas suas fu nções profissionais é uma convenção." A vivência descrita pode ocorrer em que transtorno mental? Mania psicótica Fases iniciais de demência Esquizofrenia hebefrênica Transtorno delirante persistente Transtorno de personalidade histérica
5. Alterações da avaliação do espaço e alterações da vivência do a) b) c) d) e)
espaço são mais sugestivas de, respectivamente: Esquizofrenia e ansiedade Demência de Alzheimer e demência vascular Processos parietais e processos esquizofrênicos Distúrbio conversivo e fobia social Agorafobia e retardo mental
Referências bibliográficas 1. Fullgort KWM, Thornton T, Graham G. Oxford textbook o f philosophy and psychiatry. Oxford: Oxford University Press; 2006. 2. Santo Agostinho. Confissões. São Paulo: Nova Cultural; 1996. 3. Rossetti R. Bergson e a natureza temporal da vida psíquica. Psicologia, reflexão e crítica. 2001;14(3):617-23. 4. Giannetti E. O valor do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras; 2005. S. Weitbrecht HJ, Manual de psiquiatria. Madrid: Gredos; 1970. 6. Swift J, Viagens de Gulliver. São Paulo: Rideel; 2009. 7. Messas GP. Psicopatologia fenomenológica contemporânea. São Paulo: Roca; 2008. 8. Stern W Psicologia geral. Barcelos: Companhia Editora do Minho, Fundação Calouste Gulbekian; 1979. 9. Minkowski E. El tiempo vivido. México: Pondo de cultura economica; 1973. 10. Alonso-Fernández F. Fundamentos de la psiquiatria actual: tomo I, espacialidad y temporalidad. Madrid: Editorial Paz Montalvo; 1979. 11. Jaspers K. Psicopatologia geral: fenomenologia e rendimentos objetivos da vida psíquica. Rio de Janeiro: Atheneu; 1987. 12. Berrios GE. The history of mental symptoms. Cambridge: Cambridge Univ Press; 1996. 13. Jung KG. The psychology of dementia praecox. In: The collected works, vol. 3. London: Routledge; 1972.
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Alterações do Pensamento (Forma e Conteúdo) e Linguagem Yuan-Pang Wang Marcelo Biondo Bruno Henriqu e Machado Alexandre Andrade Loch
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 504
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Estudo das alterações de pensamento e linguagem, 505
1. Distinguir as diferenças entre pensamento, linguagem e
Alterações da forma do pensamento, 507 Alteração da velocidade, 507 Alteração na quantidade do pensamento, 507
comunicação, bem como as suas inter-relações e métodos de investigação psicopatológica. 2. Discriminar as alterações psicopatológicas de pensamento e
Alteração na direcionalidade do pensamento. 508 Alterações da recorrência da produção verbal, 509 Alterações do conteúdo do pensamento, 51 O Alteração da vivência de posse do pensamento, 51 O A contribuição psicopatológica de Carl Schneider, 511
3. Compreender as principais alterações de forma do pensamento e o seu correlato na linguagem.
Alterações de linguagem e afasias, 511 Valor semiológico das alterações formais de pensamento, 514
4. Compreender as principais alterações de conteúdo do pensamento.
Considerações finais, 515 Minicaso clínico, 516
5. Compreender as principais alterações de vivência de posse do pensamento.
Questões, 51 6 Referências bibliográficas, 517
6. Entender as principais alterações de linguagem de etiologia
linguagem com as alterações secundárias a problemas orgânicos e neurológicos.
orgânica - afasias. 7. Atribuir um valor semiológico às principais alterações de
Introdução O estudo das alterações de pensamento constitui uma das áreas mais fascinantes e complexas da psicopatologia humana. Essa afirmação repousa sobre o fato de o pensamento pertencer a uma função psíquica de integração, fazendo a ponte do mundo externo (via sensopercepção, atenção e consciência), passando pelo processamento das vivências do mundo interno (memória, volição, emoção e afeto), e por fim exteriorizando-se por meio da linguagem, fazendo o contato com o meio em que o sujeito vive sob a forma de comunicação. Essa intricada cadeia de fenômenos psíquicos é difícil de ser observada sem a cooperação do relato subjetivo do paciente. Embora seja possível estudá-la por meio de diferentes técnicas, os resultados de sua manifestação nem sempre são conclusivos ou livres de controvérsias. Assim, divergências conceituais e diversidades metodoló-
pensamento e linguagem.
gicas dos estudos que envolvem essa função psíquica ainda estão vulneráveis a intensos debates entre os especialistas do assunto. O pensamento faz parte do curso presente da vida psíquica e pode ser definido como uma vivência de características bastante peculiares, já que essa atividade mental inclui a manipulação de símbolos, sinais, conceitos ou ideias percebidas ou representadas. Durante muito tempo, desde Aristóteles, o pensamento foi conceituado como uma função de associação, ou seja, uma representação que dá origem a uma ideia seguinte, (que, portanto, guardaria relação com a anterior). É por meio desse encadeamento de representações que se faz a explicação e revelação de novos significados, incorporados novamente à memória. Assim, novos pensamentos se formam com o auxílio de acontecimentos externos,
41 ALTERAÇÕES DO PENSAMENTO (FORMA E CONTEÚDO) E LINGUAGEM
os quais são atualizados com os quadros mnemônicos que se relacionam temporalmente com o anterior, ou por similitude. A psicopatologia clássica conceitua o pensamento como um fenômeno de alta complexidade, o qual está presente em toda e qualquer tarefa, desde o ato perceptivo até a elaboração da linguagem 1. No entanto, reduzir o pensamento a meras associações ideativas não fornece uma descrição completa. É errôneo conceituar o processo de pensamento como novas combinações de recordações e representações. Essa atividade fundamental integra a totalidade dos rendimentos psicológicos individuais, mas elementos afetivos participam da sua formação. A fi nalidade, o conteúdo, o ritmo, a fluência e o tipo de pensarnento são determinados pelos interesses, necessidades e tendências atuais. Resumindo muito grosseiramente, o pensamento se estrutura com base em dois elementos fundamentais: a palavra e a sintaxe. O primeiro corresponde à própria organização do pensamento e o segundo refere-se aos modos de estabelecer a relação entre as palavras. Por outro lado, a linguagem pertence à função da psicomotricidade, posto que se exija a integridade de aparelho fonatório e outros meios expressivos (gestos, escrita, pintura, arte etc.) atrelados à mobilidade de partes do corpo humano. A função primária da linguagem é, pois, estabelecer o contato com o meio externo, por meio de sinais para comunicar e expressar ideias, sentimentos, vontades e atitudes 2 • Por fim, a mensagem emitida linguisticamente permite estabelecer comunicação com o seu suposto receptor. Pragmaticamente, o emissor dessa mensagem (verbal ou não verbal) provocaria variados efeitos no meio circundante do sujeito. O pensamento constitui uma atividade psíquica subjetiva1, a sua expressão exteriorizada por meio da linguagem deve ser compreendida e compartilhada de maneira objetiva pelo receptor, para que uma mensagem seja comunicada de forma clara e possa alcançar os efeitos desejados. Entretanto, a linguagem não deve ser equiparada à expressão direta do ato de pensar nem entendida como o produto manifesto dessa atividade psíquica. Claramente, pode-se pensar sem exteriorizar sinais ou signos linguísticos e, ao contrário, é possível falar sem que haja uma elaboração mental do ato de pensar. No entanto, a comunicação sempre ocorre quando há presença da díade emissor e receptor de uma mensagem. Mesmo que o sujeito nada fale ou expresse, há uma mensagem subjacente à decisão de não expressar o que se pensa3 . Considerar a linguagem e o pensamento como um mesmo fenômeno produz imperfeições conceituais e erros de interpretação. Por exemplo, é fato que existe a possibilidade de pensar e não dizer nada, uma vez que a linguagem, diferentemente da função pensamento, depende da psicomotricidade. Karl Jaspers 1já ressaltava a possibilidade de ocorrência de fuga de ideias mudas ou pobres, na
qual a vivência do pensamento é abundante e acompanhada de uma produção verbal inibida. Isto é, nem sempre as alterações quantitativas do pensamento traduzem uma alteração equivalente na função linguística ou débito verbal. O reverso também é verdadeiro, pode-se dizer algo e nada pensar, como exemplifica a função "fática" da linguagem, na qual o interlocutor se expressa de maneira verbal apenas para manter contato social com o receptor do sinallinguístico, como falar "oi': "como vai" para alguém, sem que seja necessária uma elaboração de pensamento3. A relação íntima entre pensamento e linguagem, que decorre da dependência recíproca de ambas as funções, é defendida por diversos autores4' 5. Segundo Luria6 tratase de uma cadeia de processos dinâmicos, na qual um pensamento incipiente será transformado passo a passo até sua exteriorização em forma de fala. O fenomenolo gista Jaspers 1prefere descrever, por sua vez, a linguagem estritamente na seção de rendimentos individuais, compreendendo em sua obra os distúrbios articulatórios, as afasias e os distúrbios psicóticos da fala. Esses últimos compreendem o mutismo, a perseveração, a verbigeração, a logorreia, a confusão verbal e a incoerência. Sempre que possível, os termos empregados neste capítulo são compilados diretamente da literatura consultada, citando os termos estrangeiros originais. Contudo, há uma dificuldade de acesso a obras originais, muitas vezes esgotadas, sendo necessário se apoiar somente nas traduções publicadas no Brasil. Muitos termos não são definidos de forma razoável, pois os próprios autores que os propuseram são os que os conseguem caracterizar de forma precisa. Tendo em mente a distinção conceitual entre pensamento, linguagem e comunicação, as principais alterações de forma e conteúdo do pensamento são abordadas neste capítulo, guardadas suas inter-relações com a linguagem. Em seguida, destacam -se também as alterações de posse de pensamento. O estudo de quadros orgânicos, problemas de desenvolvimento ou quadros neurológicos propriamente ditos não será enfatizado neste capítulo.
Estudo das alterações de pensamento e linguagem Em contraste com melancolia e mania, conhecidas desde a idade antiga, a esquizofrenia só foi descrita há pouco mais de 300 anos 7' 8• Ainda que nem sempre todos os autores clássicos da psiquiatria enfatizassem a importância dos distúrbios de pensamento, todos parecem concordar que certas personalidades célebres apresentam distúrbios importantes nesta área, afetando a produção de linguagem. O mutismo súbito e a irresponsividade do rei Henrique VI (1421 - 1471) da Inglaterra era peculiar e possivelmente demarcava o início de um surto esquizofrênico, acompanhado de paranoia, alucinações e sinais de apatia9 • Analisando outro texto do século XV, a peça Rei Lear de William
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Shakespeare, Bark10 notou que o personagem Tom O'Bedlam falava de forma tão desordenada e desconexa que os seus sintomas podem ser equiparáveis aos observados em pacientes esquizofrênicos hoje em dia. A compreensibilidade do discurso é bastante prejudicada por causa de várias alterações sem termos adequados para descrevê-las, como associação de ideias (confusão, associação frouxa), fluxo discursivo (bloqueio, descarrilamento), uso peculiar de palavras novas (neologismo), entre outros. A mudança na comunicação é afetada no sentido em que essas personalidades falam sozinhas e mudam aleatoriamente a direção das ideias, sem levar muitas vezes em conta a posição e opinião de seu interlocutor. Não havia naquela época, pois, uma disciplina psicopatológica que pudesse descrever essas alterações de forma fidedigna. O processo de pensamento não é a mera combinação de diversos pedaços de recordações e representações, como um mosaico de conteúdos esparsos que são acrescentados por essa atividade psíquica. Antes de tudo, é dada uma forma ao pensamento, paralelamente à atividade de elaboração do experimentado, que conduz a outros conteúdos psíquicos. O pensamento n ão é apenas a soma de suas partes, mas consiste em uma configuração independente. Os resultados formais do pensamento podem ser os mesmos, ainda que elementos isolados da memória ou da representação sejam modificados. Inversamente, o resultado do pensamento pode ser alterado, apesar das representações e recordações isoladas subjacentes serem as mesmas, desde que sejam relacionadas diversamente 11 •
Psicopatologicamente, os distúrbios do pensamento podem ser divididos em dois grandes grupos. No primeiro, as anormalidades da "formà: ou "alterações formais': representando a disfunção do processo de pensamento, tais como respostas irrelevantes, ideias desconexas, vagueza e uso idiossincrático de palavras. No segundo grupo de alterações, do "conteúdo': é possível citar o pensamento prevalente e o pensamento obsessivo, além da ocorrência das ideias delirantes, concebidas como alterações de juízo, mas também características desse grupo. Certos autores, principalmente da língua inglesa12' 13, consideram as ideias delirantes como alterações do conteúdo do pensamento. A descrição e discussão das ideias delirantes não serão aprofundadas aqui, visto que há um capítulo específico de alterações do juízo nesta obra. Também serão abordados em outro campo os distúrbios da atenção, que guardam relação próxima com o pensamento, em razão da maior ou menor influência do material ideativo sofrida por estímulos externos, porém jamais alterando as tendências determinantes da função pensamento. Não são enfatizados também os problemas de desenvolvimento, os quadros orgânicos, quadros lesionais-deficitários ou os quadros neurológicos propriamente ditos.
Em uma carta escrita por um paciente esquizofrênico de Eugen Bleuler 11 , diversas porções de associação e continuidade do pensamento estão claramente alteradas, cujo resultado é um texto de difícil compreensão. A época de florescimento para horticultores Na época da lua nova Vênus está no céu do Egito, em agosto, e ilumina com os seus raios de luz os portos comerciais, Suez, Cairo e Alexandria. Nesta cidade dos califas, historicamente famosa, encontra-se o museu dos monumentos dos assírios da Macedônia. Lá medram, ao lado das colunas de milho de Pisang, feno, trevo, trigo, também bananas, figos, limões, laranjas e azeitonas. O azeite de oliva é um molho de licor arábico, com o qual os afegões, os mouros e os muçulmanos fazem a colheita dos avestruzes. O Pisang hindu é o uísque dos persas e dos árabes. O persa ou caucásico possui tanta influência sobre os seus elefantes como o mouro sobre o seu dromedário. O camelo é o esporte dos judeus e dos hindus. Na Índia crescem, de forma muito satisfatória, trigo, arroz e estoque de açúcar, isto é, artichocas. Os brâmanes vivem em castas no Beltschistan. Os tscherkessas residem na Manchúria na China. A China é o eldorado dos Pawnes. (Carta de um esquizofrênico, p. 33. In: Psiquiatria de Bleuler 11 ).
A psicologia da associação tende a imaginar o processo do pensamento de uma forma mecanicista, como uma atividade que se coloca em andamento como um interruptor de aparelho elétrico. Similarmente, por muito tempo, tentou-se localizar as associações isoladas dessa atividade em áreas específicas do cérebro. Conceituar o pensamento como uma atividade com função configuratória também é restritivo, pois algo novo surge para além da atividade de combinar conceitos isolados. Para dificultar ainda mais essas especulações teóricas, a atividade psíquica do pensamento não é observável ou estudada diretamente do sujeito. Ingenuamente, alguns autores chegam a equiparar a linguagem como um produto do pensarnento. Em relação à metodologia de estudo do pensamento e linguagem, diversos paradigmas têm norteado as linhas de pesquisa. Pode-se observar o comportamento do paciente ou obter informações sobre a vivência de pensamento por meio do relato do paciente. A descrição da linguagem, como um subproduto do pensamento, também recebeu diversos estudos vindos de técnicas de associação de pensamento, linguística e psicanálise 13 - 15 • A mensuração estatística da velocidade discursiva, quantidade de débito verbal e tipo de palavras representa outra vertente de estudo dessa função 16. 18 . Por fim, testes neuropsicológicos e neurolinguísticos 19' 20 têm recebido particular atenção dos pesquisadores, uma vez que o processamento do pensamento pode ser estudado por meio de testes de desempenho. Mais recentemente ainda, as relações entre o processo de pensamento e neurofisiologia
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cerebraF 1 ou neuroimagem funcionaF2 começam a estabelecer os substratos biológicos dessa função psíquica. Visto o teor clínico desta seção, adotou-se preferencialmente a metodologia empático-fenomenológica para descrever as alterações de pensamento. Acredita-se, entretanto, que as novas tecnologias (neuroimagem, neurofisiologia e testes neuropsicológicos/neurolinguísticos) podem contribuir para o avanço da compreensão desses complexos fenômenos psíquicos.
Alterações da forma do pensamento Jaspers 1 definiu a forma do pensamento como a estrutura pela qual o pensamento é elaborado, cuja progressão é orientada por um componente associativo, ou trilho de pensamento, que gera conexões passivamente; e por um componente ativo, ou a tendência determinante, que direcionao pensamento a uma ideia-alvo. Em geral, a forma do pensamento é acessível por meio da fala do paciente durante as entrevistas psiquiátricas 13 • Para detectar as alterações formais do pensamento, deve-se permitir que o entrevistado desenvolva livremente as suas respostas. Por exemplo, uma pergunta fechada como "qual sua data de nascimento?" apenas revelará alterações em casos extremos, uma vez que a resposta é muito simples, pontual. Quando existe a suspeita de alteração formal, o examinador deve utilizar perguntas abertas, que permitam respostas mais elaboradas23. Entrevistas estruturadas e escalas de avaliação não são adequadas para avaliar as alterações da forma do pensamento. Há muita controvérsia sobre o melhor modo de dividir as principais alterações formais de pensamento, as quais se referem ao curso da cadeia ideativa, ou o trem do pensamento. Desenvolveu-se a sua descrição nesta seção, didaticamente, de acordo com as seguintes categorias de alterações: 1) Alterações da velocidade do pensamento: também conhecidas como alterações do fluxo do pensamento na unidade do tempo, representam manifestações psicopatológicas sobre o ritmo com que a vivência ocorre. 2) Alterações de quantidade do pensamento: representam alterações quantitativas na ocorrência da elaboração da vivência em questão. 3) Alteração de direcionalidade do pensamento: é a alteração do "arcabouço" do pensamento, ou seja, são estudadas as relações entre as vias pelas quais "passam" os diversos conteúdos. 4) Alterações de recorrência da produção verbal.
Alteração da velocidade A velocidade do pensamento e a produção verbal podem ocorrer separadamente, sendo o pensamento vivenciado de maneira subjetiva pelo paciente e o débito
verbal observado durante a entrevista. Embora esses dois componentes guardem uma estreita relação, nem sempre a aceleração da linguagem traduz a velocidade do pensamento, e vice-versa. Por exemplo, nos casos de fuga de ideia "pobre" o paciente relata, posteriormente, que apresentava uma vivência de aceleração das ideias, em velocidade e quantidade aumentada. No entanto, a produção verbal neste caso é diminuída, chegando até o mutismo. Na aceleração do pensamento, os pacientes relatam uma vivência subjetiva de pensamentos acelerados. Na obra de Kraepelin 2\ o autor relata casos clássicos de pacientes em episódio maníaco, os quais descrevem a ocorrência de pensamentos acelerados, "correndo" e "transbordando a cabeçà'. Frequentemente, a aceleração de pensamento pode ser acompanhada de débito verbal aumentado como logorreia e pressão do discurso. Na logorreia, compulsão ou impulsão verbal, ocorre o fenômeno da excitação moto ra do aparelho fonador 1• Trata-se de um fluxo incessante e incoercível, muitas vezes emitido sem coesão interna lógica, que é acompanhado por aceleração do ritmo psíquico e de elevação do estado de ânimo. Kraepelin 24 descreve a pressão do discurso (pressure ofspeech) como um sintoma integrante da pressão geral por atividades, com um débito verbal aumentado para 180 a 200 sílabas por minuto. Na maioria das vezes é muito difícil interromper a fala do paciente, ou conseguir uma brecha para responder às suas indagações. No polo contrário, ocorre a lentificação do pensamento, quando a vivência psíquica de inibição global é descrita pelo paciente como pensamentos arrastados e vagarosos, com grande dificuldade de prosseguir nas conversas. Nesse caso, em geral, a linguagem observada é um discurso repleto de pausas, com latências para resposta ao meio ambiente.
Alteração na quantidade do pensamento A quantidade do pensamento e linguagem verbal também se altera com redução ou aumento do número de produção. No pensamento circunstancial há um excesso de informação compartilhada ou redundante e, geralmente, não se relaciona com o tema. Muitas vezes, esse tipo de pensamento é causado pela dificuldade ou impossibilidade do sujeito de distinguir o essencial do acessório. O resultado é um discurso com prolixidade, no qual o pensamento circunstancial decorrente da incapacidade de concluir provoca sensação de enfado ao ouvinte. Psicopatologicamente, na fuga de ideias ocorre au mento da quantidade de eventos ideativos, afetando secundariamente a direcionalidade do pensamento. As ideias progridem rapidamente sobre os trilhos associativos por meio da rima, assonância e aliteração. Frequentemente, essa alteração se acompanha da aceleração da atividade
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psíquica global, com aceleração de pensamento, logorreia e pressão de discurso, cuja consequência é uma perda de direcionalidade. Jaspers 1 exemplifica a produção verbal de uma paciente que apresenta fuga de ideias durante uma entrevista clínica: Respondendo a pergunta se mudara, no último ano, disse ela: sim, pois era muda e estúpida, mas não surda, conheço a Ida Daube, que está morta, provavelmente morreu de inflamação no ceco; não sei se era cega; o cego Hesse; o grão duque de Hesse, a irmã Luísa, grão duque de Baden, o marido morreu no dia 28 de setembro de 1907, quando voltei, é, vermelho-dourada-vermelho (Psicopatologia geral, p. 252) 1•
Na pobreza de pensamento ocorre uma diminuição do número de representações mentais evocáveis na unidade de tempo. Muitas vezes, essa alteração também se acompanha de lentidão em seu curso. Em pacientes esquizofrênicos com sintomas negativos e deprimidos com inibição psicomotora, pode ser difícil discriminar essa alteração. Em um sentido mais amplo, na inibição do pensamento ocorre um prejuízo da tendência determinante, ocasionando um retraimento do evento associativo e obstruindo a progressão do conteúdo ideativo. A lentidão do pensamento e a pobreza de conteúdo ocorrem nesse tipo de pensamento. Embora a inibição do pensamento seja considerada uma característica dos quadros clássicos de depressão 25, o risco de diagnósticos equivocados é frequente, uma vez que sua apresentação é inespecífica. Pode ocorrer confusão com o indivíduo "inibido, acanhado" e, ainda, em esquizofrênicos com "bloqueio de pensamento': Seu grau extremo é o monoideismo. Em alguns pacientes, a inibição pode determinar bradilalia, chegando a mutismo, com abolição parcial ou total da produção verbal.
Alteração na direcionalidade do pensamento Em diversas situações clínicas, o fluxo do pensamento apresenta-se alterado, com interrupções e desvios, afetando a sua progressão em direção a ideias-alvo. Na fuga de ideias, descrita por Kraepelin2 \ as sucessivas ligações da cadeia de pensamento são influenciadas pela instabilidade das ideias diretrizes, produzindo uma frequente mudança no curso do pensamento. Jaspers 1 ainda distingue as fugas ricas (logorreicas) das pobres. A "arborização" do pensamento é um termo muito utilizado no nosso meio, sem, contudo, ter respaldo em literatura pertinente. Em geral, indica estágios mais leves de associação de pensamento. A fuga de ideia, ou "pensamento fugidio': é conceituada por Kurt Schneider25 como um pensamento excitado que perde o seu alvo e segue por caminhos colaterais. Em alguns casos os elementos do processo de
pensamento se sucedem agrupados em parte segundo à sonoridade, em parte influenciados pelo estímulo doambiente externo. Muitas vezes, a atenção espontânea está exaltada. Não é patognomônico de mania, visto que pode ocorrer em quadros orgânicos, de intoxicação exógena e no "esquizofrênico pseudomaníaco". Jaspers 1 enfatiza a excitação do evento associativo, gerando afluxo maciço de conteúdos na consciência, sem, no entanto, guardarem tendências, isto é, sem direcionamento em direção a uma ideia-alvo. Diferentemente das fugas ricas, expressas pelo paciente na forma de logorreia, existem as fugas pobres, que têm apresentação na forma de mutismo ou discurso normal, a despeito da vivenciar pensamentos maciços e incontroláveis. A associação frouxa de ideias é um sintoma fundamental proposto por Eugen Bleuler11 , em 1911, para designar uma série de alterações na continuidade dos fios associativos nos pacientes esquizofrênicos. Essas alterações das conexões e palavras aparecem isoladas ou em grupo, perdendo aos poucos suas ligações com o texto. De acordo com esse autor: [... ] no pensamento esquizofrênico ocorre uma perda de continuidade dos fios associativos, cujas conexões aparecem ora isoladas, ora em grupo, de modo que o pensamento se faz extravagante e ilógico (associação frouxa de pensamento). Ainda é possível ocorrer assonância e condensação. A tendência ao estereótipo gera escassez de ideias, chegando ao monoideismo. A perseveração, a repetição e o uso de neologismo podem levar a um alto grau de transtorno resultando um estado de confusão[ .. .]:'
Segue um exemplo de discurso com associação frouxa de pensamento, taquigrafado de um paciente: Epaminondas foi alguém poderoso na terra e no mar. Conduziu grandes manobras marítimas e batalhas navais abertas contra Pelópidas, mas na Segunda Guerra contra Cartago levou um golpe na cabeça pelo fracasso de uma fragata armada. Caminhou com navios de Atenas para Mamre, levando para lá uvas da Caledônia e romãs, e sobrepujou os beduínos. Sitiou a acrópole com navios dotados de canhões e incendiou a ocupação persa como tochas vivas. O papa posterior Gregório VII- ah- Nero seguiu seu exemplo e fez incendiar todos os atenienses, todos os sexos romanos-germânicos-celtas, que não tinham uma posição definida diante dos sacerdotes, pelos druídas no dia da morte de Cristo, em honra ao deus do sol, Baal. Este é o período da idade da pedra. Pontas de lanças de bronze (p. 33. In: Psiquiatria de Bleuler) 11 .
Em geral, a associação frouxa de ideias é acompanhada de descarrilamento (em inglês, derailment; knight's move thinking), no qual acontece uma interpolação de
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conteúdos ideativos em vez de uma conexão factual, sem intenção sobreposta, cuja consequência é uma perda de direcionalidade ou incapacidade de alcançar as ideias-alvo. O descarrilamento também foi descrito por Carl Schneider como Entgleisen 26 • O seu resultado final pode ser a desorganização do pensamento - uma expressão vaga e inespecífica na psicopatologia. O termo desorganização do pensamento é utilizado frequentemente para descrever o pensamento na esquizofrenia hebefrênica, mas também é empregado em uma série de outros contextos clínicos. Kurt Schneider25 utiliza o termo pensamento "confuso" ou "desconexo", conceituando-os como aqueles em que não existe relação alguma entre um pensamento e outro (isto é, o clínico não consegue encontrar conexões que liguem um pensamento com o anterior). A expressão desagregação de pensamento é de origem desconhecida e provavelmente tenta designar de sorganização ideativa, com frouxidão da associação do pensamento. Embora muito utilizada na prática clínica brasileira, não encontra respaldo na literatura psicopatológica clássica. Igualmente, a expressão arborização do pensamento também carece de referências na literatura, sendo usada em nosso meio para descrever a ideia de sucessivos desvios na cadeia de pensamento, provocando uma alteração progressiva do curso da vivência do pensarnento, que impede a conclusão do raciocínio. Alguns clínicos veem a arborização como uma forma atenuada de fuga de ideias. Um tipo especial de alteração de direcionalidade é a pararresposta (em alemão, Vorbeigehen e Vorbeireden), na qual um paciente vai responder a uma pergunta de tal forma que se pode dizer que tenha entendido, emhora a resposta em si seja claramente errônea. Por exemplo, "quantas patas tem um cachorro?" - "Seis". Essa condição ocorre na síndrome de Ganser27 e tem sido observada em presos que aguardam julgamento. Vorbeigehen foi o termo original usado em 1898 por Ganser, mas Vorbeireden (literalmente, significa conversar de uma maneira que se perca aquilo sobre o que está se conversando) é o termo geralmente utilizado 28 • Embora esse comportamento também seja observado em quadros psicogênicos, endógenos e orgânicos 13, a sua manifestação é comum entre as pessoas que tentam fingir ou aparentar distúrbios psiquiátricos (daí a associação com os presos de guerra), as quais evitam fornecer uma resposta correta a uma pergunta simples. Alguns auto res preferem o termo "respostas aproximadas" para descrever essa alteração 13 •
Alterações da recorrência da produção verbal A seguir, foram listadas outras alterações de comportamento verbal, de difícil classificação. Em geral, são comportamentos verbais que apresentam as características de serem repetitivos, estereotipados, aparentemente
imotivados, que não se prestam a uma comunicação útil. Assim, o resultado dessas alterações apresenta uma compreensibilidade limitada, por não levar pragmaticamente a uma finalidade de comunicar uma mensagem inteligível. Não é incomum essas alterações de linguagem envolverem uma alteração neurológica ou orgânica. O solilóquio, ou falar sozinho, pode ser observado em pacientes que apresentam um quadro de alucinação. Em resposta a seres imaginários ou inexistentes, observa-se o paciente dialogando solitariamente a esmo, incessantemente, sem motivo aparente. Outras vezes, ocorre a mussitação, em que a linguagem é expressa em tonalidade muito baixa. Comumente, o enfermo movimenta os lábios de maneira automática, produzindo murmúrio ou som confuso. Na verbigeração os pacientes repetem incessante e monotonamente certas palavras, trechos de frases ou construções sem sentido, durante dias, semanas ou meses. O tom de voz é monótono, declamatório ou patético. Jaspers1 conceitua a verbigeração propriamente dita como , . . . automatica, em que a repetiçao ocorre sem que ex1sta significado algum em seu conteúdo e sem que o paciente a vivencie. A forma automática diferencia das "verbigerações ansiosas': que são providas de conteúdo e afeto em frases repletas de confusão e perplexidade, como exemplificao autor: "Ah, meu Deus; ah, meu Deus que desgra((
))
ça... A h, meu Deus; ah, meu Deus que desgraça .. :' Por outro lado, na perseveração, o paciente responde a vários estímulos de forma estereotipada, por inércia; traduzindo -se pela persistência das expressões, com incapacidade de modificá-las segundo as necessidades da situação. Por exemplo, após responder inicialmente que o seu nome é "Antônio", o paciente continua a responder a data, seu endereço, ideia sobre o seu bem-estar com ''Antônio", de forma perseverante. Tipicamente, na ecolalia, o paciente repete as palavras ou frases do entrevistador. Esse padrão discursivo é persistente e repetitivo. Em geral, se acompanha de entonação zombeteira, jocosa, em murmúrio ou em staccato. Ocorre mais frequentemente em crianças, costuma ser incomum em adultos. A coprolalia, descrita por Gilles de La Touretté9, trata-se de produção involuntária e compulsiva de palavras obscenas ou de baixo calão. Frequentemente acompanhada de movimentos involuntários e tiques, a coprolalia é considerada atualmente um quadro do espectro do transtorno obsessivo-compulsivo, com um conteúdo ideativo específico estereotipado e recorrente. De difícil classificação, descreve-se aqui o neologismo, no qual novas palavras não dicionarizadas são produzidas verbalmente pelo paciente para expressar, em geral, uma situação ou sensação inefável. Descrito inicialmente por SnelP0, em 1852, os neologismos podem ser cunhados por meio da deformação de um termo já existente, ou palavras completamente novas são criadas. Embora os
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neologismos pareçam ter um significado para o paciente, a combinação de palavras com significados contraditórios é desconcertante, levando o ouvinte a se confundir, dificultando a sua compreensão. Segundo Lanteri-Laura e Del Pistoia31, a formação de neologismo se dá principalmente por dois mecanismos: aglutinação ou condensação de duas palavras (p. ex., um paciente utiliza a expressão "cachote'' para a combinação de "cachorro" com "caixote"); e analogia ou contaminação de uma palavra já existente (p. . dor") . ex., (( re1OJa Merecem menção ainda os sintomas psicopatológicos como a afonia e disfonia de pacientes histéricos (de provável origem psicogênica), disartria, gagueira e tartamudez, além da logoclonia observada em pacientes com doença de Parkinson. Foram deixadas de lado as especificidades dessas alterações, pois mais detalhes sobre as alterações comuns de fala e linguagem foram examinados por Critchley32.
Alterações do conteúdo do pensamento Embora os psicopatologistas se preocupem primariamente com as alterações da forma das funções psíquicas, o exame do conteúdo do discurso deve complementar a avaliação do paciente. Há muitas formas de dividir os conteúdos do pensamento 13, visto que tantas variações são possíveis na atividade de pensar. Alguns conteúdos ideativos são típicos, embora não constituem uma alteração psicopatológica em si. Por exemplo, o conteúdo pessimista expresso por um paciente não necessariamente reflete um transtorno depressivo, mas se em conjunto com outros sinais e sintomas de depressão (anedonia, humor deprimido, anergia, entre outros) pode ajudar a caracterizar melhor o diagnóstico em questão. A análise do conteúdo de ruína e ideação suicida é especialmente importante nesses casos. Algumas alterações psicopatológicas que se referem ao conteúdo do pensamento são destacadas abaixo. As ideias delirantes são consideradas em um capítulo à parte. No pensamento prevalente, as ideias são supervalorizadas e encontram-se embebidas de intenso tom afetivo, prevalecendo sobre as demais. Todas as vivências e conteúdos afetivos se voltam preferencialmente em torno desse tema. Por vezes, algumas ideias fixas passam a dominar o todo das vivências do pensamento, no qual poucos temas são focados de forma incessante. Os pensamentos obsessivos, também chamados de obsessão ideativa, são ideias que se repetem e se impõe à consciência de forma involuntária e estão associadas a tensão, angústia e sofrimento. Frequentemente, o medo está associado e atos compulsivos podem decorrer desses pensamentos como uma forma de aliviar o desconforto resultante. Em geral, os indivíduos reconhecem a sua natureza absurda, no entanto, não são capazes de controlá-los. Outras vezes, a crítica pode estar ausente nesse tipo de pensamento.
Descrito por Kurt Goldstein33 em 1939, o pensamento concreto é visto como uma forma alterada de pensamento no curso da esquizofrenia. Nesse tipo de pensamento, o paciente é incapaz de elaborar, categorizar e abstrair, atendo-se apenas ao seu próprio mundo interno e projetando-se concretamente a objetos externos. Um tipo de pensamento referido na literatura é o pensamento mágico. A sua característica é o afastamento da racionalidade, da lógica e dos indicativos que a realidade oferece. Por vezes, tende a seguir os desejos e temores do indivíduo, podendo ser moldado pelo fan tástico34. Alguns autores preferem chamar esse tipo de pensamento de derreísta, pois se manifesta de acordo com a vontade (isto é, como devaneios agradáveis ao in divíduo).
Alteração da vivência de posse do pensamento Pouco enfatizadas na literatura psicopatológica so bre alterações de pensamento, muitos pacientes relatam várias vivências de alterações da posse do pensamento, as quais constituem os sintomas importantes para o diagnóstico de esquizofrenia25. Nesse grupo de alterações de pensamento típicas de psicose, a sensação de vivência de pensamento é subtraída, difundida ou inserida. Na sua obra Psicopatologia clínica, Kurt Schneider descreveu as seguintes alterações da vivência de posse de pensamento, como sintomas de primeira ordem para o diagnóstico de esquizofrenia: • Pensar alto ou eco de pensamento (em alemão, Gedankenlautwerden, ou pensamentos que se tornam altos): Essa vivência apresenta extraordinário valor diagnóstico para a esquizofrenia. É considerado um dos sintomas de primeira ordem por Kurt Schneider25. Nessa alteração o paciente relata ouvir os próprios pensamentos (pensar alto) fora dos limites do espaço mental interno. Um paciente descreve: "são os meus pensamentos que ouço. Eles se fazem ouvir quando há silêncio: Nesse caso, o paciente apresenta a vivência de que os seus próprios pensamentos são audíveis, muito diferente de alucinações auditivas típicas de esquizofrenia descritas por Kurt Schneider, nas quais duas ou mais vozes dialogam entre si e fazem comentários ao paciente em terceira pessoa. Não é incomum que os pacientes apresentem a convicção de que os seus pensamentos possam ser ouvidos por outras pessoas, sem a necessidade de proximidade física. • Subtração de pensamento, também conhecido como "roubo do pensamento': Na sua obra psicopatológica, Schneider distingue essa alteração da simples interrupção de pensamento, ou o "bloqueio de pensamento"25. Na subtração de pensamento, o paciente esquizofrênico relata que "outras pessoas lhe arrancam os pensamentos", ao passo que na interrupção de pensamento, dizem simplesmente que "os seus pensamentos desaparecem de repente", e se queixam, portanto, de "falta de concentração e disper-
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são". O próprio autor ainda usa a expressão fuga de pensamento em algumas passagens do seu livro -texto como equivalente à interrupção de pensamento, sem que definições bem delimitadas sejam fornecidas. Por vezes, os pacientes chegam a combinar essas vivências com os sistemas delirantes que desenvolvem no decorrer do processo de doença. • Inserção de pensamento: constitui uma outra alteração frequentemente observada entre os pacientes esquizofrênicos, na qual pensamentos vivenciados como externos ou não pertencentes ao pacientes são interpolados na cadeia ideativa. Descrito no livro de Kurt Schneider como insinuação de pensamento, o termo foi traduzido e consagrado como inserção de pensamento. Esse sintoma apresenta o mesmo nível de importância que a interrupção de pensamentos, na qual a sensação de controle sobre o próprio ato ideativo é perdida (isto é, o pensamento sofre influência do meio externo). • Na difusão ou expropriação de pensamento, os pacientes relatam que "os pensamentos não pertencem à única pessoa, mas que outras (pessoas) teriam parte neles, até mesmo de que toda cidade, o mundo inteiro teria o conhecimento deles'~ Muitas vezes, há convicção de que os pensamentos podem ser "percebidos" por outras pessoas, chegando a acoplar a ideias delirantes, algumas vezes, com características de percepção delirante. Em um exemplo relatado na obra de Schneider, um paciente esquizofrênico relata:"[ ... ] as pessoas percebem o que eu penso. O senhor não pode me enganar, é assim mesmo, eu simplesmente o sinto. Vejo no semblante das pessoas. Não seria lá tão ruim, se não pensasse coisas tão indevidas, como 'porco' ou outro insulto qualquer [... ]:' Essas vivências peculiares do paciente esquizofrênico lhe fornecem uma sensação de ser controlado passivamente, como influenciado por meio externo ("forças estranhas", magia). Por vezes, os pacientes que apresentam essas alterações relatam se sentir como zumbis, controlados por essas forças externas. Esse conjunto de vivências de posse de pensamento é conhecido também como experiência de passividade ou ideias de controle 12·13 .
A contribuição psicopatológica de Carl Schneider Carl Schneider26·35 é conhecido entre muitos psiquiatras13 como um autor que deixou um legado psicopatológico sobre diversas alterações da forma do pensamento, cuja obra é pouco estudada atualmente. Escreveu livros de grande riqueza psicopatológica na primeira metade do século XX, em alemão, o que dificulta a disseminação dos seus conceitos no Brasil. Entre as suas contribuições, definiu o complexo sintomático de retirada e roubo de pensamento como um sintoma central da esquizofrenia e abriu novos campos de discussão em relação a outros
termos e definições psicopatológicas. Para ele, a síndrome de retirada de pensamento ( Gedankenentzug, em que Gedanken significa "pensamentos" e Entzug, "retirada") representaria a descrição de um grupo de sintomas-chaves da esquizofrenia. Esse grupo de alterações inclui o bloqueio de pensamento, o roubo de pensamento, a perplexidade, a inserção de pensamento, experiências de passividade e descarrilamento verbal. Os outros dois grupos sintomáticos que ele propôs foram a síndrome de incoerência (Sprunghaftigkeit) e a síndrome de pensamento confuso-delirante (Faseln). Na síndrome de Sprunghaftigkeit (sprunghaft, ou "aquilo que é incoerente': ou "saltitante" - do verbo springen) os pensamentos se sucedem de forma desordenada resultando em pensamento incoerente de difícil compreensão. O termo Faseln implica a junção perturbada de vários elementos constituintes de um único processo de pensar. Representa o grau extremo de fusão e descarilamento do pensamento, cujo re sultado discursivo chama-se basbaquice 13 • Esse autor ainda descreveu algumas características do pensamento confuso-delirante nos pacientes esquizofrênicos. Alguns exemplos (apud Jaspers 1) caracterizam os sintomas típicos de pacientes esquizofrênicos como: • Fusão (Verschmelzung): união de duas ou mais ideias em uma cadeia associativa; • Disparatamento (Faseln): mistura de elementos heterogêneos durante a progressão do pensamento; • Descarrilamento (Entgleisen): interposição de conteúdos ideativos; • Bloqueio de pensamento (Entgleiten): interrupção da cadeia lógica do pensamento.
Alterações de linguagem e afasias As afasias são consideradas alterações de linguagem, termo utilizado no século XIX, sendo descrita uma série de alterações psicopatológicas de difícil distinção. O modelo de afasia era baseado em quadros orgânicos, geralmente de patologia cerebral, do tipo demencial. Contudo, como a esquizofrenia foi descrita no final do século XIX, por exemplo, por Morei entre os franceses e Kraepelin em Heidelberg, muitos dos termos descritivos desse transtorno foram caracterizados em relação a esse sufixo pospositivo de afasia. Com o advento da fenomenologia, introduzido por Karl Jaspers 1, muitos desses termos foram gradativamente abandonados, sendo pouco utilizados hoje em dia. Por ser utilizado em alguns textos antigos e ser de difícil assimilação, a seguir foram listadas algumas alterações descritas por clínicos novecentistas. As várias formas de afasia são descritas sucinta e brevemente, pois devem ser mais bem estudadas em livros de neurologia; entretanto, tratando-se de um diagnóstico diferencial importante na psiquiatria, sobretudo em casos de "mutismo", serão comentadas a seguir. Trata-se
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SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
de um grupo heterogêneo do sujeito, mostrando as características em comum: geralmente há lesão orgânica fo cal associada, predomina o distúrbio de linguagem e não há evolução favorável do caso de maneira geral. A afasia consiste na incapacidade de expressar o pensamento por meio de palavra oral ou gráfica e/ou de compreender a palavra falada ou escrita, embora o paciente não apresente sintomas de demência acentuada nem manifestações de paralisia, cegueira ou surdez. A fluência discursiva, ou a progressão discursiva da fala do paciente, é frequentemente afetada. Atualmente, as afasias são reservadas principalmente para os quadros orgânicos, por exemplo, a afasia de Wernicke e a de Broca. Na afasia de Broca todas as modalidades de linguagem estão perturbadas em maior ou menor grau, mas há sempre predominância da perturbação da palavra articulada, da leitura e da escrita. O paciente não consegue articular nenhuma palavra ou apenas poucas palavras, não lê nem escreve bem. Na afasia de Wernicke, ou afasia sensorial, há dificuldade proeminente na compreensão dos termos ou palavras empregados pelo interlocutor. As diversas afasias e suas particularidades clínicas são listadas no Quadro I e os principais diagnósticos diferenciais de afasias, no Quadro II, destacando os quadros de causa orgânica. Remetemos o leitor ao livro-texto Tratado de neurologia36 e Neurology in clinicai practice37 para mais informações sobre o tema, pois uma classificação detalhada dessas alterações excede aos propósitos deste capítulo. Os termos afasia e disfasia são muitas vezes confundidos e até utilizados de forma equivalente. Enquanto o termo afasia denota a perda de linguagem como um todo, o termo disfasia implica uma dificuldade com a linguagem. A disfasia foi descrita por Kussmaul, em 1884, para designar distúrbios da gramática, em sentido amplo. Refere-se a distúrbios oriundos de lesões corticais unilaterais e circunscritas, à semelhança da afasia. Pode ser tão profunda e grave que o discurso se torna ininteligível. Os sintomas disfásicos são muito mais úteis clinicamente do que outros déficits cognitivos em identificar o local aproximado da lesão cerebral40 • A parafasia, por sua vez, consiste em alteração comum em afásicos, principalmente na afasia sensorial, em que os pacientes deformam palavras ou grupo de palavras com a consciência de que estão lhe dando certa significação. Pode ser causada por um distúrbio orgânico da fala, mas aparece intimamente ligada a pacientes que produzem um som, inconscientemente ou deliberadamente, para mudar o tópico da conversa. Pode ser usada para . . , evitar certo assunto ou porque o paciente esta tao preocupado com experiências internas ou externas que outros assuntos parecem irrelevantes 13 • Quando uma palavra ou frase curta é usada sem nenhuma conexão óbvia e compreensível com o seu significado habitual é também chamado de parafasia semântica. O paciente pode ou não reconhecê-lo, tampouco tenta corrigi-lo. Ocorre típica-
mente nas afasias de Broca e Wernicke. Quando ocorre uma substituição na pronúncia de uma palavra, quanto ao som ou sílaba, por um lapso de língua, fala-se em parafasia fonêmica. As formas graves ocorrem nas afasias, mas as formas leves podem ocorrer sob a forma de lapso em qualquer indivíduo. Em geral, o paciente reconhece o erro e tenta corrigi-lo. A jargonofasia é uma alteração de linguagem que se manifesta associada a alguns casos de afasia. Consiste na produção contínua de palavras articuladas corretamente, mas sem ordem lógica, tornando a linguagem completamente incoerente e incompreensível. As palavras estão misturadas com palavras neoformadas (jargões). Tratase de distúrbio de linguagem comum na afasia de Wernicke. Na jargonafasia o discurso é fluente, mas há um distúrbio no uso das palavras e sintaxe que torna o discurso ininteligível 13 • Alguns termos são utilizados para denotar certas alterações de linguagem comuns na esquizofrenia. Por exemplo, a acatafasia foi descrita por Kraepelin41 como um distúrbio na expressão do pensamento por meio da fala. Nesse caso predomina a perda de continuidade das associações provocando um desenvolvimento incompleto das ideias, geralmente ligado à lesão cerebral. A esquizofasia é um termo utilizado para denotar, assim como incoerência e jargonofasia, a falta de coerência nas construções verbais, frasais ou textuais do paciente. Tal terminologia foi usada por Kraepelin 24 para designar uma profunda alteração da expressão verbal, observada em alguns pacientes esquizofrênicos, em resultado da qual a linguagem se torna confusa e incoerente, sem que existam alterações graves do pensamento. Em sua forma bem acentuada, a linguagem se apresenta como uma "salada de palavras", em que o paciente emprega neologismos e palavras conhecidas em um sentido desfigurado, tornando o seu discurso ininteligível. A catafasia, por sua vez, consiste na alteração de linguagem em que predomina a repetição de palavras e frases, observada de maneira saliente em alguns variantes da esquizofrenia. Mais tarde, os termos catafasia e esquizofasia foram utilizados como equivalentes na classificação de Karl Leonhard42, como formas de esquizofrenia assistemática43 . A catafasia ocorre em dois polos, um excitado e outro inibido. A forma excitada caracteriza-se por uma pressão de discursiva que progride de forma confusa, às vezes, acompanhada de confabulações. Nos casos graves a verbalização se torna incompreensível. Frequentemente, esse sintoma é acompanhado de embotamento afetivo. Na catafasia excitada encontra-se uma extensa perturbação da lógica que também afeta o elemento linguístico, resultando em confusão de palavras, neologismos e ordenação gramatical deficitária. Na sua forma inibida, ocorre laconismo nos casos moderados, mas pode chegar a mutismo completo em variedades graves. Nessa forma de catafasia também se observam
41 ALTERAÇÕES DO PENSAMENTO (FORMA E CONTEÚDO) E LINGUAGEM
Quadro I
Tipos de afasia e suas características clínicas
Tipo
Características
Afasia de Broca
• • • •
Afasia de Wernicke
• Comprometimento da compreensão e da repetição • Fala mais fluente e com gramática mais preservada que de pacientes com lesões anteriores ou tipo Broca, porém recheada de "jargões" • Apesar do comprometimento da leitura frequentemente acompanhar o déficit da fala, muitos pacientes são capazes de ler em voz alta • Ao exame inicial, alguns indivíduos podem aparentar obnubilação ou mesmo psicose. Alguns pacientes não têm sequer consciência da afasia • Sinais periféricos: quadrantopsia superior, apraxia das extremidades (decorrente do comprometimento do lobo parietal inferior), agnosia, acalculia, alexia com agrafia, e alguns componentes da síndrome de Gerstmann (decorrente de envolvimento do giro angular) • A etiologia da afasia de Wernicke permanece um mistério, mas a área lesada em geral é o giro temporal superior (posteriormente à fissura Silviana). O comprometimento da substância branca temporal profunda, ou dos giros temporais médio ou inferior, é um mau sinal prognóstico • A recuperação depende do tamanho da lesão, da idade do paciente, e do estado funcional do hemisfério contralateral
Afasia de condução
• Boa fluência, com comprometimento da denominação e da repetição • Hesitações são relativamente frequentes • Capacidade de leitura e escrita: variável • A lesão em geral localiza-se no fascículo arqueado, giro supramarginal e no giro angular • A recuperação costuma ser boa, mas alguns pacientes podem permanecer com déficits semânticos e algum grau de disartria • Sinais periféricos incluem quadrantopsia superior e apraxia de extremidades (que pode ser tanto ou mais incapacitante que a própria afasia)
Afasia global
• Déficits totais ou parciais de repetição, denominação, compreensão e fluência • Etiologia subjacente: AVC, tumores, demência etc. A causa mais comum são grandes infartos (mais de dois terços) no hemisfério cerebral esquerdo, resultante de obstrução da artéria carótida interna ou cerebral média • Hemiplegia esquerda é a regra (a afasia global raramente ocorre sem hemiparesia). Pacientes com afasia sem hemiparesia devem ser avaliados quanto à possibilidade de lesões talâmicas (especialmente tumores) • A afasia global é rara em lesões no hemisfério direito • Esses pacientes em geral são bastante eficazes em se fazerem compreender, mesmo sem utilizar a fala ou a escrita • Pacientes com afasia global contrastam bastante com aqueles com lesões no hemisfério direito. Pacientes nesta última situação possuem uma linguagem aparentemente normal, mas perdem boa parte da capacidade de produzir expressões faciais e tendem a ter menos consciência de seus déficits (comprometendo sua reabilitação) • O prognóstico varia de acordo com a natureza da etiologia subjacente (demência, tumor, AVC), idade do paciente, tamanho da área afetada, status funcional do tecido cerebral restante e disponibilidade dos serviços de reabilitação
Afasias transcorticais
• As afasias transcorticais caracterizam-se pela preservação da capacidade de repetição, dificuldade de denominação e na produção de fala espontânea e incompreensão da fala • A afasia transcortical motora manifesta-se como um déficit na iniciação da fala, redução na extensão das frases e na fluência, e alterações gramaticais. Alguns pacientes podem apresentar mutismo nas fases mais iniciais. Em muitos casos, essa alteração decorre de AVC da artéria cerebral anterior. Os sinais periféricos incluem comprometimento de um ou ambos os membros inferiores e mutismo acinético. Alguns pacientes respondem bem às medicações dopaminérgicas • Na afasia transcortical sensorial, os pacientes perdem a capacidade de realizar associações semânticas. Predominam frases curtas, com sentido superficial. Esse tipo de afasia é comum nos estágios avançados da doença de Alzheimer e em outras demências progressivas. Também pode ser visto em alguns casos de AVC, especialmente naqueles com lesões bilaterais do córtex parieto-occipital ou no córtex temporo-occipital esquerdo • Na afasia transcortical mista, também chamada de "isolamento da área da fala", o paciente só é capaz de repetir o que lhe é dito, não sendo capaz de produzir fala espontânea ou mesmo compreender a fala
Afasia anômica
• Por definição, esse tipo de afasia consiste em repetição intacta, fala fluente e incapacidade de denominar objetos. Pode resultar da recuperação de outros tipos de afasia (p. ex., forma mais leve de afasia transcortical sensorial) • Lesões temporais anteriores à esquerda, sobretudo do giro angular, costumam causar afasia anômica
Afasia subcortical
• Podem ser secundárias a lesões nos gânglios da base e na cápsula estria da
Afasia talâmica
• Afasia sem hemiparesia ou déficits visuais • Na maioria dos casos, a alteração talâmica é facilmente perceptível à ressonância nuclear magnética (RNM) ou à tomografia computadorizada (TC) • Clinicamente, esses pacientes apresentam uma fala rápida e fluente, utilizam muitos jargões, possuem boa capacidade de repetição, mas sofrem de anomia, erros semânticos frequentes, abulia e depressão grave.
Fala sem entonação, dificuldade para produzir fala espontânea (hipofonia/mudez inicial), nomear objetos e repetir sentenças Disartria e dislexia são comuns Sinais periféricos: apraxia bucofacial e hemiparesia direita (envolvendo principalmente face e membros superiores) A lesão costuma estar localizada no córtex frontal dorsolateral, no córtex parietal anterior, no opérculo frontal (área de Broca) e na substância estriada lateral e periventricular
Adaptado de Campbel WW. Transtornos da fala e da linguagem: O exame neurológico; 2005 38 •
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro 11
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
Principais diagnósticos diferenciais no paciente com afa-
Sia
Acidente vascular cerebral
Astrocitoma
Melanoma do sistema nervoso central
Esclerose múltipla
Mielinólise pontina central
Estado epiléptico
Demência
Alterações do desenvolvimento
Síndrome do lobo frontal
Encefalopatia com delírio
Glioblastoma multiforme
Mutismo
Traumatismo cranioencefálico
Distúrbios psiquiátricos
Adaptada de Benson DF. Aphasia. In: Heilman KM, Val enstein E, ed. Clinicai neuropsychology. 3. ed.; 1993 39 •
Figura 1
Tomografia computadorizada de crânio realizada na admissão mostrando lesão hipoatenuante em áreas parietal, temporal e f rontal à es-
querda, sugestiva de quadro isquêmico vascular em área de artéria cerebral mediai.
erros de lógica, acompanhados de estado de perplexidade ou ideias de referência. Pode-se também reconhecer na fisionomia do paciente uma certa apatia interna, com um olhar fixo ao entrevistador42•43 •
Valor semiológico das alterações formais de pensamento Foi a partir da obra de Bleuler44 que os distúrbios de associação do pensamento passaram a integrar firme mente os algoritmos diagnósticos da esquizofrenia, sendo empregados pelos clínicos e integrados aos critérios diagnósticos oficiais. Contudo, muita confusão conceitual ainda persiste. Embora a expressão distúrbio de pensamento descreva habitualmente anormalidades patológicas do discurso e escritas (ou seja, essas funções estariam secundariamente alteradas em razão do distúrbio primário do pensamento45 ) , essa equivalência entre pensamento e linguagem não deve ser assumida rotineiramente nas situações clínicas. Não se pode, grosso modo, equiparar imediatamente a presença de uma determinada alteração de pensamento ou linguagem a certas patologias psiquiátricas, ainda que várias alterações sejam típicas. Nos quadros conversivos é frequente o surgimento de alterações de linguagem que se sobrepõem com alterações de pensamento. Os quadros de mutismo, afonia e afasia constituem alterações de linguagem de especial interesse nesse grupo de pacientes, por dificultar as avaliações de pensamento. Derailment e knight's move thinking (em analogia ao movimento em L do cavalo no tabuleiro de xadrez) são expressões da língua inglesa que descrevem mudanças súbitas de tópico da conversa observada em pacientes esquizofrênicos. Vários autores45- 50 criticaram seu uso, vendo-o como insatisfatório, metafórico e infeliz, pois não há uma boa definição para distúrbio de pensamento. No Brasil, a expressão desagregação do pensamento é empregada para descrever o pensamento desconexo e bizarro
de pacientes esquizofrênicos. Não há definição disponível na literatura, tampouco sua origem é conhecida, possivelmente representaria uma tentativa de descrever o sintoma da associação frouxa de pensamento de Bleuler4 \ combinada com o conceito de dissociação psíquica da psiquiatria francesa51 • Na esquizofrenia, percebe-se como uma das alterações psicopatológicas possíveis a salada de palavras (esquizofasia). Entretanto, não se podem negligenciar outras alterações de pensamento e linguagem comuns no exame psíquico do paciente esquizofrênico. Muitas vezes se utiliza o termo distúrbio de pensamento sem fundamentação fenomenológica 13 • Elaine Chaika52 -54 criticou a ideia bleuleriana de que a alteração fundamental do esquizofrênico não seria do pensamento, mas na linguagem, gerando uma série de discussões sobre esse tópico55•56 • Essa linguista, ouvindo a produção verbal de esquizofrênicos repleta de desvios e estranhezas discursivas, considerou que o déficit fundamental não é um erro sintático puro, mas um lapso do controle executivo ou da volição57. Embora Kraepelin58 tivesse descrito várias formas de alteração de pensamento nos transtornos de humor, os autores conceituaram essas alterações como secundárias a perturbações cognitivas (distúrbio da atenção) e pressão geral para as atividades. Na mania, o pensamento estaria alterado no que tange ao controle e exteriorização do discurso. Apesar de esses sintomas serem importantes e característicos dos transtornos de humor, segundo os autores clássicos, o seu valor diagnóstico era limitado. Alguns autores modernos46- 48 alegam que a distinção entre fuga de ideias e descarrilamento não deve ser feita, uma vez que formalmente são praticamente indistinguíveis. A alteração de velocidade favorece a fuga de ideias e descarrilamento se refere mais à esquizofrenia, contudo, são especulações com pouco respaldo clínico 59 . Alterações quantitativas e qualitativas dessas duas entidades clínicas devem receber investigações empíricas em relação a alteração formal de pensamento59-62 •
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O paciente depressivo, por sua vez, apresenta o sintoma de inibição do pensamento. Os pacientes inibidos relatam uma capacidade angustiante par ordenar e mover suas próprias ideias. Pensamentos isolados se desenvolvem muito lentamente em resposta a fortes estímulos. As associações são difíceis e escassas, ocorrendo de acordo com o conteúdo das ideias em vez de serem influenciadas por estímulos externos. A distraibilidade maníaca que determinava as associações e agora transformada em repetição atormentada de palavras estimula esse sintoma. Em geral, o paciente inibido se apresenta inteiramente mudo, podendo chegar a estado de estupor prolongado e profundo 1• Um comentário especial de Nancy Andreasen46-49 sobre o valor semiológico do neologismo merece menção. Esse autor argumenta que as alterações de formação de novas palavras são raras, sendo desprovidas de valor diagnóstico. Nos quadros com déficit cognitivo, como a demência, deficiência mental e quadros orgânicos, por sua vez, as alterações podem ser floridas e múltiplas. Prevalece em muitos casos a lentificação e inibição do pensamento; até mimetizar e se confundir com um quadro depressivo típico ou síndrome negativa de esquizofrenia deficitária. No entanto, a ocorrência de ecolalia, estereotipias ou maneirismos torna a comunicação bastante prejudicada, dificultando a sua correta identificação. Como regra, uma avaliação orgânica deve ser executada para que o diagnóstico diferencial possa ser estabelecido com segurança. Por fim, o pensamento obsessivo evolui com abundantes ideias e representações obsessivas (isto é, que persistem sem motivo e não são suprimidas voluntariamente). Os fenômenos obsessivos se distinguem das ideias prevalentes ou delirantes por serem vivenciados absurdos e injustificadamente persistentes, contra a vontade e determinação do paciente. As ideias prevalentes e delirantes, entretanto, não podem ser consideradas transtornos ou alterações do pensamento63 .
Figura 2 Angiografia cerebral revelando características de embolia obstrutiva de ramos distais da artéria cerebral mediai esquerda.
Considerações finais Nem tudo está resolvido de forma consensual sobre as alterações de pensamento nos pacientes psiquiátricos. O pensamento não deve ser estudado de forma isolada de outras funções psíquicas, devendo-se apoiar na introspecção subjetiva do paciente que descreve suas manifestações fenomenológicas da atividade de pensar. De acordo com Kurt Schneider25 , "[ ••• ] os conceitos psicopatológicos provêm da experiência e devem ser sempre medidos e contrastados por ela. Deles é de se exigir que cubram o essencial da realidade clínica que constitui o seu ponto de partida, sua meta e sentido [... ] . Os conceitos psicopatológicos constituem marcos por meio dos quais a viagem clínica poderá orientar-se'~ Postos dessa forma, restarão sempre casos em que não se consegue uma resposta inequívoca após detalhada investigação. Embora as alterações de forma de pensamento e linguagem tenham valor para servir de atributo associado de um transtorno mental, parece que esse grupo de sintomas psicopatológicos é apenas o fenômeno observável de um processo cerebral subjacente. A falta de uma disciplina que possa fornecer descrições seguras dessas alterações tem retardado o desenvolvimento dessa área. Além disso, falta especificidade e estabilidade no curso da doença. Portanto, não se deve distinguir um transtorno mental do outro meramente pela alteração formal detectada durante o exame do paciente. A combinação de tantas alterações extensamente relatadas neste capítulo fornece o quadro de um paciente mental e deve receber um criterioso exame todas as vezes que se atribui um diagnóstico psiquiátrico. Este texto não representa uma compilação exaustiva de todos os termos psicopatológicos descritos ao longo da histó ria descritiva dos sintomas mentais, mas procurou destacar os termos mais relevantes para a prática clínica. Pesquisas recentes apontam no sentido de entender os transtornos mentais como entidades complexas e multifacetadas, por isso a importância de se analisar opaciente psiquiátrico como um todo, fazendo um exame psíquico completo e com boa fundamentação na psicopatologia clássica. Após mais de dois séculos de desenvolvimento da psicopatologia descritiva, ainda persistem confusão de termos, sem um glossário definidor para as principais alterações observadas. Assiste-se no nosso meio, todavia, o uso indiscriminado de termos vagos e erros conceituais importantes. Assim, delimitar os conceitos psicopatológicos de forma confiável é um primeiro passo para que diagnósticos válidos possam ser alcançados. Em especial, destacam-se as dificuldades descritivas dos distúrbios de pensamento e linguagem. Um dos obstáculos de avanço do estudo de pensamento e linguagem é a ausência de instrumentos de avaliação sistemática dessa função psíquica. A formulação de escalas confiáveis como a escala Thought, Language,
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
and Communication48 , Thought Disorder Index64 e Formal Thought Disorder Scalé 5 pode solucionar parcialmente a precariedade metodológica de estudo dessa área, mas esforços contínuos ainda devem ser dispensados para que essas avaliações tenham validade clínica. De especial interesse é o curso e a evolução dessas alterações e suas relações com os quadros psiquiátricos específicos66,67, bem como as alterações de pensamento e linguagem como "marcadores" endofenotípicos de sujeitos que ainda não apresentaram a eclosão do quadro esquizofrênico68,69 . Ao lado da necessidade de caracterização psicopatológica70 das alterações de pensamento e linguagem em pacientes psiquiátricos, investigações da correlação biológica do distúrbio de pensamento com exames de neuroimagem funcional e testes neurolinguísticos devem ser conduzidas para enriquecer os achados biológicos e avançar na compreensão das alterações subjacentes dessa complexa atividade psíquica. Ainda como uma promissora futura direção, as relações entre o efeito da medicação sobre as alterações de pensamento e linguagem devem receber atenção, bem como terapêuticas adequadas e de reabilitação devem ser testadas nos pacientes. Os psicopatologistas do pensamento devem estudar essa função juntamente aos linguistas71 , fonoaudiólogos, neurocientistas e biólogos, para que a posição de síntese seja alcançada.
crítica. Não foram observadas outras alterações psicomotoras nem indícios de alterações sensoperceptivas. A avaliação neurológica foi solicitada para avaliar a aparente "afasia de compreensão" observada durante o exame psíquico. No exame neurológico, a paciente apresentava-se com atenção preservada. Emitia apenas sons, não era capaz de pronunciar uma única palavra, ler, escrever, repetir nem nomear. A compreensão também estava prejudicada: quando questionada se o examinador estava usando uma camisa de uma determinada cor, ela sempre concordava balançando a cabeça, independentemente da cor questionada. A força motora era simétrica e grau V nos quatro membros, com reflexos simétricos e cutâneo plantar em flexão bilateralmente. Não havia déficits de sensibilidade nem do campo visual. Foi solicitado exame de neuroimagem em razão suspeita do diagnóstico de afasia global (AG). A tomografia computadorizada de crânio revelou uma área sugestiva de infarto em regiões temporal, occipital e parietal posterior à esquerda (Figura 1). A paciente foi internada na enfermaria de neurologia para investigação etiológica do acidente vascular cerebral isquêmico (AVCi). A ressonância magnética de encéfalo mostrou uma área isquêmica parietal extensa com um pequeno acometimento frontal posterior subcortical à esquerda, acometendo o território de artéria cerebral média (ACM) esquerda. A angiografia cerebral revelou características de embolia e obstrução de ramos distais da artéria cerebral média esquerda (Figura 2). Exames subsequentes para investigação etiológica de AVCi não revelaram nenhuma anormalidade.
Minicaso clínico A., 23 anos, casada, do lar, segundo grau completo, evangélica. Foi trazida pelo marido e pela irmã ao Serviço de Emergência por não conseguir falar. Os acompanhantes relatavam que a paciente, após voltar de um culto, chegou à sua casa sem falar, expressando-se apenas por sons incompreensíveis e gestos. Foi levada nos dois dias seguintes a dois serviços de pronto-atendimento, recebendo o diagnóstico de amigdalite e "nervoso". Nas semanas anteriores, A vinha desconfiando de uma possível traição do marido, o que havia motivado desentendimentos entre o casal. Na noite anterior ao início dos sintomas, o casal teve nova discussão e a paciente foi morar com a irmã, dizendo estar muito angustiada. Não havia antecedentes mórbidos nem quadro prévio de sintomas neurológicos. A nunca havia realizado tratamento psiquiátrico, porém a família relatou uma tentativa de suicídio no passado. Apesar de ser considerada uma pessoa "nervosa" pelos familiares, não foi possível estabelecer nenhum diagnóstico psiquiátrico prévio. A família negou o aparecimento de outros possíveis déficits neurológicos transitórios, sugestivos de acometimento da função motora. Após ser avaliada pelo serviço de clínica médica, foi solicitada interconsulta psiquiátrica, com a hipótese diagnóstica de "síndrome conversiva". A estava acompanhada de familiares, com trajes próprios e adequados para a situação. Encontrava-se consciente, porém incapaz de se expressar verbalmente, emitindo apenas sons incompreensíveis. Mostrava-se calma, sem polarização do humor e sem sinais de ansiedade, mas não era capaz de escrever ou obedecer a comandos verbais, sendo impossível avaliar o pensamento, a memória, a inteligência, o juízo ou a capacidade
Questões 1. A fuga de ideias é uma alteração formal comum em: a) b) c) d) e)
Esquizofrenia. Mania. Oligofrenia. Depressão. Parafrenia.
2. Perseveração do pensamento, aceleração do pensamento, descarrilamento e lentificação do pensamento ocorrem respectivamente em: a) Mania, esquizofrenia, depressão, epilepsia. b) Demência, oligofrenia, paranoia, epilepsia. c) Epilepsia, mania, esquizofrenia, depressão. d) Depressão, mania, paranoia, oligofrenia. e) Epilepsia, oligofrenia, mania, esquizofrenia. 3. O paciente diz se sentir compelido a pensar repetidamente no seguinte tema: "devo olhar para o teto?" Embora considere esses pensamentos desprovidos de sentido e causadores de sofrimento, não consegue afastá-los. Essa descrição psicopatalógica se refere a: a) Pensamento prevalente. b) Associação frouxa de pensamento. c) Pensamento obsessivo. d) ldeia delirante. e) ldeia deliroide.
41 ALTERAÇÕES DO PENSAMENTO (FORMA E CONTEÚDO) E LINGUAGEM
4. Para observar e avaliar as alterações formais de pensamento. assinale o instrumento mais adequado: a) Escalas psicométricas. b) Entrevista livre. c) SCID. d) SCAN. e) CIDI. 5 . A expressão "associação frouxa do pensamento" foi cunhada pelo seguinte autor: a) Carl Schneider. b) Emil Kraepelin. c) Kurt Schneider. d) Karl Jaspers. e) Eugen Bleuler.
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Psicopatologia do Juízo
Ariel Bogochvol Thelma da Motta
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 519 A fenomenologia do juízo, 521
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
A construção da realidade, 521 A lógica do juízo, 523 Erros, crenças, preconceitos, ideias prevalentes, delírio, 524 O delírio, 525 Vivências delirantes primárias, 525 lncorrigibilidade, 526 Elaboração delirante, 526 ldeias delirantes e ideias deliroides, 526
1. Conhecer o objetivo da psicopatologia: uma prática que visa a descrever, classificar e explicar as alterações da psyché. 2. Conhecer a relação entre juízo, pensamento e linguagem. 3. Entender como se dá o conceito de realidade e suas construções. 4. Reconhecer a importância do entendimento de delírio dentro da psicopatologia. 5. Conhecer a classificação do delírio e os diversos temas delirantes.
Questões psicopatológicas, 526 Análises do delírio, 528 Os temas delirantes, 529 Delírios, 529 Considerações finais, 530 Referências bibliográficas, 532
Introdução O ser do homem não apenas não pode ser compreendido sem a loucura como não seria o ser do homem se não trouxesse em si a loucura como limite de sua liberdade. (]. Lacan) 1
Na psicopatologia, classicamente, separam-se as alterações de pensamento, linguagem e juízo como se fossem independentes umas das outras. Textos tão diferentes como Psicopatologia geral de K. Jaspers, de 191Y, Psiquiatria de Lopez Ibor Alino, de 1982 3, Compreheensive textbook ofpsychiatry de Kaplan e Sadock, de 1999\ Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais de P. Dalgalarrondo, de 2000 5, e Sintomas da mente de A Sims, de 2001 6, mantêm esta separação mesmo que criticada. Fazem suas concessões a uma tradição que concebe a psyché como uma somatória de funções elementares - consciên-
. - onentaçao, . - memona, ,. - penc1a, atençao, sensopercepçao, sarnento, etc. - coordenadas por um Eu que as utilizaria no sentido de manter o equilíbrio interior e as relações com a realidade. É uma psicologia centrada no Eu e que se baseia numa concepção associacionista, não tanto por formulála como doutrina, mas por receber dela uma série de postulados que determinam os problemas em sua própria formulação. Ao tentar explicar as formas complexas da atividade psíquica, esta concepção as reduz a processos elementares. Considera que, para a compreensão das leis do pensamento, por exemplo, é suficiente ter em conta, por um lado, a representação ou a imagem sensorial e, por outro, a associação ou os enlaces da experiência sensíveF. Evidencia-se que os contextos em que ela classifica os fenômenos como sensações, percepções, representações etc., são tomados de empréstimo da psicologia escolástica, que por sua vez os extraiu da elaboração de séculos de filosofia8 • A psicologia e a psicopatologia conservam muitos destes conceitos. Nesta tradição, caberia à psicopatologia descrever, classificar e explicar as alterações das funções elementares da psyché de modo análogo às alterações das funções
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básicas da phisis, do organismo - respiração, digestão, circulação, excreção, etc. A partir desta orientação, formularam -se as definições, descrições e classificações dos sinais e sintomas dos transtornos mentais. E ocorreu uma fragmentação atomística da semiologia, que se converteu em um inventário de signos classificados de modos variados pelos autores. O texto Signs and symptoms in psychiatry9 é um exemplo. O autor prescinde até mesmo da classificação baseada nas funções psíquicas afetadas, limitando-se a apresentar os sinais e sintomas por ordem alfabética como em um dicionário. Ao invés da semiologia, um glossário. Não são raras as superposições dos distúrbios - p. ex., a taquipsiquia como uma aceleração do pensamento, a logorreia como uma alteração da fala e da linguagem e as confusões terminológicas. De acordo com a orientação doutrinária, um distúrbio, como a ideação delirante, pode ser classificado como alteração da forma ou do conteúdo do pensamento, como alteração de linguagem, do juízo ou todas ao mesmo tempo. Evidentemente, separam-se funções que não operam separadamente e se apresentam como simples funções de grande complexidade. Não é possível conceber a função do juízo sem relacioná-la às funções do pensamento e da linguagem, nem é possível conceber suas alterações de forma autônoma. A função pensamento engloba a função linguagem que engloba a função juízo ou, dito de outra forma, o juízo é uma subfunção da linguagem, que é uma subfunção do pensamento (Figura 1). São definições circulares, uma depende da outra. Também não é possível conceber estas funções dissociadas da estrutura vivencial a que pertencem e da totalidade fenomenológica que lhes dá seu sentido. Nenhuma delas ocorre isoladamente e todas são vivências de um sujeito que sente, pensa, julga, significa, fala, relata.
Juízo
ILinguagem I
Figura 1
Pensamento/ linguagem/juízo
No mundo animal, podem ocorrer alterações das relações com o unwelt, mas o erro ou acerto do juízo, o adequado ou inadequado juízo de realidade, a crítica pertinente e o delírio são fenômenos especificamente humanos. O ser humano é o único animal que delira. É o único que, imerso em um universo de linguagem que o afeta no mais profundo de seus pensamentos, precisa se colocar como sujeito de sua fala, de seus juízos, de seus enunciados, junto com outros sujeitos, em um mundo social e simbólico. O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa 10 define o juízo como: a) Ato, processo ou efeito de julgar; b) Faculdade de avaliar os seres e as coisas; julgamento de alguém ou algo; c) Faculdade intelectual que permite julgar, avaliar com correção, discernimento, bom senso, capacidade de ponderação, equilíbrio mental; d) Pensamento, mente, cabeça; e) Operação mental que articula termos ou conceitos, por meio de uma atribuição afirmativa ou negativa de um predicado (P) a um sujeito (S), intermediada por um verbo (redutível ao verbo ser) com o papel de ligação ou cópula, segundo o modelo S é P; f) Construto lógico e linguístico resultante desta ação intelectual; proposição, enunciado; g) Conjunto de atos praticados pelos juízes no desempenho de suas atividades. Do latim judicium 11 , é uma palavra que se refere a quatro campos distintos, embora articulados: psicológico, lógico, linguístico e jurídico. No registro psicológico, interessa o ato de julgar enquanto fenômeno da consciência, sua maior ou menor adequação à realidade, seus significados para o sujeito. Na lógica, enquanto um complexo enunciativo, um objeto ideal, com suas regras de produção e legitimação. Na linguística, como uma proposição associando sujeito, verbo e objeto em uma afirmação sobre a realidade. No jurídico, como ato do julgamento que sintetiza todo o processo da justiça. Na psiquiatria, o juízo é considerado, de acordo com a tradição aristotélica, um dos elementos constitutivos do . . . , . pensamento, JUntamente com o conceito e o rac1ocm10. 1. Os conceitos formam-se a partir das representações e são destituídos de sensorialidade. São puramente intelectuais, cognitivos e exprimem os caracteres mais gerais dos objetos e fenômenos. Constituem o elemento estrutural básico do pensamento. 2. Formar juízos é o processo que conduz ao estabelecimento de relações significativas entre os conceitos. O juízo consiste, a princípio, na afirmação de uma relação entre dois conceitos ("A menina é bonità' é uma frase que articula dois conceitos, o de menina e o de beleza). O juízo tem, por função básica, formular uma relação entre sujeito e predicado. Na dimensão linguística, o conceito se expressa em palavras e os juízos em frases ou proposições 12 • 3. Raciocínio é a função que relaciona os juízos. O processo de raciocínio é um modo especial de ligação entre os conceitos, de sequência de juízos, de encadeamento de conhecimentos, derivando sempre uns dos outros.
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Da mesma forma que a ligação entre conceitos permite a formação de juízos, a ligação entre juízos conduz à formação de novos juízos 13 . O tema do juízo refere-se diretamente ao problema das relações do homem com a realidade, de como a concebe, conhece, aborda, julga, enuncia, se posiciona e age. É um problema que se desdobra em vários níveis: o que é a realidade? Como a conhecemos? Quais são as bases das afirmações que fazemos referentes ao mundo e a nós mesmos? Como ajuizamos? Como nos certificamos de seu erro ou acerto? Como se diferenciam os juízos? Os delirantes dos não delirantes? Qual a relação entre os juízos e nossos atos? São temas centrais da psicopatologia, psiquiatria, psicologia, psicanálise, ciências cognitivas, neurociências, epistemologia e lógica.
A fenomenologia do juízo Através dos juízos afirmamos a nossa relação com a realidade, discernimos a verdade do erro, asseguramo-nos da existência ou não de um objeto, distinguimos suas qualidades e estabelecemos suas relações 14. O juízo envolve um complexo grupo de funções psíquicas como a consciência, a inteligência, o conhecimento, o pensamento analítico e sintético, as tendências éticas e sociais, a profundi dade do entendimento e do insight, o estilo cognitivo, e a capacidade de integrar o conhecimento intelectual com a vida impulsivo-afetiva 15. Implica em um julgamento que é, simultaneamente, subjetivo e social, e está em conso nância com os determinantes sócio-histórico-culturais 14. O centro de gravitação do juízo é a realidade. A experiência da realidade, que nos é evidente a cada momento, não é fácil de ser explicada. O próprio termo realidade, que indica o modo de ser das coisas enquanto existem fora da mente humana ou independente dela, tem variados significados. Para K. Jaspers, diante da pergunta so bre o que é realidade, responde-se: a) O ser em si, quando a distinguimos do que nos aparece; b) O objetivo, ao distinguirmos o universalmente válido do erro subjetivo; c) O ser no espaço e no tempo, quando a distinguimos da realidade ideal, p. ex, dos objetos matemáticos. São respostas lógicas que determinam um conceito de realidade, mas não propriamente a vivência da realidade16. O que é vivência de realidade não se pode nem deduzir nem colocar em série com outros fenômenos semelhantes, mas apenas descrever indiretamente como um fenômeno primário: a) Real é o que percebemos corporalmente; b) A realidade está na consciência do ser. É uma vivência primária da existência, denominada por Janet como: fonction du réel, que é consciência da existência e da existência fora de mim; c) Real é o que nos opõe resistência e resistência é o que impede o movimento do nosso corpo, a realização imediata de nossos desejos e tendências. Alcançar algo contra tudo ou fracassar significa
experimentar a realidade. Toda vivência de realidade embasa-se na prática. d) A vivência de realidade implica em um processo de significação 16. A consciência da realidade que deriva da resistência do mundo é o amplo domínio do real que inclui desde a palpabilidade do que é tátil até a percepção das significações das coisas, das ações e reações dos homens. A consciência da realidade me atravessa com maior ou menor clareza na forma de um saber que se insere em um saber desenvolvido pela cultura. O que há aí de real apresenta vários graus de certeza - não temos clareza completa16. O juízo de realidade deriva da elaboração pelo pensarnento das experiências imediatas. Estas são examinadas sucessivamente: só vale como real o que se mantém e confirma no exame e é partilhado pelos outros. São características da realidade, assim como se apreende no juízo de realidade: 1. A realidade não é uma experiência apenas particular, privada, depende de um contexto; 2. A realidade é relativa, na medida em que ela é conhecida como tal e se mostrou assim, ela pode ser de outra maneira; 3. A realidade é concluída e repousa no conhecimento e na sua certeza e não apenas na corporeidade e na vivência imediata da realidade como tal 16.
A construção da realidade No texto de K. Jaspers há uma série de termos vinculados à realidade - experiência, vivência, consciência, juízo - que se sucedem e se superpõem sem limites claros. Incluem as experiências sensoriais, as vivências difusas, as elaborações simbólicas e as conjecturas mais abstratas da lógica. Jaspers não propõe nenhuma teoria do acesso do sujeito à realidade; apenas a constatação feno menológica de uma "experiência primária: irredutível por um lado, e seu caráter relativo, mediado, construído, cultural, por outro. A análise de como se forma o reflexo imediato da realidade, de como o homem reflete o mundo real em que vive, e de como ele elabora uma imagem do mundo objetivo, constitui parte considerável de todo o conteúdo da psicologia. Além disto, o homem não se limita à impressão imediata do que o circunda; ele tem condições de ultrapassar os limites da experiência sensível, de penetrar mais profundamente na essência das coisas, e de captar os profundos enlaces e relações em que se encontra 17. Esta capacidade só se desenvolve em contato com os outros homens, em sua existência histórico-social. Seu acesso à realidade é condicionado por isto. Todo o reflexo psíquico resulta de uma relação, uma interação real, entre um sujeito material vivo altamente organizado e a realidade material que o cerca. O reflexo psíquico não pode aparecer fora da vida, fora da atividade do sujeito e depende da sua relação com o objeto refletido, do seu sentido vital, de sua significação 18. A significação é aquilo que num objeto ou fenômeno se descobre
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SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
objetivamente em um sistema de ligações, de interações e de relações objetivas. É refletida e fixada na linguagem que lhe confere estabilidade e variação. Sob a forma de significações linguísticas constitui o conteúdo da consciência social que objetiva o sentido subjetivo que o refletido tem para os sujeitos. O reflexo consciente é psicologicamente caracterizado pela presença de uma relação interna entre o sentido subjetivo e a significação 18. A significação é a generalização da realidade que é cristalizada e fixada num vetor sensível, ordinariamente, a palavra ou a locução. É a forma ideal, espiritual de cristalização da experiência e das práticas sociais da humanidade. É a forma sob a qual o homem assimila a experiência humana generalizada e refletida. A realidade aparece ao homem na sua significação e a significação mediatiza o reflexo do mundo na consciência. Psicologicamente, a significação é a entrada em minha consciência do reflexo generalizado da realidade elaborado pela humanidade e fixado sob a forma de conceitos, de um saber ou mesmo de um saber-fazer. E é independente da relação individual ou pessoal na medida em que o homem encontra um sistema de significações pronto, elaborado historicamente e se apropria dele tal como se apropria de um instrumento 18 . Vários psicólogos estudaram as etapas da construção do real nas crianças. J. Piaget distingue, na evolução que leva as crianças dos esquemas motores à representação, ao menos seis etapas. A partir da terceira, se esboçariam as distinções do objeto e das noções elementares de espaço, causalidade, tempo 19. H. Wallon investiga as etapas de constituição do significante e do significado a partir do sinal e do indício, chegando ao símbolo e ao signo, quando se consuma o desdobramento entre eles próprios e aquilo que eles indicam. Eles são instrumentos de significação e sobrepõe a representação ao real, contrapondo significante e significado 19. O símbolo é um objeto que é substituto de outras realidades: objetos, pessoas, ações, instituições, clãs e grupos. Ele permuta sua própria realidade para aquela que ele representa e se torna uma significação. De simples emblema, evolui até o símbolo matemático que pode sozinho representar conjuntos de operações não efetuadas, mas já previstas e reguladas. É o signo que faz aceder ao plano da verdadeira representação. Ele pode não ter nenhum laço de semelhança ou analogia com o objeto correspondente19. Nada mais seria do que sonoridade oca ou grafismo arbitrário e incompreensível sem a representação que ele tem o poder de evocar e da qual recebe seu conteúdo, seu papel e sua verdadeira existência. Artificial, na medida em que sua forma e significação se tornam mais abstratas, a própria origem dos signos já não pode ser procurada nas coisas. O signo implica uma espécie de entendimento e cumplicidade com o outro. Tem necessariamente a sociedade como matriz 19.
Este jogo de signos, símbolos, significantes e significados não é inerte uma vez que é animado por toda a história da ascendência, dos outros humanos, do discurso universal e por sua implicação na existência do sujeito. Mais ainda, pela mediação parenta! esse jogo estrutura as instâncias psíquicas que a psicanálise nomeou ideal do eu e super-eu, que veiculam as exigências sociais e vinculam o sujeito ao universo simbólico e às suas leis. Para J. Lacan, a entrada do sujeito neste universo é regida pela metáfora paterna, operação de substituição significante que é condição para as outras operações de substituição (metáfora) e combinação (metonímia). O sujeito jogará o jogo servindo-se de um set de figuras imaginárias estruturadas a partir da relação do eu com sua imagem especular, a matriz do imaginário. O campo da realidade se estrutura, assim, na conjunção do registro simbólico e do imaginário 1. Pela "prova de realidade", o sujeito pode distinguir os estímulos provenientes do mundo exterior dos estímulos internos e evitar a confusão entre o percebido e o representado. Para que haja a construção da realidade para um sujeito, algumas condições objetivas e subjetivas precisam, então, ser cumpridas. Por um lado, o funcionamento adequado do seu sistema nervoso central; por outro, a imersão em um mundo humano que transmita os símbolos e os signos no processo histórico -social; por fim, as coordenadas subjetivas, das quais resultará um sujeito capaz de incorporá-los, subjetivá-los e manejá-los. Mesmo com todas as condições cumpridas, o acesso do sujeito à realidade é sempre parcial, provisório, relativo, uma vez que não se tem acesso à realidade em si. Enunciar falsos juízos é um fato corriqueiro na vida cotidiana. O pensamento do senso comum é muito distante do pensamento lógico, apesar de tomá-lo como referência. O fio condutor de um raciocínio é interrompido por associações fortuitas, pensamentos concorrentes, estímulos exteriores. A conversação é marcada por temas paralelos, intrusões, perda da direção, mal entendidos. Decisões são tomadas a partir de erros de avaliação e sem base em evidências. Crenças pouco fundamentadas dirigem nossas ações. O pensamento estereotipado é mais comum que o pensamento abstrato e, paradoxalmente, parece mais adaptativo do ponto de vista evolutivo20 • As fontes de erro residem na ignorância, no julgamento apressado e baseado em premissas falsas, na superstição, em preconceitos, nas crenças, no cansaço, nas paixões, nos estilos cognitivos5 • Os erros são passíveis de correção pela experiência, pela prova de realidade e com' . . preens1ve1s genetiCamente. Os erros são corriqueiros porque o homem é um ser "desadaptado" em função de sua vinculação à realidade se dar pela via da linguagem. Entre o homem e a realidade há uma rede de signos e esta rede nunca capta a "coisa em si': a "realidade como ela é': Apesar de ter a realidade como referência, a linguagem é, por definição, uma relação de
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signos linguísticos engendrando significações. Todo enunciado, como um fato de linguagem, é uma relação de significantes (imagens acústicas) com significados ( conceitos) e aberto ao mal entendido. Entre o homem e o mundo, há a linguagem (Figura 2). Além disto, os enunciados devem obedecer a uma estrutura gramatical, semântica, lógica, de coerência interna, de contexto e de correspondência com os objetos a que se aplicam. Uma única frase encerra uma infinidade de dimensões - linguísticas, semióticas, lógico-formais, psico linguísticas, pragmáticas, comunicacionais. O ideal spinozista de que idea vera debet cum suo ideato convenire (uma ideia verdadeira deve estar de acordo com o que é ideado por ela) não é atingido com facilidade. Emaranhado na linguagem, em uma rede de signos, pressupostos, preconceitos, superstições, estilos cognitivos, paixões, afetos, como pode o homem ajuizar adequadamente a realidade, enunciar algo de verdadeiro e posicionar-se nela? 20b
A lógica do juízo A lógica pode ser definida como a disciplina que estuda os conjuntos coerentes de enunciados ou as inferências válidas 21. Numerosos autores como Aristóteles, Kant, Frege, Russel, Wittgenstein dedicaram-se à análise dos juízos e proposições. Não é o caso de retomar suas ideias, mas de assinalar a importância do tema e apresentar algumas noções da lógica de Aristóteles, considerado seu fundador22 . Sua filosofia influencia até hoje o pensamento ocidental e a psiquiatria. Organon, compilação de seus escritos lógicos (Categorias, Da interpretação, os Primeiros e Segundos analíticos, a Refutação dos sofismas, os Tópicos), desenvolve seus fundamentos e compreende uma teoria geral das proposições, dos raciocínios, e uma teoria dos termos, das categorias. É o resultado de um esforço de fun damentação do saber científico sem precedentes. Não é, como se indica pela palavra organon, um mero estudo formal, mas um instrumento para o pensar e não so' para o pensar em s1. mesmo, mas para a sua correspondência com a realidade. O que Aristóteles investiga é menos o pensamento que sua correspondência com o pensado, quer dizer, a expressão de sua verdade na definição e na série das deduções a partir de um universal.
Sl -S2-S3
sa-sb-sc Mundo
Sujeito Sl -S2-S3
sa-sb-sc Figura 2
1
Relação com o mundo mediada pela linguagem.
O juízo é um "pensamento peculiar enunciativo': um objeto ideal. Compõe-se de conceitos, mas não de uma sucessão de conceitos como, p. ex., "a verdade do ser". Para que o enunciado seja considerado um juízo, é necessário que haja uma afirmação ou uma negação, por ex., "o ser é insondável': Juízo é o processo que conduz ao estabelecimento de relações significativas entre conceitos. A relação entre conteúdo objetivo e o juízo é sempre uma relação de correspondência. Estas relações podem ser classificadas em reais, ideais, de experiência, metafísicas, de valor, determinativas, atributivas, de ser, de comparação, de pertinência, de dependência, de intenção, analíticas e sintéticas, a priori e a posteriori. Um juízo encerra três elementos: duas ideias e uma afirmação. A ideia da qual se afirma alguma coisa chamase sujeito; a ideia que afirma alguma coisa do sujeito chama-se atributo ou predicado. Quanto à própria afirmação, a proposição, é a expressão verbal do juízo, chamada também de cópula porque une o predicado ao sujeito, formando o conjunto constituído. A proposição é composta por categorias: o que (substância), o quanto (quantidade), o como (qualidade), com o que se relaciona (relação), onde está (lugar), quando (tempo), como está (estado), em que circunstância (hábito), atividade (ação) e passividade (paixão). As categorias são o quê nossa percepção e pensamento captam imediata e diretamente, sem a necessidade de demonstração. A proposição reúne ou separa verbalmente o que o juízo reuniu ou separou mentalmente. Quando a proposição enuncia ou declara verbalmente o que foi pensado e relacionado ao juízo, se trata de um discurso declarativo ou apofântico; quando a proposição é universal e necessária, se trata de um juízo apodítico; quando é universal e possível, se trata de um juízo hipotético; quando é universal ou particular comportando uma alternativa que depende das circunstâncias, se trata de um juízo disjuntivo. As proposições classificam-se em: a) Existencial (sujeito): declara existência, a posição, ação, paixão; b) Predicativa (predicado): declara a atribuição de algo ao sujeito, através da cópula; c) Qualidade: afirmativas ou negativas; d) Quantidade: universais, particulares, singulares, necessárias, impossíveis e possíveis. A qualificação de verdadeiro ou falso se dá na dependência daquilo que foi pensado corresponder ou não à realidade. A essência de verdade do juízo se deduz de seu caráter enunciativo, porém toda a proposição tem que se submeter a três princípios lógicos, que são condições de toda a verdade: a) Princípio da identidade: um ser é sempre idêntico a si mesmo, A é igual a A; b) Princípio da não contradição: é impossível que um ser seja idêntico e não idêntico a si mesmo ao mesmo tempo e na mesma relação. É inverossímel: A é A e A é não A; c) Princípio do terceiro excluído: dadas duas proposições com o mesmo sujeito e o mesmo predicado, uma afirmativa e outra negativa, uma delas é necessariamente verdadeira
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
e a outra necessariamente falsa. A é x ou A é não x, não havendo terceira possibilidade.
lirium tremens. Em meados do século XIX, fala-se de ideias delirantes e delírios crônicos de uma nova forma. Do delirium-estado foi diferenciada a "ideia delirante" (Wahn),
Erros, crenças, preconceitos, ideias prevalentes, delírio
apresentada como um fenômeno simples, isolado, perfeitamente diferenciável de outros fenômenos igualmente "simples" como as alucinações24• É um período em que se multiplicaram as descrições dos delírios. A escola francesa descreveu, inicialmente, o delírio crônico de Laségue-Falret, com suas quatro fases sucessivas: interpretação, sistematização com alucinações auditivas, estereotipias com alucinações da sensibilidade geral e megalomania, e demência. Este delírio foi desmembrado para dar lugar ao delírio de interpretação de Serieux e Capgras, ao delírio de imaginação de Dupré, à psicose alucinatória crônica de G. Ballet e aos delírios paranoides dos estados esquizofrênicos. Além disto, foram descritos os delírios passionais (celotípico e erotomaníaco). Na escola alemã, Kraepelin opôs as formas deficitárias (demência paranoide) às formas sistematizadas da paranoia e depois introduziu, entre as duas, as parafrenias; Kretschmer descreveu o delírio sensitivo de autorreferência, incluído como um tipo especial entre as paranoias. Alguns autores quiseram aproximar os conceitos destas duas escolas. Assim, o delírio de interpretação, os delírios passionais e os sistematizados seriam assimiláveis à paranoia; o delírio de imaginação às parafrenias confabulatórias. Estas aproximações não excluíam certas diferenças e não puderam impedir que as psicoses alucinatórias crônicas fossem classificadas na esquizofrenia pela escola alemã e formalmente separada dela pelos autores franceses24• A concepção atomística em voga desprezava problemas de índole semiológica e patogênica e levou a psiquiatria a impasses, como a classificação dos delírios a partir de seus temas ou mecanismos. Não considerava que o delírio não era somente a ideia delirante em si e que a ideia delirante era apenas o reflexo, na superfície da consciência, da "osmose" de valores subjetivos e objetivos, da de-
Quando os juízos formados por um homem divergem daquilo que, a dado momento, é publicamente válido; quando seu conteúdo é fixado com obstinação; quando levam à perturbação da vida significativa do sujeito, questiona-se a presença de uma causa mórbida. A dificuldade está em que as mesmas características se encontram nos juízos dos homens excepcionais, capazes de abrir novos caminhos à criação. 23 É desta forma, assinalando a dificuldade em separar a patologia da genialidade (e também da normalidade), que Jaspers inicia seu capítulo sobre as alterações do juízo. Classicamente, divide-se a psicopatologia do juízo em: a) erros; b) crenças e preconceitos; c) ideias prevalentes; d) delírio, com a ressalva de que os itens a, b, c não são necessariamente patológicos. Alguns aspectos dos erros, crenças e preconceitos fo ram abordados em outras seções deste capítulo. As ideias prevalentes, repartidas entre a patologia e a normalidade, são ideias que ocupam a mente de forma obstinada, predominando sobre as demais. Quer se trate de ideias de ciúme, de reparação, hipocondríacos ou dismorfofó bicos, representam algo de precioso e significativo para o sujeito. Diferenciam-se das ideias obsessivas por serem egossintônicas; podem ser a base para o desenvolvimento de ideias deliroides. O termo delírio deriva das palavras latinas delirium dilirare, que derivam de lira (sulco aberto pelo arado). Têm uma longa história na psiquiatria e, durante muito tempo, foi sinônimo de "loucura': Aplicado, em primeiro lugar, a um transtorno profundo e global da vida psíquica tal como se manifesta nos estados de confusão, o termo delirium foi reservado às psicoses agudas como o delirium febril e o de-
Quadro I
Alterações do juízo
Erros
Crenças e preconceitos
ldeias prevalentes
Delírio
Várias fontes
Juízos a priori, baseados em premissas falsas
ldeias que, em função de sua importância para o indivíduo predominam sobre as demais ideias, ocupando a mente de fonma obstinada. Não são ideias obsessivas, pois são egossintônicas:
Discussão a seguir
Tomam-se coisas semelhantes por idênticas Atribui-se a coincidências ocasionais a força de relações consistentes de causa e efeito Aceitam-se as impressões dos sentidos como verdades indiscutíveis
Racismo Sexismo Etnocentrismo Classismo Preconceito religioso Crenças culturais partilhadas
Ciúme Hipocondria Dismorfofobia Litígio
Fonte: adaptado de Delgalarrondo P, 20005 .
42 PSICOPATOLOGIA DO JUÍZO
sorganização das relações entre o sujeito e o mundo em curso na psicose25.
Quadro 11
Caracteres externos das ideias delirantes2
A convicção extraordinária, a certeza subjetiva incomparável.
O delírio
A impossibilidade de influência da parte da experiência e de
Os estudos de K. Jaspers assinalam uma virada na evolução das ideias sobre os delírios e retomam, de outro modo, a noção de delírio-estado. Para Jaspers, o problema do delírio constitui o tema central da psicopatologia e um dos seus grandes enigmas. É necessário defini-lo comprecisão, pois "se chamarmos de delírio qualquer juízo falso incorrigível, essa realidade humana universal, quem haverá que não delire desde que, afinal, seja capaz de uma convicção? É um traço básico do ser humano. A questão está mais em saber o que funda a incorrigibilidade e de que modo se podem a partir daí reconhecer como delírios certos modos específicos de se formar falsos juízos"2. A vivência em que ocorre o delírio é a experiência e o pensamento da realidade. Há uma transformação na consciência global da realidade. Só onde se pensa e se julga pode nascer um delírio; o delírio se comunica em juízos. Neste sentido, chamam-se de ideias delirantes os juízos patologicamente falsos que possuem, em determinado grau, os caracteres externos listados no Quadro li. Procurando penetrar por trás destas características mais externas, na essência psicológica das ideias delirantes, devem-se distinguir, em primeiro lugar, as vivências primárias dos juízos emitidos com base nelas. A seguir, quanto à origem do delírio, devem-se distinguir duas grandes classes: uns se originaram, de modo compreensível, de vivências afetivas, de reações, de alheamento, de alterações da consciência; outros não são suscetíveis de serem seguidos psicologicamente, se apresentando como algo de último e derradeiro do ponto de vista fenomenológico 2.
A impossibilidade do conteúdo.
Vivências delirantes primárias Nos doentes surgem primariamente sensações, sentimentos sobre a vida, disposições, cognições (Quadro III). Sentem que há algo estranho e tudo tem nova significação. O ambiente está diferente, não de maneira grosseira, mas sutil, envolvido em iluminação estranha, incerta. Uma atmosfera indefinível domina a cena. Há algo no ar, que o doente não consegue nomear. Uma tensão suspeita, estranha, desagradável o domina. "Há alguma coisa, diga-me que há'', "eu não sei, mas há alguma coisà' são expressões da perplexidade que acompanha esses estados2. Na disposição delirante ou humor delirante há sempre "algo" presente, embora totalmente impreciso. Esta disposição delirante geral, sem conteúdo determinado, é difícil de ser suportada. Nasce no doente uma sensação de falta de apoio e insegurança que o impele instintivamente a procurar um ponto firme onde possa segurar e agarrar. Nascem então convicções de determinadas per-
raciocínios constringentes.
seguições, crimes, incriminações ou, na direção oposta, convicções da chegada da idade messiânica, de conversão e santificação. 2 Todo pensamento é pensamento de significações. A vivência delirante da realidade se apresenta em novas significações do mundo ambiente. A consciência de significação experimenta radical transformação: há um saber de significações que se impõe imediatamente. Distinguindo-se o material sensível em que se experimenta a significação, falam-se de percepções delirantes, representações delirantes, recordações delirantes etc. O adjetivo delirante pode estar associado a qualquer função se a consciência de significação tiver se convertido em vivência deli rante. As percepções delirantes vão desde vivências de significação imprecisa até claros delírios de observação e autorreferência. As coisas significam de repente algo todo diferente: o paciente vê andaimes em algumas casas; sabe que toda cidade deverá ser demolida. Uma doente vê na rua um homem; sabe que é seu antigo amante disfarçado. Não são interpretações raciocinadas, mas vivências imediatas do significado numa percepção de todo normal e imutável em seu aspecto sensorial. Uma percepção se apresenta e, de imediato e sem um fundamento, assume um significado pessoal. Há a emergência de um significado ou da significação referida ao sujeito. Aplica-se a qualquer perceptum - visual, sonoro, gustativo, olfativo - e diferencia-se da interpretação delirante por seu caráter imediato, não reflexivo. Em alguns casos, não se atribui à percepção qualquer significação específica. Os objetos, as pessoas, as falas significam algo, mas não algo determinado. O delírio de significação pode ser vivenciado como uma experiência enigmática, sem que nenhuma significação específica se configure. Em outros, configura-se o delírio de autorreferência, nos quais os conteúdos de percepção e os acontecimentos, todos estão em relação manifesta com a pessoa do doente: gestos, palavras, textos fazem insinuações secretas; na rua falam sobre ele; nos jornais, há referências a sua família. Nestes estados, apresentam-se associadamente as diversas formas de interpretação delirante em que o sujeito, a partir de certas cogitações, atribui significações novas ao mundo. As representações delirantes surgem na forma de novas colorações e novas significações das recordações da vida; ou na forma de ocorrências repentinas: "eu sou o filho do Presidente; seu olhar para mim há alguns anos o
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro 111
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SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
Vivências delirantes primárias
Humor delirante
Percepção delirante
Interpretação delirante
Representação delirante
Cognição delirante
Vivências de significação
confirma'~
Nas cognições delirantes os pacientes possuem o conhecimento de acontecimentos mundiais, de ocorrências futuras, de revelações fulgurantes, como a iminência do fim do mundo. Nestes casos, a experiência delirante não está conectada a uma percepção; surge como uma intuição, como uma recordação ou na forma de um saber completo. Fenomenologicamente é sempre a mesma coisa: há uma espécie de vivência que não se modifica, uma vivência inteiramente diferente do normal que se liga ao co nhecimento de determinados objetos. Ao que se pensa e ao que se percebe, alia-se nova significação especial. Sem motivo aparente, introduzindo-se na vida psíquica, apresenta-se a significação. Toda vivência delirante primária é vivência de significação. A seguir, as vivências de significação repetidas sempre de acordo com a primeira entram em um novo contexto. O caminho está aberto para o sentido. A facilidade para determinadas vivências mergulha quase todos os conteúdos percebidos nestas significações. O motivo de um delírio, de agora em diante orientador, se converte no esquema de compreensão de toda percepção ulterior 2 •
Incorrigibilidade As formações delirantes nascem em uma mistura multiforme das vivências delirantes autênticas, das falsas percepções e de todas as outras vivências primárias e secundárias. Após o primeiro passo da produção delirante, o doente dá o segundo passo que é mantê-lo como verdade contra as demais experiências, numa convicção que supera a certeza normal. A incorrigibilidade é um conceito da psicologia do rendimento e da psicologia compreensiva. Foi analisada por P. Janet em seus estudos sobre as crenças26. Para Jaspers, decorreria de uma modificação da personalidade. O errar das pessoas sadias é um desvario comunitário; o desvario delirante é a separação daquilo que todos creem.
Elaboração delirante Desde o primeiro passo em que o delírio se manifesta, pensa-se e busca-se um nexo de sentido. De modo confuso nos estados agudos ou demenciais, de modo mais sistemático nos estados crônicos. O pensamento realiza uma elaboração delirante com base nas vivências primárias; elas devem entrar em uma relação sem contradição com as percepções reais e os conhecimentos dos doentes.
Quadro IV
Delirante vs. deliroide
Delirante
Deliro ide
Primário
Secundário
Incompreensível
Compreensível
Processual
Catatímico Holotímico
Não derivado psicologicamente
Derivado psicologicamente
Explicação causal
Compreensão genética
Assim, se origina o sistema delirante que, em seu contexto, é inteiramente compreensível.
ldeias delirantes e ideias deliroides Chamam -se de ideias delirantes autênticas aquelas que remontam na fonte a uma vivência patológica primária ou exigem, para sua explanação, a transformação da personalidade. Nela apreendemos um grupo de sintomas elementares. Chamam -se de ideias deliroides aquelas que nascem de modo compreensível de outros processos psíquicos, que podemos seguir psicologicamente em afetos, impulsos, desejos, temores (o delírio melancólico, o delírio maníaco, alguns delírios paranoicos). K. Jaspers apresenta uma das evoluções possíveis de um delírio cujo núcleo é a modificação primária da significação que vai marcando todas as funções psíquicas (percepção, representação, interpretação) e, no limite, o sujeito em sua relação com o mundo. Uma sequência semelhante é apresentada por Conrad na esquizofrenia incipienté7 e por Serieux e Capgras no delírio de interpretação.28 Há outros modos de evolução do delírio: na psicose alucinatória crônica irrompem primariamente fenômenos alucinatórios, de interferência, eco e sonorização do pensamento, e o delírio propriamente dito constitui apenas uma superestrutura secundária; nas psicoses passionais, como a erotomania, o delírio é fundamentado em axiomas e postulados e não em uma indefinição da significação, recobre apenas um setor da realidade, é parcial.
Questões psicopatológicas A psicopatologia tradicional reconheceu muito lu cidamente seu fracasso diante do delírio e em nenhuma parte melhor do que na sua elaboração mais sistemática:
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a obra de Jaspers. Mas esse fracasso é exemplar e é importante precisar os seus termos 29. As características que K. Jaspers atribui ao delírio são exteriores e não diferenciáveis facilmente dos juízos não delirantes: a convicção extraordinária e a certeza subjetiva incomparável podem ser encontradas nas crenças religiosas e políticas. A impossibilidade de influência é relativa; os delírios se modificam a partir das experiências, incorporam novos temas, abandonam outros. A impossibilidade do conteúdo é acessória; a mulher de um delirante de ciúme pode ser infiel. Nem sempre o delírio é uma produção associa!, havendo aqueles partilhados por pessoas e grupos. Nenhum destes caracteres em si define o delírio, mas o delírio os porta sempre em certa medida. K. Jaspers centra suas análises sobre a incorrigibilidade especial do delírio onde se reúnem a certeza subjetiva incomparável e a ininfluenciabilidade. Esta incorrigibilidade se expressa em julgamentos e não parece decorrer de uma alteração do julgamento propriamente dito - uma vez que o julgamento e a crítica de outros aspectos darealidade permanecem preservados - , mas sim de algo mais profundo que se manifesta em juízos. A crítica não é destruída, mas se coloca a serviço do delírio. A questão é saber o que funda a incorrigibilidade. Jaspers não chega a formular uma resposta satisfatória, limitando-se a supor uma mudança de personalidade que "não podemos descrever de nenhuma forma a natureza e que, afortiori, não podemos formular conceitualmente, mas devemos pressupor"2. Há uma mudança que afeta todos os vividos e não há vivido ao qual a palavra delirante não possa se ligar. Este "algo" que não se pode formular, mas que se deve pressupor é o "xis" da questão. O debate sobre a causa do delírio contrapõe as várias correntes doutrinárias ( organicistas, psicodinâmicas, organodinâmicas, existenciais, psicanalíticas, cognitivistas) que se aplicam à psicopatologia. Em termos jasperianos: o delírio é um processo ou um desenvolvimento? É a resposta de uma determinada personalidade a certos conflitos vitais? Ou é a irrupção de algo inteiramente novo e estranho a esta personalidade? É produto de sua história ou fratura de sua história? O organicismo procura estender ao conjunto da clínica o que foi verificado a propósito das psicoses sintomáticas e tóxicas. Contrapondo-se à hipótese de que os delírios são produzidos por mudanças cerebrais (conhecidas ou por se conhecerem), a concepção psicodinâmica sustenta que derivam de conflitos psíquicos, a dasein-análise que representam formas de existência, o organodinamismo que resultam de uma alteração dos níveis superiores de integração e a psicanálise que são fenômenos ligados profundamente ao sujeito. Como em vários outros campos da psiquiatria há pontos de vista divergentes que coexistem.
Qualquer esquema psicopatológico deve levar em conta o fato antropológico de que o homem é um fabri cante de universos e necessita encontrar sentidos e for mar convicções a respeito do mundo e de si mesmo. Vive em um universo de símbolos e significações e é capaz de habitar, simultaneamente, em um mundo lógico e mágico30 . Somente o homem é capaz de alterar a significação da realidade e, por isso, pode imaginar, alucinar, delirar. A análise do processo de produção de significações permite diferenciar dois sistemas: um geral, que constitui o código que torna possível reconhecer e interpretar o sentido das palavras e dos símbolos universalmente aceitos; outro, próprio do sujeito, que atribui significados e ressonâncias particulares a certos símbolos. Um mesmo texto pode ter sentidos diferentes para leitores diferentes ou para uma mesma pessoa dependendo do contexto18. No delírio, há um predomínio da significação particular, privada30 e uma alteração profunda do processo de significação que relaciona símbolos e referentes e atribui sentido ao percebido. Um mesmo conteúdo, p. ex., "tu me amas", pode ser vivido realística, onírica, fantasística ou delirantemente; o que varia é a forma da vivência. Muito mais do que uma alteração do conteúdo do pensamento - todos os conteúdos são possíveis inclusive os plausíveis - como o classificam alguns psicopatologistas, o delírio é uma alteração profunda da forma do pensamento, da forma de atribuir significação e sentido. Na paranoia, p. ex., manifestam-se modificações de estruturas conceituais, formas do conhecimento paranoico que explica a organização das ideias delirantes. Esta forma, que se expressa em princípios definidos31, impõe sua estrutura conceitual ao sistema do delírio. O fenômeno da loucura não é separável do problema da significação para o ser em geral, isto é, da linguagem para o homem. Toda a loucura é vivida no registro do sentido32 e expressa novos modos de produção e de acesso ao sentido. Alguns estudos procuram relacionar os conteúdos delirantes a fatores sociais, culturais, etnológicos. Comparam-se, sob esta perspectiva, os delírios dos imigrantes e as construções mitologemáticas nos parafrênicos33. Outros tentam mostrar o caráter abiográfico e transcultural dos mitologemas delirantes evidenciando como na invasão psicótica utilizam-se uma série de crenças religiosas, filosóficas, mitológicas do fundo cultural para construir e vestir as formas e a identidade delirante sem romper a comunicação com a cultura. O delírio também é comparado ao pensamento mágico e primitivo. Considera-se pensamento mágico aquele que é equívoco desde o ponto de vista lógico. É analógico, alcança sua verdade e se instala em uma determinada crença sem utilizar nenhum procedimento racional, científico, empírico. Estabelece relações e conhecimentos atendendo às essências ou significações que se descobrem por simpatias e semelhanças analógicas ou adesões por cren-
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ças. Para o pensamento mágico não existem contradições com a realidade; ele serve para mediá-las e eliminá-las. Nas crenças mágicas, há mudanças nas relações habituais entre causa e efeito, nas relações de ordem temporal, espacial, nas relações parte-todo 34. Compara-se, também, o pensamento delirante ao processo primário, conforme a designação de Freud para as leis que regem os processos inconscientes (deslocamento, condensação, ausência da negação, da contradição, da noção de tempo). Nos quadros delirantes verificam-se tanto a aparente preservação dos princípios da lógica formal quanto suas maiores subversões. Em algumas formas de paranoia, o sistema delirante é deduzido, com rigor lógico, de uma série de axiomas e postulados. Fora o postulado que é delirante, o resto parece coerente, sem contradições internas. Em algumas formas de esquizofrenia e parafrenia, por outro lado, reina o caos lógico e as vivências delirantes rompem com todos os princípios da lógica (p. ex., da identidade, da não contradição e do terceiro excluído). No indivíduo normal, a atividade imaginária está contida, freada, subordinada ao "processo secundário': não no delirante. O pensamento normal sofre de um déficit de significados; nunca se chega à significação derradeira e, por isso, continua-se incessantemente a procurála. O pensamento delirante, ao contrário, é acometido ou por um "buraco" da significação (humor delirante) ou por uma pletora de significação (delírio de significação) ou por uma fixação e inércia da significação (a significação delirante). O fenômeno psicótico é a emergência, na realidade, de uma significação que, inicialmente, não se parece com nada - e isso na medida em que não se pode ligá-la a nada - mas que pode, em certas condições, ameaçar todo o edifício. É um fenômeno inacessível, inerte, estagnante em relação a qualquer dialética33 • No caso da interpretação delirante, que já comporta um elemento de significação, esse elemento é repetitivo e procede por reiterações. Pode acontecer que o sujeito o elabore, mas ele permanecerá, durante certo tempo se repetindo com o mesmo sinal de interrogação, sem que nunca lhe seja dada a resposta. O fenômeno está fechado a toda composição dialética, não se integra em um diálogo 35 • Quanto à realidade que o sujeito confere aos fenômenos delirantes, um caráter muito mais decisivo do que a sensorialidade que ele experimenta neles ou a crença que lhes atribui é que todos estes fenômenos, sejam quais forem (alucinações, interpretações, intuições), visam-no pessoalmente, desdobram-no, respondem-lhe, fazem-lhe eco e leem nele, assim como ele os identifica, interroga, provoca, decifra. Afetam-no diretamente. Não é de sua realidade que se trata, mas de sua certeza e esta certeza é radical, inabaláveP5 • Como conceber estes fenômenos que afetam tão profundamente o sujeito, modificando suas relações com a realidade, subvertendo as significações, promovendo o
enigma, a fixação, a reiteração dos significados, fazendo o mundo girar em torno de si?
Análises do delírio Na psicopatologia clássica, admite-se, para alguns delírios, a existência de uma relação compreensível entre a situação/a personalidade/as vivências delirantes. Reconhece-se, também, uma função de defesa ou sua constituição a partir de necessidades afetivas. Assim, Bleuler, Gaupp, Kretschmer reconhecem, em alguns delírios, a existência de fatores psicorreativos junto às disposições endógenas. Autores incluídos na linha analítica existencial, como Biswanger e Zutt, oferecem uma compreensibilidade fenomenológica de alguns delírios esquizofrênicos. H. Ey, E. Strauss e outros relacionam angústia e delírio. Nada comparável ao procedimento adotado por Freud na análise das Memórias de um doente dos nervos de D. P. Schreber, no qual o eminente juiz retrata seu intricado sistema delirante que conjuga uma reconstrução do mundo com o seu reposicionamento sexual. Desde que, hipnagogicamente, teve a ideia de "como seria belo ser uma mulher no coito': o tema ocupou um lugar cada vez mais central em suas preocupações. Em seu sistema, supunha que poderia redimir o mundo desde que fosse transformado em mulher. Imperativo absoluto da ordem do universo, compromisso do qual não poderia subtrair-se, sua feminilidade passou a primeiro plano e, neste contexto, a emasculação era considerada uma solução adequada36 . Freud procede com uma audácia que tem a característica de um começo absoluto. Faz uma decifração champollionesca do delírio schreberiano; o decifra do modo como se decifram os hieróglifos. Como um linguista, vendo surgir várias vezes no texto os mesmos signos, parte da ideia de que isso quer dizer alguma coisa e chega a reconstituir o uso de todos os signos desta língua1 • Mostra as duas faces da psicose: o movimento de desligamento e de religação com o mundo. Considera que o que é tomado como a produção patológica - a formação delirante - é uma tentativa de cura, de reconstrução. "O processo de repressão propriamente dito, que é inicial e consiste em um desligamento 'patológico' da libido dos objetos, é silencioso e precisa ser inferido dos processos subsequentes. O que se faz notar de forma ruidosa é o processo de restabelecimento, o delírio, que desfaz parcialmente a repressão e reconduz a libido a objetos por ela abandonados 37 '~ Tenta desvelar a linguagem do delírio, ressaltando tanto sua função defensiva como sua finalidade restitutiva, terapêutica. Em Schreber, o delírio seria uma forma de defesa contra a homossexualidade, um modo de negar a afirmação "Eu, um homem, amo outro homem:' Ao mesmo tempo, seria uma forma de reconstruir suas relações com o mundo uma vez que, no início da psicose, vivencia aterrorizadamente o "crepúsculo do mundo". Re-
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construído o mundo via o delírio, Schreber pode voltar a viver dentro dele. Extrapolando o caso Schreber, Freud propõe que as principais formas de paranoia - perseguição ciúme, erotomania, grandeza - podem ser todas representadas como contradições da proposição homossexual e que elas exaurem todas as maneiras possíveis com que tais contradições poderiam ser formuladas mediante modificações do sujeito, do verbo ou do predicado37 • Ao mesmo tempo, elas implicam em uma reconstrução do mundo para os delirantes. Freud elucida aspectos fundamentais da gramática, da semântica e da finalidade do delírio. Retomando o percurso de Freud, J. Lacan formula que o delírio é um discurso articulado, uma construção que visa suturar um pedaço roto da realidade. Da mesma forma que Jaspers e outros autores, focaliza os fenômenos elementares para destacar os elementos mínimos a partir dos quais se constrói o resto 38 • Mas, diferente dos autores que associam os fenômenos elementares à causalidade orgânica, para Lacan eles são o efeito direto do mecanismo em jogo nas psicoses nomeado fordusão (para diferenciálo do mecanismo do recalque, próprio das neuroses). Supõe que, nas psicoses, falte o elemento ordenador do acesso do sujeito ao simbólico, o significante do Nome do Pai (NP): "É a falta do Nome do Pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário até que seja alcançado o nível em que significante e significado se estabilizam na metáfora delirante" 1• A forclusão deste significante desarticula a cadeia promovendo efeitos tanto no plano significante como no plano do significado. No plano do significante, a alucinação verbal, o neologismo, os distúrbios formais do pensamento e da linguagem. No plano do significado, a abolição da significação (na experiência enigmática), a experiência da significação (no delírio de referência) e a reiteração de uma mesma significação (no sistema delirante) (Figura 3). Os fenômenos delirantes e alucinatórios atestam a profunda alteração da relação do sujeito com o universo simbólico, com a linguagem. Os fenômenos elementares são formas de retorno no real daquilo que foi forcluído. Representam algo para o sujeito, mas não se sabe bem o quê. São signos que carregam, por um tempo, uma significação enigmática dirigida a ele. Em dado momento, a significação se revela e se instala. Passa a haver, então, uma repetição do mesmo signo, uma convergência de significação. Em relação ao fenômeno elementar e seu caráter enigmático, o delírio é uma construção de saber. No caso Schreber, o estado terminal da psicose não representa o caos petrificado, mas evidencia as linhas de eficiência de uma solução elegante39 • Pode-se depreender deste delírio uma lógica quaternária aplicável a outros casos: a) Um período de incubação; b) A mobilização do sig-
Forclusão do Nome-do-Pai
-------'~
Sl-S2-S3-S4 sa, sb, sc, sd
Alterações do significante
Alterações do significado
Alucinação verbal Desagregação
A significação A mesma significação
Neologismos
Significação enigmática
Figura 3
Efeitos da forclusão.
nificante para construir uma explicação, não suficientemente suturada, sob uma forma paranoide; c) Identificado o perseguidor, o sujeito constitui um ponto de apoio, sob uma forma paranoica; d) Consente com o delírio por se saber portador de um saber especial, o que favorece o desenvolvimento de temas megalomaníacos e fantásticos, sua feição parafrênica40 • Estes tempos dos delírios podem se superpor, progredir, retroceder. Mostram as variadas possibilidades do trabalho do significante e suas incidências sobre o gozo do sujeito (termo que na clínica lacaniana refere-se às formas de satisfação/sofrimento do sujeito).
Os temas delirantes O tema delirante é o aspecto mais aparente dos de lírios. Constitui a ideia que exprime o transtorno da existência (Dasein), das relações do ego com o mundo, quer esteja preenchido pela expansão dos desejos do eu contra a realidade, quer esteja envolvido no movimento de retração do eu. Entre estas duas séries de temas inversos, situa-se a temática delirante que costuma ser a mais frequente, o delírio de perseguição, que combina o sentido da retração e da expansão23 • Os diversos temas estão sempre relacionados à vivência anterior ou atual do paciente. São extremamente variados, se combinam e refletem sua vida relaciona!, somática, afetiva, intelectual, profissional, ideal, fantasística. Toda preocupação humana pode ser um tema de delírio. Não existem delírios patognomônicos nem fixidez entre as entidades clínicas e os temas delirantes. Há apenas temas preferenciais como é o caso do delírio de culpa nas depressões ou do delírio de influência na esquizofrenia, mas que podem ocorrer em outros quadros clínicos. Cada tema delirante pode ser resumido em uma frase (Quadro V).
Delírios Raramente o delírio se manifesta como uma ideia isolada, sem outros fenômenos associados. Um quadro de esquizofrenia inclui além do delírio primário, o delírio secundário, as alucinações psicossensoriais, as alucinações
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro V
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
Os temas delirantes
Perseguição: "me perseguem" Acredita que está sendo perseguido por pessoas conhecidas ou desconhecidas, por máfias, polícia. Querem matá-lo, envenená- lo, prejudicá-lo, expô-lo ao ridículo, fazem complôs. É o tema delirante mais frequente.
Referência: "os acontecimentos referem -se a mim" Tende a significar fatos cotidianos, fortuitos, como referentes à sua pessoa. Sente-se alvo das conversas, dos olhares, de mensagens. Ocorre, em geral, em conjunto com a temática de perseguição.
Relação: "as ocorrências se relacionam" Constrói conexões significativas entre fatos percebidos que, a priori, não tem relação.
Influência: "me controlam/comandam/ interferem/sou agido" Sente que está sendo controlado, comandado, influenciado por uma força, pessoa ou entidade externa. Estão incluídas nessas vivências as experiências de inserção de pensamento, de sentimentos feitos, além de sensações de influência sobre partes do corpo. Mais comum nas esquizofrenias.
Grandeza: "eu posso muito, eu sou muito" Acredita ser especial, de origem superior, dotado de poderes, com um destino grandioso. Ocorre nos estados maníacos, esquizofrenias, transtornos delirantes, sífilis terciária.
Reivindicação: "eu fui lesado e devo ser reparado" Sente-se vítima de terríveis injustiças e discriminações e, em função disto, se envolve em disputas legais, querelas familiares, processos trabalhistas. Ocorre, com mais frequência, nos transtornos delirantes.
Invenção: "inventei ou descobri algo importante" Sente-se o inventor de um aparelho ou o descobridor da cura de uma doença grave ou o formulador de uma teoria revolucionária. Ocorre, com mais frequências nos transtornos delirantes e estados maníacos.
Reforma: "devo reformar, salvar, revolucionar ou redimir o mundo ou a sociedade". Sente-se predestinado a uma missão especial, de caráter reformista ou salvacionista, a ser o defensor de um sistema produzido, muitas vezes, pelo próprio delírio.
Místico ou religioso: "eu, em comunhão com Deus/Cristo/ Santo/Entidade/Demônio, posso ou sou" Afirma ser um novo messias, um santo, um deus ou estar em comunhão especial sendo destinado a missões. Pode ocorrer em todas as psicoses.
Ciúme: "eu sou traído" Sente-se traído pela cônjuge de maneira vil e cruel, afirma que tem centenas de parceiros, que o traiu com seus familiares. Pode levar a reações violentas. Mais comum nos transtornos delirantes, especialmente nos associados ao alcoolismo.
Erotômano: "eu sou amado" Sente que uma pessoa, em geral social e hierarquicamente superior ou de extrema importância, está apaixonado e fará tudo para ficar junto. Mais comum nos transtornos delirantes e nas mulheres.
Ruína: "eu/meu mundo/o mundo estão fadados à ruína, à miséria, ao fracasso" Sente viver em um mundo repleto de desgraças, sem futuro ou com um futuro de dissolução. Mais comum nos estados depressivos.
Culpa: "eu sou culpado e mereço a punição" Afirma ser culpado por pequenos ou grandes pecados, de ser indigno, de ter causado mal, ter cometido crimes e merecer o castigo. Mais comum nos estados depressivos.
Negação: "meus órgãos/o meu corpo não existem, secaram, murcharam, desapareceram" Experimenta profundas alterações corporais. Ocorre nos quadros de depressão ansiosa, na esquizofrenia e quadros orgânicos. Parte da síndrome de Cotard.
Hipocondria: "estou doente" Acredita ser portador de uma doença grave e incurável. As avaliações médicas, laboratoriais, o aconselhamento não o demovem da ideia de ter uma doença terrível. Ocorre em quadros depressivos, em transtornos delirantes e na esquizofrenia.
Infestação: "há animais ou objetos dentro do meu corpo" Sente que existem animais ou objetos dentro de seu corpo sem que se configure o tema da doença. Faz uma interpretação delirante de suas sensações corporais. Mais comum nas esquizofrenias, depressão e transtornos delirantes. É a síndrome de Ekbon.
Troca de identidade: "há no mundo outro que não é o outro, mas um sósia" É a síndrome de Capgras ou heautoscopia. Há variantes como a S. de Fregoli: "aquele estranho é meu familiar"- e a S. dos sósias subjetivos: "aquele estranho foi transformado em mim:· Pode ocorrer nas esquizofrenias e transtornos delirantes.
Fantástico: "eu vivo e participo de um mundo extraordinário, fantástico" Participa de histórias fantásticas de narrativas fabulosas, irreais, inverossímeis nas quais acredita sem nenhuma crítica. Caracteriza a parafrenia kraepeliniana.
Fonte: baseado em Delgalarrodo5 e Sims 6 .
psíquicas, o roubo e eco de pensamento, a angústia e a perplexidade. Um quadro maníaco é acompanhado por exaltação do humor, aceleração psíquica além de delírios de grandeza. Na parafrenia, além do delírio fantástico in cluem-se fabulações, alucinações e alterações da memó ria. Na paranoia, vários temas se combinam formando um sistema delirante. Não surgindo como um elemento isolado, o delírio também não é, em si mesmo, uma estrutura simples. Há uma polifonia do delírio. A semiologia clássica descreveu os mecanismos de produção, extensão, edificação e evolução dos delírios e
resultou em nosografias particularmente heterogêneas. Diversas perspectivas são possíveis e nenhuma representação homogênea do conjunto pode ser realizada. Não surpreende a existência de variadas classificações que não são exclusivas e que, frequentemente, são utilizadas em combinação (Quadro VI).
Considerações finais A pergunta sobre o que é, como se forma, se o r ganiza e se mantém o delírio, nas várias condições em que ele
42 PSICOPATOLOGIA DO JUÍZO
Quadro VI
Classificações dos delírios
1. Segundo sua
causa
Orgânica/tóxica Há uma etiologia conhecida e reconhecida. Ex: lesão cerebral. substâncias psicoativas.
Endógena Quando se supõe que a causa seja 'interna', mas ela é desconhecida Ex.: esquizofrenia.
Psicogênica Quando derivam de mecamsmos ' ps1qU1cos como conflitos, tensões, defesas. Ex.: desenvolvimento parano1co.
Reativa Quando resultam de reações do indivíduo a acontecimentos significativos. Ex.: psicoses ' . carceranas.
Estrutural Quando se supõe que resultam de determinadas configurações psíquicas. Ex.: estrutura psicótica.
Observações
No CID- 1O e no DSM-IV. os estados delirantes podem ser encontrados entre os quadros orgânicos, sintomáticos. por drogas, nos transtornos esquizofrênicos, esquizoafetivos. nas psicoses agudas, nos transtornos delirantes persistentes e nos transtornos afetivos.
2. Segundo as formas fenomenológicas
Delírio primário ldeias delirantes autênticas, primárias e incompreensíveis fenomenologicamente.
ldeias delioides ldeias secundárias e compreensíveis fenomenologicamente.
3. Segundo os elementos patogênicos
Alucinatório São construídos a partir de uma atividade alucinatória como uma superestrutura explicativa dos fenômenos estranhos que acossam o sujeito.
Imaginativo O sujeito imagina determinada situação ou acontecimento e a partir daí vai construindo seu delírio. Chamados de delírios imaginativos por Dupré.
Observações
Ressalte-se que as atividades interpretativa, intuitiva e imaginativa estão na base de todos os delírios.
4. Segundo sua evolução
Agudos Ex.: psicoses agudas.
Crônicos Ex.: paranoia e parafrenia.
Intermitentes Ex.: surtos paranoides da esquizofrenia.
Fásicos Ex.: melancolia, man1a.
5. Segundo sua organização
Simples ldeias isoladas que não chegam a fazer um sistema.
Complexo Múltiplos temas se entrelaçam de maneira mais ou menos ordenada.
Não sistematizado Quando os temas se enlaçam de maneira frouxa, desorganizada, incoerente.
Sistematizado Quando os temas formam um sistema mais ou coerente.
6. Segundo sua extensão
Parcial, em cunha, setorizado Ocupa-se de um setor da realidade. Ex.: delírio passional.
Generalizado, em rede, em malha Ocupam-se de toda a realidade, em malha, Ex.: os delírios de interpretação.
7. Segundo as
Paranoico Quando se apresenta como sistema delirante duradouro, sem alucinações nem dissociação.
Paranoide Quando se apresentam de forma mais incoerente, com alucinações e tendendo à dissociação.
Parafrênico Quando se apresentam como sistemas delirantes alucinatórios, com temas fantasiosos e fantásticos.
Bouffés
8. Segundo seu prognóstico
Com evolução deficitária Esquizofrenia
Sem evolução deficitária Paranoia Parafrenia Psicose alucinatória • cron1ca
9. Segundo os temas
Expansão delirante do eu: megalomania, erotomania
Retração delirante do eu: culpa, ciúmes, hipocondria
formas estruturais
Passional As paixões, como o .' amor e o c1ume são os mecan1smos principais envolvidos no delírio erotomaníaco e no celotípico.
Perseguição moral, física. influência
Interpretativo O sujeito interpreta os acontecimentos. as falas, os gestos. as mensagens, criando uma rede complexa de relações. Ex: delírio de interpretação de Serieux e Capgras.
Quando se apresentam, agudamente, uma mistura de .. expenenc1as delirantes e alucinatórias caleidoscópica.
Intuitivo O indivíduo intui o delírio repentinamente, capta de forma imediata um novo sentido nas coisas. Ele não cogita, não interpreta; simplesmente sabe.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
se apresenta, é fundamental na psicopatologia. Todas as teorias - organicistas, dinâmicas, psicanalíticas, fenomenológicas, organodinâmicas e cognitivistas - procuram respondê-las sem que os resultados sejam satisfatórios. Em vista da diversidade clínica dos delírios e da sua ocorrência em quadros tão distintos, é improvável que alguma teoria seja capaz de oferecer a explicação unificada. Cada teoria parece apreender aspectos parciais e fragmentários dos delírios. Na medida em que os delírios mostram o quanto as relações do homem com a realidade podem estar comprometidas, eles colocam em questão a aparente conaturalidade desta relação. Várias disciplinas como a psicologia, a psicanálise, a antropologia, a sociologia e as neurociências investigam as condições de acesso do sujeito à realidade. Cabe à psicopatologia investigar as causas que transtornam este acesso e que levam um sujeito a cortar seus laços com a realidade e a modificá-los tão profundamente como no delírio. Se as condições de acesso à realidade dependem de condições biológicas, psíquicas e culturais, transtornos em cada um destes níveis podem, evidentemente, resultar na produção do delírio. Mas, sejam quais forem os fatores implicados, o delírio afeta profundamente o sujeito, sua verdade e seu ser. "Longe de a loucura ser um fato contingente das fragilidades do organismo, ela é a virtualidade permanente de uma falha aberta em sua essência. Longe de ser para a liberdade um insulto, ela é sua mais fiel companheira e acompanha seu movimento como uma sombra:' 27 Verdadeiro paradigma da loucura, o delírio permanece como o grande desafio da psicopatologia.
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Afetividade
Ana Cristin a Garga no Nakata Che i Tung Teng
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 533
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Definições básicas, 533 Humor, 534
1. Entender que a afetividade se refere de forma ampla aos domínios das emoções, dos sentimentos e dos estados de humor.
Emoção, 534 Paixão, 534 Catatimia, 534 Afeto, 534 Sentimento, 534 Estados afetivos patológicos, 535 Alterações dos sentimentos e emoções, 535 Sentimentos sem objetos, 536 Outras classificações de afeto, 538 Medo, fobias, pânico, 538 Alterações do humor, 538 Teorias das emoções e aspectos neuropsicológicos da afetividade, 539 Teoria de James-Lange, 539 Teoria de Cannon-Bard, 539
2. Compreender que o humor é o tônus afetivo em que o indivíduo se encontra em determinado instante, e determina uma tonalidade afetiva particular a cada momento, modificando a natureza e o sentido das experiências vivenciadas. 3. Reconhecer que a emoção pode ser definida como uma reação afetiva aguda, instantânea, intensa e de curta duração. 4. Saber que o sentimento é um estado afetivo mais estável, menos intenso e reativo em relação a estímulos, como as emoções, e não tão frequentemente associado a reações corpóreas, como o humor. 5. Entender que o medo é uma emoção universal presente em animais superiores e no homem, que precede um objeto, circunstância ou situação que deve ser evitada.
Teoria de Schachter & Singer, 539 Estruturas cerebrais relacionadas às emoções, 539 Comunicação das emoções, 540 Considerações finais, 541 Questões, 541 Referências bibliográficas, 541
Introdução A maior dificuldade no estudo da afetividade é a definição do termo. Nas mais variadas áreas de conhecimento, afeto pode ser relacionado com sentimento, emoção, carinho, simpatia, atenção, paixão e temperamento. A afetividade pode ser definida como todo o domínio das emoções, dos sentimentos e dos estados de humor. Está diretamente relacionada com as sensações, os impulsos e as volições, ou seja, com todo tipo de vivên-
cia individual e suas formas de expressão mais complexas e essencialmente humanas. Podemos chamar de afeto todo fenômeno psíquico que não pode ser coordenado pela consciência objetiva ou por impulsos instintivos. Ou seja, todos os processos psíquicos imprecisos, impossíveis de serem compreendidos completamente e analisados logicamente. É um processo espontâneo, involuntário, que engloba todas as vivências afetivas.
Definições básicas Inúmeras são as definições dos fenômenos relacio nados aos afetos e emoções dependendo do referencial teórico pelo qual estão sendo analisados. No presente texto, as definições são baseadas no referencial fenome nológico, principalmente fundamentado por Jaspers.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
Humor O humor é o tônus afetivo em que o indivíduo se encontra em determinado instante. Ele determina uma to nalidade afetiva particular a cada momento e modifica a natureza e o sentido das experiências vivenciadas. Segundo Paim 1, o humor reúne elementos psíquicos aos somáticos, ou seja, o humor é vivenciado no corpo e influencia as funções vegetativas do organismo, como digestão, sono, estado de vigília, ritmo cardíaco e respiratório.
sopercepção pode ficar alterada, a psicomotricidade pode estar aumentada ou diminuída e o pensamento pode se modificar de diferentes maneiras, o fluxo, a velocidade e o conteúdo das ideias. 4
Afeto Afeto é definido como a qualidade ou tônus emocional que acompanha uma ideia ou representação mental. Reação ou resposta afetiva
Emoção A emoção pode ser definida como uma reação afetiva aguda, instantânea, intensa e de curta duração. Frequentemente acompanham reações somáticas significativas e são desencadeadas por um determinado estímulo, que pode ser interno (p. ex., uma memória) ou externo (p. ex., uma discussão, um susto).
Paixão A paixão é um estado afetivo extremamente intenso, que domina o psiquismo do indivíduo como um todo. A pessoa apaixonada tem apenas um objeto como foco de sua atenção, interesse e desejo. Sua capacidade deraciocínio lógico fica prejudicada, suas ideias ficam deformadas e os demais interesses inibidos. O estado afetivo de paixão pode ser prolongado. Ao abrir da manhã, Teresa leu, uma a uma, as cartas de Simão Botelho. As que tinham sido escritas nas margens do Mondego enterneciam-na a copiosas lágrimas. Eram hinos à felicidade prevista: eram tudo que mais formo so pode dar o coração humano quando a poesia da paixão dá cor ao pensamento, e uma formosa e inspirativa natureza lhe empresta os seus esmaltes. Então lhe acudiam vivas reminiscências daqueles dias: a sua alegria doida, as suas doces tristezas, esperanças a desvaneceram saudades, os mudos colóquios com a irmã querida de Simão, o céu aromático que se lhe alargava à inspiração sôfrega de vagos desejos, tudo, enfim, que lembra a desgraçados. (Camilo Castelo Branco, A mor de perdição.) 2
Catatimia Termo definido por Bleuler em 19423 como uma deformação afetiva da realidade. O humor, os sentimentos e as emoções, como as paixões, podem ser tão intensas que passam a exercer influência sobre todas as outras funções psíquicas. Dessa forma, a capacidade de atenção se altera, podendo ficar muito desperta ou focada em determinado estímulo, a memória se torna prejudicada ou fatos específicos referentes a algo são evocados em detalhes, a sen-
Podem ser definidas duas formas de resposta afetiva de um indivíduo: a sintonização afetiva e a irradiação afetiva4 • A sintonização afetiva ocorre quando um indivíduo é fortemente influenciado afetivamente por algum estímulo externo, situação ou pessoa. Ocorre uma sintonia entre as pessoas e o ambiente em que se encontra em determinado momento. A irradiação afetiva ocorre quando um indivíduo é capaz de influenciar afetivamente outros indivíduos, irradiando seu estado afetivo momentâneo ao ambiente ao seu redor. A função afetiva que avalia esta influência entre o indivíduo e o ambiente também pode ser chamada de ressonância afetiva, que engloba tanto a sintonização como a irradiação afetiva. Todas as pessoas são capazes de sintonização e irradiação afetiva em determinado grau. Denomina-se rigidez afetiva a condição de prejuízo da capacidade de sintonização e irradiação afetiva, ou seja, de influência afetiva do indivíduo em relação ao ambiente que o cerca. Tal estado afetivo pode estar presente em algumas condições psicopatológicas e psicodinâmicas anormais.
Sentimento O sentimento é um estado afetivo mais estável, menos intenso e reativo em relação a estímulos, como as emoções, e não tão frequentemente associado a reações corpóreas, como o humor. Apresenta uma tonalidade subjetiva e bastante intelectual, à medida que o sentimento está frequentemente associado a cognições, valores, conceitos e representações, que lhe conferem um significado emocional. Exemplos extremamente diversos podem ser chamados de sentimento; um sentimento de que algo pode acontecer, um sentimento de clareza, um sentimento de um pôr do sol triste etc. Por necessitar de um conceito intelectual que nomeie os diferentes tipos de sentimento, ele apresenta muitas variações dependendo da língua, da cultura e do universo subjetivo de significações de cada indivíduo. Não sei qual é o sentimento, ainda inexpresso, Que subitamente, como uma sufocação, me aflige
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O coração que, de repente, Entre o que vive, se esquece. Não sei qual é o sentimento Que me desvia do caminho, Que me dá de repente Um nojo daquilo que seguia, Uma vontade de nunca chegar em casa, Um desejo de indefinido, Um desejo lúcido de indefinido. (Fernando Pessoa) 5
Karl Jaspers descreveu e classificou as características fenomenológicas do sentimento, em sua manifestação não patológica, da seguinte forma6 . Segundo o modo de ser dos sentimentos' O "sentimento" pode se referir ao sujeito (que sente) ou a um objeto (que recebe a ação). Há uma significativa diferença entre os sentimentos que são referentes à consciência da personalidade, do eu, e não referentes a nenhum objeto, e os sentimentos que são referentes à consciência do objeto, e podem se classificar segundo estes objetos. Por exemplo, a paisagem triste, a tristeza pelo luto do pai, referem-se à consciência do objeto. Os sentimentos podem ser classificados em dimensões opostas, por exemplo, alegria e tristeza, prazer e desprazer, ira e cômico, grandeza e inferioridade. Segundo os objetos a que se referem os sentimentos Podem ser classificados das mais diversas maneiras, na tentativa de tornar concreto o que é abstrato. Sentimentos familiares, religiosos, patrióticos etc. Segundo a origem Os sentimentos podem se originar de sensações (sentimentos sensoriais: visão, audição, tato, dor, posição, equilíbrio), sendo espontâneos, autônomos e relacionados à sensorialidade humana. Podem ser sentimentos vitais, experimentados no corpo do indivíduo e que causam uma sensação de consciência do eu em relação ao corpo. Por exemplo, alguém muito triste que se queixa de uma dor torturante na cabeça, que pressiona, sufoca, e lhe dá a impressão de que uma nuvem negra está ao redor de sua cabeça. Podem também, se originar da psique (sentimentos psíquicos), sendo ligados à percepção do significado, sem tanta difusão corporal quanto um sentimento vital. E ainda serem provenientes do espírito ou da personalidade do indivíduo (sentimentos espirituais), conceituando modos de ser, sentimentos místicos, metafísicos ou religiosos, referentes à visão de mundo do indivíduo. Segundo a importância do sentimento para a vida O sentimento pode servir de estímulo ou inibição para a vida como um todo.
Segundo a parcialidade dos sentimentos Distinguem-se sentimentos particulares, dirigidos a determinados objetos, dos sentimentos totais, também chamados de estados de sentimento, que abrangem o indivíduo como um todo, em determinado momento. Geralmente estão direcionados para certa tendência, irritabilidade, excitabilidade aumentada ou diminuída e estão acompanhados de alterações do humor. Segundo a intensidade de duração dos sentimentos Jaspers definiu sentimentos como estados subjetivos, singulares, originários da alma; nomeou "afetos" como processos de sentimentos complexos e momentâneos de grande intensidade e com manifestações de natureza corpórea (que correspondem às emoções); e "disposições" como estados de espírito mais duradouros que conferem um colorido particular a toda a existência da vida psíquica (que correspondem a estados de humor). Os sentimentos são diferentes das sensações Sentimentos são estados do eu (mesmo quando voltados a objetos), e sensações são elementos da percepção do ambiente e do próprio corpo. As sensações podem variar em um contínuo sendo puramente objetivas, como visão e audição, até corresponder a estados corpóreos abstratos, como sensação de posição, de equilíbrio, sensação dos órgãos. Essas últimas estão frequentemente associadas a sentimentos. Por exemplo, a tontura, que pode levar a ansiedade, medo de cair e até pânico. Algumas sensações são também sentimentos, podendo ser chamadas de sensações de sentimentos8, e podem levar a momentos de impulso. São as sensações da pele (prurido, ardor, sensações táteis que podem ser prazerosas ou desagradáveis) do paladar, do olfato, fome, sede, cansaço, excitação sexual. Tais sensações geram diversos sentimentos no indivíduo, que é por sua vez im pelido por impulsos. Por exemplo, a sensação de fome causa um sentimento de ansiedade e leva o indivíduo a procurar alimento. Assim, sensação, sentimento, afeto e impulso fazem parte do mesmo contínuo.
Estados afetivos patológicos Alterações dos sentimentos e emoções Os sentimentos de manifestação anormal ou patológica podem ser caracterizados de diversas maneiras. Uma das formas de se classificar é em relação à sua compreensibilidade. Apesar de se apresentarem de forma anormal, ou seja, alterada em relação ao esperado, podendo ser exagerado ou reduzido, eles podem se originar de contextos compreensíveis. Por exemplo, um marido com ciúme da esposa apresenta um sentimento compreensível em relação a ela, porém à medida que inicia uma perseguição a todos que se aproximam dela, passa a apresentar uma reação desmedida.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro I
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
Emoção, sentimento e humor Reatividade a estímulos
Duração
Caráter corpóreo
Emoção
Intensa
Curta
Somatizações
Sentimento
Baixa
Variável
Baixo
Humor
Baixa
Prolongada
Influência nas funções vegetativas
Em outros casos, as vivências relacionadas aos sentimentos patológicos não podem ser compreendidos, são endógenos e psiquicamente irredutíveis, só explicáveis ' . por causas extraps1qmcas. Karl Jaspers descreveu os sentimentos patológicos segundo a seguinte classificação6 . Alterações dos sentimentos corpóreos
Sentimentos corpóreos constituem a base do es tado geral dos sentimentos, são vitais e orgânicos, e apresentam-se frequentemente nas psicoses. Como exemplos estão sentimentos frequentes em doenças orgânicas, como a angústia do cardíaco, a sufocação do asmático, a sonolência da encefalite. E o sentimento vital de melancolia na depressão, que é sentido como pressão no peito e na garganta, peso nos membros como descrito no trecho abaixo de Kurt Schneider. Uma paciente diz: "Sempre esta pressão no estô mago, e na garganta. É tão fixa como se nunca desaparecesse. Então sinto que vou estourar, tanto me dói no peito. [ ... ] É mais tristeza ... Tenho aqui dentro de mim uma terrível melancolia'' 9 • Alterações dos sentimentos de energia e rendimento
Sentimentos de energia e rendimento são referentes à nossa própria força e autoconfiança. Nos depressivos prevalece o sentimento de insuficiência, de incapacidade, indecisão, inutilidade e falta de propósito vital. De maneira análoga, no estado de mania prevalecem sentimentos de grandiosidade, poder, exaltação, autoridade, influência e êxtase. Alteração na tonalidade afetiva na apreensão de objetos
Alguns estados psicopatológicos podem apresentar tonalidade afetiva alterada, tanto exacerbada quanto diminuída ou alterada. Tudo o que a consciência objetiva consegue apreender, as paisagens, as coisas, pessoas, é interpretado pela psique do indivíduo. Assim, as coisas recebem uma "fisionomia'' particular para cada um, dependendo de seu estado de ânimo, de seu nível de consciência e atenção ou mesmo de sua visão de mundo. A empatia é uma forma particular de sentimento na apreensão de um objeto, no caso, pessoas, em que o indivíduo pode compreender, subjetivamente, o ou tro indivíduo por meio de um sentimento de familiaridade, de identificação, que ocorre por uma comple-
Associado a ideia
Associado a cognições, valores e conceitos (significados)
xa e espontânea avaliação do outro. A empatia também pode ter tonalidade afetiva exagerada, chegando a pre judicar o indivíduo ou, quase ausente, vendo as pesso as como autômatos sem alma. Um paciente paranóico que acreditava tocar lápis envenenados relatou: ''Ao tocar em madeira, lã, papel, a sensação tátil é desagradável, sinto uma corrente de fogo atravessar todos os membros. O mesmo sentimento de "fogo' surge em frente ao espelho cujas irradiações me percorrem causticamente. O que melhor se deixa tocar são porcelana, metal, linho fino ou o próprio corpo em determinadas partes". ''A isso se acrescenta que sinto a força penetrante e luminosa em várias cores como tonalidades diabólicas ou envenenadas, dotadas de irradiação dolorosa. [... ] A cor lilás, amarela e branca são simpáticas à vista'' 10 .
Sentimentos sem objetos São frequentes estes tipos de sentimentos em quadros de mania, onde a excitabilidade ocorre sem mo ti vos, nas depressões ou em início de psicoses. O sentimento surge de maneira endógena, incompreensível. Na tentativa de se tornarem compreensíveis para o próprio indivíduo que sente, podem surgir objetos para que o sentimento se expresse sobre, sendo obra do juízo crítico. Angústia
Um exemplo típico de sentimento sem objeto é a angústia. Um sentimento vital, que é sentido na região do peito, referente a um medo inespecífico, de algo que não se sabe ao certo, uma apreensão que atinge toda a existência. Pode variar de uma intensidade violenta e fugaz, capaz de provocar atos agressivos contra a própria pessoa, até uma ansiedade leve e constante. Também pode vir associada a vários sintomas corporais, como sufocamento, aperto, pressão, e estar localizada em pontos específicos do corpo. Também pode se manifestar de forma repentina, com curta duração, em uma crise de pânico. A angústia existencial é bem caracterizada por JeanPaul Sartre 11 , como a consciência da própria liberdade, da liberdade de escolha, da imprevisibilidade do próprio comportamento. Segundo a corrente filosófica existencialista, não há limites para a liberdade, a que estamos condenados inexoravelmente. Não há Deus, nem qualquer circunstância que justifique o que fazemos, ou que determine nosso comportamento, estamos sozinhos e somos os únicos
43 AFETIVIDADE
responsáveis pelas nossas decisões e pelas consequências que sofremos. A angústia é, então, condição fundamental ao ser humano que está "condenado a ser livre'~ Negar essa condição leva a "alienação existencial". Descrita por Sigmund Freud 12 , a angústia foi primeiramente atribuída à libido que seria temida e reprimida pelo indivíduo. Mais tarde, Freud aprimora sua teoria da angústia, descrevendo-a como um medo de um perigo externo, que seria a castração, e que se liga a um perigo interno, que remete às exigências da libido. Essa angústia de castração está relacionada à fase do complexo de Édipo, em que o menino ama sua mãe, e teme ser castrado por seu rival, o pai. Engloba um sentido de angústia de perda de algo importante do ponto de vista narcísico. Ludwig Binswanger, na análise do caso Jürg Zünd 13, descreve a angústia da seguinte forma: "quando e enquanto a angústia domina a existência do indivíduo, todo amadurecimento existencial fica excluído; pois, na condição de estar continuamente amedrontado, a existência individual não se antecipa, mas fica perturbada e aprisionada pelo já-ser no ter-sido. A angústia é uma perpetuação forçosa do ter-sido:' Inquietação Outro sentimento sem objeto é a inquietação, um estado de excitação interna constante, que pode acompanhar a angústia. Presente em pacientes psicóticos, surge como um sentimento de procura por algo, necessidade de terminar alguma coisa inacabada ou esclarecer algo não compreendido. A inquietação pode ser severa, e levar a tensão e tremores, paralisando qualquer outra capacidade laborativa do indivíduo, que apenas procura distrações e repouso. Sempre esta inquietação mordida aos bocados Como pão relo escuro, que se esfarela caindo. Sempre este mal-estar tomado aos maus haustos Como um vinho de bêbado quando nem a náusea obsta. Sempre, sempre, sempre Este defeito da circulação na própria alma, Esta lipotimia das sensações, Isto... (Fernando Pessoa) 5
Felicidade Sentimentos de felicidade sem objeto, frequentes em estados maníacos, podem se apresentar desde sensações espontâneas de prazer, até êxtases místico -religiosos intensos, com sensação de grandiosidade e libertação. O seguinte trecho mostra como o sentimento de felicidade pode estar associado ao delírio de autorreferência: Era como se todo mundo pudesse ver em mim a felicidade e como se minha visão fizesse os outros felizes ... Era como se eu fosse algo divino. Às estações chegavam pes-
soas idosas só pra lançarem um olhar no compartimento em que estava ... cada um fazia o melhor que podia, para obter de mim um olhar. Até mesmo oficiais, altos funcionários, senhores e senhoras com crianças desfilavam diante de meus olhos na esperança de que quisesse olhar pra eles. Acho tudo isso muito bonito, mas devo saber quem e o que eu sou. Já não sou a mesma? Tornei-me outra pessoas? ... Até os animais estavam alegres, ao olharem para mim os cisnes abriam as asas em minha honra 14•
A origem de sentimentos sem objetos À medida que surgem sentimentos novos, possibilidades infinitas podem ser significadas, por meio da representação, pensamento e percepção. É assim que, a partir de um sentimento de felicidade sem objeto, novo e intenso, dá-se continuidade a um mundo de conhecimento. A sensação de beatitude, leva à consciência de clariviciência e transforma conceitos como Deus, morte, atemporalidade em revelações extraordinárias, que apenas podem ser sentidas e não reproduzidas ou explicadas completamente. Seguem-se ao processo, sentimentos de graça e de libertação, e o indivíduo identifica-se com figuras santas e bíblicas, que emanam influência mística a todos os seres e pessoas ao seu redor. Assim formam-se os delírios místico -religiosos, grandiosos e autorreferentes em quadros maníacos, esquizofrênicos, em intoxicações por drogas ou auras epilépticas. Apatia Apatia ou atimia 15 é a perda da capacidade de sentir afeto. É a ausência parcial ou total de sentimentos e emoções. A apatia total é mais comum em psicoses agudas, o indivíduo apresenta os olhos fixos e indiferentes a tudo ao seu redor, falta-lhe estímulo para agir, já que não é capaz de nenhuma vivência afetiva. Pode não apresentar alterações de consciência, atenção ou memória, porém toda a sua percepção é estritamente objetiva. Pode ficar completamente indiferente à alimentação ou a dores físicas, indo a óbito se não tratado intensivamente. Tal estado é semelhante ao embotamento afetivo, termo associado aos quadros hipotímicos presentes em psicoses crônicas, em que há uma redução da capacidade de vivenciar e/ ou expressar sentimentos e emoções. No embotamento afetivo podem estar presentes alguns sentimentos, embora empobrecidos e grosseiros. A percepção da pobreza dos afetos do embotamento afetivo parece estar associada à vivência de sofrimento, porém de forma confusa e desconexa, o que pode diferenciar da apatia. Já a anedonia é a incapacidade de sentir prazer com atividades ou circunstâncias que antes eram vivenciadas de maneira agradável. O indivíduo se queixa de não sentir graça em nada, não conseguir desfrutar da companhia de amigos, de prazer sexual ou alegria. Assim como a apatia, é comum em quadros depressivos.
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SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
Anestesia afetiva
A anestesia afetiva é o sentimento da falta de sentimento e trata-se de um sentir penoso de que não é capaz de sentir, e não de uma ausência de sentimentos. Comum em quadros depressivos ou qualquer processo psicopatológico em seu início. Os pacientes queixam-se de não sentirem mais amor por seus familiares, não sentirem satisfação com os alimentos, julgam-se incapazes de sentir alegria, sentem apenas um vazio constante. Este sentimento é marcado por um caráter depressivo e angustiante e frequentemente está associado a sentimentos ' corporeos. Trecho descrito por Biswanger do caso Ellen West16 : Tudo me é tão insípido, tão indiferente; não sinto alegria, nem medo.A morte é a maior dádiva da vida, senão a única. Sem a esperança de um fim, a existência seria insuportável. Apenas a certeza de que cedo ou tarde o fim virá me consola um pouco.
E ainda sobre o desejo de não ter filhos: o que deveriam fazer no mundo?
Outras classificações do afeto Há outros termos que caracterizam alterações na afetividade. A função de modulação afetiva seria a capacidade de manter os níveis de intensidade dos afetos em faixas adequadas, evitando excessos e descontroles. Como uma forma de prejuízo na modulação afetiva, a labilidade afetiva representa a ocorrência de mudanças súbitas e abruptas de estados de humor, sem um desencadeante definido necessariamente. Por exemplo, um paciente que se comove muito quando lhe perguntam so bre sua casa e família, rapidamente se anima ao recordar do cachorro do vizinho, manifestando então um estado de humor totalmente contrário ao anterior em curto espaço de tempo. Esta alteração ocorre nos estados mistos, maníacos ou nos transtornos de personalidade emocionalmente instáveis 17 • Outra forma de alteração da modulação afetiva seria a incontinência afetiva, onde o indivíduo não é capaz de conter suas reações afetivas. Ambas (labilidade e incontinência) também podem ser chamadas de hiperestesia afetiva, ou seja, exagero e inadequação da reatividade do afeto. O indivíduo se desespera intensamente ao perceber que está sozinho em um ambiente, por exemplo. Podem ocorrer em quadros demenciais, mania, depressão, psicoses ou transtornos fóbico-ansiosos. Na inadequação do afeto ou paratimia, o indivíduo apresenta uma reação afetiva incongruente tanto em intensidade, quanto em qualidade, a determinados conteúdos de sua vivência atual. Observa-se a paratimia na esquizofrenia e em condições psicodinâmicas de superação do medo, luto e abandono, por exemplo. Um exemplo de
paratimia é o caso de um doente que ao mesmo tempo que se ri, informa que, durante a noite anterior, foi brutalmente espancado. Em quadros orgânicos como tumores cerebrais, encefalites, lesões frontais e quadros degenerativos, é comum haver o riso ou choro patológicos, que são imotivados, súbitos, muito intensos e de curta duração. Denomina-se neotimia uma experiência afetiva nova e diferente vivenciada por pacientes em estado psicótico. No período de trema, que antecede a manifestação psicótica da esquizofrenia, é frequente haver esses sentimentos estranhos, apreensivos e angustiantes. A ambivalência afetiva ocorre na esquizofrenia, nos quadros depressivos e obsessivos e em que prevalece a indecisão e dúvida. Trata-se da coexistência de sentimentos contraditórios em relação ao mesmo objeto. Essa condição pode levar a ambitendência, ou seja, a alternância de tendências a favor e contra determinada ação, o que pode levar ao bloqueio do indivíduo.
Medo, fobias, pânico O medo é uma emoção universal presente em animais superiores e no homem, que precede um objeto, circunstância ou situação que deve ser evitada. Traz sentimentos de insegurança, impotência, angústia e invalidez. Mira & Lopez 18 classifica o medo em seis etapas, em caráter crescente de intensidade: 1) prudência; 2) cautela; 3) alarme; 4) ansiedade; 5) pânico (medo intenso); 6) terror (medo muito intenso). O pânico é uma reação de medo intenso, que comumente acontece em crises, abruptas, intensas e de curta duração. Estão relacionadas com sensação de grande perigo, descontrole, perda dos sentidos, sensação de morte iminente e desintegração. E acompanham sintomas evidentes de descarga autonômica, como taquicardia, sudorese, tremores, parestesia nos membros, aperto no peito, náusea e vômitos, dispnéia, sensação de vertigem e tontura ou aumento do trânsito intestinal. As crises de pânico levam a uma reação automática de fuga, da situação desagradável ou do estímulo desencadeante. Esse mecanismo gera as fobias, que são quadros psicopatológicos de medo exagerado de determinado objeto ou situação, desproporcional ao perigo que a real situação oferece.
Alterações do humor Distimia é definido psicopatologicamente como alteração do estado de humor, podendo ser por meio de
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exacerbação ( distimia hipertímica) ou inibição do humor (distimia hipotímica). É importante não confundir o conceito psicopatológico de distimia com o diagnóstico de transtorno distímico (DSM-IV) 19. O termo hipotimia se refere ao estado de humor predominantemente depressivo, enquanto hipertimia define o estado de humor patologicamente exacerbado (maníaco ou hipomaníaco). Dentre os estados de humor hipertímicos estão: a euforia, a elação, e o êxtase, respectivamente, segundo a gradação de intensidade. A euforia é uma alegria anormalmente intensa desproporcional às circunstâncias ou mesmo sem um mo tivo definido. No estado de elação há expansão do Eu, ou seja, sentimento de grandiosidade, poder, do Eu em relação ao mundo. E no estado de êxtase ocorre uma sensação de beatitude, libertação, dissolução do Eu no mundo, frequentemente associado com experiências religiosas e místicas. Além da mania, também pode ocorrer na esquizofrenia e em quadros conversivos e dissociativos. A disforia, por sua vez, é definida como estado de irritação, acompanhado de alteração de humor, tanto depressiva quanto maníaca. Pode ser desencadeado por qualquer estímulo externo, mesmo leve, sendo muitas vezes mal interpretado pelo indivíduo que vivencia a emoção de maneira anormal. A irritabilidade patológica pode estar presente em diversos quadros orgânicos, além de transtornos mentais, de natureza psicótica ou neurótica. A puerilidade é o nome dado ao estado afetivo infantilizado, primitivo, inadequado e imaturo. O indivíduo apresenta reações emocionais desmedidas, superficiais e inconsistentes, inadequadas ao contexto. Tal condição está presente na esquizofrenia hebefrênica, no retardo mental, na histeria e nas personalidades imaturas. De maneira semelhante à puerilidade, a moria é uma forma de alegria extremamente pueril, ingênua e tola, que ocorre em quadros orgânicos, lesão de lobo frontal, demências e retardo mental.
Teoria de Cannon-Bard
Teorias das emoções e aspectos neuropsicológicos da afetividade
Estruturas cerebrais relacionadas às emoções
Teoria de James- Lange Em 1884, William James (1842- 1910)2° 21e Carl Lange22 (1834- 1900) desenvolveram a primeira teoria do surgimento das emoções a partir de observações das reações do sistema nervoso autônomo periférico. Segundo estes autores, as emoções se originam a partir da percepção humana das alterações fisiológicas que se apresentam após algum estímulo. Assim, primeiro o homem "se depara com o urso, então começa a transpirar, seu coração dispara, e em consequência a essas alterações corpóreas, passa a sentir o medo:' A emoção é o que sentimos das mudanças corpóreas.
Em 1929, Walter Cannon (1871 - 1945)2 3 e Phillip Bard (1898 -1977)24 criticaram tal teoria, alegando que os estímulos viscerais e corpóreos são muito lentos em comparação com a rapidez do início das emoções experimentadas e não necessariamente estão vinculados ao surgimento de emoções. Além disso, a natureza das alterações de descarga autonômica são basicamente as mesmas, enquanto as emoções apresentam uma brutal variabilidade em intensidade e qualidade. Também, experimentos com animais com lesão medular mostraram que eles continuaram expressando emoções. Segundo os pesquisadores, as emoções têm sua o rigemem primeiro lugar e então geram as alterações corporais, que propiciam as ações necessárias para a adap tação à emoção. Então, primeiramente "eu vejo o urso e sinto medo, então, meu medo provoca reações fisiológicas e autonômicas, e como consequência dessa resposta, eu fujo e corro'~
Teoria de Schachter & Singer Esta teoria mais recenté5, do ano de 1962, se baseia em dois fatores determinantes para as emoções, a excitabilidade fisiológica e a cognição. A natureza da reação fisiológica vai depender das cognições do indivíduo, em determinada situação ou contexto social. Dessa forma, se na avaliação do indivíduo, a situação em que se encontra for de ameaça, ele vai sentir medo e apresentará as reações de descarga autonômica de fuga; por outro lado, se ele entender que a situação é engraçada, ele sentirá alegria e descontração. Assim, o contexto em que o indivíduo se encontra, a avaliação cognitiva que ele faz da situação e a qualidade da emoção são as características principais que determinam a reação emocional da pessoa.
Em 1937, James Papez26 propôs um circuito neurológico para as emoções envolvendo estruturas cerebrais filogeneticamente muito antigas: o hipotálamo com seus corpos mamilares, o núcleo anterior do tálamo, o giro cinguiado e o hipocampo. E em 1952, MacLean27 propôs um sistema cerebral central na integração das emoções, acrescentando a amígdala, o córtex pré-frontal e o septo ao sistema de Papez. Denominou-o de sistema límbico. Neste sistema, o hipotálamo é o elemento central na expressão das emoções e o córtex cerebral é o responsável pelas significações cognitivas das experiências afetivas. Também participam o córtex frontotemporal, o hipocampo, o giro cingulado, a amígdala, os núcleos septais, o hipotálamo, os núcleos anteriores do tálamo e os nú-
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SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
cleos da base (Figura 1). Recentemente29•30, algumas estruturas cerebrais vêm sendo revisadas e novas funções estão sendo atribuídas a elas em relação à afetividade. Amígdala
A amígdala localiza-se na região temporal mediai e está relacionada às reações comportamentais, motoras e neuroendócrinas do medo31.0 núcleo lateral da amígdala é responsável pela percepção de estímulos auditivos, visuais, olfativos e gustativos, que trazem informações externas do ambiente ameaçador. O núcleo central da amígdala emite projeções para o tronco cerebral e para o hipotálamo, produzindo respostas hormonais e comportamentais ao estresse (p. ex., luta e fuga). A destruição experimental das amígdalas faz com que o animal se torne dócil, sexualmente indiscriminativo, afetivamente descaracterizado e indiferente às situações de risco. Hipocampo
O hipocampo está relacionado com a formação da memória, especialmente a de longa duração. Ele possibilita ao animal comparar as condições de uma ameaça atual com experiências semelhantes prévias, permitindo-lhe, assim, escolher qual a melhor opção a ser tomada para garantir sua preservação. Quando ambos os hipocampos são lesados, nada mais é gravado na memória. Tálamo
O tálamo conecta diversas estruturas do sistema límbico, como a área pré-frontal, o hipotálamo, os corpos mamilares e o giro cingulado. Lesões ou estimulações dos núcleos do tálamo causam alterações da reatividade emocional, no homem e em animais. Hipotálamo
O hipotálamo tem amplas conexões com as demais áreas do prosencéfalo e mesencéfalo e está relacionado com
Giro cingulado
Fórnix
Septum
diversas funções vegetativas, como regulação térmica, sexualidade, combatividade, fome e sede. O hipotálamo também desempenha um papel nas emoções, principalmente na sua expressão, por meio de manifestações somáticas. As partes laterais do hipotálamo estão envolvidas com o prazer e a raiva, enquanto que a porção mediana parece mais ligada à aversão, ao desprazer e à tendência ao riso incontrolável. Quando os sintomas físicos da emoção surgem, a ameaça que produzem retorna, via hipotálamo, aos centros límbicos e, destes, aos núcleos pré-frontais, aumentando a ansiedade, por um mecanismo de feedback negativo, podendo até gerar um estado de pânico. Giro cingulado
O giro cingulado está situado na face mediai do cérebro, entre o sulco cingulado e o corpo caloso. Sua porção frontal coordena odores e visões com memórias de emoções agradáveis. Esta região participa ainda, da reação emocional à dor e da regulação do comportamento agressivo. A ablação do giro cingulado (cingulectomia) em animais selvagens os domestica totalmente. A simples secção de um feixe desse giro (cingulotomia) interrompe a comunicação neural do circuito de Papez e reduz o nível de depressão e de ansiedade preexistentes. Córtex orbitofrontal
O córtex orbitofrontal, localizado nas adjacências dos globos oculares, é ativada com estímulos táteis, gustativos e olfativos agradáveis. Também participa do aprendizado de comportamento por meio dos estímulos afetivos. Lobo parietal
O lobo parietal direito recebe projeções da amígdala, permitindo que estímulos emocionais sejam integrados a aspectos objetivos da consciência e da memória declarativa consciente. Pacientes com lesão no lobo parietal direito apresentam dificuldade no processamento multimodal dos estímulos proprioceptivos e estereoceptivos, causando desconhecimento afetivo da situação. Tal quadro se reflete com agnosia do hemicorpo esquerdo e heminegligência à esquerda, ou seja, todo o seu corpo e o mundo à esquerda é ignorado.
Comunicação das emoções
Bulbo - - - olfatório
- --
Hipotálamo Amígdala Corpo mamilar Figura 1
Estruturas principais do sistema límbico 28 .
Hipocampo
Uma das maiores descobertas da última década fo ram os "neurônios espelho", mirrar neurons. Encontrados em aves e primatas, são ativados quando um animal observa o comportamento de outro animal. Em humanos, tais neurônios são inferidos nos córtex pré-motor e parietal inferior. Rizzolatti e Craighero32 acreditam que os "neurônios espelho" são responsáveis pelo aprendizado imitativo, tão importante na formação de cultura e na aquisição de linguagem. Estudos recentes33•34 propõem que esse sistema
43 AFETIVIDADE
de neurônios é responsável pela formação de representações internas de ações, emoções e sensações, apreendidas e internalizadas por meio da observação e do relacionamento com outros indivíduos. Ou seja, seria um mecanismo identificado da capacidade de empatia. A empatia ocorre não apenas pela comunicação verbal, mas também por meio de gestos, expressão facial, postura, tom da voz e aparência geral. A partir da avaliação da resposta afetiva de outra pessoa, o próprio avaliador influencia e é influenciado pelo avaliado. Tal fenômeno ocorre espontaneamente e involuntariamente, e é a base da comunicação afetiva que ocorre entre as pessoas.
Considerações finais A descrição dos afetos, emoções e outros fenôme nos relacionados é dificultada pela subjetividade destas experiências, e pela enorme variabilidade das mesmas. Existe a necessidade de se aprimorar e aprofundar a avaliação psicopatológica da afetividade, para auxiliar na discriminação mais efetiva dos estados de humor patológicos, principalmente as vivências relacionadas ao diagnóstico clínico de hipomania e dos estados depressivos subsindrômicos. Características psicopatológicas específicas, como as diferentes formas de labilidade emocional e incontinência emocional poderiam auxiliar futuros estudos fisiológicos das emoções. Apesar de ser um assunto de grande interesse de artistas e cientistas, a afetividade ainda não foi totalmente decifrada. Tentamos incessantemente categorizar e definir as emoções que sentimos, na tentativa de torná-las precisas e nomeáveis. No entanto, a emoção é muito diferente da razão, mas ambas se completam em nossa existência humana.
Questões 1. O humor pode ser definido e caracterizado por: a) Estado afetivo extremamente intenso, que domina o psiquismo do indivíduo como um todo. b) Uma reação afetiva aguda, instantânea, intensa e de curta duração. c) Uma deformação afetiva da realidade. d) Tônus afetivo em que o indivíduo se encontra em determinado instante, de duração prolongada e que influencia as funções vegetativas. e) Tônus afetivo em que o indivíduo se encontra em determinado instante, bastante reativo a estímulos e que influencia as funções vegetativas.
2. Karl Jaspers classificou os sentimentos de acordo com: a) Seu modo de ser, sua origem, os objetos a que se referem, a intensidade de duração e importância para a vida do indivíduo.
b) Um estado afetivo estável, menos reativo em relação a estímulos e não tão frequentemente associado a reações corpóreas. c) Cognições, valores, conceitos e representações, que lhe conferem um significado emocional. d) A reatividade aos estímulos, a duração, o caráter corpóreo. e) Nenhuma das anteriores.
3. Karl Jaspers descreveu os sentimentos patológicos segundo a seguinte classificação: a) Seu modo de ser, sua origem, aos objetos a que se referem, a intensidade de duração e importância para a vida do indivíduo. b) Sentimentos experimentados no corpo do indivíduo e que causam uma sensação de consciência do eu em relação ao corpo. c) Alterações dos sentimentos corpóreos, dos sentimentos de energia e rendimento, da tonalidade afetiva na apreensão de objetos. sentimentos sem objetos. d) Sentimentos que são referentes à consciência do eu e os sentimentos que são referentes à consciência do objeto. 4. A teoria de Schachter & Singer (1962) pode ser caracterizada: a) Foi a primeira teoria das emoções formulada a partir de observações das reações do sistema nervoso autônomo periférico. b) As emoções se originam a partir da percepção humana das alterações fisiológicas que se apresentam após algum estímulo. c) As emoções se originam em primeiro lugar e então geram as alterações corporais, que propiciam as ações necessárias para a adaptação à emoção. d) A natureza da reação fisiológica vai depender das cognições do indivíduo, em determinada situação ou contexto social. e) Conjunto de neurônios responsáveis pelo aprendizado imi tativo, tão importante na formação de cultura e na aquisição de linguagem. 5. Selecione a alternativa correta: a) A apatia é um sentir penoso de que não é capaz de sentir, comum em quadros depressivos. b) Na anestesia afetiva há uma redução da capacidade de vivenciar e/ou expressar sentimentos e emoções. c) A angústia é definida como um sentimento sem objeto na classificação de Karl Jaspers. d) Na incontinência afetiva ocorrem mudanças súbitas e abruptas de estados de humor. sem um desencadeante definido necessariamente. e) Na labilidade afetiva prevalece a indecisão e dúvida.
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Psicopatologia da Volição: Impulso, Instinto e Vontade Herma no Tava res
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Definições, 543 Vontade e razão, 544 Vontade e afetos, 544
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
A psicopatologia da vontade: atos impulsivos e atos compulsivos, 545 Impulsividade: sua natureza e variações, 546 Considerações finais, 547 Questões, 548 Referências bibliográficas, 548
Definições Historicamente, filósofos, teólogos e outros profissionais ocuparam-se mais com a definição do que é vontade do que psiquiatras, psicopatologistas e estudiosos específicos do comportamento humano 1 • Isso responde pela falta de um modelo abrangente que organize de forma coerente os termos que definiriam a estrutura da volição humana e suas perturbações. Esse problema é agravado pela dificuldade de tradução de termos usados em dife rentes línguas, respeitando-se a equivalência cultural entre eles. Por exemplo, na obra de Freud, a palavra Trieb recebe traduções diversas 2 em suas versões inglesa, espanhola e portuguesa. Na versão em português, a palavra é traduzida como "impulso': "instinto" ou "pulsão", ora tratados como termos intercambiáveis, ora não. O termo "impulso" seria a designação universal para descrever uma tendência à escolha de uma determinada ação. "Instinto" seria reservado aos impulsos inatos cuja existência precede qualquer experiência de aprendizagem ou condicionamento. Portanto, seu uso é com frequência vinculado aos comportamentos cujo objetivo final é a manutenção da homeostase orgânica (fome, sede, sono etc.) e a preservação da espécie (luta, sexo, etc.). Apesar de didática, essa divisão na espécie humana tem contornos
1. Definir impulso, instinto e vontade. 2. Entender as relações entre vontade e razão, vontade e afetos. 3. Dominar a terminologia descritiva dos estados mórbidos da vontade. 4. Diferenciar ato impulsivo e ato compulsivo. 5. Definir impulsividade e reconhecer suas variações.
borrados pelo fato de que mesmo os instintos mais primitivos que parecem se revelar em reflexos neurológicos de um recém-nascido, como o de sucção, sofrem modificação contínua causada por camadas sucessivas de aprendizagem propiciadas pela experiência até a consolidação de padrões complexos como o hábito alimentar de um adulto 1 • Para Freud3, todo impulso tem por base um instinto atávico natural presente em todo ente biológico. Em sua teoria das pulsões proposta em 1915, ele divide o fenômeno em quatro elementos: • A pressão (em alemão, Drang): a energia propulsora. • A finalidade (Ziel): segundo Freud, "a finalidade do instinto é sempre a satisfação, que somente pode ser alcançada pela supressão do estado de estimulação da fonte do instinto", ou seja, o instinto busca ser extinto; em outras palavras, ele sempre se orienta para sua satisfação. • O objeto (Objekt): a coisa através da qual o instinto busca sua satisfação. • A fonte (Quelle) : o processo somático que se passa em uma parte do corpo e que origina o instinto. O pensamento freudiano nesse caso tem paralelos com outro autor da época. Karl Jaspers\ em sua obra de
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1912 Psicopatologia geral, propõe relevantes diferenciaçoes: [... ] O impulso primário, sem conteúdo e sem direção, o instinto natural que tende inconscientemente a um fim e o ato de vontade que produz representações conscientes de finalidade, com conhecimento dos meios e as consequências.
É interessante notar que, para Jaspers, impulso, ins-
tinto e ato de vontade são vivências independentes e simultâneas que se combinam ou conflitam na busca da determinação do comportamento. Resultam desse embate a ponderação, a hesitação e por fim uma decisão que emerge à consciência como uma possibilidade binária "quero" ou "não quero': A ação completa que chega a essa deliberação consciente é chamada de ação arbitrária, no sentido em que o sujeito foi seu próprio árbitro no processo de escolha. A segunda possibilidade proposta pelo autor ocorre quando os instintos determinam a resposta comportamental, "curto-circuitando" ponderação, porém em suas palavras "ainda sob o controle oculto da personalidade"; esses seriam os atos instintivos. Há também os casos em que o impulso primário não é passível de inibição ou controle; esses seriam os atos impulsivos.
Vontade e razão Contudo, em suas breves considerações sobre a volição, Jaspers se ocupou das alterações associadas aos quadros de evolução processual, isto é, as psicoses. Kraepelin5 teve um papel decisivo na indicação de perturbações volitivas e da natureza impulsiva de algumas síndromes neuróticas. Na década de 1970, Schneider6 recupera o conceito do processo dinâmico da volição proposto por Jaspers, descrevendo os impulsos como pares antagônicos de tendência e contratendência que se manifestam simultaneamente: ''Atinge-se, assim, uma pugna entre as tendências e a mais poderosa é a que triunfà'. A vontade consistiria na possibilidade de intervir nessa pugna e escolher uma dentre muitas tendências. Para Schneider, isso garantiria ao ser humano a capacidade da autodeterminação, algo distintivo por não ser compartilhado com outras espécies, uma vez que nelas a direção do comportamento resultaria do embate entre instintos eliciados por estímulos internos e externos (ambiente) sem intromissão de uma terceira instância. Contudo, Jaspers e Schneider discordam quanto à natureza dessa terceira instância. Para o primeiro, a vontade emergiria da ação da razão sobre os múltiplos impulsos, e seria, portanto, uma função subordinada à cognição. Para Schneider, a volição, ou ato de escolha inefável, se estabelece independente da razão e muitas vezes a ela se opõe. Essa divisão entre mestre e discípulo espelha um dilema antigo da filosofia, que tem Aristóteles como o principal defensor da vontade como fruto do exercício da razão sobre os ins-
tintos e tem Descartes como propositor da vontade humana como um conceito que transcende a razão 7 • Nobre de Melo 8 descreve o ato volitivo humano como um processo subdividido em quatro fases: 1) Intenção ou propósito: fase durante a qual se esboçam as tendências básicas do indivíduo em um processo inconsciente em que participam impulsos, desejos e temores. 2) Deliberação: equivale à ponderação consciente, quando são apreciados os vários aspectos envolvidos e as implicações de cada decisão. 3) Decisão: é o momento culminante do processo volitivo que marca o início da ação. 4) Execução: quando os atos psicomotores decorrentes da decisão são postos em ação.
Vontade e afetos Em sua obra Neuroses impulsivas, de 1922, Stekel9 endossou o conceito de instintos organizados em pares antagônicos (esse autor não diferencia impulso de instinto) e ampliou a discussão sobre a natureza da volição humana buscando paralelos no antagonismo indivíduo/sociedade e na sua relação com os afetos. Para esse autor, toda reação impulsiva era um levante da tendência egoísta em oposição à inclinação para aceitar a moral comunitária. Os afetos exprimidos no processo teriam sua origem nos instintos básicos que colocam o indivíduo em ação: O afeto é, por assim dizer, a elaboração intelectual do instinto ... Não existe, portanto, afeto algum que não tenha sido alimentado por um instinto.
A tendência atual parece ir na direção contrária da proposta por Stekel. Ao investigar comportamentos de abuso, como dependências ou jogo patológico (considerado um modelo de dependência comportamental - ver Capítulo 74), autores como Jacobs 10 propõem que a perda de controle característica dessas síndromes é um fe nômeno reativo a afetos negativos intensos, realçando a incapacidade desses indivíduos de lidar de forma apro priada com os mesmos. Essa subordinação das alterações volitivas a alterações do humor atinge seu ápice no mo delo do espectro dos transtornos do humor 11 • Segundo essa proposta, síndromes marcadas pela perda da auto determinação fariam parte de um universo de transtornos cuja origem comum seria uma alteração do humor. Uma terceira possibilidade que concilia as anteriores é defendida por Ciompi 12 em seu modelo biopsicossocial. Traçando um paralelo entre as dimensões da mente e do cérebro, ele propõe que os afetos na primeira e o sistema límbico na segunda ocupam posições intermediárias respectivamente entre impulso e cognição e gânglios da base e córtex cerebral. Em outras palavras, caberia aos afetos intermediar uma conciliação entre vontade e razão
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no plano mental. Na perspectiva da ontogenia do cérebro, a relação entre as estruturas ocorreria em ambos os sentidos, de baixo para cima, onde o ímpeto para o início de um comportamento suscita uma experiência emocional que molda o processo cognitivo subsequente, e viceversa, de cima para baixo, quando a memória conceitual ou factual faz emergir uma emoção que favorece uma determinada resposta comportamental. Em qualquer um dos casos, Ciompi destaca o papel articulado r da experiência afetiva.
A psicopatologia da vontade: atos impulsivos e atos compulsivos No exame clínico do status psíquico de um paciente, a vontade também é referida como função conativa, ou simplesmente conação. Diz-se que um indivíduo está abúlico quando está limitado em sua capacidade de agir ou tomar decisões. O termo tem origem no prefixo "à: que indica ausência, e na palavra grega boulê, que significa vontade. A abulia é descrita como uma alteração frequente na depressão dita melancólica que apresenta características de inibição comportamental observáveis na dificuldade de envolvimento, lentificação de processos psicomotores e resposta a estímulos ambientais, em geral secundárias à alteração primária do humor. Esse quadro também pode ser observado em síndromes mentais orgânicas que redundam de lesão de estruturas frontotemporais do neocórtex, associadas ou não à polarização do humor para depressão. O termo hiperbúlico se define por antonímia ao anterior, e geralmente é usado na descrição do comportamento hiperativo de portadores de transtorno afetivo bipolar (TAB) durante a fase de mania e pressupõe uma alteração volitiva secundária à polarização do humor 13 • Contudo, considerando-se a estrutura da função volitiva, é possível localizarmos na clínica do comportamento alterações primárias da vontade. Isso ocorre quando, no embate entre tendência e contratendência anteriormente descrito, observa-se um viés no resul tado que parece favorecer a primeira ou a segunda, de forma parcial ou totalmente independente do contexto. Isso prejudica a variabilidade e a adaptação do comportamento, que se torna previsível e estereotipado. Nos atos impulsivos, a impossibilidade de inibição de uma tendência ocasiona sua preponderância sobre to das as outras. A dependência química, como o alcoo lismo, seria o fruto da escolha enviesada e recorrente de beber; em outras palavras, o resultado da impossibilidade de ter "não beber" como uma opção de res posta 14 . A principal característica do ato impulsivo seria a incapacidade de tolerar a insatisfação do impulso que impele ao ato sem o devido planejamento, ou sem que todas as consequências futuras sejam devidamente ponderadas 15 . A postergação da resposta comporta-
mental é improvável e somente ocorre em caso de impedimento externo e presente. Tão logo tal estímulo seja retirado do ambiente, espera-se a consecução do ato impulsivo, ou seja, a memória de experiências semelhantes malsucedidas não parece ser suficiente para a inibição do comportamento. O ato compulsivo seria o resultado de um viés no processo decisório que favoreceria a contratendência. Ele é descrito como uma resistência a uma ameaça percebida ou imaginada, geralmente sem base real ou claramente exagerada. Sua execução traz alívio, ainda que tempo rário, do sentimento de opressão e a impossibilidade de executá-lo implica grande desconforto 16 • Na clínica, tanto atos impulsivos quanto compulsivos são indicados por comportamentos diretamente observáveis que se distinguem pela repetição e pelo exagero que ocasionam prejuízo físico, emocional ou moral ao paciente, que apesar do óbvio impacto negativo não é capaz de deter a recorrência do ato. A classificação da natureza impulsiva ou compulsiva do ato repetitivo, que parece fácil nas conceituações teóricas, revela-se um exercício capcioso na prática clínica. Alguns autores pautam essa separação com base nos conceitos de ego-sintonia e ego-distonia. O conceito de ego-sintonia foi proposto por Freud 17 em 1914 para descrever disposições e desejos em consonância com ideais e valores do sujeito; egodistonia seria seu conceito antagônico. O DSM-IV 18 descreve os rituais compulsivos do transtorno obsessivo compulsivo (TOC) como secundários a obsessões egodistônicas, assim descritas por serem representações mentais estranhas ao juízo e aos valores do indivíduo. Porém, apoiar a diferenciação entre impulsivo e compulsivo em conceitos que dependem do juízo realizado pelo indivíduo, pode conduzir a equívocos. Marks 19 descreve que portadores de TOC com evolução crônica frequentemente não apresentam crítica quanto ao absurdo de seus comportamentos ritualísticos, frequentemente associando o alívio propiciado por sua execução ao prazer de uma tarefa conduzida como se deve. Por outro lado, portadores de síndromes impulsivas, como bulimia nervosa ou dependência química, podem se recriminar antes de cederem aos seus impulsos20 • Taylor2 1 propõe uma diferenciação entre "compulsão obsessivà' e "compulsão não obsessivà: A primeira, associada a uma obsessão, é levada a cabo apesar do reconhecimento de sua falta de sentido, em virtude do medo exagerado de consequências negativas. A segunda se referiria a atos mais desejados do que temidos, levados a cabo apesar de suas previsíveis consequências negativas. Seriam, portanto, equivalentes conceituais dos atos impulsivos. Essa associação entre ato impulsivo e desejo sugere que o prazer ou expectativa de gratificação seria o fator de manutenção do comportamento. Entretanto, é um fato clinicamente observável que um dependente químico persiste na autoadministração recorrente mesmo de -
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pois que o fenômeno farmacológico da tolerância bloqueia completamente a possibilidade da experiência hedônica, e que jogadores patológicos mantêm o comportamento incessante de apostas mesmo quando os prejuízos claramente ultrapassam e encobrem a vivência lúdica22 . O prazer, ou promessa de gratificação, na melhor das hipóteses se associam com a experimentação e o início de comportamentos que encerram potencial para perda de controle, mas não explicam a natureza recorrente dos atos impulsivos, nem estabelecem uma separação clara dos atos compulsivos. Atos impulsivos e compulsivos podem ser difíceis de diferenciar porque apresentam uma estrutura asse melhada. Ambos são respostas comportamentais asso ciadas a representações mentais (um desejo, impulso ou obsessão). A forma mais segura de diferenciá-los é verificar a natureza desse pareamento que no ato impulsivo se dá por convergência entre representação mental e comportamento, por exemplo, o dependente de álcool que, cedendo ao desejo, embriaga-se, mesmo sob risco de desaprovação. No ato compulsivo, a divergência marca o pareamento entre representação e comportamento, caso do portador de TOC que, prevendo o risco de invasão de sua casa, verifica as fechaduras incessantemente. A dificuldade de estabelecer a natureza de um comportamento repetitivo, se impulsiva ou compulsiva, deriva também do fato de que em síndromes marcadas por perturbação da função volitiva com evolução crônica, o ato rotineiramente repetido pode assumir uma ou outra característica. É o caso do jogo patológico (e das dependências em geral, sejam químicas ou comportamentais): o ato de apostar geralmente é uma cessão ao desejo de excitação causada pelo risco e promessa incerta de gratificação, contudo muitas vezes é sustentado pelo apostador pelo receio de interromper a única possibilidade de reversão imediata das perdas financeiras, ou pela simples necessidade de manter-se alheio às preocupações e desafios de uma rotina experimentada como um desafio insuperável e cruel. Ou seja, nas dependências as sucessivas re entradas no comportamento repetitivo se dariam por impulsividade (falência da resistência e cessão ao desejo), mas a sua persistência se daria por compulsividade (con tinuidade por reiterada esquiva às consequências negativas). A classificação da síndrome nesse caso, se impulsiva ou compulsiva, se daria pelo caráter predominante, mas não exclusivo23 •
Impulsividade: sua natureza e variações Os fenômenos compulsivos são abordados em mais detalhes em outra seção deste livro, então aqui nos o cuparemos da caracterização da impulsividade e dos fenômenos clínicos a ela associados. A impulsividade representa uma desinibição comportamental primária que não é melhor explicada por uma alteração do humor. Ela pode
ocorrer secundariamente a lesões de estruturas frontotemporais, mas habitualmente é descrita como um componente ou traço da personalidade, que se traduz por maior predisposição para produção de resposta comportamental mediante provocação24 . Ela pode ser observada tanto em síndromes classificadas no eixo I (transtornos psiquiátricos que incluem síndromes neuróticas e psicóticas) como no eixo II (transtornos da personalidade) do DSM-IV 18 • A impulsividade também pode ser descrita como um equilíbrio dinâmico entre forças que impelem e que inibem o comportamento25 . Nesse caso, um indivíduo é chamado de impulsivo se nele preponderam as forças que facilitam a resposta comportamental. Em uma analogia cinética, isso se daria por deficiência dos mecanismos de "freio" do comportamento, ou por excesso dos seus ((ace1eradores)). Os freios comportamentais apresentam uma estrutura hierárquica de complexidade crescente em paralelo com a filogenia do sistema nervoso central. Em seu nível mais básico, temos as emoções negativas elementares (medo, nojo e tristeza) que sinalizam risco ou desvantagem e inibem ou modificam o curso da ação 25 • O próximo nível é representado pelas funções cognitivas, principalmente atenção e memória, que se encarregam de perscrutar o contexto e compará-lo com situações vividas anteriormente. Tal processo implica retardo do início da resposta comportamental, podendo inibi -la ou modificá-la para evitar um curso de ação potencialmente danoso. O terceiro nível, mais complexo e dependente dos anteriores, diz respeito à empatia, a capacidade de reconhecer em si próprio afetos e cognições e supô-los em outros indivíduos a quem se atribui o status de semelhante. A partir dessa habilidade se constrói um código moral a ser compartilhado por outros indivíduos da mesma comunidade, por meio do qual se professa fazer pelo outro aquilo que eu gostaria que fosse feito a mim considerando-se minhas emoções e minha razão e evitar fazer aquilo que eu não gostaria que fosse feito a mim, considerando -se as mesmas disposições 26 • De forma um tanto reducionista, porém didática, podemos dividir os impulsos primários em dois grandes grupos: de impulsos incorporadores ou de aproximação, como os apetites, os desejos e a necessidade de amar e ser amado; e de rechaço ou destruição, como os impulsos de agressão associados à autodefesa e disputa por recursos ambientais, status e hierarquia sociaP. Com base nessa compreensão, podemos dividir os fenômenos impulsivos em cinco variações, três por deficiência de um dos controles inibitórios e dois por impulsos excessivos. Esse modelo tem por objetivo facilitar a semiologia do comportamento impulsivo patológico. Para facilitar sua operacionalização, nós propomos o seguinte acrommo: • Afetos: comportamento errático provocado por instabilidade afetiva. A
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• Cognição: comportamento errático provocado por instabilidade cognitiva. • Empatia: deficiência empática que impede o compartilhamento de valores sociais. • Desejo: anseios intensos que superam ou pervertem os moduladores comportamentais. • Agressividade: impulsos destrutivos voltados a ter. . ce1ro ou a s1 mesmo. Conforme discutido anteriormente, os afetos predispõem a respostas comportamentais mais prováveis (por exemplo: medo/fuga, tristeza/abandono). A instabilidade afetiva pressupõe alternância rápida de afetos que compromete sua função modulatória do comportamento, tornando-o errático e imprevisível. O paradigma clínico dessa condição é o transtorno borderline de personalidade27 (ver Capítulo 76). Aqui também seriam incluídas as síndromes que cursam com fenômenos impulsivos e que são incluídas no chamado espectro bipolar28 (ver Capítulo 55). O modelo clínico da instabilidade cognitiva é o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade29 (TDAH ver Capítulo 80). A mente humana apresenta um limite para o processamento simultâneo de informações, por isso é necessário selecioná-las e hierarquizá-las para o seu adequado processamento. Chamamos o conjunto dessas operações de atenção. A atenção é o leme que direciona os processos cognitivos, portanto perturbações desse papel acarretam instabilidades do aparato cognitivo que geralmente se expressam novamente como comportamento errático e ineficiente. Essa divisão cartesiana clássica entre afeto e cognição é útil por seu didatismo, mas é por vezes artificial, pois se o afeto dirige a atenção para uma determinada classe de estímulos, o foco em um estímulo suscitará um afeto específico. Dessa forma, afeto e atenção, emoção e razão se retroalimentam continuamente. Quando um paciente se apresenta com comportamento errático, com frequência nota-se inconstâncias afetiva e atencional simultâneas, sendo muitas vezes virtualmente impossível a distinção da alteração primária da secundária (a instabilidade afetiva levando à instabilidade cognitiva, ou vice-versa). Com efeito, o diagnóstico diferencial entre TDAH e TAB na infância está entre os exercícios mais desafiadores da clínica psiquiátrica. O transtorno antissocial da personalidade e o traço sociopático são o modelo de deficiência empática30 • Ele pode derivar de uma deficiência primária da expressão de afetos, resultando na apresentação que Schneider descreveu como personalidade fria (ver Capítulo 76). A impossibilidade de reconhecer afetos em si mesmo levaria à incapacidade de percebê-los nos outros, o que impediria a adoção de um código de conduta para condução das relações interpessoais. Outra possibilidade aventada por Damasio é que os afetos estão presentes no sociopata, porém eles não têm ação determinante sobre os processos decisórios, e o comportamento segue o curso impassível dos
impulsos sem a possibilidade da correção de desvios pelos afetos negativos eliciados nas relações interpessoais. As dependências químicas ou comportamentais são paradigmas da chamada impulsividade motivada. Elas se distinguem das demais pela eleição precisa de uma finalidade que representa o objeto de desejo desses pacientes. A presença desse anseio imperioso determina que o comportamento seja levado a cabo imediatamente se não encontrar impedimento. Contudo, na presença de barreiras contextuais, o indivíduo pode exibir uma capacidade de articulação inesperada para um paciente dito impulsivo. Por exemplo, o paciente internado que elabora um plano complexo para contrabandear drogas para dentro da clínica. O planejamento desses pacientes pode ser bem estruturado em sua lógica interna, mas peca pelo foco restrito na consequência imediata que prevê gratificação, em detrimento da previsão de consequências futuras, em geral negativas. Em relação à impulsividade agressiva, é preciso diferenciá-la de outras ações premeditadas e eficazes. Existem indivíduos capazes de planejar e executar ações violentas que revelam extrema agressividade, no intuito de prevalecer socialmente, ou extrair informação à força (caso da tortura). Tais ações se diferenciam porque não são intempestivas e têm objetivos definidos a curto e longo prazo. Atos verdadeiramente impulsivos-agressivos são ab-reações que, mesmo quando iniciadas voluntariamente, rapidamente perdem o controle e a finalidade, provocando danos materiais, lesões corporais em terceiros ou em si mesmo. O transtorno explosivo intermitente, as síndromes de automutilação e o comportamento suicida de repetição são bons exemplos dessa condição (ver Capítulo 75).
Considerações finais A análise das alterações volitivas não se resume a um exercício teórico de classificação. Ela se faz necessária para que possamos entender a motivação por trás dos sintomas de nossos pacientes e para a estruturação de intervenções terapêuticas apropriadas a cada uma de suas variantes. Especialmente na clínica da impulsividade, é útillembrar que um déficit restrito apenas a um dos sistemas de controle pode ser compensado pelo desenvolvimento de funções compensatórias. Portanto, para que um paciente se mostre claramente impulsivo, é preciso haver falha simultânea em mais de uma instância regulatória. Isso geralmente se expressa na existência de um tipo predominante de sintoma impulsivo, acompanhado de outras manifestações que favorecem a perda de controle (caso das associações entre déficit de atenção e abuso de substâncias, instabilidade afetiva e comportamento agressivo etc.). Quadros que agregam múltiplos comportamentos impulsivos sem preponderância de um tipo específico são sugestivos de perda de funções regulatórias básicas, como afeto e atenção, e devem chamar a atenção respectivamen-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
te para comorbidades com TBP, apresentações subsindrômicas de TAB, ou TDAH grave.
Questões 1. Sobre impulso, instinto e vontade, assinale a alternativa correta: a) Impulsos e instintos são tendências para comportamentos mórbidos que precisam ser supri midos para que a vontade se estabeleça. b) Impulso designa genericamente a tendência a uma determinada ação. Instintos são impulsos atávicos que precedem experiências de aprendizagem. A vontade emerge da combinação resultante de diversas tendências representadas por impulsos e instintos. c) Impulsos e instintos são tendências antagônicas, e do seu embate emerge a vontade. d) O ser humano se diferencia de outras espécies animais pela ausência de instintos e submissão dos impulsos à razão, que resulta no ato de vontade. e) Todo impulso é oriundo de um instinto atávico. A vontade é uma elaboração racional das tendências representadas por impulsos e instintos. Sobre vontade, razão e afetos: A vontade subordina a razão e os afetos. A vontade está subordinada à razão e aos afetos. A vontade é o efeito da ação da razão sobre os afetos. A vontade é a resultante da interação entre impulso, razão e afeto. e) A vontade é uma elaboração racional dos afetos.
2. a) b) c) d)
3. Abulia e hiperbulia são: a) Alterações volitivas associadas a estados mórbidos do humor que representam respectivamente a dificuldade de decidir, tomar iniciativas e o comportamento hiperativo e envolvimento com múltiplos interesses. b) Oscilações circad ianas da volição que representam respectivamente entrada em repouso e entrada em vigília. c) Alterações mórbidas da cog nição que se expressam respectivamente por interesse reduzido, dificu ldade de resposta a estímulo e a excitação e atenção aumentada para estímulos relevantes. d) Alterações mórbidas da função conativa que se estabelecem independentemente do humor, que se expressam respectivamente por atividade reduzida e atividade aumentada. e) Alterações da vontade secu ndárias a processos mórbidos da cognição que se expressam respectivamente por perda de interesse, envolvimento e aumento de interesse e conduta exploratória. 4. O ato impulsivo e o ato compulsivo: a) São sinônimos que se referem a hábitos arraigados condicionados pela experiência. b) São antônimos que se referem respectivamente a hábitos arraigados independentes e dependentes da experiência.
c) São vieses no processo deliberativo respectivamente secundários a vieses causados por processos mórbidos afetivos e cognitivos. d) São os produtos de processos decisórios normais em que preponderam respectivamente o afeto ou a razão. e) São condutas repetitivas, exageradas que revelam vieses no processo decisório respectivamente da tendência e da contratendência.
5. Os diferentes tipos de expressão clínica de impulsividade resultam de: a) Esquiva patológica, agressão premeditada, desejos intensos, instabilidade cog nitiva e conduta amoral. b) Afetos intensos, viés do processo atencional e submissão aos determinantes ambientais com consequente prejuízo da autodeterminação. c) Instabilidade afetiva, instabilidade cognitiva, perda ou redução da empatia, desejos e impulsos agressivos intensos. d) Esquiva patológica, conflitos irreconciliáveis entre afeto e cognição, prevalecimento da autodeterminação sobre os imperativos ambientais. e) Comportamentos repetitivos, condutas agressivas e exagero na estimativa de risco.
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44 PSICOPATOLOGIA DA VOLIÇÃO: IMPULSO, INSTINTO E VONTADE
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Alterações da Psicomotricidade
Pa ulo Cle me nte Sallet Pedro Caldana Go rdo n
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 550 Psicopatologia do movimento, 550
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Alterações do comportamento motor, 553 Hiperatividade, 553 Redução da atividade motora, 553 Alterações motoras comumente associadas ao uso de psicofármacos, 553 Síndromes extrapiramidais (SEP), 553 Catatonia, 555 Etiopatogenia, 556 Quadro clínico, 557 Sistemas diagnósticos, 557 Escalas de avaliação, 558 Resposta ao tratamento e heterogeneidade da catatonia, 558 Questões, 560 Referências bibliográficas, 561
Introdução O comportamento motor humano normal é finamente coordenado, com propósito definido, adaptativo e necessário a inúmeras atividades. Na realização de qualquer movimento, por mais simples que seja, há uma complexa integração de sistemas que depende desde a integridade osteomuscular, feixes nervosos, vias neuronais motoras, até volição, estado de humor, personalidade do indivíduo e significado pessoal e cultural do movimento. Assim, o movimento e as suas alterações podem ser estudados amplamente em afecções neurológicas e mentais, que serão resumidamente abordadas nesta seção. Juntamente à postura, os movimentos humanos assumem funções e características diversas. Os livros-texto de psiquiatria trazem também diversas formas de abordá-los. Othmer et al. 1 descrevem os movimentos de acordo com sua função ou propósito. Assim, movimentos reativos são
1. Reconhecer alterações quantitativas do movimento e sua relação
com os transtornos psiquiátricos. 2. Reconhecer as principais alterações qualitativas do movimento e sua associação com diferentes transtornos psiquiátricos. 3. Identificar as alterações motoras comumente associadas com o uso de psicofármacos. 4. Identificar os principais sintomas da síndrome catatônica. 5. Conhecer o manejo clínico e farmacológico da síndrome catatônica.
aqueles eliciados por estímulos, como o estrilar do telefone ou a campainha da porta; movimentos de cuidado com a aparência, como arrumar a roupa, o cabelo; movimentos simbólicos são culturalmente específicos e podem ser utilizados como forma de comunicação alternativa à fala (p. ex., sinal de positivo ou negativo); movimentos ilustrativos tendem a reforçar o que está sendo dito (p. ex., passar o dedo no pescoço reforçando que vai ser decapitado). Os transtornos psiquiátricos podem afetar não apenas a frequência e a intensidade desses movimentos (Quadro I), mas também provocar alterações qualitativas especificamente relacionadas a transtornos psiquiátricos e neurológicos subjacentes (Quadro II).
Psicopatologia do movimento O movimento pode ser entendido como a expressão somática de um processo neural, como a contração muscular resultante de um arco reflexo que leva ao movimento de um membro. Karl Jaspers 2•3 classifica as alterações do movimento como: 1) Fenômenos motores neurológicos, com comprometimento do aparato motor (Motilitiit [:::::: motilidade]).
45 ALTERAÇÕES DA PSICOMOTRICIDADE
Quadro I
Alterações quantitativas (frequência, duração e intensidade) de sintomas psicomotores em alguns transtornos dos eixos I e 11
Categoria
Aumentado
Diminuído
Postura
Mania
Depressão, demência
Movimentos reativos
Mania, TAG, abuso de substâncias
Depressão, esquizofrenia (catalepsia)
Movimentos de cuidar aparência
Fobia social, TDAH, TAG
Depressão
Movimentos simbólicos
Mania, transtorno de personalidade cluster B
Depressão, esquizofrenia (catalepsia)
Movimentos ilustrativos
Mania, transtorno de somatização
Depressão, esquizofrenia (catalepsia)
Movimentos expressivos
Mania, TAG, transtorno de somatização, transtorno histriônico
Depressão, esquizofrenia (catalepsia)
Movimentos dirigidos
Mania, TDAH
Depressão, esquizofrenia (catalepsia)
TAG: transtorno de ansiedade generalizada ; THDA: transtorno de hiperatividade e déficit de atenção. Adaptado de Othmer et al. 1•
Quadro 11 Alterações qualitativas de sintomas psicomotores associadas com transtornos psíquicos Alterações
Transtorno psíquico
Rigidez
Parkinson, SNM, SEPs
Tremor
ldiopático, induzido por substância, abstinência, doença de Parkinson
Tics (motor, vocal)
Tourette, outros transtornos de tic
Inquietação, contorcer-se, explosões
TDAH
Movimentos coreicos e atetose
Discinesia tardia
Movimentos bucofaciais
Discinesia tardia
Catalepsia
Esquizofrenia, outras psicoses, Alzheimer. demência de lobo frontal
Gegenhalten (movimento de oposição)
Esquizofrenia
Ecopraxia
Esquizofrenia
Pseudoafonia, pseudoparalisia, pseudoconvulsões
Transtorno conversivo
Evitação de toque
TOC
Apraxia
Demência de lobo frontal, Alzheimer, doenças neurológicas
Convulsões
Transtorno do abuso de substâncias (abstinência de sedativos)
Cataplexia
Narcolepsia
Micrografia
Doença de Parkinson
Movimentos estereotipados
Transtorno global do desenvolvimento
SNM: síndrome neuroléptica maligna; SEP: sintomas extrapiramidais. Adaptado de Othmer et ai.'.
2) Fenômenos motores psicológicos, que resultam
de alteração mental com aparato motor preservado (p. ex., atos e expressões). 3) Fenômenos motores psicóticos (Motorik [~ motricidade]) (p. ex., sintomas catatônicos), que não são compreendidos em nenhuma das categorias anteriores. Sob o ponto de vista psicopatológico, Jaspers se serve da distinção entre compreender (verstehen) e explicar
(erkliiren): os sinais e os sintomas catatônicos constituem fenômenos psíquicos motores, enquanto fenômenos psicológicos (como estupor histérico ou depressivo) não são atribuídos a fenômenos motores primários, mas sim a ações e modos de expressão (pode-se compreendê-los). Dessa forma, a catatonia fica restrita às psicoses esquizofrênicas, embora reconheça diversos sintomas motores em outras condições psiquiátricas sem, contudo, designá-los como catatônicos2•3 • Os transtornos motores neurológicos envolvem: 1) Alterações do sistema piramidal (p. ex., paralisias). 2) Alterações do sistema extrapiramidal (comprometimento de gânglios da base e mesencéfalo) que podem resultar em alterações do tônus muscular, coordenação, movimentos inconscientes (coreias, balismos etc.). 3) Alterações da medula e cerebelo, levando a ataxias e incoordenações motoras. As apraxias constituem um capítulo especial, pois embora apresentem integridade do aparato orgânico, o doente não pode realizar o movimento adequado à sua intenção porque não dispõe da formulação [Bewegungsformel] que submete o movimento à consciência volitiva [Willensbewuf3tsein]. Por exemplo, o paciente quer acender um fósforo e leva a caixa para trás da orelha. Entretanto, o estudo neurológico dos fenômenos motores e seus distúrbios não leva em consideração a vida mental do indivíduo. Esse é o objetivo do estudo psicopatológico do movimento, no qual se entende o fenômeno motor como expressão de um fenômeno da vida mental, de tal sorte que os fenômenos motores serão compreendidos no todo do indivíduo e, possivelmente, relacionados com alguma patologia mental. Uma das formas de entender como a vida mental interfere nos rendimentos motores é considerar a expressão somática de fenômenos volitivos e suas alterações (estudadas no capítulo anterior). Desse ponto de vista, já foi encontrada uma diferença entre alterações motoras de causas neurológicas e alterações de outra natureza (nas primeiras, apesar de a volição estar preservada, o rendimento motor é alterado).
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
Assim, podem-se estudar fenômenos motores que acompanham a mesma estratificação de fenômenos volitivos, separados em diferentes graus de consciência, iniciando por: 1) Urgências primárias, não direcionadas e livres de conteúdo (ações inespecíficas, inconscientes e sem objetivo claro). 2) Desejos instintivos direcionados a um alvo, porém inconscientes (ações instintivas e impulsivas). 3) Motivações conscientes que visam a um objetivo e que podem ser refletidas e ponderadas acerca dos meios necessários e consequências (ações deliberadas e com objetivo claro). Na vida cotidiana, há diversos exemplos de ações decorrentes de desejos conscientes, ponderados e planejados, visando às mais variadas tarefas que podem ser compreendidas sem dificuldade. Também frequentes são as ações instintivas, que muitas vezes são realizadas sem refletir e são frutos de um desejo possivelmente inconsciente, que se realiza naturalmente, como grooming, expressões faciais, seleção de tom de voz etc. Aproximando-se da vida mental anormal, observam-se impulsos patológicos caracterizados por uma vontade inconsciente que não pode ser controlada, que constitui o ato impulsivo. Esse ato abole abruptamente as fases de intenção, deliberação e decisão; em geral, visto de forma egossintônica, o indivíduo tem dificuldades de percebê-lo como inadequado, não tratando de evitá-lo ou adiá-lo. Pacientes psicóticos, deficientes mentais, demenciados ou com graves transtornos de personalidade podem envolver-se em ações impulsivas auto ou heteroagressivas, que posteriormente podem ser entendidas como resultado de algum descontentamen, . , . to ou pensamento persecutono, mas que nao sao pass1ve1s de reflexão ou inibição. Não raro, diante da permanência do evento estressor, essas ações evoluem para um conjunto de comportamentos impulsivos e hostis, que pode constituir um estado de agitação psicomotora. Entre atos impulsivos e a vida mental dita normal, é possível encontrar ações impulsivas que são apenas parcialmente passíveis de inibição e controle, frutos de desejos parcialmente conscientes, como acontece em alguns pacientes dependentes de substâncias ou com transtornos alimentares, os quais têm consciência da experiência volitiva, guardam alguma reflexão sobre a ação, mas frequentemente adotam postura impulsiva motivados por um desconforto ou inquietação que, para o indivíduo, só pode ser aplacado pela realização de determinada ação (p. ex., consumo de droga pelo dependente que deseja suspender o uso, binge alimentar pelo paciente que deseja controlar seus hábitos nutricionais). Essas ações constituem comportamentos compulsivos. Também são encontrados comportamentos compulsivos de natureza semelhante no transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), no qual as ações compulsivas via de regra têm o propósito de livrar o paciente da ansiedade provocada por um
pensamento obsessivo. Comportamentos compulsivos encontrados no TOC podem assumir aparência estranha ou estereotipada (rituais de limpeza, checagem, simetria etc.), mas em geral são comportamentos acessíveis à psicologia compreensiva. Por exemplo, um indivíduo extremamente ordeiro e preocupado com a segurança de seu lar pode ser visto retornando à sua casa dezenas de vezes ao longo do dia para verificar se a porta está trancada, as luzes apagadas, o forno desligado etc. Assemelhando-se ao comportamento de indivíduos com TOC, observa-se frequentemente pacientes autistas que adotam comportamentos ritualísticos e ações repetitivas e estereotipadas, como ordenação de objetos de forma idiossincrática, tocar e mover objetos repetidamente etc. Aparentemente, tais ações trazem conforto e alívio ante o excesso de estímulos imprevisíveis e incontroláveis presentes no mundo, que trazem bastante incômodo a esses indivíduos. Os tiques constituem outro conjunto de ações involuntárias, movimentos espasmódicos pequenos e rápidos, aparentemente sem propósito ou correlato afetivo, assemelhando-se fenomenologicamente a alterações motoras neurológicas. De fato, há evidências de que transtornos que se apresentam com tiques, como a síndrome de Tourrette, estão associados com alteração funcional de gânglios da base. Os tiques podem apresentar-se como pequenos movimentos involuntários dos músculos cervicais e piscar de olhos, mas podem manifestar-se de forma mais complexa e evidente, como pulos, protrusão de língua, caretas ou maneirismos complexos. Além de tiques motores, há tiques vocais, como tossidas, breves sons guturais, que também podem tornar-se mais complexos como na coprolalia (súbita elocução de obscenidades que invadem a consciência de modo egodistônico). Menos de um terço dos pacientes com síndrome de Tourette apresentam coprolalia. Nesses pacientes, também é comum a coexistência de sistomas obsessivo-compulsivos e de TDAH. Pacientes com tiques tendem a esconder seus sintomas por constrangimento, embora costumem piorar sob estresse. Outro conjunto de movimentos e ações automáticas e involuntárias, frequentemente associado a estados emotivos, é o fenômeno decorrente de alteração do sistema nervoso autônomo (SNA), como dilatação pupilar, rubor facial, aumento da tensão muscular, tremor essencial, aumento dos batimentos cardíacos, entre outros. Algumas dessas respostas motoras são popularmente reconhecidas como consequência somática de estados afetivos subjacentes. Contudo, são apenas explicáveis como consequência fisiológica de uma resposta do SNA, mas não constituem objeto da psicologia compreensível (p. ex., a relação entre midríase - desprovida de significado subjetivo - e um estado afetivo não é compreensível, mas sim explicável em sentido jasperiano). De qualquer forma são eventos motores relacionados com algum tipo de afeto (p. ex., o rubor facial associado à vergonha) e de fato pode-se até
45 ALTERAÇÕES DA PSICOMOTRICIDADE
quantificá-los, como em experimentos laboratoriais que envolvem respostas ansiosas (medindo o grau de tensão muscular, impedância da pele, entre outros parâmetros).
Alterações do comportamento motor Hiperatividade Inquietação e agitação se caracterizam por aumento difuso dos movimentos corporais (inquietação, movimentos rápidos e rítmicos do pé ou mãos, início e interrupção abruptos de movimentos etc.), acompanhados por sensação subjetiva de tensão. Não raro envolvem ações bizarras, sem propósito e que não são passíveis de compreensão, mas podem ser entendidas como reflexo da desorganização do pensamento, que acomete pacientes nessas condições, assim como a lentificação psicomotora e a bradicinesia encontradas em pacientes deprimidos podem ser entendidas como consequência do bradipsiquismo que pode levar a quadros estuporosos. Outro sintoma comportamental da desorganização do pensamento é a incapacidade de realizar tarefas motoras complexas, quando os pacientes são frequentemente flagrados em péssimas condições de asseio pessoal, indicando comprometimento do pragmatismo. A inquietação pode ser observada em condições psiquiátricas com elevada excitação emocional ou confusão, como estados de intoxicação, quadros de delirium, mania, agitação de estados depressivos e transtornos de ansiedade, assim como diversos transtornos clínicos (p. ex., o hipertireoidismo). A hiperatividade generalizada secaracteriza por aumento da energia física e distingue-se da agitação pela ausência de sensação de tensão interna e por exibir movimentos mais voltados para um propósito. A hiperatividade é comumente observada nos estados maníacos e no TDAH, podendo também ser vista na anorexia nervosa. A excitação catatônica caracateriza-se pela irrupção de comportamento hiperativo e desorganizado (saltos frenéticos, bater e arrastar de membros etc.), podendo o indivíduo assumir ameaças e ataques físicos sem causa ou sentido aparentes. Tais estados podem ser observados na mania, na catatonia periódica e no subtipo catatônico da esquizofrenia. Os estados confusionais excitados se caracterizam por hiperatividade generalizada sem propósito definido e são observados em estados ictais, intoxicações agudas e quadros de delirium.
Redução da atividade motora O retardo motor pode ser observado em diversas condições clínicas, como hipotireoidismo, doença de Addison, estados infecciosos e pós-infecciosos (incluindo infecções do SNC), além de transtornos mentais orgânicos, esquizofrenias e transtornos depressivos. A acinesia ou a bradicinesia podem ocorrer na esquizofrenia
e como efeito colateral de neurolépticos. Na esquizofrenia e na depressão, frequentemente ocorrem alterações na voz, com a inflexão normal sendo substituída pelo tom de voz monótono e latência prolongada. Nos estados de . . , . estupor, os pacientes permanecem 1move1s. As reações conversivas constituem alterações funcionais (não fisiológicas ou psicogênicas) com comprometimento motor ou sensorial. Alterações motoras comumente encontradas são paralisias e paresias de diversos tipos, ataxias e afonias. No globus histericus, o paciente não consegue deglutir. As alterações sensoriais incluem cegueira, surdez, parestesias, hiperestesias etc. Os quadros conversivos constituem condição somatoforme geralmente secundária a transtornos de personalidade histriônica ou retardo cognitivo, podendo-se expressar em uma verdadeira miríade de alterações motoras: lentificação motora e estupor, estados hipercinéticos, estereotipias que se assemelham a sintomas catatônicos e sintomas pseudoneurológicos (amaurose, balismos, paralisias de membros, crises convulsivas não epilépticas etc.). Do ponto de vista psicoanalítico, a conversão é a expressão e a representação simbólica de um conflito psíquico subjacente. Contudo, antes de diagnosticar alterações como pseudoneurológicas, é necessário investigar e descartar comprometimento orgânico (diagnóstico de exclusão). A diferença entre fenômenos conversivos e fenômenos francamente psicóticos se pauta na compreensibilidade deles, ou seja, o sintoma e a presença desse sintoma têm relação compreensível com a vida psíquica do indivíduo e com seus conflitos, podendo-se em alguns casos traçar o início do sintoma em associação com um evento traumático (p. ex., após vivenciar cenas extraconjugais do pai, uma mulher passa a apresentar cegueira). Também é importante mencionar que fenômenos conversivos por definição têm origem involuntária e não são deliberados; eventos motores anormais com maior grau de consciência caracterizam os transtornos factícios; no outro extremo estão os atos deliberados e conscientes, com claro ganho secundário, que caracterizam as simulações.
Alterações motoras comumente associadas ao uso de psicofármacos Síndromes extrapiramidais (SEP) As SEPs constituem complicações neurológicas decorrentes do uso de medicações psiquiátricas, especialmente antipsicóticos e antidepressivos, englobando parkinsonismo, distonia aguda, acatisia, discinesia tardia e distonia tardia4 . Os sintomas parkinsonianos costumam ter início insidioso, em geral, após semanas de tratamento com antipsicóticos, e são compostos pela tríade bradicinesia (redução da atividade motora voluntária, com lentificação e interrupção do fluxo normal de movimento), tremor (de
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SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
baixa frequência e elevada amplitude, piora no repouso e afeta principalmente as mãos) e rigidez (aumento do tônus muscular no repouso, pode ocorrer roda denteada). O conjunto desses sintomas confere ao paciente uma aparência característica, com postura imóvel, lentificação e perda dos movimentos naturais dos braços durante a marcha e redução da expressividade facial. Seborreia e sialorreia podem resultar das alterações autonômicas decorrentes da ação neuroléptica5. O envolvimento de músculos laríngeos e faríngeos pode levar à redução do volume e ao prejuízo na articulação da fala. A título de diferenciação diagnóstica, o tremor fisiológico melhora no repouso e piora durante o movimento, além de ter alta frequência e pequena amplitude; pode resultar de ansiedade, fadiga, alterações metabólicas, intoxicação por substâncias (como cafeína e outras xantinas), hipertireoidismo e uso de psicofármacos, como lítio, ácido valproico, antidepressivos e psicoestimulantes. O asterixis, observado em hepatopatias, caracteriza-se por baixa frequência e grande amplitude. A distonia aguda pode ocorrer em diversas doenças neurológicas, mas em pacientes psiquiátricos quase sempre é secundária ao uso de antipsicóticos. As reações distônicas se caracterizam por espasmos musculares intermitentes ou contínuos, geralmente envolvendo cabeça ou pescoço (p. ex., espasmos na língua causando disartria, torcicolo, crises oculogíricas). Pode haver comprometimento da musculatura paravertebrallevando à postura arqueada (opistótono). Essas reações são mais comuns em jovens do sexo masculino e, geralmente, ocorrem logo após o início ou o aumento da dose de um antipsicótico convencional. As contrações podem durar de minutos a horas e são muito angustiantes para o paciente. A distonia aguda pode levar a distorções posturais bizarras, que podem ser confundidas com comportamento histriônico. A acatisia é uma síndrome caracterizada por inquietação motora que ocorre principalmente sob o uso de antipsicóticos e alguns antidepressivos. Ela tem um componente subjetivo e outro objetivo. Subjetivamente, os pacientes se queixam de ansiedade, angústia, disforia e inquietação interior. É esse componente que faz com que a condição seja tão desagradável para o paciente. Objetivamente, podem-se observar movimentos repetitivos das pernas, muitas vezes manifestados como caminhar contínuo de um lado para o outro, balançar apoiando-se alternadamente em um e em outro pé; quando sentado, levanta-se e muda de posição várias vezes. É importante diferenciar a acatisia de agitação psicomotora, especialmente porque o uso adicional de antipsicótico pode agravar o quadro de agitação. A acatisia pode ser dividida com base no período de aparecimento com relação ao tratamento antipsicótico: a acatisia aguda aparece logo após o início ou o aumento da dose do antipsicótico; a acatisia tardia ocorre após longo período de tratamento e não está relacionada com introdução ou alteração da dose
do antipsicótico; a acatisia de retirada começa logo após redução da dose ou suspensão de antipicótico. Independentemente do subtipo, a acatisia pode tornar-se persistente (acatisia crônica) 6. O tratamento da acatisia consiste em reduzir a dose ou substituir o antipsicótico por agente com bloqueio dopaminérgico menos potente, associar betabloqueador ou benzodiazepínico. Não há evidência de eficácia dos antiparkinsonianos na acatisia7 • A discinesia tardia normalmente tem início após meses ou anos de tratamento com antipsicóticos. É constituída por movimentos involuntários que geralmente envolvem musculatura orofacial (língua, lábios, boca ou rosto). Os movimentos são mais pronunciados quando o paciente está alerta ou excitado e tendem a desaparecer durante o sono ou mediante supressão voluntária. Os movimentos anormais podem persistir com ou sem o uso contínuo do antipsicótico, podem diminuir ou desaparecer ao longo do tempo, mas a continuação do tratamento antipsicótico tende a aumentar a gravidade dos sintomas. Qualquer parte do corpo pode ser afetada e com uma ampla gama de movimentos (movimentos de lábios e boca, movimentos mastigatórios, estalar de lábios, piscar de olhos etc.). A discinesia tardia pode ocorrer independentemente do uso de antipsicótico. Casos foram descritos na época anterior aos neurolépticos por Kraepelin e Bleuler e são vistos ainda atualmente em indivíduos psicóticos nunca medicados8 . A discinesia tardia não responde bem ao tratamento e a situação ideal seria a descontinuação da medicação antipsicótica, o que na maioria das vezes é impraticável pelo risco de recaída ou piora dos sintomas psicóticos. Nessas circunstâncias, é preferível o uso de antipsicóticos com menor propensão para causar discinesia, como quetiapina9e clozapina 10 • Outras síndromes tardias incluem acatisia e distonia tardias, condições em que os movimentos anormais surgem tardiamente ou com suspensão da medicação. A distonia aguda difere da discinesia tardia não apenas por diferentes manifestações clínicas, mas também porque na distonia aguda os pacientes tendem a ser mais jovens e os anticolinérgicos podem aliviar os sintomas distônicos e piorar os discinéticos. As distonias podem remitir es pontaneamente, mas na maioria dos casos persistem por anos e são altamente incapacitantes. No diagnóstico diferencial, é importante excluir causas neurológicas da dis tonia, como a doença de Wilson. A síndrome neuroléptica maligna (SNM) é uma complicação potencialmente fatal no uso de neurolépticos, caracterizada por rigidez muscular, febre, diaforese e alterações autonômicas. A maioria dos casos envolve o uso de antipsicóticos, especialmente com bloqueadores dopaminérgicos de alta potência e com aumento rápido da dose, embora existam relatos de ocorrência da síndrome após o uso de lítio, antidepressivos, metoclopramida e seguindo-se à retirada súbita de agonistas dopaminérgicos na doença de Parkinson4 .
45 ALTERAÇÕES DA PSICOMOTRICIDADE
Na sua apresentação típica, a SNM se caracteriza por: 1) Rigidez muscular (que pode ser generalizada ou
assumir formas mais leves localizadas na língua e nos músculos mastigatórios ou faciais, levando à disartria e à disfagia). 2) Hipertermia (pode variar de febrícula a temperaturas acima de 42°C). 3) Alteração do nível de consciência (pode variar de confusão leve ao coma). 4) Alterações autonômicas ( diaforese, taquicardia, instabilidade pressórica, hipersalivação). A hipótese fisiopatológica mais consistente sugere que a súbita redução nos níveis de dopamina afeta a termorregulação no hipotálamo e leva à rigidez muscular por ação no estriado, que por sua vez eleva a temperatura periférica. O diagnóstico diferencial da SNM envolve: 1) Catatonia letal: descrita desde Kahlbaum 11 , clinicamente idêntica embora independente de exposição a . . , . antlpSlCOtlCOS. 2) Insolação: caracterizada por hipertermia, agitação e confusão. Após exposição ao calor extremo, os músculos estão flácidos e a pele, seca - aspectos que diferem da SNM (rigidez e sudorese). 3) Síndrome serotoninérgica: constitui estado extremo de intoxicação serotoninérgica, constituída por três , . . . . caractenshcas pnnc1pa1s: a) alteração do estado mental (agitação, excitação, confusão); b) hiperatividade muscular (tremor, mioclonias e hiperreflexia); c) hiperatividade autonômica ( diaforese, hipertermia, midríase, taquicardia e taquipneia). O paciente com intoxicação serotoninérgica (IS) fre quentemente apresenta inquietação, enquanto na SNM mais comumente ocorre acinesia. A rigidez presente na SNM só ocorre em casos muito graves de IS. Sintomas gastrintestinais (diarreia, náusea e vômito) são comuns na IS e raros na SNM. A síndrome serotoninérgica tem evolução rápida, geralmente em 24 horas, enquanto a SNM costuma instalar-se ao longo de dias. Por fim, a SNM está associada ao uso de antipsicótico de alta potência, enquanto a IS geralmente resulta da combinação de medicações que aumentam a transmissão serotoninérgica (p. ex., IMAO + antidepressivo ISRS). 4) Delirium anticolinérgico: caracteriza-se por confusão e hipertermia. Pacientes com intoxicação antico linérgica apresentam a pele seca e não exibem rigidez muscular.
Catatonia A descrição da catatonia remonta à obra de Kahlbaum (1828 -1899), que desenvolveu um sistema classificatório das doenças mentais com base na evolução e no
estado clínico final 12 • Junto a seu associado Hecker (1843 1909), Kahlbaum estudou pacientes psicóticos jovens, descrevendo o que chamava jugendliche Irresein (loucur a juvenil) e salientando a importância do modelo educacional em sua etiologia. Em 1874, Kahlbaum publicou Die Katatonie oder das Spannungsirresein (A catatonia ou a insanidade de tensão [muscular]) 11 , descrevendo condições caracterizadas por alteração da motricidade como fases de uma doença progressiva caracterizada por estágios de mania, depressão e psicose, que, de modo característico, evoluíam para demeneia. Os sintomas catatônicos já eram conhecidos na literatura, em parte sob a designação de estupor. Os franceses designavam o mutismo como stupidite e as gerações subsequentes observaram sintomas catatônicos em diversos transtornos, mas foi Kahlbaum quem os agrupou de modo mais articulado. A catatonia descrita por Kahlbaum produziu duas tendências conflitantes: uma delas sustenta a ideia da catatonia como doença independente; a opinião contrária vê os sintomas catatônicos como complicações de diferentes fisiopatologias (e não como doença distinta). Kraepelin (1856-1926), que foi diretor de clínica psiquiátrica desde os 30 anos, acompanhou centenas de casos clínicos ao longo da evolução e passou a agrupar as doenças mais de acordo com o grau de deterioração do que com a sintomatologia exibida (ou seja, atribui maior peso ao estado final de defeito do que ao curso/evolução). A concepção sintomatológica atribuída a seus predecessores pareceu-lhe falha por valorizar excessivamente a similaridade de sintomas principais. Com relação à catatonia, na Sª edição do seu Lehrbuch der Psychiatrie (1896), Kraepelin tratou-a como condição independente, uma "doença metabólica que leva à demênciá: assim como ocorria com a dementia praecox e a dementia paranoides. Contudo, na 6a edição do Lehrbuch (1899) Kraepelin agrupou catatonia, dementiae paranoides (de Hipócrates e Lasêgue [18161883]) e a hebefrenia (de Hecker, 1871) como diferentes manifestações de uma única doença, a dementia praecox. O desdobramento da concepção kraepeliniana levou ao conceito unitário das psicoses, que passaram a ser vistas nas duas formas distintas: as psicoses maníaco-depressivas (atualmente, compreendem transtorno bipolar e depressão unipolar) e a demência precoce (esquizofrenia). Em 1896, Kraepelin publicou um estudo longitudinal com 63 casos de catatonia seguidos ao longo de quatro anos 13 • Apenas 38% remitiram após episódio inicial e 22% recaíram após curto período de tempo. Dos 10 casos restantes, 9 continuaram a apresentar manifestações clínicas leves. Com base no caráter recorrente e no mau prognóstico observado, nas sucessivas edições de seu livro-texto, Kraepelin passou a ver as catatonias como um subtipo de demência precoce. Embora admitisse que os sintomas catatônicos não fossem exclusivos da esquizofrenia, conA
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
siderava que em nenhuma outra condição psiquiátrica a catatonia fosse tão expressa quanto na esquizofrenia. A noção de catatonia como subtipo de esquizofrenia teve continuidade nas concepções de Bleuler, que teve grande influência nos EUA, e de Mayer-Gross, que, em 1933, deixou Heidelberg e se estabeleceu em Londres. Em contrapartida, diversos autores europeus, incluindo -se Jaspers e Kurt Schneider, discordaram da posição de circunscrever os sintomas catatônicos à esquizofrenia. Lange 14 observou a evolução de 200 casos de catatonia ao longo de 1O anos e concluiu que os sintomas catatônicos são mais comuns entre transtornos maníaco-depressivos do que entre esquizofrenias. Já os autores franceses concebiam a catatonia em uma perspectiva mais neurológica, como uma entre outras síndromes psicomotoras, como distonia, discinesia e parkinsonismo, ocorrendo em diferentes condições 15. Uma forma grave de catatonia foi descrita por Stauder16, com início agudo de mutismo, rigidez, estados de hiperexcitação ou estuporosos, acompanhados de febre e alterações autonômicas graves com evolução potencialmente fatal. A síndrome foi descrita por diversos autores e, atualmente, é conhecida como catatonia maligna ou letal. Como já descrito, um subtipo dessa síndrome associado com o uso de medicações antipsicóticas é a síndrome neuroléptica maligna (SNM) 17,18. Os desdobramentos da hegemonia kraepeliniana levaram à inclusão da catatonia no DSM-I (1952) como uma reação esquizofrênica de tipo catatônico, que no DSMli (1968) tornou-se um subtipo de esquizofrenia com as características excitada ou inibida. Essa posição foi desafiada por diversas publicações que identificavam casos de catatonia mais comumente entre transtornos afetivos do que em esquizofrenia e também decorrentes de alterações médicas sistêmicas e neurológicas 19,20 • Mesmo assim, o DSM-III (1980) manteve a catatonia como um subtipo de esquizofrenia, trazendo como consequência lógica que a catatonia fosse tratada com neurolépticos, prática potencialmente iatrogênica21 . Já no DSM-IV (1994), a catatonia finalmente passou a ser reconhecida em outras condições, como decorrente da condição médica geral (293.89) ou como especificadora de transtornos de humor. Do ponto de vista epidemiológico, Fink & Taylor 18 relatam que 9 a 17% dos pacientes em enfermarias acadêmicas ou em serviços de emergência psiquiátricos preenchem critérios para catatonia, que, por sua vez, são mais frequentes entre pacientes com transtornos de humor e estados tóxicos. Sugerem que a redução na frequência de aparecimento da catatonia em grande medida se deva a fatores conjunturais, como tendência para o tratamento em nível ambulatorial em vez dos asilos do século passado e falha na identificação de casos em razão de deficiências no ensino da psicopatologia nas universidades. Es ses autores preconizaram "o divórcio entre esquizofrenia e catatonia, seu reconhecimento como uma síndrome in-
dependente, semelhante ao delirium': nas próximas classificações psiquiátricas. Ungvari et al. 22 assumem outra perspectiva do problema. Em contraste com a opinião de Kahlbaum, auto res como Kraepelin, Jaspers, Kleist e Schneider, que também reconheceram a existência de sintomas motores em diversas condições psiquiátricas, concluíram que o padrão psicopatológico específico e a persistência dos sintomas catatônicos foram mais consistentes no subtipo catatônico da esquizofrenia. O principal problema não estaria no lugar que a catatonia ocupa no DSM, mas na falta de clareza conceitual e de consenso sobre princípios definidores do que são ou não sinais e sintomas que compõem a síndrome catatônica. A falta de consenso resulta em heterogeneidade e negligência de diferenças relevantes, como o fato de que catatonias estuporosas agudas respondam bem ao tratamento com benzodiazepínicos ou ECT, enquanto as catatonias no contexto de esquizofrenias crônicas são fenomenologicamente distintas e menos responsivas a ambos os tratamentos. Embora a criação de uma dimensão catatônica tenha valor heurístico, os autores consideram tão ou mais importante reexaminar as bases psicopatológicas na definição de sintomas psicomotores como catatônicos e reestabelecer dimensões sintomatológicas fundamentais ou critérios específicos para transtornos psicóticos e transtornos de humor.
Etiopatogenia Desde as primeiras descrições, os sintomas catatônicos remetem a hipóteses patofisiológicas que envolvem alterações em gânglios da base. Com a introdução dos antipsicóticos, embora se desconheça quais mecanismos estejam de fato implicados, houve declínio na incidência da catatonia e o aparente surgimento dos casos de síndrome neuroléptica maligna (SNM). Esses fatos colocam catatonia, SNM e neurotransmissão dopaminérgica no foco das elucubrações sobre a origem dos sintomas comumente descritos no âmbito da catatonia. Com base em evidências empíricas indiretas, Northoff23 sugere que a postura acinética observada na catatonia pode ser explicada por alterações do córtex parietal posterior direito. Por outro lado, a acinesia desacompanhada de posturas estatuescas observada na SNM parece estar mais associada com o bloqueio de receptores dopaminérgicos nos gânglios basais (caudado e putâmen), com consequente disfunção das conexões corticossubcorticais do circuito motor. Os sintomas afetivos que acompanham a catatonia podem ser explicados por déficit funcional na região orbitofrontal media! e na transmissão gabaérgica. Já as alterações comportamentais da catatonia parecem estar associadas com disfunção da região orbitofrontallateral. Northoff sugere que as alterações corticais orbitofrontais possam provocar alterações na modulação no estriado ven-
45 ALTERAÇÕES DA PSICOMOTRICIDADE
trai e nos núcleos do tronco cerebral, assim explicando as alterações vegetativas observadas respectivamente na catatonia induzida por neurolépticos e na chamada catatonia letal (modulação top-down). Por outro lado, o mecanismo implicado na SNM remete ao bloqueio de receptores dopaminérgicos em diancéfalo e tronco cerebral, o que explicaria as alterações vegetativas (modulação bottom-up). Assim, a catatonia pode ser caracterizada como síndrome psicomotora cortical, enquanto a SNM pode ser considerada como uma síndrome motora subcortical. Apesar das supostas diferenças patofisiológicas entre ambas as condições, parece haver semelhanças clínicas, como acmes1a, smtomas vegetativos e resposta terapeutlca ao ECT e ao lorazepam23 . •
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Quadro clínico Pacientes psicóticos apresentam diversos fenômenos motores que desafiam a compreensão e fazem parte da síndrome catatônica. Pode haver estados acinéticos que variam desde posturas imóveis e bizarras, estatuescas, geralmente acompanhadas de face inexpressiva, até quadros de estupor, completa imobilidade e irresponsividade ao meio. Pode-se encontrar estupor em diversas síndromes psiquiátricas, como catatônico, depressivo e o estupor maníaco; contudo deve-se atentar para a possibilidade de que se trate de um quadro organicamente determinado, sendo obrigatório descartar diagnósticos diferenciais médicos, como síndromes psicorgânicas (intoxicações exógenas, meningoencefalites, TCE, status epiléptico etc.). Alguns quadros estuporosos acompanham tônus muscular aumentado, mandíbulas cerradas e membros tensionados, conjunto de sintomas chamado de catalepsia (não se deve confundir com cataplexia, sintoma observado em indivíduos com narcolepsia e que envolve a perda súbita do tônus muscular corporal e entrada abrupta em sono REM), também chamado de flexibilidade cérea, no qual os membros do indivíduo, apesar de tensos, podem ser movimentados passivamente e mantêm-se na posição deixada por períodos indeterminados, por vezes, em posições bizarras e desconfortáveis. Oposto à flexibilidade cérea, há o negativismo ativo, bastante específico de quadros psicóticos, caracterizado por estado acinético e resistência ativa à mobilização. Além dos estados acinéticos pode haver estados hipercinéticos e, por vezes, a coexistência de sintomas de ambas as tendências. Pacientes catatônicos podem apresentar fenômenos de "liberação motorà: como se houvesse uma pressão para o movimento, mas diferentemente de atos impulsivos ou de agitações psicomotoras agressivas ou ansiosas, os estados hipercinéticos catatônicos são desprovidos de objetivos ou propósitos compreensíveis e, em geral, não são acompanhados por componente afetivo consistente. Muitos desses fenômenos motores podem lembrar movimentos atetoicos ou coreicos de pacientes neurológicos; entretanto, também são observados movimentos
de maior complexidade, como maneirismos, gesticulações com as mãos, movimentos coordenados dos membros, por vezes assemelhando-se a danças ou piruetas, ou imitando postura de animais. Também se observam todos os tipos de caretas, às vezes, alterando-se, assumindo faces com características de pavor, alegria e puerilidade, tampouco associadas a qualquer afeto ou inteligibilidade. Talvez a característica que melhor ilustra a ideia de liberação motora seja a obediência automática, a execução imediata de qualquer ordem dada pelo entrevistador sem nenhuma ponderação e os fenômenos de eco, como a ecopraxia (repetição de um movimento executado pelo entrevistador), ecomimia (imitação da expressão facial) e ecolalia (repetição da última palavra ou frase). É importante salientar que essas ações são semiautomáticas, independentes da vontade e do controle do paciente. Contudo, esses fenômenos são encontrados em graves alterações mentais e é difícil identificar volição nessas condições, constatação que pode auxiliar no entendimento do fenômeno de ambitendência (o indivíduo parece titubear em tomar determinada ação) diante dos mais simples atos motores. Por vezes, pacientes em estados catatônicos podem envolver-se em ações bizarras e incompreensíveis, sem oferecer explicação ou justificativa aceitáveis para tais comportamentos. Assim, embora alguns atos de pacientes que apresentam sintomas catatônicos possam ter algum motivo subjacente, possivelmente associado a determinada ideia delirante ou obedecendo ao comando de alucinações auditivas, no contexto da vida mental do paciente, esses fenômenos são em geral incompreensíveis. O estudo da catatonia se vê limitado por razões diversas, entre as quais estão: a) Falta de clareza conceitual sobre os limites e as definições da síndrome. b) Quais sinais e sintomas são de fato atribuíveis à catatonia? (p. ex., comportamento, psicomotricidade, rigidez, lentificação, hiperatividade, marcha, maneirismos, tiques, estereotipias verbais, mutismo etc.).
Sistemas diagnósticos Os critérios diagnósticos atuais para catatonia no CID-lO e no DSM-IV encontram-se nos Quadros III e IV O DSM-IV admite a existência de sintomas catatônicos em outras condições, como em decorrência do abuso ou induzido por substâncias (p. ex., parkinsonismo neuroléptico-induzido), doenças médicas e episódios de humor maníaco ou depressivo. Contudo, o perfil sintomatológico da catatonia na esquizofrenia é diferente do encontrado em outras patologias2 \ uma assunção que remonta a Kraepelin e Bleuler25 • Há evidências de que a catatonia na fase crônica da esquizofrenia é fenomenologicamente distinta da geralmente observada nos episódios agudos. Pacientes crônicos apresentam mais estereotipias, maneirismos, movimentos automáticos e posturas bizar-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro 111 catatônica
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
CI 0 - 1O - Diretrizes diagnósticas para esquizofrenia
A. Os critérios gerais para o diagnóstico de esquizofrenia devem ser satisfeitos, embora isso possa não ser inicialmente constatado se o paciente estiver incomunicável. B. Por um período de pelo menos duas semanas, um ou mais dos seguintes comportamentos deve dominar o quadro clínico: a) estupor (marcante redução da reatividade ao ambiente, dos movimentos espontâneos e da atividade) ou mutismo; b) excitação (atividade motora sem propósito aparente, não influenciada por estímulos externos); c) postura inadequada (assunção voluntária e manutenção de posturas inapropriadas ou bizarras); d) negativismo (resistência aparentemente imotivada a instruções ou tentativas de ser movido ou movimento em direção oposta); e) rigidez (manutenção de postura rígida contrária ao esforço para ser movido); f) flexibilidade cérea (manutenção de membros e corpo em posições externamente induzidas); g) obediência automática (cumprimento automático de instruções).
Quadro IV
Critérios do DSM- IV para esquizofrenia catatônica
Subtipo de esquizofrenia no qual o quadro clínico é dominado por pelo menos dois dos seguintes sintomas 1. Imobilidade motora evidenciada por catalepsia (Incluindo flexibilidade cérea) ou estupor. 2. Atividade motora excessiva (aparentemente sem propósito e não influenciada por estímulos externos). 3. Extremo negativismo (uma resistência aparentemente sem motivo a todas as ordens ou manter uma postura rígida contra tentativas de mobilização) ou mutismo. 4. Peculiaridades do movimento voluntário evidenciadas por meio da adoção de posturas bizarras (adoção voluntária de posturas inadequadas ou bizarras), movimentos estereotipados, maneirismos ou trejeitos faciais proeminentes. 5. Ecolalia ou ecopraxia.
C. Exclusão de outros fatores precipitantes de comportamento catatônico, incluindo doenças cerebrais e alterações metabólicas.
ras. Por outro lado, casos agudos apresentam mais comumente imobilidade, mutismo e sintomas vegetativos26. É digno de nota que não os sintomas motores agudos, mas sim os sintomas motores residuais correlacionam com variáveis clínicas, como sexo, idade, parkinsonismo, sintomas negativos e gravidade sintomatológica27.
são estima que apenas de 20 a 30% dos pacientes catatônicos esquizofrênicos respondam aos benzodiazepínicos31. No contexto de psicoses crônicas, a taxa de resposta aos benzodiazepínicos é ainda menor32. A diferença de resposta entre condições agudas e crônicas pode refletir diferentes fisiopatologias22 .
Escalas de avaliação
Resposta ao ECT
Os estudos atuais sobre catatonia avaliam um número variável de sintomas (de 8 a 40 sintomas catatônicos) e o limiar adotado para o diagnóstico da síndrome catatônica é também variáveP. Sistemas padronizados por meio de escalas de avaliação são úteis no sentido de fornecer uma avaliação transversal (Quadro V). Contudo, como os sintomas catatônicos flutuam ao longo da evolução, um quadro mais exato da síndrome exige observação por períodos mais longos25·28·29.
Resposta ao tratamento e heterogeneidade da catatonia Resposta aos benzodiazepínicos
Embora o lorazepam seja a droga mais utilizada (em razão de sua farmacocinética), outros benzodiazepínicos e outros agentes também mostram-se eficazes (p. ex., biperideno, carbamazepina, topiramato etc.). O lorazepam parece ser menos eficaz nos quadros catatônicos associados à esquizofrenia do que nos quadros associados aos transtornos de humor e outros diagnósticos30. Uma revi-
Estudos retrospectivos indicam que síndromes catatônicas agudas também respondem melhor ao ECT do que psicoses crônicas33. Também com ECT, as catatonias associadas à esquizofrenia costumam responder menos favoravelmente do que as catatonias associadas aos transtornos de humor e às doenças clínicas34 . Contudo, o ECT é proporcionalmente mais eficaz que os benzodiazepínicos em ambas as condições35. Portanto, benzodiazepínicos e ECT são significativamente eficazes na catatonia estuporosa aguda, mas não são eficazes na mesma proporção quando se trata de sintomas catatônicos associados com psicoses crônicas. Esses achados sugerem que a síndrome catatônica seja heterogênea em termos de psicopatologia e neurobiologia. No intuito de investigar a síndrome de maneira mais esclarecedora22, recomenda-se que os estudos tenham desenho prospectivo, com screening e avaliação de sintomas motores e outros sintomas psiquiátricos por meio de instrumentos de avaliação padronizados, com amostras amplas de pacientes com diferentes diagnósticos de base, associados com análise de marcadores neurobiológicos e investigados durante períodos mais longos22 .
45 ALTERAÇÕES DA PSICOMOTRICIDADE
Quadro V
Escala Bush-Francis de Avaliação da Catatonia (BFCRS - Bush-Francis Catatonia Rating Scale)
Exame padronizado da catatonia: Avaliações devem ser feitas com base no comportamento observado durante o exame, com exceção dos itens "14. Retirado" e "23. Alterações autonômicas", que podem ser obtidos a partir de informações no prontuário. Como regra. pontuam-se apenas itens claramente presentes. Se houver dúvida, pontua-se "0". Procedimentos
Examinar
1. Observe o paciente enquanto tenta engajá-lo na conversa. 2. O entrevistador coça a cabeça de maneira exagerada. 3. Examine o braço para sinal da roda denteada. Instrua o paciente a "deixar o braço solto" e tente movê-lo aplicando força leve e forte alternadamente. 4. Peça para o paciente estender o braço. Coloque um dedo embaixo da mão e tente levantá-la lentamente depois de falar "NÃO me deixe levantar o seu braço". 5. Estenda a mão para o paciente dizendo "NÃO segure minha mão". 6. Ponha a mão no bolso e diga "Ponha sua língua para fora. vou cravar um alfinete nela". 7. Examine o reflexo de agarrar. 8. Examine anotações do prontuário nas últimas 24 h. 9. Tente observar o paciente indiretamente, pelo menos por um breve período, todo os dias.
Observe o nível de atividade, movimentos anormais e fala. Observe (7) ecopraxia. Observe (11) rigidez. (12) negativismo, (13) flexibilidade cérea, (18) Gegenhalten.
1. Excitação: hiperatividade extrema, inquietação motora contínua aparentemente sem propósito. Não atribuível a acatisia ou agitação direcionada para um fim. O= Ausente. 1 = Movimentação excessiva, intermitente. 2 = Movimentação constante, hipercinesia sem períodos de alívio. 3 = Excitação catatônica extrema, atividade motora frenética contínua. 2. lmobilidade/estupor: hipoatividade extrema, imóvel, minimamente responsivo a estímulos. O= Ausente. 1 = Permanece sentado, capaz de interação breve. 2 = Virtualmente sem interação com o mundo externo. 3 = Estuporoso, não reativo a estímulo doloroso. 3. Mutismo: verbalmente não responsivo ou minimamente responsivo. O= Ausente. 1 = Verbalmente não responsivo à maioria das perguntas, sussurro incompreensível. 2 = Fala menos do que 20 palavras em 5 minutos. 3 = Não fala.
Observe (17) Mitgehen.
Observe (19) ambitendência. Observe (16) obediência automática. Observe (20) reflexo de agarrar. Observe principalmente ingesta oral, sinais vitais e quaisquer incidentes.
6. Caretas: manutenção de expressões faciais estranhas (bizarras). O= Ausente. 1 = Menos do que 1Osegundos. 2 = Menos do que 1 minuto. 3 = Expressões bizarras ou mantidas mais do que 1 minuto. 7. Ecopraxia/ecolalia: repete os gestos/falas do examinador.
O= 1= 2= 3=
Ausente. Ocasional. Frequente. Constante.
8. Estereotipia: atividade motora repetitiva e não objetivamente dirigida (p. ex.. movimentos repetitivos dos dedos, tocar repetidas vezes, bater ou esfregar-se); anormalidade não no ato em si, mas na frequência (quantidade). O= Ausente. 1 = Ocasional. 2 = Frequente. 3 = Constante.
4. Olhar: olhar fixo, pouca ou nenhuma verificação visual do ambiente, redução do piscar. O= Ausente. 1 = Pouco contato visual, olhar fixo menos de 20 segundos entre momentos de atenção; redução do piscar. 2 = Olhar fixo mantido por mais de 20 segundos, ocasionais momentos de atenção. 3 = Olhar fixo, não reativo.
9. Maneirismos: movimentos estranhos e despropositados (p. ex.. pular ou andar na ponta dos pés, saudar transeuntes ou movimentos cotidianos exagerados/caricatos); anormalidade associada ao ato em si (qualidade). O= Ausente. 1 = Ocasional. 2 = Frequente. 3 = Constante.
5. Postura/catalepsia: manutenção espontânea de postura(s), incluindo posturas cotidianas (p. ex.. ficar sentado ou em pé por longos períodos sem reação). O= Ausente. 1 = Menos do que 1 minuto. 2 = Mais do que 1 minuto, menos do que 15 minutos. 3 = Postura bizarra ou corriqueira mantida por mais de 15 minutos.
10. Verbigeração: repetição de frases ou sentenças (como disco furado). O= Ausente. 1 = Ocasional. 2 = Frequente, dificuldade para interromper. 3 = Constante. Continua
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro V
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SEÇÃO 4
SINTOMAS E SEU SIGNIFICADO EM PSIQUIATRIA
Escala Bush- Francis de Avaliação da Catatonia (BFCRS - Bush-Francis Catatonia Rating Scale) (Continuação)
11 . Rigidez: manutenção de uma posição rígida ante a tentativa de ser movimentado; excluir, se houver roda denteada ou tremor. O= Ausente. 1 = Resistência leve. 2 = Moderada. 3 =Severa, não é possível mudar a posição. 12. Negativismo: resistência sem motivo aparente a instruções ou tentativas de mover/examinar o paciente. Comportamento contrário, faz o oposto do que é solicitado. O= Ausente. 1 = Resistência leve e/ou ocasionalmente contrária. 2 = Resistência moderada e/ou frequentemente contrária. 3 = Resistência severa e/ou continuamente contrária. 13. Flexibilidade cérea: durante a mobilização o paciente apresenta resistência inicial e depois se deixa ser reposicionado, semelhante a vela derretendo. O= Ausente. 3 = Presente. 14. Retirado (withdrawal): recusa comer, beber e/ou fazer contato visual. O= Ausente. 1 =Ingestão oral mínima/evita contato visual por menos de 1 dia. 2 =Ingestão oral mínima/evita contato visual por mais de 1 dia. 3 =Sem ingestão oral/evita contato visual por 1 dia ou mais. 15. Impulsividade: paciente subitamente engaja em comportamento inapropriado (p. ex., sai correndo, começa a gritar ou tira a roupa) na ausência de estímulo/provocação. Depois, não oferece nenhuma explicação plausível. O= Ausente. 1 =Ocasional. 2 = Frequente. 3 =Constante ou não redirecionável. 16. Obediência automática: cooperação exagerada com a solicitação do examinador ou continuação espontânea do movimento solicitado (lembrar alfinete na língua). O= Ausente. 1 =Ocasional. 2 = Frequente. 3 =Constante.
17. Mitgehen: com um leve toque do entrevistador sob a mão do paciente, este eleva o braço imediatamente (lâmpada de escrivaninha), mesmo com instrução para não o fazer. O= Ausente. 3 = Presente. 18. Gegenhalten: resistência à mobilização passiva, que é proporcional à força do estímulo, parece mais automática do que volitiva. O=Ausente. 3 = Presente. 19. Ambitendência: o paciente parece executar o movimento pela metade, de forma indecisa e hesitante. O= Ausente. 3 = Presente. 20. Reflexo de agarrar: por meio do exame neurológico. O= Ausente. 3 = Presente. 21. Perseveração: o paciente repetidamente retorna ao mesmo tópico ou persiste no mesmo movimento. O= Ausente. 3 = Presente. 22. Agressividade: geralmente de forma não dirigida, depois não oferece nenhuma explicação ou apenas uma explicação superficial para o episódio. O=Ausente. 1 =Agitação ocasional, baixo potencial de injúria. 2 =Agitação frequente, potencial de injúria moderado. 3 =Sérios riscos para outras pessoas. 23. Alterações autonômicas: assinalar ( ) temperatura, ( ) PA, ( ) pulso, ( ) frequência respiratória e ( ) diaforese. O= Ausentes. 1 =Anormalidade em 1 parâmetro (excluir hipertensão prévia). 2 =Anormalidades em 2 parâmetros. 3 =Anormalidades em 3 ou mais parâmetros.
Traduzido de Bush G, et ai. 36.
Questões 1. Os sintomas parkinsonianos secundários ao uso de antipsicóticos são compostos por: a) Distonia. tremor e acatisia. b) Bradicinesia. rigidez e acatisia. c) Bradicinesia. tremor e rigidez. d) Distonia, acatisia e discinesia. e) Rigidez. tremor e distonia.
2. Paciente jovem apresentando quadro psicótico de início agudo, há dois dias foi levado ao PS em estado de agitação psicomotora. onde recebeu haloperidol IM e saiu com prescrição de haloperidol 1Omg/dia. Vem à consulta apresentando piora da agitação. não consegue se manter sentado durante a entrevista. fica em pé balançando o corpo de um lado para o outro e esfrega as mãos com uma fisionomia angustiada. O diagnóstico mais provável e a conduta mais adequada são. respectivamente:
a) b) c) d) e)
Agitação psicomotora. aumentar a dose do antipsicótico. Acatisia. associar medicação anticolinérgica. Trema (reação catastrófica). associar benzodiazepínico. Reação catatônica aguda, suspender antipsicótico e fazer ECT. Acatisia. ministrar benzodiazepínico ou betabloqueador e reduzir/substituir antipsicótico.
3. a) b) c) d) e)
A conduta mais adequada no manejo da discinesia tardia é: Associar medicação antiparkinsoniana. Ministrar vitamina E. Associar ácido valproico. Substituir o antipsicótico por clozapina. Prescrever toxina botulínica.
4. No diagnóstico diferencial da síndrome neuroléptica maligna. é correto afirmar que: a) Na insolação. apesar de ocorrer hipertermia. agitação e confusão mental, a pele é seca e não há rigidez muscular.
45 ALTERAÇÕES DA PSICOMOTRICIDADE
b) Na síndrome serotoninérgica. apesar da alteração do estado mental e hiperatividade muscular e autonômica. a evolução é mais rápida e frequentemente ocorrem alterações gastrintestinais (náuseas. vômitos e diarreia). c) No delirium anticolinérgico. caracterizado por confusão e hipertermia. ocorre pele seca e não há rigidez muscular. d) Todas as alternativas acima estão corretas. e) Nenhuma das alternativas acima está correta.
5. Com relação à catatonia. todas as alternativas a seguir estão corretas. exceto: a) Os estudos sobre a catatonia se veem limitados pela falta de clareza conceitual sobre a síndrome catatônica. b) A redução na prevalência de catatonia após a introdução dos antipsicóticos reflete a eficácia dessas medicações no manejo dos quadros agudos de catatonia. c) As medicações de primeira escolha no manejo dos quadros agudos de catatonia são os benzodiazepínicos. d) A eletroconvulsoterapia é considerada o tratamento mais eficaz na catatonia. e) As estereotipias (repetição de movimentos sem propósito aparente) caracterizam alterações na frequência (quantidade). enquanto os maneirismos (movimentos exagerados ou caricatos) caracterizam alterações na qualidade do movimento.
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Editor: Hermano Tavares
46. Diagnóstico em Psiquiatria: um Breve Histórico de sua Evolução, 564 47. Delirium, 567 48. Demências, 582 49. Esquizofrenia, 603 50. Síndromes Psicopatológicas: Transtornos Psicóticos Breves, Transtorno Esquizoafetivo e Transtorno Delirante, 623 51. Psicose na Infância 650 52. Transtornos Psiquiátricos Relacionados ao Ciclo Reprodutivo da Mulher, 658 53. Síndromes Decorrentes do Uso de Substâncias, 667 54. Depressão, 698 55. Transtorno Bipolar, 71 1 56. Transtornos do Humor no Ciclo da Vida, 732 57. Transtorno de Pânico e Agorafobia, 757 58. Fobia Social, 771 59. Fobias Específicas, 788 60. Transtorno de Ansiedade Generalizada, 795 61. Transtorno do Ajustamento, Transtorno do Estresse Agudo e Transtorno do Estresse Pós-traumático, 807 62. Transtornos Ansiosos e Emocionais na Infância, 824 63. Transtorno Obsessivo-compulsivo, 848
64. Síndrome de Tourette
e Transtornos de Tiques, 863
65. Transtorno Dismórfico Corporal, 872 66. Transtorno Obsessivo-compulsivo na Infância 67. Transtornos Dissociativos, Somatoformes
e Adolescência, 893
e Síndrome da
Fadiga Crônica, 904
68. Somatização na Infância, 913 69. Transtornos Alimentares, 931 70. Transtorno Alimentares na Infância e na Adolescência , 953 71. Transtornos da Sexualidade, 959 72. Transtorno de Identidade de Gênero, 977 73. Transtornos do Sono, 994 74. Jogo Patológico, 1015 75. Impulsividade
e Transtornos do Controle do
Impu lo, 1038
76. Transtornos da Personalidade, 1051 77. Retardo Mental, 1065 78. Transtornos lnvasivos do Desenvolvimento, 1085 79. Déficits Específicos de Aprendizagem
e Transtornos da Fala e da Linguagem,
1095 78. Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade, 1113 79. Transtornos de Conduta
e Comportamentos
Externalizantes, 1133
Diagnóstico em Psiquiatria: Um Breve Histórico de sua Evolução Hermano Tavares Táki Athanássios Cordás
Saúde e vida mental estão relacionadas desde os primórdios da medicina. Mesmo antes da guinada para uma medicina naturalista realizada por Hipócrates e seguidores, no século V a.C., a escola anterior dos asclepíades, seguidores de Asclépio (ou Esculápio na tradição romana, o deus das artes curativas), já lidava com a realidade darelação inextricável entre corpo e mente. O paciente com necessidade de tratamento deveria se dirigir ao templo de Asclépio, onde seria recebido por um sacerdote que levava o paciente a fazer oferendas a Asclépio e a dormir no templo pelo tempo necessário. Ao despertar, ele deveria procurar o sacerdote e relatar-lhe os seus sonhos, pois Asclépio lhe falaria durante o sono em uma linguagem cifrada a qual apenas o sacerdote iniciado em seus mistérios teria acesso. O significado da mensagem em geral continha sugestões subtraídas da vida do paciente que poderiam indicar qual o processo que conduziu à morbidade e qual seria o processo provável de sua reversão 1 • Uma revisão comparativa desta prática sob uma perspectiva histórica sugere que Freud não teria sido tão original quanto havia parecido ao resgatar a interpretação dos sonhos como método terapêutico mais de 2 mil anos depois. As primitivas teorias fisiopatológicas das doenças mentais são formuladas a partir da introdução das ciências naturais proposta por Hipócrates e, posteriormente, desenvolvidas por toda uma série de médicos até Galena, nas quais corpo e mente unem-se na teoria dos humores, estabelecendo a primeira das relações dialéticas que atravessa e define a Psiquiatria até os dias de hoje. A tradição ocidental de separação do corpo e da mente se dá com a queda do Império Romano e avanço do Cristianismo que igualou sofrimento mental a sofrimento espiritual. De outras formas mais laicas, o dualismo mente-cérebro atravessou séculos2 • Uma nova mudança só seria vista no século XVIII com o resgate da doença mental de volta aos braços da medicina pelas mãos dos pre-
cursores da psiquiatria, inspirados pelo humanismo do movimento Iluminista. Em 1769, William Cullen cunhou o termo neurosis para designar o suposto processo de degeneração nervosa que justificaria as queixas emocionais e os sintomas físicos sem base corpórea reconhecível, em oposição aos termos insanidade ou mania que designavam comprometimento da percepção da realidade com delírios e alucinações (o termo psicose seria usado somente mais tarde em 1845, pela primeira vez, por Ernst Von Feuchtersleben). Mania sine delírio cunhado por Philippe Pinel foi outro termo utilizado para designar afecção afetiva, porém sem fenômenos psicóticos. Posteriormente Pritchard ampliou o espectro da enfermidade mental para incluir toda forma de sofrimento mental que não cursava com delírios e alucinações e renomeou-o de insanidade moral. Iniciava-se junto com descrições anteriores, de Pinel inclusive, o estudo dos transtornos de personalidade 3• Há controvérsias quanto ao significado da palavra moral, al, . . guns argumentam que na epoca seu uso era ma1s restnto aos fenômenos afetivos e outros acreditam que já trazia a conotação mais moderna de valores socialmente compartilhados. Seja como for, na ausência de outros métodos, o tratamento psiquiátrico à época era grandemente pautado em modelagem, às vezes coercitiva, por intermédio do psiquismo supostamente mais equilibrado do psiquiatra e promoção de bons valores e bons hábitos. Essa forma de tratamento que surge com Pinel e com o florentino Vicente Chiarugi é chamada de tratamento moral. Pinel nunca definiu exatamente as técnicas do que constituía o "tratamento moral", talvez por isso haja tanta confusão e incerteza em sua caracterização. Não se deve entender "moral" no sentido relacionado com a ética ou adequação dos costumes, mas apenas uma oposição a métodos físicos, podendo ser entendido puramente como "psicológico"4 .
46 DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA: UM BREVE HISTÓRICO DE SUA EVOLUÇÃO
Um exemplo de "tratamento moral" para a doença mental pode ser visto no filme As loucuras do Rei George de 1994, que retrata o tratamento psiquiátrico do monarca da Inglaterra entre 1760 e 1820. Observa-se aqui o delineamento da segunda das relação dialéticas que embasam a Psiquiatria: a divisão neurose/psicose. O século XIX vem carregado de avanços importantes a respeito dessas duas dialéticas. Primeiramente, Griesinger, psiquiatra alemão, estabelece sem rodeios que "doenças da mente são doenças do cérebro". Por conta desse famoso aforismo, ele é considerado por muitos o fundador da psiquiatria moderna e o responsável pela constrição da divisão mente/ corpo ao escopo mais restrito da relação mente/ cérebro. É importante notar que ainda no século XIX e princípio do século XX eram populares hipóteses derivadas da teoria hipocrática dos humores pelas quais se acreditava que as alterações do comportamento eram fruto de desequilíbrio fisiológico nas estruturas que compunham o aparelho genital, ou outras regiões do corpo. Por exemplo, Wilhelm Fliess, otorrinolaringologista, acreditava que os transtornos psiquiátricos eram causados por tensões sexuais que, por sua vez, derivavam de alterações das mucosas do trato res piratório alto. Fliess, aliás, era amigo pessoal de Sigmund Freud e operou-o duas vezes para retirada de pólipos nasais. A ideia do cérebro como sede dos processos mentais e das suas patologias ganha grande impulso nesta época com a descoberta do Treponema pallidum como agente etiológico de quadros demenciais como a paralisia cerebral, embora Aristóteles já tivesse elegido o cérebro como centro das emoções em oposição ao coração quase cinco séculos antes de Cristo6 • Porém, a maioria considera que a psiquiatria moderna, como conhecemos hoje, teve origem nos trabalhos de Emil Krapelin que em 1893 propôs a divisão das psicoses em demência precoce, quadro com sequência de surtos psicóticos deteriorantes, e a psicose maníaco depressiva (à época, insanidade maníaca depressiva), caracterizada por alternância de fases de excitação e depressão, mas sem deterioração progressiva, o chamado restitutio ad integrum. Kraepelin acreditava que personalidade normal, personalidade alternada e transtornos mentais estavam alinhados em um continuum que partia do normal ao fracamente patológico, a exemplo das ideias do colega E. Kretschmer7 • Mas o entusiasmo inicial com a possibilidade de ajuste perfeito do modelo médico, representado pela lógica da infectologia que relaciona uma entidade mórbida a um agente específico, como no caso da sífilis terciária, arrefeceu com a impossibilidade de se localizar causas específicas para a miríade de alterações comportamentais que passaram a ser descritas. Ainda sobre influência do modelo médico, mas já sinalizando uma futura ruptura com ele, Freud propõe que neuroses apresentam um fator etiológico específico e universal, porém de natureza diversa da biologia: o trauma psíquico. Mais
tarde, ele substitui a teoria do trauma pela concepção da origem dinâmica das neuroses baseada em conflitos instintuais internos, rompendo definitivamente com o mo delo médico tradicional de Kraepelin. É interessante notar neste percurso a mudança radical pela qual passou o conceito de neurose, de uma condição física de degeneração nervosa a um quadro funcional na teoria freudiana, acentuando a oposição psicose-neurose. Em uma brilhante tentativa de acomodação desta divisão, Jaspers aperfeiçoa a relação dialética psicose/ neurose delineando os conceitos de síndrome mental orgânica, processo e desenvolvimento; respectivamente: alterações psíquicas de base somática reconhecível, alterações psíquicas de base somática suposta em virtude da quebra da lógica biográfica subjetiva e alterações psíquicas que se dão sem quebra dessa continuidade, mas que pelo contrário são compreendidas à luz da biografia individual. A segunda dialética é então renomeada para processo/ desenvolvimento, sendo desenvolvimento um conceito mais amplo que abrange não somente neuro ses, mas também personalidades anormais8 . Schneider9 , seguidor de Jaspers, avança o conceito de personalidade psicopática como a personalidade anormal que sofre ou faz sofrer em virtude de sua própria natureza. Sendo considerado o precursor e o principal au tor do conceito moderno de transtorno de personalidade e um dos responsáveis indiretos pela divisão dos diagnósticos psiquiátricos em Eixo I e Eixo II como proposto no DSM-III 10• Esta divisão inicial progrediu para a fragmentação do diagnóstico psiquiátrico na perspectiva multiaxial: • Eixo I: transtornos psiquiátricos maiores e déficit de aprendizagem; • Eixo II: transtornos da personalidade e retardo mental; • Eixo III: condições médicas associadas; • Eixo IV: contexto psicossocial e estressares ambientais); • Eixo V: funcionamento global. Apesar da ampliação do diagnóstico psiquiátrico pelo sistema multiaxial representar um avanço, ela traz em seu bojo contradições de difícil conciliação. A principal delas é a fragmentação do conceito de neurose em múltiplos diagnósticos e o seu deslocamento para o Eixo I juntamente com as psicoses, tornando os limites entre os Eixos I e II muito borrados e sugerindo certa artificialidade nessa divisão. De fato, o progresso das neurociências reforça a percepção de que há clara participação de fatores psicológicos na emergência dos processos e fatores biológicos inegáveis em quadros fóbico/ansiosos; enfim, que psicose e neurose separadas no conceito podem se unir na clínica. Aliás, a possibilidade de se estabelecerem correlatos para toda forma de expressão comportamental humana, patológica ou não, dá contornos à última oposição dialética
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
que funda o plano sobre o qual se apoia a psiquiatria moderna. Trata-se do binômio psiquiatria biológica versus psiquiatria dinâmica, ou se preferirem medicalização versus humanização da psiquiatria 11 • Nos capítulos desta Seção V- As Grandes Síndromes Psicopatológicas, o leitor atento notará a existência dessas três dicotomias essenciais à clínica psiquiátrica: mente & cérebro, desenvolvimento & processo e biologia & humanismo, atravessando todos os seus capítulos ora nas entrelinhas, ora emergindo de forma explícita. Não há a pretensão de superá-las, mas ao menos de contemplá-las em sua natureza delineadora do diagnóstico psiquiátrico. O seu reconhecimento não deve desencorajar o estudo da psiquiatria, mas antes ser um estímulo ao envolvimento com uma especialidade e uma arte clínica que incorpora tão bem a essência das divisões da natureza humana.
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Deliriu111
Franklin Santana Santos Renerio Fraguas Jr. Orestes Vicente Forlenza
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 567 Epidemiologia do de/irium, 568
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Etiologia, 568 Fisiopatologia, 569 Quadro clínico, 570 Diagnóstico e exames complementares, 571 Confusion Assessment Method (CAM), 572 Diagnóstico diferencial, 574 Tratamento não farmacológico, 574 Tratamento farmacológico, 575 Considerações finais, 578 Minicaso clínico, 579 Questões, 580 Referências bibliográficas, 580
Introdução O delirium é uma síndrome clínica caracterizada pelo início abrupto de um distúrbio da consciência e uma mudança na cognição acompanhados por uma flutuação de sintomas e evidência de uma etiologia orgânica. Essa síndrome indica que existe uma insuficiência de funcionamento cerebral, especialmente das funções cognitivas superiores, como a habilidade de pensar, bem como de sustentar e manter a atenção, que pode estar acompanhada de uma miríade de outros sintomas. O delirium é um dos problemas neuropsiquiátricos mais comuns na prática clínica. Por exemplo, em paciente com câncer avançado, muitas vezes não é reconhecido e consequentemente não tratado 1•2 • Vários estudos têm mostrado uma associação entre a ocorrência de um episódio de delirium e o prolongamento do tempo de permanência hospitalar, o aumento do risco de institucionalização e de ocorrência de irrever-
1. Reconhecer a importância do delirium como uma síndrome mental orgânica que afeta indivíduos de todas as faixas etárias, sobretudo idosos. 2. Reconhecer os fatores de risco comumente associados ao delirium. 3. Identificar os sinais e sintomas fundamentais do delirium e reconhecer os seus subtipos. 4. Realizar o diagnóstico diferencial do delirium e conduzir a sua propedêutica complementar. 5. Orientar a terapêutica farmacológica e não farmacológica do delirium.
sibilidade funcional, declínio cognitivo e mortalidade3•4 . O delirium está associado com uma morbidade aumentada no paciente com doença avançada, causando estresse nos pacientes, nos familiares e na equipe de saúde5-7 . O delirium pode interferir dramaticamente no reconhecimento e no controle de outros sintomas físicos e psicológicos, tais como dor 8- 10 , especialmente em paciente sob cuidados paliativos. Pode se apresentar como um evento pré-terminal ou um sinal de um distúrbio fisiológico significativo, geralmente envolvendo múltiplas etiologias médicas, incluindo infecção, insuficiência de órgãos e efeitos colaterais de medicamentos (incluindo opioides), bem como síndromes paraneoplásicas extremamente raras 11- 13 • Infelizmente, o delirium muitas vezes não é reconhecido, ou é diagnosticado de maneira errônea em vários contextos médicos; como consequência, é tratado de maneira inapropriada, ou mesmo não tratado na prática hospitalar e ambulatorial. Profissionais, especialistas ou não,
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
devem ser capazes de realizar o diagnóstico de forma acurada, fazer o diagnóstico das causas etiológicas envolvidas com seu aparecimento e entender os riscos e benefícios das intervenções farmacológicas e não farmacológicas atualmente disponíveis. Este capítulo se propõe a revisar de maneira ampla, mas simultaneamente prática, a abordagem dessa síndrome tão comum.
Epidemiologia do delirium Em diferentes estudos, observa-se ampla variação nas estimativas de prevalência e de incidência de delirium. Essa variabilidade se deve principalmente às dificuldades na identificação dos casos (em razão de suas manifestações clínicas múltiplas e fugazes); à sensibilidade do método de detecção; aos critérios diagnósticos variados; às diferenças amostrais; ao tipo de cuidado clínico a que estão submetidos os pacientes do estudo; e a outros fatores 14. A incidência de delirium tem aumentado, e isso se deve em parte ao crescimento no número de idosos, que são particularmente suscetíveis15-18. Além disso, pacientes com demência estão ainda em maior risco 14 e como a prevalência de demência aumenta com o envelhecimento da população, pode-se esperar um aumento considerável na incidência de delirium nos próximos anos nas unidades de cuidados paliativos. A prevalência de delirium na comunidade 14 foi examinada no interessante e didático trabalho de Folstein et al. 19 no leste de Baltimore (Epidemiological Catchment Area), ainda não superado. Utilizando critérios do DSMIII, esses autores obtiveram uma prevalência de delirium em indivíduos residentes na comunidade e com idades acima de 18 anos de 0,4%. Naqueles com mais de 55 anos, a prevalência era 1,1 %. E, no grupo etário com mais de 85 anos, a prevalência era discrepantemente mais elevada: 13,6%. Demonstrou-se, assim, que a prevalência de delirium na comunidade cresce notavelmente com a idade, sendo baixa no adulto jovem e elevada no final da vida. Um estudo mais recente, realizado na Finlândia, trouxe estimativas semelhantes 14'20. No âmbito hospitalar, o delirium é a segunda síndrome neuropsiquiátrica mais frequente, perdendo apenas para os transtornos depressivos tomados como um grupo. Em revisão sistemática da literatura, Siddiqi et al. 21examinaram a ocorrência de delirium em estudos que continham 42 coortes de pacientes internados em enfermaria de medicina interna. A prevalência de delirium à admissão variou de 1O a 31% nesses estudos revistos. A incidência de delirium novo por admissão variou de 3 a 29%. A taxa de ocorrência de delirium por admissão variou de 11 a 42%. Dados sobre prognóstico estavam disponíveis para 19 estudos. O delirium se associava a uma maior mortalidade à alta hospitalar e aos 12 meses da alta; a uma maior duração da hospitalização; e a uma maior frequência de institucionalização.
Etiologia A apresentação clínica do delirium resulta da combinação de fatores predisponentes e fatores precipitantes (Quadro I). O delirium, sobretudo nos pacientes idosos, geralmente tem etiologia multifatorial. Existe uma relação inversa entre a gravidade do dano necessário para precipitar delirium e a vulnerabilidade preexistente do paciente22. Talvez o fator predisponente mais importante seja a idade e outros fatores predisponentes incluem sexo masculino, déficit visual, demência prévia, depressão, imobilidade, fratura do fêmur, desidratação, alcoolismo, gra-
Quadro I
Fatores de risco para desenvolver delirium
Fatores predisponentes (vulnerabilidade) Idade acima de 65 anos Prejuízo cognitivo preexistente Episódio prévio de delirium Distúrbio do sistema nervoso central (SNC) Lesões nos núcleos da base Aumento da permeabilidade da barreira hematoencefálica Fatores precipitantes (desencadeantes) Ambientais - Isolamento social - Extremos sensoriais (déficits visuais, déficits auditivos) - Imobilidade (restrição física) - Ambiente novo - Estresse Cirúrgicos - Perioperatório - Tipo de cirurgia (p. ex., de quadril) - Procedimento de emergência - Duração da cirurgia Drogas - Polifarmacoterapia - Dependência de drogas/álcool - Uso de droga psicoativa - Drogas específicas (p. ex., anticolinérgicos, benzodiazepínicos, narcóticos) - Quimioterápicos - Terapia biológica (anticorpos monoclonais) - Radiação cerebral Médicos/clínicos - Gravidade da(s) comorbidade (s) - Queimaduras - HIV/AIDS - Insuficiência/falência de órgãos - Infecção (p. ex., ITU) - Hipoxemia - Fratura - Hipotermia/febre - Distúrbios metabólicos - Desidratação - Desnutrição (hipoalbuminemia) - Qualquer evento iatrogênico - Uso de sonda vesical - Arritmias -Tabagismo - Câncer
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Quadro 11 geral
Principais causas de delirium decorrente de condição médica
Quadro 111 Principais substâncias ou drogas que podem induzir delirium
Órgão ou sistema
Doença
Sistema nervoso central
Trauma cranioencefálico, convulsão/estado pós-ictal, encefalopatia hipertensiva Doença degenerativa. ataque isquêmico transitório, acidente vascular cerebral Hematoma/hemorragia subdural, hemorragia subaracnoidea Vasculites, doença de Parkinson, esclerose múltipla, hidrocefalia, infecções (meningite, encefalite, abscesso, neurossífilis, HIV) Tumores cerebrais primários, mestástases cerebrais
Distúrbio metabólico/ endócrino
Uremia, insuficiência hepática, anemia, hipoxemia, hipoglicemia/hiperglicemia, avitaminoses (B 1, B6, B12, folato)/ hipervitaminoses (A, D), endocrinopatias (hiper/hipotireoidismo), distúrbio h id roe letrolítico, desequilíbrio acidobásico, síndromes paraneoplásicas
Sistema cardiopulmonar
Infarto do miocárdio, insuficiência cardíaca congestiva, arritmia cardíaca Choque, insuficiência respiratória
Infecções sistêmicas
Bacteremia/fúngicas/virais, sepse
Insuficiência de órgãos
Cardíaca/pulmonar/hepática/renal/ pancreática
rium em 11 a 30% dos casos23 • A relação entre medicações com o delirium é mais clara para medicações anti-
Doenças neoplásicas
lntracraniana/metastática/meníngea, carcinomatose Extracraniana/síndrome paraneoplásica
Outras etiologias sistêmicas
Desregulação térmica (hipotermia/ hipertermia), radiação Estado pós-operatório, imunossupressão, fraturas, deprivação sensorial
colinérgicas com afinidade para receptores muscarínicos, e existem mais de 600 medicações com efeitos colaterais anticolinérgicos. O delirium anticolinérgico é caracteristicamente associado com comportamento agitado e alucinações visuais floridas; entretanto, sinais de toxicidade autonômica periférica podem ou não estar presentes. Todas as medicações com atividade anticolinérgica pura, como a hioscina, poderão em doses consideradas adequadas induzir delirium, especialmente em indivíduos suscetíveis e, portanto, são consideradas de alto risco.
vidade da doença física, acidente vascular cerebral (AVC) e anormalidades metabólicas. Fatores precipitantes (Quadro I) incluem infecção, distúrbios metabólicos, hipoxemia, anemia, retenção urinária, cateterização da bexiga, obstipação, impactação fecal, abstinência alcoólica, cirurgia, insuficiência de órgãos, fatores psicossociais e drogas. Praticamente qualquer droga pode causar delirium em indivíduos suscetíveis (Quadro III); entretanto, certas classes de drogas, como opioides, anticolinérgicos e benzodiazepínicos são particularmente implicados no aparecimento de delirium em pacientes sob o regime de cuidados paliativos. Portanto, muitos pacientes aproximando-se do final da vida têm múltiplos fatores predisponentes para delirium, e é importante minimizá-los sempre que possível. Uma variedade de drogas tem sido relatada por induzir delirium, sendo que os casos de delirium induzido por drogas são muito comuns. Em estudos de idosos hospitalizados, as medicações são a principal causa de deli-
Drogas de abuso
Medicações
Toxinas
Álcool Anfetamina Cannabis Cocaína Alucinógeno lnalantes Opioides Fenciclidina (PCP) Hipno-sedativos (barbitúricos, benzodiazepínicos
Anti- inflamatórios Anestésicos Analgésicos Agentes antiasmáticos Anticonvulsivantes Anti- histamínicos Anti- hipertensivos Antiarrítmicas Antimicrobianos Antiparkinsonianos Simpatomiméticas Medicações gastrointestinais Relaxante muscular Agentes 1munossupressores Corticosteroides Lítio Agentes anticolinérgicos Podofilina (por absorção) Medicação antissecretória
• Anticolinesterase • Inseticidas organofosforados • Monóxido de carbono • Dióxido de carbono • Substâncias voláteis (solventes orgânicos, combustíveis)
Fisiopatologia Embora pouco seja conhecido sobre a neuropatogênese do delirium, os sintomas sugerem que essa síndrome seja o resultado de uma disfunção de múltiplas regiões cerebrais. O entendimento atual de delirium é que envolva uma perturbação potencialmente reversível do processo atencional cerebral em razão de anomalias metabólicas que afetam certos neurotransmissores. Embora o delirium envolva uma ampla gama de disfunções cerebrais, trabalhos recentes em sua fisiopatologia têm sugerido vários modelos etiológicos para essa disfunção 15. É considerado frequentemente uma desordem global e não específica da função cerebral. Essa caracterização pode ser apropriada para delirium causado por amplos processos sistêmicos como hipóxia, hipotermia, hipoglicemia e desordens metabólicas. Entretanto, várias etiologias importantes de delirium podem estar associadas com fisiopatologias mais
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limitadas e específicas do cérebro24 • Em outras palavras, o delirium pode ser visto como um distúrbio global e inespecífica da função cerebral que implica uma disfunção generalizada no metabolismo cerebral ou como uma patologia mais específica e limitada cerebral, que é inicialmente causada pelo desarranjo de um neurotransmissor específico ou um par de neurotransmissores. Cada vez mais, estudos que envolvem marcadores biológicos e neuroimagem sugerem que o delirium é um grupo heterogêneo de diferentes desordens com diferentes sintomatologias. Como exemplo, pode-se citar que perturbações de certos neurotransmissores produzem mudanças fisiopatológicas específicas, resultando em sintomas de delirium. • Substâncias (incluindo medicações) de ação anticolinérgica produzem delirium por meio da supressão da atividade do sistema colinérgico. • Algumas medicações alucinatórias, como o LSD, envolvem antagonismo do sistema serotoninérgico. • A fenciclidina produz delirium bloqueando recep tores de glutamato N -Metil-D-Aspartato (NMDA) no sistema nervoso central. • A encefalopatia hepática e a intoxicação por benzodiazepínicos podem produzir delirium por meio da hiperestimulação do sistema ácido gama-aminobutírico (GABA). • Estados de retirada de benzodiazepínicos, bem como abstinência alcoólica, produzem delirium por meio da subestimulação aguda do sistema GABA. • Em uma variedade de etiologias, tais como o tipo induzido por anticolinérgico, os sintomas de delirium, como alucinações, parecem envolver mais uma perturbação: uma hiperestimulação relativa do sistema meso cortical dopaminérgico responsável por muitos dos achados do delirium hiperativo. Não se deve esquecer que outros agentes podem estar envolvidos com a fisiopatologia do delirium, especialmente citocinas, como o uso de interferon e corticosteroides. O espectro de distúrbios mentais relacionados com esteroides inclui labilidade menor do humor, distúrbios afetivos (mania ou depressão), déficit cognitivo (demência reversível), e delirium (psicose esteroide).
Quadro clínico
to desorganizado e fala incoerente; desorientação temporoespacial ou de pessoa e disfunção de memória (Quadro IV). Anormalidades neurológicas podem estar presentes durante o delirium, incluindo anormalidades corticais ( disgrafia, apraxia construcional, afasia disnômica); anormalidades motoras (tremores, asterixis, mioclônus, e mudança de reflexos e tônus). Lipowski25 descreveu clinicamente dois subtipos de delirium com base nos níveis de consciência e no comportamento psicomotor. Os subtipos incluem o subtipo de delirium hiperativo (agitado, hiperalerta) e o subtipo de delirium hipoativo (letárgico, hipoalerta), conforme mostra a descrição no Quadro V Quadro IV
Características clínicas do delirium.
Cognição Consciência
Obnubilada ou rebaixada em relação ao ambiente.
Atenção
Diminuição da capacidade de focar, manter ou mudar atenção.
Desorientação
Especialmente no tempo e no espaço; falso reconhecimento para pessoas indica maior gravidade.
Linguagem
Dificuldade de encontrar palavras, disnomia e discurso empobrecido, escrita comprometida, perseveração, afasia não fluente, compreensão pobre.
Memória
Lembrança imediata e memória recente comprometidas. Dificuldades de aprendizagem.
Funções executivas
Dificuldades no planejamento e organização; dificuldade em executar tarefas com objetivos definidos.
Sintomas psicóticos Delírios
Geralmente não sistematizados, pouco estruturados.
Percepções anormais
Alucinações, ilusões, interpretação errônea.
Enxaqueca menstrual
AINH (também podem ser usados como profiláticos). Triptanos de ação longa (naratriptano, frovatriptano).
Distúrbios do sono Distúrbios do ciclo sono-vigília
Sonolência diurna, despertar noturno, dificuldade em iniciar sono.
Alterações psicomotoras
Os achados clínicos do delirium são bem numerosos e incluem uma variedade de sintomas neuropsiquiátricos, que também são comuns em outros distúrbios psiquiátricos, como depressão, demência e psicoses. Esses achados incluem sintomas prodrômicos (agitação, ansiedade, distúrbio do sono e irritabilidade); curso rápido com flutuações; atenção reduzida (distratibilidade), consciência alterada, atividade psicomotora aumentada ou diminuída, distúrbio do ciclo sono-vigília; sintomas afetivos (labilidade emocional, tristeza, raiva, ou euforia); percepções alteradas (falsas percepções, ilusões, e alucinações), pensamen-
Lentificação, agitação (ou flutuação entre ambos). Disartria, disfagia, tremor, ataxia, dispraxia, quedas e convulsões. Alterações afetivas Estimulação
Excitabilidade, irritabilidade, agitação, alegria demasiada.
Labilidade
Flutuações do humor.
Disforia e/ou apatia
Depressão, perplexidade, medo e ideação suicida.
Distúrbios autonômicos Taquicardia, midríase, febre, sudorese, palidez ou rubor facial, obstipação ou diarreia, resposta pilomotora excessiva.
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Quadro V
Subtipos clínicos do delirium
Tipo Sintomas
Exemplos Metabolismo fisiopatológico
Hiperativo
Hipoativo
Hiperalerta Agitado
Hipoalerta Letárgico
Alucinações Ilusões Hiperatividade
Sonolência Rebaixado Bradicinésico
Síndromes de abstinência (benzodiazepínicos/álcool)
Encefalopatias (hepática/metabólica)
Metabolismo cerebral normal/elevado EEG rápido ou normal Atividade de GABA reduzida
Diminuição global da atividade cerebral EEG diminuição difusa Hiperestimulação do sistema GAMA
Paciente em delirium Não Tratar imediatamente
Sim
•
Anormalidade de sinais vitais, oximetria ou glicemia capilar?
~ Não Tomografia computadorizada à entrada
Sim
•
Sinais neurológicos focais ou de hipertensão intracraniana?
~
Não
Eletrólitos anormais?
Sim
--l)lo~ Corrigir anormalidade
metabólica
Não Gasometria anormal?
Outros pesquisadores têm proposto um subtipo mis to com a alternância dos achados dos dois primeiros tipos. Ross 26 sugere que a forma hiperativa é mais frequen temente caracterizada por alucinações, ilusões, agitação e desorientação, enquanto a forma hipoativa é caracterizada por confusão e sedação, mas raramente é acompanhada por alucinações, distúrbios perceptuais e ilusões. Ross sugere ainda que subtipos de delirium específico estão relacionados a etiologias do delirium e têm fisiopatologias próprias. Ele afirma que as formas hiperativas são típicas das síndromes de abstinência e do delirium induzidos por anticolinérgicos, enquanto as formas hipoativas são típicas das encefalopatias metabólicas e hepáticas, intoxicação aguda por sedativos ou hipóxia. Estima-se que aproximadamente dois terços dos casos de delirium são hipoativos ou mistos; portanto, o paciente delirioso agita do, tipicamente descrito na literatura, ao qual os clínicos estão mais familiarizados, corresponde à minoria dos casos que ocorrem nas unidades de cuidados paliativos, bem como em outras unidades 27•28 .
Diagnóstico e exames complementares O diagnóstico de delirium inclui uma avaliação de causas potencialmente reversíveis. Um exame físico completo deveria obter evidências de sepse, desidratação ou insuficiência de um órgão importante. Medicações que poderiam contribuir para o delirium deveriam ser revistas. O rastreio de alterações sistêmicas por meio de parâmetros laboratoriais permitirá a avaliação da possível participação de anormalidades metabólicas, como hipercalcemia, ou outros problemas como hipoxemia ou coagulação intravascular disseminada. Exames de imagem cerebral (tomografia computadorizada ou ressonância magnética) e do líquido cerebroespinal podem ser apropriados em algumas situações. O Algoritmo 1 apresenta esquematicamente as condutas diagnósticas mais importantes no manejo do delirium.
Lembrar: -Deficiência B 12, se anem1a. -H IV, se leucopenia. Sim -Infecção sistêmica, se • leucocitose. (Rx de tórax, Urina 1, discut ir indicação de exame de LCR, pesquisar novamente sinais clínicos de infecção)
Sim
--l)lo~
Tratar distúrbio ácido-básico, hipóxia, hipercapnia
Não Hemograma anormal? Não Função hepática ou renal anormais?
Sim,.. Insufi ciência hepática ou urem1a
Outras investigações: toxicológico, níveis de medicação (especialmente digoxina, opioides, anticonvulsivantes, antidepressivos tri cíclicos, lítio, benzodiazepínicos); abstinência de drogas (álcool, tabaco, outras); função de tireoide, tomografia computadorizada de crânio, eletroencefalograma. Em idosos, mesmo se o hemograma for normal, deve-se realizar radiografia de tórax e análise da uri na.
Algoritmo 1
Abordagem prática do paciente com suspeita de delirium
Em pacientes com câncer avançado, por exemplo, pode ser resultado tanto dos efeitos diretos como indiretos da doença no SNC, ou de tratamentos (medicações, distúrbio eletrolítico, insuficiência de um órgão ou sistema vital, infecção, complicações vasculares). O achado essencial de um episódio de delirium é um distúrbio da consciência (ou da capacidade de ficar em alerta) acompanhado por uma mudança na cognição, que não pode ser atribuído a uma demência preexistente ou envolver demência. O distúrbio se desenvolve durante um curto período de tempo, geralmente de horas a dias, e tende a flutuar durante o curso do dia. Existe uma evidência da história, exame físico ou testes laboratoriais de que essa síndrome é uma consequência fisio lógica direta de uma condição médica, da intoxicação por uma substância ou abstinência, do uso de medicações ou exposição a toxinas, ou uma combinação desses fatores (Quadros VI e VII). Esses são os critérios exigidos pelo DSM-IV para o diagnóstico de delirium. Historicamente, o maior objetivo da avaliação clínica na área do delirium tem sido a identificação de pacien-
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tes deliriosos por meio do uso de questionários de screening, instrumentos que são rápida e facilmente aplicados por profissionais minimamente treinados. Mais recentemente, com o desenvolvimento de critérios de classificação diagnóstica padronizados do DSM-IV e a Classificação Internacional de Doenças (CID-10), a confirmação formal do diagnóstico de delirium para propósitos de pesquisa tem se tornado importante. A ênfase tem mudado para instrumentos diagnósticos mais sofisticados que maximizam a precisão e podem ser usados por clínicos treinados ou aplicadores não clínicos. Medição da severidade do delirium, quando diagnosticado, diferenciação de subtipos, descrição de delirium em crianças e identificação de novos subtipos de etiologias específicas (p. ex., delirium induzido por opioides) são alguns dos desafios encontrados na prática clínica.
Quadro VI
Critérios diagnósticos para delirium segundo o DSM-IV
A. Critérios diagnósticos para delirium decorrente de condições clínicas gera1s. B. Distúrbio da consciência (clareza reduzida de percepção do ambiente) com capacidade reduzida de centralizar, sustentar e mudar a atenção. C. Uma mudança na cognição, como déficit de memória, desorientação, distúrbio de linguagem ou o desenvolvimento de um distúrbio perceptual que não pode ser creditado a um preexistente, estabelecido ou que envolva demência. O. O distúrbio se desenvolve em um curto período de tempo (usualmente horas a dias) e tende a flutuar durante o curso do dia. E. Existe evidência da história, exame físico ou achados laboratoriais de que o distúrbio é causado por consequências fisiológicas diretas de uma condição clínica geral.
Quadro VIl
Critérios diagnósticos para delirium segundo o DSM-IV
Delirium por intoxicação por substâncias
Os sintomas dos critérios A, B e C (Quadro VI) se desenvolveram durante a intoxicação da substância. O uso da medicação é etiologicamente relacionado ao distúrbio. Delirium por abstinência de substâncias
Existem evidências da história, exame físico ou achados laboratoriais de que os sintomas dos critérios A, B e C se desenvolveram durante ou logo após a síndrome de abstinência. Delirium decorrente de múltiplas etiologias
Existem evidências da história, exame físico ou achados laboratoriais de que o delirium tem mais que uma etiologia (p. ex., mais que uma condição médica etiológica ou condição médica mais intoxicação por substância ou efeito colateral de medicamento). Delirium não especificado
Essa categoria deveria ser usada para diagnosticar o delirium que não encontra os critérios de qualquer dos tipos específicos de delirium descritos nesta seção. Por exemplo, em uma apresentação clínica, suspeita-se que a patologia seja decorrente de uma condição médica ou do uso de substâncias, mas não existe evidência suficiente para estabelecer uma etiologia específica. O delirium decorrente de causas não listadas nesta seção (p. ex., deprivação sensorial).
Os instrumentos para avaliação de delirium têm sido agrupados em cinco categorias: a ) Testes que medem o déficit cognitivo, os quais normalmente são usados para o screening de delirium (como o minimental). b) Instrumentos para o diagnóstico de delirium baseados nos critérios do DSM-IV ou CID-10, os quais são usados para fazer um julgamento tipo sim/não na presença ou ausência de delirium, como o Confusion Assessment Method (CAM). c) Escalas de pontuação numérica de delirium específica, as quais atribuem escores que podem ser usados para avaliar a acurácia do diagnóstico ou estimar a severidade do delirium (como a Delirium Rating Scale - DRS). d) Escalas de avaliação de severidade do delirium (como a Memorial Delirium Assessment Seale). e) Exames laboratoriais e paraclínicos para correlacionar os achados fisiológicos com o delirium (a participação precisa desses testes no rastreio diagnóstico e na avaliação da gravidade do delirium, que têm de ser ainda completamente determinados).
Confusion Assessment Method (CAM) Esse instrumento foi criado para ser utilizado na avaliação inicial de delirium por profissionais não treinados na área psiquiátrica. Contém nove itens derivados do DSM-III- R e traduzidos para linguagem de fácil compreensao: 1) início agudo e flutuação dos sintomas; 2) distúrbio da atenção; 3) pensamento desorganizado; 4) alteração do nível de consciência; 5) desorientação; 6) prejuízo da memória; 7) distúrbio da percepção; 8) agitação ou retardo psicomotor; 9) alteração do ciclo sono-vigília. Não há escore na sua realização, e sim respostas afirmativas ou não de cada item, baseadas na observação direta ou entrevista do avaliador. A partir desses critérios, foi composto um algoritmo no qual a presença dos critérios 1 e 2 associada ao critério 3 ou 4 estabelece o diagnóstico de delirium pelo CAM. No estudo de validação, o CAM mostrou altos índices de sensibilidade, especificidade e confiabilidade (90-100,0%, 90-95,0% e k 3 0,80, respectivamente). É um dos instrumentos mais utilizados na investigação de delirium. Foi validado para língua portuguesa, sendo que essa versão pode ser utilizada como método auxiliar no diagnóstico de delirium em pacientes brasileiros idosos (norma), segundo recomendações do Departamento Científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia (Quadro VIII).
47 DELIRIUM
De todos os profissionais dos cuidados de saúde, a equipe de enfermagem tem um nível único e privilegiado de contato com pacientes deliriosos, em termos de proximidade e consistência durante qualquer período das 24 h. Portanto, a equipe de enfermagem pode observar sintomas deliriosos ou sundowning quando eles mais comumente ocorrem: ao entardecer ou à noite. A despeito de terem essa vantagem singular para detecção, sem uma sistematização na abordagem da avaliação, os enfermeiros frequentemente não fazem o diagnóstico de delirium, es-
Quadro VIII
pecialmente o subtipo hipoativo 29 • Especialmente à beira do leito, o uso do CAM pelo corpo de enfermagem previamente treinado pode ser de grande utilidade para o diagnóstico precoce de delirium. Quando confrontado com delirium no paciente criticamente enfermo ou mo ribundo, o clínico deveria sempre formular o diagnóstico diferencial da etiologia. Existe um debate em andamento com relação à extensão de quão apropriada é a avaliação diagnóstica que deveria ser realizada em pacientes moribundos com delirium terminaP.
Método de avaliação de confusão (CAM) para detecção de delirium
Critérios
Características
Critério 1
Início agudo e flutuação no curso Há evidência de uma alteração aguda do estado mental do paciente em relação ao nível de base? O comportamento alterado flutua ao longo do dia, ou a gravidade aumenta e diminui?
Critério 2
Desatenção A. O paciente teve dificuldade de focalizar sua atenção (p. ex., distraiu-se facilmente ou teve dificuldade de acompanhar o que estava sendo dito?) Ausente em todo o momento da entrevista. Presente em algum momento da entrevista, porém de forma leve. Presente em algum momento da entrevista, de forma marcante. Incerto. B. Se presente ou anormal, esse comportamento variou durante a entrevista Osto é, tendeu a surgir e desaparecer ou aumentar e diminuir de gravidade?) Sim/Não/Incerto/Não aplicável C. Se presente ou anormal, descreva o comportamento.
Critério 3
Pensamento desorganizado
O pensamento do paciente estava desorganizado ou incoerente (p. ex.. discurso sem sentido, conversação irrelevante, fluxo vago ou ilógico de ideias, mudanças imprevistas de assunto)? Critério 4
Alteração do nível de consciência Como você caracterizaria o nível de consciência do paciente? Alerta (normal) Anormal: - Hiperalerta (vigilante, hiperativo, excessivamente sensível a estímulos do ambiente) - Letárgico (sonolento, porém fácil de acordar) - Estupor (difícil de acordar) - Coma (não se consegue acordar o paciente) Incerto
Critério 5
Desorientação
O paciente ficou desorientado durante a entrevista (p. ex., pensando que estava em outro lugar que não o hospital, que estava no leito errado, ou tendo noção errada da hora do dia)? Critério 6
Distúrbio (prejuízo da memória)
O paciente apresentou problemas de memória durante a entrevista (p. ex.. incapacidade de se lembrar de eventos do hospital, ou dificuldade para se lembrar de instruções)? Critério 7
O paciente apresentou sinais de distúrbios de percepção, como alucinações, ilusões ou interpretações errôneas (pensando que algum objeto fixo se movimentava)?
Critério 8
Agitação psicomotora A. Durante a entrevista, o paciente apresentou aumento anormal da atividade motora, como agitação, beliscar de cobertas, tamborilar com os dedos ou mudança súbita e frequente de posição? Retardo psicomotor B. Durante a entrevista, o paciente apresentou diminuição anormal da atividade motora, como letargia, olhar fixo no vazio, permanência na mesma posição por longo tempo ou lentidão exagerada de movimentos?
Critério 9
Alteração do ciclo sono-vigília
O paciente apresentou sinais de alteração do ciclo sono-vigília, como sonolência diurna excessiva e insônia noturna? *Instruções: o delirium é diagnosticado pela presença dos critérios 1, 2 e 3 ou 1, 2 e 4.
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No Quadro IX, sugere-se um roteiro de avaliação a ser realizado em um paciente com suspeita de delirium.
Diagnóstico diferencial Muitos dos achados clínicos e sintomas do delirium podem ser associados com outras desordens psiquiátricas, como depressão, mania, psicose e demência (Quadro X). Por exemplo, pacientes deliriosos não raramente apresentam distúrbios emocionais como ansiedade, medo, depressão, irritabilidade, raiva, euforia, apatia, e labilidade emocional22 • O subtipo hipoativo é em geral no início falsamente diagnosticado como depressão. Sintomas de depressão maior, incluindo nível alterado de atividade (h ipoatividade), insônia, capacidade de concentração reduzida, humor deprimido, e ainda ideação suicida, podem sobrepor-se aos sintomas do delirium, fazendo um diagnóstico acurado mais difícil de ser realizado. Para distinguir delirium de depressão, particularmente no contexto de uma doença avançada, uma avaliação do início
Quadro IX lirium
Roteiro de avaliação de um paciente com suspeita de de-
Avaliação do paciente Estado físico • Histórico • Exame físico e neurológico • Revisão dos sinais vitais e dos registros de anestesia, se for pós-operatório • Revisão dos prontuários clínicos e registros psiquiátricos • Revisão cuidadosa de medicações e correlação com mudanças de comportamento Estado mental • Entrevista com o paciente, família e equipe de saúde • Testes cognitivos (MEEM, CAM, teste do relógio, digit span) Exames laboratoriais básicos (para todos os pacientes com delirium) • Bioquímica do sangue: sódio, potássio, cálcio iônico, glicose, ureia, creatinina • Hemograma • Eletrocardiograma (ECG) • Radiografia de tórax • Gasometria arterial ou saturação de oxigênio • Urina I Exames laboratoriais adicionais (solicitados conforme condição clínica) • Função hepática e enzimas hepáticas: se houver suspeita de hepatopatia • Urocultura com antibiograma • Hemocultura • Medidas dos níveis séricos de medicações (p. ex., digoxina, opioides, teofilina, fenobarbital, lítio) • Coleta e análise LCR • TC crânio ou RM do encéfalo • Eletroencefalograma (EEG) • Rastreamento (screening) de drogas na urina • Exames séricos (p. ex., VDRL, metais pesados, vitamina B12, anticorpos antinucleares (ANA), porfirinas urinárias, sorologia para HIV)
e a sequência temporal dos sintomas depressivos e cognitivos são particularmente úteis. É importante notar que o grau de comprometimento cognitivo é mais acentuado e persistente no delirium que na depressão, com um início temporal mais abrupto. Além disso, no delirium, os distúrbios da capacidade de alerta e da consciência estão presentes, enquanto, geralmente, não estão na depressão. De maneira semelhante, um episódio maníaco pode compartilhar achados de delirium, especialmente os subtipos misto e hiperativo. Novamente, o início temporal e o curso dos sintomas, a presença do distúrbio da consciência, bem como da cognição, e a identificação de uma etiologia médica presumida no delirium são úteis para diferenciar essas condições22 • O delirium que se apresenta com alucinações vívidas e ilusões deve ser distinguido de uma variedade de desordens psicóticas. Nessa patologia, tais sintomas psicóticos ocorrem no contexto de um distúrbio da consciência, sendo acompanhados também por comprometimento da memória e desorientação, o que não acontece com as desordens psicóticas. Delírios no delirium tendem a ser pobremente organizados e de início abrupto, e as alucinações são predominantemente visuais ou tácteis. Entretanto, o diagnóstico diferencial mais comum é se o paciente tem delirium ou demência ou delirium concomitante com demência. Ambos são comprometimentos cognitivos e compartilham achados clínicos comuns, tais como déficit de memória, pensamento, julgamento e desorientação. O paciente com demência está em alerta e não tem distúrbio da consciência ou da vigilância, que são característicos do delirium. O início temporal dos sintomas na demência é mais subagudo e cronicamente progressivo, e o ciclo sono-vigília parece estar menos prejudicado. Os achados mais proeminentes na demência são as dificuldades com a memória de curto e longo prazo, comprometimento de julgamento e pensamento abstrato, bem como distúrbios das funções corticais superiores (como afasia e apraxia). A reversibilidade do processo de delirium é frequentemente possível no paciente com doença avançada; entretanto, pode não ser reversível nas últimas 24 a 48 horas.
Tratamento não farmacológico Dentre as abordagens não farmacológicas do delirium (Quadro XI), a primordial seria a prevenção, uma vez que há evidências de associação dessa síndrome com maior mortalidade, morbidade, declínio das funções cognitivas, bem como institucionalização e custos em sistemas hospitalares. O monitoramento clínico adequado, assim como os treinamentos e cuidados por equipes multidisciplinares, incluindo enfermagem, clínicos, psiquiatras e neurologistas, pode ser eficiente na profilaxia do delirium. Como atitude extremamente benéfica no tratamento não medicamentoso dessa síndrome, também tem sido enfatizada
47 DELIRIUM
Quadro X
Diagnóstico diferencial entre delirium e outras condições clínicas Delirium
Demência
Depressão
Psicose reativa breve
Esquizofrenia
Início
Agudo
Insidioso
Variável
Súbito
Variável
Curso em 24horas
Flutuante
Progressivo
Variação diurna
Estável
Variável
Nível de consciência
Prejudicado (obnubilado)
Prejudicado em estágio avançado
Geralmente normal
Preservado
Preservado
Atenção e ' . me mona
Desatenção Déficit de memória
Déficit de memória Sem déficit de atenção evidente
Déficit atencional Memória preservada
Pode ser seletivamente prejudicada
Memória preservada
Reversibilidade
Sim, fase inicial
Não
Sim, mas pode ser recorrente
Sim
Não, com exacerbações
Psicose presente?
Comum (geralmente ideação simples e não elaborada)
Incomum
Ocorre em porcentagem pequena
Sim, ilusões e alucinações
Comum (sintomas psicóticos complexos)
EEG
Lentificação generalizada em 800/o
Lentificação generalizada em 80%
Geralmente normal
Geralmente normal
Geralmente normal
Avaliação e tratamento
Requer atenção médica como uma urgência
Precisa de terapia cron1ca e acompanhamento adequado
Terapia com antidepressivos por pelo menos 9 meses e psicoterapia
Necessita avaliação e tratamento psiquiátrico
Necessita avaliação e tratamento psiquiátrico
Quadro XI
A
•
Recomendações universais para o tratamento do
delirium Evitar uso de múltiplas medicações, especialmente aquelas envolvidas na etiologia de delirium. Retirar lentamente as medicações que podem causar algum tipo de abstinência. Fornecer dicas de memória como calendários, fotos de familiares, rótulos e relógio. Tentar não mudar a localização do leito do paciente. Evitar intervenções que limitem a mobilidade do paciente (p. ex.. acesso endovenoso). Sempre permitir ao paciente o uso de suas lentes corretivas ou aparelho de audição. Manter uma boa iluminação durante o dia e limitar à noite (apagar luzes, se possível). Intervenções farmacológicas inespecíficas: está indicada para pacientes cuja alteração de comportamento impõe riscos a ele ou a outra pessoa, ou que impeça o tratamento. Intervenções ambientais e de apoio e esclarecimento ao paciente e à família.
a necessidade de propiciar circunstâncias ambientais que facilitem a reorientação do paciente idoso. Para o tratamento adequado da causa de base e intervenções não farmacológicas pertinentes, deve haver evidências clínicas de que a alteração cognitiva é consequência direta de uma condição médica; havendo necessidade de uma avaliação clínico-laboratorial, cuidadosa e abrangente, de múltiplos fatores, possivelmente etiológicos.
Segundo Inouye30, dentre as quatro razões mais comuns para a ocorrência do delirium no ambiente hospitalar, destacam-se, em ordem decrescente: 1) iatrogenia por medicamentos facilitadores de de-
lirium; 2) falha no reconhecimento precoce desse estado
agudo confusional; 3) atitudes errôneas ou negligentes para o cuidado das pessoas idosas; 4) redução, por razões econômicas, do número de funcionários habilitados para o cuidado dos pacientes mais idosos. Detectar e, possivelmente, intervir em fatores de risco é essencial para reduzir o início do quadro e, portanto, uma maneira eficaz para a prevenção e tratamento. A prevenção pode ser a mais importante das intervenções e pode se dividir em: primária, que representa a introdução de medidas para diminuir incidência; e secundária, que visa diminuir a gravidade e a morbidade imediatas; e terciária, que procura enfrentar as consequências de longo prazo da enfermidade. Há um consenso de que o manejo começa com a educação dos profissionais envolvidos para identificação de sinais e sintomas, além de estratégias para prevenção. No Quadro XII, Dutra31 enumera as principais intervenções preventivas no manejo do de-
lirium. Tratamento farmacológico Terapias não farmacológicas são importantes, mas elas sozinhas com frequência não são suficientes para controlar os sintomas do delirium, e o tratamento sintomáti-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
co com medicações neurolépticas e/ou sedativas pode ser necessário (Quadro XIII). O objetivo do tratamento farmacológico é reduzir o desconforto e estresse, além do comportamento de risco perigoso (p. ex., agitação e alucinações). É importante ressaltar que essas medicações não tratam o delirium, nem revertem as causas etiológicas subjacentes. Os Quadros XIII, XIV e XV ilustram detalhes sobre o mecanismo de ação, os efeitos colaterais no sistema nervoso central e as doses de equivalência dos principais antipsicóticos. O tratamento do delirium ainda necessita de guidelines baseados em evidência bem estabelecidos. A maioria dos especialistas e guidelines consideram o haloperidol, um antipsicótico de alta potência, como o tratamento de primeira linha em pacientes criticamente enfermos e naqueles com doenças avançadas32 -35• Quadro XII. intervenção
Abordagem não farmacológica do delirium: níveis de
Intervenção aguda Supervisão constante do estado mental pela enfermagem associada às equipes médicas, de fisioterapia e de fonoaudiologia. Identificar fatores etiológicos. Avaliar estado psiquiátrico do paciente e estimular psicoeducação com equipe hospitalar e familiares. Revisão sistemática da medicação (reavaliação de sua manutenção ou retirada), avaliação de eletrólitos, hidratação e nutrição. Intervenção ambiental Remoção de objetos perigosos próximos ao paciente. Visitas breves, mas constantes de familiares e suportes como relógios, fotos de entes queridos, calendários, comunicação clara e concisa, bem como ambiente adequadamente iluminado, que pode ajudar na localização temporoespacial e reduzir atividade alucinatória visual. Encorajar padrões de horário para regular sono e manter os ambientes calmos. Estar atento para alterações do comportamento que impliquem agressão para si e terceiros. Em caso de imobilização, fazer procedimento adequado e respeitar normas, com cautela para evitar danos ao paciente; e cogitar a possibilidade de contenção química. Intervenções de apoio, somáticas e de planejamento pós-de/irium Amenizar desconforto somático (analgesia adequada ou alívio de outro sintoma). Estar atento aos efeitos adversos das medicações utilizadas para a alteração do comportamento (neurolépticos, benzodiazepínicos). Estar atento para as funções hepática e renais, evitando alteração na farmacocinética e dinâmica da medicação; estar atento ao estado nutricional do paciente. Evitar iatrogenias que provocam piora na evolução, como quedas, úlceras de decúbito, constipação intestinal, perda do controle da urina, cuidados na colocação de cateter, desidratação, desnutrição, aspiração decorrente da dificuldade na deglutição. Psicoeducação
Diretrizes internacionais sugerem que em idosos e em pacientes com delirium suave a moderadamente agitado, o haloperidol pode ser iniciado com baixa dose, 0,51,0 mg duas a três vezes ao dia até a obtenção do efeito (melhora na paranoia, agitação e medo). Mas esse medicamento pode ser administrado na mesma dosagem acima a cada 45-60 minutos (VO, IM, SC e IV) até a resolução dos sintomas. A via intravascular pode facilitar o início rápido dos efeitos da medicação. Se o acesso venoso não estiver disponível, pode-se começar com administração intramuscular ou subcutânea e mudar para via oral quando possível. A maioria dos pacientes pode ser tratada com haloperidol oral. As doses parenterais são aproximadamente duas vezes mais potentes que as orais. A dose de haloperidol não deveria exceder 24 mg em 24 horas. Em pacientes jovens, sem doença hepática, doses intramusculares de 5-1O mg têm sido usadas para controlar comportamentos agressivos perigosos causados por diferentes desordens psiquiátricas. Antipsicóticos mais novos e atípicos têm sido usados para tratar o delirium. Doses de risperidona são normalmente baixas (por volta de 1 mg/dia), enquanto a olanzapina tem sido administrada em doses que variam de 4,5-8,2 mg/ dia. A quetiapina foi administrada em um pequeno número de pacientes com doses que variaram de 25-75 mg/dia. A risperidona pode ser iniciada em pacientes idosos com uma dose de 0,25 mg duas vezes ao dia, a olanzapina com uma dose de 1,25-2,5 mg/dia, e quetiapina com uma dose de 12,5 mg-50 mg/dia. Em vários estudos, essas drogas fo ram tão efetivas quanto baixas doses de haloperidoP·35 • Os neurolépticos fenotizínicos mais antigos (promazina, levopromazina e clorpromazina) são raramente usados em delirium por causa dos seus efeitos anticolinérgicos. Um efeito colateral muito raro, mas que ameaça a vida, é a síndrome neuroléptica maligna, que se manifesta por catatonia, rigidez, e hiperpirexia. Os neurolépticos novos usados em pacientes idosos para tratar comportamento agressivo nos que são portadores de demência têm sido associados com um risco aumentado de acidente vascular cerebral e mortalidade36 • Todas as drogas antipsicóticas típicas, especialmente aquelas com baixa potência (p. ex., clorpromazina e tiaridozina), e algumas drogas antipsicóticas atípicas têm efeitos que mimetizam a quinidina e podem induzir o prolongamento do intervalo QT e arritmia cardíaca. Um eletrocardiograma de base é necessário. Quando um prolongamento substancial do intervalo QT é observado (p. ex.,> 450 ms ou um aumento de 25% comparado com ECG prévio), o antipsicótico deve ser suspenso. É importante mencionar que todos os antipsicóticos típicos e atípicos podem causar delirium. Os benzodiazepínicos têm sua participação, de maneira isolada, ou em combinação com outras drogas, como o haloperidol e clonidina, mais especificamente na síndrome de abstinência alcoólica. Em todos os outros casos, a menos que a sedação seja especificamente desejada, os ben-
47 DELIRIUM
Quadro XIII
Medicações comumente utilizadas no tratamento do delirium7
Nome genérico
Dose diária aproximada
Via de administração
Efeitos colaterais
Comentários
0,5-5 mg a cada 2- 12 h 10-75mg a cada 4-8 h 12,5-50 mg a cada 4- 12 h 12,5-50 mg a cada 4-8 h 10-50 mg a cada 8- 12 h 0,625-2,5 mg a cada 4-8 h
VO,IV, SC VO,IM VO, SC, IV, IM, via retal VO,IV, SC
• Efeitos extrapiramidais podem ocorrer com doses> 4,5 mg/d •• Monitorar QT (ECG) ••• Mais sedativo e anticolinérgico que o haloperidol, pode causar hipotensão
• Permanece como terapia de 18 escolha •• Pode-se acrescentar lorazepam (0,5- 1 mg) a cada 2/4 h para pacientes agitados ••• Preferível em pacientes agitados por maior efeito sedativo
2,5-20 mg a cada 12-24 h 0,5-3 mg a cada 12-24 h 12,5-200 mg a cada 12-24 h 10-80 mg a cada 12-24 h
VO,IM
VO,IM
5-30 mg a cada 24 h
vo
• Sedação é o principal efeito colateral •• Efeitos adversos extrapiramidais podem ocorrer com doses > 6 mg/d; hipotensão ortostática ••• Sedação, hipotensão ortostática •••• Monitorar intervalo QT no ECG ••••• Monitorar acatisia
• Idosos, demência pré-existente e subtipo hipoativo estão associados com pior resposta •• Experiência clínica sugere melhores resultados em pacientes com delirium hipoativo ••• Preferido em pacientes com mal de Parkinson ou demência de Lewy em razão do seu baixo risco de efeito extrapiramidal ••••• Experiência clínica sugere melhor resultado em delirium hipoativo
0,5-2,0 mg a cada 1-4 h 30- 100 mg a cada 24hs
VO, IV, IM
Síndrome paradoxal
Preferível lorazepam
Neurolépticos Haloperidol* Tioridazina•• Clorpromazina••• Metrotrimeprazina Molindona Droperidol
vo IV, IM
Antipsicóticos atípicos Olanzapina* Risperidona•• Quetiapina••• Ziprazidona•••• (dose máx. IM 40 mg) Aripiprazole*****
vo vo
Benzodiazepínicos Lorazepam Midazolam
1v. se
Anestésicos
Pode ser seletivamente prejudicada 10-70 mg/hora (< 200- 400 mg/d)
Propofol
Quadro XIV
Depressão respiratória
IV
Perfil farmacodinâmico dos neurolépticos e antipsicóticos atípicos
Receptores:
D1
D2
D4
Alfa-1
Haloperidol
+
+++
++
+
Alfa-2
++
++
Levomepromazina
++
+++
+
++
+
+
++
+
+
Risperidona
+
Olanzapina
+
Quetiapina
++
5-HT2a
5-HT2c
Muscarínicos
+
Clorpromazina
Prometazina
Hi 1
++ ++
++
++
++ ++
+++
+
+
+
++
+
+
++
+
+++
+: fraco; ++: moderado; +++: forte.
zodiazepínicos deveriam ser evitados por aumentarem a frequência e piorarem os sintomas do delirium 22 • Nos casos de delirium agitado, refratário a terapia neuroléptica, é comum na prática clínica acrescentar uma medicação sedativa não neuroléptica para controlar a agitação, as alucinações e o comportamento perigoso.
Os benzodiazepínicos podem ser úteis nessa situação, sendo o lorazepam a droga de primeira linha. O lorazepam pode ser dado na dose de 2 mg IV ou IM, que pode ser repetida após um período seguro de 15 a 30 minutos após administração venosa e 60 minutos após administração intramuscular.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro XV
•
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Perfil de efeitos colaterais dos antipsicóticos utilizados no tratamento do delirium Típicos
Clozapina
Risperidona
Olanzapina
Quetiapina
Ziprazidona
Aripiprazol
Sintomas extrapiramidais
+I+++
o
OI+
OI+
o
OI+
OI+
Discinesia tard ia
+I+++
OI+
OI+
OI+
OI+
OI+
OI+
Convulsões
OI+
+++
o
++
o
OI+
OI+
Sedação
+I+++
+++
OI+
++
++
+
o
Efeitos anticolinérgicos
+I+++
+++
o
++
o
OI+
OI+
O: ausente;
+: fraco; ++: moderado; +++: forte.
Quadro XVI
Equivalência de doses dos antipsicóticos típicos e atípicos
Clorpromazi na
100 mg
Olanzapina
5mg
Clozapina
12,5 mg
Ziprazi dona
60 mg
Haloperidol
2 mg
Quetiapina
75 mg
Risperi dona
2 mg
Aripiprazol
7,5 mg
Casos de dores maiores requerem o monitoramento e a disponibilidade de aparelho para intubação orotraqueal e ventilação mecânica, além de profissional com experiência. No delirium por abstinência alcoólica é comum associar haloperidol ao lorazepam na tentativa de obter uma tranquilização sem sedação excessiva. Nos pacientes refratários aos neurolépticos e sedativos, pode-se eventualmente fazer uso de medicações anti-histamínicas e agonistas alfa-2-adrenérgicos. A tentativa de normalizar o tempo de sono noturno é um objetivo e desafio nos casos de delirium hiperativo ou misto. O sono noturno está geralmente perturbado na maioria dos casos dos pacientes com delirium, e agitação com comportamento perturbador pode ocorrer à noite, complicando a insônia. Caso o uso de haloperidol não seja suficiente para acalmar o paciente, pode-se substituílo por quetiapina ou adicionar prometazina. Se a sedação obtida com benzodiazepínicos não é profunda e contínua de maneira adequada, o risco de piora do delirium é substancial. O Algoritmo 2 ilustra algumas condutas usuais no manejo agudo de pacientes com delirium.
Considerações finais A associação entre delirium e demência foi revista criticamente por Wacker et al. 36 • O envelhecimento e o comprometimento cognitivo são, sabidamente, fatores de risco conhecidos para o delirium e, em pacientes idosos, a ocorrência de delirium aumenta o reconhecimento de quadros demenciais preexistentes. Em outras palavras, a constatação de episódio de delirium aumenta a sensibilidade para o diagnóstico de demência37. Em contrapartida, estudos prospectivos com indivíduos idosos portadores de doenças sistêmicas, agrupados segundo a ocorrência ou não de delirium, observaram maior risco de evo -
lução para demência entre aqueles que apresentaram um ou mais episódios de delirium. Em uma revisão sistemática da literatura sobre a associação entre delirium e comprometimento cognitivo, Jackson et al. 38 identificaram nove estudos que sustentam a associação entre a ocorrência de um novo episódio de delirium em pacientes não dementes e a ulterior evolução com deterioração cognitiva. Em um importante estudo sobre esse tema, Lundstrom et al. 39 avaliaram as funções cognitivas de pacientes submetidos a artroplastias de quadril, por causa de fraturas do colo do fêmur, que também foram classificados segundo a ocorrência ou não de delirium pós-operatório. Os grupos foram seguidos prospectivamente por um período de quatro anos, constatando-se maior incidência de síndromes demenciais (69%) entre os indivíduos que apresentaram delirium, contra a incidência de 20% entre aqueles que não apresentaram. Isso mostra que a sua ocorrência em indivíduos cognitivamente intactos sinaliza maior vulnerabilidade para a demência. Em um estudo realizado recentemente, Wacker et al. 40 demonstraram que indivíduos idosos, não demenciados, que desenvolveram um episódio de delirium no período perioperatório de artroplastias de quadril ou joelho tiveram um pior prognóstico cognitivo e uma maior incidência de demência na evolução em longo prazo. Tanto os estudos que demonstram a associação entre delirium e o diagnóstico de demência preexistente, quanto os estudos que demonstram prejuízos cognitivos maiores entre os sujeitos que tiveram antecedente de delirium, corroboram a hipótese de que a ocorrência de delirium sinaliza uma maior vulnerabilidade para a evolução para demência. Embora existam evidências de uma deterioração cognitiva mais acelerada em indivíduos enfermos com delirium, as razões determinantes dessa evo lução ainda se encontram no plano especulativo. Uma hi-
47 DELIRIUM
Delírium diagnosticado
Manuseio farmacológico dos sintomas do delirium
Delirium Hiperativo/agitado
Delírium hipoativo
HaloperidoiiVNO 2-15 mg cada 4-12 horas e à noite para agitação
Identifique e trate a etiologia
-
Avalie a segurança e a assegure no ambiente
Haloperidol VO/IV 0,5-6 mg cada 1-2 horas (à noite: para agitação e alucinações)
Acrescente benzatropina 0,5-1mg IV 0/0 , 3x) para EEP quando necessário
-
Acrescente lorazepam 0,5-2 mg IV cada 4 horas para aumentar sedação
Acrescente benzatropina 0,5-1 mg IV 0/0,3x) para EPP quando necessário
Mude para clorpromazina 25-50 mg IV cada 4-12 horas para aumentar sedação
Ajuste a dosagem para otimizar o controle dos sintomas Reduza a dose se sedado
Use Olanzapina 2,5-5 mg VO 2x/dia (ou 0,5-1 mg VO 2-3 x/dia) se EEP é um fator preocupante
Continue por até 7 dias ou até a etiologia ser revertida e descontinue lentamente
Algoritmo 2
+--------
Mude para olanzapina/risperidona se o esquema não é tol erado ou se EEP é um problema
Algoritmo do tratamento do delirium de acordo com o subtipo
pótese aceita é a de que os pacientes que apresentam delirium tendem a ser mais doentes do que os controles pareados. O delirium seria então desencadeado ou potencializado pelas condições mórbidas subjacentes a essas doenças. Essa hipótese condiz com o fato de que os estudos que comprovam a associação entre delirium e demência identificam também maiores índices de gravidade clínica, como fatores covariantes da ocorrência de delirium38. De fato, os pacientes com delirium são mais acometidos por doenças cardiovasculares e neurológicas, além de condições associadas ao desenvolvimento de demência vascular4 1• Portanto, uma possível interpretação acerca do maior risco de evolução para demência a partir de um episódio de delirium baseia -se na sobreposição de fatores de risco. Por exemplo, a ocorrência de diabetes melito, que é um fator de risco estabelecido para o delirium, também está associada ao desenvolvimento de alterações vasculares e, portanto, de doença cerebrovascular. Dessa forma, um mesmo fator está associado aos dois desfechos neurocognitivos. Além disso, não se pode excluir a possibilidade de que a ocorrência de delirium possa provocar danos cerebrais, os quais por sua vez estariam associados ao risco de demência. No entanto, há estudos que relatam ausência de associação significativa entre o tempo de duração do episódio de delirium e o grau de
comprometimento cognitivo, em pacientes criticamente enfermos seguidos por seis meses, o que sugere que a ocorrência do episódio de delirium per se, e não a sua magnitude, é um forte fator preditivo da deterioração cognitiva na evolução em longo termo. Por fim, a ocorrência de delirium pode também sinalizar a existência de algum outro acometimento orgânico cerebral subjacente, até então indetectável, sustentando a hipótese da existência de um ou mais processos patogênicos cerebrais comuns ao delirium e à demência.
Minicaso clínico Sra. Amélia, 75 anos, viúva, aposentada (ex-professora do ensino fundamental), nível superior completo (faculdade de educação). Há um ano sua filha vem notando que Sra. A tem se esquecido com mais facilidade dos seus compromissos e tem dificuldade para se lembrar do nome das pessoas. Nas reuniões famil iares tornou-se um pouco repetitiva, contando as mesmas histórias sem perceber. Porém, não há evidência de prejuízo funcional significativo, pois ainda faz trabalhos comun itários e cuida de suas finanças com relativa autonomia. Em uma consulta recente. em que havia manifestado preocupação com a memória, seu clínico a tranquilizou dizendo que o seu desempenho estava dentro do esperado para sua faixa etária (informa a filha que a paciente obte-
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•
SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
ve pontuação próxima do escore máximo no Miniexame do Estado Mental, ou seja, 27 pontos). Mesmo assim, foi submetida a exames laboratoriais (que se mostraram normais) e a uma tomografia computadorizada do crânio, que revelou "apenas uma discreta diminuição do tamanho do cérebro" [sic.]. Há uma semana a Sra. A apresentou queixa de dor em baixo ventre, urina turva e malcheirosa e febre baixa; estava aguardando a marcação de consulta pelo convênio quando, há dois dias, ficou muito confusa, desorientada, deixou de reconhecer os parentes, não sabia onde estava e dizia que havia bichos na parede e perto da cama. Passou a noite toda sem dormir e dizia que havia pessoas dentro da sua casa, mas não sabia quem era. Apesar disso, na manhã seguinte parecia estar "lúcida" novamente, mas voltou a se tornar confusa, agitada e, desta vez, agressiva horas depois. Foi levada então ao pronto-socorro.
Questões 1. A respeito do caso da Sra. Amélia, é correto afirmar que: a) O quadro atual é compatível com o diagnóstico de demência do tipo Alzheimer, e o médico anterior equivocou-se por não introduzir de imediato o tratamento com drogas antidemênCia.
b) A hipótese mais provável é a da ocorrência de um evento isquêmico cerebral (AVC), o que explica a deterioração rápida em relação ao estado cognitivo prévio. c) É improvável que uma infecção do trato urinário esteja associada à alteração mental descrita; a propedêutica complementar deve, necessariamente, incluir o exame do líquor e um novo exame de neuroimagem. d) Um indivíduo idoso pode desenvolver um episódio de delirium em decorrência de perturbações clínicas relativamente simples, como uma infecção urinária, erisipela ou broncopneumonia. e) A caracterização do estado cognitivo prévio é irrelevante nesse caso, pois se trata de delirium de causa infecciosa.
2. São verdadeiras as seguintes afirmações a respeito do delirium, exceto: a) Trata-se de uma sínd rome neurocomportamental aguda, decorrente da quebra transitória da homeostase cerebral. b) Invariavelmente evolui para demência, independentemente da causa do delirium. c) Deve-se a perturbações sistêmicas ou do sistema nervoso central. d) Está associado a um maior tempo de permanência hospitalar e pior recuperação funcional. e) Medicamentos de ação anticolinérgica e opiáceos devem ser evitados sempre que possível em pacientes com alto risco. 3. Assinale a alternativa incorreta a respeito do delirium: a) Alterações metabólicas, deficiências nutricionais, intoxicações e reações adversas a medicamentos são causas comuns. b) O de/irium hipoativo é comumente subdiagnosticado, mesmo em enfermarias clínicas e cirúrgicas.
c) Alterações do ciclo sono-vignia ocorrem apenas nos casos de delirium de causa infecciosa. d) Em doenças sistêmicas, o delirium pode ser resultado dos efeitos diretos ou indiretos da doença sobre a homeostase cerebral, ou dos efeitos adversos dos medicamentos util izados para o seu tratamento. e) O delirium de abstinência alcoólica é frequentemente representado pelas formas hiperativas.
4. Assinale a alternativa incorreta, no que diz respeito às manifestações neuropsíquicas do delirium: a) O comprometimento atencional é uma manifestação central, e dele podem decorrer a desorientação temporoespacial, os déficits de memória e outras falhas cognitivas. b) As alterações sensoperceptivas são comuns, incluindo as ilusões visuais e auditivas. c) Disgrafia, apraxia construcional, afasia disnômica e alterações motoras (tremores, asterixis, mioclônus, hiper-reflexia e hipertonia) podem ocorrer nos casos de de/irium. d) A memória recente está prejudicada no de/irium; amnésia retrógrada e anterógrada estão geralmente presentes, durando por algum tempo. e) No delirium, os delírios são geralmente sistematizados e duradouros, de natureza persecutória, e podem ser secundários às alucinações auditivas. 5. Sobre a abordagem terapêutica do delirium, assinale a resposta incorreta: a) O tratamento farmacológico deve ser adotado em conjunto com o manejo não farmacológico. b) A prevenção do delirium envolve a identificação de fatores iatrogênicos, como a polifarmácia e o emprego de medicamentos com ação anticolinérgica, sedativo-hipnóticos e opiáceos. c) Assim como ocorre no tratamento das psicoses primárias, o haloperidol é uma medicação ultrapassada e não deve ser empregado em pacientes com delirium. d) A ocorrência de síndrome neuroléptica maligna e alterações do ritmo cardíaco são possíveis complicações do tratamento do de/irium com neurolépticos. e) A identificação da causa de base deve ser objetivo prioritário no manejo agudo do delirium.
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47 DELIRIUM
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581
Demências
Orestes Vicente Forlenza Ivan Aprahamian Tíbor R. Perroco Cássio Machado de Campos Bottino
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 582 Conceito, 582 Epidemiologia, 583
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Etiologia e fisiopatologia, 584 Fatores de risco para demência, 584 Diagnóstico da síndrome demencial e exames complementares, 586 Critérios diagnósticos, 586 Instrumentos para rastreio de demência, 587 Quadro clínico, diagnóstico e tratamento de demências, 590 Doença de Alzheimer, 590 Demência vascular, 594 Demência com corpúsculos de Lewy, 596 Demência frontotemporal, 597 Considerações finais, 598 Perturbações comportamentais nas demências, 598 Minicaso clínico, 599 Questões, 599 Referências bibliográficas, 600
Introdução O crescimento gradual da população idosa nos países desenvolvidos, como por exemplo nos países da Europa ocidental, EUA e Canadá, tem sido descrito há alguns anos. Entretanto, desde 1980, mais da metade das pessoas com mais de 60 anos está vivendo nos países em desenvolvimento, apontando as projeções que, por volta de 2025, três quartos destes indivíduos estarão vivendo nesses países'. Entre as nações em desenvolvimento, o Brasil é o país com maior aumento percentual da população de idosos em todo o mundo, com o grupo acima de 60 anos aumentando 15 vezes de 1950 a 2025, enquanto sua população como um todo deve crescer apenas 5 vezes nesse período'. Examinando os resultados do censo populacional brasileiro, realizado em 2000, constatamos que a faixa da população acima de 60 anos, que correspondia a 4,7% em 1960, aumentou para 6,1% em 1980, saltou para 8,5% em 2000, e para 9,1% em 20062 • As projeções indicam que em 2025,
1. Compreender os aspectos epidemiológicos das demências e o
impacto do crescimento populacional sobre a prevalência dos transtornos demenciantes. 2. Reconhecer uma síndrome demencial com base em suas manifestações clínicas. 3. Realizar o diagnóstico diferencial entre as formas mais importantes de demência no idoso. 4. Interpretar os instrumentos de rastreio cognitivo, os testes laboratoriais e os exames de imagem que dão subsídio ao diagnóstico das demências. 5. Orientar a terapêutica farmacológica das demências mais prevalentes.
nossa população, com mais de 60 anos totalizará, 31,2 milhões de indivíduos'. Dados de 1992, no Brasil, revelavam uma expectativa média de vida de 67,3 anos, duas vezes maior do que no início do século, e de 72,3 anos em 20062. Podemos observar, a partir dos dados apresentados que, em todo o mundo, assim como no Brasil, existe uma tendência de aumento do número total e percentual da população de idosos, o que provavelmente terá repercussões significativas nos serviços de saúde e na sociedade de uma maneira geral. Nos países desenvolvidos acontecerá um grande aumento da população com mais de 85 anos, enquanto nos países em desenvolvimento, como o Brasil, deverá ocorrer um grande aumento da população idosa, principalmente na faixa etária entre 60 e 80 anos de idade, nas próximas décadas.
Conceito Demência é uma síndrome caracterizada pelo declínio da capacidade intelectual, suficientemente grave para interferir nas atividades sociais ou profissionais, que independe de distúrbio do estado de consciência (ou da vi-
48 DEMÊNCIAS
gília) e é causada por comprometimento do sistema nervoso central. A síndrome demencial pode ser causada por um grupo heterogêneo de doenças que tem em comum a alteração das funções cognitivas - memória, linguagem, práxis, capacidade de reconhecer e identificar objetos, abstração, organização, capacidade de planejamento e sequenciamento. Engloba doenças degenerativas do sistema nervoso central (SNC) como a doença de Alzheimer (DA), lesões cerebrovasculares e infecciosas. O diagnóstico precoce pode, em alguns casos, reverter o processo e em outros amenizar suas consequências. O termo demência vem do latim, dementia (de+ mentia), que significa "ausência de mente'~ No século XX, pesquisadores mo dificaram o conceito herdado do século XVIII que associava o termo a um estado irreversível e terminal.
Epidemiologia Entre as doenças mentais observadas nos pacientes idosos, a demência é citada como uma das mais frequentes. Uma revisão de 47 estudos de prevalência de demência, entre 1945 e 1987, foi publicada por Jorm et al. 3 • As principais conclusões deste estudo clássico foram: as taxas de prevalência de demência variam muito, em função de diferenças metodológicas entre os estudos; a relação entre prevalência e idade é consistente nos trabalhos, com as taxas dobrando a cada 5,1 anos; DA é mais comum entre mulheres e é mais prevalente nos países do oeste da Europa, enquanto que demência por múltiplos infartos é mais comum na Rússia e Japão. Considerando apenas os estudos que investigaram pacientes com mais de 65 anos, com demência leve a moderada, as taxas de prevalência variaram de 2 a 18,5%, relatando a maior parte desses estudos taxas entre 4,5 e 8,6%3 • Vários autores que investigaram a incidência de demência e DA encontraram elevações importantes das taxas com o aumento da idade4•5 • Outro achado interessante, relatado nesses estudos em que DA e demência vascular (DV) foram comparadas, foi a constatação de que o aumento de incidência ocorreu principalmente em função da DA, porque as taxas da DV permaneceram estáveis ou declinaram nas faixas etárias mais avançadas5. Em uma metanálise, Gao et al. 6 relataram um aumento das taxas de incidência para demência e DA, com o aumento da idade, mas uma diminuição da aceleração das taxas de incidência, nos 12 estudos revisados. Essas taxas anuais de incidência variaram de O, 11%, na faixa de 60 a 64 anos, a 8,67%, na faixa acima de 95 anos. Em outra metánalise, Jorm e Jolley? avaliaram 23 estudos de incidência de demência, publicados de 1966 a 1997 (segundo a base de dados PubMed). Os resultados mostraram um aumento linear da incidência de demência e da DA com o aumento da idade, sem a ocorrência de estabilização até, ao menos, 90 anos de idade. Após os 90 anos de idade, seria impossível afirmar se continuaria ocorrendo aumento, devido aos poucos dados de incidência disponíveis em indivíduos desta
faixa etária. Com relação ao sexo, observou-se uma tendência de uma maior incidência de DA entre mulheres mais idosas, e de uma maior incidência de DV nos homens mais jovens7 . O possível resultado do aumento da prevalência de demência associado ao crescimento da nossa população de idosos pode ser inferido, a partir de estudos norte-americanos que calcularam o custo anual direto e indireto da assistência a pacientes com DA. Considerando que, em 1995, existiam nos EUA 1,72 milhões de pacientes diagnosticados com DA, tratados a um custo deUS$ 38 mil por indivíduo (excluindo os custos de morbidade e morte prematura), teríamos um gasto anual de aproximadamente US$ 65 bilhões8 • Em um estudo de consenso re cente sobre a prevalência global de demência, os autores9 estimaram que 24,3 milhões de pessoas têm demência hoje, com 4,6 milhões de novos casos por ano (um novo caso a cada 7 segundos), e que a maior parte das pessoas com demência vive nos países em desenvolvimento (60% em 2001, aumentando para 71% em 2040). Portanto, podemos supor que os gastos diretos e indiretos com o tratamento dos casos de demência no Brasil terão um pro fundo impacto em nosso país nas próximas décadas. Procurando avaliar melhor a distribuição destes quadros na população idosa, em todo o mundo, uma revisão sistemática de estudos de prevalência de demência, publicados no período de 1994 a 2000, feita por Lopes e Bottino10 mostrou uma taxa de prevalência de demência, a partir dos 65 anos, ao redor de 6%, com tendência de elevação com o aumento da idade (Tabela I). Este resultado, no entanto, diferiu da metanálise feita por Ritche e Kildea11, que observaram uma queda da prevalência na idade acima de 80 anos, e do trabalho de Wernicke e Reischies 12, que encontraram um platô na prevalência de demência, após os 95 anos de idade. Esta divergência com o nosso levantamento, em parte, pode ter ocorrido devido ao uso de uma outra base de dados utilizada na metanálise, e ao tamanho da amostra investigada nesse estudo. Em outra revisão sistemática e metanálise recente, avaliando 8 estudos de prevalência de demência de base
Tabela I
Efeito da idade sobre as taxas de prevalência de demência
Faixa etária (anos)
Número de estudos avaliados
Taxa média (Ofo)t (lc 950fo)
65-69
17
1,2 (0,8 - 1,5)
70-74
19
3,7 (2,6 - 4,7)
3,0
75-79
21
7,9 (6,2 - 9,5)
2,1
80-84
20
16,4 (13,8 - 18,9)
2,0
85-89
16
24,6 (20,5 - 28,6)
1,5
90-94
6
39,9 (34,4 - 45,3)
1,6
> 95
6
54,8 (45,6 - 63,9)
1,3
Aumento das taxas 1
t Taxa média de prevalência de demência. :l: Tamanho do aumento das taxas, em comparação com a taxa anterior.
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584
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNDROMES PSICOPATOLÓGICAS
populacional, feitos em 6 diferentes países da América Latina, a prevalência global(> 65 anos) foi de 7,1% (IC 95%: 6,8 a 7,4), semelhante a prevalência observada em países desenvolvidos. Entretanto, a prevalência em indivíduos relativamente jovens (65 a 69 anos) foi mais alta nos estudos da América Latina, o que pode ter acontecido devido a maior mortalidade observada nos países da nossa região, como comentaremos novamente a seguir. Os autores descreveram que a prevalência de demência em analfabetos foi duas vezes maior do que em idosos alfabetizados, e que a doença de Alzheimer foi a causa mais comum de demência nos estudos avaliados 13 . Com relação à etiologia, a proporção doença de Alzheimer: demência vascular (DA:DV) ficou acima de 4:1 nos países ocidentais, destacando-se o estudo sul-americano (Brasil) 1\ que encontrou uma razão DA:DV, 2 a 3 vezes maior do que a das outras regiões (comparação entre os continentes). No continente asiático houve uma inversão desta relação em 25% dos estudos, com taxas maiores de demência vascular do que de doença de Alzheimer, e no Japão observou-se uma mudança histórica, com taxas decrescentes de demência vascular.
Etiologia e fisiopatologia O Quadro I apresenta, esquematicamente, as múltiplas etiologias das síndromes demenciais. Os fatores etiológicos e os mecanismos fisiopatológicos das demências mais prevalentes - a saber, doença de Alzheimer, demência vascular, demência com corpúsculos de Lewy e demência frontotemporal - serão discutidos adiante separadamente, juntamente com as respectivas condutas terapêuticas. A caracterização das formas menos prevalentes de demências está além do escopo deste capítulo e poderá ser encontrada em detalhe em outra publicação desta série 15 • A seguir, apresentaremos os aspectos etiopatogênicos comuns às síndromes demenciais.
Fatores de risco para demência Estudos epidemiológicos internacionais forneceram pistas importantes sobre a etiologia das demências, em geral, e da DA, em particular, principalmente a partir de estudos caso-controle. De acordo com Cooper16, uma das principais fontes destes dados foi a reanálise feita a partir de vários estudos caso-controle europeus (Eurodem). Alguns dos principais achados positivos foram resumidos na Tabela II. O fator de risco mais consistentemente associado ao risco de desenvolver demência é a idade, associação que já foi comprovada não só em estudos de prevalência, mas também em estudos de incidência. Em relação aos fatores genéticos, o fato de alguns gêmeos monozigóticos serem discordantes para DA indica que o genótipo não pode ser considerado como o único responsável 17• De qualquer maneira, a importância da história familiar de demência
Tabela 11
Fatores de risco para doença de Alzheimer (reanálise
EU RODEM) Risco relativo
Intervalo de confiança de 95%
História familiar de demência
3,5
2,6-4,6
História familiar de doença de Parkinson
2,4
1,0-5,8
História familiar de síndrome de Down
2,7
1,2-5,7
Trauma craniano
1,8
1,3-2,7
Hipotiroidismo
2,3
1,0-5,4
Depressão
1,8
1,2-2,9
Tabagismo
0,8
0,6- 1,O
Fator de risco
Adaptada de Cooper16.
aparece de maneira consistente em vários trabalhos, conferindo um risco 3 ou mais vezes maior aos indivíduos que tenham ao menos um parente de 1o grau afetado. As histórias familiares de doença de Parkinson e de síndrome de Down aparecem consistentemente associadas a um risco aumentado (variando de 2,4 a 2,7 vezes) para a ocorrência de DA. Ainda sobre fatores genéticos sabe-se da importância do gene associado à apoliproteína E (Apo-E), que aumenta o risco de determinados indivíduos desenvolverem a DA. Em estudos epidemiológicos, por exemplo, no de foi encontrada uma relação positiva entre a presença do alelo épsilon 4 (e4) da Apo-E e a ocorrência de DA, confirmando os achados de Henderson et al. 18 que, no entanto, destacaram a influência parcial do alelo e4 sobre o desenvolvimento de DA que, embora seja um inequívoco fator de risco, não é condição nem necessária nem suficiente para o desenvolvimento da doença. Asada et al. 19 não observaram a influência do alelo e4 da Apo-E no surgimento de DA entre os centenários. Um outro grupo de possíveis fatores de risco cuja associação com demência e DA parece ser menos consistente, tais como educação, depressão, terapia de reposição hormonal e uso de antiinflamatórios não hormonais 20 . O baixo nível de escolaridade aparece, em alguns estudos, associado a um risco aumentado para demência, mas não em outros, podendo este possível fator de risco estar associado a algum outro fator ainda não identificado. Outra possível explicação seria a maior reserva funcional dos indivíduos com maior nível de educação ou de inteligência, e ainda uma inadequação dos testes aplicados a sujeitos com baixa escolaridade, causando um viés psicométrico 16 •20 • Baixa educação, também, parece influenciar a frequência dos casos de demência. Ott et al. 21 descreveram maior prevalência entre pessoas de menor nível de escolaridade. Em nosso meio, Herrera et al. 14 descreveram aumento das taxas de prevalência, nos sujeitos com menor nível de escolaridade (analfabetos: 11,8%; sujeitos com mais de 8 anos de escolaridade: 2%).
48 DEMÊNCIAS
Quadro I
Etiologia das demências Doença de Alzheimer (DA)
DA senil (DA de início tardio, esporádica) DA pré-senil (DA de início precoce, familiar)
Degeneraçãolobar
Doença de Pick Afasia progressiva primária (APP) Afasia não-fluente
frontotemporal (DFl)
Degenerativas primárias
Demências subcorticais
Doença de Wilson (degeneração hepatolenticular) Doença de Huntington
Parkinson-plus
Demência com corpúsculos de Lewy Demência na doença de Parkinson Paralisia supranuclear progressiva (PSP) Degeneração corticobasal Atrofia de múltiplos sistemas
Doenças priônicas
Doença de Creutzfeldt-Jakob Insônia familiar fatal Doença de Gertsmann-Strãussler-Scheinker
Grandes vasos
Demência por múltiplos infartos corticais
Infartos isolados (estratégicos)
Giro angular, tálamo, prosencéfalo basal, territórios das artérias cerebrais anterior e posterior
Microangiopatia (substância branca)
Leucodistrofia subcortical difusa Doença de Binswanger
Lesões cerebrais focais
Tumores cerebrais Hematoma subdural Esclerose múltipla Hidrocefalia de pressão normal (H PN)
Vasculares
Oesões que ocupam espaço)
Lesionais
Traumáticas
Demência pugilística Traumatismo craniencefálico
Infecciosas
Demência associada à AIDS Neurossífilis (paralisia geral progressiva) Neurocisticercose, sarcoidose Meningoencefalites (criptocócica, tuberculosa, fúngica) Encefalites víricas (herpes simples)
Inflamatórias
Vasculites do sistema nervoso central Lúpus eritematoso sistêmico Outras doenças reumatológicas
Intoxicações crônicas
Demência alcoólica Intoxicação por metais pesados (chumbo, mercúrio, arsênico)
Anóxicas I hipóxicas
Intoxicação por monóxido de carbono (anóxia) Anóxia aguda: arritmias cardíacas, parada cardiorrespiratória, anóxia pós-anestésica Crônica: anemias, doença pulmonar obstrutiva crônica
Metabólicas
Tireoidopatias, hiperparatireoidismo Distúrbios hipofisários-adrenais Estados pós-hipoglicêmicos Encefalopatia hepática progressiva crônica Uremia crônica (demência dialítica)
Nutricionais
Deficiências vitamínicas: tiamina (Bl), niacina (B3), cobalamina (812). ácido fólico
Tóxico-metabólicas
A depressão aparece em alguns estudos como outro fator de risco potencial para o aparecimento de demência (e DA) no futuro, mas persiste uma certa controvérsia, pois a depressão poderia constituir um pródromo, mais do que um fator de risco para demência22 • Em uma revisão sistemática e metanálise sobre a relação entre depressão e DA, Ownby et al. 23 revisaram estudos que compararam pacientes deprimidos com pacientes não deprimidos que desenvolveram ou não DA posteriormente, sugerindo que a de-
pressão, mais do que um estado prodrômico, pode ser considerada um fator de risco para DA. Nos últimos anos, diversos estudos relataram uma associação entre a terapia de reposição hormonal (TRH), especialmente a TRH feita com estrógenos via oral, e um risco diminuído para a ocorrência de DA nas mulheres 24. Dados de estudos in vitro e in vivo têm demonstrado o papel neuroprotetor dos estrógenos e seu impacto nos sistemas de neurotransmissão envolvidos com a cognição.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Os dados epidemiológicos têm sugerido uma redução de risco, em relação à DA de 29 a 44%, mas o único ensaio clínico randomizado publicado até hoje, Women's Health Initiative Memory Study, não confirmou esses achados e sugeriu até uma aumento do risco de demência nas mulheres utilizando TRH, comparadas às controles. Esses resultados sugerem que são necessários estudos adicionais, para avaliar o real papel da TRH hormonal em relação ao risco de demência e da DA25 • Alguns estudos têm mostrado uma associação inversa entre artrite reumatoide e uso de anti-inflamatórios não hormonais (AINH) e DA. Em uma revisão sistemática de estudos observacionais (transversais e longitudinais), Szekely et al.26 encontraram uma diminuição do risco de desenvolvimento de doença de Alzheimer em pessoas que fizeram uso de AINH. Entretanto, em outra meta-análise semelhante, De Craen et alP contestaram os benefícios encontrados no uso destas medicações em estudos prospectivos, e alertaram para a necessidade de se identificar padrões específicos no processo inflamatório associado aos quadros de demência antes de se preconizar o uso de intervenções medicamentosas. Existem ainda outros fatores associados ao aparecimento de demência (e DA), citados com alguma frequência em outros estudos, como, gênero, trauma cranioencefálico e tabagismo. Com relação ao gênero, alguns trabalhos relataram um aumento do risco de DA para mulheres\ enquanto em outros a ocorrência de trauma cranioencefálico (TCE) foi associada a um aumento do risco para DA. Por outro lado, outras evidências têm indicado que as mulheres, portadoras do alelo Apo-E e4, teriam um risco significativamente maior do que homens portadores deste alelo para desenvolver DA28 ; e que o risco aumentado para DA ocorreria somente nos indivíduos portadores do alelo e4, que sofreram TCE prévio29 • Associação inversa entre tabagismo e DA foi relatada em alguns estudos, sugerindo que o hábito de fumar poderia conferir alguma proteção contra a ocorrência de demência30• Entretanto, alguns estudos de incidência não encontraram essa asso ciação inversa entre tabagismo e a ocorrência de DA3 1• A relação de possíveis fatores de risco para demência e DA é imensa e um levantamento completo foge dos objetivos deste capítulo. Outros fatores como a atividade física têm sido associados a risco menor de desenvolvimento de comprometimento cognitivo e demência em estudos populacionais prospectivos. Laurin et al. 32, avaliando 4.615 idosos em um período de 5 anos, observaram associação entre "níveis altos de atividade física'' e "riscos" reduzidos de comprometimento cognitivo, DA e demência de qualquer etiologia. Rovio et aP 3, examinando 1.449 idosos de 65 a 79 anos, após um tempo médio de seguimento de 21 anos, encontraram associação entre "atividade física em hora de lazer" na meia vida (pelo menos duas vezes por semana) e um risco reduzido de demência e DA, especialmente entre os Apo -E e4 positivos. Finalmente, Podewils et al. 3 \ examinando 3.375 idosos em um perío-
do de 5,4 anos, observaram um risco menor de demência entre os idosos mais envolvidos em atividades físicas (> 4), quando comparados aos menos envolvidos (0-1). Em uma importante revisão sistemática sobre estudos longitudinais, que avaliaram o efeito das redes de contato social, atividades de lazer físicas e atividades não físicas sobre a cognição e a demência, os resultados sugeriram que estes três componentes de estilo de vida exerceriam um efeito benéfico sobre a cognição e um efeito protetor contra demência35 • Outros estudos recentes têm investigado a relação entre a ingestão de calorias e o aumento da incidência de DA, indicando que mudanças dietéticas podem ser usadas em medidas preventivas para retardar o início da demência. Evidências têm sugerido que uma dieta rica em proteínas (especialmente peixe), vegetais sem amido, frutas com baixo teor de açúcar, e gorduras naturais, com alimentos não processados e com pouco açúcar, associada a consumo moderado de álcool, pode possivelmente prevenir demência e DA36• Fatores de risco igualmente importantes são aqueles relacionados especificamente à ocorrência da segunda causa mais frequente de demência: a demência vascular (DV). Román37 relacionou os principais fatores de risco que estariam associados à demência vascular, tais como, idade avançada, hipertensão arterial sistêmica, diabete, hiperlipidemia, AVC recorrente, doença cardiovascular, tabagismo, hiper-homocisteinemia, e apneia do sono. Não podemos deixar de notar a sobreposição de alguns fatores de risco para DV e DA, indicando que as implicações patogenéticas desta associação necessitam ser melhor exploradas38 • Em resumo, vários estudos recentes que revelaram diversos fatores de risco e proteção que podem influenciar a ocorrência de demência e DA, levaram Fratiglioni e Xiu39 a propor que um estilo de vida ativo e estimulante na velhice, assim como um controle rigoroso de doenças vasculares e de outras doenças crônicas na meia idade, e em idades mais avançadas, pode constituir as duas intervenções possíveis para prevenir ou retardar o início da demência. Isso é particularmente importante à medida que as atenções se voltam para a detecção de déficits cognitivos e funcionais de magnitude mais leve4°, com o objetivo de se estabelecer o diagnóstico das demências em estágios incipientes. Nós acreditamos que, em nosso meio, estratégias como estas podem ser particularmente úteis para reduzir o impacto do aumento do número de pacientes com demência que poderá acontecer nos próximos anos.
Diagnóstico da síndrome demencial e exames complementares Critérios diagnósticos Os critérios diagnósticos mais empregados para demência são os da Associação Psiquiátrica Americana: DSM-III-R, e sua última versão, o DSM-IV-TR; e a déci-
48 DEMÊNCIAS
ma versão da Classificação Internacional de Doenças CID-1O (Quadros II e III). Os resultados dos testes de avaliação neuropsicológica, aliados aos achados dos métodos de neuroimagem, têm sido incluídos nos critérios diagnóstico atuais das demências. Considerando os dois critérios mais utilizados para o diagnóstico de demência - os do DSM e da CID - existe discordância sobre qual deles seria o mais adequado. Como Erkinjuntti et alY destacaram, o emprego de um ou outro critério pode acarretar diferenças significativas de prevalência de demência em uma mesma população. Os principais motivos para as discordâncias observadas entre o DSM e a CID foram fatores como a memória de longa duração, função executiva, presença ou ausência de afasia, atividades sociais e duração dos sintomas (p. ex., os critérios da CID-1O exigem seis meses de duração dos sintomas, tornando-os mais restritivos). No estudo publicado por Erkinjuntti et alY , a proporção de sujeitos com diagnóstico de demência utilizando os critérios da CID-10 e DSM-IV foi de 3,1 e 13,7% respectivamente; para o DSM-III-R foi 17,3%, valor bastante próximo daquele obtido com o consenso clínico - 20,9%. Para o diagnóstico das doenças que causam a síndrome demencial, existem critérios específicos, como aqueles estabelecidos por um grupo de trabalho do Instituto Nacional de Neurologia dos EUA para a doença de Alzheimer (National Institute ofNeurological and Communicative Disorders and Stroke and the Alzheimer's Disease and Related Disorders Association, NINCDS-ADRDA) 42 e para a demência vascular (National Institute of Neuro-
Quadro 11
Demência: critérios diagnósticos segundo DSM-IV
A. Desenvolvimento de déficits cognitivos múltiplos manifestados por: 1. comprometimento de memória de fixação e evocação 2. um (ou mais) das seguintes: a) afasia c) agnosia b) apraxia d) prejuízo de funções executivas B. Os déficits em A 1 e A2 interferem no funcionamento ocupacional ou social, e representam um declínio de níveis prévios de funcionamento C. Não ocorrem exclusivamente com delirium O. Evidência de um distúrbio orgânico
Quadro 111
Demência: critérios diagnósticos segundo CID- 1O
A. Evidência de Demência, de um nível especificado de gravidade, baseado em: A 1 - Prejuízo de memória A2 - Declínio de habilidades intelectuais (pensamento, raciocínio, fi uxo de idéias) (A 1 e A2 causam prejuízo de funcionamento das atividades diárias) B. Ausência de distúrbio de consciência C. Deterioração no controle emocional, comportamento social ou motivação O. A 1 e A2 estão presentes por 6 meses
logical Disorders and Stroke and Association Internationale pour la Recherche et l'Enseignement en Neurosciences, NINDS -AIREN) 4 3 , entre outros, os quais serão comentados a seguir.
Instrumentos para rastreio de demência O Mini-exame do Estado Mental (MMSE) foi elaborado, segundo os seus criadores, para estimar quantitativamente a gravidade do prejuízo cognitivo44 • e também tem sido empregado para classificar demência em níveis de gravidade: leve, moderada e grave45. Em estudo realizado no Brasil, Brucki et al. 46 avaliaram 433 indivíduos saudáveis através do MMSE, relatando que a escolaridade foi o principal fator que influenciou o desempenho dos indivíduos. Os escores medianos por escolaridade foram: para analfabetos, 20; para idade de 1 a 4 anos, 25; de 5 a 8 anos, 26,5; de 9 a 11 anos, 28; para indivíduos com escolaridade superior a 11 anos, 29. Estes valores foram usados como referência para os pontos de corte do MMSE na fase de prevalência do presente estudo e serão utilizados também nesta avaliação de incidência. A seguir, apresentaremos alguns outros testes ou escalas que têm sido citados na literatura como instrumentos capazes de identificar possíveis casos de demência. O IQCODE (The Informant Questionaire on Cognitive Decline in the Elderly) foi um instrumento criado devido a necessidade de avaliar as capacidades intelectuais prévias dos pacientes, e as mudanças destas ao longo do tempo. Muitos estudos demonstraram que o IQCODE é um instrumento válido para o screening de demência na população geral, assim como na prática clínica. Alguns autores têm aplicado versões mais curtas do questionário com apenas 16 e 17 itens. O IQCODE curto e longo foi comparado ao MMSE, como teste de rastreio de demência, no ambulatório do PROTER, IPq-HCFMUSP Os resultados sugeriram que, tanto a versão longa como curta do IQCODE podem ser utilizadas para o rastreio de casos leves a moderados de demência no Brasil47 • Bayer Activities ofDaily Living Scale(B -ADL): Esta escala foi desenvolvida para tentar quantificar as mudanças nas atividades diárias, nos primeiros estágios de demência, sem apresentar um viés cultural significativo A BADL compreende 13 domínios da vida diária, e pede-se ao cuidador ou a um informante, suficientemente familiarizado com o paciente, que avalie o desempenho do indivíduo que está sob seus cuidados. Essa escala tem a vantagem de ser breve e facilmente aplicável por clínicos gerais (e no contexto de atenção primária), tanto para o rastreio, quanto para documentação dos efeitos do tratamento e a progressão da demência. A versão em português da escala B-ADL foi aplicada a pacientes com demência leve a grave e controles, do ambulatório do PROTER - Ipq-HCFMUSP Os resultados indicaram que a B-ADL e o MMSE diferenciaram controles de pacientes idosos com demên-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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cia leve ou moderada, e pacientes com demência leve daqueles com demência moderada48 • Dentre os testes aplicados com o cuidador, o questionário de Pfeffer certamente é o de aplicação mais simpies e rápida. Avalia o desempenho dos sujeitos em 10 atividades da vida diária (com escores variando de O a 30), com escores acima de 5 indicando prejuízo funcional (mínimo= O, máximo= 30). A escala tem boa confiabilidade entre avaliadores e boa correlação com testes cognitivos. No estudo epidemiológico conduzido na cidade de Catanduva, aplicou-se o questionário de atividades funcionais de Pfeffer associado ao MMSE a 1.656 idosos, para selecionar os possíveis casos de demência 14• O Fuld Object Memory Evaluation (FOME) é um instrumento que surgiu tentando minimizar os viéses culturais dos testes cognitivos49 • Foi desenhado para avaliar alguns aspectos do processo de aprendizagem e evocação nos idosos, assim como para prover informação acerca do reconhecimento táctil, discriminação direita - esquerda, e fluência verbal. O poder preditivo do FOME, para identificar pessoas idosas com risco de desenvolver demência no futuro foi investigado por Fuld et ai.S 0, que des creveram, com um ponto de corte de 5 ou menos itens evocados, um valor preditivo positivo de 59% e um valor preditivo negativo de 94%. Em uma comparação com outros testes de uma bateria cognitiva, em uma amostra no Ambulatório de Psiquiatria Geriátrica do LIM-27, do IPqHCFMUSP, o FOME não sofreu influência significativa da escolaridade, mostrando ser uma ferramenta apropria-
A
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da para avaliar a função cognitiva em idosos com vários níveis de escolaridade5 1 • O Teste do Desenho do Relógio (Clock Drawing Test CDT) é um teste simples, amplamente utilizado na avaliação clínica de múltiplas funções cognitivas (memória, capacidade de construção visual e função executiva). A sensibilidade e especificidade médias deste teste (85%) são elevadas, assim como sua correlação com outros testes cognitivos. No Brasil, este teste foi avaliado em uma amostra populacional na cidade de Bambui, em Minas Gerais, mostrando elevada confiabilidade intra e entre avaliadores, utillizando o método de Shulman. Esses resultados indicam que o CDT apresenta adequada confiabilidade, mesmo aplicado a uma população idosa com baixo nível educacional52 • O Teste Breve de Performance Cognitiva ou SKT
(Syndrom Kurztest ou Short Cognitive Performance Test) é outro teste muito usado em nosso meio. Flaks et al. 53, avaliando uma amostra no Ambulatório de Psiquiatria Geriátrica do LIM-27, do Ifq-HCFMUSP, evidenciaram elevada consistência interna, e significativa, correlação do SKT com o MMSE e o teste do relógio. Porém, salientaram que os três testes sofrem influencia da escolaridade. Outro teste, rápido e fácil de ser aplicado, é o teste de fluência verbal (FV), que em nosso meio foi avaliado por Brucki et al.5 4 • Nesse estudo, 336 sujeitos normais e 65 com perda cognitiva foram avaliados com o MMSE e teste de FV (animais). Os autores obtiveram média de 13,8 animais em 1 minuto (até 64 anos= 13,7; 65 anos ou mais= 13,9; Analfabetos= 11,9; 1-4 anos de escolarida-
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_. Testes do Desenho do Relógio em diversos estágios clínicos. A: desenho do relógio normal; B: demência leve; C: demência moderada; 0: demência avançada. Figura 1
48 DEMÊNCIAS
de= 12,8; 4-7 anos= 13,4; 8 anos ou mais= 15,8). Assim definiram os pontos de corte: 9 para sujeitos com menos de 8 anos de escola (sensibilidade= 75% para analfabetos, 100% para até 4 de escola, e 87% para 4 a 7 anos; a especificidade foi respectivamente 79, 84 e 88%). Para o nível educacional alto, a média foi de 13 (sensibilidade= 86% e especificadade = 67%) Uso de testes combinados para o rastreio de demência
Vários testes citados anteriormente surgiram como alternativas para evitar os vieses educacionais e culturais, em contraposição a testes como o MMSE. Por outro lado, sabe-se que não existe um único teste que combine 100% de especificidade e 100% de sensibilidade na detecção de casos de demência. Entretanto, algumas alternativas têm se mostrado promissoras para aumentar a precisão do rastreio de demência leve, como a combinação de testes cognitivos55, quanto a combinação de um teste cognitivo com um teste de avaliação funcional, sendo estes instrumentos complementares56 • Uma estratégia de combinação de instrumentos foi investigada em pacientes do ambulatório do PROTER - IPq HCFMUSP, e controles selecionados do Serviço de Geriatria do HCFMUSP. Foram avaliados 34 pacientes com diagnósticos de demência leve a moderada, segundo critérios do CID-1O, e 59 controles divididos em três grupos, segundo o status socioeconômico e nível educacional (alto, médio e baixo). Os pacientes foram avaliados utilizando-se o MMSE e o FOME, e os informantes foram avaliados com o IQCODE, e a B-ADU7 • Em outro estudo realizado no Brasil, resultados semelhantes foram obtidos com a combinação do MMSE, do CDT e do FV para a identificação de casos de demência, muito embora a sensibilidade para detectar casos de comprometimento cognitivo leve tenha sido menor58 . Os resultados sugeriram que a combinação de um teste cognitivo a escalas funcionais pode melhorar a detecção de casos leves ou moderados de demência, mesmo em amostras de população heterogênea com relação ao nível socioeconômico e educacional como a brasileira. Exames laboratoriais e de neuroimagem para o diagnóstico diferencial das demências
Os exames básicos para diagnóstico de demência, especialmente DA, foram recomendados, no Brasil, pela Departamento Científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia45. Esse consenso enfatizou a importância de investigar os quadros de demência reversível, embora a frequência de demências verdadeiramente reversíveis não seja elevada, a presença de condições mórbidas associadas é situação comum, especialmente nos países em desenvolvimento, fazendo com que tratamentos específicos destas comorbidades possam ter impacto positivo. Tal fato pode justificar a indicação de uma análise laboratorial mais ampla, para investigar demências potencialmente reversíveis e outras doenças concomitantes. As recomendações práticas são:
1. Os exames laboratoriais devem incluir hemogra-
ma completo, concentrações séricas de ureia, creatinina, tiroxina (T4) livre, hormônio tireoestimulante (TSH), albumina, enzimas hepáticas (TGO, TGP, Gama-GT), vitamina B12 e cálcio, reações sorológicas para sífilis e, em pacientes com idade inferior a 60 anos, sorologia para HIV. No futuro, é fundamental conduzir estudos para avaliar a relação custo-benefício da realização destes exames em pacientes com demência. 2. O exame de LCR deve ser considerado nas seguintes situações em pacientes com demência: demência de início pré-senil (antes dos 65 anos), apresentação ou curso clínico atípicos, hidrocefalia comunicante, e ainda qualquer evidência ou suspeita de doença inflamatória ou infecciosa do SNC. 3. Exames de imagem: tomografia computadorizada (TC) de crânio ou, preferencialmente, ressonância magnética (RM), quando disponível, é recomendada para afastar outras doenças (Norma). A TC ou a RM podem estar normais, ou mostrar sinais de atrofia cerebral, compatíveis com o diagnóstico de DA. A tomografia por emissão de fóton único (SPECT) não é recomendada rotineiramente, mas, quando disponível, pode dar suporte ao diagnóstico de DA ou sugerir outras formas de demência (opção prática). As técnicas de RM-volumetria, RM-espectroscopia, subtração e tomografia por emissão de pósitrons (PET) são usadas para fins de pesquisas e podem ser úteis no diagnóstico diferencial com o comprometimento cognitivo leve e na monitorização da progressão da DA em ensaios clínicos. 4. O EEG de rotina e o EEG quantitativo (EEGq) têm uso estabelecido como auxiliar na avaliação de demências e encefalopatias, especialmente quando o diagnóstico permanece aberto após as avaliações clínicas iniciais. A realização de exame de EEG prévio em indivíduos sem queixa cognitiva pode auxiliar em uma comparação futura com outro EEG, quando existir tal declínio (opção prática). P300 é recomendado apenas para pesquisa. Em resumo os exames subsidiários recomendados em nosso meio são: hemograma completo, concentrações séricas de ureia, creatinina, tiroxina (T4) livre, hormônio tireoestimulante (TSH), albumina, enzimas hepáticas (TGO, TGP, Gama-GT), vitamina B12 e cálcio, reações sorológicas para sífilis e, em pacientes com idade inferior a 60 anos, sorologia para HIV Exame do LCR indicado na investigação de demência de início pré-senil (antes dos 65 anos), apresentação ou curso clínico atípicos, hidrocefalia comunicante, e ainda qualquer evidência ou suspeita de doença inflamatória ou infecciosa do SNC. TC (ou preferentemente RM, quando disponível) deve ser realizada sempre, com a finalidade principal de excluir outras possibilidades diagnósticas, além de co-morbidades. O SPECT não é recomendado rotineiramente, mas, quando disponível, pode dar suporte ao diagnóstico de DA ou auxiliar no diagnóstico diferencial com outras causas de demência, especialmente outras formas de demência degenerativa como a demência frontotemporal ou a degeneração cór-
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tico-basal. O EEG é recomendado como método auxiliar, especialmente quando o diagnóstico permanecer aberto após as avaliações clínicas iniciais, situação em que o EEGq também pode ser útil45 . A seguir serão apresentadas as principais características das principais doenças que causam a síndrome demencial, incluindo aspectos do tratamento, que poderão também ser encontrados no Capítulo 86 sobre os inibidores das colinesterases (I-ChE) e antagonistas dos re ceptores N -metil-D -aspartato (NMDA).
Quadro clínico, diagnóstico e tratamento de demências Doença de Alzheimer A doença de Alzheimer (DA) é a principal causa de declínio cognitivo em adultos, sobretudo idosos, representando mais da metade dos casos de demência e podendo alcançar até 60 a 70% de prevalência entre todas as etiologias. Nos Estados Unidos, os 5 milhões de portadores da doença em 2007, passarão para aproximadamente 16 milhões em 205059 • A idade é o principal fator de risco: sua prevalência passa de 0,7% aos 60-64 anos de idade para cerca de 50% nos grupos etários de 90 a 95 anos. Isso revela a magnitude do problema no Brasil, onde já vivem cerca de 15 milhões de indivíduos com mais de sessenta anos. Existem ainda diversos fatores de risco contribuintes para o desenvolvimento da DA além do envelhecimento: a presença de comprometimento cognitivo leve, baixa escolaridade, hipertensão arterial, diabetes mellitus, dislipidemia, síndrome metabólica e obesidade, história familiar, genética predisponente (dependente dos cromossomos 1, 14, 19 e 21), inatividade física e mental, dieta pouco saudável, tabagismo, alcoolismo, entre alguns outros. Parentes de primeiro grau de pacientes com desenvolvimento de DA, com início na terceira idade, apresentam o dobro do risco esperado na população geral. Na patologia, a DA é caracterizada por alta concentração extracelular do peptídeo beta-amiloide, distribuídas em placas difusas e neuríticas (com presença de neurônios em degradação) e por depósitos da proteína tau hiperfosforilada na forma de emaranhados neurofibrilares60. Essas alterações têm início nas regiões entorrinais da formação hipocampal e espalham-se por áreas neo corticais com o progresso da doença. A DA é uma demência de curso insidioso, frequentemente precedida por um quadro de comprometimento cognitivo leve do tipo amnéstico61. A doença tem pro gressão lenta e duração variável entre 2 e 18 anos. O diagnóstico de DA é eminentemente clínico, podendo ser corroborado através de critérios diagnósticos específicos (Quadro IV). Os critérios clínicos de DA provável apresentam sensibilidade e especificidade de 65 e 75%, respectivamente. O diagnóstico da DA definitiva depende da comprovação, ao exame anatomopatológico, das pla-
cas senis e dos emaranhados neurofibrilares nos tecidos cerebrais de pacientes acometidos. Características clínicas
Caracteriza-se clinicamente por distúrbio progressivo da memória, inicialmente episódica (recente), e de outras funções cognitivas, afetando o funcionamento ocupacional e social. O comprometimento da memória verbal e das funções executivas (planejamento, controle mental, solução de problemas, raciocínio, julgamento, abstração) ocorre logo no início da doença; a desorientação temporal e espacial é frequente, mas a demonstração dos déficits pode exigir exame neuropsicológico, dependendo do grau de escolaridade do paciente e do estágio evolutivo da demência. O transtorno da memória afeta os processos de aprendizado e evocação. Ocorre diminuição na aquisição de novas informações, com piora progressiva até que não haja mais nenhum aprendizado novo. Embora haja certa preservação da memória remota em estágios iniciais, a perda de memória torna-se global na evolução da DA. O comprometimento da linguagem (fonêmica, semântica, provérbios) e da função visoespacial ocorre durante a progressão da doença. O indivíduo torna-se progressivamente incapaz de desempenhar atividades da vida diária (trabalho, lazer, vida social) e de cuidar de si mesmo (cuidar do próprio asseio pessoal, vestir-se, alimentar-se), passando a depender de um cuidador. Na doença avançada, observa-se a tríade afasia, apraxia e agnosia, caracterizada pela perda significativa da linguagem, da capacidade de desempe nhar tarefas e de nomear pessoas e objetos. O paciente apresenta alterações motoras limitantes e graves, rebaixamento do nível de consciência e convulsões ao longo da doença. Alterações psíquicas e comportamentais, tais como apatia, depressão, ansiedade, psicose, alterações do sono, agitação psicomotora e agressividade, estão presentes em até 75% dos casos, em algum estágio da evolução da demência, causando grande desgaste para os cuidadores, e necessitando de intervenções farmacológicas pontuais. Os quadros comportamentais não ocorrem tipicamente no início da doença e sim, durante o curso, notadamente num estágio intermediário62 • Diagnóstico
Exames laboratoriais são úteis para exclusão de outras causas de declínio cognitivo. A ressonância magnética de encéfalo também é útil para excluir outros diagnósticos de síndrome demencial, mas pode ser útil para avaliar a existência de atrofia da região hipocampal em casos leves. Métodos de imagem funcional como a tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT) ou a tomografia por emissão de pósitrons (PET) são úteis na investigação de casos leves. O PET é o mais sensível para DA leve e também pode auxiliar no dife rencial entre DA e a demência frontotemporal. Reflete o
48 DEMÊNCIAS
Quadro IV Critérios diagnósticos para demência de Alzheimer do National lnstitute of Neurological and Communicative Disorders and Strok - Alzheimer's Disease and Related Disorders Association (NINCDS-ADRDA) 42 Doença de Alzheimer provável: I - Critérios diagnósticos: 1. Demência estabelecida por exame clínico: (A) documentado pelo Mini- exame do Estado Mental ou similar;
(8) confirmado por avaliação neuropsicológica. 2. Déficits em duas ou mais áreas da cognição. 3. Piora progressiva da memória e de outras funções cognitivas. 4. Sem distúrbio da consciência. 5. Início entre 40 e 90 anos de idade. 6. Ausência de doenças sistêmicas ou cerebrais capazes de provocar déficits da memória e cognição. li - Condições que dão suporte ao diagnóstico: 1. Deterioração progressiva de funções específicas como linguagem, habilidades motoras e perceptuais. 2. Atividades da vida diária comprometidas. 3. História familiar de desordem semelhante. 4. Análise do LCR normal, alterações inespecíficas ao EEG e evidência de atrofia cerebral à tomografia computadorizada. 111 - Achados compatíveis com o diagnóstico de DA: 1. Ocorrência de platôs no curso clínico da doença. 2. Sintomas associados como distúrbio do comportamento, alterações do sono e perda de peso. 3. Outras anormalidades neurológicas e/ou sinais motores, tais como hipertonia, mioclonias, alterações da marcha nas fases avançadas da doença. 4. Crises convulsivas nas fases avançadas da doença. 5. Tomografia computadorizada do crânio normal para a idade. IV - Achados que tornam improvável o diagnóstico de DA: 1. Início súbito, apoplético. 2. Sinais neurológicos focais. 3. Distúrbio da marcha ou crises convulsivas no início ou precocemente no curso da doença. Doença de Alzheimer definitiva: • Critérios para DA provável mais evidências ao exame histopatológico, obtidas através de biópsia ou autópsia (placas neuríticas e emaranhados neurofibrilares acima do esperado para a faixa etária). Doença de Alzheimer possível: 1. Síndrome demencial com início, apresentação e evolução atípicas.
2. Presença de uma segunda desordem sistêmica ou cerebral suficiente para provocar demência, mas que não é considerada como causa primária no caso em questão. 3. Para fins de pesquisa, déficit progressivo em uma única área da cognição.
metabolismo neuronal, ao contrário do SPECT que avalia a perfusão cerebral. O SPECT apresenta variação de sensibilidade de 77 a 80% e especificidade de 65 a 93%, enquanto o PET, 88 a 95% e 62 a 74%, respectivamenté3 • Ainda com relação aos exames, será promissora a utilização de biomarcadores liquóricos, especialmente envolvendo a determinação das concentrações do peptídeo beta-amiloide e da proteína Tau, com sensibilidade variando em 85-94% e especificidade em 83-100% 64 . Trat amento
O tratamento da DA envolve estratégias farmacológicas e intervenções psicossociais para o paciente e seus familiares. Estas últimas não serão abordadas neste capítulo. No campo do tratamento farmacológico, inúmeras substâncias psicoativas têm sido propostas para preservar ou restabelecer a cognição, o comportamento e as habilidades funcionais do paciente com demência. Contudo, os efeitos das drogas hoje aprovadas para o tratamento da DA limitam-se a um retardo discreto na evolução natural da doença, permitindo apenas uma melhora temporária do estado funcional do paciente.
O tratamento farmacológico da DA pode ser definido desde a terapêutica específica, que tem como objetivo reverter processos patofisiológicos que conduzem à morte neuronal e à demência (ainda não desenvolvidos), passando pela terapêutica sintomática, que visa a restaurar, ainda que parcial ou provisoriamente, as capacidades cognitivas e comportamentais, assim como as habilidades funcionais dos pacientes e a terapêutica complementar, que busca o tratamento das manifestações psicológicas e comportamentais, tais como as alterações do humor e os distúrbios do sono. lnibidores das colinesterases
Os inibidores das colinesterases (I -ChE) são as principais drogas licenciadas para o tratamento sintomático da DA (Tabela III). Seu uso baseia-se no pressuposto déficit colinérgico que ocorre na doença, e visa o aumento da disponibilidade sináptica de acetilcolina, através da inibição das suas principais enzimas catalíticas, a acetilcolinesterase e a butirilcolinesterase. Têm efeito sintomático discreto sobre a cognição, beneficiando também certas alterações não cognitivas da demência. As drogas
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela 111
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Terapêutica farmacológica da doença de Alzheimer (drogas antidemência)
Droga
Meia-vida
Efeitos colaterais
Indicação
Dose
Donepezil
70 horas
Náuseas, vômitos, diarreia, cefaleia, insônia, sonhos vívidos, tontura, bradicardia
DA leve, moderada e grave
Início com 5 mg até 15 mg em 4-6 semanas
Rivastigmina
1.5 horas
Náuseas, vômitos, anorexia, perda ponderai
DA leve e moderada
Início com 1,5 mg até 6 mg 2x ao dia em 3-4 semanas
Rivastigmina transdérmica
3 horas
Náuseas, vômitos, anorexia, perda ponderai
DA leve e moderada
Início com adesivo de 4,6 mg, aumentando a cada 4 semanas
Galantamina
7 horas
Náuseas, vômitos, diarréia, anorexia
DA leve e moderada
Início com 8 mg ER até 24 mg ER em 3-4 semanas
Memantina
60-80 horas
Constipação, tontura, cefaléia, dor
DA moderada e grave
Início com 5 mg ao dia. Aumento de 5 mg a cada 12 horas por semana, até o total de 20 mg
liberadas para terapêutica são: donepezil, galantamina e rivastigmina. A rivastigmina inibe a butirilcolinesterase, diferentemente das outras drogas, o que pode resultar em maior incidência de efeitos colaterais periféricos; por outro lado, a butirilcolinesterase também está envolvida na maturação das placas neuríticas, e sua inibição pode representar benefícios adicionais ao tratamento6 5. A resposta aos I -ChE é heterogênea, sendo que alguns pacientes beneficiam -se muito, enquanto outros (cerca de 20%), muito pouco. Estudos controlados por placebo mostram que os benefícios são geralmente observados a partir de 12-18 semanas e, possivelmente, desaparecem após 6-8 semanas da interrupção do tratamento66• Os I -ChE apresentam efeitos significantes, apesar de clinicamente marginais, com relação à cognição, comportamento e funcionalidade para pacientes com DA leve ou moderada67- 69 • Dois estudos de meta-análise recentemente publicados atestam os benefícios sintomáticos dos I -ChP0•71 • Os pacientes recebendo estas drogas permanecem estáveis cognitivamente por 12 meses, em média, para em seguida voltar a declinar numa taxa menor do que naqueles sem a medicação. Uma metanálise de 27 estudos randomizados concluiu que não há diferença no benefício cognitivo entre as três drogas do grupo72 • Durante o período dos estudos realizados (em média, 3 a 6 meses), houve melhora de 2 a 3 pontos da escala Alzheimer 's Disease Assessment Scale for cognition (ADAS-cog) nos pacientes em terapia. Deve-se frisar que o ADAS-cog é uma escala de Oa 70 pontos, sendo que a pontuação crescente representa melhor rendimento cognitivo. Na esfera comportamental, o donepezil foi um pouco melhor do que a rivastigmina e a galantamina. De forma semelhante ao ocorrido com relação às medidas cognitivas, a melhora do comportamento foi observada através do Inventário Neuropsiquiátrico (NPI) com redução entre 1,4 a 4,3 (numa escala de 1 a 144, com a pontuação crescente significando maior gravidade). Com relação à funcionalidade, entre os 14 estudos que mediram atividades diárias, o donepezil foi discretamente melhor73 • Dada a ausência de preditores clínicos ou biológicos de eficácia, justifica-se a prescrição de um I-ChE para to-
dos os pacientes com diagnóstico de DA leve ou moderada, desde que não haja contra-indicações para o seu uso. Evidentemente, o manejo racional dessas medicações envolve também a decisão do momento de interrompê-las. As drogas antidemência devem ser descontinuadas nos seguintes casos: quando o paciente adere mal ao tratamento; se a deterioração cognitiva mantém-se no mesmo ritmo prévio, após 3 a 6 meses de tratamento, sem qualquer benefício comportamental; quando há uma rápida deterioração após um período inicial de estabilização; ou se, após um período de interrupção do tratamento, constatase que a droga não está mais proporcionando benefícios73 • Em todos esses casos, deve-se pesar a relação custo-benefício do tratamento. Os resultados de um grande estudo multicêntrico realizado nos Estados Unidos questionaram essa relação, uma vez que os pacientes tratados com donepezil, embora apresentassem indícios de melhora cognitiva discreta, não evoluíram de forma diferente dos indivíduos não tratados quanto à progressão para incapacitação funcional e institucionalização74 . Entretanto, recente metanálise dos estudos envolvendo tratamento com I -ChE e I ou memantina, demonstrou resultados favoráveis tanto em avaliação global, analisada pelo cuidador, como em nível cognitivo, avaliado pela escala ADAS -Cog75. Os I-ChE de segunda geração (donepezil, rivastigmina, galantamina) apresentam propriedades farmaco lógicas semelhantes, muito embora algumas características farmacocinéticas e farmacodinâmicas os diferenciem entre si. Os efeitos dos I-ChE ocorrem em uma janela terapêutica de 30 a 60% de inibição da enzima, promovendo aumento da disponibilidade sináptica de acetilcolina. Tais percentuais são geralmente atingidos nas doses terapêuticas usuais, com eventual piora em níveis mais altos de inibição. Os perfis de efeitos colaterais dessas drogas são também semelhantes, apresentando em geral boa to lerabilidade. Podem acarretar efeitos colaterais importantes, resultantes da hiperativação colinérgica periférica, tais como: efeitos adversos gastrointestinais: náuseas, vômitos, di arreia, anorexia, dispepsia, dor abdominal, aumento da secreção ácida; cardiovasculares: oscilação da pres-
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são arterial, síncope, arritmia, bradicardia; outros sintomas como tonturas, cefaleia, agitação, insônia, câimbras, sudorese, aumento da secreção brônquica. Com a intenção primária de melhorar a tolerabilidade dos I-ChE, foi desenvolvida uma forma transdérmica de rivastigmina, com apresentações em adesivos de 4,6 mg, 9,5 mg e 13,5 mg. O transdérmico tem a comodidade de ser administrado a cada 24 h. A melhora da tolerância nessa apresentação se deve a estabilidade da bio disponibilidade da droga76 • Observa-se menor incidência de náusea e vômito no seguimento de pacientes77 • Memantina
A justificativa para o uso da memantina na DA reside nos seus efeitos sobre a neurotransmissão glutamatérgica que, assim como a colinérgica, encontra-se alterada nessa doença. O glutamato é o principal neurotransmissor excitatório cerebral, particularmente em regiões associadas às funções cognitivas e à memória, tais como o córtex temporal e o hipocampo. A memantina é um antagonista não-competitivo de receptores N -metil-D -aspartato (N MDA), permitindo sua ativação fisiológica durante os processos de formação da memória, porém bloqueando a abertura dos canais e sua ativação patológica. Essas propriedades conferem à memantina uma ação neuroprotetora contra a ativação excitotóxica de recep tores de glutamato. A segurança clínica do uso da memantina foi demonstrada por meio de estudos clínicos controlados por placebo com mais de 500 pacientes portadores de demência leve ou moderada78 • Doses diárias entre 20 e 30 mg proporcionaram benefícios sobre as funções cognitivas, motoras e comportamentais. Os efeitos colaterais mais comumente relatados em pacientes recebendo memantina foram diarreia, vertigens, cefaleia, insônia, inquietação, excitação e cansaço79 • A absorção da memantina no trato gastrointestinal leva ao pico de disponibilidade sérica entre 3 e 8 horas. São necessárias duas tomadas (lO mg) para completar a dose diária usual de 20 mg. A eliminação é fundamentalmente renal, não interferindo em enzimas do citocromo P450. Portanto não são esperadas interações farmacocinéticas nesse nível. A co -administração da memantina e I -ChE é possível, com baixíssimos riscos de interações medicamentosas80 . Os estudos randomizados iniciais com memantina em pacientes com DA moderada a grave demonstraram pequena, mas significativa, redução da deterioração cognitiva81• Reisberg et al.80 comprovaram a eficácia clínica da memantina no tratamento de pacientes portadores de DA moderada a grave. Nesse estudo multicêntrico norte-americano, duplo-cego e controlado por placebo, 181 de 252 pacientes recrutados em 32 centros concluíram 28 semanas de tratamento com memantina (20 mgldia) ou placebo. Os pacientes que receberam memantina não apresentaram efeitos adversos significativamente superiores aos do grupo placebo,
e a taxa de descontinuação de tratamento foi maior nos pacientes do grupo placebo (42 contra 29 no grupo memantina). Os pacientes que receberam memantina apresentaram uma evolução mais favorável do que os pacientes do grupo placebo de acordo com os escores das escalas de avaliação clínica e funcional80 . Estudos posteriores envolvendo pacientes em estágio leve a moderado resultaram em melhora marginal dentro de um período de 6 meses, com melhora absoluta de 1% em cognição e funcionalidadé2 • Para pacientes com DA leve e muito leve, não há evidência de benefício83• Em pacientes com DA moderada a grave recebendo doses estáveis de I -ChE, o tratamento combinado com memantina, além de seguro e bem tolerado, pode favore cer desfechos mais favoráveis em parâmetros cognitivos, funcionais e comportamentais, apesar dos efeitos serem clinicamente discretos84 . Em recente revisão, envolvendo seis estudos publicados e totalizando 1.826 pacientes, a memantina demonstrou benefício nos domínios cognitivo, comportamental e funcional em pacientes com doença de Alzheimer moderada a grave84 • Outro estudo utilizando a mesma população enfatizou o efeito favorável da droga na síndrome comportamental e psicológica da demência. Nos usuários da memantina, tanto o escore final do NPI como seus itens delírios, alucinações, agitação/agressividade e irritabilidade, foram menores nesses pacientes em 12 e 24 semanas85 • Outras abordagens terapêuticas
Inúmeras outras drogas foram propostas nos últimos anos para o tratamento ou prevenção da DA. São em sua maioria drogas indicadas para o tratamento de outras condições clínicas, que se mostraram também capazes de modificar determinados processos da fisiopatologia da DA86. É o caso dos antioxidantes, dos anti-inflamatórios, das estatinas e da reposição estrogênica. Com base em evidências produzidas a partir de modelos laboratoriais e animais, algumas das quais reforçadas por estudos epidemiológicos preliminares, essas substâncias seriam capazes de modificaro processo patogênico da DA, retardando o seu início ou a sua evolução87,88 • Contudo, o suposto benefício essas abordagens citadas não foi confirmado por estudos controlados ou estudos epidemiológicos de longa duração89,90 . Além disso, revisões sistemáticas sobre o uso dessas abordagens não sustentaram sua indicação na DA9 1,92 . Perspectivas futuras
O tratamento curativo para a DA ainda é utópico. As terapias pesquisadas atualmente estão voltadas para a modificação do curso da doença, ou seja, atuando sobre a fisio patologia da mesma e retardando a sua evolução. Dentre os alvos terapêuticos, destaca-se o combate ao peptídeo betaamiloide através de imunizações, modulação ou inibição enzimática, antifibrilização, quelantes de metais, entre outros. Entretanto, agentes contra mecanismos inflamatórios, oxidantes, de excitotoxicidade, de hiperfosforilação da proteína tau, também estão sendo desenvolvidos. Essas drogas
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têm sido agrupadas em três grandes grupos: antiamiloide, neuroprotetora, restauradora.
Demência vascular A demência vascular (DV) corresponde à segunda forma mais comum de demência, se consideradas as formas puras. Há evidências de que fenômenos patogênicos da doença cerebrovascular podem coexistir com os da DA, caracterizando as síndromes demenciais mistas (DA+DV) que, segundo algumas estimativas, pode superar, em prevalência, as formas puras de DV. O aumento da prevalência da demência mista deve-se aos fatores de risco comuns entre DV e DA, assim como da evolução neuroradiológica que permite a detecção de imagens de eventos lacunares e outras alterações da substância branca que são relevantes ao surgimento de síndrome cognitiva de origem vascular. A idade de início da DV é anterior à da DA, e os homens são mais acometidos do que as mulheres. Características clínicas
As características clínicas que dão suporte ao diagnóstico de DV, que compõem o clássico escore de Hachinski, são: início abrupto, evolução em degraus, curso flutuante, confusão noturna, preservação relativa da personalidade, depressão, queixas somáticas, incontinência emocional, história de hipertensão arterial, antecedentes de acidente vascular cerebral, evidência de aterosclerose, além de sintomas e sinais neurológicos focais 93 • Contudo, a diferenciação clínica entre DA e DV, especialmente em estágios iniciais, pode ser difícil. Especialmente nessa situação, a visualização dos critérios diagnósticos para DV são úteis, com especificidade de 91% (Quadro V).
Deve-se levar em consideração a presença de fatores potencialmente degenerativos para o surgimento de doença cerebrovascular como fibrilação atrial crônica, hipertensão arterial, diabetes mellitus, dislipidemia94• A demência vascular pode ser classificada, segundo o tipo e a localização das lesões isquêmicas, em: demência por grandes infartos córtico-subcorticais (Figura 2A); infartos lacunares (Figura 2B); infartos em localização estratégica (giro angular, tálamo, prosencéfalo basal, territórios das artérias cerebrais anterior e posterior); doença de pequenos vasos (leucodistrofia subcortical difusa, doença de Binswanger). Ainda a depender da localização predominante das lesões, a DV pode originar síndromes demenciais corticais ou subcorticais. A investigação pela ressonância magnética possibilita uma melhor compreensão dos padrões de lesão cerebral da DV, além de permitir o estabelecimento dos seus mecanismos causais. Alguns autores encaram a DV como uma síndrome clínico-radiológica, tamanho a importância da neuroimagem na DV. Por exemplo, infartos múltiplos e extensos sugerem a ocorrência de fenômenos tromboembólicos recorrentes de provável origem cardíaca. Infartos lacunares ou lesões estratégicas sugerem a ocorrência de hipertensão arterial mal-controlada. Nesses casos, observa-se tipicamente a evolução "em degraus" da síndrome demencial. A lenta progressão das lesões isquêmicas subcorticais observadas na doença de pequenos vasos podem produzir um quadro clínico semelhante ao da DA. Os sintomas clínicos da DV dependem do tipo da lesão vascular. A complexidade das conexões neuronais no cérebro torna a correlação clínica-anatômica difícil. Dessa forma, deve-se fazer a distinção entre a síndrome cortical e a subcortical. O quadro cortical depende da região afetada
Qua dro V Critérios diagnósticos para demência vascular do National lnsttlute of Neurological and Communicative Disorders and Stroke - Association lnternationale pour la Recherche et I'Enseignement en Neurosciences (N INDS-A IRENS) 43 Demência vascular provável 1. Demência estabelecida por déficit em memória e dois ou mais dos seguintes: orientação, atenção, linguagem, funções visuoespaciais, funções executivas, controle motor e praxias. 2. Evidência de doença cerebrovascular seja por sintomas neurológicos focais ou por neuroimagem. 3. Relação entre demência e doença cerebrovascular, seja por início da demência dentro de três meses do surgimento do AVC ou declínio cognitivo abrupto ou com progressão em degraus. 4. Quadro clínico inclui: (A) distúrbio de marcha ou quedas;
(B) sintomas urinários sem doença urológica; (C) mudança de personalidade ou humor;
(O) sintomas subcorticais como retardo psicomotor e função executiva anormal. Demência vascular definitiva • Critérios para doença provável mais evidências ao exame histopatológico (placas neuríticas e emaranhados neurofibrilares sem exceder o número esperado para a faixa etária), obtidas através de biópsia ou autópsia; ausência de outra doença clínica ou patológica que explique a demência. Demência vascular possível 1. Demência com sinais neurológicos focais compatíveis sem comprovação de doença cérebro-vascular ou achados de neuroimagem compatíveis; ou ausência de relação temporal com AVC; ou com início abrupto e curso variável dos déficits e evidência de doença cerebrovascular. Demência vascular improvável • Demência sem sinais neurológicos focais ou achados de neuroimagem.
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Figura 2
Demência vascular. A: Imagem tomográfica de acidente vascular cerebral isquêmico envolvendo o território da artéria cerebral média direita B: Imagem por ressonância magnética evidenciando microangiopatia em substância branca.
do córtex. As lesões subcorticais afetam numerosas regiões abaixo do córtex, incluindo os gânglios da base (controle motor), tálamo (integração sensorial e motora entre nervos periféricos, gânglios da base e córtex) e cápsula interna. O núcleo médio dorsal do tálamo associado com o hipocampo é fundamental para o processamento da memória. Uma complexa rede neuronal existe entre o córtex frontal, os gânglios da base e o tálamo para a regulação e integração de movimentos, velocidade cognitiva, humor, controle de impulsos e motivação. Dessa forma, o quadro de lesão subcorticallembra a disfunção frontal. A consequência clínica é a disfunção executiva e na memória (para recuperação de informações), déficits atencionais, lentificação do processamento mental (bradifrenia), parkinsonismo, disartria, alterações em movimentação, apatia e depressão. Tratamento O tratamento da DV envolve primariamente o controle de fatores de risco modificáveis para doença cardiovascular, identificando as situações de alto risco (Tabela IV), como: controle efetivo da hipertensão arterial; tratamento das arritmias cardíacas e valvopatias; endarterectomia de carótida, em casos de estenose superior a 70%; controle das dislipidemias e do diabetes mellitus, tratamento da obesidade; combate ao sedentarismo; cessação do tabagismo e redução do consumo de álcool; a melhoria dos hábitos alimentares e estilo de vida; o tratamento de transtornos psiquiátricos subjacentes (depressão e transtornos de ansiedade) 94 . O uso de antiagregantes plaquetários está indicado nos casos de alto risco cardiovascular, como aqueles com antecedentes de episódios isquêmicos transitórios ou infartos não hemorrágicos prévios. A dose recomendada de aspirina varia entre 75 e 325 mg/dia. Como alternativa na terapia antiplaquetária, pode ser utilizada a ticlopidina
Tabela IV
Fatores de risco para demência vascular
Sociodemográficos·
Idade Sexo Raça/etnia
Aterogênicos
Hipertensão arterial Doença coronariana Diabetes mellitus
Dislipidemias Tabagismo Obesidade Sedentarismo Doenças c ard iovascu lares
Fibrilação atrial Prolapso de valva mitral Arteriopatia periférica
Genéticos
Polimorfismo apolipoproteína E, CADASIL"
Cerebrais
Número, volume, localização das lesões Infartos estratégicos e silenciosos Atrofia cerebral pré-existente Alterações periventriculares
Outros fatores
Hiperfibrinogenem ia Anticorpos anticardiolipina Alcoolismo Depressão e transtornos ansiosos
*Maior risco em indivíduos com idade avançada, do sexo masculino, e em negros e asiáticos. **CADASIL: cerebral autosomal dominant arteriopathy with subcortica/ infarct and /eukoencephalopathy.
ou clopidogrel. Em situações de maior risco de fenômenos embólicos, como ocorre na fibrilação atrial, recomenda-se o uso de anticoagulantes orais. Na vigência de infartos cerebrais ou de isquemias transitórios, intervenções precoces podem reduzir a extensão das lesões e dos déficits cognitivos. Há evidências de benefícios com o uso de agentes neuroprotetores, tais como a pentoxifilina, os bloqueadores de canais de cál-
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cio, os antagonistas de receptores N -metil-D -aspartato (memantina) e os antioxidantes. Algumas drogas têm sido propostas na terapêutica específica da DV, com resultados pouco consistentes. Entre elas, os vasodilatadores, tais como os mesilatos do ergot e outros alcaloides. O uso da pentoxifilina, um agente hemorregulador, tem sido associado a benefícios modestos sobre a cognição de pacientes com DV. Outras substâncias foram avaliadas em função de um suposto efeito neuroprotetor na DV Entre elas, a propentofilina, os bloqueadores de canais de cálcio, os extratos de ginkgo -biloba e os antagonistas de receptores N -metil-D -aspartato (memantina) 95 . As duas classes de drogas utilizadas no tratamento da DA, os I-ChE e antagonistas de NMDA (memantina), têm sido utilizados no tratamento da DV Estudos demonstram melhora discreta, mas significativa, na cognição, funcio nalidade e comportamento. A melhora comportamental incluiu apatia, depressão, ansiedade, irritabilidade e até a psicose. Os I-ChE têm sido também empregados no tratamento da demência mista (DA+DV), com benefícios discretos sobre a cognição. Numa revisão sistemática da literatura, a eficácia e a segurança tanto de I-ChE como da memantina foram avaliados para o tratamento da demência vascular (3.093 pacientes englobados). Ambas as drogas demonstraram benefícios estatisticamente discretos, com questionamento de sua utilidade na prática clínica, no tratamento de pacientes com demência vascular leve a moderada. Dessa forma, a conduta com esses dois grupos de drogas para a demência de causa vascular deve ser individualizada96. No médio e longo prazo, faz-se necessário o tratamento das complicações psiquiátricas da DV, bem como a adoção de intervenções não farmacológicas, tais como as práticas de reabilitação neuropsicológica.
Demência com corpúsculos de Lewy Pouco reconhecida há algumas décadas, a demência com corpúsculos de Lewy (DLB) figura entre as síndromes demenciais mais prevalentes em idosos, alcançando prevalência entre 15 e 20%97• Anteriormente, a DLB era classificada entre as formas variantes da doença de Parkinson, ou como formas atípicas da DA, uma vez que o perfil de déficits cognitivos sugere comprometimento tanto cortical como subcortical. Atualmente, reconhecem-se as formas variantes dentro da doença de Lewy, como entidade separada: variantes com características clínicas ou anatomopatológicas semelhantes à DA e ao parkinsonismo. Tanto a DCL como a doença de Parkinson são sinucleinopatias, mas com origem e distribuição das inclusões neuronais diferentes: na primeira, inicia-se numa distribuição difusa pelo córtex, enquanto na segunda, há o rigem no tronco cerebral e substância negra. Características clínicas
Em termos clínicos, tanto a DCL como a doença de Parkinson apresentam curso semelhante com progressão
Quadro VI Lewy9 8
Critérios diagnósticos para demência com corpúsculos de
1 Desenvolvimento de déficits cognitivos progressivos, causando declínio social e ocupacional significativo. Déficit de memória proeminente não é necessário no início, mas ocorre posteriormente. Déficits neuropsicológicos ocorrem na atenção, habilidades frontais e subcorticais, assim como nas visuoespaciais. 2 DLB provável requer dois fatores seguintes e DLB possível requer apenas um: (A) Cognição flutuante com variações pronunciadas na atenção e alerta; (B) Alucinações visuais bem formadas e detalhadas; (C) Parkinsonismo. 3 Fatores de suporte ao diagnóstico: quedas repetidas, síncope, perda de consciência, sensibilidade a neurolépticos, delírios sistematizados, outras formas de alucinação, depressão. 4 Menos frequente na presença de AVC ou doença que mimetize o quadro.
insidiosa dos déficits cognitivos em atenção, execução e memória, principalmente, junto com alterações comportamentais e alucinações visuais precoces. A diferença entre as duas formas de demência consiste no parkinsonismo com instalação um ano antes do quadro de declínio cognitivo e melhor perfil de resposta à levodopa na doença de Parkinson. Além dos déficits de memória, observase comprometimento das funções atencionais, executivas e visuoespaciais, com progressão flutuante e mais rápida da demência em comparação com a DA. As três características clínicas que dão suporte ao diagnóstico clínico da DLB são (Quadro VI) 98 : (1) flutuações do desempenho cognitivo, especialmente da atenção e do alerta; (2) alucinações visuais (tipicamente bem definidas); (3) parkinsonismo espontâneo (rigidez e bradicinesia). Manifestações associadas, que dão suporte ao diagnóstico, são: (a) a ocorrência de quedas repetidas e inexplicáveis, síncopes ou perda transitória da consciência; (b) sensibilidade a neurolépticos; (c) ocorrência de delírios sistematizados; ( d) alterações do sono REM; (e) depressão. A flutuação cognitiva ocorre em 80% dos pacientes com duração de horas a semanas, devendo ser diferenciada do delirium por também envolver alteração da atenção e alerta, assim como queda funcional. As alucinações visuais ocorrem em 50% dos pacientes, são bem formadas e envolvem normalmente pessoas e animais. O quadro é pior se ocorre durante a flutuação cognitiva. As alucinações podem estar associadas ao declínio visuoespacial, ao surgimento de agnosia visual e ao hipometabolismo occipital visualizado em neuroimagem funcio nal. Outras formas de alucinações (auditivas, olfatórias, táteis) são muito menos comuns. O parkinsonismo consiste em rigidez, bradicinesia, lentificação psicomotora, marcha lenta e instável, tendência a quedas e tremores fi nos em repouso com melhora durante atividade motora. Um diagnóstico diferencial importante num quadro de parkinsonismo, quedas frequentes e declínio cognitivo é
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a demência vascular por comprometimento importante da substância branca (subcortical). Diagnóstico
Com relação aos exames complementares, a neuroimagem estrutural pode revelar atrofia inespecífica. Pro vas funcionais como SPECT ou PET podem demonstrar o clássico padrão de hipoperfusão ou hipometabolismo, respectivamente, no lobo occipital. Tratamento
Em se tratando de uma demência com acometimento do sistema colinérgico, o tratamento da DLB baseia-se no uso de inibidores das colinesterases, com relatos de boa resposta. As taxas de resposta e a magnitude do efeito são usualmente superiores aos observados com esses compostos no tratamento da DA, havendo evidências de benefícios tanto sobre as manifestações psicóticas (delírios e alucinações) tanto no delirium e alterações do sono REM observadas em pacientes com DLB. Contudo, existe considerável variabilidade na resposta terapêutica. Recentemente, o uso da memantina em DLB tem apresentado bons resultados tanto em tolerabilidade como benefício global avaliado pela escala CIBIC-Plus, envolvendo um pequeno número de pacientes99, 100. Maiores estudos randornizados, duplo-cego e controlados com placebo são necessários. Alguns especialistas advogam prolongar o tempo para aumento da dose de memantina em uma semana (por exemplo, aumentar a cada 2 semanas). O uso da levodopa pode trazer benefícios sobre as alterações motoras dos pacientes com DLB. Contudo, podem também exacerbar os sintomas psicóticos, de modo que seu emprego deve ser feito com grande cautela. Para o manejo das alterações psíquicas e comportamentais na DLB, deve-se dar preferência aos benzodiazepínicos ou aos antipsicóticos atípicos (com destaque especial para a clozapina e a quetiapina). Os neurolépticos típicos devem ser evitados, devido ao alto risco de induzirem piora acentuada do parkinsonismo e da cognição, com risco do desenvolvimento de síndrome neuroléptica maligna. A clozapina é reconhecida como droga de primeira escolha para psicose em DCL e demência de Parkinson, tendo a quetiapina como alternativa. No entanto, devido ao incômodo de avaliações laboratoriais frequentes pelo risco de agranulocitose associado a clozapina, tenta-se iniciar quetiapina em baixa dose (12,5 -25 mg) num primeiro momento. Reserva-se a quetiapina para casos refratários. Alguns especialistas recomendam a troca de clozapina por quetiapina tão logo a psicose esteja estável afim de evitar as coletas de sangue no paciente com demência.
cal dos lobos frontais e temporais, em conjunto ou isoladamente101. Estima-se que a DFT responda por cerca de 5-10% dos casos de demência degenerativa, ocorrendo principalmente entre 45 e 65 anos de idade, com igual incidência em homens e mulheres. Apresenta evolução média entre 5 a 1O anos. História familiar para DFT ocorre em 30-40% dos casos. Patologicamente, encontra-se perda neuronal focal com gliose e espongiose. As inclusões neuronais variam entre predomínio de tau fosforilada os corpúsculos de Pick, ubiquitina, TDP43 e sem identificação conhecida. A DFT pode ter origem na mutação de genes de forma esporádica ou familiar por exemplo, genes 3, 9 e 17. Características clínicas
O complexo DFT engloba diversas entidades clínicas que correspondem diretamente a lesões frontais, temporais ou combinações, ou estão envolvidas dentro de um mecanismo patológico comum como no caso da paralisia supranuclear progressiva (PSP) e degeneração corticobasal (DCB). As alterações clínicas da DFT ainda incluem a afasia progressiva não-fluente e a demência semântica pela escola inglesa ou a afasia progressiva primária, seguindo outra linha diagnóstica102'103 . Isso reflete a heterogeneidade clínica da DFT, que resulta do acometimento do lobo frontal e temporal em graus variáveis, bem como no envolvimento distinto dos hemisférios cerebrais, e suas respectivas manifestações neuropsíquicas. Existem três fenótipos clínicos dominantes: a variante comportamental, a variante linguística e a variante motora (PSP, DCB, demência com doença do neurônio motor). Na DFT os prejuízos cognitivos começam tipicamente nas funções executivas, mas podem também envolver a linguagem. O comprometimento da memória é tardio, e não é uma característica dominante da DFT. Nas formas da DFT com acometimento seletivo dos lobos frontais e temporais anteriores, os pacientes podem manifestar comprometimento da memória episódica nos estágios iniciais da doença. Contudo esses pacientes exibem importantes alterações comportamentais, que são úteis no diagnóstico diferencial. Tais alterações incluem mudanças precoces na conduta social; desinibição; rigidez e inflexibilidade mentais; hiperoralidade; comportamento estereotipado e perseverante; exploração incontida de objetos no ambiente;
Quadro VIl
Critérios diagnósticos para demência frontotemporal' 01
• Desenvolvimento de déficits cognitivos ou comportamentais manifestados tanto por distúrbios de personalidade e comportamento precoces e progressivos, ou por declínio progressivo na expressão da linguagem.
Demência frontotemporal A degeneração do lobo frontotemporal, anteriormente demência frontotemporal (DFT) e também conhecida como complexo de Pick, corresponde a um conjunto de doenças degenerativas primárias caracterizadas por atrofia fo -
• Os déficits causam declínio social e ocupacional significativo e representam um declínio claro do nível funcional prévio. • O curso é caracterizado por ser gradual e continuado. • Os déficits não são causados por delirium ou outra condição médica ou psiquiátrica.
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distraibilidade; impulsividade; falta de persistência, e perda precoce da crítica. O início dos sintomas antes dos 65 anos de idade, uma história familiar positiva em parentes de primeiro grau e a presença de paralisia bulbar, acinesia, fraqueza muscular e fasciculações (doença do neurônio motor) dão suporte ao diagnóstico (Quadro VII). Os pacientes com DFT de predomínio hemisférico direito apresentam tendência maior para comportamento social indesejável (alienação familiar, agressividade, criminalidade). Diagnóstico
Na neuroimagem estrutural, as alterações mais precoces concentram-se na perda volumétrica de regiões paralímbicas frontais 101 - 103 • A evolução mais típica é para atrofia temporofrontal simétrica ou não. O PET apresenta maior sensibilidade no diagnóstico precoce. Tratamento
O tratamento da DFT tem sido negligenciado pelas pesquisas com novas drogas. Diferentemente das demências hipocolinérgicas anteriormente citadas, os estudos controlados não suportam a indicação de I-ChE na DFT 104 . Nem mesmo com relação aos sintomas comportamentais, os I-ChE mostraram claro benefício. A memantina apresentou benefício em apatia, agitação e ansiedade num modesto número de pacientes. O tratamento da DFT destina-se fundamentalmente ao controle das alterações comportamentais. Nesse contexto, os psicofármacos são as medicações de escolha, que devem ser definidas caso a caso. Os inibidores seletivos da recaptação da serotonina são a medicação de primeira linha nos transtornos comportamentais desses pacientes. Há indícios da eficácia da trazodona nos sintomas depressivos e na agitação. Alguns estudos com neurolépticos atípicos (risperidona, olanzapina e aripiprazol) demonstraram eficácia no tratamento de agressividade e agitação especialmente. Nos casos que cursam com inibição psicomotora e apatia, os psicoestimulantes (metilfenidato) podem ser empregados 105 .
Considerações finais Perturbações comportamentais nas demências A ocorrência de alterações comportamentais ao longo do curso clínico das demências é a regra, e não a exceção. Isso é particularmente importante em determinadas formas de demência, onde tais perturbações podem estar presentes desde estágios iniciais. São exemplos dessa situação a demência frontotemporal, a demência por corpúsculos de Lewy e a maioria das demências subcorticais. Nas demais formas de demência, a incidência de perturbações comportamentais geralmente acompanha a progressão do processo degenerativo. Portanto, o tratamento efetivo da DA e outras demências é apenas em parte representado pela abordagem com drogas antidemência. As demências são doenças crô-
nicas e progressivas, onde manifestações cognitivas e não cognitivas ocorrem ao longo dos anos de evolução. As alterações do ciclo sono-vigília, do humor e do comportamento podem ser particularmente graves e incapacitantes em alguns casos, impondo sofrimento para os doentes e sobrecarga para os seus cuidadores. O tratamento das perturbações comportamentais e psíquicas é essencial no manejo clínico das demências73•105 -106• Nesses casos, a administração de sedativo-hipnóticos, antidepressivos, antipsicóticos, anticonvulsivantes ou lítio faz-se necessária. A prescrição concomitante de drogas antidemência e outros psicofármacos deve ser uma prática rotineira no manejo de pacientes com demência. O clínico deve, portanto, estar apto a prescrevê-las com segurança. Os inibidores das colinesterases (donepezil, rivastigmina, galantamina) e a memantina foram inicialmente introduzidas para o tratamento dos sintomas cognitivos dos quadros demenciais, principalmente a doença de Alzheimer. Entretanto seus benefícios se estendem além desta primeira indicação. Elas podem promover a estabilização e diminuir a intensidade dos sintomas da síndrome comportamental e psicológica da demência, além de diminuir a incidência de novos sintomas. Desta maneira, elas devem ser consideradas como drogas de primeira escolha ou como adjunta aos antipsicóticos e antidepressivos nesse tratamento. Perturbações do humor afetam uma porcentagem considerável de indivíduos com DA, em algum ponto da evolução da síndrome demencial. Humor depressivo é observado em até 40 a 50% dos pacientes, enquanto transtornos depressivos acometem algo em torno de 1O a 20% dos casos. Depressão pode manifestar-se em todas as fases da doença, e a comorbidade resulta em comprometimento funcional maior. Alguns estudos relataram prevalência maior de depressão nas fases de demência leve, enquanto outros constataram-na quando a demência era grave. Quadros de apatia desenvolvem-se em até 50% dos pacientes com demência em estágio inicial ou intermediário; tais sintomas podem ser facilmente confundidos com depressão. Ansiedade em pacientes com demência pode ocorrer isoladamente ou em associação com outros transtornos psicológicos e comportamentais. Preocupações excessivas com relação a finanças, futuro, saúde - e a própria memória - são indícios de quadros ansiosos. Outros transtornos comuns em pacientes com demência são os delírios e alucinações, os distúrbios de identificação, do comportamento locomotor ,da alimentação e do sono. Quadros de agitação psicomotora e heteroagressividade física e verbal, muitas vezes acompanhados de reações catastróficas e sintomas afetivos, podem criar situações dramáticas, requerendo a hospitalização. As manifestações psicóticas devem ser abordadas com neurolépticos típicos ou atípicos, sempre com baixas dosagens e reavaliações periódicas. Recomenda-se o uso da risperidona (1 -2 mg/dia) ou olanzapina (5-10 mg/ dia), podendo-se recorrer aos neurolépticos típicos na impossibilidade da obtenção destes (haloperidol1 -2 mg/
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dia, trifluperazina 2-5 mg/dia), evitando-se as fenotiazinas com ação anticolinérgica pronunciada 105 • Estados depressivos e ansiosos requerem o uso de antidepressivos. Uma vez que a maioria das drogas disponíveis apresenta perfis de eficácia e latência de resposta semelhante, a escolha do antidepressivo depende muito mais do seu perfil de tolerabilidade: farmacocinética, efeitos colaterais, potencial de interações medicamentosas, das condições clínicas associadas: doenças físicas associadas; drogas prescritas concomitantemente e características individuais do paciente como sua história pregressa ou familiar de depressão além de sua resposta prévia favorável a um determinado antidepressivo 106 • Os inibidores seletivos da recaptação da serotonina são usualmente as drogas de primeira opção no tratamento da depressão em idosos com demência, por serem drogas seguras e bem toleradas, além de apresentarem maior facilidade posológica. Em situações especiais, devem ser considerados os potenciais terapêuticos de outras drogas como: bupropion, venlaflaxina, reboxetina ou mesmo dos medicamentos tradicionais como: tricíclicos e tetracíclicos. Determinados efeitos colaterais podem ser úteis em alguns casos: por exemplo, quando se deseja sedação, são preferíveis drogas como trazodona, nortriptilina ou mirtazapina. Se, ao contrário, desejar-se ativação, deve-se optar por fluoxetina, bupropion, reboxetina ou desipramina. No controle da agitação intensa ou dos distúrbios de sono, antidepressivos sedativos como a trazodona (50-100 mg/dia) ou a mirtazapina (15-45 mg/dia) podem ser utilizados. Os hipnóticos zolpidem e zopiclone são mais seguros do que os benzodiazepínicos convencionais. Estes devem ser usados com extrema cautela e por períodos reduzidos, pelos efeitos deletérios sobre a cognição, e pela dificuldade de descontinuação após o uso prolongado. Como consequência do processo de senescência, pacientes idosos desenvolvem modificações metabólicas e redução de reservas funcionais, o que lhes confere maior sensibilidade a certos efeitos colaterais. A prescrição de psicofármacos para o controle das alterações não-cognitivas da DA deve ser dirigida a metas bem definidas e mantida por períodos curtos e suficientes para o controle dos sintomas. O uso concomitante de outras medicações, bem como a presença de doenças clínicas impõe, respectivamente, o risco de interações medicamentosas e de toxicidade. Desse modo, o conhecimento das particularidades farmacocinéticas e farmacodinâmicas de cada substância é necessário para uma prescrição mais exata e segura. Casos refratários às medidas terapêuticas iniciais ou pacientes portadores de comorbidades clínicas complexas podem necessitar da avaliação do especialista em psiquiatria geriátrica.
agressividade verbal e física em relação ao marido. Nos últimos três meses, vem alegando que este a está traindo, tendo relações sexuais com as empregadas. Informa que o marido é conivente com o roubo de suas jóias e outros objetos de valor, por parte das mesmas empregadas. A filha que acompanha a paciente à consulta garante que nada disso está acontecendo, embora o pai tenha, de fato, tido um relacionamento extraconjugal no passado (há mais de 20 anos), mas que o casal havia superado a questão. Informa também que as duas empregadas que prestam serviços domésticos ao casal são de total confiança e que trabalham com a família há 35 anos. Durante a anamnese objetiva a filha informa que a Maria Luíza vinha apresentando esquecimentos progressivos há aproximadamente dois anos, mas que o médico da família havia dito para não se preocuparem, pois os esquecimentos seriam normais para a idade. Além de não conseguir se lembrar de fatos recentes, tem trocado os nomes dos netos e de alguns amigos próximos. Mais recentemente irritou-se com a empregada por não conseguir lembrar o nome de alguns objetos que havia solicitado como por exemplo, o cinzeiro e a caixa de fósforos. Outro episódio relevante foi quando afirmou que foi enganada pelo vendedor de uma loja, que não quis vender uma mercadoria, alegando que ela não tinha dinheiro suficiente para a compra; segundo a paciente o vendedor havia ficado com o dinheiro dela e inventado essa história. A paciente tem boa saúde física e todos os controles têm sido normais: parâmetros metabólicos normais e dislipidemia leve mas controlada. Faz uso regular de sinvastatina que é seu único medicamento prescrito pelo clínico e usa por conta própria lorazepam (1 mg/dia)ao deitar há vários anos. Não tem antecedentes médicos ou psiquiátricos relevantes. Sua mãe faleceu aos 55 anos em um acidente automobilístico enquanto seu pai faleceu aos 69 anos de infarto do miocárdio. Avó materna morreu esclerosada. Tem 4 irmãos, sendo a terceira mais velha, e há rumores na família de que estão todos apresentando problemas parecidos. A paciente nunca fez uso de álcool, mas fuma dez cigarros por dia. Pratica atividade física supervisionada duas vezes por semana e faz aulas de pintura. Gostava muito de ir ao cinema, mas nos últimos seis meses não foi nenhuma vez. Além disso, tinha o costume de ler e, curiosamente, está lendo o mesmo livro há vários meses e mostra-se descontente com o fato de ter sido trazida ao hospital, alegando não ter nenhum problema de saúde, e que quem deveria ser exam inado por um psiquiatra é o seu marido responsável por toda a confusão. Diz que tem estado muito triste com a situação e com o fato de suas filhas darem apoio ao pai. Recusa-se inicialmente a realizar testes e exames, mas acaba concordando para provar que está bem e, com essa premissa, colabora o suficiente. Apresentou alguma labilidade afetiva durante a entrevista, mas não tem polarização evidente do humor. Não há anormalidades ao exame físico e neurológico; escore no Mini-exame do Estado Mental de 22 pontos.
Questões Minicaso clínico Maria Luíza, sexo feminino, 61 anos, casada, dona de casa, 11 anos de escolaridade (magistério). Trazida ao pronto-socorro pela família, em função de recente alteração do comportamento:
1. Com base na vinheta acima, qual a sua primeira hipótese diagnóstica para o caso: a) Parafrenia tardia (transtorno delirante persistente) b) Delirium (provável etiologia cerebrovascular)
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c) Síndrome demencial a esclarecer d) Transtorno depressivo de início tardio e) Não há suspeita de doença neuropsiquiátrica
2. Antes de encaminhar o caso para a atenção de um especialista, o médico do pronto-socorro solicitou exames laboratoriais como hemograma, eletrólitos, glicemia, provas de função hepática e renal, além de exame de urina tipo I, tomografia computadorizada de crânio. Todos os resultados foram compatíveis com a normalidade, exceto a tomografia, que apontou redução volumétrica cerebral interpretada pelo radiologista como aceitável na faixa etária da paciente. Quais os procedimentos adicionais que você indicaria para aprofundar a investigação deste caso? a) Nenhum, pois o diagnóstico de doença de Alzheimer definitiva já pode ser estabelecido com base nas informações dispo'
.
d) O exame do líquor está sempre indicado na propedêutica das demências e) A afasia progressiva primária é um subtipo da doença de Alzheimer de início precoce
5. A identificação de uma síndrome demencial que cursa, desde os estágios iniciais, com sinais parkinsonianos, alucinações visuais e flutuações do nível de desempenho cognitivo sugere o diagnóstico de: a) Doença de Alzheimer familial b) Doença de Pick c) Doença de Creutzfeldt-Jakob d) Demência com corpúsculos de Lewy e) Pseudodemência
Referências bibliográficas
n iVeiS
b) Exame do líquor e genotipagem dos familiares vivos c) Exames laboratoriais adicionais (função tireoideana, níveis séricos de folato e vitamina B12, sorologia para sífilis) d) Ressonância magnética de encéfalo e avaliação neuropsicológica e) As alternativas (c) e (d). conjuntamente, se disponíveis no ser.
VIÇO.
3. Ainda em relação ao caso clínico acima, qual das afirmativas é correta? a) Na ausência de outras alterações laboratoriais, a identificação de atrofia hipocampal, ao exame de ressonância magnética estrutural (cortes coronais) dá suporte ao diagnóstico de doença de Alzheimer provável de início pré-senil b) O achado acima perde a validade se forem encontradas também hiperintensidades em substância branca perventricular, sugestivas de microangiopatia subcortical; neste caso, o diagnóstico correto seria de demência vascular c) As alterações de humor apresentadas pela paciente (irritabilidade, labilidade afetiva) tornam relativas as alterações cognitivas; neste caso, o diagnóstico correto é de pseudodemência depressiva d) A presença de delírio sistematizado, independentemente das alterações cognitivas e funcionais descritas na anamnese objetiva, sustenta o diagnóstico de parafrenia tardia e) O diagnóstico de doença de Alzheimer só pode ser estabelecido após a comprovação da demência com base no exame neuropsicológ ico. 4. Em relação às demências, assinale a afirmativa correta : a) São fatores de risco bem estabelecidos: idade avançada, alta escolaridade e exposição ao alumínio b) A herança de um alelo épsilon-4 da apolipoproteína E não é condição nem necessária nem suficiente para a ocorrência de doença de Alzheimer c) São exemplos de demências degenerativas primárias: doença de Alzheimer, doença de Pick, doença de Binswanger e demência pugilística
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Esquizofrenia
Helio Elkis Monica Kayo Graça Maria Oliveira
Vivian Yuri Hiroce Jimena Barriviera lvson Tassell
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Antecedentes históricos e conceito, 603 Fenomenologia, 604
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Dimensões psicopatológicas, 604 Dimensão cognitiva, 605 Critérios diagnósticos modernos, 606 Subtipos, 608 Diagnósticos diferenciais, 608 Epidemiologia, 609 Curso e evolução, 61 O Etipatogenia e neurobiologia, 61 O Neuropatologia, 61 O Alterações cerebrais: neuroimagem, 611 Fatores genéticos, 612 Fisiopatologia: hipótese dopaminérgica, 614 Tratamento da esquizofrenia, 614 Tratamento medicamentoso, 615 Avaliação da resposta ao tratamento antipsicótico, 615 Tempo de resposta ao tratamento antipsicótico, 617 Outras formas de intervenção terapêutica, 617 Tratamento da esquizofrenia refratária. 617 Tratamento da esquizofrenia super-refratária, 618 Questões, 619 Referências bibliográficas, 619
Antecedentes históricos e conceito Relatos de quadros psiquiátricos de início em adulto jovem e que levavam a uma deterioração global das funções mentais foram descritos desde a antiguidade, mas começaram a ser sistematicamente publicados a partir do século XIX, feitos por Haslam (1810), Hecker (1871) e Kalhbaum (1874). Para distingui-los de quadros demenciais associados ao envelhecimento, o psiquiatra belga Benoit Morei, em 1860, englobou-os sob o termo dé-
mence precoce1• Foi Emil Kraepelin quem descreveu pela primeira vez o quadro clínico da dementia praecox, uma latiniza-
1. Reconhecer a esquizofrenia como um transtorno psiquiátrico que incide em pacientes jovens e que se caracteriza por alterações de várias dimensões psicopatológicas, principalmente sintomas psicóticos, negativos, de desorganização do pensamento e da conduta, cognitivos e depressivos; estão presentes critérios diagnósticos que definem tal transtorno. 2. Compreender que a etiologia da esquizofrenia é hoje entendida como produto da interação de múltiplos fatores genéticos e ambientais, não havendo uma causa única que a explique, e que sua patogenia se deve tanto a alterações do neurodesenvolvimento como a processos neurodegenerativos. 3. Compreender que a maioria dos sintomas da esquizofrenia pode ser explicada por uma alteração do balanço da dopamina em áreas límbicas e pré-frontais e que a esquizofrenia está associada a uma série de alterações cerebrais estruturais e funcionais não patognomônicas, que podem estar presentes em outros transtornos psiquiátricos. 4. Entender que os antipsicóticos representam o esteio do tratamento da esquizofrenia, porém as evidências têm mostrado um melhor desfecho quando utilizados em conjunto com orientação familiar, reabilitação cognitiva, treino de habilidades sociais e terapia cognitiva comportamental.
ção do termo criado anteriormente por Morei, a partir da observação de pacientes jovens que, após um período psicótico, sofriam um "enfraquecimento psíquico" (verblodung, em alemão), mas que não necessariamente se tornavam dementes (demenz) no sentido pleno do conceito. Esse enfraquecimento psíquico corresponde ao que atualmente é chamado de deterioração cognitiva. Em termos etiológicos, Kraepelin relacionou a dementia praecox aos transtornos psiquiátricos de etiologia comprovadamente exógena (como a sífilis cerebral) e aos considerados puramente endógenos (como a insanidade maníaco-depressiva ou a paranoia). Entretanto, a distinção entre demência precoce e insanidade ma-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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níaco-depressiva manteve-se ao longo de todas as edições, o que deu origem à noção de "dicotomia kraepelinianà', separação que até hoje, até certo ponto, se mantém 1• Embora Kraepelin tenha descrito a maioria dos sintomas conhecido na atualidade, tais como delírios, alucinações, desorganização do pensamento e embotamento afetivo-volitivo, não considerava qualquer um deles como patognomônico, privilegiando o diagnóstico longitudinal (isto é, a partir da evolução do quadro clínico). Até a última edição do seu tratado, Kraepelin manteve a coerência, descrevendo com absoluta precisão todos os sintomas que hoje são observados na esquizofrenia sem definir qualquer um deles como central para o diagnóstico. No entanto, nessa oitava e última edição, definiu duas grandes síndromes que considerava essenciais para a caracterização da demência precoce2 : • O enfraquecimento das atividades emocionais que formam as molas propulsoras da volição. • A perda da unidade interna das atividades do intelecto, da emoção e da volição. Essa "síndrome avolicional" de Kraepelin foi identificada por muitos autores modernos como a primeira descrição de um conjunto de sintomas posteriormente batizados com o nome de "negativos': que serão discutidos a seguir. Já a "síndrome da perda da unidade internà', na afirmação do próprio Kraepelin, apresenta-se como no distúrbio das associações descrito por Bleuler, em r elação a incoerência do pensamento, mudanças intensas do humor e inconstância do pragmatismo 2 • Tal afirmação não deve surpreender, pois o conceito de esquizofrenia fora proposto por Bleuler em 1908 e publicado em seu livro em 1911, antes, portanto, de Kraepelin publicar a última edição de seu tratado em 1913 1• De fato a procura de sintomas-chaves para o diagnóstico surgiu com Bleuler entre 1908 e 1911, que rebatizou a doença com o nome de esquizofrenia e que, emhora considerasse a doença heterogênea ("o grupos das
Tabela I
esquizofrenias"), procurou fazer uma hierarquização entre alguns sintomas que considerava fundamentais para o diagnóstico, como a desorganização do pensamento ou o embotamento afetivo e aqueles que foram denominados acessórios, como os delírios e as alucinações3 . A busca de sintomas patognomônicos da doença continuou com Kurt Schneider que, em 1959, classificou uma série deles como essenciais ou "de primeira ordem'' para o diagnóstico, como escutar vozes na terceira pessoa, ter a sensação de que os pensamentos são transmitidos 4•5 • Atualmente, na prática, tanto a concepção kraepeliana (longitudinal) como a bleuleriana/schneideriana (sintomatológica ou transversal) podem ser reconhecidas nos critérios diagnósticos modernos 1 que serão discutidos adiante. Na Tabela I são apresentados os principais sintomas kraepelianos, bleulerianos e schneiderianos. O conceito de esquizofrenia sofreu uma grande expansão na primeira metade do século XX, sobretudo nos Estados Unidos, com a criação dos conceitos de transtorno esquizoafetivo, da esquizofrenia pseudoneurótica e do transtorno esquizofreniforme. Já a partir dos anos de 1970 o conceito se restringiu, graças ao surgimento de instrumentos específicos para a obtenção fidedigna de diagnósticos, como o Present State Examination, de critérios diagnósticos modernos, como o Research Diagnostic Criteria (RDC) 6 ou de St. Louis7 e o desenvolvimento de escalas para avaliação do nível de gravidade dos sintomas, como a BriefPsychiatric Rating Scale (BPRS)8 , tornando-se menos inclusivo 1•
Fenomenologia Dimensões psicopatológicas Procurando simplificar os sintomas descritos por Kraepelin, Bleuler e Schneider e por meio de sucessivas análises fatoriais de escalas criadas para avaliarem os
Sintomas kraepelinianos, bleulerianos e schneiderianos'
Kraepelin, 1913
Bleuler, 1911
Schneider, 1938
Síndromes 1) Avolicional: "O enfraquecimento das atividades emocionais que formam as molas propulsoras da volição"
Fundamentais (6 "As') Distúrbios das associações do pensamento Autismo Ambivalência Embotamento afetivo Distúrbio da atenção Avolição
Sintomas de primeira ordem Sonorização do pensamento Escutar voz sob forma de argumento e contra-argumento Escutar vozes que comentam os atos Vivências de influência corporal Roubo do pensamento Sensações de influência Percepção delirante
2) Síndrome da perda da unidade interna "A perda da unidade interna das atividades do intelecto, da emoção e da volição"
Acessórios Delírios Alucinações Sintomas do humor Sintomas catatônicos
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sintomas da esquizofrenia, pode-se dizer que há pelo menos três grandes dimensões (fatores) ou agrupamentos (" clusters") sintomatológicos: psicótica (delírios e alucinações); de desorganização do pensamento e da conduta (desorganização do pensamento, afeto inapropriado, distúrbios de atenção); e aquela em que há diminuição de certas funções normais da vida psíquica, também chamada deficitária ou negativa ( embotamento afetivo, déficit volitivo ) 9 • Além dessas três dimensões, pacientes com diagnóstico de esquizofrenia também apresentam sintomas de depressão e de ansiedade e declínio de certas funções cognitivas, como perda da capacidade de insight e de abstração conceitual1. Para avaliar de forma adequada toda a gama sintomatológica da esquizofrenia, uma série de escalas foi criada, sendo a primeira delas a Brief Psychiatric Rating Scale (BPRS) 10 , que avalia os 18 sintomas mais comuns encontrados nas psicoses de um modo geral e na esquizofrenia em particular. A maioria das análises fatoriais dessa escala mostrou que ela tem pelo menos quatro fatores ou dimensões: transtornos do pensamento, retraimento/retardo psicomotor, hostilidade/desconfiança e ansiedade/depressão9 • No entanto, utilizando sua versão ancorada8 , encontram-se, por meio da análise fatorial dos dados de 96 pacientes com esquizofrenia, as seguintes dimensões: negativa/desorganização, positiva (psicótica), depressiva e de excitação9 . A escala mais empregada atualmente para avaliar os sintomas da esquizofrenia é a Positive and Negative Syndrome Scale (PANSS) 11 , com trinta itens, subdivididos em sete positivos, sete negativos e dezesseis sintomas gerais. Várias análises fatoriais dessa escala mostraram que esses trinta itens distribuem -se em cinco fatores ou dimensões, de acordo com a predominância dos respectivos sintomas: positivo, negativo, desorganizado, excitação-ativação e ansiedade/ depressão 12. A PANSS possui um item que avalia a capacidade de abstração (NS) do paciente e que permite, de forma apro ximada, avaliar sua cognição. Os fatores psicopatológicos da PANSS representam uma boa maneira de sintetizar o que atualmente se entende como as dimensões psicopatológicas da esquizofrenia, apresentadas na Tabela li.
Dimensão cognitiva A esquizofrenia foi primeiramente descrita como uma "demência precoce"2 e, portanto, a deterioração cognitiva representa talvez a dimensão mais característica do transtorno. Essa dimensão não se restringe somente a uma deterioração da inteligência, avaliada pelo QI, mas abrange várias das funções cognitivas, que variam em termos de gravidade. O termo cognição pode ser definido como um conjunto de capacidades que habilitam os seres humanos a de-
Tabela 11 Dimensões psicopatológicas da esquizofrenia de acordo com a Posiôve and Negaôve Syndrome Sca/e (PANSS)u 2·21 ·25 Dimensões
Sintomas
Psicótica ("positiva")
Delírios/ai uci nações
Desorganização
Desorganização conceitual do pensamento, afeto inapropriado, distúrbio da atenção, comportamento bizarro
Deficitária ("negativa")
Embotamento afetivo, déficit volitivo
Depressivo-ansiosa
Depressão, sentimentos de culpa, ansiedade psíquica e autonômica
Cognitiva
Perda da capacidade de abstração e de insight
sempenhar uma série de atividades no âmbito pessoal, social e ocupacional, como concentrar-se na leitura de um livro, aprender novas informações, solucionar problemas, realizar escolhas, manter uma conversa, entre outras 13 . Essa dimensão não se restringe somente a uma de terioração da inteligência, avaliada pela medida de quo ciente intelectual (QI), mas abrange várias funções cognitivas, que variam em termos de gravidade, conforme apresentado na Tabela III 14. Vários estudos vêm demonstrando que algumas considerações já podem ser feitas, com alto grau de confiabilidade15: 1) O comprometimento cognitivo é altamente prevalente em pacientes com esquizofrenia, embora em graus variados, em comparação com indivíduos saudáveis. 2) As funções cognitivas que sofrem maior impacto são: memória episódica, velocidade de processamento, fluência verbal, atenção, funções executivas e memória de trabalho. 3) Os déficits cognitivos já estão presentes na fase pré-mórbida. 4) Esses déficits persistem através do curso da esquizofrenia, com poucas melhoras expressivas no decorrer do tratamento medicamentoso. 5) Não se notam diferenças substanciais na melhora dos déficits entre a primeira e a segunda geração de antipsicóticos, existindo certa heterogeneidade entre os pacientes. 6) Um padrão de comprometimento cognitivo em menor grau é encontrado em familiares não psicóticos, o que provavelmente se relaciona com a predisposição genética do paciente. 7) O comprometimento cognitivo é um forte fator preditor de resultados sociais e profissionais insatisfatórios, com grandes prejuízos na cognição social. 8) Embora déficits cognitivos em pacientes com esquizofrenia possam ser mais graves e persistentes em relação a pacientes não psicóticos, como nos transtornos afetivos, eles não são qualitativamente diferentes.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela 111
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Principais alterações cognitivas na esquizofrenia, sintetizadas de uma metanálise envolvendo 13 estudos1•
Função
Definição
Velocidade de processamento
Capacidade associada à taxa de rapidez do processamento cognitivo em tarefas simples (p. ex., nomear cores)
Atenção/vigilância
Capacidade de manter a atenção voltada para uma tarefa (foco ao longo do tempo) (p. ex., assistir a um filme na televisão)
Memória de trabalho (workJng memory)
Capacidade de reter certa quantidade de informações para utilização imediata (p. ex., dizer se uma sequência de letras apresentada é igual a uma sequência anterior)
Aprendizado verbal e memória
Capacidade de aprender informações verbalizadas e se recordar delas (memória imediata preservada e memória de longo prazo/reconhecimento deficitária)
Aprendizado visual e memória
Capacidade de gerar, reter e manipular imagens visuais (associada aos diferentes aspectos de processamento de imagens, como geração, transformação, armazenamento e recuperação)
Raciocínio/solução de problemas
Capacidade de raciocínio em situações novas, minimamente dependentes de conhecimentos adquiridos (capacidade de resolver problemas novos, associar ideias, extrapolar e reorganizar informações)
Cognição social
Habilidade relacionada à capacidade de perceber e compreender as regras sociais (capacidade de estabelecer relações sociais)
Os vários estudos chegam a um consenso quanto às áreas cognitivas que sofrem maior impacto em pacientes com esquizofrenia; porém, a falta de critérios metodológicos quanto às abordagens, bem como a variabilidade de funções avaliadas, acaba por produzir resultados diversos. Isso também ocorre quando se passa a pesquisar os testes neuropsicológicos utilizados para essa população. A revisão sistemática realizada por Zimmer et al. 16, no período de 1995 a 2006, mostrou que um mesmo teste pode ser utilizado para avaliar mais de uma função. Entre os mais citados estava o WAIS-III, comumente utilizado para avaliar inteligência verbal e outras áreas específicas. Para avaliar funções executivas e flexibilidade cognitiva, os testes mais utilizados foram o Wisconsin Card Sorting Test (WCST) e o Trail Making Test - Forma B (TMT-B). O Continuous Performance Test ( CPT) se mostrou o teste mais utilizado para avaliar a atenção, seguido do Trail Making Test - Forma A (TMT-A) e o Stroop Test. Fluência verbal e linguagem foram avaliadas pelo Controlled Oral Word Association (COWA), Wide Range Achievement Test 3 (WRAT) e WAIS -III. Para avaliar a memória, os testes mais utilizados foram o Wechsler Memory Scale-III (WMS III), Auditory-Verbal Learning Test (AVLT), California Verbal Learning Test (CVLT) e WAISIII. O desempenho motor foi avaliado pelo Finger Tapping Test (FTT) e Grooved Pegboard 17 • A ausência de um consenso de uma bateria cognitiva tem sido um grande impedimento para a avaliação padronizada de novas formas de intervenção com a finalidade de melhorar a cognição desses pacientes 18 • Além disso, baterias muito extensas mostram-se impraticáveis, pois podem provocar altos índices de desgaste, comprometendo assim os resultados, principalmente entre aqueles com maior comprometimento 19.
No ano de 2002, um grupo de especialistas, com apoio do National Institute of Mental Health (NIMH), iniciou um projeto cujo principal objetivo era desenvolver uma bateria de consenso cognitiva para utilização em ensaios clínicos na esquizofrenia, denominada Measure-
ment and Treatment Research to Improve Cognition in Schizophrenia (MATRICS) 18 • Essa bateria passou a ser recomendada em estudos clínicos americanos. Entre mais de 90 testes nomeados para a inclusão, foram selecionados dez testes que abrangiam sete domínios de funcionamento cognitivo (Tabela IV). Esses testes foram escolhidos a partir de um critério de praticidade na administração e alta confiabilidade 19 • Essa bateria ainda sofre algumas críticas, principalmente ao se considerar a população brasileira, pois alguns testes ainda necessitam de validação e padronização específicas para nossa população. Além disso, essa bateria ainda pode ser considerada extensa e com limitações. A inclusão de testes computadorizados dificulta seu manejo em relação a alguns pacientes mais comprometidos. Apesar do comprometimento cognitivo que afeta a maioria dos pacientes com esquizofrenia, essa dimensão ainda não está entre os critérios diagnósticos do trans torno, o que poderá acontecer na quinta edição dos critérios americanos de esquizofrenia (DSM)2°. (Ver critérios diagnósticos na próxima seção.)
Critérios diagnósticos modernos O diagnóstico de esquizofrenia é principalmente clínico; deve-se pensá-lo na presença de psicose e ausência de patologia orgânica que a justifique. É prioritária uma detalhada anamnese do paciente, incluindo estado psicopatológico atual e histórico, personalidade pré-mórbida, ante-
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Tabela IV
MATRICS Consensus Cogniôve Battety18
Teste
Domínio cognitivo
Trai I making test, partA Brief assessment of cognition in schizophrenia, symbol coding subtest Categoty fluency tes~ animal naming
Velocidade de processamento
Hopkins verbal/earning test - revised, immediate recai/ (three /earning trials only)
Aprendizagem verbal
Wechsler memoty sca/e, 3. ed., spatial span subtest
Memória de trabalho não verbal
Letter-number span test
Memória de trabalho verbal
Neuropsychologica/ assessment battery, mazes subtest
Raciocínio e solução de problemas
Brief visuospatia/ memoty test - revised
Aprendizagem visual
Mayer-Salovey-Caruso emotional intelligence tes~ managing emouons branch
Cognição social
Continuous performance tes~ identical pairs version
Atenção e vigilância
Fontes: http://www.matrics.ucla.edu/; Nuechterlein, Green, Kern, et ai., 2008. 6
Tabela V
Diagnósticos de esquizofrenia de acordo com a CID-1 022
Pelo menos uma das síndromes, dos sintomas e dos sinais listados em (1) abaixo ou pelo menos dois dos sintomas listados em (2) devem estar presentes pela maior parte do tempo durante um episódio de doença psicótica que dure pelo menos um mês (ou por algum tempo durante a maioria dos dias): 1) Pelo menos um dos seguintes sintomas deve estar presente: a) eco do pensamento, inserção ou roubo do pensamento ou irradiação do pensamento; b) delírios de controle, influência ou passividade, claramente referindo-se ao corpo ou aos movimentos dos membros ou a pensamentos, ações ou sensações específicos; percepção delirante; c) vozes alucinatórias comentando o comportamento do paciente ou discutindo entre elas sobre o paciente ou outros tipos de vozes alucinatórias vindas de alguma parte do corpo; d) delírios persistentes de outros tipos que sejam culturalmente inapropriados e completamente impossíveis (p. ex., ser capaz de controlar o tempo ou estar em comunicação com alienígenas). 2) Ou pelo menos dois dos seguintes: a) alucinações persistentes, de qualquer modalidade, de ocorrência diária, por pelo menos um mês, acompanhadas com delírios (os quais podem ser superficiais ou parciais), sem conteúdo afetivo claro, ou quando acompanhadas com ideias superestimadas persistentes; b) neologismos, interceptações ou interpolações no curso do pensamento, resultando em discurso incoerente ou irrelevante; c) comportamento catatônico, tal como excitação, postura inadequada, flexibilidade cérea, negativismo, mutismo e estupor; d) sintomas "negativos" como apatia marcante, pobreza de discurso, embotamento ou incongruência de respostas emocionais (deve ficar claro que esses sintomas não são decorrentes de depressão ou medicação neuroléptica).
cedentes pessoais e familiares (clínicos e psiquiátricos) e abuso de substâncias. Isso, junto a exames laboratoriais e de imagens, ajudará a definir o diagnóstico e, principalmente estes últimos, a descartar causas orgânicas de psicoses. A esquizofrenia se caracteriza pelas seguintes dimensões psicopatológicas: presença de sintomas psicóticos ou positivos (delírios e alucinações, sendo as auditivas as mais frequentes), de desorganização (do pensamento e da conduta), sintomas negativos (embotamento afetivo-volitivo), perdas cognitivas (sobretudo déficit da capacidade de abstração e insight) e sintomas depressivos e ansiosos21 • Como observado anteriormente, os critérios diagnósticos modernos são baseados nos sintomas descritos por Kraepelin, Bleuler e Schneider1 • Em termos sintomatológicos, Bleuler enfatizou as alterações do pensamento, afetividade e conduta3, enquanto Schneider5•4 classificou sintomas essenciais ou de "primeira ordem'' para o diagnóstico. Já Kraepe-
lin2 enfatizou o curso crônico deteriorante da doença sem definir qualquer sintoma patognomônico, privilegiando assim o diagnóstico longitudinal, a partir da evolução do quadro. Atualmente, nos manuais diagnósticos modernos, é possível encontrar tanto a concepção kraepeliana (longitudinal) como a bleuleriana/schneideriana (transversal) 1• Oficialmente, o diagnóstico da esquizofrenia é feito no Brasil de acordo com os critérios da 10a revisão da Classificação Internacional das Doenças (CID-10)22 (Tabela V). O diagnóstico de esquizofrenia também pode ser feito de acordo com os critérios da 4a revisão da Classificação Americana dos Transtornos Mentais (DSM IV-TR) 23 . Tais critérios são considerados mais restritos que os da CID-10, sobretudo em razão dos critérios de exclusão, como o uso de substâncias psicoativas e da presença de uma condição médica associada, que muitas vezes são fatores de confusão diagnóstica 1 (Tabela VI).
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela VI
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Critério diagnóstico de esquizofrenia de acordo com a DSM-IV
Critérios de inclusão: 1) No mínimo dois dos seguintes sintomas, cada qual presente por uma porção significativa de tempo durante o período de 1 mês: a) Delírios b) Alucinações c) Discurso desorganizado ou incoerente d) Comportamento desorganizado ou catatônico e) Sintomas negativos: embotamento afetivo, alogia ou abulia 2) Disfunção social/ocupacional: Uma porção significativa do tempo desde o início do transtorno. Uma ou mais áreas tais como trabalho, relações interpessoais ou cuidados pessoais, relações interpessoais estão acentuadamente abaixo do nível alcançado antes do início do transtorno (quando o início se dá na infância ou adolescência, ocorre incapacidade de atingir o nível esperado de realização interpessoal, acadêmica ou profissional). 3) Duração: Sinais contínuos pelo período de 6 meses, que deve incluir um dos sintomas do critério A, podendo incluir sintomas prodrômicos ou residuais. Sintomas prodrômicos ou residuais podem incluir sintomas negativos ou sintomas "A" atenuados (p. ex., crenças estranhas, experiências perceptuais incomuns). Critérios de exclusão: 4) Transtorno esquizoafetivo ou transtorno de humor com sintomas psicóticos: 1) nenhum episódio depressivo maior, maníaco ou misto ocorreu durante a fase ativa ("A"); 2) se os episódios de humor ocorreram durante a fase ativa (sintomas "A"), sua duração foi breve com relação à duração dos períodos ativo e residual. 5) Uso de substâncias psicoativas ou uma condição médica geral associada ao quadro. 6) Transtorno global do desenvolvimento: se há histórico desses transtornos ou de autismo, o diagnóstico adicional de esquizofrenia é feito apenas de delírios, ou alucinações proeminentes estão presentes no mínimo há um mês. Modificada de American Psychiatric Association, 2002 23 •
Subtipos
Tabela VIl Subtipos de esquizofrenia e outros transtornos psicóticos e seus respectivos códigos de acordo com a CID-1 O e a DSM IV-TR22"23
Desde o princípio, a heterogeneidade clínica foi identificada como uma das principais características da esquizofrenia, pois Bleuler, já no começo do século XX, preferiu chamar a esquizofrenia de "o grupo das esquizofrenias"3·24. Atualmente são reconhecidos cinco subtipos principais da esquizofrenia, que derivam dos subtipos primariamente descritos por Kraepelin e Bleuler21 ·25 : • paranoide: predomínio de delírios e alucinações, principalmente auditivas; • hebefrênica ou desorganizada: predomínio de sintomas de desorganização do pensamento e comportamento, alterações do humor e afetos inapropriados; • catatônica: ocorrência de sintomas catatônicos proeminentes (catalepsia, flexibilidade cérea, maneirismos, gesticulações, estereotipias, ecolalia, ecopraxia, negativismo, mutismo), frequentemente depois de meses ou anos de evolução do transtorno em sua forma paranoide ou desorganizada; • simples (entidade aceita apenas pela CID-1 O, e não pelo DSM-IV): caracterizada pela ocorrência espontânea de apenas uma síndrome negativa. • residual: estado de empobrecimento cognitivo, afetivo e volitivo, correspondendo à fase de estabilização da esquizofrenia, geralmente resultante de anos de evolução do transtorno. A ocorrência de sintomas psicéticos costuma ser esporádica e de pequena intensidade, com delírios não sistematizados.
CI D- 1O
DSM IV-TR
Paranoide (F20.0)
Paranoide (295.30)
Hebefrênica (F20.1)
Desorganizada (295.1 O)
Catatônica (F20.2)
Catatônica (295.20)
lndiferenciada (F20.3)
lndiferenciada (295.90)
Residual (F20.5)
Residual (295-60)
Um subtipo não relacionado, mas presente como uma possibilidade diagnóstica na CID-1 O e no DSM- rv, é a chamada esquizofrenia indiferenciada, reservada para casos em que não há uma predominância clara dentre os subtipos21 . A Tabela VII apresenta os subtipos de esquizofrenia de acordo com a CID-10 e a DSM IV-TR, e sua respectiva correspondência.
Diagnósticos diferenciais A esquizofrenia é um transtorno psicótico, mas nem todo transtorno psicótico é esquizofrenia. Várias doen ças podem se apresentar com sintomas psicóticos e, por isso, o diagnóstico diferencial é essencial. As condições genéticas, clínicas, neurológicas e psiquiátricas associadas ao aparecimento de quadros psicóticos serão apresentadas nas Tabelas VIII, IX e X21 ·25·26.
49 ESQUIZOFRENIA
Tabela VIII Doenças de transmissão genética mendeliana de grande ou média probabilidade de associação com psicose 2 ' ·25
Tabela X Transtornos psiquiátricos associados a manifestações psicóticas 2 ' 2 5
Doenças com grande probabilidade de associação com psicose
Transtorno psiquiátrico
Doença de Huntington Leucodistrofia metacromática Porfiria aguda intermitente e subtipos Calcificação familial dos gânglios da base Doenças com certa probabilidade de associação com psicose Doença de Niemann-Pick Doença de Gaucher Doença de Fabry Narcolepsia Doença de Kuf Homocistinúria Doença de Wilson Hemocromatose Deficiência de glicose 6PD Albinismo Síndrome de Kartagener Síndrome de Lawrence-Moon-Biedl Ataxia familial
Tabela IX Doenças gerais e neurológicas associadas ao desenvolvimento de sintomas psicóticos
Epilepsias Lobo temporal Parcial simples Parcial complexa Infecções do SNC HIV Encefalites Neurossífilis Neurocisticercose Meningites por várias causas Doença de Creutzsfeldt-Jacob Herpes Febre reumática e coreia de Sydenham Trauma cranioencefálico Acidentes vasculares cerebrais Tumores cerebrais Doenças desmielinizantes Esclerose múltipla Doença de Schilder Leucodistrofia metacromática Outras Lúpus eritematoso Adrenoleucodistrofia Hiperplasia adrenal congênita Ataxia de Friedreich Fenilcetonúria Síndrome de Turner Baseada em parte em Zanetti M, Elkis H, 20082 ' e Tandon R et ai., 200925•
Subtipo
Transtornos psicóticos
Bipolar tipo I, transtorno psicótico breve, depressão maior com sintomas psicóticos, transtorno esquizoafetivo, transtorno esq u izofren iform e
Transtornos de personalidade
Esquizotípico, esquizoide, borderline, paranoide
Transtornos por uso de substâncias psicoativas
Anfetamina, cocaína, crack, anticolinérgicos, LSD, mescalina, maconha, fenciclidina
Outros
Transtornos de ajustamento, síndrome de Asperger, transtorno delirante, transtorno de estresse pós-traumático, retardo mental
Para o diagnóstico diferencial, às vezes são necessários exames que permitam um screening adequado, sobretudo quando se tratar de uma primeira manifestação psicótica, especialmente em um adulto jovem: exame físico e neurológico, hemograma, funções tireoidianas e hepáticas, eletroencefalograma, presença de substâncias psicoativas na urina, tomografia ou ressonância magnética do encéfalo, cálcio e cobre séricos, sorologia para sífilis e HIV e, eventualmente, liquor. Medicamentos podem produzir sintomas psiquiátricos (em geral depressivos), mas eventualmente sintomas psicóticos, como é o caso de antivirais, antibióticos, antiparkinsonianos (especialmente dopa e seus derivados), ansiolíticos, antidepressivos, anticonvulsivantes, corticosteroides, digitálicos, psicoestimulantes (principalmente anfetaminas), entre outros21 •25•26.
Epidemiologia Uma metanálise recente envolvendo 55 trabalhos em 33 países mostrou que, ao contrário do que se pensava, a incidência de esquizofrenia varia entre os países, sendo sua mediana em torno de 15,2/100.000/ano, com uma proporção maior para os homens que para as mulheres (1,4 para 1), havendo maior incidência no grupo de migrantes e predominância em áreas urbanas quando comparadas às rurais e em latitudes mais elevadas do globo terrestre 27 • Já a prevalência varia de acordo com a medida adotada (expressa por 1.000 pessoas): a mediana da prevalência pontual é de 4,6, a prevalência por período é de 3,3 e a prevalência por toda vida é de 4. No caso da prevalência, não há diferença entre gêneros e urbanici dade, porém as taxas são maiores em migrantes, em países desenvolvidos e nas maiores latitudes28 • A mediana por risco durante a vida é de 7,2 e a mortalidade por qualquer causa é de 2,627-29• Dentre as cau-
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sas de mortalidade destaca-se o risco de suicídio, que na esquizofrenia é de 5%, enquanto na população em geral é de aproximadamente 1%30 . A Tabela XI apresenta esses dados discriminados por gênero28. No caso do Brasil, no estudo epidemiológico em área de captação abrangendo os bairros do Jardim América e Vila Madalena na cidade de São Paulo, Andrade et al. encontraram uma prevalência durante a vida de 1,9% para as chamadas psicoses não afetivas, o que, teoricamente, pode representar uma estimativa da prevalência de esquizofrenia no Brasil31. De acordo com os dados do censo de 2000, se esse índice for aplicado à população de faixa etária entre 17 e 49 anos (ou seja, aquela com maior r isco para esquizofrenia, cerca de 92.000.000 de pessoas), seria possível estimar que, aproximadamente, existem cerca de 1.750.000 de portadores de esquizofrenia em nosso país.
Medianas da incidência, prevalência, risco e mortalidade na esquizofrenia distribuídas na população e discriminadas por gênero27
Tabela XI
Incidência (por 100.000)
Total: 15,2 Homens: 15 Mulheres: 1O
Prevalência (por 1.000)
Pontual Total: 4,6 Homens: 4,3 Mulheres: 3 Por período Total: 3,3 Homens: 3,8 Mulheres: 3,6 Durante a vida Total: 4 Homens: 3,7 Mulheres: 3,8
Risco durante a vida (por 1.000)
Total: 7,2 Homens: 4,1 Mulheres: 4,6
Mortalidade por todas as causas
Total: 2,6 Homens: 2,8 Mulheres: 2,5
infância
Neuropatolog ia No princípio, a esquizofrenia era concebida como um transtorno do cérebro de curso progressivo e deteriorante (demência precoce), tendo como base um processo neurodegenerativo2; os primeiros estudos de Alzheimer e Southard apoiavam essa hipótese34. No entanto, tais achados iniciais não foram replicados, e as tentativas de se encontrar uma base neuropatológica da esquizofrenia mostraram -se tão infrutíferas que ficou famosa a frase "a esquizofrenia é o túmulo dos neuropatologistas"35.
Psicose 13 anos
Demora para ficar em pé Anda com 1,5 anos Timidez Sintomas e sma1s Poucas amizades Dificuldades escolares Estágios Maconha da Pré-mórbido doença Figura 1
Em termos do curso ou história natural, a esquizofrenia pode ser dividida nas fases pré-mórbida, prodrômica, progressiva e crônica32 (Figura 1). A fase prodrômica precede o início da doença. Nessa fase já são observadas alterações como atrasos no desenvolvimento motor ou retardo na aquisição da fala33, surgindo sintomas como alterações de personalidade, de pensamento e do humor, muitas vezes não detectáveis. É comum nesse período que a família procure ajuda de profissionais por causa do aparecimento de sintomas depressivos, que o quadro seja diagnosticado como um transtorno do humor e, como consequência, o paciente seja tratado com antidepressivos, sem resultados. Da mesma forma, é comum que a psicoterapia seja indicada, sem evidências de eficácia nesse período da doença. O período prodrômico culmina muitas vezes no primeiro episódio de psicose, e nesse ponto inicia-se a chamada fase progressiva do transtorno. Finalmente, o transtorno evolui para a fase de estabilidade ou crônica, ainda sujeita a recaídas (isto é, piora da sintomatologia). É importante lembrar que, na esquizofrenia, os sintomas negativos são detectados muitas vezes desde o princípio, ao passo que os sintomas positivos ou psicóticos ocorrem durante os episódios de exacerbação ("surtos"). A Figur a 1 (modificada a partir de Lieberman et al. 32) mostra essas fases da evolução da esquizofrenia, ilustradas com um caso típico.
Etipatogenia e neurobiologia
Cesariana .... O
Curso e evolução
14- 17
I
•Piora no desempenho e abandono escolar •Ag ressividade com os colegas e a família •Isolamento social •Sintomas de depressão Prodrômico
Evolução longitudinal e transversal de um caso de esquizofrenia.
17-25
35
la inter.: 17 anos
"Transtorno bipolar" Delírios e alucinações persistentes Internações Resposta parcial a vários antipsicóticos Progressivo
Embotamento afetivo-volitivo Disfunção sócioocupacional Crônico
49 ESQUIZOFRENIA
Alterações cerebrais: neuroimagem
Sob a influência dos primeiros estudos controlados com tomografia computadorizada, nos quais se observou maior predominância de dilatação ventricular e atrofia cortical no grupo de pacientes com esquizofrenia do que nos controles 36 -38, é que a concepção da esquizofrenia como uma doença do cérebro ganhou novo impulso. Formulou-se então uma hipótese alternativa em relação à neurodegeneração, que é a do neurodesenvolvimento cerebral. Essa teoria propõe que alterações previamente existentes ou precocemente adquiridas, ao interagirem com fatores desencadeantes, modificariam os circuitos cerebrais, determinando o aparecimento de quadros psicóticos39-43. Argumentos favoráveis à hipótese do neurodesenvolvimento - e consequentemente desfavoráveis à hipótese da neurodegeneração - provêm de várias fontes de evidências44-47, como: • presença de alterações cerebrais estruturais não progressivas e que são identificáveis já nas primeiras manifestações da doença; • ausência de gliose, que é uma alteração específica associada à neurodegeneração (p. ex., Alzheimer); • alterações da girificação cerebral; • redução da arborização com aumento de densidade neuronal em áreas pré-frontais (áreas 9 e 46), também chamada hipótese da redução do "neuropil"; • maior frequência de complicações obstétricas em pacientes em relação a controles; • pacientes com diagnóstico de esquizofrenia apresentam na infância maiores déficits no desenvolvimento cognitivo e motor em relação aos controles; • maior frequência de pequenas anomalias físicas; • associação com síndromes disgenéticas conhecidas (p. ex., síndrome velocardiofacial). Na realidade esses dois processos ocorrem na esquizofrenia, e a Figura 2 é bastante ilustrativa, mostrando que os processos do neurodesenvolvimento estão asso ciados aos períodos pré-morbido e prodrômico, ao passo que, a partir da irrupção da psicose, os processos neurodegenerativos passam a predominar48 .
Estágio do desenvolvi menta normal
Feto, criança
Estágio da doença Estágio fisiopatológico
Figura 2
...
Adulto JOvem
r Início da
Muito comprometido Pré-mórbido
Alterações estruturais cerebrais, como dilatação ventricular e atrofia cortical, foram observadas desde 1920 em cérebros de pacientes portadores de esquizofrenia, por meio de técnicas de pneumoencefalografia49-51 . No entanto, em razão do caráter invasivo daquela técnica, não havia estudos que pudessem comparar as imagens obtidas com as de controles normais e isso só ocorreu em 1976, graças ao estudo pioneiro de Johnstone et al., por meio de tomografia computadorizada36 . Desde então, uma quantidade enorme de estudos tem mostrado que os cérebros de pacientes com esquizofrenia apresentam uma série de anormalidades. O achado neuroestrutural mais replicado na esquizofrenia é o alargamento do sistema ventricular, principalmente ventrículos laterais e terceiro ventrículo, quando comparados com controles saudáveis52. Esse alargamento ventricular, observado em crianças e adolescentes portadores de esquizofrenia53, foi considerado a princípio uma demonstração de que a esquizofrenia é uma alteração do neurodesenvolvimento37, estando associada a pior resposta ao tratamento antipsicótico54. Posteriormente, com a evolução das pesquisas tais premissas não se sustentaram (conforme será discutido a seguir), tendo se verificado também que a dilatação ventricular está presente em pacientes com transtornos do humor, embora em menor grau52. São frequentes também as reduções do volume cerebral total e de substância cinzenta cerebral. Reduções volumétricas em regiões como córtex frontal, amígdala, cíngulo, hipocampo e giro para-hipocampal, regiões mesiais do lobo temporal e giro temporal superior foram consistentemente replicadas em estudos de pacientes com esquizofrenia, ganhando suporte também de grandes metanálises55. Nas últimas décadas, tem sido documentada uma redução bilateral no volume da formação hipocampal, observação embasada por achados de redução do n -acetil aspartato, um marcador de patologia neuronal em pa-
Puberdade e adolescência
...
Nível funcional
Neuroimagem estrutural
..-
pSICOSe Prodrômico
Processos do neurodesenvolvimento
Etiopatogenia, neurodesenvolvimento e neurodegeneração_
Idoso
Adulto
Progressivo
Crônico
Processos neurodegenerativos limitados
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cientes adultos não medicados e em pacientes em primeiro episódio da doença. Além disso, os estudos que utilizam o PET também revelaram disfunção hipocampal durante a recuperação de memória episódica em pacientes com esquizofrenia5 6 • Algumas dessas anormalidades, principalmente alargamento de ventrículos e reduções de volume cerebral total e hipocampo, já estão presentes em pacientes com primeiro episódio e também em familiares não afetados57 . O início precoce da esquizofrenia aparentemente está associado a alterações anatômicas similares, porém de maior gravidade58 • Woods mostrou em uma metanálise em que a redução dos volumes cerebrais ocorre antes e depois de o cérebro atingir o seu volume máximo59• Alterações cerebrais, especialmente dilatação ventricular, progridem em um subgrupo de pacientes, em contraposição à ideia de que as anormalidades seriam estáticas (isto é, de origem exclusivamente no neurodesenvolvimento)60• Assim, como salientado anteriormente, essas são evidências de que a esquizofrenia é um transtorno psiquiátrico associado tanto a alterações do neurodesenvolvimento como neurodegenerativas. Os antipsicóticos, como será discutido adiante, estão associados à redução da progressão da doença e, de fato, o seu uso está relacionado a alterações da estrutura cerebral61 •62 , como o aumento do tamanho dos gânglios basais com o uso de antipsicóticos típicos e respectiva redução com uso de atípicos63 . Em estudo de dois anos em pacientes de primeiro episódio, Lieberman et al. observaram redução da perda de substância cinzenta em pacientes usando olanzapina, o que não ocorreu com o grupo que utilizou haloperidol64 • Neuroimagem funcional
Vários estudos, inclusive corroborados por uma metanálise, demonstraram a presença de um menor fluxo sanguíneo em regiões cerebrais frontais ("hipofrontalidade"). Evidenciou-se uma correlação entre alterações do fluxo sanguíneo cerebral e as três principais síndromes da esquizofrenia21 •65•66 : • A diminuição do fluxo no córtex pré-frontal esquerdo e mediai correlacionou-se com a gravidade da síndrome negativa e foi relacionada a uma diminuição de atividade dopaminérgica, levando a prejuízos em função executiva, memória e atenção sustentada. • O aumento do fluxo na região mediai pré-frontal direita e a diminuição na área de Broca correlacionaramse com a gravidade da síndrome de desorganização. • O aumento do fluxo em áreas límbicas apresentou correlação com a gravidade dos sintomas psicóticos. Pacientes com esquizofrenia têm um baixo desempenho em tarefas cognitivas como memória de trabalho e funções executivas, associadas à redução da atividade do córtex pré-frontal, que foram identificadas inicialmente correlacionando-se o fluxo sanguíneo cerebral com o
desempenho em testes como o de Wisconsin67•68 • Vários estudos foram realizados posteriormente com técnicas como a da tomografia por emissão de pósitrons (PET), e uma metanálise confirmou esses achados 69 • Há toda uma vasta literatura que correlaciona a redução da atividade pré-frontal cerebral em pacientes com esquizofrenia e as funções cognitivas70 • Tais anormalidades foram observadas em familiares de primeiro grau71 , podendo estar associadas a um aumento da atividade dopaminérgica estriataF2, mas não são exclusivas da esquizofrenia, sendo possivelmente observadas em pacientes com transtornos do humor73 .
Fatores genéticos Há uma clara influência de fatores genéticos associados à esquizofrenia, sendo que o risco de desenvolver . ., . . , . esse transtorno ps1qwatnco aumenta quanto ma1s proXImo o parentesco. Ao longo da vida, o risco vai de 1% para população geral, 10% para quem tem um irmão com esquizofrenia, 18% para quem tem um gêmeo dizigótico, quase 50% para quem tem um gêmeo monozigótico7\ chegando a 80% quando se considera interação com o meio ambiente e 50% para quem tem os dois pais afetados por esquizofrenia. No entanto, 85% das pessoas com esquizofrenia não têm um parente de primeiro grau com a doença75 • Para diferenciar as influências ambientais das genéticas, diversos estudos com gêmeos foram conduzidos, comparando-se gêmeos filhos de pais com esquizofrenia e que foram criados por pais saudáveis e gêmeos filhos de pais sem esquizofrenia adotados por pais com a doença. Observou-se que o risco de esquizofrenia estava relacionado à presença da doença nos pais biológicos, mas não nos adotivos76• Um estudo clássico de gêmeos homozigóticos discordantes para esquizofrenia mostrou que o gêmeo afetado apresentava alterações estruturais cerebrais mais graves, sugerindo que o ambiente exerce um papel na gênese da esquizofrenia77•
População geral Cônjuges Primos (terceiro grau) Ti os e tias Sobrinhos e sobrinhas Netos Meio-irm ão
1 • • • -
Parentes de segundo grau
Filh os Irmãos Parentes de primeiro grau
Gêmeos dizigóticos Pais Gêmeos monozigóticos Filho de pais esquizofrênicos
o
10
20
30
40
Risco(%)
Figura 3
Risco para desenvolver esquizofrenia durante a vida.
50
49 ESQUIZOFRENIA
Já foram descritas inúmeras alterações cromossômicas estruturais78, porém há três que são mais frequentes: deleção de 22q 11, translocação de 1q42/ 11 q 14 e uma envolvendo cromossomo X79 . Há uma série de genes candidatos na etiologia da esquizofrenia: neurorregulina 1 (cromossomo 8p), disbindina (6p), catecol-ortometi-ltransferase (COMT) (22q), receptor SHT2a (13q), proteína G72 (13q), DISC (disrupted in schizophrenia)3>4, DRD1 -4 (receptores de dopamina D 1-D4) e GRM3 (receptores metabotrópicos de glutamato)80·81 (Tabela XII). Entretanto, a despeito do avanço nas pesquisas genéticas, o mecanismo preciso de herança da doença ainda continua desconhecido, sendo ainda a esquizofrenia considerada um transtorno de etiologia poligênica e multifatorial, com diversos polimorfismos que podem ter apenas pequeno efeito na suscetibilidade desse distúrbio80 . Os endofenótipos, definidos como fenótipos intermediários entre o genótipo e o fenótipo 82, podem representar uma alternativa importante na pesquisa do mecanismo de herança, pois os traços endofenotípicos estão relacionados a manifestações fenomenológicas e são determinados por um número menor de genes quando comparados aos fe nótipos80). No caso da esquizofrenia, já estão bem estabelecidos como endofenótipos as alterações da movimentação ocular e os distúrbios da memória de trabalho 82. Interação entre fatores ambientais e genéticos
Fatores ambientais (fatores biológicos e psicossociais) podem ter influência no desenvolvimento da esquizofrenia, representando assim fatores de risco que podem ser subdivididos naquelas que ocorrem em torno ("precoces") e após a época do nascimento ("tardios"). São eles: 1) Precoces • Complicações obstétricas o Interagem com a vulnerabilidade genética, o que aumenta o risco para esquizofrenia83·84 . Há predominân-
Tabela XII
cia de complicações obstétricas em pacientes com diagnóstico de esquizofrenia quando comparados com controles. o Complicações obstétricas como hipóxia, que pode levar a efeitos citotóxicos no cérebro do feto, estão associadas a maior risco85. Ainda não se sabe se a alta frequência de complicações obstétricas em portadores de esquizofrenia é resultado de neurodesenvolvimento anormal mais vulnerabilidade genética ou se é um fator de risco para o desenvolvimento de esquizofrenia86 . • Infecções pré-natais86 o Aumento de diagnóstico de esquizofrenia após epidemia de gripe asiática em 1957. o Injluenza materna. o Rubéola. o Desnutrição. o Diabetes mellitus. o Tabagismo durante a gestação. 2) Tardios
• Fatores sociodemográficos o Condições ambientais adversas como pobreza e classe social baixa estão associadas a um maior risco, considerando-se que a doença prejudica o funcionamento social e ocupacional86 . o Pacientes nascidos em áreas urbanas são mais propensos a esquizofrenia quando comparados com os de área rural. • Abuso de substâncias (principalmente maconha). o Um estudo neozelandês aponta que o uso precoce de maconha aumenta em quatro vezes o risco de esqui zofrenia no futuro 87-89 . Um estudo feito no exército sueco mostrou que aqueles que usaram maconha mais de 50 vezes tiveram seis vezes mais chance de ter esquizofrenia, quando comparados com os que nunca usaram 90 . o O uso de maconha associado à vulnerabilidade ge, . nehca.
Genes candidatos na esquizofrenia Lo cus
Evidências de associação
Outras evidências
Gene
Efeito ou produto
COMT
Catecol-ortometil-transferase
22qll
++++
Associado com disfunção neuropsicológica e alterações de imagem
DTNBPl
Distrobrevina-proteina de ligação
6p22-3
++++
Múltiplas funções neuronais
HTR2A
Receptor 5 HT2A
13q14-2
Metanálise
NRGl
Neurorregulina
8p12
RGS4
Regulador da proteína G-sinal 4
lq23-3
+++
DRD3
Receptor de DA e 03
3q13-31
Metanálise
DISCl e 2
"Disrupted in schizophrenia"
lq42-2
+++
Translocação associada à esquizofrenia
G72
Produz PLG72
13q32-2
+++
Associada também a TAB
PRO OH
Prolina-desidrogenase
22qll -21
+
++++
Associada a resposta a antipsicóticos Expressão alterada no córtex pré-frontal Estudos post mortem (microarray) Teoria Dopaminérgica
Deleção associada a esquizofrenia
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o Variações no gene envolvido na metabolização da
2) Em estudos com tomografia por emissão de pó-
dopamina pela COMT podem interferir no risco de psicose em usuários de maconha9 1• • Migração o Observou-se que a população afro -caribenha em Londres e afro-americanos muitas vezes apresentam maior risco para desenvolver esquizofrenia indivíduos biologicamente predispostos que a população local, sugerindo que os eventos estressantes enfrentados pelas minorias étnicas podem predispor a maior risco para esquizofrenia em indivíduos suscetíveis86 .
sitrons, observa-se que 60 a 80% dos receptores D2 estão ocupados com as doses terapêuticas dos antipsicóticos. 3) Há um aumento de receptores D2 em pacientes com esquizofrenia nos estudos em que foram empregados ligantes específicos, como é o caso da metilespiperona. 4) Não há evidências de aumento de receptores D 1 em pacientes com esquizofrenia. 5) Concentrações de dopamina estão aumentadas no cérebro de pacientes com esquizofrenia. As origens dos sintomas da esquizofrenia passaram a ser explicadas pela "teoria dopaminérgicà' nas suas três versões95 • Assim, na chamada versão I, os sintomas psicóticos são explicados por um excesso de atividade dopaminérgica subcortical, especialmente nas regiões límbicas 9 5 • Na versão II da teoria, coube a Davis et al. apresenta uma reformulação, que então passou a apre sentar uma explicação para a origem dos sintomas negativos: a diminuição de atividade dos receptores dopaminérgicos D1, abundantes no córtex frontal 96 • Assim, a teoria ficou mais completa, de modo que os sintomas positivos passaram a ser explicados por um aumento da atividade dopaminérgica subcortical, enquanto os sintomas negativos poderiam ser explicados por uma diminuição da atividade dopaminérgica cortical. Com a evolução dos estudos de neuroimagem e opapel de outros receptores dopaminérgicos, como os receptores D3 e a proposta da "teoria da saliência aberrante" 97•98 (que propõe que o aumento da atividade dopaminérgica alteraria a percepção dos estímulos, promovendo uma "saliência aberrante" de certos esquemas cognitivos preexistentes, gerando, por exemplo, sintomas psicóticos, como os delírios), foi formulada a última versão da teoria dopaminérgica, com quatro componentes95 : 1) A alteração da regulação dopaminérgica é uma via final comum causada por uma série de "golpes". 2) O local da alteração da regulação dopaminérgica ocorre em um nível pré-sináptico dos receptores D2. 3) A alteração da regulação dopaminérgica está associada à "psicose" e não somente à " esquizofrenià'. 4) A alteração da regulação dopaminérgica altera a percepção dos estímulos pelo mecanismo da saliência aberrante. A Figura 4 ilustra essa teoria: o aumento da transmissão dopaminérgica induzida por vários estímulos, a liberação de dopamina e a redução da saliência aberrante graças à administração de antipsicóticos, princípio básico do tratamento das psicoses.
Fisiopatologia: hipótese dopaminérgica Na década de 1950, observou-se que nos primeiros pacientes tratados com clorpromazina, o primeiro dos antipsicóticos, a melhora estava associada a uma síndrome parkinsoniana ("síndrome de impregnação"), que passou a ser considerada, na época, necessária para o efeito terapêutico. Posteriormente, foi descoberto que a doença de Parkinson estava associada a uma diminuição de doparnina no striatum e, portanto, surgiu a hipótese de que a síndrome parkinsoniana produzida pelos antipsicóticos resultaria de uma diminuição da dopamina no striatum. Inversamente, observou-se que substâncias como a anfetamina, que induzem o aumento da dopamina (agonistas dopaminérgicos), produziam psicoses semelhantes às da esquizofrenia. Tais aspectos podem ser explicados por meio da hipótese dopaminérgica da esquizofrenia, que pode ser assim resumida: 1) Os sintomas psicóticos estariam associados a um excesso de dopamina. 2) A melhora dos sintomas psicóticos seria devida a um bloqueio da dopamina. 3) A síndrome extrapiramidal (SEP) traduziria o bloqueio dopaminérgico. Atualmente, sabe se que o sistema dopaminérgico possui cinco tipos de receptores pós-sinápticos: D 1, D2 e D3, que são abundantes no núcleo acumbente e estriado, ao passo que os receptores D4 e DS são mais abundantes no mesencéfalo, na amígdala, no hipocampo e no córtex92 • Por outro lado, há também os chamados autorreceptores pré-sinápticos de D2, que podem exercer função regulatória de liberação de dopamina por meio de mecanismos de inibição da liberação de tal neurotransmissor93; eles têm grande importância no mecanismo de ação de certos antipsicóticos. Seeman e Kapur 94 mostraram que a base da teoria dos receptores dopaminérgicos nas psicoses radica-se em algumas linhas de evidência: 1) A potência clínica dos antipsicóticos está diretamente relacionada com sua capacidade de ocupação de receptores D2 (presentes predominantemente no striatum), havendo uma correlação entre as doses terapêuticas empregadas e as constantes de inibição dos antipsicóticos.
Tratamento da esquizofrenia A esquizofrenia é uma doença crônica com períodos de exacerbação e remissão, associada a grande prejuízo social e funcional. Seu tratamento deve incluir, além da abordagem medicamentosa e intervenções psicosso-
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Dopamina liberada Disfunção frontotemporal Saliência aberrante
Genes
Drogas Estresse Antipsicóticos Dopamina nas vesfculas o Transportador de dopamina Receptor D2 -
Figura 4
)I
t
Saliência aberrante
e
Teoria doparminérgica versão 111.
ciais, medidas para melhorar a adesão ao tratamento e evitar hospitalizações frequentes99, 100.
Tratamento medicamentoso O tratamento medicamentoso da esquizofrenia baseia-se no uso de antipsicóticos, os quais já foram abordados em detalhes no Capítulo 83. O uso de algoritmos para tomada de decisões no tratamento das doenças é uma prática cada vez mais difundida. Os algoritmos devem ser baseados em evidências, e não na "experiência do especialista", pois esta não pode ser avaliada em termos científicos. O emprego de algoritmos, por outro lado, fornece uma base científica para que clínicos tomem decisões e obtenham as mesmas soluções diante de situações clínicas semelhantes. Vários algoritmos têm sido propostos para a tomada de decisões no tratamento da esquizofrenia, como o TMAP (Texas Medication Algorithm Project) 101 e, mais recentemente, o IPAP (International Psychopharmacology Algorithm Project) 102 (Algoritmo 1). Além de algoritmos, foram publicadas diretrizes e recomendações, como as da Federação Mundial das Sociedades de Psiquiatria Biológica 103 , da Associação Americana de Psiquiatria 104 , do NICE (National Institute for Health and Clinicai Excellence - Reino Unido) 105 e do PORT (Schizophrenia Patient Outcomes Research Team) 106 • Todas as diretrizes e algoritmos mencionados recomendam o uso de antipsicóticos em monoterapia como tratamento de primeira linha, e o uso da clozapina em casos de pacientes identificados como resistentes a tratamento ou refratários. Embora nenhum algoritmo mencione um medicamento de escolha no tratamento do primeiro episódio ou de fases de exacerbação, todos recomendam que sejam testados pelo menos dois antipsicóticos e que pelo menos um deles seja de segunda geração. As diretrizes do PORT recomendam não utilizar a olanzapina como tratamento de primeira linha no pri-
meiro surto antipsicótico, por causa do maior risco de eventos adversos metabólicos 106 • O algoritmo para o tratamento da esquizofrenia do IPAP foi desenvolvido com o apoio do Collegium Internationale Neuropsychopharmacologicum (CINP), sendo atualmente recomendado pela Organização Mundial da Saúde. Esse algoritmo tem como base a monoterapia antipsicótica (isto é, deve ser evitada a politerapia antipsicótica, dada a ausência de evidência de sua eficácia) 102 (Algoritmo 1). Uma vez feito o diagnóstico de esquizofrenia, é recomendado um tratamento com antipsicótico de segunda geração ou, caso não esteja disponível, um antipsicótico de primeira geração, em doses adequadas, pelo período de quatro a seis semanas. Se o paciente responder ao primeiro, é considerado responsivo e deverá permanecer tomando o antipsicótico como tratamento de manutenção. Caso não responda, deverá tentar um segundo tratamen. . , . . . to antlpsiCotlco por ma1s quatro a se1s semanas. Na ausência de resposta terapêutica adequada a essas duas tentativas, o paciente é considerado refratário e, nesse caso, o terceiro antipsicótico a ser administrado deve ser necessariamente a clozapina, que pode alcançar a dose máxima de até 900 mg/dia, sempre em monoterapia. De acordo com o IPAP, se não houver resposta adequada à clozapina, o paciente é considerado respondedor parcial, e estratégias de potencialização do medicamento podem ser tentadas. Os respondedores parciais à clozapina são também conhecidos como super-refratários. A cada passo do tratamento, devem ser considerados aspectos como o risco de suicídio, sintomas catatônicos, risco de agitação ou violência, não adesão ao tratamento, sintomas depressivos, abuso de substâncias e efeitos colaterais dos antipsicóticos. Para cada um deles, medidas específicas podem ser tomadas, como a introdução de medicamentos apropriados (não antipsicóticos) para o combate aos sintomas dessas manifestações. Os principais antipsicóticos de primeira e segunda geração estão listados no Capítulo 83 sobre antipsicóticos.
Avaliação da resposta ao tratamento antipsicótico Na grande maioria dos estudos clínicos publicados, a resposta ao tratamento antipsicótico é avaliada por meio de escalas de avaliação psicopatológica, especialmente a PANSS (Escala para Avaliação das Síndromes Positiva e Negativa) 1 1 e a BPRS (Escala Breve de Avaliação Psiquiátrica)8'10. O paciente é considerado respondedor quando sua pontuação na escala diminui em uma porcentagem pré-estabelecida, geralmente entre 20 e 50% 107 • Contudo, tais critérios de resposta são utilizados em situações de pesquisa clínica, e cabe aqui uma aproximação da pesquisa para a prática clínica diária. A diminuição da pontuação nas escalas PANSS ou BPRS sempre foi um requisito exigido para a aprovação
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CLÍN ICA PS IQUIÁTRICA
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SEÇÃO 5 AS GRANDES SÍNOROMES PS ICOPATOLÓG ICAS
1. Diagnóstico de esquizofrenia ou transtono esquizoafetivo
•
2. Considerar aspectos iniciais e críticos que influenciam o tratamento e a escolha da medicação (aqui e em cada ponto subsequente) SEM PRE considerar. A Risco de suicídio B. Catatonia ou SNM C. Agitação/violência O. Falta de adesão E. Depressão ou sintomas -----1~ de humor F. Abuso de substâncias G. Fase prodrômica ou primeiro episódio H. Efeitos colaterais induzidos
...
+ MONOTERAPIA 3. 4 a 6 semanas de tratamento com um atípico (AM I, ARIP, OLANZ, QUET, RISP ou ZIP) ; se não estiver disponível, usar HAL, CLOR ou outro típico
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4. Dose, duração e tolerabilidade adequadas
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5. Psicose persiste após ajuste de dose?
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6. 4 a 6 semanas de tratamento com um atípico (AMI, ARIP, OLANZ, QUET, RISP ou ZIP) ou, se não estiverem disponíveis, usar HAL, CLOR ou outro típico
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63
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7. Tratamento adequado
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8. Psicose ou OT após ajuste da dose?
9. Tratamento com CLOZ por 6 meses até 900 mg/dia 11. Otimizar ou potencializar CLOZ com ECT, antipsicóticos ou outros medicamentos
Sim
~ 1O. Sintomas persistem?
Não
...
12. Fase de manutenção
Não
Algoritmo 1 lnternatíonal Psychopharmaco/ogy Algoríthm Projec (IPAP). AMI: amissulprida; ARIP: aripriprazol; CLOR: clorpromazina; CLOZ: clozapina; DT: discinesia tardia; ECT: eletroconvulsoterapia; HAL: haloperidol; OLANZ: olanzipina; QUET: quetiapina; RISP: risperidona; SNM: síndrome neuroléptica maligna; Zl P: ziprasidona.
regulatória de medicamentos, de modo a demonstrar a eficácia dos antipsicóticos. Para avaliar um percentual de diminuição significativa em termos de impressão clínica, Leucht et al. 108 analisaram a correspondência entre porcentagem de diminuição da PANSS ou BPRS e a Escala de Impressão Clínica Global (CGI) 109 • Verificou-se que uma CGI "minimamente melhor" correspondia a uma diminuição de 19% na pontuação da PANSS na primeira semana e de 28% na sexta semana de tratamento com
antipsicótico. Já uma CGI "muito melhor" correspondia a uma diminuição de 41% da pontuação da PANSS na primeira semana e de 53% na sexta semana de tratamento com antipsicótico. Essa análise mostrou que um paciente deve ser considerado respondedor ao tratamento antipsicótico se tiver pelo menos 50% de redução dos sintomas em relação ao início do tratamento. Contudo, no caso de pacientes refratários, uma diminuição de 25% já pode ser considerada significativa.
49 ESQUIZOFRENIA
O avanço do tratamento da esquizofrenia levou a metas de tratamento mais ambiciosas e impulsionou a discussão e a proposta de critérios de remissão. Os critérios de remissão mais utilizados atualmente foram propostos por Andreasen et al. 110 . Várias análises fatoriais identificaram três dimensões psicopatológicas na esquizofrenia: negativa, positiva e desorganizada. A dimensão negativa refere-se ao prejuízo psicomotor e inclui discurso empobrecido e embotamento afetivo, entre outros sintomas. A dimensão positiva engloba os sintomas psicóticos (delírios e alucinações) e os sintomas desorganizados incluem o afeto inadequado, tangencialidade e pressão para falar. Os critérios de remissão propostos por Andreasen et al. 110 foram selecionados de modo a mapear a melhora nessas três dimensões, por meio de escalas que avaliassem sintomas positivos e negativos, como a PANSS.
Tempo de resposta ao tratamento antipsicótico As atuais diretrizes de tratamento da esquizofrenia preconizam 4 a 8 semanas para se avaliar a resposta de um tratamento antipsicótico 101' 102' 104, 111 • Esse período foi estabelecido com base nos estudos de eficácia dos antipsicóticos e tem sido reconhecido ao longo dos anos pelos livros-textos 112• Entretanto, análises recentes de dados de estudos duplos-cegos mostram que o tempo de resposta aos antipsicóticos é mais curto, sendo possível observar uma resposta significativa já nas primeiras duas semanas de tratamento; além disso, se um paciente não apresentar melhora nesse período, é bem provável que não apresente resposta ao final de 6 a 8 semanas de tratamento 112' 113 • É importante ressaltar que a "melhora significativa'' nas primeiras duas semanas não é a resposta completa, e sim uma melhora de pelo menos 20% na pontuação da PANSS ou BPRS"2' 113 , pois, como já visto, na resposta ao tratamento, espera-se que o paciente tenha uma diminuição de aproximadamente 50% na pontuação da PANSS 108 ou de pelo menos 25%, nos casos de pacientes com esquizo frenia resistente a tratamento.
Outras formas de intervenção terapêutica Ensaios randomizados controlados têm mostrado que a terapia cognitiva comportamental (TCC) é supe rior ao placebo para o tratamento de sintomas positivos persistentes 114 . A TCC promove também melhora dos sintomas gerais da esquizofrenia, inclusive em pacientes refratários à clozapina (super-refratários) 115 . Um estudo recente realizado no Instituto de Psiquiatria do HC mostrou que, em pacientes com esquizofre. . . . , . ma resistente a tratamento antipsicotico, o tratamento combinando clozapina e terapia ocupacional mostrou -se mais eficiente que o uso isolado de clozapina116 . A estimulação magnética transcraniana (EMT) é um método não invasivo de investigação e modulação da ex-
citabilidade cortical, que altera a atividade cortical a partir de um campo elétrico induzido por um campo magnético, que, por sua vez, é gerado por uma bobina colocada na superfície do crânio 117' 118 • Alguns estudos demonstraram que a EMT, quando aplicada repetidamente (EMTr) em baixa frequência ao córtex têmporo-parietal, reduz de modo significativo a intensidade das alucinações 119, 120 . Já a EMTr em alta frequência no córtex dorso lateral pré-frontal esquerdo mostrou resultados controversos na melhora dos sintomas negativos da esquizofrenia121' 122• A eficácia da EMTr sobre os sintomas negativos foi maior em pacientes crônicos com sintomas negativos mais pronunciados 121 • Ainda não há um consenso quanto à eficácia da EMTr no tratamento da esquizofrenia, visto que os resultados reportados têm sido conflitantes e, além disso, foram obtidos utilizando-se diferentes frequências 121 • O uso da eletroconvulsoterapia (ECT) para o tratamento da esquizofrenia iniciou-se na década de 1930, porém diminuiu após o advento dos antipsicóticos. No entanto, com o reconhecimento da eficácia limitada dos antipsicóticos em muitos casos, o interesse no ECT voltou a crescer 123 . Os resultados dos estudos do uso do ECT no tratamento da esquizofrenia são controversos e exis tem poucos ensaios clínicos publicados sobre o assunto. Porém, o ECT deve ser considerado uma opção de tratamento associado a antipsicóticos, especialmente em casos que não apresentam boa resposta ao tratamento medicamentoso e que precisam de redução rápida dos sintomas 124. Os pacientes resistentes a tratamento medicamentoso continuam sendo um dilema na psiquiatria, por isso o ECT constitui uma alternativa importante de tratamento, sempre associado a um antipsicótico 123 .
Tratamento da esquizofrenia refratária Estima-se que 30% dos pacientes com esquizofrenia sejam refratários 125 (ou seja, apresentam uma resposta apenas parcial aos antipsicóticos típicos ou atípicos). Para esses pacientes, o medicamento recomendado é a clozapina 125, 126 • Contudo, é importante que antes de se classificar um paciente como portador de esquizofrenia refratária seja verificado se ele recebeu tratamento com pelo menos dois antipsicóticos, em doses adequadas e durante um período adequado, para se observar a resposta, que geralmente corresponde à redução da gravidade dos sintomas, de acordo com escalas como a PANSS ou a BPRS. Portanto, o conceito de esquizofrenia refratária está associado ao conceito de resposta, e não de remissão. Outro fator importante a ser avaliado para verificar a refratariedade é a adesão ao tratamento, que continua sendo um grande problema no manejo da esquizofrenia, com uma taxa de abandono de aproximadamente 50%127• Estratégias que melhoram a adesão do paciente ao tratamento, como a psicoeducação e o uso de antipsicóticos de depósito, são meios de se abordar esse problema.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Como utilizar a clozapina
As características da clozapina já foram descritas no Capítulo 83 sobre antipsicóticos. Trata-se do primeiro antipsicótico denominado "atípico"; porém, por causa do risco de causar agranulocitose, teve seu uso estabelecido como tratamento de segunda linha, reservado para casos refratários a outros antipsicóticos. Antes de se iniciar o tratamento com clozapina, devese fazer exame físico, laboratorial e eletrocardiográfico. Os exames laboratoriais devem incluir, além do hemograma, avaliação de colesterol e triglicérides. A clozapina pode causar agranulocitose em até 1% dos pacientes, quando não se faz a monitoração hematológica. Entretanto, a monitoração por meio da realização frequente de hemogramas diminui o risco de agranulocitose para 0,03%128 . O hemograma inicial, incluindo contagem de plaquetas, fornece informações importantes para o acompanhamento de alterações que ocorrerem após a introdução da clozapina. Caso o paciente esteja utilizando outro antipsicótico, dois procedimentos podem ser adotados, de acordo com o julgamento clínico: a diminuição gradual, enquanto se introduz a clozapina, no decorrer de duas semanas, até sua retirada, ou a retirada total do antipsicótico em uso antes da introdução da clozapina. O ideal é que opaciente não esteja tomando nenhum antipsicótico no momento em que iniciar a clozapina. Caso isso não seja possível, é recomendável dar preferência a antipsicóticos de alta potência, como a flufenazina ou o haloperidol, nas menores doses possíveis 129 . É recomendável evitar o uso de benzodiazepínicos no início do tratamento e utilizá-los com cautela mesmo após período maior de tratamento com clozapina. Medicamentos anticolinérgicos, como o biperideno, também devem ser evitados, porque potencializam os efeitos colaterais anticolinérgicos da clozapina. De acordo com as recomendações do fabricante, os exames hematológicos devem ser semanais nas primeiras 18 semanas e quinzenais após esse período, visto que aproximadamente 75% dos casos de agranulocitose ocorrem nas primeiras 18 semanas. Não se deve iniciar o tratamento em pacientes com nível de leucócitos< 3.500/ mm3 ou de neutrófilos < 2.000/mm3 • Deve-se iniciar o tratamento com dose baixa, não mais que um ou dois comprimidos de 25 mg no primeiro dia de tratamento. A dose deve ser ajustada individualmente, e aumentada de modo bem lento, não mais que 25-50 mg a cada dois dias, para melhorar a tolerabilidade, minimizando-se a hipotensão e o risco de convulsões. A faixa terapêutica costuma se situar entre 300 e 600 mg/ dia, mas essa dose pode variar de acordo com cada paciente. Não se deve utilizar doses elevadas em pacientes que apresentarem mioclonias, por causa do risco de convulsões. É preciso ter cautela quando se ultrapassa a dose de 600 mg/ dia, por causa do maior risco de convulsões. A dose máxima de 900 mg/dia não deve ser ultrapassa-
da. O cigarro, por ser indutor enzimático, pode reduzir em até 40% os níveis séricos de clozapina, e isso deve ser levado em consideração no ajuste de dose. O tratamento com clozapina deve ser descontinuado imediatamente se a contagem dos glóbulos brancos for inferior a 3.000/mm3 ou se a contagem de neutrófilos for inferior a 1.500/mm3 durante as 18 primeiras semanas de tratamento; ou se a contagem de leucócitos for inferior a 2.500/mm3 ou a contagem de neutrófilos for inferior a 1.000/mm3 após as primeiras 18 semanas de tratamento.
Tratamento da esquizofrenia super- refratária Quando um paciente não responde ao tratamento com clozapina, é considerado super-refratário ou respondedor parcial, ou ainda refratário à clozapina. Aproximadamente 30% dos pacientes refratários são super-refratários125·126. Nesses casos, é recomendado associar algum tratamento de potencialização da clozapina. É importante notar que não é recomendada a substituição da clozapina, porque além de não existir até o momento nenhum tratamento comprovadamente mais eficaz, sua retirada pode levar a uma psicose por supersensibilidade, sendo esse problema mais evidente com a clozapina que com outros antipsicóticos 130 • Uma metanálise mostrou que a adição de um segundo antipsicótico não traz benefícios aos pacientes que respondem parcialmente à clozapina131 • A memantina é um antagonista não seletivo de receptores de glutamato, utilizado no tratamento da doença de Alzheimer nas fases moderada a grave. A combinação da memantina com ASG em pacientes psicóticos com sintomas residuais não demonstrou eficácia, de acordo com estudo duplo -cego controlado com placebo 132. Entretanto, os pacientes desse estudo não eram necessariamente refratários nem utilizavam clozapina. Em pacientes super-refratários, a adição de memantina mostrou-se útil em promover a melhora tanto de sintomas positivos como negativos em pacientes com esquizofrenia refratária em uso de clozapina, de acordo com um estudo duplo-cego controlado com placebo, conduzido no Brasil 133 . A melhora observada com a adição da memantina à clozapina está alinhada à teoria glutamatérgica da esquizofrenia 13\ que propõe que o glutamato tem um papel central na fisiopatologia e que a melhora do tônus glutamatérgico em algumas áreas do cérebro poderia aliviar sintomas da doença. A meman tina age possivelmente modulando a disfunção glutamatérgica, ao bloquear parcialmente os receptores de NMDA. A melhora dos sintomas em pacientes superrefratários, observada com a adição da memantina, é promissora, mas ainda precisa ser replicada em estudos . mawres. A lamotrigina é um medicamento anticonvulsivante utilizado no tratamento da epilepsia e da depressão no
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transtorno bipolar. Ela age inibindo os canais de sódio e a liberação excessiva de glutamato no cérebro. Em combinação com a clozapina, apresenta um efeito benéfico, tanto em sintomas positivos como negativos, conforme demonstrou uma metanálise 135 • Dessa forma, entre os tratamentos medicamentosos para a esquizofrenia super-refratária, a combinação que apresenta maior evidência científica de eficácia é a associação da clozapina com a lamotrigina. É importante iniciar a lamotrigina em doses baixas (25 mg/ dia ou até 12,5 mg/dia), aumentando lentamente, a cada duas semanas, para reduzir o risco de rash cutâneo. Além dos tratamentos medicamentosos que podem ser associados à clozapina, outras possíveis alternativas são o uso do ECT, da TCC e da EMTr, já discutidos anteriormente neste capítulo 115•123•136. Questões 1. As principais dimensões psicopatológicas da esquizofrenia são:
a) b) c) d) e)
Cognitiva, depressiva, psicótica e maníaca. Psicótica, cognitiva, negativa e depressiva. Psicótica, negativa, de desorganização, cognitiva e depressiva. Psicótica, negativa e depressiva somente. Negativa, cognitiva e desorganização somente.
2. a) b) c) d) e)
A etiologia da esquizofrenia é: Genética, ligada aos genes que regulam a dopamina. Ambiental, determinada por fatores como uso de drogas. Cerebral, associada a alterações estruturais preexistentes. Viral, afetando o cérebro do feto nos primeiros meses de gestão. Fatores genéticos e ambientais interagem determinando o fenótipo.
3. a) b) c) d) e)
O curso da esquizofrenia apresenta os seguintes períodos: Prodrômico e crônico. Progressivo, prodrômico e crônico. Pré-morbido, prodrômico, progressivo e crônico. Prodrômico, crônico e progressivo. Crônico e progressivo.
4. As alterações cerebrais mais comuns associadas à esquizo-
a) b) c) d) e)
frenia são: Dilatação ventricular e atrofia cortical. Dilatação ventricular e atrofia cerebelar. Atrofia hipocampal e dos gânglios da base. Atrofia dos gânglios da base somente. Atrofia do giro do cíngulo e dos gânglios da base.
5. Qual a alternativa incorreta:
a) Os antipsicóticos representam o principal tratamento para esqu izofrenia. b) Os antipsicóticos devem se utilizados em combinação com métodos psicossociais, tais como orientação familiar e/ou psicoterapia.
c) A clozapina é o antipsicótico de escolha para o tratamento da esquizofrenia refratária. d) Os antipsicóticos podem retardar a progressão da deterioração da doença. e) A eletroconvulsoterapia nunca é utilizada no tratamento da esquizofrenia.
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
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Síndromes Psicopatológicas: Transtornos Psicóticos Breves, Transtorno Esquizoafetivo e Transtorno Delirante Paulo Clemente Sallet Fabiele Maidel Fritzen Lívia Emy Fukuda
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Transtorno psicótico breve (TPB - DSM-IV) e transtorno psicótico agudo transitório (TPAT - CI D- 1O), 623
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Transtorno psicótico agudo transitório da CI 0-1 O (TPAn. 624 Transtorno psicótico breve do DSM-IV-TR (TPB), 627 Transtorno esquizofreniforme. 627 Etiopatogenia, 627 Fatores de validação nosológica, 628 Relação entre TPAT e bouffée délirante (BD), 630 Relação entre TPAT e psicoses cicloides, 630 Transtorno esquizoafetivo, 634 História, 634 Epidemiologia, 635 Etiopatogenia, 635 Características clínicas e diagnóstico, 638 Diagnóstico diferencial, 639 Curso e prognóstico, 639 Tratamento, 639
1. Conhecer os critérios diagnósticos e identificar os diferentes transtornos psicóticos agudos transitórios descritos na CID- 1O. 2. Conhecer os critérios diagnósticos e identificar o transtorno psicótico breve e o transtorno esquizofreniforme descritos no DSM-IV-TR. 3. Conhecer e identificar variáveis epidemiológicas e clínicas no diagnóstico diferencial entre os transtornos psicóticos transitórios a as síndromes esquizofrênicas. 4. Conhecer a evolução dos critérios diagnósticos, diagnóstico diferencial e manejo terapêutico dos trantornos esquizoafetivos. 5. Conhecer a evolução dos critérios diagnósticos, diagnóstico diferencial e manejo terapêutico dos trantornos delirantes persistentes.
Transtorno delirante persistente (TO), 640 Epidemiologia, 641 Etiopatogenia, 641 Diagnóstico e características clínicas, 642 Diagnóstico diferencial, 643 Curso e prognóstico, 644 Tratamento, 644 Questões, 645 Referências bibliográficas, 645
Transtorno psicótico breve (TPB- DSM-IV) e Transtorno psicótico agudo transitório (TPAT- CID-lO) O DSM- IV traz sob a rubrica "Outros Transtornos Psicóticos" o transtorno esquizofreniforme, o transtorno psicótico breve e o transtorno esquizoafetivo. Esses distúrbios são pouco estudados quando comparados à es-
quizofrenia e aos transtornos de humor e seu diagnóstico, frequentemente, é aplicado de forma equivocada. Em razão da precariedade de evidências que possam documentar suficientemente o transtorno psicótico breve (TPB - DSM-IV) e o transtorno psicótico agudo transitório (TPAT - CID-lO) como entidades nosologicamente distintas, o agrupamento dos diversos transtornos sob essas designações, como se fossem categorias diagnósticas delimitadas, é um construto em grande medida artificial e arbitrário. Portanto, sua descrição tampouco pode ser feita nos moldes dos transtornos psíquicos mais delimitados. O registro dos quadros psicóticos agudos com remissão completa tem uma longa história1• Uma das primeiras descrições de quadros psicóticos com curso favorável foi feita por Meynert ( 1856-1926) na sua denominada amentia. Diversos outros psiquiatras europeus descreveram quadros semelhantes sob diferentes designações (Quadro I).
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro I
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Antecedentes descritivos dos transtornos psicóticos agudos transitórios
Amentia (Meynert, 1889): transtorno psicótico de início agudo caracterizado por confusão, perplexidade, agitação, mudanças rápidas na sintomatologia, alucinações e delírios vívidos, equívocos na identificação de pessoas, ansiedade e apreensão. Primeiramente introduzido por Theodore Meynert (1833- 1898), que observou associação com doenças clínicas e exaustão em alguns pacientes. Ocorre remissão completa em poucas semanas ou meses. Embora tenha tido alguma relevância na época, a amentia não teve muita influência na literatura. Psicose cicloide 2•4 : transtorno psicótico caracterizado por início agudo e bom prognóstico, embora com frequentes reagudizações. Caracterizado por confusão, delírios incongruentes com o humor, alucinações, ansiedade extrema, sentimento extremo de felicidade ou êxtase, alterações motoras de tipo acinético ou hipercinético, preocupações exageradas com a morte, oscilações do humor e mudanças rápidas no padrão de sintomas durante o episódio. Karl Kleist (1879- 1960) descreveu inicialmente duas variantes: (1) psicose confusional, caracterizada por fases contrastantes de excitação confusa e estupor; e (2) psicose da motilidade, caracterizada também pelo contraste entre fases hipercinéticas e acinéticas. Uma terceira variante foi introduzida mais tarde por Karl Leonhard (1904- 1988), a (3) psicose de angústia/felicidade. O diagnóstico de psicose cicloide ainda é utilizado na Alemanha, países escandinavos e outros países europeus, tendo influenciado a formulação dos critérios para TPAT da CID- 1O. Perris e Brockington 4 propuseram um conjunto de critérios diagnósticos para as psicoses cicloides.
Bouffée délirante5·6 : transtorno psicótico de início agudo seguido de remissão completa em pacientes sem história psiquiátrica prévia. Os episódios se caracterizam por delírios, alucinações, despersonalização e desrealização, confusão, alterações de humor e oscilação de sintomas durante o curso do evento. Não estão associados com transtornos orgânicos ou com abuso de substâncias. Introduzida por Valentin Magnan (1835- 1916) e Paui- Maurice Legrain (1860- 1939) em 1895, a síndrome teria como causa a degeneração, conceito do séc. XIX (Morei) em que os transtornos mentais eram atribuídos ao impacto da civilização moderna e à vida urbana. O diagnóstico de bouffée délirante ainda é utilizado em países francófonos da Europa, oeste da África e Caribe. O conceito de bouffée délirante influenciou os critérios para TPAT da CI D- 1O. Em razão da ocorrência comum dessa síndrome na África e no Caribe, o DSM- IV-TR categoriza -a como uma síndrome associada à cultura (culture-bound). Em 1983, Charles Pull et ai. propuseram uma sistematização diagnóstica do bouffée dé/irante. Psicose reativa ou psicogênica 7 : transtorno psicótico de início agudo associado com estresse ambiental. Em comparação com a esquizofrenia, o início tende a ser mais agudo e mais tardio e o funcionamento pré- mórbido tende a ser melhor. Sintomas afetivos e confusionais costumam ser mais pronunciados, sintomas bizarros são menos frequentes e a história familiar de esquizofrenia também é menos frequente. Ao longo do séc. XX, o diagnóstico de psicose reativa ou psicogênica foi bastante difundido entre psiquiatras escandinavos (Noruega, Suécia, Dinamarca e Finlândia), embora tenha tido pouca repercussão em outros países. Psicose ou transtorno esquizofreniforme8 (DSM- 111, 1980): o conceito de transtorno esquizofreniforme foi introduzido pelo psiquiatra norueguês Gabriel Langfeldt (1895- 1983), designando uma psicose de início súbito, com fator precipitante identificável, em pessoas com personalidade pré-mórbida preservada e com boa evolução. Os pacientes com frequência apresentam alterações de humor e obnubilação da consciência. O termo (embora não a totalidade do conceito) foi adotado pelo DSM- 111 como uma síndrome psicótica não afetiva com sintomas esquizofrênicos, distinguida da esquizofrenia apenas por uma duração menor do que 6 meses. Nesse sentido, o conceito esquizofreniforme foi mantido no DSM- IV. Onirofrenia 9 : foi descrita por Ladislas von Meduna (1896- 1964) em 1939 como uma síndrome caracterizada pelo início agudo de confusão, alterações perceptivas semelhantes a pesadelos ou sonhos (daí o nome), medo e ansiedade extremas, delírios e alucinações visuais. O prognóstico geralmente é bom, com plena remissão de sintomas. Meduna propôs uma etiologia endócrina para a síndrome. Psicose histérica 10: embora a expressão psicose histérica tenha sido usada desde o início do séc. XX, a primeira descrição formal da síndrome foi apresentada por Marc Hollander e Steven Hirsch em 1964, caracterizada por episódio psicótico dramático de início súbito, associado com evento causador de profundo estresse no contexto de uma personalidade "histérica". Os sintomas incluem alucinações, delírios, despersonalização e comportamento desorganizado. O episódio raramente dura mais do que 1 a 3 semanas.
O TPAT, definido na CID-10 como uma condição psicótica com início em 2 semanas e remissão completa em 1 a 3 meses, não tem lugar definido na classificação do DSMIV-TR. Muitos casos de TPAT seriam classificados no DSMIV como transtorno esquizofreniforme, transtorno psicótico breve ou transtorno psicótico sem outra especificação (SOE). As razões para colocar esses distúrbios sob amesma rubrica diagnóstica são mais de natureza histórica do que baseadas nas evidências disponíveis.
Transtorno psicótico agudo transitório da CI 0 - 1O (TPAn A CID-10 procura acomodar diversos quadros psicóticos agudos, em sua maioria descritos na Europa e em países em desenvolvimento, sob a categoria Transtornos psicóticos agudos transitórios (TPAT). O TPAT é arranjado de acordo com algumas características básicas:
1. Início agudo, em menos de 2 semanas, com a tran-
sição de um estado sem sintomas psicóticos para um estado francamente psicótico; 2. Presença de síndromes características, incluindose: (a) estados polimórficos (sintomas variáveis que se modificam rapidamente) característicos de psicoses agudas descritas em diversos países e (b) sintomas característicos da esquizofrenia; 3. Presença ou ausência de estresse agudo durante as 2 semanas que antecedem o início dos sintomas psi, . cotlcos; 4. Recuperação completa após 1 a 3 meses de evo lução. Critérios da CI D-1 O para transtorno psicótico agudo transitório Grupo heterogêneo de transtornos caracterizados por início agudo de sintomas psicóticos tais como delí-
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rios, alucinações e alterações perceptivas e grave alteração do comportamento. O início agudo é definido como desenvolvimento progressivo de um quadro clínico claramente anormal em cerca de 2 semanas ou menos. Não há evidência de causa orgânica. Perplexidade e confusão estão frequentemente presentes, embora desorientação para tempo, lugar e pessoa não seja suficientemente persistente ou grave para justificar o diagnóstico de delirium orgânico (FOS.-). A recuperação completa ocorre normalmente dentro de alguns meses, com frequência em algumas semanas ou mesmo dias. Caso o transtorno persista, será necessária mudança no diagnóstico. O transtorno pode ou não estar associado com estresse agudo (dentro de 1 a 2 semanas do início do quadro). Critérios de pesquisa: G 1: Início agudo de delírio, alucinações, fala incoerente ou incompreensível, ou qualquer combinação desses sintomas. O intervalo de tempo entre o primeiro aparecimento de quaisquer sintomas psicóticos e a apresentação da doença totalmente desenvolvida não deve ex-
ceder 2 semanas. G2: Se estados transitórios de perplexidade, erros de identificação ou deficiência de atenção e concentração estão presentes, eles não preenchem os critérios para obnubilação da consciência de causa orgânica, conforme especificado em FOS. - (critério A). G3: O transtorno não satisfaz os critérios sintomáticos para episódio maníaco (F30. -), episódio depressivo (F32. -) ou transtorno depressivo recorrente (F33. -). G4: Não há evidências suficientes de uso recente de substâncias psicoativas para preencher critérios de intoxicação (F1x.O), uso nocivo (F1x.1), dependência (F1x.2) ou estados de abstinência (F1x.3 e F1x.4). O uso contínuo e moderado de álcool ou drogas em quantidades ou com a frequência que o indivíduo está habituado não necessariamente exclui F23, que deve ser decidido por julgamento clínico e exigências do projeto de pesquisa em questão. GS: Cláusula de exclusão mais comumente utilizada: não deve haver transtorno mental orgânico (FOO -F09) ou distúrbios metabólicos graves que afetam o sistema nervoso central (não incluindo o parto). Um quinto caractere deve ser usado para especificar se o início agudo do distúrbio está associado com o estresse agudo (ocorrendo duas semanas ou menos antes dos primeiros sintomas psicóticos): F23.x0 sem estresse agudo associado; F23.x1com estresse agudo associado. Para fins de investigação, recomenda-se que a mudança do transtorno de um estado não psicótico para um estado psicótico seja claramente especificada como de início abrupto (em 48 horas) ou agudo (mais de 48 horas, mas menos de 2 semanas). Transtorno psicótico polimórfico agudo sem sintomas de esquizofrenia
Transtorno psicótico agudo em que alucinações, ideias delirantes ou alterações perceptivas são evidentes, mas
muito variáveis, mudando diariamente ou mesmo a cada hora. Frequentemente ocorre agitação emocional com sentimentos intensos e transitórios de felicidade ou êxtase, ansiedade e irritabilidade. O quadro clínico se caracteriza pelo polimorfismo e a instabilidade, embora as características psicóticas não justifiquem um diagnóstico de esquizofrenia (F20. -). Esses distúrbios frequentemente têm um início abrupto, desenvolvendo-se rapidamente dentro de poucos dias e muitas vezes mostram uma rápida resolução dos sintomas sem recorrências. Se persistirem os sinais, o diagnóstico deve ser modificado para transtorno delirante persistente (F22. -). • Bouffée délirante sem sintomas de esquizofrenia ou indeterminado. • Psicose cicloide sem sintomas de esquizofrenia ou indeterminado. Critérios de pesquisa: A. Os critérios gerais para transtorno psicótico agudo transitório (F23) devem ser preenchidos. B. Os sintomas mudam em qualidade e intensidade de dia para dia ou ao longo do mesmo dia. C. Ocorrem alucinações ou delírios, de quaisquer modalidades, por pelo menos algumas horas, em qualquer momento desde o início do transtorno. D. Sintomas de pelo menos duas das seguintes categorias ocorrem ao mesmo tempo: 1. agitação emocional, caracterizada por sentimentos intensos de felicidade ou êxtase, ou ansiedade extrema ou irritabilidade acentuada; 2. perplexidade ou identificação equivocada de pessoas ou lugares; 3. aumento ou redução da motricidade em níveis acentuados. E. Se algum dos sintomas listados para esquizofrenia (F20.0-F20.3, critérios G1 e G2) estiverem presentes, ocorrem apenas durante um pequeno período (ou seja, o critério B de F23.1 não é preenchido). F. A duração total do transtorno não excede 3 me ses. Transtorno psicótico polimórfico agudo com sintomas de esquizofrenia
Um transtorno psicótico agudo no qual o quadro clínico polimórfico e instável está presente, como descrito em F23.0; contudo, apesar dessa instabilidade, alguns sintomas típicos de esquizofrenia também estão em evidência durante a maior parte do tempo. Se os sintomas es quizofrênicos persistirem, o diagnóstico deve ser mudado para esquizofrenia (F20. -). • Bouffée délirante com sintomas de esquizofrenia. • Psicose cicloide com sintomas de esquizofrenia. Critérios de pesquisa: A. Os critérios A, B, C e D para transtorno psicótico polimórfico agudo (F23.0) devem ser satisfeitos.
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
B. Alguns dos sintomas da esquizofrenia (F20.0F20.3) devem ter estado presentes durante a maior parte do tempo decorrido desde o início do transtorno, embora os critérios completos não necessitem ser preenchidos (ou seja, pelo menos um dos sintomas nos critérios de Gl [la] a G 1[2g]). Ver a seguir Critérios CID-10 para esquizofrenia (F20). C. Os sintomas de esquizofrenia no critério B acima não persistem por mais de um mês. Transtorno psicótico esquizofreniforme agudo
Transtorno psicótico agudo no qual os sintomas psicéticos são comparativamente estáveis e justificam um diagnóstico de esquizofrenia, mas têm duração menor do que cerca de 1 mês; as características polimórficas instáveis, como descritas em F23.0, estão ausentes. Se os sintomas esquizofrênicos persistirem, o diagnóstico deve ser mudado para esquizofrenia (F20. -). • Esquizofrenia aguda (indiferenciada). • Transtorno esquizofreniforme breve. • Onirofrenia. • Reação esquizofrênica. Exclui: transtorno delirante orgânico ( esquizofreniforme) (F06.2) e transtorno esquizofreniforme SOE (F20.8). Critérios de pesquisa: A Os critérios gerais para distúrbios psicóticos transitórios e agudos (F23) devem ser preenchidos. B. Os critérios para esquizofrenia (F20.0 - F20.3) são preenchidos, com exceção do critério de duração.
Quadro 11
C. O transtorno não preenche os critérios B, C e D para transtorno psicótico polimórfico agudo (F23.0). D. A duração total do transtorno não excede um mes. A
Outros transtornos psicóticos agudos predominantemente delirantes
Transtornos psicóticos agudos nos quais delírios ou alucinações comparativamente estáveis são as características clínicas principais, mas não justificam um diagnóstico de esquizofrenia (F20.-). Se os delírios persistem, o diagnóstico deve ser mudado para transtorno delirante persistente (F22. -). • Reação paranoide. • Psicose paranoide psicogênica. Critérios de pesquisa: A Os critérios gerais para transtornos psicóticos agudos e transitórios (F23) devem ser satisfeitos. B. Delírios e/ou alucinações relativamente estáveis estão presentes, mas não preenchem critérios sintomáticos para esquizofrenia (F20.0-F20.3). C. O transtorno não preenche os critérios para transtorno psicótico polimórfico agudo (F23.0). D. A duração total do transtorno não excede 3 meses. Outros transtornos psicóticos agudos e transitórios
Quaisquer outros transtornos psicóticos agudos para os quais não haja evidência de causa orgânica e que não justifiquem ser classificados de F23.0 a F23.3.
Critérios CI 0 - 1O para esquizofrenia
G 1: Pelo menos um dos sintomas e sinais das síndromes listados a seguir no item (1) ou pelo menos dois dos sintomas e sinais listados no item (2) devem estar presentes durante a maior parte do tempo de um episódio de doença psicótica, durando pelo menos um mês (ou pelo menos algum tempo durante grande parte do dia). (1) Pelo menos um dos seguintes: a) eco de pensamento, inserção, bloqueio ou irradiação de pensamento; b) delírios de controle, influência ou passividade, claramente relacionados a movimentos do corpo ou membros ou pensamentos, ações ou sensações específicos; percepção delirante; c) vozes alucinatórias comentando continuamente o comportamento do paciente ou discutindo entre si ou outros tipos de vozes alucinatórias vindas de alguma parte do corpo; d) delírios persistentes de outros tipos, culturalmente inapropriados e completamente impossíveis, tais como identidade religiosa ou política, poderes e habilidades sobre- humanos (p. ex., ser capaz de controlar o tempo ou entrar em comunicação com seres alienígenas). (2) Ou pelo menos dois dos seguintes: e) alucinações persistentes de qualquer modalidade, que ocorram cotidianamente durante pelo menos um mês, quando acompanhadas por delírios (que podem ser fugazes ou pouco estruturados) sem conteúdo afetivo claro ou quando acompanhadas por ideias supervalorizadas persistentes. f) neologismos, quebras ou interpolação no curso do pensamento, resultando em incoerência ou fala irrelevante. g) comportamento catatônico, tal como excitação, postura inadequada ou flexibilidade cérea, negativismo, mutismo e estupor. h) sintomas "negativos" como apatia marcante, escassez de fala e embotamento ou incongruência de respostas emocionais (deve estar claro que elas não são devidas a depressão ou medicação neuroléptica).
G2: Critérios de exclusão mais comumente usados: se o paciente também preenche critérios para episódio maníaco (F30) ou episódio depressivo (F32). os critérios listados sob G1.1 e G1.2 devem ser preenchidos antes do desenvolvimento do distúrbio de humor.
G3: O distúrbio não deve ser atribuído a doença cerebral orgânica ou a álcool ou intoxicação relacionada a drogas, dependência ou abstinência. Traduzido de World Health Organization, 1993 11 •
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Transtorno psicótico agudo e transitório, não especificado
• Psicose reativa breve SOE. • Psicose reativa.
Transtorno psicótico breve do DSM-IV-TR (TPB) O transtorno psicótico breve é definido pelo DSMIV-TR como um estado psicótico caracterizado por sintomas de início súbito, com duração compreendida entre 1 dia e 1 mês. Ocorre remissão completa, com pleno retorno ao nível de funcionamento pré-mórbido. Assim, indivíduos diagnosticados como portadores de transtorno psicótico breve (DSM-IV-TR) em sua maioria são também classificados como portadores de transtorno psicótico agudo transitório na CID-1O. Os critérios para transtorno psicótico breve estão dispostos a seguir. Critérios para o diagnóstico de transtorno psicótico breve DSM-IV A. Presença de um (ou mais) dos seguintes sinto-
mas: 1. ideias delirantes; 2. alucinações; 3. fala desorganizada (p. ex., incoerência ou descar-
rilamento frequentes); 4. comportamento catatônico ou gravemente desorganizado. Obs.: Não incluir sintoma que represente padrão de resposta culturalmente sancionado. B. A duração de um episódio é de pelo menos 1 dia, mas inferior a 1 mês, com completo retorno ao nível de funcionamento pré-mórbido. C. O distúrbio não é melhor atribuível a um transtorno de humor com características psicóticas, transtorno esquizoafetivo ou esquizofrenia e não se deve ao efeito fisiológico direto de uma substância (p. ex., droga ou medicamento) ou de condição médica geral. Especificar se: • Com estressar grave (psicose reativa breve): se os sintomas ocorrem logo após e aparentemente em resposta a eventos que, isoladamente ou em conjunto, seriam altamente estressantes para quase qualquer pessoa em circunstâncias similares na cultura da pessoa. • Sem estressor(s) grave(s): se os sintomas psicóticos não ocorrem logo após ou aparentemente não ocorrem em resposta a eventos que, isoladamente ou em conjunto, seriam estressantes graves para quase qualquer pessoa em circunstâncias similares na cultura da pessoa. • Com início pós-parto: se o início ocorre em 4 se, manas apos o parto. Traduzido de American Psychiatric Association, 2000 12 •
Transtorno esquizofreniforme De acordo com o DSM-IV, o distúrbio designado como transtorno esquizofreniforme apresenta os sintomas característicos da esquizofrenia (critério A para esquizofrenia), mas se diferencia em dois aspectos: 1. A duração total do distúrbio (incluindo-se as fases prodrômica, ativa e residual) é de pelo menos 1 mês, mas inferior a 6 meses (critério C para esquizofrenia) 2. Não é necessário que ocorra deterioro da atividade social ou laboral durante o período (critério B, embora possa ocorrer). Critérios A e B para esquizofrenia (DSM-IV) A Sintomas característicos: dois ou mais dos seguintes, cada um deles presentes de modo significativo por período de 1 mês (ou menos se tratados de modo bemsucedido). 1. delírios; 2. alucinações; 3. desorganização da linguagem (p. ex., frequentes descarrilamentos ou incoerência); 4. comportamento catatônico ou gravemente desorganizado; 5. sintomas negativos (p. ex., embotamento afetivo, alogia ou abulia [avolição]). Obs.: Só se requer um sintoma do critério A se o delírio for bizarro ou se as alucinações consistem em uma voz que comenta continuamente os pensamentos ou o comportamento do paciente, ou se duas ou mais vozes conversam entre si. B. Disfunção social/laboral: durante parte significativa do tempo desde o início da alteração, uma ou mais áreas importantes da atividade cotidiana, como trabalho, relações interpessoais ou autocuidado estão claramente abaixo do nível prévio ao início do transtorno (ou, quando o início ocorre na infância ou adolescência, há falha em obter um nível esperado de funcionamento interpessoal, acadêmico ou laboral). C. Duração: sinais contínuos da doença durante pelo menos 6 meses (incluindo-se pelo menos 1 mês de sintomas do critério A (ou menos se tratado com êxito) e pode incluir o período com sintomas prodrômicos e residuais. Durante os períodos prodrômico ou residual é possível que os sintomas se manifestem apenas por sintomatologia negativa ou por dois ou mais sintomas da lista do critério A, presentes de forma atenuada (p. ex., crenças estranhas, experiências perceptivas incomuns, entre outros).
Etiopatogenia Sabe-se muito pouco a respeito da etiologia dos TPATs (CID-lO) e do TPB (DSM-IV). As escassas evidências dis-
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poníveis apontam para fatores biológicos e socioculturais. Há estudos que demonstram incidência aumentada de fe bre antes do início dos quadros psicóticos agudos, especialmente nos países em desenvolvimento, o que leva à hipótese de que a maior frequência desses transtornos nesses países se deve à prevalência de doenças infecciosas 1. A elevada incidência de TPAT em países subdesenvolvidos também levou a especulações sobre o papel dos fatores socioculturais na etiologia dessas síndromes. Tem sido sugerido que a rápida mudança cultural e o processo de modernização desses países expõem os indivíduos a mudanças no estamento/status-quo e estresse decorrente, aumentando a vulnerabilidade para reações psicóticas. Nesse sentido, o "estresse agudo" (dentro de aproximadamente 2 semanas do início da psicose) é considerado pela CID- 10 como característica de alguns indivíduos com TPAT. Contudo, a proporção de pacientes que sofrem estresse agudo nesse período varia consideravelmente entre os estudos ( 1O a 60%). A avaliação do estresse agudo também é complicada pela falta de uma definição clara de estresse, pelo pro vável impacto de vieses na sua análise e variabilidade ao longo de diferentes contextos socioculturais.
Fatores de validação nosológica Castagnini e Berrios 13 apresentaram as evidências relativas à definição do TPAT com base no esquema sugerido por Kendler 1\ envolvendo três diferentes níveis de "validadores" nosológicos potenciais: ( 1) antecedentes: aspectos demográficos, agregação familiar, personalidade pré-mórbida e fatores desencadeantes; (2) fatores concomitantes: biológicos e psicológicos, avaliação sintomatológica; (3) fatores prognósticos: estabilidade diagnóstica, resposta ao tratamento, curso e evolução.
TPAT (F23) TP PASSE (F23.0) TPPACSE (F23.1) TPEA (F23.2) TPAPDel (F23.3) TEf (295.4)
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Figura 1 Limites temporais dos transtornos psicóticos agudos transitórios, de acordo com DSM-IV-TR e CI 0 - 1O. TPAT: transtorno psicótico agudo transitório (F23). TPPASSE: transtorno psicótico polimórfico agudo sem sintomas de esquizofrenia (F23.0). TPPACSE: transtorno psicótico polimórfico agudo com sintomas de esquizofrenia (F23.1 ). TPEA: transtorno psicótico esquizofreniforme agudo (F23.2). TPAPDel: outros transtornos psicóticos agudos predominantemente delirantes (F23.3). TEf: transtorno esquizofreniforme (295.40). TPBreve: transtorno psicótico breve (298.8).
Antecedentes Aspectos demográficos
Com relação à incidência do TPAT, no Reino Unido Singh et al. 15 encontraram uma taxa anual de 3,9 casos por 100 mil habitantes, com ligeira predominância do sexo masculino (razão de 1,87). Na Dinamarca, dados do registro nacional de 1996 demonstraram uma incidência anual de 9,6 casos por 100 mil habitantes 16. Tanto no estudo britânico quanto no dinamarquês, a maioria dos casos teve seu diagnóstico mudado ao longo da evolução. Na Alemanha, Jager et al. 17 descreveram uma frequência de 7,9% dentre primeiras admissões de psicoses não afetivas. No que se refere aos subtipos de TPAT, Castagnini et al. 16 observaram que os casos com características esquizofrênicas (transtorno psicótico polimórfico agudo com sintomas de esquizofrenia [F23.1 ] e transtorno psicótico esquizofreniforme agudo [F23.2]) se mostraram prevalentes em indivíduos do sexo masculino e apresentaram início precoce com relação à média da idade de início nos demais subtipos. Esses aspectos são sugestivos de uma relação de continuidade com a esquizofrenia (início precoce e maior gravidade no sexo masculino). Contudo, à medida que a idade de início avança, o TPAT passa a prevalecer no sexo feminino 16 . Alguns estudos sobre a incidência de infecções gestacionais e complicações obstétricas em pacientes com psicose cicloide (PC) revelaram que as mães desses pacientes mais frequentemente apresentaram doenças infecciosas, particularmente influenza e gripe comum, predominantemente durante o primeiro trimestre de gestação18. O aumento na incidência de complicações infecciosas na gestação de pacientes com PC contrasta com a ausência dessa característica em psicoses com elevada herdabilidade, como no transtorno de humor bipolar e nas esquizofrenias não sistemáticas. Herdabilidade (agregação familiar)
Na Índia, Das et al,l 9 investigaram a prevalência de transtornos psiquiátricos familiares em 40 probandos diagnosticados com TPAT, comparando-os a um grupo-controle de 40 probandos com esquizofrenia. Familiares de pacientes com TPAT apresentaram maior prevalência de TPAT do que familiares de pacientes com esquizofrenia, que por sua vez apresentaram maior prevalência de esquizofrenia comparativamente aos familiares de probandos TPAT. Por outro lado, os subtipos de TPAT com sintomatologia esquizofrênica (F23.1 e F23.2) referiam mais comumente história familiar de esquizofrenia do que os outros subtipos de TPAT. Os autores interpretaram esses resultados como sugestivos de que o TPAT constitui um grupo heterogêneo, com alguns subtipos apresentando risco genético diferente da esquizofrenia e outros subtipos (com sintomas psicóticos semelhantes à esquizofrenia) com risco genético similar ao observado em pacientes es-
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quizofrênicos. Em estudo subsequente, o mesmo grupo constatou que pacientes com TPAT sem história familiar de psicose apresentavam um número significativamente maior de estresses vitais do que os pacientes com TPAT com história familiar, um achado que corrobora a noção de que estresse ambiental e vulnerabilidade genética têm papel determinante na etiologia do TPAT20 • Com relação às psicoses cicloides (PC), Leonhard21 propunha que os fatores somáticos exercem um papel etiológico proeminente. Nas séries originalmente descritas, as PCs apresentaram taxas de morbidade entre irmãos de 15,4% (quando pais também afetados) a 3,1% (pais não afetados), constituindo evidência de caráter poligênico com possível efeito limiar, em que fatores etiológicos ambientais provavelmente exercem um efeito substancial. Achados similares foram relatados por Franzek e Beckmann22 em estudo com 47 pares de gêmeos domesmo sexo. Em pares com um probando apresentando PC, os autores encontraram aproximadamente a mesma taxa de concordância entre pares monozigóticos (39%) e dizigóticos (31 %). Com exceção das psicoses da motilidade, em que se presume haver maior suscetibilidade hereditária, os dados sugerem que a hereditariedade é pouco pronunciada na etiologia das PCs23 • A baixa hereditariedade nos pacientes com PC foi replicada pelo estudo de Pfuhlmann et al. com famílias de pro bandos com psicoses endógenas. A morbidade em parentes de primeiro grau de indivíduos afetados foi investigada em 45 casos com PC, 32 com doença maníacodepressiva e 27 controles saudáveis. A incidência de psicoses endógenas em parentes de primeiro grau foi de 24,4% na PC, 62,5% no transtorno bipolar e de 14,8% no grupo-controle. Esses dados contradizem a tese de um espectro afetivo bipolar e corroboram a independência nosológica das PCs24 . Antecedentes de personalidade (personalidade pré-mórbida)
Pillmann et al. 25 investigaram traços de personalidade em pacientes com TPAT, esquizofrenia e transtorno esquizoafetivo, comparando-os com controles saudáveis. Não houve diferenças significativas entre controles e pacientes TPAT, enquanto pacientes com esquizofrenia e transtorno esquizoafetivo apresentaram índices elevados de neuroticismo e escores reduzidos de extroversão e conscienciosidade ( conscientiousness). J0rgensen et al. 26 observaram que quase dois terços dos pacientes com TPAT apresentavam diagnóstico concomitante de transtorno de personalidade, embora essa tendência tenha desaparecido no ano subsequente. É possível que as alterações de personalidade observadas te nham tido origem na descompensação psicótica ou no tratamento farmacológico, posto que outros estudos também não revelaram alterações de personalidade pré-mórbida em pacientes que desenvolveram TPAT 15•27 •
Fatores desencadeantes
Há estudos que indicam que aproximadamente dois terços dos casos de TPAT estão associados com algum tipo de estresse ambiental, sobretudo nos casos de início abrupto (menos de 48 h)28 •29 • Embora estudos realizados em países em desenvolvimento demonstrem que o TPAT está associado com fatores sociais e culturais, nos estudos europeus somente uma minoria de casos TPAT parece ser antecedida de estresse agudo. A CID-1O define como estresse agudo eventos que provocariam impacto significativo à maioria das pessoas em circunstâncias semelhantes (luto, perda inesperada de familiar, do emprego etc.). Os estudos sobre as psicoses reativas (PR) em países escandinavos sugerem que elas constituem condições distintas dos TPATs, provavelmente mais associadas com os subtipos "predominantemente delirantes" do TPAT. As PRs receberam relativamente pouca atenção na CID-1O, sendo em geral classificadas como síndromes emocionais associadas aos transtornos de humor ou estados confusionais descritos como transtornos dissociativos ou transtorno mental orgânico 13 • Pfuhlmann et al. 30 investigaram 39 casos de psicoses pós-parto ao longo de aproximadamente doze anos de evolução. Encontraram diagnóstico de PC em 54% dos casos (maioria com psicose da motilidade), 8% de psicoses depressivas unipolares, 13% de psicoses bipolares e 10% de esquizofrenias não sistemáticas. Outro fator que possivelmente implica a participação de fatores hormonais nos casos de PC vem do estudo de Althaus et al. 3 1• Nesse estudo os autores avaliaram a fase menstrual de 155 mulheres no momento da admissão por doenças psiquiátricas não orgânicas e relataram que as mulheres com PC em sua maioria se encontravam na fase luteal do ciclo menstrual, achado interpretado como indicativo de que fatores endocrinológicos tenham papel importante na deflagração de crises nas PCs31 • Fatores concomitantes (biológicos, psicológicos e avaliação sintomatológica) Marcadores biológicos
Há muito poucos estudos que investigam marcadores neurobiológicos nos TPATs. Pepplinkhuizen et aP 2 sugeriram que os transtornos polimórficos agudos, à semelhança das alterações metabólicas observadas em condições induzidas por substâncias psicodélicas, pudessem ser desencadeados por alterações envolvendo o metabolismo do aminoácido serina. O estudo não foi replicado. Na Alemanha, diversos estudos investigaram as PCs em seus aspectos eletrofisiológicos e de neuroimagem. Estudos com potenciais evento-relacionados P300 mostraram que pacientes com PC apresentam amplitudes significativamente maior do que controles saudáveis. Ambos apresentaram deslocamento da média do P300 para o hemisfério cerebral esquerdo, diferente do deslo camento para o hemisfério direito observado em pacien-
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tes esquizofrênicos. Além disso, as amplitudes registradas em pacientes esquizofrênicos foram significativamente menores do que as registradas em pacientes PC e controles saudáveis. Portanto, os achados com potencial evocado acústico P300 parecem apontar para diferentes mecanismos neurofisiológicos em subgrupos de psicoses endógenas: hiperexcitação em PC e um possível déficit funcional no hemisfério esquerdo das esquizofrenias nucleares. Do ponto de vista clínico, elevadas amplitudes de P300 estão relacionadas com PC e, portanto, com melhor prognóstico. Por outro lado, baixas amplitudes e desvio à direita no mapa topográfico sugerem mau prognóstico e são características das esquizofrenias que levam a um quadro de defeito 33 . Com relação aos achados de neuroimagem estrutural, alguns estudos com CT e MRI evidenciaram predomínio de anormalidades cerebrais não específicas em pacientes com PC, achado interpretado como evidência de alteração nos estágios iniciais do neurodesenvolvimento 34 . Jabs et al. 35 realizaram estudo ultrassonográfico para estudar a associação entre ecogenicidade da substância nigra (SN) e suscetibilidade para sintomas extrapiramidais neuroléptico-induzidos em 79 pacientes classificados de acordo com Leonhard. As PCs apresentaram ecogenicidade de SN significativamente maior do que a observada nos grupos de pacientes esquizofrênicos e de controles saudáveis. Houve correlação significativa entre ecogenicidade de SN e gravidade de parkinsonismo induzido por antipsicóticos, achado interpretado como eviciência da base neurobiológica para a maior gravidade de efeitos colaterais induzidos por neurolépticos ou para os graves estados acinéticos observados nas PCs35 . Alguns estudos com neuroimagem funcional estudaram a perfusão cerebral regional e global de pacientes com PC. Warkentin et al. 36 investigaram o fluxo sanguíneo hemisférico e sua distribuição regional na fase aguda, após uma semana de tratamento e depois da alta hospitalar de pacientes com PC. Encontraram hiperatividade global durante a fase aguda, particularmente em hemisfério direito. Em geral, a hiperperfusão da fase aguda reduziu-se em cerca de 10% após uma semana de tratamento (em sete de oito pacientes com PC) e mostrou-se semelhante à perfusão de controles saudáveis após a alta hospitalar. Estudos posteriores mostraram que, em comparação com casos de esquizofrenia hebefrênica, pacientes PC em fase aguda apresentaram pronunciada perfusão no córtex pré-frontal dorsolateral (dlPFC) e região do cíngulo anterior37. Portanto, com relação às PCs, os estudos morfométricos sugerem o predomínio de alargamento ventricular, enquanto os estudos funcionais apontam para hiperatividade frontocingular seguida de normalização após a fase aguda, o que as diferencia da "hipofrontocingularidade" comumente descrita nas esquizofrenias nucleares34.
Padrões sintomatológicos
Sob o ponto de vista psicopatológico, pacientes com TPAT mais comumente apresentam sintomas psicóticos de caráter polimórfico e flutuante, como variações de humor e temas delirantes diversos, com menos sintomas negativos do que em pacientes esquizofrênicos e esquizoafetivos. Embora os sintomas psicóticos de primeira ordem de Schneider (alucinações auditivas em terceira pessoa, irradiação do pensamento, delírios de controle e percepção delirante) sejam mais frequentes nos quadros esquizofrênicos, comumente ocorrem também em pacientes com TPAT; portanto, tampouco se mostram úteis no diagnóstico diferencial de esquizofrenias (que mais se distinguem pela presença de sintomas negativos) 17 .
Relação entre TPAT e bouffée délirante (BD) Magnan38 separou os transtornos delirantes de início agudo e bom prognóstico dos quadros com evolução mais uniforme e deterioro progressivo das funções psíquicas ( délire chronique à évolution sistema tique). Mais tarde, Ey39 descreveu esses quadros delirantes agudos como transtornos com nível de desestruturação psíquica intermediário entre as psicoses maníaco -depressivas e os estados confusionais oniroides. Pull et al. 40 tentaram definir critérios mais confiáveis no diagnóstico de BD: (a) idade de início entre 20 e 40 anos; (b) início agudo; (c) ausência de outros diagnósticos psiquiátricos (pregressos ou atuais); (d) remissão completa em semanas ou meses; (e) delírios polimórficos e/ ou alucinações transitórios, despersonalização, desrealização, humor expansivo ou deprimido e estados confusionais; e (f) ausência de causalidade orgânica ou abuso de álcool ou drogas. Estudos subsequentes sobre o BD encontraram um padrão de evolução mais variável do que se supunha anteriormente: 30 a 40% apresentaram curso episódico com recuperação completa, 20% tenderam a recorrências e os demais, de 40 a 50%, desenvolveram outros diagnósticos (principalmente esquizofrenia e transtorno bipolar) 41 ,42 . Estudos comparativos entre TPAT e BD
Pillmann et al. 53 encontraram que apenas 29% dos pacientes com diagnóstico de TPAT preencheram os critérios de Pull et al. 40 para BD, uma discrepância atribuída à heterogeneidade dos TPATs ou aos critérios restritos do BD.
Relação entre TPAT e psicoses cicloides A expressão zykloide Psychosen foi cunhada por Kleist ( 1879-1960) para designar transtornos psicóticos "endógenos" atípicos, variantes das psicoses maníaco-depressivas2.
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Mais tarde, Leonhard, em 1957, agrupou síndromes psicóticas já descritas por Wernicke (1848- 1905) (Gundriss der Psychiatrie in Klinischen Vorlesungen, 1900) e Kleist2 no âmbito das psicoses cicloides (PC)2- 21•43 • Leonhard21 descreveu uma terceira forma de PC, a "psicose de angústia-felicidade", que combinava a psicose de angústia de Wernicke com a psicose de revelação de Kleist. Ele propunha que a psicose de angústia-felicidade se caracteriza por comprometimento do afeto, a psicose confusional apresenta comprometimento do pensamento e a psicose da motilidade demonstra comprometimento da atividade psicomotora. O principal aspecto que distingue as PCs das formas esquizofrênicas é sua completa remissão após cada fase. Embora haja distinção prognóstica clara, as PCs guardam certa semelhança com as denominadas esquizofrenias não sistemáticas, tanto pela sintomatologia quanto pelo caráter bipolar, mas são diferenciadas pelos quadros de estado e evolução. Psicose de angústia-felicidade (Angst-Giück-Psychosen)
A psicose de angústia-felicidade apresenta-se como uma perturbação básica do afeto. Assim como as demais psicoses cicloides, as esquizofrenias não sistemáticas e o transtorno maníaco-depressivo, caracteriza-se por apresentar quadros de estado dentro de um espectro bipolar. No polo caracterizado por angústia-ansiedade, a angústia é acompanhada de desconfiança, ideias autorreferentes, hipocondríacas e de desvalia. Também costumam ocorrer alterações sensoperceptivas, às vezes acompanhadas de vivências de influência. No seu polo oposto, encontra-se uma alteração de humor extático e ideias de fe licidade, com as quais costumam estar associadas ideias de referência e alterações sensoperceptivas. No entanto, esses sintomas básicos não necessariamente aparecem em primeiro plano. Podem surgir quadros com traços mais ou menos nítidos do transtorno maníaco-depressivo, da psicose confusional ou da psicose da motilidade. O aspecto sintomatológico multiforme é tão típico da psico se de angústia-felicidade quanto das demais psicoses cicloides. As fases de angústia são mais frequentes do que as extáticas, podendo ocorrer isoladamente, ao passo que raramente são encontrados quadros isolados de psicose de felicidade. Podem ocorrer quadros mistos, com uma rápida ciclagem entre humor angustioso e extático em uma mesma fase. A duração dos estados sintomáticos é semelhante à do transtorno maníaco-depressivo. Psicose confusional excitada-inibida
A psicose confusional foi apresentada por Wernicke como "alopsicose maníaca periódica" ou também como "confusão agitadá: A psicose confusional inibida é reconhecida no seu conceito de "acinesia intrapsíquicá: Kleist falava nesse caso de um "estupor perplexo". O conceito de confusionalidade (Verwirrtheit) provém de Meynert (1833-
1892). Kleist, por sua vez, definiu a psicose da motilidade e a psicose confusional como "psicoses marginais cicloides': A alteração central da psicose confusional envolve a perturbação do pensamento: na fase excitada ocorre incoerência; na fase inibida, inibição de pensamentos. Nos casos mais leves de excitação do pensamento ocorre o que Leonhard chama uma "incoerência na eleição do temá'. A incoerência na escolha do tema caracteriza-se por uma série de pensamentos alheios às circunstâncias (vividas pelo paciente ou sugeridas pelo entrevistador) e entre si desconexos. Difere da fuga de ideias por não apresentar a típica distratibilidade com eventos circunstanciais, característica dos quadros maníacos. A excitação do pensarnento costuma estar associada a uma pressão da fala. Como alterações do conteúdo, na excitação sobrevêm principalmente equívocos no reconhecimento das pessoas, aos quais frequentemente estão associadas ideias de referência e alterações sensoperceptivas, sobretudo de natureza acústica. Na fase inibida, a inibição do pensamento associa-se a um empobrecimento da fala, que pode chegar ao mutismo. Também se agregam à perplexidade (ou reação catastrófica) ideias de referência e de significação. Podem ocorrer alucinações, embora mais raras na fase inibida. Entretanto, é comum que o quadro de estado não se apresente de forma pura, mas demonstre seu caráter multiforme com traços característicos das outras psicoses cicloides e do transtorno de humor bipolar. O curso é variável, algumas vezes com predomínio de apenas um dos polos, embora seja mais frequente a ciclagem entre ambos. Psicose da motilidade hipercinética-acinética
O conceito de psicose da motilidade, cunhado por Wernicke, abrangia as psicoses posteriormente classificadas por Leonhard como catatonia periódica (formas esquizofrênicas não sistemáticas). Wernicke compreendeu ambos os polos da doença com a designação psicose da motilidade cíclica. Como o nome sugere, a psicose da motilidade está diretamente relacionada aos sintomas mo tores. Na fase caracterizada por hipercinese, ocorre uma inquietação motora que afeta principalmente os movimentos expressivos e reativos (involuntários). Na fase acinética, também os movimentos expressivos e reativos estão comprometidos. Em casos mais leves, ainda com movimentos voluntários preservados, pode-se reconhe cer o quadro a partir da rigidez na postura e na mímica. O quadro pode evoluir para uma acinese, na qual os movimentos voluntários também estarão comprometidos. Contudo, é relativamente frequente em uma mesma fase ocorrer oscilação circular para ambos os polos. As acineses costumam ser mais raras e de duração mais longa, podendo se prolongar por meses. Em contrapartida, as h ipercineses em geral são mais frequentes e apresentam duração restrita a poucas semanas. A acinese da psicose da motilidade pode ser distinguida do estupor da psico-
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se confusional, o que requer uma investigação acerca de qual dentre os sistemas motores está mais comprometido, se os movimentos voluntários (psicose confusional) ou involuntários (psicose da motilidade). O diagnóstico diferencial com a psicose confusional também pode ser complicado na fase excitada: uma forma discursiva incoerente e com interrupções é característica da psicose da motilidade. Quando a isso vem se somar uma pressão da fala incoerente, relativamente comum na hipercinese, há sobreposição com as psicoses confusionais, tornando difícil o diagnóstico diferencial. Psicoses cicloides - aspectos diagnósticos
O caráter polimorfo e as manifestações clínicas com frequentes sobreposições de sintomas pertencentes aos diferentes subtipos de PC levou à constatação de que a distinção dos subgrupos de PC proposta por Leonhard é clinicamente problemática44 • Embora haja evidências de que as PCs tenham características clínicas e prognósticas distintas da esquizofrenia e das psicoses afetivas, não há evidência similar com relação à separação das PCs em subgrupos distintos 45- 48 • Perris49 propôs uma definição operacional das psicoses cicloides a partir dos seguintes . ' . cntenos: 1. Estado psicótico de início agudo. 2. Remissão completa: em estudo conduzido por Cutting et al. (1978), de 73 pacientes, somente sete não haviam remitido plenamente dentro de um ano, três deles após dois anos e os demais quatro não tiveram seguimento. 3. Oscilações de humor durante o estado psicótico: ocorrem flutuações do humor rápidas e frequentes. No curso de 24 horas o paciente pode apresentar uma ou mais fases de elação, depressão ou ansiedade extrema. No curso de um mês, pode haver dezenas de diferentes fases de humor, intercaladas por períodos de melhora clínica (há casos em que o paciente tem alta após uma semana de humor estável para retornar em seguida com um quadro psicótico completamente diferente). Embora alterações dessa natureza sejam vistas algumas vezes na depressão e muitas vezes na mania (estados mistos), tais oscilações rápidas raramente ocorrem nas psicoses afetivas típicas. 4. No mínimo duas das seguintes características: a) Sintomas paranoides: delírios ou ideações delirantes ou experiências perceptivas (alucinações) incongruentes com o humor; b) Distúrbio do movimento: diferente dos movimentos catatônicos (qualitativamente anormais), o movimento na PC tem sua velocidade aumentada ou diminuída, comparado aos movimentos normais (diferença quantitativa). c) Confusão: varia de uma leve perplexidade até confusão grosseira (alteração formal do pensamento). Os estados confusionais são quase tão frequentes quanto os sintomas paranoides.
d) Ansiedade generalizada: medo de que algo funes-
to esteja para acontecer, frequentemente relacionado à morte iminente de si ou de outras pessoas. e) Êxtase: distinto da simples elação pelo fato de que o paciente quer trazer salvação e júbilo à humanidade. Esses critérios não se ajustam às categorias descritivas dos sistemas diagnósticos internacionais. No caso do DSMIV, o transtorno psicótico breve (298.8) compreende duração máxima de um mês, o transtorno esquizofreniforme de seis meses e o transtorno esquizoafetivo pressupõe sintomas residuais. No caso da CID-1O, o transtorno psicótico polimorfo agudo com sintomas de esquizofrenia (F23.1) tem como critério uma duração máxima de um mês. Emhora do ponto de vista descritivo as PCs se assemelhem ao transtorno afetivo bipolar (com sintomas psicóticos, humor incongruente e episódio misto), estudos retrospectivos de casos revelam que esses pacientes em sua maioria são diagnosticados como esquizofrênicos. Cutting et al. (1978) re. . . . , . . visaram retrospectivamente pacientes psKotlcos mternados no Instituto de Psiquiatria de Londres. Seguindo os critérios operacionais de Perris49, 73 pacientes foram diagnosticados com PC, embora os diagnósticos constantes nos prontuários fossem esquizofrenia (45%), transtorno esquizoafetivo (27%), psicose afetiva (15%) e psicose atípica (12%). Na Alemanha, Beckmann et al.48 aplicaram os critérios do DSM-III-R em 26 pacientes com PC e encontraram transtorno esquizoafetivo (50%), esquizofrenia (27%), transtorno esquizofreniforme (15%) e mania (8%). Estudos comparativos entre TPAT e PC demonstraram que apenas cerca de 55% dos casos apresentaram sobreposição de ambos os diagnósticos50 • Ocorre maior sobreposição quando a correlação é feita com os subtipos polimórficos dos TPATs ou quando o início agudo é estendido para 2 semanas51,52 . Comparação entre CID-1O e DSM-IV
No DSM-rV, o transtorno psicótico breve (TPB) caracteriza-se por (a) início súbito, (b) duração menor do que 1 mês e (c) pelo menos um dos seguintes sintomas: delírios, alucinações, fala desorganizada, comportamento desorganizado ou catatônico. O transtorno esquizofreniforme (TEF) foi introduzido no DSM-III com o objetivo de acomodar transtornos psicóticos de bom prognóstico com (a) preenchimento dos critérios para esquizofrenia e que (b) apresentassem duração maior do que um mês, mas menor do que seis meses. Embora o termo tenha origem nos estados esquizofreniformes descritos por Langfeldt8, o conceito de transtorno esquizofreniforme é bastante distinto do significado originalmente pretendido por ele. Langfeldt estabeleceu as psicoses esquizofreniformes como uma categoria diagnóstica heterogênea, com sintomas semelhantes aos da esquizofrenia, porém com bom prognóstico, descrevendo cinco diferentes subtipos: (1) formas predominantemente endógenas (constitucionais); (2) ca-
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sos mais compreensíveis sob o ponto de vista psicogênico; (3) psicoses precipitadas por fatores predominantemente exógenos (infecções, trauma); (4) casos pertencentes ao grupo das psicoses maníaco-depressivas; e ( 5) esquizofrenias atípicas54. Algumas análises comparativas revelam que o TPAT não corresponde a nenhuma categoria do DSM-IV Aproximadamente um terço dos casos corresponde ao transtorno psicótico breve, 45% ao transtorno esquizofreniforme e 25% a transtornos psicóticos inespecíficos. Dentre os subtipos de TPAT, o transtorno psicótico polimórfico agudo sem sintomas esquizofrênicos (F23.0) apresenta sobreposição apenas parcial com o transtorno psicótico breve (DSM-IV). O mesmo ocorre com relação ao transtorno psicótico semelhante à esquizofrenia (F23.2) e o transtorno esquizofreniforme (DSM-IV)55 • Fatores prognósticos Estabilidade diagnóstica
Castagnini e Berrios 13 revisaram 13 artigos envolvendo 884 pacientes com diagnóstico de TPAT em intervalos de seguimento entre 1 e 15 anos. Verificaram que os estudos realizados nos países em desenvolvimento (p. ex., Egito, Índia e Irã) apresentaram estabilidade diagnóstica relativamente elevada (54-73%) e taxas de recaída relativamente baixas28 •29•56 . O estudo indiano28 referiu que pacientes de primeira admissão com transtorno psicótico polimórfico agudo sem sintomas esquizofrênicos, de início abrupto ( < 48 h) e duração breve ( < 1 mês) apresentaram maior estabilidade diagnóstica em três anos. Com exceção do estudo de J0rgensen 57 , nos estudos europeus, mais de 50% dos casos diagnosticados como TPAT tiveram seu diagnóstico mudado para esquizofrema ou outros transtornos ps1cot1cos ou para transtornos afetivos. Houve também maior taxa de recorrência comparativamente aos estudos de países em desenvolvimento 15,16,54,58 . •
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Curso e evolução
O estudo de Marneros e Pillmann58demonstrou que aproximadamente 75% dos pacientes com TPAT apresentaram recorrência de episódios afetivos ou psicóticos, 30% desenvolveram transtornos afetivos, ao passo que um número relativamente reduzido evoluiu para transtorno esquizoafetivo ou esquizofrenia. Comparado a controles com esquizofrenia, os pacientes com TPAT apresentaram melhores funcionamento global e capacidade de adaptação. Contudo, apenas um terço deles apresentou remissão estável com descontinuação da medicação após sete anos de evolução59 • Na Alemanha, em seguimento de 73 pacientes com TPAT de primeira admissão ao longo de três a sete anos, Jager et al. 60 verificaram que apenas 42% dos casos apresentaram um único episódio, enquanto 58% da amostra apresentou recorrências e prejuízo funcional contínuo. A persistência de sintomas negativos e/ou de-
pressivos mostrou associação com pior evolução funcional. Na Inglaterra, um estudo com psicoses de primeiro episódio conduzido em Nottingham mostrou que de fato pacientes com TPAT apresentam evolução mais favorável do que pacientes com esquizofrenia, mesmo com aproximadamente 70% dos casos tendo seu diagnóstico mudado ao longo de três anos 15 •61 • Sexo feminino e bom funcionamento pré-mórbido foram preditores de evolução favorável. O estudo também demonstrou que ambos os subtipos "psicótico polimórfico" e "predominantemente delirante" apresentam baixa estabilidade diagnóstica. De modo geral, a revisão de Castagnini e Berrios 13 mostra que a maioria dos pacientes com sintomas psicóticos polimórficos tende a desenvolver principalmente transtornos afetivos, ao passo que aqueles com subtipos "predominantemente delirante" ou "semelhante à esquizofrenia" tendem a desenvolver diagnósticos dentro do espectro esquizofrênico (F2x). Tratamento
O tratamento dos estados psicóticos agudos transitórios segue os parâmetros utilizados no tratamento das psicoses em geral, com papel preponderante dos antipsi, . . . , . cotlcos convencwna1s e at1p1cos. Seguindo o sistema classificatório de Wernicke-KleistLeonhard (WKL), alguns autores argumentam que no âmbito das PCs o diagnóstico diferencial entre seus subtipos traz consequências terapêuticas importantes. A psicose de angústia/felicidade requer uso de antipsicóticos, mas também o acréscimo de ansiolíticos, que via de regra melhoram sintomas como a ideação paranoide associada à ansiedade. Na psicose da motilidade, os movimentos hipercinéticos expressivos e reativos podem ser na maioria dos casos controlados com antipsicóticos. Contudo, os estados acinéticos podem ser agravados pelo uso de neurolépticos, podendo levar a condições semelhantes à síndrome neuroléptica maligna. Dessa forma, o adequado manejo da psicose da motilidade em fase acinética exige cuidado clínico especial e o uso de medicações benzodiazepínicas62 . A eltroconvulsoterapia (ECT) pode ser necessária nos casos complicados ou refratários. Na era pré-neuroléptica foram identificados diversos casos de catatonia letal (descrita por Stauder em 193463) entre pacientes com PC apresentando quadros acinéticos e hipercinéticos extenuantes, todos com boa resposta ao ECT. Alguns autores filiados à escola WKL argumentam que, em razão do caráter fásico com posterior remissão completa, pacientes com PC não requerem continuação no uso de antipsicóticos durante os períodos de estabilidade clínica. Em estado de remissão clínica, o uso concomitante de antipsicóticos pode provocar efeitos colaterais nocivos à reabilitação dos pacientes64• Contudo, não há estudos sistemáticos sobre o uso profilático de medicação nas PCs e, portanto, a possibilidade de descontinuar antipsicóticos na fase de estabilidade clínica deve ser vista
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com cautela (p. ex., há estudos demonstrando que a interrupção abrupta de antipsicóticos em pacientes com PC clinicamente estáveis está associada com aumento na incidência de recaídas). Por outro lado, Perris65 observou que os antipsicóticos são menos efetivos do que o lítio no tratamento profilático das PCs. Entretanto, visto que não há estudos controlados sobre o tratamento farmacológico da fase aguda e o tratamento profilático de longo prazo com as PCs, tais assunções precisam ser vistas com cuidado.
Transtorno esquizoafetivo O transtorno esquizoafetivo caracteriza uma condição de fronteira entre as categorias nosológicas da esquizofrenia e dos transtornos de humor; justamente por essa razão, exemplifica os problemas dos atuais sistemas diagnósticos baseados em categorias nosológicas.
História A primeira descrição de uma condição mais consistente com o que atualmente é conhecido como transtorno esquizoafetivo deve-se ao psiquiatra alemão Karl Kahlbaum (1828-1899). Com base em observações transversais e longitudinais, Kahlbaum apresentou a vesania típica circular como entidade nosológica distinta das demais 66. Na 6a edição do seu Lehrbuch der Psychiatrié7 , Kraepelin (1856-1925) propôs um agrupamento bipartido das psicoses com ênfase no seu aspecto prognóstico. De um lado concebeu como dementia praecox as psicoses endógenas progressivas e com estado final de defeito (agregando a catatonia de Kahlbaum (1874), as dementiae paranoides (de Hipócrates e Laségue) e a hebefrenia de Hecker (1871)); de outro, os transtornos maníaco-depressivos, caracterizados por formas de curso fásico e completa remissão entre os episódios. Contudo, mais tarde o próprio Kraepelin viria a reconhecer diversos casos com características de ambos os grupos de psicoses que desafiavam a dicotomia esquizofrenia ou transtornos de humor68 • Bleuler (1857- 1939) cunhou o termo grupo das esquizofrenias em substituição a demência precoce, conceito que trouxe consigo uma maior abrangência, arrolando sob o diagnóstico de esquizofrenia outras psicoses que seriam vistas originalmente por Kraepelin como no âmbito dos transtornos maníaco-depressivos. Bleuler69 descreveu casos com sobreposição de sintomas psicóticos e afetivos, designando-os Mischpsychosen (psicoses mistas) e alocando-os como subtipos de esquizofrenia em vista de apresentarem predomínio dos seus chamados sintomas fundamentais. Esses "casos intermediários" (zwischen-Fiille) entre transtornos de humor e esquizofrenia foram também reconhecidos por Kurt Schneider (1887 1967), que os distinguiu entre os subtipos com sintomatologias psicóticas e de humor concomitantes ou sequenciais70 •
A designação psicoses esquizoafetivas foi introduzida em 1933 pelo psiquiatra Jacob S. Kasanin (1897 -1946). No artigo intitulado The schizoaffective psychoses, Kasanin descreveu nove casos de jovens com bom funcionamento sócio-ocupacional que subitamente desenvolveram quadros psicóticos com características esquizofrênicas e sintomas afetivos. A maior parte desses casos apresentava história de evento vital crítico recente, com um período psicótico relativamente breve e evolução favorável. Kasanin, que nasceu na Rússia e emigrou para os EUA aos 18 anos, foi influenciado pelos ensinamentos psicanalíticos de AdolfMeyer (1866-1950), postulando que a psicose esquizoafetiva fosse causada por conflitos emocionais de natureza sexual e que a psicanálise ajudaria a prevenir a recorrência de tais ataques7 1• Os casos descritos por Kasanin guardam mais semelhança com os transtornos psicóticos agudos transitórios da CID-1O (especialmente os quadros polimorfos - F23.1) do que com o TEA72 • O transtorno esquizoafetivo (TEA) teve reconhecimento clínico estabelecido com a sua inclusão como subtipo de esquizofrenia nas duas primeiras edições do DSM (DSM-I [1952] e DSM-II [1968]). No DSM-III (1980), o TEA ganhou o estatuto de categoria diagnóstica separada da esquizofrenia, sendo redefinido com critérios que permitiam as especificações dos subtipos predominantemente esquizofrênico ou predominantemente afetivo. A revisão do DSM-III (DSM-III-R [1987]) redefiniu o TEA adotando sua dimensão "predominantemente esquizofrênicà' e realocando a dimensão "predominantemente afetivà' entre os transtornos de humor, sob a designação de transtorno de humor com características psicóticas incongruentes com o humor. Malhi et al. 73 argumentam que essa mudança no fluxograma diagnóstico do TEA prejudicou a investigação de curso, prognóstico e tratamento dos estados esquizoafetivos, de tal forma que ainda hoje permanece o debate quanto ao TEA constituir (1) uma forma de esquizofrenia7 \ (2) uma forma de transtorno afetivo75, (3) uma categoria diagnóstica separada76 ou (4) o ponto-médio de um continuum entre esquizofrenia e transtorno bipolar77 • Atualmente o DSM-IV (1994) define o TEA como categoria diagnóstica distinta da esquizofrenia e do transtorno de humor, embora assuma que os transtornos mentais não constituam categorias diagnósticas com limites absolutamente distintos entre si. As inconsistências relativas à classificação do TEA apontam para a necessidade de estudos em que as características clínicas dos transtornos afetivos e dos transtornos psicóticos sejam investigadas à luz de evidências que envolvam epidemiologia, genética, neurofisiologia, neuroimagem e neuropsicologia. Somente por meio dessas âncoras neurobiológicas é possível endereçar de modo consistente o estatuto diagnóstico do TEA, se imiscuído às demais psicoses em um continuum ou se separado em uma categoria específica7 3'78 . Atualmente há cinco mode-
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los de abordagem do transtorno esquizoafetivo (TEA): (1) como subtipo de esquizofrenia; (2) como subtipo de transtorno afetivo; (3) resultante de comorbidade de esquizofrenia e transtorno afetivo; (4) como forma intermediária do modelo unitário de psicose (continuum); e (5) como um terceiro tipo de psicose endógena.
Epidemiologia Em parte decorrente do emprego de diferentes definições diagnósticas nos estudos sobre o TEA, o conhecimento de seus fatores demográficos resulta pouco consistente. A prevalência do TEA tem sido estimada em 0,5 a 0,8% na população geral. Costuma-se admitir que o TEA seja menos comum do que a esquizofrenia73 . Com relação ao gênero sexual, o TEA parece ser mais comum em mulheres, que por sua vez costumam apre sentar início da doença mais tardio e predomínio do subtipo depressivo. O subtipo depressivo parece ocorrer mais comumente em pacientes com maior idade, enquanto o subtipo bipolar é mais comum em jovens79•80. Com relação ao estado marital, a revisão de Cheniaux et al. 8 1 observou que a proporção de pacientes com TEA que se casaram foi igual (cinco estudos) ou superior (seis estudos) aos pacientes com esquizofrenia. Com relação aos transtornos de humor, a proporção de pacientes com TEA que se casaram foi igual (nove estudos) ou inferior (três estudos). A taxa de desemprego entre essas três condições seguiu padrão semelhante: maior na esquizofrenia, intermediária no transtorno esquizoafetivo e menor nos pacientes com transtornos de humor.
Etiopatogenia Genética
Embora não haja dados conclusivos no TEA, a herdabilidade estimada para esquizofrenia (ESQ) é de 60 a 85%82 e para o THB é de 40 a 70%83. A prevalência do TEA (0,5 -0,8%) mostra-se inferior às prevalências de ESQ e THB, ambas estimadas em torno de 1%. É possível que a prevalência relativamente baixa do TEA represente apenas uma menor proporção de casos com sobreposição de sintomas psicóticos e afetivos. O padrão de herdabilidade para condições específicas é uma importante fonte de informação sobre a natureza da sobreposição clínica. Nesse sentido, estudos com familiares de indivíduos portadores de THB ou ESQ revelam uma predisposição genética em grande medida compartilhada. Recentemente, pesquisadores suecos investigaram aproximadamente 2 milhões de famílias (9 milhões de indivíduos) quanto ao risco de esquizofrenia (36 mil probandos) e transtorno bipolar (40 mil probandos). Trata-se do maior estudo familiar envolvendo ESQ e THB já realizado. Os principais resultados do estudo: (1) indistintamente, ESQ e THB foram encontrados em iguais proporções em familiares de indivíduos
afetados e (2) as herdabilidades estimadas para ESQ (64%) e THB (59%) mostraram-se igualmente elevadas. Tais achados demonstram que ESQ e THB compartilham de causas genéticas comuns, o que vai de encontro à tradicional dicotomia kraepeliniana na classificação das psicoses endógenas. Nas últimas décadas, inúmeras evidências convergem para a ideia de que as psicoses endógenas constituem um modelo unitário em que participam diversos genes com efeitos parciais que, quando somados, superam um limiar além do qual tem-se então a manifestação clínica da psicose. Embora em menor escala, o estudo demonstrou que os efeitos ambientais também se fazem sentir, seja em ESQ (4,5%) ou THB (3,4%). A hipótese de um continuum psicótico entre as psicoses endógenas tem origem em estudos que envolvem herdabilidade. Em estudo com 1.254 parentes de pacientes afetados, Gershon et al. 84 relataram prevalências de transtorno afetivo em familiares de probandos com TEA (37%), transtorno bipolar tipo I (TB-I) (24%), TB-11 (25%), depressão unipolar (20 %) e controles (7%). Em estudo familiar realizado na Irlanda (Roscommon Family Study), Kendler et al.85 verificaram que o subtipo depressivo do TEA é mais comum em parentes de probandos ESQ. Tais achados sugerem que o tipo depressivo do TEA seja uma versão menos grave de esquizofrenia e que o subtipo bipolar do TEA represente uma dimensão mais grave do TB86 • Revisões atuais dos estudos epidemiológicos e genéticos moleculares sobre TB e ESQ sugerem que a coexistência de sintomas psicóticos e afetivos esteja associada com o compartilhamento de genes de suscetibilidade87•88 , o que argumenta em favor da comunhão de substratos neurobiológicos entre ESQ e TB e infirma a dicotomia kraepeliniana89 • Estudos de linkage sugerem a existência de pelo menos quatro regiões cromossômicas que podem conter genes de suscetibilidade compartilhados entre ESQ e TB90-92. Exemplos são o DAOA, gene que codifica o ativador d aminoácido oxidase, localizado no cromossomo 13q; o DISC1 (gene Disrupted in Schizophrenia 1), com evidências de polimorfismo associado com ESQ, TEA e TB93 . Há também evidências de suscetibilidade genética compartilhada entre ESQ, TEA e TB envolvendo genes relacio nados com as vias de sinalização do glutamato 94 . Recentemente, Lencz et al. 95 pesquisaram a variação alélica do gene codificador do fator neurotrófico cerebral (BDNF) para verificar sua associação com transtornos afetivos. Observaram que indivíduos com TEA e outros transtornos afetivos mais frequentemente apresentaram duas cópias do haplótipo mais comum do BDNF (contendo o alelo valina do polimorfismo Val66Met) em comparação com voluntários saudáveis. Quando comparados com pacientes com ESQ, pacientes com TEA também mais frequentemente apresentaram as duas cópias do haplótipo comum. O estudo demonstra que a variação do
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gene BDNF parece estar associada não com ESQ em si, mas com o fenótipo clínico de alteração afetiva em diferentes categorias diagnósticas do DSM-IV Endofenótipos neurocognitivos
Uma área de crescente interesse na investigação dos mecanismos biológicos associados com os transtornos psíquicos é o estudo do funcionamento neurocognitivo, em grande medida em razão do fato de que, dentre diversas outras variáveis clínicas, o desempenho cognitivo fornece dados quantitativos objetivos e mais consistentes com diversos achados neurobiológicos. Em revisão de estudos neurocognitivos, Krabbendam et al.9 6 concluíram que os pacientes ESQ, apesar de terem deficiências semelhantes em alguns domínios cognitivos (p. ex., função executiva e memória visual), apresentam prejuízos cognitivos mais graves e estáveis; ao passo que pacientes com TB apresentam melhor desempenho global e os déficits de atenção aparentemente são as únicas alterações que permanecem estáveis nesses pacientes97 . A metanálise deBora et al. 98, investigando o funcionamento cognitivo em ESQ, TEA e psicoses afetivas, também demonstrou que em seis de doze domínios cognitivos os pacientes com ESQ têm desempenho pior do que pacientes com TEA ou psicoses afetivas. Contudo, a diferença entre os grupos é pequena e a distribuição dos effect-size mostra grande heterogeneidade. A diferença entre os grupos em grande medida deveu-se à maior porcentagem de homens, à gravidade de sintomas negativos e à menor idade de início da doença no grupo de pacientes ESQ. Os autores concluíram que os dados neuropsicológicos não fornecem evidência de distinção categoria! entre ESQ e os outros grupos, embora um subgrupo de pacientes ESQ com sintomatologia negativa grave apresente maior prejuízo cognitivo do que pacientes com TEA e psicoses afetivas. Os déficits cognitivos observados em ESQ parecem ocorrer tanto em indivíduos afetados quanto, embora em menor proporção, em parentes em primeiro grau não afetados99, 100 • Especificamente, o prejuízo no desempenho cognitivo verbal concomitante e pré-mórbido associado à ESQ (indivíduos afetados e familiares) não é observado em pacientes com TB ou seus parentes em primeiro grau99 . Por outro lado, há evidências de que as alterações da memória estão associadas tanto com ESQ como com TB, sugerindo que os déficits de memória podem estar relacionados à predisposição para psicoses em geral99, 101. Contudo, há pesquisas que sugerem que o funcionamento executivo ( working memory), o aprendizado verbal e a memória declarativa constituem marcadores endofenotípicos mais consistentes em TB. Déficits nesses domínios cognitivos parecem ser hereditários, cossegregam nas famílias, estão relacionados à doença e permanecem após a remissão dos sintomas (traço) 102 • Frangou et al. 103 observaram que prejuízos na resposta de inibição (função predominantemente associada ao
córtex pré-frontal, PFC, ventral) refletem de maneira mais consistente a predisposição familiar para o TB do que os déficits executivos associados com o PFC dorsolateral (p. ex., rule attainment). Em estudo subsequente, os autores observaram que uma tarefa de fluência verbal, associada com integridade funcional das regiões frontais e tempo rais, é capaz de distinguir pacientes com TB de pacientes com ESQ 104 . Há indícios de que funções cognitivas mais dependentes de funcionamento temporal (p. ex., memória tardia) estejam mais comprometidas em pacientes com ESQ do que em pacientes com TEA 105 • Algumas outras fun ções cognitivas comumente comprometidas em ESQ, como memória de trabalho verbal, podem estar preservadas no TEA 106 • Endofenótipos neurofisiológicos
Pacientes com ESQ apresentam prejuízo no desempenha de tarefas que envolvem movimentos oculares antissacádicos, que sao movimentos voluntários executados na direção oposta à ação reflexa de olhar para o estímulo apresentado. Há evidências de determinação genética dessa disfunção em indivíduos com ESQ e seus familiares 107, 108, de modo que quanto mais próximo o parentesco tanto mais expressa é a alteração 109 . Alguns estudos demonstram alterações do movimento antissacádico também em indivíduos com TB, embora a alteração comporte-se aqui mais como marcador do estado do que como traço (manifesta-se durante a crise e extingue-se após remissão clínica), diferentemente do que se observa na ESQ 110 . Os déficits no desempenho antissacádico parecem estar associados com a presença de características psicóticas tanto nos transtornos do espectro esquizofrênico quanto nos transtornos afetivos. O córtex pré-frontal (PFC) é o substrato anatomofisiológico mais intimamente relacionado com o desempenho das tarefas antissacádicas, especialmente o PFC dorsolateral (dlPFC), responsável pela supressão do reflexo sacádico e implementação voluntária do movimento antissacádico 111 . Outra variável neurofisiológica utilizada na investigação de endofenótipos das psicoses é a chamada inibição pré-pulso (IPP), fenômeno neurológico em que um estímulo mais fraco (pré -pulso - geralmente acústico) aplicado anteriormente inibe a reação do organismo a um estímulo mais forte aplicado posteriormente (pulso). A redução da amplitude do sobressalto reflete a capacidade adaptativa do SN C modular a resposta de sobressalto (startle) com base no "aviso" propiciado pelo estímulo prévio mais fraco. Déficits na IPP revelam comprometimento na capacidade de filtrar informações, o que remete a alterações na sensibilidade sensomotora. Prejuízos na IPP parecem estar associados com endofenótipos em ESQ e transtorno de personalidade esquizotípica, embora não haja estudos que investiguem esse marcador nas psicoses afetivas 112 •
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Neuroimagem
Embora nas últimas décadas tenha havido progresso significativo na detecção de alterações estruturais e funcionais no cérebro de indivíduos com ESQ e TB, há relativamente poucos estudos de neuroimagem especificamente dirigidos ao TEA. As evidências mais consistentes de alteração na estrutura cerebral em esquizofrenia (ESQ) referem -se ao alargamento dos ventrículos laterais e terceiro, redução volumétrica de lobos temporais e estruturas límbicas, e redução no volume de estruturas subcorticais, como tálamo e caudado, em pacientes de primeiro episódio não medicados 113•114. Com referência ao período em que ocorrem essas alterações, sabe-se que o aumento ventricular e a redução de volume cortical já estão presentes em pacientes de primeiro episódio 115 • Mais controversa é a questão de se essas alterações são (1) estáticas 116, (2) progressivas 117·118, se (3) resultam de uma combinação de ambas119 ou se ( 4) refletem a existência de processos etiopatogênicos distintos em diferentes subtipos de esquizofrenias 120 . Em revisão de estudos funcionais na ESQ, Berman121 enumera os seguintes achados: 1. Quando a atividade cerebral ou metabolismo são analisados no cérebro inteiro (global function), os pacientes apresentam valores relativamente normais. 2. Análises em condições de repouso têm se revelado inconsistentes (alguns estudos relataram alterações na lateralização de funções cerebrais). 3. Durante a ativação cognitiva, os pacientes tendem a apresentar padrões diferentes dos controles saudáveis (atividade pré-frontal anormal em testes que envolvem memória de trabalho; e déficits no córtex cingulado, alterações que envolvem relações funcionais entre frontal e temporal e outras regiões corticais). Nos últimos 15 anos, a grande maioria dos estudos funcionais com ESQ tem detectado alterações na resposta pré-frontal diante de uma variedade de atividades cognitivas que envolvem a circuitaria frontal, especialmente memória de trabalho. A região mais comumente implicada é o córtex pré-frontal dorsolateral (dlPFC) e a anormalidade mais comumente relatada é a hipoativação dessa região. Entretanto, alguns estudos com fMRI têm demonstrado hiperatividade pré-frontal, originando a hipótese de que as alterações possam se manifestar como recrutamento excessivo da circuitaria pré-frontal durante tarefas cognitivas breves, com falha subsequente em manter esse recrutamento durante períodos de tempo maiores 121. Embora haja relativo consenso quanto aos déficits cognitivos em ESQ, há controvérsias em torno do que causa o mau desempenho: se é devido ao não engajamento nas atividades cognitivas propostas durante o escaneamento (portanto, as regiões implicadas não são ativadas) ou se é devido à fisiopatologia da doença em si. Revisões mais recentes convergem para a hipótese de que haja alteração na fisiologia do córtex cingulado anterior, que se
mostra consistentemente hipoativo em tarefas cognitivas que envolvem conflito e erro (p. ex., stroop test). Conforme essa hipótese, a grande maioria dos estudos conclui pela reduzida ativação do dlPFC nos déficits de processamento cognitivo 122 • De modo geral, as alterações na ativação cerebral observadas nos estudos funcionais com pacientes ESQ e seus parentes biológicos corresponde ao grau de comprometimento cognitivo e emocional verificado nos estudos neuropsicológicos e às alterações estruturais descritas na literatura, achados sugestivos de que a vulnerabilidade genética da esquizofrenia esteja associada com alteração na circuitaria fronto -talâmico-cerebelar 123 . Com relação ao transtorno bipolar (TB), as alterações mais especificamente relacionadas são redução de substância cinzenta (SC) em região frontal e córtex préfrontal subgenual 124·125 e aumento no volume de córtex cingulado anterior à direita 126, além de alterações no padrão de giros cerebrais 127 • Adolescentes com TB parecem apresentar aumento volumétrico de amígdalas em comparação com pacientes adultos com TB 128. Algumas alterações estruturais são comuns a ambas as condições, ESQ e TB: alargamento ventricular 129, redução de substância branca (SB) 130·131 , assimetria do complexo amígdala-hipocampo 132 e aumento na densidade de receptores D2 (Pearlson et al., 1996). Em estudo volumétrico quantitativo comparando pacientes com TEA a pacientes com TB e controles saudáveis, Getz et al. 133 observaram que TEA e TB apresentam semelhantes alterações regionais de striatum 133 • Sob o ponto de vista funcional, os estudos com TB em geral demonstram hiperatividade na rede fronto -tálamo -estriataP34·135 e hipoatividade da região anterior do giro do cíngulo durante tarefas que envolvem função executiva (workingmemmory) 136• Pacientes com TB eutímicos apresentam hiperativação do PFC ventrolateral (vlPFC) e de regiões límbicas e paralímbicas durante tarefas que envolvem memória de retenção. Outro estudo com paradigma de inibição cognitiva (stroop test) em pacientes com TB eutímicos demonstrou alteração na ativação do vlPFC e hipoativação de cíngulo anterior e córtex temporal137. Esses achados são corroborados pelos resultados de estudos funcionais mais recentes sugerindo que pacientes TB eutímicos têm dificuldade em recrutar a rede neural pré-frontal no processamento cognitivo de estímulos emocionais 138-140 . De modo geral, os achados em ESQ e TB remetem a alterações na ativação de diferentes redes neurais relacionadas com sintomas específicos das respectivas condi ções, embora haja também alterações comuns a ambas. Não há estudos que comparem ESQ com TEA, mas é pos sível que as alterações em pacientes com TEA sejam menos pronunciadas do que as observadas em ESQ73 . Em nível de citoarquitetura, o cérebro de pacientes com ESQ e TEA apresenta neuropil reduzido no PFC e
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hipocampo, além de diminuição da densidade neuronal na região anterior do cíngulo78.
Características clínicas e diagnóstico O diagnóstico clínico de TEA caracteriza-se pela apresentação simultânea de sintomas psicóticos e afetivos. Os critérios do DSM-IV-TR e da CID-10 incluem um período ininterrupto da doença durante o qual ocorre um episódio de transtorno de humor (depressivo maior, maníaco ou misto) concomitante com sintomas que preenchem o critério A para esquizofrenia.
pelo menos algum tempo durante o episódio. Sintomas de ambos os critérios G 1 e G2 devem ser proeminentes no quadro clínico. G4. Critério de exclusão mais comumente utilizado: o transtorno não é atribuível a doença cerebral orgânica (no sentido de Füx) ou a intoxicação por substância psicoativa, dependência ou abstinência. (F1x). F25.0 Transtorno esquizoafetivo, tipo maníaco
A. Os critérios gerais para transtorno esquizoafetivo (F25) devem ser preenchidos. B. Critérios para transtorno maníaco devem ser preenchidos (F30.1 ou F31.1).
Nosologia comparativa
Transtorno esquizoafetivo (F25), de acordo com a CID-10: Obs.: Esse diagnóstico depende de um equilíbrio aproximado entre número, gravidade e duração dos sintomas afetivos e esquizofrênicos. G 1. O transtorno preenche critérios para um transtorno afetivo (F30. [episódio maníaco], F31. [transtorno bipolar], F32. [episódio depressivo]), com intensidade moderada a grave, como especificado por suas respectivas categorias. G2. Sintomas de pelo menos um dos grupos listados a seguir devem estar claramente presentes na maior parte do tempo durante um período de pelo menos 2 semanas (esses grupos são quase os mesmos listados para esquizofrenia (F20.0 - F20.3): 1. Eco de pensamento, inserção, bloqueio ou irradiação de pensamento (F20 Gl.1a). 2. Delírios de controle, influência ou passividade, claramente relacionados a movimentos do corpo ou membros ou pensamentos, ações ou sensações específicos; percepção delirante (F20 G 1.1 b). 3. Vozes alucinatórias comentando continuamente o comportamento do paciente ou discutindo entre si, ou outros tipos de vozes alucinatórias vindas de alguma parte do corpo (F20 Gl.1c). 4. Delírios persistentes de outros tipos, culturalmente inapropriados e completamente impossíveis, mas não meramente grandiosos ou persecutórios (F20 G 1.1 d) (p. ex., ter visitado outros mundos, poder controlar as nu vens com a respiração, comunicar-se com plantas ou animais sem falar etc.). 5. Fala grosseiramente irrelevante ou incoerente, ou uso frequente de neologismos (uma forma evidente de F20 G1.2f). 6. Aparecimento frequente embora intermitente de algumas formas de comportamento catatônico, como postura inadequada, flexibilidade cérea e negativismo (F20 Gl.2g). G3. Critérios G1 e G2 devem estar presentes dentro do mesmo episódio do transtorno e simultaneamente por
F25. 1 Transtorno esquizoafetivo, tipo depressivo
A. Os critérios gerais para transtorno esquizoafetivo (F25) devem ser preenchidos. B. Critérios para transtorno depressivo, pelo menos de moderada gravidade, devem ser preenchidos (F32.1, F32.2, F31.3 ou F31.4). F25.2 Transtorno esquizoafetivo, tipo misto
A. Os critérios gerais para transtorno esquizoafetivo (F25) devem ser preenchidos. B. Critérios para transtorno afetivo bipolar misto devem ser preenchidos (F31.6). F25.8 Outros transtornos esquizoafetivos. F25.9 Transtorno esquizoafetivo não especificado. Comentário: Se desejado, outros subtipos de transtorno esquizoafetivo podem ser especificados de acordo com o curso longitudinal do transtorno, como segue: F25.x0 Apenas sintomas esquizofrênicos e afetivos concomitantes (como definido em G2). F25.x1 - Sintomas esquizofrênicos e afetivos concomitantes, mas persistência dos sintomas esquizofrênicos além da duração dos sintomas afetivos. Critérios diagnósticos para o transtorno esquizoafetivo (295.70) (DSM-IV)
A. Um período contínuo de doença durante o qual, em algum momento, ocorre um episódio depressivo maior, um episódio maníaco ou um episódio misto concomitantemente com sintomas que preenchem o critério A para esquizofrenia. Obs.: o episódio depressivo maior deve incluir o critério A 1 (estado de humor depressivo). B. Durante o mesmo período da doença ocorrem delírios ou alucinações por pelo menos 2 semanas na ausência de sintomas de humor proeminentes. C. Os sintomas que preenchem critérios para um episódio de humor estão presentes por uma porção significativa da duração total dos períodos residual e ativo da doença. D. O transtorno não é devido a efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p. ex., droga de abuso ou medicação) ou condição médica geral.
50 SÍNDROMES PSICOPATOLÓGICAS: TRANSTORNOS PSICÓTICOS BREVES, TRANSTORNO ESQUIZOAFETIVO E TRANSTORNO DELIRANTE
Tipo específico: (.O) Tipo bipolar: se o distúrbio inclui um episódio maníaco ou misto; (.1) Tipo depressivo: se o distúrbio inclui apenas episódios depressivos . ma10res. A confiabilidade entre avaliadores no diagnóstico do TEA não é muito boa, possivelmente por causa das particularidades nos critérios que envolvem simultaneidade e sequenciamento temporal dos sintomas73•141 (Tabela I).
Diagnóstico diferencial A distinção entre TEA, esquizofrenia e transtorno de humor com características psicóticas não é uma tarefa simples. No TEA deve haver um episódio de humor concomitante com os sintomas da fase ativa da esquizofrenia, com os sintomas de humor presentes por uma substancial porção do total de duração da doença, e os delírios ou alucinações devem perdurar por pelo menos 2 semanas na ausência de sintomas de humor proeminentes Comparativamente, sintomas de humor na esquizofrenia têm uma duração breve relativa à duração total do transtorno, ocorrem durante as fases prodrômica ou residual ou não preenchem completamente critérios para transtorno de humor. Se os sintomas psicóticos ocorrerem exclusivamente durante períodos de alteração do humor, o diagnóstico deve ser de "transtorno de humor com r • • caractenstlcas psiCotlcas . No TEA os sintomas não devem ser considerados como episódio de humor se resultarem claramente de sintomas da esquizofrenia (p. ex., perda de peso porque a comida é considerada envenenada, dificuldade para dormir por causa de alucinações auditivas e dificuldade de concentração decorrente da desorganização psicótica). Perda de interesse ou prazer é comum em transtornos psicóticos não afetivos e, portanto, para satisfazer os critérios para TEA, o episódio depressivo maior deve incluir depressão global do humor. I
Tabela I
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))
Curso e prognóstico ESQ e TB apresentam semelhantes idades de início, prevalências, cursos fásicos, distribuição demográfica, risco de suicídio e predisposições genéticas 142•143 . Embora a ESQ tenha sido tradicionalmente diferenciada do TB pelo seu curso de deterioro progressivo, estudos longitudinais mais recentes sugerem que casos graves de TB podem ser refratários ao tratamento e ter uma evolução contínua e com deterioro progressivo 144• As taxas de recuperação no TEA são bastante variáveis (2983%) e cerca de 20 a 30% dos pacientes apresenta curso deteriorante e persistência de sintomas psicóticos73 • O TEA costuma apresentar prognóstico intermediário entre a ESQ e o TB. Os fatores de mau prognóstico no TEA são nível de funcionamento pré-mórbido precário, início insidioso, ausência de fatores psicossociais precipitantes, início precoce, predomínio de sintomas psicóticos, precária recuperação entre os episódios e história familiar de ESQ. Portanto, exceto por predomínio de sintomas psicóticos, os fatores de mau prognóstico são semelhantes aos da ESQ (em que o mau prognóstico está mais associado com sintomas deficitários). Contudo, em geral os pacientes com TEA apresentam um curso não deteriorante e respondem melhor ao lítio do que os pacientes com ESQ, embora a resposta não seja tão efetiva quanto a observada em pacientes com TB.
Tratamento Como de praxe, o lítio mostra-se eficaz nos transtornos afetivos e os antipsicóticos na ESQ, o que segue a dicotomia diagnóstica das psicoses endógenas. Contudo, juntamente a anticonvulsivantes como o ácido valproico, ambas as classes de medicações são empregadas no tratamento da ESQ e do TB 145 •
Critérios diagnósticos para o TEA Sintomas afetivos
Sintomas esquizofrênicos
Critério de duração
Critério de simultaneidade
Critérios adicionais
DSM-IV
Episódio depressivo maior, maníaco ou misto
Critério A para esquizofrenia (2 ou +: delírios, alucinações, fala desorganizada, alterações comportamentais ou sintomas negativos). Um sintoma se vozes comentando (em terceira pessoa) ou delírios bizarros.
Episódio depressivo ~ 2 semanas); Episódio misto ou maníaco ~ 1 semana). Sintomas psicóticos ~ 1 mês - critério A para esquizofrenia).
Durante o mesmo período
Delírios ou alucinações por + de 2 semanas sem sintomas de humor proeminentes. Sintomas de humor durante grande parte da duração da doença.
CI D- 1O
Sintomas proeminentes de mania, depressão ou mistos
Um, preferivelmente dois, sintomas de (a) a (d) para esquizofrenia (não inclui sintomas da fala).
Duração do episódio afetivo (maníaco > 1 semana; depressivo > 2 semanas).
Preferivelmente simultâneos, pelo menos dentro de poucos dias um do outro.
Adaptada de Malhi et ai., 200873.
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A literatura que envolve especificamente o tratamento do TEA tem evidência precária 146. Alguns estudos abertos com pacientes com TEA demonstraram eficácia de risperidona, olanzapina e clozapina. A revisão de Baethge 147 sobre o tratamento farmacológico das psicoses esquizoafetivas aconselha o uso de lítio e carbamazepina nas alterações primariamente afetivas e de clozapina nos quadros com predomínio de sintomas ESQ. Pacientes com TEA frequentemente recebem regimes farmacológicos complexos no intuito de controlar sintomas afetivos e psicóticos, porém não há evidência de que alguma estratégia farmacológica seja mais eficaz do que outras, tanto na fase aguda quanto na de manutenção. Via de regra são empregados antipsicóticos, estabilizadores de humor (lítio, carbamazepina, valproato), antidepressivos ou uma combinação entre eles73 • O tratamento da fase aguda normalmente requer o uso de antipsicóticos. Não obstante a precariedade das evidências, a escolha da estratégia terapêutica na fase de manutenção depende do subtipo diagnóstico do TEA. Estabilizadores de humor podem ser utilizados em pacientes com o subtipo bipolar, antidepressivos no subtipo de. . . , . . . pressivo e antlpsicotlcos em pacientes que persistem com sintomas psicóticos. Na prática, a combinação de estabilizador de humor e antipsicótico pode ser preferível no subtipo bipolar, ao passo que a combinação de um antipsicótico com um antidepressivo pode ser preferível no subtipo depressivo. Tanto quanto preconizado no TB, a utilização de antidepressivos no TEA pode estar associada com indução de mania ou ciclagem rápida 148. O sub tipo bipolar com resposta terapêutica limitada pode se beneficiar do emprego de ECT. Em razão de sua alegada propriedade estabilizadora de humor, os antipsicóticos atípicos podem ser particularmente úteis como monoterapia nos TEAs 149 . Casos refratários podem se beneficiar do uso de clozapina. Em revisão dos estudos farmacológicos publicados até 2008, Jager et ai. 146 corroboram as premissas anteriores, sugerindo que a falta de recomendações conclusivas sobre o tratamento do TEA se deve a dificuldades com o estado nosológico, com a pluralidade de critérios e a validade do conceito de TEA. Dentre as recomendações, sugerem que as futuras classificações CID - 11 e o DSM-V unifiquem a divergência de conceitos utilizados para diagnosticar transtornos com combinação de sintomas psicóticos e afetivos, com o intuito de identificar amostras mais homogêneas.
Transtorno delirante persistente (TD) A designação transtorno delirante (TD) remete a um grupo de transtornos cuja característica principal é a presença de delírio não bizarro, em geral com relativa ausên cia de outras alterações psicopatológicas. Embora limitadas, as evidências empíricas relativas ao TD justificam sua
distinção da esquizofrenia e dos trasntornos de humor. Via de regra, pessoas acometidas por esse distúrbios não admitem ter um problema psíquico e se opõem ativamente ao tratamento psiquiátrico. Até por se apresentarem cognitivamente preservados, esses pacientes costumam ser vistos na comunidade como reclusos, excêntricos ou estranhos, e em geral só têm contato com profissionais de saúde quando obrigados por familiares ou força de segurança pública. A palavra paranoia tem origem grega a partir de paranoos (para [ao lado, além de] + noos [mente]), designando loucura, insanidade. Hipócrates já aplicara essa designação para quadros de delirium associados com febre. Mas foi Kahlbaum 66 , ele de novo, que classificou a paranoia como doença mental específica, fazendo prevalecer a evolução natural da doença caracterizada pela persistência do quadro delirante ao longo da evolução. Kraepelin ( 1913) manteve o termo paranoia restrito à definição de casos relativamente raros (ele teria visto dezenove deles), de início insidioso, de caráter crônico, caracterizados por delírio sistematizado (persecutório, grandioso, celotípico ou hipocondríaco), ausência de alucinações e ausência de deterioro da personalidade. Diferenciou a paranoia das parafrenias, que surgiam mais tarde do que a dementia praecox e apresentavam alucinações, e da dementia paranoides, com início precoce e curso deteriorante 150. De acordo com Kendler 1\ o conceito moderno do termo paranoia estabelecido por Kraepelin é objeto de renovadas discussões que evoluíram ao longo de três tenciências: 1. A paranoia como forma branda de esquizofrenia59'70'151'152, tendência expressa no DSM-II (1968), em que os estados paranoides eram vistos como possíveis variantes da esquizofrenia. 2. A paranoia como uma forma de doença maníacodepressiva153. 3. A paranoia como uma terceira forma de psicose, distinta da esquizofrenia e dos trantornos do humor. Essa última posição corresponde às ideias originais de Kraepelin e foi assumida por Gaupp 15\ Kretschmer 155 e pela escola escandinávia 156. Um fator adicional de confusão refere-se à ambiguidade do termo paranoia, que pode designar (1) suspicácia, desconfiança, (2) um tipo específico de delírio (ou seja, delírio persecutório) ou (3) uma síndrome psiquiátrica cuja característica principal é a presença de delírios, não necessariamente paranoides ' . ou persecutonos. Com o DSM-III (1980), o TD passa a ser visto como entidade nosológica separada da esquizofrenia e assume uma posição mais próxima do conceito de paranoia estabelecido por Kraepelin. O DSM-III-R (1987) trouxe critérios diagnósticos mais confiáveis na identificação de casos e obtenção de dados mais homogêneos para pesquisa. Com o objetivo de evitar a tendência para inclusão ape-
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nas de casos com delírios persecutórios ou celotípicos, a expressão "paranoide" (paranoid) foi substituída por "delirante" (delusional).
Epidemiologia O TD é relativamente raro e estima-se que correspanda a cerca de 1 a 2% das internações psiquiátricas. Embora não haja informações precisas, em grande medida por causa do comportamento esquivo dos pacientes, estima-se uma prevalência ao longo da vida em torno de 0,05 a 0,1 %. A idade de início varia entre 18 e 80 anos, mas a maioria dos casos começa entre 34 e 45 anos. O início pode ser agudo ou gradual e parece haver uma ligeira preponderância do gênero feminino. Segundo o estudo demográfico de Kendler157, os casos de início agudo e precoce tendem a apresentar melhor prognóstico. Outras características associadas são imigração e condição celibatária entre homens ou de viuvez entre as mulheres.
Etiopatogenia Como nos demais quadros psicóticos endógenos (não orgânicos), as causas do TD são desconhecidas. Os estudos epidemiológicos identificaram diversos fatores de risco, como idade avançada, déficit sensorial, isolamento social, história familiar, características de personalidade (acentuada sensibilidade interpessoal) e história de imigração recente. Contudo, esses achados não são constantes nem implicam relação causal. O fator de risco mais bem documentado é história familiar de doença psiquiátrica, incluindo o TD. Em revisão da literatura, Gardno e McGuffin 158 observam que a maioria os estudos genéticos sobre o TD é composta por amostras pequenas e apresenta diversas outras limitações metodológicas, o que não esclarece se de fato há uma contribuição genética na origem do transtorno. Da mesma forma, é pouco provável que o TD tenha uma relação genética mais forte com os transtornos afetivos ou a esquizofrenia, embora os dados atuais também não excluam associações mais sutis. Os estudos de linkage são limitados pela raridade de famílias multiplamente afetadas. Os estudos de associação, embora com amostras pequenas, trazem algumas evidências que implicam polimorfismos de genes codificadores de receptores dopaminérgicos (DA). Diversos estudos de associação com pequenas casuísticas examinaram polimorfismos de genes codificadores de receptores DA. Estudos com receptores DRD2 e DRD3 resultaram negativos. Já o gene codificador do DRD4 apresentou uma variante de polimorfismo associada com maior suscetibilidade para o TD, em comparação com pacientes ESQ e controles saudáveis159. Contudo, esses resultados são preliminares e inconclusivos, visto que além de limitados pelo pequeno poder amostrai necessitam ser replicados.
Manschreck160 argumenta que a discussão da etiologia do TD implica (1) determinar a pertinência do TD como categoria diagnóstica diferente das demais psicoses e (2) examinar as teorias explicativas propostas na patogênese da formação dos delírios em geral. O terceiro passo é integrar as evidências disponíveis em hipóteses . . , . emp1ncamente testave1s. • 1. Pertinência diagnóstica do TD (categoria nosológica distinta ou forma atípica de TB ou ESQ). Os estudos epidemiológicos sugerem se tratar de uma condição distinta das demais, por ser menos prevalente, começar mais tarde do que ocorre na ESQ (embora em homens comece mais cedo do que em mulheres) e não ter o predomínio do sexo feminino como observado nos transtornos de humor (TH). Sob o ponto de vista genético, se o TD constituísse subtipo de TH ou de ESQ apresentaria incidência familiar mais elevada do que na população em geral, o que não corresponde aos achados disponíveis. Alguns estudos demonstram que probandos com TD mais frequentemente têm familiares com traços acentuados de suspicácia, ciúmes e ideação paranoide do que familiares de controles saudáveis. Outros estudos sugerem que transtorno de personalidade paranoide e transtorno de evitação são mais comuns em familiares de pacientes com TD do que em ESQ e controles saudáveis. A história natural do TD também é sugestiva de entidade diagnóstica distinta: idade de início tardia e evolução com funções psíquicas mais preservadas do que em ESQ. Em geral, o deterioro funcional dos pacientes com TD se deve mais às consequências da crença delirante em si do que a algum déficit cognitivo. Além disso, o padrão comportamental pré-mórbido tende a ser mais extrovertido, assertivo e hipersensível do que o observado em pacientes com ESQ. O fator imigração parece estar mais associado com o TD do que na ESQ, o que parece favorecer o componente etiológico ambiental. Estudos de seguimento também demonstram a estabilidade diagnóstica do TD: apenas 3 a 22% dos casos recebem diagnóstico posterior de ESQ e cerca de 6% de transtornos de humor. • 2. Teorias explicativas. Há três categorias de hipóteses explicativas na formação do delírio: 2.1. Os delírios surgem a partir de alteração no interesse motivacional (envolvendo mecanismos psicodinâmicos ou teoria de atribuição social), com sistema cognitivo de outra maneira preservado. O paradigma dessa abordagem encontra-se na análise de Freud sobre os escritos do juiz Schreber, envolvendo mecanismos de ne- e proJeçao. . gaçao 2.2. Os delírios resultam de alteração cognitiva que compromete a capacidade de o paciente formular conclusões válidas a partir das evidências vividas (alteração do raciocínio). A noção de que os delírios resultem de alteração formal do processo lógico-racional tornou-se popular nos anos 1950, em grande medida por influência
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de von Domarus, que tentou vincular a linguagem e gramática da esquizofrenia a alterações neurofisiológicas. Elementos mais atuais dessa concepção podem ser v erificados nas proposições de que os pacientes delirantes apresentam déficit na lógica bayesiana (ou seja, tendem a formular e aceitar conclusões com base em um nível de evidência demasiado baixo). Outra concepção dessa tenciência sugere que os delírios resultam da tendência da pessoa em atribuir significados a partir de julgamentos tendenciosos, com base na teoria de atribuição social. 2.3. Os delírios têm origem a partir de processos cognitivos normais dirigidos para explicar experiências perceptivas anormais (mecanismo psicobiológico, hipótese da experiência anômala). Um dos modelos teóricos propostos sugere que a transmissão dopaminérgica, implicada na atribuição de novidade e saliência emocional diante de objetos e associações, encontra-se alterada e empresta uma relevância indevida a fenômenos que, emhora destituídos de maior relevância, são então interpretados em uma perspectiva cognitiva compatível com essa "saliência'', o que leva à quebra do teste de realidade. O fato de que as medicações antipsicóticas atuam bloqueando a transmissão dopaminérgica é compatível com a hipótese de que a hiperatividade desse sistema resulta nos sintomas psicóticos, especialmente o delírio, cuja regularização leva à melhora clínica161 •
Diagnóstico e características clínicas A característica essencial para o diagnóstico de transtorno delirante, segundo o DSM-IV, é a presença de uma ou mais ideias delirantes por pelo menos um mês, sem que seja cumprido o critério A para esquizofrenia. Se houver alucinações visuais ou auditivas, elas não são importantes para o quadro, mas pode haver alucinações táteis ou olfativas, geralmente relacionadas ao tema delirante (p. ex., sensação tátil de estar infestado por insetos associada a delírios de infestação). No TD, o comportamento não é estranho e não há grande deterioro da atividade psicossocial, exceto por consequência direta dos delírios (p. ex., alguém que não sai de casa para evitar ser perseguido e acaba por isso tendo prejuízos no trabalho e nas relações sociais). Em geral, pacientes com transtorno delirante apresentam aspecto e comportamento adequados enquanto suas ideias não são questionadas. É importante ressaltar que, quando há deterioro, ele não é devido a sintomas negativos (como na esquizofrenia), mas a limitações decorrentes das próprias crenças delirantes. Via de regra o deterioro social predomina sobre o intelectual ou laboral. Os episódios afetivos, se simultâneos às ideias delirantes, são breves quando comparados à duração total do quadro. A ideação delirante também não é consequência direta do uso de substâncias (p. ex., cocaína) ou de alguma condição clínica (p. ex., doença de Alzheimer, lúpus eritematoso sistêmico).
O transtorno delirante também difere da esquizofrenia pela ausência de delírios bizarros. Entretanto, o conceito do que seja "bizarro" é difícil de ser estabelecido, sobretudo por causa das diferenças culturais. Considera-se bizarra a ideia delirante cujo conteúdo é bastante improvável e incompreensível, não derivado das experiências da vida cotidiana. Nesse transtorno, as ideias são compreensíveis e poderiam de fato acontecer no cotidiano (p. ex., ser perseguido, envenenado, amado secretamente, traído), embora sejam infundadas ou exageradas. O transtorno delirante é classificado de acordo com o tema central do delírio em subtipos: • Erotomaníaco: o indivíduo acredita estar sendo secretamente amado por outra pessoa e atua no sentido de retribuir esse sentimento, seja por meio de presentes, cartas, chamadas telefônicas ou até perseguindo o objeto de seu delírio. Em amostras clínicas, esse subtipo é mais frequente em mulheres, enquanto em amostras forenses é mais comum em homens. • Grandioso: o indivíduo está convicto de ter feito algum descobrimento importante à humanidade, de ter algum dom extraordinário ou de ter recebido alguma mensagem especial de uma divindade. Também pode acreditar que tem relações sociais com alguém importante ou mesmo ser aquela pessoa importante (nesse caso, a pessoa real pode ser vista como impostor). • Celotípico: o indivíduo acredita que o cônjuge ou amante é infiel com base em inferências errôneas e pequenas "provas", usadas para justificar a ideia delirante. Esse quadro costuma levar a litígios conjugais e a atitudes tomadas por parte de quem se sente traído a fim de evitar possíveis traições (restringir a liberdade do cônjuge, perseguir, agredir). • Somático: a ideia delirante está relacionada a supostas alterações no corpo do indivíduo, sejam deformidades, sensações ou alteração de funções corpóreas. Nesse caso, não é raro que também estejam presentes alucinações olfativas ou táteis (p. ex., a pessoa sente um cheiro insuportável saindo de seu corpo, sente vermes embaixo da pele, etc.). • Misto: não há tema predominante. • Não especificado: quando não se consegue determinar claramente a ideia delirante ou quando ela não está descrita nos tipos específicos (p. ex., quando há ideias de autorreferência sem associação significativa com componentes de persecutoriedade ou grandiosidade). Relação entre CID- 10 e DSM IV-TR para os critérios diagnósticos para transtorno delirante: os critérios diagnósticos de investigação da CID-1Oestabelecem uma duração mínima de sintomas de três meses (diferentemente do DSM-IV, que requer duração de somente um mês). Critérios para o diagnóstico de transtorno delirante no DSM-IV (297.1)
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A. Ideias delirantes não estranhas (p. ex., que implicam situações que ocorrem na vida real, como ser seguido, envenenado, infectado, amado à distância ou enganado pelo cônjuge ou amante ou ter uma doença) com duração de pelo menos um mês. B. Nunca foi cumprido o critério A para esquizofrenia. No transtorno delirante, pode haver alucinações táteis ou olfatórias se estiverem relacionadas ao tema delirante. C. Exceto pelo impacto direto das ideias delirantes ou de suas ramificações, a atividade psicossocial não está significativamente deteriorada e o comportamento não é estranho. D. Se ocorrerem episódios afetivos simultaneamente com as ideias delirantes, a duração total deles é breve em comparação com a duração total dos períodos delirantes. E. A alteração não é decorrente de efeitos fisiológicos diretos de alguma substância (p. ex., droga ou medicamento) ou de uma enfermidade médica. Especificar tipo (atribuem -se os seguintes tipos de acordo com o tema delirante que predomine): • Tipo erotomaníaco: ideias delirantes de que outra pessoa, em geral de um status superior, está apaixonada pelo indivíduo. • Tipo de grandiosidade: ideias delirantes de exagerado valor, poder, conhecimentos, identidade ou relação especial com alguma divindade ou com alguma pessoa famosa. • Tipo celotípico: ideias delirantes de que o companheiro sexual é infiel. • Tipo persecutório: ideias delirantes de que a pessoa (ou alguém próximo a ela) está sendo prejudicada de alguma forma. • Tipo somático: ideias delirantes de que a pessoa tem algum defeito físico ou doença clínica. • Tipo misto: ideias delirantes características de mais de um dos tipos anteriores, mas sem tema predominante. • Tipo não especificado. Critérios para o diagnóstico de transtorno delirante persistente na CID lO (F22) F22.0 Transtorno delirante A. Presença de delírio ou conjunto de delírios diferentes daqueles listados como típicos da esquizofrenia sob F20 Gl.lb (que não sejam completamente impossíveis ou culturalmente inapropriados). Os exemplos mais comuns são os delírios de tipo persecutório, grandioso, hipocondríaco, celotípico ou erótico. B. O delírio em A deve estar presente por pelo me• nos tres meses. C. Os critérios gerais para esquizofrenia (F20.0 F20.3) não são preenchidos. D. Alucinações persistentes em quaisquer modalidades não estão presentes (embora possam ocorrer alucina-
ções auditivas ocasionais ou transitórias, mas não em terceira pessoa ou comentando entre si sobre o paciente). E. Sintomas depressivos (ou mesmo um episódio depressivo [F32. -] podem ocorrer de modo intermitente, desde que o delírio persista além do período de duração da alteração de humor. F. Critérios de exclusão mais comumente utilizados: não pode haver evidências de doenças cerebrais primárias ou secundárias, como listado sob FO, ou de transtorno psicótico decorrente do uso de substância psicoativa [Flx.S]. Especificação de subtipos: persecutório, litigioso, autorreferente, grandioso, hipocondríaco (somático), ceio, . ' tlpiCo e erotomamaco. F22.8. Outros transtornos delirantes persistentes. Categoria residual que não preenche critérios para F22.0. Trantornos em que os delírios são acompanhados por vozes alucinatórias persistentes ou por sintomas esquizofrênicos insuficientes para firmar diagnóstico de esquizofrenia (F20. -). Transtornos delirantes com duração menor do que três meses devem ser codificados como F23.-. F22.9 Transtornos delirantes persistentes, SOE.
Diagnóstico diferencial Ideias delirantes simples, como encontradas no transtorno delirante, podem apresentar etiopatogenia clínica ou serem desencadeadas pelo efeito de alguma substância, devendo portanto serem diferenciadas do transtorno delirante. Por exemplo, a doença de Alzheimer pode cursar com ideias persecutórias simples ("alguém entrou em meu quarto e roubou a minha roupa''). O abuso de drogas, como a cocaína ou anfetamínicos, também pode se apresentar com ideias delirantes idênticas às comumente encontradas no transtorno delirante, porém se diferencia dele pela clara correlação temporal com o uso da substância. O transtorno delirante difere da esquizofrenia por não apresentar as outras manifestações, como delírios bizarros, alucinações visuais ou auditivas significativas, desorganização de discurso ou de comportamento, catatonia ou sintomas negativos. Em comparação com a esquizofrenia, esse transtorno costuma produzir um menor deterioro da capacidade laborativa e social. Por vezes, é difícil distingui-lo dos transtornos de humor com sintomas psicóticos, porque nestes as ideias delirantes não costumam ser bizarras e as alucinações não são claras. Além disso, o transtorno delirante costuma apresentar também alguns sintomas afetivos no decorrer do quadro. Nesse caso, o diagnóstico diferencial leva em conta a relação temporal entre as ideias delirantes e os sintomas afetivos, bem como a sua gravidade. No transtorno de humor com sintomas psicóticos, as ideias delirantes ocorrem somente durante os episódios afetivos e estão fortemente correlacionadas com a gravidade do quadro afetivo. Já no transtorno delirante, há ideias deliran-
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tes presentes mesmo na ausência de sintomas afetivos, como quando há remissão de um quadro depressivo com permanência de sintomas delirantes. Se existirem sintomas afetivos que cumpram totalmente os critérios para um episódio afetivo ocorrendo simultaneamente às alterações delirantes, é necessário que a duração dos episódios afetivos seja breve quando comparada à duração do delírio. Se as alterações afetivas estiverem presentes durante um período substancial do quadro delirante, o diagnóstico mais apropriado passa a ser transtorno psicótico não especificado acompanhado por transtorno depressivo não especificado ou por transtorno bipolar não especificado. Os indivíduos com transtorno psicótico compartilhado (oufolie à deux) podem apresentar sintomas parecidos com o transtorno delirante, porém com a particularidade de que as ideias delirantes aparecem no contexto de uma relação estreita com outra pessoa, são formalmente idênticas e atenuam ou desaparecem quando o indivíduo com o transtorno psicótico compartilhado é afas tado do indivíduo com o transtorno psicótico primário. A diferença entre o transtorno psicótico breve e o transtorno delirante é dada pela duração dos sintomas delirantes inferior a um mês no transtorno psicótico breve. Pode ser difícil diferenciar a hipocondria do transtorno delirante. Contudo, na hipocondria, o temor de ter ou contrair certa enfermidade costuma apresentar intensidade menor que as ideias delirantes presentes no transtorno delirante (p. ex., o indivíduo pode admitir a possibilidade de não ter a doença temida). No transtorno dismórfico corporal há uma preocupação com algum defeito imaginário no aspecto físico do indivíduo. Muitos indivíduos mantêm essa crença com intensidade menor que no transtorno delirante e podem contemplar a possibilidade de que sua percepção esteja distorcida. Porém, alguns indivíduos com transtorno dismórfico sustentam suas crenças com intensidade delirante. Quando são cumpridos critérios para ambos os transtornos, pode-se diagnosticar tanto um transtorno dismórfico quanto um transtorno delirante tipo somático. No caso do transtorno obsessivo-compulsivo, a capacidade do indivíduo de reconhecer que as obsessões e compulsões são excessivas ou irracionais se dá ao longo de um continuum. O juízo de realidade pode se perder e a obsessão pode alcançar proporções delirantes (p. ex., acreditar que causou a morte de alguém por havê-la desejado). Se as obsessões evoluem para crenças delirantes persistentes que representam parte substancial do quadro clínico, pode ser adequado realizar um diagnóstico adicional de transtorno delirante. No transtorno de personalidade paranoide não há crenças delirantes persistentes ou bem definidas. Se um indivíduo com transtorno delirante apresentar história prévia de transtorno de personalidade paranoide, ela deve ser registrada no eixo li como pré-mórbida.
Curso e prognóstico O transtorno delirante costuma ter início na vida adulta, aproximadamente 49 anos nos homens e 45 anos nas mulheres 160 , porém pode aparecer em pessoas mais jovens. O transtorno costuma ser crônico, com algumas oscilações na intensidade das crenças delirantes, especialmente no subtipo persecutório. Também pode haver longos períodos de remissão seguidos por recaídas ou mesmo remissão definitiva. Alguns dados sugerem que o subtipo celotípico pode ter um prognóstico melhor do que o persecutório. Não há consenso sobre o transtorno ser mais frequente em familiares de indivíduos com esquizofrenia, porém alguns dados mostram que os transtornos de personalidade paranoide e evitadora podem ser mais frequentes em familiares de primeiro grau de indivíduos com transtorno delirante.
Tratamento O transtorno delirante é reconhecidamente pouco responsivo ao tratamento medicamentoso. Contudo, a revisão de 131 casos realizada por Manschreck e Khan 162 mostrou que cerca de 50% dos pacientes têm uma resposta positiva ao tratamento com antipsicóticos. No entanto, esse valor pode ser mais modesto, considerando-se que casos com resposta negativa costumam ser menos relatados e há relativa escassez de estudos randomizados duplos-cegos que avaliem a resposta do transtorno delirante ao tratamento medicamentoso. Nessa revisão, nenhum tratamento medicamentoso se mostrou superior e os pacientes apresentaram desfe cho favorável independentemente de qual medicação foi utilizada. A clozapina foi usada em apenas cinco pacientes, reservada para casos com efeitos colaterais intratáveis e delírios resistentes ao tratamento. Apesar de não ter mostrado efeito significativo sobre o tema delirante central, houve melhora da qualidade de vida dos pacientes pela redução dos sintomas associados aos delírios. O subtipo somático, quando medicado com pimozida, mostrou melhor desfecho que outros subtipos tratados com a mesma medicação e, de forma geral, também mostrou melhor desfecho que os outros subtipos. Isso levanta questões sobre a singularidade dessa intervenção e também sobre a conexão existente entre o subtipo somático e os outros subtipos de transtorno delirante. Ao longo do tratamento é frequente a associação de antipsicóticos com antidepressivos, já que a depressão é uma comorbidade frequente (ocorreu em 23% dos casos analisados pela revisão). Além disso, o uso de mais de um tipo de medicação antipsicótica em associação é bastante frequente, o que sugere que a monoterapia é insuficiente em muitos casos. Com frequência, o tratamento medicamentoso é associado com outras abordagens terapêuticas, como terapia cognitivo-comportamental e eletroconvul-
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soterapia. Contudo, há poucas evidências de eficácia na associação dessas modalidades terapêuticas.
Questões 1. Com relação à classificação dos transtornos psicóticos agudos. a)
b)
c)
d)
e)
qual dentre as seguintes informações é incorreta? De acordo com a CI D-1O, os transtornos psicóticos agudos transitórios têm início dos sintomas em menos de 2 semanas e apresentam remissão completa em 1 a 3 meses. O transtorno psicótico polimórfico agudo sem sintomas de esquizofrenia (F23.0) geralmente apresenta início abrupto de sintomas alucinatórios e/ou delirantes de caráter polimórfico e flutuante. ocorrendo remissão completa em no máximo 3 meses. No transtorno psicótico polimorfo agudo com sintomas de esquizofrenia. observa-se surgimento de quadro clínico agudo polimórfico e instável. no qual também ocorrem sintomas característicos de esquizofrenia (p. ex.. irradiação do pensamento ou vozes em terceira pessoa) durante a maior parte do tempo, porém com duração menor do que 3 meses. De acordo com a CI D- 1O, o transtorno psicótico esquizofreniforme agudo se caracteriza pela presença de sintomas psicóticos estáveis (sem o caráter polimórfico e flutuante dos ou tros trantornos) que justifica um diagnóstico de esquizofrenia. embora com duração menor de 1 mês. De acordo com o DSM-IV. o transtorno psicótico breve caracteriza-se pelo início súbito de sintomas psicóticos. com duração compreendida entre 1 dia e 1 mês. com completa remissão posterior.
2. Com relação ao transtorno esquizoafetivo. as evidências atuala) b) c) d) e)
mente disponíveis permitem afirmar que: Trata-se de um subtipo de esquizofrenia. Trata-se de um subtipo de transtorno de humor. Trata-se de uma forma intermediária ao longo de um continuum psicótico entre esquizofrenia e transtorno do humor. Trata-se de um terceiro tipo de psicose endógena independente das demais. Todas as alternativas anteriores são possíveis.
3. A lista. a seguir. constitui fatores de mau prognóstico no transtorno esquizoafetivo. exceto: a) Nível de funcionamento pré-mórbido precário. b) Ausência de fatores psicossociais precipitantes. c) Início precoce e insidioso. d) Predomínio de sintomas afetivos sobre os sintomas psicóticos. e) História familiar de esquizofrenia.
4. Com relação ao transtorno delirante persistente. é incorreto afirmar que: a) Trata-se de um grupo de transtornos cuja característica principal é a presença de delírio não bizarro com relativa ausência de outras alterações psicopatológicas.
b) É um transtorno relativamente raro. com uma prevalência ao longo da vida em torno de 0,05 a O, 1%. c) Em geral. os pacientes com transtorno delirante apresentamse cognitivamente preservados e procuram ativamente tratamento psiquiátrico para seu problema. d) Uma das hipóteses etiológicas do delírio consiste em alteração da saliência emocional e atribuição de novidade propiciada por hiperatividade dopaminérgica. e) No transtorno delirante podem ocorrer alucinações visuais ou auditivas. mas elas não são importantes para o quadro e geralmente se relacionam com o tema delirante. 5. O aspecto mais relevante no diagnóstico diferencial entre trans-
a) b) c)
d) e)
torno delirante e esquizofrenia consiste em : Presença de delírios mais estruturados no transtorno delirante. Ausência de alucinações no transtorno delirante. Tendência de que o paciente com esquizofrenia atue mais frequentemente sob o delírio do que o paciente com transtorno delirante. Menor deterioro cognitivo e melhor funcionamento sócio-ocupacional nos pacientes com transtorno delirante. Transtorno delirante com início mais tardio do que a esquizofrenia.
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50 SÍNDROMES PSICOPATOLÓGICAS: TRANSTORNOS PSICÓTICOS BREVES, TRANSTORNO ESQUIZOAFETIVO E TRANSTORNO DELIRANTE
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649
Psicose na Infância
Eliana Curátolo
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 650 Esquizofrenia na infância, 651 Etiologia, 651 Epidemiologia da esquizofrenia, 652
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Diagnóstico da esquizofrenia. 652 Evolução e prognóstico, 653 Tratamento, 653 Considerações finais, 655 Minicaso clínico, 655 Questões, 656 Referências bibliográficas, 656
1. Diferenciar o quadro psicótico da fantasia normal da criança.
2. Elaborar hipóteses diagnósticas a partir da anamnese e do quadro clínico. 3. Conhecer a evolução de cada patologia que apresenta psicose na infância. 4. Conscientizar a família de sua importância no tratamento. 5. Conhecer e indicar o tratamento interdisciplinar. 6. Saber as indicações e os efeitos colaterais de cada antipsicótico usado na infância e adolescência.
Introdução Quadro I
A psicose é definida como um distúrbio mental em que o pensamento, o afeto e a capacidade de perceber a realidade estão comprometidos e interferem diretamente nas relações interpessoais 1 • A alteração na percepção da realidade e a presença de delírio e/ou alucinação são as características mais importantes do quadro psicótico2 • Durante muito tempo não se acreditou que a criança pudesse apresentar psicose por não ter uma estrutura egoica madura, porém, atualmente, não se questiona tal existência3 . A criança normal usa a fantasia nas suas brincadeiras como um recurso saudável e sabe diferenciá-la da realidade, ao passo que a criança psicótica é convicta na sua interpretação, conforme descrito no Quadro I. A criança é um ser em desenvolvimento; portanto, o quadro psicótico na infância se altera muito rapidamente e só é possível fechar o diagnóstico com a história clínica e a evolução do quadro4 • A anamnese e as observações clínicas minuciosas são ferramentas fundamentais para fazer a hipótese diagnóstica. Os exames laboratoriais e de imagem são usados para investigar possível etiologia orgânica. As patologias mais frequentes que cursam com sintomas psicóticos na infância são:
Comportamento da criança normal e da criança psicótica
Criança normal Prefere estar na presença de outras pessoas Apresenta afeto preservado Discurso organizado Bom desempenho escolar As fantasias desaparecem com o tempo Olhar expressivo Criança psicótica Prefere o isolamento Sem ressonância afetiva Discurso desconexo Baixo desempenho escolar O quadro fantasioso se agrava com o tempo Olhar de estranheza ou perplexidade
• Esquizofrenia: não existem sinais e sintomas exclusivos da esquizofrenia antes do primeiro surto, a criança ou o adolescente apresenta apenas o retraimento social como manifestação. O que caracteriza a esquizofrenia
51 PSICOSE NA INFÂNCIA
e o rompimento com a realidade é quando o paciente passa a falar coisas sem sentido, apresenta alteração do comportamento com gesticulações, anda de um lado para outro, não dorme e fala sozinho na presença de delírios e alucinações. Igualmente ao quadro dos adultos, o início pode ser insidioso ou agudo e, a cada surto, o paciente se distancia do seu padrão normal de funcionamento 5 . • Transtorno afetivo bipolar(TAB): muitas vezes o paciente portador de TAB recebe inadvertidamente o diagnóstico de esquizofrenia em razão da presença de delírio persecutório e alucinações, mas, durante a evolução do quadro, observa-se que a criança com TAB apresenta ressonância afetiva, busca contato com outras pessoas, mantém o afeto preservado, apresenta mais oscilações de humor e normalmente volta ao padrão anterior de fun cionamento acadêmico e social6 . • Transtorno invasivo do desenvolvimento (TID): a criança com TID manifesta os sintomas clássicos antes dos 30 meses: evita contato visual, tem problemas de linguagem e comunicação, tem uma tendência ao isolamento e muitas vezes apresenta estereotipias como balanceio do tronco,jlapping e andar nas pontas dos pés7 • Este capítulo dará ênfase à esquizofrenia na infância, uma vez que as outras patologias serão discutidas separadamente.
Esquizofrenia na infância A esquizofrenia geralmente tem seu início no final da adolescência ou início da fase adulta. Porém, a esquizofrenia de início precoce é definida com o aparecimento de sintomas psicóticos específicos e prejuízos nas funções adaptativas entre os 13 e os 17 anos, ao passo que a esquizofrenia de início muito precoce aparece antes dos 13 anos de idade8 '9 . A imaturidade do desenvolvimento da linguagem e a separação entre a realidade e a fantasia torna difícil o diagnóstico da esquizofrenia em crianças menores de 7 anos de idade8 - 10 • Os critérios para o diagnóstico da esquizofrenia em crianças são os mesmos para a forma adulta, exceto que as crianças deixam de atingir os níveis esperados de desempenha social e acadêmico 10 .
Etiologia Apesar dos esforços dos pesquisadores, ainda não é possível precisar a etiologia da esquizofrenia. Os avanços científicos têm se direcionado para pesquisas genéticas, estudos bioquímicas, do neurodesenvolvimento e neuroimagem11 • Estudos genéticos
Os componentes genéticos estão entre os mais importantes elementos dessa rede, sendo que distintas alterações devem ocorrer no genoma para que a doença se
estabeleça. Acredita-se que essas alterações produzam um significativo desequilíbrio de vias fisiológicas, que desencadeia o processo patológico 12 • As taxas mundiais de prevalência da esquizofrenia sugerem fortemente que essa patologia não resulta de determinados padrões ambientais ou étnicos 13 • O envolvimento de componentes genéticos é sugerido por estudos que investigam o padrão de herança da doença, incluindo gêmeos, pais e filhos afetados e estudos de famílias completas. A taxa de concordância para esquizofrenia é da ordem de 41 a 65% entre gêmeos monozigóticos e de O a 28% entre gêmeos dizigóticos 14. Apesar da evidência dos fatores genéticos, ainda não é possível saber exatamente qual é a sua causa15 • Estudos bioquímicas
O sistema dopaminérgico consiste em três vias: nigroestriatal, mesolímbico/mesocortical e tuberoinfundibular. Há também vários tipos de receptores dopaminérgicos com diferentes localizações cerebrais, e são conhecidos os receptores D1, D2, D3, D4 e DS. Sabe-se que os antipsicóticos atuam de modo indiferenciado nos diversos receptores e sua administração leva a uma diminuição do ritmo de atividade, fenômeno conhecido por bloqueio de despolarização. Assim, é possível inferir que na esquizofrenia ocorre uma atividade excessiva de alguns sistemas dopaminérgicos 16 • Estudos do neurodesenvolvimento
São pesquisados os fatores de risco pré-natais e perinatais, buscando identificar os comprometimentos cerebrais no neurodesenvolvimento. Complicações de gravidez e parto, exposição pré -natal a viroses e achados neuropatológicos, como anormalidades na citoarquitetura, são comprovadamente associados a um maior risco de desenvolver esquizofrenia. Assim, é consistente o achado de diminuição volumétrica do cérebro, aumento dos ventrículos laterais, além da diminuição do lobo tempo ral na região do hipocampo em pacientes esquizofrênic os adultos. As alterações histopatológicas são mais su gestivas de disgenesia do que de degeneração, como redução de neurônios corticais e periventriculares, ausência de células de gliose e alteração da posição das células piramidais 17' 18 . Além da dopamina, provavelmente outras substâncias biogênicas estão envolvidas: noradrenalina, serotonina e outros neuropeptídeos neurotransmissores. Estudos de neuroimagem com PET e SPECT apontam receptores de neurotransmissores em diferentes regiões cerebrais, além de confirmarem o bloqueio de receptores D2 pelos neurolépticos 19 . A neurobiologia da esquizofrenia de início na infância ainda precisa ser estudada, tanto para melhorar a definição e o entendimento da patologia quanto para aprimorar a abordagem terapêutica.
651
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Exames de imagem
Estudos com ressonância magnética têm revelado diferenças no volume de áreas do lobo temporal e parietal em adultos com esquizofrenia, especialmente redução na porção anterior do complexo amígdala-hipocampo, mais frequente no lado esquerdo. Essas alterações não são observadas nas crianças esquizofrênicas20• Outro estudo sugere que crianças com esquizofrenia apresentam redução no volume da área singular cerebral e ausência da redução normal da simetria direita-esquerda dos volumes cerebrais21 •
Quadro 11
Sintomas positivos e negativos da esquizofrenia
Sintomas positivos Alucinação auditiva: várias vozes fazem comentários negativos a respeito da criança, criticam suas atitudes e ordenam que o paciente faça coisas que não faria habitualmente As alucinações visuais mais frequentes em crianças são de monstros Delírio persecutório: os pacientes estão certos de que querem prejudicá- los Demonstração de medo com frequência Redução do sono e do apetite Agitação psicomotora
Epidemiologia da esquizofrenia
Mania de xingar Hábito de falar sozinho, gesticular
Aproximadamente 1% da população geral é afetada pela esquizofrenia. A prevalência entre os pais de crianças afetadas é de 8% 22 • Essa doença é relativamente rara na infância. O aparecimento dos sintomas psicóticos antes de 13 anos é de 1/100 casos de esquizofrenia. Antes dos 18 anos, a incidência aumenta para 12 a 33/100 dos indivíduos acometidos 23 • Entre as crianças afetadas, os meninos parecem ter leve preponderância, com uma razão estimada de 1,67 meninos para cada menina24 •
Sintomas negativos Na adolescência, a esquizofrenia é facilmente confundida com depressão, mas não refere angústia ou tristeza Quadro catatoniforme: podem ficar horas parados em uma mesma posição Isolamento, os pacientes podem ser considerados "estranhos" Falta de motivação e apatia, os paciente podem ser considerados "preguiçosos" Afeto embotado
Quadro clínico da esquizofrenia na infância
Muitas vezes o início do quadro é confundido com depressão, pois a criança se retrai, perde o interesse pelas atividades habituais, apresenta distorções do pensamento e na percepção da realidade. Assim como ocorre nos adultos, crianças e adolescentes podem apresentar alucinações, delírios, desconfiança e temores de que pessoas controlem seus pensamentos. As alucinações auditivas e os delírios persecutórios aparecem em 71% dos casos. Jovens esquizofrênicos apresentam humor plano, praticamente sem oscilações e observa-se a contenção das emoções na voz e na expressão facial diante de um forte evento emocional25 • O surgimento dos sintomas pode ser lento ou abrupto, e o diagnóstico é mais evidente quando estão presentes as alterações psicopatológicas como delírios (paranoide é o mais frequente), alucinações (auditivas ou visuais), embotamento afetivo e risos imotivados26 • A avaliação psiquiátrica se baseia na anamnese, exame físico e psíquico. Os exames laboratoriais e de imagem não determinam a existência da doença, mas são úteis na investigação de alterações estruturais, auxiliam no diagnóstico diferencial e no planejamento terapêutico27. Os sintomas da esquizofrenia são divididos em positivos e negativos (Quadro II) 28 •
Diagnóstico da esquizofrenia Os critérios para o diagnóstico da esquizofrenia na infância são os mesmos usados em adultos: segundo os critérios diagnósticos do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM -IV-TR), a esquizofrenia é uma perturbação cuja duração mínima é de seis me-
Lentificação psicomotora
ses e inclui, no mínimo, um mês de sintomas da fase ativa 1• a) Sintomas característicos: alucinações, discurso desorganizado, comportamento amplamente desorganizado ou catatônico, embotamento afetivo, alogia ou abulia. b) Disfunção social/ocupacional: quando o início se dá na infância ou adolescência, incapacidade de atingir o nível esperado de realização interpessoal, acadêmica ou profissional. c) Duração: período mínimo de seis meses. Esse período deve incluir pelo menos um mês de sintomas que satisfazem o critério A e pode incluir períodos de sintomas prodrômicos ou residuais. Os sinais da perturbação podem ser manifestados apenas por sintomas negativos ou por dois ou mais sintomas relacionados no critério A, presentes de uma forma atenuada (p. ex., crenças estranhas e experiências perceptuais incomuns). Diagnóstico diferencial
A evolução do quadro psicótico é fundamental para a realização do diagnóstico diferencial com esquizofrenia. Os mais frequentes são: • TAB: pode ter uma apresentação inicial muito semelhante ao quadro de esquizofrenia, pois a criança pode manifestar delírios e alucinações que confundem o diagnóstico inicialmente em 50% dos casos. A oscilação de humor e a ressonância afetiva são observadas apenas no
51 PSICOSE NA INFÂNCIA
TAB. Com o tratamento medicamentoso, o quadro tende a remitir e aparentemente não se observa "defeito' após o surto, como acontece na esquizofrenia 1,28• • Transtorno esquizoafetivo: manifesta-se pela ocorrência de episódios de humor intercalados por episódios psicóticos sem sintomas de humor. É importante salientar que dentro dos episódios de humor podem também ocorrer sintomas psicóticos. Existem dois tipos principais: depressivo (em que os episódios de humor são sempre depressivos) e misto (em que ocorrem episódios depressivos, maníacos, hipomaníacos e mistos) 1,28 • • Transtornos mentais orgânicos: correspondem a um quadro confusional agudo (delirium) que se caracteriza por flutuação do nível de consciência e da atenção, desorientação, discurso desconexo geralmente consequente de um achado clínico como: doenças infecciosas (meningites e encefalites), pós-ictais das epilepsias, tumores do sistema nervoso central (SNC), malformação cerebral, distúrbios metabólicos ( endocrinopatias), medicações (corticoides) e tóxicos (substâncias químicas) J,zs. • TID: durante muito tempo, o autismo infantil foi considerado como um quadro psicótico de início precoce, mas na classificação atual o autismo é um dos TID29 . Em geral, não é difícil diferenciar esquizofrenia de TID, pois a grande maioria dos pacientes com TID apresentam sintomas logo nos primeiros anos de idade e não costumam ter delírios ou alucinações. No entanto, apesar de serem quadros distintos da esquizofrenia, alguns pacientes portadores de autismo de alto funcionamento ou síndrome de Asperger podem ser confundidos com esquizofrênicos por serem "estranhos': podendo ter ideias fantasiosas, dificuldade na interação social, embotamento afetivo, desenvolvimento neuropsicomotor normal e, às vezes, discurso descontextualizado. A comorbidade de TID com esquizofrenia é feita apenas se delírios ou alucinações proeminentes também estiverem presentes pelo período mínimo de um mês (ou menos, se tratados de modo bem-sucedido)29 . A anamnese e o exame psíquico são fundamentais para fazer o diagnóstico diferencial, principalmente com a investigação dos antecedentes familiares 30 •
Evolução e prognósti co A evolução clínica da esquizofrenia é bastante variada e influenciada por fatores como idade de início, questões individuais e ambientais que irão interferir em seu prognóstico3 1• Frequentemente os pais relatam que opaciente "não voltou a ser como era antes" com relação a afetividade, vida social e acadêmica; isso é conhecido como "defeito" pós-crise com maior prejuízo a cada surto32 • O prognóstico da doença é reservado, apesar da existência de novas terapêuticas farmacológicas e orientações psicoeducaionais31' 32 • Os critérios para diagnóstico estão descritos no Quadro III.
Quadro 111
Fatores de melhor e pior prognóstico para esquizofrenia
Fatores de melhor prognóstico Paciente com crítica do seu estado mórbido Início agudo e tardio Fator precipitante claro Antecedente social favorável, com relacionamentos interpessoais Presença de sintomas positivos Cuidado com a aparência Bom suporte familiar Sem antecedentes familiares de esquizofrenia Fatores de pior prognóstico Falta de crítica Início precoce e insidioso Inexistência de fatores precipitantes Má adaptação social Isolamento Baixo rendimento escolar Familiar com esquizofrenia Fraco suporte familiar e social Não remissão no período de três anos Predominância de sintomas negativos Aparência descuidada Muitas recaídas
Tratamento Os sintomas da esquizofrenia podem ser controlados com tratamento interdisciplinar. A psicofarmacoterapia é parte de um plano de tratamento amplo de acordo com cada caso: psicoterapia individual, em grupo ou familiar, acompanhamento psicopedagógico com orientação escolar, terapia ocupacional, grupos psicoeducacionais, hospital-dia e internação de pacientes com situação de risco 33 . Antes de escolher a medicação, deverá ser realizada uma avaliação laboratorial que tem como objetivo traçar um perfil basal para futuros exames de controles como: função tireoidiana, hepática, renal, hemograma e eletrocardiograma. Deve-se também investigar sobre o abuso de substâncias, convulsões e risco de gravidez34 • Muitas vezes, crianças necessitam de doses mais altas de medicação por unidade de peso corpóreo do que os adultos para atingirem as mesmas concentrações séricas e eficácia terapêutica. Acredita-se que dois fatores expliquem essa situação: metabolização hepática mais rápida e filtração glomerular aumentada em crianças, que sugere uma dose maior de algumas drogas, o que ajuda a explicar o fato de as dosagens terapêuticas em crianças geralmente não serem diferentes das do adulto 35. Estudos indicaram que crianças podem responder a drogas de maneira diferente dos adultos por conta de fato-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
res farmacodinâmicos (mecanismo droga-efetor) causados por alterações de desenvolvimento nas vias neurais ou em suas funções, embora a taxa rápida de biodisponibilidade da droga atinja geralmente os níveis adultos em plena adolescência. Clinicamente, isso indica que o médico deve estar alerta para possíveis mudanças na farmacocinética durante a puberdade, promovendo o preparo para ajustes de doses, se necessário. É importante obter níveis de concentração plasmática se houver mudança na eficácia clínica de uma droga quando a criança se torna adolescente33 . Nos quadros de psicoses estão indicados os neurolépticos ou antipsicóticos. Os antipsicóticos atípicos diferem dos típicos porque além de serem bloqueadores dos receptores de dopamina (D2), são bloqueadores significativos dos receptores de serotonina (S2) e isso explica a melhora dos sintomas negativos da esquizofrenia36. Outros estudos clínicos sugerem que há mudanças substanciais que ocorrem dentro do sistema de dopamina e outros sistemas neurotransmissores durante meados até o final da adolescência no córtex pré-frontal em desenvolvimento. Elas podem ter implicações para a compreensão do mecanismo de aparecimento da esquizofrenia, que normalmente ocorre no fim da adolescência e início da vida adulta. As alterações específicas de maturação do sistema receptor de dopamina incluem a diminuição das células de dopamina, pico dos níveis de dopamina basal, turnover e aumento dos níveis de dopamina no córtex pré-frontal. Esses dados sugerem que, em relação à idade adulta, a adolescência é caracterizada pelo aumento dos níveis de dopamina basal no córtex pré-frontal. Essas mudanças na maturação do sistema receptor de dopamina (como em outros sistemas do neurotransmissor) durante a infância e a adolescência podem ter implicações para a resposta clínica, bem como um aumento da suscetibilidade aos efeitos colaterais (p. ex., os efeitos colaterais extrapiramidais, a elevação de prolactina, sedação, ganho de peso), observado em jovens expostos aos neurolépticos33•37 • Após fazer o diagnóstico, a escolha do antipsicótico é provavelmente a decisão mais importante que um psiquiatra da infância faz no tratamento de um paciente jovem com suspeita de esquizofrenia33•38 • Preocupações sobre a segurança e a falta de eficácia dos antipsicóticos de primeira geração levou a uma busca de medicações mais eficazes e com melhor tolerabilidade. Como classe, os antipsicóticos de segunda geração têm afinidade por ambos os receptores da dopamina D2, bem como para a serotonina 5-hidroxitriptamina (5-HT2) e incluem a clozapina, a risperidona (e seu metabólito ativo paliperidona), olanzapina, quetiapina, ziprasidona e aripiprazol. No entanto, o aumento das preocupações sobre os efeitos colaterais faz dobrar a necessidade de examinar o risco/benefício de cada medicação39 • Resultados de três estudos controlados com placebo confirmaram a eficácia e a tolerabilidade da risperidona, olanzapina e aripiprazol em relação ao placebo em pacien-
tes com esquizofrenia. Entretanto, os pacientes tratados com olanzapina apresentaram sonolência, alterações das enzimas hepáticas, elevação de prolactina e ganho de peso excessivo em comparação com placebo. Os autores observaram que o ganho de peso com esse fármaco foi alarmante em relação ao outros antipsicóticos40. Em um estudo duplo-cego randomizado com placebo, os pacientes foram divididos em três grupos: risperidona 1 a 3 mg/dia (n =55), 4 a 6 mg/dia (n =51) e placebo (n =54) por seis semanas. Os pacientes que receberam risperidona apresentaram melhora significativa na psicopatologia geral. No grupo de 1 a 3 mg, os efeitos colaterais mais relatados foram sonolência, agitação e cefaleia. No grupo de 4 a 6 mg as queixas foram de efeitos extrapiramidais, tonturas e hipertonia. Os autores não relataram nenhuma alteração relacionada com aumento da prolactina, metabolismo da glicose ou aumento dos lipídios4 1• No entanto, o tratamento com risperidona em crianças tem sido associado a galactorreia, aumento do apetite e ganho de peso, que pode levar a alterações metabólicas. Outros trabalhos sugerem que a relação risco-benefício da risperidona parece ser ideal em baixas doses ( 1-4 mg) para crianças e adolescentes4 1• Uma recente metanálise sobre o tratamento da esquizofrenia concluiu que os antipsicóticos de primeira geração foram mais eficazes e causaram menos aumento de peso que os de segunda geração, porém apresentaram mais efeitos extrapiramidais. A olanzapina foi associada com mais efeitos colaterais, principalmente em relação a aumento de peso e alterações metabólicas42. Um estudo duplo-cego de oito semanas com 50 crianças e adolescentes comparou risperidona, olanzapina e haloperidol em 50 pacientes com diagnóstico de psicose (dos quais 60% tinham esquizofrenia), e não encontrou nenhuma diferença estatística na taxa de resposta ou redução dos sintomas entre as medicações, embora tenha havido uma tendência numérica que favoreceu à risperidona e à olanzapina. Além disso, o tempo para todas as causas de interrupção do tratamento foi significativamente maior no grupo da olanzapina do que a risperidona ou haloperidol do grupo (P < 0,05). No entanto, houve um ganho significativo de peso (especialmente com os de segunda geração) e os sintomas extrapiramidais apareceram mais no grupo medicado com haloperidol43 • Em um estudo-piloto aberto comparando risperidona e olanzapina com quetiapina, os resultados demonstraram uma melhora superior na psicopatologia geral com a risperidona, em comparação com a quetiapina, que, no entanto, teve um efeito colateral mais favorável44•45 • A clozapina é uma medicação eficaz, porém deverá ser usada com cautela em crianças e adolescentes em razão de complicações hematológicas como a agranulocitose. Em adultos, a clozapina tem se mostrado superior aos outros antipsicóticos em termos de resposta clínica global, redução dos sintomas positivos e negativos, discinesia tardia e
51 PSICOSE NA INFÂNCIA
menos sintomas extrapiramidais45 • Esses dados fornecem evidências de que existem diferenças importantes no resultado do tratamento entre os antipsicóticos disponíveis atualmente para tratar crianças e adolescentes com início precoce do espectro da esquizofrenia46•47• O ganho de peso tem surgido como um dos efeitos colaterais mais importantes e problemáticos para as crianças e adolescentes tratados com neurolépticos de segunda geração, o que dificulta muito a adesão ao tratamento. Estudos recentes em crianças e adolescentes indicam que o risco de ganho de peso é mais substancial com o uso de clozapina e olanzapina; moderado com o uso de risperidona, quetiapina e ziprasidona; e baixo com a utilização de aripiprazol48 • As consequências médicas de ganho de peso em crianças e adolescentes são a síndrome metabólica e a resistência à insulina, o que pode, em seguida, levar a diabetes tipo 2. Embora não existam dados comparativos a longo prazo para crianças, existem novas informações sugerindo níveis alarmantes de efeitos metabólicos adversos (p. ex., tolerância à glicose e dislipidemia) em crianças e adolescentes medicados com neurolépticos48 • Paralelamente ao tratamento psiquiátrico, o paciente deverá ser orientado a fazer acompanhamento endocrinológico e nutricional sobre a melhor estratégia terapêutica para amenizar os efeitos colaterais dos neurolépticos. Indica-se também atividade física orientada para cada fai xa etária49 • Acredita-se que a modificação do estilo de vida no início do tratamento com antipsicótico costuma ser um caminho promissor para prevenir o ganho de peso e outros resultados adversos na maioria das crianças e adolescentes50 • Orientação familiar Um paciente jovem naturalmente provoca um desequilíbrio nas relações familiares, isso acontece de forma bem mais acentuada quando se trata de esquizofrenia. Muitas vezes, um ser doente acaba mobilizando sentimentos variados como culpa, raiva, medo, vergonha e fracasso que necessitam serem trabalhados. Em algumas situações, uma orientação familiar pode ajudar a lidar com tais angústias. Entretanto, nas famílias em que as relações já eram conflituosas, o surgimento de uma criança doente somente favorece a rede de problemas já existentes, e a criança não tem a possibilidade de mudanças, sendo necessário um processo de terapia familiar com o objetivo de uma melhor compreensão desses conflitos. Prevenção e importância do diagnóstico precoce As famílias com parentes esquizofrênicos devem ficar atentas sobre o risco maior, quando comparados à população geral, para desenvolver esquizofrenia. É fundamental observar qualquer alteração no comportamento de crianças e adolescentes tanto em casa quanto na esco la. Os primeiros sintomas da esquizofrenia são: insônia,
perda do apetite, perda dos interesses habituais, olhar de estranheza, isolamento, delírio de perseguição e, final mente, as alucinações auditivas/visuais. Quanto mais cedo for feito o diagnóstico e iniciado o tratamento correto, maior serão as chances de recuperação do paciente. A detecção e a intervenção precoces de pessoas com risco de desenvolver psicose visam reduzir o tempo de psicose não tratada, melhorar a evolução e o prognóstico da esquizofrenia e talvez evitar que a pessoa chegue a desenvolver a doença51 •
Considerações finais Na clínica, ao se deparar com uma criança ou ado lescente com quadro de rompimento com a realidade, alteração do comportamento, discurso desconexo, alucinação auditiva/visual e antecedente familiar positivo para esquizofrenia, a primeira hipótese diagnóstica é a esquizofrenia. Quanto mais cedo iniciar o tratamento interdisciplinar, maiores serão as chances de que esse jovem não tenha tantos prejuízos cognitivos e sociais.
Minicaso clínico RRSG, um garoto de 11 anos. parou de frequentar a escola por referir "medo das pessoas". Nos antecedentes fam ilia res foi observado que seu pai é esquizofrênico e sua mãe tem transtorno bipolar. O paciente referiu que via sair da televisão bolas que se transformavam em retângulos. que transformavam-se. por sua vez. em pessoas que iriam matá-lo. Essas pessoas haviam matado os seus pais e fingiram ser eles. Durante a consulta, o paciente fazia barulhos com a boca e arrastava os pés para não ouvir as vozes. Também ouvia risadas de homens e de mulheres e tinha medo de que o levassem embora. Ele insistia em dizer "não é a minha imagin ação, é de verdade". Durante todo o período de sintomas produtivos, o paciente ap resentava fácies de medo, olhar perplexo e também aumento do tempo de latência entre pergunta e resposta. Chegou a ser medicado com risperidona. sem resposta, apresentando melhora significativa com clozapina 600 mg. Frequentou classe hospitalar e hospital-dia no IPq-HCFMUSP, tendo voltado a frequenta r a escola, mas não como era antes. segundo os familiares.
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Figura 1
Desenho feito por adolescente, portador de esquizofrenia.
655
656
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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Questões 1. Na psiquiatria da infância e adolescência, a anamnese é um a) b) c) d) e)
instrumento importante, podendo-se afirmar que: Deverá ser realizada diretamente com o paciente. Seus familiares ou responsáveis serão ouvidos se necessário. Na prática, é muito difícil isolar completamente as situações de diagnóstico e de terapia. A anamnese não é tão importante quanto o exame psíquico. Uma boa anamnese deverá ter muitas informações sobre a história do paciente. As informações sobre o início da doença, os antecedentes familiares e o exame psíqu ico são fundamentais para fazer o diagnóstico.
2. Com relação à esqu izofrenia na infância, é correto afirmar a) b) c) d) e)
que: É acompanhada por delírios e alucinações com alta incidência de convulsões. É rara em crianças com menos de 7 anos de idade. As crianças esquizofrênicas apresentam retardo mental como patologia de base. Caso a criança não apresente delírios ou alucinações, é descartada a hipótese de esquizofrenia. Crianças sujeitas a privação psicossocial certamente serão esquizofrênicas na adolescência.
3. A esquizofrenia na infância interrompe a continuidade do desenvolvimento e observa-se claramente que: a) Após cada surto, a criança volta a ser como era antes. b) O uso do pronome na terceira pessoa é uma característica importante. c) Os interesses pela escola e pelos amigos continuam preservados. d) No início do quadro, a perda do interesse e o isolamento podem ser facilmente confundidos com depressão. e) A resposta clín ica depende exclusivamente do uso da medicação.
4. É correto afirmar que o diagnóstico da esqu izofrenia na ina) b) c) d) e)
fância: É feito por meio de anamnese e história familiar positiva para esquizofrenia. É evolutivo, uma vez que os quadros na infância alteram-se rapidamente. É feito por meio da ressonância magnética fu ncional. Não pode ser feito antes dos 18 anos. Dificilmente é confundido com transtorno afetivo bipolar.
5. Com relação ao tratamento medicamentoso da esquizofrenia na infância, pode-se afirmar que: a) Os antipsicóticos de primeira geração são menos efetivos que osdesegundagemção. b) A olanzapina não causa aumento de peso nas crianças em razão da rápida metabolização hepática.
c) A clozapina é uma medicação que, apesar do risco de agranulocitose, pode ser usada em crianças e adolescentes com segurança desde que os leucócitos estejam normais. d) A medicação preconizada em crianças é a risperidona, que deverá ser mantida mesmo na presença de galactorreia, se o paciente apresentar remissão dos sintomas positivos. e) O tratamento inicial deverá ser sempre com antipsicóticos de . . pnme1ra geraçao.
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Transtornos Psiquiátricos Relacionados ao Ciclo Reprodutivo da Mulher
Rodrig o da Silva Di as Vera Lúc ia Carvalho Tess
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 658 Transtorno disfórico pré-menstrual (fDPM). 658
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Epidemiologia, 659 Comorbidade com outros transtornos psiquiátricos, 660 Tratamento do TDPM, 660 Menopausa, 661 Tratamento dos sintomas depressivos e ansiosos na menopausa, 663 Consideraçõs finais, 664 Questões, 664 Referências bibliográficas, 664
1. Diferenciar os transtornos pré-menstruais nas formas de síndrome
pré-menstrual e transtorno disfórico pré-menstrual. 2. Ter conhecimento sobre as possibilidades terapêuticas não farmacológicas e farmacológicas dos transtornos relacionados à fase pré-menstrual. 3. Avaliar os quadros de transtornos do humor durante o período do climatério e da menopausa e sua relação com os sintomas próprios desta fase do ciclo de vida da mulher e com os fatores de risco para depressão. 4. Ter conhecimento sobre as possibilidades terapêuticas não farmacológicas e farmacológicas dos transtornos relacionados ao
Introdução A referência à vulnerabilidade das mulheres às oscilações hormonais durante o ciclo de vida reprodutivo é frequente na literatura. Os estudos mostram que os sistemas de neurotransmissão (dopamina, serotonina, noradrenalina, acetilcolina, do sistema GABA e glutamatérgico) são modulados pelos hormônios sexuais, especialmente o estrogênio. Esses hormônios teriam ainda ação direta sobre mecanismos reguladores de neuroplasticidade, excitabilidade e sobrevivência neuronal e de células da glia. Cabe ainda ressaltar a presença de receptores de estrogênio e progesterona nas regiões do cérebro envolvidas na regulação do humor, tais como o córtex pré-frontal, a amígdala, o hipocampo, o corpo estriado e o tálamo 1• Dentre as condições mais fortemente relacionadas a essas oscilações encontra-se o transtorno disfórico prémenstrual e as alterações do humor no climatério-perimenopausa/menopausa. Mulheres com esses quadros teriam uma sensibilidade diferenciada às oscilações normais de hormônios 2 • Ou seja, não se trata de alterações hormonais, mas sim sensibilidade individual diferenciada. Enquanto se encontram numerosos estudos relacionados
climatério e à menopausa.
à presença de tais quadros, os estudos sobre o tratamento, em particular dos quadros de alteração do humor no período da menopausa, são bem mais escassos'.
Transtorno disfórico pré-menstrual (TDPM) Coube a Robert Frank a autoria, em 1931, do termo tensão pré-menstrual, a primeira tentativa de sistematização do que mais tarde foi descrito como um quadro de grande sofrimento manifestado por fadiga, irritabilidade, impulsividade, sensação de descontrole, além de vários sintomas físicos que só são aliviados após o início da menstruação3. Na década de 1950, esse termo foi substituído por síndrome pré-menstrual por Dalton e Green. Para estes autores, a tensão seria apenas um dentre vários sintomas, daí propondo a adoção do termo síndrome pré-menstrual (SPM) 3 . Desde então, observa-se maior ênfase nos sintomas psiquiátricos, em especial do humor, nos estudos
52 TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS RELACIONADOS AO CICLO REPRODUTIVO DA MULHER
sobre a SPM4 . Contudo, somente em 1983 ocorreu a criação do grupo de trabalho que primeiro elaborou as diretrizes de avaliação e diagnóstico da SPM pelo National Institute ofMental Health dos Estados Unidos. Nesse encontro, convencionou-se que, para diagnosticar a SPM, os sintomas deveriam variar, pelo menos, 30% em intensidade entre as fases foliculares e lúteas do ciclo menstrual, com confirmação prospectiva por meio da observação de pelo menos dois ciclos menstruais5 • Esse primeiro passo levou ao surgimento de critérios operacionais mais elaborados para fins de diagnóstico e pesquisa da SPM. Em 1987, a Associação Psiquiátrica Americana (APA) fez a inclusão de uma forma clínica da SPM, enfatizando a predominância de sintomas do humor, como apêndice do Diagnostic and Statistical Manual for Mental Disorders (DSM-III-R) 6 • O termo escolhido foi transtorno disfórico da fase lútea tardia. Em razão da pouca aceitação desse termo, já na edição seguinte - o DSM-IV, de 19947 - foi empregado o termo transtorno disfórico pré-menstrual (TDPM) e incluído como um apêndice dos transtornos de humor sem especificação (Quadro I). No mesmo período, a O r ganização Mundial de Saúde ( OMS) inclui esse quadro na 9ª edição do seu Manual da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde
Quadro I Critérios operacionais para o diagnóstico do transtorno disfórico pré-menstrual segundo a 4a edição revisada do DSM IV-R (2000)11
A. Os sintomas devem ocorrer durante a semana anterior à menstruação e remitir poucos dias após o início desta. Cinco dos seguintes sintomas devem estar presentes e pelo menos um deles deve ser o de número 1, 2, 3 ou 4: 1. Humor deprimido, sentimentos de falta de esperança ou pensamentos autodepreciativos. 2. Ansiedade acentuada, tensão, sentimentos de estar com os "nervos à flor da pele". 3. Significativa instabilidade afetiva. 4. Raiva ou irritabilidade persistente e conflitos interpessoais aumentados. 5. Interesse diminuído pelas atividades habituais. 6. Sentimento subjetivo de dificuldade em se concentrar. 7. Letargia, fadiga fácil ou acentuada falta de energia. 8. Alteração acentuada do apetite, excessos alimentares ou avidez por determinados alimentos. 9. Hipersonia ou insônia. 1O. Sentimentos subjetivos de descontrole emocional. 11. Outros sintomas físicos tais como sensibilidade ou inchaço das mamas, dor de cabeça, dor articular ou muscular, sensação de inchaço geral e ganho de peso. B. Os sintomas devem interferir ou trazer prejuízo no trabalho, na escola, nas atividades cotidianas ou nos relacionamentos. C. Os sintomas não devem ser apenas exacerbação de outras doenças. O. Os critérios A, B e C devem ser confirmados por anotações prospectivas em diário durante pelo menos dois ciclos consecutivos.
(CID -9) 8 , mas no capítulo destinado às doenças ginecológicas, tendo sido mantido assim na sua 10ª edição (CID -10) 9 , com a denominação de síndrome de tensão pré-menstrual (STPM). No ano de 2000, uma terceira definição de critérios operacionais foi elaborada pela Associação Americana de Obstetras e Ginecologistas com o termo SPM 10 • Entretanto, o termo SPM ainda é utilizado na literatura para quadros com a ocorrência de, pelo menos, dois e, no máximo, cinco sintomas pré-menstruais de intensidade moderada a grave, sem a necessidade de pelo menos um deles estar entre os itens 1 a 4, causando prejuízo do funcionamento global. Em virtude da variedade de manifestações e, sobretudo, da presença de sintomas psiquiátricos, especialmente os ansiosos e os do humor, o diagnóstico do TDPM ficou restrito inicialmente às mulheres que não apresentavam transtornos psiquiátricos do eixo I. Na 4a edição revisada do DSM-IV-R11 , o TDPM passou a ser aceito concomitante a um transtorno do eixo I e também do eixo li, sempre que houvesse a observação prospectiva da presença de sintomas pré-menstruais que não fizessem parte dos sintomas do transtorno psiquiátrico primário. Caso tais sintomas, na fase pré-menstrual, fizessem parte dos sintomas de transtornos psiquiátricos do eixo I, poderiam ser denominados como exacerbação pré-menstrual 12 •
Epidemiologia Com base nesses conceitos, os levantamentos epidemiológicos constataram que cerca de 80% das mulheres apresentavam pelo menos um sintoma pré-menstrual de intensidade leve a moderada, enquanto a SPM afetaria entre 20 e 50% das mulheres 13 . Estudos prospectivos de TDPM 14- 16 observaram uma prevalência entre 4,6 e 6,4%. Valores similares foram observados por avaliações retrospectivas do TDPM, entre 5,1 e 6,7% 17 •18 • Estes mesmos estudos apontaram, ainda, uma prevalência do TDPM subsindrômico (entre 18,6 e 20,7%) quando não se observava a presença de cinco sintomas ou comprometimento funcional. A estabilidade do diagnóstico foi avaliada prospectivamente em dois estudos, com uma grande variabilidade constatada em ambos. No estudo de Potter et al,l 9, um grupo de 1.350 mulheres foi consecutivamente analisado por dois anos, quando uma grande variação foi observada em ambos os diagnósticos. Apenas 45,7% das mulheres que apresentaram TDPM no primeiro ano mantiveram no segundo; 18,6% apresentaram SPM; 25,6% apresentaram sintomas sem preencher critérios tanto para SPM como TDPM, e 9,8% não apresentaram qualquer sintoma prémenstrual. A variação foi ainda maior dentro do grupo das mulheres com SPM, a saber: 27,1% apresentaram o mesmo diagnóstico no ano seguinte; 9,1% apresentaram TDPM;
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47,0% apresentaram sintomas sem preencher critérios tanto para SPM como TDPM; e 16,8% não apresentaram mais qualquer sintoma pré-menstrual. A maior razão da variação foi a alteração da resposta quanto ao comprometimento funcional dos sintomas pré-menstruais, um dos critérios para o diagnóstico neste estudo. No estudo de Wittchen et al. 18, com um tempo maior de seguimento (40 meses), dentro do grupo das mulheres com diagnóstico inicial de TDPM, 17,4% permaneceram com tal diagnóstico; 30,6% passaram a apresentar SPM; 47,2% ainda apresentavam sintomas sem preencher critérios tanto para SPM como TDPM; e 4,9% remitiram. Entre as mulheres com diagnóstico inicial de SPM, 35,8% permaneceram com esse diagnóstico; 10,9% apresentaram TDPM; 46,5% ainda apresentavam sintomas sempreencher critérios tanto para SPM como TDPM e 6,7% remitiram. Entre as mulheres sem diagnóstico de TDPM e SPM, 57,8% mantiveram o diagnóstico; 0,7% apresentaram TDPM; 3,9%, SPM; e 37,6% apresentaram sintomas sem preencher critérios tanto para SPM como TDPM. A despeito das diferenças metodológicas significativas, ambos os estudos mostraram uma maior estabilidade no grupo que não apresentava sintomas pré-menstruais, chamando a atenção para a relevância dos fatores biológicos como um determinante do diagnóstico e um possível comportamento cíclico. Na avaliação de fatores de risco para o TDPM e SPM feita na coorte de Potter et al. 19, essa variação esteve relacionada mais fortemente ao impacto de fatores biológicos e a eventos estressantes. O uso de contraceptivos hormonais (CH) apresentou-se como um fator protetor, levando a uma menor oscilação de hormônios durante o ciclo, fato este já observado por Yonkers et al.2°.
Comorbidade com outros transtornos psiquiátricos A revisão feita por Kim et al. 21 sobre a comorbidade entre TDPM e outros transtornos psiquiátricos encontrou valores que variaram de O a 20%. Segundo os autores, essa variação é reflexo, uma vez mais, das grandes diferenças metodológicas entre os estudos. Apesar de ter levado em conta apenas estudos com avaliação prospectiva dos sintomas pré-menstruais, os diferentes métodos e critérios de observação podem ter influenciado a grande variação do diagnóstico primário de TDPM entre os estudos escolhidos (de 14 a 45%). O estudo de Wittchen et al. 18 destaca-se pela qualidade metodológica e pela contribuição na relação do TDPM com comorbidades psiquiátricas. As comorbidades com transtornos psiquiátricos do eixo I foram avaliadas pelo Composite International Diagnostic Interview (CIDI)22, e comparadas com um grupo controle. No grupo com TDPM observou-se uma alta prevalência de comorbidades - 7,4% para qualquer transtorno ansioso, 22,9% para qualquer transtorno do humor, 28,4% para
transtorno somatoforme e apenas 26,5% não apresentando qualquer comorbidade psiquiátrica do eixo I.
Tratamento do TDPM O tratamento do TDPM preconizado está baseado em uma perspectiva integrada, que associa uma abordagem psicossocial com um tratamento farmacológico, de acordo com a gravidade e o grau de incapacitação dos sintomas (Tabela I). A confirmação diagnóstica por meio da coleta de dados com diários de sintomas por pelo menos dois ciclos menstruais é o primeiro passo. Ao se avaliar o diagnóstico de TDPM, algumas medidas gerais podem já ser tomadas - a psicoeducação e a prescrição de exercícios físicos regulares. A dieta também deve ser reavaliada - os alimentos integrais devem ser valorizados em detrimento da carne vermelha, do açúcar, do café, do álcool e de alimentos salgados em geral. Espera-se com esta abordagem um maior reconhecimento dos sintomas e das mudanças de atitudes, a fim de se evitar situações estressantes durante o período pré-menstrual. Há evidência de que alguns suplementos alimentares podem ser úteis no manejo dos sintomas. A suplementação de cálcio (dose de até 1.200 mg/dia) mostrouse capaz de reduzir os sintomas do TDPM, incluindo a depressão 23 • A utilização da vitamina B6 (piridoxina), dose de 80 mg/dia, também mostrou-se capaz de reduzir os sintomas pré-menstruais, mas não foi especificamente estudada em mulheres com diagnóstico de TDPM 24 -26 • Admitindo-se que um maior aporte de triptofano propicia aumento da síntese de serotonina, dois estudos mostraram resultados positivos sobre a redução dos sintomas afetivos no TDPM produzidos por bebidas de carboidratos complexos27•28 • Outros suplementos carecem de estudos sistematizados e ainda não podem ser recomendados. Os estudos sobre grupos de psicoeducação e de apoio são poucos e pequenos, sem conclusões definitivas. Seus resultados mostram-se restritos ao manejo dos sintomas pré-menstruais, sem maiores impactos nos sintomas depressivos e ansiosos 29-32 . A associação de técnicas de relaxamento mostrou-se eficaz especificamente sobre os sintomas ansiosos 33 • A terapia cognitivo-comportamental (TCC) para o TDPM apresentou-se com eficácia moderada, não se equiparando ao tratamento farmacológico 34, mas deve sempre ser lembrada nas mulheres que não aceitarem a intervenção medicamentosa. Quando as intervenções anteriormente descritas não apresentam resultados satisfatórios ou os sintomas do TDPM apresentam-se com impacto significativo na funcionalidade da paciente, o tratamento farmacológico deve ser aplicado. A primeira escolha deve recair sobre o tratamento com antidepressivos inibidores de recaptação de serotonina (ISRS) e os inibidores de recaptação de noradrenalina e serotonina (ISRNS) 35 -39 •
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As doses e o tempo de uso, entretanto, não são os mesmos observados no tratamento da depressão. De modo geral, os ISRS e ISRNS mostram-se eficazes com doses menores, metade da estabelecida para o tratamento da depressão e apresentam ainda um menor tempo de ação no tratamento do TDPM37-39 . Seguindo essas observações, a eficácia da sua utilização apenas nos períodos pré-menstruais ou continuamente foi demonstrada por outros estudos37·38. Constatou-se, além disso, que a retirada abrupta da medicação vem acompanhada do retorno dos sintomas do TDPM. Caso ela tenha sido utilizada de modo contínuo, há ainda o risco do aparecimento de sintomas de descontinuação40. Caso a utilização dos ISRS/ISRNS não tenham trazido um efeito clínico significativo (aproximadamente 40% das mulheres com TDPM não respondem a esta abordagem)41, a prescrição de tratamento que atue diretamente sobre os hormônios sexuais é a alternativa indicada. A despeito do reduzido número de estudos, os anticoncep cionais orais têm sido os mais utilizados. Apenas a formulação que combina 20 !lg de etinil-estradiol associada a 3 g de drospirenona foi regulamentada pelo FDA para este fim20•42 . Mas não há ainda comprovação dessa eficácia por meio de estudo de metanálise43. Neste caso, o objetivo seria obter uma maior estabilização dos hormônios durante o ciclo menstrual e menores efeitos colaterais durante o período de interrupção para a menstruação - quatro dias. A administração de progesterona na fase lútea do ciclo menstrual não se mostrou vantajosa em um estudo de revisão44. Bem mais eficaz foi a alternativa voltada para conseguir uma supressão da função ovariana por meio da redução dos níveis circulantes de estrógeno e progesterona, por meio da utilização de um agonista do hormônio liberador de gonadotrofina, como a leuprolide (GnRH) 45 . Entretanto, ambas as abordagens têm o risco de causar efeitos adversos importantes como a trombose venosa profunda e embolia pulmonar (com o uso de contraceptivos orais) e a androgenização e osteoporose (com o uso de GnRH). Neste último caso, a reposição de estrógeno e progesterona como compensação pode ser uma alternativa para se minimizar os efeitos adversos. Em algumas mulheres, contudo, ocorre a volta de alguns sintomas do TDPM 13 . Nos casos mais graves e refratários, a alternativa de ooforectomia e histerectomia deve ser avaliada com muita cautela em razão da irreversibilidade dos procedimentos. Outras alternativas de tratamento são encontradas na literatura. Por serem estudos pequenos ou sem replicação de resultados, sua indicação é restrita. Dentre essas alternativas encontram-se o alprazolan, buspirona, bro mocriptina, espirolactonona, anti-inflamatórios, yoga e acupuntura 13·39 . Não há ensaios clínicos específicos para o tratamento, tampouco uma indicação formal para a SPM. Cabe ao clínico, conjuntamente com a paciente, decidir qual é a melhor abordagem terapêutica nesses ca-
sos, individualizando a conduta. Nos casos em que ocorre a exacerbação pré-menstrual do humor, a otimização do tratamento dos transtornos do eixo I deve ser a conduta inicial conjuntamente associada às outras abordagens terapêuticas não farmacológicas.
Menopausa O climatério é o período de vida da mulher no qual há o fim da função ovariana. Ele é dividido em duas fases, a perimenopausa e a pós-menopausa. A menopausa que marca esta divisão é o momento em que a mulher para permanentemente de menstruar, portanto trata -se da última menstruação. A perimenopausa, por sua vez, corresponde ao período de 5 a 7 anos anterior e ao ano posterior à menopausa, quando os períodos entre os ciclos ovulatórios ficam irregulares como um sinal direto da diminuição da função ovariana. A pós -menopausa correspondem aos cinco primeiros anos após a menopausa, quando apesar de não haver mais menstruação, os sintomas da falência ovariana ainda podem ser experimen-
Tabela I
Principais opções terapêuticas para o tratamento do TDPM
Tratamento não farmacológico
1. TCC para sintomas depressivos e ansiosos
A. Técnicas de manejo de estresse B. Técnicas de relaxamento 2. Exercícios físicos regulares A. Aumentar frequência na fase lútea? B.Yoga 3. Alimentação A. Dar preferência a alimentos integrais B. Evitar carne vermelha e excesso de sal C. Evitar açúcar, café e álcool 4. Suplementos alimentares A. Suplemento de cálcio (dose até 1.200 mg/dia) B. Vitamina B6 (piridoxina), 80 mg/dia C. Bebidas de carboidratos complexos (aumento do aporte de triptofan o)
Tratamento farmacológico
1. ISRS ou ISRNS na fase lútea ou contínuo: fluoxetina (1 0-20 mg), sertralina (50-150 mg), paroxetina (12,5-25 mg), clomipramina (25-75 mg), citalopram (20-40 mg), escitalopram (1 0-20 mg) e venlafaxina (75 mg). 2. Anticoncepcional oral: estrógeno com progesterona (20 IJg de etinil-estradiol drospirenona)
+ 3 g de
3. Agonistas do hormônio liberador de gonadotrofina (GnRH) 4. Alprazolam (sintomas ansiosos), buspirona (sintomas ansiosos), espirolactona (edema), bromocriptina (mastalgia) e anti-inflamatórios (cólicas e dor) Casos refratários e graves
Ooforectomia e histerectomia
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tados. Para algumas mulheres, esse período representa fonte considerável de estresse, afetando a identidade, a autoestima e os relacionamentos familiar e social. Assim, uma parcela significativa das mulheres relata expectativas desfavoráveis à menopausa e muitas delas desenvolvem sintomatologia física e psíquica importante no climatério. As alterações dos níveis de hormônios esteroides circulantes durante essa fase têm sido descritas como fatores diretamente relacionados às alterações do humor, especialmente entre as mulheres que já apresentaram outros transtornos psiquiátricos relacionados ao ciclo reprodutivo da mulher como a depressão puerperal e o TDPM46•47 • Entretanto, os estudos prospectivos observam que, nessa fase da vida da mulher48, existem vários fatores relacionados ao surgimento de sintomas e episódios de pressivos além de sintomas ansiosos, como sintomas vasomotores, descritos como fogachos ou ondas de calor, e as alterações do sono. Sintomas vasomotores afetam cerca de 60 a 80% das mulheres que vivenciam a meno pausa, constituindo o principal motivo de consulta nessa fase4 9 • Caracterizados pelo início súbito de um calor intenso, que do tórax progride para o pescoço e a face, os sintomas vasomotores são acompanhados frequentemente de ansiedade, palpitações e sudorese intensa. Além disso, apresentam uma incidência máxima durante os dois primeiros anos pós-menopausa, diminuindo de intensidade depois. Por mais de uma década após a menopausa, podem ser motivo de queixa48 • Tais queixas podem interferir significativamente na atividade profissional e social da mulher. O mecanismo fisiológico envolvido no fogacho está relacionado à desregulação do centro termorregulador no hipotálamo secundária às oscilações dos níveis de estrogênio e aumento da atividade noradrenégica nessa região 50 • As alterações do padrão do sono afetam cerca de 38% das mulheres. São mais acentuadas na fase tardia da perimenopausa. Os distúrbios do sono mais frequente nesta fase são a insônia inicial ou intermediária e a apneia de sono. Na menopausa, o exemplo clássico é o da mulher que acorda repetidamente com os calores e que, secundariamente, tem dificuldade em voltar a adormecer. Joffe et aP 1 avaliaram essa interação comparando 52 mulheres deprimidas com 51 mulheres sem depressão, ambos os grupos com sintomas vasomotores. O grupo de mulheres deprimidas passa menos tempo na cama, com menor tempo total de sono, maior período de latência do sono inicial e tendência de menor eficiência do sono. Todavia, as interrupções do sono - início, número e duração dos despertares - foram semelhantes entre os grupos. As mulheres deprimidas com sintomas vasomotores referiram, ainda, uma pior qualidade do sono sem relação com a frequência desses sintomas, refutando a teoria do efeito dominó, que considera que as alterações de humor
seriam secundárias aos sintomas vasomotores e às alterações de sono, provocadas por eles. A despeito da não comprovação do efeito dominó, a maioria dos estudos prospectivos observa uma associação entre o período de transição da menopausa e as alterações do humor e ansiedade em que os sintomas vasomotores mostram sua importância, evidenciando a complexidade dessa interação. Nesses estudos, os fatores relacionados ao aumento de sintomas depressivos estiveram relacionados com histórico de sintomas pré-menstruais graves 52, de sintomas vasomotores52-55 e alterações do sono52 . O histórico de episódios depressivos também mostrou significância nessa fase. No Havard Study of Moods and Cycles56 , as mulheres que entraram na perimenopausa e relataram histórico de depressão possuíam um risco 1,8 maior (IC 95% = 1,0-3,2) de apresentarem depressão nessa fase. Neste mesmo estudo, a presença de sintomas vasomotores e eventos estressantes de vida também fo ram significativamente associados à depressão. Outros estudos observaram que as alterações do humor estariam relacionadas mais diretamente à amplitude da variação dos hormônios que aos seus valores55•57•58 • Outros fatores que também foram relacionados à depressão e à transição da menopausa estão relacionados ao baixo nível de escolaridade, a história familiar de depressão, a depressão puerperal, o menor índice de massa corpórea, o uso de terapia de reposição hormonal ou antidepressivos, o tabagismo e os eventos de vida estressante48. Outra maneira de se perceber a relação entre a menopausa e os sintomas depressivos é por meio da avaliação de mulheres submetidas à ooforectomia - retirada de ambos os ovários. Rocca et al. 59 , em um estudo caso-con-
Quadro 11 Fatores de risco para episódio de depressão durante a transição para a menopausa Categoria
Fator de risco
Demográfica
Caucasiana Baixo nível educacional
Psiquiátrica
História de sintomas depressivos e depressão Comorbidade
Psicossocial
Eventos de vida estressantes Estilo de vida não saudável Problemas conjugais Atitudes negativas sobre a menopausa e o envelhecimento
Climatério
Sintomas vasomotores e físicos Síndrome pré-menstrual Menopausa natural precoce Maiores flutuações dos níveis hormonais durante a fase de transição dos ciclos menstruais Fase de transição dos ciclos menstruais maior do que 27 meses Menopausa abrupta ou cirúrgica
Fonte: Clayton AH et ai., 2010 60 •
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trole, compararam mulheres ooforectomizadas (n = 666) com controles (n = 673) num seguimento médio de 25 anos. Neste estudo, as mulheres ooforectomizadas apresentaram um risco maior de desenvolverem sintomas depressivos (risco relativo= 1,54; IC 95% = 1,04-2,26) e ansiosos (RR = 2,29, IC 95% = 1,33 -3,95) mesmo com ajuste para idade, educação e procedimento cirúrgico. Além disso, esse risco aumentou entre as mulheres que foram submetidas à cirurgia em idade precoce. Os sintomas ansiosos também estariam relacionados aos sintomas vasomotores. Soares e Frey"8 , em artigo de revisão sobre sintomas de humor, ansiosos e meno pausa, citam dois estudos de Freeman et al. 50•52 com a mesma coorte e intervalo de nove anos (n = 436) e o estudo SWAN61 (n = 3.198), com seguimento de seis anos. Em ambos, a intensidade dos sintomas ansiosos esteve diretamente relacionada à presença desses sintomas. Nos estudos de Freeman et al.S 0•52 , as mulheres que apresentaram sintomas ansiosos com escores altos reportaram quatro vezes mais sintomas vasomotores. As que apresentavam escores medianos reportaram três vezes mais. Esta associação se manteve mesmo após controle para depressão, idade, raça, fase da menopausa, índice de massa corpórea, tabagismo e níveis de estradiol. Os sintomas de ansiedade atingiram sua intensidade máxima no início da menopausa e voltaram aos níveis observados no período da pré-menopausa exatamente na pós-menopausa. Mais uma vez, a presença de histórico positivo para síndrome pré-menstrual esteve relacionada ao aumento (duas vezes mais) de queixas de sintomas ansiosos também nesta coorte. No estudo SWAN61, as mulheres que relataram mais sintomas vasomotores, comparadas com as mulheres que menos apresentaram estes sintomas, também apresentaram mais sintomas ansiosos (53,6 vs. 19,1 %, p < 0,0001). Ao final deste estudo foi observado que a queixa inicial de sintomas ansiosos esteve associada a uma maior presença de sintomas vasomotores ( odds-ratio = 3,10; IC 95% = 2,33 -4,12).
Tratamento dos sintomas depressivos • e ans10sos na menopausa Os estudos de reposição hormonal mostram que o 17 beta-estradiol, sob forma de adesivos de absorção transdérmicos, dosagens de 50 a 100 !Jg, avaliado em ensaios clínicos (6 a 12 semanas) no tratamento da depressão em mulheres na perimenopausa apresentou taxas de remissão entre 68 e 80% comparadas com as taxas observadas nos grupos placebo - 20 a 22%62•63 . Entretanto, boa parte das pacientes que necessitam de tratamento para depressão e sintomas ansiosos nessa fase da vida não querem fazer tratamento de reposição hormonal, em virtude, sobretudo, do aumento do risco de acidente vascular cerebral, constatado pelos resultados iniciais do estudo
Womens Health Initiative (WHI) 64 . Logo após a divulgação desses resultados, houve um aumento da prescrição de antidepressivos para o tratamento dos quadros depres. . . , s1vos e smtomas vasomotores na penmenopausa e posmenopausa. Procedeu-se uma série de ensaios clínicos com ob jetivo de se avaliar a eficácia dos antidepressivos, especialmente os inibidores de recaptação de serotonina, isoladamente ou associados à terapia de reposição hormonal. Os estudos mostraram taxas significativas de remissão de sintomas depressivos ao se utilizar ISRS isolados (86,6% para o citalopram e 75% para o escitalopram) 65•66• Também ocorreu aumento quando houve associação com reposição hormonal TRH + mirtazapina = 87,5%67; TRH + citalopram = 91,6%65 . Os estudos com mulheres com mais de 50 anos, quando avaliados conjuntamente, mostraram haver uma diferença de resposta tanto quanto ao tipo de antidepressivo utilizado quanto à associação com a reposição hormonal. Entre os antidepressivos, as maiores taxas de remissão fo ram observadas com os inibidores da recaptação de no radrenalina e serotinina (ISRSN): a venlafaxina (48%) 68 e a duloxetina (78%) 69 - comparados com os ISRS (28%) 68, levando-se em conta apenas mulheres sem reposição hormonal. Comparando as mulheres em uso de TRH, as diferenças foram reduzidas sensivelmenté8 • Estes achados reforçam o papel significativo dos hormônios esteroides, como agentes sinérgicos, no tratamento da depressão em mulheres desse grupo. Os fitoterápicos são outra alternativa discutida para o tratamento dos sintomas relacionados à menopausa. Um estudo de metanálise avaliando o uso de isoflavona70 demonstrou apenas um pequeno efeito positivo em relação ao placebo. Outro fitoterápico, Actaea racemosa (Black Cohosh), também mostrou superioridade em relação ao placebo em dois ensaios clínicos limitados pelo tamanho da amostra71 •72 . No maior ensaio clínico randomizado (n = 353)73 que investigou a eficácia dos fitoterápicos comparados com placebo e reposição hormonal com estrogênio sobre os sintomas vasomotores, observou-se, ao final dos 12 meses de seguimento, que o preparado com dez tipos de ervas foi significativamente pior que o placebo. Mesmo isoladamente nenhum fitoterápico se mostrou superior ao placebo, que ficou abaixo da TRH com estrogênio. Entre os fitoterápicos, dois estudos com Hyperycum perfuratum (erva de São João) merecem ser citados. No ensaio clínico randomizado de Uebelhack et al?\ com 301 mulheres apresentando sintomas do climatério, ob servou-se uma redução de 41,8% do escore da Escala de Depressão de Hamilton. O ensaio clínico aberto de Grube et aP 5 com 111 mulheres, com idade entre 43 e 65 anos com sintomas do climatério, demonstrou significativa melhora dos sintomas psicológicos e somáticos.
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Considerações finais Os transtornos psiquiátricos relacionados ao ciclo reprodutivo da mulher, mais especificamente do TDPM e relacionados ao climatério, são comuns, trazem um significativo sofrimento à mulher e estão cada vez mais sendo reconhecidos na prática clínica. Estes quadros ocorrem em mulheres que apresentam uma maior sensibilidade à ação dos hormônios esteroides no SNC, não sendo ainda evidenciada uma alteração fisiológica específica na origem desses quadros. A evidência da eficácia do uso de antidepressivos, especialmente os ISRS, além de sua relevância no tratamento revela que uma alteração dos mecanismos fisiológicos deste neurotransmissor também estaria envolvida na sua fisiopatologia. Contudo, ainda existem várias lacunas de conhecimento especialmente quanto ao uso de hormônios esteroides e fitoterápicos. Questões 1. O TDPM se diferencia da síndrome pré-menstrual por: a) Não se diferenciam. são denominações para o mesmo transtorno. b) No TDPM. pelo menos cinco sintomas devem estar presentes. com intensidade moderada a grave, com pelos menos um sintoma psiquiátrico, enquanto na SPM pelo menos dois e, no máximo, cinco sintomas devem estar presentes. sem a obrigação de pelo menos um sintoma psiquiátrico. Em ambos os casos, deve haver comprometimento funcional significativo. c) No TDPM. pelo menos dois sintomas devem estar presentes. com intensidade moderada a grave, com pelos menos um sintoma psiquiátrico. enquanto na SPM pelo menos cinco sintomas devem estar presentes. sem a obrigação de pelo menos um sintoma psiquiátrico. Em ambos os casos. deve haver comprometimento funcional significativo. d) No TDPM. pelo menos dois sintomas devem estar presentes. com intensidade moderada a grave, com pelos menos um sintoma psiquiátrico. enquanto na SPM pelo menos cinco sintomas devem estar presentes. sem a obrigação de pelo menos um sintoma psiquiátrico. Em ambos os casos. não há necessidade de haver comprometimento funcional significativo. e) No TDPM. pelo menos cinco sintomas devem estar presentes. com intensidade moderada a grave. com pelos menos um sintoma psiquiátrico. enquanto na SPM pelo menos dois e. no máximo. cinco sintomas devem estar presentes. sem a obrigação de pelo menos um sintoma psiquiátrico. Em ambos os casos. não há necessidade de haver comprometimento fu ncional significativo.
2. As prevalências da SPM e do TDPM são respectivamente: a) b) c) d) e)
80% e 18.6 a 20.7% 80% e 4.6 a 6.7% 20 a 50% e 4.6 a 6,70/o 20 a 500/o e 18.6 a 20,7% 45.3 a 51.2% e 20 a 50%
3. Os estudos sobre a abordagem terapêutica medicamentosa do TDPM apresentam várias alternativas. Assinale a alternativa que descreve a sequência correta de opções de tratamento: a) anticoncepcional oral com a combinação de 20 IJg de etinilestradiol e 3 g de drospirenona. anticoncepcional oral com progesterona apenas. antidepressivos ISRS e ISRNS. inibidores do GnRH. alprazolan e buspirona. b) anticoncepcional oral com progesterona apenas. anticoncepcional oral com a combinação de 20 IJg de etinil-estradiol e 3 g de drospirenona. antidepressivos ISRS e ISRNS. anticoncepcional oral com a combinação de 20 IJg de etinil-estradiol e 3 g de drospirenona. anticoncepcional oral com progesterona apenas. inibidores do GnRH. alprazolan e buspirona. c) inibidores do GnRH. anticoncepcional oral com progesterona apenas. anticoncepcional oral com a combinação de 20 IJg de etinil-estradiol e 3 g de drospirenona. antidepressivos ISRS e ISRNS. alprazolan e buspirona. d) antidepressivos ISRS e ISRNS. alprazolan e buspirona. anticoncepcional oral com a combinação de 20 IJg de etinil-estradiol e 3 g de drospirenona. anticoncepcional oral com progesterona apenas. inibidores do GnRH. e) antidepressivos ISRS e ISRNS. anticoncepcional oral com a combinação de 20 IJg de etinil-estradiol e 3 g de drospirenona e agonistas do GnRH. 4. Durante o climatério. uma série de fatores estão relacionados ao aumento de risco para a depressão. Um dos fatores a seguir teve sua relevância questionada por um recente estudo. a) Baixo nível educacional. b) História de sintomas depressivos e depressão. c) Teoria do efeito dominó. d) Atitudes negativas sobre a menopausa e envelhecimento. e) Menopausa abrupta ou cirúrgica. 5. Os estudos sobre a abordagem terapêutica medicamentosa da depressão no climatério apresentam várias alternativas. Assinale a alternativa que descreve as opções terapêuticas que apresentam evidências positivas em ordem decrescente de remissão dos sintomas depressivos. a) ISRS/ISRNS. TRH. TRH + ISRS/ISRNS b) fitoterápicos. ISRS/ISRNS. TRH. TRH + ISRS/ISRNS c) ISRS/ISRNS. TRH + ISRS/ISRNS. TRH d) TRH + ISRS/ISRNS. ISRS/ISRNS. TRH e) TRH + fitoterápicos. TRH + ISRS/ISRNS. ISRS/ISRNS
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52 TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS RELACIONADOS AO CICLO REPRODUTIVO DA MULHER
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Symptoms in the menopausal transition: hormone and behavioral correlates. Obstet Gynecol. 2008;111(1):127-36. 53. Avis NE, Brambilla D, Mckinlay SM, Vass K. A longitudinal analysis of the association between menopause and depression. Results from the Massachusetts Women's Health Study. Annual Epidemiology. 1994;4:214-20. 54. Bromberger JT, Matthews KA, Schott LL, Brockwell S, Avis NE, Kravitz HM, et al. Depressive symptoms during the menopausal transition: the Study ofWomen's Health Across the Nation (SWAN). J Affect Disord. 2007;1 03(1-3):267 -72. 55. Woods NF, Smith-DiJulio K, Percival DB, Tao Y, Taylor H, Mitchell ES. Depressed mood during the menopausal transition and early postmenopause: observations from the Seattle Midlife Women's Health Study. Menopause. 2008;15(2):223-32. 56. Cohen LS, Soares CN, Vitonis AF, Otto MW, Harlow BL. Risk for new onset of depression during the menopausal transition: the Harvard Study o f Moods and Cycles. Arch Gen Psychiatry. 2006;63( 4):385-90. 57. Freeman E\1\1', Sammel MD, Lin H, Nelson DB. Associations ofhormones and menopausa! status with depressed mood in women with no history o f depression. Arch Gen Psychiatry. 2006;63( 4):375-82. 58. Bloch M, Schmidt PJ, Danaceau M, Murphy J, Nieman L, Rubinow DR. Effects of gonadal steroids in women with a history of postpartum depression. Am J Psychiatry. 2000; 157(6):924-30. 59. Rocca WA, Grossardt BR, Geda YE, Gostout BS, Bower JH, Maraganore DM, et al. Long-term risk of depressive and anxiety symptoms after early bilateral oophorectomy. Menopause. 2008;15(6):1050-9. 60. Clayton AH, Ninan PT. Depression and menopause? Presentation and management of major depressive disorder in perimenopausal and postmenopausal women. Prim Care Companion- J Clin Psychiatry. 2010; 12(1 ):PCC.08r00747. 61. Gold EB, Colvin A, Avis N , Bromberger J, Greendale GA, Powell L, et al. Longitudinal analysis o f the association between vasomotor symptoms and race/ethnicity across the menopausal transition: study of women's health across the nation. Am J Public Health. 2006; 96(7):1226-35. 62. Schmidt PJ, Nieman LK, Danaceau MA, Adams LF, Rubinow DR. Estrogen replacement in perimenopause-related depression: a preliminary report. Am J Obstet Gynecol. 2000;183(2):414-20. 63. Soares CN, Almeida OP, Joffe H, Cohen LS. Efficacy of estradiol for the treatment of depressive disorders in perimenopausal women: a doubleblind, randomized, placebo-controlled trial. Arch Gen Psychiatry. 2001; 58(6):529-34. 64. Anderson GL, Limacher M, Assaf AR, Bassford T, Beresford SA, Black H. Effects of conjugated equine estrogen in postmenopausal women with hysterectomy: the women's health initiative randomized controlled trial. JAMA. 2004:291:1701-12. 65. Soares CN, Poitras JR, Prouty J, Alexander AB, Shifren JL, Cohen LS. Efficacy of citalopram as a monotherapy or as an adjunctive treatment to estrogen therapy for perimenopausal and postmenopausal women with depression and vasomotor symptoms. J Clin Psychiatry. 2003; 64(4):473-9.
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Síndromes Decorrentes do Uso de Substâncias A ndré Malbergier A driana B. Pillegi Camil a Magalh ães Silve ira Hercili o de Oliveira Jr.
João M . C. Maia José E. R. Agu iar Luciana R. O. Cardoso Rica rdo A brantes do Ama ral
Sérgio Nicastri Vere na Castell ani A rt hur Guerra de A ndrade
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 667 Conceitos e padrões de uso, 667 Neurobiologia, 668
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Síndromes decorrentes do uso de substâncias, 670 Álcool, 670
1. Entender o mecanismo de desenvolvimento das dependências. 2. Reconhecer os quadros de intoxicação e abstinência das principais drogas.
Tabaco, 675 Drogas estimulantes do tipo anfetamina, 677
3. Conhecer as principais intervenções farmacológicas no tratamento
Ecstasy, 678 Cafeína, 679 Energéticos, 679
4. Conhecer algumas diretrizes da prevenção de drogas.
lnalantes, 680 Maconha, 681 Cocaína, 681 Opioides, 683 Benzodiazepínicos, 685 Medicações de prescrição, 686 Club drugs, 687 Uso de álcool e drogas entre os adolescentes, 689 Uso de álcool e outras drogas entre as mulheres, 690 Uso de álcool e outras drogas entre idosos, 691 Prevenção e políticas públicas, 692 Tratamento psicoterápico: aspectos gerais, 693 Minicaso clínico, 694 Questões, 695 Referências bibliográficas, 695
Introdução O uso de substâncias psicoativas, incluindo álcool e nicotina, está entre os principais problemas de saúde pública no mundo. Cerca de 2 bilhões de pessoas são
das dependências.
5. Compreender os princípios básicos do tratamento psicoterápico das dependências.
consumidoras de álcool, enquanto 1,3 bilhão são fumantes e 185 milhões usuárias de drogas ilícitas. O consumo dessas substâncias, juntas, contribui para 12,4% das mortes mundiais 1•
Conceitos e padrões de uso As drogas psicoativas são substâncias que agem no sistema nervoso central (SNC), provocam mudanças no humor, no comportamento, na percepção e/ou consciência e podem causar dependência. Existem diversos padrões de consumo de drogas. O modelo de um continuum que relaciona a frequência e a intensidade do uso com os prejuízos parece ser o mais adequado para descrever o processo 2 • Apesar de nenhum uso dessas substâncias ser completamente se. . , guro, os nscos e preJmzos aumentam com a progressao do consumo. O padrão de uso pode ser classificado como: 1) Experimental: uso inicial, infrequente e esporádico de determinada droga;
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2) Recreativo: uso de determinada droga, em geral,
em situações sociais ou de relaxamento, sem consequências negativas; 3) Uso frequente: consumo regular, não compulsivo, que não traz prejuízos significativos para o funciona mento do indivíduo; 4) Abuso/uso nocivo: consumo continuado ou recorrente que traz algum prejuízo para o usuário, como problemas legais, físicos ou mentais (Quadro I); 5) Dependência: uso continuado caracterizado por tolerância, sintomas de abstinência, compulsão, entre outros critérios listados a seguir (Quadro II). Os critérios de abuso e dependência que serão utilizados neste capítulo são: CID - Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (loa edição), da Organização Mundial da Saúde (OMS), e DSM -IV - Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (4a edição), da Associação Psiquiátrica Americana. Outros conceitos importantes são os de intoxicação e abstinência. Intoxicação: síndrome reversível específica à substância, causada pela sua recente ingestão. É caracterizada por alterações comportamentais ou psicológicas clinicamente significativas e mal-adaptativas devido ao efeito da substância sobre o SNC (por ex., beligerância, instabilidade do humor, prejuízo cognitivo, comprometimento da memória, prejuízo no funcionamento social ou ocupacional) e outros sistemas do organismo3 • Abstinência: desenvolvimento de uma síndrome específica à substância devido à cessação (ou redução) do uso pesado e prolongado. Essa síndrome causa sofrimento ou prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo3 .
Neurobiologia O desenvolvimento das pesquisas e tecnologias na área da saúde contribuiu para o aumento do conhecimento dos mecanismos neurobiológicos associados ao efeito das drogas no cérebro e no comportamento humano. A dependência química é considerada uma doença do cérebro, crônica e recidivante, caracterizada pelo comportamento de busca da substância, desejo e consumo intensos desta, apesar das consequências negativas. Esse uso produz mudanças estruturais e de funciona mento do cérebro. Existem inúmeros fatores genéticos, fisiológicos, ambientais e sociais que fazem com que o uso inicial (voluntário) se transforme em uma doença/dependência. O sistema de estimulação e recompensa cerebral é uma estrutura essencial para a compreensão do desenvolvimento do abuso e da dependência de substâncias psicoativas.
Sistema de recompensa
O sistema de recompensa é uma estrutura cerebral responsável pelas sensações prazerosas e, consequentemente, pelo aprendizado que pode dar origem à repetição de um comportamento. Esse sistema é ativado primariamente pelo sexo, pela alimentação (atividades ligadas à sobrevivência) e pelas drogas de abuso. Algu mas atividades como ouvir música, ganhar ou gastar dinheiro, tocar ou ser tocado, entre outras, ativam o siste ma de recompensa de maneira secundária. As principais vias desse sistema são a mesolímbica e a mesocortical. A via mesolímbica compreende a área tegumentar ventral que projeta neurônios ao núcleo accumbens (NA) no sistema límbico. Outras inúmeras projeções da amígdala, do córtex pré-frontal e do hipocampo chegam ao NA, que desempenha importante papel na regulação da emoção, motivação e cognição. O principal neurotransmissor liberado nesse sistema é a dopamina (Figura 1). Apesar de as drogas psicoativas terem diferentes mecanismos de ação, quase todas levam a um aumento de dopamina na via mesolímbica, de maneira direta (elevação da liberação de dopamina ou inibição de sua recaptação, como no uso de cocaína e metanfetamina) ou indireta (modulação de outros sistemas de neurotransmissores, como no uso de opioides, álcool e cannabis). A quantidade e intensidade de dopamina liberadas pelo uso de drogas de abuso são significativamente maiores as aquelas liberadas por "recompensadores naturais" como sexo ou comida4 . A ativação do sistema de recompensa e liberação de dopamina repetidamente leva ao aprendizado do comportamento de obtenção e uso da droga. Além disso, esse comportamento passa a ser associado a diversos estímulos que antes eram neutros, ou seja, não associados à dro ga. Como exemplo, cita-se um fumante que fica com muita vontade de fumar quando passa na frente do estabelecimento em que compra o cigarro. Na persistência do consumo, um fenômeno de sensibilização acontece nas vias mesolímbicas por plasticidade sináptica, levando a um consumo mais intenso e persistente5 • Circuitos mediadores de estresse
O sistema hipotalâmico -pituitário-adrenal (circuito de estresse) é ativado na ausência das drogas psicoativas e se relaciona com o desenvolvimento dos sintomas de abstinência e recaídas, inclusive os estados aversivos e ansiosos. Durante a abstinência, encontramos um aumento de corticosterona, hormônio adrenocorticotrófico e fator liberador de corticotropina ( CRF) na amígdala. Drogas antagonistas do CRF diminuem a autoadministração de cocaína e os sintomas de abstinência de diversas drogas 6 • A interação entre esse sistema e o mecanismo de recompensa é uma frente importante de novas pesquisas tanto para melhor entendimento do desenvolvimento da doença quanto para futuros tratamentos.
53 SÍNDROMES DECORRENTES DO USO DE SUBSTÂNCIAS
Quadro I
Critérios de abuso (CID- 10 e DSM-IV)
CI D- 1O O diagnóstico requer que um dano real tenha sido causado à saúde física e mental do usuário. Padrões nocivos de uso são frequentemente criticados por outras pessoas e estão associados a consequências sociais diversas de vários tipos. O fato de um padrão de uso ou de uma substância em particular não serem aprovados por outra pessoa, pela cultura ou por ter levado a consequências socialmente negativas, tais como prisão ou brigas conjugais, não é por si evidência de uso nocivo.
O uso nocivo não deve ser diagnosticado se a síndrome de dependência, um transtorno psicótico ou outra forma específica de transtorno relacionada ao uso de drogas ou álcool, estiver presente. Critérios diagnósticos para abuso de substâncias, segundo o DSM-IV 1) Uso recorrente da substância resultando em fracasso em cumprir obrigações importantes relativas a seu papel no trabalho, na escola ou em casa (p. ex., repetidas ausências ou fraco desempenho ocupacional relacionados ao uso da substância; ausências, suspensões ou expulsões da escola relacionadas à substância; negligência com os filhos ou com os afazeres domésticos). 2) Uso recorrente da substância em situações nas quais isso representa perigo físico (p. ex., dirigir um veículo ou operar uma máquina quando prejudicado pelo uso da substância). 3) Problemas legais recorrentes relacionados à substância (p. ex., detenções por conduta desordeira relacionada à substância). 4) Uso continuado da substância, apesar de problemas sociais ou interpessoais persistentes ou recorrentes causados ou exacerbados pelos efeitos da mesma (por exemplo, discussões com o cônjuge quando intoxicado, lutas corporais).
Quadro 11
Critérios de dependência
CID-lO
O diagnóstico de dependência deve ser feito se três ou mais dos seguintes itens foram experimentados ou manifestados durante o ano anterior: 1) Um desejo forte ou senso de compulsão para consumir a substância. 2) Dificuldades em controlar o comportamento de consumir a substância em termos de início, término ou níveis de consumo. 3) Estado de abstinência fisiológica quando o uso da substância cessou ou foi reduzido, como evidenciado por síndrome de abstinência característica para a substância, ou por uso da mesma substância (ou de uma intimamente relacionada) com a intenção de aliviar ou evitar os sintomas de abstinência. 4) Evidência de tolerância, de tal forma que doses crescentes da substância psicoativa são requeridas para alcançar efeitos originalmente produzidos por doses mais baixas. 5) Abandono progressivo de prazeres alternativos em favor do uso da substância psicoativa: aumento da quantidade de tempo necessário para obter ou tomar a substância ou recuperar-se de seus efeitos. 6) Persistência no uso da substância, a despeito de evidência clara de consequências manifestamente nocivas, tais como dano ao fígado por consumo excessivo de bebidas alcoólicas, estados de humor depressivos decorrentes de períodos de consumo excessivo. DSM- IV Um padrão de uso disfuncional de uma substância, levando a um comprometimento ou desconforto clinicamente significativo, manifestado por três (ou mais) dos seguintes sintomas, ocorrendo durante qualquer tempo, num período de doze meses. 1) Tolerância, definida por um dos seguintes critérios: a. necessidade de quantidades nitidamente aumentadas de substâncias para atingir intoxicação ou o efeito desejado; b. efeito nitidamente diminuído com o uso contínuo da mesma quantidade da substância. 2) Abstinência, manifestada por um dos seguintes critérios: a. síndrome de abstinência característica da substância; b. a mesma substância (ou outra bastante parecida) é usada para aliviar ou evitar sintomas de abstinência. 3) A substância é frequentemente usada em grandes quantidades, ou por período maior do que o intencionado. 4) Um desejo persistente ou esforço sem sucesso de diminuir ou controlar a ingestão da substância. 5) Grandes períodos de tempo utilizados em atividades necessárias para obter a substância, usá-la ou recuperar-se de seus efeitos. 6) Redução ou abandono de atividades sociais, recreacionais ou ocupacionais por causa do uso da substância. 7) Uso continuado da substância, apesar do conhecimento de ter um problema físico ou psicológico, ou recorrente, que tenha sido causado ou exacerbado pela substância.
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Hipotálamo
Região tegmental ventral
Substância negra A Amígdala
~
Recompensa
Figura 1
Regiões cerebrais associadas à dependência de substâncias.
Síndromes decorrentes do uso de substâncias Álcool Epidemiologia
O uso abusivo de bebidas alcoólicas é um importante problema de saúde pública no Brasil e no mundo. De acordo com a OMS, cerca de 2 bilhões de pessoas consomem bebidas alcoólicas, o que corresponde a 40% da população mundial acima de 15 anos de idade, e cerca de 2 milhões de pessoas morrem a cada ano em decorrência das consequências negativas desse uso (p. ex., intoxicações agudas, cirrose hepática, violência e acidentes de trânsito). Somente na América Latina e região do Caribe estima-se que 10% das mortes e incapacidades estejam relacionadas ao consumo do álcooF. A prevalência de dependência de álcool na população brasileira, de acordo com o II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas, foi de 12,3%, com maior incidência entre os homens. A relação entre consumo de álcool e dependência mostrou que, para cada quatro pessoas do sexo masculino que fazem uso do álcool durante a vida, uma se torna dependente. A proporção para o sexo feminino foi de uma para dez8 • Estudo recente, de abrangência nacional, estimou em 9% a taxa de dependência alcoólica (14% entre homens e 4% entre mulheres) 9 . Uso moderado de álcool
O uso moderado de bebidas alcoólicas é um conceito difícil de definir na medida em que é interpretado de maneira diferente de acordo com a percepção de cada indivíduo. Comumente essa definição é confundida com "beber socialmente': que significa o uso de álcool dentro de padrões aceitos pela sociedade.
A OMS estabelece que, para evitar problemas com o álcool, o consumo aceitável é de até quinze doses/ semana para os homens e dez doses/semana para as mulheres, sendo que uma dose equivale a aproximadamente 350 mL de cerveja, 150 mL de vinho ou 40 mL de uma bebida destilada, e que cada uma delas contém de 1O a 15 g de etanoI. O National Institute o f Alcohol Abuse and Alcoholism 10, órgão norte-americano que concentra pesquisas e informações sobre álcool, utiliza o termo "beber moderado, para se referir ao consumo com limites em que prejuízos não são esperados nem para o indivíduo nem para a sociedade. No caso, desaconselha-se que os homens ultrapassem o consumo de duas doses diárias de álcool e as mulheres uma, sendo que tanto homens quanto mulheres não devem beber por dois dias consecutivos na semana. A OMS ainda esclarece que, em algumas situações, o uso do álcool não é recomendado nem em pequenas quantidades. Entre elas, destacam -se: • mulheres grávidas ou tentando engravidar; • pessoas que planejam dirigir ou que estão realizando tarefas que exijam alerta e atenção, como operar má. qumas; • pessoas em uso de medicações; • pessoas com condições clínicas que podem ser pioradas com o uso do álcool, como a hipertensão e o diabetes; • alcoolistas em recuperação; • menores de 18 anos. Abuso e dependência do álcool
O CID-10 e o DSM-IV adotaram um modelo diagnóstico categoria! no qual os quadros de abuso e dependência são entidades diagnósticas distintas e definidas a partir de uma lista de sintomas, em que a dependência prevalece hierarquicamente sobre o abuso. De acordo com o DSM-IV, o conceito de abuso envolve um padrão maladaptativo ao uso da substância (álcool), levando a prejuízo ou sofrimento clinicamente significativos, manifestados por um ou mais aspectos do Quadro I dentro de um período de doze meses. Nota-se que o diagnóstico de abuso é desconsiderado se o padrão de uso da substância pelo indivíduo alguma vez já satisfez os critérios para dependência do álcool. A dependência é definida como um agrupamento de três ou mais dos sintomas relacionados no Quadro II, em um período de doze meses. Atualmente, sobretudo devido à proximidade do lançamento do DSM-V e do CID-11 (em 2012 e 2015, respectivamente), dois pressupostos assumidos pelo DSMIV têm sido amplamente discutidos: ( 1) dependência e abuso de álcool são transtornos distintos; (2) o abuso é hierarquicamente menos importante do que a dependência e, portanto, é uma condição prodrômica e menos grave. Essa discussão tem como base indícios de inconsistências do atual modelo diagnóstico categoria! e, a partir
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disso, sugere-se que uma representação dimensional descreveria melhor tais transtornos 11 • Até o presente momento, membros do grupo de trabalho do DSM-V têm proposto a combinação do abuso e da dependência em um único transtorno com gravidade clínica graduada ("trans torno relacionado ao uso de álcool"). Farmacologia do etanol
O etano! é uma molécula simples que se move facilmente através das membranas celulares, equilibrando-se rapidamente entre o sangue e os tecidos. O nível do álcool no sangue (alcoolemia) é expresso em gramas de etano! por litro (p. ex., 0,2 g/L). O consumo de uma dose de bebida alcoólica por um homem de 70 kg resulta em uma alcoolemia em torno de 0,2 g/L. Em uma mulher de 60 kg essa mesma dose produzirá uma alcoolemia em torno de 0,3 g/L. Os níveis máximos de concentração de álcool no sangue ocorrem aproximadamente após meia hora do consumo, embora esse fator possa variar amplamente na população. O organismo metaboliza e excreta aproximadamente uma dose por hora. Como consequência de sua alta solubilidade em água, o etano! é rapidamente absorvido e distribuído para a maioria dos órgãos e sistemas. A absorção ocorre nas membranas mucosas da boca e do esôfago (em pequenas quantidades), do estômago e do intestino grosso (em quantidades moderadas) e principalmente na porção proximal do intestino delgado. A taxa de absorção é aumentada quando o esvaziamento gástrico está acelerado, na ausência de proteínas, gorduras ou carboidratos e na presença de gás carbônico (p. ex., champanhe). Entre 2 e 10% do etano! são excretados diretamente pelos pulmões, pela urina ou pelo suor, mas a maior parte é metabolizada no fígado. A mais importante via de metabolização ocorre no citosol das células hepáticas, local onde a álcool desidrogenase (ADH) produz o acetaldeído. Essa substância produzida é rapidamente destruída pela aldeído desidrogenase (ALDH) no citosol e na mitocôndria do hepatócito. Em altas doses, o aldeído desidrogenase pode produzir histamina e, por mecanismos variados, levar a uma diminuição dos níveis pressóricos, a nausea e ao vomito. Atualmente são descritos cerca de sessenta tipos de doenças que estão diretamente relacionadas ao uso crô nico de grandes quantidades de álcool; entre elas estão: esofagite, gastrite, úlcera, esteatose hepática, hepatite, cirrose, pancreatite, arritmia cardíaca, deficiências vitamínicas, demência e câncer 12 • '
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Quadro clínico e diagnóstico
O diagnóstico clínico de abuso ou dependência de álcool baseia-se na verificação dos problemas decorrentes do seu uso (Quadros I e II). Informação sobre dificuldades conjugais ou no trabalho, pendências legais e financeiras, histórias de acidentes, ocorrências médicas,
evidências de tolerância ou sintomas de abstinência, entre outros, são problemas comuns. Além disso, testes laboratoriais podem se apresentar alterados nesses indivíduos. Dois testes sanguíneos podem ser úteis: gama-glutamil transferase (GGT) e transferrina carboidrato-deficiente (CDT). A combinação dos dois traz mais precisão do que um dos dois isoladamente. O GGT é uma glicoproteína encontrada em células hepáticas e em outras células envolvidas na produção de bile. O aumento de GGT é um indicador inicial de doença hepática, emhora somente 30 a 50% dos alcoolistas apresentem variação nesse teste. O GGT também é pouco específico, pois pessoas com outras doenças, como pancreatite e doença prostática, podem apresentar elevação de seus níveis. A CDT é uma variação da glicoproteína transferrina que transporta o ferro no sangue e, como o próprio nome diz, está deficiente de um carboidrato, o ácido siálico. Normalmente a transferrina possui seis moléculas de ácido siálico, mas pesquisas recentes apontam para uma inabi!idade de ligação na transferrina quando há consumo de álcool. Portanto, o consumo de álcool leva a um aumento da transferrina no sangue. Outros testes sanguíneos que podem ser úteis para indicar consumo abusivo e crônico do álcool incluem: elevação do volume corpuscular médio (VCM) e de outros biomarcadores hepáticos, como aspartato aminotransferase (AST) e alanina aminotransferase (ALT). O índice AST/ ALT maior ou igual a 2 é muito sugestivo de doença hepática alcoólica. Sinais e sintomas físicos que podem ser úteis na identificação do alcoolismo incluem hipertensão leve e flutuante (p. ex., 140/95 mmHG), infecções de repetição e arritmias cardíacas não explicadas. Outras doenças sugestivas de dependência incluem câncer de cabeça e pescoço, esôfago ou estômago, assim como cirrose, hepatite sem causa definida, pancreatite, aumento bilateral da glândula parótida e neuropatia periférica13 . Intoxicação alcoólica
Os sinais e sintomas da intoxicação alcoólica caracterizam -se por níveis crescentes de depressão do sistema nervoso central. Inicialmente há sintomas de euforia, evoluindo para tontura, voz pastosa, ataxia e incoordenação motora, confusão e desorientação, podendo chegar ao coma. A intensidade da sintomatologia da intoxicação tem relação direta com a alcoolemia. Tratamento
Na abordagem da intoxicação, deve-se de certificar que os sinais vitais estão estáveis, sem evidência de depressão respiratória, aspiração brônquica, arritmia cardíaca, alteraçoes Importantes na pressao sangumea e traumatismo cranioencefálico. A possibilidade de intoxicação com outras drogas precisa ser considerada. Outras condições médicas que devem ser avaliadas nessa situação incluem h ipoglicemia, alterações hepáticas, desnutrição e infecções. -
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Em caso de reposição de glicose, o médico deve antes administrar uma ampola de tiamina intramuscular ou endovenosa, já que as células nervosas utilizam a tiamina na metabolização da glicose, e a ausência desta em usuários crônicos do álcool pode desencadear a encefalopatia de Wernicke. Na maior parte das vezes, a simples interrupção da ingestão alcoólica em pacientes clinicamente estáveis e a acomodação destes em um ambiente calmo e livre de estímulos são suficientes para tratar a intoxicação. Quando há risco de violência, procedimentos hospitalares devem ser seguidos, incluindo a possibilidade do uso da contenção pela equipe de intervenção. Uma alternativa é a utilização de um antipsicótico (p. ex., 5 mg de haloperidol intramuscular); no entanto essa conduta apresenta risco de convulsão, já que os antipsicóticos diminuem o limiar convulsivo. Se a agressividade continuar após a conduta medicamentosa inicial, o paciente pode necessitar de uma internação de curto prazo para que os medicamentos possam ser utilizados com maior segurança e os sinais vitais possam ser monitorados de perto. Síndrome de abstinência alcoólica (SAA)
A síndrome de abstinência alcoólica é responsável por um aumento significativo da mortalidade e morbidade associadas ao consumo do álcool. Uma vez que o cérebro foi exposto repetidamente a altas doses de álcool, qualquer diminuição repentina ou interrupção do uso pode produzir os sintomas de abstinência. Os sintomas e sinais mais comuns são tremores, agitação, ansiedade, hiperestimulação do sistema nervoso autônomo ( taquicardia, taquipneia e aumento na temperatura corpórea), alterações de humor, náuseas, vômitos e insônia. Os sintomas de abstinência se iniciam dentro de cinco a dez horas após a interrupção/diminuição da ingestão do etano!, com pico de intensidade no segundo ou terceiro dia, e melhoram a partir do quarto dia. A ansiedade, insônia e disfunção autonômica podem persistir em algum grau por até seis meses, o que pode contribuir para a recaída. Complicações da SAA incluem convulsões, alucinações e delirium tremens (DT). Tratamento
O primeiro passo, assim como na intoxicação alcoólica, é realizar um exame físico completo a fim de excluir complicações associadas, tais como arritmias cardíacas, hipoglicemia, falência hepática, sangramento gastrointestinal e desequilíbrio hidroeletrolítico (desidratação, hipo potassemia, hiponatremia e hipomagnesemia). Em seguida, devem-se tratar os sintomas de abstinência em ambiente onde se possam oferecer nutrição adequada e repouso. Todos os pacientes devem receber vitaminas orais contendo complexo B e 100 mg de tiami na intramuscular diária por três dias. Muitos pacientes
em abstinência mantêm níveis normais de água no corpo, portanto, a administração de líquidos via intravenosa deve ser evitada, a não ser que haja evidência de sangramento, vômitos ou diarreia. Medicações devem ser usadas geralmente por via oral. O terceiro passo no tratamento é instituir medicamentos que aliviem os sintomas autonômicos. Entre os agentes depressores do SNC, os benzodiazepínicos (BZDs) são a primeira opção de escolha por possuírem boa margem de segurança, baixo custo, ação anticonvulsivante e preventiva do DT. Os benzodiazepínicos de meia-vida curta como o lorazepam são muito utilizados para pacientes com complicações hepáticas (não depende de metabolismo hepático) ou danos cerebrais. No entanto, precisam ser administrados mais vezes ao dia a fim de evitar flutuações abruptas nos níveis sanguíneos, o que pode aumentar o risco de convulsões. Consequentemente, os BZDs de meia-vida longa, como o diazepam, são os mais utilizados. Pacientes com quadro de abstinência leve, sem complicações clínicas ou antecedentes convulsivos, podem ser tratados ambulatorialmente e medicados com diazepam de 1O a 60 mg por dia nos primeiros dias. O acompanhamento deve ser diário na primeira semana, e o aumento ou a diminuição da dose devem ser realizados de acordo com as necessidades do paciente. Após o controle dos sintomas, a medicação deve ser retirada gradualmente. Crises convulsivas
As convulsões secundárias a quadros de abstinência alcoólica são, geralmente, do tipo tônico-clônicas (ou "grande mal") e incidem nas primeiras 48 horas (com pico entre 13 e 24 horas) após a suspensão ou redução do consumo de álcool. O aparecimento de convulsões está associado a quadros mais graves de abstinência. Tratamento
O paciente deve ser internado em ambiente hospitalar e o tratamento de escolha é utilizar benzodiazepínicos para o controle da crise convulsiva. A administração de benzodiazepínicos por via intravenosa requer técnica específica e retaguarda para manejo de eventual parada respiratória. O uso de anticonvulsivantes pode ser indicado em convulsões de repetição, mas, se não houver outra etiologia que não a dependência de álcool, seu uso não deve ser mantido após a resolução do quadro. Delirium tremens
O termo delirium tremens caracteriza-se por confusão mental, tremores e hiperatividade autonômica. Essa complicação grave e potencialmente letal da síndrome de abstinência alcoólica é vista em menos de 5% dos indivíduos dependentes de álcool. A ocorrência de DT é mais comum em pacientes com outros distúrbios orgânicos.
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O DT, habitualmente, inicia-se até 72 horas após a abstinência e compreende sinais e sintomas variados como confusão mental, alucinações, tremores, febre (com ou sem sinais de infecção) e hiper-responsividade autonômica, com hipertensão, taquicardia e sudorese. São comuns alterações sensoperceptivas (alucinações e ilusões), assim como as alucinações visuais, especialmente as microzoopsias (pequenos animais). Delírios também são frequentes, em geral persecutórios e relacionados à desorientação têmpora-espacial. Alterações do humor são comuns e variam desde severa apatia até quadros de ansiedade intensa; a presença de alterações no ciclo sono-vigília é frequente. Quadros de delirium usualmente apresentam sintomas flutuantes, com piora significativa à noite. Tratamento
A internação é sempre indicada e o tratamento de suporte é o mesmo que o designado em casos de abstinência de álcool não complicada. Os pacientes devem permanecer em ambiente desprovido de estímulos e iluminado. O tratamento dessa condição é feito, usualmente, com benzodiazepínicos, visando a diminuir a hiperatividade autonômica e o risco de agitação psicomotora. Dá-se preferência ao diazepam, em geral em doses mais elevadas do que para a abstinência não complicada (60 mgldia), ou ao lorazepam (12 mg), se o paciente for hepatopata ou senil. Eventualmente, a associação de neurolépticos, em doses baixas, pode ser indicada em casos de sintomas alucinatórios (haloperidoiS mg/dia). No caso de ocorrer distonia induzida por neurolépticos, ela pode ser controlada com o uso de anticolinérgicos ou anti-histamínicos. A administração parenteral terá início de ação mais rápido do que a oral 14 • Síndrome de Wernicke-Korsakoff
A síndrome de Wernicke-Korsakoff (SWK) é descrita como duas entidades distintas: encefalopatia de Wernicke e síndrome de Korsakoff, que estão ligadas a deficiências vitamínicas, em especial de tiamina e outras vitaminas do complexo B. A encefalopatia de Wernicke é uma complicação potencialmente fatal (mortalidade de 15 a 20% se não tratada) composta de uma tríade: oftalmoplegia, ataxia e confusão mental. Os movimentos oculares podem consistir em nistagmo horizontal e vertical, fraqueza ou paralisia do músculo reto lateral e do olhar conjugado. A presença de todos esses sintomas não é necessária para o diagnóstico, e a recuperação é incompleta em 40% dos casos. A maioria dos pacientes (cerca de 80%) com encefalopatia de Wernicke também desenvolve Korsakoff, quadro caracterizado por amnésia retrógrada e anterógrada, desorientação e comprometimento da memória recente. Lesões nos corpos mamilares e núcleos talâmicos resultantes de deficiências vitamínicas e dos efeitos tóxicos diretos do álcool são frequentemente observadas.
Tratamento
O tratamento da SWK ainda não está adequadamente estabelecido no que diz respeito à via e à dose de tiamina necessárias. Tanto para a prevenção quanto para o tratamento, a maioria das recomendações de suplementação vitamínica é de base empírica. A dose de tiamina preconizada é de 100 mg/dia por via intramuscular ou intravenosa por pelo menos três dias, e posteriormente por via oral. Alguns pacientes podem requerer tratamento com vitaminas do complexo B durante um período prolongado. Terapias farmacológicas da dependência de álcool
O tratamento da dependência de álcool caracterizase pela combinação de estratégias farmacológicas e psicoterápicas. Nesta seção serão discutidas as terapias farmacológicas, e as psicoterápicas serão apresentadas no final do capítulo. Dissulfiram
O dissulfiram (DSF) é um inibidor irreversível e inespecífico da enzima aldeído desidrogenase (ALDH). Ao inibir essa enzima, ocorre um acúmulo de acetaldeído no organismo, o que causa uma série de sinais e sintomas desagradáveis, potencialmente perigosos. Entre as contraindicações para seu uso se encontram a cirrose hepática com hipertensão portal, gravidez, devido ao risco de anomalias congênitas, e a síndrome mental orgânica, devido ao prejuízo da capacidade de compreensão do risco da reação etanol-dissulfiram. O dissulfiram foi a primeira intervenção farmacológica aprovada pelo Food and Drug Administration (FDA), órgão regulatório de medicamentos dos Estados Unidos, para o tratamento da dependência de álcool. Os pacientes devem abster-se totalmente do álcool e possuir um completo entendimento acerca dos riscos e princípios do tratamento. O DSF oral supervisionado é eficaz quando incorporado a um tratamento de abordagem psicossocial. O DSF é uma medicação com boa tolerabilidade. A hepatite é um efeito adverso raro, que ocorre principalmente nos primeiros meses de tratamento. Recomenda-se monitorar a função hepática a cada três meses na fase de manutenção. No primeiro mês de tratamento, esses exames laboratoriais podem ser realizados a cada duas semanas. A dose habitual é de 250 mg por dia em dose única, após um intervalo de, pelo menos, doze horas de abstinência. Os pacientes também podem beneficiar-se com doses de 500 mg por dia. Naltrexona
A naltrexona é um antagonista do receptor opioide muito utilizado no tratamento do alcoolismo devido à sua atuação como atenuante dos efeitos prazerosos do álcool.
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Em 1995, o FDA aprovou a naltrexona para o tratamento do alcoolismo. O álcool estimularia indiretamente a atividade o pioide endógena ao promover a liberação dos peptídeos endógenos ( encefalinas e ~-endorfinas) na fenda sináptica. Esses efeitos seriam inibidos pela naltrexona. As principais contraindicações ao uso da naltrexona são doenças hepáticas agudas e crônicas. O principal efeito adverso desse medicamento é a náusea, que geralmente coincide com os níveis plasmáticos atingidos num período de até noventa minutos após a ingestão do medicamento. A posologia recomendada da naltrexona no tratamento do alcoolismo é de 50 mg por dia. O esquema terapêutico consiste na prescrição de 25 mg por dia na primeira semana de tratamento, com vista a diminuir a incidência e a gravidade dos efeitos adversos. Após esse período, pode-se elevar a dose para 50 mg por dia. Alguns estudos já utilizam a dose de 100 mg por dia com maio res benefícios. Os ensaios clínicos com naltrexona postulam o período de doze semanas para o tratamento. Analtrexona parece manter as taxas reduzidas de recaídas até o quinto mês após a sua suspensão. Deve-se realizar a monitoração mensal dos valores da bilirrubina total e suas frações e das transaminases séricas nos três primeiros meses. A naltrexona deve ser suspensa se houver elevação persistente das transaminases. Acamprosato
O acamprosato (acetil-homotaurinato de cálcio) inibe a atividade excitatória glutamatérgica, agindo, provavelmente, em uma sub classe dos receptores de glutamato (NMDA), especialmente quando há hiperatividade desses receptores. Foi aprovado em países europeus para o tratamento da dependência alcoólica. O acamprosato tem sido considerado um coagonista parcial do receptor NMDA. Há indícios de que essa medicação reduz a recaptação do cálcio induzida pelo glutamato nos neurônios, suprime as respostas condicionadas ao etanol em animais dependentes, reduz os efeitos aversivos da retirada do álcool e inibe a hiperexcitabilidade cerebral. O acamprosato possui boa absorção oral, porém, esta é prejudicada com a ingestão concomitante de alimentos. Além disso, não apresenta ligação proteica. Todas essas características sugerem que essa medicação não apresenta interações medicamentosas com outras drogas. Pacientes com insuficiência hepática podem receber o acamprosato. Os efeitos adversos relatados são cefaleia, dor abdo minal, náuseas e vômitos e problemas dermatológicos (prurido, rash maculopapular e reações bolhosas). Confusão mental, sonolência e alteração de libido também fo ram relatadas com menos frequência. O acamprosato deve ser administrado em pacientes dependentes de álcool, com mais de 60 kg, em três tomadas diárias, sendo dois comprimidos de 333 mg nos três períodos do dia, sempre antes das refeições. O tempo de
manutenção da medicação é variável. Os ensaios clínicos realizados utilizam a droga por seis a doze meses. No momento, não está disponível em nosso país. Topiramato
A eficácia do topiramato em diminuir o alto consumo de álcool e promover a abstinência, além de melhorar outros parâmetros associados ao uso de álcool, tem sido demonstrada em alguns estudos clínicos. Acredita-se que tais efeitos sejam decorrentes de sua ação sobre o sistema mesolímbico -mesocortical dopaminérgico, facilitando a via do GABA (por meio de ligação a um sítio não benzodiazepínico do receptor GABAA) e atuando como antagonista dos receptores glutamatérgicos AMPA (alfa-amino3-hidroxi-metilisoxazole-propionato) e do cainato. O aumento do GABA diminui a liberação de dopamina induzida pelo álcool no núcleo accumbens, rompendo o agonismo glutamatérgico excitatório característico da dependência alcoólica e diminuindo a atividade dopaminérgica. Isso atenuaria os efeitos do álcool nos mecanismos de recompensa e levaria à estabilização da atividade aumentada do glutamato causado pelo uso crônico. O topiramato pode ser útil não somente no tratamento da dependência alcoólica, mas particularmente na síndrome de abstinência do álcool. Assim como outros anticonvulsivantes, o topiramato inibe o excesso de atividade do sistema nervoso simpático e a hiperexcitabilidade neuronal, que são características iniciais da retirada do álcool. Isso ocorre porque o topiramato também atua sobre canais ionotrópicos que contribuem para a hiperatividade e a ansiedade relacionadas à síndrome de abstinência: inibe canais de cálcio do tipo L, limita a atividade dos canais de sódio dependentes de voltagem e facilita a condutância ao potássio. Outro mecanismo de ação do topiramato é a inibição das isoenzimas anidrase carbônica CA-11 e CA-IV no cérebro e nos rins. No SNC, a anidrase carbônica é responsável pela conversão de dióxido de carbono em ácido carbônico, que seria responsável pelo paladar prazeroso de bebidas gaseificadas. Assim, os inibidores da anidrase carbônica são conhecidos por alterar o paladar da cerveja e de outras bebidas gaseificadas, fazendo com que tenham sabor desagradável. Seu efeito terapêutico é considerado moderado, mas os benefícios parecem aumentar ao longo do tempo. Em geral, o topiramato é bem tolerado, sendo estes os efeitos colaterais mais comuns: parestesia, alterações do paladar, anorexia, dificuldade de concentração e alterações cognitivas15. As doses preconizadas variam de 100 a 400 mg, devendo-se fazer um aumento gradativo para minimizar os efeitos colaterais. Ondansetron
O ondansetron é um antagonista de receptor 5- HT3 que exerce seus efeitos sobre o sistema mesolímbico-me-
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socortical dopaminérgico. Sua eficácia tem sido mostrada em casos de dependência precoce, principalmente em pacientes com histórico familiar significativo. Os efeitos adversos são leves (geralmente constipação, dores de cabeça e sedação) e a dose inicial é de 4 mg/kg, duas vezes por dia, que deve ser mantida durante o tratamento 16. O ondansetron ainda não foi aprovado para tratamento da dependência de álcool pelos órgãos regulatórios. Bacloflen
O baclofen, agonista do receptor GABAB, tem sido utilizado há décadas no tratamento de diversos transtornos neurológicos. Entretanto, só recentemente seu potencial para o tratamento da dependência de álcool foi pesquisado. Há evidências de que o baclofen reduz o consumo de álcool, diminui as propriedades de reforço e motivação do álcool e previne alguns dos efeitos neurocomportamentais do uso, como a ansiedade. A base neurofarmacológica dessas ações ainda não está completamente estabelecida, mas sabe-se que a ativação de receptores GABABpelo baclofen neutraliza a resposta dopaminérgica induzida pelo álcool no núcleo accum bens e na área tegmental ventral. A cessação do uso de baclofen deve ser gradual para evitar o aparecimento de sintomas de abstinência do próprio medicamento, os quais podem incluir confusão, alucinações, ansiedade, distúrbios de percepção e rigidez muscular extrema. Os efeitos adversos associados ao baclofen incluem dores de cabeça, insônia, náusea, hipotensão arterial, frequência urinária e, raramente, excitação e alterações visuais. Apesar de ensaios clínicos terem mostrado a eficácia do baclofen no tratamento da dependência alcoólica17, estudo recente não encontrou evidências de eficácia quando o medicamento foi comparado ao placebo 18. Esse medicamento ainda não foi aprovado pelos órgãos regulatórios para tratamento da dependência de álcool. A combinação de mais de uma medicação no tratamento da dependência é uma estratégia que ainda não foi suficientemente explorada e pode ser uma arma terapêutica valiosa em um futuro próximo 16.
Tabaco O consumo do tabaco é a principal causa evitável de morte nos Estados Unidos. O impacto do uso de tabaco em termos de morbidade e mortalidade para a sociedade é assustador. Economicamente, mais de 96 bilhões de dólares são gastos nos cuidados de saúde relacionados diretamente ao tabagismo a cada ano. Somam-se a esse valor os gastos indiretos com cuidados de saúde associados ao tabagismo, como a atenção perinatal para recém-nascidos com baixo peso em razão de mães que fumam e os custos da assistência médica associada com doenças causadas pelo fumo passivo 19.
Epidemiologia
Segundo dados do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) 8 de 2005, 52,6% das pessoas com mais de 35 anos de idade já fizeram uso de tabaco em algum momento da vida e 10,1% são dependentes. Há uma ligeira predominância do sexo masculino, e mesmo na faixa etária de 12 anos já existem pes soas dependentes (2,9%). No Brasil, e também em vários outros países20, o número de fumantes vem caindo. A China e outros países asiáticos são exceções importantes. Por causa do maior declínio do tabagismo entre homens, a prevalência do uso é hoje apenas ligeiramente maior para esse gênero. Vários fatores parecem estar contribuindo para essa diferença diminuir, incluindo o fato de as mulheres terem mais dificuldade para parar do que os homens. Farmacologia
O cigarro é o método mais popular de uso de tabaco. É um sistema de entrega de drogas muito eficiente e bem projetado. Ao inalar o fumo do tabaco, o fumante ingere em média 1 a 2 mg de nicotina por cigarro. Quando o tabaco é absorvido, a nicotina rapidamente atinge níveis máximos na corrente sanguínea e penetra no cérebro. Um fumante típico dará dez tragadas em um cigarro durante um período de cinco minutos. Assim, uma pessoa que fuma trinta cigarros por dia recebe 300 hits de nicotina no cérebro diariamente. Para aqueles que normalmente não inalam a fumaça como fumantes de cachimbo, cigarro ou charuto e não são usuários de tabaco sem fumaça (mascado), a nicotina é absorvida através das membranas mucosas e atinge o nível máximo no sangue e no cérebro de forma . ma1s vagarosa. A metabolização da nicotina ocorre principalmente no fígado e em menos intensidade nos pulmões e no cérebro. O principal metabólito - cotinina - é formado na reação catalisada por uma enzima CYP2A6, pertencente à família do citocromo P450. Uma pequena fração (5- 10%) da nicotina é excretada pelos rins na forma não metabolizada. Além da nicotina, podemos encontrar mais de 4.000 substâncias na fumaça do cigarro. Os estudos em animais têm demonstrado que o acetaldeído, um dos componentes químicos encontrados no cigarro, aumenta drasticamente as propriedades de reforço da nicotina e pode também contribuir para a dependência do tabaco. O risco de dependência parece estar relacionado à idade: os animais adolescentes mostram uma sensibilidade muito maior para apresentar esse efeito, o que sugere que o cérebro dos adolescentes pode ser mais vulnerável aos efeitos viciantes do tabaco. Consequências à saúde
O tabagismo mata cerca de 440.000 cidadãos nos Estados Unidos a cada ano, mais do que o álcool, o uso ile-
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Principais doenças influenciadas pelo tabagismo
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I Câncer
Doenças cardiovasculares
I Pulmão. boca, faringe, laringe, esôfago, estômago. pâncreas. colo do útero, rim, bexiga e leucemia mieloide aguda
Figura 2
Doenças pulmonares
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Abstinência de nicotina
Bradicardia
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Aumento do apetite
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Sintomas afetivos
I
Infarto agudo do miocârdio, acidente vascular encefálico. aneurismas
Sintomas físicos
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gal de drogas, homicídio, suicídio, acidentes de carro e Aids combinados 19 . Entre 1964 e 2004, mais de 12 milhões de americanos morreram prematuramente por fumar e outros 25 milhões de fumantes provavelmente vão morrer em razão de uma doença relacionada ao tabagismo. O tabagismo prejudica quase todos os órgãos do corpo e é responsável por cerca de um terço das mortes por câncer. As taxas globais de mortalidade por câncer são duas vezes mais altas entre os fumantes quando comparadas às de não fumantes (fumantes pesados apresentam taxas quatro vezes maiores que as dos não fumantes). Entre os cânceres causados pelo uso do tabaco, o principal é o de pulmão, cuja associação ao fumo de cigarros é de cerca de 90% do total de casos. Além do câncer, o tabagismo provoca doenças pulmonares como bronquite crônica e enfisema e aumenta substancialmente os riscos de doença cardiovascular. Síndrome de abstinência A retirada abrupta da nicotina provoca sintomas de abstinência, os quais aparecem nas primeiras horas após fumar o último cigarro; em muitos fumantes pode durar até seis meses. Os sintomas mais frequentes são desejo intenso de fumar (craving), humor deprimido, disforia, irritabilidade, ansiedade, insônia, bradicardia, aumento do apetite e dificuldade de concentração21. Comorbidades Há uma clara evidência de altas taxas de comorbidades psiquiátricas 19, incluindo abuso de outras substâncias, entre adolescentes e adultos que fumam. A taxa de episódios depressivos é mais alta em indivíduos dependentes da nicotina. Além disso, há evidências de que, para aqueles que tiveram mais do que um episódio depressivo, parar de fumar pode aumentar a probabilidade de um novo episódio. O uso do tabaco aumenta o risco de desenvolvimento de transtornos de ansiedade, que pode ser associado a um aumento da gravi-
'--
Figura 3
I
Alterações do humor
Bronquite crônica, enfisema. asma
Principais doenças associadas ao tabagismo mieloide.
Cravíng
Dificuldade de concentração
Sintomas da abstinência de nicotina.
dade dos sintomas de abstinência durante o tratamento do tabagismo. Em amostras clínicas de esquizofrênicos, a taxa de tabagismo é de quase 90% 22 •
O tratamento do tabagismo O tratamento da dependência de nicotina compreende a associação de tratamento medicamentoso e abordagens não farmacológicas, como o aconselhamento e a psicoterapia. Tratamento farmacológico O tratamento medicamentoso do tabagismo é um dos mais avançados entre os que são destinados às dependências químicas e conta com diversas opções: bupropiona, reposição de nicotina, vareniclina e nortriptilina. a) Vareniclina é um agonista parcial do receptor a4 ~ 2 colinérgico nicotínico que apresenta mais afinidade ao receptor do que a nicotina. Dessa forma, há uma diminuição do efeito "reforçador" da nicotina, da vontade de fumar e dos sintomas de abstinência. A vareniclina apresentou resultados satisfatórios em estudos clínicos randomizados quando comparada à bupropiona e ao placebo, com taxas próximas a 50% de abstinência em doze semanas23. Os principais efeitos colaterais são náuseas, insônia, cefaleia e sonhos vívidos. A dose terapêutica é de 2 mg por dia, divididos em duas tomadas. Tal dose é atingida no período de sete dias e deve-se estabelecer o dia da parada do cigarro após dez a quize dias do uso da medicação em doses terapêuticas. b) Bupropiona é um antidepressivo cujo mecanismo de ação principal é a inibição da recaptação de dopamina e noradrenalina nos receptores pré-sinápticos. Também diminui o efeito "reforçador" da nicotina, a vontade de fu mar e outros sintomas de abstinência. Nos estudos, apresenta resultados inferiores aos da vareniclina, mas, pelo seu custo e sua disponibilidade, ainda é considerada a primeira escolha em diversos serviços de saúde. Essa medicação pode ser usada em associação com a reposição de nicotina24. A dose terapêutica é de 300 mg por dia em duas to-
53 SÍNDROMES DECORRENTES DO USO DE SUBSTÂNCIAS
madas, evitando-se seu uso à noite pelo risco de insônia. Seu efeito colateral mais perigoso é a convulsão, que pode ocorrer em indivíduos vulneráveis em uso de doses altas. c) Reposição de nicotina (RN) foi o primeiro tratamento aprovado pelo FDA para o problema da depen dência de nicotina. No Brasil, estão disponíveis adesivo, goma e pastilha de nicotina. Os adesivos são comercializados em 21, 14 e 7 mg, porém tabagistas com maior grau de dependência ou com comorbidades psiquiátricas podem usar doses maiores. A goma de mascar, comercializada com 2 ou 4 mg, pode ser utilizada em associação com adesivos para momentos em que o paciente apresenta maior fissura ou com tomadas programadas a cada duas ou três horas. A diminuição deve ser gradativa, com redução média de 7 mg a cada quatro semanas de uso contínuo24. O uso da goma em diabéticos deve ser cuidadoso pela presença de açúcares em sua formulação. d) Nortriptilina faz parte do grupo dos antidepressivos tricíclicos. Apesar de haver evidências de que ela pode ser tão eficaz quanto a bupropiona, o perfil de efeitos colaterais (boca seca, aumento de peso, obstipação) limita seu uso. A dose diária é de 100 a 150 mg, atingida gradativamenté5 • Tratamento não farmacológico
O tratamento não farmacológico pode ser realizado em grupo ou individualmente, existindo uma forte relação entre intensidade e resposta. a) Intervenções mínimas: duração um a dez minutos. Essas intervenções podem ser realizadas por diversos profissionais da área de saúde (médicos, psicólogos, enfermeiros e dentistas). Tem baixo custo e boa efetivida de. Compõem -se de cinco partes: perguntar sobre o uso de tabaco; aconselhar sua cessação; investigar o desejo de parar de fumar; oferecer assistência e acompanhamento e organizar acompanhamento. b) Intervenções intensivas: apresentam melhores resultados que as intervenções breves, porém são mais caras e duram mais tempo. Existem diversos tipos de intervenção, sendo que a terapia cognitivo-comportamental, em especial as técnicas que envolvem "resolução de problemas" e treino de habilidades, mostra maiores taxas para a abstinência19 •
Drogas estimulantes do tipo anfetamina As drogas estimulantes do tipo anfetamina ou "anfetaminas" são divididas entre as de uso médico e as de uso não médico. No primeiro grupo encontramos: d-anfetamina, metanfetamina, fenfluramina, metilfenidato, pemolide, femproporex, manzidol, dietilpropiona e anfepramona. No segundo grupo encontramos: ecstasy (3,4metilenedioxi-metanfetamina - MDMA), ice (4 metilaminorex), crystal (derivado metanfetamínico).
Padrões de uso
Os padrões de consumo de anfetaminas podem ser classificados20 da seguinte forma, segundo a OMS: 1) Instrumental: quando são utilizadas para atingir objetivos, tais como melhorar a concentração, inibir o apetite e evitar a fadiga. 2) Recreativo: propriedades estimulantes das anfetaminas são exploradas para manter-se ativo por longos períodos na vida social ou em contextos recreativos, como em festas, para ouvir música ou dançar. 3) Crônico: uso frequente sem contextos ou situações específicas. Epidemiologia
Segundo dados do CEBRID8 de 2005, o uso de estimulantes (tipo anorexígenos) apresenta nítido predomínio no sexo feminino. Foi pequeno (0,15%) o número de entrevistados que preencheram pelo menos dois dos critérios diagnósticos para dependência. Farmacologia
As evidências dos estudos in vivo e in vitro mostram que a administração dessas substâncias faz aumentar os níveis de monoaminas na fenda sináptica por meio de um incremento da sua liberação. As vias de administração e os padrões de consumo de anfetaminas são complexos, não estáveis e variados entre os diferentes indivíduos ou grupos culturais. As rotas preferidas são as vias orais, inalatórias e endovenosas. Consequências à saúde
O consumo de anfetaminas está associado a várias consequências à saúde, que podem ser classificadas em: 1) Distúrbios físicos e neurológicos: síndrome de excitação (hipertermia, taquicardia seguida de colapso circulatório e, eventualmente, morte); acidentes vasculares (devido ao aumento da pressão arterial); infarto do miocárdio; convulsões; movimentos estereotipados e coreicos. 2) Moléstias infecciosas associadas às vias de consumo ou à diminuição dos cuidados sexuais: infecção pelo vírus da imunodeficiência humana; hepatite; outras doenças sexualmente transmissíveis; tuberculose; outras infecções bacterianas, fúngicas e virais. 3) Consequências sociais: violência, crime e acidentes. Quadros psiquiátricos relacionados
Os principais sinais e sintomas da intoxicação incluem: euforia, irritabilidade, redução do sono e do apetite, midríase, aceleração do curso do pensamento, pressão de discurso, diminuição da fadiga, taquicardia e elevação da pressão arterial. Há relatos de síndrome de abstinência relacionada à cessação do uso. Os principais sinais e sintomas são: an-
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siedade, agitação, lentificação, redução da energia, humor depressivo, pesadelos e fissura intensa26 • Tratamento As evidências acerca do tratamento da síndrome de abstinência e dependência de anfetaminas são muito limitadas. Fluoxetina, amlodipina, imipramina e desipramina parecem ter algum benefício. O uso de olanzapina ou haloperidol é eficaz no tratamento da psicose induzida por anfetaminas.
Ecstasy O ecstasy (ou êxtase, como alguns autores de língua portuguesa têm traduzido o termo) é uma substância do grupo das anfetaminas de uso não médico 27 . É uma droga ilegal que atua como um estimulante e alucinógeno, produzindo um efeito de energização, alteração do tempo, prazer e percepção aumentada a estímulos táteis. Normalmente, o MDMA (um acrônimo para o seu nome químico 3,4-metilenodioximetanfetamina) é tomado por via oral, geralmente em um comprimido ou cápsula, e seus efeitos duram cerca de três a seis horas. A média de uso é um a dois comprimidos por episódio, sendo que cada comprimido contém entre 75-100 mg de MDMA. Epidemiologia Na maioria dos países da União Europeia, 0,5% a 6% dos adultos jovens entre 15 e 34 anos reportaram já ter usado ecstasy nos últimos doze meses. Estudos sobre o uso do ecstasy e no Brasil ainda são escassos, mas alguns dados indicam que o consumo do MDMA no país tem aumentado, considerando, por exemplo, o elevado número de apreensões de comprimidos. O uso de ecstasy na cidade de São Paulo e imediações ganhou relevância ao longo da década de 1990 em clubes noturnos e raves ao som de música eletrônica. Os usuários são adultos jovens com boa formação escolar, inseridos no mercado de trabalho, pertencentes às classes sociais privilegiadas e poliusuários de drogas.
Efeitos psíquicos observados após 20-60 minutos, pico de concentração em 2 horas, com o efeito persistindo por até 4 horas
Princípio ativo: MDMA (3,4metilenodioximetanfetamina)
Farmacologia do
ecstasy Dose média de cada comprimido: 75-100 mg Média de uso: 2 comprimidos
Figura 4
Farmacologia do
ecstasy.
Produzido em laboratórios clandestinos, podendo variar muito a concentração de um comprimido para outro
Farmacologia Os efeitos psicoestimulantes do MDMA são observados de 20 a 60 minutos após a ingestão de doses moderadas do ecstasy (75 a 100 mg) e persistem por até quatro horas. O pico de concentração plasmática ocorre duas horas após a administração oral e níveis residuais são encontrados 24 horas após a última dose. Como é produzido em laboratórios clandestinos, a concentração do princípio ativo pode variar de comprimido para comprimido. O ecstasy apresenta farmacocinética não linear, ou seja, o consumo de doses elevadas da substância pode produzir aumento desproporcional dos níveis plasmáticos. O MDMA é amplamente distribuído no organismo e atravessa facilmente as membranas biológicas e a barreira hematoencefálica. O tempo de meia-vida plasmática do MDMA é de 7,6 horas e, em casos de intoxicação, são necessárias seis a oito meias-vidas para a completa eliminação da droga. Essa eliminação depende parcialmente do metabolismo hepático. Cerca de 65% da dose de ecstasy são eliminados sem metabolização por excreção renal. Intoxicação O MDMA tornou-se uma droga popular devido aos efeitos positivos que uma pessoa pode experimentar. Esses efeitos incluem a sensação de estimulação mental, calor emocional, empatia para com os outros, sensação geral de bem-estar e diminuição da ansiedade. Além disso, os usuários relatam maior percepção sensorial como uma marca da experiência de MDMA. Por causa das propriedades estimulantes, o consumo em clubes ou festas pode permitir que os usuários dancem por períodos prolongados. Porém, alguns usuários podem sentir efeitos adversos como ansiedade, agitação e mal-estar após a ingestão do comprimido. Existem também efeitos adversos que podem se prolongar por uma semana ou mais. São eles: ansiedade, inquietação, irritabilidade, tristeza, impulsividade, agressividade, distúrbios do sono, depressão, falta de apetite, sede, redução do interesse e do prazer sexual e diminuição das habilidades mentais. Efeitos adversos potenciais sobre a saúde incluem: náuseas, calafrios, sudorese, movimentação maxilar involuntária e ranger de dentes, dores musculares, visão turva, marcado aumento da temperatura corporal (hipertermia), desidratação, pressão arterial elevada, insuficiência cardíaca, insuficiência renal e arritmia. Os sintomas da overdose por MDMA são hipertermia, pressão arterial alta, desmaios, ataques de pânico, rebaixamento do nível de consciência e convulsões. Abuso e dependência O ecstasy tem potencial de dependência. Os usuários apresentam consumo continuado apesar do conhecimento dos danos físicos ou efeitos psicológicos, de abstinência e tolerância. Quase 60% das pessoas que usam MDMA
53 SÍNDROMES DECORRENTES DO USO DE SUBSTÂNCIAS
relatam sintomas de abstinência, incluindo fadiga, perda de apetite, depressão e dificuldade de concentração. Animais preferem MDMA a outros estímulos prazerosos, de forma semelhante ao que fazem com a cocaína, marca registrada das drogas com potencial de dependência.
duos tolerantes à cafeína), aumento da produção de urina, aumento da secreção de ácido gástrico e aumento de adrenalina, noradrenalina, renina e ácidos graxos livres. Quadro clínico
A cafeína é a substância psicoativa mais consumida no mundo. Apesar de inúmeros estudos terem documentado a segurança da cafeína quando utilizada em doses diárias típicas, seu uso em excesso está associado a sintomas psiquiátricos e outros problemas de saúde.
A intoxicação pode aparecer após uma média de 250 mg de ingestão de cafeína. Ela cursa com cinco ou mais dos seguintes sinais e sintomas: excitação, nervosismo, insônia, aumento da diurese, agitação psicomotora, alterações gastrointestinais, taquicardia ou arritmia, espasmos musculares, alterações do fluxo do pensamento e da expressão, inquietação e rubor facial. Existem critérios para a avaliação da síndrome de abstinência20 de cafeína no apêndice do DSM. Os sinais e sintomas são fadiga ou sonolência excessiva, ansiedade ou depressão, náuseas e vômitos. Uso crônico de doses inferiores a 100 mg por dia podem provocar sintomas após a cessação. Não existe base sistemática para o tratamento, mas indica-se a ingestão de pequenas quantidades de café. Cefaleia é a característica mais comum associada à retirada da cafeína e geralmente é descrita como latejante, generalizada, que piora com o exercício e a manobra de Vaisalva e melhora com o consumo de cafeína. Ela começa tipicamente de doze a 24 horas após a última ingestão da substância e cafeína. Geralmente se resolve em dois a quatro dias. O ácido acetilsalicílico parece ser eficaz.
Epidemiologia
Energéticos
Tratamento
O tratamento da intoxicação aguda deve ser realizado visando aos potenciais focos de alterações clínicas. As principais alterações a serem tratadas: ansiedade e agitação intensas, convulsões, hiponatremia, hipertensão grave, hipertermia, síndrome serotoninérgica e falência múltipla de órgãos. Não existem tratamentos específicos para o abu so/dependência de MDMA. Os tratamentos mais eficazes para o abuso de drogas são as intervenções cognitivo -comportamentais, que serão discutidas no final deste capítulo. Cafeína
A cafeína é encontrada em bebidas (cafés, chás, refrigerantes), alimentos (chocolate) e medicamentos. A maioria da cafeína consumida é derivada de café, chá e refrigerantes. Ela também está presente em alguns analgésicos que não necessitam de prescrição para a compra. Aproximadamente 70% dos refrigerantes consumidos nos Estados Unidos contêm cafeína. Nos adultos americanos, as prevalências do uso semanal de café, refrigerantes e chá são 60%, 50% e 25%, respectivamente. Mais da metade dos adultos consomem café diariamente e 83% dos adolescentes (13 - 18 anos) nos Estados Unidos consomem refrigerantes no prazo de dois dias. Farmacologia
A cafeína é uma metilxantina, assim como a teobromina (presente no chocolate) e a teofilina (usada no tratamento da asma). A cafeína é bem absorvida pelo trato gastrointestinal (TGI), com concentrações plasmáticas máximas ocorrendo tipicamente dentro de uma hora após a ingestão. É rapidamente distribuída pelo organismo e é metabolizada pelo fígado e sua meia-vida é de cerca de cinco horas, com grandes diferenças individuais. A cafeína atua em vários sistemas do organismo28 , promovendo broncodilatação (aplicação terapêutica da cafeína e teofilina no tratamento da asma), pequenos aumentos na pressão arterial (que são reduzidos em indiví-
Desde a introdução do Red Bull® na Áustria, em 1987, e nos Estados Unidos, em 1997, o mercado de energéticos tem crescido exponencialmente29 . O principal ingrediente ativo das bebidas energéticas é a cafeína, embora outras substâncias, tais como a taurina, riboflavina, piridoxina, nicotinamida e vitaminas do complexo B, e vários derivados de plantas medicinais também estejam presentes. Centenas de marcas são agora comercializadas com teor de cafeína que vai de 50 mg a 505 mg por lata ou garrafa. O regulamento de bebidas energéticas, incluindo a rotulagem e o teor de advertências de saúde, difere de país para país. A ausência de supervisão regulamentar resultou em marketing agressivo das bebidas energéticas orientado principalmente para jovens do sexo masculi no. Esse marketing é focado nos efeitos psicoativos, estimulantes e de melhora de performance, utilizando -se inclusive atletas como garotos-propaganda. Há cada vez mais relatos de intoxicação por cafeína contida em bebidas energéticas, e parece provável que problemas de dependência, incluindo a abstinência da cafeína, tendam a crescer. O uso combinado de cafeína e álcool vem aumentando acentuadamente, e os estudos sugerem que tal combinação pode aumentar os agravos associados ao álcool. A ingestão de cafeína tende a possibilitar um consumo maior de álcool, e os energéticos também têm sido apontados como porta de entrada para outras drogas.
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lnalantes Os inalantes são substâncias voláteis que produzem vapores químicos que podem ser inalados para induzir a um efeito psíquico. Embora outras substâncias possam ser inaladas, o termo "inalantes" é cunhado para descrever uma variedade de substâncias que são raramente, ou nunca, ingeridas por qualquer outra via. Essa definição inclui uma ampla gama de substâncias químicas que podem ter diferentes efeitos farmacológicos e que são encontradas em centenas de produtos (Figura 5). Como resultado, a categorização precisa dos inalantes é difícil. Um sistema de classificação enumera quatro categorias gerais de inalantes: solventes voláteis, aerossóis, gases e nitritos (baseado nas formas em que são frequentemente disponibilizados no comércio - resíduos domésticos, industriais e produtos médicos). Um grande número de produtos comerciais (esmaltes, colas, tintas, thinners, propelentes, gasolina, removedores, vernizes) compõe a classe dos solventes. Eles podem ser aspirados tanto de forma involuntária (p. ex., trabalhadores de indústrias de sapatos ou de oficinas de pintura) quanto de forma voluntária. Todos esses solventes ou inalantes são substâncias pertencentes a um grupo químico chamado hidrocarbonetos, como o tolueno, xilol, n -hexano, acetato de etila, tricloroetileno. Algumas colas-de-sapateiro vendidas no Brasil: • Cascola®- mistura de tolueno com n -hexano®. • Patex Extra® - mistura de tolueno com acetato de etila e aguarrás mineral. • Brascoplast®- tolueno com acetato de etil a e solvente para borracha. Epidemiologia
Segundo dados do Levantamento Nacional Domiciliar do CEBRID 8 de 2005, o total de usuários de solventes durante a vida foi maior para o sexo masculino (10,3%
Solventes voláteis
I
Corretivos. colas, removedores (de esmalte. de tintas). derivados do carbono
Aerossóis
Desodorantes. laquês. tintas spray, sprays de óleo vegetal, lança pertume
Gases
Propano (50% do gás de cozinha). Fluido de isqueiro, gases anestésicos
lnalantes l r-
Nitratos
Figura 5
Principais substâncias inalantes.
Amil-nitratos (geralmente classificados de forma separada dos inalan tes pelas diferenças em razão do uso)
contra 3,3% para o feminino). Menos de 1% da amostra apresentou dependência de solventes. Alguns fatores de risco listados para o uso entre adolescentes são30 : • dificuldades socioeconômicas; • marginalização; • problemas familiares graves; • história de violência ou abuso sexual; • transtorno mental ou problemas emocionais; • influência de pessoas próximas; • baixo rendimento escolar e acadêmico; • pais com problemas relacionados ao uso de substanc1as. A
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Neurobiologia
Recentes estudos que examinaram os efeitos da exposição ao tolueno são sugestivos de alterações no fun cionamento dos receptores NMDA e GABA-A31 • Quadro clínico
Apesar de haver uma grande variação nos efeitos farmacológicos dos inalantes, a maioria produz sintomas que se assemelham ao da intoxicação por álcool, com excitação inicial, seguida de sonolência, desinibição, vertigens e agitação. Quando quantidades maiores são inaladas, quase todos os solventes e gases produzem um efeito de anestesia e rebaixamento do nível de consciência. Os produtos químicos encontrados em solventes, aerossóis e gases podem também provocar agressividade, apatia, julgamento prejudicado e comprometimento do funcionamento no trabalho ou em situações sociais. Náuseas e vômitos são outros efeitos colaterais comuns. A exposição a doses elevadas pode causar confusão e delirium. Além disso, o uso também está associado a tontura, sonolência, fala arrastada, letargia, reflexos deprimidos, fraqueza muscular generalizada e estupor. O abuso crônico de solventes voláteis, tais como o tolueno ou naftaleno (a substância volátil em naftalina), produz danos à bainha protetora (mielina) em torno de certas fibras nervosas do cérebro. Essa extensa destruição das fibras nervosas é clinicamente semelhante àquela observada em doenças neurológicas como a esclerose múltipla. Os efeitos neurotóxicos do abuso de inalantes a longo prazo incluem síndromes neurológicas que refletem danos às partes do cérebro envolvidas no controle da cognição, movimento, visão e audição. Alterações cognitivas de intensidade variável podem ocorrer. A exposição crônica pode também produzir danos significativos no coração, pulmão, fígado e rim. Os danos causados pelos solventes, em alguns casos, podem ser irreversíveis. Comorbidade
A comorbidade com outros transtornos associados ao uso de substâncias parece ser a regra para os usuários de inalantes. Em um estudo epidemiológico que anali-
53 SÍNDROMES DECORRENTES DO USO DE SUBSTÂNCIAS
sou uma amostra representativa da população americana (n = 43.093) 32, a prevalência de outros transtornos relacionados ao uso de substâncias (TUS) ao longo da vida foi de 96% entre adultos usuários de inalantes. Usuários de inalantes apresentam também altas taxas de transtornos do humor (48%), de ansiedade (36%) e de personalidade ( 45%) ao longo da vida. Não há tratamento específico para dependência de solventes.
Maconha Epidemiologia A maconha é a droga ilícita mais consumida na maioria dos países. Estima-se que existam entre 129 e 190 milhões de usuários de maconha no mundo 33 • A maconha é também a droga ilícita mais consumida no Brasil. Estudos realizados por meio de levantamentos domiciliares indicam aumento do consumo nos últimos anos. A prevalência de uso ao longo da vida, que era de 6,9% da população em 2001, aumentou para 8,3% em 2005. O consumo nos 12 meses anteriores à pesquisa também aumentou de 1 para 2,6% entre 2001 e 2005 e a dependência de 1 para 1,2%8 . Neurobiologia da maconha Na década de 1960, isolou-se a substância presente na maconha mais associada às suas propriedades psicoativas, o THC (delta-9-tetrahidrocannabinol). Em 1988 foi identificado um receptor canabinoide em ratos e, posteriormente, em 1990, esse receptor foi elonado. Ele recebeu o nome de CB1 (Cannabinoid receptor 1), um receptor canabinoide com predominância em regiões cerebrais como o hipocampo, cerebelo, gânglios da base e neocortex. Posteriormente, foi descrito um segundo receptor canabinoide denominado CB2 (Cannabinoid receptor 2), cuja presença é predominantemente em células do sistema imunológico. A descoberta dos ligantes endógenos desses receptores veio em seguida com a descrição da anandamida e do 2-arachidonoylglycerol (2 -AG). Essas substâncias são relacionadas aos efeitos endógenos do sistema canabinoide sobre a modulação de funções diversas e complexas como cognição, dor, emoções e funções neurovegetativas, como sono e apetite. O sistema canabinoide é responsável por uma regulação fina da neurotransmissão mediada principalmente pelo GABA (gama-aminobutyric acid) e pelo glutamato. Os receptores canabinoides ocorrem com predominância nos terminais pré-sinápticos e seriam responsáveis por uma importante alça de feedback, cuja existência é fundamental na modulação da neurotransmissão desses neurônios. Intoxicação A intoxicação pela maconha é associada à sensação de bem-estar, relaxamento, euforia, aumento da fluência verbal, exacerbação de sentidos como o tato, olfato e pa-
ladar, aumento da acuidade e relevância a estímulos visuais, sensação de lentificação do tempo e risos. Sintomas ansiosos, prejuízos da atenção, da memória de curto prazo e da concentração, redução da força muscular e perda de coordenação motora fina, ideação delirante paranoide, alucinações auditivas, conjuntivas congestas e aumento do apetite são os possíveis efeitos adversos. Dependência A questão sobre se o uso da maconha poderia ser associado ao desencadeamento de dependência de acordo com os critérios estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde e pela Associação Psiquiátrica Americana permaneceu controversa durante muitos anos. Estudos clínicos em humanos34 encontraram evidências de que a interrupção do uso frequente da maconha pode desencadear síndrome de abstinência, caracterizada por alterações emocionais, mudança do padrão de apetite, perda de peso, alterações do sono e desconforto físico. Tratamento Não há medicações aprovadas em nenhum país para o tratamento da dependência da maconha. Alguns medicamentos já foram testados ( atomoxetina, bupropiona, buspirona, clonidina, divalproato, naltrexona, nefazodo na e rimonabanto), mas não se mostraram eficazes no tratamento da abstinência e dependência de cannabis. Um artigo recente apresenta uma revisão atualizada sobre as intervenções farmacológicas para os transtornos associados ao uso de cannabis35 •
Cocaína Epidemiologia A cocaína é um poderoso estimulante do sistema nervoso central é derivada das folhas da planta erythroxylon coca. O hidrocloreto de cocaína é a substância na forma de sal, comumente vendida como pó. O crack é a cocaína na forma de base, consumido por via pulmonar; ele chega rapidamente à via pulmonar, o que produz rápida absorção e efeito mais intenso quando comparado com o consumo de cocaína pelas vias nasal e endovenosa. O li Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, em 2005, encontrou taxa de 2,9% de uso na vida para cocaína e 0,7% para o crack. O uso está concentrado na população do sexo masculino na faixa etária dos 25 aos 34 anos. Houve um aumento no consumo de cocaína comparando 2001 a 2005, comprevalências de 2,3 e 2,9%, respectivamenté. O I Levantamento Nacional sobre o Uso de Álcool, Tabaco e outras Drogas entre universitários das 27 capitais brasileiras mostrou maior prevalência de uso de co caína nessa população quando comparada à população geral, com 7,7% para cocaína e 1,2% para crack. O uso
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nos últimos doze meses foi de 3% para cocaína e 0,2% para crack, e o uso nos últimos trinta dias, de 1,8% para cocaína e 0,2% para crack36 • O uso de cocaína no mundo é estimado em 0,3 a 0,4% da população adulta e parece haver uma tendência de queda no número de usuários relacionada a uma diminuição do consumo na América do Norte. Apesar de ser um mercado em declínio, a América do Norte continua com as maiores prevalências, ao redor de 2% na população adulta33 . Intoxicação
A cocaína liga-se ao receptor dopaminérgico e diminui a recaptação da dopamina. A maior disponibilidade de dopamina na fenda sináptica está associada aos efeitos agudos e às propriedades geradoras de dependência da substância. Os efeitos da cocaína aparecem imediatamente após uma única dose e desaparecem em poucos minutos ou em até uma hora. As vias endovenosas e pulmonares produzem efeito imediato com duração de cinco a dez minutos, e a via nasal apresenta efeito mais lento, com duração de quinze a trinta minutos. Pequenas doses de cocaína propiciam aos usuários sensação de euforia, energia, fluência verbal, maior sensibilidade para visão, tato e audição e podem diminuir temporariamente a necessidade de comer e dormir. Os efeitos físicos incluem vasoconstricção, dilatação pupilar, aumento da temperatura corporal, aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial. Doses maiores podem intensificar o efeito e também produzir comportamento bizarro, agitado e violento. Alguns usuários relatam inquietação, irritabilidade, ansiedade, tremores, vertigens, contrações musculares e paranoia. As complicações médicas mais frequentes incluem as cardiovasculares, como arritmias e infarto agudo do miocárdio; as neurológicas, como cefaleia, convulsões, acidentes vasculares cerebrais e coma; e as gastrointestinais, como dor abdominal e náusea37 •
meiros meses de abstinência e tende a diminuir após seis meses. Complicações clínicas
O uso de cocaína está associado a várias complicações clínicas, que vão desde lesões na mucosa nasal até danos cardiopulmonares graves. O crack pode estar associado a lesões pulmonares como pneumonia intersticial, fibrose, hipertensão pulmonar, hemorragia alveolar, exacerbação de asma, barotrauma, linfoadenopatia hilar e enfisema bolhoso. Os médicos devem estar atentos ao diagnóstico diferencial de uso de cocaína em casos de dor torácica, especialmente em jovens do sexo masculino. Existe uma associação entre o uso de cocaína e infarto agudo do miocárdio, arritmia, acidentes vasculares cerebrais, falência cardíaca e morte súbita38 • Comorbidades
As comorbidades psiquiátricas são relativamente frequentes em dependentes de cocaína. Estudos demons tram a presença de depressão, distimia, ciclotimia, transtorno bipolar, transtorno do pânico, ansiedade, esquizofrenia e personalidade antissocial como condições comórbidas em usuários de cocaína. A presença do transtorno bipolar e de personalidade antissocial, do uso de álcool e de opioides está relacionada a uma maior gravidade da dependência de cocaína39 • Tratamento
Tradicionalmente, o tratamento das dependências envolve estratégias de intervenção psicoterapêuticas, psicossociais e farmacológicas, e cada paciente deve ser avaliado de uma forma individual para que recebam o diagnóstico e o tratamento mais adequados ao seu caso.As intervenções psicoterápicas para as dependências serão apresentadas ao final deste capítulo. Até o momento, não existem medicações aprovadas para o tratamento da dependência de cocaína. Algumas medicações têm sido estudadas, com resultados promissores.
Dependência
As vias de administração pulmonar e endovenosa produzem aumento abrupto da dopamina extracelular e têm efeito reforçador maior quando comparadas às vias nasal e oral. Com isso, o crack representa alto risco de o usuário desenvolver abuso e dependência. Após a cessação do uso de cocaína, é comum o aparecimento de anedonia e fissura. A descrição da abstinência, assim como sua duração, ainda é controversa. Em geral, são descritas depressão intensa, fadiga, ideação suicida eventual, disforia e dificuldade de sono com início em algumas horas a dias da interrupção ou da redução do uso e duração de até dez semanas. A procura pela substância, desencadeada pela exposição a gatilhos, permanece elevada durante os três pri-
Dissulfiram
Estudos avaliaram o dissulfiram no tratamento da dependência de cocaína em comorbidade com a dependência do álcool e também na dependência de cocaína isolada com resultados positivos. A sua ação na dependência de cocaína parece estar relacionada à inibição da ~-hidroxilase, enzima que converte a dopamina em noroadrenalina40. Modafinil
Modafinil é um medicamento aprovado para o tratamento da narcolepsia e pode ser útil ao reduzir a fissura, os sintomas de abstinência e a euforia em dependentes de cocaína41. Pacientes tratados com modafinil
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apresentaram maior número de amostras de urina negativas e passaram mais tempo abstinentes quando comparados aos pacientes tratados com placebo. As doses utilizadas variam de 200 a 400 mg por dia. O modafinil bloqueia o transporte e aumenta a dopamina no cérebro humano, inclusive no núcleo accumbens. Diante disso, deve-se atentar para seu potencial de abuso. Topiramato
Em nosso meio, recente ensaio clínico mostrou redução significativa da intensidade e duração da fissura de uma amostra constituída por 28 homens dependentes de cocaína42 • Apesar de alguns estudos apontarem para a possibilidade do uso de anticonvulsivantes no tratamento da dependência de cocaína, revisão recente não encontrou evidências para o uso dessa classe de medicamento43 . Vacina
A união da cocaína com anticorpos, impedindo sua entrada no cérebro, mostrou-se capaz de bloquear os efeitos da substância. Os primeiros estudos que utilizam a vacina como tratamento da dependência têm sido promissores44.
aumento da popularidade da cocaína. Porém, nos anos 1990, o consumo voltou a assumir aspectos de epidemia, apresentando-se a droga com maior grau de pureza e sendo mais utilizada por adolescentes e por pessoas da classe média. O ópio é mais comumente fumado, sendo encontrado em culturas do Oriente Médio e da Ásia. Os opioides prescritos, como a codeína, morfina, hidrocodona ou mcicodona, em geral são obtidos por algum parente, amigo ou negociador, e não diretamente por um médico. Até dois terços dos usuários de heroína também acabam usando opioides prescritos. Segundo dados do CEBRID de 2005,0,23% dos 7.939 brasileiros entrevistados relataram uso de opioides nos últimos doze meses que antecederam a pesquisa. No mesmo ano, nos EUA, 136.000 pessoas relataram o uso de heroína no último mês, segundo o National Survey on Drug Use and Health. Apesar da baixa prevalência no Brasil, a dependência de opioides apresenta um significativo impacto na mortalidade e morbidadé 45 . No Brasil, quadros de dependência de opioides prescritos (analgésicos) são . os ma1s comuns. A Tabela I apresenta os principais opioides, sua classificação, via de administração e farmacocinética.
Opioides
Farmacologia
O ópio é uma substância extraída da papoula. A no menclatura das substâncias derivadas do ópio tem sido alterada com o decorrer dos anos. Atualmente, o conceito de opioides inclui todas as substâncias naturais, semissmtetlcas ou smtetlcas que reagem com os receptores opioides, quer como agonista, quer como antagonista. •
I
•
•
I
•
Epidemiologia
Os opioides mais sujeitos a abuso são a heroína, o ópio e os opioides prescritos. A popularidade da heroína como droga de abuso atingiu o pico em 1960 nos EUA, mas diminuiu nas décadas de 1970 e 1980 devido ao medo de overdose e ao
Tabela I
Os opioides atuam em receptores localizados no sistema nervoso central e em órgãos periféricos, estando a maioria localizada no trato gastrointestinal, o que resulta em efeitos colaterais diversos. Os principais receptores são: • Mu: subtipo 1 (euforia, analgesia e depressão respiratória) e subtipo 2 (gastrointestinal); • Kappa: analgesia, sedação, miose, sintomas psicomiméticos, desrealização, despersonalização; • Delta: analgesia; • Épsilon: sedação; • Sigma: ação antitussígena, alteração de humor e quadros alucinógenos.
Opioides: classificação, via de administração e farmacocinética
Droga
Classificação
Via de administração
Farmacocinética
Morfina
Natural
VO, IV, IM, IT
Meia-vida 3-4 h
Heroína
Semissintética
IV, IM, VF, VO
Meia-vida < 1 h
Metadona
Sintética
VO, IV, IM
Meia-vida > 24 h
Meperidina
Sintética
VO,IM
Meia-vida 2-4 h
Buprenorfina
Antagonista misto
SL, IT. SC, IV, IM
Meia-vida 12 h
Fentanil
Sintética
IV, ED, TO
Meia- vida 1-2 h
Codeína
Natural
vo
Pró-droga (metabolizada para morfina)
VO: via oral; IV: intravenoso; IM: intramuscular; IT: intratecal; VF: fumado; SL: sublingual; SC: subcutâneo; ED: epidural; TO: transdérmico. Fonte: Rang, Dale, Ritter, 2000 45 •
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684
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Intoxicação A intoxicação por uma substância opioide pode levar aos seguintes sintomas: analgesia, euforia ou disforia, calor, rubor facial, coceira na face, boca seca, miose, constipação, sonolência, depressão respiratória, arreflexia, hipotensão e taquicardia. Pacientes com baixa tolerância, inexperientes no uso de opioides ou ainda que misturam opioides com outras drogas depressoras do SNC estão mais sujeitos a uma overdose. O atendimento nesses casos deve ser realizado em emergência médica, seguindo estes passos: 1) Suporte ventilatório; 2) Correção da hipotensão; 3) Manejo do edema pulmonar sem diuréticos (já que são devidos ao vazamento capilar pulmonar); 4) Uso de naloxona: 0,8 mg IV - esperar quinze minutos. Se não houver resposta, 1,6 mg IV e esperar quin ze minutos. Se não houver resposta, 3,2 mg IV e esperar quinze minutos. Se não houver resposta, rever a hipótese diagnóstica de intoxicação por opioide. A resposta pode ser expressa por midríase, agitação e melhora do nível de consciência; 5) Avaliar a temperatura corporal. Se febril, investigar possível foco infeccioso; 6) Convulsões induzidas por meperidina são revertidas por naloxona45 . Dependência A dependência física de opioides se desenvolverapidamente e sua interrupção abrupta pode causar sinais e sintomas que em geral correspondem ao efeito oposto dos agonistas. Os sintomas podem aparecer após o uso regular de um opioide por somente alguns dias. A Tabela II apresenta os sinais e sintomas associados à abstinência de opioides.
Tabela 111
Tabela 11
Sinais e sintomas associados à abstinência de opioides
Leve a moderado
Moderado a grave
Perda de apetite
Dores abdominais
Ansiedade
Sono perturbado
Fissura
Ímpetos de frio ou calor
Disforia
Aumento da pressão arterial
Fadiga
Aumento da frequência cardíaca
Dores de cabeça
Febre baixa
Aumento da frequência respiratória
Dores musculares
lrritabilidade
Espasmos musculares
Lacrimejamento
Náuseas e vômitos
Midríase Sudorese Piloereção Rinorreia Bocejos Adaptado de Galanter. Kleber, 2008 46
Em relação ao tempo necessário para a ocorrência dos sintomas de abstinência, pode haver variabilidade significativa de acordo com o opioide em questão. A Tabela III apresenta o tempo médio de início dos sintomas de abstinência e a evolução do quadro para os diversos opioides de abuso. a) A duração pode variar com o uso crônico; b) Formulação intravenosa; c) Para apresentação transdérmica, os sintomas podem demorar de 16 a 24 horas para ocorrer; d) A formulação de liberação controlada pode durar até doze horas; e) Geralmente usada de duas a quatro vezes por dia.
Tempo médio de início de sintomas de abstinência e evolução do quadro para opioides de abuso Tempo de desaparecimento do efeito (horas)
Início dos sintomas de abstinência (horas)
Pico dos sintomas de abstinência (horas)
Término da maioria dos sintomas
1
3-5
8- 12
4-5 dias
Meperidina
2-3
4-6
8- 12
4-5 dias
Oxicodona
3-6
8- 12
36-72
7- 1O dias
Heroína
4
8- 12
36-72
7- 10 dias
Morfina
4-5
8- 12
36-72
7- 10 dias
Codeína
4
8- 12
36-72
7- 10 dias
Hidrocodona
4-8
8- 12
36-72
7- 10 dias
Metadona
8- 12
36-72
96- 144
14-21 dias
Droga Fentanil
Adaptado de Galanter, Kl eber, 2008 46•
53 SÍNDROMES DECORRENTES DO USO DE SUBSTÂNCIAS
Tratamento - síndrome de abstinência No Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool eDrogas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (PROGREA- IPq-HCFMUSP) é seguido um protocolo baseado na definição de síndrome de abstinência, orientada pelos seguintes critérios47 : 1) Midríase; 2) 10 mmHg de aumento na PA sistólica; 3) 1O bpm de aumento na frequência cardíaca; 4) Sudorese, calafrios, suspiros, dor no corpo, diarreia, rinorreia e lacrimejamento. Se o paciente preencher pelo menos dois dos critérios, recebe 1O mg de metadona. Seus parâmetros são então checados a cada quatro horas; ele receberá mais 10 mg se apresentar pelo menos dois dos critérios. A dose total das primeiras 24 horas é dividida em duas no segundo dia e reduzida a 5 mg por dia até a retirada. Após a última dose de metadona, a clonidina é iniciada em dose de 0,3 a 1,2 mg. Estudos experimentais mostram que doses de 30 a 60 mg/dia são suficientes para suprimir a maior parte dos sintomas de abstinência por mais de 48 horas. Tratamento - fase de manutenção O tratamento de manutenção envolve uma abordagem farmacológica e psicossocial. Entre as abordagens psicossociais, têm sido verificados bons resultados utilizando-se enfoques psicoeducacionais e terapia cognitivo-comportamental, discutidos ao final do capítulo. Entre as medicações disponíveis no Brasil, pode-se optar por usar agonistas opioides (metadona), antagonistas opioides (naltrexona) ou a clonidina. Os antagonistas impedem o usuário de experimentar o efeito prazeroso e reforçador do uso de opioide. Já os agonistas, suprimem melhor a fissura e os sintomas de abstinência. Existem outros agonistas opioides, como a buprenorfina e o LAAM (levo-a-acetilmetadol), utilizados em alguns países, mas não disponíveis no Brasil. Metadona Trata-se de um opioide de meia-vida longa, sintético, com alta afinidade pelos receptores Mu e Delta e antagonismo pelos receptores NMDA. Utilizada para tratamento da dor e dependência de opioides, bloqueia a euforia induzida pela heroína. É absorvida no intestino e seu pico plasmático é atingido após duas a seis horas da administração oral. Encontrada em apresentações de ampolas com 1O mg e comprimidos de 5 e 1O mg, a metadona tem como efeitos colaterais dependência, sedação, tontura, náusea, sudorese e depressão respiratória. Naltrexona É um antagonista opioide que se liga aos receptores com alta afinidade, impedindo que agonistas produzam
seu efeito. A naltrexona pode causar sintomas imediatos de abstinência se iniciada antes da desintoxicação. Devese esperar cerca de sete a dez dias após o último uso de opioide para iniciar o tratamento com naltrexona. Encontrada em comprimidos de 50 mg, seus efeitos colaterais mais comuns são náusea, cefaleia e ansiedade. Deve-se atentar também para sua potencial hepatotoxicidade. Clonidina Trata-se de um alfa-2 agonista, que objetiva aliviar os sintomas adrenérgicos da síndrome de abstinência. A dose recomendada é de 0,3 a 1,2 mg/dia e deve ser retirada gradualmente, a fim de evitar hipertensão rebote.
Benzod iazepín icos Desde o início da década de 1960, os benzodiazepínicos tornaram -se amplamente disponíveis, atingindo o pico de prescrição nos anos 1970. Posteriormente foram relatados vários dados indicando os inconvenientes do uso a longo prazo, como o risco de dependência, acidentes e quedas, além de distúrbios cognitivos. Epidemiologia Segundo dados do levantamento nacional domiciliar do CEBRID 8, de 2005, a faixa etária igual ou maior que 35 anos mostrou maiores porcentagens de uso de benzodiazepínicos. É interessante notar que há um predomínio nítido de uso para o sexo feminino em todas as faixas etárias. Nesse levantamento, a prevalência da de pendência foi 0,54%. As mulheres (0,77%) apresentaram prevalência cinco vezes maior que os homens (0,14%). Por outro lado, a prevalência de mulheres dependentes na faixa etária acima dos 35 anos chegou a 1,02%. Foi realizado um recente estudo transversal no Brasil no qual se analisou uma população que fazia uso crônico de diazepam em cinco unidades básicas de saúde, em Campinas48 • A maioria dos pacientes eram mulhe res (85,4%) com idade média de 57,6 anos e tempo médio de uso de dez anos. Os pacientes apresentaram uma taxa alta de falta de seguimento da prescrição e tentativas frustradas de parar de usar a droga. A maioria (56%) disse que seu médico nunca tinha dado nenhuma orientação sobre os efeitos da droga. Entre os indivíduos, 61% sofriam de depressão e 29% apresentavam dependência da medicação. Farmacologia Os benzodiazepínicos têm efeitos sobre o ácido y-aminobutírico (GABA) através de um tipo de receptor (GABA-A) 49 . Nesse complexo existe um canal de íons cloreto, um sítio de ligação para o GABA e um sítio bem definido de ligação para benzodiazepínicos. Quando um benzodiazepínico se liga ao complexo, há um aumento da
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
afinidade do receptor para o neurotransmissor endógeno GABA e também aumento do fluxo de íons cloreto. A ação nos receptores GABA-A provavelmente desempenha um papel fundamental nas ações terapêuticas e nos efeitos relacionados ao abuso dessa classe de drogas. Dependência
A síndrome de abstinência de benzodiazepínicos é caracterizada por dois ou mais dos seguintes sinais e sintomas: hiperatividade autonômica, tremores, insônia, náuseas ou vômitos, alucinações ou ilusões transitórias (visuais, táteis ou olfativas), agitação psicomotora, ansiedade e convulsões. Esses sintomas ocorrem após a cessação ou diminuição de uso pesado ou prolongado das substâncias. Os sinais e sintomas da síndrome de abstinência ou descontinuação foram classificados como maiores ou menores. Segundo essa classificação, os sintomas menores incluem ansiedade, insônia e pesadelos. Os sintomas maiores (mais raros) incluem convulsões, psicose, hipertermia e morte. Quanto ao tipo dos sintomas, podemos dividir a síndrome de descontinuação em (1) rebate, (2) recorrência e (3) abstinência. Sintomas de rebate são aqueles para os quais os benzodiazepínicos foram originalmente prescritos e que retornam de uma forma mais grave do que antes do tratamento. Eles têm um rápido início após o término da terapia e uma curta duração. Recorrência refere-se ao retorno dos sintomas originais em igual ou menor intensidade. O padrão e a duração desses sintomas refletem o transtorno de ansiedade para o qual o tratamento fora prescrito inicialmente. Os sintomas de abstinência são distúrbios do humor e cognição, distúrbios do sono, sinais e sintomas físicos e distúrbios de percepção. Os fatores que influenciam o desenvolvimento da síndrome de descontinuação são dosagem e duração do tratamento, velocidade do desmame e psicopatologia. Tratamento
O princípio fundamental subjacente à retirada segura é a redução gradual da dose de benzodiazepínico50 • Qualquer paciente que usou benzodiazepínico por duas
Síndrome da descontinuação de benzod iazepínicos
r-
I
I Rebote
Recorrência
Abstinência
Sintomas originais voltam de forma mais grave
Sintomas originais voltam de forma menor ou igual
Sintomas de humor, cognição e distúrbios da percepção
Figura 6
Síndrome de descontinuação de benzodiazepínicos.
semanas ou mais deve se submeter a uma retirada gradual. Inicialmente, a dose é reduzida em aproximadamente 10-25%, e o paciente é observado para quaisquer sinais e sintomas de abstinência. As reduções posteriores dependerão de como o paciente responderá às mudanças iniciais e exigem a individualização baseada na observação cuidadosa da condição do paciente após cada mudança de dose. Em caso de altas doses terapêuticas de um benzodiazepínico por um ano ou mais, o desmame pode ser realizado em vários meses para a retirada total, e o paciente deverá aprender estratégias alternativas para lidar com a ansiedade. A maioria dos pacientes que toma doses terapêuticas por um curto tempo tolera a redução semanal variando de 10-25%. As últimas fases da descontinuação da droga são mais difíceis para o paciente, e pode ser necessário o uso concomitante de outras classes de medicamentos.
Medicações de prescrição O uso não médico ou o abuso de medicamentos é um problema de saúde pública. Os idosos estão entre os mais vulneráveis ao abuso de drogas de prescrição ou utilização abusiva, porque são as pessoas que mais tomam medicamentos. O abuso de medicamentos prescritos, como certos opioides, os "calmantes" do sistema nervoso central ( CNS) e os estimulantes, pode alterar a atividade do cérebro e levar à dependência. Embora ainda não compreendamos todas as razões para o crescente abuso de remédios, a acessibilidade é provavelmente um fator importante. Epidemiologia
Em uma amostra representativa da população americana3 1, aproximadamente um em cada dez adolescentes com idades entre 12-17 anos relatou o uso não prescrito de analgésicos (9,3% nos homens e 10,3% nas mulheres). A média de idade de primeiro uso foi de 13,3 anos, semelhante à idade média do primeiro uso de álcool e maconha, mas superior à do primeiro uso de inalantes. Entre eles, 52% relataram ter usado hidrocodona, 50% propoxifeno ou co deína (Tylenol0 com codeína) e 24% oxicodona. Cerca de um quarto (26%) de todos os usuários nunca tinha usado outras drogas. Anticolinérgicos
Os primeiros medicamentos anticolinérgicos para doença de Parkinson foram sintetizados nos anos 1940. Até a introdução da levodopa, eles foram o pilar do tratamento. Seu uso principal hoje é para o alívio de efeitos colaterais extrapiramidais induzidos por medicamentos antipsicóticos. Há relatos de uso indevido de agentes anticolinérgicos desde os anos 1980, mas a sua prevalência varia consideravelmente, chegando até a 34% em amostras de pacientes5 1•
53 SÍNDROMES DECORRENTES DO USO DE SUBSTÂNCIAS
Os dois principais agentes utilizados são diferentes do ponto de vista farmacodinâmico. A orfenadrina (nome comercial Dorflex®) é um derivado anti-histamínico da difenidramina de primeira geração e confere uma ampla gama de efeitos (como o analgésico), além de bloqueio do receptor muscarínico. Já o biperideno se assemelha a compostos anticolinérgicos clássicos. Em 1998, foram identificadas mais de oitenta mortes após overdoses de orfenadrina na literatura. Por outro lado, não existem relatos de mortes na literatura em razão de overdose de biperideno. A orfenadrina foi retirada do mercado escandinavo em 2005, mas ainda é comercializada em várias partes do mundo, incluindo o Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e Brasil. É possível encontrar o medicamento para compra sem receita em alguns países (como no Brasil). Metadona
A metadona tem um potencial de abuso similar à morfina, que acarreta risco de uso indevido ou abuso. Os médicos devem estar cientes das ferramentas utilizadas para avaliar o risco de abuso a fim de melhor tratar os pacientes que necessitam de metadona para o manejo da dor. Abuso e uso indevido da substância aumentam o risco de overdose e morte, especialmente quando consumida concomitantemente ao álcool e a outras substâncias como os benzodiazepínicos. Tolerância e dependência física são comumente vistas durante a terapia crônica e seu uso não deve ser interrompido abruptamente. Os sintomas de abstinência são inquietação, bocejos, sudorese, mialgia, calafrios, lacrimejamento, ansiedade, irritabilidade, dor nas articulações, fraqueza, cólicas abdominais, náuseas, vômitos, diarreia, hipertensão e aumento da frequência cardíaca ou respiratória.
C/ub drugs As denominadas club drugs constituem um grupo heterogêneo de substâncias que incluem drogas sintéticas, lícitas ou ilícitas, com mecanismos de ação e efeitos diversos no sistema nervoso central. O agrupamento dessas substâncias em uma categoria reflete o perfil da população usuária, geralmente adultos jovens, e o contexto de uso recreativo, caracterizado pelo consumo em bares, danceterias, shows e festas do tipo rave. Para este capítulo, será utilizada a padronização do NIDA (National Institute on Drug Abuse), órgão norte-americano que centraliza informações e pesquisa sobre drogas, apresentada na Tabela IV.
lizado no ano de 2005, aponta uso da classe de alucinógenos durante a vida de 1,1 %8. É importante ressaltar que nesse estudo o LSD e o ecstasy foram agrupados nessa única classe denominada alucinógenos. Em populações específicas, o uso do LSD pode ser muito mais comum. Em levantamento recente entre, estudantes universitários, realizado nas 27 capitais brasileiras, o uso na vida e no último ano foi relatado por 7,6 e 2,6% dos estudantes, respectivamente36. Intoxicação
O LSD, na maioria das vezes, é utilizado por via oral. São consumidos pequenos papéis impregnados da substância em doses de 40 a 500 ~g. O mecanismo de ação do LSD é baseado na sua propriedade de agonismo de recep tores 5-HT2 A' Após trinta a 45 minutos do uso, iniciamse efeitos físicos e psíquicos caracterizados por sensação de dormência, tremores finos, contrações musculares involuntárias e perda de coordenação motora. De modo concomitante, ocorrem os efeitos psíquicos. Uma parte significativa dos usuários experimenta sintomas ansiosos antes dos efeitos alucinógenos da substância, seguidos por importante elação. Os efeitos alucinógenos são caracterizados por distorções da percepção (normalmente visuais) nas quais o usuário geralmente mantém a consciência de que a experiência não é real. Ocorrem distorções da percepção corporal com sensações de peso ou leveza excepcional. O usuário pode perder a delimitação entre o próprio corpo e o ambiente, resultando em uma sensação de pertencimento às coisas ou ao universo. O controle sobre o pensarnento e a concentração pode estar marcadamente diminuído, memórias longamente esquecidas podem regressar com uma tonalidade diferente, partes do corpo ou objetos à volta podem se revestir de novos significados e ser observados de maneira detalhada por horas. As ex-
Tabela IV
C/ub drugs, segundo a definição do NIDA
Nome químico
Nome nas ruas
Classe
Metilenodioximetanfetamina (MO MA)
Ecstasy, bala
Estimulante
Dietilamida do ácido lisérgico (LSD)
Ácido, papel, doce
Alucinógeno
Ketamina
Anestésico
Alucinógeno
Ecstasy
Dietilamida do ácido lisérgico (LSD)
®ama- hidroxibutirato (G HB)
Epidemiologia
Flunitrazepam
Rohypnol®
Benzodiazepínico
O LSD é o mais poderoso dos alucinógenos conhecidos. No Brasil, o último levantamento domiciliar, rea-
Metanfetamina
Cristal, ice
Estimulante
líquido
Sedativo
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
periências sensoriais tomam formas mais agudas, as cores ficam mais brilhantes, os objetos têm formas mais agudas, aumenta a relevância dos sons e do paladar. A vivência do tempo também é distorcida, sendo que o usuário pode ter a sensação de que minutos demoram horas. Os efeitos físicos da intoxicação pelo LSD incluem aumento da pressão arterial e frequência cardíaca, aumento da frequência respiratória, náuseas, vômitos, diminuição do apetite, elevação da temperatura corporal e sudorese. O uso do LSD pode ser associado a consequências adversas de maneira aguda ou crônica. Crises convulsivas e hipertermia maligna já foram observadas na vigência da intoxicação. Pode ocorrer um quadro denominado bad trip, caracterizado por sintomas de ansiedade com crises de pânico, sensação de perda de controle da identidade e medo. O tratamento dessas condições é realizado com a tranquilização e observação do usuário. Podem ser utilizadas medicações antipsicóticas como o haloperidol na vigência de sintomas psicóticos ou benzodiazepínicos quando ocorrem sintomas ansiosos. Entre os efeitos crônicos, destacam -se os jlashbacks, que constituem a reinstalação dos sintomas típicos da intoxicação em um grau menos acentuado, mesmo depois de longo tempo sem o uso da droga. Esses episódios duram de poucos segundos a poucos minutos, geralmente são autolimitados e tendem a diminuir com o passar do tempo e a abstinência do LSD. Os episódios de jlashback podem ser precipitados por situações específicas, como o uso de maconha ou lembranças dos momentos de intoxicação. O potencial do LSD para desencadear dependência é algo controverso. Embora a ocorrência de tolerância possa ser rapidamente estabelecida, sintomas de abstinência não são evidentes. Ketamina A ketamina é uma droga sintética produzida para utilização como anestésico. Há poucos dados epidemiológicos sobre o uso de ketamina em nosso meio. No le vantamento entre estudantes universitários36, houve uma proporção de uso de ketamina ao longo da vida de 0,8% e uso nos últimos trinta dias de 0,6%. O uso da droga pode ser inferido também por apreensões realizadas. Intoxicação A ketamina é um produto de síntese complexa obtido pelos usuários a partir de fontes legalizadas. A droga tem a forma líquida, mas pode ser manipulada para produzir um pó branco cristalino solúvel em água e álcool. Desse modo, a droga pode ser ingerida por via oral, injetada, cheirada ou fumada. A ketamina tem como mecanismo de ação um antagonismo em receptores deglutamato N -metil D -aspartato (NMDA). A intoxicação por ketamina tem tempo de duração aproximado de uma
hora, sendo associada a reações dissociativas e psicóticas. Os usuários geralmente buscam sensações prazerosas de flutuação, desprendimento do corpo e alucinações relacionadas a revelações místicas. Pode haver perda da percepção corporal e uma sensação de que o corpo é feito de borracha, madeira ou plástico. A intoxicação pode cursar com prejuízo da organização do pensamento, hipertensão arterial, confusão, tontura, alterações da fala e nistagmo. Alguns usuários podem experimentar um estado de perda dramática de coordenação motora52 • Em casos excepcionais, a intoxicação pode resultar em um quadro psicótico de maior duração e doses maiores têm potencial de induzir depressão respiratória. Tratamento O tratamento da intoxicação por ketamina pode ser realizado a partir do aumento da excreção da droga. Esse processo pode ser acelerado pela acidificação da urina com ácido ascórbico ou cloreto de amônio. No entanto, é importante que as funções renais e hepáticas estejam preservadas, caso contrário esse procedimento pode re presentar risco. Para o tratamento de quadros de agitação psicomotora, devem ser utilizados preferencialmente o haloperidol ou o lorazepam. -y-hidroxibutirato (GHB) O y -hidroxibutirato (GHB) foi produzido na década de 1960, sendo um derivado do ácido y-aminobutírico (GABA). A droga pode ser produzida de maneira doméstica a partir de alguns precursores industrializados. O produto final é um pó de cor branca que pode ser diluído em bebidas e ingerido. O gosto é desagradável, salgado ou próximo ao sabão, sendo assim necessário que se misture a droga a bebidas que possam disfarçar esse gosto. Não há dados epidemiológicos sobre o uso de GHB em nos. so meiO. Intoxicação A intoxicação pelo GHB é uma das mais graves entre as club drugs. O risco de morte deve ser considerado (60 casos nos Estados Unidos em 2000), além da utilização da droga como facilitadora para o abuso sexual e estupros, fatores que levaram seu uso a ser estritamente controlado 53 . A intoxicação pelo GHB cursa com sensação de euforia, agitação psicomotora, alucinações e tontura. As reações adversas podem ser múltiplas e incluem náuseas, vômitos, fraqueza muscular, ataxia, bradicardia, perda de coordenação motora, amnésia temporária, perda de controle de esfíncteres, depressão cardiorrespiratória, convulsões, coma e morte. Tratamento Os usuários de GHB podem, com frequência, necessitar de assistência em serviços de emergência. Os fundamentos da assistência incluem os princípios básicos de
53 SÍNDROMES DECORRENTES DO USO DE SUBSTÂNCIAS
suporte de funções cardíacas, respiratórias e metabólicas. Em caso da persistência de bradicardia, está indicado o uso da atropina. O clínico deve ter consciência de que é frequente a associação do GHB com outras substâncias como o álcool e estimulantes. Rohypnol®
O flunitrazepam é um benzodiazepínico de meia-vida curta. Trata-se de uma droga de prescrição médica, que, no entanto, pode ser utilizada como droga de abuso no contexto recreacional. Pode ser ingerida de forma iso lada ou em associação com álcool, estimulantes ou outras club drugs. Assim como o GHB, essa droga pode ser utilizada como facilitadora para o abuso sexual. Intoxicação
Os sintomas de intoxicação pelo flunitrazepam são os típicos para benzodiazepínicos. Após vinte a trinta minutos do uso ocorrem sedação, fala pastosa, humor lábil, prejuízo de atenção e memória, perda progressiva da coordenação motora, prejuízo de julgamento e funcionamento social. Alguns usuários ainda podem experimentar tonturas, distorções visuais e comportamento agressivo. Tratamento
O tratamento da intoxicação por benzodiazepínicos deve seguir os fundamentos de suporte de vida como manutenção de vias aéreas, ventilação e função cardiovascular. Pode ser utilizado o flumazenil, um antagonista benzodiazepínico.
Uso de álcool e drogas entre os adolescentes Epidemiologia
Estudo epidemiológico nacional mostra que o álcool é a substância mais consumida entre os adolescentes, seguida pelo tabaco e pela maconha54. De acordo com o estudo, 65,2% dos estudantes fizeram uso de álcool, 24,9% de tabaco e 15,5% de maconha alguma vez na vida. Entre eles, 11,7% relataram ter usado álcool, 3,8% tabaco e 0,7% maconha no mês anterior à entrevista. O uso pesado (mais de vinte vezes no mês anterior à entrevista) de álcool ou outras drogas foi observado em 2,3% dos adolescentes54. Estudos longitudinais mostram que o uso de substâncias entre os adolescentes pode apresentar uma sequência, iniciando-se pelo álcool e/ou tabaco e, posteriormente, maconha e outras drogas ilícitas55 • Fatores relacionados ao uso de substâncias entre os adolescentes
O uso de álcool e outras drogas entre os adolescentes tem sido associado a problemas escolares (faltas frequentes, repetência e evasão escolar, dificuldade de aprendizagem, pouco comprometimento com atividades escolares), problemas familiares (relacionamento ruim
com os pais, membro da família que usa/abusa e/ou é dependente de alguma substância, violência doméstica, desorganização familiar após separação/morte dos pais, falta de suporte e monitoramento familiar), problemas sociais (ausência de práticas religiosas, influência dos amigos, envolvimento em atividades ilegais como roubos), características de personalidade (baixa autoestima, intolerância a frustração, rebeldia, desinibição, agressividade, impulsividade) e presença de transtornos psiquiátricos56•57. Estima-se que 80% dos adolescentes que abusam e/ou são dependentes de álcool ou droga tenham alguma comorbidade psiquiátrica. Os transtornos psiquiátricos mais frequentes nessa população são os de personalidade, conduta, humor, déficit de atenção e hiperatividade. Os comportamentos relacionados a problemas de conduta podem tanto preceder o uso de drogas quanto ser resultado direto da intoxicação, do convívio com pessoas que tenham comportamentos antissociais e de práticas de atos ilegais para obter álcool e drogas (furtos, roubos, tráfico de droga, entre outros). Complicações clínicas do uso de álcool e drogas entre os adolescentes
O uso de álcool e drogas na adolescência pode acarretar problemas de relacionamento com amigos e familiares, estreitamento do repertório social, envolvimento em situações de risco (prática de sexo de risco, envolvimento em atos ilegais), problemas de aprendizagem, perda de memória e dificuldade de concentração56. A busca por tratamento em geral está associada a esses problemas. Os adolescentes frequentemente se queixam de dificuldade no relacionamento interpessoal e incompreensão por parte dos familiares e amigos sobre a maneira como se comportam. Raramente a procura por tratamento está relacionada à presença de sintomas clínicos decorrentes do uso de drogas. Os adolescentes dificilmente apresentam sintomas físicos de dependência (abstinência e tolerância), o que diminui a necessidade de tratamento específico de desintoxicação. A procura por tratamento em fases iniciais do problema e o menor tempo de exposição à droga reduzem os riscos de desenvolver danos físicos significativos. Tratamento
O tratamento geralmente envolve atendimento médico, terapia individual e familiar. O envolvimento da família é muito importante para o sucesso no tratamento do adolescente. Antes de iniciar qualquer tipo de intervenção é importante fazer uma avaliação completa do caso, a fim de investigar detalhadamente o padrão de uso, o envolvimento em atividades ilegais, o desempenho acadêmico, os fatores relacionados ao uso, gravidade do quadro clínico e a presença de comorbidades psiquiátricas. Essa avaliação facilita o desenvolvimento de um plano terapêutico que atenda melhor às necessidades do adolescente.
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As intervenções psicoterápicas baseiam-se na verificação do papel do uso de drogas na vida do adolescente, ensinando -o a reestruturar valores e habilidades que sejam incompatíveis com o uso de drogas. É preciso que o adolescente aprenda como se divertir, resolver problemas e superar dificuldades sem precisar usar nenhuma substância psicoativa. As perdas associadas ao relacionamento social e familiar têm sido alguns dos fatores motivacionais para a mudança do comportamento nessa população. Treino de habilidades sociais e resolução de problemas, acompanhamento escolar, orientação vocacional e planejamento de metas que sejam realizáveis a curto prazo têm se mostrado eficazes para o início e a manuten ção da abstinência56. A internação em clínicas de reabilitação ou comunidades terapêuticas deve ser muito bem avaliada, pois o adolescente submetido à internação psiquiátrica pode sofrer estigmas, preconceitos e discriminação no futuro. O tratamento hospitalar em regime de internação geralmente é indicado quando o adolescente apresenta comportamentos auto ou heteroagressivos, risco de suicídio, complicações clínicas, necessidade de tratamento de outras comorbidades psiquiátricas, problemas familiares e/ ou sociais e falência na resposta ao tratamento ambulato rial. Para as internações em comunidades terapêuticas, o adolescente deve ter histórico de não adesão ou baixa resposta a tratamentos hospitalares anteriores, indicando necessidade de internação de longa duração. Após a alta de um tratamento hospitalar sob regime de internação, é necessário que o adolescente seja encaminhado para tratamento ambulatorial e atividades de hospital-dia.
Uso de álcool e outras drogas entre as mulheres Epidemiologia
Quando comparadas aos homens, as mulheres utilizam mais medicamentos com potencial de abuso (benzodiazepínicos, analgésicos, anorexígenos). De acordo com o CEBRID8, as mulheres apresentaram aproximadamente três vezes mais probabilidade de fazer uso de estimulantes (4,5 vs. 1,1 %), benzodiazepínicos (6,9 vs. 3,4%) e anorexígenos (5,1 vs. 2,5%). Além disso, a dependência de benzodiazepínicos e de anorexígenos é cinco vezes maior entre elas. O uso de álcool e tabaco também vem aumentando nessa população. Entre os bebedores pesados (acima de quatro doses, em um episódio no último ano) as mulheres representam quase um terço. No Brasil, as prevalências de dependência de álcool e nicotina entre as mulheres são de 6,9 e 9%, respectivamente8 • Fatores relacionados ao uso de substâncias entre as mulheres
As mulheres geralmente iniciam e mantêm o uso de substâncias por problemas emocionais e influência do par-
ceiro. Fatores como imagem corporal, preocupação com o corpo, desejo de emagrecer, problemas de relacionamento com o parceiro, separação conjugal, morte de ente querido, viuvez, isolamento social, saídas dos filhos de casa, menopausa, perda de emprego, aposentadoria, ter parceiro que é dependente de álcool ou drogas, uso de remédios prescritos com potencial de abuso, história de abuso/depenciência de outras substâncias (como anfetaminas, tranquilizantes) e presença de transtornos psiquiátricos têm sido associados ao abuso e à dependência de álcool e a outras drogas entre as mulheres8'58'59 • As comorbidades psiquiátricas mais frequentes entre mulheres dependentes de álcool e outras drogas são os transtornos do humor, ansiedade e transtornos alimentares. Estima-se que 65% das mulheres dependentes de álcool apresentem alguma co morbidade psiquiátrica. As comorbidades psiquiátricas podem aparecer antes (situação mais frequente), durante ou depois da dependência de substâncias. Complicações clínicas do uso de álcool e drogas entre as mulheres
As mulheres apresentam mais risco de desenvolver dependência de substâncias do que os homens. As taxas maiores de gordura corporal e níveis séricos menores de enzimas metabolizadoras do álcool (álcool-desidrogenase) tornam as mulheres mais vulneráveis aos efeitos do álcool. Os riscos de morbidade e mortalidade em decorrência do abuso de substâncias psicoativas são duas vezes maiores entre as mulheres do que entre os homens. Além disso, as complicações clínicas aparecem mais cedo e de forma mais grave. O abuso e a dependência de álcool e outras drogas podem acarretar pancreatite, cirrose, neuropatia, h ipertensão, anemia, desnutrição, hemorragias, amenorreia, dismenorreia, infertilidade, úlceras gastrointestinais, problemas cardíacos, neurológicos e psiquiátricos. Durante a gestação, o abuso de substâncias aumenta os riscos de aborto, trabalho de parto prematuro, anomalias congênitas, retardo de crescimento, descolamento prematuro de placenta, baixo peso ao nascer, morte neonatal e síndrome de morte súbita na infância. Um dos problemas mais importantes decorrentes do abuso de álcool durante a gestação é o desenvolvimento da síndrome alcoólica fetal (SAF). A SAF pode ocorrer tanto pelo uso constante quanto pelo uso pesado em uma ocasião. Até onde se sabe, não existe uma dose segura para mulheres grávidas. A SAF pode provocar compro metimentos neuropsiquiátricos ao feto, prematuridade, malformação, retardo no crescimento intra e extrauterino, sequelas neurológicas e respiratórias, anomalias faciais e cardíacas, retardo mental, déficit de atenção e h iperatividade60 • Os danos causados pelo álcool ao feto são . ' . permanentes e Irreversiveis. Além disso, o uso de álcool e de outras drogas em mulheres grávidas aumenta o risco de transmissão vertical de infecções como HIV, hepatites B e C e sífilis.
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Tratamento
Mulheres dependentes de álcool e de outras dro gas sofrem estigmas sociais e dificuldades em buscar tratamento especializado. A procura por tratamento muitas vezes ocorre de maneira indireta e por profis sionais não especializados. Queixas vagas sobre sua saúde física e/ou psicológica dificultam o diagnóstico e retardam o tratamento. A dificuldade de buscar o tratamento e de mantê-lo está associada a não ter com quem deixar os filhos, ao medo de perder a guarda das crianças, à falta de emprego, à dependência financeira e à falta de apoio do parceiro, que muitas vezes tem problemas com álcool e drogas e se opõe ao tratamento61 • O tratamento psicológico da dependência química para mulheres requer alguns cuidados especiais. Uma abordagem multidisciplinar que favoreça o acompanhamento nutricional, a assistência social e jurídica, a terapia individual e o atendimento familiar têm mostrado melhores resultados. A disponibilidade de grupos terapêuticos compostos apenas de mulheres e coordenados por profissionais de saúde do sexo feminino que se sintam à vontade para falar sobre sexo, sexualidade e uso de álcool/drogas aumenta as chances de adesão ao tratamento. O envolvimento e o apoio de familiares no tratamento também são importantes. As estratégias terapêuticas geralmente abordam questões relacionadas a isolamento social, interação familiar, resgate e fortalecimento da autoestima, imagem corporal, saúde sexual e reprodutiva, questões vocacionais, assertividade, estratégias de enfrentamento e reso lução de problemas. É importante que as mulheres identifiquem as situações de risco para o uso de álcool e drogas, descubram os aspectos motivacionais para se manterem abstinentes e os fatores relacionados às falhas em tratamentos anteriores. As falhas terapêuticas, como as recaídas e o abandono ao tratamento, têm sido associadas à falta de suporte social e familiar, a fator emocional intenso (separação, morte de ente querido), a questões relacionadas ao corpo e à imagem corporal (p. ex., ganho de peso), ao distanciamento do fator motivacional (como nascimento e crescimento dos filhos) e à presença de comorbidades psiquiátricas não tratadas. A presença de comorbidades psiquiátricas pode alterar o curso e o prognóstico do tratamento. Mulheres submetidas a tratamento para depressão concomitantemente ao da dependência de álcool tendem a ficar mais rapidamente abstinentes e por mais tempo do que aquelas submetidas apenas ao tratamento para dependência de álcool. O tratamento de comorbidades psiquiátricas em mulheres dependentes de substâncias exige muito cuidado na avaliação psiquiátrica. É necessário cautela nas prescrições de medicamentos com potencial de abuso, já que elas são mais vulneráveis a desenvolver quadros de dependência.
Uso de álcool e outras drogas entre idosos Epidemiologia
As substâncias psicoativas mais consumidas entre os idosos são as medicações com potencial de abuso e o álcool. Estima-se que um em cada quatro idosos faça uso de alguma medicação com potencial de abuso. Entre os idosos que fazem uso de psicotrópicos, aproximadamente 17% abusam ou são dependentes de álcool62 • A prevalência de dependência de álcool em idosos chega a 10% na comunidade, 14% nas urgências hospitalares e 18% nas internações e enfermarias. Em unidades psiquiátricas pode chegar a 44%. Entre os idosos dependentes de álcool, 70% podem apresentar dependência de tabaco. O uso de drogas ilegais é menos frequente nessa população quando comparada aos mais jovens. Fatores relacionados ao uso de substâncias entre os idosos
Os idosos geralmente utilizam álcool e outras drogas como forma de atenuar a solidão, aumentar a autoconfiança, relaxar, reduzir o estresse e induzir o sono. A automedicação para lidar com os sintomas de depressão e ansiedade tem sido associada ao abuso e à dependência de benzodiazepínicos em idosos. A dependência de álcool em idosos tem sido associada a abuso/dependência de benzodiazepínicos, hipnóticos e nicotina, histórico familiar de dependência, presença de transtornos ansiosos e depressivos, separação conjugal, viuvez, isolamento social, aposentadoria e pouca atividade ocupacional satisfatória63. Complicações clínicas do uso de álcool e drogas entre os idosos
O abuso de álcool e de outras drogas em idosos pode trazer prejuízos psicomotor e cognitivo, diminuição da atenção, alterações na memória, insônia, ansiedade, depressão, risco de suicídio, psicose, quedas e fraturas, isolamento social e institucionalização. O abuso de álcool também aumenta o risco de desenvolver problemas cardíacos e vasculares, desnutrição, delirium e alterações cognitivas, como demências. A interação entre medicamentos com potencial de abuso e uso de álcool pode aumentar o risco de aparecimento desses prejuízos63 • As mudanças fisiológicas próprias do envelhecimento alteram a reposta aos efeitos das substâncias psicoativas. Alterações neuroquímicas aumentam a sensibilidade aos efeitos sedativos e ansiolíticos do álcool e de medicamentos controlados. Ao envelhecer, o indivíduo pode se tornar mais sensível à intoxicação alcoólica com doses que, no passado, eram bem toleradas. A redução da massa corporal e das enzimas metabolizadoras do álcool também aumenta essa sensibilidade. Tratamento
Os idosos geralmente procuram tratamento quando percebem prejuízo no relacionamento familiar (mulher
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e filhos), problemas financeiros e problemas de saúde (hipertensão, diabetes, problemas hepáticos). O tratamento envolve programas terapêuticos específicos. As abordagens não devem ser confrontativas. O profissional deve abordar questões relacionadas aos aspectos emocionais negativos e ao isolamento social, bem como adequar o ritmo e conteúdo das informações à capacidade de organização mental e emocional que o idoso apresenta. O tratamento deve atender às necessidades médicas e sociais do indivíduo. O idoso deve ser submetido à desintoxicação e, em seguida, à reabilitação. Internações hospitalares são mais frequentes nessa população, já que ela apresenta sintomas de abstinência mais graves e mais longos quando interrompe o consumo de álcool e de outras drogas 58 . A dificuldade de adesão ao tratamento e as recaídas têm sido associadas a programas que não atendem às necessidades médicas e sociais do idoso, grupos terapêuticos com pessoas mais jovens, dificuldades de compreensão do que está sendo proposto, atividades ocupacionais insatisfatórias, exposição à rede social que estimule o uso e presença de outras comorbidades psiquiátricas.
Prevenção e políticas públicas O referencial clássico para modelos de prevenção proveniente da infectologia entende a substância psicoativa (SPA) como agente da doença e pode ser descrito como: • Prevenção primária: conjunto de ações que procuram evitar a ocorrência de novos casos de uso abusivo de psicotrópicos ou até mesmo um primeiro uso. Existem inúmeros modelos de prevenção primária, assim, o critério mais importante para escolher o mais adequado a cada circunstância e contexto é conhecer e respeitar as características e as necessidades da comunidade na qual se pretende atuar64 . • Prevenção secundária: conjunto de ações que procuram evitar a ocorrência de complicações para as pessoas que fazem uso ocasional de drogas e que apresentam um nível relativamente baixo de problemas. As campanhas publicitárias com informações sobre o risco do uso de álcool, especialmente voltadas para o beber e dirigir e para a prática sexual sem preservativos, são exemplos de atuação nesse nível preventivo. • Prevenção terciária: conjunto de ações que, a partir de um problema existente, procura evitar prejuízos adicionais e/ ou reintegrar à sociedade os indivíduos com problemas sérios. Também busca melhorar a qualidade de vida dos usuários junto à família, ao trabalho e à co munidade de modo geral. Fatores de risco e proteção
Como doença complexa e multifatorial, o perigo de desenvolver dependência de substâncias está associado a fatores de risco e de proteção.
Em termos individuais, aspectos como autoconfiança, autoestima, assertividade, capacidade de cooperar, ter um projeto de vida e vínculos familiares são considerados protetores. Problemas de autoestima, tendência ou presença de problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão, comportamento de oposição, experiências precoces sexuais e de uso de substâncias e problemas nas esferas indicadas como protetoras são fatores de risco. Existe ainda uma complexa relação de fatores associados à família, aos pares, à comunidade e à escola que podem desempenhar papéis de risco e de proteção. No âmbito nacional e coletivo, dois marcos de pro posições governamentais em políticas pública na área são: a aprovação da lei que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), com medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e crimes associados 65, e a Política Nacional sobre o Álcool, sobre as medidas para redução do uso indevido de álcool, assim como a sua associação com a violência e a criminalidade66. Na esfera legal, o surgimento de algumas normas, assim como a aplicação e a modificação de outras, tem nitidamente o objetivo preventivo de redução da deman da do uso de SPA. Em nível nacional, as campanhas veiculadas nos maços de cigarro, a restrição dos pontos de venda de álcool nas estradas e a redução do limite legal de alcoolemia ao dirigir são exemplos claros dessa posição. Questões como a propaganda de bebidas alcoólicas ainda despertam discussões e demonstram claramente uma posição ambivalente da sociedade em relação ao álcool. O controle do comércio de bebidas alcoólicas também se mantém em um nível controverso, opondo os aspectos de saúde pública e os interesses da indústria67, um fenômeno que pode ser observado não ape nas no Brasil. Todas as medidas citadas, entretanto, devem ser avaliadas sob o ponto de vista da efetividade. Diversas revisões e metanálises demonstram que políticas de regulação sobre o comércio do álcool, como o preço e a disponibilidade, são efetivas para reduzir os danos relacionados ao álcool, assim como medidas legais para reduzir o beber e dirigir. Por outro lado, programas voltados para a educação escolar ainda não têm uma efetividade comprovada68 . Para um aprofundamento em programas de prevenção desenvolvidos para populações específicas adolescentes 69, comunidades70 e universitários71 , sugere-se a leitura dos artigos citados, já que a discussão dos mesmos fugiria ao escopo deste capítulo. Um modelo de prevenção que vem sendo debatido intensamente nos últimos anos é o de redução de danos. Esse modelo passou a ficar em evidência no fim da década de 1980 como uma resposta ao aumento da prevalên-
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cia da infecção pelo vírus da aids (HIV) em usuários de drogas injetáveis (UDI) em vários países do mundo. A tradicional dicotomia do "tudo ou nadà: que tem a total abstinência como meta necessária para a abordagem do usuário, vem sendo substituída por uma visão mais pragmática: "Se você não consegue parar de usar, use da maneira menos danosa possível': Ou seja, mesmo que o usuário não consiga deixar de usar, os profissionais de saúde podem ajudá-lo a diminuir a morbidade e a mortalidade relacionada ao consumo de drogas. Essa abordagem tem suas raízes em modelos de saúde pública com uma visão mais humanista e sem preconceitos. Contrasta, assim, com o modelo de abstinência total, que, segundo alguns autores, teria suas raízes na repressão e no paternalismo médico-religioso. As evidências sobre o uso do modelo de redução de danos na abordagem do consumo de drogas ainda não têm o mesmo consenso que o seu emprego como fator de prevenção do HIV em UDI. Entre esses "novos usos", a estratégia de redução de danos como abordagem do consumo excessivo de álcool, principalmente em adolescentes e universitários, é a que mais apresenta estudos e evidências de eficácia na literatura. Vários estudos controlados mostram que adolescentes e universitários submetidos à intervenção focada em discutir os riscos do uso excessivo (grande quantidade em pequeno espaço de tempo) mudam seu comportamento, assumindo uma postura mais "responsável" quanto ao uso de álcool, diminuindo episódios de embriaguez, brigas e acidentes 72 •
Tratamento psicoterápico: aspectos gerais Esta seção discutirá os aspectos gerais do tratamento psicoterápico das dependências, considerando que os conceitos aqui apresentados podem ser utilizados no tratamento de problemas relacionados ao uso de todas as substâncias. A chegada ao tratamento é um momento extremamente importante na construção de um vínculo com o paciente. A abordagem deve ocorrer de modo empático, desprovido de cobranças e discussões, em que o dia a dia do paciente deve ser organizado e seus progressos monitorados e reconhecidos. Para tanto, é necessário discutir com o paciente o conteúdo do seu discurso, com o intuito de ajudá-lo a se organizar e a buscar um posicionamento diante do que diz, evitando-se o confronto73 • A motivação do paciente para a mudança (promoção e manutenção da abstinência) deve ser avaliada já no primeiro encontro. O profissional de saúde é parte determinante para tal motivação e terá de ser hábil para vencer as resistências e a ambivalência do paciente. O modelo teórico sobre "estágios de mudançà' desenvolvido por Prochaska e DiClemente é de grande importância para que nos situemos na escolha da melhor abordagem para cada paciente74 . A escolha da intervenção deve respeitar
o estágio de motivação do paciente. Os estágios são descritos a seguir: 1) Pré-contemplação: o indivíduo não considera a mudança, provavelmente por não ver problema em seu consumo de substâncias psicotrópicas ou por não querer aceitar que terá de abrir mão dos efeitos oriundos do seu uso. 2) Contemplação: o indivíduo analisa de modo ambivalente a necessidade de mudança e a vontade de permanecer consumindo substâncias, provavelmente pesando os prós e os contras de ambos. 3) Preparação: o indivíduo considera a mudança necessária e está se preparando para fazê-la. 4) Ação: o indivíduo começa a implementar o pro cesso de mudança e, nessa fase, pode apresentar sintomas de abstinência ou fissura. 5) Manutenção: o indivíduo se envolve em estratégias previamente planejadas e as remodela de acordo com suas necessidades. A manutenção da abstinência é garantida a partir do cumprimento dessas estratégias. 6) Recaída: é parte normal do processo de mudança. Mais de 70% dos pacientes têm recaída antes do terceiro mês de abstinência. Retornam a algum dos estágios anteriores para novamente evoluir rumo à mudança. A recaída não significa fracasso do tratamento e é um momento de aprender com as circunstâncias que levaram ao uso, visando a evitar ou dificultar recaídas futuras. Essa avaliação do estágio de motivação é o ponto de partida para início do tratamento. A intervenção na motivação do paciente pode ser realizada por meio da entrevista motivacional (EM). Muitas vezes o indivíduo chega ambivalente ao tratamento, já que o comportamento de uso de substância traz diversos prejuízos, porém causa prazer. Partindo dessa premissa foi desenvolvida a técnica da entrevista motivacional, que leva em consideração o estágio de mo tivação do paciente e tem cinco princípios para estimular mudanças visando a alcançar e manter a abstinência. Os princípios básicos da EM são: 1) Expressar empatia. 2) Evidenciar a discrepância entre o comportamento atual do paciente e o que ele relata como meta e desejo. 3) Evitar discussões e confrontos. 4) Fluir com a resistência. 5) Estimular a autoeficácia, ou seja, estimular a crença da própria pessoa na sua habilidade de executar uma tarefa ou mudança. A EM é uma técnica importante no tratamento da dependência química, pois, além de ajudar a promover a abstinência, está ligada à maior adesão ao tratamen to7s. Além da EM, outras duas técnicas são utilizadas no tratamento da dependência de drogas: 1) Prevenção da recaída: a prevenção da recaída é uma técnica fundamentada nos modelos teóricos da te-
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rapia cognitiva, que visa a "ensinar" o indivíduo a reconhecer quais são as situações emocionais, cognitivas e ambientais que desencadeiam a vontade e o uso da substância76. Além disso, ajuda-o a desenvolver estratégias para lidar com essas situações estressaras e com a cadeia de decisões (que muitas vezes parecem irrelevantes durante o processo) que o levam à recaída. Por exemplo, o terapeuta e o cliente descobrem que "brigar com o chefe" é um fator de risco para a recaída, porém também percebem que, além disso, no dia da recaída o cliente tomou diversas decisões no trabalho que "levaram'' à briga com o chefe. Logo, a recaída ocorreu muito antes da briga com o chefe e do uso da substância. 2) Terapia cognitivo-comportamental (TCC): o objetivo da TCC é modificar padrões de pensamentos e comportamentos mal-adaptativos, por exemplo: o indivíduo que acredita que só consegue dormir após ingerir determinada quantidade de álcool ou que só consegue falar em público se usar cocaína. Isso é alcançado através da mescla de técnicas comportamentais e cognitivas, tais como identificação e modificação de pensamento automático, treino de habilidades sociais e de enfrentamento, resolução de problemas, manejo de ansiedade, entre outras 77• A abordagem do paciente dependente químico deve ser multidisciplinar. O envolvimento de diversos profissionais visa a ajudar o paciente a mudar os padrões de comportamento que o levam ao uso da droga, assim como seus processos cognitivos e seu funcionamento social. A avaliação do paciente pode envolver diversos profissionais da saúde, como médicos clínico e psiquiatra, psicólogos, terapeutas ocupacionais, educadores físicos, assistentes sociais e enfermeiros. Ajustamento familiar A família deve participar do tratamento. O dependente precisa de apoio para superar as dificuldades e estabelecer um novo modo de vida sem o uso de drogas. A família deve auxiliá-lo, estabelecendo regras que o ajudem a se afastar do risco de recaídas. A família deve também ser orientada quanto aos sinais precoces de recaída e aos limites a serem dados ao paciente. Metas do tratamento A abstinência total deve ser a meta, porém, por inúmeras razões, esta pode não ser obtida no início ou ao longo do tratamento. Apesar disso, o dependente ainda pode ter benefícios ao permanecer no tratamento, com a minimização dos prejuízos psicossociais, o tratamento de comorbidades clínicas e psiquiátricas e outras condições ligadas à dependência de substâncias. Além disso, um ambiente seguro e não punitivo aumenta as chances de adesão desse paciente ao tratamento e, consequentemente, de sua abstinência no futuro.
Minicaso Clínico Identificação: GB. 27 anos. sexo masculino. solteiro. sem filhos. natural e procedente de São Bernardo do Campo, brasileiro. funileiro. católico não praticante. Queixa e duração: desmaios. tonturas e visão turva ao acordar há cinco anos. História da moléstia atual: o paciente começou a utilizar cocaína (primeira substância) aos 12 anos. Desde então. achou prazeroso e começou a fazer uso todos os dias com os amigos. aumentando gradualmente a dose. No in ício "dava um tiro antes da aula para sentir um baratinho". Aos 13 anos experimentou maconha e tabaco. mas não gostou do primeiro (fu mou duas ou três vezes). Aumentou o uso de tabaco gradualmente. chegando ao consumo diário. Aos 14 anos experimentou cola-de-sapateiro e também não gostou. Também nessa idade. utilizou pela primeira vez o álcool. Tomava Fanta® com cachaça com os amigos. mas não tolerava grandes doses. Nessa época já utilizava cocaína em doses maiores. "virava noites cheirando", não sabendo nem ao certo quanto já chegara a cheirar. "Cheirava o que tinha na roda." Aos 15 anos. teve contato com o crack. "Na primeira vez que fumei. já gostei:' Começou a preferir o crack à cocaína (pó). pois achava que o nariz ficava escorrendo muito depois do uso do segundo. Também achava que o crack dava uma sensação diferente: "mais rápida. mais forte e não ficava com a face adormecida .. :·. A utilização de álcool também se modificou: "o lance do álcool é o seguinte: depois dos 18, só dou a primeira tragada (crack) depois de beber. fico mais louco quando uso os dois juntos, e o álcool relaxa quando não tem mais crack ou farinha". Há seis anos tem bebido todos os dias. Chegou a beber 2 litros de cachaça por dia. Há três anos vem se sentindo estranho: tem tontura. fraqueza e visão turva ao acordar. o que melhora "bebendo cachaça". Teve duas convulsões em dias que ficara sem beber. Antecedentes pessoais: andou/falou mais rápido que os irmãos. Tinha muita facilidade na escola. mas era muito bagunceiro e inqu ieto. Não conseguia ficar parado. Fratura de tíbia (acidente de motocicleta durante intoxicação de álcool) há seis anos. tendo de utilizar fixador externo durante seis meses. Nunca foi internado. Nega problemas com a Justiça. Antecedentes familiares: o avô materno foi dependente de álcool e morreu de cirrose hepática. Primo dependente de álcool. História social: mora com os pais e o irmão mais novo (este último vai casar). Está passando por dificuldades financeiras (ganha R$ 500,00/mês). Seu pai o ajuda constantemente. Namorou dos 14-23 anos. A namorada o ajudava muito ("Teria usado mais drogas sem ela"). No momento. não consegue estabelecer relacionamentos longos. Exame psíquico: vígil; orientado; eutímico; afeto ressoante; pensamento organizado; sem sinais alucinatórios; atenção e memória preservadas; volição diminuída; crítica de morbidez baixa; juízo de realidade preservado. Exames laboratoriais: normais (função hematológica. hepática. renal e tireoidiana). Hipóteses diagnósticas (DSM-IV):
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Eixo 1: dependência de múltiplas drogas (cocaína/álcool/tabaco)/TDAH na infância. Eixo li: Sem diagnósticos. Eixo 111: Sem doenças clínicas associadas. Eixo IV: Dificuldades financeiras, relação instável com os pais e o 1rmao ma1s novo. Eixo V: Avaliação global do funcionamento - 55. '
N
'
b) A cocaína, nesse caso, evitou um quadro mais grave de abstinência do álcool, pois seu efeito estimulante é protetor. c) O uso precoce de drogas deixou o paciente menos vulnerável ao desenvolvimento de dependência. d) Convulsões e tolerância são sinais de dependência de álcool neste caso clínico. e) O paciente deve estar mentindo, pois o álcool e a nicotina sempre são as primeiras drogas a serem usadas.
Questões 1. Em relação à maconha, assinale a alternativa correta : a) b) c) d)
Não é associada à dependência. É a segunda droga ilícita mais consumida no Brasil. Não é associada ao desencadeamento de sintomas psicóticos. O seu consumo é associado à piora de coordenação motora, representando risco à condução de veículos. e) O uso da maconha não é associado a crises de pânico.
2. Assinale a alternativa incorreta para a dependência de cocaína : a) É a droga mais consumida no Brasil. b) Não existe tratamento farmacológico aprovado para a dependência de cocaína. c) Casos de dor torácica em adultos jovens podem estar relacionados a complicações cardiovasculares decorrentes da intoxicação por cocaína. d) O modafinil está sendo estudado para o tratamento de dependência de cocaína, porém, ele aumenta a dopamina no núcleo accumbens e apresenta potencial de abuso. e) A cocaína possui propriedades que tornam possíveis o desenvolvimento de vacina como estratégia terapêutica.
3. Sobre os opioides, é incorreto afirmar que: a) A metadona é um opioide de meia-vida longa. b) A intoxicação aguda por opioides pode se manifestar por miose, arreflexia e taquicardia. c) O edema pulmonar da intoxicação por opioide não deve ser manejado com diuréticos. d) A morfina é um opioide sintético que pode ser administrado por via oral. e) A clonidina é uma alternativa farmacológica para o tratamento da dependência de opioides. Em relação às c/ub drugs assinale a alternativa incorreta: São drogas sintéticas utilizadas em contextos recreativos. A ketamina é um anestésico com propriedades dissociativas. O uso do GHB não é associado a risco de morte. O LS D é o mais potente alucinógeno conhecido e o seu efeito é produto de sua ação no sistema serotoninérgico. e) O Rohypnol é um benzodiazepínico de prescrição médica, mas com poder de abuso.
4. a) b) c) d)
5. Assinale a alternativa correta: a) No minicaso clínico, o uso de álcool e cocaína deve ter precedido o diagnóstico de TDAH, já que adolescentes que usam drogas ficam mais desatentos e agitados.
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695
696
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
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53 SÍNDROMES DECORRENTES DO USO DE SUBSTÂNCIAS
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697
Depressão
Doris Hupfeld M oreno Frederico Navas Demétri o Rica rdo Alberto M oreno
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 698 Etiologia e fisiopatologia, 699
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Quadro clínico e diagnóstico, 701 Subtipos depressivos, 701 Depressão melancólica, 702
1. Entender a importância dos transtornos depressivos e seu impacto na sociedade. 2. Compreender seu quadro clínico, com seus sintomas psicológicos e orgânicos.
Depressão atípica, 702 Depressão sazonal, 703
3. Saber que as depressões são condições médicas tratáveis.
Depressão puerperal (pós-parto), 703
4. Entender qual tipo de tratamento é necessário, e que seu uso é
Depressão psicótica, 703 Distimia, 703
contínuo a fim de evitar recaídas.
Depressão bipolar, 704 Diagnóstico diferencial, 704 Comorbidades, 705 Comorbidades clínicas, 705 Comorbidades psiquiátricas, 705 Tratamento, 706 Qual antidepressivo escolher?, 707 Considerações finais, 708 Minicaso clínico, 708 Questões, 708 Referências bibliográficas, 709
Introdução As depressões são síndromes de etiologia variada, cujo termo designa um sintoma, uma síndrome ou um transtorno mental. Os transtornos depressivos (TD) são condições médicas sérias, potencialmente letais, cujo quadro clínico é dominado por humor patológico e alterações comportamentais, cognitivas e vegetativas. Sem diagnóstico e tratamento adequados causam sofrimento importante e incapacitam para o trabalho e a vida social e familiar. Neste capítulo, o termo depressão designará os transtornos depressivos.
São elevadas as taxas de TD estimadas em estudos epidemiológicos na população geral, com prevalências-vida de depressão maior entre 15,1% e 16,8% e distimia entre 4,3% e 6,3%, caracterizando-os como problemas de saúde pública 1·2 (Tabela I). Em nosso meio, a prevalência-vida da depressão foi estimada em 16,8% e da distimia em 4,3% utilizando critérios diagnósticos da 1oa edição do Código Internacional das Doenças (CID -10) 3•4 . Em estudo mais recente com amostra de 5.037 sujeitos da Grande São Paulo determinaram-se taxas de 10,4% de depressão maior em 12 meses, adotando critérios da 4a edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, da Associação Psiquiátrica Americana (DSM-IV) 5• 6 • A depressão acomete duas a três vezes mais mulheres que homens, principalmente na idade fértil, mas essa diferença se reduz em estudos com amostras mais jovens. Entre as hipóteses envolvendo a disparidade postulamse diferenças hormonais, estressares psicossociais e parto10. A idade média de início em adultos da população geral variou de 27,2 anos em países em desenvolvimento e 28,9 anos em países desenvolvidos 6 (Tabela II), e atualmente existe uma tendência a idades de início mais precoces6•9 . Por exemplo, 40% dos indivíduos relatam sua
54 DEPRESSÃO
Tabela I Prevalências-vida de depressão maior (DM) e distimia em estudos da comunidade (%) Estudos
Amostra (n) 0
Diagnóstico/ entrevista
DM
Distimia 4,5
HUNGRIN
2.953
DSM IIIR/DIS
15,1
NEMESIS8
7.076
DSM IIIR/CIDI
15,4
6,3
EAC- SP2
1.464
CID 10/CIDI
16,8
4,3
NCS-R EUA9
9.282
DSM IV/CIDI
16,6
4,4
NOTA: EAC-SP: Estudo de Área de Captação, São Paulo; NCS-R: National Comorbidity Survey Replication; NEMESIS: The Netherlands.
primeira depressão antes dos 20 anos de idade, 50% entre 20 e 50 anos, e 10% após os 50 anos. Além da elevada prevalência, as depressões são doenças crônicas, frequentemente persistentes e incapacitantes (Tabela II) 6 •9 • Cerca de metade dos deprimidos apresenta um período prodrômico antecedendo o primeiro episódio depressivo, caracterizado por sintomas ansiosos e depressivos leves. Sem tratamento um episódio leve a moderado dura 4 a 30 semanas e um grave de 6 a 8 meses; 25% destes se mantém sintomáticos por mais de 12 meses; episódios tratados duram 3 meses, mas a suspensão precoce do antidepressivo pode precipitar recaídas. Em torno de 25% dos deprimidos recidiva dentro de 6 meses, 58% em 5 anos e 85% no período de 15 anos seguintes a uma recuperação. Além disso, deprimidos que desenvolveram 2 episódios têm 70% de chance de apresentar um terceiro e estes passam a ter risco de 90% de nova depressão. À medida que a doença progride, o intervalo entre os episódios se encurta e a gravidade aumenta. Ao longo de 20 anos, as recorrências depressivas acontecem de 5 a 6 vezes. Uma parcela significativa cronifica, alternando sintomas de gravidade e duração variáveis (Tabela li). Um terço permanece parcial ou totalmente sintomático, os demais se recuperam e 5 a 10% desenvolvem mania ou estado misto. Caso sejam corretamente diagnosticados e adequadamente tratados, o prognóstico dos TD é bom e as chances de - sao - maiOres. . recuperaçao Este tratamento é fundamental para a prevenção do suicídio, estimado em 15% dos pacientes 11 , mas a distinção diagnóstica com o transtorno bipolar 12•13 é determinante para o cuidado adequado, uma vez que evidências recentes têm apontado como preditores de tentativas de suicídio o transtorno bipolar, particularmente os estados mistos, que se caracterizam por depressão associada a agitação, aceleração de pensamentos, ansiedade, agressividade e impulsividade 14 • Neste capítulo serão abordados aspectos etiológicos, quadro clínico, diagnóstico e tratamento. Os TD são
Tabela 11 Características epidemiológicas e clínicas da depressão maior nos 12 últimos meses em 89.750 adultos da população geral de 18 países•. desenvolvidos e em desenvolvimento. Estudos do World Mental Health Survey Características
Países desenvolvidos
Países em desenvolvimento
Prevalência em 12 meses (%)
5,5
5,9
Idade média de início (anos)
28,9
27,2
Número médio de episódios na vida (n)
14,8
10,9
Persistência e gravidade em 12 meses Duração média em 12 meses
27,0
26,0
Clinicamente grave (%)
33,9
41,8
Comprometimento ocupacional grave (%)
65,8
49,3
Médias de dias incapacitado (n)
48,3
25,3
Fonte: Kessler et ai., 201 O; 18 países•, 1O classificados pelo Banco Mundial como desenvolvidos (n= 52.485): Bélgica, França, Alemanha, Israel, Itália, Japão, Holanda, Nova Zelândia, Espanha e Estados Unidos; 8 em desenvolvimento (n=37.265): Brasil, Colômbia, Índia, Líbano, México, África do Sul, Ucrânia e Shenzhen, na China.
classificados pela CID-1 O (Quadro I) e pela 4a edição Revisada do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, da Associação Psiquiátrica Americana (DSM-IV-TR)\ os mais utilizados na literatura psiquiátrica científica.
Etiologia e fisiopatologia Postula-se que as depressões resultariam da complexa interação de processos biológicos (resposta ao estresse, fatores neurotróficos), psicológicos (personalidade e relacionamentos pessoais), ambientais (dieta, álcool, ritmos biológicos) e genéticos. Considerando as depressões como sendo heterogêneas, diferentes etiologias estariam embasando o processo e a combinação de múltiplos fatores desencadearia a doença em pacientes biologicamente vulneráveis 15 . Durante 50 anos prevaleceu a teoria monoaminérgica, segundo a qual a depressão era causada pela falta ou desequilíbrio dos neurotransmissores noradrenalina, serotonina e dopamina no sistema límbico, que os antidepressivos corrigiam 15 • Entretanto, havia uma latência de 2 semanas para a ação terapêutica e o efeito sobre os neurotransmissores ocorria agudamente. Avanços na biologia molecular possibilitaram identificar sistemas de mensageiros secundários (adenil-ciclase, por exemplo) e peptídeos neuroativos em uma cascata de alterações cerebrais após administração crônica dos antidepressivos, envolvidos nos processos de prazer, recompensa e alteração de ritmos circadianos.
699
700
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Quadro I Classificação dos transtornos do humor (afetivos) depressivos, segundo a CI D- 1O (F30-F39)
F31 Transtorno afetivo bipolar F31.0 Transtorno afetivo bipolar, episódio atual hipomaníaco F31.1 Transtorno afetivo bipolar, episódio atual maníaco sem sintomas psicóticos F31.2 Transtorno afetivo bipolar, episódio atual maníaco com sintomas psicóticos F31.3 Transtorno afetivo bipolar, episódio atual depressivo leve ou moderado .30 Sem sintomas somáticos .31 Com sintomas somáticos F31.4 Transtorno afetivo bipolar, episódio atual depressivo grave sem sintomas psicóticos F31.5 Transtorno afetivo bipolar, episódio atual depressivo grave com sintomas psicóticos F31.6 Transtorno afetivo bipolar, episódio atual misto F31.7 Transtorno afetivo bipolar, atualmente em remissão F31.8 Outros transtornos afetivos bipolares F31.9 Transtorno afetivo bipolar, não especificado F32 Episódio depressivo F32.0 Episódio depressivo leve .00 Sem sintomas somáticos .01 Com sintomas somáticos F32.1 Episódio depressivo moderado .1 O Sem sintomas somáticos .11 Com sintomas somáticos F32.2 Episódio depressivo grave sem sintomas psicóticos F32.3 Episódio depressivo grave com sintomas psicóticos F32.8 Outros episódios depressivos F32.9 Episódio depressivo, não especificado F33 Transtorno depressivo recorrente F33.0 Transtorno depressivo recorrente, episódio atual leve .00 Sem sintomas somáticos .01 Com sintomas somáticos F33.1 Transtorno depressivo recorrente, episódio atual moderado .1 O Sem sintomas somáticos .11 Com sintomas somáticos F33.2 Transtorno depressivo recorrente, episódio atual grave sem sintomas psicóticos F33.3 Transtorno depressivo recorrente, episódio atual grave com sintomas psicóticos F33.8 Transtorno depressivo recorrente, atualmente em remissão F33.9 Outros transtornos depressivos recorrentes, não especificado F34 Transtornos persistentes do humor (afetivos) F34.0 Ciclotimia F34.1 Distimia F34.8 Outros transtornos persistentes do humor (afetivos) F34.9 Transtorno persistente do humor (afetivos). não especificado F38 Outros transtornos do humor (afetivos) F38.0 Outros transtornos únicos do humor (afetivos) .00 Episódio afetivo misto F38.1 Outros transtornos recorrentes do humor (afetivos) .1 OTranstorno depressivo breve recorrente F38.8 Outros transtornos do humor (afetivos) especificados F39 Transtorno do humor (afetivo) não especificado
Além disso, ocorrem desregulação dos eixos endócrinos hipotálamo-hipófise -adrenal (HHA), tireoidiano e ligado ao hormônio de crescimento, anormalidades do sono, desajuste de ritmos circadianos, anormalidades do sistema imunológico e alterações da morfofisiologia ce-
rebral 15 . Evidências clínicas e laboratoriais sugerem que a depressão esteja associada a uma hiperativação do eixo HHA, o que tornaria o indivíduo mais sensível aos eventos vitais. A hiperatividade do eixo HHA foi evidenciada em torno de metade dos deprimidos e pode ser causada pelo estresse crônico que reduz a inibição do eixo e se correlacionaria com anormalidades funcionais ou apoptose dos neurônios do hipocampo 15 • O estresse crônico também reduz a expressão do fator neurotrófico derivado do cérebro, em inglês BDNF, no hipocampo. Entre outros, o BDNF estimula a plasticidade sináptica em várias regiões do cérebro. Polimorfismos nos genes do BDNF estão relacionados ao transtorno bipolar, mas o tratamento crônico com antidepressivos aumenta níveis de BDNF e eleva a resistência ao estresse em animais 15 • Estudos de neuroimagem cerebral demonstraram redução do volume hipocampal em de primidos, associada à região responsável pela neurogê nese em adultos (restrita à zona subventricular e subgranular do hipocampo), reforçando sua importância no início da depressão e no seu tratamento. O uso crônico de antidepressivos aumenta a neurogênese e estimula a sobrevivência de novos neurônios . Há muito se correlacionaram alterações dos ritmos circadianos com transtornos do humor. Por exemplo, períodos insuficientes de luz podem ocasionar depressão sazonal 16; além disso, regulação anormal do ciclo sono/vigília, temperatura corporal, pressão arterial e outras funções endócrinas controladas pelo relógio interno podem ser sintomas depressivos proeminentes 16. Existem ainda associações entre as monoaminas e o ritmo circadiano: a síntese e/ou secreção de neurotransmissores estão sob influência de ritmos circadianos, por exemplo, conferindo ritmicidade ao transportador de dopamina e à monoamino-oxidase A 15 • Isto explicaria porque a regularização dos ritmos biológicos beneficia o deprimido. A contribuição de múltiplos fatores genéticos na manifestação da depressão foi estimada em 40% a 50%, sobrando espaço para a interferência de fatores socioambientais. Fatores ambientais são filtrados por meio da atividade de genes que conferem diferentes suscetibilidades a depressão entre indivíduos. Os mais procurados pelos geneticistas são genes que atuam na resposta individual ao estresse, como polimorfismos no gene transportador de serotonina, encontrado em humanos 15 . Resultados díspares nos estudos, contudo, suportam a investigação de todo genoma em doenças de natureza poligênica, como a depressão. Dentre os fatores de risco ambientais, destacam-se o uso de substâncias psicoativas (álcool, drogas, inibidores do apetite, antidepressivos), alteração dos ritmos biológicos (privação de sono) e eventos adversos precoces, como perda parenta!, percepção de falta de carinho dos pais, baixo suporte social e abuso físico e/ ou sexual na in-
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fância. Sabe-se que eventos adversos na infância estão associados a alterações persistentes nos sistemas de resposta a estresse, envolvendo principalmente o fator de liberação de corticotropina e o eixo HHA, elevando a vulnerabilidade a transtornos afetivos e ansiosos na idade adulta. Contudo, deve-se ter em mente que a psicopatologia dos transtornos do humor graves compromete cuidados maternos elevando o estresse na prole, por exemplo, por abuso físico ou negligência. Transtornos depressivos podem ser desencadeados por fatores psicossociais, por exemplo, perda do emprego, de um ente querido, separações. É preciso investigar se os prejuízos não foram resultado da depressão e não os fatores causais. A depressão pode ocorrer em qualquer tipo de personalidade.
Quadro clínico e diagnóstico Considerando depressão como um transtorno de pressivo (Quadro II), chamada depressão maior no DSMIVTR, uma série de sintomas devem estar presentes para a realização do diagnóstico. Dentre as manifestações clínicas, é importante identificar 3 aspectos nucleares, que independem da gravidade da depressão: humor depressivo e/ou falta de interesse e motivação com prejuízo da capacidade hedônica, queda do ânimo ou fadiga, devida à redução nos níveis de energia, e lentificação psicomotora 17 • O humor é depressivo ou irritável com anedonia (prejuízo da capacidade de sentir alegria e prazer) e perda da reatividade a estímulos positivos, podendo haver predomínio de apatia no lugar de humor sofrido. Os afetos são de cunho negativo, representados por sentimentos de baixa autoestima, culpa, desesperança, burrice, tristeza, apatia, solidão, ansiedade, tédio, vazio, etc. Pode predominar apatia e indiferença a tudo ou sofrimento com angústia e desespero. A depressão compromete sobremaneira funções cognitivas. O pensamento costuma se lentificar, dificultando o raciocínio, a capacidade de concentração (diminui a atenção) e consequentemente a memória (fixação e evocação de acontecimentos). São comuns a latência de respostas e a sensação de "brancos" no raciocínio. As idéias são enviesacias para o polo negativo, congruentes com o humor depressivo, por exemplo, de pessimismo, culpa, falta de sentido, ruína, fracasso, desesperança, menosvalia, doença, morte e suicídio. Estas ideias caracterizam-se por um constante ir e vir durante o dia, as chamadas ruminações depressivas: preocupações normais viram tormentos e criam-se problemas na mente. A psicomotricidade fica lentificada e há redução de energia mental e física. As queixas são de fadigabilidade, preguiça, sono (sensação de torpor), modorra e necessidade de mais esforço para realizar atividades. O oposto deste estado, inquietação ou agitação psicomotoras, ocor-
re na depressão com sintomas ansiosos ou na depressão bipolar. Estudos recentes dão conta de que agitação psicomotora seria uma característica de estados mistos do transtorno bipolar, quando sintomas maníacos se superpõem à depressão 18 , 19 . Independente da redução de energia, prejuízos na volição ficam evidentes por meio da diminuição da vontade, do ânimo, e da falta de iniciativa para realizar atividades habituais. O deprimido costuma manter a crítica acerca da doença, mas distorce a realidade para o polo negativo. Eventos do passado, do presente e do futuro são interpretados de modo pessimista e eventos positivos são desvalorizados. Na depressão psicótica, as ideias depressivas são amplificadas a ponto de se tornarem delirantes (p. ex., delírios de pecado, pobreza, culpa, doença, etc.), quando deixam de ser passíveis de argumentação lógica. Neste caso, são frequentes as alterações de sensopercepção, como alucinações auditivas e visuais. Verdadeiras depressões se associam a alterações nos ritmos biológicos e a sintomas vegetativos 16 . Ao longo do dia o humor se altera obedecendo a uma variação circadiana, com pioras matutinas seguidas de melhora após algumas horas, ou pioras vespertinas. Alterações de apetite e peso podem ser para mais ou para menos. A insô nia caracteriza-se pela falta de um sono reparador, independente de ser inicial, intermediária, terminal ( despertar precoce, duas horas antes do horário habitual) ou hipersônia. Aumento de apetite e hipersônia acontecem na depressão atípica. Frequentemente surgem sintomas físicos ou dolorosos, além de diminuição ou perda do desejo sexual, disfunção erétil ou ejaculação rápida.
Subtipos depressivos As depressões são condições clínicas heterogêneas cuja apresentação clínica e curso são variáveis. Ainda que subsindrômicos, se os sintomas depressivos forem crônicos podem causar morbidade e prejuízo funcional significativos 6 • Os subtipos depressivos são classificados de acordo com a sintomatologia (melancólica ou somática, psicótica, atípica), a polaridade (bipolar ou unipolar), o curso (recorrente, crônico), fatores desencadeantes (sazonal, puerperal) e gravidade (leve, moderada ou grave). Os principais são descritos tanto na CID- 1O como no DSM-IV-TR, como a depressão sazonal e a atípica. Ambos os sistemas diagnósticos definem a gravidade como segue: depressão leve não incapacita, mas leva a sofrimento importante; depressão moderada afeta parcialmente o desempenho profissional ou doméstico e a grave conduz à incapacitação social e/ou profissionaP,4. A seguir são apresentados os tipos mais importantes; especificadores de depressão maior segundo o DSM-IV-TR encontramse no Quadro III. Via de regra estes se aplicam ao episódio atual, pois o mesmo deprimido pode apresentar diferentes subtipos depressivos ao longo da vida. Tais ca-
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Quadro 11 Critérios diagnósticos de depressão maior, segundo o DSM-IV-TR
Quadro 111 Especificadores de depressão maior, segundo o DSM-IV-TR.
No mínimo cinco dos sintomas seguintes estiveram presentes durante o mesmo período de duas semanas e representam uma alteração a partir do funcionamento anterior; no mínimo um dos sintomas é (1) humor deprimido ou (2) perda de interesse ou prazer.
• Leve: poucos sintomas estão presentes além daqueles necessários para fazer o diagnóstico, e o indivíduo consegue funcionar, apesar de lhe exigir esforço extra;
Nota: Não incluir sintomas nitidamente devidos a uma condição médica geral, ou delírios e alucinações incongruentes com o humor. (1) Humor deprimido a maior parte do dia, quase todos os dias, indicado pelo relato subjetivo (ex. diz sentir-se triste, vazio) ou observações feitas por terceiros (ex. chora muito). Nota: em crianças e adolescentes pode ser humor irritável. (2) Acentuada diminuição do interesse ou prazer em todas ou quase todas as atividades diárias, na maior parte do dia, quase todos os dias (Indicado pelo relato subjetivo ou observações de terceiros). (3) Perda ou ganho significativo de peso sem estar de dieta (p. ex., mais de 50fo do peso corporal em 1 mês), ou aumento ou diminuição do apetite quase todos os dias. Nota: Em crianças, considerar incapacidade de apresentar os ganhos de peso esperados. (4) Insônia ou hipersônia quase todos os dias. (5) Agitação ou retardo psicomotor quase todos os dias (observáveis pelos outros, não meramente sensações subjetivas de inquietação ou de estar mais lento). (6) Fadiga ou perda de energia quase todos os dias. (7) Sentimentos de inutilidade ou culpa excessiva ou inadequada (que pode ser delirante), quase todos os dias (não meramente autorrecriminação ou culpa por estar doente). (8) Capacidade diminuída de pensar ou concentrar-se, ou indecisão, quase todos os dias (por relato subjetivo ou observação de outros). (9) Pensamentos de morte (não apenas medo de morrer), ideação suicida recorrente sem um plano específico, tentativa de suicídio ou plano específico de cometer suicídio.
racterísticas clínicas são importantes na escolha do melhor tratamento antidepressivo, como veremos adiante.
Depressão melancólica A depressão melancólica do DSM-IV-TR era chamada de endógena no passado, porque sua sintomatologia era considerada típica das depressões sem causa psicossocial, não biologicamente determinadas; ela equivale à depressão "com características somáticas" da CID-1O. Caracteriza-se por: 1) Perda de interesse ou prazer em atividades habitualmente agradáveis. 2) Humor depressivo não reativo a estímulos prazerosos. 3) Tristeza de qualidade distinta da normal (diferente do luto). 4) Sentimentos de culpa. 5) Insônia terminal (2 horas ou mais antes do habitual).
• Moderado: existe comprometimento das funções e incapacitação parcial; • Grave, sem sintomas psicóticos: todos os sintomas estão presentes e existe importante comprometimento funcional; • Grave, com sintomas psicóticos: presença de delírios ou alucinações concomitante à síndrome depressiva grave. • Características catatônicas: comportamentos ou movimentos estranhos, como imobilidade, atividade motora excessiva despropositada, rigidez ou adoção de posturas bizarras, imitação de gestos e palavras; • Episódio único/recorrente: um primeiro episódio é considerado "único", episódios subsequentes são "recorrentes". O transtorno depressivo recorrente da CI D- 1O (F33) é aquele em que o indivíduo apresenta dois ou mais episódios ao longo da vida; • Remissão parcial/completa: há remissão completa quando ocorre ausência de sintomas por pelo menos 2 meses. Considera-se remissão parcial quando não se preenchem todos os critérios para depressão maior, ou não existem mais sintomas, mas ainda não passaram 2 meses; • Crônica: a pessoa mantém sintomatologia preenchendo critérios de depressão maior por pelo menos 2 anos.
6) Piora matutina. 7) Acentuada diminuição de apetite, perda de peso. 8) Retardo ou agitação psicomotores.
Convencionou-se realizar o diagnóstico na presença de pelo menos 1 dos 2 primeiros e 3 dos sintomas seguintes no período mais grave do episódio atual de hu mor. A depressão melancólica afeta indivíduos mais velhos, sem evidentes fatores desencadeantes e sem distúrbios pré-mórbidos de personalidade; pode apresentar sintomas psicóticos, mais frequentes em deprimidos internados. Diversas alterações laboratoriais foram encontradas nas depressões com características melancólicas: aumento do cortisol basal, não supressão de dexametasona, redução da latência do sono REM, entre outros4 • Classicamente, as depressões melancólicas respondiam melhor a antidepressivos tricíclicos (ADTs) e eletroconvulsoterapia (ECT) e não às psicoterapias.
Depressão atípica Na depressão atípica, verificam-se inversão dos sintomas vegetativos típicos, com 1) aumento de apetite e/ou ganho de peso e 2) hipersônia (pelo menos 10 horas ao dia ou 2 horas a mais que o habitual), além de 3) falta de energia acentuada (sensação de exaustão, enorme cansaço, pernas pesadas), 4) reatividade do humor (capacidade de se alegrar frente a eventos positivos) e 5) padrão persistente de sensibilidade à rejeição interpessoal4 • Sintomas
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atípicos, principalmente aumento de apetite e hipersônia, predominam no sexo feminino e são mais comuns em deprimidos bipolares 19 • Estudo populacional acerca das características do espectro bipolar logrou distinguir sujeitos com sintomatologia maníaco -depressiva de deprimidos com base na presença de sintomas atípicos e risco de suicídio 12•13 • Uma das grandes diferenças observada na comparação com a depressão melancólica foi o padrão de resposta a antidepressivos; positiva com inibidores da monoamino -oxidase (IMAOs) e inibidores seletivos de re captação de serotonina e negativa com antidepressivos tricíclicos.20
Depressão sazonal A evidência mais robusta das anormalidades dos ritmos biológicos é a depressão sazonal, caracterizada pela ocorrência de episódios depressivos em determinadas estações do ano, mais comumente no início do outono e do inverno, com remissão na primavera e no verão4 . Sua prevalência foi estimada em 1% a 10% das depressões21 e é comum no transtorno bipolar, em que (hipo)manias e depressões se repetem em determinadas estações a cada ano 16 . Os transtornos do humor sazonais provavelmente resultam da falha na adaptação à mudança na duração do fotoperíodo (1 dia) que acompanha a mudança das estações, levando a um desajuste nos ritmos circadianos 16 • Ocorre predominantemente em mulheres e os sintomas atípicos (hipersônia, hiperfagia, letargia, ganho de peso e avidez por carboidratos) são frequentes\ sugerindo tratar-se de um subtipo depressivo bipolar 13 . Respondem ao tratamento com fototerapia e antidepressivos.
de cunho negativo (p. ex., culpa) e variação circadiana do humor 22 • À diferença do que ocorre na esquizofrenia, os sintomas psicóticos são mais leves, mas assumem importante significado clínico no deprimido, que frequentemente requer internação, dada a confusão mental e a incapacitação. Por exemplo, alucinações, desconfiança, paranoia, desorganização conceitual, mas também o humor depressivo, a ansiedade, e hipocondria são mais frequentes que na depressão não psicótica. Os delírios podem ser congruentes ou incongruentes com o humor. Os primeiros comumente são de inadequação pessoal, culpa, punição merecida, niilismo, ruína financeira ou moral, morte ou doença; delírios incongruentes são mais raros e de temática paranoide, ou de controle. As alucinações geralmente são auditivas (vozes acusatórias), mas podem ser visuais, de conteúdo desagradável (visões do próprio túmulo, de pessoas mortas etc.); muitas vezes alterações sensoperceptivas se limitam à sensação de ouvir barulhos na casa ou chamar seu nome, ou são ilusões (sensação de ver vultos, por ex.). Deprimidos psicóticos relatam mais história familiar de depressão unipolar e transtorno bipolar, e há maior risco de serem bipolares22 • Seu comprometimento foi observado em testes neuropsicológicos: comparando com deprimidos não psicóticos, exibem maior dificuldade no processamento, codificação e manipulação de novas informações, e, além disso, mais déficits cognitivos na memória verbal, funções executivas e velocidade psicomotora. O tratamento deve ser incisivo com antidepressivos de amplo espectro de ação (p. ex., ADT, venlafaxina), em doses altas associados a antipsicóticos; nestes casos também está indicada ECT 17 •
Distimia Depressão puerperal (pós-parto) Desenvolve-se nas primeiras quatro semanas após o parto, via de regra em primíparas, mas frequentemente a depressão teve início durante a gestação 17 . Fatores psicossociais desempenham um papel importante e devem ser endereçados. Os sintomas requerem tratamento medicamentoso, caso comprometam os cuidados maternos. Afeta de 10 a 15% das mães e mulheres com histórico de depressão maior têm risco de 25 a 50% de exibirem novo episódio 17 • Distingue-se do blues puerperal, um quadro transitório e benigno dos primeiros 7 a 10 dias pós-parto, e da psicose puerperal. Esta condição rara é um transtorno bipolar grave em mais de 90% dos casos e o tratamento medicamentoso incisivo ou com eletroconvulsoterapia (ECT) estão indicados.
Depressão psicótica Em torno de 15 a 19% das depressões são psicóticas. Os sintomas depressivos são mais graves, especialmente as alterações psicomotoras (lentificação e agitação), ideias
A distimia afeta em torno de 5% da população geral ao longo da vida, principalmente as mulheres (Tabela I) 6 -8. Incluída na CID- 10 como "transtorno do humor persistente': é um estado depressivo de intensidade leve e crônico (duração> 2 anos), marcado por sentimentos frequentes de insatisfação e pessimismo (Quadro IV). Seus precursores conceituais foram a personalidade depressiva e a depressão neurótica, entretanto, como a resposta a antidepressivos e os achados laboratoriais (alterações no EEG de sono, alterações do eixo HHA) eram semelhantes aos encontrados na melancolia, foi incluída nos transtornos do humor3•4 . Além disso, mais de 95% dos pacientes com distimia desenvolverão algum episódio depressivo ao longo da vida e não foi encontrada distinção clínica entre distimia e depressão maior23•24 . Sua cronicidade implica maior morbidade e prognóstico ruim, inclusive devido à pior resposta a antidepressivos. Ela também faz com que o distímico não se considere doente, e atribua os sintomas à sua personalidade. São comuns letargia, falta de iniciativa e ânimo (piores pela manhã), anedonia, dificuldade de concentração, sentimentos de inadequação e baixa autoesti-
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Quadro IV Critérios diagnósticos de distimia do DSM-IV-TR
Quadro V Características sugestivas de bipolaridade na depressão
A. Humor deprimido a maior parte do dia, na maioria dos dias, indicado por relato subjetivo ou observação feita por terceiros, pelo período mínimo de 2 anos. Nota: em crianças e adolescentes, o humor pode ser irritável, com duração mínima de 1 ano. B. Presença. enquanto deprimido, de duas (ou mais) das seguintes características: apetite diminuído ou hiperfagia insônia ou hipersônia baixa energia ou fadiga baixa autoestima fraca concentração ou dificuldade em tomar decisões sentimentos de desesperança
• Idade de início precoce (antes dos 25 anos); • Depressão com sintomas atípicos e depressão psicótica; • Depressão puerperal; • Início e término abrupto do episódio depressivo; • Episódios depressivos breves (< 3 meses); • Depressão recorrente; • Retardo psicomotor importante; • Sazonalidade; • História familiar de TB em parente de JO grau; • Temperamento ciclotímico ou hipertímico; • Mania ou hipomania induzidas por antidepressivo; • Perda de efeito antidepressivo (resposta aguda, mas não profilática); • Falha de resposta a pelo menos três ensaios adequados com antidepressivos;
ma. Sintomas físicos e alterações psicomotoras dificilmente ocorrem. Os pacientes queixam-se de mau humor, desânimo e infelicidade. Geralmente eles têm sensibilidade aumentada às situações potencialmente problemáticas ou desagradáveis, que pioram a sintomatologia. Por conta da cronicidade, o tratamento deve durar anos.
Depressão bipolar Depressões costumam ser a apresentação inicial do transtorno bipolar (TB), principalmente na adolescência, mas também se desenvolvem após episódios maníacos ou hipomaníacos 19 • Mais de 20% dos deprimidos da atenção primária à saúde e até metade dos atendidos em ambulatórios psiquiátricos são na realidade bipolares e as depressões constituem o motivo principal de procura por tratamento 19 • A expressão clínica mais comum do bipolar é a depressão, subsindrômica ou não. Em estudo prospectivo de 20 anos, os bipolares permaneceram sintomáticos durante metade do tempo, sendo que três vezes mais com sintomas subsindrômicos (depressivos ou hipomaníacos) que sindrômicos, e principalmente depressivos (pacientes com TB li mantiveram-se deprimidos durante 59,1% das semanas e hipomaníacos em apenas 1,9% do mesmo tempo ) 25 • O tratamento com antidepressivos e sem estabilizadores do humor pode agravar a sintomatologia e o prognóstico. Em seguimento de 1O a 20 anos comparando deprimidos bipolares tratados somente com antidepressivos com outros tratados com estabilizadores do humor associados, os primeiros tiveram depressões mais resistentes ao tratamento e maior risco de suicídio26 • Na abordagem inicial de um deprimido é, portanto, fundamental investigar ativamente a ocorrência de sintomas maníacos ou hipomaníacos no passado, bem como antecedentes familiares de TB, além de outros fatores de risco (Quadro V). Por exemplo, uma das hipóteses para o risco de suicídio associado a antidepressivos em crianças e adolescentes deprimidos é a de que teriam depressão como manifestação inicial de um TB; neste caso, o antidepressivo funciona-
• Presença de sintomas de hiperativação (aumento de energia, inquietação, redução da necessidade de sono). irritabilidade importante, pensamentos acelerados e aumento de libido e outros impulsos aumentados durante um episódio depressivo.
ria como um gatilho, levando a inquietação e aumento da impulsividade típicos de quadros mistos. Mesmo em adultos, são os sintomas maníaco-depressivos, mais que os depressivos, os que se correlacionam com risco aumentado de suicídio 12•13 . O médico deve estar atento aos fatores associados ao maior risco de bipolaridade, principalmente em pacientes com má resposta terapêutica27 •
Diagnóstico diferencial Várias condições clínicas e medicações (Quadro VI) foram associadas a quadros depressivos, mas nem todas vieram a ser comprovadas em estudos controlados. Na suspeita de depressão associada a alguma medicação, é importante notar se há relação cronológica entre introdução e aumento de dose do fármaco e início dos sintomas afetivos 17. Nem sempre é fácil diferenciar um estado de humor patológico de reações afetivas normais (como a reação de luto a uma perda, por exemplo). Investiga-se a facilidade com que um estado emocional intenso é desencadeado (desproporcional ao estímulo), se ele persiste de modo autônomo, por semanas, meses e até anos, e o grau de comprometimento funcional associado a esta condição, que pode afetar todas as esferas da vida do indivíduo - desde a produtividade no trabalho, até os relacionamentos sociais e familiares. O principal diagnóstico diferencial psiquiátrico é a depressão bipolar, que tipicamente cursa com depressões recorrentes, mais graves, crônicas e de difícil tratamento 19•27 • Mesmo na ausência de relatos de história familiar positiva de TB, a presença de sintomas maníacos, ainda que subsindrômicos (p. ex., hipomanias de 1 dia de duração), em deprimidos recorrentes, agrava o prognóstico e cur-
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Quadro VI Principais condições clínicas associadas à depressão
• Cardiovasculares: infarto agudo do miocárdio e circulação extracorpórea. • Doenças autoimunes, principalmente lúpus eritematoso sistêmico. • Endocrinológicas: hipo e hipertireoidismo, doença de Addison, síndrome de Cushing, hipopituitarismo, hiperparatireoidismo. • Hematológicas e metabólicas: anemias. deficiência de folato, deficiência de vitamina B12, deficiência de tia mina, insuficiência hepática, doença de Wilson. porfiria, hipo ou hipercalcemia. • Infecções: mononucleose, hepatites, influenza. HIV e infecções do sistema nervoso central (SNC). • Neurológicas: lesões cerebrais (p. ex.. tumores, lesões vasculares, trauma cranioencefálico, abscesso e outras lesões infecciosas). acometendo principalmente a região frontal esquerda; meningites e meningoencefalites; neurolues; esclerose múltipla; hidrocefalia; epilepsia; demências; doença de Parkinson. • Neoplasias: câncer de pâncreas e de pulmão, síndromes paraneoplásicas. • Medicações: reserpina e metildopa (anti- hipertensivos); corticoides; anti-inflamatórios não hormonais; vigabatrina e topiramato (antiepilépticos); uso prolongado de benzodiazepínicos e barbitúricos; intoxicação por depressores do SNC (álcool, por exemplo) e abstinência de psicoestimulantes (cocaína, por exemplo) e opiáceos.
sa com: risco 3 vezes maior de má resposta a antidepressivos, duas vezes maior de psicose, maior número de episódios e maior risco de ser hospitalizado27.
erros, como a possibilidade de postergar um diagnóstico de depressão 29. Outra dificuldade é a possibilidade de uma atribuição fisiopatológica (depressão secundária) permitida pelos sistemas diagnósticos como o DSM-IV-TR (depressão secundária a uma condição médica geral). Esta abordagem etiológica, onde o diagnóstico de depressão é definido a partir da inferência de que a patologia clínica causou o quadro depressivo gera um diagnóstico de baixa confiabilidade. Toda doença crônica pode estar associada à depressão comórbida, como cardiopatias, endocrinopatias, obesidade, distúrbios do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, nefropatias, câncer, doenças neurológicas, ginecológicas, síndromes dolorosas de qualquer natureza entre outros. Embora a tentativa de "compreensão psicológica'' da patologia depressiva possa estar presente em alguns casos como depressão e câncer, assim como a "explicação etiológica'' possa prevalecer em outros casos (p. ex., depressão pós-AVC), a abordagem diagnóstica deve ser do tipo inclusiva, ou seja, o tratamento antidepressivo é preconizado buscando a remissão dos sintomas, como é a orientação para os quadros depressivos sem comorbidades; é fundamental o correto tratamento da patologia clínica de base, uma vez que a depressão e as doenças clínicas quase sempre se retro alimentam, interagindo para criar uma situação deteriorante29A interface da Psiquiatria com as outras especialidades médicas está pormenorizadamente descrita na Seção VII, neste volume.
Comorbidades Comorbidades psiquiátricas Comorbidades clínicas A associação entre depressão e doenças clínicas é muito frequente, levando a uma pior evolução tanto do quadro psiquiátrico como da doença clínica, com menor adesão às orientações terapêuticas, além de maior morbidade e mortalidade. Apesar desta alta prevalência em populações clínicas, a depressão ainda é subdiagnosticada e, quando corretamente diagnosticada, com frequência é tratada de forma inadequada, com sub doses de medicamentos e manutenção de sintomas residuais, que comprometem a evolução clínica dos pacientes. Apenas 35% dos pacientes são diagnosticados e tratados adequadamente28. Uma avaliação adequada dos sintomas depressivos em pacientes com condições médicas associadas é dificultada pela superposição dos sintomas da patologia clínica (fadiga, inapetência, dor, insônia, lentificação), bem como de condições associadas à internação e à percepção das consequências adversas das doenças (desalento e baixa autoestima). Critérios intuitivos como uma intensidade de sintomas desproporcional ao esperado pelo quadro clínico e a relação temporal entre o início dos sintomas depressivos e da patologia clínica podem induzir a
A partir da publicação do DSM-III em 198030, os sistemas diagnósticos passaram a priorizar a descrição clínica e não a uma inferência etiopatogênica (fundamentalmente baseada na psicanálise), como ocorria até o DSMIP1. Se por um lado consistiu em avanço fundamental para a Psiquiatria, notadamente para a psiquiatria norteamericana, até então perdida em interpretações psicanalíticas estéreis, a falta de uma hierarquização diagnóstica permitiu a rubrica de infinitas comorbidades em um mesmo paciente; por se tratar de transtorno muito frequente na população, e de se confundir com a desmoralização e o desencorajamento presentes em diversos outros transtornos mentais, a depressão acaba sendo co-diagnosticada em uma série de outras condições outras, com destaque para os transtornos ansiosos 32 . Se em muitos transtornos ansiosos primários a depressão (temporalmente secundária) adquire uma relevância clínica que implicaria tratamento psicofarmacológico específico (depressão hierarquicamente "primária''), é certo que em outros tantos o tratamento da condição ansiosa (eventualmente apenas com técnicas psicoterápicas) removeria por completo a tristeza e desmoralização secundárias ao quadro clí. . mco ansioso.
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Como a distinção baseada na clínica pode ser imperfeita (como discutido a respeito de comorbidades clínicas), a tendência é de uma postura inclusiva, com o tratamento de todas as condições diagnosticáveis; de certo modo, a tristeza, a vergonha, a angústia são "perdidos" e rubricados como "depressão" 33. Não podemos perder a atenção para o fato de que a depressão, apesar das tendências superinclusivas inauguradas com o DSM-III (mantidas nos DSMs IV e IV-TR, e futuramente no DSM-5), continua sendo subdiagnosticada e subtratada, e que o DSM-III promoveu um enorme avanço na pesquisa e na prática clínica, permitindo o avanço da psicofarmacoterapia e melhora substancial no tratamento dos transtornos mentais. Não podemos igualmente perder de vista que a estrutura diagnóstica dos critérios atuais (CID -lO e DSM-IV-TR) favorece a detecção e o diagnóstico de comorbidades. No estudo populacional National Comorbidity Survey - Replication (NCS-R) 9 72% dos pacientes com diagnóstico de Depressão Maior (DM) apresentaram critérios diagnósticos para outro Transtorno Mental ao longo da vida, sendo 59,2% Transtornos de Ansiedade (TA) e 24% Transtornos por Uso de Substâncias (TUS); em 12 meses, 57,5% dos pacientes com DM mantiveram comorbidade com TA (confirmando o caráter crônico recorrente de ambas condições médicas), mas a comorbidade com TUS caiu para 8,5%. Se 60% dos pacientes com DM apresentam um diagnóstico DSM comórbido com TA, a co morbidade DM/TA é regra e não exceção. A comorbidade com TUS é especialmente danosa, pois este último interfere com a decisão de buscar ajuda, reduzindo a adesão ao tratamento e piorando o prognóstico dos dois transtornos. Como os TUS são mais prevalentes em homens, sua presença em mulheres pode sugerir o diagnóstico de Transtorno Bipolar34 . Transtornos alimentares, transtornos de descontro le de impulsos e transtornos de personalidade também se apresentam de forma importante comórbidos com a DM. Assim como a depressão pós-psicótica, estes transtornos serão abordados em seções específicas neste volume.
Tratamento O planejamento terapêutico é baseado na evolução clínica do transtorno depressivo e foi didaticamente dividido por Kupfer 35 em três fases: aguda, continuação e manutenção (Figura 1). Define-se "respostà' como a melhora clínica evidenciada por redução maior ou igual a 50% de pontuação em escalas de avaliação padronizadas, como a Escala de Depressão de Hamilton (HAM-D) ou a Escala de Depressão de Montgomery Asberg (MADRS)36 . A resposta terapêutica é classificada de acordo com critérios temporais em remissão e recuperação. Remissão completa dos sintomas é considerada quando a pon-
Recuperação
Normalidade Remissão
--+- --<:J----if---
Recafda Sintomas
I I I
I I
---·······
I
I I I I
- - --- ~ ---- ----~-· I Resposta
I I I
Sintoma
Fases de tratamento
Aguda (6 a 12 semanas)
Figura 1
Recorrência
Continuação
Manutenção
(4 a 9 meses)
(1 ou mais; 5 anos)
Curva de Kupferl5 .
tuação na Escala de Hamilton para Depressão com 17 itens é menor ou igual a 7 (HAM-D 17 < 7) por mais de 2 semanas e menos de 6 meses. Já a recuperação indica a apresentação assintomática, isto é HAM-D 17< 7, por mais de 6 meses36 • É frequente o tratamento medicamentoso não ser mantido por tempo suficiente e em doses adequadas, contribuindo para a falência em se atingir a remissão. Além disso, a completa recuperação funcional do indivíduo, isto é, o retorno pleno às condições pessoais, ocupacionais e afetivas, entre outras, pode levar mais tempo e depender de outras abordagens, além da psicofarmacológica37. Durante o seguimento, outros dois eventos relevantes para o acompanhamento da resposta terapêutica são as recaídas e recorrências. Por recaída entende-se retorno do episódio depressivo (de forma plena ou parcialmente) durante a resposta terapêutica, ou mesmo após a remissão e antes da recuperação. Recorrência é o aparecimento de episódio depressivo após o período de recuperação, na fase de manutenção do tratamento. Considerando os aspectos de resposta e evolução descritos anteriormente, planeja-se a estratégia de intervenção de acordo com as fases propostas por Kupfer35 . Fase aguda
A opção por tratamento medicamentoso é influenciada pela gravidade e apresentação dos sintomas, presença de comorbidades clínicas e preferência do paciente. A efetividade dos antidepressivos pode ser considerada comparável entre classes e intraclasses, considerando os transtornos depressivos em geral (ver em "Qual antidepressivo escolher?"). Situações especiais, entretanto, mostram respostas diferenciadas. Em depressões atípicas, inibidores da monoamino-oxidase (IMAO) são superiores aos antidepressivos tricíclicos (ADT)38 . Já ADT são superiores aos inibidores seletivos da recaptura de serotonina (ISRS) em pacientes hospitalizados39. Assim, a escolha do antidepressivo baseia-se em alguns fatores 40 :
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1. Perfil de efeitos colaterais, segurança e tolerabilidade; 2. Resposta anterior individual ou em membros da família; 3. Preferência do paciente; 4. Evidências disponíveis; 5. Custo do tratamento; 6. Apresentação clínica dos sintomas depressivos. Uma vez escolhido e iniciado o tratamento, se após 4 a 8 semanas não se observar pelo menos uma melhora moderada, deve-se reavaliar o regime de tratamento, verificar a adesão, fatores farmacocinéticos e farmacodinâmicos. Diante de resposta insatisfatória ou ausente, as opções de manejo incluem20: • Aumento da dose; • Troca para outro antidepressivo, não-IMAO; considerar IMAO em depressões atípicas • Potencialização com lítio ou tri-iodotironina
(T3); • Associação de antidepressivos; • Eletroconvulsoterapia (ECT). Após qualquer alteração, o paciente deve ser monitorizado por 4 a 8 semanas. Diante de falha terapêutica, procede-se novamente à reavaliação clínica e terapêutica40. Fase de continuação
O objetivo é a prevenção de recaídas. Por esse motivo, recomenda-se manter a medicação antidepressiva durante 16 a 20 semanas após a remissão 38'40. A dose utilizada na fase aguda geralmente é mantida durante a estabilização, embora existam variações na prática clínica corrente40. Fase de manutenção
O objetivo é prevenir recorrências, ou seja, novo episódio depressivo após a recuperação de um episódio anterior. A decisão pela manutenção do antidepressivo depende de alguns fatores40: • Risco de recorrência: episódios anteriores, sintomas residuais, diagnóstico psiquiátrico não-afetivo associado, presença de transtorno médico ge ral crônico; • Gravidade do episódio; • Efeitos colaterais; • Preferência do paciente. Geralmente, a dose que foi eficaz nas fases aguda e de continuação é mantida. A redução da dose ainda não está bem estabelecida40. Considerando a gravidade clínica, as diversas diretrizes para o tratameto da depressão disponíveis atualmente (American Psychiatric Association, British Association for Psychopharmacology, Canadian Network for Mood and Anxiety Treatments, National Institute for Health and Clinicai Excellence, Texas Medication Algorithm Project, e World Federation o f Socie-
ties o f Biological Psychiatry) fornecem orientações sobre a conduta; diferenças fundamentais entre as diversas diretrizes ocorrem somente quando uma medicação ou procedimento terapêutico não está disponível no país da publicação das mesmas. A depressão leve apresenta a maior variação nas recomendações de tratamento. Algumas diretrizes sugerem a prática de exercício físico ou a conduta expectante, mas a psicoterapia ou os antidepressivos podem ser usados diante da falha dos esforços iniciais37 . O tratamento de primeira linha da depressão moderada inclui antidepressivos em monoterapia, psicoterapia e a combinação de ambos. Já a depressão grave pode exigir a combinação de um antidepressivo e um antipsicótico, eletroconvulsoterapia, ou a combinação de um antidepressivo e psicoterapia37.
Qual antidepressivo escolher? A eficácia do tratamento antidepressivo é definida como a capacidade de promover a remissão e a completa resolução dos sintomas depressivos. A eficácia dos antidepressivos de primeira linha tem sido demonstrada em estudos duplo-cegos, randomizados e controlados com placebo. Uma recente meta-análise analisou 182 estudos, publicados entre 1980 e 2007, sobre o tratamento de adultos com transtorno depressivo (n = 36.385). Aproximadamente 54% dos pacientes tratados com antidepressivos em monoterapia obtiveram uma resposta clínica (definida como 50% ou mais na melhora dos sintomas depressivos), comparados com cerca de 40% dos indivíduos tratados com placebo41 • No estudo prospectivo chamado Sequenced Treatment Alternatives to Relieve Depression (STAR*D), pacientes com transtorno depressivo (n = 3671), que não obtiveram remissão após monoterapia com antidepressivos, receberam tratamento combinado com outro antidepressivo, potencialização com um agente não antidepressivo ou troca por outro antidepressivo. A cada abordagem terapêutica, uma percentagem adicional de pacientes atingiu a remissão de forma que, após quatro ensaios clínicos, aproximadamente dois terços da amostra original remitiu os sintomas42 . De modo geral, a eficácia relativa dos antidepressivos parece ser comparável. Estudos de metanálises têm demonstrado eficácia comparável entre ISRS e outros agentes, incluindo ADTs, duloxetina, bupropiona, trazedona e nefazodona, mirtazapina, moclobemida e tianeptina. Entretanto, evidências robustas sugerem que o tratamento com a venlafaxina pode resultar em maiores taxas de remissão do que com alguns SSRis43 . Os antidepressivos de segunda geração (como grupo) são considerados o tratamento de primeira escolha pelos guidelines mais atualizados; entre 12 antidepressivos de nova geração estudados em metanálise, dois ISRS
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(escitalopram e sertralina), a venlafaxina e a mirtazapina se destacaram como mais eficazes que os demais44· Para mais detalhes, ver Seção 6 - Aspectos Gerais do Tratamento.
Considerações finais As depressões representam um dos principais pro blemas de saúde em psiquiatria devido à elevada prevalência, morbidade, mortalidade e ao impacto psicológico, social e econômico que acarretam. Afetam o organismo como um todo e se manifestam por meio de sintomas psíquicos, físicos e alterações comportamentais; atingem principalmente mulheres em idade fértil e tendem a ser recorrentes em 50% dos casos ou cronificar em torno de 20%. O conhecimento dos subtipos principais permite a identificação e o diagnóstico precoce pelo clínico não psiquiatra, facilitando a intervenção terapêutica inicial. A depressão apresenta várias formas clínicas (melancólica, psicótica, atípica, pós-parto, sazonal, distimia, bipolar, associada a doenças médicas sistêmicas ou ao uso, abuso ou dependência de substâncias lícitas ou ilícitas). O po tencial tratável da depressão é elevado, há várias estratégias terapêuticas que incluem mais de 30 medicamentos antidepressivos, a ECT, as psicoterapias, entre outros, permitindo a adequação do tratamento às características clínicas de cada paciente. Apesar do investimento na pesquisa em diagnóstico, fisiopatologia, epidemiologia e tratamento, as depressões continuam sendo pouco ou tardiamente diagnosticadas e inadequadamente tratadas.
to de dia; tudo era mais difícil de fazer, precisava de um esforço extra para iniciar até mesmo atividades de rotina, sentia-se inútil e culpada, pois não conseguia trabalhar fora. sobrecarregando o marido ; chegou a pensar eventualmente que, se Deus a levasse, seria melhor (mas sem um plano específico de suicídio). Referia grande dificuldade em se concentrar numa leitura ou mesmo na TV. A paciente preenchia quase todos os critérios para um episódio depressivo (DSM-IV-TR). embora sem tristeza ou humor depressivo acentuados (depressio sine depressione). e apresentava também alguns sintomas atípicos de depressão (anergia, hiperfagia, hipersonia), mas não outros (reatividade do humor. hipersensibilidade à rejeição). Esta situação ilustra um problema recorrente no atendimento primário à saúde; na ausência de uma queixa específica de "tristeza", o clínico direciona a entrevista e o exame físico para uma doença física (reumatológica). que não confirmada remete à atribuição da sintomatologia ao "nervosismo" da paciente. Mais de dois terços dos pacientes portadores de depressão que procuram o atendimento primário apresentam inicialmente apenas queixas físicas, sendo que em metade deles as queixas somáticas são múltiplas e "inexplicáveis". O clínico atento a este fato pode incluir na entrevista algumas perguntas para avaliar o possível diagnóstico de depressão, antes de atribuir as queixas ao "estresse" da paciente. Maior atenção aos aspectos de comprometimento (perda da produtividade), somadas ao sexo feminino (a depressão atinge duas mulheres para cada homem) já norteariam a necessidade de uma entrevista facada também nos sintomas depressivos.
Questões 1. No caso apresentado, a paciente não preenchia critérios para
Minicaso clínico GTD. 42 anos, sexo feminino, branca, casada, diarista, natura l e procedente de Mogi das Cruzes/SP, atendida pelo clínico geral. Queixa-se de dores generalizadas, especialmente nas costas, que pioram com a movimentação e à palpação; as dores estão comprometendo a realização das atividades domésticas usuais, e como não consegue trabalhar. passou a ter dificuldades financeiras. O clínico não consegue caracterizar as dores em uma síndrome específica (não são dores articulares, mas distribuídas pelo corpo, "aqui e ali", sem predominância nesta ou naquela região). Exame físico geral sumário inocente, exceto por regiões mais doloridas ao aperto mais profundo, mas sem caracterizar o predomínio nos "pontos dolorosos". O clínico atribui as dores ao "estresse" (pensando tratar-se "apenas" de somatização) e medica a paciente com diazepam 5 mg ao dia. Como se sentia apenas "sanada" e sem melhora significativa, GTD procurou um médico psiquiatra duas semanas após a consulta com o clínico; indagada sobre a sintomatologia depressiva, GTD relatou muita fadiga e perda do interesse e do prazer em quase todas as coisas de que gostava, mesmo antes do agravamento das dores. Negava tristeza ou choro imotivado, mas apresentava, além da anedonia, aumento do apetite (especialmente por carboidratos) e do peso, e sonolência excessiva, tanto à noite quan-
a) b)
c)
d) e)
o diagnóstico de fibromialgia reumática; imaginando-se hipoteticamente que os preenchesse, e mantendo-se as demais informações apresentadas (inclusive o preenchimento dos critérios DSM-IV-TR para depressão). podemos afirmar que: O diagnóstico de depressão estaria descartado, pois a doença física tem precedência sobre a doença mental. O diagnóstico de depressão seria também válido, pois a comorbidade depressiva é a regra (e não a exceção) na fibromialgia reumática. O diagnóstico de fibromialgia reumática estaria descartado, pois a depressão pode apresentar (e frequentemente apresenta) sintomas físico-dolorosos que falsamente preenchem os critérios de fibromialgia. O diagnóstico de fibromialgia reumática não poderia ser feito na ausência de exames laboratoriais. Ambos os diagnósticos estariam descartados, devendo o médico procurar uma outra hipótese que a tudo explicasse.
2. No caso apresentado, a paciente apresenta uma síndrome depressiva atípica, embora não preenchesse todos os critérios. Qual o significado clínico de uma depressão atípica? a) Depressões atípicas podem responder de forma diferente aos tratamentos farmacológicos. b) Depressões atípicas só ocorrem em mulheres.
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c) Depressões atípicas são características de um transtorno bipolar. e) A presença de sintomas atípicos só apresenta significado clínico quando todas as características estão presentes. f) Sintomas atípicos são um requinte psicopatológico desnecessário, pois a resposta terapêutica é similar.
3. Em relação à depressão, podemos afirmar que: a) A depressão é igualmente prevalente em homens e mulheres. b) A depressão apresenta maior prevalência em países desenvolvidos e nas regiões mais ricas e urbanizadas. c) A depressão se inicia usualmente na quarta década de vida, sendo raro o início antes dos 30 anos de idade. d) Devido ao fato de ser apenas uma reação normal aos eventos vitais de impacto negativo, a depressão não necessita de uma abordagem biológica. e) Apresenta uma multiplicidade de fatores implicados em sua etiopatogenia, incluindo ambientais e genéticos. 4. Quanto ao diagnóstico da depressão, após obtermos o histórico e examinarmos o paciente, devemos nos basear em quais parâmetros? a) Na análise profunda e nos fatores dinâmicos que expliquem o humor depressivo. b) Nos exames laboratoriais, que hoje podem detectar a deficiência de serotonina no cérebro. c) Na intuição clínica e na empatia com o doente, pois o diagnóstico é fundamentalmente subjetivo. d) Em critérios diagnósticos operacionais, que - embora imperfeitos - favorecem a comunicação mais precisa entre os profissionais de saúde. e) Na neuroimagem funcional, pois o PET scan diagnostica com 980/o de certeza a depressão.
5. Considerando-se as "fases" do tratamento da depressão, se recomenda a utilização do mesmo antidepressivo, na mesa dose na qual foi obtida a remissão, para o uso num período de tempo prolongado, chamado de "continuação" do tratamento. Por que a insistência no tratamento de continuação da depressão, mesmo ao considerar um episódio depressivo único? a) Trata-se de estratégia de marketing da indústria farmacêutica, para vender os antidepressivos por mais tempo. b) Trata-se de insegurança do médico, que teme suspender a medicação apesar de ela não ser mais necessária. c) Trata-se de boa prática clínica, pois somente o uso continuado de antidepressivos pode reverter os possíveis mecanismos fisiopatológicos subjacentes aos sintomas. d) Trata-se de um excesso de zelo, pois uma vez remitidos os sintomas. o processo fisiopatológico subjacente aos mesmos estará resolvido. e) É irrelevante a sua prática na prevenção de recaídas.
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Transtorno Bipolar
Beny Lafer Karla M athi as de Almeida Lena Nabu co de Abreu José Antonio de Mello Siqueira Amaral
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 711 Etiologia, 712 Genética, 712 Neurobiologia, 713
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Neuroquímica, 714 Marcadores periféricos - neurotrofinas e fatores inflamatórios, 715 Alterações neuropsicológicas, 715 Quadro clínico, diagnóstico, classificação e comorbidades, 716 Episódios depressivos, 716 Episódios maníacos, 717
1. Descrever a sintomatologia dos episódios agudos de mania, depressão e estado misto. 2. Identificar os critérios diagnósticos do transtorno bipolar (fB) e descrever seus subtipos. 3. Identificar as comorbidades com outros transtornos psiquiátricos mais frequentes e descrever as suas implicações em termos de curso e tratamento do TB. 4. Listar os principais fatores etiopatogênicos no TB.
ldeação suicida, 719 Diagnóstico e classificação, 719 Espectro bipolar, 720 Comorbidades, 721
5. Descrever os recursos medicamentosos para tratamento dos episódios agudos e enumerar os principais fármacos utilizados na
Tratamento, 723
6. Descrever as estratégias psicossociais utilizadas no tratamento de
Prevenção, 725 Prevenção primária, 725 Políticas públicas, 726 Considerações finais, 726 Minicaso clínico, 727 Questões, 727 Referências bibliográficas, 728
Introdução O transtorno bipolar (TB) é um distúrbio psiquiátrico caracterizado por alternância de episódios de depressão e mania (euforia/expansividade). Apesar de relatos médicos de estados mórbidos depressivos e de exaltação do humor remontarem à antiguidade 1, foi Are teu da Capadócia, que viveu no início da era cristã, quem primeiro relacionou quadros de melancolia com quadros de mania, concebendo essas duas condições como diferentes facetas de uma mesma doença (Areteu da Capadócia apud Goodwin e Jamison, 2007). Essa noção de uma doença única passa mais
profilaxia de novos episódios.
longo prazo do TB, bem como a sua importância.
ou menos despercebida até o século XIX, quando Falree e Baillangee, psiquiatras franceses, descreveram, respectivamente, os quadros de folie circulaire - transtorno mental caracterizado por ciclos de depressão, mania e intervalos livres de sintomas - e folie à double forme - transtorno no qual os ciclos de depressão e mania são contínuos e não apresentam períodos livres de sintomas entre eles. Entretanto, foi Kraepelin4, psiquiatra alemão, que no final do século XIX propôs um sistema de classificação das doenças psiquiátricas e reconheceu a insanidade maníaco-depressiva (IMD) como entidade nosológica distinta, na qual se observava o caráter cíclico das manifestações maníacas, melancólicas e mistas. Distinguindo a IMD da dementia praecox, Kraepelin fundou as bases da classificação moderna que separa os transtornos de humor da esquizofrenia5. Kraepelin6 incluiu no conceito de IMD quadros em que os indivíduos apresentavam apenas ciclos depressivos e quadros nos quais havia alternância de melancolia e mania, o que le-
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vou a críticas de opositores que propunham a identificação de diferentes tipos de síndromes afetivas. Em 1957, Leo nhard7 propôs a separação entre aqueles que apresentavam apenas episódios depressivos, denominando-os monopolares ou unipolares, daqueles que apresentavam episódios maníacos, os quais classificou como bipolares. Na década de 1960, os trabalhos de Angst8 e Perris9 validaram essa distinção, incorporada nos sistemas de classificação atuais, que diferenciam o transtorno depressivo unipolar do TB. O TB é classificado em dois subtipos. O TB tipo I apresenta prevalência ao longo da vida de cerca de 1% e o TB tipo li de, aproximadamente, 1,1% em amostras populacionais americana e brasileira 10·ll . Utilizando critérios mais abrangentes que ainda necessitam de validação mais consistente, pesquisadores encontraram prevalências entre 2,4 e 8,3% para as formas ampliadas do espectro bipolar12· ll. O TB inicia-se, em geral, no início da vida adulta, sendo um transtorno recorrente, grave, que cursa com elevadas taxas de morbi-mortalidade e traz prejuízos e custos significativos para o seu portador e para a sociedade 1, ll, n. Trata-se de um transtorno associado a prejuízo substancial do desempenho no trabalho. Quando comparados a portadores de depressão unipolar, pacientes com TB têm mais dias de trabalho perdidos por ano devido a episódios depressivos 14 • O TB também está associado a risco de suicídio ao longo da vida de até 15%, prejuízos psicossociais, índices de remissão apenas moderados (mesmo sob tratamento), presença de sintomas subsindrômicos e cronicidade que resultam em prejuízo no funcionamento global do indivíduo 15- 18 •1. Apesar de se tratar de um transtorno grave e recorrente, sua causa ainda é desconhecida. Supõe-se que a etiologia do TB seja complexa, envolvendo influências genéticas e ambientais múltiplas, que podem variaramplamente entre os indivíduos afetados 19 . Anormalidades neurobiológicas, tais como disfunção do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, aumento da atividade pró -inflamatória, disfunção na transdução de sinais intracelulares e alterações de neuroimagem estrutural e funcional envolvendo regiões pré-frontal dorsoventral e límbica anterior, estão associadas ao TB e podem estar implicadas na fisiopatologia do transtorno 20 •
Etiologia São múltiplos os enfoques e os campos de conhecimento que interessam ao estudo da etiologia e da fisiopatologia do TB. Sinteticamente, apresentaremos abaixo os principais achados da área.
Genética Estudos em famílias, adoções e gêmeos indicam que o TB apresenta alta herdabilidade (proporção de risco da doença na população atribuível à variação genética), estimada entre 79 e 83%21. Até o momento, estudos em famí-
lias sugerem que parentes de primeiro grau de portadores de TB têm aproximadamente 9% de risco de apresentar o transtorno, quase dez vezes maior que o da população geraP 9•21 • Estudos em gêmeos têm mostrado que o maior risco observado em familiares de portadores de TB se deve, em grande parte, à influência genética, uma vez que a concordância entre gêmeos monozigóticos (38 a 43%) é significativamente maior do que entre dizigóticos (4 a 6%)22 • Estudos de epidemiologia genética indicam que a forma de transmissão do TB é complexa, com interação entre múltiplos genes de suscetibilidade e influência do meio ambiente23 • Estudos de genética molecular têm sido conduzidos na tentativa de identificar fatores genéticos associados ao risco de desenvolvimento de TB e avanços tecnológicos têm permitido a testagem de diversas hipóteses, sendo a varredura do genoma o mais recente e importante avanço. Pesquisas iniciais utilizaram estratégia baseada no conceito de ligação (linkage) genética, que pressupõe que dois loci gênicos situados muito próximos em um mesmo cromossomo tendem a ser herdados em conjunto. Assim, se determinado marcador genético de localização já conhecida for sempre transmitido junto com a doença, conclui-se que o gene de suscetibilidade à doença pode estar localizado nas vizinhanças desse marcador23• Estudos de ligação têm implicado diversas áreas do genoma, porém há pouca consistência entre os achados, sendo as evidências mais robustas para sinais de ligação nas regiões cro mossômicas 6q e 8q, sem que os genes envolvidos tenham sido identificados até agora (Tabela I). Essa estratégia é útil para identificar causas genéticas de doenças cuja transmissão envolve apenas um gene ou um pequeno número deles com grande efeito sobre o risco, o que não parece ser o caso do TB. Assim, estudos subsequentes buscaram utilizar a estratégia de associação, mais adequada para a identificação de variantes de suscetibilidade relativamente comuns na população e com efeito modesto sobre o risco 24 • Partindo de hipóteses geradas de aspectos neurobiológicos da doença e de resultados de estudos de ligação, os estudos de associação avaliam se alelos específicos são mais comuns em indivíduos afetados do que em controles (estudos de caso-controle) ou se variantes específicas são transmitidas dos pais para os indivíduos afetados de forma mais frequente do que simplesmente ao acaso (estudos em fa mília). Têm sido objetos de estudo os genes relacionados aos sistemas dopaminérgico, serotonérgico e glutamatérgico e aqueles ligados ao fator neurotrófico derivado do cérebro, os genes codificantes de proteínas envolvidas com sistemas intracelulares de transdução de sinais, os genes relacionados a doenças hereditárias que cursam com sintomas afetivos, além daqueles que participam na regulação de ritmos circadianos. Entretanto, os resultados são conflitantes e suspeita-se que a maioria deles resulte de associações espúrias21•23 • Os genes candidatos com associações mais consistentes estão descritos na Tabela I. Recentemente, estudos de associação por varredura do genoma
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(genome-wide association studies) se revelaram mais adequados na identificação de genes de suscetibilidade. Ao invés de se basear em hipóteses prévias, essa estratégia gera novas hipóteses para futuros estudos, uma vez que utiliza técnicas avançadas (DNA microarrays) para a identificação de variantes genéticas por meio da avaliação de até um milhão ou mais de polimorfismos no genoma. Os achados mais consistentes desses estudos referem-se a genes envolvidos na via do fosfatidil inositol e na regulação de canais de cálcio e sódio (Tabela I). Estudos citogenéticos são outra estratégia para a identificação de suscetibilidade genética do TB (Tabela I). Anormalidades cromossômicas, tais como translocações, duplicações e deleções, têm sido associadas a esquizofrenia e autismo, porém as pesquisas em TB ainda são muito incipientes25 • A heterogeneidade clínica e genética do TB, a contribuição de fatores ambientais desconhecidos e difíceis de quantificar e a transmissão genética complexa do transtorno, envolvendo múltiplos Zoei de pequeno tamanho de efeito, são aspectos que tornam mais difícil a tarefa de elucidar a etiologia genética do TB. Recentemente, geneticistas têm começado a buscar abordagens metodológicas alternativas para o esclarecimento da etiologia do TB, tais como os estudos sobre a interação gene-gene ( epístase), interação gene-ambiente, mecanismos epigenéticos e de expressão gênica e a identificação de fenótipos intermediários, ou endofenótipos, definidos como traços que estariam mais próximos do substrato genético do que as categorias diagnósticas complexas21•26 . Essas novas abordagens são promessas de avanços na identificação de mecanismos genéticos de suscetibilidade ao TB.
Tabela I Resumo dos aspectos genéticos do TB 2 '
Risco para a população geral
1-2%
Risco para parentes de 1° grau
9%
Razão de risco
7- 1o
Concordância em gêmeos monozigóticos
40- 45%
Herdabilidade
80-85%
Citogenética/região associada ao CNV
22q1,.
Principais regiões de ligação
6q, 8q, 13q,22q
Principais genes candidatosb
BDNF, DAOA, DISC1, TPH2, SLC6A4
Genes implicados por varredura do genoma (Genome-wide association studies)
DGKH, CACNA 1C, ANK3
• Síndrome velocardiofacial/síndrome de DiGeorg e.
b
Baseado em estudos inde-
pendentes e metanál ises. ANK3: gene codificador da proteína anquirina-G; BDNF: gene do fator neurotrófico derivado do cérebro; CACNA1C: gene do canal de cá lcio voltagem-dependente tipo L sub unidade alfa 1C; CNV: variações no número de cópias ( copy number variant); DAOA: gene ativador da O-aminoácido oxidase; DGKH : gene codificador de d iacilgl icero l quinase eta; DISC1 : gene disrupted in schizophrenia 1; SLC6A4: gene transportador de 5-HT; TPH2: gene da triptofano hidroxilase 2.
Assim, a pesquisa em genética do TB vem progredindo muito nas últimas décadas. Entretanto, apesar deste transtorno ser uma das doenças de maior herdabilidade na medicina e dos avanços nas técnicas e nos métodos de pesquisa, os resultados dos estudos realizados até o momento ainda não permitem a identificação inequívo ca de qualquer gene de suscetibilidade ao TB 2 1 •
Neurobiologia Neuroanatomia e neuroimagem
Estudos de neuroimagem estrutural, funcional e neuroquímica sugerem que os sintomas afetivos, cognitivos e neurovegetativos do TB originam-se de alterações anatômicas, neuroquímicas ou metabólicas em um circuito neural que envolve o corpo estriado, o tálamo e a córtex pré-frontal, além da participação de estruturas límbicas (como a amígdala e o hipocampo) e do cerebelo. Com base no volume de evidências obtidas por esses estudos, foi proposto um modelo neuroanatômico do TB27 , esquematizado na Figura 1. Os estudos de ressonância magnética e post mortem vêm identificando anormalidades funcionais, anatômicas e neuroquímicas em áreas específicas do cérebro de pacientes com TB, como o córtex pré-frontal (córtex do cíngulo anterior, dorsolateral pré-frontal e orbitofrontal), o córtex temporal (amígdala e hipocampo) e as estruturas subcorticais ( tálamo mediai e núcleos da base). Essas anormalidades incluem redução de volume de substância cinzenta, alterações da integridade de fascículos axonais, redução de N -acetil-aspartato (NAA, considerado um marcador de integridade neuronal), aumento de ní veis de neurotransmissores, como glutamato, e diminuição de volume ou de densidade de neurônios e células da glia28 . Propõe-se que os sintomas dos transtornos de humor têm origem na disfunção (sob a forma de hiperativação ou hiperfunção) de áreas límbicas e subcorticais (estriado, tálamo, amígdala) e na redução de modulação (hipoativação ou hipofunção) das áreas pré-frontais (córtices pré-frontais), com consequente desregulação das emoções e da cognição, respectivamente27. De forma geral, o volume de substância cinzenta total no cérebro de pacientes com TB não é diferente de controles saudáveis. No entanto, alguns estudos encontraram reduções localizadas, por exemplo, na substância cinzenta em cíngulo anterior29 •30 . Um estudo de metanálise recente mostrou que pacientes com TB apresentam redução de substância cinzenta no cíngulo anterior e na ínsula, áreas envolvidas no processamento emocionaP 1• Achados mais recentes de que o lítio e outros estabilizadores do humor estão relacionados ao aumento do volume de substância cinzenta, em conjunto com estudos de seus efeitos em culturas de células, sugerem que tais dro gas possuam propriedades neurotróficas, as quais podem estar relacionadas às suas propriedades terapêuticas32 •
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Pacientes com TB apresentam ainda menores níveis de NAA em hipocampo e lobo frontal e níveis mais elevados de compostos de colina (relacionados ao metabolismo de fosfolipídios de membrana) em núcleos da base e de glutamato em córtex pré-frontal dorsolateral, giro do cíngulo anterior e hipocampo33 • Há relatos tanto de aumento como de diminuição do volume da amígdala em pacientes com TB. Essas disparidades podem estar relacionadas à falta de controle sobre o tratamento medicamentoso durante o estudo e às limitações das técnicas de imagem, o que, em relação à amígdala, se torna um problema particularmente importante devido à sua pequena dimensão. Em um estudo mais recente que procurou corrigir tais problemas, portadores de TB não medicados apresentaram menores volumes da amígdala do que controles e aqueles medicados com lítio ou valproato apresentaram aumento de volume da mesma estrutura34 • Anormalidades de substância branca, como hiperintensidades subcorticais, comumente relacionadas com o envelhecimento normal e doenças vasculares, é um dos achados mais consistentes em pacientes com TB35 e a aplicação da técnica de imagem por tensor de difusão (DTI, diffusion tensor imaging) evidenciou alterações em fascículos axonais mielinizados na região pré-frontal de portadores de TB20 • Muitos achados de neuroimagem no TB não são replicados, provavelmente devido a diferenças nos critérios dos estudos em relação ao estado de humor, ao subtipo do transtorno estudado (p. ex., TB tipo I ou II), ao uso de medicamentos, ao perfil de comorbidades e aos métodos de análise dos dados obtidos com ressonância magnética. Um exemplo disso é a possível especificidade do estado de humor. Pacientes com TB não diferem de controles saudáveis no que diz respeito ao volume de substância cinzenta no córtex orbitofrontal. No entanto, quando subgrupos são examinados, pacientes deprimidos apresentam volumes de substância cinzenta no córtex orbitofrontal menores do que pacientes em eutimia36. O efeito de comorbidade com alcoolismo foi estudado usando espectroscopia de prótons por ressonância magnética (H '-MRS). Pacientes com TB em comorbidade com alcoolismo apresentaram níveis menores de glutamato mais glutamina no córtex pré-frontal dorsolateral esquerdo do que pacientes sem comorbidade, sugerindo a possibilidade de diferentes mecanismos fisio patológicos em função dessa presença37. Estudos post mortem também revelaram uma série de alterações celulares, como redução de número e volume de neurônios e de células da glia no córtex pré-frontal dorsolateral, no giro do cíngulo anterior, no hipocampo e na amígdala de portadores de TB. Os dados sugerem que alterações em tamanho e densidade de neurônios em áreas do córtex pré-frontal podem estar relacionadas a déficits em funções executivas apresentadas por pacientes com TB. Tais alterações celulares podem eventualmente representar perda e atrofia celular ao longo do curso da doença28•38 .
-
Tálamo
t Corpo estriado ventral
t
Cortéx orbitofrontal
I
r Amígdala
•
Giro do cíngulo anterior
Verme cerebelar )lo
•
Expressão do transtorno bipolar centraI
+
Hipocampo
)lo
Cortéx pré-frontal dorsolateral
. ,. _1. ------'
Figura 1 Circuitos cerebrais envolvidos na fisiopatologia do transtorno bipolar (adaptada de Strakowski et ai., 2005 27) .
Neuroquímica Neurotransmissores
O surgimento de drogas eficazes no tratamento da depressão e as pesquisas de seus mecanismos de ação orientaram os estudos iniciais sobre a fisiopatologia dos transtornos do humor, principalmente nas décadas de 1970 e 1980. Como a ação aguda de tais drogas antidepressivas e antimaníacas consiste em alterar a concentração de neurotransmissores na fenda sináptica, foi proposta a hipótese monoaminérgica dos transtornos afetivos, na qual a depressão resultaria da baixa concentração dos neurotransmissores na fenda sináptica, enquanto a mania seria decorrente do excesso deles. Nesse sentido, observou-se aumento de metabólitos de noradrenalina em liquor, urina e sangue de pacientes nas fases maníacas (hiperatividade adrenérgica) e diminuição nas fases depressivas, além de baixa atividade serotoninérgica em córtex pré-frontal e hipocampo e hiperatividade dopaminérgica na mania. No entanto, essa teoria não explica, por exemplo, por que o efeito antidepressivo e antipsicótico pode demorar semanas para acontecer e o efeito da medicação sobre os níveis intrassinápticos ocorre após algumas horas. Tal hipótese foi abandonada como explicação da causa do TB e hoje se considera que as alterações de neurotransmissores são consequências de disfunções complexas da transdução intracelular de sinais e da expressão gênica. Além disso, foram também encontradas alterações nos sistemas de neurotransmissão gabaérgico, glutamatérgico e de neuropeptídeos nos estudos de modelos bioquímicos da fisiopatologia do TB38•40 • Transdução de sinais intracelulares
As proteínas G acoplam receptores a canais iônicos e realizam a transdução da ativação dos neurotransmis sores por meio de alterações intracelulares de segundos mensageiros, como AMP cíclico, guanosina monofosfato (GMP) cíclico, cálcio e metabólitos do fosfatidilinositol (inositol trifosfato e diacilglicerol). Grande parte das drogas que atuam no sistema nervoso central são agonistas ou antagonistas de receptores acoplados às proteínas G. Muitas vias de sinalização intracelular regulam a ex-
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pressão gênica4 1 • Estudos indicam aumento dos níveis e da atividade das proteínas G em portadores de TB independente da fase, o que sugere uma característica traçodependente. Observou-se, ainda, que pacientes em mania não medicados, apresentaram aumento de acoplamento de receptores ligados às proteínas G, com normalização após tratamento com lítio ou valproato 42 • Berridge et al. 43 propuseram a hipótese de que o efeito terapêutico do lítio se deve à depleção de inositol intracelular causada por esta medicação, o que inibiria uma suposta hiperatividade neuronal presente no TB. O lítio provoca essa depleção ao inibir a enzima IMPase e a síntese de inositol a partir da glicose-6-fosfato. Em concordância com esses dados, observou-se, pela espectroscopia de prótons por ressonância magnética H 1 -MRS, que o tratamento com lítio diminuiu os níveis de mioinositol em pacientes com TB. É interessante notar que estabilizadores de humor, como o valproato e a carbamazepina, também provocam depleção de inositol. Entretanto, essa hipótese não explica, entre outras coisas, por que o efeito do lítio demora algumas semanas para acontecer41 . A GSK 3-beta é uma proteína quinase envolvida em várias vias de sinalização, como as da insulina, das neurotrofinas e da Wnt (contração dos nomes dos genes homólogos Wingless e Int-1). O lítio inibe fortemente a GSK 3-beta assim como ativa a via intracelular Wnt e beta-catenina, podendo estar relacionado à sua eficácia no tratamento do TB44-46 • Valproato e eletroconvulsoterapia (ECT) também inibem a GSK 3-beta. Em conjunto, esses dados sugerem fortemente que a ativação de proteínas G e da via Wnt, assim como a inibição da proteína GSK 3-beta, estão envolvidas no efeito terapêutico de alguns estabilizadores do humor e, possivelmente, na fisiopatologia to TB.
Marcadores periféricos - neurotrofinas e fatores inflamatórios Inflamação tem sido cada vez mais reconhecida como um mecanismo subjacente comum de patologias como diabetes, câncer e doenças cardiovasculares. Evidências iniciais, como ocorrência de sintomas depressivos durante o uso de interferon, efeitos imunorregulatórios negativos de drogas antidepressivas e anormalidades da fun ção de receptores glicocorticoides cutâneos de pacientes que não respondem a antidepressivos, sugeriram haver também uma importante relação entre processos inflamatórios sistêmicos e transtornos afetivos 47 • As citocinas, proteínas produzidas por células do sistema imune, são fatores centrais nos processos inflamatórios. Estes mediadores promovem a comunicação entre as células do sistema imune. Citocinas como as interleucinas de tipo 1 (IL- 1) e tipo 6 (IL-6) e o fator de necrose tumoral têm ação pró-inflamatória, enquanto a IL-4 e a IL-1O são anti-inflamatórias. Além da resposta inflamatória, as citocinas também modulam funções do sis-
tema nervoso central, incluindo o controle da neuroplasticidade, a resiliência celular e a regulação da apoptose. Há ainda evidências de uma relação bidirecional entre as citocinas e o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal. Essas proteínas são moduladoras potentes do CRH, que provoca liberação de ACTH e produção de cortisol. Níveis elevados de cortisol e ACTH e hiperatividade do eixo hipo tálamo -hipófise -adrenal estão presentes na depressão e no TB48 . A hiperatividade do eixo HPA, por sua vez, é um importante estímulo para a inflamação. Estudos que avaliaram níveis de citocinas em portadores de TB descreveram elevação de citocinas pró-inflamatórias, independente da fase. De forma geral, a mania é a fase mais associada a estados inflamatórios, seguida da depressão. Alguns relatos iniciais sugerem que a eutimia pode estar associada à elevação de citocinas pró-inflamatórias. A mania tem sido associada ao aumento do fator de necrose tumoral e das interleucinas 2, 4 e 6 e a depressão bipolar, ao aumento de IL-2 49 • Os níveis elevados de citocinas podem, ainda, estar associados a diferentes estágios de evolução da doença. Por exemplo, pacientes com até três anos de início do TB apresentam aumento tanto de citocinas pró-inflamatórias (IL-6) quanto de anti-inflamatórias (IL-1O). Por outro lado, pacientes com mais de dez anos de história de TB apresentam aumento apenas da IL-6, o que sugere uma falência de processos compensatórios ao longo da doença50 • Os níveis de citocinas pró -inflamatórias correlacionam-se com a gravidade dos sintomas de humor (maníacos e depressivos) e a remissão desses sintomas está associada à reversão parcial do estado inflamatório. Anti depressivos reduzem a produção de citocinas pró-in flamatórias e aumentam a produção de IL-1O, citocina anti-inflamatória. O lítio parece reduzir o número de células que liberam citocinas. Um estudo piloto indicou que o anti-inflamatório celecoxib pode aumentar a resposta antidepressiva de portadores de TB em fase depressiva ou mista durante a primeira semana de tratamento50b. Outros marcadores biológicos periféricos também têm sido estudados a fim de se desvendar a neurobiolo gia do TB. As neurotrofinas podem estar envolvidas na perda neuronal e no déficit cognitivo observado no TB. Entre elas, o fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF - brain-derived neurotrophic factor) tem recebido muita atenção devido ao seu papel na regulação da sobrevivência, da estrutura e da função neuronal. Pesquisadores vêm demonstrando que níveis séricos de BDNF diminuem à medida que aumenta a gravidade do episódio depressivo ou maníaco e normalizam conforme o paciente for retornando à eutimia50 •
Alterações neuropsicológicas A avaliação neuropsicológica nos transtornos psiquiátricos permite a identificação do padrão cognitivo e o im-
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pacto que a doença promove na adaptação do paciente à vida prática, acadêmica, profissional e/ou social. Os dados obtidos nessa avaliação permitem ainda discutir como os déficits interferem negativamente na adaptação psicossocial ou até mesmo se a estão impossibilitando. Além disso, o estudo neuropsicológico é uma ferramenta valiosa na compreensão da fisiopatologia do transtorno psiquiátrico, porque fornece evidências sobre a relação entre déficit funcional! comportamental e alterações no funcionamento cerebral detectados a partir de exames como RM funcional5 1• Ou seja, as pesquisas de neuropsicologia auxiliam na identificação de áreas cerebrais responsáveis por determinados comportamentos (normais ou patológicos) e têm mostrado que pacientes com TB apresentam dificuldades em vários domínios cognitivos, sendo que alguns persistem mesmo após remissão dos sintomas. Os déficits encontrados se referem basicamente às funções executivas. Na comparação com pacientes portadores de esquizofrenia, os portadores de TB apresentam perfil de alterações cognitivas mais leves, o que aponta para diferenças entre os transtornos em termos de prognóstico e para as anormalidades em circuitos neuroanatômicos específicos. Existe uma correlação positiva entre déficits cognitivos e número de episódios ou internações. Os prejuízos encontrados nos estudos são sugestivos de disfunção em circuitos frontoestriatais específicos que podem, em parte, explicar as dificuldades na adaptação psicossocial dos pacientes com TB 52 Concluindo, podemos afirmar que nas últimas duas décadas o conhecimento da fisiopatologia do TB evoluiu de hipóteses iniciais, sugerindo que o TB poderia ser causado por alterações nos níveis de neurotransmissores, até o conceito mais atual de que a fisiopatologia do TB seria melhor explicada por complexas alterações estruturais e funcionais de plasticidade neuronal e de circuitos cerebrais influenciadas por fatores genéticos.
Quadro clínico, diagnóstico, classificação e comorbidades O TB pode ter início em qualquer fase da vida, mas estudos recentes mostram que a média de idade de início é de vinte anos, sem diferenças entre os sexos no tipo I e frequência maior entre mulheres no tipo IP. As apresentações clínicas do TB podem variar desde episódios leves de depressão ou hipomania até episódios graves acompanhados de sintomas psicóticos. A seguir apresentaremos os principais sintomas de cada episódio.
Episódios depressivos Os episódios depressivos são caracterizados por alterações no humor, psicomotricidade, cognição e funções vegetativas. O humor na depressão apresenta-se polarizado com a presença de tristeza e melancolia ou pode ser irritável, disfórico, com baixa tolerância às frustrações do
dia a dia. O paciente apresenta pessimismo, desesperança e, algumas vezes, sente angústia e ansiedade. Relata, em alguns casos, "sensação de sofrimento emocional e dor psicológica mais intensa que qualquer dor física': muitas vezes podendo sentir-se apático frente ao mundo. Além disso, pode apresentar anedonia importante, com perda de prazer e de interesse em atividades, pessoas e eventos 1 • Em relação à psicomotricidade, os pacientes podem apresentar-se tanto com retardo psicomotor, acompanhado de uma sensação de perda de energia, quanto com agitação psicomotora. Nos casos de retardo psicomotor, o paciente apresenta dificuldade para realizar atividades, referindo falta de iniciativa, indecisão e inibição. Pode também apresentar dificuldades para comer, lavarse ou vestir-se, podendo, em alguns casos muito graves, apresentar-se em estado catatônico. Muitas vezes, os pacientes sentem o corpo tão pesado que são incapazes de realizar atividades ("paralisia em chumbo"). Já nos casos de agitação psicomotora, os pacientes apresentam -se inquietos, andando de um lado para o outro. Eles podem também apresentar alternância entre retardo psicomotor e agitação. O pensamento do paciente deprimido é, em geral, caracterizado por lentificação importante, com queixas de diminuição da concentração, da memória e da atenção. Além disso, o conteúdo dos pensamentos tende a ser pessimista, com medos irracionais, culpa excessiva, menos-valia e ruminações de atos passados, que podem adquirir um caráter obsessivo. Em casos graves, o paciente pode apresentar delírios de ruína, culpa, hipocondria ou delírios niilistas. O paciente deprimido pode apresentar uma série de queixas somáticas, sendo as alterações de sono (insônia ou hipersônia) e apetite (diminuição ou aumento) as mais comuns. O paciente pode apresentar perda ou ganho de peso. Relatos de piora matinal e despertar precoce são comuns. Além disso, dores em geral, sintomas físicos de ansiedade (taquicardia, tremor, sudorese, aumento da fre quência urinária) e diminuição da libido também são queixas frequentes 1' 53' 56 . Subtipos depressivos: • Melancólico: anedonia absoluta, humor não reativo a estímulos, insônia terminal, piora matutina, diminuição do apetite, perda de peso e retardo psicomotor. • Atípico: humor reativo, extrema sensibilidade a rejeição interpessoal, aumento do apetite e do peso, hipersônia e paralisia em chumbo. • Psicótico: depressão acompanhada da ocorrência de sintomas psicóticos (delírios ou alucinações) que podem ou não ser congruentes com o humor. Depressão unipolar
versus depressão bipolar
Nas últimas décadas, esforços têm sido feitos no sentido de identificar características clínicas indicativas de que um episódio depressivo seria uma depressão bipolar. Os estudos apontam em diversas direções, porém, fre-
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quentemente, os portadores de TB deprimidos apresentam retardo psicomotor, sintomas atípicos e psicóticos. Além disso, têm idade de início mais precoce e episódios mais frequentes, com início abrupto e história familiar positiva para TB 1·57- 59 • Entretanto, até o momento, não foram identificados sintomas específicos de episódio agudo que diferenciem as depressões bipolares das unipolares.
Episódios maníacos Os episódios maníacos também se caracterizam por alterações no humor, psicomotricidade e cognição. Em relação ao humor, estudos mostram que os pacientes apresentam, durante um episódio maníaco, diferentes tipos de alterações de humor: eufóricos e expansivos, irritados, lábeis ou até deprimidos nos episódios mistos (descritos em seguida). Os episódios maníacos são descritos por alguns autores como "caldeirões de sintomas complexos, voláteis e flutuantes" 1. Carlson e Goodwin60 descreveram a progressão dos estados maníacos após um estudo observacional de pacientes com TB não medicados e internados. A descrição dos diversos estágios da progressão dos sintomas pode ser vista na Quadro I. A maioria dos pacientes maníacos apresenta grandiosidade e fuga de ideias, além de aceleração do pensamento. Outros sintomas comuns são: diminuição da concentração, distratibilidade, confusão, pressão de discurso, pensamento arborizado e "colorido" pelo tônus afetivo do paciente. Esses pacientes também podem apresentar sintomas psicóticos, como delírios e alucinações. As alucinações parecem representar o extremo dos quadros maníacos e, geralmente, são de conteúdo religioso ou de poder excessivo; são breves, flutuantes e inconstantes. Já os delírios, em geral, são de natureza expansiva e grandiosa, com conteúdo religioso, de poder e, às vezes, persecutório1. Winokur et al. 61 descreveram os delírios maníacos
como "evanescentes, aparecendo e desaparecendo ao longo do dia ou mesmo durante a entrevista". Variam conforme o estado geral do paciente, sendo mais frequentes quando os pacientes estão mais ativos e "frequentemente são extensões da grandiosidade do paciente'~ Em relação à atividade e ao comportamento, estudos mostram que diminuição das horas de sono, alterações do discurso e hiperatividade são comuns nos episódios maníacos. Insônia ou necessidade diminuída de sono são sintomas encontrados em 80% dos pacientes e até 90% deles podem apresentar pressão de discurso e verborragia. Metade dos pacientes em mania apresentam-se também hipersexualizados1. Hipomania
Os quadros hipomaníacos são caracterizados por sintomas semelhantes aos dos quadros maníacos, exceto pela ausência de sintomas psicóticos e por se manifestarem em níveis de gravidade menores, não causando prejuízo acentuado no funcionamento social ou ocupacional e não exigindo a hospitalização do paciente. O humor na hipomania encontra-se elado e exaltado, mostrando-se o paciente excessivamente confiante e, algumas vezes, irritável. Em relação à cognição, há profusão de ideias com aumento da velocidade do pensamento, embora sem incoerências, perda de associações, delírios ou alucinações. Apesar da diminuição na quantidade de horas de sono, o paciente em hipomania apresenta-se com excesso de energia e autoconfiança, o que pode levar a aumento das atividades, hipersexualidade e impulsividade~> 53 •
É importante lembrar que os quadros hipomaníacos, muitas vezes, dependendo da gravidade, passam despercebidos aos pacientes e aos familiares, o que frequentemente leva ao diagnóstico incorreto. É importante que o clínico investigue ativamente esses sintomas, assim como um eventual histórico pregresso de depressão.
Quadro I Características clínicas dos estágios da mania60
Estágio I
Estágio 11
Estágio 111
Humor
Predominantemente euforia; labilidade afetiva e irritabilidade, se contrariado
Aumento da disforia e depressão; hostilidade e raiva visíveis
Disforia clara; pânico e desesperança
Cognição
Expansivo, grandioso e confiante, pensamento coerente, acelerado e com alguma tangencialidade; preocupações religiosas e sexuais
Fuga de ideias, desorganização e delírios
Incoerência, perda das associações, delírios bizarros, alucinações (1 /3 dos pacientes), desorientação tempo-espaço e ideias ocasionais de autorreferência
Comportamento
Aumento da atividade psicomotora, da quantidade e da velocidade do discurso, de gastos, do uso de cigarros e de telefone
Aumento progressivo da atividade psicomotora e da pressão de discurso; comportamento disruptivo ocasional
Atividade psicomotora frenética e bizarra
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CLINICA PSIQUIÁ I RICA
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AS GRANDES SINDROMfS PSICOPATa ÓG CA
Estados mistos O episódio misto é um estado complexo, heterogêneo e de difícil diagnóstico, mas muito frequente no curso do TB. A sua definição mais ampla consiste na presença simultânea de sintomas maníacos e depressivos. De acordo com o a 4ll edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM- IV) da Associação Psiquiátrica Americana54, para ser diagnosticado em estado misto, o paciente precisa preencher, ao mesmo tempo, critérios diagnósticos tanto para episódio depressivo quanto maníaco durante uma semana, o que, na visão de muitos estudiosos, é um critério extremamente restritivo. Desde a década de 1970, houve um ressurgimento do interesse na fenomenologia dos estados mistos, visto que se observou que, além da mania e da depressão pura, os pacientes podiam apresentar tanto episódios maníacos com alguns sintomas depressivos, caracterizando os quadros de mania mista e mania disfórica62, quanto episódios depressivos com alguns sintomas hipomaníacos ou maníacos63 • Comparando-se as formas puras de depressão e mania com essas várias formas de estados mistos, evidenciou-se uma fenomenologia própria caracterizada por disforia, hipersensibilidade a luz e sons, impulsividade, tensão interior e ansiedadé'. Os estados mistos estão associados a aumento da impulsividade, maior risco de suicídio, abuso de substâncias, sintomas psicóticos, agitação psicomotora e irritabilidade62.65 • Kraepelin6 foi um dos autores mais importantes na conceitualização dos estados mistos como estados transitórios entre os episódios de mania e depressão, os quais, mais tarde, ao longo da doença, poderiam acontecer isoladamente. De acordo com esse autor, os estados mistos resultavam de combinações de sintomas das esfera~ de humor, atividade e pensamento dos quadros maníacos e
depressivos, que originavam seis tipos de estados mistos (Quadro Il). Estudos mostram que os estados mistos são mais fiequentes em mulheres61 · 66· 58 e que os sintomas maís comuns em episódios graves seriam: humor disfórico ahernante com elação do humor, aceleração do pensamento~ g:randiosidade, ideaçâo suicida. delírios persecutórios, alucinações auditivas, insônia grave, agitação psicomotora e hipersexualidade67 69 • Ciclot&mia
O DSM-IV caracteriza o transtorno cídotimico como uma perturbação crônica e flutuante do humor, no qual o paciente apresenta, ao longo de pelo menos dois anos, períodos de sintomas hipomaníacos e depressivos com prejuízo significativo em alguma esfera da vida e breves intervalos livres de sintomas (dois meses ou menos). Já o temperamento cidotírnico é um estado subafetivo permanente, podendo ser um pródromo do TB ou perdurar ao longo da vida sem agravamentos"}· Akiskal et aF 0 validaram os critérios para esse temperamento, descritos a . segmr: Oscilações de humor bifásicas com mudança abrupta de uma fase a outra, cada uma durando alguns dias com eutimia infrequente. Pelo menos quatro dos seguintes critérios devem constituir a linha de base habitual do sujeito: 1) Letargia alternada com eutonia; 2) Autoestima oscilante entre autoconfiança baixa e exagerada; 3) Falar pouco, alternado com tagarelice; 4) Confusão mental alternada com pensamento daro e criativo;
Quadro 11 Estados mistos de acordo com Kraepeluf
Humor
At1v1dade
Pensamento
Resumo
Manta deprimtda ou anstosa
Ansioso
Agitação psicomotora
Fuga de ideias
Humor: deprimido Atividade: maníaca pensamento( maníaco
Depressão agttada ou excitada
Ansioso
Agttação psicomotora
Pensamento inibido
Humor: deprimido Atividade: manilaca Pensamento: depressivo
Mania com pobreza de pensamento
Elado
Agttação psicomotora
Pensamento inibido
Humor: maníaco Atividade: maniaca Pensamento: depressivo
Estupor maníaco
Elado
Retardo p:sícomotor Importante
Pensamento inibido
Humor: maníaco Atividade: deprimida Pensamento. depnmtdb
Oepressào com fuga de idetas
Oepnmtdo
Retardo psicomotor
Fuga de ideias
Humor: depnmído Atividade: depnmída Pensamento. maniaco
Mania inibida
Elado
Retardo psicomotor
Fuga de ideias
Humor: maníaco Atividade: deprMllida Pensamento· maniaco
55 TRANSTORNO BIPOLAR
5) Choro inexplicável alternado com excessiva jo-
cosidade, piadas ou trocadilhos; 6) Introspecção alternada com sociabilidade desinibida; Ciclagem rápida
A ciclagem rápida caracteriza-se pela ocorrência de quatro ou mais episódios maníacos ou depressivos em um período de doze meses. Apesar de ser um fenômeno transitório no curso da doença, pode chegar a 12 a 24% nos últimos doze meses em pacientes de centros especializados, aparecendo com maior frequência em mulheres. Alguns fatores precipitantes estão relacionados à ciclagem rápida, tais como uso de antidepressivos e uso abusivo de álcool e outras substâncias71 •
ldeação suicida O TB está associado ao maior risco de mortalidade prematura como resultado de complicações de comorbidades clínicas, uso de substâncias, suicídio e acidentes. Entre todos esses fatores, o suicídio se destaca como a principal causa de mortalidade precoce nesses pacientes. As relações entre comportamento suicida e TB parecem ser também mais marcantes do que em outros transtornos psiquiátricos. As tentativas e a mortalidade por suicídio são mais elevadas no TB quando comparadas às taxas em outros transtornos psiquiátricos. Os pacientes com TB apresentam taxas de 10 a 15% de suicídios completos e entre 20 e 55% deles já apresentou ao menos uma tentativa de suicídio ao longo da vida 1•72• Em relação à população geral, os pacientes com TB apresentam risco 28 vezes maior de comportamento suicida, com taxas de suicídio de 390/100.000 por ano e com risco ao longo da vida de 23,4%. A relação entre tentativa de suicídio e suicídio completo no TB é 5:1 contra 15:1 na população geral, indicando que esses pacientes tendem a usar métodos mais violentos e letais 18 •
Diagnóstico e classificação Para o estabelecimento do diagnóstico de TB é essencial a identificação de episódios maníacos ou hipomaníacos. Como os portadores de TB passam a maior parte do tempo da doença em depressão73 e os episódios de elevação do humor nem sempre são considerados por eles como patológicos, muitos buscam tratamento apenas durante os episódios depressivos e não informam sobre sintomas pertencentes ao outro polo da doença. Por este motivo, é imprescindível que o clínico, diante do paciente com depressão, sistematicamente investigue a presença de episódios hipo/maníacos ao longo da sua vida, sendo necessário, muitas vezes, obter essas informações de familiares ou pessoas próximas a ele a fim de estabelecer o diagnóstico correto 74 • Esta tarefa é mais fácil quando o
paciente já se apresenta em episódio maníaco. Entretanto, se há sintomas psicóticos, o diagnóstico diferencial com transtornos psicóticos, sobretudo esquizofrenia, fazse necessário. Nesse caso, a presença dos sintomas psicóticos apenas nos períodos de alteração do humor e antecedentes de episódios depressivos bem definidos são fatores que podem contribuir para essa diferenciação, entre outros. Assim, para o diagnóstico do TB, o clínico deve desenvolver habilidades de investigação não apenas para a avaliação transversal do paciente, mas também para a observação longitudinal do curso da doença. A fim de facilitar a comunicação entre clínicos e pesquisadores, foram criados sistemas de classificação dos transtornos mentais com critérios definidos para o diagnóstico desses transtornos. De acordo com os dois principais sistemas de classificação dos transtornos psiquiátricos existentes atualmente, a 1oarevisão do capítulo V sobre os transtornos mentais e de comportamento da Classificação Internacional das Doenças (CID-10) da Organização Mundial de Saúde75 e o DSM-IV da Associação Americana de Psiquiatria5 \ o TB é caracterizado pela presença de episódios hipomaníacos ou maníacos, nos quais o indivíduo apresenta elevação do humor e aumento de energia e de atividade física e mental (Quadro Ili). O DSM-IV divide os transtornos bipolares em: tipo I, caracterizado pela presença de episódio maníaco; tipo li, caracterizado pela alternância de episódios hipomaníacos e depressivos; transtorno ciclotímico, no qual sintomas de elevação de humor se alternam com sintomas depressivos sem, contudo, preencher critérios para episódio; e TB sem outra especificação. Já a CID-1O exige a presença de pelo menos dois episódios maníacos para o diagnóstico de transtorno bipolar, incluindo o TB tipo li no item entre outros transtornos bipolares, sem esclarecer exatamente a sua definição, e localiza a ciclotimia no grupo dos transtornos persistentes do humor - e não como subtipo de transtorno bipolar. Há consenso na comunidade científica no que diz respeito ao diagnóstico de episódio maníaco, para o qual se exige a presença de sintomas de elevação de humor e aumento de atividade física e mental suficientemente grave para causar acentuado prejuízo social e/ou funcional ou a presença de sintomas psicóticos, por um período mínimo de sete dias, ou em qualquer duração, caso a gravidade exija hospitalização54. Entretanto, o mesmo não acontece em relação ao diagnóstico de episódio hipomaníaco e, por conseguinte, em relação ao diagnóstico de TB li. Diversos autores vêm questionando os critérios para hipomania propostos pelo DSM-IV; entre estes a duração mínima de quatro dias para o estabelecimento do diagnóstico (Quadro Ili). Debate-se, atualmente, não só a qualidade e a quantidade dos sintomas necessários para o diagnóstico de hipomania, como também o número de dias em que eles devem estar presentes. Angst et aP 7, por exemplo, propõem a inclusão do sintoma "aumento de energia e de atividade física" (overactivity) como critério essencial para o diag-
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nóstico de hipomania, bem como a exclusão da exigência de duração mínima do episódio. Baseado nas pesquisas de Angst e colaboradores, o grupo de trabalho que estuda as modificações para a próxima edição do DSM vem propondo a inclusão do sintoma "aumento de atividade e de energia" como essencial não só ao diagnóstico de episódio hipomaníaco como também de episódio maníaco, ao lado de humor elevado, expansivo ou irritável (critério A), porém propõe a manutenção do mínimo de quatro dias de duração dos sintomas para a realização do diagnóstico55 •
Espectro bipolar Diversos grupos vêm propondo, nos últimos anos, ampliações do espectro bipolar que incluam mais formas intermediárias do que aquelas propostas pelo DSM e sugerem a existência de um continuum nas manifestações dos sintomas, refletindo a abordagem dimensional do diagnóstico em oposição à abordagem categoria! realizada pelo DSM58 • Entre essas propostas, destacam-se as de Hagop Akiskal e de Jules Angst.
Desde a década de 1970, Akiskal et al. vêm propondo formas intermediárias de TB, que incluem os temperamentos afetivos, sobretudo ciclotímico e hipertímico, como manifestações atenuadas deste transtorno 70•76. Em 1999, Akiskal e Pinto 77 descreveram subtipos do espectro bipolar, tais como o TB II e 1/2, caracterizado por quadros de depressão maior e presença de temperamento ciclotímico; o TB III, identificado por hipomania associada ao uso de antidepressivos em pacientes com história familiar de transtorno bipolar; e o TB IV, caracterizado pelo surgimento tardio de quadros depressivos em indivíduos com temperamento hipertímico. Akiskal propôs ainda a inclusão dos transtornos de personalidade do agrupamento B e, mais especificamente, do transtorno de personalidade borderline no espectro do TB. Esse autor identifica na impulsividade, na instabilidade afetiva com reatividade do humor, nas manifestações de raiva inadequada, nos sentimentos crônicos de vazio e nas frequentes tentativas de suicídio apresentados pelos indivíduos com diagnóstico de transtorno de personalidade borderline expressões de alterações na regulação do afeto que
Quadro 111 Critérios diagnósticos para episódio maníaco e hipomaníaco54 Episódio maníaco•
Episódio hipomaníaco••
A. Um período distinto de humor anormal e persistentemente elevado, expansivo ou irritável, durando pelo menos uma semana (ou qualquer duração, se a hospitalização é necessária).
A. Um período distinto de humor persistentemente elevado, expansivo ou irritável, durando todo o tempo ao longo de pelo menos quatro dias, nitidamente diferente do humor habitual não deprimido.
B. Durante o período de perturbação do humor, três (ou mais) dos seguintes sintomas persistiram (quatro, se o humor é apenas irritável) e estiveram presentes em um grau significativo: 1) Autoestima inflada ou grandiosidade 2) Necessidade de sono diminuída (p. ex., sente-se repousado depois de apenas três horas de sono). 3) Mais loquaz que o habitual ou pressão por falar. 4) Fuga de ideias ou experiência subjetiva de que os pensamentos estão correndo. 5) Distratibilidade Osto é, a atenção é desviada com excessiva facilidade para estímulos externos insignificantes ou irrelevantes). 6) Aumento da atividade dirigida a objetivos (socialmente, no trabalho, na escola ou sexualmente) ou agitação psicomotora. 7) Envolvimento excessivo em atividades prazerosas com um alto potencial para consequências dolorosas (p. ex., envolvimento em surtos incontidos de compras, indiscrições sexuais ou investimentos financeiros tolos). C. Os sintomas não satisfazem os critérios para episódio misto.
C. O episódio está associado com uma inequívoca alteração no funcionamento, que não é característica da pessoa quando assintomática.
O. A perturbação do humor é suficientemente severa para causar prejuízo acentuado no funcionamento ocupacional, nas atividades sociais ou nos relacionamentos costumeiros com outros, ou para exigir a hospitalização, como um meio de evitar danos a si mesmo e a outros, ou existem aspectos psicóticos.
O. A perturbação do humor e a alteração no funcionamento são observáveis por outros.
E. Os sintomas não se devem aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p. ex., uma droga de abuso, um medicamento ou outro tratamento) ou de uma condição médica geral (p. ex., hipertireoidismo).
E. O episódio não é suficientemente severo para causar prejuízo acentuado no funcionamento social ou ocupacional, ou para exigir a hospitalização, nem existem aspectos psicóticos.
F. Os sintomas não se devem aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p. ex., droga de abuso, medicamento, ou outro tratamento) ou de uma condição médica geral (p. ex., hipertireoidismo). *Os episódios tipo maníacos nitidamente causados por um tratamento antidepressivo somático (p. ex., medicamentos, terapia eletroconvulsiva e fototerapia) não devem contar para um diagnóstico de transtorno bipolar I. ••os episódios tipo hipomaníacos nitidamente causados por um tratamento antidepressivo somático (p. ex., medicamentos, terapia eletroconvulsiva e fototerapia) não devem contar para um diagnóstico de transtorno bipolar 11.
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permitiriam incluir esse transtorno no espectro do TB. Com expressão fenotípica diferente dos indivíduos com TB, que apresentam manifestações sintomáticas episódicas, mas pertencendo ao mesmo espectro, pois com um padrão duradouro de instabilidade afetiva e impulsividade, os portadores de transtorno de personalidade borderline seriam os representantes de um novo paradigma: o dos transtornos afetivos, como transtornos recorrentes e cronicamente flutuantes. De acordo com Akiskal, o trans torno de personalidade borderline e o TB teriam, assim, base genética e fisiopatologia comuns78 • Essa visão é criticada por BaldessarinF9, o qual considera que dada a limitada faixa de reações psicopatológicas da espécie humana, não é de se surpreender que instabilidade afetiva e flutuações do humor sejam sintomas encontrados em diferentes transtornos. Apesar de reconhecer que as propostas de estabelecimento do conceito de espectro bipolar possam ter uma utilidade clínica potencial, o autor afirma também que elas trazem o risco de confundir as distinções entre os transtornos caracterizados por sintomas afetivos proeminentes e degradar o conceito clássico de transtorno bipolar, o qual é considerado um fenótipo coerente para estudos genéticos, biológicos e experimentais. Ele pede cautela no que reconhece ser uma prematura e potencialmente errônea ampliação e diluição do conceito de TB e afirma a necessidade de que a validade do conceito de espectro bipolar seja extensiva e objetivamente testada antes de ser amplamente utilizada na prática clínica79 • Em relação à afirmação de que o transtorno de personalidade borderline é uma variante do TB, Stoné0 sugere não haver evidência científica suficiente de que esses transtornos estejam indissoluvelmente ligados, assim como não há evidências de que estejam sempre etiologicamente dissociados. O mesmo foi concluído por Paris81 , após revisão de literatura sobre a relação entre TB e transtorno de personalidade borderline examinando estudos sobre co-ocorrência, fenomenologia, prevalência familiar, resposta medicamentosa, curso longitudinal e etiologia do TB e do transtorno de personalidade borderline. Os autores consideram que a evidência científica disponível atualmente apoia a hipótese de que transtorno de personalidade borderline e TB I sejam considerados transtornos independentes. Entretanto, em relação ao TB II, as evidências não permitem conclusões definitivas, preservando a possibilidade de que esses transtornos compartilhem a mesma etiologia. Os autores afirmam que estudos adicionais são necessários para esclarecimento dessa questão81. Jules Angst vem propondo uma abordagem dimensional dos sintomas hipomaníacos e tem chamado a atenção para a identificação de quadros depressivos "pseudounipolares", os quais seriam caracterizados por episódios depressivos em indivíduos com história de sintomas hipomaníacos que não preenchem os critérios necessários para diagnóstico de episódio hipomaníaco, no que diz respeito ao número ou à duração de sintomas82 • Em estudo
de base epidemiológica, Angst et al. 83 encontraram que indivíduos com episódios depressivos e história de sintomas hipomaníacos subsindrômicos apresentam características clínicas que os distinguem dos indivíduos que apresentam episódios depressivos sem história de sintoma hipomaníaco e dos portadores de TB tipo II, o que reforça a hipótese de distribuição dimensional dos sintomas de elevação do humor. Ghaemi et al. 84, na tentativa de operacionalizar a identificação de quadros depressivos pertencentes ao espectro bipolar, propuseram critérios diagnósticos que incluem sinais considerados marcadores não maníacos de bipolaridade, tais como presença de virada maníaca com antidepressivos, história familiar de TB em parentes de primeiro grau, idade do primeiro episódio depressivo abaixo dos 25 anos e personalidade hipertímica de base, entre outros (Quadro IV). Há que se ressaltar que, se por um lado, a ampliação da definição do TB pode ter como consequência melhores identificação e abordagem clínica dos pacientes, por outro lado, pode gerar excesso de diagnóstico de TB em condições clínicas injustificadas e consequente má condução terapêutica dos casos, uma vez que essas propostas ainda não foram validadas e nenhum estudo avaliando resposta a tratamento nesses indivíduos foi realizado até o momento85- 87 . Além disso, a ampliação da definição de TB tem o potencial de dificultar achados consistentes em estudos neurobiológicos e genéticos, pois resulta em maior heterogeneidade fenotípica do transtorno 88 •
Comorbidades As comorbidades psiquiátricas no TB são extremamente frequentes. Dados da Stanley Foundation Bipolar Network mostram que 65% dos pacientes com TB apresentam pelo menos uma comorbidade e um quarto destes apresenta três ou mais diagnósticos psiquiátricos89 • Embora os pacientes com TB possam apresentar qualquer comorbidade com transtornos do eixo I e do eixo II, as comorbidades do eixo I mais frequentemente encontradas são: abuso e dependência de álcool e outras substâncias, transtornos ansiosos, transtornos alimentares e, recentemente, tem-se levantado a questão da co morbidade entre TB e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Em relação ao eixo II, a comorbidade mais comum no TB tipo II é com o transtorno de personalidade borderline. A seguir, apresentaremos os principais achados em relações a essas comorbidades. Abuso e dependência de álcool e outras substâncias
Estudos populacionais revelam que, enquanto na população geral, a taxa de abuso e dependência de álcool situa-se em torno de 13% e para outras drogas é de 6%, nos portadores de TB essas taxas sobem para 46% e 41% nos portadores de TB tipo I e 39% e 21% nos portadores do tipo Il90 •
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Em relação ao impacto clínico, a comorbidade entre TB e uso de substâncias está associada a maior número de episódios depressivos, tentativas de suicídio e hospitalizações, taxas mais altas de refratariedade ao tratamento e ciclagem rápida e pior desempenho em testes cognitivos de função executiva91. Mesmo quando tratados e remitidos do transtorno relacionado ao uso de substâncias, os pacientes com TB, comparados àqueles que não apresentavam esta comorbidade, tiveram pior resposta terapêutica, maior tempo para a remissão do quadro agudo e mais sintomas subsindrômicos92 Transtornos de ansiedade Sintomas de ansiedade são comuns na apresentação do TB, o que dificulta o diagnóstico diferencial com transtornos ansiosos. Estudos epidemiológicos evidenciam que a prevalência de transtornos ansiosos nos pacientes com TB pode variar de 32 a 92%90• 93 • A comorbidade com ansiedade parece ser mais prevalente em portadores de TB tipo II. Em estudo recente, 56,5% dos portadores de TB tipo II apresentavam comorbidade com quadros ansiosos contra 35,6% dos portadores de TB tipo I 94 • O transtorno de pânico é comum em portadores de TB, com estudos epidemiológicos mostrando prevalência em torno de 20,8% ao longo da vida95. Portadores com essa comorbidade apresentam maior número de episódios e sintomas depressivos e ideação suicida durante os episódios agudos, além de maior tempo para a remissão dos episódios 96• 97 • O quadro de pânico também é mais grave na presença do TB, cursando com idade de início mais precoce e sintomatologia mais incapacitante.
O transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) aparece em até 21% dos portadores de TB, sendo que na população geral essa prevalência é de 2,5%. A presença dessa comorbidade está associada a aumento da morbi-mortalidade por suicídio, além de sintomatologia mais grave, elevada ideação suicida e tentativas de suicídio durante a vida e maior comorbidade com transtorno de pânico 98•99 • É importante ressaltar que nos pacientes com TB, o TOC apresenta algumas características fenomenológicas distintas do TOC sem outras comorbidades: o início da doença é mais gradual, o curso tende a ser mais episódico e há maiores taxas de obsessões de conteúdo sexual e religioso e menores taxas de rituais de checagem 100 • Outros transtornos ansiosos relacionados ao TB são a fobia social, a qual acomete, aproximadamente, metade dos pacientes com TB e o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), presente em 16% dos pacientes com TB 101 . Pacientes com comorbidade com TEPT apresentam maior frequência de abuso de substâncias e suicídio, menores taxas de remissão do TB e pior qualidade de vida, comparados com pacientes sem essa comorbidade 102 • Transtornos alimentares Estudos em amostras clínicas sugerem que os transtornos alimentares sejam mais comuns nos pacientes com TB (entre 7 e 18%, para qualquer transtorno alimentar) 103• 104 do que na população geral (5%) 105. Se analisados separadamente pelo tipo de transtorno alimentar, encontra-se uma maior frequência de compulsão alimentar periódica (em torno de 18%), seguido por bulimia (3 a 10%) e anorexia nervosa (2%) 89• 106 . Os pacientes com TB tipo II apresentam maior frequência tanto de anorexia quanto de bulimia em relação aos pacientes com TB tipo I (bulimia: TB I 3% vs. TB II 6%; anorexia: TBI 1% vs. TB II 4%) 89 •
Quadro IV Proposta de critérios para definição de espectro bipolar-8 4
A Pelo menos um episódio depressivo B. Ausência de episódio espontâneo de mania ou hipomania C. Pelo menos um dos critérios abaixo e pelo menos dois critérios O ou ambos os critérios abaixo e pelo menos um critério O 1) História familiar de TB em parente de primeiro grau
2) Mania ou hipomania induzida por antidepressivo O. Se nenhum item do critério C está presente, são necessários pelo menos seis dos seguintes itens: 1) Personalidade hipertímica 2) Episódios depressivos recorrentes (> 3) 3) Episódios depressivos breves (< 3 meses) 4) Sintomas depressivos atípicos (DSM IV) 5) Episódios depressivos psicóticos 6) Idade de início dos episódios depressivos < 25 anos 7) Depressão pós-parto 8) Resposta aguda, mas não profilática ao antidepressivo (perda de eficácia profilática) 9) Ausência de eficácia a 3 ou mais ensaios com antidepressivos
Transtornos de personalidade Em recente revisão de literatura, Fan e Hassell 107 encentraram prevalências de transtornos de personalidade (TP) entre portadores de TB que variam de 12 a 89%. A taxa média de comorbidade encontrada nos estudos que avaliaram pacientes ambulatoriais não foi muito diferente da taxa média verificada em portadores de TB internados (40,2 vs. 42,5%). As variações nas porcentagens de comorbidade encontradas, de acordo com os autores, devem-se a diferenças metodológicas dos estudos, tais como populações analisadas, medidas de avaliação de personalidade utilizadas e estado clínico do paciente no momento da avaliação. Nos estudos com metodologia mais rigorosa, ou seja, aqueles que avaliaram portadores de TB eutímicos e ambulatoriais utilizando entrevistas estruturadas, a taxa média de prevalência de TP encontrada foi de 37,7%. Os portadores de TB com essa comorbidade apresentam maior número de episódios, taxas mais elevadas de abuso de álcool e sintomas depressivos mais graves 108 • Kay et al. 109, em uma amostra de veteranos de guerra do
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sexo masculino com diagnóstico de TB I e transtorno de personalidade, encontraram maiores taxas de desemprego, abuso de álcool e substâncias, além de regimes medicamentosos mais complexos. Em relação ao tipo de transtorno de personalidade, a maior parte dos estudos sugere associação com os transtornos do cluster B, principalmente com transtorno de personalidade borderline, variando entre 12,5 e 30% em pacientes ambulatoriais 110· 111. É importante ressaltarmos algumas das questões relacionadas às dificuldades diagnósticas e metodológicas da comorbidade entre TB e transtornos de personalidade. Inicialmente, pode-se destacar a questão em relação à sobreposição de sintomas dos transtornos de personalidade e dos quadros afetivos, principalmente do cluster B, tais como instabilidade afetiva, necessidade de atenção, grandiosidade, irritabilidade e impulsividade, o que levou alguns autores112 a adotar a ideia de que o transtorno de personalidade borderline seria um continuum do TB, como discutido anteriormente em relação ao espectro bipolar. Outro ponto importante é a concepção de que os ciclos de episódios maníacos e depressivos poderiam modificar traços de personalidade, levando o paciente a apresentar distúrbios de autoimagem, dificuldades sociais, comportamentos suicidas e outros comportamentos mal-adaptativos identificados como sintomas de transtorno de personalidade. Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (fDAH)
Na população geral, a prevalência do TDAH é estimada em 4%, enquanto esse número pode chegar a 9% nos pacientes com TB 113 e 20% naqueles com início precoce do TB (idade menor que 13 anos) 114 . Nos pacientes com TDAH e TB, estudos mostram uma maior prevalência do TB tipo IP 15. Devido à sobreposição dos sintomas, o diagnóstico de TDAH deve ser sempre feito com opaciente em eutimia e deve-se descartar outras condições comórbidas, tais como transtornos ansiosos e abuso e dependência de substâncias, as quais podem dificultar o diagnóstico preciso do TDAH.
Tratamento O objetivo de curto prazo no tratamento do transtorno bipolar é o tratamento dos episódios depressivos, maníacos ou mistos e das condições associadas, como a ciclagem rápida. O objetivo de longo prazo do tratamento é a profilaxia das recorrências, isto é, impedir que o paciente apresente novos episódios depressivos ou maníacos uma vez estando em remissão do último episódio de humor. Geralmente, o tratamento pode ser feito em regime ambulatorial, à exceção de casos em que, por motivo de risco de suicídio, falta de crítica e não adesão ao tratamento, comportamento francamente desorganizado ou auto/heteroagressividade, se tenha optado pela internação psiquiátrica. As medicações mais utilizadas são o carbonato de lítio, os
anticonvulsivantes, como o ácido valproico ou o divalproato de sódio, a lamotrigina, a carbamazepina, a oxcarbazepina, e os antipsicóticos atípicos, como a olanzapina, a quetiapina, a risperidona, o aripiprazol e a ziprasidona. Antidepressivos também são usados em conjunto com estabilizadores de humor para tratar episódios depressivos. Apesar das inúmeras opções terapêuticas, o TB ainda é uma condição psiquiátrica de difícil tratamento. Diversos estudos de seguimento mostram que a maioria dos pacientes não consegue uma recuperação sintomática duradoura e, mesmo quando livres de sintomas depressivos ou maníacos, ainda apresentam funcionamento social e ocupacional pobre 1. A depressão bipolar é, particularmente, um quadro de tratamento muito difícil e há ainda hoje uma necessidade muito grande de identificação de novos tratamentos que melhorem o prognóstico dessa condição, sem falar da dificuldade no manejo dos estados mistos e dos quadros de ciclagem rápida. A utilização dos estabilizadores de humor é funda mental em todas as fases do tratamento farmacológico do TB. O estabilizador de humor ideal seria aquele que teria eficácia antidepressiva e antimaníaca, sem induzir sintomas da polaridade oposta àquela que está em tratamento agudo, e na prevenção de novos episódios, tanto depressivos quanto maníacos 116. Infelizmente, ainda não dispomos de um estabilizador de humor tão completo, com eficácia equiparável em todas as fases da doença. Por essa razão é comum a necessidade de se combinar o uso de dois ou mais estabilizadores de humor no tratamento de um episódio agudo ou mesmo no tratamento de profilaxia. O lítio foi o primeiro estabilizador de humor a ter sua eficácia antimaníaca comprovada em ensaio clínico duplocego controlado com placebo. Tem eficácia em torno de 70 a 80% no tratamento da mania, principalmente na mania pura (diferente dos estados mistos). A latência de resposta antimaníaca é de duas a três semanas. O lítio possui também moderado efeito antidepressivo e é considerado o melhor estabilizador de humor na profilaxia no TB tipo I sem ciclagem rápida, com episódios bem delimitados e com boa recuperação interepisódica (tendo maior eficácia na profilaxia de episódios maníacos do que de episódios depressivos) 117·118 • É comercializado na forma de carbonato de lítio, tem meia-vida de eliminação de 18 a 24 horas (pode ser administrado em uma ou duas doses diárias) e pode ser iniciado em dosagem de 600 mg/ dia, devendo-se titular a dosagem de acordo com a litemia (concentração sérica de lítio, que tem máxima eficácia em torno de 0,8 a 1,2 mEq/L). A coleta do sangue deve ser feita 4 a 7 dias após o início da terapia, e de 10-14 horas após a última tomada. A litemia deve ser repetida sempre que houver dúvidas sobre eficácia, toxicidade ou adesão. São contraindicações absolutas à litioterapia: infarto agudo do miocárdio recente, arritmias cardíacas graves, psoríase e insuficiência renal aguda. Os efeitos colaterais mais comuns são tremor fino em mãos, náuseas (principalmente no início do tratamen-
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to), polidipsia, poliúria, ganho de peso e acne. Cerca de 20% dos pacientes desenvolvem hipotireoidismo subclínico a médio-longo prazo (aumento de TSH), o qual deve ser corrigido. Nefropatia induzida por lítio ocorre raramente, mas ocasionalmente pode levar à suspensão do tratamento. O valproato (valproato de sódio, divalproato de sódio, ácido valproico) tem comprovada eficácia antimaníaca, principalmente nas manias e nos estados mistos, na ciclagem rápida, na comorbidade com transtornos ansiosos e no abuso de álcool e substâncias. É a primeira opção, em alternativa ao lítio ou em combinação, no tratamento da mania aguda (Bowden et al, 1994). Pode haver rápida melhora do quadro clínico, em cerca de uma semana, com a introdução e rápido aumento nas dosagens (até 20 mg/kg). Níveis séricos entre 45 e 125 mcg/mL são necessários, de acordo com atolerabilidade do paciente. Pode ser administrado em uma ou duas doses diárias, a depender da apresentação (liberação prolongada ou não). A eficácia antidepressiva é menor quando comparada ao lítio e na profilaxia é mais eficaz na prevenção de episódios maníacos do que depressivos 119• Os efeitos colaterais mais comuns são náuseas, tremores dose-dependentes, aumento de apetite e de peso, queda ou modificação da estrutura dos cabelos e discreta elevação de transaminases. Enzimas hepáticas e hemograma devem ser colhidos periodicamente, em função do risco (raro) de desenvolvimento de hepatotoxicidade aguda. A carbamazepina tem eficácia antimaníaca, sobretudo em manias disfóricas (mistas) e ciclagem rápida, sendo considerada opção para o tratamento de casos menos graves. Sua eficácia antidepressiva não é expressiva, porém a eficácia profilática é significativa 120 . Pode ser administrada em duas tomadas diárias, com dosagens máximas em torno de 1.200 mg/dia (níveis séricos adequados entre 4 e 12 mcg/mL). Os efeitos colaterais mais comuns são redução benigna dos leucócitos, tontura, visão turva e sonolência (principalmente no início do tratamento). Enzimas hepáticas e hemograma devem ser colhidos periodicamente. oxcarbazepina é um análogo da carbamazepina, com menos efeitos colaterais e evidências, até o momento, de eficácia semelhante. As dosagens administradas variam de 600 a 2400mg/ dia. A lamotrigina é um anticonvulsivante (assim como o valproato, a carbamazepina e a oxcarbazepina) e tem papel importante no tratamento da depressão bipolar e na profilaxia dos episódios depressivos. Foi recomendada como monoterapia para o tratamento de depressão bipolar aguda baseada em dois estudos duplo-cegos, controlados com placebo, e em outros estudos paralelos, comparando-a com lítio ou com gabapentina 121 • Entretanto, uma recente publicação de mais quatro estudos duplo -cegos, controlados com placebo de lamotrigina para o tratamento de depressão bipolar, mostrou que a lamotrigina não foi mais eficaz que placebo 122 • Uma metanálise destes cinco estudos duplo -cegos, controlados com placebo, mostrou que a lamotrigina tem um efeito antidepressivo melhor que
o placebo, embora modesto 123 • Recentemente, outro estudo foi publicado sugerindo que, como terapia de potenciação do lítio, a lamotrigina é mais eficaz que placebo na melhora de sintomas depressivos em um episódio de depressão bipolar 123 b. A eficácia antidepressiva da lamotrigina é provavelmente modesta, mas ela continua sendo recomendada no tratamento da depressão bipolar, baseado na larga experiência clínica nessa situação 120 • A lamotrigina foi demonstrada como sendo eficaz para a prevenção de recorrência de episódios de depressão maior em dois grandes estudos multicêntricos, controlados com placebo, em pacientes que recentemente saíram de um episódio depressivo ou maníaco" 8•124. Não há evidência de eficácia no tratamento e prevenção de episódios maníacos com a lamotrigina. Pode ser administrada em uma tomada diária, com dosagens eficazes na faixa de 50 a 200 mg/ d. Costuma ser bem tolerada, mas, devido ao risco de rash cutâneo (podendo nos casos graves evoluir para síndrome de StevensJohnson), a dosagem inicial deve ser no máximo de 25 mg/ dia, devendo ser aumentada lentamente. Deve ser evitada em associação ao valproato devido ao aumento do risco de rash e síndrome de Stevens-Johnson. Os antipsicóticos têm papel importante no manejo do TB, principalmente os antipsicóticos de segunda geração (também conhecidos como "atípicos"). Os antipsicóticos de primeira geração têm eficácia na agitação e na hiperatividade maníacas, mas devem ser utilizados em situações específicas devido ao risco de síndrome extrapiramidal e discinesia tardia. Entre os de segunda geração, a olanzapina tem eficácia antimaníaca aguda e alguma eficácia antidepressiva. A quetiapina tem eficácias antimaníaca e antidepressiva bem estabelecidas. A risperidona, a ziprasidona e o aripiprazol tiveram eficácia antimaníaca aguda comprovadas. A clozapina está reservada ao tratamento de casos refratários (tanto na mania aguda quanto na profilaxia), pelo risco de indução de agranulocitose. No tratamento dos episódios agudos, geralmente é feita a associação do antipsicótico a um ou mais estabilizadores de humor para que a resposta terapêutica seja mais rápida. Para os antipsicóticos de segunda geração, deve-se ter cuidado com o risco de desenvolvimento de obesidade e síndrome metabólica (as prováveis exceções são a ziprasidona e o aripiprazol). O uso de antidepressivos deve ser evitado no tratamento do TB, havendo evidências de que podem induzir episódios maníacos ou hipomaníacos e acelerar a ciclagem, piorando a evolução da doença. Seu uso deve ser reservado para casos em que estratégias de primeira linha não tiveram eficácia no tratamento ou na profilaxia de episódios depressivos, preferindo-se os inibidores seletivos de recaptura de serotonina ou a bupropiona pelo menor potencial de provocarem um episódio de mania 125 . A eletroconvulsoterapia (ECT) está indicada na mania refratária e é tratamento de primeira escolha em depressões com estupor grave ou alto risco de suicídio, além de ser opção de primeira linha nas depressões psicóticas 126 •
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Diversos algoritmos e diretrizes para o tratamento do TB vêm sendo publicados por associações e grupos de especialistas. Em 2005, o Canadian Network for Mood and Anxiety Treatments (CANMAT) sintetizou as evidências disponíveis e definiu diretrizes de tratamento para o TB, posteriormente atualizadas em 2007 e em 2009 120 , gerando uma das mais importantes diretrizes para o tratamento do TB (Quadros V, VI e VII). O CANMAT tem orientado as suas recomendações de acordo com os seguintes níveis de evidência científica: Primeira linha: metanálise ou pelo menos dois estudos duplo-cegos, randomizados, controlados com placebo; ou pelo menos um estudo duplo-cego, randomizado, controlado com placebo e dados clínicos de eficácia e segurança. Segunda linha: estudo aberto não controlado com placebo ou comparador ativo com pelo menos dez ou mais sujeitos e dados clínicos de eficácia e segurança.
Quadro V Recomendações para tratamento farmacológico da mania
aguda' 20
Terceira linha: relato de caso ou opinião de especialistas e dados clínicos de eficácia e segurança. Elet roconvulsoterapia (ECD
No que se refere às intervenções psicossociais, é fun damental a abordagem psicoeducacional, na qual o paciente e seus familiares recebem informações sobre a doença e o tratamento; são orientados quanto à detecção precoce de sinais prodrômicos e aprendem a manter rotinas saudáveis. A psicoeducação pode reduzir em até 50% o número de recaídas e reduz o impacto da doença no paciente e em seu núcleo de relacionamentos. Além disso, aumenta a adesão ao tratamento profilático 127 • A psicoterapia cognitivo-comportamental (TCC) é a que dispõe de mais evidências de eficácia no tratamento do TB. A TCC aborda as distorções cognitivas e alterações comportamentais que os pacientes bipolares habitualmente apresentam128, sendo importante como tratamento adjuvante tanto para a prevenção de recaídas quanto para a manutenção da eutimia no TB. Outras psicoterapias também podem ser empregadas como coadjuvantes no tratamento do TB, tais como a psicoterapia familiar, que aborda os vínculos conjugais e familiares, e a psicoterapia de ritmo social, que busca estabelecer rotinas saudáveis e diminuir o estresse. O papel de cada uma dessas técnicas psicoterápicas vem merecendo estudos tanto para as fases agudas como na profilaxia, para que possam ser empregadas com maior efetividade no tratamento dos portadores de TB.
Opções
Tratamentos
Primeira linha
Lítio, divalproato, olanzapina, risperidona, quetiapina, quetiapina XR. aripiprazol, ziprasidona. Associações de lítio ou divalproato + risperidona, lítio ou divalproato + quetiapina, lítio ou divalproato + aripiprazol, lítio ou divalproato + olanzapina
Segunda linha
carbamazepina, ECT, lítio + divalproato, asenapina, lítio ou divalproato + asenapina, paliperidona
Terceira linha
haloperidol, clorpromazina, lítio ou divalproato + haloperidol, lítio + carbamazepina, clozapina
Prevenção
Não recomendado
Monoterapia com gabapentina, topiramato, lamotrigina, verapamil, tiagabina, risperidona + carbamazepina
Prevenção primária
ECT: eletroconvul soterapia
Quadro VI Recomendações para tratamento farmacológico da depres-
são bipolar tipo 1'
20
Quadro VIl Recomendações para farmacoterapia de manutenção (pro-
filaxia) no TB
Opções
Tratamentos
Primeira linha
Lítio, lamotrigina, quetiapina, quetiapina XR. lítio ou divalproato + ISRS, olanzapina + ISRS, lítio + divalproato, lítio ou divalproato + bupropiona
Segunda linha
Quetiapina + ISRS, divalproato, lítio ou divalproato + lamotrigina, modafinil como adjuvante
Terceira linha
Carbamazepina, olanzapina, lítio + carbamazepina, lítio + pramipexole, lítio ou divalproato + venlafaxina, lítio + IMAO, ECT. lítio ou divalproato ou APA + ADT, lítio ou divalproato ou carbamazepina + ISRS + lamotrigina, ácido eicosapentanoide adjuvante, riluzole adjuvante, topiramato adjuvante
Não recomendado
Para o estabelecimento de medidas de prevenção primária, inicialmente é fundamental a identificação de fa-
Monoterapia com gabapentina
ISRS: inibidor seletivo de recaptação de serotonina; IMAO: inibidor da monoamino-oxidase; APA: antipsicótico atípico; ADT: antidepressivo tricíclico; ECT: eletroconvulsoterapia.
Opções
Tratamentos
Primeira linha
Lítio, lamotrigina (eficácia limitada na prevenção de mania), divalproato, olanzapina, quetiapina, lítio ou divalproato + quetiapina, risperidona de longa ação em monoterapia e como adjuvante, aripiprazol, ziprasidona adjuvante
Segunda linha
carbamazepina, lítio + divalproato, lítio + carbamazepina, lítio ou divalproato + olanzapina, lítio + risperidona, lítio + lamotrigina, olanzapina + fluoxetina
Terceira linha
Fenitoína adjuvante, clozapina adjuvante, clozapina, ECT adjuvante, topiramato adjuvante, ômega- 3 adjuvante, oxcarbazepina, gabapentina adjuvante
Não recomendado
Flupentixol adjuvante, gabapentina, topiramato ou antidepressivos em monoterapia
Fonte: Yatham et ai, 2009 120•
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tores de risco e de proteção relacionados ao transtorno cuja incidência se pretende reduzir; em seguida, é necessário examinar a significância etiológica dos fatores de risco e se eles estão sujeitos a modificação e, por fim, avaliar a efetividade das medidas propostas 129 • A pesquisa em TB tem evoluído muito nas últimas décadas, porém ainda não há dados na literatura suficientes para a identificação definitiva de estratégias de prevenção primária do transtorno. Como vimos anteriormente, a causa do TB permanece obscura, supõe-se que o transtorno resulte da interação de múltiplos genes entre si e com fatores não genéticos, que podem in cluir desde alterações ocorrendo ao acaso no período de desenvolvimento cerebral a fatores de risco específicos relacionados ao ambiente 130 . Ademais, a fisiopatolo gia do TB ainda não foi totalmente esclarecida. Assim, a complexidade causal do TB e o desconhecimento acerca da sua etiopatogenia e fisiopatologia contribuem para a dificuldade na identificação de potenciais interven ções visando à prevenção primária. Além disso, as pesquisas sobre fatores de risco, proteção e vulnerabilidade ao TB ainda são muito incipientes. São escassos os estudos longitudinais buscando identificar fatores de risco e/ ou proteção ao TB ou estudos transversais, nos quais o risco atribuível se tenha mostrado elevado, à exceção dos estudos de epidemiologia genética. História de trauma na infância, mais especificamente abuso emo cional, estresse psicossocial e traços de temperamento, tais como níveis elevados de esquiva ao dano, vêm sen do apontados como possíveis fatores de risco para o de senvolvimento de TB sobre os quais poderiam ser planejadas e testadas ações de prevenção primária 131 - 133 • Teoricamente, pode-se supor que recomendações para populações de alto risco, ou seja, parentes de primeiro grau de portadores de TB, devam incluir evitar uso de dro gas ilícitas e uso abusivo de álcool, manejo de estressares psicossociais, bem como, estimular ajuste aos ritmos circadianos. Entretanto, não há na literatura, até o mo mento, qualquer estudo testando a efetividade de medidas de prevenção primária do TB. As estratégias de prevenção secundária e terciária já foram discutidas na sessão de tratamento (profilaxia) deste capítulo.
Além dos custos relacionados ao transtorno, a demora no diagnóstico também apresenta implicações econômicas e de prognóstico. Hirschfeld et al. 136 mostraram que 70% dos pacientes que procuravam atendimento médico foram diagnosticados erroneamente, principalmente com depressão unipolar, o que além da piora do prognóstico, retarda o uso de estabilizadores de humor, que por sua vez está associado a uma diminuição de custos na ordem de 5.044 dólares por ano 137• Em São Paulo, um estudo epidemiológico publicado por Moreno e Andrade 12, em 2005, mostrou que, nos 30 dias anteriores a entrevista, entre os portadores de TB tipo I, apenas 24,4% utilizaram algum tipo de serviço de saúde mental, enquanto entre os portadores de TB tipo 11 apenas 11,4% fizeram utilização desses serviços. Em relação ao uso de medicações no mês anterior, nos pacientes com TB I apenas 8,1% haviam feito uso de medicação e, nos pacientes bipolares tipo 11, apenas 30%. Diante desses dados, urge a adoção de medidas de saúde pública específicas, buscando aumentar o conhecimento sobre a doença, facilitar o acesso aos serviços de saúde e aos tratamentos e capacitar os psiquiatras para o atendimento desses pacientes. No Brasil, não há políticas públicas definindo ações em saúde mental dirigidas especificamente ao TB. Portadores de TB são contemplados, de forma inespecífica, por ações gerais delineadas pela Reforma Psiquiátrica e pela Política de Saúde Mental do Ministério da Saúde 138 • No que se refere ao acesso ao tratamento medicamentoso do TB, a Política Nacional de Assistência Farmacêutica do Sistema Único de Saúde prevê a disponibilização para a população dos estabilizadores de humor: carbonato de lítio, carbamazepina e valproato de sódio, os quais fazem parte da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais 139 • Dessa relação fazem parte ainda os antipsicóticos haloperidol, clorpromazina e periciazina e os antidepressivos amitriptilina, clomipramina, nortriptilina, imipramina e fluoxetina, único inibidor de recaptura de serotonina disponível. Os portadores de TB não são contemplados pelo Programa de Medicamentos Excepcionais (alto custo), o qual disponibiliza lamotrigina apenas para portadores de epilepsia e antipsicóticos atípicos somente para portadores de esquizofrenia140 •
Considerações finais Políticas públicas Segundo estudos da Organização Mundial de Saúde (OMS), em associação com o Banco Mundial, o TB foi considerado a sexta maior causa de incapacitação no mundo na faixa etária entre 15 e 44 anos 134 • O custo total do transtorno bipolar nos Estados Unidos foi de 45 bilhões de dólares, sendo 7 bilhões resultantes de custos diretos com o transtorno (medicação, hospitalização e serviços de emergência) e 38 bilhões resultantes de custos indiretos (perda de produtividade de pacientes e cuidadores) 135 .
Como vimos, o TB é um distúrbio psiquiátrico caracterizado pela alternância de episódios depressivos e de mania/hipomania. O TB tipo I apresenta prevalência ao longo da vida de cerca de 1%, o tipo 11, de aproximadamente 1,1% e as formas ampliadas do espectro bipolar têm prevalência ao redor de 4%. Trata-se de um transtorno que se inicia, em geral, no começo da vida adulta; é recorrente, grave e traz prejuízos e custos significativos não só para seu portador como para a sociedade. As mulheres são mais propensas que os homens a apresentar TB tipo
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li, ciclagem rápida e estados mistos. Pacientes com TB apresentam maiores taxas de mortalidade do que a população em geral. Aumento na mortalidade por doenças cardiovasculares e diabetes, assim como taxas de suicídio trinta vezes mais altas do que as da população geral explicam em boa parte essa alta mortalidade. A causa do TB ainda é desconhecida. Supõe-se que a sua etiologia seja complexa, provavelmente envolvendo influências genéticas e ambientais múltiplas, que podem variar amplamente entre os indivíduos afetados. Além disso, evidências atuais inclicam a existência de disfunções cognitivas e alterações em estrutura e neuroquímica cerebrais que sugerem alterações em circuitos cerebrais específicos e contribuem para compreender os mecanismos neurobiológicos associados a recorrência, cronicidade e comorbidades com outras doenças médicas e psiquiátricas. Em relação ao seu manejo clínico, o objetivo a curto prazo é o tratamento agudo dos episódios depressivos, maníacos ou mistos e das condições associadas, como a ciclagem rápida. O objetivo a longo prazo é a profilaxia das recorrências, isto é, impedir que o paciente apresente novos episódios depressivos ou maníacos, uma vez estando em remissão do último episódio de humor. Deve-se buscar sempre diagnosticar e tratar as comorbidades médicas e psiquiátricas existentes. As medicações mais utilizadas são o carbonato de lítio, os anticonvulsivantes e os antipsicóticos atípicos. A psicoeducação e as técnicas psicoterápicas específicas devem ser empregadas em associação ao tratamento medicamentoso e podem reduzir em até 50% o número de recaídas. Diagnóstico, curso longitudinal do transtorno, risco de suicídio e presença de comorbidades clínicas e psiquiátricas são aspectos que devem ser levados em consideração pelo clínico ao definir a sua escolha terapêutica, bem como as evidências científicas que sustentem cada uma das opções, lembrando que o tratamento adequado reduz substancialmente a morbidade e a mortalidade associadas à doença. Minicaso clínico Paciente do sexo feminino, 23 anos, levada ao hospital pela famíl ia após episódio de agressividade. Irmã relata que há três semanas a paciente vem dormindo muito pouco à noite e, durante a madrugada, anda pela casa, muda os móveis de posição, deixa o rádio ligado e chegou até a telefonar para conhecidos. Segundo a mãe, a paciente disse que os vizinhos planejam sequestrá-la, pois descobriu um segredo muito importante. Pegou várias roupas no armário e as doou para pessoas que encontrou na rua. Tem ficado agitada e se irrita de maneira fora do comum quando se colo, cam limites ao seu comportamento. A entrevista, não apresenta alteração do nível de consciência e se localiza no tempo e espaço. Empolgada, relata ter descoberto que foi escolhida por Deus para tratar as doenças da alma e que por isso há pessoas ligadas ao mal que querem impedi-la de realizar sua missão. Diz ouvir a voz de um anjo e conversar com ele por meio de telepatia. Pede para colocar
as mãos sobre a cabeça do entrevistador para purificá-lo, fala de maneira acelerada e muda de um assunto para outro rapidamente. Familiares relatam que há um ano a paciente passou por um período muito difícil após a morte inesperada do pai em um acidente de automóvel. Além de ficar muito triste durante meses, passou a se culpar pela morte do pai, chorava frequentemente, dormia em excesso, dizia que também queria morrer e teve que interromper o curso da faculdade. Depois de aproximadamente quatro meses, foi melhorando, voltou a estudar e estava bem até recentemente. Quando a família tentou impedi-la de sair com o carro, ela ficou irritada e agressiva, e foi trazida ao hospital.
Questões 1. Em relação ao caso clínico, escolha a alternativa correta: a) A hipótese principal é transtorno esquizoafetivo do tipo maníaco. b) A hipótese principal é TB. episódio misto grave com sintomas psicóticos. c) A hipótese principal é esquizofrenia, devido aos delírios serem bizarros. d) A hipótese principal é reação maníaca a estresse grave e o tratamento deve ser medicamentoso e psicoterápico. e) A hipótese principal é TB, episódio atual, mania grave, com sintomas psicóticos.
2. Assinale a alternativa correta: a) O TB tipo I atinge mais mulheres do que homens devido, entre outros fatores, à influência hormonal. b) A combinação de lítio com lamotrigina pode aumentar o risco de rash cutâneo. c) Antidepressivos podem induzir a aceleração da ciclagem e a "virada" maníaca no TB. d) O TB deve ser sempre tratado profilaticamente com antipsicóticos atípicos com ação estabilizadora de humor. por serem medicações mais seguras do que lítio e valproato. e) Humor irritado, fuga de ideias, delírios e alucinações podem ser sintomas de episódio hipomaníaco. 3. Podemos afirmar que: a) A presença de delírios bizarros e alucinações auditivas nos episódios agudos não é decisiva no diagnóstico diferencial de TB. esquizofrenia e transtorno esquizoafetivo. b) A principal hipótese sobre a fisiopatologia do TB é a de alterações primárias nos níveis de neurotransmissores, em especial da dopamina (em relação à mania) e da serotonina (em relação à depressão). c) Uma das hipóteses para a fisiopatologia do TB é a de alteração dos canais de sódio e do mecanismo normal de excreção do lítio. d) Por se tratar de uma patologia ligada ao transporte de lítio, o tratamento do TB deve necessariamente incluir a sua reposição via administração de carbonato de lítio em conjunto com outros estabilizadores de humor e, se necessário, antidepres.
SJVOS.
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e) O diagnóstico diferencial entre depressão bipolar e unipolar é baseado nas características clínicas dos episódios depressivos agudos.
4. Assinale a alternativa incorreta: a) Pesquisas indicam que pacientes com TB apresentam déficits cognitivos mesmo quando eutímicos. b) A transmissão do TB é complexa, com interação entre múltiplos genes de suscetibilidade e influência do meio ambiente. c) O uso de antidepressivos é sempre contraindicado no tratamento da depressão bipolar devido aos riscos de indução de virada maníaca, ciclagem rápida, desestabilização do humor e estados mistos. entre outras complicações. d) Estudos indicam que processos inflamatórios estão relacionados à fisiopatologia do TB e a doenças clínicas. como as cardiovasculares. e) Parentes de primeiro grau de portadores de TB têm risco quase dez vezes maior de apresentar o transtorno que a população geral. 5. Assinale a alternativa correta: a) Ao se indicar o tratamento com lítio, deve-se iniciar ao mesmo tempo o tratamento preventivo com levotiroxina devido ao risco de hipotireoidismo. b) Gabapentina e topiramato são considerados estabilizadores de humor por terem ação anticonvulsivante. c) O TB tipo I é caracterizado pela alternância de episódios depressivos e hipomaníacos. d) O TB tipo li é mais prevalente no feminino que no sexo masculino. e) Os transtornos de personalidade, de ansiedade e por uso de substâncias não são comorbidades frequentes no TB.
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55 TRANSTORNO BIPOLAR
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730
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
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Transtornos do Humor no Ciclo da Vida
Sheila Cava lcante Caetano A na Kleinman Bernardo de Mattos Viana Tânia Corrêa de Toledo Ferraz A lves
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 732 Fase da infância e adolescência, 733
Após ler este capítulo, você estará apto a:
Introdução, 733 Epidemiologia, 734 Quadro clínico, 734 Diagnóstico. 736 Curso e prognóstico. 737 Diagnóstico diferencial/comorbidade, 737 Tratamento, 738 Fase do adulto jovem, 744 Fase da meia-idade (40 a 60 anos). 744 Introdução, 744
1. lnterar-se sobre episódio depressivo, episódio maníaco, episódio
hipomaníaco, episódio misto, sintomas depressivos, sintomas maniformes, na infância e adolescência e terceira idade. 2. Caracterizar os transtornos depressivo recorrente, bipolar, distímico, ciclotímico, depressivo menor, depressivo sem outra especificação do humor em razão de uma condição médica geral e do humor induzido por substância, além dos sintomas depressivos associados a demências. 3. Conhecer diagnósticos diferenciais/comorbidades: luto, transtorno de ajustamento com sintomas depressivos ou tipo depressão maior.
Síndromes depressivas em mulheres no climatério, 744 Epidemiologia, 745 Tratamento, 745 Fase da terceira idade, 746 Introdução. 746 Quadro clínico, 746 Epidemiologia, 748 Fatores de risco e proteção, 749 Tratamento, 749 Medicamentos, 750 Minicaso clínico, 752 Questões, 752 Referências bibliográficas, 753
Introdução O ciclo da vida é o processo do desenvolvimento biológico, psíquico e social humano que se inicia no nascimento e se estende até a morte. O estudo do ciclo da vida divide esse processo em estágios específicos com características definidoras próprias. Cronologicamente, é dividido em infância, adolescência e fase adulta, sendo que essa última pode ainda ser subdividida em adulto jovem, meia idade e terceira idade.
Para a psicologia do desenvolvimento, o ciclo da vida pode ser dividido em um maior número de estágios, também compostos por características próprias. O princípio epigenético, proposto por Erik Erikson, pressupõe que as características próprias de cada fase, como crises e eventos vivenciados pelos indivíduos de cada etapa, devem ser bem resolvidas para que possa ocorrer uma transição suave entre elas e não haja reflexo negativo nas fases seguintes1. Foge ao escopo desse capítulo uma abordagem profunda das diversas teorias do desenvolvimento humano e seus pensadores, mas serve para contextualizar e enriquecer a discussão da complexa interação entre os fatores biopsicossociais na influência de determinados eventos e atitudes do ser humano frente a esse desenvolvimento. A vivência da existência humana é também profundamente influenciada pelas etapas do desenvolvimento no ciclo da vida, sendo que as emoções, a qualidade de vida e o sentido da existência são moldados e moldam todo esse processo. O papel dos cuidadores, estimulando e confortando, e os estímulos externos parecem desempenhar função central na regulação de emoções das crianças. Ao lon-
56 TRANSTORNOS DO HUMOR NO CICLO DA VIDA
go do ciclo da vida, há a tendência de que os mecanismos regulatórios sejam internalizados e as emoções ganhem significado próprio e independente dos estímulos do meio. Um estudo sobre a análise de emoções (raiva, culpa, orgulho, tristeza, medo, vergonha, realização, ansiedade/preocupação, contentamento, irritação, frustração, desgosto, entre outros) no ciclo da vida mostrou que idosos apresentam maior complexidade e mistura de emoções, principalmente as do polo positivo. O processo de regulação das emoções parece desempenhar um importante papel nas relações interpessoais, nos mecanismos de adaptação ao estresse e na otimização da saúde mentaF. O entendimento do ser humano e os agravos à sua saúde, em especial os transtornos mentais, não podem ser analisados de uma forma integral, senão quando avaliados longitudinalmente e baseados em sua história de vida nesse contexto biopsicossocial. Dentre os transtornos mentais, os transtornos do humor são especialmente influenciados em sua apresentação, curso e gravidade, assim como influenciam todas as etapas do desenvolvi-
Tabela I
mento humano no ciclo da vida e aqueles que o cercam. Como exemplo das especificidades de cada fase do ciclo da vida, são apresentadas as estimativas de episódios depressivos nos últimos 30 dias, prevalência de 12 meses e ao longo da vida de acordo com as diferentes faixas etárias (Tabela I). A prevalência de 12 meses de transtorno depressivo maior (TDM) por faixa etária e país pode ser observado na Tabela II.
Fase da infância e adolescência Introdução Transtorno depressivo maior (TOM)
Relatos de casos em crianças e adolescentes com sintomas que se assemelham ao do transtorno depressivo datam do século XVII. Contudo, o estudo sistemático do TDM e seus sintomas na infância e adolescência começou apenas depois da década de 1970, desafiando as teorias de que, nessa faixa etária, ainda não haviam se de-
Epidemiologia dos transtornos do humor no ciclo da vida - estimativas de episódios depressivos por critérios do DSM- IV/CID- 10 Grupos por idade (anos)
Mulheres
Homens
Todas as idades
18-34
35-49
50-64
> 65
30 dias
3,1 (0,2)
3,7 (0,3)
3,7 (0,3)
3,0 (0,4)
1,O (0,3)
12 meses
8,3 (0,3)
10,4 (0,5)
9,4 (0,5)
7,7 (0,7)
2,6 (0,4)
Ao longo da vida
19,2 (0,5)
19,4 (0,8)
22,7 (0,9)
20,7 (1 ,2)
9,8 (0,9)
30 dias
3,9 (0,2)
5,0 (0,5)
4,5 (0,4)
3,3 (0,5)
1,5 (0,5)
12 meses
10,2 (0,5)
13,6 (0,8)
11 ,3 (0,6)
9,1 (1 ,O)
3,7 (0,7)
Ao longo da vida
22,9 (0,6)
23,7 (1 '1)
26,7 (1 ,O)
24,6 (1 ,5)
13,0 (1 ,3)
30 dias
2,3 (0,2)
2,4 (0,4)
2,9 (0,5)
2,8 (0,5)
0,2 (0,2)
12 meses
6,2 (0,4)
7,2 (0,7)
7,4 (0,8)
6,1 (0,9)
1,2 (0,5)
Ao longo da vida
15,1 (0,8)
15,1 (1 ,2)
18,6 (1 ,4)
16,2 (1 ,4)
5,3 (1 ,2)
Fonte: adaptada de Kessl er et al.3 . *Média (desvio padrão).
Tabela 11
Prevalência de 12 meses de TOM por faixa etária e país e por critérios do DSM- IV/C I D- 1O por idade e país Grupos por idade (anos) Todas as idades
18- 34
35- 49
50-64
> 65
Brasil
10,4 (0,6)
10,9 (0,7)
11 ,8 (1 ,2)
9,1 (1 ,1)
3,9 (1 '1)
Espanha
4,0 (0,3)
3,6 (0,7)
3,8 (0,5)
5,4 (0,7)
3,6 (0,6)
Países em desenvolvimento
5,9 (0,2)
5,3 (0,2)
6,2 (0,3)
6,8 (0,4)
7,5 (0,8)
Países desenvolvidos
5,5 (O, 1)
7,0 (0,3)
6,0 (0,2)
5,1 (0,2)
2,6 (0,2)
Fonte: adaptada de Kessl er et ai.•. *Média da prevalência (desvio padrão).
733
734
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
,
1.00 Ü' 800
~
600 400I -
,
200
... I
I I
I
•
Figura 1
I
Número total de artigos
quiátricas, podendo chegar a 40% dos adolescentes internados12. Estudos em adultos utilizando critérios diagnósticos mais amplos, como o espectro bipolar, encontraram taxas que variaram entre 2,6 e 6,5%" ·13; acredita-se que esses números também possam ser aplicados à população infantil 14. A metodologia e os critérios diagnósticos utilizados nos estudos nem sempre apresentam a mesma rigidez, dificultando, portanto, uma estimativa real desse diagnóstico em crianças e adolescentes. Filhos de pais com THB apresentam um risco relativo de 2,2 vezes para qualquer transtorno psiquiátrico do eixo I; 2,3 vezes para transtornos ansiosos; 5,2 vezes para quaisquer transtornos do humor e 13,4 vezes para transtorno do espectro bipolar. Esse risco é ainda maior se ambos os pais tiverem sidos diagnosticados com THB 15.
Publicações no Medline sobre o tema THB em crianças, de 1965
a 2009.
Quadro clínico Transtorno depressivo maior (TOM)
senvolvido mecanismos psicológicos necessários para se sentir depressão ou euforia5 • Transtorno do humor bipolar (fHB)
O THB na infância e adolescência, hoje, é uma realidade. A sua existência não é mais questionada, entretanto, há um longo caminho pela frente para compreender todas as idiossincrasias que acometem essa faixa etária. A produção científica dobrou nos últimos dez anos, talvez estimulada pelas controvérsias que historicamente rondam esse diagnóstico6 (Figura 1).
Epidemiologia Transtorno depressivo maior (TOM)
O TDM parece ser frequente entre jovens, assim como seu início tem sido cada vez mais precoce. O aumento do risco para esse transtorno começa no início da adolescência, com um aumento linear até a idade adulta, quando sua prevalência atinge um platô7 • No final da adolescência, a depressão se torna duas vezes mais prevalente no sexo feminino, sendo que, na infância, não há diferença de prevalência entre meninos e meninas. Nos Estados Unidos, estima-se que 2 a 2,5% das crianças e 5 a 9,8% dos adolescentes sofram de TDM8·9. No Brasil, a prevalência de depressão foi de 7,6% numa amostra de 1.555 adolescentes de escolas públicas e particulares avaliados pela Beck Depression Inventory 10 . Transtorno do humor bipolar (fHB)
A real prevalência do THB na infância e adolescência é ainda incerta. Uma revisão baseada em estudos publicados e não publicados realizados na comunidade mostrou que a prevalência ao longo da vida em adolescentes nos EUA variou entre 1 e 1,4%". Essas taxas aumentam consideravelmente quando se analisam amostras em clínicas psi-
Tristeza isolada e transitória não é um sintoma de depressão, mas sim a "tristeza patológica", de qualidade distinta e que persiste por, pelo menos, 14 dias. Outros sintomas importantes do TDM são a perda de interesse e prazer, diminuição da autoestima e autoconfiança, choro frequente, sentimentos de culpa e vergonha, alterações no apetite e no sono, diminuição da concentração, perda de esperança e ideias mórbidas e suicidas. Depressão é o maior fator de risco para ideação e tentativas de suicídio e suicídio consumado em adolescentes, sendo que de 5 a 10% dos adolescentes tendem a se suicidar dentro dos 15 anos do surgimento do primeiro episódio de depressão 16. Os sintomas depressivos interferem nas relações interpessoais. Crianças deprimidas ficam sem energia e interesse pelas brincadeiras e deixam de convidar ativamente os amigos para brincar, passear e praticar atividades de lazer. Com a evolução do quadro, as crianças com depres são deixarão de aceitar convite para brincar e se isolarão do seu grupo de convívio. A depressão traz prejuízos no desempenho escolar. Em mulheres que apresentaram depressão na adoles cência, estima-se uma perda de rendimentos anuais em torno de 12 a 18%, em virtude do menor nível educacional'7. Dados empíricos sugerem que o quadro clínico do TDM é similar entre crianças, adolescentes e adultos, mas há características que são mais frequentes de acordo com a faixa etária. Especificamente, a hipersônia é mais co mum em adolescentes do que em crianças. As tentativas de suicídio também apresentam aumento com a idade 18. Na infância, sintomas físicos e problemas de comportamento são mais comuns, enquanto os sintomas melancólicos e psicóticos são menos frequentes 19. Essas especificidades de cada faixa etária pode ser decorrentes da maturação do sistema nervoso central (SNC).
56 TRAN STORNOS DO H UMOR NO CICLO DA VIDA
Transtorno do humor bipolar (fHB)
O THB é uma doença de difícil diagnóstico principalmente em razão da riqueza das apresentações clínicas possíveis. O paciente pode apresentar desde um exuberante quadro psicótico a, quando estável, um comportamento totalmente adequado. Em crianças e adolescentes, o diagnóstico correto também não é uma tarefa fácil. A apresentação atípica do THB em crianças e adolescentes quando comparada à apresentação em adultos e a necessidade de ponderar o sintoma apresentado em relação à idade e ao desenvolvimento cognitivo, emocional e social daquela criança são alguns dos fatores que dificultam esse diagnóstico 20 • Os sintomas são uma função direta do estágio de desenvolvimento daquela criança e devem ser avaliados dentro do contexto no qual os sintomas acontecem. Por exemplo, toda criança fica eufórica no seu aniversário ou no dia do Natal, diferentemente de uma criança que enfrenta a professora questionando o seu conhecimento teórico na sala de aula, cuja postura é inadequada, desprendida da realidade e que lhe trará prejuízos evidentes. Importante lembrar que crianças têm dificuldade de nomear e compreender a subjetividade dos seus sentimentos e podem exteriorizar essas emoções por meio de comportamentos nem sempre condizentes com o que sentem. A maioria das crianças com THB apresenta oscilações rápidas do humor e uma frequência maior de estados mistos, o que dificulta a identificação de episódios distintos de depressão e mania, sendo mais característicos em adultos. Além de uma apresentação distinta, em crianças e adolescentes, esse diagnóstico cursa com altas taxas de comorbidades, aumentando a complexidade desse diagnóstico.
Os sintomas de mania mais frequentes estão descritos na Tabela IIF 1 • Esse padrão de sintomas foi consistente ao longo dos estudos22•23 • Na Figura 2, temos o exemplo de um bilhete escrito por uma paciente de 7 anos em mania. Vale ressaltar que irritabilidade é um dos sintomas mais frequentes nessa população e, muitas vezes, é o que causa maior prejuízo. Porém, irritabilidade apre senta uma alta sensibilidade e baixa especificidade para problemas psiquiátricos em crianças e adolescentes. Irritabilidade pode estar presente em pacientes com depressão, ansiedade generalizada, transtorno opositor desafiador, transtorno de estresse pós-traumático, transtorno de conduta, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), Asperger, autismo, entre outros, então não deve ser usada como único sintoma para diagnóstico de THB2 1.
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Figura 3
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Desenho da "Rainha Gi". (Veja imagem colorida no encarte.)
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Figura 2 Bilhete escrito por uma paciente de 7 anos em mania. "Gi, a maior rainha do universo, ela ajuta as qurianssinhas, tatos adorão a rainha Gigi, ela é a maior rica do universo, ela mora na casa branca e ainda é a dona da casa branca e ela é a mas bonita do universo, ela é a mais corajosa do universo:· (Veja imagem colorida no encarte.)
Tabela 111 Porcentagem de sintomas de mania encontrada em uma metanálise de estudos de THB em crianças e adolescentes. Porcentagem (Ofo)
Intervalo de confiança
Aumento de energia
89
76-96
Oistratibilidade
84
71 -92
Pressão de fala
82
69-90
lrritabilidade
81
55-94
Grandiosidade
78
67-85
Pensamentos acelerados
74
51 -88
Necessidade de sono diminuída
72
53-86
Euforia/elação
70
45-87
Baixo insight
69
38-89
Fuga de ideias
56
46-66
Hipersexualidade
38
31 -45
Sintoma
Fonte: adaptada de Kowatch et aJ.2•.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Quando deprimidos, esses pacientes apresentam um quadro similar a uma criança diagnosticada com depressão unipolar (ver sintomatologia na descrição anterior). Sintomas psicóticos são muito frequentes em crianças e adolescentes com THB. Na metanálise realizada por Kowatch et al. 2 1, alucinações e delírios estavam presentes em 42% desses pacientes. Na presença de sintomas psicóticos, a pesquisa de sintomas do humor é mandatária, pois, se o THB não é comum nessa faixa etária, esquizofrenia de início precoce é ainda mais rara20. O risco de suicídio no THB é um dos mais altos entre os transtornos psiquiátricos25, entre 25 e 50% dos adultos tentarão suicídio pelo menos uma vez ao longo da vida, e entre 8 e 19% morrerão por suicídio 11 • Adultos com THB de início precoce apresentam um risco maior de comportamentos suicidas26•27• As taxas de ideação e tentativa de suicídio também são alarmantes entre jovens com THB, alguns estudos mostram taxas ao longo da vida que chegam a 44 e 72%, respectivamenté2•28-33 . Essas crianças também apresentam sintomas cognitivos que independem do episódio da doença ou da medicação. Problemas de atenção, nas funções executivas, na memória de trabalho e na aprendizagem verbal são algumas das alterações encontradas. Crianças com THB e comorbidades como transtorno de déficit de aten ção e hiperatividade (TDAH) apresentam um desempenho ainda pior nas tarefas que avaliam atenção e função executiva34 •
Diagnóstico Transtorno depressivo maior (fDM)
Para o diagnóstico de TDM na infância e na adolescência são adotados os mesmos critérios diagnósticos para o adulto, de acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV), exceto por duas condições: para crianças e adolescentes, o DSM-IV instrui que, em vez de deprimido, o humor pode ser irritável; e que crianças podem não apresentar a perda de peso, mas sim ausência no ganho de peso esperado. Na distimia, o DSM-IV requer apenas um ano de duração de sintomas depressivos, em vez dos dois anos em adultos. Transtorno do humor bipolar (fHB)
Como descrito anteriormente, o THB é um dos diagnósticos psiquiátricos mais ricos em termos de sintomatologia. Os pacientes apresentam oscilações do humor que se caracterizam por alternar episódios depressivos,
Quadro I
com ou sem sintomas psicóticos, e episódios de hipomania ou mania, com ou sem sintomas psicóticos. Adicionam-se a esse quadro clínico florido pacientes em desenvolvimento cognitivo, social e emocional e resulta-se em um quadro de grande complexidade. Uma anamnese criteriosa é a chave para um diagnóstico correto. A investigação deve ser feita avaliando-se não só a apresentação clínica dos sintomas atuais, mas também a evolução desses sintomas ao longo do tempo. O diagnóstico deve ser feito de forma criteriosa e levando se em conta apenas os sintomas que tragam prejuízo real à vida desses pacientes e que estejam desprendidos do contexto da situação vivida. A anamnese será feita com opaciente e com os cuidadores, bem como também terá fun damental importância o diálogo com a escola. Crianças e adolescentes passam grande parte do seu dia na escola, por isso esse contato pode fornecer dados importantes para o diagnóstico, além de ser essencial para o tratamento que a escola compreenda as especificidades desse aluno. História de THB na família é o fator de risco mais bem estabelecido35 e necessita ser cuidadosamente analisado durante a anamnese; nem sempre esse transtorno é diagnosticado em familiares, assim, é importante explicar o que é o THB para os familiares e perguntar se alguém na família apresenta um comportamento semelhante. Um diário do humor do paciente é um instrumento bastante interessante para entender o seu padrão de oscilação, assim como a dinâmica dentro da qual essas oscilações ocorrem (ver Quadro I). Atualmente, o THB sem outra especificação (THBSOE) é o de maior prevalência entre crianças e adolescentes. Isso ocorre pois esses pacientes não cumprem os critérios diagnosticados necessários em relação a duração e/ ou número de sintomas (4 dias para hipomania e 7 dias para mania) e, dificilmente, as alterações do humor ocorrem em episódios distintos 20. Um estudo multicêntrico avaliando essas crianças mostrou que não houve diferenças significativas entre as crianças com THB-SOE e THB tipo I na idade de início da doença, tempo de doença, comorbidades, ideação suicida, histórico familiar. Entretanto, os jovens com THB tipo I tiveram sintomas maníacos mais graves, maior prejuízo funcional, taxas mais elevadas de hospitalização, mais sintomas psicóticos e maior número de tentativas de suicídio22 • Importantes grupos de pesquisa dos EUA, por exemplo, utilizam diferentes diretrizes no diagnóstico 36-39 • Até hoje, o consenso inexiste em relação a quais critérios diagnósticos devem ser usados nessa população. Essas
Diário do humor para pais, paciente, professores e outros cuidadores preencherem
Data e hora
Humor
Gatilho
(triste, alegre, eufórico, irritado,
(discussão, aniversário, festas, limites,
hipersexualizado etc.)
visitas especiais etc.)
Tempo de duração do sintoma
56 TRANSTORNOS DO HUMOR NO CICLO DA VIDA
diferenças enfatizam as incertezas que ainda permanecem no diagnóstico dessa faixa etária. É importante res saltar que os critérios diagnósticos do THB em crianças e adolescentes estão sendo revistos no DSM-V (www. dsmS.org). Todavia, alguns dados foram consistentemente demonstrados pelos diferentes grupos, a saber: altas taxas de elação e euforia; altas taxas de irritabilidade; curso crônico com longos períodos de sintomas subsindrômicos, oscilações rápidas entre humor depressivo e hipomania/mania; altas taxas de comorbidades com TDAH; outras doenças disruptivas e ansiedade; altas taxas de uso de substâncias entre adolescentes; altas taxas de sintomas psicóticos e tentativas de suicídio; prejuízo funcional considerável. Esses dados reforçam a necessidade do diagnóstico e tratamento precoce nessa população20.
Curso e prognóstico Transtorno depressivo maior (fDM) A duração do episódio de TDM é muito variável, sendo relatada, em amostras clínicas, uma média deduração de 6 a 9 meses 40. Cerca de 30 a 40% dos pacientes apresentarão remissão em menos de seis meses, ao passo que até 70 a 80%, em menos de um ano 41 . O tempo para se recuperar está associado à idade de início do TDM, gravidade, presença de comorbidades e histórico familiar de TD M em pais42. O TDM na infância e adolescência está associado a altas taxas de recaídas. A recorrência em cinco anos é de 30 a 70% em crianças e de 20 a 54% em adolescentes 40. Esse risco de recorrência se estende à vida adulta e leva a uma maior utilização dos serviços psiquiátricos e do uso de medicação43 . Após remissão, os problemas de relacionamento dos adolescentes persistem por meses e são preditivos de dificuldades em relacionamentos íntimos no futuro, principalmente conjugais44 . Transtorno do humor bipolar (fHB) Na Figura 4 há uma ilustração da oscilação do humor no THB na infância, sendo que, para essa faixa etária, é considerado início precoce se o surgimento dos sintomas ocorre antes dos 18 anos. Entre 40 e 100% dos pacientes com THB se recuperam em um período de 1 a 2 anos; porém, desses, 60 a 80% apresentarão recaída no período de 2 a 5 anos38,45-47 . Birmaher et al. 48 mostraram que pacientes com THB -SOE levam um tempo maior para se recuperarem, bem como para apresentarem recaída quando comparados ao THB tipo I e II. Em um estudo longitudinal de quatro anos, 25% dos pacientes com THB tipo II evoluíram para THB tipo I e 38% dos pacientes com THB-SOE evoluíram para THB tipo I ou Il49. Análises preliminares do estudo denominado COBY (Course and Outcome ofBipolar Youth) mostrou que pa-
cientes com início precoce do THB, antes da puberdade, tiveram, aproximadamente, duas vezes menos chance de se recuperarem quando comparados aos pacientes com início da doença após a puberdade. A gravidade do quadro também foi maior em pacientes com início antes da puberdade: permaneceram um tempo maior sintomáticos e tiveram um número maior de oscilações do humor por ano 48 . O prejuízo funcional desses pacientes é considerável. O THB interfere no adequado desenvolvimento emocional, cognitivo e social dos pacientes. Esses pacientes apresentam um risco elevado para tentativas de suicídio, abuso de substâncias, problemas legais e contribuem significativamente com as taxas de utilização de serviços de saúdezo,zz,4s,46. Fatores associados com piora do curso do THB incluem: idade de início precoce, duração da sintomatologia, presença de episódios mistos, ciclagem rápida, sintomas psicóticos, sintomas subsindrômicos, comorbidades com TDAH e ansiedade, estrato socioeconômico baixo, eventos de vida negativos, ausência de psicoterapia, baixa adesão ao tratamento medicamentoso, presença de transtornos psiquiátricos na família, uso de antidepressivo e de álcooP8,49-54 • Geller et al.36 mostraram a importância da continência familiar na evolução desses quadros: baixos escores de afetividade materna foram preditivos de recaídas e famílias intactas apresentaram maiores taxas de recuperação. Altos níveis de emoções expressas também afetam negativamente o prognóstico de THB55 .
Diagnóstico diferencial/comorbidade Transtorno depressivo maior (fDM) Crianças e adolescentes com TDM apresentam alta prevalência de comorbidades (até 77%) 56,57, principalmen-
Transtornos do humor na infânc.i a Transtorno bipolar I de início precoce Mania
--------------- - ·
Hipomania Síndrome depressiva - - - - - - - - -
18 anos
Transtorno bipolar 11 de início precoce Mania Hipomania
--------- ----------------· 18 anos
Figura 4 Gráfico demonstrando exemplos de oscilações do humor no transtorno do humor bipolar na infância.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
te com transtornos ansiosos (33 a 65%), transtorno de conduta (20 a 37%) e distimia (25 a 50%) 58•59, sendo que a comorbidade com transtornos ansiosos está associada a maior gravidade e duração do TDM, suicídio, pior resposta à psicoterapia e maiores problemas psicossociais60. Dessa forma, adultos com TDM de início na infância e na adolescência apresentam mais comorbidades no eixo I do DSM-IV que indivíduos com TDM de início tardio. O início precoce está associado à maior prevalência de fobias social e simples, assim como dependência e abuso de álcool61 . Comorbidade com abuso de substâncias está associada a início precoce e maior gravidade de problemas relacionados ao uso de substâncias, aumento da frequência de problemas de comportamentos, maior recorrência de episódios depressivos e aumento do risco para suicídio62 . Em contraste, adolescentes com TDM e transtornos disruptivos parecem ter menos sintomas melancólicos, menor recorrência de episódios depressivos, menor fre quência de histórico familiar para transtornos do humor e maior incidência de comportamentos criminosos, com maior resposta ao placebo, do que pacientes com TDM sem comorbidadé3•64 • Transtorno do humor bipolar (fHB) As altas taxas de comorbidades entre THB e outros transtornos psiquiátricos dificulta não só o diagnóstico dessa doença, mas também a sua diferenciação com outros diagnósticos. A persistência dos sintomas comórbidos durante um período de eutimia é idealmente necessária, porém, frequentemente não há períodos claros de eutimia no THB em crianças e adolescentes, dificultando, assim, essa diferenciação65. As taxas e o tipo de transtornos psiquiátricos variam de acordo com a idade e com a amostra estudada (clínica ou comunidade) 46 . Os estudos mostram taxas que variam entre 50 e 80% para TDAH, 20 e 60% para transtornos disruptivos, 30 e 70% para transtornos ansiosos 4 6 • Para quadros de THB com início na adolescência, as comorbidades com uso e abuso de substância e transtorno de conduta aumentam 21. O diagnóstico diferencial com TDAH é provavelmente um dos mais difíceis em razão da sobreposição de sintomas. Os melhores sintomas para diferenciá-los são: elação de humor e/ou grandiosidade, necessidade diminuída de sono e fuga de ideias66 . Muitas vezes, o THB se inicia com um quadro depressivo em mais de 50% desses jovens22, sendo muito difícil, nesse momento, fazer o diagnóstico diferencial entre depressão unipolar ou bipolar. É importante uma anamnese cuidadosa procurando histórico familiar e sintomas prévios sugestivos de mania, e, principalmente, um acompanhamento longitudinal cuidadoso do caso. Sintomas psicóticos devem ser cuidadosamente acompanhados, pois os pacientes recebem de forma errada o diagnóstico de esquizofrenia em 50% dos casos67•68 .
Aproximadamente 1/3 dos pacientes com esquizofrenia abre o quadro psicótico acompanhados de sintomas do humor, por isso um corte transversal dificulta esse diagnóstico diferencial69 • Um estudo longitudinal de sintomas psicóticos com início na adolescência encontrou que 25% dos pacientes diagnosticados com esquizofrenia eram, na verdade, pacientes com THB, e que 50% dos pacientes com THB foram inicialmente diagnosticados com esquizofrenia68 • O uso de medicamentos como antidepressivos, estimulantes, corticosteroides, aminofilina, alguns antibióticos e simpatomiméticos pode induzir sintomas maniformes70 , porém isso não significa que o paciente tenha THB. O histórico familiar e a gravidade da sintomatologia são alguns dos fatores que devem ser considerados para diferenciar o THB de uma agitação induzida por medicação7 1. A diferenciação com doenças como epilepsia do lobo temporal, hipertireoidismo, trauma cranioencefálico, esclerose múltipla, lúpus eritematosos sistêmico (LES), doença de Wilson é fundamental, haja vista que essas doenças podem piorar ou mimetizar o THB72•73 • Em pacientes que apresentam comportamento hipersexualizado, a investigação de abuso sexual ou físico é mandatária, pois esse sintoma é, geralmente, a única pista sugestiva de abuso.
Tratamento Transtorno depressivo maior (fDM) Antidepressivos da classe de inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) apresentam melhor resposta que placebo em adolescentes, embora a magnitude da resposta seja de pequena a moderada em razão da alta resposta a placebo. O ISRS com melhor taxa de resposta é a fluoxetina. O estudo The Treatment for Adolescents with Depression Study (TADS) foi o primeiro ensaio clínico comparando antidepressivo fluoxetina, terapia cognitivo-comportamental (TCC), a combinação de tais modalidades, e placebo em 439 adolescentes com TDM por 12 semanas, sendo que os respondedores permaneciam mais seis meses se não estivessem no grupo placebo. Após três meses de tratamento, fluoxetina foi superior a placebo (taxa de resposta de 61 versus 35%), mas TCC (43%) não foi estatisticamente diferente de placebo7 4 • Entretanto, apenas a combinação de fluoxetina e TCC induziu à taxa de remissão maior que a de placebo (37 versus 17 %)75, e também a uma melhora do funcionamento e da qualidade de vida em comparação à monoterapia76• Contudo, no acompanhamento de seis meses, ocorreu uma convergência gradual dos três grupos de tratamento ativo, levando a uma não diferença estatística entre fluoxetina, TCC e a sua combinação na taxa de resposta (81, 81 e 86%, respectivamente) ou remissão (55, 64 e 60%, respectivamente) na avaliação de nove meses77 • De um modo geral, o antidepressivo parece
56 TRANSTORNOS DO HUMOR NO CICLO DA VIDA
ter efeito mais rápido no processo de recuperação, enquanto a psicoterapia apresenta uma melhora gradual, embora, depois de um determinado tempo (nove meses), não haja diferença entre as duas modalidades de tratamento5 • O aumento do risco de suicídio com uso de antidepressivos em adolescentes é pequeno, mas consistente na maioria dos estudos. No entanto, estudos epidemiológicos não apontam para uma relação entre aumento de uso de antidepressivos e aumento da taxa de suicídio. Ao contrário, dados epidemiológicos mostram uma associação inversa entre prescrição de ISRS e taxas de suicídio, como demonstra a Figura 5, cujo gráfico alerta sobre o risco de suicídio na prescrição de antidepressivo em crianças e adolescentes holandeses, de 2003 a 2005 - antes e depois do aviso do Food and Drug Administration (FDA). A prescrição de antidepressivo diminuiu em 22% para pacientes menores de 20 anos, e a taxa de suicídio aumentou para 49% (de 34 a 51 suicídios, ou 0,86 a 1,28/100.000) e aumentou em 446% em meninos com menos de 15 anos (de 2 a 11 suicídios, ou 0,13 a 0,71/100.000)18 . Psicoterapias que são, provavelmente, eficazes em adolescentes são a TCC e a terapia interpessoal (TIP). Em crianças, as modalidades de TCC em grupo e também com componente parenta! são bem estabelecidas; enquanto para adolescentes, duas modalidades são bem estabelecidas (TCC em grupo, TIP individual) e três são provavelmente eficazes (TCC em grupo com componente parenta!, TCC individual, TCC individual com componente parental/familiar )19• Fatores familiares estão relacionados ao TDM, com efeitos bidirecionais de causa e consequência. Uma comparação entre fatores de risco e psicoterapia para adolescentes indica que poucos ensaios de psicoterapia enfocam fatores familiares. No entanto, há evidências da associação entre tratamento da depressão parenta! e me-
o o o o o
1,3
~
....o 1'1 0..
~
0.9
1998 1999 2000
Figura 5
2001 2002 Ano
2003 2004 2005
Taxas de suicídio para crianças e adolescentes da Holanda para o período de 1998 a 2005. Fonte: adaptada de Gibbons et al. 78 . Este gráfico mostra aumento de taxas de suicídio após aviso do FDA a diminuição da prescrição de antidepressivo.
Ih ora dos sintomas e funcionamento das crianças, mas o tratamento dos pais pode não ser suficiente para melhorar o desenvolvimento cognitivo, o apego e o temperamento em crianças pré-púberes80 • Transtorno do humor bipolar (fHB)
O tratamento medicamentoso em crianças e adolescentes deve, quando possível, ser evitado. Infelizmente, essa não é uma possibilidade no THB. O prejuízo diário de crianças e adolescentes que, em vez de estarem se desenvolvendo normalmente, estão lutando com sintomas sindrômicos ou subsindrômicos torna mandatária a ajuda medicamentosa para diminuir as chances de recaídas e recorrências. Essa ajuda permite a estabilização do quadro, levando ao desenvolvimento emocional, cognitivo e social mais próximo do esperado 81• As únicas medicações aprovadas pelo FDA dos EUA (United States Food and Drug Administration) para THB na infância e adolescência são para mania aguda: risperidona e aripiprazol para crianças a partir de 1O anos; e lítio para crianças a partir de 12 anos. Nenhuma medicação foi aprovada para tratar todas as fases do THB, entretanto há inúmeros estudos sendo realizados e publicados constantemente73. A escolha da medicação deve ser feita baseada em evidências científicas, fase da doença, presença ou ausência de sintomas psicóticos, possíveis efeitos colaterais, histórico pregresso de resposta medicamentosa e preferência do paciente e familiares 81 . As diretrizes aceitas, hoje, para o tratamento do THB na infância e adolescência advogam a monoterapia como primeira, segunda e até terceira escolha. A associação de um segundo psicofármaco deve ser feita apenas na otimização de uma resposta parcial ou após, pelo menos, duas tentativas de monoterapia sem resposta. Nos Quadros li e III e Figuras 6 e 7, adaptaram-se os algoritmos realizados por um consenso de especialistas descritos nas diretrizes de tratamento de Kowatch et al. 24 para crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos, com diagnóstico de THB tipo I, em fase aguda. Esses algoritmos norteiam a escolha da medicação e os possíveis caminhos para otimizar o tratamento, mas não devem ser usados aleatoriamente como verdade absoluta. O diagnóstico e bom senso clínico são essenciais para um tratamento de sucesso. Apesar de o algoritmo sugerir o uso tanto de estabilizadores de humor (EH) como de antipsicóticos atípicos (AA) como primeira opção, o uso de AA vem ganhando espaço nos últimos anos, especialmente na presença de sintomas psicóticos73 • Nos Quadros li e III, são descritos os psicofármacos mais usados, com as doses inicias recomendadas e os principais efeitos colaterais 14•82•83 • Para uma revisão dos estudos em crianças e adolescentes de cada medicação, ver Kowatch et aJ.l 4 . Na Tabela IX, é possível encontrar os ní-
739
740
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 5
1° estágio
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
, 22 estágio
Otimizar: Li+ VAL Li + OLZ Li+ QUE Li+ RISP VAL + OLZ VAL + QUE VAL + RISP CBZ + OLZ CBZ +QUE CBZ + RISP
Resposta parcial ..
Monoterapia Li, VAL, CBZ. OLZ. QUE, RISP Sem resposta
Monoterapia com uma medicação não usada em 1 Li, VAL. CBZ. OLZ. QUE, RISP ~
ou resposta parcial
' 3A
,
1
3° estágio
Monoterapia com uma medicação não usada em 1 e 2 Li, VAL. CBZ, OLZ, QUE, RISP
Sem resposta
Associação: Li + VAL Li+ OLZ Li+ QUE Li + RISP VAL + OLZ VAL +QUE VAL + RISP CBZ + OLZ CBZ + QUE CBZ + RISP
ou resposta parcial
4A r
4íl estágio
5í! estágio
Associação: Li + VAL Li+ OLZ Li+ QUE Li + RISP VAL + OLZ VAL +QUE VAL + RISP CBZ + OLZ CBZ + QUE CBZ + RISP
Sem resposta
Monoterapia alternativa OXC, ZIP, ARI
Figura 6
ou resposta parcial
~6B
,
ECT (adolescentes)
l
4B Associação de 2: EH + AA: Sem resposta ~ Li + VAL + OLZ ou resposta Li + VAL +QUE parcial Li + VAL + RISP Li+ CBZ + OLZ Li+ CBZ + QUE Li+ CBZ + RISP
6A
6° estágio
3B
I
Clozapina
I
Algoritmo de THB em crianças e adolescentes para tratamento de episódio de mania ou misto sem psicose. Fonte: adaptada de Kowatch et al. 24
veis de evidências das diferentes medicações na população infantil2 4 • Para maiores detalhes, ver Kowatch et al.l4 Nenhum algoritmo foi desenvolvido para o tratamento de depressão bipolar, provavelmente em razão da escassez de estudos. Especialistas sugerem o uso de lítio baseado nos estudos em adultos, e lamotrigina e divalproato como alternativas72 • A associação de ISRS ou bupropiona é, muitas vezes, necessária, mas eles devem ser usados com cautela e sempre associados a algum EH ou AA pelo risco de virada maníaca. O tempo de manutenção
recomendado para antidepressivos é de oito semanas após remissão da sintomatologia depressiva. ECT também é uma opção em adolescentes com depressão refratária ao tratamento farmacológico 24 • A recomendação do tempo de manutenção da medicação é de 12 a 24 meses consecutivos2 \ contudo, não há estudos suficientes para saber qual é o tempo ideal. Algumas sugestões, ao descontinuar a medicação, são: descontinuar a medicação lentamente, em um momento de estabilidade na vida do paciente, e monitorar cuidadosamente possíveis sinais de instabilidade ou recaída24 •
56 TRANSTORNOS DO HUMOR NO CICLO DA VIDA
Quadro 11
Transtorno do humor bipolar (fHB) agudo sem psicose, episódio de mania ou misto
1o estágio: monoterapia Monoterapia com estabilizadores de humor (EH) ou antipsicóticos atípicos (AA). Em virtude da falta de estudos comparando a eficácia entre essas medicações, não há uma recomendação definitiva de qual a melhor opção inicial. Porém, a maioria dos especialistas recomendou o uso de lítio (Li) ou divalproato (VAL) como primeira escolha para monoterapia. 1A: otimização Caso o paciente tenha apresentado uma resposta parcial a monoterapia e a primeira opção tiver sido lítio, no 1° estágio, deve-se, então, associar VAL, carbamazepina (CBZ), olanzapina (OLZ), quetiapina (QUE) ou risperidona (RISP). Se, inicialmente, optou-se porVAL, então Li, OLZ, QUE ou RISP podem ser associados. Alguns membros sugeriram primeiro a associação com um segundo EH antes do uso de um AA para mania não psicótica. Se no 1º estágio optou-se por um AA, deve-se associar algum EH. Se não houver melhora da resposta após a associação, ir para a etapa 2. 2° estágio: monoterapia alternativa Monoterapia com medicação alternativa à escolhida no l Qestágio. 2A: otimização A associação deve ser feita com um agente não usado. Por exemplo, se a terapia foi iniciada com Li, no 1° estágio, mas não se obteve resultados positivos, passa-se para a etapa 2. No 2º estágio, optou-se por VAL, que apresentou uma resposta parcial, e pela otimização. Deve ser, portanto, usado um AA como OLZ, QUE ou RISP, já que a primeira tentativa com Li não foi satisfatória, e com VAL, apenas uma resposta parcial. 3° estágio: monoterapia ou associação de dois EH Nesta etapa, o consenso de especialistas não chegou a uma opinião única: 3A: Alguns optam por uma terceira tentativa com monoterapia não usada no 1° estágio, tampouco no 2° estágio. 3B: Outros acreditam que, se a resposta não foi positiva para duas tentativas em monoterapia, dificilmente a criança responderia a uma terceira tentativa. Opta-se, então, pela combinação de Li mais VAL, ou algum EH mais algum AA. 4° estágio: associação de dois ou três medicamentos 4A: Para crianças com respostas parciais ou sem resposta em 3A, a recomendação é a associação de dois EH ou um EH e um AA. 4B: Crianças com respostas parciais ou sem resposta em 3B ou 4A: associação de dois EH mais um AA. 5° estágio: monoterapia alternativa Oxcarbazepina (OXC) (nível 0), ziprasidona (ZI P) (nível O) ou aripiprazol (A RI) (nível 0). 6º estágio: ECT ou clozapina
Clozapina é recomendada para crianças que não apresentaram resposta positiva ou que não toleraram nenhum tratamento anterior (6B). ECT só é recomendado para adolescentes (6A). Fonte: adaptado de Kowatch et al 24 •
Quadro 111
Transtorno do humor bipolar (fHB) agudo com psicose, episódio de mania ou misto
1º estágio: EH mais AA Combinação entre um EH (Li, VAL e CBZ) associado a um AA. Li mais AA (Nível C), VAL ou CBZ mais AA (Nível 0). 1A: Se a resposta parcial otimizar, combinar três medicamentos: dois EH e um AA. 2° estágio: EH mais AA Se não houver uma resposta satisfatória ou houver intolerância à medicação, fazer uma combinação alternativa à realizada no 1° estágio. 2A: otimizar, associando um segundo EH. 3° estágio: EH mais AA alternativo Se não houver resposta positiva no 2° estágio, tentar um AA alternativo associado ao mesmo EH. 3A: se não houver resposta em 2A, então substituir o AA por um outro alternativo. 4° estágio: associação de dois EH e um AA Para crianças que não responderam a um EH mais duas tentativas diferentes de AA, associar dois EH e um AA. 5º estágio: associação monoterapia alternativa mais AA
Se não houver resposta nos estágios de 1 a 4, associar oxcarbazepina mais um AA (nível 0). 6º estágio: ECT ou clozapina
Clozapina é recomendada para crianças que não apresentaram resposta positiva ou que não toleraram nenhum tratamento anterior. ECT só é recomendado para adolescentes. Fonte: adaptado de Kowatch et al 24 •
741
742
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
-·
I 1a estágio
EH +AA Li + AA ou VAL + AA ou CBZ + AA Sem resposta
Resposta parcial
~ r
Otimizar: Li + VAL + AA Li+ CBZ + AA
lA
ou sem tolerância
r Sem resposta 2º estágio
EH +AA combinação não usada em 1 Li + AA ou VAL + AA ou CBZ + AA
1------------+ ~
Sem resposta
3a estágio
4a estágio
Resposta parcial
Alternativo EH ou AA Li + AA ou VAL + AA ou CBZ + AA
Sem resposta
,
,
3A
Combinação 2 EH + AA Li + VAL + AA Li+ CBZ + AA
Li + VAL + Alternativo AA Li + CBZ + Alternativo AA
Sem resposta
Sem resposta
Monoterapia alternativa + AA
saestágio
(OXC, ZIP, ARI)
6A
Figura 7
r
Otimizar: Li + VAL + AA Li + CBZ + AA
Resposta parcial
,
6º estágio
2A
r
ECT (adolescentes)
r 6B
I
Clozapina
I
Algoritmo de THB em crianças e adolescentes para tratamento de episódio de mania ou misto com psicose. Fonte: adaptada de Kowach et al. 25.
O tratamento de comorbidades também é uma peçachave, haja vista que essas pioram o prognóstico do THB, devendo ser iniciado após a estabilização do quadro de humor. Para uma revisão completa, ver Kowatch et aP4 O tratamento do THB na infância e adolescência deve ser multidisciplinar. As intervenções psicoterapêuticas são essenciais para o sucesso no tratamento. A psicoterapia, por exemplo, leva o paciente a uma melhor compreensão da sua doença e dos seus estados de humor. A psicoeducação permite que o paciente entenda melhor o THB, seus tratamentos e tenha instrumentos para reconhecer sinais e sintomas iniciais de possíveis recaídas, permitindo, assim, a intervenção precoce. A terapia familiar é outra peça fundamental das terapias coadjuvantes. O luto da família pela perda do filho saudável, assim como as dificuldades encontradas no manejo de uma criança ou adolescente com THB são inúmeras. Por fim, a inclusão da escola é de
fundamental importância para o cuidado com o desenvolvimento cognitivo e social, entre outros, desses pacientes. Para mais detalhes sobre os tratamentos coadjuvantes existentes, ver Kleinman et al. 84 A eletroconvulsoterapia (ECT) deve ser indicada apenas em adolescentes com diagnóstico de THB do tipo I, em fase de mania ou depressão grave que não responderam à medicação. ECT não deve ser utilizada em pacientes com THB-SOE. Os efeitos colaterais, após a realização da ECT, incluem o prejuízo cognitivo a curto prazo e ansiedadé 1• A internação psiquiátrica é, muitas vezes, necessária quando o risco iminente para a criança, o adolescente ou alguém a sua volta existe. Idealmente, ela deve ser evitada, mas há situações nas quais o apoio social não é suficiente para tornar o ambiente seguro para o paciente e/ ou para as pessoas a sua volta.
56 TRANSTORNOS DO HUMOR NO CICLO DA VIDA
Estabilizadores do humor, dose inicial recomendada e principais efeitos colaterais 14•82•83
Tabela IV
Medicamento
Dose inicial
Efeitos colaterais
Lítio
25 mg/kg/dia
Poliúria, polidipsia, tremor, ataxia, náusea, diarreia, ganho de peso, tontura, acne e perda de cabelo, alterações na tiroide e rim (diabetes insipidus), problemas cognitivos
Divalproato
15 mg/kg/dia
Sedação, náusea, vômito, toxicidade hepática, aumento do apetite/ganho de peso, tremor, perda de cabelo, trombocitopenia, pancreatite, ovário policístico, aumento de testosterona
Carbamazepina
7 mg/kg/dia
Sedação, ataxia, tontura, náusea, vomito, toxicidade hepática (em< 1O anos de idade), síndrome Stevens-Johnson, supressão medular, hiponatremia
Oxcarbazepina
8- 1O mg/kg/dia
Sonolência, cefaleia, náusea, vômito. ausência de supressão medular, tontura, sedação
Lamotrigina
25 mg/dia
Tontura, tremor, sonolência, náusea, cefaleia, rash cutâneo, síndrome de Stevens-Johnson
Gabapentina
50- 100 mg/dia
Sedação, tontura, tremor, ataxia, cefaleia, ganho de peso, fadiga
Topiramato
25 mg/dia
Tontura, sedação, retardo psicomotor, concentração alterada
Tabela V
Antipsicóticos atípicos, dose inicial recomendada e principais efeitos colaterais 14·82•83
Medicamento
Dose inicial
Efeitos colaterais
0,5 mg/dia
Ganho de peso, sedação, salivação aumentada, ginecomastia, dor abdominal, náusea, hiperprolactinemia, risco de dislipidemia e diabetes melito
5 mg/dia
Ganho de peso, tontura, sedação, constipação, boca seca, taquicardia, risco de dislipidemia e diabetes melito
Quetiapina
25-50 mg/dia
Sonolência, sedação, tontura, ganho de peso, boca seca, constipação, taquicardia, risco de dislipidemia e diabetes melito
Aripiprazol
2,5-5 mg/dia
Sonolência, náusea, vômito, constipação, cefaleia, tontura
Ziprasidona
40 mg/dia
Sintomas de ativação, tontura, sedação, náusea, boca seca
50 mg/dia
Salivação aumentada, tontura, cefaleia, boca seca, ganho de peso, agranulocitose, risco de dislipidemia e diabetes melito
Risperidona Olanzapina
Clozapina
Quadro IV
Níveis de evidência das diferentes medicações THB episódios de mania, mista, sem psicose
THB episódios de mania, mista, com psicose
Depressão bipolar
Lítio
AeB
AeB
BeC
Divalproato
BeC
BeC
c
Carbamazepina
B
B
SI
Lamotrigina
c
c
BeD
Oxcarbazepina
o
o
SI
Topiramato
c
c
SI
Risperidona
BeC
BeC
SI
Olanzapina
BeC
BeC
B
Quetiapina
BeC
BeC
B
Ziprasidona
BeC
BeC
SI
Aripiprazol
BeC
B
SI
Clozapina
c
c
SI
lnibidores seletivos de recaptação de serotonina
NA
NA
c•
Bupropiona
NA
NA
o
Nível A: estudos clínicos randomizados e controlados com placebo em crianças e adolescentes; nível B: estudos clínicos randomizados em adultos; nível C: estudos clínicos abertos em cri anças e adolescentes e análises retrospectivas; nível 0: relatos de casos em crianças e adolescentes ou consenso de especialistas; NA: não se aplica; SI: sem informações; •: pode ser desestabilizador do humor. Fonte: adaptado de Kowatch et al.24 •
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Fase do adulto jovem Os transtornos do humor em adultos foram discutidos nos capítulos anteriores.
Fase da meia-idade ( 40 a 60 anos) Introdução A meia-idade, em geral, é a etapa da fase adulta marcada pelo fortalecimento da individuação do ser, assim como pela maturidade emocional, desenvolvimento profissional, estabilização e independência financeira, realização do relacionamento com o( a) parceiro(a), os filhos, os parentes e os amigos. Para Erik Erikson, é a fase da generatividade, na qual se inicia o cuidado e o senso de responsabilidade com o outro ao mesmo tempo em que se busca o autoconhecimento. Nesse processo de autoco nhecimento, o reconhecimento das limitações crescentes, da finitude e de suas realizações, conquistas e planos futuros pode ser marcado por dor e sensação de fracas. . so, ass1m como res1gnaçao. A crise da meia-idade, que apresenta uma característica patológica de mudança do comportamento, tende a ser experimentada por poucos. Sua característica geral é mudança drástica de estilo de vida, em que as relações construídas ao longo da vida, como casamento e trabalho, podem apresentar reviravoltas (por exemplo, aventuras sexuais e mudança de emprego e profissão). É também o período em que ocorrem novas mudanças físicas, psíquicas e sociais, marcadamente o climatério nas mulheres. Nesta seção, serão focados os transtornos do humor na mulher de meia-idade, tendo em vista que as mudanças são mais intensas naquelas que experimentam o climatério, resultando em um impacto significativo na saúde mental85 .
Síndromes depressivas em mulheres no climatério A perimenopausa ou climatério é o período de 5 a 7 anos da transição da ovulação regular para anovulação, ou seja, a menopausa, que tem como idade média de início 51 anos. O climatério é tipicamente caracterizado por um complexo conjunto de sintomas físicos e psicológicos associados ao declínio da função ovariana86. Alterações do sono, sintomas vaso motores e urogenitais são prevalentes em mulheres peri e pós-menopausa87 • A presença de sintomas vasomotores (fogachos e sudorese noturna) parece também estar associada a maior risco de depressão. Mulheres no climatério podem apresentar síndrome depressiva atípica, sendo esta mais comum no ciclo da vida do gênero feminino que masculino. No Quadro V, são descritas as características da depressão nas mulheres. Mulheres no climatério podem também já ter vivenciado transtornos do humor ao longo da vida, fazendo com que esse momento represente risco adicional para recorrência ou agravamento dos mesmos. Por exemplo, a depressão dupla é a ocorrência de episódio depressivo . .' ma10r em pessoas que Ja apresentavam um transtorno distímico prévio (Figura 8).
Outros transtornos do humor no ciclo da vida
Transtorno ciclotímico Mania
-------------------------· D ,-4 ~
Hipomania
\7
AJ
'(
Síndrome depressiva - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - · 18 anos
Quadro V Características da depressão nas mulheres ao longo do ci-
Transtorno distímico
clo da vida
Mania
Em geral, mulheres com TOM:
Hipomania
Apresentam mais sintomas atípicos (reatividade do humor, hipersônia,
Síndrome depressiva - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ·
--------------------------·
hiperfagia, paralisia de chumbo, sensibilidade à rejeição); 18 anos
Queixam-se de um maior número de sintomas; Apresentam um padrão mais sazonal da depressão;
Depressão dupla (Transtorno distímico + transtorno depressivo maior)
Experimentam mais ansiedade comórbida; Apresentam maior número de tentativas de suicídio;
Mania Hipomania
Apresentam mais tentativas frustradas de suicídio; Desenvolvem mais depressão associada a estressares maiores;
<:::...__ _ _~
Síndrome depressiva
Fonte: adaptado de Burt e Stein. 200288 .
------------v
----------·
18 anos
Têm história de eventos e perdas traumáticas; Possuem maior risco de deprimir em resposta a mudança dos hormônios sexuais.
------------------------- - ·
Figura 8
Gráficos que demonstram exemplos de oscilações do humor no
transtorno depressivo no ciclo da vida.
56 TRANSTORNOS DO HUMOR NO CICLO DA VIDA
Epidemiologia
de THB, se comparado ao período reprodutivo, as mulheres em pós-menopausa continuam com grande risco de descompensação do seu transtorno de humor prévio88 •
Transtorno depressivo maior (fDM)
Mulheres apresentam um risco 1,7 vezes maior de desenvolver depressão ao longo da vida em relação aos homens, em especial durante a idade reprodutiva89 . Essa diferença diminui significativamente quando comparada à infância e à pós-menopausa90-93 , mas, entre 15 e 54 anos, a prevalência de transtornos depressivos é de 21,3% em mulheres, enquanto nos homens é de 12,7%94 • Estudos prospectivos sugerem que o climatério é uma fase de aumento do risco e vulnerabilidade para a recorrência de sintomas depressivos e incidência de primeiros episódios92,93 . Após o final do climatério e com o início do período pós-menopausa, aparentemente há redução no risco e na prevalência de sintomas depressivos (Quadro VI) 95 . Transtorno do humor bipolar em mulheres no climatério
Em relação à característica geral do THB, as mulheres têm maior tendência a apresentar ciclagem rápida, episódios mistos e pior prognóstico que os homens96 . Existem poucos dados na literatura sobre a influência do climatério e da menopausa no THB e, no momento, não é possível afirmar a existência de piora ou melhora das pacientes nessa fase do ciclo da vida. Um fator confundidor importante é que a instabilidade de humor encontrada em mulheres no climatério (irritabilidade, labilidade e hipersensibilidade emocional)95 pode, na verdade, confundir-se com mudança de fase e ser interpretado erroneamente como um subtipo ciclador rápido (mais de quatro episódios distintos de humor em um ano) 97• Burt et al. 97 observaram que as pacientes no climatério não apresentaram piora do transtorno, mas a ausência de história de reposição hormonal estava asso ciada a queixas de humor mais depressivo do que o do grupo que utilizou a reposição 97• Apesar de o período após a menopausa apresentar menor probabilidade de início
Quadro VI
Depressão no climatério
Período de risco
Frequência
Riscos
5 a 7 anos antes da menopausa
Histórico pregresso de TOM, aumento da frequência de sintomas depressivos;
Sintomas vasomotores e depressivos na
frequência exata não conhecida. Em geral, não há aumento de novo episódio de TOM. Aumento não especificado de TOM perimenopausa nas mulheres com história
penmenopausa ma1s graves e mais duradouros.
pregressa de TOM. Fonte: adaptado de Burt e Stein, 2002 88 .
Fatores de risco e proteção Biológicos
Sintomas pré-menstruais graves são relatados por 20 a 40% das mulheres na idade reprodutiva, e 1Oa 12% das mulheres no pós-parto apresentam transtorno depressivo. Esses sintomas estão intimamente relacionados com momentos de flutuação hormonal94 . Regiões relacionadas ao controle do humor, como córtex pré-frontal e hipotálamo98, apresentam receptores de estrógeno, aos quais se imputa haver uma interação com o sistema monoaminérgico. Dessa forma, age particularmente na serotonina e na noradrenalina99 , aumentando a síntese dessas monoaminas assim como a expressão do gene de seus receptores 100, 101 . Os sintomas vasomotores são imputados na desregulação do centro termorregulador e aparentemente associados a flutuações de estrógeno e aumento do tônus noradrenérgico 102 • Supostamente, o uso de ISRS e ISRN são eficazes tanto na regulação desses sintomas quanto no tratamento da depressão 94 . Psíquicos
Mulheres apresentam maior risco de episódios depressivos mediados por estresse que homens, em geral. Em mulheres com TDM, foi observada a presença de um evento estressar em até seis meses antes do início do episódio correlacionado, assim como risco maior de desenvolvimento de depressão após um estresse significativo de vida94 . Mulheres em acompanhamento em ambulató rio ginecológico com grande desconforto psicológico apresentavam maior probabilidade de desenvolver depressão e necessitar tratamento88 .
Tratamento Estudos sobre o efeito antidepressivo do estrógeno transdérmico, durante 6 a 12 semanas, para o tratamento de depressão maior, menor e transtorno distímico apresentaram uma taxa de remissão de 68 a 80% comparado a 20 a 22% com placebo 103 , 104 • O uso por mulheres, no período pós-menopausa, não demonstrou efetividade, sugerindo que o uso da terapia hormonal para depressão apresenta resposta específica para o climatério93, mas ressalvas significativas ao uso dessas medicações foram feitas, após dados sobre segurança no uso a longo prazo de terapia de reposição hormonal (TRH) 105 . Ainda não há dados suficientes com estudos clínicos randomizados (ECR) e controlados com ISRS e ISRN para avaliar a resposta de tratamento da depressão especificamente no climatério. Entretanto, em oito ECR, o uso isolado de ISRS ou ISRN apresentou 48% de resposta com a
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
venlafaxina comparado a 28% de ISRS, mas não mostrou diferença quando ambas eram associadas a TRH 106 .
Fase da terceira idade Introdução Do ponto de vista existencial, a terceira idade é marcada pela proximidade da finitude humana, pela morte de familiares e pessoas de sua geração, assim como pelo declínio nas funções físicas, cognitivas e sexual. Essa é a fase em que se coloca à prova todos os mecanismos psíquicos e sociais de adaptação para lidar com tais desafios, bem como para aproveitar plenamente situações de vida e relações com os familiares, a comunidade e a cultura, com o olhar diferenciado da experiência de vida. Questões ligadas ao relacionamento social, como, por exemplo, a aposentadoria ou as modificações no ambiente de trabalho, podem representar uma característica positiva para alguns e negativa para outros, dependendo da forma de planejamento e do desenvolvimento biopsicossocial do indivíduo ao longo do ciclo da vida. A necessidade de reelaboração das relações familiares com a chegada de netos pode representar, para muitos, não só um momento de prazer e ressignificação da existência, mas também uma devoção altruística às gerações futuras. Pode também representar um momento de introspecção e revisão de sua própria história de vida. A capacidade dessas pessoas em compreender o processo de desenvolvimento biopsicossocial, espiritual e filosófico, reavaliando erros, acertos, relacionamentos interpessoais e sua inserção na comunidade pode ser fundamental para que a transição final dessa etapa no ciclo da vida ocorra de maneira serena e em paz. Importante ressaltar que sintomas depressivos não fazem parte do envelhecimento normal, e a ajuda e o tratamento, com a busca pela melhora na qualidade de vida desses pacientes, deve ser sempre estimulada e oferecida. Questões sobre a vulnerabilidade do SNC a comorbidades clínicas, como a dislipidemia e hipertensão arterial sistêmica, devem ser valorizadas no idoso tanto pelo caráter preventivo quanto pela proposta terapêutica85 .
Quadro clínico
pecíficos para essa apresentação, pode levar à subestimação de sua prevalência em estudos epidemiológicos de idosos107. Um dos instrumentos de rastreio mais utilizados em idosos é a escala geriátrica de depressão (ver Quadro X). Nos idosos, em geral, o afeto é mais constrito 108, não se queixam de tristeza e humor deprimido como sintomas depressivos e, como tendem a se queixar menos aos médicos em relação a tais questões, acabam subdiagnosticados. Os sintomas relacionados à motivação são mais alterados, assim como há uma maior prevalência de sintomas somáticos. A interface desses últimos com sintomas físicos de comorbidades clínicas pode confundir ainda mais a especificidade do diagnóstico. Idosos tendem a apresentar maior retardo psicomotor, mais fraqueza e letargia, com maior comprometimento nas atividades de vida diária. É importante ressaltar que o idoso polimedicado para suas diversas comorbidades clínicas apresenta um risco ainda maior de sobrepor sintomas depressivos primários a sintomas depressivos secundários ao uso de medicações (por exemplo, a alfa-metildopa e o propranolol). É importante também observar a probabilidade dos sintomas depressivos estarem diretamente relacionados a uma condição médica geral, como dor crônica e neoplasias malignas, mas, em especial, hipotireoidismo, que é passível de ser tratado e seus sintomas do tipo depressivo, revertidos. Em alguns casos, a dificuldade diagnóstica se relaciona também tanto a uma visão pessoal e particular do paciente sobre a terceira idade, quanto à visão dos familiares e da sociedade. "É coisa da idade ... todo mundo fica mais quieto e isolado:' Não há consenso sobre maior prevalência de sintomas psicóticos em idosos na comunidade em relação aos adultos jovens, entretanto, quando comparados a idosos internados, definitivamente há prevalência de depressão maior e, em especial, depressão psicótica108,109 . Os conteúdos deliroides tendem a ser congruentes ao humor, niilistas, centrados na deterioração física e presença de doenças, assemelhando-se em parte à síndrome de Cotard109 . Pensamentos sobrevalorizados hipocondríacos são considerados frequentes em pacientes idosos depressivos. Fatores de risco relacionados ao estresse, comumente observados em idosos, como limitação funcional, pobre rede de contatos e suporte social ruim, são mais fortemente associados à depressão menor, e esta, por sua vez, mais associada à piora da saúde física em geral 110.
Síndromes depressivas nos idosos Depressão menor ou depressão subsindrômica
Luto
A população acima de 60 anos apresenta maior prevalência de sintomas depressivos subsindrômicos do que transtorno depressivo maior. Ainda assim, diferentemente dos adultos jovens, esses sintomas, em geral, são suficientes para causar prejuízo funcional e na qualidade de vida, e portanto, foco necessário de intervenção. Em parte, a depressão atípica é a forma mais comum nos idosos, o que, na falta de instrumentos de rastreio es-
Não é incomum que idosos, no processo do luto de uma pessoa próxima, apresentem sintomas depressivos como tristeza, insônia e dificuldade de concentração. Esse momento apresenta grande influência da cultura, do suporte familiar e da proximidade do relacionamento com a pessoa perdida para determinar os limites entre um luto "normal" e o complicado. Deve-se, dessa forma, aguardar um período próximo a dois meses, no mínimo, de acor-
56 TRANSTORNOS DO HUMOR NO CICLO DA VIDA
do com o Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM-IV-TR), para que se possa imputar a existência de sintomas depressivos a um episódio depressivo maior, a menos que sua gravidade seja suficiente para distingui-los. Presença de lentificação psicomotora intensa, prejuízo funcional prolongado e acentuado, experiências alucinatórias (outras que não o fato de achar que ouve ou vê a pessoa falecida), preocupações mórbidas com inutilidade, culpa excessiva e pensamentos frequentes a respeito da morte podem auxiliar o clínico na distinção entre os dois quadros. Enquanto o luto é um processo que faz parte da vivência humana, a síndrome depressiva manifesta não é esperada e necessita de tratamento. Depressão do idoso (de início precoce e tardio)
Depressão do idoso ou late-life depression pode ser definida de forma mais ampla como sintomatologia depressiva que ocorre em pessoas acima de 65 anos de idade 110 • Entretanto, não há consenso na literatura se esse limite deve ser de 60 ou 65 anos. Tendo em vista a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 111 e da Organização Mundial da Saúde (OMS) 112 para países em desenvolvimento que considera como idoso o indivíduo com idade superior a 60 anos, será adotado, neste texto, esse corte. Esses pacientes podem, na verdade, apresentar duas formas distintas de depressão: de início precoce (< 60 anos) e tardio(> 60 anos). A depressão de início precoce se caracteriza, em geral, desde o início ao meio da fase adulta, por um curso recorrente ao longo do ciclo da vida, histórico familiar positivo para transtornos do humor, maior comorbidade com transtornos psiquiátricos, abuso de substâncias e tentativas de autoextermínio. A depressão de início tardio ou late-onset depression é caracterizada pela ocorrência do primeiro episódio depressivo na vida após os 60 anos de idade. Esses quadros parecem estar mais associados a comprometimento cognitivo e comorbidades neurológicas que podem ou não estar presentes no momento do diagnóstico 113 • Em geral, está associada a uma síndrome disexecutiva, possivelmente pela desconexão frontoestriatal de origem orgânica. Costuma ser caracterizada por retardo psicomotor, diminuição no interesse por atividades, crítica de morbidade reduzida, alteração comportamental e pobre resposta a antidepressivos 113 . Apresentam o histórico familiar negativo para transtornos do humor, maior prevalência de demências, comprometimento cognitivo, deficiência auditiva, alargamento dos ventrículos e quantidade de hiperintensidades de substância branca 114• Pseudodemência
Idosos tendem a apresentar maior prevalência de sintomas cognitivos da depressão, como lentificação do pen-
Quadro VIl Características clínicas para a diferenciação entre depressão e demência
Depressão
Demência
Sintomas depressivos
Eutimia
Início subagudo
Início insidioso
História de depressão mais prevalente
História de depressão menos prevalente
Afasia, apraxia e agnosia ausentes
Afasia, apraxia e agnosia presentes
Orientação intacta
Orientação alterada
Concentração alterada
Memória recente alterada
Ênfase do paciente nas queixas de memória
Minimização dos déficits de memória pelo paciente
Pouco engajamento do paciente nos testes
Engajamento do paciente nos testes
Fonte: adaptado de Folks e Ford, 2002 118
sarnento e déficits de memória. A pseudodemência depressiva ou síndrome demencial na depressão 115 é caracterizada pela presença de sintomas cognitivos suficientemente graves, ao ponto de mimetizar uma demência manifesta. Entretanto, sua apresentação é menos insidiosa 109, acompanhada de baixo engajamento em testagens .. . cogmtlvas e com respostas como nao sei . A porcentagem de pseudodemência depressiva de um estudo de Silva et al. 116 em pacientes que buscaram serviço especializado em transtornos cognitivos de um hospital universitário brasileiro foi de 11 % 116 . Em relação a idosos na comunidade, a prevalência encontrada na Inglaterra foi de 0,6% (6 casos em 1.070) 115. É importante tentar diferenciar a pseudodemência de depressão na demência, da depressão maior comórbida à demência e ao transtorno cognitivo leve comórbido à depressão. Cada quadro clínico apresenta evolução e resposta terapêutica particular (Quadro VII). Em geral, a pseudodemência pode ser revertida com tratamento antidepressivo em alguns pacientes, mas há autores que observam 50% de evolução para demência em cinco anos 117 , o que poderia representar, na verdade, uma fase prodrômica de demência,e portanto, uma depressão na demência. ( (
))
Depressão vascular
O conhecimento da relação entre depressão e acidente vascular cerebral (AVC) é antigo, e estima-se uma prevalência de 33% de depressão em pacientes após um AVC (CI 29 a 36%) 119 • Inicialmente, Krishnan propôs o conceito de depressão aterosclerótica, no qual ressaltava o risco vascular (doença cerebrovascular, ainda que sutil) como importante fator influenciador na depressão de início tardio 120 •
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro VIII
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Apresentação clínica da depressão vascular Características cardinais
Evidência clínica e laboratorial de doença vascular ou fatores de risco vasculares. Manifestações clínicas podem incluir histórico de acidente vascular encefálico ou acidente isquêmico transitório, sinais neurológicos focais, fibrilação atrial, angina, história de infarto do miocárdio, sopro carotídio, hipertensão arterial e hiperlipidemia. Os sinais laboratoriais podem incluir hiperintensidades significativas da substância branca no território das artérias perfurantes, infartos ou a presença de oclusão carotídia ou estenose das artérias do polígono de Willis. Início da depressão após 65 anos de idade ou mudança no curso da depressão após o início da doença vascular em pacientes com depressão de início precoce; desenvolvimento de episódios depressivos mais frequentes e persistentes. Características secundárias Disfunção cognitiva consistindo de disfunções executivas, mas não limitada a elas (p. ex., planejamento, organização, sequenciamento e abstração) Retardo psicomotor ldeação depressiva limitada, como culpa
lnsight pobre Comprometimento da autonomia Ausência de histórico familiar para transtornos do humor As características cardinais são esperadas em todos os pacientes. As secundárias podem estar presentes na maioria, mas não em todos com depressão vascular Fonte: adaptado de Alexopoulos et ai., 1997 121 •
A teoria da depressão vascular, entretanto, foi inicialmente formulada em 1997 por Alexopoulos, sendo postulado que as doenças cerebrovasculares podem predispor, precipitar ou perpetuar a síndrome depressiva em idosos 121 . A depressão vascular seria o resultado de uma interação complexa de diversas etiologias em especial no circuito frontoestriatal. As características da depressão vascular estão descritas no Quadro VIII. Um estudo com 1.077 idosos sobre a presença delesões de substância branca subcortical e periventricular e sua relação com sintomatologia depressiva e histórico prévio de depressão sugeriu que pacientes no 52 percentil de quantidade de lesões, apresentavam 3 a 5 vezes chance de apresentar sintomas depressivos em relação aos de leve a nenhuma. As lesões periventriculares apresentaram um odds ratio de 3,3 (95%, CI 1,2 a 9,5) e lesões subcorticais OR 5,4 (95%, CI, 1,8 a 16,5) 122 . Análise duplo-cego de neuropatologia e hiperintensidades de substância branca na neuroimagem (RNM) de pacientes-controle e idosos depressivos apontam etiologia vascular nos últimos 123 • Transtorno do humor bipolar em idosos Em geral, o início de sintomas do THB ocorre entre 18 e 22 anos. Alguns autores classificam pacientes que apresentam o primeiro episódio de humor após os 40 anos como bipolares de início tardio 12\ mas ainda há grande controvérsia na literatura quanto a essa classificação. Conforme classificado anteriormente em relação à depressão de início tardio, decidiu-se, neste tópico, classificar como início tardio a ocorrência do primeiro episódio/fase do transtorno bipolar após os 60 anos de idade (Figura 9). Enquanto os pacientes idosos bipolares de início tardio experimentaram a mesma quantidade de "dias bons"
comparados aos de início precoce, apresentaram uma quantidade levemente maior de dias deprimidos, 22% versus 13% 124. Idosos bipolares que apresentam um início precoce dos sintomas tendem a ter familiares de primeiro grau com transtorno do humor, quando comparados aos de início tardio. A prevalência de demência em pacientes idosos com transtorno bipolar é alta, de 19% 125, quase três vezes a prevalência esperada de 7% em idosos brasileiros na comunidade126. Tal risco parece se associar com um maior número de episódios de humor e suas respectivas durações 127 •
Epidemiologia Transtorno depressivo maior (fDM) e transtornos do humor A prevalência média, quando avaliados os últimos 30 dias, para o TDM em idosos nos EUA é de 1,5% em mulheres e 0,2% em homens (média de 1% para ambos os gêneros)3. A prevalência, tanto nos últimos 30 dias, em um ano e ao longo da vida de TDM nos idosos, aparenta ser menor, se comparada com outras faixas etárias3 • BarcelosFerreira et al. 107, em recente metanálise com dados de estudos com 15.491 idosos brasileiros, observaram uma prevalência média de 7% para TDM, 26% para sintomas depressivos clinicamente significativos e 3,3% para distimia 1o7. Transtorno do humor bipolar (fHB) Estudos de idosos nos EUA sugerem uma prevalência de THB no último ano de 0,1% (O a 0,5%) 128. Essa prevalência está abaixo da prevalência de 0,4% de pacientes de meia idade ( 44 a 64 anos )3. Pacientes idosos que são
56 TRANSTORNOS DO HUMOR NO CICLO DA VIDA
Transtornos do humor nos idosos
Quadro IX Fatores que afetam o nível de aderência dos pacientes idosos no tratamento de depressão
Transtorno bipolar I de início precoce Mania Hipomania
Modificável
Atitudes, percepções e preferências Crenças espirituais sobre etiologia/ efetividade de tratamento da depressão Comunicação com o paciente/cuidador Normas sociais, opções de cuidadores e familiares e estigma do cuidador
Modificado com dificuldade/ potencialmente modificável
Ansiedade comórbida Abuso de substância Polifarmácia e comorbidade médica Custos do tratamento Suporte social
Não modificáveis
Gênero Raça
------------------------· 60 anos
Transtorno bipolar I de início tardio Mania Hipomania Síndrome depressiva - - - - - - - - - - - - - - - -
- - --- - ---·
60 anos
Fonte: adaptado de Rajji et ai., 2008 133•
Transtorno bipolar I de início tardio Mania Hipomania
Fatores de risco e proteção
---·
Síndrome depressiva - - - - - - - - - - - - - - - 60 anos
Depressão menor Mania Hipomania
---------------- ---------·
Síndrome depressiva - - - - - - - - - - - - - - - 60 anos
Depressão menor Mania Hipomania
---------------- ---------·
Síndrome depressiva - - - - - - - - - - - - - - - -
- - - - -----·
60 anos
Figura 9 Gráficos demonstrando exemplos de oscilações do humor no THB no ciclo da vida.
institucionalizados tendem a não entrar nessas contas, apesar de um estudo de prevalência de THB nessas instituições ter demonstrado prevalência de 3 a 10% 129 enquanto em ambulatórios de psicogeriatria de 2 a 5% dos pacientes tinham THB 130 e representavam 25% nos centros de tratamento de saúde mental 131 • A estimativa de prevalência geral ao longo da vida do THB é de 1,0% para THB tipo I, 1,1% para THB tipo II e 2, 1% para THB em geral 13 . Um estudo epidemiológico nos EUA em cinco centros de pesquisa observou que, em idosos da comunidade não institucionalizados, a prevalência no último mês foi de 0,2% para mania e, no grupo de 45 a 64 anos, comparado com 0,4 a 0,8% no grupo de 18 a 44 anos 132 •
Em geral, observa-se como fatores protetores para depressão no idoso: gênero feminino, histórico de remissão de episódios anteriores, personalidade extrovertida, emprego, ausência de abuso de substância, ausência de outro transtorno psiquiátrico comórbido, ausência de doenças clínicas ou mudanças drásticas na vida 108 . O suporte social parece ter fator importante na melhora desses pacientes. O suporte social percebido pelos idosos tem se mostrado fator muito robusto na predição de sintomas depressivos em idosos, e parece que o impacto no homem idoso é maior que na mulher 108 • Apesar de o suporte social não ser considerado um problema comum em ido sos, a perda súbita do seu suporte social, como a morte do cônjuge ou brigas em família, podem representar. Ao final do segundo ano de luto, 14% dos idosos parecem apresentar depressão maior. Aqueles que não apresentam esse diagnóstico em geral manifestam sintomas depressivos em intensidade suficiente para causar comprometimento na qualidade de vida e na funcionalidade.
Tratamento O princípio básico da prescrição de antidepressivos em idosos é iniciar com doses baixas e aumentar paulatinamente até os níveis terapêuticos ("Start low, go slow, but go) :' É difícil estabelecer um preditor único para resposta da depressão. A combinação de variáveis psicológicas, biológicas e sociais parecem interagir com a resposta ao tratamento. A combinação de tratamento farmacoterápico, ECT e intervenção psicossocial é necessária para a melh or resposta do tratamento. Comparando-se o tratamento com apenas antidepressivo, com psicoterapia e am-
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
bos, a última opção se mostrou mais eficaz no ajustamento social precoce. Outro princípio da farmacoterapia em idosos é buscar uma maior taxa de aderência dos pacientes ao tratamento, investindo em psicoeducação deles e de seus familiares. O foco principal deve ser a psicoeducação quanto aos fatores modificáveis, mas abrangendo também os que são modificados com dificuldade (Quadro IX).
Medicamentos As taxas de remissão da depressão em pacientes idosos não se mostram diferentes das dos adultos de meia idade, apesar de a taxa de recorrência parecer maior. As taxas de resposta, remissão e recaídas entre idosos com transtorno depressivo maior são semelhantes naqueles cujo início foi precoce quando comparados aos de início tardio. Entretanto, idosos com depressão maior recorrente de início tardio tendem a apresentar um tempo maior para a resposta ao tratamento e maior comprometimento funcional (Quadro X). O mesmo pode ser observado para a depressão vascular, que pode apresentar melhora e resposta clínica134 • Na depressão vascular, o escore da avaliação neuropsicológica parece se correlacionar com a predição de resposta em depressão vascular, diferenciando aqueles que remitem dos que não. A gravidade dos fatores de risco vasculares também se correlacionou com a predição de resposta. Desta forma, a integridade da substância branca e da função neuropsicológica se correlacionam diretamente com a resposta 135 • A escolha pelos ISRS em idosos se mostra interessante pela baixa prevalência de sintomas anticolinérgicos, hipotensão ortostática e efeitos colaterais cardíacos, ausência de sedação e seguro em overdose, mas com a possibilidade de causar hiponatremia, perda de peso, tremores, cefaleias e alterações gastrointestinais108 (Quadro XI). O perfil de interações medicamentosas dos ISRS devem ser pesados para a sua escolha, tendo em vista que, em geral, os idosos fazem uso de várias medicações.
Quadro X
Os duais se apresentam como segunda escolha nesses pacientes, com preferência àqueles com atividade noradrenérgica, mas, dependendo do perfil de efeitos colaterais, pode-se utilizá-los como primeira escolha (por exemplo, pacientes insones com hiporexia apresentam boa resposta com mirtazapina, cujos principais perfis de efeitos colaterais é a se dação e o ganho de peso). Tricíclicos devem ser utilizados com cautela, em razão do perfil cardiovascular de efeitos colaterais principalmente. Entretanto, em depressões refratárias ao uso de ISRS e receptadores duplos, deve-se considerar tal classe, em especial a nortriptilina. É importante que sejam observadas e controladas as alterações no ECG, como aumento do QTc acima de 480 ms, que deve ser suspenso e reconsiderado seu uso 108 • Os inibidores da monoamina oxidase IMAO são uma possibilidade terapêutica, em geral de resgate, que apresenta peculiaridades. Não devem ser iniciados antes de 1 a 2 semanas de suspensão de ISRS e quatro semanas da fluoxetina. Para se iniciar ECT, deve -se esperar em torno de 1O a 14 dias da suspensão do IMAO para início da ECT. Alguns pacientes com depressão refratária, sobretudo sintomas apatoanérgicos, podem se beneficiar com o uso de 5 mg de metilfenidato pela manhã. É importante ressaltar que a ECT é uma terapêutica segura e eficaz. Atualmente, muitos pacientes têm essa importante terapêutica postergada em especial pela presença de estigma social e preconceitos dos próprios familiares. Em alguns casos, entretanto, a ECT se mostra como a primeira escolha no tratamento de pacientes, em especial idosos com depressão grave com recusa alimentar. Transtorno do humor bipolar
Aparentemente, o tratamento com estabilizadores do humor apresenta diferentes respostas relacionadas à idade de início do quadro. Em pacientes de início precoce, o uso dessas medicações apresentou um perfil para melhor prevenção de episódios depressivos do que no de início tardio.
Achados clínicos da resposta ao TOM em idosos
Pacientes com TOM recorrente de início tardio apresentam boa resposta ao tratamento, mas demoram mais a responder que pacientes com depressão de início tardio com apenas um episódio TOM recorrente com início tardio apresenta mais alterações funcionais e cognitivas que aqueles com episódio único ou TOM recorrente de início precoce Pacientes idosos com TPM de início tardio necessitam de estratégias de "aumento" se comparado com idosos de início precoce A depressão de início tardio recorrente sugere que se trata de um subtipo distinto em especial, com alterações neurobiológicas e . . pSICOSSOCiaiS propnas
.
Fonte: adaptado de Driscoll et ai., 2005 136•
Quadro XI
Aumento da sensibilidade do receptor relacionada a idade
Diminuição do barorreflexo, resultando em aumento da suscetibilidade ao efeito hipotensor de alguns antidepressivos Aumento de sintomas extrapiramidais relacionados a eventos adversos Aumento noradrenérgico (p. ex., boca seca, retenção urinária, taquicardia, hipertensão e tremor) e efeitos antiadrenérgicos (p. ex., bradicardia, exacerbação da ICC e hipotensão) Aumento do efeito anticolinérgico (constipação, retenção urinária e delirium) Fonte: adaptado de Rajji et ai., 2008 133 •
56 TRANSTORNOS DO HUMOR NO CICLO DA VIDA
Tabela VI
Antipsicóticos nos idosos
Medicamento
Dosagem
Efeitos colaterais
Clozapina
25-800 mg
Comum: ganho de peso, sedação, hipotensão postura!, sialorreia Graves agranulocitose, discrasias sanguíneas, miocardite, hepatites, pancreatites e convulsões
Risperidona
0,5- 4 mg
Comum: hipotensão postura!, sintomas extrapiramidais, ganho de peso Grave: AVC, síndrome neuroléptica maligna, priapismo, hiperprolactinemia
Olanzapina
2,5-20 mg
Comum: hipotensão postura!, sintomas extrapiramidais dose dependente, DM, hiperlipidemia e ganho de peso Grave: AVC, síndrome neuroléptica maligna, convulsões
Quetiapina
50-800 mg
Comum: hipotensão postura!, sintomas extrapiramidais dose dependente, DM, hiperlipidemia e ganho de peso Grave: leucopenia, síndrome neuroléptica maligna, convulsões e hepatite
Aripiprazol
2,5-30 mg
Comum: sedação, ganho de peso, efeitos anticolinérgicos Grave: síndrome neuroléptica maligna e convulsões
Para a prevenção de sintomas maniformes maníacos, não apresentou diferença. Os antipsicóticos atípicos são mais utilizados nos pacientes com início tardio talvez pelo melhor padrão de tolerância 137 • É importante ressaltar a interação medicamentosa e a possibilidade de descompensação de comorbidades clínicas no uso dessas medicações, pois se trata de um risco que, no idoso, deve ser pesado sempre. Lítio
O carbonato de lítio é uma medicação cujo uso em adultos jovens está consolidado como padrão ouro de resposta, pois não apresenta um declínio na resposta ao longo da vida, mas o padrão de resposta em idosos ainda carece de maiores estudos. Ainda não está determinado, por meio de ECR, qual seria a dosagem sérica ideal de lítio em idosos. O uso crônico do lítio parece apresentar efeito protetor para demência em pacientes bipolares. Nunes et al. 125 demonstraram que a prevalência de doença de Alzheimer em pacientes bipolares sem uso contínuo do lítio era de 33%, enquanto naqueles que o utilizaram, 5% 125 • Todavia, o uso de lítio nesses pacientes necessita de um maior controle por parte do clínico, e atenção por parte dos pacientes. Nos idosos, há o declínio da taxa de filtração glomerular com redução do clearance renal, assim como alteração de seu volume de distribuição com consequente aumento da meia-vida e nível sérico com doses baixas da medicação. O uso combinado com ISRS pode aumentar a prevalência de efeitos neurotóxiocos do lítio 137 • Idosos tendem a ingerir menos líquidos que adultos jovens e, na presença de insuficiência renal moderada, seu benefício deve ser rigorosamente avaliado em relação ao risco, assim como em pacientes com disfunção ti-
reoidiana limítrofe. Monitoramento da função renal e da função tireoidiana, ECG e hemograma são especialmente necessários em idosos. Diabetes insipidus neurogênico, toxicidade cardiovascular, ataxia e interações medicamentosas são efeitos colaterais em idosos que devem ser considerados. Medicações como a teofilina podem reduzir a concentração de lítio, enquanto tiazídicos, anti-inflamatórios não esteroidais e inibidores da conversão de angiostensina podem aumentar a meia-vida. Anticonvu lsiva ntes Valproato
Estudos retrospectivos do uso de valproato em ido sos com mania demonstraram efetividade na melhora desses sintomas com níveis entre 31 a 106 mg/mL 138 • A fração livre do valproato parece estar aumentada em idosos, enquanto sua meia-vida está prolongada. Em r elação a interações medicamentosas, o ácido acetilsalicílico (AAS) aumenta a sua fração livre, enquanto a carbamazepina e a fenitoína reduzem. O divalproato ainda aumenta os níveis séricos da lamotrigina, elevando o nível da síndrome de Steven-Johnson. Cuidados relativos a função hepática, discrasias sanguíneas e interações medicamentosas devem ser frequentes durante o uso de tal medicação. Carbamazepina
Seu uso em idosos ainda carece de maiores validações, mas parece que, a longo prazo, é seguro 139. Deve ser avaliada a presença de comorbidades hematológicas, assim como de ritmo cardíaco e disfunção hepática, sendo o uso, nesses pacientes, reavaliado. Como principais efeitos colaterais, a carbamazepina apresenta a possibilidade de sedação, ataxia, nistagmo, leucopenia, SIADH e agranulocitose. Também é importante ressaltar a grande ca-
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Quadro XII
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Escala geriátrica de depressão (G OS 15) 140 · 14 1
Para cada questão, escolha a opção que mais se assemelha ao que você está sentindo nas últimas semanas: 1. Você está basicamente satisfeito com sua vida?
SIM
NÃO
2. Você se aborrece com frequência?
SIM
NÃO
3. Você se sente um inútil nas atuais circunstâncias?
SIM
NÃO
4. Você prefere ficar em casa a sair e fazer coisas novas?
SIM
NÃO
5. Você sente que sua situação não tem saída?
SIM
NÃO
6. Você tem medo que algum mal vá lhe acontecer?
SIM
NÃO
SIM
NÃO
8. Você acha maravilhoso estar vivo?
SIM
NÃO
9. Você sente que sua vida está vazia?
SIM
NÃO
1O. Você sente que a maioria das pessoas está melhor que você?
SIM
NÃO
11. Você se sente com mais problemas de memória que a maioria?
SIM
NÃO
12. Você deixou muitos de seus interesses e atividades?
SIM
NÃO
13. Você se sente de bom humor na maior parte do tempo?
SIM
NÃO
14. Você se sente cheio de energia?
SIM
NÃO
15. Você se sente feliz na maior parte do tempo?
SIM
NÃO
7. Você acha que para a sua situação não há
esperanças?
TOTAL:
~
5 pontos)
Pontuação: 1 ponto se { SI~: questõ_es 2, 3, 4, 5, 6, 7, 9, 1O, 11, 12 NAO: questoes 1, 8, 13, 14, 15
pacidade de indução do sistema do citocromo P450 e consequente diminuição de meia-vida de diversas medicações em uso pelos idosos. Lamotrigina Seu uso em idosos ainda não está suficientemente estudado. Sua indicação é principalmente no tratamento e prevenção de depressão bipolar, sendo, em alguns casos, inclusive, indicado quando há depressão bipolar refratária. O uso combinado ao divalproato pode apresentar riscos, sobretudo o aumento sérico da lamotrigina e de síndrome de Stevens-Johnson. Os efeitos colaterais mais comuns em idosos são diarreia, cefaleia, náuseas, infecções e xerostomia 137• Não houve diferença significativa de rash em relação a adultos jovens. Antipsicóticos atípicos O uso de antipsicóticos atípicos no tratamento do transtorno bipolar tem se tornado mais frequente, principalmente pela boa tolerabilidade e resposta (Tabela V).
Apesar desse melhor perfil e menor probabilidade para desenvolver discinesia tardia em relação aos antipsicóticos atípicos, ainda não há dados de longo prazo, especialmente em idosos, para corroborar essa tendência de maior segurança. A maioria dos dados de idosos, na verdade, representam uma extrapolação de dados de adultos jovens. Essas medicações apresentam uma maior probabilidade, em relação às medicações típicas, de desenvolve rem síndrome metabólica e descompensação de diabetes melito e dislipidemia. Alguns dados relacionados ao seu uso em pacientes com sintomas psicóticos na demência sugeriram um aumento na mortalidade de idosos, o que levou ao estabelecimento de alerta para o uso dessas medicações. Minicaso clínico
Sr. L., 65 anos, chegou ao pronto-socorro (PS) acompanhado de seu filho em mau estado geral por "problema de memória". O engenheiro civil, viúvo, com 1 filho, era uma pessoa tímida que, ao longo da vida, se ded icava mu ito ao seu trabalho. Sempre fora tido como uma pessoa um pouco ansiosa, mas que nunca buscou tratamento médico até a sexta década de vida. Por volta de seus 52 anos, enquanto trabalhava na obra de um prédio cujo prazo de entrega estava muito próximo, sentiu dores no peito, tonteira. sudorese e uma sensação de mal-estar. Procurou um PS. Como não foram encontradas alterações nos exames laboratoriais, foi sugerido o diagnóstico de "estresse". Não procurou tratamento por acreditar que, logo que acabasse aquela obra, tudo se resolveria. Aos 59 anos, todo dia, ao chegar em casa do trabalho, começou a tomar uma dose de destilado e sempre dizia que "ninguém é de ferro, afinal é apenas uma dose". Persistiu com esse padrão por quatro anos, não faltava ao trabalho nem tinha problemas legais por causa da bebida, mas, após mu ita insistência de seu fi lho médico, resolveu parar com o "hábito". Entretanto, aos 65 anos, aposentou-se e, em menos de três meses, passou a se isolar dos seus ex-colegas de trabalho, não gostava de passear com a famnia e estava sempre ranzinza. mas negava estar deprimido ou com alteração do sono e disposição. Sua família achava que era coisa da idade, de aposentado, que ele tinha tais atitudes porque havia se aposentado. Nessa época, sua esposa falecera de forma súbita por AVC hemorrágico. Cerca de quatro meses após não ter notícias do Sr. L., seu filho foi à sua casa, na qual o encontrou mal cuidado, muito magro, com uma equimose no pescoço, sem tomar banho há dias, com déficits de memória e desorientação temporal, lentificação psicomotora. queixando-se de insônia, dizendo que não via sentido na vida e acreditando estar com uma doença incurável. Sua casa estava desarrumada e suja, com diversas correspondências na porta e sem ter retirado o lixo. Questões 1. Qual é o diagnóstico mais provável do paciente cujo caso foi
apresentado anteriormente?
56 TRANSTORNOS DO HUMOR NO CICLO DA VIDA
a) b) c) d)
Transtorno distímico. Sintomas depressivos na doença de Alzheimer.
TOM. Depressão secundária ao uso de substâncias.
2. Qual é o principal preditor contribuidor dos sintomas depressivos? a) AVC b) Doença de Alzheimer c) Viuvez d) Síndrome de abstinência de álcool no idoso 3. Qual é o programa terapêutico mais indicado para esse paciente? a) Tratamento ambulatorial com medicação e nutricionista. b) Tratamento ambulatorial e transferência para uma casa de repouso. c) Internação hospitalar para iniciar tratamento de demência e suporte nutricional. d) Internação hospitalar com serviço de psiquiatria e ECT.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
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Transtorno de Pânico e Agorafobia
Márcio Bernik Fábio Corregiari
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 757 Etiologia, 758
Ao final deste capítulo, você estará apto a: 1. Definir o transtorno de pânico e a agorafobia.
Biologia do medo e da ansiedade, 758 Estratégias de defesa e enfrentamento, 758
2. Entender os principais fatores na etiologia do transtorno de pânico
Sistema septo-hipocampal e inibição comportamental, 759 Locus ceruleus e estado de alerta, 759 Eixo amígdala-hipotálamo-substância cinzenta periaquedutal, 759
3. Discernir diferentes aspectos psicopatológicos desses transtornos.
Modelos neuroquímicos do transtorno de pânico, 759 Sistema gabaérgico, 760 Modelos cognitivos e comportamentais do TP, 761
5. Conhecer os principais tratamentos farmacológicos e psicossociais baseados em evidências para o transtorno de pânico e a agorafobia.
e da agorafobia.
4. Identificar as principais comorbidades psiquiátricas.
Genética, 761 Quadro clínico, diagnóstico e comorbidades, 761 Comorbidades, 763 Tratamento, 763 Tratamento farmacológico, 764 Tratamento não farmacológico, 766 Considerações finais, 767 Minicaso clínico, 767 Questões, 768 Referências bibliográficas, 768
Introdução Ataques de pânico são períodos de medo, apreensão ou desconforto intensos que surgem inesperadamente e têm um pico em até 10 minutos após o início dos sintomas. O DSM-IV-TR' exige que quatro de treze sintomas estejam presentes para a caracterização de um ataque de pânico (Quadro I). O início súbito dos ataques e sua natureza episódica distinguem-os de sintomas ansiosos mais difusos como no transtorno de ansiedade generalizada. Os ataques de pânico não são exclusivos do transtorno de pânico e podem ocorrer em qualquer transtorno de ansiedade durante a exposição ao evento temido. Ocasionalmente, ataques de pânico podem ocorrer em pessoas que
não apresentam nenhum transtorno de ansiedade, sendo nesse caso mais comuns em períodos de mais estresse2 • No transtorno de pânico (TP), o paciente experimenta ataques inesperados e recorrentes seguidos de pelo menos um mês de preocupações persistentes sobre a possibilidade de ter outros ataques (ansiedade antecipatória), preocupações sobre as consequências dos ataques ou mudanças de comportamento significativas (p. ex., esquiva fóbica) relacionadas aos ataques '. O TP só foi definido como uma entidade distinta com a publicação do DSM- IIP, não havendo, portanto, dados epidemiológicos anteriores. Nos Estados Unidos, sua prevalência ao longo da vida foi estimada em 4,7% para o transtorno de pânico com ou sem agorafobia e em 22% para ataques de pânico sem transtorno de pânico4 . O diagnóstico é mais comum em mulheres do que em homens em uma proporção de aproximadamente 3:1 em pacientes com agorafobia e 2:1 em pacientes sem agorafobia. A idade de início ocorre, em média, na terceira década de vida, mas metade dos adultos com transtorno de pânico relata dificuldades significativas com ansiedade na infância5. Existem poucos estudos epidemiológicos na população brasileira e eles estão quase sempre restritos a contextos clínicos, o que não permite estimativas populacionais.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro I
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Critérios para ataques de pânico segundo o DSM-IV-TR
Um período definido de medo ou desconforto intenso no qual quatro (ou mais) dos seguintes sintomas se desenvolvem abruptamente e atingem um pico em até 1Ominutos: Palpitações ou frequência cardíaca acelerada. Sudorese. Tremores. Sensação de falta de ar ou asfixia. Sensação de sufocação. Dor ou desconforto no tórax. Náusea ou desconforto abdominal. Sensação de tontura, instabilidade ou de desmaio. Desrealização (sensação de irrealidade) ou despersonalização (estar desconectado do próprio corpo). Medo de perder o controle ou enlouquecer.
Etiologia Biologia do medo e da ansiedade O medo e a ansiedade têm uma função adaptativa muito clara: atuar como uma sinalização de perigo ou ameaça desencadeando uma resposta apropriada. A resposta fisiológica adaptativa ao estresse envolve um processo no qual o meio interno e o comportamento variam de acordo com a demanda antecipada e percebida, com o objetivo de garantir a sobrevivência e manter a homeostase. As respostas a um evento estressar agudo ou a um contexto que ameace a vida podem ser adaptativas no curto prazo. Elas podem se tornar disfuncionais, caso se mantenham ativadas cronicamente ou ocorram sem a presença de um evento estressar real.
Estratégias de defesa e enfrentamento
Medo de morrer. Parestesias (sensações de adormecimento ou formigamento). Calafrios ou ondas de calor.
Em um raro estudo na comunidade, conduzido na área de captação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo6 , foi encontrada uma prevalência de transtorno de pânico (segundo os critérios da Classificação Internacional das Doenças - 1Oª Edição [CID- lO]) ao longo da vida de 1,6%, sendo de 0,7% para homens e 2,3% para mulheres (uma proporção de aproximadamente 3:1). Nesse estudo, a prevalência de agorafobia foi de 2,1% no geral, 0,8% para homens e 3,0% para mulheres (aproximadamente 4:1). As diferenças significativas em relação aos dados americanos se devem a diferenças metodológicas. Os autores também relataram maior utilização de serviços de saúde por portadores de transtornos de ansiedade (32,1% utilizaram um serviço médico geral no último mês vs. 23,7% da população sem transtornos psiquiátricos). No entanto, apenas 10% haviam sido atendidos em um serviço de saúde mental no último mês. A comorbidade entre o transtorno de pânico e a agorafobia é comum, como documentado em diversos levantamentos, com prevalência ao longo da vida naqueles com transtorno de pânico variando de 22,5 a 58,2%7 • No entanto, em muitos levantamentos, a prevalência de agorafobia sem transtorno de pânico é maior do que a prevalência do transtorno de pânico. Por exempio, Kessler et al. 8 encontraram 6,7% de prevalência ao longo da vida de agorafobia e 3,5% de transtorno de pânico. Nesse estudo brasileiro, a prevalência de agorafobia foi de 2,1% vs. 1,6% para transtorno de pânico 6 • Entretanto, a agorafobia pura é rara, geralmente o agorafóbico apresenta, ao menos, antecedentes de ataques ou sintomas de pânico9 •
Os ataques de pânico estão intimamente ligados a estratégias de enfrentamento ou reações de defesa normais. Estratégias de enfrentamento ativo são utilizadas quando o perigo é imediato e existe chance de escape. Geralmente, são acompanhadas de ativação autonômica, caracterizando uma resposta de luta ou fuga. Estudos em animais mostraram que a natureza das respostas naqueles expostos a situações ameaçadoras depende da in tensidade e da distância do estímulo aversivo. Esses estímulos podem ser divididos em: potencialmente perigosos; perigosos, porém distantes; ou perigosos e próximos. Os circuitos cerebrais envolvidos variam com a intensidade e a proximidade do estímulo. O giro do cíngulo, o córtex pré-frontal, o núcleo mediano da rafe, o septo e o hipocampo fazem parte dos circuitos cerebrais que integram respostas relacionadas a estímulos potencialmente perigosos ou perigosos e distantes (ansiedade e medo). No outro extremo, estímulos que induzem formas ativas de defesa, pouco elaboradas e de execução rápida (semelhantes às crises de pânico), de terminam estados emocionais de natureza diferente e que parecem estar associados a manifestações elementares de medo. A substância cinzenta periaquedutal dorsal (SCPD) constitui o principal substrato neural para a integração desses estados aversivos no cérebro. À medida que os estímulos ameaçadores, potenciais e distais dão lugar a estímulos de perigo muito intensos ou estímulos proximais de medo, os circuitos neurais envolvidos mudam. Aqueles circuitos geralmente responsáveis pela produção de respostas condicionadas de medo são inibidos e os circuitos envolvidos em reações defensivas com baixo nível de regulação e organização são ativados. A amígdala e o hipotálamo mediai podem funcionar como uma espécie de interface, comutando os estímulos para os substratos neurais apropriados9b.
57 TRANSTORNO DE PÂNICO E AGORAFOBIA
Os circuitos relacionados à resposta incondicionada (ataques de pânico) são chamados de sistema cerebral aversivo, que é constituído pela amígdala, pelo hipotálamo mediai e pela SCPD. A estimulação elétrica dessas estruturas produz um padrão típico de respostas caracterizado por uma atividade motora intensa acompanhada de reações neurovegetativas (descritas em animal experimental), como aumento da pressão arterial, da frequência cardíaca, da respiração, da piloereção, da micção, da defecação e da exoftalmia9b. Paralelamente ao sistema neural que organiza as res postas inatas de medo, existe outro sistema neural que organiza a resposta condicionada, sempre associada a conflito aproximação vs. fuga (ansiedade antecipatória): o sistema de inibição comportamental.
Sistema septo- hipocampal e inibição comportamental A inibição de comportamentos em andamento é uma das primeiras manifestações da ansiedade, segundo o modelo de Jeffrey Gray da década de 1980. A vulnerabilidade à ansiedade está relacionada à atividade do sistema de inibição comportamental, septo-hipocampal (SICS). Segundo Gray, esse seria um dos principais sistemas emocionais que incluem também o sistema de aproximação comportamental (ou motivacional apetitivo) e o sistema cerebral aversivo (de luta e fuga) 9c. A função básica do SICS é comparar o estímulo sensorial mutimodal real que chega ao hipocampo com previsões geradas 30 a 60 vezes por segundo (ritmo teta hipocampal) a partir de familiaridades estocadas na memória. Se houver discrepância entre o estímulo real e o esperado ou se o estímulo esperado for aversivo, os comportamentos em andamento são inibidos e ocorre um aumento do alerta e da atenção direcionada ao ambiente. O SICS recebe informações do córtex sensorial por meio do córtex temporal e da formação hipocampal. É ativado por estímulos novos e desconhecidos (novidade, reação de orientação, entre outros) ou pela antecipação de punição e está relacionado com a ansiedade antecipatória em humanos. A ativação do SICS parece ser modulada por projeções ascendentes noradrenérgicas (NA) e serotonérgicas (SHT), que podem ser relevantes para explicar o mecanismo de ação de antidepressivos com efeito ansiolítico. A NA parece aumentar o número de informações comparadas por unidade de tempo e a SHT cria um viés de seleção pró-ansiedade.
to intrínsecos (hipoglicemia, diminuição do volume sanguíneo, diminuição da pressão arterial, alterações da temperatura corporal), quanto extrínsecos (estresse ambiental ou ameaças). Em geral, para se obter ativação importante do LC é necessário apresentar estímulos ameaçadores e não apenas novos ou desconhecidos. O LC tem uma ativação tônica ou basal que leva a uma avaliação atenciosa do ambiente com respostas comportamentais diversificadas e variáveis, enquanto a ativação fásica promove a fo calização da atenção e respostas estereotipadas9d. A ativação do LC também contribui para a estimulação do sistema nervoso simpático e do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA). Ao mesmo tempo, o sistema parassimpático e funções neurovegetativas, incluindo a alimentação e o sono, são inibidos. Uma ativação intensa do sistema noradrenérgico inibe o funcionamento do córtex pré-frontal, favorecendo respostas inatas em detrimento de comportamentos baseados em planejamento e cognições mais complexas. O sistema noradrenérgico ascendente e o SICS parecem ter funções complementares, com o primeiro mantendo um estado de alerta basal e reagindo a perigos próximos, enquanto o segundo aumenta o estado de alerta diante de sinais de punição (estímulos condicionados) ou estímulos novos.
Eixo amígdala- hipotálamo-substância cinzenta periaquedutal Existem três regiões cerebrais que, quando estimuladas, eliciam respostas completas de medo: as áreas laterais e centrais da amígdala, o hipotálamo anterior e mediai e áreas específicas da substância cinzenta periaquedutal (SCP). Esse circuito, com origem na amígdala, passando pelo hipotálamo e que descende para a SCP, é chamado de sistema executivo do medo, pois deflagra as reações de congelamento, luta e fuga e as reações autonômicas. Como a estimulação da SCP produz em animais experimentais reações muito similares a ataques de pânico em humanos, essa região vem sendo diretamente implicada na fisiopatologia do transtorno de pânico. A SCP apresenta atividade autoexcitatória intrínseca e sofre de inibição tônica. A SCP recebe projeções serotonérgicas que inibem a SCP e diminuem a probabilidade de que essas reações comportamentais sejam desencadeadas, explicando a ação antipânico das drogas serotonérgicas, mesmo agudamente.
Modelos neuroquímicos do transtorno de pânico
Locus ceruleus e estado de alerta O estresse ativa o locus ceruleus (LC), o que resulta em maior liberação de noradrenalina nos seus locais de projeção, incluindo a amígdala, o córtex pré-frontal e o hipocampo. O LC é ativado por diversos estressores, tan-
Inicialmente, as evidências para uma contribuição biológica para o transtorno de pânico surgiram da observação da efetividade de diversos medicamentos psicotrópicos para aliviar os sintomas de pânico.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
A primeira observação da melhora de pacientes com TP após o tratamento com psicofármacos surgiu da observação de Klein e Fink 10 da ação de um neuroléptico putativo, a imipramina, em pacientes com neurose de ansiedade. A imipramina bloqueava ataques de pânico em pacientes com neurose de angústia, surgindo a primeira hipótese "biológicá' para o transtorno de pânico. Os efeitos farmacológicos das medicações psicotrópicas deram margem para a especulação de quais sistemas de neurotransmissores poderiam estar diretamente implicados na instalação, na manutenção e na progressão do transtorno de pânico. Os candidatos naturais foram os sistemas noradrenérgico, serotonérgico e gabaérgico. Sistema noradrenérgico
Os neurônios noradrenérgicos do LC dão origem a projeções que inervam grande parte das áreas cerebrais. Estudos pré-clínicos tem demonstrado que estresse e an siedade levam a um aumento na noradrenalina (NA) liberada em diversas regiões do cérebro do rato, incluindo hipotálamo, amígdala e LC. Os efeitos centrais da NA são mediados por receptores pós-sinápticos alfa-1 ou beta-1-adrenérgicos. Além disso, os receptores alfa-2-adrenérgicos são importantes na mediação pré-sináptica da inibição da liberação de noradrenalina ou de outros neurotransmissores, sendo importantes na mediação das respostas de ansiedade. Esse receptor, presente na membrana pré-sináptica, regula o disparo neuronal por meio de retroalimentação negativa. Agudamente, agentes que aumentam o disparo dos neurônios noradrenérgico no LC (p. ex., o antagonista do receptor alfa-2-adrenérgico ioimbina) induzem ansiedade, enquanto agentes que reduzem o disparo desses neurônios (como o agonista alfa-2 -adrenérgico clonidina) inibem sintomas de ansiedade. Neurônios noradrenérgicos recebem aferências serotonérgicas, gabaérgicas (inibitórias) e glutamatérgicas (excitatórias). Dessa forma, os três sistemas de neurotransmissão implicados no transtorno de pânico se interconectam no neurônio noradrenérgico. Diversos grupos de pesquisadores conduziram estudos importantes sobre o sistema noradrenérgico no transtorno de pânico. Mantendo a noção de que a estimulação noradrenérgica aumenta a ansiedade, foi mostrado que a ioimbina produz ataques de pânico em pacientes com transtorno de pânico". Foi observada também uma atenuação da resposta de hormônio do crescimento à clonidina, sugerindo uma modulação para baixo dos receptores alfa-2-pós-sinápticos, o que pode acontecer após estimulação noradrenérgica crônica 12 • Contudo, parece que o sistema noradrenérgico modula mais uma dimensão geral de excitabilidade autonômica e do SNC e apenas indiretamente a deflagração de crises de pânico.
Sistema serotonérgico
Os neurônios serotonérgicos estão concentrados na linha média ou na rafe do tronco cerebral. No entanto, esses neurônios são extremamente arborizados. Os núcleos mesencefálicos, particularmente os núcleos dorsais da rafe (NDR) e os núcleos medianos da rafe (NMR), inervam o cérebro e modulam inúmeras funções, entre elas as funções cognitivas, afetivas, autonômicas e neuroendócrinas. O estresse aumenta a síntese e a liberação de 5-HT. Ao contrário da NA, cuja concentração tem um pico logo após a exposição ao estresse, os níveis de 5-HT aumentam de forma mais lenta, sendo significativamente diferente do basal só 20 minutos depois do início do estresse. Deakin 13 propôs que os receptores 5-HT1A localizados nos neurônios piramidais do hipocampo têm um papel crucial na modulação e controle das reações de ansiedade e pânico. Se a neurotransmissão nesse ponto estiver comprometida, podem surgir sintomas ansiosos e depressivos e pode ocorrer diminuição na secreção do fator neurotrófico derivado do cérebro e, dessa forma, da neoneurogenese. Com base em resultados de estudos com animais, Graeff1 3b propôs uma ação dual da serotonina na ansie dade, postulando que ela facilitaria reações mais complexas e organizadas de medo condicionado mediadas pela amígdala, ao mesmo tempo em que inibiria reações desorganizadas e rápidas, inatas, de "fuga e lutá', mediadas pela SCP. A via serotonérgica ascendente originária no NDR, que enerva a amígdala e o córtex frontal, facilitaria o medo condicionado, enquanto a via NDR-periventricular, que enerva a SCP, inibiria reações de luta e fuga. Assim, a serotonina parece ter um papel modulador na ansiedade, favorecendo respostas complexas e aprendidas em detrimento de respostas estereotipadas e inatas (ataques de pânico). A ação antipânico dos antidepressivos serotonérgicos pode se dever à facilitação da via 5-HT NDR-periventricular, resultando em aumento da estimulação dos receptores 5-HT2 Ae 5-HT,Ana substância cinzenta periaquedutal (SCP). A ação aparentemente paradoxal dos antidepressivos serotonérgicos no transtorno de ansiedade generalizado dependeria de suas ações crônicas sobre expressão gênica e eventualmente neoneuro• genes e. A
Sistema gabaérgico O ácido gama-aminobutírico (GABA) é o neurotransmissor inibitório mais abundante no cérebro, correspondendo a 40% de todas sinapses centrais. O complexo do receptor GABAA- receptor benzodiazepínico - é alvo de diversas drogas ansiolíticas, incluindo os benzodiazepínicos. Os benzodiazepínicos modificam alostericamente o receptor, aumentando a eficácia da estimulação gabaérgi-
57 TRANSTORNO DE PÂNICO E AGORAFOBIA
ca; dessa forma, aumentando o efeito inibitório. Vários subtipos desse receptor têm sido descritos. O subtipo a2 GABAAparece estar particularmente envolvido na redução da ansiedade. Esse subtipo é largamente expresso no hipocampo, na amígdala e no striatum. A efetividade dos benzodiazepínicos em reduzir a ansiedade tornou o ácido gama-aminobutírico (GABA) um foco de pesquisa na neurobiologia da ansiedade. Estudos que mensuraram a velocidade dos movimentos sacádicos oculares (que é reduzida pela ação dos benzodiazepínicos) mostraram uma diminuição da sensibilidade ao diazepam em pacientes com pânico, sugerindo uma diminuição da sensibilidade central desses receptores 13c . Estudos com radioligantes por meio de SPECT e PET mostraram redução dos sítios de ligação de benzodiazepínicos em pacientes com transtorno de pânico 13d. As maiores diminuições na densidade dos receptores foram observadas em áreas sabidamente envolvidas com ansiedade em humanos, os córtices orbitofrontal e temporal e a ínsula.
Modelos cognitivos e comportamentais do TP Bouton et al. 14 propõem que alarmes verdadeiros, fal sos e aprendidos poderiam desencadear reações de ansiedade. No alarme verdadeiro haveria um perigo real (p. ex., uma pessoa na beira de um precipício poderia apresentar sintomas de pânico). Alarmes falsos ocorreriam quando os sintomas de medo aparecem sem a presença de algo verdadeiramente perigoso. Esses sintomas espontâneos de "pânico': ainda que não ocorram em todos os indivíduos, são relativamente comuns mesmo em indivíduos sem diagnóstico de TP. Um transtorno de pânico se desenvolveria quando o indivíduo associa o alarme falso com sensações corporais benignas (desencadeantes interoceptivos) ou com estímulos externos que levam a alarmes aprendidos. Indivíduos vulneráveis desenvolveriam ansiedade antecipatória em relação ao que seria antes um estímulo neutro, como lugares com muita gente. A esquiva dessas situações pode aliviar a ansiedade e levar ao desenvolvimento de sintomas agorafóbicos por um mecanismo de reforço negativo. Aspectos cognitivos podem ser incorporados a esse modelo. Diante desses estímulos (intero ou exteroceptivos), opaciente pode apresentar interpretações catastróficas (p. ex., "estou tendo um ataque cardíaco e vou morrer"), o que aumenta ainda mais os sintomas ansiosos.
provavelmente 9q31). Até o momento, 350 genes candidatos foram avaliados em estudos de associação com o transtorno de pânico. No entanto, a maior parte desses estudos mostrou resultados negativos, inconsistentes ou nunca fo ram replicados 15 • Apenas o polimorfismo Vall58Met do gene que codifica a enzima catecol-0 -metiltransferase foi implicado na suscetibilidade ao transtorno de pânico em vários estudos em amostras independentes, tendo sido confirmado em uma metanálise16• Não se sabe ainda como esse gene confere a vulnerabilidade ao desenvolvimento de TP. Como em todos os transtornos psiquiátricos, o papel da genética no transtorno de pânico é complexo e provavelmente múltiplos genes contribuem para a vulnerabilidade ao TP por mecanismos ainda desconhecidos.
Quadro clínico, diagnóstico e comorbidades Para que o diagnóstico de TP seja feito, os ataques de pânico não podem ser consequência dos efeitos fisiológicos de uma substância (como um psicoestimulante) ou de uma condição médica geral (um ataque cardíaco) ou serem mais bem explicados por episódios de ansiedade que ocorrem em outros transtornos psiquiátricos, como fobia social, fobias específicas, transtorno de estresse pós-traumático ou mesmo depressão. O primeiro passo seria o diagnóstico de crises de pânico. Os critérios do DSM-IV-TR1 exigem que pelo menos quatro de treze sintomas estejam presentes para o diagnóstico de ataque de pânico (Quadro I). Desses treze sintomas, onze são sintomas físicos, o que faz com que esses pacientes muitas vezes se apresentem em serviços médicos gerais, especialmente de emergência.
Quadro 11
Critérios diagnósticos para transtorno de pânico sem agorafobia segundo o DSM - IV-TR Tanto 1 quanto 2: 1) Ataques de pânico recorrentes e inesperados. 2) Pelo menos um dos ataques foi seguido por pelo menos um mês (ou mais) de um (ou mais) dos seguintes itens: a) Preocupação persistente sobre ter ataques de pânico adicionais. b) Preocupações sobre as implicações do ataque e das suas consequências (p. ex., perder o controle, ter um ataque cardíaco, "enlouquecer"). Ausência de agorafobia. Os ataques de pânico não se devem aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p. ex., uma droga de abuso, uma medicação) ou a uma condição médica geral (p. ex., hipertireoidismo).
Genética Dados de estudos de gêmeos e de famílias sugerem o envolvimento de fatores genéticos no transtorno de pânico com uma herdabilidade estimada entre 30 e 70% (variância). Estudos de ligação sugeriram o potencial envolvimento de diversas regiões cromossomais na transmissão do transtorno de pânico (regiões 13q, 14q, 22q, 4q31 -q34 e
Os ataques de pânico não são mais bem explicados por outro transtorno mental, como fobia social (p. ex., durante a exposição a situações sociais temidas), fobia específica (p. ex., durante a exposição a uma situação fóbica específica), transtorno obsessivocompulsivo (p. ex., durante a exposição à sujeira em alguém com obsessões sobre contaminação), transtorno de estresse póstraumático (p. ex., em resposta a estímulos associados com um estressar grave) ou transtorno de ansiedade de separação (p. ex., em resposta a estar distante de casa ou de familiares próximos).
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Como os ataques de pânico não são exclusivos do transtorno de pânico, o DSM enfatiza a necessidade do temor da recorrência de novos ataques como uma característica central do transtorno de pânico (Quadro II). Para o diagnóstico, é exigido um mês ou mais de preocupações persistentes sobre a ocorrência de ataques adicionais ou sobre as implicações dos ataques e/ou uma mudança de comportamento significativa (p. ex., esquiva fóbica). Dessa forma, a reação fóbica ao ataque de pânico é colo cada em posição central para o diagnóstico. Quando o ataque ocorre em outros transtornos, geralmente desencadeiam respostas fóbicas a outros eventos (e não a eles mesmos), como em situações sociais no transtorno de ansiedade social ou em situações que relembrem o trauma no transtorno de estresse pós-traumático. Quando o ataque de pânico tem menos do que quatro dos treze sintomas de pânico, pode ser feito o diagnóstico de ataques de pânico com sintomas limitados. É comum que os pacientes apresentem uma mistura de ataques completos mais infrequentes e ataques com sintomas limitados bem mais frequentes ("ameaças de crise"). Com o tratamento, pode haver uma fase inicial de diminuição dos ataques completos e aumento dos ataques limitados. Ataques de pânico com sintomas limitados são comuns em pacientes com diagnóstico de agorafobia sem transtorno de pânico9 • A gravidade e a frequência dos ataques de pânico variam. Alguns pacientes apresentam episódios uma ou duas vezes por semana, outros, múltiplos episódios diariamente. A frequência dos ataques de pânico pode ser um in dicador enganoso da gravidade real da condição, pois al-
Quadro 111 agorafobia
Critérios diagnósticos para transtorno de pânico com
Tanto 1 quanto 2: 1) Ataques de pânico recorrentes e inesperados. 2) Pelo menos um dos ataques foi seguido por pelo menos 1 mês (ou mais) de um (ou mais) dos seguintes itens: a) Preocupação persistente sobre ter ataques de pânico adicionais. b) Preocupações sobre as implicações do ataque e das suas consequências (p. ex., perder o controle, ter um ataque cardíaco, "enlouquecer"). Presença de agorafobia. Os ataques de pânico não se devem aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p. ex., uma droga de abuso, uma medicação) ou a uma condição médica geral (p. ex., hipertireoidismo). Os ataques de pânico não são mais bem explicados por outro transtorno mental, como fobia social (p. ex., durante a exposição a situações sociais temidas), fobia específica (p. ex., durante a exposição a uma situação fóbica específica), transtorno obsessivocompulsivo (p. ex., durante a exposição à sujeira em alguém com obsessões sobre contaminação), transtorno de estresse póstraumático (p. ex., em resposta a estímulos associados com um estresso r grave) ou transtorno de ansiedade de separação (p. ex., em resposta a estar distante de casa ou de familiares próximos).
guns pacientes podem reduzir a frequência dos ataques evitando situações que os desencadeiem. Na avaliação da gravidade, deve-se incluir também a ansiedade antecipatória fóbica, a esquiva agorafóbica, a hipocondria e a interferência no funcionamento 17 . A presença de agorafobia frequentemente complica o transtorno de pânico (Quadro III). Em contextos clínicos, mais de três quartos dos pacientes com transtorno de pânico relatam esquiva agorafóbica pelo menos leve 18 • O diagnóstico de agorafobia se refere ao medo ou à esquiva do paciente de situações em que o escape pode ser difícil ou embaraçoso ou ainda em situações em que a ajuda pode não estar prontamente disponível no caso de um ataque de pânico. As situações agorafóbicas podem incluir ficar sozinho, trafegar em transporte público, passar por pontes, entrar em elevadores, túneis ou lojas cheias ou permanecer em filas longas. A agorafobia também pode ocorrer em qualquer situação em que o paciente tenha apresentado um ataque de pânico anteriormente. Nem todos os pacientes apresentam esquiva das mesmas situações, porém a síndrome clínica tem uma previsibilidade consistente: pode-se antever o quadro clínico global a partir das primeiras observações. Alguns pacientes tornam-se prisioneiros em suas próprias casas, incapazes de ir além do portão por conta do medo de ter um ataque de pânico fora da aparente segurança de seus lares. Para alguns pacientes, pode ocorrer esquiva de situações que desencadeiem estímulos interoceptivos (sensações internas), como aumento da frequência cardíaca em atividades físicas ou relações sexuais. Por influência da psiquiatria europeia e da psicologia comportamental, a CID -lO considera a agorafobia um fenômeno primário, uma entidade diagnóstica distinta e não secundária à ocorrência de ataques de pânico. O diagnóstico de transtorno de pânico só pode ser feito se o diagnóstico de agorafobia primária tiver sido excluído. A visão americana, refletida no DSM, é que a agorafobia quase sempre é uma complicação do transtorno de pânico ou está relacionada, pelo menos, a sintomas de pânico. Apesar da grande controvérsia nessa área, os estudos epidemiológicos, clínicos, familiares e genéticos existentes permitem afirmar que: 1) Em contextos clínicos, a agorafobia quase sempre está associada com o pânico e a maioria dos pacientes relata que os ataques de pânico antecederam o episó dio. 2) Ataques de pânico são um fator de risco importante para o desenvolvimento de agorafobia. 3) Existem evidências de estudos na comunidade e estudos em crianças de que sintomas agorafóbicos limitados (prodrômicos) podem preceder a eclosão de crises de pânico. 4) A presença de ataques de pânico e agorafobia está associada com um curso mais grave e crônico do que é observado no transtorno de pânico sem agorafobia 19 .
57 TRANSTORNO DE PÂNICO E AGORAFOBIA
Comorbidades O transtorno de pânico é frequentemente complicado pela presença de condições comórbidas, incluindo outros transtornos de ansiedade (transtorno de ansiedade social, transtorno de ansiedade generalizada, fobia específica, transtorno de estresse pós-traumático, transtorno obsessivo-compulsivo), depressão e abuso ou dependência de álcool. O transtorno de ansiedade social pode ocorrer em até um terço dos pacientes com transtorno de pânico 20 • O diagnóstico diferencial pode ser difícil, particularmente quando os ataques ocorrem em situações sociais, uma vez que pacientes com TP podem temer ter suas crises em lugares públicos. Investigar o medo principal do paciente pode ajudar no diagnóstico. No transtorno de pânico, o medo central é de ter um ataque de pânico e pode se manifestar em outras situações não sociais. Pacientes com transtorno de ansiedade social, que temem a exposição à avaliação social, focam primariamente na possibilidade de serem humilhados ou envergonhados em situações sociais. Para muitos pacientes, os dois tipos de medo estão presentes. Nesse caso, os dois diagnósticos devem ser feitos. Apesar dos modelos neurobiológicos aparentemente distintos, o transtorno de ansiedade generalizada também
Quadro IV
Critérios para agorafobia
Ansiedade acerca de estar em locais ou situações de onde possa ser difícil (ou embaraçoso) escapar ou onde o auxílio pode não estar disponível na eventualidade de ter um ataque de pânico inesperado ou predisposto pela situação, ou sintomas tipo pânico. Os temores agorafóbicos tipicamente envolvem agrupamentos característicos de situações, que incluem: estar fora de casa desacompanhado; estar em meio a uma multidão ou permanecer em uma fila; estar em uma ponte; viajar de ônibus, trem ou automóvel. Obs.: Deve- se considerar o diagnóstico de fobia específica, se a esquiva se limitar apenas a uma ou a algumas situações; ou de fobia
ocorre frequentemente em comorbidade com o transtorno de pânico. Para receber esse diagnóstico, os pacientes devem se preocupar excessivamente ou sem controle com estressares e atividades cotidianas variadas e não apenas com a possibilidade de ter um ataque de pânico ou com suas consequenc1as. Uma das comorbidades mais comuns com o transtorno de pânico é a depressão, com uma prevalência ao longo da vida de 38%4 • A depressão pode anteceder ou surgir após o início do transtorno de pânico. A presença de depressão complica o tratamento e aumenta o sofrimento do paciente. A presença de sintomas depressivos comórbidos aumenta o risco de suicídio2 1 em relação ao TP e à depressão sem comorbidade. Recentemente, houve um aumento do interesse em estudos sobre a comorbidade entre transtorno de pânico e transtorno afetivo bipolar. Dados clínicos indicam prevalências de transtorno de pânico ao longo da vida de 18% no transtorno bipolar tipo I e de 14% no tipo IJ22. O abuso ou dependência de álcool também ocorre em um subgrupo significativo de pacientes com transtorno de pânico. Cerca de 34% dos pacientes com esse distúrbio, acompanhado de agorafobia, preenchem os critérios para pelo menos um transtorno por uso de substância ao longo da vida23 • Alguns indivíduos relatam que o abuso de álcool se desenvolve na tentativa de controlar a própria ansiedade. No entanto, um estudo mostrou que, em pelo menos metade dos indivíduos com TP e transtornos por uso de substância, o início do transtorno por uso de substância antecedeu o início do TP24 • De fato, a exposição ao efeito excitatório no SNC de repetidas ressacas predispõe ao TP. Nessa mesma linha de observação, usuários passados do psicoestimulante ecstasy (MDMA) apresentam uma odds ratio de 3,7 para a prevalência atual de transtornos de ansiedade e de 7,7 para a prevalência de transtorno de pânico em relação a não usuários de drogas ilícitas25 . Clinicamente, a comorbidade com transtornos por uso de substâncias está relacionada com pior prognóstico no TP A
•
social, se a esquiva se limitar a situações sociais. As situações são evitadas (p. ex.. viagens são restringidas) ou suportadas com acentuado sofrimento ou com ansiedade acerca de
Tratamento
ter um ataque de pânico ou sintomas tipo pânico, ou exigem
O uso de antidepressivos para o transtorno de pânico (TP) data do ano de 1959, quando Donald Klein estudou o antidepressivo tricíclico imipramina para o tratamento desse transtorno 10 • A farmacoterapia para o TP está bem estabelecida, com diversos estudos de alocação aleatória e controlados por placebo demonstrando eficácia. Tratamentos psicoterápicos também têm um papel importante no tratamento do TP. Ao contrário da farmacoterapia, a terapia cognitivo-comportamental (TCC) se baseia no aprendizado. A TCC para o TP tipicamente engloba componentes de psicoeducação, reestruturação cognitiva e intervenções comportamentais (p. ex., experimentos comportamentais e exposição interoceptiva e in vivo). Cinco áreas gerais do TP exigem atenção no tratamento:
companhia. A ansiedade ou esquiva agorafóbica não é mais bem explicada por outro transtorno mental, como: • Fobia social: a esquiva se limita a situações sociais pelo medo do embaraço. • Fobia específica: a esquiva se limita a uma única situação (p. ex.. elevadores). • Transtorno obsessivo-compulsivo: esquiva à sujeira. em alguém com uma obsessão de contaminação. • Transtorno de estresse pós- traumático: esquiva de estímulos associados com um estressar grave. • Transtorno de ansiedade de separação: esquiva ao se afastar do lar ou de parentes. Obs.: A agorafobia não é um transtorno codificável. Deve- se codificar o transtorno específico no qual ela ocorre.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
1) 2) 3) 4) 5)
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ataques de pânico completos e incompletos; ansiedade antecipatória; medos fóbicos relacionados ao TP; bem-estar geral; incapacidade26 .
Tratamento farmacológico Nos estudos clínicos, 20 a 40% dos pacientes permanecem sintomáticos apesar do tratamento adequado 27 . Em contextos naturalísticos, esse número pode ser maior ou menor. Em relação à população geral, pacientes incluídos em ensaios clínicos tendem a ser mais jovens e com menos comorbidades, mas, por outro lado, na vida real não nos limitamos a 12 semanas de tratamento ou apenas a uma tentativa de medicamento. São fatores associados com resposta ruim ao tratamento: • duração mais longa da doença; • gravidade maior na linha de base; • esquiva agorafóbica, em geral e especialmente se extensa (grave); • medos hipocondríacos intensos; • visitas frequentes a serviços de emergência; • comorbidade com outros transtornos de ansiedade, depressão ou transtornos de personalidade; • saúde mental geral reduzida; • desemprego; • demora na resposta à medicação; • pouca adesão à terapia cognitivo -comportamental. Diversas alternativas de farmacoterapia estão disponíveis para o transtorno de pânico. Embora não existam evidências de superioridade de uma classe de medicamentos sobre outra, algumas das drogas disponíveis apresentam vantagens em relação aos efeitos colaterais. Tratamentos de primeira linha lnibidores seletivos da recaptura de serotonina
A eficácia dos inibidores seletivos da recaptura de serotonina (ISRS) no transtorno de pânico foi demonstrada em diversos estudos controlados. Eles são atualmente considerados sem qualquer contestação as drogas de primeira linha para o tratamento desse transtorno. Todos os ISRS mostraram eficácia no tratamento do TP: fluvoxamina28,29, citalopram30'3\ escitalopram32,33, fluo xetina34,35, paroxetina36,37 e sertralina38,39 . Geralmente, o tratamento com ISRS é bem tolerado. No seu início, inquietação, aumento da ansiedade, insônia e mesmo piora na frequência e gravidade das crises podem dificultar a adesão. Para diminuir essa estimulação excessiva inicial, é boa prática clínica iniciar o tratamento com uma dose menor do ISRS ou alternativamente aumentar a dose mais rapidamente ou ainda associar um benzodiazepínico. Uma boa orientação prévia e disponibilidade por parte do médico também facilitam a adesão inicial com os ISRSs.
Outros efeitos colaterais incluem cansaço, tontura, náusea, anorexia e perda ou ganho de peso. Disfunções sexuais (geralmente diminuição da libido e problemas de orgasmo) podem ocorrer no tratamento de longo prazo40. O efeito terapêutico pode começar com uma latência de 2 a 4 semanas (em alguns casos, até 6 a 8 semanas). Comparações entre os ISRSs não mostraram diferenças em relação à eficácia32 . lnibidores seletivos de recaptura de serotoninanoradrenalina
Não são medicamentos de primeira escolha no TP em razão dos riscos inerentes à ativação noradrenérgica (hipertensão, arritmia) e da falta de eficácia maior em relação aos ISRSs. A eficácia do antidepressivo venlafaxina, um inibidor seletivo de recaptura de serotonina e noradrenalina (IRSN) foi demonstrada em estudos controlados41,42. O perfil de efeitos colaterais é semelhante ao dos ISRSs, mas em doses maiores (225 mg/dia ou maiores) deve-se monitorar a pressão arterial e ocorrência de arritmias. Benzodiazepínicos
A eficácia dos benzodiazepínicos no transtorno de pânico foi demonstrada em diversos ensaios clínicos controlados. .Relata-se que os benzodiazepínicos de baixa potência, como o diazepam, podem levar a mais sedação que os de alta potência (alprazolam, clonazepam, lorazepam), porém tal afirmação é de difícil comprovação experimental. Um problema com o alprazolam é a necessidade de múltiplas doses ao longo do dia e o risco de ansiedade rebate e sintomas de abstinência no caso de omissão de uma ou mais doses. A formulação de liberação controlada do alprazolam minimiza esses problemas e mostrou eficácia em estudos controlados55 . O clonazepam tem uma vantagem sobre o alprazolam de liberação imediata, que é sua meia-vida mais longa, podendo ser administrado uma vez por dia 56 . Com os benzodiazepínicos, o efeito ansiolítico co meça quase imediatamente após a ingestão oral. Ao contrário dos antidepressivos, os benzodiazepínicos não levam a um aumento inicial da ansiedade. Em geral, têm um perfil bastante seguro. Em razão da depressão do sistema nervoso central, o tratamento com esses psicofármacos pode estar associado com sedação, tontura, aumento do tempo de reação e outros efeitos colaterais. As funções cognitivas e a capacidade de dirigir podem ser afetadas. Após tratamento de longo prazo (pelo menos, 4 a 8 meses), pode ocorrer o desenvolvimento de dependência em alguns pacientes57'58, especialmente em pacientes predispostos. As reações de abstinência têm o pico de gravidade em dois dias para os benzodiazepínicos de meiavida curta e quatro a sete dias para os de meia-vida longa59. Dessa forma, o tratamento com benzodiazepínicos
57 TRANSTORNO DE PÂNICO E AGORAFOBIA
exige que sejam ponderados cuidadosamente os riscos e benefícios. Como os benzodiazepínicos não apresentam ação antidepressiva, o tratamento em monoterapia em casos com depressão comórbida está contraindicado. A comorbidade com os transtornos por uso de substância é uma contraindicação relativa para o uso desses medicamentos. Não existem comparações diretas entre ISRSs e benzodiazepínicos no tratamento do TP. De acordo com uma metanálise, os tamanhos de efeitos para os ISRS foram maiores do que para o alprazolam60 . Outra metanálise mais recente não confirmou esse achado61. Em alguns estudos, o alprazolam foi comparado com a imipramina sem que fossem observadas diferenças 43,45,62 . Há alguma controvérsia sobre se os benzodiazepínicos podem ser utilizados como tratamentos de longo prazo nos transtornos de ansiedade. Em pacientes que não obtiveram resultado eficaz com outras modalidades (ou não foram bem toleradas), o tratamento prolongado com benzodiazepínicos pode estar justificado. Entretanto, esse uso deve ser evitado em pacientes com história de abuso de benzodiazepínicos, de álcool ou outras drogas e com transtornos de personalidade. Os benzodiazepínicos também podem ser utilizados em combinação com os antidepressivos durante as primeiras semanas do tratamento63 . Eles, ao contrário dos antidepressivos, não tratam condições comórbidas como a depressão e o transtorno obsessivo -compulsivo. O uso de benzodiazepínicos é problemático em idosos, que são mais sensíveis aos efeitos colaterais, incluindo sedação e risco de quedas. A combinação de benzodiazepínicos e terapia cognitivo-comportamental também é controversa. Existem evidências de que o alprazolam pode, agudamente, aumentar os efeitos do tratamento com terapia de exposição. No entanto, com a retirada da medicação, os pacientes tratados com alprazolam e TCC apresentaram piora em relação aos pacientes tratados com TCC isoladamente64. Uma estratégia que pode ser bem-sucedida para prevenir recaídas em pacientes em uso de medicação é iniciar a TCC durante a fase de diminuição de dose. Intervenções cognitivo-comportamentais podem facilitar a interrupção dos benzodiazepínicos65,66 . Outros tratamentos farmacológicos de primeira escolha Antidepressivos tricíclicos
Entre os antidepressivos tricíclicos, a clomipramina67,68 e a imipramina69 mostraram eficácia em ensaios clínicos controlados. Efeitos colaterais como boca seca, hipotensão postural, taquicardia, sedação e disfunções sexuais podem dificultar a adesão. A dose deve ser titulada lentamente no início do tratamento. O ganho de peso pode ser problemático no tratamento de longo prazo. Além disso, o risco de superdosagem é maior do que com os ISRSs.
Estudos comparando a eficácia dos tricíclicos e dos ISRSs não mostraram diferenças em termos de eficácia. No entanto, os ISRSs foram mais bem tolerados. (Para uma metanálise, consulte Bakker et aF0.) Tratamentos de segunda ou terceira escolha lnibidores da monoamino-oxidase
O único inibidor da monoamino-oxidase (IMAO) que demonstrou eficácia em ensaios controlados foi a fe nelzina, que não está disponível comercialmente no Brasil. Em um estudo, essa medicação mostrou -se superior ao placebo e também à imipramina em algumas medi das 71 . A tranilcipromina (disponível no Brasil) mostrou eficácia apenas em relatos e estudos não controlados 72 • Por conta da possibilidade de interações com outros medicamentos e com alimentos, levando a efeitos colaterais graves como crises hipertensivas, os IMAOs devem ser reservados a casos que não responderam a outros medicamentos e à terapia cognitivo -comportamental. A moclobemida, um IMAO reversível que, portanto, oferece menos riscos, apresentou resultados inconsistentes. Apesar de ter se mostrado tão eficaz quanto a fluo xetina73 ou a clomipramina7\ a moclobemida não foi superior ao placebo em um estudo duplo-cego75 e em outro76 foi superior ao placebo apenas no subgrupo de pacientes mais graves. Outros medicamentos
Diversos outros medicamentos, com diferentes mecanismos de ação, mostraram eficácia em estudos duploscegos pequenos (p. ex., reboxetina, valproato de sódio e inositol). Outros não mostraram efetividade em estudos semelhantes (p. ex., mirtazapina, buspirona, bupropiona e gabapentina [superior ao placebo apenas em pacientes mais graves]). A Tabela I apresenta as doses geralmente recomendadas para o TP e a Tabela 11 apresenta algumas vantagens e desvantagens referentes a diferentes medicamentos. Tratamento combinado
Os efeitos colaterais ativadores dos ISRSs podem ser intoleráveis para pacientes ansiosos, particularmente no início do tratamento para pacientes com TP. A administração de benzodiazepínicos de meia vida-longa (p. ex., clonazepam) ou de liberação prolongada (p. ex., alprazo lam XR) nas primeiras semanas pode melhorar a tolerabilidade do ISRS e levar a uma estabilização mais rápida dos sintomas63'77 . Aspectos práticos do tratamento farmacológico
A maioria dos pacientes (cerca de 75%) responde a doses baixas dos ISRSs. Em pacientes com dificuldade para tolerá-los, a dose nas primeiras semanas pode ser de metade ou um quarto da dose recomendada.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Tabela I Recomendações para o tratamento medicamentoso do transtorno de pânico Tratamento
Exemplos
Dose diária recomendada para adultos
Tratamento agudo de ataques de pânico Be nzod iaze pín ic os
Alprazolam
0,5-2 mg
Clonazepam*
0,25-2 mg
Citalopram
20-60 mg
Escitalopram
10-20 mg
Fluoxetina
20-40 mg
Fluvoxamina
100-300 mg
Paroxetina
20-60 mg
Sertralina
50-200 mg
IRSN
Venlafaxina
75-300 mg
Be nzod iaze pín ic os
Alprazolam
1,5-8 mg
Clonazepam
1-4 mg
Tratamento continuado ISRS
ISRS: inibidor seletivo de recaptura de serotonina; IRSN: inibidor de recaptura de serotonina e noradrenalina. • Disponível em comprimidos de dispersão sublingual.
Com antidepressivos tricíclicos, a dose inicial deve ser sempre baixa para minimizar efeitos colaterais, como hipotensão postura!, no começo do tratamento. A dose pode então ser aumentada a cada 3 a 5 dias. Quando não houver resposta inicial, deve ser aumentada progressivamente até a dose máxima recomendada. A latência para o início da ação deve ser informada antecipadamente aos pacientes, assim como os efeitos colaterais esperados. O transtorno de pânico costuma ter curso flutuante. Após a remissão, o tratamento deve continuar por vários
Tabela 11
meses com o objetivo de prevenir recaídas. Alguns estudos investigaram a eficácia de longo prazo dos ISRSs e dos ATCs. Em geral, os ISRSs e a venlafaxina mostraram eficácia de longo prazo nesses estudos. Os dados sobre por quanto tempo o tratamento deve continuar são escassos. Consensos de especialistas recomendam geralmente que a farmacoterapia deve durar pelo menos 12 a 24 meses78 • Caso não haja resposta terapêutica, deve-se assegurar que o diagnóstico está correto, que uma dose adequada foi utilizada e que a medicação foi mantida por tempo suficiente. Também se deve atentar para comorbidades que podem dificultar a resposta, como depressão, abuso ou dependência de substâncias e transtornos de personalidade. Existem poucos estudos com pacientes não respondedores. Hirschmann et al. 79 avaliaram o betabloqueador pindolol como estratégia de potencialização, associado à fluoxetina, que mostrou ser eficaz. Em outro estudo 80, pacientes que não responderam ao citalopram passaram a receber reboxetina (um inibidor da recaptura de noradrenalina) e vice-versa, fornecendo embasamento para a estratégia de trocar por medicamentos que atuem em diferentes receptores em não respondedores.
Tratamento não farmacológico Na abordagem de todos os pacientes com transtorno de pânico, é fundamental um contexto de apoio e de atenção aos estados emocionais. Métodos psicoeducacionais sempre devem ser utilizados. O paciente deve receber informações sobre a doença, como quadro clínico, etiologia, tratamentos disponíveis e mecanismos de ação das drogas. O tratamento psicoterápico (terapia cognitivo-comportamental) também deve ser considerado para todos os pacientes. Os tratamentos farmacológico e psi-
Vantagens e desvantagens dos medicamentos para transtorno de pânico
Classe
Vantagens
Desvantagens
ISRS
Sem risco de dependência. Evidências suficientes de ensaios controlados. Perfil de efeitos colaterais favorável em relação a outros antidepressivos. Segurança relativa em superdosagem.
Latência de efeito de 2-6 semanas. Piora inicial, náusea, inquietação, disfunções sexuais e outros efeitos colaterais.
IRSN: venlafaxina
Sem risco de dependência. Evidências suficientes de ensaios controlados. Segurança relativa em superdosagem.
Latência de efeito de 2-6 semanas. Piora inicial, náusea, inquietação, disfunções sexuais, aumento da pressão arterial em doses altas e outros efeitos colaterais.
ATC
Sem risco de dependência. Evidências suficientes de ensaios controlados.
Latência de efeito de 2-6 semanas. Efeitos anticolinérgicos, efeitos colaterais cardiovasculares, ganho de peso, hipotensão ortostática, disfunção sexual, sintomas gastrintestinais e outros efeitos colaterais. Podem ser fatais em superdosagem.
Be nzod iaze pín ic os
Rápido início de ação. Evidências suficientes de ensaios controlados. Perfil de efeitos colaterais favorável. Segurança relativa em superdosagem.
Possibilidade de dependência. Sedação, aumento do tempo de reação e outros efeitos colaterais.
ISRS: inibidor seletivo de recaptura de serotonina; IRSN : inibidor de recaptura de serotonina e noradrenalina; ATC : antidepressivos tricíclicos.
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cológico não devem ser vistos como alternativas, mas como parceiros no manejo do transtorno de pânico. Em uma metanálise81 , a combinação do tratamento farmacológico com terapia cognitivo-comportamental foi superior às duas modalidades isoladamente. Terapia cognitivo-comportamental A terapia cognitivo-comportamental (TCC) para o transtorno de pânico se mostrou eficaz em diversos ensaios clínicos. (Consulte Hofmann e Smits, 200882 para uma metanálise da TCC nos transtornos de ansiedade e Manfro et al., 200883 para uma revisão). A TCC costuma ser um tratamento breve, composto de 1O a 20 sessões estruturadas com objetivos claros a serem alcançados. Geralmente, é constituída por um "pacote" com as técnicas descritas a seguir: 1) Psicoeducação: deve incluir, além de informações sobre o transtorno de pânico, como já descrito, informações sobre o modelo cognitivo-comportamental da doença e a fundamentação teórica da TCC. 2) Técnicas para lidar com a ansiedade: é importante que o paciente aprenda maneiras de controlar sua ansiedade, incluindo técnicas de relaxamento. O controle da respiração é particularmente importante, pois a tendência a hiperventilar em situações ansiogênicas pode servir como gatilho para as crises de pânico decorrentes da alcalose respiratória. 3) Técnicas cognitivas: visam à correção de pensamentos distorcidos que levam à interpretação catastrófica de sensações corporais benignas e dos sintomas de ansiedade. 4) Técnicas de exposição: podem ser usadas técnicas de exposição interoceptiva e de exposição in vivo. A exposição interoceptiva tem por objetivo a redução da ansiedade provocada por sensações corporais por meio da provocação voluntária desses sintomas. Por exemplo, pode-se desencadear taquicardia com exercícios físicos, tontura rodando em uma cadeira ou parestesias com hiperventilação. Na exposição in vivo, o objetivo é superar sintomas agorafóbicos com a exposição progressiva do paciente a situações que tem evitado. Alguns autores sugerem que a exposição é o componente mais eficaz da TCC84•
Considerações finais O transtorno de pânico é uma condição crônica e incapacitante que frequentemente é agravada pela presença de agorafobia, outros transtornos de ansiedade, transtornos do humor e abuso ou dependência de álcool. É comum em serviços médicos gerais, onde muitas vezes não é diagnosticado. Os inibidores seletivos de recaptura de serotonina e a venlafaxina são considerados tratamento de primeira linha. Os benzodiazepínicos podem ser associados com os ISRSs durante as primeiras semanas de tratamento com
ISRS, para minimizar os efeitos de ativação inicial e piora da ansiedade, facilitando a adesão ao tratamento. Tricíclicos são eficazes, mas devem ser reservados para pacientes que não respondem ao tratamento com ISRS e com a venlafaxina. Como regra geral, o tratamento farmacológico deve ser mantido por pelo menos um ano. A TCC é eficaz no tratamento do transtorno de pânico com ou sem agorafobia e deve ser considerada um tratamento de primeira linha. A exposição às sensações corporais e às situações evitadas parece ser um componente particularmente eficaz.
Minicaso clínico LAS. é uma jovem de 26 anos formada em direito e que tra-
bal ha em um fórum de grande movimento público. Ela descreve que, há cerca de dois anos apresentou uma crise de início súbito e forte intensidade quando estava em um cinema com amigos. Nessa crise, começou a sentir falta de ar. taquicardia, tremores, sudorese nas mãos, parestesias e sensação de desmaio. Acreditou que estivesse tendo um ataque cardíaco e foi levada pelos amigos a um pronto-socorro. onde foi examinada e fez um eletrocardiograma (normal), glicemia capilar (também normal) e recebeu o diagnóstico de estresse, sendo aconselhada a descansar. Achou que a avaliação foi "muito superficial" e marcou um cardiologista para um check-up. Até a consulta, não apresentou novas crises intensas (apenas o que ela chamou de ameaças de crise). mas pediu que o marido a levasse e buscasse no trabalho, pois tinha medo de passar mal no metrô. Após um check-up completo que incluiu holter, monitoramento ambulatorial da pressão arterial (MAPA). teste ergométrico e um ecocardiograma, ela recebeu o diagnóstico de prolapso da valva mit ral e a prescrição de propranolol 40 mg duas vezes por dia. Pouco depois, apresentou uma segunda crise intensa quando estava em casa e sem desencadeantes detectáveis. Foi levada novamente a um pronto-socorro pelo marido, onde recebeu o diagnóstico de síndrome de pânico. O propranolol foi suspenso e foi prescrita fluoxetina 20 mg/dia. Após dois dias tomando a medicação, ela apresentou "a pior crise da sua vida" e abandonou o tratamento. Nesse momento, não conseguia mais ir sozinha para o trabalho e precisava ir ao ambulatório médico do fórum com frequência, geralmente com queixas de taquicard ia e falta de ar. Decidiu tirar férias e durante esse período ficou praticamente restrita à sua casa, só conseguia sair acompanhada e, mesmo quando ficava em casa, sentia-se insegura se ficasse sozinha e telefonava frequentemente para o marido para se assegurar de que não estava "tendo um ataque cardíaco". Ao tentar voltar para o trabalho, apresentou novamente crises fortes e não conseguia mais entrar no fórum. Nessa época, ela procurou atendimento psiquiátrico. Recebeu os diagnósticos de transtorno de pânico com agorafobia e depressão maior. Iniciou o tratamento com sertralina 25 mg/dia e clonazepam 0,5 mg duas vezes por dia. Após três semanas, os ataques de pânico haviam desaparecido, mas a paciente mantinha sintomas depressivos leves, sintomas agorafóbicos e hipervigilância em relação aos sintomas físicos. A dose da sertrali-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA • SEÇÃO 5 AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
na foi aumentada para 50 mg/dia. Após 1 mês, os sintomas depressivos melhoraram e ela já conseguia ficar em casa sozinha sem reações de ansiedade e até sair acompanhada para lugares próximos. A paciente foi encaminhada para terapia cognitivo-comportamental (TCC) e a dose do clonazepam foi reduzida progressivamente ao longo dos meses seguintes. A TCC envolveu inicialmente a exposição a sensações corporais (estímulos interoceptivos) e, depois, a exposição progressiva a lugares cheios. Após seis meses, mantinha o uso apenas de sertralina 50 mg/dia e havia voltado a trabalhar normalmente. Nessa época, um ano após o início do tratamento, considera-se apta a iniciar uma redução progressiva da sertralina.
Questões 1. Considerando-se o minicaso clínico, assinale a alternativa falsa em relação ao diagnóstico diferencial: a) Se a paciente relatasse que as crises de pânico ocorriam apenas em situações sociais e que estavam relacionadas ao medo de ser humilhada ou passar vergonha, a hipótese de transtorno de ansiedade social deveria ser cu idadosamente investigada. b) Não há necessidade de investigar o consumo de anorexígenos, pois essas drogas podem provocar sintomas psicóticos, mas raramente estão associadas com quadros de ansiedade. c) Se o quadro tivesse iniciado após abuso sexual e as crises estivessem relacionadas com situações que lembrassem o que aconteceu, uma hipótese diagnóstica importante a ser considerada seria de transtorno de estresse pós-traumático. d) O consumo esporádico de ecstasy (M DMA, metilenodioximetanfetamina) deve ser investigado, pois essa droga está fortemente associada com transtornos de ansiedade, especialmente transtorno de pânico e fobias específicas. e) Fazem parte do diagnóstico diferencial do transtorno de pânico alterações endócrinas como hipertireoidismo, hipoparatireoidismo, hipoglicemia e feocromocitoma.
2. Assinale a alternativa falsa sobre a etiopatogenia do transtora)
b)
c)
d) e)
no de pânico: Ataques de pânico podem ser considerados respostas fisiológicas que ocorrem normalmente diante de perigos reais e que passam a ser desencadeadas espontaneamente (ala rmes falsos). Sensações corporais benignas, estímulos externos e pensamentos catastróficos podem ser associados com os ataques de pânico e passar a desencadeá-los. Os inibidores seletivos de recaptura de serotonina podem exercer sua ação antipânico por meio da estimulação de receptores 5- HT2A e 5- HT1A na substância cinzenta periaquedutal, o que diminui a probabilidade de reações do tipo luta ou fuga. Não existem evidências sobre a influência de fatores genéticos no transtorno de pânico. Existem evidências de hiperatividade do sistema noradrenérgico e hipoatividade do sistema gabaérgico em pacientes com transtorno de pânico.
3. Considerando a ocorrência de comorbidades psiquiátricas no transtorno de pânico, assinale a alternativa verdadeira : a) A presença de agorafobia é um marcador de bom prognóstico. b) Os diagnósticos de transtorno de ansiedade social e transtorno de pânico são excludentes. Deve-se priorizar o diagnóstico mais evidente mesmo quando a pessoa apresenta crises de pânico espontâneas e preocupações excessivas sobre as consequências dos ataques e crises situacionais desencadeadas pelo medo da avaliação negativa pelos outros em situações SOCiaiS. c) A prevalência ao longo da vida de agorafobia é muito elevada em pacientes com transtorno de pânico (entre 22,5% e 58,2%). Na popu lação geral, no entanto, a prevalência ao longo da vida da agorafobia é de 50 a 100% maior do que a prevalência do transtorno de pânico com ou sem agorafobia, o que indica que a agorafobia sem transtorno de pânico é comum em amostras comunitárias. d) O transtorno de pânico pode ser considerado um fator de proteção para o desenvolvimento de transtornos associados ao uso de substância. e) Apesar da comorbidade com depressão unipolar ser frequente, a ocorrência de transtorno de pânico em pacientes com transtorno bipolar é rara. 4. São fatores associados com resposta ruim ao tratamento farmacológico no transtorno de pânico, exceto: a) Visitas raras a serviços de emergência. b) Longa duração do transtorno. c) Sintomas mais graves no início do tratamento. d) Esquiva agorafóbica extensa. e) Comorbidade com transtornos de personalidade. 5. Assin ale a alternativa incorreta em relação ao tratamento do transtorno de pânico: a) Os inibidores seletivos de recaptura de serotonina devem ser iniciados em doses baixas, geralmente metade ou um quarto da dose inicial utilizada para depressão maior. b) Após a remissão dos sintomas, inibidores seletivos de recaptura de serotonina devem ser mantidos por pelo menos 1 ano. c) A monoterapia com benzodiazepínicos pode ser utilizada em pacientes deprimidos, pois a melhora dos sintomas de pânico geralmente leva à melhora da depressão. d) Benzodiazepínicos devem ser evitados em pacientes com histórico de abuso ou dependência de substâncias e em pacientes com transtorno de personalidade borderline. e) Os antidepressivos e a terapia cognitivo-comportamental apresentam uma ação sinérgica.
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Fobia Social
Tito Paes de Barros Neto Cristiane M aluhy Gebara
SUMÁRIO
Escala de Ansiedade Social de Liebowitz (LSAS) - Liebowitz
Introdução, 771 Etiologia, 772 Epidemiologia, 774
Social Anxiety Scale Escala de Entrevista para Transtornos de Ansiedade do DSM-111-R (ADIS-R) - Anxiety Disorders lnterview Schedule for DSM-111-R, 784
Quadro clínico e diagnóstico, 774 Diagnóstico diferencial, 776 Comorbidades, 777 Transtornos de humor, 777 Álcool e outras substâncias, 777 Transtornos ansiosos, 778 Transtornos alimentares, 778 Transtorno dismórfico corporal, 778 Tratamento farmacológico, 778 Abordagem cognitivo-comportamental, 779 Técnicas e procedimentos utilizados, 779 Abordagem psicodinâmica, 781 Nota sobre o tratamento cirúrgico para fóbicos sociais que manifestam rubor facial, 781 Neurobiologia, 782 Estudos com neuroimagem, 782 Outros experimentos, 782 Personalidade, 782 Escalas de avaliação, 784 Questionário de Medos e Fobias - Fear and Phobia Questionnaire, 784 Escala de Esquiva e Desconforto Social (SAD) e Escala de Medo da Avaliação Negativa (FNE) - Social Avoidance and Distress Scale and Fear of Nega tive Evaluation, 784
Introdução Ansiedade social é um fenômeno comum. Muitas pessoas se sentem ansiosas quando são o centro das atenções, como em apresentações em sala de aula. Essa ansiedade, porém, não é grave o bastante para acarretar prejuízo à vida delas. Ao contrário, pode até haver melhora do desempenho. Algumas pessoas sentem-se extremamente ansiosas em situações de desempenho ou de contato interpessoal, o que
Questões, 785 Referências bibliográficas, 785
PONTOS-CHAVE
Ao final deste capítulo, você estará apto a: 1. Discernir ansiedade social normal de fobia social.
2. Enumerar os principais fatores de risco e etiológicos presentes na fobia social. 3. Identificar suas diversas comorbidades. 4. Conhecer os principais sintomas e a evolução do quadro. 5. Tratar o fóbico social com psicofármacos de primeira linha e ter noções da abordagem cognitivo-comportamental. 6. Avaliar os traços de personalidade patológica presentes nos fóbicos sociais. 7. Ter um olhar atual sobre o que tem se pesquisado sobre a
neurobiologia da fobia social. 8. Conhecer algumas das escalas de avaliação.
as leva à esquiva de diversas situações, com consequências negativas nas suas vidas. Essas pessoas têm fobia social (FS), um transtorno de prevalência elevada, que causa intenso desconforto e sofrimento, levando à interferência no dia a dia e ao acentuado prejuízo no desempenho. A maioria dos fóbicos sociais não recebe tratamento adequado por ser a sua condição subdiagnosticada, e pela comorbidade com outros transtornos, como o abuso e a dependência de substâncias, que dificultam o diagnóstico e o tratamento 1•
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Hipócrates apud Marks 2 foi o primeiro a fazer alusão à ansiedade social patológica há alguns séculos: "Ele não ousa estar em companhia, pois teme ser inadequado, ou exagerado nos gestos ou discurso, ou ficar doente; pensaque todos o observam". Burton (1621) descreveu o medo fóbico social em Demóstenes, o orador grego, que temia falar em público em razão da gagueira e, em 17 de setembro de 1977, o jornal The Guardian relatou o pavor que assolava Maria Callas, que tremia de medo nos momentos que precediam sua entrada no palco (Figura 1). Em 1907, Kraepelin 3 mencionou, em um breve capítulo de seu livro, os medos compulsivos relacionados a determinados objetos e o sentimento de desconforto que algumas pessoas têm ao se relacionarem com os outros, manifestando sintomas físicos, como a ruborização mórbida. O termo fobia apareceu pela primeira vez a partir do início do século XIX. A FS foi descrita pela primeira vez há mais de quatro décadas por Marks e Gelder\ em um estudo no qual observaram que pessoas com fobias de situações sociais, manifestas como timidez, medo de ruborizar em público, de comer em restaurantes, de conhecer pessoas, ir a festas e tremer quando observadas, diferiam de outras fobias sobretudo no aspecto da idade de início do quadro. Enquanto a agorafobia e as fobias específicas situacionais se iniciavam mais comumente na idade adulta, e as fobias específicas de animais sempre na infância, a FS geralmente surgia na adolescência. A FS vem sendo mais estudada pelos pesquisadores desde sua inclusão no DSM-III. Entretanto, ela não era considerada um transtorno incapacitante e foi tida como o mais negligenciado transtorno ansioso classificado no DSM-III5 • Nessa época, era possível se encontrar cerca de duas dúzias de artigos sobre FS no Medline. Isso mudou, e nas últimas décadas um grande número de estudos sobre a FS surgiu, sendo, no entanto, modesto quando comparado ao de outros transtornos de ansiedade, como o transtorno de pânico, o transtorno obsessivo-compulsi-
Figura 1
Maria Callas: pavor do palco.
voe o transtorno de estresse pós-traumático. Isso é surpreendente, já que a FS é um dos transtornos de ansiedade mais prevalentes, com início precoce, curso crônico, comorbidades, e que raramente remite sem tratamento adequado. Ao centrar-se a atenção sobre a FS, percebe-se que se trata de um quadro bastante heterogêneo, cuja natureza ainda é pouco conhecida. É notável a excessiva sensibilida de que os pacientes apresentam, bem como a constante autorreferência. Por ser um quadro de início precoce e evolução crônica, a FS pode ser estudada do ponto de vista da personalidade e de seus transtornos, o que torna sua abordagem mais difícil, porém não menos fascinante.
Etiologia Esta é uma das áreas da FS sobre as quais há pouco conhecimento. São muitos os aspectos que podem estar relacionados à sua etiologia; um dos primeiros é a definição dos limites diagnósticos da FS, uma vez que os estudos epidemiológicos evidenciam que a ansiedade social ocorre na população geral de acordo com um continuum. Conforme mencionado, o temor de situações sociais é um fenômeno que ocorre normalmente na população. O que seria, então, a FS? Um corte dentro desse continuum ou uma categoria qualitativamente distinta? Para alguns autores, traços de personalidade, como timidez, poderiam ser considerados fatores de risco para a eclosão da FS6 . Entretanto, são muitos os possíveis fatores etiológicos que envolvem a FS, que vão da genética às relações que se estruturam entre crianças e pais superprotetores ou excessivamente controladores. Além disso, a aprendizagem social dentro da família pode se relacionar com a presença de ansiedade. A etiologia da FS pode ser explicada pelo ponto de vista genético, que tem papel moderado, mas importante na sua etiologia7 • Crianças com FS, quando comparadas a seus pares não fóbicos, apresentavam pais fá bicos sociais em proporção maior que os pais de seus pares não fóbicos 8 . Estudos com gêmeos, utilizando amostras grandes, evidenciaram significativa influência genética no desenvolvimento da FS. Uma metanálise que utilizou estudos com gêmeos concluiu que a here ditariedade estimada para ansiedade social foi de 0,65. Outros autores encontraram estimativas mais modestas (0,4 a 0,5) 9 e Kendler et al. 10 já haviam estimado a hereditariedade da FS em 0,50. Outros estudos examinaram a influência genética relacionada a constructos como timidez, medo da avaliação negativa e inibição do comportamento e obtiveram resultados semelhantes 11 ' 12 . Os dados corroboram a importância da hereditariedade na gênese da FS e sugerem que a sua persistência se encontra também sob forte influência genética. Entretanto, é possível que haja influências genéticas comuns entre a FS, a depressão e o abuso e a dependência de álcool, o
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que explicaria, ao menos em parte, as elevadas comorbidades entre esses transtornos. Certos tipos de temperamento e FS podem refletir mecanismos causais comuns, cuja origem pode ser genética ou ambiental. Kagan et al. 13 cunharam a denominação "inibição do comportamento" para descrever um padrão de comportamento e respostas emocionais a pessoas desconhecidas e situações novas. Crianças inibidas respondem a situações novas com retraimento, cautela, pouca aproximação e retirada silenciosa do ambiente. Com pessoas desconhecidas, são tímidas, acanhadas e reticentes. É possível se observar semelhanças entre a inibição do comportamento e a FS. Existem evidências sugestivas de que crianças que manifestam comportamento e temperamento inibidos apresentam risco aumentado para o desenvolvimento de FS. Do ponto de vista neurofisiológico, o sistema límbico das crianças inibidas teria um limiar mais baixo de responsividade, especialmente da amígdala e do hipotálamo, acarretando aumento da frequência e estabilidade de batimentos cardíacos, o que sugere maior influência do sistema simpático, aumento dos diâmetros pupilares e maior tensão motora. Níveis mais altos de cortisol matinal também são encontrados. Entretanto, os autores afirmam que nem toda criança com essa característica de excitabilidade do sistema simpático pode se tornar inibida no futuro e que a manifestação de comportamento inibido requer influências de estressares ambientais, além da disposição, para apresentar o referido comportamento. Fatores cognitivos também podem contribuir para o desencadeamento e a manutenção da FS que se caracteriza, do ponto de vista cognitivo, por vieses e distorções no processamento das informações sociais, pensamentos e atitudes. Esses fenômenos são também observados em crianças. Há evidências sugestivas de que a FS seja mantida por um círculo vicioso no qual os indivíduos se engajam em uma série de processos cognitivos enviesados, antes e depois das interações sociais, que geram ansiedade e podem causar prejuízo no desempenho social. A esquiva social subsequente e as consequências socialmente adversas são utilizadas para reduzir a possibilidade de desenvolvimento social posterior e para perpetuar a suposição de que eventos sociais trarão sempre consequências negativas 14 • Esses fenômenos cognitivos também foram observados em crianças com FS que exibiram um padrão de negatividade cognitiva em relação a situações de avaliação social semelhante ao observado em adultos fóbicos sociais. Em relação a adultos com FS, experiências socialmente adversas podem ter um papel no desenvolvimento da FS. Adultos, frequentemente, recordam-se de experiências em que foram criticados, humilhados, sofreram bullying e de outras consequências sociais adversas. Fóbicos sociais adultos também valorizam muito a aceitação por parte dos outros, mas os percebem como críticos e prontos para os avaliarem negativamente 15 •
Falta de habilidades sociais é uma ocorrência comum entre fóbicos sociais, sobretudo os de subtipo generalizado. O papel que as habilidades sociais têm em sua etiologia é assunto controverso, uma vez que alguns defendem o ponto de vista de que haja, de fato, um dé ficit de habilidades sociais, enquanto outros afirmam que ocorre a inibição das habilidades sociais em razão da ansiedade excessiva 15. No entanto, a literatura respalda a hipótese da deficiência de habilidades sociais nas crianças 16 • Entre os fatores ambientais que merecem ser abordados dentro da etiologia da FS, está a interação pais/criança. Embora a literatura seja limitada, parece existir a associação entre a ansiedade infantil e o controle e a proteção dos pais. Parece haver também, ainda que em menor extensão, relação entre ansiedade infantil e pouco carinho. Especificamente em relação à FS e sua relação pais/ criança, há estudos que correlacionam a ansiedade social a excessivo controle e falta de carinho. É interessante observar que nesses estudos os resultados aparecem de forma mais robusta entre adultos com FS quando comparados àqueles com transtorno de pânico 17 •18 • Há estudos observacionais sobre a interação pais/ criança que incluíram crianças com FS, em que ficou constatado controle excessivo por parte dos pais 19•20 • Os estudos evidenciam a importância da identificação de determinados padrões de relações entre os pais e as crianças na FS, configurando assim o seu papel etiológico. Pôde-se observar que as mães de crianças introvertidas tendiam a relatar crenças arraigadas de que seus filhos deveriam ser educados de modo duro e coercitivo21 • Há estudos que, abordando a influência parenta!, evidenciaram que adultos fóbicos sociais lembravam de seus pais como sendo menos sociáveis, frisando a importância da opinião das outras pessoas, tentando isolá-los das interações interpessoais e usando a vergonha como método de disciplina7 • O papel das experiências sociais aversivas e dos eventos negativos de vida ainda não está bem elucidado. A esse respeito, Hackman et al. 22 propuseram que na FS experiências desagradáveis precoces podem levar ao desenvolvimento de imagens excessivamente negativas do self social, que são repetidamente ativadas em situações sociais subsequentes e falham na atualização (do significado) à luz de experiências subsequentes mais agradáveis. Eventos na vida de uma criança, como separação dos pais, presença de doença mental em um ou ambos os pais e conflitos familiares, parecem aumentar o risco para a eclosão da FS. Entretanto, o aumento do risco parece ocorrer também em relação a outros transtornos mentais. Poucos estudos examinaram as possibilidades de se fazer a prevenção da FS, apesar das evidências que existem sobre as influências familiares e ambientais. O tratamento de crianças e adolescentes pode reduzir a probabilidade de uma evolução crônica. A inclusão dos pais no tratamento,
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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provendo-os de estratégias para ajudar seus filhos a lidar com a ansiedade social, pode ser um procedimento útil. Em um estudo no qual programas de prevenção foram conduzidos em escolas com o objetivo de prover a pais e crianças habilidades de enfrentamento e orientação para exposição às situações temidas, observou-se significativa melhora nos grupos que receberam a intervenção23.
Epidemiologia Dados sobre prevalência, perfil sociodemográfico e curso de um transtorno mental têm grande valia para a compreensão do impacto que ele possa ter sobre a população. Podem ser úteis também para se elucidar a etiologia de um transtorno, bem como a sua prevenção. Estudos epidemiológicos realizados nos EUA e na Europa evidenciaram que, entre os transtornos de ansiedade, a FS foi o mais prevalente. Vários estudos utilizaram o DSM-IV-TR, e a prevalência variou de 2 a 12%24 . Andrade et al.2 5, ao realizarem estudo com 1.464 participantes, usando os critérios diagnósticos da CID-1O, em uma área de captação próxima ao Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, observaram a prevalência de 3,5% para a FS. Entendimentos distintos sobre a intensidade do sofrimento e o grau de prejuízo funcional necessários para que o sujeito seja considerado um fóbico social podem apresentar prevalências diferentes 26 • Acerca desse ponto é importante lembrar que dois estudos que utilizaram o DSM-III-R, que possui critérios mais abrangentes para o diagnóstico da FS, encontraram prevalências de 16% e 13,3%27,28 • Em outro estudo, cujos sujeitos foram selecionados aleatoriamente e entrevistados por telefone, e que também utilizou o DSM-III-R, houve prevalência de 7,1% para a FS29 • Note-se que este estudo e o estudo de Kessler et al. 28 foram realizados no mesmo país e no mesmo ano, e a prevalência encontrada neste último foi de 13,3%. O rigor maior ou menor usado nos critérios de inclusão pode ter tido influência nos resultados. A prevalência dos transtornos mentais diminuiu quando questões de relevância clínica foram dirigidas aos participantes dos estudos do Epidemiologic Catchment Area (ECA) e do National Comorbidity Survey (NCS). No estudo de Narrow et aP 0, que revisaram a prevalência de transtornos mentais nos EUA, a prevalência da FS caiu 50% após a introdução das questões clinicamente relevantes. No estudo de Kessler et aP ' do NCS, a prevalência da FS foi de 12,1 %, mesmo quando as questões clinicamente relevantes fo ram incluídas no método. Em um estudo também recente', que utilizou os critérios diagnósticos do DSM-IV-TR, a prevalência da FS foi de 5,0%. Prevalências tão distintas podem ter ocorrido por diferenças metodológicas utilizadas nos diferentes estudos. Em relação a dados sociodemográficos, o início do quadro se dá na infância ou na adolescência, sendo o pe-
ríodo crítico a puberdade. Início precoce do quadro parece estar mais correlacionado à FS generalizada. O curso é crônico e sem remissão, a não ser que seja tratada. A FS ocorre mais em mulheres do que em homens, na pro porção de 3:2. Fóbicos sociais geralmente são jovens, com pouca escolaridade e baixo nível socioeconômico. A maio ria não se encontra casada. O prejuízo funcional é acentua do, com restrição de atividades do cotidiano e acentuado sofrimento. Muitas vezes, os pediatras são os profissionais que primeiro têm contato com esses pacientes, podendo encaminhá-los precocemente para o tratamento, reduzindo o risco de complicações comórbidas e melhorando o prognóstico.
Quadro clínico e diagnóstico A FS é caracterizada como medo persistente ou ansiedade em situações nas quais a pessoa é exposta a observação ou avaliação dos outros. O principal aspecto é o medo de sentir-se constrangido, humilhado ou de ser avaliado negativamente. Nas situações temidas, os fóbicos sociais tornam-se inibidos. Vários sintomas físicos podem estar presentes, como palpitações, sudorese, tremor, boca seca e tensão muscular. Estes são sintomas inespecíficos e ocorrem em outros transtornos de ansiedade. Sintomas como tontura, dispneia e parestesias são mais comuns no transtorno de pânico. A ruborização, entretanto, é característica da FS, sendo um dos sintomas mais perturbadores. Por ser uma manifestação visível, expõe o fóbico social a observação e julgamento alheios. Analogamente, o tremor e a sudorese também podem se tornar sintomas perturbadores. Outros sintomas físicos que ocorrem com frequência entre os fóbicos sociais são os abalos musculares e o desvio do olhar. Entre os sintomas psíquicos, estão os sentimentos de vergonha e humilhação, a autodepreciação, a antecipação negativa, o medo da avaliação negativa, a timidez excessiva, embora nem todo fóbico social seja tímido, e as ideias de referência não delirantes. Raramente, surge o medo de morrer, que ocorre com frequência no transtorno de pânico. Preocupação de cometer algum erro ou de que seus sintomas físicos sejam percebidos pelos outros é comum. Pode haver, ainda, o receio de um comportamento constrangedor, como sair de um ambiente sem dar explicações. Os fóbicos sociais têm consciência de que seus temores são exagerados ou irracionais. O grau de esquiva fóbica é determinante do prejuízo funcional e pode ser muito variável - desde a esquiva do contato olhos nos olhos até a esquiva de todos os contatos sociais, chegando ao isolamento social total. Alguns fóbicos sociais não referem nenhum sintoma físico de ansiedade, apenas medo e constrangimento com inibição do comportamento. A ansiedade em situações sociais é, geralmente, parte de um círculo vicioso, no qual a ansiedade de antecipação ante a perspectiva de ingressar em uma situação te-
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Tabela I
Situações de ansiedade social
Ansiedade de desempenho Falar em público Comer, beber e escrever diante das pessoas Usar banheiro público Fazer uma prova ou exame importante Ansiedade de contato interpessoal Ir a festas ou eventos Iniciar ou manter conversas Falar ao telefone Ter contato com estranhos Lidar com pessoas em posição de autoridade Fazer alguma reclamação Figura 2
Ansiedade e medo podem levar ao isolamento social total.
Situações de flerte ou encontros Ser entrevistado Interagir com um pequeno grupo de pessoas
mida leva à esquiva, e esta, por sua vez, aumenta tanto a ansiedade de antecipação como a ansiedade situacional. O tema central da FS é o medo de um mau desempenho em situações sociais. Por definição, situação social é aquela em que o indivíduo esteja próximo ou sob a avaliação dos outros. Temendo a vergonha e a humilhação nas situações sociais, o indivíduo com FS ou procura evitá-las ou as enfrenta com muita ansiedade. Assim, há pessoas que preferem fazer qualquer coisa a terem de falar em público, por anteciparem que sua fala seria trôpega ou que seu corpo todo tremeria. Outros temem comer e escrever diante das pessoas, usar banheiro público e fa lar ao telefone. O que existe de comum a essas situações é a excessiva preocupação por parte da pessoa a respeito do que os outros vão pensar sobre o seu desempenho. Seja qual for a forma de FS, há um pré-requisito absolutamente necessário ao diagnóstico: a presença de outras pessoas. Fóbicos sociais são capazes de escrever, comer, beber, cantar e ler em voz alta, desde que estejam sozinhos. É a ansiedade, quando realizam algo diante dos outros, que define o quadro de FS. As situações fóbico-sociais podem ser divididas em ansiedade de desempenho e de contato interpessoal. A Tabela I mostra situações de ansiedade de desempenho e de contato interpessoal. A FS é classificada como circunscrita ou generalizada. Aqueles com medos de falar em público, comer, beber ou escrever diante das pessoas, isto é, com ansiedade de desempenho, são considerados fóbicos sociais de subtipo circunscrito. Os que temem as situações de contato interpessoal, tidas como a maioria delas, e também as de desempenho, são considerados fóbicos sociais de subtipo generalizado. O DSM-IV-TR especifica que a FS é generalizada quando o temor se dá em relação à maioria das situações sociais. Entretanto, não fica claro qual é o número de situações fóbico-sociais que deve estar presente em
cada um dos subtipos, dificultando a sua especificação. A questão é controvertida e aparece em alguns estudos pregressos que utilizaram o DSM-III -R, que é idêntico ao DSM-IV-TR, no que diz respeito aos subtipos da FS. Um aspecto que pode contribuir na distinção entre os dois subtipos é o fato da FS circunscrita estar mais relacionada aos transtornos que envolvem o medo - fobias específicas e transtorno de pânico - ao passo que a FS generalizada encontra-se relacionada aos transtornos que envolvem sofrimento - depressão e transtorno de ansiedade generalizada32 • Para Rapee e Spence? não existem evidências empíricas que diferenciem os dois subtipos. Para os autores, a FS estaria dentro de um continuum de ansiedade social e a FS generalizada, por sua maior gravidade, ocuparia uma posição mais extremada desse continuum. O número de situações sociais temidas pode ser um indicador da gravidade do quadro da FS. Existe considerável sobreposição entre timidez e FS; ambas têm perfis semelhantes de sintomas físicos e de cognições, mas não fica claro se a FS representa uma forma extrema de timidez ou um tipo especial de timidez, no aspecto qualitativo. Entre as características de comportamento dos fóbicos sociais, e também dos tímidos, encontram-se a esquiva de situações geradoras de ansiedade e a falta de habilidades sociais, que pode ser considerada uma forma sutil de esquiva. Por outro lado, a esquiva parece ocorrer mais entre os fóbicos sociais, assim como um prejuízo funcional bem mais acentuado, características que não são observadas entre os tímidos. É interessante observar que muitas das características dos tímidos, no que tange à falta de habilidades sociais, fazem parte do quadro do transtorno de personalidade esquiva.
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Tabela 11
Critérios diagnósticos para fobia social
a) Medo acentuado e persistente de uma ou mais situações sociais ou de desempenho, em que o indivíduo é exposto a pessoas estranhas ou ao possível escrutínio por outras pessoas. O indivíduo teme agir de modo (ou mostrar sintomas de ansiedade) que lhe seja humilhante e embaraçoso. Nota: em crianças, deve haver evidências de capacidade para relacionamentos sociais adequados à idade com pessoas que lhes são familiares e a ansiedade deve ocorrer em contextos que envolvem seus pares, não apenas em interações com adultos. b) A exposição à situação social temida quase que invariavelmente provoca ansiedade, que pode assumir a forma de um ataque de pânico ligado à situação ou predisposto por situação. Nota: em crianças, a ansiedade pode ser expressa por choro, ataques de raiva, imobilidade ou afastamento de situações sociais com pessoas estranhas. c) A pessoa reconhece que o medo é excessivo ou irracional. Nota: em crianças, esta característica pode estar ausente. d) As situações sociais e de desempenho temidas são evitadas ou suportadas com intensa ansiedade ou sofrimento. Figura 3
O medo de ser observado e avaliado pelas pessoas pode chegar ao extremo.
A denominação FS, ou mesmo transtorno de ansiedade social, não parece traduzir bem a natureza do transtorno, já que em muitos casos o que está em evidência é a ansiedade de desempenho. Talvez fobia de ser avaliado seja a denominação mais adequada, uma vez que denota a questão central do fóbico social: o medo da avaliação negativa por parte das outras pessoas. A esquiva fóbica acarreta prejuízo na vida escolar, no trabalho e na vida social. Embora a FS apresente sintomas nucleares, há considerável heterogeneidade em seu quadro clínico. A intensidade do medo é muito variável, assim como a gravidade da esquiva fóbica e o grau de prejuízo funcional decorrente dos sintomas. A FS generalizada, caracterizada por medo e esquiva de muitas situações sociais ou da maioria delas, é o subtipo mais comum de FS e apresenta comorbidade importante com outros transtornos mentais. Os que sofrem desse subtipo de FS, além de apresentarem risco aumentado para depressão maior, têm mais ideação suicida e tentativas de suicídio. A detecção precoce do problema tem papel crucial. A Tabela II mostra os critérios diagnósticos para FS de acordo com o DSM-IV-TR.
Diagnóstico diferencial No transtorno de ansiedade generalizada, é comum estar presente a preocupação em relação ao desempenho. No entanto, ela não se encontra restrita a situações sociais, podendo ocorrer quando o paciente está só. Além disso, o transtorno pode ser diagnosticado apenas quan-
e) Esquiva, antecipação ansiosa ou sofrimento na situação social ou de desempenho temida interferem significativamente na rotina, no funcionamento ocupacional (acadêmico), nas atividades sociais ou nos relacionamentos do indivíduo, ou existe sofrimento acentuado por ter a fobia. f) Em indivíduos com menos de 18 anos, a duração é de no mínimo 6 meses. g) O temor e a esquiva não se devem aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p. ex., droga de abuso, medicamento) ou de uma condição médica geral, nem são melhor explicados por outro transtorno mental (p. ex., transtorno de pânico com ou sem agorafobia, transtorno de ansiedade de separação, transtorno dismórfico corporal, transtorno global do desenvolvimento ou transtorno da personalidade esquizoide). h) Na presença de alguma condição médica geral ou de outro transtorno mental, o medo no Critério A não tem relação com estes; p. ex., o medo não diz respeito a tartamudez, tremor na doença de Parkinson ou apresentação de um comportamento alimentar anormal na anorexia nervosa ou na bulimia nervosa. Especificar se, Generalizada: se os temores incluem a maioria das situações sociais (considerar também o diagnóstico adicional de transtorno da personalidade esquiva).
do o foco de preocupação e ansiedade não tem relação com nenhum transtorno do Eixo I. Pacientes com transtorno dismórfico corporal têm como característica essencial uma preocupação relativa a algum defeito físico imaginário ou mesmo real, mas de proporção tão pequena que não justifica a magnitude da preocupação. Os pacientes podem queixar-se, por exemplo, de ter o nariz muito largo, a cabeça grande, o rosto feio, uma pequena mancha, ou, ainda, uma verruga. Estão muito mais preocupados com a sua aparência, e possível feiúra que os outros possam estar percebendo, do que com problemas de desempenho ou de interação em situações sociais. Depressão atípica caracteriza-se pela presença de ansiedade acentuada e hipersensibilidade à rejeição, além
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de sintomas como hipersônia, hiperfagia e lentificação, que podem se sobrepor ao quadro de FS. Entretanto, os sintomas vão muito além dos sintomas típicos de FS - esquiva e desconforto em situações sociais - , devendo por isso ser classificada como um transtorno depressivo. Desconforto e esquiva em situações sociais são comuns no curso crônico da distimia. Costumam manifestar-se mais comumente nos períodos de intensificação do quadro, sobretudo pelo isolamento, guardando relação com o humor deprimido, ao passo que a ansiedade social dos pacientes com diagnóstico de FS costuma manter-se , . em mve1s constantes. Pacientes com transtorno do pânico evitam particularmente viajar e ficar sozinhos, espaços abertos, túneis, pontes, locais fechados, ao passo que os fóbicos sociais evitam estar no meio das pessoas. A presença de ataques de pânico não diferencia uma síndrome da outra, mas sintomas como parestesias, falta de ar, tontura, sensação de desmaio e preocupação com a possibilidade de morrer, ter um ataque cardíaco ou ficar louco estão presentes em proporção maior entre os pacientes com transtorno do pânico. Na FS, as preocupações relacionam-se mais com medo de ruborizar, tremer, suar e parecer tolo. Um aspecto importante no diagnóstico diferencial entre a agorafobia e a FS é que os fóbicos sociais primários temem a avaliação dos outros e sua ansiedade é direcionada a essas situações ou à antecipação delas. Um exemplo disso é o paciente com FS que sente ansiedade em restaurantes cheios. Esse, no entanto, não é um aspecto que distingue a FS da agorafobia. A diferença está na razão do medo. Enquanto no agorafóbico o medo se relaciona à distância de casa e a um ambiente cheio, no fóbico social ele se relaciona a estar sendo observado no restaurante. Além disso, fóbicos sociais preferem ficar sós, ao passo que agorafóbicos sentemse mais confortáveis na presença de pessoas familiares. Embora o tipo circunscrito de FS possa ser visto como uma modalidade de fobia específica, o foco principal de ansiedade das fobias específicas são objetos ou as situações inteiramente diversas das situações sociais, como animais, relâmpagos, altura e escuridão, que não se relacionam em absoluto com a presença de pessoas. Ideias delirantes ocorrem comumente na esquizofrenia, no transtorno delirante e em outros transtornos psicóticos. Na FS são as ideias de referência que apare cem de forma notável, não possuindo a característica delirante e sendo restritas às situações de contato social. Fóbicos sociais anseiam pelo contato com as pessoas, embora permaneçam isolados. Isso não ocorre com os indivíduos com transtorno de personalidade esquizoide, nos quais se observa a absoluta falta de interesse social.
Comorbidades A comorbidade entre a FS e outros transtornos mentais é comum. No artigo de revisão de den Boer33, 80% dos
pacientes com FS apresentavam algum outro transtorno comórbido, sendo 50% dos sujeitos com outros transtornos de ansiedade, seguidos de 20% com depressão maior e 15% com o abuso de álcool. Grant et al. 1, em seu estudo epidemiológico com 43.093 adultos nos EUA, observaram comorbidade, ao longo da vida, de 56,3% de FS com transtornos de humor e de 54,1% com transtornos de ansiedade. Observaram também que 48,2% dos sujeitos com FS tinham transtorno relacionado ao uso de álcool, 22,3% ao uso de substâncias, 33% eram tabagistas e 55,4% tinham algum transtorno de personalidade. Brunelo et al. 26 ressaltaram a importância de tratar precocemente a FS para prevenir a ocorrência de futuras comorbidades.
Transtornos de humor Diversos estudos observaram elevada comorbidade com depressão maior e distirnia. O início do quadro de FS precedeu o início dos transtornos de humor na grande maioria dos casos. Schneier et al. 3 \ usando dados do estudo do ECA, encontraram prevalências de 16,6% e 12,5% de depressão maior e distimia em pacientes com FS. Índices elevados de ideação suicida foram observados nos sujeitos com FS comórbida à depressão. Perugi et al., em um estudo com 153 pacientes com FS, observaram que 9,1 % deles receberam o diagnóstico comórbido de transtorno bipolar, enquanto 46,4% apresentaram comorbidade com depressão maior. Ohayon e Schatzberg36 avaliaram 18.980 sujeitos do Reino Unido, Alemanha, Itália, Espanha e Portugal. O transtorno depressivo maior foi observado, co morbidamente, em 19,5% dos fóbicos sociais. A comorbidade com outros transtornos ansiosos foi elevada e aumentou ainda mais quando o transtorno depressivo maior se encontrava comórbido, chegando a 65%.
Álcool e outras substâncias Schneier et al. afirmam que na comorbidade abuso de álcool e FS, a FS é cronologicamente primária em 85% dos casos. Sussman37 afirma que pacientes com transtornos de ansiedade são, comumente, medicados pelos clínicos com benzodiazepínicos, o que pode ter como consequência o abuso e a dependência dessas substâncias. Lo tufo Neto e GentiP8 , em estudo que comparou a prevalência de sintomas fóbico-ansiosos em 97 alcoolistas (com abuso e dependência) e a prevalência de abuso e dependência de álcool em 90 pacientes com transtorno do pânico/agorafobia, observaram que havia 22,6% de fóbicos sociais entre os alcoolistas. Os estudos sobre abuso e dependência de outras substâncias em pacientes com FS parecem ser, de modo geral, bem mais escassos na literatura que os trabalhos sobre abuso e dependência de álcool. Brunelo et al.26 mencionam a FS em comorbidade com abuso de álcool em 19% dos casos. Os autores relatam a ineficácia de grupos de ajuda, como Alcoólicos Anôni-
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mos, para os fóbicos sociais com abuso de álcool comórbido, pelo fato de ser necessário falar em público.
Transtornos ansiosos No estudo de Turner et al.39 com 71 pacientes com diagnóstico de FS, 43% dos pacientes receberam ao menos um diagnóstico adicional do Eixo I. Os mais frequentes foram o transtorno de ansiedade generalizada (33%) e a fobia específica (11 %). Já o estudo de Schneier et al. 3\ com dados do estudo do ECA, evidenciou que fobia específica, agorafobia e transtorno obsessivo-compulsivo foram os que apresentaram maior comorbidade ao longo da vida com a FS, com prevalências de 59%, 44% e 11,1 %, respectivamente. No mesmo estudo, os autores observaram comorbidade de 4,7% com o transtorno de pânico. Goisman et al. 40, em estudo prospectivo e longitudinal, realizado com 711 pacientes com transtornos ansiosos, observaram que, entre os 199 pacientes com diagnóstico de FS, menos que 25% deles não tinham outro diagnóstico comórbido. Os diagnósticos de comorbidade mais frequentes ao longo da vida foram o transtorno do pânico com agorafobia (42%), o transtorno de ansiedade generalizada (35%) e as fobias específicas (21 %). Segui et al. 41observaram que, em sua amostra de 83 p acientes com diagnóstico de transtorno do pânico com e sem agorafobia, 24,1 % tinham um diagnóstico comórbido de FS e que, em 95% dos casos, o início da FS precedeu o início do transtorno do pânico. Um estudo feito por Ranta et alY com adolescentes entre 12 e 17 anos encontrou 41 % dos sujeitos com FS em comorbidade com transtornos ansiosos e 41 % com transtornos depressivos.
Transtornos alimentares Brewerton et al. 43 avaliaram 59 mulheres com diagnóstico de bulimia nervosa relacionada a comorbidades com o Eixo I e observaram que os transtornos de humor e ansiosos foram os mais frequentes, geralmente precedendo o transtorno alimentar. FS foi observada em 17% da amostra e foi o transtorno ansioso que apareceu com maior frequência. Godart et al. 44 observaram, em seu estudo com 271 mulheres com transtornos alimentares, que 36% das pacientes com bulimia nervosa encontravam -se em comorbidade com FS e 30% das pacientes fóbicas sociais em comorbidade com anorexia nervosa.
Transtorno dismórfico corporal O transtorno dismórfico corporal está associado a outros transtornos mentais, inclusive à FS. Gunstad e Philips45, em um estudo com 293 pacientes com o diagnóstico de transtorno dismórfico corporal, observaram que 38% dos sujeitos apresentavam comorbidade com FS. No estudo de Coles e colaboradores46, 39% dos sujeitos com
diagnóstico de transtorno dismórfico corporal tinham FS comórbida. Phillips e Stout47 observaram 37,9% de comorbidade entre FS e transtorno dismórfico corporal e que o início do quadro da FS, geralmente, precedia o início do quadro de transtorno dismórfico corporal.
Tratamento farmacológico Pode-se afirmar nos dias de hoje que a FS é uma condição responsiva à medicação. Foi na década de 1970 que os betabloqueadores começaram a ser estudados e eram usados em situações de ansiedade de desempenho específicas, reduzindo sintomas como o tremor, a taquicardia e a sudorese. Desde então, uma série de estudos foi feita com os betabloqueadores, mas apenas os estudos abertos evidenciaram algum benefício com o uso desses fármacos. Apesar dos resultados desencorajadores, os betabloqueadores, sobretudo o propranolol, são usados na FS circunscrita com o objetivo de reduzirem os sintomas físicos dos pacientes com ansiedade de desempenho. Os sintomas como ansiedade antecipatória, esquiva fóbica, rubor e sintomas cognitivos não costumam melhorar com essas drogas48. Nas décadas de 1980 e 1990, estudos feitos com inibidores da monoaminoxidase (IMAO) evidenciaram a eficácia dos IMAO irreversíveis fenelzina e tranilcipromina na redução dos sintomas de FS49 . Efeitos colaterais importantes e restrições à dieta limitam o uso dessas substâncias. O risco de ocorrerem episódios de hipertensão arterial é considerável. Os IMAO reversíveis moclobemida e brofaromina também se mostraram eficazes. No entanto, mais tarde, a eficácia não pareceu ser sólida e, hoje, a moclobemida praticamente deixou de ser prescrita no tratamento da ansiedade social. A brofaromina foi retirada do mercado, em 1994, por razões desconhecidas. Nunca foi comercializada no Brasil. O uso de IMAO irreversíveis pode ser útil em pacientes que n ão respondem às drogas de primeira linha usadas no tratamento da FS, conforme será visto adiante. A droga usada deverá ser a tranilcipromina, uma vez que a fenelzina não se encontra disponível em nosso meio. Os inibidores seletivos de recaptação da serotonina (ISRS), juntamente com o inibidor seletivo de recaptação de serotonina e noradrenalina (ISRSN) venlafaxina, são considerados os fármacos de primeira linha no tratamento da FS, sobretudo a de subtipo generalizado. Evidências de sua eficácia são demonstradas em diversos estudos controlados feitos com fluvoxamina 50, sertralina51, paroxetina52, escitalopram53 e venlafaxina54. Em três estudos controlados feitos com a fluoxetina, somente um deles demonstrou sua eficácia55 . A nefazodona também não se mostrou eficaz. O mesmo se pode afirmar em relação aos tricíclicos. Embora bem tolerados, os ISRS e a venlafaxina causam efeitos colaterais, como disfunções sexuais e ganho de peso, que se tornam mais perturbadores com a melhora do quadro. Além de eficazes no tratamento da FS generalizada, os ISRS tratam comorbidades como ou-
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tros transtornos de ansiedade e depressão. Até o momento, não foram identificados estudos com outros ISRSN ( duloxetina e desvenlafaxina) no tratamento da FS. Benzodiazepínicos também são usados no tratamento da ansiedade social, apesar da escassez de estudos controlados. Em um deles, Davidson et al.56 observaram efeito superior do clonazepam em relação ao placebo. Essas drogas não devem ser consideradas de primeira linha por causarem dependência física e por serem ineficazes no tratamento de condições comórbidas como a depressão. Podem ser usadas como adjuvantes e também quando se faz necessário o rápido início de ação do tratamento. Estudos com anticonvulsivantes têm demonstrado sua eficácia na ansiedade social. Em um estudo controlado em que foi usada a gabapentina, esta evidenciou sua superioridade em relação ao placebo57. A pregabalina também foi superior ao placebo em outro estudo controlado 58 . Tanto a gabapentina como a pregabalina mostraram-se eficazes quando usadas em altas doses, o que torna o seu uso mais restrito em razão dos efeitos colaterais. No entanto, podem ser boas alternativas para o tratamento de pacientes que não respondem aos fármacos de primeira linha.
Abordagem cognitivo-comportamental Pacientes com FS temem a avaliação negativa dos outros. Eles têm a tendência de interpretar os comentários ou comportamentos dos outros como sendo críticos. Assim, acreditam que seus comportamentos são empobrecidos em relação aos comportamentos das outras pessoas. Os pensamentos distorcidos de que estão sendo avaliados negativamente levam-nos a sentir ansiedade, o que atrapalha a interação social. Possuem sentimentos de crítica e desaprovação e têm medo de serem rejeitados. É muito comum haver isolamento e solidão nos pacientes com FS, e a imagem negativa que eles têm de si mesmos faz com que evitem as situações sociais e de desempenho. Quando não podem evitar tais situações, sofrem muito ao enfrentá-las. A terapia cognitivo-comportamental (TCC) vem sendo utilizada com eficácia no tratamento da FS, modificando as crenças disfuncionais e mantendo respostas de comportamento mais adequadas59 -61 • Ao identificar os pensamentos distorcidos e as crenças disfuncionais, os pacientes identificam também a relação destes com seus sintomas e emoções, conseguindo ter maior autocontro le e autoconfiança perante a vida. Um dos componentes do tratamento é a psicoeducação e depende da interação terapeuta-paciente. Esta interação é importante para que o paciente, que sente vergonha de ser um fóbico social, sinta-se tranquilo e confiante para falar de suas dificuldades com o terapeuta62 • A duração do tratamento de pende muito da intensidade dos sintomas e dos transtornos comórbidos. Na TCC da FS, diversas técnicas são utilizadas, como exposição, reestruturação cognitiva, técnicas de relaxa-
mento, treino de habilidades sociais e terapia comportamental em grupo.
Técnicas e procedimentos utilizados Exposição Há, na literatura, estudos que evidenciam a eficácia da exposição no tratamento da FS63,64 • A exposição aos estímulos temidos pode ser feita ao vivo ou na imaginação. A exposição na imaginação, na qual o terapeuta narra as cenas para o paciente imaginar, pode ser feita pre viamente, como preparo para a exposição ao vivo. Pode ser útil para que o paciente aprenda a se expor antes do confronto com as situações reais. É importante verificar a viabilidade da situação que será enfrentada na exposição ao vivo, pois algumas dessas situações podem ter um tempo muito curto de exposição, impossibilitando a habituação. Por exemplo, assinar uma folha de cheque. O paciente junto com o terapeuta constrói uma hierarquia - lista de situações temidas. A exposição se inicia da si tuação que gera menos desconforto e caminha em direção a que gera mais desconforto. Nos estágios inicias do tratamento com exposição ao vivo, as situações podem ser enfrentadas na companhia do terapeuta (exposição assistida), até que ocorra a redução da ansiedade no item da hierarquia em que está sendo feita a exposição. Quando este item não eliciar mais nenhuma ansiedade, passase ao próximo item da hierarquia que causa o desconforto. A exposição deve ser feita de forma repetida e prolongada, para que ocorra a habituação. No entanto, a imprevisibilidade das situações sociais e de desempenho, dificulta a construção de hierarquias. Outra dificuldade que pode ocorrer é a esquiva em situações sociais, o que pode ser determinado pela falta de habilidades sociais para a exposição adequada. Outra limitação é o fato de que algumas situações sociais, ou de desempenho, são de difícil repetição. É importante o uso da criatividade na construção das hierarquias nesses casos. O processo alcança seu objetivo quando o paciente enfrentar todos os itens da hierarquia com significativa redução da ansiedade e do desconforto. É importante que o paciente esteja engajado e atento à ansiedade eliciada na situação de enfrentamento, com o intuito de vivenciá-la plenamente, pois isso leva à habituação. Estudos recentes têm sido conduzidos com terapia baseada em exposição à realidade virtual65,66. Em alguns estudos, há mínima intervenção do terapeuta. A interação com situações de exposição virtual, como falar em público e conversar com vizinhos, desencadeiam ansiedade. Comparada a eficácia da exposição virtual à TCC em grupo, os resultados são similares. Titov et al. 67 obtiveram bons resultados em um estudo baseado em um programa da internet com fóbicos sociais, em comorbidade com depressão e transtorno de ansiedade generalizada. Houve melhora da ansiedade social e também dos
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sintomas comórbidos de depressão e de ansiedade generalizada, apesar de o tratamento ter sido focado na FS. Reestruturação cognitiva A reestruturação cognitiva é uma técnica eficaz no tratamento da FS, sobretudo se for aplicada conjuntamente com técnicas de exposição61 ·64. Os pacientes com FS são orientados a identificar os pensamentos disfuncionais, questionando -os e substituindo -os por pensamentos mais adaptados à realidade. Os fóbicos sociais têm tendência a gerar vieses na interpretação e na memória. Ainda que o evento tenha caráter neutro, é interpretado de modo catastrófico e, assim, memorizado68 • Algumas cognições que impedem os fá bicos sociais de se engajar em comportamentos sociais são: preocupação excessiva com a percepção da sua ansiedade pelos outros, temor da avaliação negativa, sensibilidade excessiva à desaprovação e à crítica, preocupação com sua atividade autonômica, sensação de inferioridade perante os outros, tendência a desqualificar seu próprio comportamento, atenção seletiva para aspectos negativos da situação, cognições negativas que geram ansiedade de antecipação e conceitos rígidos sobre a conduta social apropriada. Hirsh et al. 69 observaram que cognições negativas interferem umas nas outras, ajudando a manter o quadro de ansiedade, e que o seu impacto é maior do que quando atuam isoladamente. O paciente percebe que, na grande maioria das vezes, supervaloriza determinada situação, negativamente, e desvaloriza sua capacidade de enfrentamento da mesma situação. De modo a evitar constrangimento, os indivíduos com FS voltam -se para estratégias de coping desadaptadas, incluindo esquiva e comportamentos de segurança, seguidos de ruminação após os eventos, o que leva a sentimentos futuros de apreensão70. Quando o paciente consegue modificar suas crenças, ocorre a redução dos sintomas da FS. É importante ressaltar que a aplicação da técnica de reestruturação dos pensamentos é feita an tes e depois da situação que gera o desconforto. Treinamento em habilidades sociais Há estudos que investigaram os efeitos desta técnica e evidenciaram sua eficácia71·72 . Uma das principais características dos fóbicos sociais é a de apresentarem déficits de habilidades sociais, o que dificulta a exposição. O treinamento de habilidades sociais torna a exposição factível e também contribui para a modificação das crenças disfuncionais em razão da redução de ansiedade no contato interpessoal. Caballo 73 definiu habilidade social como o conjunto de comportamentos emitidos por uma pessoa em um contexto interpessoal que expressa sentimentos, atitudes, desejos, opiniões ou direitos de modo adequado à situação, respeitando -se os demais. Com a descrição dos comportamentos do paciente nas situações de inabilidade social, avaliam-se outros comportamen-
tos que ele possa manifestar nas situações e também considerar as limitações impostas pela realidade. O treinamento ocorre, primeiramente, com o levantamento das possíveis consequências a curto e longo prazo das diferentes possibilidades de ação, para então decidir por um determinado comportamento. Entre as estratégias para o treino de habilidades sociais, está o ensaio comportamental, que consiste na descrição da situação-problema e uma representação do que o paciente normalmente faz. Após a escolha da resposta adequada, esta é dramatizada, e pode-se fazer a inversão de papéis entre o terapeuta e opaciente, terminando com o ensaio realizado pelo paciente da resposta escolhida. Técnicas de relaxamento Com as técnicas de relaxamento, o fóbico social aprende a controlar sintomas de ansiedade. O relaxamento das fibras musculares leva à diminuição do estado ansioso. Uma das técnicas de relaxamento mais utilizadas é o relaxamento progressivo de Jacobson, em que a pessoa aprende a avaliar e realizar, sistematicamente, suas tensões nos diversos grupos musculares, para depois relaxálos. Com o treino, o paciente depois de algum tempo deve chegar a uma capacidade de comando imediato do relaxamento, não necessitando passar por uma contração prévia74. Há estudos que mostram que as técnicas de relaxamento são apropriadas a pacientes com FS, por estes apresentarem vários sintomas físicos de ansiedade durante uma situação social ou de desempenho. É importante dizer que as técnicas de relaxamento não são eficazes isoladamente no tratamento da FS75 . TCC em grupo A terapia cognitivo-comportamental em grupo propicia a colocação das dificuldades de cada um e a observação direta das distorções cognitivas. Permite também que haja melhor aprendizado por meio da observação dos modelos a serem seguidos. O ensaio comportamental é feito entre os pacientes com intervenções do terapeuta e exercícios de reestruturação cognitiva. Os pacientes são incentivados a corrigir as distorções cognitivas que aparecem durante a exposição. Há, portanto, a integração de exposição e reestruturação cognitiva juntamente com tarefas de casa. Nas tarefas de casa, o paciente repete na vida real as situações de contato interpessoal que ensaiou nas sessões. Em grupos com crianças e adolescentes, há estudos que demonstram sua eficácia76·77 • Comparação entre o tratamento farmacológico e a abordagem cognitivo-comportamental e a combinação de ambos Uma metanálise que incluiu 24 estudos controlados de pacientes com FS e que compararam a TCC à farmacoterapia mostrou que os dois tipos de tratamento foram eficazes e que não diferiram entre si, sendo que ambos foram superiores aos controles (Gould et al. apud Jorstad-Stein
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e Heimberg60). Em outra metanálise, benzodiazepínicos e ISRS foram superiores à TCC e aos controles, e não houve diferença entre eles78 . Não foi possível avaliar a manutenção dos ganhos advindos do tratamento farmacológico por falta de dados de follow-up. Esse é um problema comum em muitos estudos que avaliam a eficácia da farmacoterapia. Heimberg et al.79 compararam a TCC em grupo, fe nelzina, psicoterapia de apoio-educacional e placebo. O estudo era composto de 3 fases: 12 semanas de tratamento agudo, 6 meses de tratamento de manutenção para os que haviam respondido à TCC e ao IMAO e 6 meses de follow-up. Um número maior de pacientes respondeu à TCC ou à fenelzina em relação aos controles, e após 12 semanas a fenelzina superou a TCC. Entretanto, durante o follow-up, 50% dos pacientes que haviam respondido à fenelzina recaíram, comparados a apenas 17% dos que haviam respondido à TCC. Os resultados sugerem que a TCC seja mais eficaz que a fenelzina na prevenção de recaída. Poucos estudos examinaram os efeitos do tratamento farmacológico e da TCC combinados. Um deles avaliou a combinação de fenelzina e TCC comparada aos tratamentos isolados e placebo, observando que o tratamento combinado foi superior aos tratamentos isolados e também ao placebo61 • Em um estudo com a fluoxetina, os tratamentos ativos foram superiores ao placebo e não diferiram entre si55 • Outros dois estudos que avaliaram sertralina, exposição e tratamento combinado observaram que todos os tratamentos ativos foram superiores ao placebo após 12 semanas. Após 24 semanas, apenas a sertralina isolada ou em combinação com a exposição foi superior ao placebo80 . Com 1 ano de follow-up, entretanto, apenas os pacientes que fizeram exposição mantive ram os ganhos, enquanto os pacientes que receberam apenas sertralina ou sertralina combinada à exposição apresentavam deterioração do seu estado81 . Diante dos resultados dos estudos comparativos e combinados, fica evidente a necessidade de manutenção da medicação a longo prazo, uma vez que os índices de recaída são elevados. Muitos estudos não apresentam dados de follow-up, o que dificulta a avaliação dos resultados a longo prazo. Em alguns dos estudos com follow-up, fica claro que os ganhos do tratamento farmacológico não se mantêm após sua retirada em grande número de pacientes. Constata-se também que a TCC é uma ferramen ta bastante útil no tratamento a longo prazo da FS.
Abordagem psicodinâmica Embora Freud tenha abordado o tema ansiedade (angústia) em várias de suas obras, a questão da FS não aparece, claramente, em nenhum texto. Para Melanie Klein 82, na raiz de uma fobia, está o medo do indivíduo de seus próprios instintos destrutivos e de seus pais introjetados,
isto é, o medo de ser devorado pelo seu próprio superego, projetado agora em um objeto externo. Para Spitz83 , embora o medo de estranhos seja um fato observável em . . . . . , cnanças pequenas, nao constltmna por s1 so uma ameaça e que na raiz dele estariam numerosas experiências desprazerosas que a criança teria com a mãe. O medo, então, estaria mais relacionado a uma ameaça interna - de um objeto interno. Bowlby8\ em um artigo sobre a teo ria do apego, ressalta a contribuição que o ambiente exerce sobre o desenvolvimento psicológico do indivíduo. Essa teoria, apesar de incorporar muito do pensamento psicanalítico, difere da psicanálise tradicional por abordar aspectos etológicos e abrir mão de conceitos como energia psíquica, além de se aproximar da psicologia cognitiva. Os padrões patológicos de comportamento dos pais eliciam sentimentos de ódio, como também inibem a sua expressão. Problemas nessas relações podem influenciar os alicerces da segurança pessoal com cansequente aumento da ansiedade. Poucos estudos abordaram a terapia psicodinâmica na FS. Em um deles, Knijnik et al. 85 compararam um grupo submetido a terapia psicodinâmica e outro submetido a terapia de apoio/placebo. A abordagem psicodinâmica baseava-se no modelo de Bion, em que a hipótese da recorrência e os conflitos inconscientes estavam co nectados diretamente com os sintomas. O grupo de abordagem psicodinâmica foi superior ao grupo placebo. Os autores relatam dificuldade em comparar a terapia cognitivo-comportamental com a terapia psicodinâmica para o tratamento da FS, pois quando se trata de tratamento a curto prazo a TCC evidencia melhores resultados. Para os autores, os resultados dos tratamentos psicanalíticos de longa duração são mais difíceis de serem mensurados. Recentemente, um manual de tratamento a curto prazo foi desenvolvido para FS, cuja orientação suportiva-expressiva inclui elementos como o foco no tema central do conflito que influencia os sintomas primários do paciente, o aumento de insights e o entendimento do papel das demandas irrealistas. Interessante observar que há um componente similar à exposição, pois os pacientes são encorajados a confrontar as situações sociais de medo. Esse tratamento tem sido usado para comparar as abordagens psicodinâmica e cognitivo-comportamental na FS86. A presença, na literatura, das abordagens psicodinâmicas tem sido marcante, no entanto o fator tempo de tratamento ainda tem sido um dos grandes obstáculos para a avaliação de seus resultados. Essa é uma questão nuclear e bastante desafiadora para os princípios das abordagens psicodinâmicas.
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Nota sobre o tratamento cirúrgico para fóbicos sociais que manifestam rubor facial O rubor facial é um sinal - e sintoma - que se manifesta com frequência na FS. Sendo um fenômeno notável,
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causa grande constrangimento naqueles que o manifestam, sobretudo quando levam a um comportamento de alarde por parte das outras pessoas. Observações sobre a coloração da pele da face de quem ruboriza, quando feitas em público, podem ter efeito devastador. Algumas pessoas não respondem ao tratamento farmacológico e/ ou cognitivo-comportamental. Para elas, a simpatectomia pode ser uma alternativa. Simpatectomia não é um procedimento novo, mas ganhou atenção desde que passou a ser feita por meio de endoscopia torácica, com algum respaldo científico 87-89• Apesar de algumas complicações ocorrerem, como sudorese compensatória em tronco e membros inferiores, pode ser um procedimento eficaz no tratamento do rubor facial e também da hiperidrose palmar. O fator limitante é a falta de estudos controlados sobre a o procedimento90 .
Neurobiologia O entendimento da neurobiologia da FS pode ter implicações importantes em seu tratamento e sua prevenção. Numerosos estudos nesse campo de pesquisa têm surgido nos últimos anos. Há estudos que sustentam haver um papel central da amígdala na aquisição e na expressão de memórias do medo e também na atenção e na vigilância em situações aversivas ou ambivalentes, o que permite a rápida detecção de estímulos ambientais ameaçadores91 •
Estudos com neuroimagem Neste tipo de estudo, a regulação dinâmica do fluxo sanguíneo cerebral regional (FSCR) pode ser acessada por meio de PET, SPECT ou de imagens de ressonância magnética funcional (RMF), sendo que todos eles podem ser usados para medir mudanças no sinal do nível de oxi, genaçao sangumea. Há estudos feitos com voluntários normais que mostram hiper-responsividade da amígdala a fotos de expressões de medo, raiva e felicidade, contrastando com expressões neutras. Stein et al. 92 mediram as mudanças no sinal do nível de oxigenação sanguínea, enquanto pacientes com FS generalizada eram expostos a faces com expressão ríspida ou receptiva. Faces ríspidas aumentaram a atividade neural em pacientes com FS quando comparados aos controles. Outros estudos relataram que a magnitude da resposta amigdalar estava, positivamente, correlacionada com a gravidade dos sintomas de FS93•94 . No entanto, há estudos que relataram a ativação da amígdala mesmo com a exposição a faces neutras. Isso mostra que não é possível correlacionar a FS à hiper-responsividade da amígdala a estímulos específicos. Em estudo recente, com amostra pequena, Ide et al. 95 observaram redução da amígdala e do hipocampo de fá bicos sociais comparados a controles. Menor volume do lado direito do hipocampo estava, intensamente, relacio-
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nado à gravidade do transtorno. Até o momento, esse é o primeiro estudo que encontra redução volumétrica de estruturas cerebrais de fóbicos sociais. Tillfors et al. 96 compararam o FSCR em pacientes com FS e controles em relação a falar em público. No grupo dos fóbicos sociais, houve aumento da frequência cardíaca e aumento da ansiedade subjetiva, evidenciando uma resposta profunda de estresse nos pacientes associada a um aumento exagerado da resposta do FSCR na amígdala e no hipocampo.
Outros experimentos Roelofs et al.9 7 investigaram a resposta de elevação do cortisol salivar por meio de um teste de indução de estresse social. Comparados aos controles normais e a pacientes com transtorno de estresse pós-traumático, os fá bicos sociais tiveram respostas mais elevadas do cortisol. A resposta mais pronunciada estava correlacionada a um aumento no comportamento de esquiva social. Observou-se também que a resposta mais elevada do cortisol foi preditora do aumento induzido por estresse das tenciências de esquiva social. Straube et al.98 observaram que a ínsula estava envolvida no processamento de estímulos socialmente ameaçadores. Hiperatividade no córtex insular parece ser um achado comum nos transtornos de ansiedade, inclusive na FS99 • Alterações nos sistemas de neurotransmissão têm sido observadas na FS, sobretudo nos sistemas serotoninérgico e dopaminérgico. A eficácia dos ISRS no tratamento da ansiedade social é bastante sugestiva de que a serotonina tenha um papel importante na FS. A amígdala é densamente inervada por fibras serotoninérgicas, e sua hiper-responsividade é atenuada pelo tratamento com os ISRS. Estudos que utilizaram os IMAO - que são drogas dopaminérgicas - no tratamento da FS evidenciaram a sua indiscutível eficácia. Ainda a respeito da dopamina, Schneier et al. 100 observaram que a ligação da dopamina aos receptores D 2 estriatais foi, significativamente, menor em sujeitos com FS em relação aos controles, um indício sugestivo de que haja uma disfunção dopaminérgica na FS. O progresso no âmbito da neurobiologia tem sido grande. Nos últimos anos, as publicações nessa área têm se multiplicado, embora ainda existam muitas questões a serem respondidas.
Personalidade Com a publicação do DSM III -R, em 1987, houve uma mudança na classificação da FS. O DSM III-R incluiu o subtipo generalizado de FS e permitiu que o diagnóstico de transtorno de personalidade esquiva fosse feito na vigência do diagnóstico de FS. Com isso houve um au-
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menta da prevalência da FS, uma vez que os critérios diagnósticos se tornaram mais abrangentes, e houve também a sobreposição de critérios diagnósticos entre a FS generalizada e o transtorno de personalidade esquiva. Usando os critérios diagnósticos do DSM III-R, Schneier et al. 101 observaram uma sobreposição em três critérios diagnósticos entre FS generalizada e transtorno de personalidade esquiva: ( 1) medo de situações sociais nas quais a pessoa possa ficar constrangida, (2) esquiva de situações sociais, (3) prejuízo no desempenho social ou ocupacional, em razão de medo ou esquiva. Os autores sugerem que FS generalizada e o transtorno de personalidade esquiva descrevam a mesma condição psicopatológica. A questão de a FS e o transtorno de personalidade esquiva serem a mesma entidade nosológica tem sido uma questão controvertida e, mais recentemente, surgiram estudos que consideram que o transtorno de personalidade esquiva seja uma forma mais grave de FS generalizada em termos de ansiedade, esquiva, depressão e medo da crítica 102•103 • A questão que poderia ser colocada em relação a isso é a que se a FS generalizada e o transtorno de personalidade esquiva são o mesmo transtorno, e se este último é uma forma mais grave do primeiro, não caberia a extinção do transtorno do Eixo II, com a manutenção da FS no Eixo I? Tillfors e Ekselius 10\ após extensa revisão na literatura médica e psicológica, afirmaram que, embora haja sobreposição entre FS e transtorno de personalidade esquiva, esta também ocorre em relação ao transtorno de pânico com agorafobia e transtorno de personalidade esquiva e que mais estudos são necessários para se esclarecer a questão. Esse assunto polêmico é abordado sob pontos de vista distintos. Divergências sobre a FS e o transtorno de personalidade esquiva ocorrem desde a década de 1980, quando aquela se constituía em um quadro restrito a poucas situações, geralmente de desempenho, e o transtorno de personalidade esquiva consistia, talvez, no que hoje pode-se chamar de FS generalizada. Alguns pesquisadores se incumbiram de avaliar se outros transtornos de personalidade (TP), além do transtorno de personalidade esquiva, ocorrem entre os fóbi cos sociais. Estudos realizados nas décadas de 1980 e 1990 encontraram frequência elevada de transtorno de personalidade dependente e obsessivo-compulsiva em suas amostras de fóbico -sociais, além do transtorno de personalidade esquiva, que foi o mais frequente 105•106 • Em um estudo epidemiológico sobre FS nos EUA, realizado com 43.093 sujeitos, Grant et al. 1 observaram que a prevalência de TP foi maior entre os fóbicos sociais em relação aos não fóbicos sociais. Os autores encontraram outros TP que não haviam aparecido nos estudos anteriores com fá bicos sociais. A prevalência de qualquer TP foi de 61%, um resultado comparável a estudos que avaliaram TP em amostras clínicas de fóbicos sociais. O transtorno de personalidade esquiva ocorreu em 30,3%. Transtornos de personalidade obsessivo -compulsiva, paranoide e esqui-
zoide ocorreram em 33,1 %, 28,7% e 21,2%, respectivamente. Outros TP apareceram com percentuais bem menores, inclusive o transtorno de personalidade dependente (5,6%), que apareceu em frequências maiores nos estudos com amostras clínicas. Em um estudo com uma amostra clínica de fóbicos sociais, o transtorno de personalidade paranoide ocorreu com a frequência de 27% (muito próxima a deste estudo epidemiológico) 107 . A co morbidade entre transtornos de personalidade é comum e pode ocorrer por sobreposição de critérios diagnósti cos. Transtorno de personalidade paranoide relativamente elevado também pode ser explicado pelas ideias de referência e excessiva sensibilidade à crítica que os fóbicos sociais apresentam. Na Tabela III, encontram-se os critérios diagnósticos do transtorno de personalidade esquiva, de acordo com o DSM-IV-TR. A personalidade também pode ser avaliada conforme o ponto de vista dimensional. Um estudo que avaliou traços de personalidade em uma amostra de fóbicos sociais por meio do Inventário de Temperamento e Caráter de Cloninger (TCI), um instrumento que avalia a personalidade do ponto de vista dimensional, observou que os pacientes apresentaram alterações em 5 das 7 dimensões do inventário: persistência, autodirecionamento, cooperativismo e autotranscendência diminuídos e esquiva de danos aumentada 108 • Os resultados sugerem que a FS possa, ao menos em parte, ser compreendida como transtorno do Eixo II. Além da alta comorbidade entre a FS e os transtornos de personalidade, foi possível observar a elevada sobreposição entre os sintomas fóbico-sociais do Eixo I e os traços observa-
Tabela 111 esqu1va
Critérios diagnósticos para o transtorno de personalidade
Um padrão global de inibição social, sentimentos de inadequação e hipersensibilidade à avaliação negativa, que se manifesta no início da idade adulta e está presente em uma variedade de contextos, indicado por pelo menos quatro dos seguintes critérios: 1) Evita atividades ocupacionais que envolvam contato interpessoal significativo por medo de críticas, desaprovação ou rejeição.
2) Reluta em envolver-se com pessoas, a menos que tenha certeza de estima da pessoa. 3) Mostra-se reservado em relacionamentos íntimos, em razão do medo de passar vergonha ou ser ridicularizado. 4) Preocupação com críticas ou rejeição em situações sociais. 5) Inibição em novas situações interpessoais, em virtude de sentimentos de inadequação. 6) Vê a si mesmo como socialmente inepto, sem atrativos pessoais, ou inferior. 7) Extraordinariamente reticente em assumir riscos pessoais ou envolver-se em quaisquer novas atividades, porque estas poderiam provocar vergonha.
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dos nas dimensões do TCI. Importante notar que duas das dimensões que se encontravam alteradas em relação à média dizem respeito ao caráter 109 • A FS, de acordo com esse ponto de vista, poderia ser classificada como transtorno do Eixo li. Widiger e Costa Jr. 110 argumentam que o modelo proposto pelo DSM é, essencialmente, deficiente e recomendam que o problema seja abordado com o objetivo de se identificar as dimensões de personalidade em que estão subjacentes os transtornos de personalidade, ao invés de agrupá-los, categorialmente, em três clusters. Para tanto fo ram revistos estudos que utilizaram as dimensões do modelo de cinco fatores (five factor model): neuroticismo; extroversão; receptividade para experimentar; aprazibilidade; e escrupulosidade. Por meio deste modelo, a sobreposicão e a comorbidade, por exemplo, entre os transtornos de personalidade esquizoide e esquiva, podem ser entendidas por ambos compartilharem características de introversão. O transtorno de personalidade esquiva, no entanto, apresentaria um nível maior de neuroticismo, o que não ocorre com o transtorno esquizoide.
Escalas de avaliação Há uma variedade de instrumentos psicométricos que mensuram a ansiedade social. Alguns deles são mencionados nesta seção.
Escala de Entrevista para Transtornos de Ansiedade do DSM-111-R (ADIS-R)- Anxiety Disorders lnterview Schedule for DSM-II/-R114 O ADIS-R é uma entrevista diagnóstica que acessa transtornos de ansiedade, inclusive a FS, de humor e transtornos relacionados a substâncias. Possui um módulo que avalia psicoses. A confiabilidade estimada para o diagnóstico da FS é adequada.
Tabela IV
Escala de Ansiedade Social de Liebowitz (LSAS)
Sente medo ou ansiedade O= Nenhum(a) 1 = Pouco(a) 2 = Moderado(a) 3 = Profundo(a)
Evita O= Nunca 1 = Ocasionalmente 2 = Frequentemente 3 = Geralmente
Situações
Medo
o o o
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4) Beber com outras pessoas em lugares públicos (O) 5) Falar com autoridades (S)
1) Telefonar em público (O) 2) Participar de grupos pequenos (O) 3) Comer em lugares públicos (O)
6) Representar ou discursa r (O) 7) Ir a uma festa (S) 8) Trabalhar com alguém o observando (O)
Esquiva 1 2 3
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o
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Questionário de Medos e Fobias - Fear and Phobia Questionnaire111
9) Escrever com alguém o observando (O) 1O) Chamar alguém que você não conhece bem (S)
o
1 2 3
o
1 2 3
É um instrumento largamente utilizado para avaliar transtornos de ansiedade. Dividido em 3 escalas (agorafobia, fobia social e fobia de sangue e ferimentos), o questionário tem o mérito de diferenciar fóbicos sociais de agorafóbicos.
11) Falar com pessoas que você não conhece bem (S)
o
1 2 3
o
1 2 3
12) Encontrar-se com desconhecidos (S)
o o
1 2 3
1 2 3
1 2 3
o o
14) Entrar em um ambiente quando outras pessoas já estão sentadas (O)
o
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o
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15) Ser o centro das atenções (S)
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1 2 3
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o o o
18. Expressar desacordo em relação a pessoas que você não conhece bem (S)
o
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o
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19. Encarar pessoas que você não conhece bem (S)
o
1 2 3
o
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20. Fazer um discurso (O)
o o o o o
1 2 3
o o o o o
1 2 3
Escala de Esquiva e Desconforto Social (SAD) e Escala de Medo da Avaliação Negativa (FN E) Social Avoidance and Distress Scale and Fear o f Negative Evaluationl 12 São escalas de autoavaliação que, embora não sejam apropriadas para se fazer o diagnóstico da FS, podem ser usadas na avaliação da melhora dos pacientes em ensaios clínicos.
Escala de Ansiedade Social de Liebowitz (LSAS) Liebowitz Social Anxiety Scale113 Esta é uma escala que deve ser administrada pelo clínico e avalia a ansiedade social de desempenho e de interação social (Tabela IV). Foi usada com sucesso em vários estudos farmacológicos e em estudos com tratamento cognitivo-comportamental.
13) Usar banheiro público (O)
16) Fala r em reunião (O) 17) Submeter-se a algum tipo de exame (O)
21. Tentar namorar alguém (O) 22. Devolver mercadorias a uma loja (S) 23. Dar uma festa (S) 24. Resistir à pressão de um vendedor (S) Pontuação total : Subescala de ansiedade de desempenho (O): Subescala de ansiedade social (S): Fonte: Liebowitz, 1987113•
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Questões 1. Qual das características aba ixo não faz parte do quadro a) b) c) d) e)
da FS? Ansiedade de desempenho. Ruborizar na presença das pessoas. Dificuldade para falar com estranhos. Não conseguir fazer uma reclamação. Não gostar de ter contato com as pessoas.
2. Quais são os fármacos de primeira linha usados no tratamena) b) c) d) e)
to da FS? Betabloqueadores. IMAO reversíveis. IMAO irreversíveis. ISRS e venlafaxina. Gabapentina e pregabalina.
Em relação à TCC, assinale a alternativa correta: A exposição é sempre o tratamento de escolha. Técnicas de relaxamento raramente são utilizadas. Benzodiazepínicos associados à exposição levam a melhores resultados que a exposição isolada. d) Em pacientes com FS generalizada, o treinamento em habilidades sociais deve ser realizado em conjunto com a exposição. e) A reestruturação cognitiva tem papel secundário.
3. a) b) c)
4. Quanto aos transtornos comórbidos, pode-se afirmar que: a) São raros. b) O abuso ou a dependência de álcool ocorrem com maior frequência. c) A depressão e outros transtornos de ansiedade são os menos comuns. d) A mania ou a hipomania podem melhorar o quadro da FS. e) A ocorrência de outros transtornos comórbidos pode aumentar o risco de suicíd io. 5. Entre os temores dos fóbicos sociais abaixo relacionados, assinale o que não está presente a) Ficar só. b) Ser observado e avaliado. c) Sentir-se humilhado ou envergonhado. d) Ter um ataque de pânico. e) Cometer erros.
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58 FOBIA SOCIAL
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Fobias Específicas
Márcio Bernik Lu iz Vicente Figue ira de Me ll o Fábio Correg iari
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 788 Transtornos fóbicos específicos ou fobias específicas, 789
Ao final deste capítulo, você deverá estar apto a:
Subtipos de fobia específica, 789 Epidemiologia, 789 Etiologia, 790
1. Definir fobias específicas.
2. Classificar as fobias específicas em seus subtipos. 3. Entender os principais fatores etiológicos.
Condicionamento clássico, 790 Teoria da propensão, 790
4. Diferenciar de outros transtornos psiquiátricos e diagnosticar comorbidades.
Teoria de múltiplas vias de aquisição, 790 Diferenças culturais e evolucionárias, 790 Estudos de neuroimagem, 790
5. Compreender o processo de tratamento pela terapia comportamental.
Manifestações clínicas . 791 Diagnóstico diferencial, 791 Comorbidades, 791 Tratamento, 791 Tratamento da fobia de sangue-injeção-ferimentos, 792 Tratamento farmacológico, 792 Considerações finais, 792 Minicaso clínico, 792 Questões, 793 Referências bibliográficas, 794
Introdução Quando se está em alguma floresta, trilha ou campo, percebe-se que algumas imagens visualizadas, no solo ou na vegetação, às vezes confundem quem as vê. Interpretam-se os galhos ou as plantas rasteiras como ameaças que mimetizam répteis, insetos, aracnídeos ou até outros animais, prestes a atacar ou ameaçar a integridade física da vítima. Nas cidades, as pessoas sentem-se ameaçadas ou em estado de alerta, por exemplo em locais muito fechados, pontes, túneis, elevadores e em situações específicas que, racionalmente, são difíceis de serem entendidas. No entanto, quando atravessam as ruas, muitas vezes apressadas e fora da faixa de segurança ou de forma impruden-
te, com risco real, não se preocupam com o perigo ou sequer refletem sobre ele. O mesmo acontece quando conduzem veículos de mais de uma tonelada a 140 km/h com sensação de controle absoluto. Por que esse comportamento ocorre com as pessoas? Estudos realizados sobre o comportamento evolucionário dos animais, em etologia, observam, ao longo dos últimos anos, que a influência da seleção natural sobre as espécies, ao longo de alguns milhões de anos, dotou o homem de capacidade adaptativa e defensiva, entendida como "intuitiva", para alguns. Antes de ter consciência do fato que está ocorrendo, as pessoas têm reflexos rápidos, defensivos ou atitudes proativas. Isso acontece apenas para uma categoria específica de estímulos, os chamados estímulos prepotentes, associados a estímulos de relevância para a sobrevivência filogeneticamente antigos. A extinção sucessiva de milhares de espécies, que ocorreu e ocorre no presente, alerta para a importância dos comportamentos adaptativos ou não adaptativos selecionados por realidades cotidianas que, em algum momento, foram ou são vitais para a sobrevivência e a descendência humana. Os estímulos citados antes, como automóveis, estradas, sacos plásticos e armas de fogo, são
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muito recentes do ponto de vista filogenético para ter deixado marcas. Nessa linha de entendimento, fobias como a so cial e as específicas, conceituadas como medos aparen temente irracionais ou exagerados, podem ser apenas a resposta "normal" de indivíduos muito preparados para respostas de medo a esses estímulos. No contexto vivencial de hoje, há relato de manifestações clínicas autonômicas intensas e comportamentos de fuga "involuntários" que se repetem em determinadas situações específicas. Esse quadro clínico constitui os denominados transtornos fóbico-ansiosos. Nesse grupo, estão incluídas a agorafobia e a fobia social, discutidas em outros capítulos, e as fobias simples ou específicas, discutidas a seguir.
Transtornos fóbicos específicos ou fobias específicas O termo transtornos fóbicos específicos foi incluído no sistema DSM no DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) de 1994 1• Nos DSMs anteriores, era denominado fobias simples. Os critérios para diagnóstico são: a) Medo acentuado e persistente, excessivo ou irracional, revelado pela presença ou antecipação de um objeto ou situação fóbica (p. ex., voar, alturas, animais, ver sangue, tomar injeção). b) A exposição ao estímulo fóbico provoca, quase invariavelmente, uma resposta imediata de ansiedade, que pode assumir a forma de um ataque de pânico ligado à situação ou predisposto pela situação. Em crianças, a ansiedade pode se expressar por choro, ataques de raiva, imobilidade ou comportamento aderente. c) O indivíduo reconhece que o medo é excessivo ou irracional. Em crianças, essa característica pode estar ausente. d) A situação fóbica (ou situações) é evitada ou suportada com intensa ansiedade ou sofrimento. e) A esquiva, antecipação ansiosa ou sofrimento na situação temida (ou situações) interfere significativamente na rotina normal do indivíduo, em seu funcionamento ocupacional (ou acadêmico) ou em atividades ou relacionamentos sociais, ou existe acentuado sofrimento acerca de ter a fobia. f) Em indivíduos com menos de 18 anos, a duração mínima é de seis meses. g) A ansiedade, os ataques de pânico ou a esquiva fóbica associados com o objeto ou situação específica não são melhor explicados por outro transtorno mental.
Subtipos de fobia específica Existem vários subtipos de fobias, algumas mais co muns em nosso meio, que interferem na vida cotidiana,
enquanto outras se manifestam mais raramente, mas não são menos nocivas. Muitas vezes, percebe-se a existência delas somente quando se depara, circunstancialmente, com o objeto ou com a situação fóbica. • Animal: animais ou insetos (geralmente, inicia-se na infância). • Ambiente natural: tempestades, altura, água (geralmente, inicia-se na infância). • Sangue-injeção-ferimentos (ou outro procedimento médico invasivo): caracteriza-se por resposta vasovagal. • Situacional: andar em transportes coletivos, túneis, pontes, elevadores, aviões, dirigir ou permanecer em lo cais fechados. Esse tipo apresenta distribuição bimodal de idade de início, com um pico na infância e outro na idade aproximada de 20 anos. É aparentemente similar ao transtorno de pânico com agorafobia em distribuição característica entre os sexos, padrão de agregação familiar e idade de início. Além desses principais subgrupos, são descritos: • Fobia a "espaço": medo de cair se não estiver apoiado em paredes ou outro apoio físico. • Fobia de asfixia e de deglutição: de situações que poderiam levar à asfixia, como vômitos ou alimentos muito sólidos (fobia à deglutição). • Fobia de doença: todas as características de um quadro fóbico, medo de contrair uma doença, geralmente apavorante e grave. Diferencia-se da hipocondria, classificada nos transtornos somatoformes e no transtorno obsessivo compulsivo. • Fobia de certos alimentos específicos (jood aversion): também muito similar às fobias específicas, repulsa a determinados alimentos, nojo. • Fobias sexuais: medo extremo e irracional de atividade sexual, comumente sequelas de transtorno de pânico não tratado, pode levar à esquiva total de contato genital com o parceiro. Diferenciar de dispareunia.
Epidemiologia Em um estudo de revisão 2 , verificou -se que 33,5% das pessoas apresentam algum transtorno de ansiedade em algum momento da vida, sendo 20,6% o percentual para a prevalência de fobias específicas. Houve também, nesse estudo, a observação de diferenças percentuais entre os diferentes objetos fóbicos: 5% para fobia de animais e 0,2% para fobia de vômitos e infecções. Em outro estudo, Fredrikson et aP, utilizando escalas de avaliação visual de imagens em sujeitos de 18 a 70 anos de idade, apontaram uma prevalência total para as fobias específicas em 19,9%, 26,5% em mulheres e 12,45% em homens. A prevalência de sujeitos com múltiplas fobias foi de 5,45% no sexo feminino e 1,5% no sexo masculino. Para as fo bias de animais, 12,1% em mulheres e 3,3% em homens e, para as fobias de situações, 17,45% no sexo feminino e 8,5% no masculino.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Etiologia Condicionamento clássico A psicologia comportamental cognitiva acredita que as fobias, bem como a maior parte dos transtornos mentais, são comportamentos aprendidos. Em 1920, Watson e Raynor4 demonstraram que o pareamento de um estímulo neutro (um rato branco) com um estímulo aversivo (um barulho alto) levava a uma resposta condicionada de medo quando o participante era novamente exposto ao rato. Mowrer5 ampliou esse modelo, incluindo o reforço negativo (o reforço do comportamento em razão da interrupção de um estímulo aversivo) relacionado à esquiva fóbica. Ou seja, a esquiva fóbica seria mantida pela diminuição daresposta de medo ao se evitar o estímulo. Ainda que esse modelo ainda seja influente, vários problemas existem: • Os estudos epidemiológicos mostram a existência de categorias de medo, algumas delas bem mais comuns do que outras, o que contraria o princípio da equipotencialidade (diferentes estímulos neutros teriam o mesmo potencial de levar a medos fóbicos por mecanismos de condicionamento clássico que seriam decorrentes de eventos aleatórios). • Muitas pessoas passam por experiências aversivas e não desenvolvem fobias por condicionamento. • Uma etiologia traumática não é relatada pela maioria dos indivíduos fóbicos, muitas vezes o que é relatado como trauma é apenas uma manifestação pre coce da fobia. • Sucesso limitado de estudos que tentaram provocar medos persistentes (fobias) em humanos em condições experimentais (sim, existiram tais estudos). • Evidências apontando para o surgimento indireto e vicariante (por meio da observação do comportamento de outro organismo) dos medos.
Teoria da propensão A teoria da propensão, proposta por Seligman6, leva em conta, pela primeira vez, aspectos evolucionários. Como consequência da seleção natural, os seres humanos estariam biologicamente preparados para desenvolver medo de estímulos que poderiam ameaçar sua segurança. Seligman propôs quatro características da fobia por propensao: 1) Frequentemente, adquiridas após um evento precipitante. 2) São mantidas de maneira não cognitiva (ou seja, o medo persiste apesar da percepção de sua irracionalidade). 3) O objeto envolve uma ameaça, evolucionariamente, relevante para a humanidade. 4) Não é extinta com facilidade.
Testes empíricos desses princípios da teoria da propensão mostraram resultados contraditórios ( Gamble et al, 2010).
Teoria de múltiplas vias de aquisição Rachman7 sugeriu que podem existir diversos caminhos alternativos para a aquisição de medos fóbicos. Especificamente, ele propôs que as fobias podem ser adquiridas por condicionamento direto, condicionamento vicariante ou mesmo aquisição por aprendizado verbal. O condicionamento vicariante é difícil de ser testado adequadamente, mas diversas evidências apoiam essa forma de aquisição. Por exemplo, Bandura e Rosenthal 8 demonstraram que participantes que viram outras pessoas apresentarem reações de dor após um choque elétrico aplicado depois de uma campainha tinham respostas fisiológicas aumentadas após o som da campainha, mesmo sem nunca terem sido expostas ao choque.
Diferenças culturais e evolucionárias Chapman et al. 9 desenvolveram um estudo em norte-americanos de origem africana e de origem caucasiana, encontrando vários fatores diferenciadores e relacionados à origem das fobias de animais, ambientais e também na ansiedade social. Bracha et al. 10 verificaram que a fobia a sangue e fe rimentos era mais prevalente em mulheres jovens em época reprodutiva, 3,3% entre 27 e 49 anos, do que em mulheres com mais de 50 anos, 1,1 %. Os autores fizeram a suposição de que essa seria uma estratégia de sobrevivência intergrupal na era paleolítica. Dois estudos mostraram uma contribuição genética específica para a fobia de sangue e ferimentos 11 •12. As interferências culturais ocorrem e influenciam os "medos" na educação infantil, reforçando por meio do condicionamento clássico ou vicariante as imagens de objetos ou situações fóbicas.
Estudos de neuroimagem Há vários estudos de neuroimagem que tentam associar áreas envolvidas com a etiologia dos transtornos fóbicos específicos. Straube et al. 13 estudaram imagens de ressonância em estimulação visual para aracnídeos em fóbicos e não fóbicos (controles). Os fóbicos apresentaram ativação significativa na amígdala, ínsula, giro cingulado esquerdo e córtex pré-frontal dorsomedial esquerdo, sugerindo circuito específico de ameaça. Há alguns resultados contraditórios em estudos relacionados, embora quase todos apontem para a importância da amígdala e da ínsula nos sintomas fóbicos específicos. Michelgard et al. 1\ em estudo com ressonância magnética por emissão de pósitrons, investigaram os recep -
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tores da P-Neuroquina- l(NKl) na amígdala. Eles observaram alterações nos neurorreceptores de indivíduos com fobia específica na amígdala direita.
do, e a esquiva mantém a ansiedade, porque dificulta o aprendizado de que a situação real não é tão perigosa como se apresenta.
Manifestações clínicas
Diagnóstico diferencial
Os sintomas manifestados na situação fóbica são classificados em três tipos: fisiológicos (mensuráveis), comportamentais (observáveis) e subjetivos (relatados), além da alteração do humor conhecida como humor ansioso (vivência difusa de apreensão, desconforto sem conteúdo). Os sintomas fisiológicos incluem todas as sensações que podem ocorrer quando as pessoas são submetidas a um estressar agudo, como quando sofrem um acidente e sentem palpitações, sudorese, tremores, respiração acelerada, náusea, falta de ar, enfraquecimento nas pernas ou tensão muscular exagerada. Os sintomas comportamentais mais comuns são a fuga ou a imobilidade ("congelamento"), fugir rapidamente do local ou ficar imóvel. Os subjetivos incluem pensamentos imaginativos das situações ou dos objetos desencadeadores da situação fé bica, bem como a antecipação de desfechos catastróficos para as situações em curso. Alguns autores sugerem que as fobias podem ser divididas de acordo com o principal sentimento eliciado: medo ou nojo. Embora a maior parte das fobias esteja relacionada principalmente com o medo, o nojo parece ter um papel particularmente importante em fobias de pequenos animais e de sangue-injeção -ferimentos. A sensibilidade aumentada a estímulos repugnantes (há variabilidade fenotípica) pode ser um fator de risco para o desenvolvimento dessas fobias 15 • Entre os pacientes com fobia de sangue-injeção-fe rimentos, Page 16 diferenciou dois subtipos de pacientes: aqueles que manifestam a ativação do sistema nervoso simpático, característica da maior parte das outras fobias, e aqueles que apresentam uma reação paradoxal com redução da frequência cardíaca e da pressão arterial, que pode levar a desmaios, uma resposta específica da fobia de sangue-injeção-ferimentos. Além da ativação do sistema nervoso autônomo para simpático descrita anteriormente, os pacientes também apresentam o desejo persistente de evitar situações relacionadas com o medo fóbico. Quando o contato não pode ser evitado, ele é enfrentado com nível elevado de ansiedade e sofrimento e o indivíduo tende a sair da situação o mais rápido possível. Frequentemente, a esquiva leva a uma restrição importante nas atividades do indivíduo. Muitas vezes, o grau de incapacidade depende da facilidade com que o estímulo fóbico pode ser evitado. Geralmente, os fóbicos percebem a natureza exagerada das reações ansiosas e do comportamento de esquiva. A manifestação da fobia é desproporcional à fon te de perigo, o comportamento geralmente é inadequa-
Os principais quadros psiquiátricos que podem se confundir com fobias específicas são: • Agorafobia, que é o medo de sentir-se mal ou não poder sair de locais onde há aglomerações e/ou onde o socorro pode ser difícil. • Transtorno fóbico social, que se caracteriza pela esquiva de situações sociais ou pelo receio de um possí vel escrutínio ou julgamento negativo sobre atitudes pes. . soa1s ou expos1çao ao grupo. • Transtorno obsessivo compulsivo, por exemplo, o medo de se contaminar em alguém com obsessões de contaminação e rituais de limpeza. • Transtorno de estresse pós-traumático, que pode cursar com esquiva fóbica de situações relacionadas ao ' . evento traumatlco. • Transtorno de pânico, que pode, por exemplo, en volver hipervigilância em relação a sintomas corporais que se confundem com fobia de doenças. • Psicoses; nesse caso, indivíduos psicóticos não têm crítica dos seus sintomas.
Comorbidades A maioria dos indivíduos com fobias específicas apresenta pelo menos mais um transtorno de ansiedade comórbido17. As fobias específicas estão fortemente relacionadas com outras fobias (agorafobia e fobia social), outros transtornos de ansiedade e transtornos afetivos 18 . Como em todos os transtornos de ansiedade, a fobia específica está associada a risco maior de depressão 19 •
Tratamento A abordagem comportamental das fobias iniciou-se a partir das descobertas da psicologia experimental, em particular no trabalho desenvolvido por Wolpe 20 sobre a dessensibilização sistemática, baseada na hipótese de que a maioria dos comportamentos "anormais" seria apren di da, como aconteceria também com os comportamentos "normais'~ Atualmente, as evidências mais convincentes são as terapias baseadas na exposição, ainda que existam problemas com a adesão e a tolerabilidade dessas terapias (veja Choy et al.2 1, para uma revisão). O tratamento geralmente exige que as pessoas aco metidas entrem em contato gradual com aquilo que temem, repetidamente, e permaneçam em contato até a "extinção" do medo, isto é, até que as manifestações cedam ou desapareçam. A exposição repetida tende a quebrar os círculos viciosos que mantêm os sintomas e, assim, de-
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sencadeia novo aprendizado. As fobias específicas remitem com exposições graduais aos objetos ou às situações fóbicas, mas tendem a apresentar recaídas quando não há manutenção do tratamento. Existem diversas variações técnicas nas terapias de exposição, entre elas: • Inundação: envolve a exposição do paciente ao estímulo fóbico em sua forma mais temida e de maneira continuada até que a ansiedade tenha se dissipado. O extremo desconforto provocado e a eficácia de outros métodos têm limitado o emprego disseminado dessa técnica. • Exposição ao vivo: envolve a exposição ao vivo ao estímulo fóbico e, geralmente, é feita de maneira gradual, começando com situações que desencadeiam pouca ansiedade e progredindo na hierarquia de medos conforme ocorre habituação da ansiedade. • Modelagem: envolve o encorajamento do paciente pelo terapeuta por meio de demonstrações de enfrentamento e contato com o estímulo fóbico. • Dessensibilização sistemática: consiste na utilização de técnicas de relaxamento, em especial o relaxamento muscular progressivo, para controlar a ansiedade desencadeada durante a exposição na imaginação ao estímulo fóbico. Algumas considerações devem ser feitas em relação à terapia de exposição. Diversos estudos (p. ex., Emmelkamp e Wessels 22 ) demonstraram que a exposição ao vivo é mais eficaz do que a exposição na imaginação. Também parecem existir vantagens na modelagem acompanhada de exposição ao vivo sobre a observação, tanto direta como indireta (assistir a uma gravação em vídeo) 23 . A exposição deve ser longa o suficiente para promover a habituação da ansiedade. Distanciar-se do objeto te mido antes da redução da ansiedade resulta na sensibilização do medo em razão do pareamento entre o comportamento de esquiva e a redução da ansiedade. Alguns estudos sugerem que quando a sensação principal é de nojo, e não de medo, a extinção pode ser mais lenta e difíciF 4 .
Tratamento da fobia de sangue- injeção-ferimentos O tratamento da fobia de sangue-injeção-ferimentos muitas vezes torna-se urgente quando doenças que podem ameaçar a vida precisam ser tratadas com procedimentos que envolvem a situação temida e, consequentemente, são evitados pelo paciente. Como em outras fobias, a exposição mostrou -se um componente central do tratamento. No entanto, um subgrupo desses pacientes apresenta diminuição da frequência cardíaca e da pressão arterial e, eventualmente, desmaio durante a exposição. Dois tratamentos foram destacados por Page 16 para evitar que o paciente desmaie: o primeiro, denominado tensão aplicada, consiste na contração rápida e frequente de diversos grupos musculares ao primeiro sinal de queda na pressão arterial; a outra técnica, relatada em um
estudo de caso, consiste em provocar um estado emocional de raiva durante a exposição, com o objetivo de desencadear alterações fisiológicas incompatíveis com desmaiar25. O paciente é orientado a recriar mentalmente quatro situações pessoais nas quais ele ficou particularmente irritado.
Tratamento farmacológico Com base nos estudos disponíveis atualmente, o tratamento farmacológico não é o de escolha das fobias específicas. Para situações com rara oportunidade de exposição, estudos com benzodiazepínicos mostraram resultados positivos. Outros estudos mostram que o uso de benzodiazepínicos pode ser útil no início, facilitando a exposição e diminuindo a esquiva. No entanto, é consensual que não há redução da ansiedade e da esquiva no longo prazo 26. Em um desses estudos, inclusive, o grupo que recebeu alprazolam para tratamento da agorafobia apresentou um desfecho pior, após a suspensão do medicamento, com mais ansiedade na reexposição 26. Tem havido interesse crescente no uso da D -cicloserina, um agonista do receptor N -metil-D -aspartato, para potencializar os efeitos da exposição, aumentando o aprendizado. Essa medicação parece acelerar os efeitos da terapia de exposição e mostrou eficácia como adjuvante à terapia de exposição também no transtorno de ansiedade social e no transtorno de pânico28·29 . Apesar de evidências animadoras em pequenos ensaios clínicos controlados, o tratamento ainda deve ser considerado experimental.
Considerações finais Os transtornos fóbicos específicos são muito prevalentes na população em geral, têm particularidades nas suas manifestações, incluem aspectos biológicos, culturais, educacionais e podem ser tratados ou controlados com abordagens sistemáticas, que evitam sofrimento e comportamentos disfuncionais que podem levar a prejuízos importantes nas vidas das pessoas acometidas por esse mal. Existe um consenso de que a terapia de exposição é o tratamento de escolha para esses casos. Em pacientes com fobia de sangue-injeção-ferimentos, a exposição deve ser associada com técnicas para evitar quedas bruscas da pressão arterial e desmaios.
Minicaso clínico LSA é uma jovem de 26 anos que durante toda a sua vida morou em apartamentos em grandes centros urbanos. L sempre teve "pavor" de aranhas, mas isso nunca lhe trouxera problemas. Após se casar. mudou-se para uma "casa maravi lhosa" em um condomínio fechado em uma cidade próxima ao centro urbano
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onde trabalha. A princípio, gostou da ideia de "ter mais contato com a natureza". Uma semana depois da mudança. estava em sua sala quando se deparou com uma pequena aranha tecendo sua teia. Ela sentiu seu coração disparar e começou a gritar desesperada pela ajuda do marido. Ele. rapidamente. eliminou a aranha e foi ajudar sua esposa. que tremia intensamente. Depois desse episódio, L não andava mais descalça pela casa e passou a inspecionar os cantos das paredes e as roupas procurando por aranhas. Quando finalmente achou outra semelhante à primeira teve a mesma reação e passou a evitar a sala onde as encontrou. A casa foi dedetizada. e L ficou mais tranquila. Alguns dias depois. viu uma caranguejeira andando no quintal. Ela saiu desesperada da casa e. desde então. estava morando com a mãe e não tinha coragem de voltar para casa. Quando procurou o tratamento. contou que desde criança tinha medo de aranhas. Evitava ver filmes ou documentários nos quais elas aparecessem. Falou de algumas ocasiões em que voltara antecipadamente de casas de praia ou de campo quando se deparara com aranhas. L achava que seu medo era excessivo, mas considerava que ele fazia sentido. pois "aranhas são bichos perigosos". Além do medo. ela contava que sentia forte asco "só de ver o bicho se mexendo". Diante das dificuldades que estava enfrentando com o marido, topou tentar a terapia de exposição. Como suas reações ansiosas eram muito intensas e com muitos sintomas físicos, optou-se por iniciar o tratamento ensinando algumas técnicas de relaxamento e de controle da ansiedade. especialmente o relaxamento muscular progressivo. A construção da hierarquia foi difícil, pois ela considerava todos os enfrentamentos "impossíveis". Como primeiro objetivo. queria voltar pa ra casa. Ela passou a visitá-la regularmente e permanecia na casa por algumas horas. Inicialmente. ficava em cômodos que considerava "mais seguros" e conseguiu progredir na exposição até a sala onde se deparara com as pequenas aranhas. Nessa etapa, ela não conseguia ir ao quintal. mas. depois de algumas semanas. conseguiu voltar a morar na sua casa. Em uma segunda etapa, L ainda não se sentia confiante para exposições ao vivo. Optou-se. então. por uma exposição a fotos e vídeos. e seu objetivo nessa etapa era conseguir assistir a um documentário sobre aranhas. Apesar do asco inicial. a etapa foi relativamente fácil e L logo estava assistindo a diversos documentários sobre aranhas. Durante essa etapa, crenças disfuncionais sobre o perigo das aranhas também foram trabalhadas. L virou uma "especialista em aranhas". Mais confiante. passou para a exposição ao vivo. Inicia lmente. foram usados modelos fictícios. progressivamente mais realistas e de tamanhos maiores. Chegou a passar uma semana com um modelo bastante rea lista de uma caranguejeira preso ao seu corpo. Como última tarefa. visitou algumas vezes um museu onde pôde ver aranhas de uma maneira muito próxima e sendo manuseadas. Apesar disso ser possível. L não quis que uma caranguejeira andasse pelo seu corpo. Com o tratamento, melhorou muito. Voltou a sair no quintal e conseguia eliminar sozinha pequenas aranhas que encontrava eventualmente pela casa.
Questões 1. Em relação à etiologia das fobias específicas, assinale a alternativa falsa: a) Mecanismos de condicionamento clássico são sempre evidentes em indivíduos com transtornos fóbicos específicos. b) O comportamento de esquiva fóbica pode ser reforçado negativamente. uma vez que há uma diminuição da ansiedade ao se evitar estímulos relacionados ao objeto ou situação fóbica. c) Segundo a teoria da propensão, os seres humanos estariam biologicamente preparados para desenvolver medo de estímulos relevantes do ponto de vista evolucionário. d) O condicionamento vicariante (ou seja. por meio da observação do comportamento de outro indivíduo) pode estar relacionado com o desenvolvimento de medos fóbicos. e) Contribuições genéticas parecem ser particularmente relevantes para a fobia de sangue-injeção-ferimentos. 2. Em relação às manifestações clínicas das fobias específicas. assinale a alternativa falsa: a) Pacientes com fobia de sangue-injeção-ferimentos podem ter uma resposta atípica quando confrontados com o objeto temido. apresentando diminuição da frequência cardíaca e da pressão arterial. Eventualmente, ocorrem desmaios. b) Fobias específicas podem passar anos sem serem notadas pelos outros e sem trazer comprometimento importante para o indivíduo acometido quando o estímulo fóbico pode ser evitado com facilidade. c) O diagnóstico diferencial com outros quadros psiquiátricos. como o transtorno obsessivo-compulsivo e o transtorno de estresse pós-traumático. pode ser difícil. d) A presença de outro transtorno de ansiedade, p. ex.. um transtorno de ansiedade generalizada exclui o diagnóstico de fobia específica. e) Frequentemente. a esquiva de situações em que o contato com o objeto ou situação temida é antecipado é o sintoma mais incapacitante. 3. Na terapia de exposição para as fobias específicas. a técnica de modelagem refere-se: a) À exposição do paciente ao estímulo fóbico em sua forma mais temida e de maneira continuada, até que a ansiedade tenha se dissipado. b) À exposição ao vivo e gradual ao estímulo fóbico. c) Ao encorajamento do paciente pelo terapeuta por meio de demonstrações de enfrentamento e contato com o estímulo fébico. d) À utilização de técnicas de relaxamento, em especial o relaxamento muscular progressivo. para controlar a ansiedade desencadeada durante a exposição na imaginação ao estímulo fóbico. e) A' técnica que combina exposição com contrações musculares em pacientes com fobia de sangue-injeção-ferimentos.
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4. Assinale a alternativa verdadeira quanto à terapia de exposição para as fobias específicas: a) A exposição à imaginação é tão eficaz quanto a exposição ao . VIVO.
b) Inicialmente. pode-se interromper precocemente a exposição. antes da diminuição da ansiedade, para torná-la mais fácil para o paciente. c) Quando o nojo é o sentimento principal. a habituação pode ser mais lenta. d) Na fobia de sangue. a exposição não é um componente central do tratamento. e) A utilização de benzodiazepínicos durante a exposição pode ter um efeito inicial facilitador e melhora a eficácia da exposição no longo prazo.
5. Em relação à farmacoterapia das fobias específicas. assinale a a) b)
c)
d) e)
alternativa falsa : O tratamento farmacológ ico não é considerado um tratamento de primeira linha para as fobias específicas. Quando necessário. o tratamento farmacológico deve visar as comorbidades presentes, como episódios depressivos ou o transtorno de ansiedade generalizada. Estudos em fobias de dentista e de avião mostraram que benzodiazepínicos podem diminuir a ansiedade em uma primeira exposição. mas aumentam a ansiedade na reexposição. Os inibidores seletivos de recaptura de serotonina são as drogas mais estudadas e são uma alternativa à terapia de exposição. A 0 -cicloserina, um agonista parcial dos receptores N-Metii0 -Aspartato. potencializou os efeitos da terapia de exposição em alguns estudos.
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Transtorno de Ansiedade Generalizada
Renato Teodoro Ramos
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 795 Genética, 796
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Quadro clínico: diagnóstico e comorbidades, 796 Fisiopatologia, 797 Hipóteses neuroquímicas para o transtorno de ansiedade generalizada, 798 Estudos de neuroimagem, 799 Modelos cognitivos para o transtorno de ansiedade generalizada, 799 Ansiedade em idosos, 800 Tratamento, 801 Tratamento farmacológico, 801 Psicoterapia, 803 Considerações finais, 804 Questões, 804 Referências bibliográficas, 804
Introdução O conceito de transtorno de ansiedade generalizada (TAG) conforme conhecido atualmente é relativamente recente, surgindo com a terceira edição do Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM-III) da Associação Psiquiátrica Americana em 19801 • A principal característica clínica desse transtorno é a presença de um estado persistente de ansiedade e preocupação excessiva capaz de afetar de forma significativa a qualidade de vida do paciente. Utilizando-se critérios atuais (DSM-IV)2, estima-se que a prevalência do TAG ao longo de toda a vida seja de 5,7% e de cerca de 3,1% num período de 12 meses 1 • Estudos europeus apontam alguma variação em torno dessa estimativa, algo entre 2 e 6%. A tendência de longo prazo para a preocupação exagerada e ruminação de temores, definidora do TAG, também faz parte de alguns transtornos de personalidade, especialmente num tipo de traço
1. Definir o transtorno de ansiedade generalizada (TAG). 2. Explicar as principais teorias sobre a etiologia e fisiopatologia do transtorno de ansiedade generalizada. 3. Reconhecer a importância da comorbidade do TAG com a depressão e outros transtornos mentais. 4. Reconhecer a importância das teorias psicológicas para o TAG. 5. Reconhecer os principais modelos cognitivos do TAG. 6. Planejar o tratamento do TAG. 7. Entender o tratamento farmacológico do TAG. 8. Reconhecer aspectos do diagnóstico e do tratamento do TAG específicos para indivíduos idosos.
conhecido como neuroticismo. Estima-se que cerca de 10% da população geral apresente traços como nervosismo, tensão e tendência crônica a remoer preocupações em intensidade capaz de prejudicar seu desempenho na vida cotidiana. Esses dados poderiam sugerir que a prevalência do transtorno de ansiedade generalizada também estivesse ao redor desse valor em estudos populacionais. Como a prevalência do TAG tem sido descrita como sendo quase a metade disso, pode-se questionar o quanto os atuais critérios diagnósticos estão adequados para a identificação de formas patológicas de ansiedade3 . Dados epidemiológicos e estudos clínicos sugerem que os primeiros sintomas de TAG se desenvolvem no final da adolescência e início da idade adulta, evoluindo como uma condição crônica marcada por episódios de piora que podem durar meses ou anos 3 • Num estudo prospectivo naturalístico de pacientes diagnosticados com TAG na cidade de Boston, Yonkers et al. 4 observaram que ape-
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nas cerca de 15% dos indivíduos apresentaram remissão de seus sintomas por dois meses ou mais durante o primeiro ano de acompanhamento e apenas 25% haviam remitido após 2 anos. O número de remissões atingiu apenas 38% após 5 anos de acompanhamento. O perfil sociodemográfico dos pacientes com TAG sugere que este é mais comum entre mulheres, assim como entre pessoas solteiras e de classes sociais mais baixas. Os poucos dados disponíveis sobre a evolução de longo prazo desse transtorno ainda não permitem estabelecer se tais características são um fator de risco para a doença ou se devem ser consideradas consequências desta. Por apresentar idade de início relativamente precoce e curso crônico, estima-se que a maior prevalência de TAG esteja entre indivíduos de meia-idade, observação que deve ser levada em conta, por exemplo, no planejamento da atenção à saúde dessas pessoas3,4 • Um dos principais problemas para o estudo do TAG ao longo dos anos tem sido a dificuldade em se estabelecer critérios estáveis para o seu diagnóstico, especialmente em razão da alta comorbidade entre sintomas depressivos e ansiosos. Essa variabilidade de critérios, por exemplo, prejudica a obtenção de informações mais precisas sobre a genética do transtorno de ansiedade generalizada.
Genética Estudos iniciais baseados nos critérios do DSM-III encontraram risco genético discretamente aumentado, entre 15 e 20% entre gêmeos não idênticos, para o desenvolvimento do TAG, independentemente do gênero de ambos 5. Um estudo mais recente avaliou 37.000 pares de gêmeos do mesmo sexo para avaliar a correlação entre transtorno de ansiedade generalizada, depressão maior e neuroticismo como traço de personalidade. A correlação entre TAG e depressão maior foi muito elevada, chegando a 1,0 entre mulheres e 0,74 entre homens. Nesse estudo, a presença de níveis elevados de neuroticismo esteve consistentemente relacionada tanto com a presença de sintomas de ansiedade generalizada quanto de depressão maior6 . Um estudo envolvendo 5.069 pares de gêmeos da Austrália e dos Países Baixos encontrou três regiões cromossomais sugestivas de uma ligação com a transmissão do risco genético para TAG. Em particular a região 18ql17cM mostrou-se relevante em ambos os centros, sugerindo que o cromossomo 18 possa ter um papel proeminente na genética da ansiedade generalizada7 .
Quadro clínico: diagnóstico e comorbidades O transtorno de ansiedade generalizada (TAG) é caracterizado por sintomas ansiosos persistentes que afetam uma ampla variedade de comportamentos do pacien-
te nas mais diversas situações. Essas manifestações podem variar ao longo das fases da vida e incluem: sintomas de tensão motora, como tremores, incapacidade para relaxar, fadiga e cefaleia; sintomas de hiperatividade autonô mica como palpitações, sudorese, tontura, ondas de frio ou calor, falta de ar e urgência miccional; e sintomas de hipervigilância, como insônia, irritabilidade e dificuldade de concentração. Além dos sintomas somáticos, o TAG caracteriza-se também pela presença de um humor ansioso com preocupações constantes na forma de expectativa apreensiva sobre possíveis eventos negativos. Esses conteúdos mentais estão presentes na maior parte do tempo e em geral referem-se a possíveis consequências "catastróficas" de situações comuns ligadas ao trabalho, estudo ou vida familiar. Nas primeiras classificações, o TAG aparecia como uma categoria diagnóstica residual criada para receber aqueles casos com manifestações polimorfas que não poderiam ser alocados para as demais patologias. Atualmente, a ansiedade generalizada é vista como uma condição clínica autônoma, de evolução crônica, com um componente importante ligado ao desenvolvimento do indivíduo descrito muitas vezes como um temperamento an. SlOSO.
O caráter multifacetado dos sintomas faz com que a maioria dos pacientes com ansiedade generalizada procure o clínico geral, o cardiologista ou o gastroenterologista em vez do psiquiatra para seu tratamento. Uma avaliação clínica inicial das diferentes funções orgânicas é essencial nesses casos, mas a hipótese de um transtorno ansioso deve ser levantada desde o início. A Tabela I apresenta os critérios diagnósticos para o transtorno de ansiedade generalizada de acordo com o DSM-IV A presença de comorbidades, isto é, o diagnóstico simultâneo de outros transtornos mentais e patologias clínicas, é tão frequente no TAG que alguns pesquisadores questionam o quanto esse transtorno deve ser considerado uma entidade clínica à parte, um quadro prodrômico de outras patologias ou apenas um marcador de gravidade para outros transtornos afetivos e ansiosos8 . Essas taxas de comorbidades são particularmente elevadas em relação ao transtorno de pânico, abuso de substâncias, distimia e depressão maior, o que sugere a existência de mecanismos fisiopatológicos comuns a essas condições9 • Os sintomas de ansiedade generalizada tendem a aparecer em fases relativamente precoces do desenvolvimento, muitas vezes precedendo manifestações mais claras de depressão maior e distimia em cerca de 30% dos casos9 • Embora as causas desse fenômeno não sejam conhecidas, existe a hipótese de que a ansiedade em níveis elevados e persistentes possa atuar como um fator de estresse capaz de desencadear quadros depressivos. Outra possibilidade a ser considerada é a sobreposição genética entre TAG e depressão, que poderia justificar a ocorrência simultânea
60 TRANSTORNO DE ANSIEDADE GENERALIZADA
Tabela I
Critérios diagnósticos para transtorno de ansiedade generalizada (DSM-IV)
A. Ansiedade e preocupação excessivas (expectativa apreensiva), ocorrendo na maioria dos dias por pelo menos 6 meses, com diversos eventos ou atividades (tais como desempenho escolar ou profissional). B. O indivíduo considera difícil controlar a preocupação. C. A ansiedade e a preocupação estão associadas a três (ou mais) dos seguintes seis sintomas (com pelo menos alguns deles presentes na maioria dos dias nos últimos 6 meses). Nota: apenas um item é exigido para crianças. (1) Inquietação ou sensação de estar com os nervos à flor da pele. (2) Fatigabilidade. (3) Dificuldade em concentrar-se ou sensações de "branco" na mente. (4) lrritabilidade. (5) Tensão muscular. (6) Perturbação do sono (dificuldades em conciliar ou manter o sono, ou sono insatisfatório e inquieto) O. O foco da ansiedade ou preocupação não está confinado a aspectos de um transtorno do Eixo I; p. ex., a ansiedade ou preocupação não se refere a ter um ataque de pânico (como no transtorno de pânico), ser embaraçado em público (como na fobia social), ser contaminado (como no transtorno obsessivo-compulsivo), ficar afastado de casa ou de parentes próximos (como no transtorno de ansiedade de separação), ganhar peso (como na anorexia nervosa), ter múltiplas queixas físicas (como no transtorno de somatização) ou ter uma doença grave (como na hipocondria), e a ansiedade ou preocupação não ocorre exclusivamente durante o transtorno de estresse pós-traumático. E. A ansiedade, a preocupação ou os sintomas físicos causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo. F. A perturbação não se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (droga de abuso, medicamento) ou de uma condição médica geral (p. ex., hipertireoidismo) nem ocorre exclusivamente durante um transtorno do humor, transtorno psicótico ou transtorno invasivo do desenvolvimento.
dos dois tipos de sintomas 10 • Para tentar explicar por que determinado indivíduo poderia desenvolver um ou outro tipo de transtorno mental a partir de uma base genética comum, Kendler et al. sugeriram que a eclosão de um determinado grupo de sintomas dependeria não apenas de um risco biológico aumentado, mas também do tipo de evento estressar responsável pelo seu desencadeamento. Classificando os eventos estressares em diferentes tipos, esses autores relatam que eventos de conteúdo ligado a perdas e ameaças foram mais frequentes no mês precedendo o início dos sintomas de TAG, enquanto situações ligadas a perdas e humilhação foram mais frequentes entre os indivíduos que desenvolveram depressão maior 11. A coexistência entre TAG e transtorno afetivo bipolar também não deve ser esquecida. Níveis elevados de ansiedade podem levar a sintomas como agitação, insônia e irritabilidade, que podem se confundir com sintomas hipomaníacos. Além disso, existem evidências de que
o risco de suicídio aumenta quando esses dois transtornos ocorrem conjuntamente 12 . Estudos populacionais indicam que o risco para o desenvolvimento de abuso de álcool e drogas é bem maior entre indivíduos com diagnóstico de TAG, mesmo em relação aos portadores de outros transtornos mentais 13 . O uso do álcool para controlar os sintomas ansiosos pode ser um indicativo para um risco aumentado para quadros de abuso e dependência. Pacientes com ansiedade generalizada também parecem apresentar risco aumentado de comorbidade com outras doenças clínicas. Entre elas destacam -se dor crônica, enxaqueca, úlceras digestivas, síndrome do intestino irritável, doenças coronárias, hipertireoidismo, diabetes, asma e doença pulmonar obstrutiva crônica 14. Além de fatores biológicos, como o aumento da atividade do sistema hipotálamo -hipófise-adrenal, estados sustentados de ansiedade podem levar a aumento da sensibilidade a sintomas físicos com interpretações distorcidas sobre o significado de manifestações fisiológicas comuns, como alterações do ritmo cardíaco e respiratório, capazes de levar a piora dos sintomas através, por exemplo, da hiperventilação 14. Essas comorbidades podem, naturalmente, influenciar a terapêutica. A escolha do tipo de medicamento, dosagem e tempo de tratamento deve levar em conta não apenas o controle agudo dos sintomas ansiosos, mas também a prevenção de longo prazo de manifestações físicas e psíquicas capazes de ter um impacto significativo na qualidade de vida do paciente.
Fisiopatologia A ansiedade e o medo são emoções presentes em todos os seres humanos independentemente do contexto sociocultural em que se encontram. A expressão dessas emoções é homogênea entre diferentes povos racial e geograficamente isolados e as situações que normalmente as evocam não são aleatórias. Do ponto de vista evolutivo, existe a hipótese de que certas reações de medo que aumentavam as chances de sobrevivência no passado ainda se manifestam de forma muitas vezes automática e incontrolável15·16. A sensibilidade inata a certos estímulos ambientais parece interagir com o aprendizado de certos comportamentos de forma correlata ao observado em outras espécies animais. Isaac Marks 17 descreve essa interação através de dois conceitos básicos. Em primeiro lugar, a ideia de prepotency significa que certos estímulos são especialmente notáveis para certa espécie, que os percebe e reconhece seletivamente entre outros estímulos, mesmo quando os encontra pela primeira vez. Em segundo lugar, o conceito de preparedness refere-se à ideia de que certos estímulos se associam mais facilmente com outros, evo cando respostas específicas. Por exemplo, diante de um sinal de perigo específico, uma espécie aprende certas res-
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postas defensivas mais facilmente do que outras e o aprendizado é mais rápido na medida em que essas respostas façam parte do repertório inato de reações de defesa. O homem tem muito mais flexibilidade de reações do que qualquer outra espécie animal, mas suas possibilidades não são infinitas. A questão central não é determinar se o medo ou a ansiedade são comportamentos totalmente inatos ou totalmente aprendidos, mas ter em mente que certos tipos de aprendizado ocorrem com maior facilidade. Em relação ao TAG, reações fisiológicas ligadas ao medo ou antecipação de ameaças parecem ser desencadeadas com maior facilidade e, além disso, parecem estar mais fortemente associadas a interpretações distorcidas de seu significado. Alterações da frequência cardíaca, por exemplo, são normais em certas situações, mas parecem assumir um caráter mais ameaçador em pessoas ansiosas. Como veremos, o TAG parece ocorrer em decorrência de um misto de mecanismos neurofisiológicos e psicológicos e o conhecimento detalhado de ambos é fundamental para o aperfeiçoamento da terapêutica desses casos.
Hipóteses neuroquímicas para o transtorno de ansiedade generalizada Os principais modelos biológicos para o TAG são baseados na hipótese de que a ansiedade faz parte de um conjunto de comportamentos de defesa ligados à reação a ameaças externas e internas, mecanismos estes presentes em outras espécies animais e preservados ao longo do processo evolutivo. As evidências que dão suporte às teorias biológicas da ansiedade vêm principalmente de estudos farmacológicos e fisiológicos em animais e seres humanos e, mais recentemente, estudos de neuroimagem. A ansiedade é vista atualmente como um fenômeno complexo que envolve diversas estruturas cerebrais e, consequentemente, diferentes tipos de sistemas de neurotransmissão. O ácido gama-aminobutírico (GABA) é o principal neurotransmissor com função inibitória e está amplamente distribuído pelo sistema nervoso central. Receptores GABA-A e receptores benzodiazepínicos (BDZ) fazem parte do mesmo complexo macromolecular. A ação potente de medicamentos benzodiazepínicos sobre a ansiedade sustenta a hipótese de que disfunções nesse mecanismo de neurotransmissão possam estar relacionadas de alguma forma à fisiopatologia do TAG. Estudos em laboratório sugerem que animais expostos a situações inevitáveis de estresse por tempo prolongado apresentam redução da atividade de receptores GABA-BDZ no córtex frontal, no hipocampo e em regiões do hipotálamo ligadas ao processamento de estados de medo e ansiedade 18 . Estudos em seres humanos corroboram esse modelo. Níveis significativamente reduzidos de receptores BDZ têm sido encontrados em linfócitos de pacientes com TAG,
níveis estes que se normalizam depois do tratamento. Esse decréscimo do número de receptores ocorre paralelamente a uma redução da quantidade do RNA mensageiro a eles relacionado, sugerindo uma redução de sua síntese durante a fase ativa da doença19 • O envolvimento da noradrenalina (NE) na fisiopatologia do TAG é sugerido tanto pela relevância dos sintomas relacionados à atividade simpática quanto pela resposta clínica a medicamentos noradrenégicos. Existem, de fato, evidências de maior atividade plaquetária da monoamino-oxidase (MAO) em indivíduos com TAG. Entretanto, estudos comparando níveis plasmáticos de catecolo -metil transferase e ácido vanil-mandélico, metabólitos noradrenérgicos, não encontraram diferenças significativas, na urina, entre pacientes e controles normais 20 • Do ponto de vista clínico, a eficácia de medicamentos de ação noradrenérgica, mesmo em atividade conjunta sobre a neurotransmissão serotonérgica, no tratamento da ansiedade generalizada, dá suporte a essa hipótese 21 • Outro neurotransmissor classicamente ligado à ansiedade é a serotonina (5-HT). Anormalidades na atividade de receptores do tipo 5-HT 1a têm sido descritas em indivíduos com diferentes manifestações ansiosas22,23 . As primeiras hipóteses acerca do envolvimento da serotonina na ansiedade surgiram a partir de estudos em animais utilizando-se testes de conflito. De forma geral, drogas que reduziam a ação da serotonina liberavam o comportamento punido em contraste com o observado com drogas de ação oposta24 . A ação da serotonina na ansiedade, no entanto, não parece ser simples. Por exemplo, a ritanserina (antagonista de receptores 5-HT2 ) é capaz de aliviar os sintomas do TAG, mas pode agravar as manifestações do transtorno de pânico. Para lidar com essas discrepâncias, Deakin & GraefF5 conceberam um modelo teórico relacionando tipos de mecanismos de defesa a partir da avaliação de diferentes tipos de ameaças potenciais. Ataques de pânico e sintomas ansiosos crônicos seriam respostas a diferentes tipos de ameaça potencial e, portanto, envolveriam diferentes mecanismos neuroquímicos. Nessa proposta, a ação da serotonina seria mista, facilitando a manifestação de sintomas gerais da ansiedade, ao mesmo tempo que inibiria os sintomas de pânico. Em seres humanos, a eficácia clínica de agonistas de receptores serotonérgicos 5-HTla, como a buspirona, é coerente com um envolvimento da serotonina na modulação dos sintomas de ansiedade generalizada. Nomesmo sentido, existem relatos de que pacientes com TAG, quando comparados com pacientes com transtorno de pânico, apresentam níveis significativamente maiores da enzima lisossomial n-acetil- ~-glusosaminidase, um marcador indireto da atividade serotonérgica26 • Além disso, também existem evidências de que os níveis urinários de ácido 5-indol-acético, um metabólito da serotonina, correlacionem -se com a gravidade dos sintomas ansiosos em pacientes com TAG27 •
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As colecistoquininas (CCK), em especial tipos CCK-4 e CCK-8, são peptídeos amplamente distribuídos pelo sistema nervoso central e receptores do tipo CCK-B são encontrados no hipotálamo, sistema límbico, gânglios da base, hipocampo, córtex e tronco cerebral em estruturas ligadas a comportamentos de medo e defesa. O uso de CCK-4 e CCK-8 em humanos induz sintomas de ansiedade e pânico, presumivelmente através de uma modulação da atividade da serotonina e noradrenalina28 . O fator de liberação de corticotropina (CRF), encontrado no hipotálamo, está relacionado com o controle de secreção de hormônios adrenocorticotróficos em função do estresse. A infusão intraventricular de CRF em animais produz reações idênticas às da ansiedade, com aumenta da frequência cardíaca e da pressão arterial média, supressão de comportamento exploratório e redução do comportamento de alimentação29 . Baseado nessas observações, o antagonismo de receptores CRF tem sido expiorado na busca de novos medicamentos para a ansiedade. Um estudo recente, no entanto, não encontrou um efeito significativo do pexacerfont, um antagonista seletivo de receptores CRF-1 no tratamento do TAG quando comparado a placebo e ao citalopram30 • O neuropeptídeo Y (NPY) tem sido também relacionado à ansiedade tanto em modelos animais quanto humanos. Amstadter et al. relataram que o polimorfismo de um nucleotídeo (rsl6147) ligado à expressão do neuro peptídeo Y se correlacionou significativamente com o desenvolvimento de sintomas de TAG em indivíduos expostos a um desastre natural, sugerindo um papel relevante deste na modulação das respostas ao estresse31 • Receptores de glutamato são mediadores da atividade excitatória do SNC e têm sido relacionados a fenômenos como extinção de medo condicionado e dependência de drogas. São descritos três principais tipos de receptores glutamaérgicos, associados ao n -metil-aspartato (NMDA), ao ácido alfa-amino-3-hidroxi-5-metil-4-isoxazolepropiônico (AMPA) e receptores metabotróficos32• Em particular, os receptores metabotrópicos estão associados a um papel modulador da transmissão sináptica e da neuroplasticidade e estão sendo investigados para o tratamento da ansiedade, da depressão e mesmo da esquizofrenia33. Recentemente descrito, o neuropeptídeo S (NPS) e seu receptor associado parecem ter papel importante na modulação de comportamentos ligados a ansiedade e alerta, bem como na aquisição de memórias ligadas a experiências de medo34 . Por fim, a função do eixo hipotálamo-hipófise adrenal na mediação da ansiedade e do estresse é bem conhecida. Essas estruturas podem eventualmente estar relacionadas às alterações imunes relatadas durante estados prolongados de ansiedade e estresse35 • De maneira interessante, também existem relatos de que o uso concomitante de glicocorticoides poderia ter um efeito facilitado r na terapia comportamental da ansiedade36 •
As informações desses estudos neuroquímicos de vem ser consideradas junto a outro tipo de informação obtida com neuroimagem de modo a compor um quadro mais completo dos mecanismos fisiopatológicos da ansiedade.
Estudos de neuroimagem Num estudo utilizando espectroscopia por ressonância magnética, Mathew et al. 37 encontraram uma relação significativamente maior entre as concentrações de n -acetilaspartato (NAA) e creatina em indivíduos com TAG em relação a controles normais em regiões pré-frontais dorsolaterais normalmente associadas a processos de tomada de decisão. Como essa função cognitiva está muitas vezes afetada na ansiedade, esses autores sugerem que disfunções cerebrais localizadas possam ter um papel na gênese dos sintomas. Estudos que envolvem técnicas de ressonância nuclear magnética funcional têm utilizado um paradigma experimental em que rostos expressando diferentes estados emocionais são apresentados a pacientes com diagnóstico de TAG e a voluntários normais, que devem avaliar o impacto emocional desses estímulos. Num desses estudos com pacientes adolescentes, Monk et al. observaram que indivíduos com TAG apresentaram aumento na ativação de regiões ventrolaterais do córtex pré-frontal direito quando apresentados a faces com expressão de raiva. Os autores sugerem que essa região cerebral possa estar envolvida em alguma forma de compensação dos sintomas ansiosos e não em sua gênese propriamente dita. Em outras palavras, pessoas com maior capacidade de engajar regiões pré-frontais em suas atividades cognitivas poderiam proteger-se melhor de manifestações ansiosas38 • Outro estudo39, com metodologia semelhante e também avaliando pacientes adolescentes, encontrou um aumento da atividade em regiões pré-frontais e na região anterior do cíngulo que, segundo os autores, estaria envolvida em atividades cognitivas como autorreflexão. Esse estudo comparou a resposta à apresentação de rostos com expressões de medo e felicidade e também encontrou aumento da atividade metabólica na amígdala, uma região classicamente associada à mediação de reações de ansiedade e medo. Esses estudos são obviamente iniciais e enfrentam a mesma limitação de todas as outras abordagens experimentais da ansiedade generalizada, que é a identificação de pacientes que apresentem a ansiedade com sintoma puro, sem outras manifestações afetivas concomitantes.
Modelos cognitivos para o transtorno de ansiedade generalizada O estado prolongado de preocupação exagerada é considerado central para a definição do TAG e é visto como um estilo cognitivo desadaptativo caracterizado por um
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viés em direção à fácil percepção e exagerada avaliação de ameaças 40. A percepção de que situações cotidianas sejam excessivamente ameaçadoras, a valorização do julgamento dos outros sobre suas ações, a dificuldade de tomar decisões e a sensação de incompetência pessoal perfazem os principais elementos psicológicos que caracterizam o fun cionamento mental dos pacientes com TAG. A preocupação exagerada vista nos indivíduos ansiosos tem sido associada a uma distorção no processo de atenção conhecida como seletividade atencional, no sentido da valorização de estímulos que sinalizam ameaças potenciais em detrimento de outros estímulos que poderiam ser considerados neutros ou mesmo positivos. Essa concepção teórica aproxima os sintomas do TAG da ansiedade normal, na qual o diagnóstico seria dado a indivíduos cujo nível de sofrimento seria um desvio estatístico significativo da média da população. Além dessa forma de pensar, a ansiedade generalizada está também associada a um aumento da sensibilidade fisiológica a estímulos supostamente perigosos e à consequente sensação de sofrimento físico. Assim, uma hipersensibilidade do sistema nervoso autônomo poderia ser um dos mecanismos que levariam a essa resposta exagerada41. Outro mecanismo cognitivo também associado ao TAG é uma tendência a distorcer a interpretação de situações ambíguas no sentido de dar as elas um sentido negativo ou ameaçador. Essa tendência também é conhecida como "catastrofização" de pensamentos e situações. Nesse contexto, os indivíduos ansiosos exibem também uma tenciência a lembrar de forma mais intensa de experiências negativas de forma a construir crenças acerca de si mesmos e de sua capacidade de lidar com problemas. Uma consequência desse padrão de funcionamento cognitivo costuma ser uma dificuldade maior na resolução de problemas em razão de uma dificuldade na tomada de decisões. Existem atualmente algumas variações nas teorias cognitivas que tentam explicar os achados clínicos do
Tabela 11
TAG. Esses modelos apresentam vários pontos em co mum, mas algumas diferenças importantes entre eles têm ficado mais nítidas ao longo do tempo. Os principais modelos cognitivos atuais para explicar as manifestações do TAG foram recentemente revistos por Behar et al. 41. Essas propostas téoricas incluem: Avoidance Model of Wor-
ry42; Intolerance of Uncertainty Model43 ; Metacognitive Model4\ Emotion Dysregulation Model45 e AcceptanceBased Model of Generalized Anxiety Disorder. A Tabela II
resume algumas das principais características desses modelos41. Os modelos de funcionamento cognitivo apresentados servem de base teórica para o desenvolvimento de diferentes modalidades de psicoterapia para a ansiedade. Como veremos adiante, a forma mais eficaz de tratamento do TAG é uma associação do uso de medicamentos com psicoterapia, sugerindo que mecanismos psicológicos interajam intimamente com mecanismos fisiológicos na gênese desse tipo de ansiedade. O fato de o TAG estar fortemente ligado ao desenvolvimento de traços de temperamento e de personalidade também sugere que seus sintomas possam variar ao longo da vida. Em outras palavras, o envelhecimento poderia ter efeito benéfico sobre o TAG, tanto pelo aprendizado ocorrido durante as situações de estresse quanto pela maior estabilidade das condições gerais de vida. No entanto, existem evidências de que os sintomas ansiosos não apenas persistem ao longo do envelhecimento como tendem a se acentuar nessa fase.
Ansiedade em idosos As informações disponíveis acerca da ocorrência do TAG na população idosa são ainda parciais. As dificuldades para se avaliar o impacto dos sintomas ansiosos nessa faixa etária vêm da própria heterogeneidade desses pacientes, em especial em razão das frequentes comorbidades clínicas e psiquiátricas, da influência de fatores sociocul-
Modelos cognitivos para o TAG (adaptada de Behar et al. 41 )
Avoidance Modelo f Wony
Preocupação vista como um conteúdo linguístico que inibe o processo de habituação a
(modelo de esquiva de preocupações)
situações negativas. Ineficácia de estratégias de resolução de problemas e processamento de emoções. Importância maior dada aos relacionamentos interpessoais. Estilo de apego emocional desadaptativo e presença de experiências traumáticas no passado.
lntolerance of Uncertainty Model
Intolerância a incertezas, abordagem negativa de problemas, esquiva cognitiva de situações
(modelo de intolerância a incertezas)
estressantes, crenças distorcidas sobre suas preocupações.
Metacognitive Model
Crença de que seu estado de preocupação será útil na resolução de problemas. Medo que
(modelo metacognitivo)
essa preocupação se torne incontrolável. Interpretação dos sintomas ansiosos como sinais de que suas preocupações são incontroláveis.
Emotion Dysregulaâon Model
Hiper- reatividade emocional, compreensão incompleta das emoções, reações negativas ante
(modelo de desregulação emocional)
as manifestações emocionais, mau gerenciamento das situações emocionais.
Acceptance-Based Modelof Generalized Anxiety Disorder
Importância das experiências internas com dificuldade de confrontá- las com elementos
(modelo baseado na aceitação de experiências)
externos, esquiva de situações sociais.
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turais e mesmo das mudanças nos critérios diagnósticos que servem de base para esses estudos. Estudos populacionais sugerem que a prevalência do TAG entre idosos é maior do que entre a população geral, sendo estimada em cerca de 20%46. Em estudo recente, Byers et al. 47avaliaram os resultados do National Comorbidity Survey Replication (NCS -R) para determinar a prevalência em 12 meses dos transtornos ansiosos e afetivos em 2.575 indivíduos com 55 anos de idade ou mais. A prevalência de transtornos ansiosos foi estimada em 12%, enquanto a de depressão ficou em 5%. Embora tenham encontrado uma tendência a decréscimo da ocorrência de TAG ao longo das faixas etárias, sua incidência ainda foi muito significativa, o que justificaria maior atenção das políticas de saúde pública. Existem relatos de que 38 a 46% dos adultos idosos com depressão apresentam sintomas ansiosos comórbidos, ao mesmo tempo que 15 a 30% dos pacientes idosos com diagnóstico de um transtorno ansioso apresentam concomitantemente depressão 48 • Sintomas de TAG precedem os de depressão na maioria dos casos49 , o que sugere que o diagnóstico precoce de sintomas ansiosos nessa faixa etária pode ajudar também na prevenção dos transtornos afetivos. Outra informação importante a ser considerada na avaliação desses pacientes é o relato de que a presença do TAG relaciona-se com um aumento do risco para doenças coronarianas50. Alguns estudos também têm mostrado que idosos com sintomas ansiosos ou depressivos costumam procurar principalmente o cuidado de clínicos gerais em virtude da relevância dos sintomas somáticos que costumam acompanhar esses quadros 51 • Existem algumas hipóteses para explicar o provável aumento da ocorrência de sintomas ansiosos ao longo do processo de envelhecimento. Scrable et al. 51 propõem que os mecanismos moleculares que controlam a proliferação de células-tronco sejam comprometidos ao longo do processo de envelhecimento, o que levaria a uma perda da capacidade de inibir a função do sistema hipotálamohipófise-adrenal. Essa perda de controle inibitório levaria a um estado de hipersensibilidade de respostas ao estresse. Esse fenômeno seria modulado através do fator de transcrição p53, que está associado a mecanismos de apoptose e inibição do crescimento celular em resposta ao estresse em animais de laboratório. O comprometimento de eferências GABAérgicas em regiões hipotalâmicas seria o mecanismo neuroquímico responsável por esse aumento de reatividade ao estresse. Em resumo, a coexistência de sintomas ansiosos e depressivos, que já é frequente em adultos jovens com TAG, torna-se mais proeminente em idosos. As mudanças psicodinâmicas relacionadas ao envelhecimento desses pacientes ainda não foram adequadamente estudadas, mas o aumento da prevalência de TAG sugere que indivíduos ansiosos podem não melhorar suas estratégias cog-
nitivas ou comportamentais espontaneamente, sem ter recebido uma orientação psicodinâmica adequada. A forma pela qual um indivíduo com traços ansiosos prévios lida com as perdas comuns nessa fase da vida pode contribuir para o desencadeamento ou a perpetuação de quadros ansiosos e depressivos mais graves. Além de reforçar a importância da psicoterapia no tratamento do TAG em qualquer faixa etária, essas informações devem ser levadas em conta na escolha do tratamento farmacológico do paciente idoso. Por exemplo, medicamentos antidepressivos são particularmente indicados nesses indivíduos tanto pela comorbidade com a depressão quanto pela melhor tolerância clínica de vários desses compostos.
Tratamento O tratamento do TAG é feito atualmente pela combinação do uso de medicamentos e de alguma forma de psicoterapia. Além de reduzir os sintomas físicos da ansiedade e de diminuir a reatividade fisiológica ao estresse, medicamentos, como os antidepressivos, parecem facilitar o processo de revisão de atitudes e de formas de pensar que são o cerne da intervenção psicoterapêutica.
Tratamento farmacológico O tratamento farmacológico do TAG é atualmente baseado no uso de antidepressivos inibidores seletivos da recaptura da serotonina (conhecidos como SSRI) e inibidores conjuntos da recaptura de serotonina e noradrenalina (SNRI). Essas classes de antidepressivos têm gradativamente substituído os inibidores da monoamino-oxidase (IMAO) e os antidepressivos tricíclicos em razão de melhor tolerabilidade, segurança clínica e menor incidência de efeitos colaterais52•53 . A clomipramina (um antidepressivo tricíclico), no entanto, ainda se constitui numa importante opção para o controle da ansiedade em diversos pacientes, especialmente quando usada em doses baixas. Os principais compostos do tipo SSRI avaliados no tratamento do TAG são sertralina, paroxetina, citalopram e fluoxetina, todos com evidências em estudos duplo -cego controlados de uma resposta superior a placebo. Além destes, a duloxetina e a venlafaxina também tiveram seu uso aprovado no tratamento da ansiedade 54• A Tabela III apresenta os principais tipos de antidepressivos usados no tratamento do transtorno de ansiedade generalizada. Os antidepressivos têm se firmado como primeira escolha no tratamento do TAG por algumas razões. Em primeiro lugar, naturalmente, vem a sua eficácia clínica no controle dos sintomas físicos e psíquicos da ansiedade. Segundo, esses medicamentos apresentam perfil de efeitos colaterais bastante favorável, que proporciona con-
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Principais antidepressivos utilizados no tratamento do TAG
lnibidores seletivos da recaptura de serotonina
lnibidores da recaptura de serotonina e noradrenalina
Antidepressivos tricíclicos
Agente
Dose
Efeitos colaterais mais comuns
Citalopram
20-60 mg/dia
Náuseas, vômitos, dor abdominal, diarreia, sudorese, cefaleia, insônia, tremores.
Escitalopram
10-20 mg/dia
Náuseas, vômitos, dor abdominal, diarreia, sudorese, cefaleia, insônia, tremores.
Fluoxetina
20-60 mg/dia
Insônia e agitação mais frequentes, náuseas, vômitos, dor abdominal, diarreia, sudorese, cefaleia, insônia, tremores.
Paroxetina
20-60 mg/dia
Sedação, náuseas, vômitos, dor abdominal, diarreia, sudorese, cefaleia, insônia. tremores.
Sertralina
50-200 mg/dia
Náuseas, vômitos, dor abdominal, diarreia, sudorese, cefaleia, insônia, tremores.
Duloxetina
30-60 mg/dia
Náuseas, insônia, tintura, boca seca, cefaleia. Atenção: não recomendada em caso de insuficiência hepática.
Venlafaxina
75-300 mg/dia
Náuseas, insônia, tintura, boca seca, cefaleia, sudorese, aumento da pressão arterial.
lmipramina. clomipramina
10-300 mg/dia
Sedação, hipotensão postura!, boca seca, constipação, taquicardia, visão turva, retenção urinária.
forto maior ao paciente durante o período de manutenção da droga. Terceiro, esses medicamentos não estão associados ao risco de abuso e dependência, como os benzodiazepínicos, por exemplo, não causando sedação ou prejuízos cognitivo-motores. Por fim, as altas taxas de comorbidade entre o TAG e a depressão fazem com que esse tipo de tratamento seja frequentemente eficaz para ambos os problemas52 . Os benzodiazepínicos (BDZ) são uma classe de medicamentos classicamente indicada para o controle agudo da ansiedade. O início rápido de ação contrasta com a latência para início da resposta terapêutica associada aos antidepressivos. Essa característica de compostos como alprazolam, clonazepam, bromazepam e lorazepam os torna muito úteis no controle rápido de crises ansiosas, mas o risco de dependência, os efeitos sedativos e os prejuízos sobre o desempenho cognitivo, principalmente atenção e memória, limitam seu uso no controle de longo prazo da ansiedade. Os BDZ são frequentemente utilizados em associação com os antidepressivos no início do tratamento do TAG, sendo retirados lentamente após o controle dos sintomas55 • A buspirona, um agonista de receptores de serotonina do tipo 5-HTla, também é uma opção para o tratamento da ansiedade. A ausência de efeitos sedativos e de risco para dependência está entre suas vantagens, mas existem relatos de redução de seu efeito terapêutico em pacientes com uso prévio de BDZ52 . A baixa eficácia no controle de ataques de pânico e de sintomas depressivos também limita seu uso em pacientes com essas comorbidades. Existem evidências recentes de que medicamentos anticonvulsivantes possam também ter efeito terapêutico sobre a ansiedade. A pregabalina, cuja atividade parece estar associada à sua ação sobre a proteína a2- d em ca-
nais de cálcio voltagem-dependentes, tem seu uso liberado para o tratamento de crises convulsivas parciais, neuropatia periférica do diabetes, nevralgia pós-herpética e fibromialgia56. 59 . Estudos iniciais sugerem um início rápido de ação que poderia ser útil no controle agudo da ansiedade de forma semelhante aos BDZ, mas com melhor perfil de tolerância em longo prazo. Efeitos colaterais como sonolência, tontura e ganho de peso têm sido relatados em pacientes tratados com doses altas. As evidências acerca da eficácia da pregabalina no tratamento de longo prazo do TAG ainda são parciais e estudos mais completos ainda são aguardados. Neurolépticos atípicos, como a olanzapina e a risperidona, têm sido testados também em casos com má resposta a outros tratamentos. A olanzapina mostrou efeitos sedativos e ganho de peso significativos e a risperidona está associada a maior ocorrência de acatisia em doses maiores, sintoma que pode se confundir com a ansiedade. Tratamento farmacológico do paciente idoso
Em contraste com a quantidade de estudos sobre o tratamento farmacológico do TAG em adultos jovens, existem muito poucos dados disponíveis sobre o tratamento de indivíduos idosos60 • Assim como em jovens, os antidepressivos são a primeira escolha para o tratamento da ansiedade nessa faixa etária. O uso de compostos tricíclicos, especialmente em doses mais altas, deve ser precedido de uma avaliação cardiológica mais cuidadosa em razão de possíveis efeitos sobre a condução cardíaca e a indução de hipotensão postura!, especialmente quando usados juntamente de anti-hipertensivos. Como já discutido, estados mistos com sintomas ansiosos e depressivos simultâneos ocorrem mais fre-
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quentemente em idosos, o que torna mais raro um diagnóstico isolado de TAG61. Essa alta taxa de comorbidade justifica o uso de antidepressivos nesses pacientes, especialmente a sertralina e o citalopram, que apresentam menor risco de interação farmacológica em relação à fluo . . xetma e a' paroxetma. O uso de BDZ em idosos é especialmente problemático. Benzodiazepínicos prejudicam o controle motor, o equilíbrio e a manutenção da postura, o que aumenta ainda mais o risco de quedas. Além disso, seus efeitos sobre a atenção e a memória podem levar à piora adicional dessas funções psíquicas, que se somam aos prejuízos graduais próprios do envelhecimento. Duração do tratamento farmacológico
Os sintomas de TAG costumam ser duradouros em razão de relação com traços de temperamento e estilos cognitivos que tendem a facilitar recaídas ao longo da vida. O uso em longo prazo de medicamentos pode ser benéfico para muitos pacientes. Embora o uso conjunto de medicamentos e de psicoterapia tenha bons resultados em períodos mais longos de observação, muitos indivíduos parecem preservar maior facilidade para gerar ocorrência de sintomas físicos ligados a situações que deveriam provocar respostas mais brandas. O controle dessa tendência pode justificar o uso prolongado de medicamentos. A manutenção de doses relativamente baixas de antidepressivos também pode evitar outros riscos para a saúde, como somatizações, busca frequente de atendimenta médico e realização de exames diagnósticos além do necessário. No indivíduo idoso, o uso de antidepressivos por tempo prolongado pode, além de propiciar controle mais eficaz da ansiedade, contribuir para a prevenção de episódios depressivos62,63 •
Psicoterapia A psicoterapia cognitivo-comportamental (TCC) é eficaz no tratamento do TAG e tem sido considerada a primeira escolha para esses casos64,65. Num estudo de metanálise recente, Hunot et al. 66 revisaram 25 artigos publicados envolvendo um total de 1.305 pacientes com TAG tratados por diferentes técnicas cognitivo-comportamentais. Essas técnicas mostraram -se consistentemente superiores quando comparadas ao não uso de psicoterapia (pacientes em fila de espera aguardando tratamento, p. ex.). As técnicas mais utilizadas incluem a dessensibilização por autocontrole, automonitoramento de estados mentais e físicos e o relaxamento muscular progressivo, técnicas utilizadas de forma combinada com o tratamento farmacológico ou associadas entre si. Técnicas de exposição são menos úteis no tratamento do TAG em razão do caráter inespecífico e pervasivo das experiências ansiosas, o que dificulta a identificação de fontes isoladas de estresse. Técnicas de controle respiratório aplicáveis em
diferentes situações cotidianas podem ser particularmen' . para essas pessoas. te utets Borkovec et al. 67 compararam a eficácia da terapia cognitiva, do relaxamento com dessensibilização por autocontrole e uma combinação de ambas as técnicas no tratamento de pacientes com TAG. A melhora dos sintomas ansiosos e depressivos manteve-se por um período de dois anos. As técnicas se mostraram igualmente eficazes, sugerindo que todas elas apresentem elementos complementares que contribuem para o resultado final, em especial as mudanças induzidas pelo próprio relacionamento terapêutico e o tempo dedicado à modificação da forma de pensar e de agir. A psicoterapia realizada em pequenos grupos também parece ser eficaz nesses casos, talvez pela relevância das preocupações acerca do julgamento dos outros e pela importância dada à percepção de aceitação social observada no TAG68 . Embora as evidências atuais apontem para uma eficácia da TCC no tratamento da ansiedade generalizada, a intensidade desse efeito parece ser menor do que a observada em outros transtornos ansiosos69 . Alguns pontos parecem ser essenciais para garantir a eficácia desse tipo de abordagem: treino para a identificação e diferenciação dos estados emocionais mais intensos, melhora da aceitação da experiência emocional, redução das estratégias de esquiva de preocupações e de situações de conflito, melhora da capacidade de tomar decisões e do uso de informações de conteúdo afetivo como guia de comportamentos, especialmente de relacionamentos interpessoais69 . Psicoterapia da ansiedade em idosos
Ayers et al. 46 realizaram um levantamento sobre as evidências atualmente disponíveis quanto à eficácia da psicoterapia no tratamento do TAG em indivíduos idosos. Dezessete estudos foram identificados e evidências da eficácia de diferentes tipos de psicoterapia foram encontradas. Nove estudos encontraram resultados da eficácia da terapia cognitivo-comportamental. Três estudos encontram resultados positivos também para o uso de técnicas puramente cognitivas, especialmente quando associadas a técnicas de relaxamento aplicadas em grupo. Em relação ao treinamento de relaxamento, quatro estudos que envolviam pacientes idosos com TAG mostraram resultados significantemente positivos com técnicas que variam da meditação, da respiração profunda e da educação sobre tensão e estresse. Técnicas que envolviam relaxamento em imaginação mostraram-se equivalentes àquelas que envolviam relaxamento real. Adultos idosos parecem se beneficiar especialmente da junção de discussões objetivas sobre os problemas mais comuns dessa faixa etária com sessões de relaxamento muscular e atividade física moderada em decorrência da frequência de sintomas ligados ao sistema musculoesquelético nessa população46 •
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Considerações finais Como visto ao longo deste capítulo, o transtorno de ansiedade generalizada é visto hoje como um problema clínico muito frequente, determinado por um conjunto de disposições orgânicas, traços de personalidade e temperamento que interagem e parecem se reforçar ao longo do desenvolvimento da pessoa. Essa conjunção de fatores causais faz com que o TAG demande uma combinação de medicamentos e psicoterapia para o seu efetivo tratamento. O uso prolongado de antidepressivos em doses muitas vezes menores do que aquelas necessárias para o tratamento da depressão, ajustes no estilo de vida, intervenções psicoterapêuticas específicas e técnicas de relaxamento formam o núcleo central do tratamento desse transtorno. Embora ainda se saiba pouco sobre a apresentação clínica, prognóstico e tratamentos específicos para o TAG em adultos idosos, pode-se dizer com relativa segurança que esse transtorno tem grande impacto sobre a saúde e a qualidade de vida dessa população e certamente irá demandar atenção crescente em termos de políticas públicas de saúde. Questões
b) Antidepressivos inibidores seletivos da recaptura de serotonina são medicamentos de primeira escolha nesses casos. c) A psicoterapia pode ser útil, independentemente da idade do paciente, especialmente após a melhora clínica com o uso de antidepressivos. d) Benzodiazepínicos podem ser usados nas fases iniciais do tratamento, em doses baixas e com especial atenção aos efeitos sedativos. e) Técnicas cognitivas específicas, focalizadas em aspectos práticos da vida do paciente, podem ser úteis no tratamento da ansiedade nessa faixa etária.
4. Sobre o transtorno de ansiedade generalizada, pode-se dizer a) b) c) d) e)
que: É sempre secundário à depressão. É frequentemente uma consequência do hipertireoidismo. É fruto de uma experiência traumática. Não responde à psicoterapia. Frequentemente se associa à depressão.
5. Sobre a fisiopatologia do transtorno de ansiedade generalizada, as seguintes afirmativas estão corretas, exceto: a) Parece ser um distúrbio puramente dos sistemas de neurotransmissão ligados à serotonina. b) Parece envolver vários tipos de mecanismos de neurotrans'
N
miSSa O.
1. A respeito do uso de benzodiazepínicos no tratamento do transtorno de ansiedade generalizada no idoso, pode-se afirmar que: a) São drogas de primeira escolha devido à rapidez para início de seus efeitos. b) São equivalentes à buspirona em termos de efeitos colate. ra1s. c) Devem ser evitados pelo aumento do risco de quedas. d) Podem desencadear processos demenciais. e) Potencializam o efeito de inibidores seletivos de recaptura da serotonina.
2. Sobre o transtorno de ansiedade generalizada, pode-se afira) b) c) d)
mar que: Não ocorre em adultos jovens. apenas em idosos. Pode facilitar o abuso de álcool e drogas. É quase sempre uma fase prodrômica da esquizofrenia. Seu diagnóstico é definido pela presença de ataques de pâ.
niCO.
e) Não se devem usar medicamentos em seu tratamento, apenas a psicoterapia.
3. Sobre o tratamento de um paciente idoso com sintomas simultâneos de depressão maior e ansiedade generalizada, todas as afirmações seguintes estão corretas, exceto: a) Deve-se evitar o uso de qualquer tipo de medicação por causa dos riscos de complicações clínicas próprias dessa faixa etária.
c) Embora esteja associado a um risco genético aumentado, mecanismos psicodinâmicos parecem relevantes para sua gênese. d) Alterações na regulação do funcionamento do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal parecem ter um papel relevante na gênese dos sintomas. e) Parece haver um paralelo entre mecanismos comportamentais de defesa em outras espécies animais e a ansiedade em humanos.
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Transtorno do Ajustamento, Transtorno do Estresse Agudo e Transtorno do Estresse Pós-traumático Fe lipe Co rchs Paula Approbato de Olive ira Sara Mata Borges Bottino Paulo Jannuzzi Cunha Sandra Scivo letto
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 807
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Transtornos de estresse agudo e de estresse pós-traumático, 808 Neurobiologia do estressse, 81 O Estresse e cérebro, 81 O Psiconeuroendocrinologia, 81 O
1. Entender a neurobiologia do estresse.
Neurotransmissores, 81 O Neuroanatomia, 811 Variações individuais nas respostas ao trauma, 813 Alterações cognitivas e alterações do desenvolvimento em crianças vítimas de estresse, 814
2. Conhecer os transtornos de estresse agudo e de estresse pós-traumático. 3. Saber como se dá o tratamento e a prevenção de transtornos de estresse. 4. Conhecer as políticas públicas para a implantação de prevenção e tratamento de transtornos de estresse.
Tratamento e prevenção, 814 Intervenções no traumatizado agudo, 814 Tratamento do transtorno de estresse pós-traumático, 815 Intervenções por terapia no traumatizado crônico com TEPT, 816 Políticas públicas para a implantação de prevenção e tratamento, 817 Minicaso clínico, 818 Considerações finais, 821 Questões, 821 Referências bibliográficas, 821
Introdução O termo estresse, da forma como usamos hoje em psiquiatria e psicologia, foi desenvolvido por Hans Selye, para caracterizar a resposta de adaptação do organismo às demandas ambientais a ele impostas, processo inicialmente designado como "síndrome de adaptação geral" 1• Falar em estresse significa falar da interação de um organismo com seu ambiente, tendo de um lado estímulos que exigem mudança e adaptação e de outro as respostas do organismo a tais estímulos. Os estímulos que produzem estresse não são necessariamente aversivos, entretanto a duração do estímulo e as respostas
dos indivíduos às situações estressaras podem ter repercussões psíquicas diferentes, levando a sofrimento psíquico (distress) e transtornos psiquiátricos. A título de ilustração, pode-se pensar em situações nas quais estamos diariamente expostos, tais como congestionamentos, problemas conjugais e profissionais, contas a pagar etc. Mesmo situações aparentemente desprovidas de estresse se revelam estressaras em uma análise mais c uidadosa. O nascimento de um filho ou uma promoção no trabalho, por exemplo, podem vir carregados de aumentos de responsabilidades e mudanças em repertó rios de vidas que são, em muitos casos, extremamente desgastantes e associadas a efeitos deletérios sobre o organismo, chegando ao desenvolvimento de psicopatologias em algumas pessoas. Quando falamos de estresses agudos e mais intensos, podemos ter consequências mais complexas e diferentes das acima descritas. Acontecimentos como sequestro, violência sexual, acidentes automobilísticos entre outros, são chamados de eventos traumáticos agudos e podem evoluir para condições psiquiátricas específicas que vêm sendo chamadas por alguns grupos de "espectro pós-traumático" 2 • Essas condições são reações diretas e específicas a eventos traumáticos e que cursam com sintomatologia semelhante,
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variando basicamente na duração e intensidade dos sintomas. Num extremo do espectro estão as reações agudas ao estresse, que duram de algumas horas a dias, seguidas pelo transtorno do estresse agudo (TEA), transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) agudo ou crô nico, e no outro extremo estão as modificações persistentes da personalidade, secundárias a um evento traumático. Neste capítulo, serão abordados os efeitos dos eventos estressares no desenvolvimento de transtornos psiquiátricos, além de alterações do funcionamento cerebral e neuropsicológico em crianças submetidas a estresse, bem como serão apresentadas as estratégias terapêuticas e preventivas em termos de saúde pública.
Transtornos de estresse agudo e de estresse pós-traumático O transtorno de estresse agudo (TEA) de acordo com a quarta edição revisada do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais3 foi desenvolvido para caracterizar as reações agudas que ocorrem no mês seguinte à exposição ao evento traumático e também com o propósito de identificar pessoas com risco de desenvolver o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT)4 . De acordo com os critérios do DSM-IV-TR, para o indivíduo ser diagnosticado com o transtorno de estresse agudo é necessário que tenha sido exposto a um evento traumático grave, descrito como: "Experimentar ou testemunhar situações de morte, risco de morte ou de graves danos à própria integridade física ou a de terceiros': e que essa experiência tenha sido vivenciada com medo intenso, impotência ou horror. Enquanto o indivíduo vivencia o evento, ou logo após, ele pode apresentar sintomas dissociativos, tais como sensação de distanciamento, redução da consciência quanto aos estímulos que o rodeiam, desrealização, despersonalização e incapacidade de recordar algum aspecto importante do trauma. No caso do TEA, para fins diagnósticos, é exigida a presença de pelo menos três desses sintomas dissociativos durante ou logo após o evento traumático. Segundo o DSM-IV-TR, além dos sintomas dissociativos, o sujeito precisa apresentar a chamada tríade psicopatológica do TEPT, caracterizada pela presença de três sintomas, pelo menos um em cada . grupo a segmr: 1) re-experimentação patológica e intrusiva do even, . to traumatlco; 2) esquiva de situações relacionadas ou que lembrem o trauma, que incluem o entorpecimento emocional, manifestado por diminuição do interesse por atividades, isolamento social e afeto empobrecido; e 3) hiperexcitabilidade (Tabela I) 3 • Esses sintomas devem interferir significativamente na vida do indivíduo. O transtorno tem como ponto limitante a duração deles, pois persistem por, no mínimo, dois dias e, no máximo, quatro semanas. 10
Tabela I
Tríade psicopatológica do TEPT e TEA
1) Re-experimentação (1 ou mais) • Memórias intrusivas e desagradáveis (em crianças, podem ser observadas em brincadeiras repetitivas com temas relacionados ao trauma); • Pesadelos relacionados ao evento (em crianças, pode ser difícil identificar o conteúdo dos pesadelos); • Agir ou sentir como se o evento traumático estivesse ocorrendo novamente: sentimento de revivência, ilusões, alucinações, flashbacks entre outros (em crianças, pode ocorrer reencenação do evento); • Sofrimento intenso ou reatividade fisiológica quando exposto a lembranças do trauma; 2) Esquiva/entorpecimento (3 ou mais) • Esforços para evitar pensamentos, sentimentos ou conversas relacionadas ao trauma; • Esforços no sentido de evitar atividades, locais ou pessoas que ativem recordações do trauma; • Incapacidade de recordar algum aspecto importante do trauma; • Redução acentuada do interesse ou da participação em atividades significativas; • Sensação de distanciamento ou afastamento em relação a outras pessoas; • Faixa de afeto restrita (p. ex., incapacidade de ter sentimentos de carinho); • Sentimento de um futuro abreviado (p. ex., não espera ter uma carreira profissional, casamento, filhos ou um período normal de vida). 3) Hiperexcitabilidade (2 ou mais) • Dificuldade em conciliar ou manter o sono; • lrritabilidade ou surtos de raiva; • Dificuldade em concentrar-se; • Hipervigilância; • Resposta de sobressalto exagerada. Modificada do DSM-IV-TR.
A 10a edição da Classificação Internacional de Doenças" diferencia a reação aguda ao estresse e a caracteriza por manifestar-se logo após o evento traumático. Após o indivíduo ter sido exposto a um estressar mental ou físico excepcional, iniciam-se imediatamente, dentro de uma hora, os sintomas: um estado de "atordoamento': acompanhado de tristeza, ansiedade, raiva e desespero. Após a exposição ao evento traumático, é necessária a presença de estupor dissociativo ou de diferentes sintomas, tais como: retraimento da interação social, diminuição da atenção, desorientação aparente, raiva ou agressão verbal, desespero, desesperança, hiperatividade inadequada e pesar incontrolável e excessivo. Quando o estressor é transitório e pode ser aliviado, há uma redução dos sintomas, em um período inferior a oito horas. Caso a exposição ao estressar continue, os sintomas devem começar a diminuir em 48 horas. O conceito de evento traumático era originalmente descrito no DSM-III como experiências catastróficas, raras e externas, que diferia das experiências comuns como o luto, doença crônica, perdas comerciais ou conflitos ma-
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trimoniais5. Apenas eventos muito específicos e de clara repercussão sobre pessoas ou grupos eram considerados no DSM-111 como experiências traumáticas: tortura, combate militar, aprisionamento em campos de concentração, desastres naturais, acidentes automobilísticos, estupro, agressão física, violência doméstica, entre outros6 . No entanto, as pesquisas subsequentes demonstraram que os eventos traumáticos não eram raros, nem preponderantemente externos, com taxas elevadas, de 40 a 70% na população americana7 . Um estudo norte-americano, o National Comorbidity Survey (NCS), constatou que, naquele país, 50% das pessoas experimentaram uma vivência traumática no decorrer de suas vidas, especialmente entre os homens (60,7%).8 Em estudo realizado no Brasil, 81,5% dos pacientes entrevistados (n =54), em um serviço de atenção primária de uma comunidade pobre da periferia de Porto Alegre, relataram exposição a um evento traumático, e 59,3% preencheram critérios para TEPT, ao longo da vida. As variáveis frequentemente associadas ao TEPT são as seguintes: gênero feminino, condição so cial menos favorecida, baixo nível educacional e intelectual, antecedentes psiquiátricos e história extensa de eventos de vida estressantes no passado6•9 . O TEPT é definido como urna síndrome que ocorre após um evento traumático (critério A), com a presença de pelo menos um sintoma de re-experimentação, também chamado de intrusão (critério B), três sintomas de evitação e/ou entorpecimento (critério C) e dois sintomas autonômicos de hiperstimulação (critério D). Esses sintomas têm de persistir por quatro ou mais semanas (critério E). A intensidade desses sintomas deve causar prejuízo no funcionamento social ou ocupacional, ou em pelo menos uma área importante da vida do indivíduo (critério F). O evento traumático é persistentemente revivenciado na forma de imagens, pensamentos, percepções, sonhos ou recordações angustiantes, além de intensa reatividade psicológica ou fisiológica, quando da lembrança do evento. Esses sintomas fazem parte do critério de "re-experimentação". A esquiva persistente de estímulos associados com o trauma - evitar pensamentos, sentimentos, conversas, locais ou pessoas, e o entorpecimento da resposta, sensação de distanciamento, redução do interesse em atividades significativas, - devem estar presentes desde o trauma, e constituem os sintomas do critério de "evitação'~ Os sintomas de excitabilidade aumentada, como dificuldade em concentrar-se, conciliar ou manter o sono, irritabilidade, resposta de sobressalto exagerada, também devem estar presentes desde o trauma, constituindo o critério de "hiperestimulação'~ Os sintomas podem surgir logo após o trauma, e se resolverem espontaneamente. Nesses casos, o reaparecimento apos um ano e comum, assim como os casos em que os smtomas somente aparecem apos seis ou mrus meses depois do evento traumático, ou seja, o retorno dos sintomas de TEPT é bastante comum, mesmo em quadros em que aparentemente há cura. O mais comum é que surjam •
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tardiamente, até meses depois do acontecimento (Mello e Fiks, 2006). A diferença básica entre o TEPT e o TEA está na duração dos sintomas, que no TEA deve durar entre dois dias e um mês e no TEPT mais de um mês. Além disso, para o diagnóstico de TEA são necessários ao menos três sintomas dissociativos (dentre entorpecimento emocional, redução na percepção do ambiente, desrealização, despersonalização e amnésia dissociativa), que podem também ocorrer no TEPT, mas não são necessários para esse diagnóstico. Para definir TEPT, o sujeito deve ter vivenciado um evento traumático conforme descrito anteriormente e a tríade psicopatológica (Tabela I). Esses sintomas têm de persistir por quatro ou mais semanas (critério E: esta terminologia não está na tabela). A intensidade desses sintomas deve causar prejuízo no funcionamento social ou ocupacional, ou em pelo menos uma área importante da vida do indivíduo (critério F - idem). Essas regras podem ser excessivamente restritivas, considerando que muitos pacientes manifestam quase todos os sintomas exigidos nos critérios do DSM-IV-TR para o TEPT, mas ainda assim apresentam sofrimento clinicamente significativo e prejuízo funcional 12 . Stein et al. investigaram os sintomas em amostras comunitárias e observaram que os indivíduos que apresentavam sintomas de TEPT, mas sem preencher todos os critérios para o transtorno (TEPT subsindrômico) apresentaram mais pro blemas sociais, dificuldades com o emprego e familiares. Em outro estudo, avaliaram as mulheres de uma organização para manutenção da saúde (Health Maintenance Organization) e encontraram qualidade de vida pior nas mulheres com TEPT subsindrômico 13 • Em uma revisão de trabalhos sobre TEPT e câncer, foram observadas porcentagens de até 50% com diagnóstico de TEPT subsindrômico 14 • Em nosso meio, um estudo foi conduzido para investigar a prevalência e o impacto do TEPT na qualidade de vida de mulheres com câncer de mama. Os resultados identificaram que 81% das mulheres apresentaram sintomas de estresse pós-traumático clinicamente significativo, destas 17,9% foram diagnosticadas com TEPT e 24,5% com TEPT subsindrômico. A comorbidade entre ansiedade e depressão em mulheres com TEPT e TEPT subsindrômico foi alta, além de elas apresentarem os piores escores em todos os domínios da qualidade de vida, comparadas àquelas sem TEPT, mesmo controlando para a influência das variáveis sociodemográficas e clínicas 15. Apesar da alta prevalência do TEPT subsindrômico, os códigos de classificação ainda não especificaram critérios diagnósticos, o que tem levado a diferentes propos tas. Alguns autores consideram a presença de pelo menos um dos sintomas de cada grupo citado na Tabela P 2 , enquanto outros propõem que os sintomas devem preencher dois dos três critérios do DSM-IV 16 . O conceito de TEPT parcial foi proposto por Mylle e Maes (2004) para pacientes que apresentam sintomas clinicamente signifi-
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cativos, com repercussões no funcionamento psicosso cial, em um período inferior a um mês, considerando que, embora não preencham o critério de tempo (F), podem necessitar de um tratamento profissionaP 7 • O TEPT está associado à problemas de ajustamento no trabalho e no ambiente familiar, ao prejuízo físico e redução da qualidade de vida8, 18 . Existem evidências de que os indivíduos com TEPT subsindrômico também apresentam sofrimento e prejuízo clinicamente significativo 17 .
Neurobiologia do estressse Pela perspectiva neurobiológica, o TEPT pode ser entendido como um conjunto de alterações orgânicas e comportamentais persistentes e induzidas por eventos estres sares severos, mediados por mecanismos de aprendizagem, extinção, sensibilização e reatividade aos fatores estressares. É importante frisar que os sintomas observados no TEPT são, na verdade, respostas adaptativas a uma situação aversiva ou os "efeitos colaterais" de tais respostas adaptativas. Ou seja, é desejável que uma pessoa exposta a um evento que ameace sua existência aprenda a evitá-lo e, em uma análise selecionista, tais respostas aumentam a chance de sobrevida imediata, mesmo que isso tenha um custo de maior morbidade e mortalidade a longo prazo, uma vez que esta estratégia aumenta a chance de reprodução. Aumento de atividade adrenérgica, por exemplo, aumenta a chance de sobrevivência em um primeiro momento ao melhorar a performance em situações de luta ou fuga e ajudar a memorizar o risco, o que melhora a esquiva em situações semelhantes futuras. Entretanto, na vida real, tal memorização excessiva, que ajuda a evitar riscos em situações semelhantes futuras, corresponde aos sintomas de reexperimentação persistente, como pesadelos e memórias intrusivas, sintomas extremamente incapacitantes e geradores de sofrimento. Aumento de alerta, da frequência cardíaca: cada um destes está relacionado a um sintoma e, ao mesmo tempo, tem sua função. Qual o limite entre tratar e não tratar? Entre dizer que estamos diante de um transtorno ou não? Traçando um paralelo com a febre, outra resposta adaptativa, mas que em algum momento pode ser mais prejudicial do que benéfica: qual seria o 37,8° ou 38,5° que justificaria uma intervenção médica? A preocupação da psiquiatria praticamente sempre está no prejuízo e sofrimento causados pela intensidade e duração observada em uma minoria de ' . pessoas expostas a eventos traumatlcos, o que sugere que tal grupo de pessoas apresenta uma particular dificuldade em se adaptar à nova condição, cessado o trauma. Por estes motivos, o que define TEPT não são apenas tais respostas, mas sua intensidade e duração. Diversos são os sistemas orgânicos envolvidos no TEPT, e os mesmos serão revisados a seguir. Este raciocínio será essencial na compreensão de intervenções preventivas e terapêuticas experimentais discutidas adiante neste capítulo.
Estresse e cérebro Psiconeuroendocrinologia Um dos sistemas orgânicos que mais se sabe estar alterado no TEPT é o do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA). Embora seja conhecida a ativação deste eixo em resposta a estressares, estudos sugerem uma paradoxal hipocortisolemia em pacientes com TEPT, apesar de estes dados não serem consistentes na literatura. Além disso, doses baixas de dexametasona em pacientes com TEPT sugerem que a hipocortisolemia observada neste transtorno ocorre devido a uma hiper-sensibilidade do eixo HHA ao feedback negativo dos glicocorticoides. Níveis elevados do fator liberador da corticotropina ( CRF) no líquido cerebroespinal (LCR), uma resposta achatada de liberação de adrenocorticotropina (ACTH) e estimulação com CRF em pacientes com TEPT dão suporte a dicional a esta hipótese e adicionam produção excessiva de CRF e insensibilidade dos receptores hipofisários para o CRF nos pacientes com este transtorno. Como um todo, estes dados sugerem hipersensibilidade do eixo HHA a estressares nos pacientes com TEPT 19 . De fato, estudos prospectivos mostram que baixos níveis de cortisol na época do trauma predizem evolução para TEPT, sugerindo que hipocortisolemia seja um fa tor de risco preexistente causado por variáveis (epi)genéticas e de história de vida ou, mais provavelmente, uma combinação destes fatores. É proposto que o cortisol teria um efeito inibitório sobre respostas ao estresse de liberação de CRF e noradrenalina (NA) 19,20. A NA, por sua vez, aumenta a solidificação de memórias e o CRF parece participar de processos como o condicionamento de respostas de medo condicionadas, resposta de sobressalto aumentada, hiper-reatividade e sensibilização de exposição a estressares. O estado de hipocortisolemia ob servado no TEPT deixaria desinibidas tais respostas orgânicas ao trauma, bem como seus correlatos comportamentais e cognitivos.
Neurotransmissores Além das alterações neuroendócrinas, os sistemas de neurotransmissão sináptica também se mostram intimamente relacionados com a neurobiologia do TEPT. A começar pelas catecolaminas, é marcante no TEPT uma hiperatividade simpática sustentada, demonstrada pela excreção urinária aumentada de NA e adrenalina e uma reduzida ligação aos receptores alfa-2 adrenérgicos plaquetários observada em pacientes com este transtorno. Por outro lado, a administração de drogas que estimulam a liberação de NA em pacientes com TEPT precipitam sintomas como jlashbacks e hiperexcitabilidade. Em conjunto, estes dados sugerem importante participação da NA, particularmente nos sintomas do grupo de reexpe-
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rimentação e hiper-reatividade. De fato, estudos demonstram que uma maior atividade simpática medidas por frequência cardíaca elevada e excreção de adrenalina no momento do trauma são importantes preditores de evolução para TEPT. Evidências também existem para o envolvimento do sistema dopaminérgico em pacientes com TEPT. Excreção urinária aumentada também deste neurotransmissor foi observado nestes pacientes. A dopamina (DA) é liberada na região mesolímbica em resposta ao estresse o que, por sua vez, tem efeitos sobre o funcionamento do eixo HHA. A DA também está intimamente relacionada aos processos de recompensa e reforçamento, os quais mostram-se alterados em pacientes com TEPT 19. Apesar destas evidências sobre o papel das catecolaminas no TEPT, a serotonina (5 -HT) talvez seja o neurotransmissor mais bem estudado neste transtorno. Em um estudo de Southwick et al. 21, realizado com veteranos da guerra do Vietnã com TEPT, o m -chlorophenylpiperazine (m-CPP), utilizado como prova serotonérgica, causou ataques de pânico e aumento de sintomas ansiosos e de TEPT em 1/ 3 dos indivíduos, frequências maiores do que as observadas no grupo controlé 1. Ademais, evidências de atividade serotonérgica alterada após trauma ou estresse severo em humanos e animais 22·23 sugerem que o papel desse neurotransmissor não se restringe à fisiopatologia do TEPT, uma vez que participa do processo de respostas aos estímulos aversivos de uma forma mais ampla24,2s. Essa hipótese é compatível com uma teoria emergente que defende que os ISRS aumentariam a resiliência a eventos aversivos ambientais26 e que a 5HT teria um papel fundamental nesse processo27. O incremento na neurotransmissão serotonérgica central causada pelos ISRS aumentaria a capacidade do paciente em lidar com o estresse diário, bem como diminuiria o impacto negativo de lembranças relacionadas ao evento traumático28. Em conjunto, os achados sugerem que a 5-HT exerce um papel geral mais amplo na regulação das respostas à estimulação aversiva e que tal efeito se daria por um aumento de sua concentração na fenda sináptica29, particularmente importante em regiões do tronco cerebral e amígdala30 . Outra possibilidade é que o aumento de 5-HT induzido pelos ISRS atue indiretamente por meio da diminuição dos níveis do CRP 1·32 . Além da interação com o eixo HHA, a 5-HT parece ainda modular a sensibilidade a estressares indiretamente por meio da interação com outros sistemas como os que envolvem a NA e a DA. Os aminoácidos neurotransmissores também parecem estar envolvidos com o TEPT e as respostas ao estresse. O sistema do ácido gama-aminobutírico (GABA), principal neurotransmissor inibitório do sistema nervoso central (SNC), incluindo os receptores benzodiazepínicos (BDZs), é um exemplo. Pacientes com TEPT mostraram redução dos sítios de ligação dos receptores plaquetários para BDZs bem como menor ligação a estes
mesmos receptores em córtex, hipocampo e tálamo. Além disso, sabe-se de modelos animais que envolvem estresse incontrolável (contingência provavelmente envolvida em transtornos como o TEPT), que está associado com alterações neste sistema e sintomas de TEPT. É provável que o sistema gabaérgico normalmente exerça papel inibitório sobre os sistemas do CRF e da NA, mas que, por outro lado, no caso do TEPT, uma deficiência no sistema GABA poderia estar relacionada à hiperatividade destes dois últimos. Especula-se que o sistema do aminoácido excitatório glutamato também estaria envolvido no TEPT. Sabe-se que a exposição a estressares, bem como a administração de glicocorticoides, e a estimulação da NA aumentam a liberação de glutamato no cérebro. Este aminoácido, principalmente por meio da estimulação dos receptores N -metil D -aspartato (NMDA), está relacionado também com os processos de aprendizagem e memória, por meio dos fenômenos de potenciação a longo prazo (LTP) e plasticidade sináptica, ambos intimamente relacionados às respostas e memórias prolongadas, durado ras e intensas a estímulos relacionados ao trauma. Além disso, evidências mais modernas sugerem que a extinção de memórias e respostas traumáticas são um processo de nova aprendizagem mais do que uma quebra de relações ou "esquecimento': conforme já se acreditou em determinado momento. É possível que ocorra uma inibição ativa de conexões sinápticas fortalecidas em regiões como a amígdala durante a formação de memória de medo condicionado, e não o mero enfraquecimento destas conexões. Tal inibição envolve vias glutamatérgicas descendentes, oriundas do córtex pré-frontal. Ademais, o glutamato participa da formação de memórias no hipocampo. Esta atividade é potencializada por estimulação de NA, normalmente aumentada no TEPT. Entretanto, tal estimulação excessiva pode ser neurotóxica, o que explicaria a redução de volume de hipocampo observada neste transtorno 19. Existem ainda evidências de que alterações no sistema opioide endógeno estaria relacionado a sintomas como dissociação, entorpecimento afetivo e fenômenos como a analgesia induzida por estresse observada no TEPT. Além disso, esse sistema exerce um papel inibitório sobre o eixo HHA. De fato, o nível de B-endorfinas no LCR de pacientes com TEPT é aumentado e a resposta do eixo HHA à naloxona é exagerada, sugerindo hiperatividade desse sistema no TEPT, mas são necessários ainda outros estudos que investiguem melhor o papel de cada sistema na etiologia do TEPT 19.
Neuroanatomia Os neurotransmissores e hormônios abordados anteriormente realizam a conexão entre diversas estruturas cerebrais e de outros sistemas do organismo que, por sua vez, também se encontram alterados em anatomia estru-
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tural e funcional em pacientes com TEPT. O achado mais consistentemente demonstrado é um menor volume do hipocampo em relação aos controles. O hipocampo tem função de controle nas respostas ao estresse, memória declarativa, contextualização das respostas condicionadas aos estressores e é uma das regiões mais plásticas do cérebro. Além disso, estudos de neuroimagem mostram uma reduzida atividade de marcadores de integridade neuronal, como o N -acetil aspartato, no hipocampo de pacientes com TEPT o qual, por sua vez, está correlacionada com níveis de cortisoP 9 . O volume reduzido do hipocampo parece estar relacionado com uma maior sensibilidade ao cortisol, picos muito constantes deste hormônio ao longo da vida, estimulação glutamatérgica excessiva no processo traumático e/ou um traço preexistente que aumenta a vulnerabilidade para TEPT. É verdade que estudos com gêmeos monozigóticos em que apenas um deles apresenta TEPT mostram que a média do volume hipocampal dos irmãos sem TEPT também é reduzida e um hipocampo deficiente poderia levar a um prejuízo na reversão da cascata de respostas ao estresse, resistência para extinguir as respostas condicionadas a tais eventos e uma dificuldade para contextualizar estímulos que possam estar relacio nados ao trauma quando estes são apresentados em ambientes seguros. Apesar de estas evidências sugerirem fortemente participação genética nesta predisposição ao TEPT, não se deve esquecer que aspectos da história de vida podem contribuir ou, eventualmente, até explicar por completo em alguns casos, tal volume reduzido do hipocampo, por exemplo. É sabido, a título de ilustração, que história de estresse precoce está relacionado tanto com menor volume do hipocampo quanto com maior predisposição para desenvolvimento de TEPT na idade adulta. Curiosamente, tanto volume reduzido de hipocampo quanto o déficit funcional observados em pacientes com TEPT são revertidos com tratamento bem-sucedido com ISRSs, os quais, por sua vez, demonstraram estimular a neurogênese 19 . A amígdala também parece estar alterada no TEPT. Esta estrutura projeta vias para regiões do tronco encefálico e mesencéfalo que coordenam algumas das respostas autonômicas, endocrinológicas e comportamentais a estressores, principalmente os relacionados a ameaças iminentes. Além disso, projeções para o hipocampo influenciam seu papel na contextualização das ameaças, conforme descrito anteriormente. Acredita-se que seja por meio destes processos que alterações da amígdala participem do TEPT. As alterações de amígdala mais consistentemente observadas neste transtorno são de caráter funcional e constituem hiper-responsividade a estímulos aversivos, relacionados ou não ao trauma, inclusive quando apresentado de forma subliminar ou durante procedimentos de condicionamento. Tal hiper-responsividade da amígdala pode ser causada por fatores genéticos e/ou eventos ocorridos pre-
cocemente na vida do indivíduo, conferindo maior vulnerabilidade ao desenvolvimento de TEPT 19 • Conforme relatado, o córtex pré-frontal (CPF) mediai exerce papel inibitório sobre a amígdala em suas respostas aos estressores. Isso é o que ocorre quando uma resposta aprendida a estressores entra em extinção - as sinapses potencializadas e formadas no condicionamento são inibidas ativamente por vias descendentes oriundas do córtex pré-frontal. De fato, tem sido observado redução no volume do CPF em pacientes com TEPT. Além disso, ovolume do córtex cingulado anterior, uma parte do CPF, apresenta relação inversa com a intensidade dos sintomas de TEPT. Não só o volume desta estrutura está reduzido no TEPT, mas parece existir uma hipoativação desta em resposta a estressores relacionados ao não ao trauma, em pacientes com TEPT. É proposto que uma insuficiência do CPF explique a dificuldade em extinguir as respostas condicionadas ao trauma observadas no TEPT, bem como a hiper-reatividade desta estrutura a estressores, uma vez que estaria dessuprimida pelo CPF. De fato, a extinção de respostas condicionadas a estímulos aversivos está inversamente relacionada com o volume do córtex cingulado anterior. Estudos com gêmeos sugerem que esta redução no volume do CPF é uma característica adquirida nos pacientes com TEPT e não uma condição pré-mórbida e é revertida pelo tratamento bem-sucedido com ISRSs 19 • Outra área neuroanatômica que merece a atenção no TEPT é o corpo caloso (CC), estrutura cerebral responsável por transferir informações de um hemisfério cerebral ao outro, que tende a mostrar-se reduzida nestes pacientes33-35• Conforme explicado, indivíduos com experiências traumáticas sofrem uma liberação constante e intensa de hormônios do estresse (p. ex., cortisol), que interferem de modo negativo na mielinização dos axônios no cérebro, por meio da supressão da divisão das células que produzem mielina (células gliais), o que torna os axônios menos eficientes em conduzir os impulsos nervosos 36 • Alguns autores defendem a ideia de que as alterações em
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Transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) Crescimento do corpo caloso em crianças e adolescentes ao longo das idades. Fonte: De Bellis, et ai. 2003 36• (Reprinted with permission from Elsevier.)
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substância branca ao longo das idades, especialmente em corpo caloso (Figura 1), poderiam estar na base de vários dos sintomas no TEPT, como, por exemplo, os sintomas dissociativos, possivelmente por falhas na transmissão de informações no cérebro 36-37 • As técnicas de imagem de ressonância magnética por tensores de difusão (diffusion tensor imaging; DTI), que permitem o exame da densidade dos feixes de substância branca38, têm evidenciado diminuição da densidade das fibras (jractional anisotropy; AF) e aumento do deslocamento de moléculas de água (mean diffusivity; MD) em substância branca dos pacientes com TEPT, o que corrobora alterações micro-estruturais na integridade neuronal dos pacientes. Jackowski et al. (2008) foram os pioneiros a empregar a técnica de DTI na população de crianças e adolescentes com histórico de traumas emocionais e encontraram AF reduzida em áreas mediais e posteriores do corpo caloso39• C h oi et al. encontraram redução de AF em feixes de substância branca em adultos com histórico de abuso verbal parenta! na infância (AVPI), em associação
com as pontuações nas escalas clínicas (Figura 2) 39 • Observaram-se, ainda, associações entre FA, medidas de linguagem (QI verbal e compreensão) e sintomas psiquiátricos.
Variações individuais nas respostas ao trauma Cada indivíduo exposto a uma experiência traumática irá responder de uma forma diferente. As variáveis que determinam se alguém evoluirá para um quadro psiquiátrico ou não são múltiplas e interagem de forma complexa. Estudos com gêmeos sugerem importante participação de fatores genéticos na evolução para TEPT após exposição a um evento traumático, provavelmente ligadas a variações genéticas relacionadas à DA e SHT. Talvez mais importante para os fins deste livro, entretanto, seja o conhecimento de fatores ontogênicos relacionados a um maior risco de evolução para TEPT. É amplamente demonstrado que estresse precoce, especialmente abuso e negligência, estão intimamente relacionados com maior risco de evolução para TEPT na ida-
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de adulta, incluindo estresse pré-natal. Experimentos prospectivos com animais corroboram tais observações retrospectivas em humanos. A título de ilustração, primatas expostos a condições variáveis de acesso à alimentação e, portanto, um ambiente de cuidados maternos instável e imprevisível, levou estes primatas, quando adultos, a uma hipersensibilidade a estímulos aversivos, com resposta excessiva de liberação de CRF e hipocortisolismo, semelhante ao observado no TEPT. Este panorama coloca acontecimentos da infância em foco para a compreensão das respostas ao estresse que cada indivíduo apresenta19.
Alterações cognitivas e alterações do desenvolvimento em crianças vítimas de estresse A infância e adolescência são períodos cruciais para o processo de maturação do cérebro, por conta das rápidas mudanças microestruturais e alterações na atividade de várias regiões cerebrais41 '42 . No entanto, nota-se que a maturação cerebral continua durante a adolescência e estende se até a fase adulta41'42. Desta forma, o estresse crônico na infância e adolescência pode ser uma das causas de mudanças na estrutura e/ou funcionamento cerebral como as citadas anteiormente. Produção atípica de cortisol, por exemplo, é encontrada em crianças com histórico de maus tratos 43,4\ e também em mulheres que sofreram abuso sexual na infância e não obtiveram tratamento adequado 45. Algumas alterações neuropsicológicas também podem ser encontradas tanto em crianças e adolescentes que foram vítimas de certos tipos de violência, quanto em indivíduos inseridos em ambientes inadequados para o desenvolvimento global de suas capacidades34. Em crianças pré-escolares com histórico de maus tratos, por exemplo, é encontrada defasagem no funcionamento cognitivo geral46. Em outros estudos, foi observada defasagem de aproximadamente 8 pontos no QI relacionada à exposição à violência doméstica47, prejuízos no funcionamento motor e da atenção em crianças com histórico de maus tratos48, e dificuldades nas funções relacionadas à memória, aprendizado e integração visomotora49. Estas observações são importantes tanto para a compreensão de fatores de risco para o desenvolvimento de TEPT na idade adulta quanto para a do TEPT em crianças e adolescentes. Apesar disso e de o diagnóstico ser frequente em crianças e adolescentes que sofreram maus tratos e situações de guerra, poucos estudos realizam a avaliação de sintomas psiquiátricos e de prejuízos neuropsicológicos de maneira integrada34 . Sabe-se, por exemplo, que crianças abusadas sexualmente apresentam pior performance em testes de inteligência, atenção e concentração quando comparadas a crianças sem esse histórico, sendo que 78% foram diagnosticadas com TEPT50. Resultados semelhantes também são encontrados em crianças com histórico de diversos tipos de maus tratos e TEPT51. Além disso, foi encontrada correlação negativa entre pre -
juízo de funções neurocognitivas como inteligência e habilidades acadêmicas e gravidade dos sintomas do TEPT e dos sinais de negligência52. Em adolescentes africanos que sofreram diversos traumas foram encontrados défi cits no funcionamento da memória visual, atenção e formação de conceitos não verbais nos indivíduos com diagnóstico de TEPT, sendo que o mesmo não ocorreu nos indivíduos sem diagnóstico. Esses resultados sugerem que os déficits cognitivos no TEPT podem ser mais fortes do que o impacto do trauma por si só e indica a necessidade de pesquisas que investiguem as consequências do TEPT em longo prazo 52.
Tratamento e prevenção Intervenções no traumatizado agudo O tratamento do TEA se baseia em evidências de que as reações ao trauma sejam naturais e adaptativas53, constituindo -se um problema apenas quando temos persistência e/ou intensidade excessiva destas. Mais de 50% dos adultos tiveram uma experiência traumática ao longo da vida e apenas 15 a 25% deles desenvolverão algum transtorno secundário a tal evento, pouco se sabendo sobre quem serão estas pessoas 54. Acredita-se que este seja o motivo pelo qual se tem observado que intervir sobre tais reações pode não apenas ser inútil como até iatrogênico em alguns casos. Um dos exemplos clássicos dos riscos da intervenção ativa nesta fase está no chamado debriefing. Do ponto de vista psicológico, refere -se à forma de intervenção na qual o indivíduo é submetido precocemente a uma entrevista sistematizada voltada à educação sobre os sintomas que poderão ser vivenciados e técnicas de enfrentamento, além de estímulos à expressão de sentimentos e pensamentos relacionados ao trauma. Apesar de utilizados sistematicamente pelas forças armadas americanas, os estudos têm demonstrado ineficácia da técnica55 ou até mesmo resultados negativos para tal intervenção a longo prazo (13 a 36 meses) em relação ao grupo controle56'57. Outra forma de intervenção psicológica pre ventiva estudada em ensaios clínicos foi a terapia cognitivo-comportamental (TCC). Tais estudos também têm resultados ainda bastante controversos, com eficácia mais evidente apenas nas intervenções iniciadas após a segunda semana após o trauma. De forma geral, as únicas formas de intervenção que mostram algum grau de redução no sofrimento nesta fase e prevenção secundária da evolução para TEPT são medidas gerais de suporte e aconselhamento 58,59. O leitor pode encontrar mais informações em Corchs e Savoia60. Outro exemplo clássico do risco de intervenções nesta fase está nas evidências que sugerem que a prescrição de benzodiazepínicos, frequentemente usados no alívio sintomático da ansiedade e da insônia em pacientes com TEA, seria iatrogênica a longo prazo61 '62, provavelmente
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em razão da inibição da resposta do eixo HPA ao estresse63. Além disso, é possível que a insônia dificulte a solidificação das memórias traumáticas (assim como qualquer outro tipo de memória), de forma que, novamente, tal resposta possa ser adaptativa desejável. O mesmo deve explicar por que qualquer forma de intervenção psicológica possa ser prejudicial, uma vez que falar no assunto pode ajudar na solidificação das memórias do trauma. Estes são os princípios que guiam uma das únicas intervenções que tenham mostrado alguma forma de proteção na evolução de longo prazo no traumatizado, o chamado "primeiro socorro psicológico"64. Caracteriza-se pelo oferecimento de suporte, de uma escuta empática que respeite o limite do que o paciente deseja falar, por meio de orientações e ajuda de ordem prática, como garantir sua segurança e facilitar o acesso às organizações e recursos que possam ajudá-lo a obter suas necessidades mais básicas naquele momento. Além disso, suporte familiar, social e até religioso se mostraram eficazes em melhorar o curso do traumatizado a médio e longo prazo em diversos estudos, principalmente em pacientes que estavam "motivados" a usar essa redé5•66 . Sendo assim, nas primeiras duas semanas pós-trauma as intervenções deveriam ser limitadas e muito mais expectantes e de suporte, aumentando as chances de evolução "natural" do quadro (Tabela II). Uma vez que a avaliação clínica parece ser superior a nenhuma intervenção58•59 , o indivíduo exposto a um evento traumático deve ter sua avaliação inicial num primeiro momento e cerca de 2 a 3 meses após o evento ser reavaliado. Somente então deverá ser submetido a uma intervenção mais intensiva, caso ainda exista prejuízo ou sofrimento que justifiquem. Alguns pacientes instáveis, em risco ou sofrimento muito acentuado, podem necessitar intervenções mais ativas mesmo nas primeiras duas semanas após o trauma. Apesar de ainda não estar bem claro o que fazer nestas ocasiões, os dados já disponíveis fornecem, ao menos, algumas diretrizes. Antes de mais nada, intervenções sabidamente iatrogênicas, como os benzodiazepínicos, devem ser evitadas. Por outro lado, dados experimentais preliminares sugerem efeitos preventivos promissores com o uso precoce da imipramina67, de inibidores seletivos da recaptura de serotonina (ISRS), de betabloqueadores, como
Tabela 11 "Primeiro socorro psicológico" no transtorno de estresse agudo Monitorar quadro Encoraja menta Reengajamento às rotinas (com bom senso) Uso de suporte social, familiar e espiritual Garantir necessidades básicas (p. ex., segurança e abrigo) Reavaliar na terceira semana Adaptada de Forbes et ai., 2009 64 •
o propranolol68· 69 de opioides70•71e de corticoides72•73 • Conforme será visto a seguir, antidepressivos tricíclicos e ISRSs estão entre os principais tratamentos para o TEPT. Sendo assim, nestes casos, é possível que possa ser adiantado o início do tratamento com estas medicações, em tais ca. ' . sos mstave1s. Efeitos colaterais como sedação podem ser usadas em casos de agitação ou insônia grave, entretanto, conforme descrito anteriormente, é possível que tais intervenções sejam prejudiciais. Em algum momento, entretanto, este risco será menor do que o de não intervir. Esta situação é clara, por exemplo, num caso de agitação psicomotora importante ou risco de suicídio iminente. Nestes casos, obviamente, o risco aumentado de evolução para TEPT deve ser deixado em segundo plano, para priorizar-se a segurança imediata do paciente e terceiros.
Tratamento do transtorno de estresse póstraumático Já no caso do TEPT, o cenário é muito mais claro. A terapêutica deste transtorno dispõe de uma ampla gama de tratamentos medicamentosos e psicoterápicos, sendo os ISRS considerados o tratamento de primeira linha74 . Esses medicamentos se mostraram eficazes nos três grupamentos de sintomas do TEPT75 , bem como no tratamento da comorbidade com depressão, que ocorre fre quentemente8. A venlafaxina76 e os antidepressivos tricíclicos77 apresentam evidências sólidas de eficácia na literatura. A escolha inicial por um ISRS se baseia exclusivamente por sua segurança e tolerabilidade. Evidências menos robustas apontam para a eficácia de IMAO, mirtazapina, trazodona, nefazodona (provável eficácia, principalmente no TEPT resistente), bupropiona, reboxetina e duloxetina74. O início de ação dos antidepressivos acontece entre 2 e 4 semanas de tratamento. Em um estudo de Davidson et al. 78 observou-se melhora precoce da irritabilidade após uma semana de tratamento com sertralina num subgrupo de pacientes, com melhor resposta terapêutica subsequente. A resposta máxima à dose do antidepressivo pode demorar em alguns casos, sendo que 54% dos não res pondedores em 12 semanas se tornam respondedores em até 24 semanas de tratamento 79 . A gravidade do TEPT parece estar associada à necessidade de maior tempo para resposta terapêutica aos antidepressivos. É consenso que se aguarde no mínimo 12 semanas para considerar os efeitos adequados de uma medicação74 . Ainda, conforme revisado no mesmo consenso de especialistas 7\ outras medicações como estabilizadores do humor, antipsicóticos e bloqueadores adrenérgicos podem ser úteis em casos particulares, como resíduos de alguns sintomas específicos e comorbidades psiquiátricas, presentes em 85% dos pacientes com TEPT. Seu uso em monoterapia é desaconselhado. Por causa da grande ten-
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Considerar em cada estágio A Risco de suicídio B. Comorbidades C. Insônia ou pesadelos D. Psicoses E. Abuso de substâncias F. Falta de aderência G.Trauma continuado H. Mulheres e gestantes I.Questões culturais J. Questões judiciais K. Tratamenta psicossocia I
Completa
1. Diagnóstico de TEPT
'
2.1 Considerar no diagnóstico e em cada avaliação
Medicação
7. Potencializar de acordo com os sintomas salientes
Não responsivo em nenhum sintoma
~
Parcial
Sim
5. Alguma sintoma não ....l - responsivo?
Não
6. Ajustar para máxima dose tolerada
...
r
I Resposta inadequada
I
'f
1O. Trocar por outro ISRS ou IRSN ou de IRSN para NaSSA Sim
•
11 .Resposta ?
15. Adicionar antagonista alfa 1-adrenérgico, dose baixa de ADT ou outro antidepressivo sedativo Sim
Não t 12. Adicionar: ADT, antipsicótico atípico, anti convulsivante, alfa1-antagonista, alfa2 - agonista, benzodiazepínicos, betabloqueador, azapirona, TCC Sim
Reposta inadequada com: Insônia Comorbidade persistente, psicótica ,~ pesadelos
9. Após 6-12 semanas Respostas?
Resposta inadequada dos sintomas centrais do TEPT
t 13. Resposta ? • Não
14. Trocar a) ADT ou IMAO; b) adicionar terceira medicação das acima ou; c) reavaliação diagnóstica
'f
t
Sim
16. Resposta ?
22. Trocar antipsicótico ou adicionar estabilizador de humor ou anticonvulsivante
~
• t
Sim
Não
26. Trocar ou adicionar droga da mesma classe
~
18. Resposta ?
t
24. Adicionar anticonvulsivante, lítio ou antipsicótico atípico
25. Resposta ?
21. Resposta ? t Não
Não
8. Trocar por outro ISRS ou por outra classe de droga (IRSN, ADT ou antagonista alfa1-adrenérgico) I
Comorbidade com depressão, ansiedade ou transtorno bipolar estável
20. Adicionar antipsicótico atípico (considerar típico se não disponível)
17. Trocar dentro do mesmo grupo ou por antipsicótico atípico Sim
t
3. ISRS. IRSN Avaliação de 4-6 semanas com dose e duração adequadas (se não disponível, usar antidepressivo cíclico)
4. Resposta ?
~
Tratamento
2.2 Tratamento?
Sim
Não
23. Resposta ?
27. Resposta ?
Não
19. Considerar: apneia obstrutiva do sono, síndrome das pernas inquietas. ou outros problemas de sono e reavaliar o diagnósticos
Sim
Não
28. Reavaliar diagnóstico
1~------~r'L-------------~''L-------------~----~----------~r~ Ir
o
('")
I
I
29. Continuar por pelo menos um ano
30. Considerar tratamento psicossocial
Figura 3 Diretrizes para o diagnóstico e tratamento do TEPT. Abreviaturas: ADT: antidepressivo tricíclico; IMAO: inibidor da monamina oxidase; IRSN: inibidor da recaptura de serotonina e noradrenalina; ISRS: inibidor seletivo da recaptura de seretonina; NaSSA: noradrenergic and se/ective serotonergic antidepressant (antidepressivo noradrenérgico e serotonérgico seletivo); TCC: terapia comportamental-cognitiva. Fonte: Davidson J, Jobson K. Stein O, Connor KM. Bernik M, Friedman MJ, Kim Yl, Lecrubier Y, Mah H, Njenga F. Zohar J. The international psychopharmachology algorithm project. www.ipap.org.br.
ciência do uso de benzodiazepínicos neste transtorno, deve-se salientar que estes mostraram ter eficácia comparável a placebo nos sintomas específicos de TEPT. Além disso, recomenda-se cautela com essa classe de medicações por conta do risco de abuso e dependência. Sendo assim, seu uso pode ser útil em situações específicas e por tempo limitado, especialmente quando houver comorbidade com outros transtornos de ansiedade8°. Além da farmacoterapia, há outros tratamentos que vêm se mostrando eficazes, entre eles a TCC81 e a estimulação magnética transcraniana repetitiva (EMTr) 82 . Na prática clínica é im-
portante adequar as medicações ao perfil de sintomas e comorbidades de cada paciente. Transtornos psiquiátricos associados, uso/abuso de substâncias, histórico de vida, e muitas outras situações únicas exigirão do clínico bom-senso na condução de cada caso.
lntetvenções por terapia no traumatizado crônico com TEPT Se os traumas emocionais estão na base do TEPT, considera-se relevante entender a ação de tratamentos psicote-
6 1 TRANSTORNO DO AJUSTAMENTO, TRANSTORNO DO ESTRESSE AGUDO E TRANSTORNO DO ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
rapêuticos neste quadro. A terapia cognitivo-comportamental (TCC) é a abordagem preconizada em quadros de TEPT, pois tem se mostrado a mais eficaz para a redução de sintomas83•84• De acordo com cada caso, pode ser possível delinear melhor ou personalizar a abordagem do paciente dentro da TCC. Por exemplo, há evidências de que a TCC individual atue e funcione melhor na diminuição da angústia psicológica do paciente traumatizado, enquanto a TCC em grupo favorece o reestabelecimento da autoestima85. De acordo com um estudo amplo de revisão sobre o tema, as técnicas mais utilizadas da TCC referem-se ao enfrentamenta (coping), psicoeducação, exposição gradual, body safety skills e role-plays84• Os autores ressaltam a importância de fornecer informações sobre o abuso. As técnicas de exposição gradual facilitam a recuperação das memórias dos conteúdos associados ao trauma, o que pode ajudar, no sentido de o indivíduo elaborar melhor o acontecimento, em virtude das informações aprendidas ao longo do tratamento. As estratégias de body safety skills podem ser interessantes também na medida em que fornecem ferramentas para a pessoa se proteger de abusos recorrentes, principalmente se o risco de ser abusado persiste.
Políticas públicas para a implantação de prevenção e tratamento Cada indivíduo apresenta diferente risco para o desenvolvimento e psicopatologia após vivenciar um evento traumático. Além das variáveis mais relacionadas à natureza do evento traumático, dois principais grupos de variáveis mais relacionadas ao indivíduo estão relacionadas à vulnerabilidade: genéticos e história de vida. Intervir sobre a história de vida de um indivíduo pode ser uma forma de prevenção primária, uma vez que atuações precoces, em crianças, especialmente nas fases de desenvolvimento críticas de uma pessoa, favorecem o desenvolvi-
menta de um organismo mais resiliente, ou seja, que terá mais recursos para lidar com eventuais situações traumáticas futuras e, assim, ter menor risco para desenvolvimento de psicopatologia e maior adaptação aos efeitos imediatos do estresse. Apresentamos a seguir um dos projetos que tem este como um de seus objetivos. Com a finalidade de construir uma rede de cuidados capaz de responder com efetividade às necessidades específicas de crianças/adolescentes, o Departamento e Instituto de Psiquiatria da FMUSP, em parceria com a Prefeitura de São Paulo, iniciou um programa inovador de atendimento a crianças, adolescentes e famílias com histórico de exposição a múltiplos estressares emocionais e em situação de grave risco social. O Programa Equilíbrio (PE) é um serviço multiprofissional de saúde, localizado dentro de um clube esportivo municipal, cujo centro é oferecer espaço onde os pacientes desenvolvam atividades saudáveis, favorecer a aproximação da família e acompanhar longitudinalmente a reintegração sociofamiliar, por meio de atendimento individualizado. Primeiramente, é necessário um ambiente que forneça estimulação adequada e modelos positivos de comportamento. Ou seja, é necessário identificar as necessidades específicas desta população e oferecer condições para que haja um relacionamento harmônico e consistente com cuidadores e a presença de apoio de uma rede social ampla86 • Nesse sentido, a literatura aponta ganhos cognitivos em crianças que foram adotadas, quando comparadas a crianças que foram educadas em instituições ou então que continuaram expostas a situações de vio lência doméstica87•88 • Estudos com crianças em situação de guerra enfatizam importância de um ambiente seguro que respeite a individualidade para o desenvolvimento neuropsicológico89 • Entre 351 crianças e adolescentes atendidos pelo PEde junho de 2007 a setembro de 2009, todas sofreram negli-
•
Figura 4
Programa Equilíbrio/ Clube Raul Tabajara. (Veja imagem colorida no encarte.)
e
,...
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
gência por parte dos pais ou responsáveis e 58,4% (n = 205) apresentavam histórico de abusos físico ou sexual, além de 13,1% (n = 46) terem sofrido ambos tipos de abuso. Além disso, a maioria foi exposta a outros tipos de estresse, como permanência em instituições de abrigo (84,6%, n = 297) 90 • Destas, uma amostra de 50 crianças e adolescentes foram submetidos aos subtestes Cubos e Vocabulário da escala WISC -III9 1, que fornecem uma medida estimada do fun cionamento intelectual92 . Esta amostra apresentou a distribuição de QI não coincidente com a curva normal esperada, pois os resultados são distribuídos entre a média e abaixo da média, conforme ilustrado na Figura S. Além disso, por meio do Teste Wisconsin de Classificação de Cartas93, as funções executivas como capacidade de abstração, flexibilidade mental e atenção sustentada, foram examinadas em 15 adolescentes acompanhados pelo programa. Observou-se que apesar de completarem um número razoável de categorias, ou seja, são capazes de abstrair o pensamento até certo ponto, os jovens apresentam um número excessivo de erros perseverativos, o que indicou dificuldade em perceber a mudança de categoria e manutenção do padrão comportamental disfuncional. Em conclusão, os resultados indicam dificuldade na flexibilização do pensamento e dificuldade de adaptação ao meio, devido à perseveração nos erros, bem como um QI abaixo da média para a idade. Estes achados parecem estar relacionados às alterações neuroquímicas cerebrais causadas tanto pela falta de estimulação adequada por parte dos pais e/ ou cuidadores, quanto pela exposição ao estresse emocional crônico. Tanto QI rebaixado quanto déficits executivos interferem negativamente sobre a motivação para a aprendizagem, adesão na escola e outros aspectos da vida cotidiana. Como o objetivo é minimizar
Curva normal da distribuição do Ql
2,5
2,0
Estimulação normal Negligência eabusos
...
1,5
1,O
0,5
50
Figura 5
100
150
Distribuição dos níveis intelectuais em amostra normal e no Programa Equilíbrio (histórico de negligência e abusos).
consequências futuras e promover reintegração sociofamiliar, essas crianças recebem estimulação específica. No atendimento clínico, deve-se focar o desenvolvimento de habilidades para aumentar a flexibilidade de alguns comportamentos, o que permitirá melhor adaptação destas crianças e adolescentes em novos ambientes, mais adequados para seu desenvolvimento.
Minicaso clínico Para exemplificar o perfil neuropsicológico de vítimas de estresse precoce, será apresentado o caso de dois irmãos atendidos pelo PE, que ilustra alguns prejuízos neuropsicológicos encontrados em crianças vítimas de estresse e violência grave e possíveis consequências da educação em ambientes inadequados para o desenvolvimento das funções executivas. Ricardo ( 1O anos, 4a série) e Lucas ( 14 anos, 4a série) estavam abrigados há 19 meses, junto à irmã Luiza (12 anos), que foi adotada após um ano de abrigamen to. Eles têm outro irmão de 7 anos que permaneceu sob o cuidado de pessoas da família. A mãe faleceu após o nascimento do filho caçula e o pai faleceu por conta de problemas de saúde relacionados ao uso abusivo de álcool. As crianças sofreram abusos físicos frequentes, inicialmente pelo pai e posteriormente pelo tio. As crianças moravam com a avó e com um tio que tinha problemas psiquiátricos, porém, não se sabe o diagnóstico com clareza. Ricardo e Lucas presenciavam cenas de sexo da avó com seu próprio filho e Lucas também foi abusado sexualmente por esse homem. Os abusos sexuais eram acompanhados de violência física e psicológica (ameaças). Ricardo presenciava todos os abusos e após ser abrigado, também passou a ser abusado sexualmente por Lucas. Ricardo também procurava o irmão para seduzi-lo e manter relações sexuais (tirava as roupas e se insinuava). Os pacientes foram submetidos à avaliação clínica por psiquiatras com certificado para atuação na área da infância e adolescência. Todos os diagnósticos foram baseados na CID-1O e foram discutidos com a equipe multidisciplinar e com a coordenadora do PE. As informações clínicas foram obtidas por meio de entrevista psiquiátrica semiestruturada, que inclui informações detalhadas sobre características sociodemográficas e questões sobre a história médica pregressa e atual, a história do desenvolvimento neurológico, uso de drogas e existência de familiares relacionados com transtornos mentais. A Figura 6 apresenta os diagnósticos encontrados. Para essa população, a escolha dos instrumentos de avaliação neuropsicológica pode ser considerada o primeiro desafio para o profissional. A pouca estimulação e o baixo aproveitamento escolar por atrasos e dificuldades de leitura e escrita impedem que alguns testes frequentemente utilizados na prática clínica ofereçam re sultados fidedignos. Nesse caso, não foi possível a apli-
6 1 TRANSTORNO DO AJUSTAMENTO, TRANSTORNO DO ESTRESSE AGUDO E TRANSTORNO DO ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
cação da escala WISC completa, pois subtestes como Informação e Aritmética exigiriam habilidades que não foram estimuladas nos irmãos. De acordo com o desempenho nos subtestes Cubos e Vocabulário9\ o QI estimado de Ricardo se enquadra na faixa limítrofe (QI = 74) e o QI de Lucas na faixa médio -inferior (QI = 85). A Tabela III apresenta os resultados de todos os subtestes realizados. De acordo com os resultados, nota-se desempenho insatisfatório dos irmãos na maioria das provas, o que corrobora dados da literatura que apontam dificuldades cognitivas em vítimas de abusos 34 • Foi observada discrepância significativa entre o desempenho em subtestes verbais (relacionados ao hemisfério cerebral esquerdo) e desempenho em subtestes de execução (relacionados ao hemisfério cerebral direito), com melhor pontuação na área verbal. Esse resultado pode ser consequência de uma dificuldade de comunicação entre os dois hemisférios cerebrais por conta da diminuição de corpo caloso, aspecto discutido neste capítulo.
Tabela 111
Além disso, os subtestes verbais são menos suscetíveis ao impacto de condições adversas, o que poderia explicar o melhor desempenho dos irmãos nessa área92 • Observa-se que Lucas apresentou maior pontuação no subteste Vocabulário e maior discrepância entre as duas áreas, enquanto Ricardo apresentou baixo rendimento no subteste Vocabulário e em todos os subtestes em geral. Já que o subteste Vocabulário pode fornecer medidas pré-morbidas de funcionamento 92, é possível que o funcionamento de Ricardo antes da vivência de estresse já estivesse comprometido por fatores biológicos/genéticos, o que foi acentuado com a vivência de traumas. Além dos subtestes da escala WISC III, foi realizado o Teste da Figura Complexa de Rey. Foi realizada uma avaliação qualitativa pela qualidade da cópia e reprodução (Figura 7). Constatou-se séria dificuldade de coordenação viso-motora e planejamento, que corrobora os resultados anteriores da escala WISC-III. A dificuldade na evocação da figura pode estar relacionada a déficits na
Resultados da avaliação neuropsicológica dos irmãos Lucas e Ricardo
Subtestes
Percentil
Faixa de desempenho
Tarefa/algumas funções avaliadas
Verbal Semelhanças Lucas Ricardo
63
Vocabulário Lucas Ricardo
75
=i
9
J,
Compreensão Lucas Ricardo
84
=i
5
J,
Dígitos Lucas Ricardo
9
J,
0,4
H
84
=i
9
J,
Relatar a parte que falta em uma figura que é apresentada Percepção visuoespacial, discriminação visual
1 O, 1
H H
Copiar códigos de acordo com estímulos apresentados Velocidade de processamento visual
Relatar a semelhança entre duas figuras apresentadas Avalia a compreensão verbal, raciocínio abstrato verbal
50
Relatar o significado de algumas palavras, como "vaca" e "sair" Linguagem, raciocínio abstrato verbal Responder questões sobre situações sociais diversas Compreensão verbal e de normas sociais Qulgamento e crítica) Repetir uma sequência de números de maneira direta e inversa Amplitude atencional, controle mental verbal
Execução Completar figuras Lucas Ricardo Código Lucas Ricardo Arranjo de figuras Lucas Ricardo
1
Organizar de maneira lógica figuras que compõem uma história. Planejamento visuoespacial e compreensão de situações interpessoais
Cubos Lucas Ricardo
1 5
Reproduzir figuras impressas em cubos tridimensionais bicolores Percepção e planejamento visuoespacial, raciocínio lógico abstrato
Armar objetos Lucas Ricardo
9 5
Montar quebra-cabeças de objetos fragmentados Praxia construtiva, processamento visual e velocidade perceptual.
1
M édio: =; médio superior: i; limítrofe: J,; inferior: J,J,.
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AS GRANDES SÍNDROMES PSICOPATOLÓGICAS
Lucas
Ricardo
Episódio depressivo (F32) Retardo mental leve (F70) Experiência pessoal amedrontada na infância (Z61.7)
Figura 6
Remoção do lar na infância (Z61.1) Padrão alterado de relações familiares na infância (Z61.2) Eventos que originam a perda de autoestima na infância (Z61.3) Abuso sexual por uma pessoa de dentro de seu grupo (Z61.4) Abuso físico (Z61.6) Educação em instituição (Z62.2) Negligência emocional (Z62.4) Suporte familiar inadequado (Z63.2) Desaparecimento ou falecimento de um membro da família (Z63.4) Outros acontecimentos difíceis com incidência na família ou no lar (Z63.7) História familiar de retardo mental (Z81.0) História familiar de abuso de álcool (Z81.1)
Transtorno do estresse pós-traumático (F43.1) Transtornos mistos de conduta e das emoções (F92) Transtorno misto de habilidades escolares (F81.3) Transtorno expressivo de linguagem (F80.1)
Diagnósticos psiquiátricos e sociais dos irmãos Ricardo e Lucas.
Figura complexa de Rey
Paciente 1 (L)
Paciente 2 (R)
Reprodução imediata
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Reprodução após 20 minutos (sem visualizar a figura original)
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--~--- /' Figura 7
Resultados da figura de Rey na avaliação neuropsicológica dos irmãos Lucas (paciente 1) e Ricardo (paciente 2).
memória visual, mas nesse caso também pode ser consequência da dificuldade de realizar a etapa inicial de organização e reprodução da imagem. Esse caso exemplifica como o abuso físico, sexual e psicológico podem acentuar prejuízos em diversas funções cognitivas, como inteligência, atenção, memória e
praxia construtiva. Além disso, é possível notar a importância de tratamento especializado multidisciplinar para contemplar todas as demandas existentes. Após um ano de intervenção multidisciplinar, Lucas e Ricardo apresentam melhoras no relacionamento interpessoal e compreensão das regras existentes na sociedade.
61 TRANSTORNO DO AJUSTAMENTO, TRANSTORNO DO ESTRESSE AGUDO E TRANSTORNO DO ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
Considerações finais Eventos traumáticos podem evoluir para condições psiquiátricas específicas, denominadas "espectro pós-traumático". Os principais diagnósticos inseridos nesse grupo são o transtorno do estresse agudo (TEA) e transtorno do estresse pós-traumático (TEPT). Pacientes comesses diagnósticos apresentam alterações nos sistemas neuroendócrinos e de neurotransmissão sináptica, assim como alterações na neuroanatomia cerebral e no desenvolvimento neuropsicológico. Apesar disso, cada indivíduo exposto a uma experiência traumática irá responder de uma forma diferente. As variáveis genéticas, biológicas e psicossociais que determinam se alguém evoluirá ou não para um quadro psiquiátrico são múltiplas e interagem de forma complexa. Nestes casos, recomenda-se tratamento psiquiátrico e psicológico precoce: quanto antes ocorrer a intervenção, melhor o prognóstico. Para casos mais graves, recomenda-se tratamento interdisciplinar mais intensivo, tal como ocorre no Programa Equilíbrio (IPq-HC-FMUSP), umas vez que as consequências da exposição crônica a eventos traumáticos tendem a ser muito prejudiciais e a causar impacto negativo na qualidade de vida e adaptação social.
Questões Mulher de 40 anos de idade chega ao pronto-socorro com taquicardia. dispneia. sensação de opressão precordial e história de ter sido sequestrada há 4 dias. Paciente nega ter havido abuso físico ou sexual durante o evento. Durante a investigação. a paciente conta que tem tido sonhos assustadores e repetidos sobre o evento. que mal consegue dormir. sente-se muito assustada e com medo de sair de casa. Com relação ao caso. pergunta-se: l.Qual a primeira conduta a ser adotada? a) Administração de benzodiazepín ico. b) Administração de betabloqueador. c) Investigação clínica geral. d) Todas as anteriores. e) Nenhuma das anteriores. 2. Qual o provável diagnóstico? a) Transtorno de estresse agudo. b) Transtorno de estresse pós-traumático. c) Transtorno do pânico. d) lsquemia miocárdica aguda. e) Crise de broncoespasmo. 3. Caso o diagnóstico anterior seja confirmado e outros descartados. quais procedimentos devem ser adotados? a) Prescrição de benzodiazepínicos e encaminhamento ao ambulatório de psiquiatria. b) Prescrição de betabloqueadores e encaminhamento ao ambulatório de psiquiatria.
c) Prescrição de antidepressivos e encaminhamento ao ambulatório de psiquiatria. d) Apenas uma conversa calorosa com acolhimento e estímulos para que o paciente entre em contato com seus medos e lembranças relacionados ao trauma. e) Nenhuma das alternativas. 4. Uma criança de 8 anos que se encontra em instituição de abrigo por sofrer abusos físicos na família nuclear é encaminhada para avaliação neuropsicológica. Os sintomas principais são desatenção, comportamento opositivo e ag ressividade, que interferem no relacionamento e adequação social. Os resultados dos testes indicaram problemas na flexibilidade cognitiva e rebaixamento intelectual. Em consideração aos dados aci ma. quais as estratégias mais adequadas para intervenção com a criança? a) Realizar a avaliação e acompanhamento multidisciplinar. b) Realizar trabalho de estimulação cognitiva. c) Instruir os profissionais envolvidos sobre a limitação intelectual da garota. pois não deve ser esperada evolução significativa desse caso. d) Alternativas a e b. e) Alternativas a e c. 5. Crianças com histórico de estresse precoce apresentam. conforme o constatado pelos pesquisadores do I Pq, curva de inteligência não compatível com a normalidade. Diante deste quadro. é correto afirmar que: a) A inteligência rebaixada pode levar a dificuldades no comportamento da criança. o que a torna mais vulnerável a se colocar em situações de risco. b) O bu/lying e outras formas de abuso verbal e sexual ocorrem sempre em crianças com retardo mental. uma vez que a criança é incapaz de proteger-se. c) Não se deve esperar evolução significativa no aspecto cognitivo. já que não receberam estimulação ambiental adequada e sofreram o impacto cerebral do estresse. d) Todas as crianças com histórico de estresse precoce devem ser encaminhadas para salas de aulas adaptadas para deficientes mentais. e) O rebaixamento intelectual impede a inserção dessa população na escola e trabalho.
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
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61 TRANSTORNO DO AJUSTAMENTO, TRANSTORNO DO ESTRESSE AGUDO E TRANSTORNO DO ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
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Transtornos Ansiosos e Emocionais na Infância Fernando Ramos Asbahr Marisol Montero Sendin Carolina Zadrozny Gouvêa da Costa
Rosa Magaly Campeia Borba de Morais Márcia Morikawa
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 824 Etiologia, 825
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Fatores genéticos, 825 Fatores ambientais, 826 Temperamento e inibição do comportamento, 826 Aspectos neurobiológicos, 826 Aspectos neuroanatômicos, 826 Aspectos neuroquímicos, 828 Aspectos neuroendócrinos, 828 Fatores psicológicos, 828 Quadro clínico, diagnóstico e comorbidades, 829 Transtorno de ansiedade generalizada, 829 Fobia específica, 829 Transtorno de estresse pós-traumático (fEPD. 830 Transtorno de ansiedade de separação. 831 Transtorno de pânico, 832 Fobia social, 832
1. Reconhecer que os transtornos de ansiedade estão entre os
problemas de saúde mental mais comuns na infância e na adolescência. 2. Discutir a epidemiologia dos transtornos de ansiedade, incluindo o risco aumentado para continuidade e/ou desenvolvimento de quadros ansiosos na idade adulta, bem como outros problemas de saúde mental que estão associados à presença de um transtorno de ansiedade na infância e na adolescência. 3. Delinear os fatores etiológicos associados aos transtornos de ansiedade, incluindo a discussão de fatores genéticos, fisiológicos e cognitivo-comportamentais. 4. Compreender as diversas manifestações clínicas que serão apresentadas. 5. Conhecer as muitas estratégias de intervenção eficazes e baseadas em evidências.
Mutismo seletivo, 833 Tratamento, 834 Tratamento não medicamentoso, 834 Tratamento medicamentoso, 835 Ansiolíticos. 836 Antidepressivos, 836 Mutismo seletivo (MS), 838 Transtorno de pânico (fP), 838 Transtorno de estresse pós-traumático (fEPD. 839 Fobias específicas (FE). 839 Outros medicamentos utilizados, 839 Tratamento com ISRS e o risco de suicídio, 840 Prevenção e políticas de saúde pública para os transtornos de ansiedade, 840 Considerações finais, 843 Minicaso clínico, 843 Questões, 844 Referências bibliográficas, 845
Introdução Os transtornos ansiosos encontram-se entre as doenças psiquiátricas mais comuns em crianças e adolescentes. Até 10% deles sofrem de algum transtorno ansioso (excluindo-se o transtorno obsessivo-compulsivo, ou TOC, que afeta até 2% das crianças e dos adolescentes). Mais de 50% das crianças ansiosas experimentarão um episódio depressivo como parte de sua síndrome ansiosa. Com a exceção do transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), em que um fator externo traumático é a causa primária, o principal fator de risco para um transtorno ansioso de início na infância é ter pais com algum transtorno de ansiedade ou depressão. Assim, como a maior
62 TRANSTORNOS ANSIOSOS E EMOCIONAIS NA INFÂNCIA
parte das doenças psiquiátricas, os transtornos ansiosos são considerados como condições associadas ao neurodesenvolvimento, com significativa contribuição genética. Em crianças, o desenvolvimento emocional influi sobre as causas e a maneira como se manifestam os medos e as preocupações, sejam normais ou patológicas. Diferentemente dos adultos, crianças podem não reconhecer seus medos como exagerados ou irracionais, especialmente as menores 1 • Tanto a ansiedade quanto o medo são considerados patológicos quando exagerados, desproporcionais em relação ao estímulo ou qualitativamente diversos do que se observa como norma naquela faixa etária, e também quando interferem na qualidade de vida, conforto emocional ou desempenho diário da criança2 • Tais reações exageradas ao estímulo ansiogênico se desenvolvem mais comumente em indivíduos com uma predisposição neurobiológica herdada3 • Apesar de haver um quadro clínico para cada síndrome ansiosa, a maioria das crianças apresentará mais de um transtorno ansioso. Estima-se que cerca de metade das crianças com transtornos ansiosos tenha também outro transtorno ansioso comórbido.
Etiologia Os transtornos de ansiedade (TA) apresentam etiologia multifatorial, com contribuições genéticas e ambientais. As características individuais relativas à sensibilidade ao estresse, às estratégias de enfrentamento e ao padrão de reações afetivas (temperamento) são fatores que influenciam o desenvolvimento dos TA. A literatura tem mostrado que um dos principais fatores de risco aos transtornos de ansiedade na infância e na adolescência (TAlA) é a presença de TA e/ou depressão em familiares. Last et al. (1987), ao avaliarem mães de crianças com transtorno de ansiedade de separação (TAS), relataram que 68% já tiveram um diagnóstico de transtorno ansioso; 53%, um diagnóstico de depressão maior e 47% tinham o diagnóstico atual de transtorno ansioso. Esse risco poderia ser decorrente tanto de fatores genéticos. Complicações perinatais parecem mediar parcialmente essa associação. Outros fatores de risco são os ambientais, como situações estressantes ao longo da vida, dimensões de cuidados parentais e relacionamento com colegas. Além disso, observa-se associação entre antecedente de infecções recorrentes no início da vida e o surgimento dos sintomas ansiosos4 .
Fatores genéticos Certas características de temperamento (ansiedade, inibição comportamental) parecem relacionar-se a fato res genéticos5 • Estudos sugerem que o desenvolvimento
de TA na infância pode ser mediado geneticamenté. Weissman et al. (1984) relatam que filhos de indivíduos com transtorno de pânico (TP) apresentam risco aumentado para o desenvolvimento de transtornos de ansiedade. Uma revisão sobre fatores de risco para TA, publicada em 2008, relata achados de 14 estudos que examinam taxas de TA em filhos de pais com TA (TP, agorafobia, múltiplos TA, transtorno de ansiedade generalizada [TAG], fobias específicas ou transtorno obsessivo-compulsivo [TOC]). As taxas de qualquer TA ou dois ou mais TAs entre os filhos de pais com ansiedade e filhos de controles diferiram significativamente em 12 estudos com taxas de qualquer TA variando de 21 a 68% nos filhos em risco, contrastando com Oa 26% nos controles7 • Last et al. 8 encontraram maior prevalência de TA em parentes de primeiro grau de jovens afetados, comparados a grupo-controle. A maioria dos estudos mostra que a presença de TA em pais confere um risco ao espectro de TA nos filhos, mais do que um risco para algum TA específico. A comorbidade de ansiedade com transtornos de humor nos pais aumenta o risco para TA no filhos, assim como ter mais de um pai com TA. No TAS, o fator genético não parece ter uma importância tão significativa, sendo o fator ambiental, especialmente familiar, o principal determinante do quadro. Um estudo que avaliou influências genéticas e ambientais na ansiedade em gêmeos monozigóticos e dizigóticos relatou que a estimativa de hereditariedade para o TAS foi somente 4%, enquanto o fator ambiental teve uma relevância de 40%. Parece haver uma diferença de gênero quanto às contribuições genéticas e ambientais. Em meninos, o fator genético é praticamente nulo e, em meninas, há uma influência genética mais significativa. Em ambos os gêneros, a influência ambiental é importante9 • Um pequeno estudo familiar (com amostra clínica e comunitária) demonstrou maiores índices de TAG entre parentes de primeiro grau de indivíduos afetados quando comparados a parentes de primeiro grau de pacientes com TP e a sujeitos do grupo-controle 10• Estudos familiares demonstram maior incidência de FS (sobretudo do subtipo generalizado) em parentes de primeiro grau de indivíduos acometidos 11 . Não existem evidências da existência de um gene específico associado à ansiedade. Provavelmente, as contribuições de diversos genes devem somar-se para determinar uma vulnerabilidade biológica para o desenvolvimento de TA. Diferentes Zoei para traços relacionados à ansiedade foram identificados em estudos de ligação. A identificação da localização genética indica uma sobreposição genética entre os TA. No entanto, alguns Zoei parecem ser específicos para certos transtornos 12 • Assim, deve haver genes que aumentam o risco para um transtorno ansioso específico, enquanto outros aumentam a vulnerabilidade para os transtornos ansiosos de forma geral.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Fatores ambientais
mas ansiosos, comparados com só 15% do grupo "baixa reatividade'~
Uma revisão previamente citada sobre fatores de ris co para TA relata achados de 47 estudos transversais so bre cuidados parentais e ansiedade na infância, avaliando duas dimensões de cuidados parentais: carinho vs. crítica/rejeição e superproteção vs. estímulo de autonomia. De modo geral, esses estudos sugerem que pais de crianças ansiosas tendem a ser mais superprotetores e garantir menor autonomia ou ser menos carinhosos e receptivos. Outros estudos sugerem que pais de crianças ansiosas tendem a modelar a ansiedade, particularmente no caso de fobias específicas e que tendem a encorajar ou reforçar comportamentos de evitação7 • Situações traumáticas (como separação dos pais, morte de familiar, mudanças de bairro ou escola, ou doença na criança) ou estresse crônico (como doenças físicas ou mentais de familiares e violência familiar) são outros fatores ambientais que podem influenciar o desenvolvimento de TAS. Um estudo prospectivo que seguiu 144 estudantes de ensino médio por um ano relatou que o desenvolvimento de fobia social foi associado a ser deixado de lado ou rejeitado por colegas, mas não a sofrer provocações 13 .
Temperamento e inibição do comportamento O termo temperamento refere-se a um padrão relativamente estável de comportamento que se observa preco cemente na vida. Pesquisas de Kagan et al. demonstram a associação entre características de temperamento em fases precoces da vida e determinados comportamentos presentes ao longo dela, incluindo sintomas ansiosos 14,15. O grupo de Kagan seguiu prospectivamente uma amostra de 462 crianças saudáveis (desde meses de vida até a metade da infância), avaliando a influência do temperamento. Aos 4 meses de vida, as crianças foram classificadas como de "alta reatividade" ou "baixa reatividade", de acordo com suas respostas ao serem submetidas a estímulos visuais, auditivos ou olfatórios. Aproximadamente, 20% foram classificadas como de "alta reatividade" (apresentaram atividade motora frequente e vigoro sa associada a choro quando submetidas aos estímulos); 40% apresentaram pouca atividade motora e mínimo desconforto aos mesmos estímulos, sendo classificadas como de "baixa reatividade'~ As avaliações de seguimento foram realizadas aos 14 meses de vida, aos 21 meses, aos 4,5 anos e aos 7,5 anos. O grupo "alta reatividade" demonstrou significativamente mais medos e ria com menos frequência em comparação ao grupo "baixa reatividade': nas avaliações aos 14 e aos 21 meses de vida. Aos 4,5 anos de idade, as crianças do grupo "alta reatividade" foram classificadas como mais tímidas e apresentaram menor número de comentários espontâneos e sorrisos, em relação às crianças do grupo "baixa reatividade'~ Aos 7,5 anos de idade, 45% do grupo "alta reatividade" apresentaram sinto-
Com base nesses resultados, Kagan et al. descreveram um construto de temperamento, a inibição do comportamento diante do desconhecido (IC). A IC representa a tendência a exibir medo e evitar situações ou eventos novos (incluindo locais, brinquedos, colegas e adultos desconhecidos). Essas crianças são tímidas, quietas e evitam situações desconhecidas. A IC caracteriza-se por ser acompanhada de reatividade fisiológica aumentada (aceleração da frequência cardíaca, níveis de cortisol salivar e sé rico aumentados e dilatação pupilar). Como essas características também ocorrem nos transtornos ansiosos, o comportamento inibido parece ser um marcador de risco ao desenvolvimento desses transtornos. Biederman et al. 16 avaliaram longitudinalmente 44 crianças inibidas e 32 não inibidas. O grupo com comportamento inibido teve maiores taxas de diferentes TA (TA em comorbidade, transtorno de evitação, TAS e agorafobia), em comparação ao grupo-controle. Houve um aumento significativo nas taxas de transtornos ansiosos entre as crianças inibidas do início do estudo ao final do seguimento (três anos). Parece haver uma progressão no desenvolvimento dentro do espectro ansioso desde a primeira infância, levando a diferentes diagnósticos ansiosos. Hirshfeld-Becker et al. 17 encontraram uma associação significativa entre a IC na infância e a FS em estudos prospectivos e de alto risco para o desenvolvimento de TA. Além disso, crianças com IC têm maiores chances de ter, pelo menos, um dos pais com transtorno ansioso18. Observa-se uma frequência aumentada de IC entre filhos de pais com TA comparados a filhos de controles17,19 .
Aspectos neurobiológicos A experiência afetiva e as respostas comportamentais associadas estão ligadas a circuitos específicos no cérebro, ação de determinados neurotransmissores e respostas neuroendócrinas. Aspectos neurobiológicos envolvidos na gênese dos TA em crianças e adolescentes parecem estar relacionados a múltiplas disfunções: neuroanatômicas, neuroquímicas (evidenciadas pelo perfil de resposta a medicações específicas e achados provenientes de estudos de imagens com mapeamento de neurotransmissores) e de funções neuroendócrinas. Os dados (ainda escassos) encontrados na literatura aventam hipóteses de anormalidades cerebrais relacionadas à mediação do estresse, envolvendo, sobretudo, componentes do sistema límbico20.
Aspectos neuroanatômicos Os transtornos ansiosos na infância e na adolescência têm sido associados a alterações funcionais em regiões cerebrais que modulam as emoções e o medo. Os componentes básicos do circuito do medo incluem regiões da
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amígdala (responsável pelo condicionamento e pelaresposta ao medo), hipocampo (processamento do contexto) e córtex pré-frontal (modulação do medo e respostas de extinção do medo ) 21. Amígdala
É a principal região cerebral implicada no processamento de estímulos potencialmente perigosos; coordena as respostas automáticas de medo, integrando informações sensoriais, informações sobre o contexto e sobre o aprendizado anterior, via ligações corticais e subcorticais22. Está envolvida com a aquisição e a expressão do medo condicionado, o qual tem uma função adaptativa por levar a comportamentos de defesa na presença de sinais indiretos de perigo, evitando situações lesivas ao indivíduo23. A conexão recíproca entre a amígdala e o córtex pré-frontal está implicada no mecanismo de extinção de medo 24 . Outra função da amígdala está ligada à regulação da ansiedade social; sua ativação funcionaria como um breque durante a avaliação de possíveis ameaças no contato social. Na FS, sugere-se uma hiperatividade da amígdala25. Uma metanálise de estudos de neuroimagem relatou que estímulos relacionados ao medo ativam especificamente a amígdala em sujeitos saudáveis26. Nos TA, observou-se um padrão característico de reatividade aumentada da amígdala a estímulos potencialmente perigosos, em diferentes diagnósticos 27, podendo ser observado em estágios precoces do processamento28 . Um estudo com crianças e adolescentes com TAG mostrou hiper-reatividade da amígdala associada a estímulo provocador de ansiedade (faces com expressão de raiva), comparados a jovens não ansiosos; os indivíduos com ansiedade grave não apresentaram a modulação da ativação mediada pela região pré-frontal ventrolateral, observada nos controles e nos jovens com ansiedade leve29. Um estudo com RM funcional, em jovens com diferentes TA, mostrou que, quando em situações de indecisão, o grupo com maior nível de ansiedade tendeu a apresentar ativação da amígdala e córtex frontal, enquanto o grupo com menor grau de ansiedade apresentou desativação dessas regiões em resposta à incerteza30 . Sistema septo-hipocampal
O sistema de inibição comportamental septo-hipocampal (SICS) tem a função de comparar o estímulo real e o esperado; se houver discrepância ou se o estímulo esperado for aversivo, os comportamentos em andamento serão inibidos e ocorrerá um aumento da atenção direcionada ao ambiente. A ativação do SICS é desencadeada por estímulos desconhecidos ou pela antecipação de punição e está relacionada à ansiedade antecipatória31. Ele recebe informações do córtex sensorial e sua ativa-
ção parece ser modulada por projeções ascendentes no radrenérgicas e serotonérgicas. Córtex pré-frontal
O papel do córtex pré-frontal (CPF) parece ser a análise de situações complexas e regulação das respostas afetivas a elas. Ele atua modulando a atividade do sistema septo-hipocampal. Alguns estudos têm sugerido papéis diferentes aos CPF direito e esquerdo. A hiperativação do CPF direito parece estar associada à ansiedade e afetos negativos. Diferenças na ativação dos CPF podem estar associadas a diferenças no temperamento e na vulnerabilidade aos transtornos ansiosos 26 . Locus ceruleus
O locus ceruleus (LC) é uma estrutura do tronco cerebral que tem papel central no estado de alerta, sendo altamente responsiva a estímulos desencadeadores de estresse32 . O LC promove a integração de estímulos internos e externos e influencia diversas áreas relacionadas às respostas de ansiedade, tanto em aspectos cognitivos e executivos (amígdala, córtex pré-frontal, núcleo da estria terminal, hipocampo e substância cinzenta periaquedutal), como neuroendócrinos (núcleo paraventricular do hipotálamo) 33 . Eixo amígdala-hipotálamo-substância cinzenta periaquedutal
As áreas laterais e centrais da amígdala, o hipotálamo anterior e mediai e as áreas específicas da substância cinzenta periaquedutal (SCP) formam um circuito que desencadeia respostas completas de medo quando estimulados (reações de congelamento, de luta e fuga e autonômicas). O circuito recebe projeções serotonérgicas que influenciam o desencadeamento dessas reações34. ,
Insula
A ínsula é uma região que tem despertado interesse nos estudos sobre ansiedade, sendo proposto que a ínsula anterior integra informações da amígdala, do núcleo acumbens e do córtex orbitofrontal, gerando um sinal interoceptivo preditivo, representando a diferença entre o estado atual corporal e um estado futuro previsto. Em indivíduos com uma tendência à ansiedade, esse sinal preditivo pode estar aumentado em razão de uma expectativa aversiva exagerada, que desencadeia respostas desadaptativas, como evitações comportamentais e cognitivas35 . Consistente com esse modelo, estudos de imagem demonstraram alteração na função insular em pacientes com diferentes diagnósticos de ansiedade (TOC, transtorno de estresse pós-traumático [TEPT], FSi, FS, TAG e TP), assim como em indivíduos com ansiedadetraço elevada27 .
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Aspectos neuroquímicos Alguns neurotransmissores estão envolvidos em diferentes aspectos das respostas de ansiedade, agindo em distintas regiões anatômicas. As pesquisas vêm concentrando-se nos sistemas de ácido gama-aminobutírico (GABA), noradrenalina e serotonina. Esses neurotransmissores exercem um papel crítico no sistema límbico, incluindo a amígdala. Sistema noradrenérgico
O sistema nervoso noradrenérgico vem sendo envolvido na resposta ao estresse e parece ter função importante em quadros de ansiedade. Os neurônios noradrenérgicos do LC inervam grande parte das áreas cerebrais. Agentes que aumentam o disparo dos neurônios noradrenérgicos no LC induzem a ansiedade, e os agentes que o reduzem inibem sintomas de ansiedade36• Sistema serotonérgico
O neurotransmissor serotonina (5 -HT) parece ser particularmente importante na ansiedade, é envolvido na mediação de uma série de comportamentos, pela influência sobre sistemas neurais relacionados à ansiedade e ao condicionamento de medos. Os neurônios serotonérgicos estão concentrados na linha média (rafe) do tronco cerebral. A neurotransmissão serotonérgica responde a certas condições ambientais, particularmente ao estresse37 • Com base nos resultados de estudos com animais, GraefP 4 propõe uma ação múltipla da serotonina na ansiedade, ela aumentaria o medo condicionado na amígdala, inibiria reações inatas de medo (reações de luta e fuga) mediadas pela SCP e promoveria resistência ao estresse crônico por meio da atuação no hipocampo. Dessa forma, a serotonina parece exercer um papel modulador na ansiedade, favorecendo respostas complexas e aprendidas em detrimento a respostas inatas. Enquanto um número considerável de pesquisas tem examinado o sistema serotonérgico em adultos com TA, praticamente não há pesquisa nessa área envolvendo populações pediátricas20 • Entretanto, dados de ensaios clínicos têm implicado o sistema serotonérgico na ansiedade, tanto em adultos, como em crianças. Os inibidores seletivos de recaptação da serotonina (ISRS) tratam com eficácia os TA em adultos. Estudos com crianças e adolescentes com TA (particularmente TAG, FS, TAS e TOC) submetidos a tratamento com ISRSs apontam para o mesmo sentido38 -40 • Sistema gabaérgico
O glutamato e o ácido gama-aminobutírico (GABA) são abundantes na amígdala e em outras estruturas corticais e límbicas. O GABA é um neurotransmissor inibitório. Na maioria das sinapses, sua ação é oposta pela
ação do glutamato, que é o principal neurotransmissor excitatório no sistema nervoso central dos mamíferos. Aparentemente, há um equilíbrio entre as ações dos dois neurotransmissores que regulam as respostas comportamentais e fisiológicas associadas à ansiedadé 1 • O receptor GABA-A-benzodiazepínico é alvo de medicações ansiolíticas, em especial, os benzodiazepínicos, que potencializam a neurotransmissão gabaérgica, o que leva à redução dos disparos neuronais. A ativação do receptor benzodiazepínico por agonistas inversos pode induzir alterações neuroquímicas, autonômicas e comportamentais associadas à ansiedadé 2 • Pacientes com TP e TAG parecem ter uma deficiência no sistema de GABA, por causa da redução da sensibilidade central dos receptores ou da redução no número de receptores43 •
Aspectos neuroendócrinos A ativação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA) é um componente importante da resposta normal ao estresse. A liberação do fator liberador de corticotrofina (FLC) pelo hipotálamo estimula a hipófise a liberar o hormônio liberador de adrenocorticotrofina (HLA) na corrente sanguínea. O HLA é detectado pelo córtex adrenal, facilitando a liberação de glucocorticoides, como o cortisoF.
Há evidências de que anormalidades no funcionamento do eixo HHA podem ser características de alguns transtornos ansiosos e de que a natureza dessas alterações difere daquelas vistas nos transtornos de humor27 . No teste de supressão de dexametasona, pacientes com TAG apresentaram uma taxa de não supressão em torno de 30%, o que sugere anormalidades na regulação do cortisol. Em crianças, a inibição do comportamento foi associada a polimorfismos no gene CRH PCRl do FLC44.
Fatores psicológicos Aspectos cognitivo-comportamentais
Estudos que avaliaram cognições e comportamentos em crianças com transtornos ansiosos mostram que elas avaliam situações ambíguas como ameaçadoras e preferem evitar tais situações. Um estudo comparou três grupos: grupo ansioso (crianças com FS, TAS e TAG); controle clínico (crianças com transtorno opositivo, transtorno de conduta e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade); e controle não clínico (crianças sem diagnóstico psiquiátrico). As crianças ansiosas interpretaram as situações ambíguas de uma forma negativa com mais frequência, em comparação aos outros grupos; elas relataram mais cognições disfuncionais associadas à ansiedade de separação, ansiedade social e ansiedade generalizada e apresentaram uma sub estimação de sua capacida de de lidar com as situações45 •
62 TRANSTORNOS ANSIOSOS E EMOCIONAIS NA INFÂNCIA
Aspectos psicodinâmicos
É comum observar que mães de crianças com TAS apresentam medo de deixar seus filhos saírem de casa sem elas, com preocupações excessivas em relação à segurança deles. Nos aspectos psicodinâmicos, os vínculos afetivos formados na infância parecem exercer um papel na gênese dos sintomas ansiosos46 • No desenvolvimento normal, a criança passa de uma dependência completa em relação a seus pais para uma situação de maior autonomia durante o primeiro ano de vida, o que ocorre por meio de uma separação gradual. Quando há algum transtorno no vínculo entre pais e filhos, essa separação torna-se muito difícil para ambos47 • O apego inseguro entre mãe e filho tem sido associado a variados níveis de ansiedade nas crianças. De acordo com Bowlby"8, o vínculo é o meio pelo qual a criança tenta assegurar sua proteção e segurança no mundo. Se a figura à qual ela se vincula for percebida como insuficiente ou frágil, o mundo será visto como ameaçador e perigoso. Os tipos de apego que levam a maior risco de desenvolvimento de transtornos ansiosos são o inseguro-desorganizado (que é associado a trauma ou perda mal resolvidos) e o inseguro-ambivalente. Rejeição e controle excessivo dos filhos pelos pais têm sido relacionados à posterior ansiedade. Esses pais dão pouca autonomia e influenciam seus filhos a serem mais cautelosos e evitar riscos9 .
Quadro clínico, diagnóstico e comorbidades O medo e a ansiedade representam reações normais diante do perigo. Ambos variam em sua apresentação, intimamente associada à idade da criança ou do adolescente. Essas variações começam com o aumento da ansiedade diante de situações/pessoas/objetos desconhecidos e de separação dos cuidadores no caso de crianças pequenas. Segue-se, em idade escolar, o medo de danos físicos. A ansiedade relacionada à competência, às ameaças abstratas e às situações sociais normalmente aumenta durante a adolescência. Períodos de ansiedade relativamente curtos em relação a essas questões representam um aspecto normal do desenvolvimento humano9b. Como resultado, surgem questões importantes a respeito dos limites entre "normal", ou apropriado para o desenvolvimento naquela fase de vida, e as expressões de ansiedade "anormais", conforme manifestadas nos transtornos de ansiedade. Uma diferenciação fundamental entre os medos ou as ansiedade normais e um transtorno de ansiedade refere-se ao grau de prejuízo ocasionado à vida da criança/adolescente. Para receber um diagnóstico de transtorno de ansiedade, deve haver prejuízo significativo ou interferência no funcionamento diário da criança. A ansiedade e/ou o medo também são considerados anormais quando o nível de angústia evocada por perigo é considerado extremo, em relação a crianças da mesma idade. Crianças com transtornos de ansiedade podem apresentar medos/preocupações
e podem não reconhecê-los como irracionais. Geralmente, elas têm queixas somáticas, como dores de cabeça e de estômago. Choro, irritabilidade e explosões de raiva, que muitas vezes acompanham os transtornos de ansiedade em jovens, podem ser tomados como desobediência e birra, quando, na verdade, representam a expressão do medo ou da tentativa da criança de evitar, a qualquer custo, o estímulo desencadeante da ansiedade. Um diagnóstico específico é determinado pelo contexto desses sintomas.A seguir serão apresentados os diversos quadros clínicos dos TAlA. De acordo com o DSM -lV, além dos quadros clínicos descritos, o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) inclui-se entre os TAlA49• No entanto, esse transtorno será abordado em outro capítulo desse volume.
Transtorno de ansiedade generalizada Crianças com transtorno de ansiedade generalizada (TAG) tendem a apresentar preocupação excessiva com sua competência, com a qualidade de seu desempenho, mesmo quando não estão sendo avaliadas, além de preocupação excessiva com pontualidade e eventos catastróficos. Tendem a ser extremamente conformistas, perfeccionistas e inseguras, podendo ter de refazer tarefas até a perfeição desejada. Demonstram excesso de zelo na busca de aprovação e exigem constante garantia sobre seu desempenho. Durante o curso do transtorno, o foco pode mudar de uma preocupação para outra50 • A presença de sintomas somáticos muitas vezes leva os familiares a procurar os pediatras em uma primeira instância. Outro dado significativo é que crianças mais velhas e adolescentes relatam mais sintomas somáticos do que as pequenas, pois são mais capazes de identificar os sintomas fisiológicos associados à experiência ansio sa. Entre os sintomas somáticos mais apresentados, constam: cefaleia, náuseas e vômitos, taquicardia, sudorese, dispneia, formigamentos e dor muscular5 1.Adolescentes com TAG tendem a apresentar história de irritabilidade e ansiedade crônicas. Ataques de raiva podem ocorrer em meio a uma crise de pânico espontânea, mas são mais frequentes quando o estresse é agudo. O estresse associado ao perfeccionismo, muito frequente, leva à crise na medida em que as expectativas são muito elevadas e difíceis de serem atingidas. Crianças com TAG são taxadas de "miniadultos", pois em razão da ansiedade de cumprir prazos, seguir as regras e cuidado com a evitação ao dano, criam a falsa noção de maturidade. Muitas vezes, adolescentes e crianças recusam tarefas ou as abandonam quando sentem que não conseguirão cumpri-las conforme o padrão desejado (Quadro I) 52 •
Fobia específica Os medos e as fobias podem ser observados em três classes de respostas: cognitiva, fisiológica e comportamen-
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Quadro I Critérios diagnósticos para o transtorno de ansiedade generalizada, segundo o DSM- IV' 22
Quadro 11 DSM-IV' 22
1. Ansiedade e preocupação excessivas em diversos eventos ou
1. Medo acentuado e persistente, excessivo ou irracional, revelado pela presença ou antecipação de um objeto ou situação fóbica.
atividades, ocorrendo na maioria dos dias, por período mínimo de se1s meses. 2. O indivíduo considera difícil controlar a preocupação. 3. Há pelo menos um dos seguintes sintomas somáticos (para adultos são necessários três): - inquietação ou sensação de "estar com os nervos à flor da pele"; - fatigabilidade; - dificuldade de se concentrar ou sensações de "branco" na mente; - irritabilidade; - tensão muscular; - perturbação do sono. 4. O foco da ansiedade não está confinado a aspectos do eixo I e a ansiedade ou a preocupação não ocorre exclusivamente durante o transtorno de estresse pós-traumático. 5. Ansiedade, preocupação ou sintomas físicos causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes na vida do indivíduo. 6. Não se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância ou condição médica geral, nem ocorre exclusivamente durante um transtorno do humor, psicótico ou global do desenvolvimento.
taP 3. Em relação à resposta cognitiva, podem ser identificados pensamentos de se sentir aterrorizado, ideias negativas sobre a própria capacidade e a expectativa de que o confronto com o objeto temido resultará em dano pessoal ou em algo muito ruim. Em termos fisiológicos, há um aumento da frequência cardíaca, sudorese, xerostomia, náuseas e aumento da frequência respiratória. Já a resposta comportamental envolve esquiva ou escape de tudo aquilo que é temido. Em crianças pequenas, quando isso não é possível, respostas de medo disfuncionais podem tornarse evidentes, com significativa alteração do comportamento. O DSM-IV reconhece que a criança pode reconhecer que seu medo é irracional ou excessivo e expressá-lo de formas particulares, como chorar, ter acessos de raiva, ficar paralisada e agarrar-se a um adulto. Essas considerações são importantes, pois fazem a distinção dos aspectos de desenvolvimento da infância e do curso evolutivo dos medos. Além disso, o DSM-IV estipula o tempo de duração de seis meses para o diagnóstico de fobia específica (FE), critério determinado pela primeira vez em um manual de classificação psiquiátrica (Quadro II).
Transtorno de estresse pós-traumático (TEPn Os critérios requeridos para o diagnóstico de TEPT em adultos são os mesmos que os utilizados para crianças e adolescentes, embora crianças muito pequenas apresentem quadro clínico diferente em razão dos aspectos do desenvolvimento cognitivo (Quadro III). Crianças e adolescentes com TEPT comumente revivem o evento traumático na forma de pensamentos intru-
Critérios diagnósticos para fobia específica, segundo o
2. A exposição ao estímulo fóbico provoca, quase que invariavelmente, uma resposta imediata de ansiedade, que pode assumir a forma de um ataque de pânico ligado à situação ou predisposto por ela (em crianças, a ansiedade pode ser expressa por choro, ataques de raiva, imobilidade ou comportamento aderente). 3. O indivíduo reconhece que o medo é excessivo ou irracional. Obs.: em crianças, essa característica pode estar ausente. 4. A situação fóbica (ou situações) é evitada ou suportada com intensa ansiedade ou sofrimento. 5. A esquiva, a antecipação ansiosa ou o sofrimento na situação temida (ou situações) interferem significativamente na rotina normal do indivíduo, em seu funcionamento ocupacional (ou acadêmico) ou em atividades ou relacionamentos sociais, ou existe acentuado sofrimento acerca de ter a fobia. 6. Em indivíduos com menos de 18 anos, a duração mínima é de seis meses. 7. A ansiedade, os ataques de pânico ou a esquiva fóbica associados
com o objeto ou a situação específica não são mais bem explicados por outro transtorno mental, como transtorno obsessivocompulsivo, transtorno de estresse pós-traumático, transtorno de ansiedade de separação, fobia social, transtorno de pânico com agorafobia ou agorafobia sem história de transtorno de pânico. 8. Deve-se especificar o tipo: - animal; - ambiente natural (p. ex., alturas, tempestades, água); - sangue-injeção-ferimentos; - situacional (p. ex., aviões, elevadores, locais fechados); - outro (p. ex., esquiva fóbica de situações que podem levar a asfixia, vômitos ou a contrair uma doença; em crianças, esquiva de sons altos ou personagens vestidos com trajes de fantasia).
sivos ou memórias, sonhos e, com menor frequência, flashbacks, que devem persistir por mais de um mês após o evento. Brincadeiras, dramatizações, recontar ou repetir comportamentos com elementos do evento traumático podem ocorrer como parte dos sintomas de revivência em crianças e adolescentes54 • Jovens com TEPT evitam qualquer elemento que relembre o trauma, incluindo pensamentos, sentimentos ou atividades que tragam à consciência memórias aflitivas do evento. Os estímulos associados ao trauma podem ser circunstâncias (local, data do evento, atividade que precedeu, roupas que estava usando), condições precipitantes (ventos fortes antes de uma tempestade, brigas ou discussões que precedem violência), sinais de perigo (sirenes, olhos arregalados, sangue), objetos (árvores, vidros quebrados, armas), sensações e sentimentos (choro, necessidade de ajuda, coração acelerado). Crianças traumatizadas podem parar de praticar uma atividade prazerosa a fim de evitar sensações de excitação ou medo, pela associação com a emoção sentida durante o evento. A esquiva pode restringir as atividades diárias e generalizar para outros compor-
62 TRANSTORNOS ANSIOSOS E EMOCIONAIS NA INFÂNCIA
tamentos fóbicos, o que pode impedir o desenvolvimento escolar e as experiências sociais positivas. Distúrbios do sono, irritabilidade, dificuldade de concentração, hipervigilância, resposta de sobressalto exagerada e agressividade são evidências de que a criança encontra-se com aumento da excitação fisiológica55 . Os distúrbios do sono podem ser graves e persistentes como nos adultos, podendo ocorrer sonambulismo e terror noturno. Essas alterações podem diminuir ainda mais a concentração, interferindo na aprendizagem e no comportamento na escola.
Transtorno de ansiedade de separação Sentir ansiedade ou medo quando ocorre a separação da criança dos pais é um fenômeno esperado no desenvolvimento normal na infância. Na maior parte dos casos, o desconforto em momentos de separação se reduz gradualmente entre os 3 e 5 anos de idade, porém al-
gumas crianças mantêm uma reatividade exagerada às situações de separação, desenvolvendo um transtorno . ansiOso. O transtorno de ansiedade de separação (TAS) está entre os quadros psiquiátricos mais comuns na infância e na adolescência, e é caracterizado por medo excessivo acerca da separação dos pais ou seus substitutos, ou de sua casa (Quadro IV). As crianças ou os adolescentes com esse transtorno apresentam apego excessivo a seus cuidadores, evitando o afastamento ou telefonando, repetidamente para eles como forma de se assegurar de seu bem-estar. Preocupações comuns envolvem a possibilidade de seus pais sofrerem acidente, assalto ou ficarem doentes, assim como temor de se perderem ou serem sequestradas e afastadas permanentemente dos pais. Em geral, necessitam de companhia para dormir e apresentam pesadelos com conteúdo de separação. Nos casos mais graves, observam-se recusa escolar e sintomas somáticos. Diante da separação de uma figura importante, pode ocorrer
Quadro 111 Critérios diagnósticos para transtorno de estresse pós- traumático, segundo o DSM- IV' 22 A. Exposição a um evento traumático no qual os seguintes quesitos estiveram presentes: - A pessoa vivenciou, testemunhou ou foi confrontada com um ou mais eventos que envolveram morte ou grave ferimento, reais ou ameaçados, ou uma ameaça à integridade física, própria ou de outros. - A resposta da pessoa envolveu intenso medo. impotência ou horror. Obs.: em crianças, isso pode ser expresso por um comportamento desorganizado ou agitado. B. O evento traumático é persistentemente revivido em uma (ou mais) das seguintes maneiras: - Recordações aflitivas, recorrentes e intrusivas do evento, incluindo imagens, pensamentos ou percepções. Obs.: em crianças pequenas, podem ocorrer jogos repetitivos, com expressão de temas ou aspectos do trauma. - Sonhos aflitivos e recorrentes com o evento. Obs.: em crianças, podem ocorrer sonhos amedrontadores sem um conteúdo identificável. - Agir ou sentir como se o evento traumático estivesse ocorrendo novamente (inclui um sentimento de revivência da experiência, ilusões, alucinações e episódios de flashbacks dissociativos, inclusive aqueles que ocorrem ao despertar ou quando intoxicado). Obs.: em crianças pequenas, pode ocorrer reencenação específica do trauma. - Sofrimento psicológico intenso quando ocorre a exposição a indícios internos ou externos que simbolizam ou lembram algum aspecto do evento traumático. - Reatividade fisiológica na exposição a indícios internos ou externos que simbolizam ou lembram algum aspecto do evento traumático. C. Esquiva persistente de estímulos associados com o trauma e entorpecimento da responsividade geral (não presente antes do trauma). indicados por três (ou mais) dos seguintes quesitos: - Esforços no sentido de evitar pensamentos, sentimentos ou conversas associadas com o trauma. - Esforços no sentido de evitar atividades, locais ou pessoas que ativem recordações do trauma. - Incapacidade de recordar algum aspecto importante do trauma. - Redução acentuada do interesse ou da participação em atividades significativas. - Sensação de distanciamento ou afastamento em relação a outras pessoas. - Faixa de afeto restrita (p. ex., incapacidade de ter sentimentos de carinho). - Sentimento de um futuro abreviado (p. ex., não espera ter uma carreira profissional, casamento, filhos ou um período normal de vida). O. Sintomas persistentes de excitabilidade aumentada (não presentes antes do trauma), indicados por dois (ou mais) dos seguintes quesitos: - Dificuldade de conciliar ou manter o sono. - lrritabilidade ou surtos de raiva. - Dificuldade de concentração. - Hipervigilância. - Resposta de sobressalto exagerada. E. A duração da perturbação é superior a 1 mês. F. A perturbação causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo. G. Deve- se especificar: - Agudo: se a duração dos sintomas for inferior a 3 meses. - Crônico: se a duração dos sintomas for de 3 meses ou mais. - Com início tardio: se o início dos sintomas ocorre pelo menos 6 meses após o estressar.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro IV
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Critérios diagnósticos para transtorno de ansiedade de separação, segundo o DSM- IV' 22
A. Ansiedade inapropriada e excessiva em relação ao nível de desenvolvimento, envolvendo a separação do lar ou de figuras de vinculação, evidenciada por três (ou mais) dos seguintes aspectos: - Sofrimento excessivo e recorrente diante da ocorrência ou previsão de afastamento de casa ou de figuras importantes de vinculação. - Preocupação persistente e excessiva acerca de perder ou sobre possíveis perigos que envolvem figuras importantes de vinculação. - Preocupação persistente e excessiva de que um evento indesejado leve à separação de uma figura importante de vinculação (p. ex., perder- se ou ser sequestrado). - Relutância persistente ou recusa a ir para a escola ou para qualquer outro lugar, em razão do medo da separação. - Temor excessivo e persistente ou relutância em ficar sozinho ou sem as figuras importantes de vinculação em casa, ou sem adultos significativos em outros contextos. - Relutância ou recusa persistente a ir dormir sem estar próximo a uma figura importante de vinculação ou a pernoitar longe de casa. - Pesadelos repetidos envolvendo o tema da separação. - Repetidas queixas de sintomas somáticos (como cefaleias, dores abdominais, náusea ou vômitos) quando a separação de figuras importantes de vinculação ocorre ou é prevista. B. A perturbação tem uma duração mínima de quatro semanas. C. A perturbação tem início antes dos 18 anos. O. A perturbação causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, acadêmico (ocupacional) ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo. E. A perturbação não ocorre exclusivamente durante o curso de um transtorno invasivo do desenvolvimento, esquizofrenia ou outro transtorno psicótico e, em adolescentes e adultos, não é mais bem explicada por transtorno do pânico com agorafobia.
F. Deve- se especificar: - Início precoce: se o início ocorre antes dos 6 anos de idade.
irritabilidade, sintomas gastrintestinais, tonturas, palpitações, dificuldade para respirar, cefaleia ou outros sintomas físicos 56 • Essas crianças e adolescentes evitam dormir fora de casa, mudar de escola ou mesmo passar o dia na casa de um amigo. Há diferença de sintomas conforme o nível de desenvolvimento.
Transtorno de pânico A apresentação clínica do transtorno de pânico em crianças e adolescentes é semelhante à dos adultos57 . Os sintomas mais frequentes nas crises de pânico são taquicardia, tremores, ondas de frio ou calor, sudorese, sensações de falta de ar ou sufocamento, medo de morrer, medo de perder o controle ou enlouquecer, sensação de tontura, instabilidade, vertigem ou desmaio. Adolescentes com pânico apresentam também padrões semelhantes aos adultos em relação à procura frequente de serviços de emergência e maior demanda de atendimentos clínicos e investigações diagnósticas desnecessárias. Embora os critérios diagnósticos utilizados em crianças sejam semelhantes aos dos adultos, Clark et al.S lembram que pacientes dessa faixa etária podem ter uma menor capacidade de avaliar seus sentimentos e suas sensações e podem não associar a ocorrência de sintomas físicos à vivência subjetiva de ansiedade, o que dificulta o diagnóstico (Quadro V).
Fobia social A fobia social caracteriza-se pelo medo intenso da exposição social, relacionado a situações que envolvam a
necessidade de socialização, resultando em inibição e timidez exageradas. Geralmente, inicia-se na adolescência e persiste na idade adulta, mas, em alguns casos, pode in iciar-se na infância, o que pode levar a um intenso comprometimento psicossocial58 • Crianças e adolescentes com fobia social relatam intenso desconforto em situações sociais que acontecem diariamente. Esse desconforto é caracterizado por sintomas somáticos de ansiedade, ou pode manifestar-se na forma de crises de choro, acessos de raiva, irritabilidade ou imobilidade 58 . As situações sociais mais temidas são: ler e apresentar trabalhos em sala de aula, participar de competições, iniciar uma conversa (tanto com adultos como com colegas), pedir ajuda (particularmente para desconhecidos), escrever na lousa em sala de aula, pedir comida em um restaurante, comer em público, realizar provas escolares, participar de trabalhos em grupo, ir a festas, falar ao telefone e utilizar banheiros públicos59 . Pode ocorrer de forma generalizada em várias dessas situações ou na forma situação-específica, em que o comprometimento ocorre repetidamente em um único tipo de evento (p. ex., na escola). O alto nível de ansiedade vivenciado faz com que esses pacientes passem a evitar tais situações. Razão de seu comportamento evitativo, crianças e adolescentes com FS não desenvolvem bem suas habilidades sociais e podem tornam-se pessoas restritas e solitárias. O medo do confronto com a situação evitada é intenso e irracional. Adolescentes geralmente reconhecem que seus medos são exagerados. No entanto, crianças menores não percebem o quanto seu medo é irracional (Quadro VI).
62 TRANSTORNOS ANSIOSOS E EMOCIONAIS NA INFÂNCIA
Quadro V
Critérios diagnósticos para transtorno de pânico e para agorafobia, segundo o OSM- IV' 22
Transtorno de pânico
A. A característica essencial do transtorno de pânico é a presença de ataques de pânico recorrentes e inesperados, seguidos por pelo menos 1 mês de preocupação persistente acerca de ter um outro ataque de pânico, preocupação acerca das possíveis implicações ou consequências dos ataques, ou uma alteração comportamental significativa relacionada aos ataques. B. Presença ou ausência de agorafobia. C. Os ataques de pânico não se devem aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p. ex., intoxicação com cafeína) ou de uma condição médica geral (p. ex., hipertireoidismo). O. Os ataques de pânico não são mais bem explicados por um outro transtorno mental (p. ex., fobia específica ou social, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno de estresse pós- traumático ou transtorno de ansiedade de separação). Agorafobia
A. Ansiedade por estar em locais ou situações em que possa ser difícil (ou embaraçoso) escapar ou em que o auxílio possa não estar disponível, com eventual ataque de pânico inesperado ou predisposto pela situação, ou ainda sintomas tipo pânico. Os temores agorafóbicos tipicamente envolvem agrupamentos característicos de situações que incluem: estar fora de casa desacompanhado, estar em uma multidão ou permanecer em uma fila, estar em uma ponte, viajar de ônibus, trem ou automóvel. B. Situações como viagens e ocasiões que exigem companhia são evitadas, restringidas ou suportadas com acentuado sofrimento ou possível ataque de pânico ou sintomas tipo pânico. C. A ansiedade ou esquiva agorafóbica não é mais bem explicada por outro transtorno mental, como fobia social (p. ex., a esquiva se limita a situações sociais pelo medo do embaraço), fobia específica (p. ex., a esquiva se limita a uma situação específica, como elevadores), transtorno obsessivocompulsivo (p. ex., esquiva à sujeira em alguém com obsessão de contaminação), transtorno de estresse pós- traumático (p. ex., esquiva de estímulos associados a um estressor intenso) ou transtorno de ansiedade de separação (p. ex., esquiva a afastar-se do lar ou de parentes).
Quadro VI
Critérios diagnósticos para fobia social. segundo o OSM- IV' 22
A. Medo ou temor acentuado de uma ou mais situações sociais ou de desempenho, em que o indivíduo é exposto a pessoas estranhas ou ao possível escrutínio causado por outras pessoas. O indivíduo teme agir de modo humilhante e embaraçoso para si próprio ou mostra sintomas de ansiedade. Obs.: Em crianças, a ansiedade deve ocorrer em situações que envolvam seus pares e não somente interações com adultos. B. A exposição à situação social temida, quase invariavelmente, provoca ansiedade que, por sua vez, pode assumir a forma de um ataque de pânico ligado à situação. Obs.: Em crianças, a ansiedade pode ser expressa como choro, ataques de raiva, imobilidade ou afastamento de situações sociais com pessoas estranhas. C. A pessoa reconhece o medo como excessivo e irracional, o que pode não acontecer com crianças. O. As situações sociais e de desempenho temidas são evitadas ou suportadas com intensa ansiedade e sofrimento. E. A esquiva, a antecipação ansiosa ou o sofrimento na situação social ou de desempenho temida interferem significativamente na rotina, no funcionamento ocupacional/acadêmico, em atividades sociais ou relacionamentos do indivíduo. O sofrimento pode ainda acentuar- se por causa da fobia.
F. Em menores de 18 anos, a duração mínima é de seis meses. G. O temor ou a esquiva não se devem a efeitos fisiológicos diretos de uma substância ou de uma condição médica geral nem são mais bem explicados por outro transtorno mental. H. Na presença de uma condição médica geral ou outro transtorno mental, o critério A não tem relação com os demais.
Mutismo seletivo Embora um transtorno raro, ainda sem etiologia definida, o mutismo seletivo (MS) foi identificado pela primeira vez no século XIX, quando Kussmaul nomeou a aphasia voluntaria, em 1877, para descrever a condição em que o indivíduo poderia voluntariamente não falar em determinadas situações. Em 1934, Tramer cunhou o termo mutismo eletivo para um grupo de crianças que falava apenas com um pequeno grupo de pessoas íntimas, em situações muito específicas, geralmente em casa. São crianças capazes de falar, mas que optam por não se comunicar ou não podem falar em certas circunstâncias ou com certas pessoas. Atualmente, o DSM-IV-TR des-
creve a condição como mutismo seletivo, com a palavra seletivo enfatizando as situações seletivas características em que o fracasso de falar ocorre, mais do que a intenção de não falar que os termos prévios implicavam60 (Quadro VII). O mutismo seletivo é um transtorno bastante raro da infância, caracterizado pela capacidade de compreender a linguagem e de falar, mas de não o fazer em certas situações. Muitas vezes o transtorno é muito frustrante para os profissionais e os pais, que não sabem como fazer com que a criança fale. As crianças com mutismo seletivo podem ter desempenho escolar inferior e comprometimento dos re lacionamentos com os colegas em razão da falta da fala.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Quadro VIl Critérios diagnósticos para mutismo seletivo, segundo o DSM-IV122
A. Fracasso persistente em falar em situações sociais específicas, nas quais existe a expectativa para falar (p. ex., na escola), apesar de falar em outras situações. B. A perturbação interfere na realização educacional ou na comunicação social. C. A duração da perturbação é de, no mínimo, um mês (não limitada ao primeiro mês de escolarização). O. O fracasso em falar não é devido à falta de conhecimento ou um desconforto com a linguagem falada exigida pela situação social. E. A perturbação não é mais bem explicada por um transtorno da comunicação (p. ex., tartamudez) nem ocorre exclusivamente durante o curso de um transtorno invasivo do desenvolvimento, uma esquizofrenia ou outro transtorno psicótico.
Em geral, é diagnosticado na pré-escola e maternal, quando se espera que a criança comece a interagir em um ambiente mais amplo. Em vez de se comunicarem pela verbalização, essas crianças podem comunicar-se por gestos, acenos ou balanços de cabeça, puxando ou em purrando ou, em alguns casos, por monossílabos ou sussurros49. Em geral, crianças com mutismo seletivo falam livremente em ambientes selecionados, seja a casa ou outro lo cal. A condição não é devida a uma alteração biológica, mas a uma inibição psicológica da fala em situações selecionadas. Essas crianças geralmente não apresentam evidências de lesões cerebrais ou doenças neurológicas. A criança desenvolve o mutismo seletivo como resultado de traumas emocionais e conflitos parentais, sobretudo em famílias nas quais o silêncio é usado entre os pais para expressar hostilidade e controle, reforço do comportamento de não falar, entre outras possíveis causas. O aparecimenta do mutismo costuma ocorrer entre as idades de 3 a 5 anos, após um período de desenvolvimento normal da linguagem. Antes de entrar na escola, a criança que reluta em falar com pessoas de fora da família pode ser vista como normalmente tímida. Como consequência, a avaliação não ocorre até que a criança entre na escola e fracasse em falar, sendo notada pelos professores e outras . cnanças. O mutismo seletivo é mais relatado entre 5 e 7 anos, geralmente, a idade em que a criança entra na escola, sendo que o padrão comum é que a criança fala em casa, mas não na escola. É bastante claro que há muitas crianças entre 3 e 4 anos que podem apresentar mutismo transitoriamente, podendo ser perfeitamente fluentes em casa mas, em um local novo, tal como a escola ou o consultório médico, podem falar pouco, raramente ou apenas sussurrar. Um ponto crítico para o diagnóstico é estabelecer se há ou não anormalidade significativa da compreensão ou da produção da linguagem que possa levar ao mutismo. Na maioria dos casos, o exame neurológico e audioló-
gico são ambos normais. Geralmente, não se encontram complicações perinatais graves, mas pequenas anormalidades do desenvolvimento podem estar presentes, inclusive no desenvolvimento da aquisição da linguagem60 • A sua associação à timidez, à ansiedade, e seu aparecimento nas situações sociais levaram o mutismo a se aproximar da fobia social. Apresentam muitas vezes timidez excessiva, medo de embaraço social, isolamento social e retraimento, negativismo, ataques de temperamento ou comportamento controlador ou opositor, particularmente em casa. Pode haver um intenso comprometimento do fun cionamento social e escolar, sendo que essas crianças muitas vezes são caçoadas ou feitas de bode expiatório pelos colegas49 . Há poucos dados sobre a evolução do transtorno não tratado. Quando a criança apresenta mutismo na escola, pode conservar, durante muito tempo, uma atividade escrita e progredir de forma aparentemente normal na sua escolaridade (ditado, cálculo, lição transmitida por escrito). A remissão espontânea parece ser muito rara e, quando essas crianças começam a falar espontaneamente, tendem a parar novamente.
Tratamento Dados da literatura indicam que o tratamento de crianças e adolescentes com TAlA deve ter uma abordagem múltipla, incluindo psicoeducação, intervenções cognitivo-comportamentais, consultoria escolar, terapia familiar, terapia psicodinâmica e farmacoterapia61 • Crianças com sintomas ansiosos transitórios geralmente respondem a reasseguramento e suporte. Crianças com sintomas ansiosos leves a moderados, com pouco prejuízo funcional, respondem a intervenções educacionais com seus pais. Crianças com níveis de ansiedade maio res, com prejuízo funcional significativo, devem ser encaminhadas para tratamento específico6 2 • Atualmente, muitos clínicos e pesquisadores acreditam que a combinação da terapia cognitivo-comportamental (TCC) direcionada ao transtorno e medicamento é o tratamento atual de escolha para a maioria das crianças e adolescentes com transtornos de ansiedade. Na abordagem biopsicossocial, o tratamento combinado é a regra mais do que a exceção, como na maioria das áreas da medicina63 . A farmacoterapia deve ser considerada quando há presença de sintomas graves, causando comprometimento à vida do jovem6\ ineficácia da TCC (ou recusa do tratamento por parte do paciente) e/ou presença de comorbidades, tais como depressão maior.
Tratamento não medicamentoso Terapia cognitivo-comportamental (fCC)
Há um consenso de que, sempre que possível, o tratamento de crianças ansiosas deva ser iniciado com abor-
62 TRANSTORNOS ANSIOSOS E EMOCIONAIS NA INFÂNCIA
dagem não medicamentosa antes da utilização de medicações 62 . Vários estudos controlados vêm mostrando a eficácia da TCC para os TAlA. A TCC tem o objetivo de ensinar os jovens a identificar sintomas ansiosos, utilizar técnicas de manejo da ansiedade e modificar distorções cognitivas. Albano e Kendall65 descrevem cinco componentes da TCC para TAlA: psicoeducação para a criança e os pais; treino de habilidades para manejo de sintomas somáticos; reestruturação cognitiva; métodos de exposição; e planos de prevenção de recaída. O primeiro estudo clínico randomizado que investigou a eficácia da TCC comparada à lista de espera nos TAlA foi realizado por Kendall 66 . Os resultados revelam que os pacientes tratados com TCC tiveram ganhos significativos e que esses ganhos mantiveram -se no seguimento de um ano. Em 2007, publicou-se uma metanálise de 24 ensaios clínicos, nos quais o tratamento ativo era a TCC para transtornos ansiosos (TAG, TAS, FS, FSi, TP) em crianças e adolescentes. Em 12 estudos foi incluído o tratamento individual e em 15, terapia em grupo. Em 17 estudos foi incluído tratamento focado na criança/adolescente e 14, tratamento focado na família. Em 16 estudos foi utilizado lista de espera como controle, enquanto o restante utilizou uma terapia alternativa (psicoeducação em ansiedade/intervenções inespecíficas) como controle. Em 16 estudos fo ram relatados dados de seguimento (sendo três deles a longo prazo, até 7,4 anos). A duração do tratamento variou de 3 a 18 sessões. O número total de pacientes foi 1.275, com idade média de 10,9 anos (6- 18 anos). Os resultados mostraram a utilidade da TCC no tratamento desses transtornos. O tamanho do efeito do tratamento foi de 0,86 em comparação a 0,13 na condição de lista de espera. Na condição de controle com terapia alternativa, o tamanho do efeito foi de 0,58. Das crianças que completaram o tratamento, 68,9% não preenchiam mais critérios diagnósticos para o transtorno ansioso principal, em comparação a 12,9% das crianças em lista de espera. Não houve diferenças de resposta entre tratamentos individuais e em grupo, assim como entre tratamentos focados na criança e na família. Os dados do seguimento mostraram que os ganhos mantiveram-se por vários anos após o tratamento67 .
tamento importante, realizado, durante algum tempo, por intermédio do desenho e do brincar, tendo a vantagem de permitir uma abordagem da economia psíquica e de resolver conflitos intrapsíquicos. Deverá, também ser associada a um trabalho com a família e a escola. No entanto, há poucos dados de pesquisa que suportem esse modelo e que comprovem sua eficácia, havendo, portanto, necessidade de mais pesquisas nessa área61. Terapia familiar
A terapia familiar é outra opção terapêutica, especialmente relevante quando fatores familiares têm um papel importante no desenvolvimento e na manutenção dos TAlA. Embora a eficácia da terapia familiar não seja bem definida, incluir a família no processo terapêutico pode ter um importante papel na recuperação da criança. Intervenções familiares buscam melhorar o relacionamento de pais e filhos, a capacidade familiar de resolução de problemas, reduzir a ansiedade dos pais e orientá-los quanto a métodos de reforçar o manejo da ansiedade da criança e sua autonomia. O tratamento de crianças com sintomas ansiosos pode ser beneficiado pelo aumento da habilidade parental de reconhecer e tolerar o desconforto da criança, sem evitação ou intrusão (treinamento parenta!). Historicamente, a avaliação familiar é unidirecional, assumindo que os pais influenciam a criança, mas que a criança não afeta o comportamento parenta!. O envolvimento dos pais é ainda mais necessário quando eles apresentam também algum TA61. Alguns estudos mostram melhor resultado da TCC quando é acrescentada intervenção com pais69 . Considerando-se a intensa atenção às ameaças dada por pais com ansiedade, eles podem estar mais predispostos a notar ameaças po tenciais ao seu filho, levando-o a um cuidado protetor excessivo. Talvez a expressão de afetos negativos pela criança crie desconforto em pais ansiosos, cuja atenção se foca em diminuir esses afetos. Tais pais não ensinam a seus filhos recursos adaptativos para lidar com o desconforto e os afetos negativos, contribuindo para aumentar a ansiedade infantil. A evolução da criança é mais favorável em um ambiente caloroso e aprovado r, que permita a ela experimentar as situações, colher informações da experiência e desenvolver habilidades adaptativas70 .
Psicoterapia psicodinâmica
Vários relatos de caso indicam benefícios da psicoterapia psicodinâmica no tratamento de TAlA. A psicoterapia psicanalítica, ou ludoterapia (play therapy), em crianças, é intensiva, longa e envolve uma extensa exploração da história individual. O foco é conhecer e tornar consciente o conflito intrapsíquico. Ao brincar, os jogos trazem benefícios, como ensinar a criança a controlar os impulsos e lidar com seus sentimentos, permitindo-lhe, de forma segura, descarregar simbolicamente as agressões e os problemas afetivos68. A psicoterapia psicanalítica é um tra-
Tratamento medicamentoso As classes de medicações utilizadas para manejo dos transtornos ansiosos na infância e na adolescência incluem anti depressivos, ansiolíticos, tranquilizantes maiores/antipsicóticos e alternativas como betabloqueadores, anti-histamínicos e antiepilépticos71 . Entre as classes de medicações utilizadas para o manejo dos TAlA, as mais estudadas são os ansiolíticos e os antidepressivos. Dentre os antidepressivos, destacam-se os inibidores seletivos da
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
recaptação de serotonina (ISRS), a venlafaxina e os antidepressivos tricíclicos (ADT). Como TAG, TAS e FS comumente ocorrem em comorbidade nas crianças e nos adolescentes, a maioria dos ensaios clínicos avalia esses diagnósticos em conjunto. Assim, as indicações de tratamento farmacológico dos três quadros serão abordadas como um todo.
Ansiolíticos Benzodiazepínicos
Existem poucos dados confiáveis a respeito do uso de benzodiazepínicos em crianças e adolescentes. Há uma preocupação em relação a seus efeitos colaterais, como a desinibição comportamental e o potencial de abuso e dependência. Os principais estudos publicados com essas medicações são dois ensaios clínicos controlados com placebo. Bernstein et al. 72 compararam, durante 8 semanas, alprazolam (dose média de 1,8 mg/dia), imipramina (dose média de 164 mg/dia) e placebo em 24 crianças e ado lescentes (de 7 a 17 anos), com recusa escolar e um diagnóstico de transtorno ansioso ou depressivo. Os escores pós-tratamento na Anxiety Rating for Children foram significativamente diferentes entre os grupos, observando-se melhor evolução nos grupos de tratamento ativo. Nas escalas de depressão, também foi observada melhora mais acentuada nos grupos em uso de alprazolam e imipramina. Entretanto, análises de covariância (sendo as covariantes os escores pré-tratamento) não demonstraram diferenças significativas entre os grupos nas medidas de ansiedade e depressão. Graae et al. 73 avaliaram o uso de clonazepam ( 0,5 2,0 mg/ dia) comparado a placebo em 15 crianças (7 - 13 anos), predominantemente com diagnóstico de TAS. Foram encontrados efeitos colaterais de sonolência, irritabilidade e comportamento opositivo em dez crianças em uso de clonazepam, comparados a cinco em uso de placebo. As comparações estatísticas não comprovaram os benefícios do clonazepam. Pelo seu perfil de efeitos colaterais, evidência limitada de eficácia e potencial de abuso e dependência, os tratamentos com benzodiazepínicos em crianças devem ser curtos e limitados a casos de ansiedade aguda, em associação a um ISRS ou ADT, até o antidepressivo começar a fazer efeito. Alternativamente, poderiam ser considerados para o tratamento dos TAlA quando outras abordagens e medicações tenham falhado 74 •
Anti depressivos Antidepressivos tricíclicos
Em relação aos ADT, existem poucos estudos controlados e randomizados com crianças e adolescentes. A maioria deles envolve a imipramina. A clomipramina mos-
trou ser uma alternativa terapêutica medicamentosa eficaz aos ISRS para o tratamento agudo dos TA em populações adultas 75 • Gittelman-Klein e Klein76 relataram um estudo duplo-cego, controlado por placebo, no qual se utilizou imipramina em 35 crianças e adolescentes (idades de 6 a 14 anos), com recusa escolar e resistentes ao tratamento com terapia comportamental. A imipramina foi administrada em uma dose média de 159 mg/dia por 6 semanas, associada ao tratamento comportamental. A resposta foi de 81 % no grupo que recebeu medicamento contra 4 7% no que recebeu placebo. Quanto aos efeitos colaterais, so mente boca seca ocorreu com mais frequência no grupo que recebeu imipramina. Dois estudos que tentaram replicar esses resultados não foram bem-sucedidos72•77 • Essa discrepância nos resultados pode estar relacionada à heterogeneidade de diagnósticos dentro da classificação de "recusa escolar': Levando-se em conta os resultados desses estudos, Klein et al. 77 sugerem que o uso de imipramina não necessita ser excluído do tratamento de transtornos ansiosos infantis, mas o efeito sugerido no primeiro estudo não pode ser comumente esperado. Mais recentemente, Bernstein et al. 78, em estudo de 8 semanas, compararam a imipramina a placebo, em associação a TCC, para o tratamento de adolescentes (n = 47) com recusa escolar, transtornos de ansiedade ou depressão. Os escores das escalas clínicas de ansiedade e depressão apresentaram redução significativa em ambos os grupos, com a depressão tendo melhora mais rápida no grupo da imipramina. Esse grupo também demonstrou uma melhora significativamente mais rápida no comparecimento à escola em relação ao grupo do placebo. Na última semana de tratamento, o comparecimento à escola foi de 70,1 % no grupo da imipramina e de 27,6% no grupo do placebo. Um estudo duplo -cego controlado por placebo com a clomipramina (40-75 mg/dia) foi realizado com 46 crianças e adolescentes com recusa escolar. Após 12 semanas de tratamento, concluiu-se que o grupo que recebeu clomipramina não apresentou melhora clínica79 • Nesse estudo, as dosagens baixas tornam difícil a interpretação dos resultados. Os efeitos colaterais mais relatados com o uso dos ADT são: boca seca, visão borrada, constipação, náuseas, hipotensão ortostática, tontura, sedação ou insônia, perda ou ganho de peso. Frequentemente são transitórios e podem ser minimizados por ajuste gradual de dose. Existem relatos esparsos de irritabilidade e agitação. Os efeitos colaterais cardíacos levantam a maior preocupação com o uso dessas medicações. Deve-se solicitar um eletrocardiograma (ECG) de base antes do início do tratamento, além de medir a pressão arterial e pulso. Recomendase repetir o ECG e checar o nível sérico da droga, após chegar a uma dose efetiva74 . Há também a recomendação de iniciar o tratamento com doses baixas (10-25 mg/dia),
62 TRANSTORNOS ANSIOSOS E EMOCIONAIS NA INFÂNCIA
com aumentos graduais. A dose máxima é de 5 mg/kg/ dia. A descontinuação do medicamento deve ser gradual, para evitar sintomas de retirada (inquietação, insônia e irritabilidade) 74 . lnibidores seletivos de recaptura da serotonina
Destacam -se seis estudos controlados que avaliaram o uso de medicações para o tratamento agudo dos TAlA. O primeiro avaliou o uso de fluvoxamina (até 300 mg/dia) comparado a placebo em 128 crianças e adolescentes (idades entre 6 e 17 anos) com TAG, FS e/ou TAS durante oito semanas. A fluvoxamina foi considerada eficaz (76% dos indivíduos responderam a fluvoxamina; 29%, ao placebo) e bem tolerada. Os efeitos colaterais apresentados foram cefaleia, sintomas gastrintestinais, ativação motora e sonolência80. Rynn et al.8 1 compararam durante nove semanas o uso de sertralina (dose máxima 50 mg/dia) e de placebo em 22 crianças e adolescentes, com idades entre 5 e 17 anos, com TAG como diagnóstico primário. A sertralina foi superior ao placebo em todas as medidas de avaliação a partir da 4a semana de tratamento e considerada segura (90% dos pacientes responderam ao medicamento e 10% ao placebo). No terceiro estudo, avaliou-se, por 12 semanas, o uso de fluoxetina (20 mg/dia; n = 37) comparado a placebo (n = 37) em crianças e adolescentes de 7 a 17 anos com diagnósticos de TAG, TAS ou FS. A fluoxetina foi eficaz na redução de sintomas ansiosos e melhora do funcionamento global do paciente; 61% dos que receberam fluoxetina e 35% dos que receberam placebo foram considerados melhores ou muito melhores. No entanto, os autores relataram que, apesar da melhora, muitos indivíduos ainda apresentavam sintomas residuais no final do estudo39. Nessa pesquisa, a utilização de doses baixas de fluoxetina (20 mg/ dia) poderia explicar a presença de sintomas residuais no final do ensaio clínico. Após esse ensaio controlado, 52 crianças e adolescentes foram seguidas em tratamento aberto (n = 42) pelo período de um ano, comparadas àquelas sem medicamento (n = 10). Os participantes em uso de fluoxetina obtiveram uma redução mais acentuada dos sintomas ansiosos em comparação ao grupo-controle. Ao final, somente 5% foram avaliados como sem resposta, em contraste a 30% do grupo sem medicamento82 • O quarto estudo comparou, durante 16 semanas, a paroxetina (10-50 mg/dia) a placebo em 322 crianças (8 a 11 anos) e adolescentes (12 a 17 anos) com FS como o transtorno psiquiátrico predominante (comorbidades de FSi, TAG e TAS). O grupo com paroxetina teve uma resposta significativamente maior comparado ao grupo placebo (77,6% respondedores vs. 38,3% ). Os efeitos colaterais mais apresentados foram insônia, hiporexia e vômitos83 . Mais recentemente, foi realizado um estudo que compara a fluoxetina a um programa de TCC direcionado à fobia social (Social Effectiveness Therapy for Children -
SET-C) e a placebo em crianças e adolescentes (n = 139). Os resultados mostram superioridade de ambas as modalidades de tratamento comparadas a placebo (taxa deresposta no CGI: SET-C = 79%; fluoxetina = 36,4%; placebo = 6,3%). Na comparação entre os tratamentos, embora ambos tenham sido associados à redução da ansiedade social, a SET-C mostrou melhores resultados, sobretudo nas medidas de competência social. No seguimento de 1 ano, os ganhos de tratamento foram mantidos 84. Finalmente, Walkup et aJ.8 5 avaliaram 488 crianças e adolescentes (7- 17 anos) com TAG, TAS e/ou FS divididos em quatro grupos: terapia combinada de TCC e sertralina; TCC isoladamente; sertralina isoladamente e placebo. As taxas de resposta foram de 80,7% para a terapia combinada; 59,7% para TCC; 54,9% para sertralina e 23,7% para placebo. Os dados da Tabela I resumem os resultados dos estudos com os ISRS descritos. Os efeitos colaterais mais relatados, tanto nos estudos citados, como nos estudos com adultos foram cefaleia, náuseas, sonolência, insônia, hiporexia, dor epigástrica, ansiedade, agitação ou ativação. A desinibição comportamental parece ser dose-dependente, não sendo claro se as crianças têm um risco maior de apresentar esse efeito colateral. As reações adversas parecem ser transitórias, geralmente não necessitando descontinuar o tratamento74. Sintomas de retirada como tontura, náuseas, cefaleia, transtornos sensoriais, estados hipomaníacos, agressividade e ideação suicida têm sido relatados. Assim, os ISRS com meia-vida curta não devem ser descontinuados abruptamente74. As vantagens dos ISRS incluem o perfil de efeitos colaterais favoráveis, relativa segurança em altas doses e quase completa ausência de efeitos cardíacos86 . Venlafaxina
Estudos controlados demonstraram eficácia e to lerabilidade da venlafaxina no tratamento de transtornos ansiosos em adultos, incluindo FS, TAG, TEPT, TP e TOC87. Os estudos existentes em crianças e adolescentes mostram benefícios similares a essa faixa etária. Rynn et al. 88 compararam durante 8 semanas a venlafaxina (n = 157) a placebo (n = 163) em dois ensaios clínicos multicêntricos e controlados em crianças e adolescentes (6- 17 anos) com TAG. A venlafaxina mostrou taxa de resposta significativamente maior em comparação ao placebo ( 69% vs. 48%, p = 0,004). Os efeitos colaterais mais significativos relatados foram astenia, hiporexia, dor e sonolência. No mesmo ano, March et al.89 publicaram os resultados do seu ensaio clínico randomizado multicêntrico. As taxas de resposta (CGI = 1 ou 2) foram de 56% da venlafaxina ER e 37% do placebo no tratamento de crianças e adolescentes (8 -17 anos/n = 293) com fobia social generalizada. Os efeitos colaterais mais comuns com a venlafaxina foram náusea, cefaleia, tontura e nervosismo.
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Tabela I Ensaios clínicos controlados com ISRS para TAlA
Estudo
Sujeitos
Intervenção
Duração
Resultados
Significância
RUPP, 2001 80
6- 17 anos TAS, TAG, FS
Fluvoxamina até 300 mg/d (n: 63) Placebo (n: 65)
8 sem.
CGI-1< 3 Fluvoxamina = 760fo Placebo = 290fo
p < 0,001
Rynn, 2001 81
5- 17 anos TAG
Sertralina 25-50 mg/d (n: 11) Placebo (n: 11)
9 sem.
CGI-1< 2 Sertralina = 900/o Placebo = 1oo;o
p < 0,001
Birmaher, 200339
7- 17 anos TAS, TAG, FS
Fluoxetina 10-20 mg/d (n: 37) Placebo (n: 37)
12 sem.
CGI-1< 2 Fluoxetina = 61 Ofo Placebo = 350fo
p = 0,03
Wagner, 200483
8- 17 anos FS
Paroxetina 10-50 mg/d (n: 163) Placebo (n: 156)
16 sem.
CGI-1< 2 Paroxetina = 770fo Placebo = 38%
p < 0,001
Beidel, 200784
7- 17 anos FS
SET-C (n: 57) Fluoxetina 40 mg/d (n: 33) Placebo (n: 32)
12 sem.
CGI < 2 SET-C = 79% Fluoxetina = 36,4% Placebo = 6,30fo
P < 0,001 (SET-C vs. fluoxetina ou placebo) P < 0,005 (fluoxetina vs. placebo)
Walkup, 200885
7- 17 anos TAS, TAG, FS
TCC + sertralina (n: 140) Sertralina 25-200 mg/d (n: 133) TCC (n: 139) Placebo (n: 76)
12 sem.
CGI < 2 TCC + sertralina = 80,7% TCC = 59,7% Sertralina = 54,90fo Placebo = 23,7%
p < 0,001 (tratamentos ativos comparados com placebo e terapia combinada com monoterapias)
TAG: transtorno de ansi edade generalizada; TAS: transtorno de ansi edade de separação; FS: fobia social; mg/d: miligramas por dia; sem.: semanas; CGI: Clinicai Globallmpression; SET-C: Social Effectiveness Therapy for Children; TCC: terapia cognitivo-comportamental.
Mutismo seletivo (MS) O tratamento inicial indicado é a abordagem psicoterápica, com suporte de pais e professores. Se a criança não responder, deve-se considerar a associação de tratamento farmacológico, considerando-se a gravidade do transtorno e a presença de comorbidades90 . As intervenções farmacológicas têm um papel importante no mutismo seletivo, dado sua associação com a ansiedade social. Os antidepressivos produziram redução dos sintomas de mutismo seletivo em vários relatos de casos. Em estudos não controlados, cerca de 70% dos pacientes apresentaram melhora com o uso de fluoxetina9 1• Esses dados sugerem haver algum benefício com a utilização de ISRS92 • A fluoxetina é atualmente o ISRS mais empregado. Em um estudo que comparou a fluoxetina (n = 6) a placebo (n = 9) por 12 semanas, os participantes tratados com fluoxetina tiveram uma melhora mais acentuada em relação ao grupo-controle nas escalas para pais. Nas escalas para médicos e professores não houve diferença significativa93 • O benefício de outros psicofármacos é menos evidente. A fluvoxamina mostrou-se uma boa opção no caso
de um paciente com transtorno obsessivo-compulsivo associado ao mutismo seletivo 9\ da mesma forma que a paroxetina em um caso de mutismo seletivo, ansiedade social e ansiedade de separação. Por fim, há relato de melhora em paciente com mutismo e síndrome de Tourette após a introdução de haloperidol95. Questões sobre a dose efetiva, duração do tratamento e evolução dos pacientes após a retirada da medicação são pouco claras. Vários relatos de caso sugerem um aumento da eficácia quando é feita a combinação de tratamentos96 •97 . Assim, ISRS associados à terapia familiar e comportamental parecem oferecer um melhor resultado do que os tratamentos isolados. Ainda não há estudos que comparem a evolução dos diferentes tratamentos. No entanto, apesar da falta de fortes evidências e de dados de longo prazo ob tidos por estudos comparativos, o tratamento com ISRS parece promissor98 .
Transtorno de pânico (TP) Estudos controlados e randomizados sobre o tratamento do transtorno de pânico em crianças e adolescentes ainda não estão disponíveis. As orientações para o uso
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de medicamentos são principalmente baseadas nas informações disponíveis para a população adulta. Um ensaio clínico aberto avaliou o uso de ISRS em 12 pacientes infantis com TP; 75% obtiveram melhora e 67%, remissão do quadro 99 • Dados em adultos e ensaios abertos sugerem a indicação de ISRS para o tratamento do TP em crianças e adolescentes. Eles devem ser iniciados em doses baixas, em razão do potencial de exacerbação dos sintomas no início do tratamento. Por causa da falta de informação relativa ao uso de benzodiazepínicos para TP nessa faixa etária, eles não devem ser considerados uma primeira escolha92 •
no tratamento da ativação e impulsividade vistos no TEPT 100 • Harmon e Riggs 104 relataram o uso de clonidina (na forma de emplastros) em sete crianças (de 3 a 6 anos) em um estudo aberto. As crianças não haviam respondido a tratamento psicoterápico prévio; obtiveram melhora em relação a sintomas de hiperativação, insônia e agressividade. Os autores observaram a necessidade de monitorização cuidadosa em razão do risco de hipotensão e to lerância aos efeitos terapêuticos com o uso continuado. Betabloqueadores
Há uma escassez de estudos que abordam o tratamento farmacológico do TEPT em crianças e adolescentes. O primeiro passo no tratamento de TEPT infantil é a psicoeducação da criança, pais ou outros cuidadores. O tratamento deve ser iniciado com abordagens psicoterápicas, sendo a TCC o tratamento mais embasado por dados empíricos. O uso de medicação deve ser considerado em casos graves ou que não responderam às intervenções psicoterápicas 100 •
Um estudo aberto de 5 semanas mostrou que o propranolol (2,5 mg/kg/dia) promoveu a redução de sintomas de TEPT em 8 de 11 crianças vítimas de abuso. A melhor resposta foi em relação a sintomas de hipervigilância e hiperativação 105 • Embora existam poucos estudos controlados sobre o tratamento farmacológico para TEPT na população infantil, os ISRS são recomendados como uma primeira escolha entre as medicações disponíveis, em razão do seu espectro de efeitos mais abrangente e padrão de efeitos colaterais favorável. Em casos de comorbidade, isso deve ser levado em conta para a escolha da medicação.
lnibidores seletivos de recaptação da serotonina
Fobias específicas (FE)
Transtorno de estresse pós-traumático (TEPn
Há muitos estudos que embasam o uso de ISRS (fluoxetina, sertralina, paroxetina e fluvoxamina) no TEPT em adultos 100 • No entanto, relatos de uso de ISRS para esse transtorno em crianças são praticamente inexistentes. Um ensaio aberto de 12 semanas mostrou melhora significativa nas escalas de avaliação com o uso de citalopram em oito adolescentes com TEPT 101 • Cohen et al. 102 realizaram um ensaio controlado piloto comparando TCC facada em trauma + sertralina a TCC facada em trauma + placebo, para avaliar o possível benefício da adição de um ISRS a TCC. Foram avaliadas 24 meninas ( 10-17 anos) vítimas de abuso sexual. Ambos os grupos mostraram melhoras. Na comparação entre os grupos, somente as taxas da Child Global Assessment Scale (C-GAS) favoreceram o grupo com associação da sertralina, demonstrando evidência discreta do benefício do tratamento combinado em relação à TCC isolada.
O tratamento farmacológico para FE também é uma área inexplorada, presumivelmente pelo fato de o tratamenta de escolha para esses transtornos ser a terapia de exposição e não farmacológica61 .
Outros medicamentos utilizados Antipsicóticos
Não existem estudos que corroboram o uso dessas medicações para ansiedade, tanto dos antipsicóticos clássicos, como dos atípicos71 • Um transtorno de ansiedade de separação neuroléptico tem sido descrito em pacientes com síndrome de Tourette ou TOC que receberam antipsicóticos (haloperidol, pimozide ou risperidona) 86 • Estabilizadores de humor
Antidepressivos tricíclicos
Existe um estudo piloto, prospectivo, duplo -cego, comparando imipramina (1 mg/kg/dia) a hidrato de cloral (25 mg/kg/dia) no tratamento de reação aguda ao estresse em 25 crianças e adolescentes (de 2 a 19 anos), vítimas de queimaduras graves. A imipramina foi significativamente mais eficaz que o hidrato de cloral. Os sintomas mais responsivos foram jlashbacks durante o sono e insônia 103 . Agentes adrenérgicos
Agentes adrenérgicos, como a clonidina e a guanfacina, reduzem a ativação simpática, podendo ser eficazes
Existem evidências em forma de relatos de caso, séries de casos e estudos abertos que sugerem a utilidade de medicações anticonvulsivantes no tratamento de transtornos ansiosos. Mais recentemente, surgiram dados de estudos placebo-controlados sugerindo a eficácia da pregabalina, gabapentina, lamotrigina e ácido valproico em determinados transtornos de ansiedade em adultos 106 • Steiner et al. 107 avaliaram o efeito do divalproato de sódio em um grupo de 12 adolescentes, meninos com diagnóstico de transtorno de conduta e comorbidade com TEPT, comparando o efeito do medicamento entre um grupo com alta dose (entre 500 e 1.500 mg/dia, n = 6) e baixa dose (até 250 mg/dia, n = 6). Houve associação entre o
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uso de alta dose e melhora na avaliação pelo CGI, assim como redução dos sintomas do TEPT.
Tratamento com ISRS e o risco de suicídio Tem surgido preocupações a respeito do potencial para aumento de pensamentos e/ ou comportamentos suicidas com o tratamento de ISRS em crianças e adolescentes. Em outubro de 2003, o FDA dos Estados Unidos publicou um alerta de saúde pública sobre relatos de crianças e adolescentes tomando antidepressivos que tentaram ou cometeram suicídio. Em dezembro de 2003, a Medicines and Healthcare Products Regulatory Agency, da Inglaterra, publicou uma carta a médicos, desaconselhando o uso de quase todos os antidepressivos em jovens com menos de 18 anos. Na mesma época, a European Medicines Agency publicou um alerta semelhante. No início de 2004, o FDA levantou a possibilidade de uma ligação entre suicídio e uso de antidepressivos, re comendando cuidado a médicos, pacientes e familiares. Em outubro do mesmo ano, ordenou a colocação de um alerta em todos os antidepressivos quanto ao possível aumento do risco de pensamentos e comportamento suicidas em jovens que tomam essas medicações. Foi recomendado ainda o uso de um guia sobre a utilização das medicações, a ser discutido com pacientes e pais, além de monitoração e visitas mais frequentes para crianças e adolescentes em uso de ISRS. Essa resolução baseou-se em dados de uma metanálise108. A revisão incluiu 23 ensaios clínicos controlados por placebo, abordando nove antidepressivos (fluoxetina, sertralina, paroxetina, fluvoxamina, citalopram, bupropiona, venlafaxina, nefazodona e mirtazapina) em crianças e adolescentes, buscando avaliar o risco de suicídio com o uso dessas medicações nessa faixa etária. Os diagnósticos estudados incluíam depressão maior, TOC, TAG, FS e TDAH. Concluiu-se que essas medicações provocam um discreto aumento do risco de comportamento e pensamentos suicidas (de até duas vezes). Os autores reconhecem limitações do estudo (p. ex., crianças em uso de medicações podem relatar mais os eventos adversos). Além disso, estudos ecológicos sugerem que o aumento das prescrições de antidepressivos está associado a uma redução do suicídio em adolescentes 109 . Finalmente, estudos de autópsias de suicídios não mos traram evidência de uso de antidepressivos na maioria dos adolescentes. Nesse artigo, os autores procuram deixar claro que o FDA não contraindica o uso dos antide pressivos, mas recomenda que esse risco e a necessidade de seu uso sejam avaliados. Embora alguns estudos que abordam TAG e TOC tenham sido incluídos, a maioria abordava depressão. Quando os estudos que focam transtornos ansiosos foram examinados, o risco r elativo foi 2, com um intervalo de segurança que não indicou significância.
O assunto deve ser considerado no contexto tanto dos riscos como dos benefícios que os antidepressivos pode trazer no tratamento de transtornos psiquiátricos em crianças e adolescentes, assim como dos efeitos do não tratamento. Considerando esses aspectos, Bridge et al. 110 realizaram uma metanálise de 27 ensaios clínicos randomizados e controlados, abordando o tratamento de DM (n = 15), TOC (n = 6) e TAlA (n = 6) na população pediátrica. Foi verificada evidência de eficácia para as três indicações. Os efeitos foram maiores para TAlA (taxa de resposta 69 vs. 39%), intermediários para TOC (taxa de resposta 52 vs. 32%) e menores para DM (taxa de resposta 61 vs. 50%) dos antidepressivos em relação ao placebo. Consistente com a análise do FDA, encontrou-se evidência de risco pequeno, mas aumentado de pensamentos/comportamento suicida com o início do tratamento. Entretanto, a diferença do risco entre antidepressivos e placebo foi menos que 1%. Não houve qualquer suicídio completado. Os resultados indicam que existe um padrão favorável de risco-benefício aos antidepressivos no tratamento de crianças com transtornos psiquiátricos avaliados. Em 2007, Gibbons et ai.I 11 publicaram um estudo ecológico que avaliou dados de taxas de prescrição de ISRS, de 2003 até 2005, em crianças e adolescentes e de taxas de suicídio nessa faixa etária, usando dados disponíveis nos Estados Unidos (até 2004) e nos Países Baixos (até 2005). As prescrições de ISRS reduziram em cerca de 22% em ambos os países. Nos Países Baixos, as taxas de suicídio em jovens aumentou em 49%, entre 2003 e 2005, mostrando uma associação negativa significativa com a prescrição de ISRS. Nos Estados Unidos, a taxa de suicídio nessa população aumentou em 14%, entre 2003 e 2004 (os dados até 2005 não estavam disponíveis na época do estudo). Até 2003, as taxas de prescrição de ISRS vinham aumentando e as taxas de suicídio reduzindo em ambos os países. Como o período de observação do estudo foi pequeno e foi um estudo ecológico, esses dados devem ser interpretados com cuidado em relação a estabelecer-se causalidade, mas devem ser considerados quanto aos possíveis riscos de uma redução na prescrição de ISRS. É importante que esse tipo de tratamento sempre seja realizado com cuidado e monitoração atenta da evolução dos sintomas. Deve-se sempre informar o paciente e familiares quanto aos possíveis riscos e benefícios do tratamento ou sua ausenc1a. A
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Prevenção e políticas de saúde pública para os transtornos de ansiedade Intervenção precoce e prevenção são maneiras pró ativas de minimizar os sintomas ansiosos em crianças e adolescentes 102. Ao intervir precocemente para minimizar os sintomas iniciais e o diagnóstico subsequente, o número de crianças afetadas na população que requereriam aten-
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ção especializada decresce. Consequentemente, há preservação de recursos públicos destinados à implementação de atendimentos secundários e terciários. Entretanto, em todo o mundo, existem poucos programas de prevenção. Mesmo em países com alto índice de desenvolvimento humano - como o Canadá - só 5,5% dos recursos destinados a saúde são utilizados na elaboração de políticas de saúde pública, incluindo os programas de prevenção 112 • O ideal é que os programas de prevenção sejam direcionados para a amenização dos fatores de risco e a promoção dos fatores de proteção. Enquanto ambos os fatores fo rem incertos e dificilmente estudados na infância e na adolescência, a definição metodológica dos estudos de prevenção e o estudo da sua eficácia permanecerão comprometidos. Além disso, considerando a natureza intermitente de muitos dos transtornos psiquiátricos, com surtos e remissões, é fundamental que os estudos de prevenção também mensurem, a longo prazo, a manutenção dos resultados de intervenções preventivas 112• Mesmo com essas limitações, alguns fatores de risco, definidos empiricamente, são passíveis de mudança com intervenção preventiva, apoiada em evidências, satisfazendo os pré-requisitos para a caracterização de um programa eficaz. Os programas de prevenção devem ser implementados buscando identificar precocemente os indivíduos com risco para desenvolvimento de sintomas ou mesmo já com critérios diagnósticos, sem atendimento na comunidade; criar programas psicoeducacionais desenvolvidos nos equipamentos comunitários que recebem o público-alvo; e promover programas de orientação na escola, visando a treinamento de professores, desenvolvimento de habilidades parentais e oferecimento de formas eficientes de triagem e tratamento para pais com ansiedade 102 . As estratégias de prevenção e intervenção precoce são comumente classificadas na literatura especializada em quatro tipos: • universais: estratégias para a promoção de desenvolvimento saudável para todas as crianças; • seletivas: estratégias para prevenção dos transtornos mentais em crianças definidas como grupo de risco; • indicadas: estratégias que garantam atendimento para crianças suspeitas de transtornos mentais, mesmo na presença de sintomas leves; • programas de tratamento: garantia de tratamento adequado para as crianças com diagnóstico de transtorno mental definido. Essa organização didática implica principalmente monitoramento de resultados e é usada na maioria das revisões sistemáticas que avaliam os programas de prevenção existentes 113. O valor de intervenções universais em crianças com transtornos mentais ainda precisa ser confirmado. Os es tudos são poucos e com metodologia variável. A capacidade de modificação dos fatores de risco centrais para o desenvolvimento da ansiedade (intervenção seletiva) ainda tem recebido muito pouca atenção nas linhas atuais de
pesquisa. Os programas de prevenção secundária e terciária (prevenção indicada e programas de tratamento, incluindo a reabilitação) ainda são o foco primordial das políticas de saúde públicas atuais, o que implica repercussões graves, com piora da qualidade de vida de toda a fa mília e maiores gastos do erário estataF 14. Com o desenvolvimento de pesquisas comunitárias em adultos na última década, houve um crescente despertar para a magnitude e o impacto dos transtornos ansiosos (TA) na população em geral. A convergência de achados entre a epidemiologia de adultos e crianças revela que o início dos TA ocorre na infância, e uma substancial porção de jovens com ansiedade continuará manifestando sintomas do espectro ansioso ou de outro transtorno mental ao longo da vida115 . Provavelmente em decorrência desses dados, houve, nos últimos anos, um aumento da atenção para o desenvolvimento de programas de intervenção visando à prevenção dos transtornos de ansiedade nas primeiras décadas de vida. A maior parte das pesquisas em andamento encontra-se em estágios iniciais e apresentam limitações relevantes: • Pequeno número de ensaios controlados que avaliam os programas de prevenção específicos para os transtornos de ansiedade. • Evidências inconsistentes para a avaliação da eficácia de cada programa. • Ausência de uma correlação fidedigna entre a correlação das estratégias trabalhadas nas intervenções preventivas e os resultados observados na prática clínica. O avanço no conhecimento da natureza dos fatores de risco e dos processos que contribuem para o desencadeamento de condições ansiosas específicas parece ser essencial para o desenvolvimento de estratégias de prevenção116. Existem diferentes vertentes no que se refere ao estudo da etiologia da ansiedade na infância e na adoles cência. Todavia, há um consenso que permite considerar a ansiedade como resultado de uma complexa interação entre condições predisponentes que caracterizam a criança (fatores biológico, psicológico e genético) e condições precipitantes, mantenedoras e perpetuantes associadas ao seu ambiente (condicionamento, aprendizagem observacional, relações familiares, eventos traumáticos etc.) 117 . Inicialmente, a preocupação primordial consiste na iden tificação dos fatores de vulnerabilidade, sobretudo as características biológicas e os estilos divergentes de processamento mental desses sujeitos, no que se refere à captação de informações ao seu redor. A presença de parentes em primeiro grau com transtornos ansiosos (aumentando entre 3 e 5 vezes o risco de desenvolver TA em probandos) e a associação genética e familiar entre TA e depressão, observada em adultos, são exemplos de marcadores biológicos de vulnerabilidadé. O papel do pediatra é fundamental na prevenção universal, na seletiva e na indicação dos TA. Sintomas de
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comportamento inibido, de resposta exacerbada às sensações ansiosas - já descrita em outras seções deste capítulo - e sintomas leves e iniciais dos TA, envolvendo sintomas somáticos, devem ser identificados e abordados inicialmente pelo médico generalista. Além disso, alguns estudos referem associação entre presença de intercorrências clínicas no primeiro ano de vida, particularmente episódios de febre alta e infecções de repetição, e transtornos ansiosos na adolescência4 . Esses achados sugerem ser frutífera a investigação entre alterações imunológicas e o desenvolvimento de sintomas ansiosos em crianças e adolescentes. Correlação entre alguns tipos de enxaqueca, queixas cardiovasculares, alterações motoras, alterações de índices respiratórios e perturbações na regulação autonômica também foram descritas em população infantil com TA. Assim, os serviços de atenção básica de saúde e as escolas devem ter conhecimento dos fatores indicadores de maior vulnerabilidade para TA, visando a investigação sistemática, acompanhamento da evolução e oportuna a intervenção. Sempre que possível, a criança que apresente queixas físicas, já investigadas pelo pediatra e sem justificativa clínica relevante, deve ser incluída em programas de prevenção para transtornos mentais4 • Na sequência, estudos interessados na contribuição do ambiente na gênese do fenômeno ansioso têm demonstrado um risco aumentado para desenvolvimento de transtornos ansiosos em ambientes determinados, seja isoladamente ou em conjunto a outro fator de predisposição. A contribuição do ambiente inclui experiências traumáticas, modos de aprendizagem de enfretamento de situações estressantes inadequados e modelos errôneos de resposta diante do perigo (real ou imaginário), assimilados de figuras de referência" 8 . Ainda em relação às influências ambientais, a ansiedade em um ou ambos os genitores pode contribuir negativamente para o desenvolvimento ou a manutenção de TA na sua prole. Exposição a eventos de vida negativos, os quais por si só podem aumentar o risco de ansiedade em crianças e adolescentes, acontece mais frequentemente nessas famílias. Notadamente, as pesquisas atuais demonstram uma via bidirecional no que se refere ao desenvolvimento e à manutenção dos sintomas ansiosos, entre as crianças e a influência da vivência de seus pais 118 . Modelos parentais de medo e expressão de ansiedade podem ser copiados pelos filhos, contribuindo para o desencadeamento da ansiedade patológica117 • A preocupação exagerada e desproporcional dos pais pode limitar experiências importantes para um desenvolvimento adequado na infância, restringindo oportunidades e encarajando a evitação de situações desafiadoras e excitantes. A presença de constantes pensamentos catastróficos nos pais, expressando um comportamento ansioso, pode servir de modelo para a cognição dos filhos, promovendo um processo de aprendizagem e troca de informação com o meio que predispõe a morbidez. É necessário relatar
que a ansiedade em crianças e adolescentes pode ocorrer na ausência de pais com transtornos psiquiátricos ou de qualquer outro fator de risco ambiental 118 . Um estudo realizado em classes regulares, tendo como objetivo ensinar habilidades aos pais para que estimulem seus filhos a enfrentar fobias e comportamento inibido, ao longo de seis sessões, demonstrou redução significativa de TA nessas crianças, mesmo 12 meses após o treinamento 114 • Mesmo antes do nascimento, crianças são particularmente sensíveis aos efeitos de situações desfavoráveis e estressantes. Essa suscetibilidade aumentada permanece após o nascimento e ao longo da puberdade. A violência, o abuso e a negligência, sistemática ou não, na faixa etária pediátrica geram um custo neurobiológico que pode aumentar o risco de transtornos mentais, inclusive para futuras gerações 119 . Crianças vítimas de abuso físico ou sexual es tão associadas a problemas somáticos, psicológicos e abuso de substâncias na vida adulta. Há estudos que defendem a ocorrência de desenvolvimento anormal do sistema nervoso central (SNC) em indivíduos com história de trauma relevante nos primeiros anos de vida. Essas alterações no desenvolvimento do SNC exacerbam a frequência derespostas exageradas durante condições estressantes ao longo da vida, além de aumentar a predisposição a doenças físicas e mentais. Como alterações no funcionamento cerebral não são observadas em todas as crianças vítimas de abuso, supõe-se que é necessária a preexistência de vulnerabilidade genética e a interação precoce com experiências desfavoráveis. Essa associação aumentaria o risco de desenvolver patologias relacionadas ao eixo hipotálamo -hipófise e à disfunção de substâncias relacionadas à resposta ao estresse - como a ansiedade 119 . Além disso, a asso ciação entre vitimização infantil e predisposição genética implicaria uma resposta universal e duradoura dos sistemas neuroendocrinoimunológico, comprometendo a avaliação e a resposta a ameaças e causando atrasos no desenvolvimento, transtornos psiquiátricos e efeitos transgeracionais. Estudos demonstram risco aumentado principalmente para transtornos do humor, ansiosos e de uso de substâncias em adultos submetidos a maus tratos na infância. Programas de promoção e prevenção relacio nados à saúde mental devem envolver planejamento de ações visando a diminuir a exposição não só de crianças, mas também de mulheres em idade fértil, a situações de abuso e violência. Assim, sugere-se que a redução do risco e da gravidade de múltiplos diagnósticos psiquiátricos e clínicos impediria o ciclo transgeracional da doen ça relacionada ao abuso 119 . Cabe notar que os fatores de vulnerabilidade, sejam biológicos ou ambientais, podem ter maior ou menor importância como precipitantes de transtorno ansioso, dependendo de qual subgrupo específico ao longo desse espectro está sendo avaliado 114. Dentre os estudos controlados destinados à prevenção universal dos transtornos de ansiedade, destaca-se o
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FRIENDS, um estudo de prevenção universal, desenvolvido na Austrália 120 . Esse estudo demonstrou redução significativa da ansiedade e também da depressão, tanto na avaliação inicial de sintomas quanto em relação à presença de diagnóstico após um ano de seguimento. A magnitude do efeito relatado foi de redução de 8% do diagnóstico em toda a amostra (composta por 54% de crianças com risco de desenvolver um dos transtornos em questão), com diminuição considerável dos sintomas-alvos em todos os participantes. O FRIENDS empregou a terapia cognitivo-comportamental em alunos de escolas de ensino fundamental. As crianças tinham entre 10 e 13 anos, sendo 53% do sexo feminino. As 12 sessões em grupo propostas foram conduzidas pelos professores, após orientação e treino com especialistas, na própria escola. Infelizmente, os custos com esse programa não foram estimados. Mais estudos controlados, porém, são necessários para a consolidação desses resultados. Estudos em escolas de ensino médio são particularmente necessários e devem incluir comparação com placebo. Sugere-se, nos casos de abordagem de adolescentes, um modelo de prevenção baseado nos programas escolares de esclarecimento sobre álcool e drogas 113 . Os fatores de vulnerabilidade que se destacam quando se avalia a predisposição aos TA são o gênero feminino, o temperamento ansioso ou inibido, a resposta exacerbada a estímulos ansiogênicos, história parenta! de transtorno de humor ou ansiedade, aumento da resposta autonômica e aumento de reflexo de luta ou fuga 12 1. A terapia congnitivo-comportamental na escola ou em outros espaços da comunidade pode promover tanto uma prevenção precoce e adequada, quanto um tratamento eficaz para crianças com sintomas entre leves e moderados de ansiedade. A intervenção pode ser feita com os pais, professores ou com os próprios jovens 102 • Além de intervenções cognitivo-comportamentais, modelos de treinamento parentais e a utilização de psicoeducação que abordem as questões de saúde mental de maneira não segmentada devem ser sempre parte de estratégias de promoção de saúdé. Em suma, as discussões mais promissoras sobre prevenção e políticas de saúde pública apontam as pesquisas translacionais como o futuro da prevenção para os transtornos ansiosos. Necessita-se avançar no conhecimento da natureza dos fatores de risco e nos processos que contribuem para a maior vulnerabilidade de condições ansiosas específicas. Além disso, é preciso descobrir como a informação pode ser transmutada do campo conceitual para tipos particulares de programas de intervenção primária que cada subtipo de ansiedade ou cada fase do desenvolvimento da infância e da adolescência necessitem. Sem a atenção adequada aos programas de prevenção, a população continuará convivendo ao longo da vida com as limitações e o sofrimento, muitas vezes, desnecessários, associados aos transtornos mentais.
Considerações finais Até a década de 1980, havia a crença de que os medos e as preocupações durante a infância eram transitórios e benignos. Hoje, reconhece-se que podem constituir quadros patológicos frequentes, causando sofrimento e prejudicando inúmeras atividades relacionadas à vida da criança ou do adolescente. A identificação precoce dos transtornos de ansiedade pode evitar repercussões negativas na vida da criança, tais como faltas constantes à escola e a consequente evasão escolar, utilização demasiada de serviços de pediatria por queixas somáticas asso ciadas à ansiedade e, possivelmente, a ocorrência de problemas psiquiátricos na vida adulta. Apesar da alta prevalência, os transtornos ansiosos de início na infância são muito pouco considerados. Não tratados, podem privar uma criança de interações familiares, sociais e educacionais. Nem todas as crianças são candidatas a intervenções formais. Sintomas ansiosos leves ou moderados podem ser transitórios. No entanto, para problemas mais significativos, tratamentos eficazes incluem a combinação de várias intervenções, como a cognitivo-comportamental, a familiar e, frequentemente, a medicamentosa. As pesquisas de neuroimagem têm influenciado muito os modelos neurobiológicos dos transtornos ansiosos. Enquanto a amígdala tem um papel central nas teorias fisiopatológicas do TEPE e da FS, alterações difusas caracterizam a fisiopatologia do TP. Já nas FE e no TAS, modelos apropriados necessitam ser desenvolvidos. Avanços no entendimento das funções da amígdala em indivíduos normais facilitarão tanto o esclarecimento dos mecanismos fisiopatológicos envolvidos nos transtornos ansiosos quanto seu tratamento. Transtornos ansiosos em crianças e adolescentes são comuns e tratáveis. Atualmente, há evidências de muitas intervenções eficazes, apesar da escassez de pesquisas nessa área. Os tratamentos disponíveis podem reduzir, mas não eliminar o risco futuro de problemas de saúde mental, munindo com estratégias jovens ansiosos, para confrontar fatores estressares que inevitavelmente ocorrerão ao longo de suas vidas.
Minicaso clínico A, menina de 1O anos de idade, estudante do sexto ano, foi trazida por seus pais para avaliação, pois há cerca de dois meses teve queda no rendimento escolar e nos últimos 20 dias recusou-se a ir à escola. Quando pressionada a ir, apresentava dor de barriga e náuseas, ficava agitada e chorava, e só se acalmava se pudesse faltar à escola. Relatava que, ao ir à escola, ficava imaginando que algo de ruim pudesse acontecer com sua mãe, como um acidente ou assalto, e que poderia nunca mais vê-la. A preocupação era tal que chegava a não prestar atenção na aula. Desde os cinco anos, quando iniciou a pré-escola, apresentava in-
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segurança na volta às aulas, com receio de que a mãe não fosse buscá-la. Caso a mãe se atrasasse por alguns minutos, já pensava que algo terrível teria acontecido com ela e começava a chorar. Sempre foi bastante apegada à mãe e permanecia com ela em todos os momentos do dia, exceto no horário escolar. Não costumava dormir fora de casa ou ir a qualquer lugar desacompanhada dos pais. Já perdeu festas e passeios porque teria de ir sem eles. Até os seis anos, dormiu junto com a mãe. Atualmente, dorme em seu quarto, mas necessita da presença da mãe até adormecer. Frequentemente, acorda após ter um pesadelo e busca a companhia da mãe. A. sempre teve um bom desempenho escolar, até os últimos dois meses. Apresenta um pouco de dificuldade de conversar com desconhecidos, mas isso não a impede de ter amigos. Os pais negam problemas durante a gestação e o parto. Seu desenvolvimento neuropsicomotor ocorreu dentro doesperado. Tem rinite, sem outros problemas de saúde. A mãe parece ser bastante ansiosa. Diz que está sempre com alguma preocupação e que costuma exagerar sobre o risco das situações. Preocupa-se com o bem-estar de sua fi lha e evita deixá- la sozinha. Durante a consulta, A. permaneceu sentada entre os pais, inicialmente mais calada, porém começou a falar posteriormente. Aparentava estar bastante ansiosa, inquieta e atenta. Fez-se a hipótese diagnóstica de transtorno de ansiedade de separação associado à recusa escolar. Recomendou-se inicialmente a orientação psicoeducacional (com orientações aos pais) associada à terapia cognitivo-comportamental. Caso não haja resposta ou resposta parcial a essa abordagem terapêutica inicial, optar-se-á pela associação de tratamento farmacológico.
Questões 1. Estima-se que a partir de estudos epidemiológicos, a prevalên-
a) b) c) d) e)
cia dos transtornos ansiosos na infância e na adolescência seja de pelo menos 5%. Qual das opções abaixo traz os três transtornos ansiosos mais comuns: Fobia social, fobia simples e transtorno de ansiedade generalizada. TOC, ansiedade de separação e fobia social. Transtorno de ansiedade generalizada, ansiedade de separação e fobia simples. Transtorno de pânico, ansiedade de separação e TOC. Fobia social, transtorno do pânico e fobia simples.
2. Qual dos diagnósticos comórbidos é o mais frequentemente associado à ansiedade na infância e na adolescência: a) Depressão. b) Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade. c) Síndrome de Tou rette. d) Transtorno de conduta. e) Transtorno de oposição e desafiante. 3. Em relação ao conceito de "comportamento inibido" (postulado por Kagan, et ai, 1997), caracterizado como traço precoce de temperamento em crianças, qual das seguintes afirmações é incorreta:
a) O transtorno do pânico/agorafobia em pais está associado a comportamento inibido em seus filhos. b) O comportamento inibido em crianças relaciona-se a taxas aumentadas de transtornos de ansiedade em seus parentes biológicos. c) O comportamento inibido em crianças está associado ao desenvolvimento de fobia social na infância. d) O transtorno do pânico/agorafobia em pais, associado ou não a quadro depressivo, aumenta o risco de transtornos ansiosos ou depressão em seus filhos. e) O comportamento inibido em crianças está associado ao desenvolvimento de transtorno de ansiedade generalizada na infância.
4. Com base em estudos com crianças portadoras de transtornos ansiosos, evidenciam-se associações entre esses quadros e: a) transtornos (comorbidades); b) alterações fisiológicas; e c) possíveis fatores etiopatogênicos ou de risco para o desenvolvimento de quadros de ansiedade na infância e na adolescência. A partir desses estudos, pode-se fazer as seguintes associações, exceto: a) Transtorno obsessivo-compu lsivo e tiques. b) Fobia social e amígdala. c) Ansiedade de separação e transtorno do pânico. d) Transtorno obsessivo-compu lsivo e córtex parietal. e) Fobia a ferimentos e queda da PA. 5. Qual das seguintes alternativas contém o tratamento mais adequado para fobias específicas em crianças: a) Terapia familiar. b) Psicodrama. c) Terapia cognitivo-comportamental. d) Fluoxetina. e) Tranilcipramina.
6. Em um caso de criança portadora de transtorno de ansiedade de separação associado a insônia inicial intensa em que o tratamento medicamentoso está indicado, pode-se considerar a utilização de quais medicações abaixo relacionadas: a) Haloperidol e imipramina. b) Buspirona e imipramina. c) Anti-histamínicos e tranilcipromina. d) Clorpromazina e fluoxetina. e) Alprazolam e moclobemida. 7. Considera-se um tratamento apropriado para crianças com trans-
a) b) c) d) e)
tornos ansiosos: Ludoterapia. Terapia cognitivo-comportamental. Neurolépticos. Terapia familiar. Psicoterapia psicanalítica.
8. Estima-se que, a partir de estudos epidemiológicos, a prevalência dos transtornos ansiosos na infância e na adolescência seja
62 TRANSTORNOS ANSIOSOS E EMOCIONAIS NA INFÂNCIA
a) b) c) d) e)
de pelo menos 50/o. Qual das opções abaixo traz os três transtornos ansiosos mais comuns: Fobia social, fobia simples e transtorno de ansiedade generalizada. TOC, ansiedade de separação e fobia social. Transtorno de ansiedade generalizada, ansiedade de separação e fobia simples. Transtorno de pânico, ansiedade de separação e TOC. Fobia social, transtorno do pânico e fobia simples.
9. Qual dos diagnósticos comórbidos é o mais frequentemente associado à ansiedade na infância e na adolescência: a) Depressão. b) Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade. c) Síndrome de Tourette. d) Transtorno de conduta. e) Transtorno de oposição e desafiante.
1O. Qual dos seguintes NÃO é fator de risco para transtornos de ansiedade na infância e adolescência (TAlA)? a) História familiar de transtorno depressivo. b) Alterações eletroencefalográficas. c) História familiar de transtorno de ansiedade. d) Timidez excessiva. e) Inibição do comportamento.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
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847
Transtorno Obsessivo-compulsivo
Roseli Gedanke Shavitt Albina Rodrigues Torres Ana Gabriela Hounie
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 848 Etiologia, 849
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Teorias etiopatológicas, 849 Quadro clínico, diagnóstico e comorbidades, 850
1. Conhecer a caracterização sociodemográfica e a epidemiologia do transtorno obsessivo-compulsivo (fOC).
Quadro clínico, 850
2. Reconhecer as características clínicas do TOC e seus subtipos.
Diagnóstico. 853 Comorbidade, 853
3. Compreender os principais aspectos neurobiológicos associados
Tratamento, 855 Aspectos gerais, 855 Tratamento psicoterápico, 855 Tratamento farmacológico, 855 Fatores associados com a resposta ao tratamento, 856 Abordagem do TOC resistente aos tratamentos de primeira linha, 857 Prevenção, 857 Políticas públicas, 858 Minicaso clínico, 859 Questões, 859 Referências bibliográficas, 860
Introdução O transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) vem intrigando clínicos e pesquisadores há muito tempo, tendo recebido diversas denominações ao longo da história, como "loucura da dúvidá', "delírio sem delírio e "loucura lúcidá' 1, que refletem algumas de suas características, como a dúvida patológica e a habitual preservação da crítica. Apesar de ser um quadro bastante diversificado 2•3, tem um padrão de apresentação clínica praticamente universal, com mínimas variações ao longo da história e em diferentes culturas, com alguma influência cultural na moldagem dos sintomas4 • Até os anos 1980, o TOC era considerado um quadro muito raro e de mau prognóstico, mas avanços nas pesquisas epidemiológicas e clínicas vêm contrariando
ao TOC. 4. Conhecer aspectos socioambientais associados ao
desenvolvimento do TOC. 5. Aprender sobre as abordagens de primeira linha farmacológica e
psicoterápica e estratégias de potencialização para o tratamento do TOC.
esses pressupostos. Estudos epidemiológicos bem delineados e com instrumentos de avaliação estruturados indicam que a prevalência na vida é de aproximadamente 2% da população geraP·6 e estudos de intervenção comprovam a efetividade de antidepressivos serotoninérgicos e de abordagens cognitivo-comportamentais7 • Diferentemente dos outros transtornos ansiosos, o desconforto emocional no TOC assume múltiplas manifestações, incluindo, além de ansiedade e medo, dúvida, nojo, culpa, sensação de imperfeição ou de incompletude. Além disso, características cognitivas peculiares, como o caráter mágico do pensamento, indicando certa confusão entre mundo real e mundo imaginário, fazem com que sua posição nas classificações nosológicas seja motivo de debate até os dias de hoje. Assim, no DSM-V, é possível que o TOC seja alocado numa categoria à parte, junto com transtornos correlatos (ou do espectro obsessivo-compulsivo), como o transtorno dismórfico corporal, a hipocondria, os transtornos de tiques e alguns transtornos do controle de impulsos8 , que compartilhariam com o TOC vários aspectos clínicos, etiológicos e terapêuticos9 .
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Com manifestações fenotípicas extremamente variadas, é provável que o TOC não seja uma entidade unitária, mas sim um conjunto de síndromes que se sobrepõem, com etiologia, tipo de evolução, resposta ao tratamento e prognóstico diferenciados 10. Vários pesquisadores vêm se dedicando a delimitar grupos de sintomas (dimensões ou fatores) que se agregam com mais frequência1 1e possíveis subtipos do transtorno, tais como o TOC associado a tiques, o TOC de início precoce e o TOCassociado a infecção estreptocócica3. Portanto, não apenas as fronteiras externas do TOC são ainda controversas, mas também seus limites internos 12,13 • O diagnóstico diferencial pode ser um grande desafio, pois sintomas obsessivo-compulsivos (SOC) ocorrem em diversos outros transtornos mentais 13 e mesmo em pessoas sem nenhum diagnóstico 1\ e as comorbidades psiquiátricas são muito comuns no TOC. Apesar de afetar consideravelmente a qualidade de vida 15,16, o TOC é um transtorno frequentemente oculto, que pode levar anos até ser diagnosticado e adequadamente tratado, prolongando o sofrimento dos portadores e de seus familiares.
Etiologia Atualmente, entende-se o TOC como parte de um conjunto de transtornos inter-relacionados, que compartilham características genéticas, neurobiológicas e fenotípicas, tais como: características psicopatológicas, evolução clínica, padrão de comorbidades e resposta ao tratamento. Os transtornos que até o momento contam com mais evidências para serem incluídos no espectro obsessivo-compulsivo são: os transtornos de tiques, como a síndrome de Tourette (ST); transtornos somatoformes, como o transtorno dismórfico corporal (TDC) e tricotilomania, um transtorno de controle de impulsos8 . Como o TOC é um transtorno heterogêneo no que se refere à apresentação clínica, prognóstico e resposta ao tratamento, é de extrema importância na pesquisa a delimitação de subgrupos homogêneos, para que se possa correlacionar determinados marcadores/achados biológicos a fenótipos específicos e resposta terapêutica apropriada para cada grupo. A etiologia do TOC ainda não está plenamente definida, mas diversas teorias vêm sendo propostas.
Teorias etiopatológ ic as Genética
O modelo de estudo da etiologia do TOC baseia-se na interação entre fatores genéticos e ambientais 17. A partir desse modelo, cópias normais de genes específicos relacionados a maior vulnerabilidade seriam ativadas ou desativadas ao longo do desenvolvimento. Os fatores ambientais, de risco ou protetores, influenciariam diretamente a expressão gênica e, assim, a interação gene-ambiente participaria da ativação de circuitos neuronais específicos,
os quais, por sua vez, constituiriam a base neurobiológica que levaria à expressão fenotípica dos diferentes subtipos de TO C. Entre os fatores ambientais ou epigenéticos, eventos na gravidez e durante o parto 18, além de experiências traumáticas ao longo da vida, já foram associados ao desenvolvimento do TOC, podendo também interferir na resposta ao tratamento 19. Desde 1930, estudos genéticos vêm demonstrando a importância da contribuição genética no desenvolvimento do TOC, incluindo estudos de genética epidemiológica e molecular. Entre os primeiros, estudos com fa mílias, gêmeos e a análises de segregação; entre os segundos, análises de polimorfismos de genes candidatos. Estudos de família demonstraram um aumento de 3 a 12 vezes no risco para o TOC em familiares de primeiro grau de portadores, quando comparados aos familiares de controles. Estudos de gêmeos relatam taxas de concordância variando de 53 a 87% para gêmeos monozigóticos e entre 22 e 47% para gêmeos dizigóticos, sendo a herdabilidade estimada de aproximadamente 80% 20. Estudos genético-moleculares com polimorfismos demonstraram associação entre TOC e polimorfismos no gene do fator de necrose tumoral alfa, uma citocina 21 . Além disso, variações nos genes (1) SLC6A4, responsável pela produção do transportador de serotonina22 ; (2) SAPAP3, que codifica uma proteína de densidade pós-sináptica que, quando ausente em camundongos geneticamente manipulados para o não funcionamento desse gene (knockout), observa-se comportamento do tipo obsessivo-compulsivo23; e (3) nos genes dos receptores deglutamato24 foram demonstradas em pacientes com TO C. Esses últimos foram, até o momento, os únicos reproduzidos com maior consistência. Vale notar que as variantes humanas do gene SAPAP3 foram associadas não só com o TOC, mas também com a tricotilomania23. Os estudos em genética molecular do TOC ainda são inconclusivos em razão do caráter complexo de sua herdabilidade e as diferenças metodológicas entre os estudos. No entanto, todos esses estudos sugerem uma importante contribuição genética no desenvolvimento do TOC25 . Substrato neurobiológico
Estudos de neuroimagem demonstram o envolvimento dos gânglios da base e do lobo frontal na etiologia do TOC. Os estudos com neuroimagem funcional, em sua maioria, demonstram um aumento de atividade metabólica no córtex orbitofrontal, no giro do cíngulo anterior e no núcleo caudado, ou seja, em áreas pertencentes aos circuitos orbitofronto-estriado-tálamo-cortical e do cíngulo-estriado-tálamo-corticaF6. De forma muito interessante, após tratamento farmacológico e comportamental, observou-se redução da atividade metabólica nessas regiões 26. Adicionalmente, todas as modalidades cirúrgicas de tratamento do TOC atuam mediante a interrupção desses circuitos neurais27 .
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Além disso, estudos demonstrando associação entre níveis elevados do glutamato com a presença de sintomas obsessivo-compulsivos, que tendem a normalizar após tratamento com inibidores da recaptura de serotonina (IRS) acompanhando a melhora dos sintomas, sugerem a participação do glutamato no desenvolvimento do TOC28. Estudos com neuropeptídios, como a oxitocina, têm demonstrado resultados contraditórios29 . Aspectos neuroimunológicos
Outro aspecto discutido na literatura é a influência do sistema imunológico na fisiopatologia do TO C. Destaca-se o quadro de TOC que se inicia após infecção por estreptococo beta-hemolítico do grupo A, o mesmo agente causador da febre reumática. Esse quadro de TOC pósestreptocócico faria parte dos transtornos pediátricos autoimunes associados com infecção estreptocócica (PANDAS, ou pediatric autoimmune neuropsychiatric disorders associated with streptococcal infection)3°. A hipótese é de que esse quadro ocorre quando anticorpos contra esse estreptococo estabelecem uma reação cruzada com estruturas dos gânglios da base do cérebro, que estão envolvidos na fisiopatologia do TOC 12 • Recentemente, estudos na área de psiconeuroimunologia têm pesquisado o papel das citocinas no TOC. Até o momento, estudos avaliando níveis de citocinas em pacientes com TOC demonstraram resultados contraditórios31. No entanto, como já mencionado, um polimorfismo do TNF-alpha foi associado com TOC21 e um estudo de família também corrobora essa relação32 . Eventos de vida
Vale considerar um possível papel para as experiências traumáticas na vulnerabilidade ao desenvolvimento do TOC. Por exemplo, Cromer et al. 33 observaram associação entre experiências traumáticas ao longo da vida com maior gravidade dos sintomas OC, particularmente para as dimensões "verificação" e "simetria/ordenação'~ No entanto, o desenho retrospectivo do estudo não permitiu esclarecer se a influência do evento traumático foi patoplástica ou predisponente. Outro evento de vida associado ao surgimento do TOC é a fase final da gravidez e o período pós-parto, podendo ocorrer inclusive em homens que acabaram de se tornar pais34 . São comuns preocupações excessivas sobre o bem-estar do recémnascido e pensamentos intrusivos de causar algum dano a ele. A hipótese neurobiológica para esse fenômeno envolve alterações no nível central de ocitocina, além de se considerar o período pós-parto como normalmente associado a sensibilidade exacerbada a qualquer tipo de ameaça34. O surgimento do TOC também foi associado a eventos estressantes, como mudança recente, problemas maritais ou sexuais e doença ou morte de pessoas próximas3.
Quadro clínico, diagnóstico e comorbidades Quadro clínico Os sintomas do TOC são extremamente variados e tal heterogeneidade fenomenológica tem levado diversos autores a acreditar que essa categoria diagnóstica engloba diferentes subtipos, possivelmente com bases etiológicas, evolução, resposta ao tratamento e prognóstico distintos2·3·10·12· Apesar disso, os sintomas têm, em geral, uma notável universalidade transcultural e trans-histórica4. Para o diagnóstico, é essencial a presença de obsessões (pensamentos, imagens ou impulsos) e/ou compulsões, que podem ser observáveis ou não (p. ex., rituais mentais, como rezar ou contar). As obsessões são indesejáveis, intrusivas e repetitivas, gerando grande ansiedade ou desconforto emocional, enquanto os rituais compulsivos são voluntários, pois aliviam temporariamente o mal-estar, tornando-se também repetitivos36 • Os conteúdos mais comuns dos pensamentos obsessivos são relacionados a agressividade, doenças, morte, sujeira e contaminação, sexualidade e religiosidade. As obsessões de agressão geralmente se manifestam como medo de situações de violência, acidentes ou morte do próprio paciente ou de pessoas queridas. Podem manifestar-se como impulsos egodistônicos (ou "fobias de impulso"), caracterizados por medo de prejudicar, ferir ou matar alguém - ou a si próprio - "sem querer". Não raro são acompanhados de dúvidas recorrentes sobre ter ou não ter cometido tais atos, assim como de comportamentos de esquiva de situações que podem desencadear tais obsessões. As preocupações exageradas com sujeira e contaminação são frequentes e atualmente o medo da aids e da gripe HlNl se destaca, podendo haver obsessões somáticas, relacionadas a doenças não contagiosas, como câncer, ou à aparência física. As obsessões sexuais são inoportunas e geram culpa, diferentemente das fantasias sexuais, e as religiosas envolvem principalmente preocupações com pecado, sacrilégio e blasfêmia, ambas podendo ocorrer também como impulsos indesejados e dúvidas recorrentes. As obsessões podem ainda ter conteúdos "neutros': como palavras, sons ou músicas intrusivas. Por outro lado, as compulsões mais frequentes são de verificação ou checagem, higiene/limpeza, ordenação, arranjo ou simetria, contagem e colecionamento. Rituais de verificação em geral se associam a obsessões somáticas (p. ex., autoexame físico) ou agressivas (p. ex., certificar-se de que não matou ninguém) ou ao medo de, por imprudência, vir a causar alguma catástrofe (p. ex., checar se trancou a porta, desligou o ferro ou apagou o cigarro, se os alimentos estão dentro da data de validade). As compulsões de limpeza (p. ex., banhos e escovação de dentes, lavagem de mãos, utensílios, móveis e mesmo bol-
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sas, chaves ou documentos) em geral associam-se a obsessões de sujeira ou contaminação, podendo causar grande desgaste físico. Já as compulsões de contagem geralmente são mentais e se relacionam às de repetição (p. ex., somas e divisões desnecessárias, repetir certos atos um determinado número de vezes) e as de ordenação são inúmeras, tais como a arrumação de roupas no varal, simetria de livros, sapatos e mesmo toques ou esbarrões. Alguns pacientes, quando leem alguma palavra com conotação "ruim'' (morte, doença, azar... ) necessitam encontrar alguma palavra que a "anule" (vida, saúde, sorte... ), para aliviar a preocupação. Os sintomas de colecionamento se caracterizam pela necessidade de acumular ou medo de se desfazer de várias coisas, como jornais ou notas fiscais velhos, embalagens inúteis, objetos quebrados ou encontrados na rua36 . Com isso, a casa pode se transformar num depósito de quinquilharias, onde mal se consegue transitar. Há ainda uma apresentação bem menos usual do TOC, conhecida como lentidão obsessiva primária, em que os pacientes não repetem suas ações, mas demoram muito tempo em tarefas simples como se vestir ou escovar os dentes, provavelmente por dúvidas, medos, perfeccionismo ou rituais encobertos. Ciúme
Um sintoma pouco reconhecido, mas que pode gerar muito sofrimento e interferência são as obsessões de ciúme, em geral associadas a rituais de checagem37 • Os pacientes apresentam dúvidas em relação à fidelidade do parceiro( a) ou imagens mentais intrusivas de traição, e têm necessidade de se certificar de que não está sendo traído. Geralmente precisam verificar se a pessoa está mesmo onde disse que estaria, se há algum indício de traição em objetos pessoais, roupas, telefones celulares, correspondência eletrônica etc., assim como fazer perguntas repetitivamente. Mesmo sabendo que a traição não ocorre ou que é muito improvável que ocorra, o paciente não consegue se tranquilizar e age insistentemente para tentar eliminar a dúvida, muitas vezes se arrependendo e se culpando por causar sofrimento injusto ao cônjuge. Em alguns casos, porém, a crítica pode mais estar comprometida e os pensamentos se apresentam como ideias supervalorizadas. Sintomas de ciúme patológico podem ocorrer também em diversos outros transtornos mentais, como esquizofrenia, transtorno delirante persistente, depressão maior, demências e transtorno por uso de álcool ou drogas, de modo que o diagnóstico diferencial deve ser feito pelo conjunto das manifestações psicopatológicas e clínicas37 . Fenômenos sensoriais
Na maior parte dos casos, obsessões e compulsões se associam, mas há pacientes que apresentam apenas obsessões e comportamentos de esquiva como busca de segurança (sem rituais estruturados), e outros que apresentam compulsões sem ideia obsessiva estruturada. As-
sim, alguns relatam somente ansiedade, desconforto ou outras experiências subjetivas desagradáveis precedendo os rituais compulsivos. Tais sensações foram inicialmente descritas em pacientes com síndrome de Tourette e são denominadas "fenômenos sensoriais" 38 • Entre elas, estão sensações físicas incômodas na pele ou músculos, percepções visuais, auditivas ou táteis de que algo não está como deveria ou do "jeito certo" (just right), sensação de não finalização ou incompletude e de tensão ou "energia'' apenas aliviadas pela realização de comportamentos repetitivos. Apesar de raramente investigados na prática clínica, podem estar presentes em até 70% dos casos, em geral de início precoce, associado a tiques e com sintomas de simetria, ordenação ou contagem de maior gravidade38 • Na verdade, o TOC pode se apresentar de infindáveis maneiras, pois qualquer comportamento (p. ex., piscar, rezar, pular, perguntar, tocar, relembrar) pode ser compulsivo. Além disso, é comum a sintomatologia mudar de conteúdo no mesmo paciente, com o decorrer da evolução. Outro aspecto clínico importante é a facilidade de evocar os soe, pois os estímulos ansiogênicos tendem a se generalizar e a eficácia das estratégias de esquiva passiva é limitada, obrigando o indivíduo a lançar mão das compulsões para aliviar ativamente - de forma excessiva ou mágica - o desconforto que não pode ser evitado de outra forma. Capacidade crítica
A maioria dos pacientes se envergonha de seus pensamentos e comportamentos, que admite serem excessivos ou irracionais. Assim, o grau de crítica tende a ser bom, mas pode variar entre os pacientes e no mesmo indivíduo, conforme a ocasião e o tipo de sintomatologia39 • Pacientes com obsessões somáticas e sintomas de colecionamento2' 39 , por exemplo, teriam pior crítica. A visão clássica de que a crítica preservada é uma característica essencial do TOC já não é mais aceita, e há alguns casos, em geral de início precoce, com maior número e gravidade dos sintomas, que se apresentam não como obsessões típicas (egodistônicas), mas sim como ideias prevalentes ou supervalorizadas (egossintônicas)2'40• Atualmente é mais aceita a visão dimensional de continuum de força de crença nas ideias obsessivas, com vários graus de incerteza e não mais a categorização dicotômica "insight presente ou ausente" 40 . No DSM-IV-TR35 há um especificador para o assim chamado "TOC com baixo insight", que ocorreria em aproximadamente 20% dos pacientes, os quais não julgam seus sintomas como absurdos ou ilógicos na maior parte do tempo. Entretanto, a demarcação categoria! sobre o insight é muito difícil e já há vários ins trumentos estruturados para avaliar o nível de crítica40 • O caráter secreto do TOC deve ser também ressaltado, pois, como a crítica comumente está preservada, muitos pacientes só ritualizam em privacidade, contro-
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lando e escondendo ao máximo os soe dos familiares e omitindo-os ou negando-os para profissionais de saúde mental, por medo de serem considerados "loucos". Além disso, alguns pacientes só têm sintomas encobertos ou rituais mentais. Aspectos cognitivos
Alguns aspectos cognitivos são bastante peculiares ao TOC, havendo seis domínios principais de crenças disfuncionais, que se inter-relacionam: responsabilidade pessoal exagerada; superestimação de riscos; hipervalorização dos pensamentos; preocupação excessiva com a importância de controlar os pensamentos; intolerância à incerteza; e perfeccionismo41 . De fato, muitos pacientes temem se sentir responsáveis e culpados por algum evento catastrófico que possa vir a acontecer com os outros e ritualizam para tentar preveni-lo. Outros apresentam avaliação exagerada dos perigos, sentindose extremamente ameaçados (p. ex., medo de se contaminar, de morrer) 42. Comportamentos "protetores" aliviam temporariamente os dois tipos de temores, que podem ocorrer juntos. Apesar de os pensamentos intrusivos serem fenômenos universais, tais indivíduos os consideram inaceitáveis ("que coisa terrível eu pensei", "sou um assassino em potencial", "posso perder o controle") 42 . Com isso, os pensamentos se tornam preponderantes e geram grande desconforto emocional e necessidade de comportamentos para garantir segurança, os quais acabam por reforçá-los, num círculo vicioso. Assim, opaciente passa a acreditar, por exemplo, que só não matou seu filho porque escondeu a faca de si mesmo. A busca utópica de perfeição em geral, ou de obter 100% de segurança, 100% de certeza ou 100% de limpeza geraria esse esforço contínuo e, muitas vezes, contraproducente. Haveria ainda fusão psicológica entre pensamento e ação - acreditar que pensar é o mesmo que fazer algo ruim - , de tal forma que os limites entre os mundos mental e real ficam, de certa forma, comprometidos. As incertezas que mantêm os rituais são parte da confusão vivenciada quando os pacientes tentam modificar asso ciações imaginárias por meio da manipulação da realidade, uma atitude tão ineficaz quanto tentar apagar imagens cinematográficas esfregando a tela, em vez de mexer no projetor43 . Essa natureza mais mágica e bizarra do pensamento obsessivo seria um dos motivos de o TOC manter certo "status especial" entre os transtornos de ansiedade. Heterogeneidade
Como a heterogeneidade clínica do TOC é muito grande, podendo dificultar a compreensão dos resultados de estudos etiológicos e terapêuticos2·3•10, vários pesquisadores buscaram identificar quais sintomas se agrupavam com maior frequência 11 . De modo geral, quatro fatores ou "dimensões" de soe são mais consistentes, res -
ponsáveis por quase 70% da variação clínica do TOC, em diversos estudos 11: obsessões agressivas, sexuais, religiosas ou somáticas e compulsões de verificação; obsessões de sujeira ou contaminação e rituais de limpeza; obsessões de simetria e compulsões de ordenação, repetição e contagem; e obsessões e compulsões de colecionamento. Tais dimensões de SOC não são mutuamente excludentes, mas apresentariam algumas características específicas neurobiológicas, genéticas, de comorbidade e resposta ao tratamento3·44·45 . Haveria ainda uma estabilidade temporal dos soe das dimensões ao longo da evolução clínica, mudanças ocorrendo em geral dentro das mesmas dimensões 14.46 • Portanto, tal abordagem parece ser relevante por ter potenciais implicações etiológicas, terapêuticas e prognósticas, já havendo um instrumento estruturado para avaliação da presença e da gravidade de cada dimensão de SOC47. Subtipos
Os diversos fenótipos clínicos e padrões de evolução sugerem ainda a existência de possíveis subtipos de TOC, talvez com bases fisiopatológicas específicas e respostas diferenciadas ao tratamento 2·12·10 • Os subtipos que vêm sendo mais estudados são: TOC associado a tiques, com idade de início precoce dos sintomas e TOC associado a infecção estreptocócica. Pacientes com TOC e transtornos de tiques (incluindo a síndrome de Tourette) seriam predominantemente homens, com início precoce dos soe, mais comorbidade com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, tricotilomania, fobia social, transtornos bipolar e dismórfico corporal, e abuso de substâncias. Além disso, apresentariam mais obsessões de agressão e sexuais, rituais de simetria, ordenação, contagem e colecionamento, compulsões tic-like (semelhantes a tiques) e fenômenos sensoriais, além de pior resposta ao tratamento12. o início precoce dos soe vem sendo também consistentemente associado a sexo masculino, comorbidade com tiques, presença de compulsões tic-like (sem obsessões associadas e mais fenômenos sensoriais), maior número de compulsões e comorbidades em geral, pior crítica e maior transmissibilidade genética2. Na verdade, quanto mais precoce o início, maior a chance de parentes apresentarem TOC e/ ou tiques, indicando possível patogênese comum ou similar entre esses trans tornos12. Há estudos indicando também associação entre início precoce e sintomas de simetria ou ordenação, comorbidade com tricotilomania e pior resposta aos medicamentos 10. Alguns estudos demonstram maior frequência de SOC, TOC e tiques em portadores de febre reumática (FR - quadro autoimune desencadeado por infecções pelo estreptococo beta-hemolítico A), com ou sem coreia de Sydenham, que é sua manifestação mais tardia no sistema nervoso central. Pacientes com TOC e história de FR se
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caracterizariam por início mais precoce dos sintomas, maior frequência de obsessões de agressão e compulsões de ordenação, e mais comorbidade com tiques e transtorno dismórfico corporaP 2. Embora o conceito de PANDAS seja objeto de discussão na literatura, acredita-se que esse subgrupo de TOC inclui portadores que tiveram o início do TOC ou de um transtorno de tiques na infância, associado a infecções estreptocócicas ou agravados por estas, mas que não desenvolveram FR. Há claras sobreposições entre o TOC de início precoce, o TOC associado a tiques e o TOC associado a resposta autoimune desencadeada por infecção estreptocócica10. Portanto, tais tentativas de subdivisão não devem ser consideradas mutuamente exclusivas, pois juntas delimitam um grupo de pacientes com algumas características comuns: predomínio em homens, início precoce dos soe, mais compulsões de simetria/ordenação e fenômenos sensoriais, mais comorbidade com transtorno dismórfico corporal e tricotilomania, e maior agregação fa miliaP2. Alguns autores vêm propondo outros possíveis subgrupos, baseados, por exemplo, no gênero e no nível de crítica. Há ainda especulações sobre a singularidade de casos de TOC com evolução episódica e não crônica2·48, TOC com determinados padrões de comorbidades44•49 e TOC associado a eventos traumáticos de vida33 . Outros autores propõem que o TOC com sintomas de colecionamento predominantes ou exclusivos seja considerado um subtipo particular, ou mesmo classificado à parte, pois tem características peculiares, como pior crítica e resposta ao tratamento 16·36 . A questão básica, ainda sem resposta definitiva, é se o TOC deve ser definido como uma entidade única ou como múltiplos transtornos, com fenomenologia, causas e tratamentos específicos 10·45 . Foi proposto um modelo multidimensional, que representaria um meio-termo entre as perspectivas separatistas e aglutinadoras, conceituando o TOC como um espectro de múltiplas síndromes sobrepostas, que têm uma continuidade com manifestações obsessivo-compulsivas normais, que também podem ocorrer em outros transtornos mentais. Apesar dos avanços ocorridos nas últimas duas décadas na compreensão da natureza e etiologia do TOC, nenhum modelo ainda conseguiu abranger toda a complexidade desse transtorno 16. Curso clínico
A evolução clínica do TOC deve sempre ser considerada à luz de sua grande heterogeneidade, mas usualmente o início ocorre no começo da vida adulta, adolescência ou mesmo na infância. Estudos são bastante consistentes em apontar menor média de idade de início dos SOC no sexo masculino2•10• Se entre as crianças os meninos predominam, na adolescência há maior incidência em meninas, anulando diferenças significativas de prevalência na idade adulta entre os sexos, em amostras díni-
cas. Apesar da considerável similaridade na apresentação clínica de crianças e adultos, obsessões de agressão, rituais de colecionamento e pior crítica seriam mais fre quentes em crianças, e obsessões sexuais, em adultos 16 . O curso é geralmente crônico, com períodos de melhora e piora, sendo raros os casos de evolução episódica ou deteriorante 16·50. Mesmo em casos crônicos, a gravidade é bastante variável, desde casos leves a incapacitantes, e diversos fatores podem influenciar a evolução clínica. Casos com períodos de remissão completa (curso episódico) associaram -se a comorbidade com transtorno bipolar2·48 e transtorno de pânico, idade de início tardia e história familiar de transtornos afetivos 2, além de menor frequência de compulsões de limpeza e menor gravidade das compulsões em geral48. Um estudo sueco de acompanhamento clínico de pacientes por mais de 40 anos 50 descreveu melhora do quadro em 83% deles, mas apenas 20% de remissão completa, a maioria mantendo alguns soe, mesmo que subclínicos. o início dos soe ocorreu antes dos 20 anos de idade em 29% dos casos (mais homens), entre 20 e 29 anos em 40%, entre 30 e 39 anos em 27% e após os 40 anos em apenas 4% deles. Quase 60% apresentaram mudanças qualitativas dos sintomas ao longo do tempo, observandose pior evolução em casos de início precoce, curso crônico, obsessões mágicas, rituais compulsivos e funcionamento social mais comprometido na avaliação inicial. Num interessante estudo de coorte populacional 14, a presença de SOC aos 11 anos aumentou em seis vezes a chance de TOC aos 26 ou 32 anos. Além disso, as dimensões de sintomas se mostraram consideravelmente estáveis ao longo do tempo, e todas aumentaram o risco de ocorrência de outras condições comórbidas de eixo I.
Diagnóstico Os critérios diagnósticos do TOC pelo DSM-IV-TR35 são descritos no Quadro I. Enquanto na classificação americana o TOC é listado junto dos transtornos de ansiedade, a CID- 1051 categoriza-o separadamente, sob a rubrica geral de "transtornos neuróticos, relacionados ao estresse e somatoformes': Conceitualmente, a CID - 10 51 mantém a distinção tradicional, que considera as obsessões eventos mentais e as compulsões comportamentos observáveis, enquanto o DSM-IV-TR35 enfatiza não a expressão dos sintomas, mas sua função. Alguns autores defendem que no DSM-V o TOC seja alocado numa categoria que englobe alguns transtornos ansiosos e do "espectro obsessivo-compulsivo"8, como a hipocondria, o transtorno dismórfico corporal e alguns transtornos do controle de impulsos9.
Comorbidade A presença de outros transtornos psiquiátricos associados é a regra e não a exceção no TOC, tanto em
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Quadro I
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AS GRANDES SÍNDROMES PSICOPATOLÓGICAS
Critérios diagnósticos do TOC
A) Presença de obsessões ou compulsões: Obsessões definidas por 1, 2, 3 e 4 1) Pensamentos, impulsos ou imagens recorrentes e persistentes que são experimentados em algum momento durante o transtorno como intrusivos e impróprios e que causam acentuada ansiedade ou sofrimento. 2) Os pensamentos, impulsos ou imagens não são simplesmente preocupações excessivas com problemas de vida reais. 3) A pessoa tenta ignorar ou suprimir tais pensamentos, impulsos ou imagens, ou neutralizá-los com outros pensamentos ou ações. 4) A pessoa reconhece, no entanto, que os pensamentos, impulsos ou imagens obsessivos são produtos de sua mente (e não originados de fora, como na inserção de pensamentos). Compulsões definidas por: 1 e 2 1) Comportamentos repetitivos (p. ex.: lavar as mãos, organizar, verificar) ou atos mentais (p. ex., rezar, contar, repetir palavras em silêncio) que a pessoa se sente compelida a executar em resposta a uma obsessão ou de acordo com regras que devem ser seguidas rigidamente. 2) Os comportamentos ou atos mentais visam a evitar ou reduzir o sofrimento, ou prevenir algum evento ou situação temidos; entretanto, não possuem uma conexão realística com o que pretendem neutralizar ou prevenir ou são claramente excessivos. B. Em algum momento durante o curso do transtorno a pessoa reconheceu o caráter excessivo ou irracional de suas obsessões ou compulsões (isso não se aplica a crianças). C. As obsessões ou compulsões causam acentuado sofrimento, consomem tempo (mais de uma hora por dia), ou interferem significativamente nas rotinas normais, no funcionamento ocupacional (ou acadêmico), em atividades sociais ou relacionamentos habituais do indivíduo. O. Se outro transtorno do eixo I estiver presente, o conteúdo das obsessões ou compulsões não deve ser restrito a ele (p. ex., preocupação com comida na presença de transtornos alimentares; arrancar cabelos na tricotilomania; preocupação com a aparência no transtorno dismórfico corporal; com drogas no transtorno por uso de substâncias, em ter uma doença grave na hipocondria; com impulsos ou fantasias sexuais nas parafilias, ou ruminações de culpa na presença de depressão maior). E. O transtorno não pode ser decorrente do efeito direto de uma substância (p. ex., droga de abuso, medicação) ou de uma condição médica geral. Especificar se: com insight pobre (se, na maior parte do tempo durante o episódio atual, o indivíduo não reconhece que as obsessões ou compulsões são excessivas ou irracionais).
amostras clínicas quanto comunitárias, particularmente quadros depressivos e ansiosos. Transtornos "neuróticos" comórbidos foram encontrados em 62% dos portadores num levantamento populacional britânico 52 , tendo sido mais comuns episódios depressivos (37%), transtorno de ansiedade generalizada (31 %), pânico ou agorafobia (22%), fobia social (17%) e fobia específica (15%). A depressão maior também predomina em amostras clínicas (60 a 85% dos casos), seguida das fobias simples (22 a 27%), hipocondria (23%), transtorno dismórfico (20%), tricotilomania (18%), fobia social (11 a 18%), abu-
soou dependência de álcool (14 a 17%), transtorno de pânico (12 a 15%), transtornos alimentares (5 a 20%), transtorno afetivo bipolar (13%) e síndrome de Tourette (7%) 53 . No maior estudo multicêntrico brasileiro5 \ com 630 pacientes, depressão maior na vida ocorreu em 70% dos casos, fobia social em 37%, TAG em 35%, fobia simples em 32% e transtornos de tiques em 29%. Os transtornos por uso de substâncias psicoativas têm sido mais frequentes em amostras populacionais do que clínicas. No estudo de Gentil et al. 55 , por exemplo, apenas 7,5% dos pacientes apresentavam problemas com álcool e 2,4% com outras drogas, enquanto no levantamento britânico de 2000 52 as taxas foram de 20,0 e 13,5%, respectivamente. Isso indica que alguns portadores podem estar se "automedicando" com substâncias, em vez de procurar tratamento, ou que estão sendo tratados da dependência, sem revelar seus SOC52 . Os transtornos de controle de impulsos ocorreram em 16,4% dos pacientes avaliados por Grant et al.56, sendo skin picking o mais frequente (10,4%), seguido de onicofagia (4,8%). Transtornos da personalidade também são comuns no TOC, principalmente os do grupo ansioso (C), que inclui os subtipos dependente, evitador e obsessivo-compulsivo. Esse último, porém, é mais raro do que se acreditava anteriormente, quando não se utilizavam instrumentos estruturados para avaliação do eixo II. Alguns traços de personalidade podem ser confundidos com características clínicas do próprio TOC (p. ex. evitação, dependência, indecisão, acúmulo de objetos, rigidez, perfeccionismo) e melhorar com o tratamento. Apesar de menos frequentes, transtornos do grupo dramático (p. ex., borderline) ou excêntrico (p. ex., esquizotípico, paranoide) também podem ocorrer, com importantes implicações para o tratamento e prognóstico 13 • O padrão de comorbidades parece variar também de acordo com as diferentes dimensões de sintomas ou subtipos do transtorno. Hasler et al. 44, por exemplo, encontraram associações específicas entre sintomas: da dimensão de agressão e transtornos ansiosos e depressivos, de simetria, ordenação, repetição e contagem com transtorno bipolar, pânico e agorafobia e de contaminação e limpeza com transtornos alimentares. Enquanto o TOC "sem tiques" teria a depressão como principal diagnóstico adicional, o TOC associado a tiques, que é mais comum no sexo masculino, raramente ocorreria com trans tornos afetivos 49; já o TOC de evolução episódica relacio na-se ao transtorno bipolar33 • Assim, a comorbidade é uma questão complexa e importante, pois tem impacto na busca52 e resposta ao tratamento, assim como no prognóstico dos casos. Por fim, é importante ressaltar que vários desses quadros acima descritos podem ser diagnósticos adicionais, mas também diagnósticos diferenciais, por terem algumas características clínicas semelhantes ao TOC 13 .
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Tratamento Aspectos gerais O tratamento do TOC baseia-se em evidências apoiando o uso de intervenções educacionais, abordagens psicológicas e farmacológicas. A aquisição de informações sobre o transtorno por parte do paciente e de seus familiares, também conhecida como "biblioterapia", é importante para diminuir o estigma, facilitar a aceitação e a adesão ao tratamento. Muitos portadores levam anos até procurarem tratamento e mantêm os soe em segredo, por vergonha ou desconhecimento de sua natureza patológica57,58. Alguns só buscam ajuda em fases de piora ou de depressão secundária. O acesso a material educativo, como livros, folhetos, vídeos e websites pode ser de grande ajuda. Existem alguns livros voltados para portadores e familiares em nosso meio 59,60 . O tratamento psicológico de primeira escolha para o TOC é a terapia cognitivo-comportamental (TCC). A terapia familiar também pode ser indicada em certas situações, por exemplo, quando atitudes dos familiares colaboram para a manutenção dos soe. o tratamento farmacológico de primeira linha consiste no uso de antidepressivos inibidores da recaptura da serotonina (IRS), como a clomipramina, e os inibidores seletivos de recaptura da serotonina (ISRS). Alguns estudos sugerem a superioridade do tratamento combinado, farmacológico e psicoterápico, sobre cada tratamento isolado61,62. Pacientes com sintomas leves a moderados podem receber inicialmente apenas psicoterapia, enquanto aqueles com sintomas graves, depressão grave associada e pior crítica do seu estado mórbido devem receber tratamento medicamentoso63. A resposta ao tratamento farmacológico costuma ser lenta e gradual, devendo-se esperar pelo menos 12 semanas para se considerar um paciente como não respondedor a um determinado tratamento. Para os casos de TOC resistente ao primeiro tratamento, pode-se: substituir o ISRS inicial, manter o ISRS inicial e associar TCC ou terapia familiar, manter o ISRS inicial e associar um neuroléptico atípico e associar clomipramina ao ISRS in icial. Recentemente tem se estudado a potencialização dos ISRS com agentes glutamatérgicos, como a memantina64 e o riluzolé5 • Para os casos extremamente graves e refratários a qualquer tratamento disponível, pode-se considerar a indicação de radiocirurgia66'67 . Outros tratamentos com intervenção direta em circuitos neurais, como a estimulação magnética transcraniana e a estimulação cerebral profunda, encontram-se ainda em fase experimental, com alguns resultados promissores68 . Estudos de longa duração sugerem que o tratamento do TOC deve ser mantido por pelo menos dois anos, devendo -se sempre buscar a dose mínima, segura e tolerável dos medicamentos indicados. Embora o sucesso do tratamento seja limitado, com sintomas residuais sendo
mais a regra do que a exceção, a melhora clínica costuma ser acompanhada de impacto muito positivo na qualidade de vida.
Tratamento psicoterápico A abordagem comportamental com melhor nível de evidências disponíveis baseia-se na exposição prolongada e repetida aos estímulos geradores de ansiedade, sem que se realizem os rituais (prevenção de respostas). A exposição (in vivo ou por imaginação) visa ao fenômeno conhecido como habituação, que é a redução gradual da ansiedade diante das situações desencadeantes, até a sua extinção sem a necessidade de recorrer às compulsões. Do ponto de vista cognitivo, busca-se substituir os pensamentos disfuncionais41 (p. ex., maior estimativa de riscos, responsabilidade, necessidade de controle dos pensarnentos e intolerância à incerteza), que são importantes na ocorrência e manutenção das compulsões, por pensamentos mais realísticos e adequados às diferentes situações69 . As técnicas cognitivas são particularmente úteis em pacientes que: não aderem ou não respondem às técnicas comportamentais, que apresentam apenas obsessões, que têm pior crítica sobre os sintomas obsessivo-compulsivos e que apresentam sintomas depressivos graves associados70. A TCC pode ser conduzida de forma individual ou em grupo71-73. O formato grupal otimiza o tempo dos profissionais, e pode ter vantagens como a diminuição da vergonha e da culpa pelos soe, a melhora do repertório relaciona!, o aumento da autoestima e da esperança, a adesão ao tratamento medicamentoso e a capacidade de enfrentar situações temidas. Como muitos pacientes não seguem as orientações terapêuticas7\ abordagens alternativas vêm sendo testadas, como, por exemplo, o emprego de entrevista motivacionaF5 .
Tratamento farmacológico A Tabela I mostra os medicamentos de primeira linha para o TOC disponíveis no Brasil e suas respectivas dosagens. De modo geral, são necessárias doses no limite superior convencional. A clomipramina foi a primeira substância aprovada para o tratamento do TO C. Porém, com o surgimento dos ISRS, deixou de ser considerada de primeira linha, pela maior incidência de efeitos colaterais, como ganho de peso, boca seca, constipação intestinal, sonolência, hipotensão postura!, tremores, retenção urinária, redução da libido e atraso ejaculatório ou anorgasmia. Em doses superiores a 150 mg/ dia, existe o risco de arritmias (a duração do intervalo QT deve ser monitorada) e redução do limiar convulsivo. É contraindicada em pacientes com glaucoma de ângulo fechado e menos segura que os ISRS em caso de superdosagem acidental ou intencional. Portanto, seu uso é recomendado
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Tabela I
Medicamentos de primeira linha para o tratamento do TOC disponíveis no Brasil e suas dosagens
Substância
Dose (mín.-máx. em mg/dia)
Fluoxetina
20-80
Sertralina
50-200
Fluvoxamina
100-300
Paroxetina
20-60
Citalopram
20-60
Escitalopram Clomipramina
10-20 75-250
para pacientes que não responderam a dois ISRS em dose máxima (tolerada ou recomendada) por pelo menos 12 semanas76 . O uso endovenoso ou em associação com ISRS pode ser indicado em casos refratários, mas ainda faltam estudos que comprovem a eficácia e a segurança dessas abordagens. Como todas as comparações diretas entre a clomipramina e os ISRS observaram eficácia semelhante entre todos os medicamentos testados, a escolha costuma ser feita de acordo com o perfil de efeitos colaterais. A resposta terapêutica independe da presença de depressão associada. Os ISRS são em geral bem tolerados, sendo seus principais efeitos adversos: náusea, cefaleia, insônia ou sonolência, inquietude e, por vezes, sudorese e tremores. No longo prazo pode haver ganho de peso, redução da libido, anorgasmia, osteoporose e, eventualmente, síndrome da secreção inapropriada do hormônio antidiurético e aumento da prolactina. Ainda assim, a relação custobenefício, na maioria dos casos, favorece o uso dos ISRS. Recentemente, a venlafaxina, um inibidor seletivo de recaptura da serotonina e noradrenalina, também foi apontada como eficaz, em doses entre 75 e 300 mg/dia76 • Seu uso em doses superiores a 225 mg/dia indica o monitoramento da pressão arterial. Recomenda-se iniciar com doses baixas e aumentar gradualmente, conforme a necessidade e a tolerância de cada paciente. A melhora costuma ser percebida a partir do primeiro mês de tratamento. Não havendo melhora, recomenda-se aumentar a dose a cada quatro semanas, até se atingir a dose máxima recomendada e tolerada, por pelo menos oito semanas adicionais. Assim, deve-se aguardar pelo menos 12 semanas com a dose máxima de determinado ISRS, antes de se tentar outro76. Por outro lado, se a resposta for nula após seis semanas de tratamento com um ISRS, recomenda-se trocar para outro. A ausência de efeitos colaterais pode indicar metabolização rápida e doses maiores podem ser necessárias. Na fase de manutenção, a dose necessária da clomipramina é, em geral, menor do que as doses utilizadas nas fases iniciais, sem que haja perda dos progressos obtidos. Já a fluoxetina, por ter meia-vida longa, pode passar a ser prescrita em regime não diário, chegando a apenas uma
ou duas tomadas por semana. Entretanto, a suspensão dos medicamentos costuma ser seguida de retorno dos sintomas, não imediatamente, mas após alguns meses. As taxas de recaída diminuem quando o paciente tam bém faz TCC. O tratamento farmacológico do TOC é de longo prazo. Uma vez obtida melhora satisfatória, preconiza-se manter o tratamento por um ou dois anos. Após essa fase de manutenção, a retirada deve ser feita de modo gradual (25% da dose a cada dois meses), para se evitar sintomas de descontinuação. Após duas ou mais recaídas graves, recomenda-se manter os medicamentos indefinidamente.
Fatores associados com a resposta ao tratamento A melhora significativa dos SOC com os tratamentos de primeira linha ocorre para aproximadamente dois terços dos pacientes. Portanto, um terço deles necessitará de tratamentos adicionais, como associação de medicamentos, uso de doses mais elevadas, ou aumento do tempo de terapia77 • Os principais fatores preditivos de boa resposta para a TCC identificados até o momento foram: ter cônjuge e apresentar motivação e engajamento no tratamento74 . Foram associados com resposta inadequada: presença de obsessões sexuais e religiosas, sintomas de colecionamento, presença de transtornos psiquiátricos adicionais, crítica prejudicada, início precoce dos sintomas, curso crô nico e maior gravidade de sintomas OC e depressivos 74 • Para o tratamento farmacológico, foram associados com boa resposta: sintomas leves e de curta duração, ausência de tiques, presença de depressão secundária, curso episódico, resposta terapêutica inicial completa e história familiar de TOC. Fatores associados com pior resposta: início precoce dos soe, comorbidade com fobia social, transtorno de tiques e transtornos da personalidade do tipo obsessiva, esquizotípica, esquizoide, evitadora ou borderline, adaptação social inadequada, ser solteiro, história familiar de quaisquer transtornos psiquiátricos, presença de sintomas sexuais ou religiosos, predominância de compulsões e alto grau de acomodação familiar74 . Mais recentemente, um estudo comparando fatores preditivos de resposta ao tratamento do TOC grave em 52 pacientes internados e 62 pacientes ambulatoriais detectou, para os internados, influência positiva de estar casado ou coabitando, e, para os ambulatoriais, influência positiva da maior gravidade inicial dos sintomas78 • Outro estudo79, focalizando as dimensões de sintomas OC, detectou, diferentemente de evidências anteriores, associação entre boa resposta e presença de sintomas das dimensões sexual/religiosa e obsessões de agressão. Limitações desse estudo incluem a análise de pacientes tratados com diferentes ISRS e avaliações de resposta baseadas apenas na escala de impressão clínica global79 • Com relação aos estudos de neuroimagem, a maior disponibi-
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lidade do transportador de serotonina no tálamo e hipotálamo de portadores de TOC com predomínio de sintomas de verificação, medida por tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT), associou-se com maior ocupação de receptores e melhor resposta ao tratamento com sertralina80 •
Abordagem do TOC resistente aos tratamentos de primeira linha A eficácia dos IRS no tratamento do TOC, e a possibilidade de potencialização dos ISRS com neurolépticos típicos e atípicos sugerem o envolvimento de anormalidades do sistema serotonérgico e dopaminérgico entre as causas do TO C. No entanto, essas supostas anormalidades não foram identificadas de modo consistente até o momento. Mais recentemente, estudos de neuroimagem e genética molecular têm trazido evidências do envolvimento do sistema glutamatérgico na fisiopatologia do TOC81, com evidências preliminares de benefício da associação de memantina64 e riluzolé5 aos ISRS, além de um relato de caso que utilizou com sucesso a glicina, coagonista dos receptores do N -metil D -aspartato (NMDA), em monoterapia para o tratamento de um portador de TOC refratário aos tratamentos convencionais81 • Portanto, a abordagem do TOC resistente ao tratamento convencional passa pelas associações medicamentosas que incluem os sistemas serotonérgico, dopaminérgico e, com menor grau de evidência até o momento, o sistema glutamatérgico. Por isso, neste capítulo vamos destacar as estratégias mais frequentemente utilizadas na atualidade. Ensaios clínicos randomizados de potencialização medicamentosa foram conduzidos com a clomipramina ou ISRS combinados a neurolépticos como o haloperi doi, risperidona, olanzapina e quetiapina82, tendo os dois primeiros evidências mais consistentes de eficácia. Devese começar com doses baixas e aumentar gradativamente, quando necessário. As doses máximas utilizadas não costumam passar de 5 mg/ dia para o haloperidol, 6 mg/ dia para a risperidona, 20 mg/dia para olanzapina e 300 mg/ dia para a quetiapina. Outros neurolépticos, como a pimozida e amisulprida, foram avaliados em estudos abertos, sugerindo algum benefício. Quando os ISRS ou a clomipramina são utilizados em associação com outras drogas serotonérgicas, pode ocorrer a síndrome serotonérgica, que é potencialmente grave e requer cuidados intensivos. Para o diagnóstico desta, são necessários três dos seguintes sintomas: rebaixamento do nível de consciência, agitação, mioclonias, hiper-reflexia, sudorese, calafrios, tremores grosseiros de extremidade, diarreia, distúrbios da coordenação motora e febre 83 • Em casos graves e incapacitantes, com comprovada refratariedade a múltiplas intervenções farmacológicas e à TCC, o tratamento cirúrgico pode ser uma opção66 • Em geral, considera-se refratário o paciente com pouca ou
nenhuma melhora após ter se submetido a pelo menos três tratamentos farmacológicos adequados (em termos de dose máxima e tempo de uso) de IRS (sendo um deles a clomipramina), associado a neurolépticos, mais um período mínimo de TCC adequadamente conduzido (em geral, ao menos 20 sessões). Existem atualmente sete técnicas cirúrgicas para o TOC, cujo alvo encontra-se num dos pontos do circuito córtico-estriado-tálamo-cortical. As lesões podem ser produzidas por: neurocirurgia estereotática (termolesões), com estimulador ligado a um marca-passo cerebral (estimulação encefálica profunda EPP) 68 e com raios gama, sem a necessidade de abertura do crânio (radiocirurgiagamma knife) 67 • Atualmente, as modalidades mais empregadas são a capsulotomia anterior e a cingulotomia. A eficácia varia de acordo com o desenho do estudo e as técnicas cirúrgicas, mas cerca de 30 a 70% dos pacientes podem se beneficiar desses tratamentos. Por outro lado, algumas complicações podem ser observadas, como hemorragias no parênquima cerebral, crises convulsivas e infecções no sistema nervoso central (para EEP e neurocirurgias ablativas) ou cistos cerebrais (radiocirurgia). Prejuízo cognitivo, sintomas de exaltação do humor e impulsividade também podem eventualmente ocorrer. O primeiro estudo controlado, randomizado e duplo-cego de radiocirurgia para o tratamento do TOC está sendo realizado em nosso meio, empregandose a capsulotomia ventral por raios gama, com resultados preliminares promissores27 •
Prevenção Toda intervenção preventiva do adoecimento ou de promoção da saúde dependem do conhecimento acumulado sobre fatores de risco e proteção. Apesar de consideráveis avanços dos estudos etiológicos nas últimas décadas, as causas do TOC ainda são desconhecidas. Algumas abordagens de prevenção, no entanto, podem ser sugeridas a partir do que se conhece até o momento. Por exemplo, estudos epidemiológicos indicam que a ocorrência de soe subclínicos na infância aumenta em seis vezes a chance de o indivíduo apresentar TOC na idade adulta 14 • Assim, a partir da sua identificação, em tese seria possível intervir nessas crianças e adolescentes com soe para evitar o desenvolvimento do transtorno, por meio de abordagens psicoeducativas e psicológicas de alcance coletivo. Provavelmente a atuação conjunta de pro fissionais da saúde e da educação favoreceria a identificação e melhoraria o alcance de tais intervenções. Alguns fatores de risco pré e perinatais foram associados ao TOC1 8 portanto, a atenção à saúde da gestante sem dúvida constitui uma ação preventiva. Estudos com famílias sugerem aproximadamente 17% de chance de uma pessoa ter TOC caso um familiar de primeiro grau tenha TOC de início precoce (antes dos 17 anos de idade) e 10% caso o TOC seja de início tardio. Com base nessas informações, po-
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de-se informar um casal sobre as chances de seus filhos terem TOC, caso um dos pais seja portador. Como há estudos indicando que fatores ambientais, como eventos de vida estressantes, podem ter papel etiológico em alguns casos de TOC 33 , toda medida que vise a diminuir a exposição das pessoas a situações potencialmente traumáticas (p. ex., acidentes de trabalho e de trânsito, violência doméstica, violência urbana) são desejáveis. Assim, apesar de exigir esforços multissetoriais complexos, tais medidas seriam relevantes na prevenção do TOC, assim como de outros transtornos psiquiátricos. Em relação à prevenção secundária, ou seja, evitar complicações dos quadros já instalados, não há dúvida de que o tratamento precoce pode evitar uma série de limitações devidas ao impacto do TOC na vida acadêmica, profissional, familiar e afetiva dos portadores 15. Sabese que muitos portadores não buscam ajuda profissional ou demoram vários anos até procurarem e obterem tratamento adequado58, aumentando com isso o sofrimento e o impacto negativo dos soe em sua vida e também de seus familiares 84 . Portanto, quanto mais precoce o diagnóstico e o início do tratamento adequado, menos consequências negativas haverá na vida do paciente, de seus familiares e da sociedade em geral. De fato, toda a vida familiar pode ser afetada, incluindo a saúde mental dos próprios familiares 84• Assim, é muito importante o envolvimento dos familiares no tratamento, uma vez que muitos desconhecem a natureza do quadro e, para tentar minimizar o sofrimento dos pacientes adaptam -se aos soe, perpetuando-os ou agravando-os, num fenômeno chamado de "acomodação". Grupos de orientação e apoio dirigidos a pacientes e familiares podem ser extremamente importantes para aumentar a procura e a adesão ao tratamento, assim como minimizar o sofrimento, pelo fato de compartilhar de experiências semelhantes85.
Políticas públicas São muito escassos os estudos sobre o custo econômico ou o impacto social do TOC86, mas é provável que não seja pequeno, uma vez que este atinge aproximadamente uma em cada 50 pessoas ao longo da vida5, em geral adultos jovens, que estariam em pleno desenvolvimento psicossocial, de habilidades e competências em geral. Indicadores indiretos de que a sociedade como um todo sofre os efeitos deste transtorno são as menores taxas de casamento e emprego, menores níveis educacionais e de salários e maior uso de recursos da seguridade social pelos portadores de TOC86 . Muitos pacientes não atingem todo seu potencial, alguns nunca chegam a trabalhar e outros têm seu desempenho e produtividade profissionais afetados. Comparados aos demais transtornos "neuróticos': os sintomas do TOC têm maior interferência nas atividades laborais e sociais, assim como na qualidade de
vida dos portadores 52 . O risco de suicídio no TOC também parece ser maior do que se supunha até poucos anos atrás e merece consideração52. Portanto, os custos de uma doença mental vão muito além do uso de serviços de saúde (gerais e especializados) e são de difícil mensuraçãos6. Campanhas públicas de esclarecimento da população em geral pela mídia, trabalho conjunto em escolas com educadores e dirigentes, feiras de saúde e distribuição de material psicoeducativo de boa qualidade são medidas que podem melhorar a identificação dos casos e antecipar a procura por tratamento. É preciso, portanto, que pessoas em geral sejam mais bem informadas, para diminuir o estigma associado ao TOC, assim como a vergo nha, que é um sentimento tão comum aos portadores e familiares e potencializa o seu sofrimento. Por outro lado, é preciso haver profissionais de saúde preparados para atender esse aumento da demanda. Por exemplo, um estudo recente realizado na Alemanha detectou que o TOC passou despercebido em 70% dos pacientes ambulatoriais que procuraram os serviços em razão de algum problema psiquiátrico ou neurológico87 . Esses autores sugerem a adoção de questionários breves para rastreamento dos sintomas como parte integrante da avaliação de todos os pacientes dos serviços de saúde mental, para aumentar a eficiência no diagnóstico e possibilitar o acesso ao tratamento adequado. Assim, profissionais que atuam em serviços de atenção primária e na Estratégia de Saúde da Família necessitam receber formação adequada e continuada para identificar e oferecer tratamento psicológico e/ou farmacológico, pelo menos para os casos de menor gravidade (com sintomas mais leves, melhor crítica, menor nível de incapacitação e menor número de comorbidades), assim como para encaminhar os casos mais graves para serviços especializados. Portanto, os cursos universitários da área da saúde de vem contemplar em seus currículos conteúdos de saúde mental e dos transtornos mais prevalentes, entre os quais estão os transtornos ansiosos em geral, e o TOC em particular. Os gestores dos serviços de saúde devem planejá-los respeitando sempre os princípios da regionalização, hierarquização e integração, disponibilizando na rede pública os fármacos mais indicados para o tratamento do TOC, e favorecendo as atividades de educação continuada e supervisão ou matriciamento na área de saúde mental para os profissionais da rede básica. Por fim, mais pesquisas são necessárias sobre o custo econômico e social do TOC, assim como o custo-efetividade ou custo-benefício das diversas abordagens terapêuticas. O apoio das agências públicas de fomento à pesquisa é também essencial para o desenvolvimento de mais estudos sobre a epidemiologia, etiologia, manifestações fenotípicas, curso clínico e tratamento do TOC em ' nosso pa1s.
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Minicaso clínico Ident ificação SRT. 18 anos. branca. solteira. ensino médio incompleto. desempregada, católica. Paciente procura atendimento psiquiátrico em maio de 201O, com queixa de sintomas obsessivo-compulsivos (SOC) de longa data. com piora no último ano. época em que se associaram sintomas depressivos. Relata que quando tinha 13 anos. estando em sua própria rua e usando chinelos. pisou sem querer num preservativo. A partir daí, desenvolveu comportamentos repetitivos de lavagem de mãos. passou a evitar sentar-se ao chão. parou de jogar bola com os amigos e deixou de comer fora de casa, com a preocupação de que os alimentos não fossem preparados com a higienização adequada. As preocupações com contaminação levaram-na a aumentar gradualmente a duração dos seus banhos. para garantir que ficaria limpa. Na escola. só sentava-se na sua carteira. havendo certa queda do rendimento escolar nessa época. Relatou também alguns rituais de checagem precedidos de dúvidas em relação ao fechamento de portas. do carro e do gás de cozinha. Notando tais dificuldades. a paciente recebeu atendimento psicológico nesse serviço de 2005 a 2006, trazendo inicialmente os sintomas acima e dificuldades no relacionamento familiar com os irmãos. Na época. referia muita dificuldade de real izar trabalhos em grupo, uma vez que apenas se sentia satisfeita se ela pudesse realizar as tarefas sozinha, por não confiar no desempenho dos colegas. Ao longo do acompanhamento psicológico. foi apresentando leve melhora dos (voltou a jogar bola na rua, a entrar em casa com os sapatos etc.). porém minimizava as queixas e ficou muito resistente ao tratamento. tendo alta a pedido. Aos 17 anos de idade, enquanto fazia um estágio no fórum. a paciente passou a ter sintomas mais intensos e limitantes - preocupava-se muito com a organização das mesas (dela e dos colegas de trabalho), conferia várias vezes certas tarefas (ficava cerca de 2 horas após o expediente checando se os protocolos dos processos haviam sido corretamente preenchidos na ata). evitava cumprimentar algumas pessoas que julgava estarem "sujas" e chegava a lavar as mãos por cerca de 30 minutos antes de sair do trabalho. Ao chegar a sua casa. imediatamente tirava as roupas e colocava-as para lavar. iniciando em seguida prolongados banhos ritualizados. de duração aproximada de 3 horas (lavava primeiro o sabonete. depois as mãos por 30 minutos; a seguir lavava a cabeça. os genitais. os membros e novamente as mãos). Passou a ter muito medo de tocar nas pessoas. não evacuava fora de sua casa e passou até mesmo a evitar alimentar-se. para evacuar o mínimo possível (tinha que tomar um banho completo após cada evacuação para não se sentir suja e não contaminar ninguém). chegando a emagrecer 1Okg em seis meses. Passou também a ter medo de sair de casa (medo de se contaminar ao pisar em algo na rua. como preservativos. curativos. seringas ou fezes) e se tivesse de sair, andava pelo meio da rua. julgando que a calçada estivesse mais suja. Nesses períodos em que andava pelo meio da rua e olhando para o chão. quase chegou a ser atropelada. Em função dos SOC, abandonou os estudos no último mês do terceiro colegial e parou de estagiar no fórum . Nes-
soe
sa época. passou a ter desânimo. tristeza. inapetência. insônia, diminuição dos cuidados pessoais, choro fácil e prejuízo de pragmatismo. ficando na cama a maior parte do dia. Em janeiro de 201 O, procurou um clínico geral, que prescreveu clomipramina 25 mg (1 e 112 cp ao dia) e clonazepam sublingual se necessário; após dois meses sem melhora. foram prescritos venlafaxina 75 mg (2 cps ao dia) e clonazepam (30 gotas/ dia); novamente sem melhora até maio de 20 1O, época em procurou o hospital universitário. No primeiro atendimento. introduziu-se fluvoxamina 100 mg/dia e encaminhou-se a paciente para o grupo psicoterápico cognitivo-comportamental de pacientes com TOC. Com 150 mg de fluvoxamina a paciente não teve nenhuma melhora clínica. queixando-se também de constipação intestinal e permanência de sintomas depressivos - insônia. inapetência, desânimo. ideias de morte e. esporadicamente. ideação suicida. Relatou em consulta que tinha pensamentos obsessivos com músicas das quais não gostava, e que costumava ter rituais mentais diversos para afastar as músicas. sem sucesso. Iniciado tratamento psicoterápico de orientação cognitivo-comportamental em grupo em junho de 201O. Após dois meses. a paciente conseguiu melhorar sua alimentação. ganhou 1 kg e diminuiu em 30-40% o tempo de lavagem das mãos. assim como dos rituais de checagem de portas e gás de cozinha. Por causa de efeitos colaterais. optou-se por substituir a fluvoxamina por paroxetina 20mg, dose que foi aumentada para 30 mg após seis semanas de uso. Antecedentes pessoa is Bom desenvolvimento neuropsicomotor; bem ativa, brincalhona e destemida na infância. preferia brincar com meninos. Teve diagnóstico de síndrome do cólon irritável, nódulos vocais e escoliose no início da adolescência. Desempenho escolar bom e várias amizades até o final do terceiro colegial. quando abandonou os estudos e passou a evitar os amigos. por medo de se sujar/contaminar. Está namorando um rapaz há dois anos. mas nega início da vida sexua l (mesmo assim. tem dúvidas recorrentes de que pode estar grávida). Antecedentes fam iliares É filha de um casal que teve três filhos (tem irmã de 21 anos e um irmão de 14 anos) e se separou quando ela tinha sete anos de idade. O pai visita-a com pouca frequência. A mãe da paciente relata ter de leve intensidade desde a época da separação do marido: dúvidas e rituais de verificação (portas. carro, gás de cozinha) e rituais de ordenação (p. ex.. roupas no varal) e limpeza (casa. louça).
soe
Questões 1. Qual dos transtornos abaixo não é considerado um transtorno a) b) c) d) e)
do espectro obsessivo-compulsivo? Tricotilomania Síndrome de Tourette Esquizofrenia TOC de início precoce Transtorno dismórfico corporal
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
2. Qual das seguintes estruturas cerebrais não está envolvida na neurobiologia do TOC? a) Núcleo caudado b) Estriado c) Putâmen d) Hipocampo e) Córtex pré-frontal 3. A prevenção do TOC, de acordo com o conhecimento atual, pode ser do tipo: a) Primária b) Primária e secundária c) Secundária e terciária d) Primária e terciária e) Primária, secundária e terciária
4. Considerando um paciente adulto com TOC que não respon-
a) b) c) d) e)
deu adequadamente ao tratamento com fluoxetina na dose de 80 mg/dia por um período de 12 semanas, qual das abordagens abaixo seria a mais indicada? Aumentar a dose de fluoxetina para 100 mg/dia. Potencializar com clomipramina na dose de 150 mg/dia sem diminuir a dose da fluoxetina. Substituir por sertralina em doses crescentes até 200 mg/dia ou a dose máxima tolerada. Potencializar com haloperidol 1O mg/dia. Indicar cirurgia por se tratar de caso resistente.
5. Qual seria a principal indicação para terapia de famnia no tratamento do TOC? a) Quando o paciente não aceita o tratamento. b) Quando ocorre acomodação famil iar. ou seja, os fam iliares participam ativamente dos rituais junto com o paciente. c) Quando o caso é refratário. d) Quando o paciente tem mais de três comorbidades. e) Quando o TOC é muito grave.
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Síndrome de Tourette e Transtornos de Tiques Pedro de Souza Leite Mauro Victor de Medeiros Filho Pedro Gomes de Alvarenga Ana Gabriela Hounie
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 863 Epidemiologia, 864
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Etiopatogenia, 864 Fatores genéticos, 864 Fatores neurobiológicos, 865 Fatores infecciosos e imunológicos, 865 Manifestações clínicas, 865 Tiques, 865 Síndrome de Tourette, 866 Comorbidades, 866 Transtornos do espectro obsessivo-compulsivo, 867 Transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (fDAH), 867 Transtornos ansiosos, 867 Transtornos de humor, 867 Diagnóstico, 867 Diagnósticos diferenciais, 867 Tratamento, 868 Tratamento não farmacológico, 868 Tratamento farmacológico, 868 Considerações finais, 869 Minicaso clínico, 869 Questões, 870 Referências bibliográficas, 870
Introdução A síndrome de "Gilles de La Tourette", ou síndrome de Tourette (ST), foi descrita por Georges Gilles de La Tourette a partir da publicação de uma série de casos em 1885. Nesse trabalho, foram descritos pacientes com tiques motores associados a vocalizações involuntárias, algumas delas expressões obscenas 1 • O médico francês nomeou o transtorno de "doença dos tiques convulsivos com coprolalià: Concluiu que os sintomas apresentavam cur-
1. Conhecer o padrão de acometimento da síndrome de Tourette (ST) e dos transtornos de tiques
em nas diversas populações.
2. Distinguir as principais hipóteses etiopatogênicas para a ST e TI. 3. Reconhecer o quadro clínico de ST e TI e distingui-los de suas principais comorbidades. 4. Conhecer os principais tratamentos atualmente disponíveis.
so crônico, eram oscilantes e resistentes às intervenções terapêuticas2 • Ao longo do século XX, vários cientistas tentaram explicar a gênese do transtorno, com teorias psicossomáticas, degenerativas, infecciosas e hereditárias. Desse modo, pacientes com a mesma sintomatologia tiveram tratamentos distintos, dependendo das crenças científicas vigentes3 • Até a década de 1950, a teoria psicanalítica era a mais aceita como modelo etiológico. Postulava-se que os tiques fossem uma síndrome resultante de excitação psíquica mal canalizada, como uma variante de histeria4 . No entanto, isso mudou após a descrição do êxito terapêutico do haloperidol em um grupo de pacientes com tiques refratários aos tratamentos psicológicos de então5 • Nos anos seguintes, a hipótese mais aceita era a de que os sintomas seriam causados por uma desorganização funcional neuroquímica com regularização após administração de haloperidol6 • Em razão da agregação familial da ST, nas décadas de 1980 e 1990, a pesquisa se direcionou para a busca de um componente genético que explicasse o transtorno7 . No entanto, a ideia de um único gene causador do transtorno foi substituída por modelos poligênicos. Concomitantemente, uma interessante linha de exploração científica retomou a relevância de fatores infecciosos e imunológicos em famílias suscetíveis8 . Hoje, considera-se mais apropriado compreen-
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der a ST não como doença de causa única, mas como conjunto de sintomas que surge por meio de um modelo multifatorial entre suscetibilidades e estressares ambientais. A estreita relação clínica e etiopatogênica com o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e outras comorbidades, como o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), possibilitou avanço considerável nos tratamentos farmacológicos e não farmacológicos, como será visto adiante.
Epidemiologia A ST tem prevalência estimada em 0,3 a 1% da população. O sintoma de tique isolado acomete cerca de 10% das crianças em idade escolar9. Há predomínio da ST durante o período da infância, com pico de incidência entre 3 e 8 anos de idade. Cerca de 5 a 30 a cada 1O mil crianças são afetadas, enquanto apenas 1 ou 2 adultos a cada 10 mil enquadram-se nos critérios diagnósticos de ST. A remissão completa e espontânea dos tiques, ao longo da vida adulta, pode ocorrer em até 30% dos casos. Há uma diferença relacionada ao sexo, com razão de prevalência de 4:1 a 6:1 do sexo masculino em relação ao feminino 10. Menor taxa do transtorno foi notada em afroamericanos e na África subsaariana, apesar dessa informação ainda ser controversa 11. A frequência de tiques pa. . rece ser mawr em cnanças que cumprem um programa educacional "especial". Foi relatada a porcentagem signifi cativamente maior de tiques em três grupos de crianças de 5 a 16 anos: crianças com dificuldade de leitura, com problemas comportamentais/emocionais e com características que as definiam como "difíceis". Também houve a descrição de maior porcentagem de tiques em 341 crianças que eram acompanhadas em escolas com programas especiais, comparadas com 1.255 crianças de escolas com programas-padrão (27% e 19.7% respectivamente) 12. Para esses autores, os tiques poderiam ser consequência dos mesmos problemas de desenvolvimento neurológico que causariam prejuízos no aprendizado. No entanto, deve-se ressaltar que a ST não está associada a QI reduzido 13 •
Etiopatogenia Atualmente, acredita-se que a ST seja uma condição de causa multifatorial. Estudos recentes apontam a grande influência de fatores constitucionais e ambientais no seu desenvolvimento. A seguir, são descritos os pontos mais relevantes em relação aos fatores genéticos, neurobiológicos e imunológicos observados em pacientes com ST.
Fatores genéticos Em 1885, Gilles de la Tourette já havia observado a agregação familiar da síndrome que herdou seu nome 1, mas foi apenas no final do século XX que estudos demons-
traram que familiares dos portadores de ST apresentavam maior incidência deSTe do transtorno de tiques crônicos14. Diversos estudos com gêmeos amparam a noção de que fatores genéticos estejam implicados na etiopatogenia da ST 15·16 . A concordância em gêmeos monozigóticos é muito maior do que em dizigóticos 17. Os estudos de famílias que pesquisaram a ST são mais escassos. O primeiro estudo, que apontou para a maior frequência de ST e o transtorno de tiques crônicos (TTC) em familiares de primeiro grau (FPG) de probandos com ST, foi o de Kidd et al. 18, que utilizaram entrevistas com o probando e não entrevistas diretas. Posteriormente, em 1986, Pauls e Leckman7 publicaram resultados que favoreciam a hipótese de transmissão autossômica dominante da ST e, em 1991, Pauls et al. 19 publicaram uma expansão do estudo anterior. Ambos demonstravam a agregação familiar da ST e do TTC como variação fenotípica da ST. Além disso, o segundo estudo demonstrou que a frequência de TOC (11,5%) nos familiares de primeiro grau (FPG) era elevada apesar dos probandos não terem esse diagnóstico, o que sugere que o TOC e a ST tenham suscetibilidade comum, ou que eles sejam expressões alternativas para uma mesma vulnerabilidade20. As frequências encontradas nos 338 FPG do estudo publicado, em 1995, por Pauls et aF 1foram 8,7% paraSTe 17,3% para TTC. Posteriormente, Eapen et al. 22 relataram, entre 168 FPG de portadores de ST, a frequên cia de 17,9% de ST, 12,5% de TTC e 6% de TOC. Walkup et al. 23 , entre 154 FPG de 53 portadores de ST, encontraram 13,6% de ST, 7,9% de TTC e 13,6% de TOC. Adicionalmente, filhos de mães com ST apresentam risco maior do que a população geral para desenvolver a síndrome; em algumas famílias, a ST aparenta ter transmissão bilinear, ou seja, mediante um padrão autossômico intermediário entre dominante e recessivo24 . Além de a ST se agregar em famílias com TOC, principalmente TOC de início precoce, encontra-se agregação em familiares de pacientes com outros transtornos do espectro obsessivo -compulsivo, como a tricotilomania25·26 . O estudo mais recente, de Kano et alY , foi realizado no Japão com 52 casos de portadores deSTe seus 165 familiares de primeiro grau. O probando e pelo menos um familiar de primeiro grau foram entrevistados diretamente. Os riscos mórbidos corrigidos para idade encontrados foram 2,0% para ST, 12% para TTC, 1,6% para TOC e 7% para TOC subclínico. Como essas frequências foram mais baixas que as relatadas nos estudos americanos e europeus, os autores sugeriram que diferenças genéticas ligadas à população japonesa talvez explicassem esse achado. Embora os diversos estudos tenham concluído pela importância dos fatores genéticos na etiologia da ST, até o momento não se definiu o seu padrão de transmissão. Até o momento, seis estudos de segregação em famílias com Tourette foram realizados 28. Foram sugeridos um padrão autossômico dominante com penetrância variável e dependente do sexo29 e, mais recentemente, um modelo de he-
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rança complexa com a presença de um gene de maior efeito e um fundo multifatorial com genes de menor efeito23. Apesar de os dados apoiarem a hipótese genética, nenhum loco específico foi diretamente envolvido com a ST. Genes responsáveis por tiques ainda não foram identificados. Recentemente, o gene candidato SLITRK1 vem sendo implicado na síndrome30, embora o resultado não tenha sido reproduzido em estudos ulteriores. Espera-se que estudos de associação com genoma inteiro ( whole genome association studies) sejam mais frutíferos na investigação dos genes da síndrome de Tourette. Considerando a importância de fatores ambientais, o estudo de Kano et aP 7 encontrou que a frequência de ST e TOC foi maior nos FPG de portadores de ST que não haviam tido problemas perinatais sérios, tais como uso de fórceps, sofrimento fetal ou parto prematuro. Esse achado sugere que existem formas de ST em que fatores ambientais apresentam maior relevância e outras em que os fatores genéticos são preponderantes na etiologia do transtorno. Kano et al. 31, em 2002, reexaminaram a amostra coletada na Universidade de Yale na tentativa de reproduzir o resultado do estudo japonês e selecionaram 46 probandos com ST e seus 146 FPG. Dos 46 probandos, 23 (50%) apresentaram complicações perinatais, dos quais 18 (39,1 %) se referiam ao uso de fórceps. Entre os 69 FPG desse grupo a frequência de ST foi menor (4%) do que entre os 77 FPG dos probandos sem complicações perinatais (11 %).
Fatores neurobiológicos O objetivo dos estudos neurobiológicos é identificar sistemas e funções neurais que provocam, modulam ou compensam os sintomas da ST. A identificação desses sistemas pode trazer maior compreensão da síndrome e ajudar no desenvolvimento de novas ferramentas terapêuticas. Estudos de neuroimagem estrutural demonstram que as principais alterações encontradas na ST são reduções volumétricas nos gânglios da base. Estudos que utilizaram ressonância magnética estrutural (RM) mostraram que pacientes com ST têm menor volume de caudado, núcleo lenticular, globo pálido e putâmen quando comparados com controles sadios32·33 . Além disso, foi constatada a assimetria lateral nos gânglios da base de pacientes com ST, principalmente em indivíduos do sexo masculino. A redução volumétrica dos núcleos caudado e lenticular pode ser um futuro marcador neurobiológico da ST34 . Estudos com o uso de PET (positron emission tomography) e SPECT (single photon emission tomography) apoiam os dados em neuroimagem estrutural, pois constataram redução do metabolismo de glicose nos núcleos da base - em especial no putâmen e no núcleo caudado35 . Os achados em neuroimagem corroboram a proximidade etiopatogênica entre ST e TOC, uma vez que ambas as patologias compartilham achados muito semelhantes em neuroimagem. Utilizando-se técnicas de RM mais recen-
tes que analisam a difusão e a composição de feixes axo nais, observaram-se alterações da conectividade estriado-talâmica-cortical em crianças portadoras de ST36 . Além disso, pacientes com ST e TT apresentam alterações neuropsicológicas como déficits motores finos 37 e particularidades de funções executivas38 que podem constituir endofenótipos com validade científica. Em relação à neuroquímica, considera-se o envolvimento do sistema dopaminérgico na etiopatogenia da ST, já que psicotrópicos que bloqueiam receptores de dopamina (como os antipsicóticos) podem reduzir os sintomas, enquanto drogas que aumentam a atividade dopaminérgica central (como os estimulantes) podem exacerbar os tiques. Além disso, outros estudos demonstraram que há maior densidade de transportadores e receptores D2 de dopamina nos gânglios da base de pacientes com ST39. Essa relação ainda não é completamente elucidada, uma vez que nem todos os pacientes apresentam as respostas assinaladas anteriormente.
Fatores infecciosos e imunológicos Há cerca de duas décadas, foi retomada a hipótese de uma etiologia pós -infecciosa para tiques e ST, que já havia sido aventada no século XIX40. Recentemente, essa teoria foi centrada em uma reação autoimune secundária a infecções de estreptococos beta-hemolíticos do grupo A (EBHGA). Assim, esse processo poderia atuar de maneira sinérgica e multifatorial, desencadeando os sintomas em pacientes com certa predisposição genética. Os EBHGA já foram estudados na etiologia da febre reumática, do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) 41e da coreia de Sydenham - patologia na qual há movimentos coreicos que podem estar associados a tiques, ST, TDAH, obsessões e compulsões. Estudos de família evidenciam associação entre FR e transtornos do espectro obsessivo-compulsivo42, o que sugere que haja suscetibilidade genética comum para esses transtornos. Swedo et al. 43chegam a propor a existência de nova síndrome em neuropsiquiatria PANDAS (pediatric autoimmune neuropsychiatric disorders associated with streptococcal infection) - que seria uma entidade clínica distinta com características próprias. Entretanto, a validade desse construto permanece controversa.
Manifestações clínicas Tiques Os tiques são definidos como movimentos, gestos ou vocalizações, súbitos e repetitivos, que geralmente mimetizam um fragmento de um comportamento considerado normal. Sua duração é breve e, na maioria das vezes, é de apenas alguns segundos. Apresentam variação na sua frequência e intensidade e ocorrem em salvas ou com um curto período entre eles6.
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Em geral, os tiques diminuem durante o sono, com o consumo de bebidas alcoólicas ou em atividades que mobilizem a concentração do indivíduo. Por outro lado, eles podem ser exacerbados por ansiedade, fadiga e excitação44. A maioria dos pacientes consegue suprimir parte dos seus tiques de modo voluntário, mas apenas temporariamente - o que provoca aumento de tensão psíquica. Essa habilidade pode levar à observação incorreta de que os sintomas são volitivos, o que dificulta o seu diagnóstico correto. Os tiques podem ser simples ou complexos. Os tiques simples envolvem apenas um músculo ou pequenos grupos musculares. Os tiques complexos são mais lentos do que os simples e são realizados com grupos musculares não relacionados entre si. Eles se apresentam como movimento coordenado ou como um discurso. Em geral, os tiques complexos se assemelham a ações ou discurso voluntários. Os tiques podem ser motores ou vocais. Os tiques motores simples podem se apresentar como piscar de olhos, viradas de cabeça ou rotação dos ombros. Os tiques motores complexos podem ser expressões faciais ou gestos com as mãos ou com a cabeça. Em alguns pacientes com tiques complexos, os gestos podem ser obscenos (copropraxia) ou autoagressivos. Os tiques vocais simples são sons guturais oriundos da passagem de ar pelas vias aéreas superiores - como "pigarrear" ou grunhido. Os tiques vocais complexos podem ser: mudanças repentinas no volume ou na cadência do discurso; pronúncia de palavras ou frases; repetição da mesma palavra continuamente (palilalia); repetição de palavras ditas por outras pessoas (ecolalia); pronúncia de palavras ou frases obscenas ( coprolalia) 4. Os pacientes podem referir sensações físicas (p. ex., coceira, "pinicadà: formigamento), mentais (p. ex., tensão, incompletude, ansiedade) ou mistas que antecedem ou acompanham os tiques. Essas são denominadas sensações premonitórias ou fenômenos sensoriais45. Tais sensações são aliviadas após a execução do tique, o que leva opaciente a perceber seu sintoma como resposta voluntária a um desconforto. Alguns pacientes sentem a necessidade de realizar o tique até aplacar tal estado de "tensão" e se sentirem satisfeitos. Essa característica está presente na maioria dos pacientes já por volta dos dez anos de idade é e menos frequente em crianças mais jovens46 .
Síndrome de Tourette A síndrome de Tourette é caracterizada pela presença de múltiplos tiques motores e de ao menos um tique vocal - o qual não precisa ocorrer concomitantemente com os demais tiques 47 . Os sintomas podem flutuar, mas eventualmente se tornam persistentes por pelo menos um ano com intervalos de remissão inferiores a três meses.
Tipicamente, a ST se inicia com salvas intermitentes de tiques motores simples em olhos, face ou cabeça e, fre quentemente, avança para grupos musculares dos ombros, tronco e extremidades. Apesar de o curso não ser previsível, alguns pacientes apresentam progressão craniocaudal dos sintomas motores (cabeça-pescoço-ombros-tronco membros). Na evolução média, os tiques vocais se iniciam cerca de 1 a 2 anos após os primeiros tiques motores e, na sua maioria, são tiques simples como "pigarrear" ou emitir um grunhido. Os tiques complexos podem se iniciar após alguns anos do surgimento dos primeiros sintomas. Embora sejam sintomas muito exuberantes, a palilalia, a ecolalia e a coprolalia estão presentes na minoria dos casos. Apesar desse fato, é comum que a coprolalia seja veiculada pela mídia como uma das características centrais e necessárias para o diagnóstico dessa síndrome48 . Em um pequeno número de casos, os tiques motores complexos podem setornar autoagressivos: desde simples tapas no rosto até golpes na face, mordidas nos punhos e lesões oculares com o risco de perda da visão49. Os sintomas tendem a melhorar em intensidade e frequência ao final da adolescência e no início da vida adulta. Em especial, os tiques vocais podem diminuir progressivamente ou até desaparecer. Existem relatos de casos que descrevem a remissão dos sintomas nesse período da vida. A frequência dos sintomas demonstra grande variabilidade entre os pacientes. Eles podem ocorrer somente algumas vezes por semana ou se manifestar diversas vezes em um minuto. Além disso, a intensidade dos tiques também varia muito: desde gestos não perceptíveis até comportamentos extravagantes que produzem receio por parte de outros e exaustão física do paciente. A gravidade dos sintomas é, geralmente, influenciada por fatores ambientais. Os tiques motores ou verbais podem ser precipitados ou exacerbados por discussões, provas escolares ou exposições públicas. Outras condições que despertam ou pioram os sintomas são episódios de febre ou doenças infecciosas50. O prejuízo provocado pela ST pode ser atenuado por fatores de resiliência presentes em cada paciente. A dinâmica desses fatores ainda é desconhecida, mas provavelmente é influenciada por: presença de comorbidades; adequação e apoio da rede familiar e social ao paciente; presença de habilidades em outras áreas - como habilidade social, bom desempenho esportivo ou distinção acadêmica51.
Comorbidades A maioria dos pacientes com diagnóstico de ST apresenta um ou mais transtornos mentais comórbidos. Na presença de uma ou mais comorbidades, a hierarquização dos transtornos deve ser considerada para o desenvolvi-
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mento do plano terapêutico. A seguir, serão apresentados os transtornos que mais acompanham a ST e o TTC.
Transtornos do espectro obsessivo- compulsivo Atualmente, a ST e o TTC fazem parte do espectro obsessivo-compulsivo. Isso significa que eles compartilham características genéticas, neurobiológicas, clínicas e de resposta a tratamento com outros transtornos. Entre eles estão o TOC, a tricotilomania e o transtorno dismórfico corporal52•53 . Alguns estudos mostram que até 40% dos pacientes com ST desenvolvem TOC54. Além disso, a prevalência de TOC nos familiares de pacientes com ST também é aumentada em relação à população-controle. O TOC relacionado a tiques vem sendo proposto como subtipo do TOC55 com características específicas, por exemplo: idade de início mais precoce; incidência maior no sexo masculino; frequência aumentada dos fenômenos sensoriais, precedendo as compulsões; maior presença de rituais tic-like, como bater, tocar ou friccionar. O TOC e a ST também compartilham achados em neuroimagem e endofenótipos neuropsicológicos, como mencionado anteriormente. Além disso, pacientes portadores de ST apresentam maior incidência de tricotilomania - 4% - e dermatotilexomania - 25% - do que a população geral56 •
Transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) Apesar da relação genética entre a ST e o TDAH ser mais controversa do que no TOC57 , estudos evidenciam que 50 a 90% dos pacientes com ST também apresentam diagnóstico de TDAH58 • Tipicamente, o TDAH se manifesta antes dos sintomas da ST e pode estar associado com maiores prejuízos sócio-ocupacionais - principalmente em relação a de sempenho acadêmico e relacionamentos interpessoais. Habitualmente, os sintomas do TDAH persistem na vida adulta, ao contrário da tendência dos tiques em diminuírem sua intensidade e frequência.
Transtornos ansiosos Pacientes com ST experimentam sintomas ansiosos em maior número e frequência do que a população geral. Estudos baseados em comunidades relatam incidência aumentada de fobia simples, fobia social, agorafobia e transtorno de ansiedade de separação em pacientes portadores de ST59 •
ção entre 13 e 76% para a incidência de distimia e transtorno depressivo maior (TDM) em pacientes com ST. Outros trabalhos mostram que a incidência do transtorno afetivo bipolar (TAB) em pacientes com ST oscila entre 7 e 28%60 •
Diagnóstico O diagnóstico é clínico. Não há testes laboratoriais que confirmem o transtorno, nem o risco de seu desenvolvimento. Os exames podem servir, contudo, para excluir diagnósticos diferenciais. Recomenda-se o uso de escalas para graduar a gravidade dos sintomas e acompanhar seu curso ao longo do tempo. Uma das mais usadas é a Yale Global Tic Severity Scale (YGTSS). Os critérios diagnósticos para a ST de acordo com o DSM-IV encontram-se na Tabela I. Ao se considerar a hipótese de ST, deve-se diferenciar o seu quadro clínico do transtorno de tique transitório e do transtorno de tique motor ou vocal crônico. No primeiro caso, os sintomas ocorrem por mais do que 4 semanas, mas por menos que 12 meses consecutivos, sendo os episódios únicos ou recorrentes. No segundo, os sintomas motores e vocais nunca estão presentes ao mesmo tempo. Epidemiologicamente, os transtornos supracitados são mais prevalentes do que a ST. O primeiro ocorre em 5 a 24% das crianças em idade escolar. O segundo tem prevalência estimada em 1 a 2% naquela mesma população.
Diagnósticos diferenciais É primordial diferenciar o tique - sintoma fundamental da ST - de outros movimentos involuntários, os quais são resumidos na Tabela II. A caracterização do tique está contida no item Manifestações Clínicas.
Tabela I
Critérios diagnósticos da síndrome de Tourette
A - Presença de múltiplos tiques motores e um ou mais tiques vocais em algum momento durante a doença, embora não necessariamente ao mesmo tempo (o tique é um movimento ou vocalização súbita, rápida, recorrente, não rítmica e estereotipada). B - Ocorrência de tiques, muitas vezes ao dia (geralmente em ataques), quase todos os dias ou intermitentemente durante um período de mais de um ano, sendo que durante este período jamais houve uma fase livre de tiques superior a três meses consecutivos. C - Acentuado sofrimento ou prejuízo significativo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo, ocasionados pelo transtorno. O - O início dá- se antes dos 18 anos de idade.
Transtornos de humor Os transtornos de humor também são mais prevalentes em pacientes com ST. Estudos demonstram varia-
E - O transtorno não se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p. ex., estimulantes) ou a uma condição médica geral (p. ex., doença de Huntington ou encefalite pós-viral).
Fonte: DSM-IV-TR
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Tabela 11
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Movimentos involuntários
Acatisia: sentimento de inquietude psicomotora, com consequente incapacidade de ficar parado. Geralmente causado por neurolépticos. Balismo: movimento amplo, intermitente, geralmente unilateral, que se projeta para fora e para a frente, com tendência à flexão e ao enrolamento sobre seu próprio eixo. Decorre de lesões subtalâmicas ou de múltiplos microinfartos no estriado, contralateralmente ao hemicorpo afetado. Coreia: contrações involuntárias irregulares e súbitas, não rítmicas, que causam um movimento semelhante a uma dança. Pode ocorrer por processo infeccioso (coreia de Sydenham) ou degenerativo. Distonia: movimento de torção, sustido, geralmente repetitivo, que progride para postura anormal. Mioclonia: contração muscular súbita, breve, restrita a grupos musculares ou porções destes, provocando ou não deslocamento de um segmento. Síndrome das pernas doloridas e de movimento dos artelhos: movimento de flexão e extensão constante em dedos ou no pé, acompanhado de dor profunda no membro inferior ipsilateral. Síndrome das pernas inquietas: alterações da sensibilidade e desconforto nos membros inferiores que aparecem quase sempre à noite e melhoram com a movimentação. Estereotipias: comportamentos voluntários, repetitivos e sem objetivo aparente. Encontradas em pacientes com retardo mental, sintomas psicóticos ou hiperativos. Compulsões*: atos ou rituais físicos ou mentais realizados, geralmente, para aliviar uma obsessão presente anteriormente. Pode ser difícil distinguir compulsões de tiques em pacientes que manifestam ambos os sintomas. *As compulsões são voluntárias quando realizadas em resposta a uma obsessão, mas podem ser "semivoluntárias", quando realizadas em resposta a um fenômeno sensorial ou na infância, quando o desenvolvimento cognitivo não permite que se identifiquem obsessões e as compulsões são realizadas aparentemente sem motivo.
Tiques vocais podem ser vistos em outras patologias, como na doença de Huntington e na Coreia de Sydenham. A ST, no entanto, pode ser distinguida por algumas características como capacidade de supressão temporária pelo paciente; presença de fenômenos sensoriais associados e diminuição dos tiques com movimento intencional61. Além disso, os tiques da ST alternam-se entre simples e complexos, com um curso crônico e flutuante. Deve-se também diferenciar a ST do "tourettismo", quadro orgânico que se apresenta com os sintomas da ST. As causas podem ser variadas, como: acidente vascular cerebral; traumatismo cranioencefálico; uso de levodopa e estimulantes (cocaína, anfetamina) e pós-inalação de monóxido de carbono e de gasolina 17.
Tratamento Até a primeira metade do século XX, diversas teorias psicogênicas para os transtornos de tiques e ST foram postuladas, e a psicanálise era a principal ciência que se in-
cumbia do tratamento de tais moléstias. Os avanços da psicofarmacologia na década de 1950 permitiram a elaboração de hipóteses biológicas e tratamento medicamentoso dos tiques e da ST4. Recentemente, a descoberta da continuidade psicopatológica e fisiopatológica entre ST e TOC, possibilitou o advento de tratamentos psicoterápicos comportamentais para ST que melhor se aproximam do modelo da medicina baseada em evidências4. Atualmente, sabe-se que os tiques e ST respondem a uma série de intervenções farmacológicas e não farmacológicas bastante seguras e eficazes. O tratamento das comorbidades é essencial. Em muitos casos, TOC, TDAH e transtornos ansiosos estão presentes e causam maior impacto do que os tiques propriamente ditos, devendo ser priorizados no tratamento62·63.
Tratamento não farmacológico Atualmente, as terapias de base comportamental são o tratamento de escolha para os tiques quando são leves, em razão da sua alta eficácia e dos poucos efeitos colaterais (algumas crianças apresentam irritabilidade e/ ou problemas de conduta durante o tratamento) 64 . Técnicas de terapia cognitivo-comportamental (TCC) como reversão de hábito65 e exposição e prevenção de resposta66 vêm sendo utilizadas com sucesso em estudos controlados. Essas técnicas são extremamente sofisticadas e dependem de treinamento especializado dos terapeutas e engajamento dos pacientes e dos seus familiares. Grosso modo, elas se apropriam de recursos psicoeducacionais das terapias cognitivas - que visam a explicar a natureza multifatorial do transtorno e educar o paciente a reconhecer os seus tiques, as sensações premonitórias, bem como os fatores que influenciam sua melhora e piora - associando técnicas comportamentais, a fim de suprimir e/ ou minimizar os tiques e lidar com a ansiedade advinda do tratamento. 64·66 Até alguns anos atrás, havia crenças de que tratamentos psicoterápicos comportamentais não funcionavam para transtorno de tiques e ST, podendo ainda agravar os sintomas ou ocasionar efeito rebote, o que vem sendo desmistificado por ensaios clínicos. 64·67
Tratamento farmacológico Os medicamentos mais seguros e eficazes para o tratamento dos tiques e da ST são os CX.2_agonistas, como a clonidina e guanfacina. Seu mecanismo de ação não é totalmente conhecido 62. Como a guanfacina não está disponível no Brasil, a clonidina é a que pode ser utilizada. Sua dose inicial deve ser de 0,05 mg/dia, e o aumento de doses, gradual. A dose total 0, 1 a 0,3 mg/dia deve ser fracionada em três tomadas diárias. Efeitos colaterais, como sonolência, tontura e alterações cardiovasculares, devem ser considerados. 62·68
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Os antipsicóticos (ou neurolépticos) constituem um tratamento eficaz para tiques e ST, porém incorrem em mais efeitos colaterais quando comparados à clonidina69 • Seu mecanismo de ação envolve o bloqueio de recepto res dopaminérgicos. Na prática clínica, quando possível, deve-se priorizar o uso de antipsicóticos atípicos/nova geração (por exemplo, risperidona, amissulprida, aripiprazol, ziprasidona) por apresentarem menos efeitos colaterais comparados aos antipsicóticos típicos (por exemplo, haloperidol, pimozida) 62•63 . Dentre os efeitos colaterais dos neurolépticos atípicos, constam: ganho de peso, dislipidemia, distúrbios relacionados ao eixo hipotálamo-hipofisário (por exemplo, galactorreia, amenorreia) e alterações da condução cardíaca. Entre os principais efeitos dos neurolépticos típicos estão: síndromes extrapiramidais, distúrbios relacionados ao eixo hipotálamo-hipofisário, acatisia, sonolência, déficits cognitivos e alteração da condução cardíaca62•63 • Em geral, as doses inicial e final de antipsicóticos para tratamento de tiques e ST deve ser inferior àquelas empregadas no tratamento de outros quadros psiquiátricos (Tabela III). Sugere-se titulação lenta, observando-se eficácia e efeitos adversos. Algumas drogas experimentais, como pergolida, seleginina, pramipexole e topiramato, vêm sendo estudadas, mas seu uso requer mais ensaios clínicos controlados. Além disso, técnicas como cirurgia por raios-gama, estimulação magnética transcraniana e estimulação cerebral profunda vêm sendo empregadas, mas reservadas a casos graves e em caráter experimental62• 70.
Tabela 111 Principais medicações e doses diárias utilizadas no tratamento de tiques e ST ~-
agonistas
Neurolépticos atípicos (ou de nova geração)
Neurolépticos típicos
Clonidina
O, 1 a 0,3 mg
Guanfacina
O, 1 a 1 mg
Risperidona
1 a 6 mg
Quetiapina
50 a 400 mg
Ziprazidona
5 a 40 mg
Olanzapina
2,5 a 20 mg
Aripiprazol
15 a 45 mg
Amissulpirida
50 a 600 mg
Haloperidol
0,5 a 5 mg
Pimozida
0,5 a 20 mg
Sulpirida
50 a 1.000 mg
Flufenazina
1 a 15 mg
Tiaprida
100 a 900 mg
Trifluoperazina
2 a 10 mg
Fonte: adaptada de Hounie et al. 62
Considerações finais A ST é um transtorno relativamente raro em sua forma completa. Entretanto, os TT atingem um número considerável de indivíduos, principalmente na faixa pediátrica. Embora em muitos casos os sintomas sofram remissão espontânea, a ST e TT podem ter curso crônico e grave. ST e TT são, hoje, compreendidos como transtornos do espectro obsessivo-compulsivo, pois compartilham diversas características clínicas, genéticas e etiopatológicas. Em relação ao tratamento, faz-se necessário avaliar a frequência e a gravidade das comorbidades. Psicoterapias com base comportamental, ~- agonistas e neurolépticos atípicos são os primeiros tratamentos a serem tentados. Minicaso clínico
G procurou tratamento quando tinha 1O de idade. Apresentava inquietação motora e recebeu diagnóstico de TDAH por um profissional de sua cidade, tendo sido medicado com imipramina, medicamento que lhe causou terror noturno. Após um quadro de pneumonia, desenvolveu tiques de piscar os olhos e foi medicado com antibióticos para tratamento da pneumonia e haloperidol para os tiques. recebendo nesse momento o diagnóstico de síndrome de Tourette. A partir de então, diversos tiques passaram a surgir e desaparecer, tais como piscar dos olhos, rodar os globos oculares. protrusão da língua, rotação dos ombros. saltitar enquanto caminha. Alguns meses após o início dos tiques motores, iniciou os tiques vocais caracterizados por tossir, expirar o ar como se estivesse com broncoespasmo, pigarrear, fungar e gemer. Apresentava, ainda, comportamento compulsivo sem obsessões. como preocupação de tocar com a mão direita o que tinha tocado com a esquerda ou contar os passos ao caminhar. Apesar do quadro ser compatível com Tourette e THDA, o diagnóstico apenas deveria ser confirmado após presença de tiques pelo período de pelo menos um ano. Tendo em vista que o diagnóstico foi-lhe dado apenas uma semana após o início dos tiques e considerando que eles poderiam ter sido desencadeados pelo uso de imipramina. suspendeu-se a utilização do haloperidol (que vinha deixando-o com comprometimento cognitivo) e observou -se a evolução do quadro para confirmação ou não do diagnóstico. Após a suspensão do haloperidol, novos sintomas começaram a chamar a atenção, como a piora da coordenação motora, provocando escrita ilegível e queda no desempenho escolar, além de episódios de déficit de memória recente com esquecimento total da tabuada que já havia aprendido. Foram solicitados alguns exames adicionais para descartar síndromes neurodegenerativas e nova avaliação clínica após um mês de tratamento com clonidina. Houve melhora clínica tanto do quadro de hiperatividade como dos tiques. O paciente continuou sendo medicado até os 15 anos de idade. Atualmente, tem 19 anos de idade, encontra-se sem tiques. não faz uso de medicação psicotrópica e atua como bailarino em uma famosa companhia de dança, obtendo grande reconhecimento profissional.
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Questões 1. Acerca do diagnóstico da síndrome de Tourette (SD, assinaa) b) c) d) e)
le a alternativa INCORRETA: É obrigatório que a idade do paciente seja menor do que 18 anos. São necessários diversos tiques motores. São necessários diversos tiques vocais. Não é necessário que os tiques motores e vocais se manifestem no mesmo período. Não há testes que possam confirmar ou predizer esse diag nóstico.
2. Assinale o transtorno que NÃO pertence ao espectro obsesa) b) c) d) e)
sivo-compulsivo: Transtorno dismórfico corporal. Transtorno de tiques. Compulsão alimentar. Transtorno de Tourette. Tricotilomania.
3. Em relação ao tratamento dos pacientes com ST, assinale a falsa: a) Deve-se investigar e tratar comorbidades de maior impacto que a ST. b) Deve-se priorizar tratamentos comportamentais. c) Deve-se priorizar uso de a 2- agonistas. d) Os antipsicóticos típicos devem constituir a primeira linha de tratamento. e) O uso de metilfenidato não está contraindicado na ST com TDAH comórbido.
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64 SÍNDROME DE TOURETTE E TRANSTORNOS DE TIQUES
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Transtorno Dismórfico Corporal
Luciana Archetti Conrado Táki Athanássios Cordás
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 872 Etiologia, 874
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Aspectos genéticos, 874 Aspectos neuroquímicos, 874 Aspectos neuropsicológicos, 875 Aspectos inflamatórios, 875 Prevalência e aspectos demográficos, 875 Prevalência, 875 Aspectos demográficos, 876 Quadro clínico, diagnóstico e comorbidades, 876 Psicopatologia, 876 Critérios diagnósticos (DSM-IV e CI D- 1O), 879 Escalas de rastreio e diagnóstico. 879 Comorbidades psiquiátricas, 882 Funcionamento global, 883 Fatores de risco, 884 Tratamento, 885 Modelos comportamental, cognitivo e psicodinâmico para o TDC, 885 Terapia cognitivo-comportamental no TDC, 889 Tratamento farmacológico, 889 Questões, 890 Referências bibliográficas, 890
Introdução Embora a preocupação com algum aspecto da aparência física seja quase um atributo da história do homem nas últimas décadas, a insatisfação com a própria imagem parece ser muito mais comum e motivo de preocupações de diferentes áreas, a médica em particular. Essa insatisfação com a aparência pode, em determinados indivíduos, causar sofrimento e interferência no funcionamento co tidiano e nos relacionamentos interpessoais 1•
1. Conhecer o quadro clínico e o diagnóstico do transtorno dismórfico corporal. 2. Reconhecer seus aspectos psicopatológicos mais relevantes. 3. Conhecer os aspectos epidemiológicos e as populações de ri sco. 4. Conhecer os aspectos atuais dos tratamentos psicoterápicos e farmacológicos.
A imagem corporal é a representação mental de como pensamos e sentimos nosso corpo. Essa perspectiva se in icia durante o crescimento neural da criança e continua acompanhando-a ao longo dos anos os ciclos cronológicos do envelhecimento biológico. Na formação da imagem corporal, além dos parâmetros objetivos como tamanho, forma e superfície, os mecanismos da percepção também são importantes para interpretar o conhecimento sobre nosso corpo, bem como os aspectos emocionais e afetivos. Em alguns transtornos, a percepção pode estar alterada, contribuindo para diferentes interpretações das sensações ou da imagem do corpo2 • A estética é o estudo racional do belo, definindo seus conceitos, e da diversidade de emoções e sentimentos que suscita no homem. Esse estudo associa-se à harmonia na conjunção de linhas e cores para a satisfação do prazer visual. A beleza humana está intimamente relacionada à arquitetura corporal e às dimensões que buscam harmonia e simetria de acordo com o sexo e a idade. A influência da estética, dos procedimentos médicos de modificação corporal e da posição social na avaliação da aparência física e na formação da imagem corporal nunca foi tão marcante como na sociedade contemporânea, em que esses fatores estão encadeados e se complementam. No entanto, para além das questões teóricas, o desejo de ser, tornar-se e sentir-se belo pode se transformar
65 TRANSTORNO OISMÓRFICO CORPORAL
em uma obsessão pelo desejo da beleza. Além do mais, observamos atualmente que a maior importância da aparência física na vida cotidiana contribuiu para as mudanças de comportamento em relação à aparência além dos aspectos relacionados à imagem corporal. Nesse contexto, o papel da comunicação em massa, da indústria do entretenimento com suas celebridades e a ampla rede de informações gerada pela internet na cultura contemporânea são importantes fatores psicossociais. A divulgação de tratamentos e cirurgias cosméticas ganhou espaço na mídia de massa, que hoje é utilizada pela indústria farmacêutica, hospitais e centros médicos para divulgar procedimentos diretamente aos pacientes. Os anúncios lembram os das revistas de moda e beleza, com lindas modelos de aspecto diáfano, mostrando resultados pós-operatórios, com a promessa de melhoria da autoestima e da qualidade de vida, auxiliando na criação de um "novo você': Os programas de TV fazem demonstrações e alguns acompanham os indivíduos num verdadeiro reality show antes, durante e após os procedimentos. Em 2003, o programa Extreme Makeover da rede americana ABC que é exibido também no Brasil, foi o segundo programa mais assistido por adultos com menos de 50 anos 1. Dessa forma, o consumidor/paciente se sente capaz de atingir os ideais de beleza do cinema e das celebridades. No entanto, o ideal contemporâneo de beleza para as mulheres, de um corpo magro que mostra músculos definidos e mamas maiores, raramente ocorre na natureza. Para adquirir o contorno corporal ideal, dietas restritivas, exercícios excessivos, lipoaspiração, aumento ou diminuição das mamas e outros procedimentos estéticos cirúrgicos e não cirúrgicos são amplamente utilizados. Comparações com esses ideais, muitas vezes com extrema injustiça, podem levar ao aumento da insatisfação e de preocupações com a aparência. A insatisfação com a imagem corporal desempenha importante papel em grande número de transtornos psiquiátricos, incluindo os transtornos alimentares, a fobia social, o transtorno de identidade de gênero e o transtorno dismórfico corporal (TDC). No entanto, a extrema insatisfação com a imagem corporal é o sintoma nuclear do TDC, e essa é a única categoria diagnóstica no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders IV Edição (DSM) que diretamente se refere às queixas com a imagem corporal. O TDC é relativamente comum, por vezes incapacitante, e envolve uma percepção distorcida da imagem corporal e preocupação exagerada com uma anomalia imaginária na aparência ou com um mínimo defeito corporal presente3 • Apesar do importante comprometimento em todas as áreas da vida que envolve esse transtorno, foi pouco estudado até recentemente e não é em geral reconhecido e diagnosticado por profissionais de saúdé. O TDC foi descrito pela primeira vez em 1886 por Enrico Morselli, que relatou a existência de indivíduos tomados pela dúvida de ter alguma deformidade e pelo senti-
mento subjetivo de feiúra ou defeito físico que acreditam ser percebido pelos outros, sendo que sua aparência está dentro dos limites de normalidade. Definiu como uma forma de insanidade com ideia fixa ou paranoia rudimentar, e o denominou dismorfofobia5'6 . Do ponto de vista etimológico, o termo dysmorphophobia deriva do grego dysmorphia, que significa feiura, particularmente em relação à face. No entanto, o transtorno não é caracterizado simplesmente pelo medo de ter um defeito físico, como o sufixo phobia pode sugerir, e a feiúra alheia é bem tolerada. Além disso, os pacientes apresentam uma polarização da atenção, cujo foco é uma parte específica de seu corpo considerada repulsiva, com alto custo emocional. Janet (1903) descreveu a l'obsession de honte du corps, que significa obsessão com vergonha do corpo como uma forma de psicastenia, caracterizada pela presença de ideias obsessivas em relação à forma do corpo. Kraepelin ( 1909) o denominou de síndrome dismórfica, e os japoneses de shubo-kyofu7 • Historicamente, outros termos, como psicose da feiúra ou hipocondria da beleza, também já foram utilizados5• Os relatos de casos de pacientes com sintomas compatíveis com o TDC apareceram na literatura de cirurgia plástica e dermatologia antes da inclusão desse transtorno no DSM da Associação Americana de Psiquiatria (APA) ou na Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde. Já nos anos 1960 foram descritos pacientes cirúrgicos com mínimas deformidades e insaciáveis em relação à realização de cirurgias plásticas cosméticas8 . Na literatura dermatológica há descrições de pacientes cujo quadro clínico foi denominado dismorfofobia, síndrome dismórfica, dermatological nondisease9, ou ainda hipocondria dermatológica 10. Tais pacientes mostravam altos níveis de insatisfação com os resultados de tratamentos objetivamente aceitáveis ou, a seguir, focavam sua preocupação em outra área do corpo11. Uma vez que esses estudos não tinham critérios diagnósticos estruturados, é possível que alguns, mas não todos os pacientes apresentassem o transtorno. Assim, apesar de descrito há mais de um século, o TDC não foi incluído nos sistemas diagnósticos até 1980 e sua classificação é discutida até hoje 12 . Durante muito tempo suas manifestações foram consideradas apenas sintomas de outros transtornos psiquiátricos, tais como a esquizofrenia, os transtornos de humor ou transtornos de personalidade 13 . Na nosografia psiquiátrica o TDC foi lis tado pela primeira vez no DSM-III (APA, 1980) como um transtorno somatoforme atípico, e depois no DSM-I li-R (APA, 1987), com as variantes delirante e não delirante. Nos transtornos somatoformes, que no DSM-IV-TR 14 incluem, além do TDC, a hipocondria, os transtornos de somatização, conversivos, dolorosos e indiferenciados, "ocorrem sintomas físicos que sugerem uma condição médica geral, mas que não são completamente explicados por esta, nem pelos efeitos diretos de uma substância ou por outro transtorno mental" 14 .
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Na CID -1015 , apesar de estar também classificado entre os transtornos somatoformes sob a categoria maior de transtornos neuróticos, relacionados ao estresse e somatoformes, o TDC está incluído no transtorno hipocondríaco. Assim, esse grupo descreve indivíduos com queixas somaticas ou preocupaçoes corporais persistentes, que creem apresentar alguma doença física séria ou deformidade, interpretando como anormais sensações ou características físicas normais e focando a atenção em partes específicas do corpo. Mais recentemente, pensa-se que o TDC possa ser classificado como categoria diagnóstica autônoma; ou dentro de um diagnóstico dimensional como parte do chamado espectro do transtorno obsessivo -compulsivo ( espectro TOC), que inclui diversos transtornos que apresentam características psicopatológicas, de evolução clínica, padrão de comorbidades e resposta terapêutica semelhantes ao transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) 16-18 ou ainda relacionado ao espectro das doenças afetivas 19 . No entanto, ainda não há conclusões definitivas sobre essas relações, pela limitação de conhecimentos sobre a etiopatogenia do TDC. I
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Etiologia Embora a etiologia do TDC ainda seja pouco estudada, ela parece ser multifatorial, concorrendo para seu desencadeamento e manutenção fatores biológicos, psicológicos e socioculturais.
Aspectos genéticos Os fatores genéticos parecem desempenhar importante papel, evidenciados pelos padrões de herança ob servados em famílias. O estudo de Bienvenu et aF0 mostrou que 8% dos indivíduos com TDC têm algum membro da família com esse diagnóstico ao longo de sua vida, o que representa de quatro a oito vezes a prevalência na população geraF0. O TDC compartilha a hereditariedade com TOC, como mostrou um estudo familiar no qual 7% dos pacientes com TDC tinham algum familiar de primeiro grau com TOC21. Os familiares de primeiro grau de probandos com TOC têm seis vezes mais chance de ter TDC ao longo da vida do que os familiares dos controles, sugerindo um elo genético entre esses transtornos20. A pesquisa em genética molecular é escassa e não contribui para a compreensão da etiologia do TDC. Um estudo preliminar que buscou avaliar a associação genética entre TDC e TOC, mostrou uma associação entre o gene do ácido gama-aminobutírico (GABA) A-gama 2 no TDC, e no TDC ocorrendo em comorbidade com TOC, mas não com TOC como único transtorno; e uma tendência de associação no TDC com o polimorfismo do pequeno alelo do gene da região promotora do transportador de serotonina (5 - HTTPRL) 22 .
Aspectos neuroquímicos Alterações da neurotransmissão serotoninérgica e dopaminérgica podem estar envolvidas no TDC, como foi evidenciado pela resposta desses pacientes a medicações que atuam nessas funções 23. Estudos que avaliaram tratamentos farmacológicos abertos e controlados mostram que doses elevadas de inibi dores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS), são eficazes no tratamento do TDC, mas que não há resposta à desipramina, de ação noradrenérgica. No entanto, as alterações no sistema sero toninérgico que contribuem para a exacerbação ou alívio dos sintomas não comprovam que essas alterações estão necessariamente na base da fisiopatologia do TDC. Existem poucos estudos de neuroimagem em pacientes com o TDC, um estudo preliminar com ressonância magnética volumétrica (MRI) comparou oito pacientes femininas com o TDC e oito controles e mostrou assimetria no volume do caudado, maior à esquerda, e aumento do volume total de substância branca. O primeiro estudo de ressonância magnética funcional (fMRI) em pacientes com o TDC mostrou hiperatividade anormal no hemisfério esquerdo, e a rede de processamento envolveu as regiões temporal, parietal e giro frontal inferior, bem como ativação anormal da amígdala. Esse estudo reforça a hipótese de que esses pacientes tem um processamento de informações visuais anormal, o que pode representar o núcleo do processo fisiopatológico do TDC e contribuir para os sintomas. As anormalidades podem estar associadas às distorções encontradas nesses pacientes, fazendo com que priorizem focos específicos da face, os detalhes, perdendo a avaliação holística e a configuração global da face22. Subsequentemente, a avaliação dos volumes cerebrais da mesma coorte, não demonstrou diferenças volumétricas significativas em geral, bem como em regiões de interesse específico. No entanto, em indivíduos com o TDC, padrões anormais de ativação no giro frontal, região inferior esquerda, e na amígdala estavam relacionados à maior gravidade dos sintomas. Segundo os autores, a concordância entre as alterações estruturais e funcionais nessa coorte aponta para o envolvimento dessas regiões no processamento patológico de informações visuais24. Recentemente esses mesmos autores desenvolveram um estudo para determinar se pacientes com o TDC, quando comparados com controles, têm padrões anormais de ativação cerebral olhando para fotografias da sua própria face. Esse estudo mostrou hipoatividade do córtex occipital com anormalidades no processo de visualização primária de elementos de configuração geral da face, e hiperatividade do sistema fronto -estriatal que pode estar associada tanto a aversão, quanto a pensamentos obsessivos e comportamentos compulsivos. Esses achados apontam para a possível similaridade da fisiopatologia neural do TDC e do TOC. Além do mais, a atividade cerebral nesses sistemas estava relacionada com sintomas de maior gravidade do TDC25 .
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Aspectos neuropsicológicos Estudos neuropsicológicos mostraram evidências de anormalidades significativas na percepção e no processamento emocional de informações, bem como déficits de memória em pacientes. Há relatos de que os pacientes com o TDC mostram desempenho diminuído nos testes das funções executivas e diferenças significativas quanto ao aprendizado verbal e não verbal e aos índices de memó ria. Nesses pacientes há déficit na estratégia organizacional, com tendência a enfocar mais as lembranças de detalhes do que a configuração geral. O déficit na estratégia de organização da memória é similar aos padrões observados no TOC e, mais recentemente, na anorexia nervosa. Esses autores apontam que é possível que esses déficits sejam reflexos da disfunção dos circuitos fronto-estriatais e das regiões pré-frontais, que são os mediadores das fun ções executivas22 • No entanto, um estudo mostrou que o déficit de memória se mantém após a exclusão dos efeitos das alterações nas estratégias de organização, sugerindo um potencial envolvimento de estruturas mais fundamentais na consolidação da memória, como, por exemplo, o hipocampo 26 • Bulhman et alY relatam que os pacientes com o TDC mostraram vieses negativos de interpretação em situações ambíguas, e também a maior possibilidade de que outros estivessem julgando negativamente sua aparência e seu comportamento social. Esses pacientes são vulneráveis a se distraírem por interferências emocionais em geral e em particular por palavras e situações relacionadas às suas atuais preocupações com a aparência. Os pacientes com o TDC também demonstram anormalidades na percepção das expressões emocionais explícitas e implícitas; alterações na habilidade em discriminar aspectos gerais da face, além de mais frequentemente, confundirem expressões faciais como raiva. Feusner28 também estudou as anormalidades na avaliação de faces com expressões emocionais. As ideias de referência nos pacientes com o TDC podem estar relacionadas a desvios em relação a sua interpretação errônea das expressões emocionais de outras pessoas como "com raiva" ou "de rejeição': que pode por sua vez reforçar as preocupações dos pacientes acerca de sua feiúra percebida e inadequação. A distorção na percepção de suas próprias faces pode contribuir para a preocupação com os defeitos percebidos e o baixo nível de crítica, insight, nos pacientes com o TDC. Sugere-se22 que os indivíduos com imagem corporal distorcida possam ter desvios de base neurobiológica nas respostas anormais de percepção visual e avaliação negativa de sua aparência. Essas distorções talvez sejam mediadas por uma atividade tônica diminuída no córtex parietotemporal; elevada atividade no striatum; e respostas exageradas no lobo parietal inferior, estruturas subcorticais à direita e estruturas límbicas especificamente durante sua visão distorcida de si mesmo. Uma questão nuclear nos pacientes com o TDC é sua resposta emocional negativa à percepção vi-
sual de partes do seu corpo que pensam ser feias ou sobre as quais frequentemente sentem repugnância. Acreditam que as outras pessoas também as ve em como repugnantes. Isso sugere que no TDC os pacientes têm uma hiperatividade patológica das estruturas límbicas que medeiam a repugnância e a aversão aos estímulos visuais, tais como a ínsula e a amígdala.
Aspectos inflamatórios Alguns autores reportaram a manifestação de sintomas do TDC em patologias inflamatórias, tais como panencefalite subaguda esclerosante (SSPE), paralisia de Bell e colite ulcerativa, o que sugere que os processos inflamatórios possam contribuir para o desenvolvimento ou na exacerbação dos sintomas do TDC. Também como manifestação da Pediatric Autoimumne Neuropsychiatric Disorder (PANDAS), desencadeada após infecção estreptocócica por autoanticorpos que tem reação cruzada com os gânglios da base22 . Embora a fisiopatologia do TDC ainda seja desco nhecida, parece envolver uma complexa interação de disfunções em várias redes cerebrais e desigualdades entre os dois hemisférios. Feusner et al. 22 observando evidências de estudos em pacientes com lesões cerebrais, bem como os estudos de neuroimagem que avaliaram padrões de ativação cerebral para a percepção visual, distorções da imagem visual e do processamento emocional, desenvolveram um modelo possível para as disfunções anatômicas que podem estar relacionadas aos sintomas do TDC. A combinação de disfunções no circuito frontoestriatal; das desigualdades entre os hemisférios talvez envolvendo o giro para-hipocampal direito, córtex occipital dorsal, lobo parietal inferior giro fusiforme, giro frontal inferior, e maior ativação temporal e pré-frontal à esquerda no processamento das faces; e hiper-responsividade da amígdala e da ínsula podem estar envolvidos na mediação dos sintomas e dos déficits neuropsicológicos no TDC22.
Prevalência e aspectos demográficos Prevalência A prevalência do TDC na população geral não é bem estabelecida, mas estima-se que seja aproximadamente 1 a 2% 14 • Estudos mais antigos relataram prevalência de 0,7 a 3%20'23 . Levantamentos mais recentes, avaliando amostras comunitárias maiores, indicaram prevalência de 1,7% na Alemanha29 e de 2,4% nos Estados Unidos30. Em populações de estudantes, as prevalências do TDC variam substancialmente, de 2,5 a 28% 10' 23' 31, mas um estudo utilizando amostras e métodos similares não encontrou diferenças significativas entre estudantes americanos ( 4%) e alemães (5,3%)3 1• Mais estudos populacionais são necessários, na medida em que fatores socioculturais aparentam ter gran-
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de influência na determinação de padrões de beleza e de satisfação com a aparência física 1. Nas populações de dermatologia e cirurgia plástica a prevalência do TDC é bem maior do que na população geral. A maioria dos estudos indica que 7 a 15% dos indivíduos que procuram cirurgia plástica cosmética apresentam o TDC 12 . Um estudo americano 10mostrou prevalência do TDC em pacientes de cirurgia plástica cosmética, variando entre 7 e 8%, e dois estudos europeus mostraram prevalências de 6,3 e 9,1 % 12 . No entanto, as prevalências na literatura variam amplamente, de 2,9 a 53,6% 23 em parte por questões metodológicas, como amostras pequenas, vieses de seleção e uso de entrevistas diagnósticas não estruturadas. A prevalência do TDC nos indivíduos que procuram consultas dermatológicas clínicas parece ser ligeiramente maior do que em populações de cirurgia dermatológica cosmética. Segundo Phillips et al. 32, o dermatologista pode ser o profissional mais frequentemente consultado por esses pacientes, evidenciando a importância em conhecerem os aspectos clínicos desse transtorno, já denominado de hipocondria dermatológica. No primeiro estudo de investigação da prevalência do TDC com entrevistas estruturadas em população dermatológica, Conrado et aP3 avaliaram 350 pacientes da cidade de São Paulo e obtiveram a prevalência de 9,1 % do TDC, mais alta no grupo de dermatologia cosmética (14%) do que no de dermatologia geral (6,7%) e nos controles não dermatológicos (2%) que representaram a população geral. Nesses grupos, nenhum paciente havia sido diagnosticado com o TDC anteriormente, e é importante ressaltar que, em metade dos casos, a razão para procurar tratamento dermatológico não era a preocupação dismórfica principal, portanto os pacientes estavam em tratamento por outras razões e não haviam relatado suas queixas nem ao dermatologista nem a nenhum outro profissional de saúde. Além do mais, os portadores do TDC eram mais frequentemente solteiros e tinham índice de massa corporal mais baixo do que os demais. Um estudo de Zimmerman e Mattia34 encontrou prevalência de 3,2% do TDC entre pacientes de urna clínica psiquiátrica ambulatorial. Entre pacientes psiquiátricos internados por outros diagnósticos, de 13 e 16% preencheram critérios diagnósticos para TDC atual ou passado, respectivamente. Nenhum desses pacientes havia recebido o diagnóstico do TDC durante a hospitalização, mesmo que alguns deles considerassem os sintomas do TDC como o seu maior problema. Todos disseram que não revelariam tais sintomas espontaneamente ao seu médico, por sentirem vergonha35. Em outras populações médicas os estudos são mais escassos. Na clínica médica geral, 4% dos pacientes apresentaram critérios do TDC6 e, em um estudo com pacientes ortodônticos, 7,5% 12• Estudo de Kittler et al. (2007) mostrou que pacientes obesos também podem apresentar TDC e, com o desenvolvimento da cirurgia bariátrica nos últimos anos, tem havido grande procura por tratamentos cosméticos para melhorar as consequências da redução drástica de peso. No entanto, pouco se sabe sobre os aspectos psicoló-
gicos desses pacientes 12. Não existem estudos com pessoas que procuram tratamento cosmético com profissionais não médicos, mas alguns autores sugerem que pacientes com o TDC frequentemente buscam esses profissionais23.
Aspectos demográficos O TDC inicia-se em geral na adolescência, podendo ocorrer também na infância. Em média, os pacientes sofrem de 10 a 15 anos antes que procurem tratamento específico ou recebam o diagnóstico adequado 4,32,35 . Estudo de Phillips et al. 37 com 200 pacientes mostrou média de idade de início do transtorno de 16,4 anos ( + 7 anos), embora a insatisfação com a aparência já se manifestasse aproximadamente três anos e meio antes (12,9 + 5,8 anos). Entre os 50 casos avaliados por Veale6 a idade média de início do quadro foi 15 e 17,9 anos, respectivamente. Segundo Pavan et al. 12 pode haver um segundo pico de incidência após a menopausa. A evolução do TDC é usualmente crônica37-39 e, embora a questão ainda seja controversa, parece não haver diferenças entre os gêneros23 . Alguns estudos mostraram maior frequência nas mulheres38'40 e outros em homens41,42 . Nos estudos de Rief et al.29 e Koran et al. 30, que avaliaram as maiores amostras de base populacional, o TDC foi ligeiramente mais prevalente entre as mulheres (1,9:1,4% [homens] e 2,5:2,2% [mulheres]). No entanto, homens e mulheres parecem similares quanto à maior parte dos aspectos clínicos e demográficos do TDC37' 38 , assim como deresposta ao tratamento39 . Quanto ao curso da doença, a avaliação retrospectiva de 95 pacientes descreveu remissão completa (16,7%) ou parcial (37,8%) em pouco mais da metade deles após quatro anos de tratamento 43 . Já um acompanhamento de um ano de 186 pacientes39 encontrou apenas 9% de remissão total e 21 % de remissão parcial dos sintomas, taxas inferiores aos transtornos de humor e à maioria dos transtornos ansiosos. Não há estudos transculturais sobre o TDC, mas relatos de casos sugerem apresentações semelhantes em diferentes culturas, embora aquelas que dão maior importância à aparência possam ter taxas mais elevadas de TDC e de cirurgias cosméticas 1.
Quadro clínico, diagnóstico e comorbidades Psicopatologia A questão central no TDC é a crença de ser deformado, feio ou não ter atrativos em nenhum aspecto. Na realidade, o defeito na aparência é mínimo ou inexistente. Essa distorção cognitiva assume um papel central e tais pensamentos causam estresse e são difíceis de resistir e controlar40, ocupando grande parte do dia44 . Na realidade, o "defeito" frequentemente é imperceptível a um observador que esteja a uma distância normal de conversação, mas é percebido pelo paciente como devastador, causando ansieda-
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de e estresse, fazendo com que busque constantemente e de modo irracional a perfeição e a simetria na sua aparência45. Para diferenciar o TDC das queixas normais com a aparência, que são comuns na população geral, a preocupação deve causar estresse significativo ou prejuízo no fun cionamento cotidiano44 • É mais comum que essas preocupações envolvam áreas da face como pele, cabelos e nariz, embora qualquer parte do corpo possa ser foco de preo cupação. Apresentam com frequência queixas relacionadas a acne, rugas e linhas de expressão; alterações na cor ou textura da pele; cicatrizes e estrias, marcas como nevus nevocelulares, cabelos finos ou excesso de pelos no corpo; e queixas relativas ao tamanho e a forma do nariz9. Além da face, os homens têm como maior foco preocupações com os genitais, peso, cabelos e formas do corpo, enquanto as mulheres mais tipicamente relatam preocupações com o peso, os quadris, as pernas e as mamas38 . Em média, pessoas com o TDC relatam preocupações com cinco a sete partes do corpo durante o curso do transtorno 46 • As queixas podem igualmente ser vagas ou inespecíficas, como a simples crença de ser feio ou de que determinada parte do corpo é esquisita ou diferente. Tais preocupações costumam ter significados pessoais, r elacionando-se a situações anteriormente vividas ou presenciadas, em geral envolvendo interpretações particulares e não realísticas de consequências negativas ou sentimentos de desamor, inferioridade, humilhação e rejeição em função da aparência física47. Os pacientes relatam incapacidade para interromper os pensamentos sobre sua percepção do defeito, que podem tornar-se mais intensos em situações nas quais o indivíduo sente-se pressionado pela expectativa de ser observado4. Tentando reduzir o estresse causado pelas suas crenças, os pacientes utilizam estratégias que geralmente tem pouco ou nenhum sucesso, como a constante reafirmação da aparência através da checagem no espelho ou em superfícies reflexivas para se certificar de que está normal ou aceitável; a camuflagem do defeito com os cabelos, maquiagem, óculos escuros ou roupas; controle da posição do corpo para evitar que seja observado; cuidados pessoais excessivos; grooming behaviours, em salões de beleza, com mudanças de cor e corte de cabelos; utilizando maquiagens e cosméticos em excesso. Os comportamentos são variáveis e ilimitados, incluindo ainda bronzeamento artificial36; dietas frequentes; exercícios excessivos e uso de esteroides anabolizantes caracterizando a dismorfia muscular47; hábito de tocar ou medir partes do corpo comparando sua aparência com a de pessoas famosas; comprar em excesso produtos de beleza ou roupas; ler sobre a aparência física e o corpo48. Alguns comportamentos são significativos no TDC, como a manipulação da pele e dos cabelos. A maioria das pessoas apresenta esses comportamentos em extensão limitada várias vezes na vida49 . Esses comportamentos são complexos e tornam-se patológicos dependendo do seu
foco, da duração e da extensão, dos problemas resultantes, bem como das razões e das emoções associadas. As escoriações patológicas e a tricotilomania são recorrentes e podem resultar em danos consideráveis à pele e aos cabelos. As escoriações patológicas, skin picking5°, são reco nhecidas há muitos anos na dermatologia, chamadas de dermatotilexomania ou escoriações neuróticas9. Os pacientes relatam que esse comportamento é repetitivo e irresistível e muitas vezes podem piorar uma dermatose. As escoriações patológicas podem ocorrer como sintoma de vários transtornos psiquiátricos e, em estudo de pacientes com o TDC, foi relatado em 27% dos pacientes49 . Embora esse comportamento seja considerado de autoinjúria, os pacientes com o TDC não têm intenção de se machucar. Seu desejo é tentar melhorar a aparência da pele. Podem utilizar alfinetes, facas, clipes e lâminas, causando muitas vezes lesões notáveis com infecções secundárias ou cicatrizes profundas e mais raramente lesando vasos importantes como a artéria carótida4. Se na avaliação do paciente estiver claro que sua motivação é a queixa com a aparência e a melhora do defeito, então o diagnóstico do TDC é mais provável. Da mesma forma, preocupações com os cabelos também são comuns, fazendo com que os pacientes procurem tratamento dermatológico. As queixas mais frequentes são de queda de cabelos e medo de ficar calvo, especialmente homens. Muitos pacientes dizem ter poucos cabelos, mas geralmente a quantidade de cabelo está normal. Podem usar bonés, prendedores de cabelos, lenços e utilizar tônicos capilares, finasterida e minoxidil. Se a queixa for de excesso de pelos podem utilizar lâminas, ceras depilatórias ou pinças para removê-los. Como nas escoriações patológicas a tentativa de remoção dos pelos pode levar a infecção e cicatrizes. Também é importante diferenciar da tricotilomania: os pacientes com TDC removem os pêlos para melhorar sua aparência; enquanto na tricotilomania, a remoção dos pelos não é motivada por crenças ou pensamentos específicos44. A maioria dos pacientes com TDC tem prejuízos na vida social, acadêmica ou ocupacional como resultado de suas preocupações. Vários estudos apontam o sofrimento e o importante impacto negativo do TDC na qualidade de vida do portador, como mais desemprego, dificuldade de progressão na carreira, menor nível de renda e taxa de casamento29'40'50'51. A gravidade do TDC também é variável entre os pacientes. Em um estudo prospectivo a maior gravidade do quadro correlacionou-se com maior prejuízo no funcio namento psicossocial51. Há pacientes que levam uma vida aparentemente normal apesar do sofrimento e dos prejuízos cotidianos. Pavan et al. 12 ressaltam que o amplo espectro de manifestações clínicas do TDC pode mostrar grave prejuízo funcional, mas que, nos pacientes que apresentam as formas menos graves e o transtorno é considerado circunscrito, pode haver maior desempenho compensatório. Nos casos mais graves, o paciente evita
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Questões complementares para investigação do transtorno dismórfico corporal
Você costuma checar sua aparência em espelhos ou outras superfícies reflexivas, como janelas? Você evita espelhos por que não gosta de sua aparência? Você costuma se comparar a outras pessoas e pensa que sua aparência é pior do que a delas? Você costuma perguntar ou tem vontade de perguntar aos outros se você parece bem, ou se você parece bem como outras pessoas? Você tenta convencer outras pessoas de que há alguma coisa com sua aparência mesmo que considerem que o problema não existe ou seja mínimo? Você passa muito tempo se cuidando? (P. ex., penteando ou arrumando seu cabelo, fazendo maquiagem ou se depilando) Você gasta muito tempo para ficar pronto(a) pela manhã, ou se arruma frequentemente durante o dia? Outras pessoas se queixam que você demora muito no banheiro? Você mexe na sua pele para tentar deixá- la melhor? Você tenta encobrir ou esconder partes do seu corpo com chapéus, roupas, maquiagem, óculos escuros, seus cabelos, suas mãos ou outras coisas? É difícil ficar entre outras pessoas quando você não fez estas coisas? Você muda suas roupas frequentemente, tentando achar uma forma que cubra ou melhore os aspectos que você não gosta em sua aparência? Você leva um longo tempo selecionando a roupa para o dia, tentando encontrar uma que faça você parecer melhor? Você tenta esconder aspectos da sua aparência mantendo determinada posição do corpo (p. ex., virando o seu rosto para o lado direito para esconder algum problema no lado esquerdo)? Você se sente desconfortável se não puder estar em suas posições preferidas? Você pensa que outras pessoas reparam em você de modo negativo pela sua aparência? P. ex., quando você anda na rua, você pensa que os outros estão notando o que é pouco atrativo em você? Você pensa que as outras pessoas estão te avaliando de maneira negativa ou gozando pela maneira como você é? Você fica "paranoico(a)" com isso? É difícil para você sair de casa ou às vezes você deixa de sair de casa devido ao seu aspecto? Você frequentemente mede partes do seu corpo, esperando que sejam como gostaria que fossem (menores, maiores ou mais simétricas)? Você passa muito tempo lendo sobre seus problemas com a aparência na esperança de que possa certificar para você mesmo como você é ou encontrar uma solução para o seu problema? Você já quis fazer cirurgia plástica/cosmética, tratamentos dermatológicos ou outros tratamentos médicos para "consertar" sua aparência mesmo que outras pessoas (amigos, médicos) lhe digam que estes tratamentos são desnecessários? Os cirurgiões já se mostraram relutantes em realizar cirurgia cosmética, dizendo que o seu defeito é bem menor ou que têm medo que você não fique satisfeita com o resultado? Você já realizou cirurgia cosmética e ficou desapontada com os resultados? Ou você já realizou várias cirurgias, esperando que, com o próximo procedimento, seus problemas de aparência sejam finalmente "consertados"? Você trabalha muito para melhorar sua aparência? Você faz dieta mesmo quando as pessoas lhe dizem que não é necessário? Você evita que uma foto sua seja batida por estar muito "mal"? Você se atrasa para os compromissos porque se preocupa por não estar "ok" ou porque está tentando consertar um problema na aparência? Você fica deprimido(a) ou ansioso(a) devido à sua aparência? Você sente que a vida não vale a pena devido à sua aparência? Você fica muito frustrado(a) ou com raiva pela sua aparência? Você leva muito tempo para fazer as coisas porque você se distrai com suas preocupações com a aparência ou comportamentos relacionados com a checagem no espelho? Você se sente mais confortável em sair à noite, ou sentar em uma parte escura da sala, para que seus defeitos sejam menos visíveis? Você fica muito ansioso(a) ou tem ataques de pânico quando se vê no espelho?
situações de contato com outras pessoas, não consegue trabalhar ou ter relacionamentos sociais e afetivos por causa da preocupação de parecer feio ou do medo de que outras pessoas estejam fazendo comentários depreciativos em relação ao seu defeito52 . Ideias de autorreferência, ou seja, a impressão ou crença de que outras pessoas estão o tempo todo percebendo e criticando a suposta ano malia, são também muito frequentes, estimando-se que ocorram em mais de 70% dos pacientes50. Podem tornar-se agressivos quando são impedidos de realizar seus comportamentos ou em situações estressantes53. Estima-se que quase um terço dos pacientes chegue a ficar totalmente isolado socialmente, deixando até mesmo de sair de casa51 ·40 e até um quarto deles possa apresentar tentativas de suicídio 118• Nos casos de gravidade extrema, há risco de suicídio7•45 •
A capacidade de crítica (insight) sobre as preocupações com a aparência podem variar durante o curso da enfermidade: há pacientes que apresentam juízo crítico bom ou razoável, percebendo que suas preocupações são um tanto exageradas e pacientes que não reconhecem que suas preocupações são excessivas. Um aspecto clínico importante é a vergonha que sentem dos seus sintomas e, consequentemente de relatá-los ao profissional de saúde. Acreditando que seu problema seja cosmético, procuram tratamento em especialistas nessa área6 . Há poucos estudos prospectivos avaliando os tratamentos dermatológicos e de cirurgia plástica nesses pacientes. Entretanto, com base em observações clínicas, os pacientes com o TDC, muitas vezes sem esse diagnóstico formal, são descritos pela busca frequente de tr atamentos cosméticos, como terapias com laser, transplan-
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te de cabelos e cirurgias plásticas, mesmo que esses tratamentos não tenham indicação médica23 • Outro aspecto importante é o caráter habitualmente secreto do TDC32, pois muitos portadores não revelam espontaneamente suas preocupaçoes com a aparencta para seus médicos ou outros profissionais de saúde, por vergonha ou medo de serem considerados vaidosos ou fúteis 40 • Isso ocorre mesmo quando estão em tratamento para outros transtornos psiquiátricos associados6 . Assim, é importante a investigação ativa e rotineira de sintomas do TDC, principalmente em indivíduos com depressão, fobia social ou TOC6•40, e mesmo em pacientes psiquiátricos hospitalizados35 • No Quadro I encontram-se questões auxiliares e "pistas" para auxiliar o diagnóstico do TDC. -
A
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Critérios diagnósticos (DSM- IV e CID- 1O) O DSM-IV-TR 14 lista os seguintes critérios para o diagnóstico TDC: A) preocupação com um defeito imaginário na aparência; e, caso uma mínima anomalia física esteja presente, a preocupação do indivíduo é marcadamente excessiva; B) essa preocupação causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo na vida social, ocupacional ou em outras áreas importantes do funcionamento; C) a preocupação não é mais bem explicada por outro transtorno mental (p. ex., insatisfação com a forma e o tamanho do corpo, relacionada ao peso, na anorexia nervosa). A aplicação dos critérios diagnósticos para o TDC na população de pacientes com queixas cosméticas, porém, pode ser um desafio. O primeiro critério diagnóstico (A), se aplicado de forma independente nas populações que buscam os profissionais da dermatologia ou cirurgia plástica, será positivo na maioria dos pacientes. Muitos pacientes desejam corrigir mínimos defeitos ou melhorar aspectos normais, e os profissionais são treinados para identificar e corrigir essas pequenas imperfeições na aparência. Além disso, nessa população, é normativo algum grau de insatisfação com a aparência para o qual o tratamento é desejado 23 • O segundo critério diagnóstico (B), ou seja, o grau de insatisfação e prejuízo no funcionamento geral cotidiano pode ser o melhor indicador do TDC nesses pacientes 10 • Já o critério C visa a excluir principalmente os transtornos alimentares, pois um paciente com anorexia nervosa que tenha preocupações com a imagem corporal focadas somente em estar gordo não deve receber um diagnóstico adicional de TDC. No entanto, os dois transtornos podem ocorrer simultaneamente. Na CID-1015 , dois critérios são exigidos para o diagnóstico do TDC, que é descrito como transtorno hipocondríaco: A) crença ou preocupação persistente com alguma doença orgânica séria ou suposta deformidade, mesmo não identificadas por investigações e exames re-
petidos, e B) recusa persistente em aceitar a informação de vários médicos da ausência de doença ou anormalidade física. Assim, o diagnóstico pressupõe que o paciente tenha procurado atenção médica para suas queixas. No entanto, Phillips4 aponta uma importante limitação desses critérios, uma vez que tais pacientes podem não ter procurado atendimento médico por diferentes razões, como dificuldade de acesso ao tratamento, vergo nha ou pelo próprio isolamento social em que possam se encontrar. É interessante destacar que, tanto no DSM-IV-TR14 quanto na CID-10 15, enquanto o TDC é classificado como um transtorno somatoforme, sua variante delirante, ou seja, com a capacidade crítica ou insight mais comprometido é classificado separadamente, junto com os transtornos delirantes do subtipo somático no DSM ou com os transtornos delirantes persistentes na CID. Entretanto, enquanto alguns autores defendem essa separação5, há estudos apontando que as duas variantes constituem na verdade o mesmo transtorno, pois apresentam muito mais semelhanças clínicas do que diferenças, exceto por uma maior gravidade nos casos com pior crítica4•51 • Assim, essa subdivisão categoria! entre TDC psicótico e não psicótico não seria justificada18•5 \ uma vez que os pacientes poderiam evoluir para uma apresentação delirante ao longo do curso do transtorno 53 ou recuperar o insight com o tratamento 55, exigindo, assim, uma visão dimensional da questão. Estudos de neuroanatomia e de resposta ao tratamento também não sustentam essa divisão entre portadores de TDC delirantes ou não 35 e, do ponto de vista psicopatológico, vários outros aspectos além do grau de convicção estão envolvidos na definição de uma crença como delirante56 • Assim, para De Leon et ai.S\ as crenças do TDC, independentemente de sua intensidade, deveriam ser sempre consideradas como ideias supervalorizadas ou prevalentes, situadas numa área cinzenta entre crenças normais e delírios verdadeiros. Isso porque tais ideias se caracterizam pelo conteúdo não bizarro e compreensível psicologicamente, com preservação de outras funções psíquicas e forte tonalidade emocional, levando o indivíduo a tentar insistentemente resolver o "problema" e convencer outras pessoas da veracidade deste. As ideias delirantes verdadeiras, pela clássica definição de Karl Jaspers, são bizarras, incompreensíveis e refratárias à argumentação lógica, não têm compartilhamento social e implicam numa completa e duradoura transformação na forma como o indivíduo compreende o mundo e se relaciona com ele57 • Como se pode constatar, a caracterização psicopatológica e a classificação diagnóstica do TDC ainda são temas controversos na literatura.
Escalas de rastreio e diagnóstico O Body Dysmorphic Disorder Questionnaire (BDDQ) foi desenvolvido por Katharine Phillips em 1999 e é um
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questionário curto e autoaplicável, respondido p elo próprio p aciente, utilizado para o r astreamento do T DC, e suas questões se referem resumidamente aos critérios diagnósticos do TDC para o DSM- IV (Figura 1). A prim eira questão estabelece se o paciente tem queixas ou se preocupa muito com alguns aspectos de sua aparência que considere especialmente feios ou sem atrativos. Se o paciente r elata qu eixas, deve caracterizar como são essas preocupações: se pensa muito ou se é difícil parar de
pensar sobre elas; com qu ais áreas do corpo está preocu pado e p or quê. A resposta positiva a essa questão n ão é su ficiente para diagnosticar o TDC; n o entanto, se opaciente responde "n ão" a essa primeira pergunta, praticam ente se exclui a p ossibilidad e da presen ça do T DC. A terceira questão busca caracterizar o impacto e a repercussão qu e essas preocupações sobre a aparên cia têm na vida do paciente, ou seja, se causam estresse, in côm odo ou prejuízo n a vida so cial, ocupacional ou outras áreas
Nome:
Este questionário investiga preocupações com a aparência física. Por favor, leia cada questão cuidadosamente e faça um círculo na resposta que melhor descreve sua experiência. Também escreva nas questões que for solicitado. 1) Você já esteve ou está atualmente muito preocupado com alguma parte do seu corpo que
considera feia ou especialmente sem atrativos? SIM
0
NÃOO
Se sim: Como ocorrem estas preocupações? Você pensa muito sobre elas e gostaria de poder pensar menos sobre isto?
SIM
0
NÃOO
Se sim: Quais são elas? Exemplos: sua pele (acne, cicatrizes, rugas, palidez, vermelhidão); seus cabelos (perda de cabelos ou que estão se tornando mais finos); o formato ou tamanho do nariz, boca, mandíbula, lábios, estômago, pernas, etc.; ou defeitos nas suas mãos, genitais, mamas, ou outra parte do corpo. Se sim: O que especificamente incomoda você sobre a aparência desta parte do corpo? (Explique em detalhes)
(NOTA: Se você respondeu "não" a qualquer das questões acima, você finalizou esse questionário. Caso contrário, por favor, continue) 2) A sua maior preocupação com sua aparência é quanto ao seu peso, ou seja, que você gostaria de ser mais magro(a) ou que você pode se tornar muito gordo(a)?
SIM
0
NÃO
0
3) Qual o efeito que esta preocupação com a aparência tem na sua vida? • Este defeito causa a você muito estresse, incômodo ou dor? • Interfere significativamente na sua vida social? Se sim: Como? • O seu defeito interfere significativamente no seu desempenho na escola, no seu trabalho ou na sua possibilidade de funcionamento como um todo (p. ex., como uma dona de casa)? Se sim: Como?
SIM O
NÃO
SIM O
NÃO
0 0
SIM O
NÃO
0
• Há coisas que você evita fazer por causa do seu defeito? Se sim: Quais são elas?
SIM
0
NÃO
0
• A vida ou as rotinas normais de sua família ou amigos têm sido afetadas pelo seu defeito? Se sim: Como?
SIM
0
NÃO
0
4) Quando tempo em média você gasta pensando no seu defeito por dia? Assinale um círculo em uma das opções: a) Menos de uma hora. b) 1 a 3 horas por dia. c) Mais de três horas por dia.
Body Dysmorphic Disorder Quesâonnaire (BDDQ). Fonte: Phillips KA. The broken mirro r: understanding and treating Body Dysmorphic Disorder. New York: Oxford University Press, 1996 13• Figura 1
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importantes do seu funcionamento. Além do mais, durante quanto tempo do seu dia está envolvido com questões relacionadas ao seu defeito. O relato de mais que uma hora por dia sugere que o diagnóstico do TDC é considerado provável4 1. Finalmente, é importante definir se a preocupação mais importante está relacionada ao peso, o que sugere a possibilidade de se tratar de um transtorno alimentar (que corresponderia ao critério C do DSM-IV: a preocupação com a aparência não é mais bem explicada por outra doença mental [p. ex., a insatisfação com o tamanho ou o formato do corpo na anorexia nervosa]': abrindo outra possibilidade diagnóstica). Estudos mostraram3•41 que esse instrumento na clínica psiquiátrica tem boa sensibilidade (100%) e especificidade (89%) bem como na clínica dermatológica, na qual mostrou a mesma sensibilidade e especificidade de 92,3% com valores preditivos positivos (i. e., a proporção de indivíduos que realmente têm o diagnóstico entre os que positivaram o teste) de 70% e valores preditivos negativos (i. e., proporção de indivíduos que não têm o diagnóstico e tiveram seu teste negativo) de 100%. No entanto, o BDDQ é um instrumento de rastreamento e pode sugerir que o TDC está presente, mas não estabelecer um diagnóstico definitivo. O instrumento mais utilizado para diagnóstico de uma ampla gama de transtornos psiquiátricos é a entrevista clínica estruturada para os transtornos do eixo I do DSM (SCID), que foi desenvolvida de acordo com os critérios diagnósticos do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais da American Psychiatric Association). A SCID é realizada por um médico ou outro profissional da área de saúde mental treinado e consiste em um resumo introdutório seguido por nove módulos, dos quais sete representam as classes diagnósticas majoritárias do Eixo I. Trata-se de um registro dos transtornos mentais do paciente no presente momento ou ao longo da vida, utilizando-se questões específicas para determinar se um critério diagnóstico (do DSM-IV) para um transtorno particular é encontrado. Sendo esse o instrumento diagnóstico padrão em psiquiatria, Phillips4 1 desenvolveu o módulo diagnóstico para o TDC baseado no SCID (SCID -like) (Figura 2), que segue o formato dessa entrevista estruturada: apresenta os critérios do DSM para o transtorno no lado direito da página e, no lado esquerdo, em oposição a cada critério diagnóstico, as perguntas que o clínico deve fazer para verificar a presença ou ausência de cada critério. Se o indivíduo responder sim às questões localizadas à esquerda, o que indica que tem os critérios para diagnóstico localizados em oposição, à direita, passa-se à próxima questão. Quanto mais respostas "sim", progride-se para as questões subsequentes, sendo que as questões devem ser formuladas da maneira como estão escritas. Baseado em seu julgamento clínico, o entrevistador pode fazer outras questões ou citar exemplos que esclareçam melhor se o critério está presente. Se um dos critérios para
Se sim, qual era a sua queixa?
A) Preocupação com um defeito imaginário na aparência. Se uma pequena anomalia está presente, a preocupação da pessoa é marcadamente excessiva
Você pensava que esta parte do corpo era especialmente sem atrativos?
Nota: Dê alguns exemplos mesmo que a pessoa responda não a estas questões.
Alguma vez você já esteve muito preocupado(a) com sua aparência de alguma maneira?
O que você pensa sobre a aparência de sua face, pele, cabelo, nariz ou sobre a forma/ tamanho ou outro aspecto de qualquer outra parte do seu corpo?
Esse defeito já te preocupou? Ou seja, você pensou muito sobre isso e desejou que pudesse se preocupar menos? (Outras pessoas já disseram que você estava mais preocupado(a) com o "defeito" do que deveria?)
Qual o efeito que estas preocupações têm na sua vida? Têm causado muito estresse?
P. ex.. preocupações em relação à pele (acne. cicatrizes, rugas. palidez). aos cabelos (p. ex. finos), ou a forma ou tamanho do nariz, mandíbula. lábios, etc. Também considere defeitos perceptíveis das mãos, genitais ou outra parte do corpo.
8) A preocupação causa estresse clinicamente significativo ou prejuízo na esfera social, ocupacional ou outras áreas do funcionamento? Nota: Se um mínimo defeito estiver presente, a preocupação é claramente excessiva
Essas preocupações têm causado algum efeito sobre seus amigos ou familiares?
Se a preocupação pode ser atribuída à anorexia nervosa, não diagnostique o transtorno dismórfico corporal
C) A preocupação não é melhor explicada por outra doença mental (p. ex., a insatisfação com o tamanho/formato do corpo na anorexia nervosa)
Figura 2 Módulo diagnóstico para o tran storno dismórfico corporal (desenvolvido por K. Phllips - "SCI 0 -/ike").
diagnóstico do transtorno não for encontrado, as questões subsequentes não são feitas. O diagnóstico é dado se to dos os critérios diagnósticos do DSM-IV para aquele transtorno forem encontrados, ou seja, todas as perguntas tiverem "sim" como resposta. Sendo assim o diagnóstico do TDC é determinado por um clínico treinado em entrevista face a face pelas razões que se seguem: a) o julgamento clínico é necessário para confirmar a presença do TDC (p. ex., se o prejuízo no funcionamento cotidiano reportado no BDDQ é suficiente para um diagnóstico psiquiátrico); b) para o diagnóstico do TDC é importante saber se o defeito físico é realmente mínimo ou não existente, e a classificação de um aspecto como defeituoso, anormal ou passível de correção é muito subjetivo; c) é preciso se certificar que a queixa em relação à aparência não se trata de um transtorno alimentar (uma resposta positiva na segunda questão do BDDQ sugere melhor diagnóstico para transtorno alimentar).
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O Body Dysmorphic Disorder Examination (BDDE) é um instrumento específico de avaliação de qualidade de vida que se ocupa exclusivamente da imagem corporal. Esse questionário inclui 34 questões que avaliam o grau de insatisfação relacionado a uma preocupação com a aparência física e deve ser aplicada por um clínico. Tem bons parâmetros psicométricos de medição da gravidade do TDC e já está validado em português (Brasil) 58 •
Comorbidades psiquiátricas A comorbidade do TDC com outros transtornos psiquiátricos parece ser mais a regra do que a exceção6,29,40, portanto, esse transtorno, que já acarreta bastante comprometimento funcional, com frequência vem acompanhado de outros transtornos psiquiátricos, que aumentam ainda mais a incapacitação e o sofrimento. Entre essas, estão principalmente os transtornos de humor e os transtornos de ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo, transtornos do impulso e transtornos alimentares, por uso de substâncias e da personalidade. No maior estudo em pacientes com o TDC, Gustand e Phillips37 sugerem que tais pacientes preenchem por vezes critérios diagnósticos para mais de duas outras comorbidades ao longo da vida (Eixo I/ DSM-IV). Um maior número de comorbidades é associado a maior morbidade e prejuízo funcionaP7 . Transtornos depressivos
O transtorno depressivo maior (TDM) é a comorbidade mais frequente. Mais de 75% dos pacientes com o TDC teve ao menos um episódio ao longo da vida e, pelo menos a metade dos pacientes tem critérios para o diagnóstico de episódio depressivo maior atual 23 . Alguns autores, baseados na alta comorbidade do TDC com depressão e na resposta favorável com antidepressivos, tem levantado a hipótese de que o TDC esteja relacionado ao espectro das doenças afetivas 19 • Os dois quadros são caracterizados por baixa autoestima, grande sensibilidade à rejeição e sentimentos de desvalia. Entretanto, o TDC e a depressão também apresentam importantes diferenças, sugerindo que o primeiro não é simplesmente um sintoma depressivo. Por exemplo, o TDC é caracterizado por pensamentos obsessivos e comportamentos compulsivos proeminentes51 e, como o TOC, responde aos antidepressivos inibidores da recaptação de serotonina, mas não aos antidepressivos n ão serotoninérgicos ou à eletroconvulsoterapia50 . Além disso, os pacientes não raramente relatam que o tratamento com antidepressivos não serotoninérgicos melhora sua depressão, mas não o TDC, o que não seria esperado se o TDC fosse simplesmente um sintoma da depressão 19 • Indivíduos com depressão costumam ainda negligenciar sua aparência e n ão se preocupar excessivamente com ela. Assim, podem não gostar da própria aparência, mas é improvável que enfoquem de modo seletivo e obsessivo em determinado aspecto físico ou passem horas executando compor-
tamentos compulsivos, como checagem no espelho, camuflagem ou reasseguramento. Outras diferenças incluem o fato de o TDC geralmente apresentar idade de início mais precoce, curso tipicamente crônico e não episódico, além de não demonstrar claramente maior frequência em mulheres. A experiência clínica e resultados de pesquisa sugerem que os sintomas de depressão geralmente são posteriores ao início do TDC39, podendo ser entendidos como secundários ao sofrimento e à desmoralização causados pelo quadro primário ou uma alteração psicopatológica derivada de uma alteração biológica independente. Todavia, a relação do TDC com a depressão ainda não é clara39, necessitando de mais estudos. É importante ressaltar que muitas vezes, porém, o indivíduo com TDC procura ajuda profissional apenas quando desenvolve um quadro depressivo, pois percebe este como algo a ser tratado e que requer ajuda, ao contrário do TDC. Transtornos de ansiedade
A comorbidade do TDC com os transtornos de ansiedade é frequente. No maior estudo de comorbidades em pacientes com o TDC, os transtornos de ansiedade foram relatados em 60% dos pacientes ao longo da vida71 e a fobia social teve prevalência de 38%, tendendo a preceder o TDC59 • Semelhante ao TDC, a fobia social é caracterizada por ansiedade social e comportamentos de evitação. No entanto, na fobia social, não há foco específico em um aspecto particular da face ou do corpo e não raramente a fobia social se desenvolve secundariamente nos pacientes com o TDC75 • Transtorno obsessivo-compulsivo
O TDC apresenta frequente comorbidade com o TOC, mostrando associação de 3037 a 78%60 ao longo da vida. Há muito tempo o TDC é relacionado ao transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e conceituado como parte dos transtornos do espectro obsessivo-compulsivo7 , sendo reconhecidas suas similaridades. Quando Morselli identificou os pacientes com body dysmorphic syndrome!dysmorphophobia, há mais de um século, notou as preocupações obsessivas e os comportamentos compulsivos que caracterizam esses pacientes6 1 • No entanto, parece haver consenso que o TDC, embora relacionado ao TOC, não seja apenas variante clínica deste, apresentando diferenças significativas7, 12, 13,61 • Há sobreposição entre o TDC e o TOC quanto à idade de aparecimento, distribuição entre os sexos, curso crônico, história familiar de transtornos psiquiátricos e resposta ao tratamento. Frare et al. 6 1 ressaltam que, do ponto de vista clínico, as principais similaridades entre o TDC e o TOC evidenciam-se pelas características das preocupações, que são obsessivas e persistentes; com pensamentos que causam incômodo, produzem ansiedade e são difíceis de resistir e controlar. Mas no TDC estão mais presentes sentimentos de vergonha, humilhação, baixa auto estima, rejeição e pensarnentos de referência. Os comportamentos repetitivos
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lembram as compulsões do TOC. As características de alguns sintomas são similares, tais como as preocupações com a simetria na posição de objetos ou do próprio corpo, a procura da perfeição, necessidade de controlar o ambiente, de reasseguramento frequente, além dos comportamentos de checagem. No entanto, os focos das preocupações são diferentes entre os transtornos: no TDC, a aparência física; e no TOC, medo de contaminação ou outros medos. Também são observadas diferenças com relação aos comportamentos de checagem como, por exemplo, a fixação no espelho. No TDC apresentam padrão mais complexo ligado à segurança do que no padrão proposto para o TOC ligado à redução da ansiedade. Esses comportamentos de checagem, de fato, parecem ser menos eficazes em reduzir a ansiedade no TDC do que no TOC. Os mesmos autores61 apontam para a principal diferença entre o TDC e o TO C: o nível de juízo crítico, insight, sobre os sintomas. As preocupações no TDC em geral são vivenciadas de modo mais natural ou egossintônico, portanto, menos intrusivas e os pacientes as aceitam com algum grau de convicção e cedem a elas sem tanta resistência. Enquanto no TOC geralmente as preocupações são mais egodistônicas e, portanto, vivenciadas como mais intrusivas, irracionais e exageradas, no TDC muitos pacientes estão convencidos de que a sua visão sobre o suposto defeito é acurada e não distorcida. Além disso, vários deles também apresentam ideias de autorreferencia, acreditando que as outras pessoas estão frequentemente olhando para seu problema cosmético. Um estudo clínico mostrou que nos pacientes que apresentam TOC e TDC associado, o nível de juízo crítico (insight) estava mais prejudicado em relação às preocupações com as dismorfias corporais do que em relação aos sintomas do TOC60• Além da pior capacidade de crítica no TDC, os pacientes também apresentam maior predisposição à ideação e tentativas de suicídio do que no TOC62 • O TDC apresenta aspectos de superposição clínica com transtornos do impulso, como tricotilomania62 e escoriações patológicas63. Há poucas investigações sobre as repercussões clínicas da co-ocorrência desses transtornos, o que é relativamente comum. Observou-se, por exemplo, que, quando os dois quadros estão presentes, a melhora dos sintomas do TOC prediz a remissão dos sintomas de TDC, mas não o contrário39. Abuso de substâncias
Vários estudos relataram taxas elevadas de abuso de substâncias em pacientes com o TDC 12•37. Grant e Phillips45 relataram abuso em 48,9% e dependência em 35,8%, particularmente ao álcool (29%). Em 68% desses pacientes, o TDC foi o principal elemento causal relacionado ao abuso de substâncias. Transtornos alimentares
Ruffolo et al. 48 encontraram incidência de 32,5% de transtornos alimentares ao longo da vida nos pacientes com o TDC. Uma notável semelhança envolve a característica
central do TDC e dos transtornos alimentares: a distorção da imagem corporal. Em ambos há preocupação excessiva e insatisfação com a aparência física, sendo considerados transtornos da imagem corporal. Caracterizam-se por ideias supervalorizadas sobre a aparência e busca de melhorá-la, pois esta ocupa um papel muito importante nos relacionamentos e na autoavaliação48 • Entretanto, enquanto pacientes anoréxicos percebem -se mais gordos do que realmente são, indivíduos com TDC se preocupam com aspectos particulares da aparência11 . Outras similaridades incluem idade de início e comportamentos evitativos ou repetitivos, como camuflagem do problema e checagem no espelho, na balança e de medidas corporais. No entanto, em geral, pacientes com TDC têm aparência normal enquanto portadores de anorexia nervosa podem apresentar-se caquéticos, e se sentem melhor quanto mais emaciados estão48• A frequência da associação coloca em cheque os atuais critérios diagnósticos para anorexia nervosa que descartam a presença de TDC nesses pacientes. Transtornos de personalidade
Veale et al. 6 mostraram que 72% dos portadores de TDC apresentavam algum transtorno da personalidade associado, sendo mais comuns os subtipos paranoide (38%), evitativo (38%) e anancástico (28%). No estudo de Phillips e McElroy64 , 57% dos pacientes tinham comorbidade de eixo II, sendo mais frequente o transtorno evitativo (43%), seguido do dependente (15%), anancástico e paranoide, ambos com 14%. No entanto, é importante ressaltar que há sobreposições de características clínicas do TDC com alguns desses traços de personalidade e que o diagnóstico de transtorno de personalidade é uma das maiores fragilidades da nosologia psiquiátrica.
Funcionamento global Pode-se considerar que o TDC é uma enfermidade da imagem corporal, envolvendo a percepção e os afetos. Esse transtorno é resultante da combinação de diversos fatores, entre estes: predisposição biológica, disfunções psicológicas, experiências infantis e exigências culturais e sociais. As experiências negativas precoces podem levar ao desenvolvimento de indivíduos com baixa autoestima e medo de serem rejeitados. O aumento da exigência estética em termos de busca da simetria e perfeição, ou do tamanho dos caracteres secundários, determinados cultural e geneticamente, podem predispor um indivíduo ao TDC. Um evento ou uma série de eventos críticos, tais como o abuso sexual ou físico, comentários negativos ou humilhantes, podem ativar os esquemas de crenças, resultando em pensamentos automáticos negativos e verossímeis sobre a aparência física, e assim prejudicar a auto estima e dificultar a aceitação do indivíduo. Uma vez que o transtorno estiver instalado, os pacientes comparam a imagem corporal percebida com a de
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um ideal impossível de perfeição, que se exigem alcançar. A grande discrepância entre a imagem corporal percebida e a meta ideal é o sofrimento emocional que esses pacientes têm. Além do mais, o significado dessa discrepância deixa a importância do defeito desproporcional e assim reforça através das cognições a importância da aparência. Como em outros transtornos, os pacientes com o TDC tendem a ignorar ou descartar a informação que não esteja de acordo com suas crenças. Em razão disso, o processamento da informação como a percepção e o pensamento também está alterado, sobretudo em situações sociais ou enquanto examinam seu defeito. A excessiva atenção autofocada na imagem corporal negativa leva a pessoa a assumir que os outros a veem exatamente da mesma forma, que é, na realidade distorcida. A evitação de situações sociais ou a camuflagem excessiva reforçam e impedem o sujeito de se habituar ao seu medo e gerar uma estimativa mais realista da sua aparência. Os rituais, em geral, reforçam a veracidade das disfunções cognitivas e a atenção seletiva, fazendo um círculo vicioso. De maneira diferente do que ocorre no TOC, os rituais excessivos ou a evitação nem sempre neutralizam a ansiedade e às vezes, pelo contrário, tem a capacidade de aumentar a ansiedade e secundariamente levar à depressão. Frequentemente, nos relatos das queixas em relação a partes específicas do corpo, os pacientes evitam descrever detalhadamente seus defeitos e falam em termos de feiúra. Descrevem suas preocupações como muito dolorosas, torturantes, devastadoras. O defeito passa a ser um fator dominante na vida do indivíduo, produzindo deterioração funcional e agressividade contra si mesmo ou aos demais65 •
Fatores de risco Há poucos estudos sobre os fatores de risco para o desenvolvimento do TDC, um dos maiores desafios para qualquer investigação epidemiológica nessa área é a distinção entre fatores de risco específicos para o TDC e aqueles que predispõem a transtornos psiquiátricos em geral. Veale4° sugere alguns fatores de risco para o TDC que em geral se manifestam na adolescência, portanto, particular atenção deve ser dada aos possíveis fatores que precedem seu aparecimento. Fatores genéticos: como na maioria dos transtornos psiquiátricos, os genes podem ser fatores predisponentes em um indivíduo quando interagem com os fatores estressares do ambiente. Temperamento: não há estudos, mas observações clínicas sugerem que o temperamento pode ser um fator indireto no desenvolvimento do TDC e ser em parte geneticamente determinado. Adversidades na infância: podem ser fatores não específicos para o desenvolvimento do TDC o bullying, tanto sobre a aparência como sobre a competência, pouco relacionamento com os pais, isolamento social, falta de
suporte da família ou abuso sexual. A vergonha do corpo tem sido ligada ao início precoce da vida sexual e a abusos físicos. Neziroglu et al. 66 evidenciaram o papel do abuso em crianças no TDC. Comparando pacientes com o TDC (n =50) e com o TOC (n =50), encontraram relatos de abuso na infância (emocional, sexual e/ou físico) nos pacientes com o TDC (38%) e nos pacientes com o TOC (14%) e essas diferenças foram significativas. Um estudo conduzido por Osman et al. 67 mostrou que os pacientes com o TDC têm imagens desconfortáveis no presente associadas às memórias particulares da adolescência, tais como: ter sofrido zombarias em relação a aspectos da sua aparência ou às cenas do abuso sexual que sofreram. Uma adolescente relatou que até os 15 anos se achava bonita; após um estupro, no qual se olhou no espelho e se viu derretendo e podre, passou a se ver dessa forma quando se olha em um espelho. Há evidências de que adversidades repetidas na infância, tais como bullying e abusos, podem ser internalizados na forma de autocrítica gravemente negativa. É possível que a persistência dessas adversidades na infância possam levar a alterações no funcionamento cerebral, tais como diminuição da atividade do sistema seroninérgico ou aumento da produção de cortisol. História de estigmas dermatológicos ou físicos: muitos pacientes relatam problemas dermatológicos ou outros estigmas físicos na adolescência. Essas marcas podem ser muito notáveis ou não, e ter sido alvo de ironias na infância. Esse estigma embora seja difícil, em geral, se resolve na vida adulta, mas a imagem mental de sua aparência prévia e as ironias associadas são mantidas. Identidade sexual: esse mesmo autor40, em sua experiência clínica, relata que homossexuais jovens e do sexo masculino estão em maior risco, talvez porque haja uma pressão social aumentada para que pareçam atrativos na comunidade gay. Aponta que é possível que outras comunidades com pressões sociais e culturais semelhantes também possam mostrar maior prevalência do TDC. Sensibilidade estética: além disso, pensa-se que os pacientes com o TDC tenham maior sensibilidade estética, o que resultaria em maior resposta emocional em relação aos indivíduos mais atrativos e um lugar de maior importância da aparência na sua identidade. Além do mais, alguns pacientes podem ter maior habilidade na percepção estética e isso se manifesta pela sua educação e treinamento em arte ou design. Finalmente, os indivíduos com o TDC podem abraçar padrões estéticos mais elevados do que o resto da população. O papel da estética foi discutido anteriormente e evidências experimentais são necessárias. Resumidamente, tendemos a valorizar a beleza porque esta pode conferir outras qualidades, para as quais não temos marcadores físicos. A psicologia evolutiva pode argumentar que a atratividade é importante para a aceitação social e reprodução, e que alguns indivíduos podem idealizar a importância da atratividade para a reprodução, o que pode ser um fator no desenvolvimento do TDC.
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No entanto, os fatores apontados ainda necessitam de maiores estudos para confirmar sua relação com o desencadeamento do TDC. É importante enfatizar que esses fatores podem atuar de maneira aditiva e interagir com predisposições genéticas que podem levar ao caminho final da manutenção dos fatores em um modelo cognitivo comportamental.
Tratamento Pacientes com o TDC sempre foram considerados extremamente difíceis de tratar. Muitos deles submetem-se a procedimentos dermatológicos, cirúrgicos e outras formas de tratamento não psiquiátrico 50, o que raramente melhora seus sintomas68 . Em função do prejuízo da crítica sobre as preocupações com a aparência, pode ser difícil para alguns pacientes aderir ao tratamento psiquiátrico ou psicológico. Sendo assim, deve-se atentar para a necessidade de se avaliar o entendimento e a motivação para o tratamento, de tal forma que estratégias de entrevista motivacional podem ser úteis. É muito importante e pode facilitar a adesão ao tratamento estabelecer os objetivos terapêuticos principais: a diminuição da preocupação e do sofrimento, e melhora do funcionamento e da qualidade de vida69 .
Modelos comportamental, cognitivo e psicodinâmico para o TDC As teorias cognitivo-comportamentais explicam os possíveis mecanismos envolvidos em um transtorno e como certos sentimentos e comportamentos são mantidos, mas não necessariamente como e porque se desenvolvem. Teorias para explicar o desenvolvimento do TDC foram elaboradas por Veale4° e Neziroglu70 . Embora esses dois modelos sejam específicos para o TDC, incorporam muitos dos elementos do modelo de aprendizado cognitivo e social dos distúrbios da imagem do corpo de Cash70 • Esse modelo discute como fatores históricos: socialização cultural, experiências interpessoais, características físicas e atributos de personalidade, levam ao desenvolvimento da percepção da imagem corporal e as atitudes que provocam emoções e comportamentos que são mantidos por reforço negativo. A percepção tradicionalmente se refere à estimativa que alguém faz a respeito do tamanho e das formas do corpo, enquanto as atitudes se referem às autoavaliações: satisfação com o corpo e investimentas: importância que alguém dá à aparência. As atitudes ou esquemas relacionados à aparência de alguém contribuem para as emoções e crenças relacionadas à insatisfação corporal. O modelo cognitivo-comportamental do TDC baseado no processamento de informações foi proposto por Veale40 e apontou para alguns dos fatores envolvidos na manutenção dos sintomas. Enfatizando o papel da imagem mental, considerou a visão do self como um objeto estético que pode
levar a desgastantes processos cognitivos, tais como ruminação, comparação social e autoagressões. Nesse sentido, o TDC tem algumas similaridades com a fobia social, onde a questão principal é a avaliação negativa pelos outros. Veale propôs que inicialmente os eventos externos ou os pensamentos intrusivos ativam uma imagem mental distorcida. Horowitz define a imagem mental como o conteúdo da consciência que tem qualidades sensoriais em oposição àqueles conteúdos que são puramente verbais ou abstratos. A ativação da imagem é associada a um aumento da atenção autofocada, que é definida como a consciência de uma informação autorreferente gerada internamente. Informações autorreferentes podem incluir uma grande gama de estímulos, como a consciência de sensações, pensamentos, imagens e emoções de memórias passadas que influenciam o "eu" no presente. Esse é um processo inespecífico, que pode ocorrer em transtornos distintos como a fobia social, a anorexia nervosa e a esquizofrenia. O grau de atenção autofocada é bem relacionado à gravidade dos sintomas e ao nível de preocupação. Propõe-se que em casos graves do TDC, a capacidade de atenção é direcionada à imagem distorcida e à avaliação negativa. Esse sistema deve ser tão rígido que não é possível modificar o foco para nenhuma informação externa sobre sua aparência. Em casos menos severos, parece que há certa capacidade para receber informações externas, a imagem é menos estável e associada a dúvidas sobre como se parece. Nesses casos, o indivíduo pode sentir necessidade de saber exatamente como se parece e pode se voltar para trás e só para se certificar, olhar novamente no espelho. No entanto, quanto mais a pessoa olha no espelho, mais autoconsciente fica, pior se sente e mais é reforçado que o que está vendo é feio ou defeituoso. Os pacientes ficam genuinamente confusos sobre como sua aparência pode se alterar dia a dia e hora a hora. No entanto, é possível que isso ocorra no contexto de alterações de humor ou quando está com a atenção menos autofocada e tem ocasionais reforços para se sentir melhor (p. ex., quando se vê com uma "luz específica" ou em um "bom" espelho). Dessa forma o indivíduo pode pensar que em cada espelho que olha, vê uma imagem diferente. Considerando-se o modelo da fobia social, os indivíduos com o TDC em situações sociais alternam entre: a) estar autofocados para monitorar ou b) checar a aparência de sua imagem. A presença de outros (ou de uma superfície reflexiva) irá induzir o processo de comparação da aparência e a alternância entre a sua imagem interna e aquela de outra pessoa ou o seu próprio reflexo em uma superfície. Como resultado do aumento da atenção autofocada, os indivíduos com o TDC vivenciam a imagem mental ou sentem a impressão que causam nas outras pessoas de uma perspectiva de observador se veem como supõe que o outro o veja. Quando se solicita que desenhem uma figura dessa impressão, estão preocupados em reproduzir a imagem mental ou a impressão da sensação. Indivíduos com o TDC e fobia social podem usar a perspectiva do observador parcialmente para se dis-
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tanciar e evitar as emoções associadas às experiências negativas da avaliação dos outros. A perspectiva do observador pode então vir a ser um fator mantenedor para a continuada evitação da emoção. Outro aspecto importante é a avaliação negativa da imagem corporal pela ativação de premissas e valores sobre a importância da aparência. No TDC, a aparência fica superidentificada (over-identifieá), com o eu-self e no centro do chamado domínio pessoal. O termo domínio pessoal foi inicialmente utilizado por Beck para descrever em que medida uma pessoa dá importância a eventos ou objetos que o circundam. No centro do domínio pessoal estão as características da pessoa, seus atributos físicos, objetivos e valores. Em volta estão agrupados os objetos animados ou inanimados nos quais a pessoa investe, como família, amigos e posses. Existe um valor idealizado quando um desses valores torna-se algo de maior importância, que passa então a ser o centro do domínio pessoal. O valor idealizado no TDC é em geral a importância de alguns aspectos da aparência, mas outros valores podem ser: aceitabilidade social, perfeccionismo, simetria ou juventude. Esse valor idealizado reforça o processamento do eu como um objeto, e em situações sociais como um objeto social. Na ausência de valores idealizados, é possível se adaptar à imagem distorcida. Dessa forma, as pessoas que têm algum defeito desfigurante na aparência podem se aceitar sendo menos autoconscientes. As premissas e regras sobre a aparência em um indivíduo vão ser direcionadas pela importância que a aparência tem na formação da identidade dele. O modelo propõe que a ativação de avaliações negativas desencadeia um feedback negativo e aumenta a atenção autofocada na imagem. Outro círculo vicioso na manutenção da preocupação e do estresse no TDC é o processo de comparação da aparência e ruminação que resultam em outras avaliações. A utilização de estratégias cognitivas desgastantes como a ruminação, preocupação e autoataque ocorrem como resposta aos pensamentos e imagens e resultam em manutenção da preocupação e do estresse. O processo ruminativo sugere outro feedback negativo, que contribui para a preocupação e estresse. Os indivíduos com o TDC comparam excessivamente o aspecto percebido como defeituoso com os outros. Muitos pacientes relatam colecionar compulsivamente figuras de revistas, vídeos de celebridades da mídia em particular, ou fotografias de si mesmos mais jovens para comparar e contrastar sua aparência. A comparação da aparência é um fator nuclear no desenvolvimento e manutenção dos problemas de imagem corporal e não é específico do TDC. A hipótese é que no TDC a atenção seletiva para a imagem mental e aspectos específicos previnem os indivíduos com o TDC de obter uma visão representativa e acurada da aparência dos outros. Esse processo parece contribuir para um foco excessivo no todo e em aspectos específicos da aparência e da imagem mental resultante. Propõe-se que esses fatores mantenham as crenças negativas e ideais exagerados relacionados à aparência em termos
tanto da autoavaliação e da avaliação percebida pelos outros, e crenças exageradas sobre a importância da aparência global e aspectos específicos em termos da identidade. A constante comparação tem um feedback negativo aumentando a avaliação negativa e a atenção autofocada na imagem. Alguns estudos sugeriram que os pacientes com o TDC têm seu próprio ideal de como devem ser e estão mais preocupados em falhar em atingir seus próprios padrões estéticos do que ser punidos por falhar em atingir os ideais de outros. Alguns estudos mostraram que os pacientes se sentiriam melhores e sem os sintomas do TDC se estivessem em uma ilha deserta, outros referiram que mesmo que estivessem lá, estariam se olhando no espelho. Isso reflete a heterogeneidade e a complexidade do TDC e a importância de estabelecer um tratamento psicoterapêutico individualizado. A importância dessa parte do modelo é que as comparações com a aparência são outro fator que mantém as avaliações negativas distorcidas e a imagem mental distorcida em um círculo vicioso negativo. Além do mais, a atenção é frequentemente seletiva e não representativa e parece interferir no processamento de outras informações externas. As emoções nos indivíduos com o TDC são complexas e vão depender da avaliação da situação e evento e do comportamento subsequente. As emoções em geral são: a) vergonha interna (autorrepugnância) ou quando o indivíduo compara e dá notas menores para sua aparência do que para a dos outros; b) vergonha externa e ansiedade social antecipatória que se baseiam no julgamento que o indivíduo faz sobre probabilidade de sofrer humilhações, ser escrutinado ou rejeitado; c) depressão e falta de esperança na capacidade que tem de atingir seu ideal estético; d) raiva ou frustração por estragar a sua aparência ou pelo fato de as outras pessoas não compreenderem ou concordarem com suas preocupações; e) culpa e vergonha por estragar a sua aparência por si mesmo ou por meio de cirurgias cosméticas. A evitação e os comportamentos de reasseguramento (safety seeking behaviours) são geralmente utilizados pelo indivíduo para várias funções. Entre essas, evitar pensar sobre a parte do corpo ou aspecto, alterar a aparência, camuflar, distrair a atenção do aspecto defeituoso, redução da incerteza ou estresse, e evitar situações ou atividades que levam ao aumento da autoconsciência e da imagem. Então esse é mais um feedback negativo. Os comportamentos de segurança podem diminuir rapidamente o estresse ou a incerteza, mas são contraprodutivos e aumentam a autoconsciência, a preocupação e o estresse. Além do mais, os comportamentos de segurança: a) envolvem uma enorme atenção e esforço mental, o que significa menor capacidade para as informações externas; b) frequentemente levam ao automonitoramento; c) podem objetivamente deixar a aparência pior e d) aumentar a atenção dos outros sobre a aparência do indivíduo. O modelo cognitivo-comportamental de Neziroglu70 enfatiza a importância dos condicionamentos clássico e operante, bem como o papel dos quadros relacionais no
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desenvolvimento das crenças do TDC. Propõe que as experiências precoces que reforçam um indivíduo positivamente em sua aparência física na infância podem ter um papel importante no desenvolvimento do TDC. Estudos mostraram que para grande parte dos indivíduos com o TDC, a aparência foi um dos fatores mais salientados e reforçados durante sua infância. No entanto, as experiências negativas também podem causar impacto, uma vez que muitos pacientes relatam terem sofrido abuso sexual e emocional66 . Experiências precoces aversivas podem condicionar o indivíduo a afetos negativos que podem ser revividos quando observam aquela parte do corpo durante a vida. O papel do aprendizado indireto70, o que ocorre pela observação dos outros, pode reforçar positiva ou negativamente um comportamento ou uma crença particular. Um indivíduo pode apreender que a atratividade física é recompensada. Isso pode ser mais bem observado nos meios de comunicação e na cultura popular. É raro encontrar uma mulher não atraente na televisão ou como uma estrela de cinema. Esse tipo de aprendizado indireto pode certificar ao indivíduo que a aparência é um traço importante e valorizado pela sociedade. Os fatores mencionados podem contribuir para o desenvolvimento dos sintomas do TDC pela via do condicionamento clássico e do condicionamento avaliativo. O condicionamento avaliativo é similar ao condicionamento clássico, sendo que o último se refere ao condicionamento das respostas fisioló gicas e o primeiro ao condicionamento de gostar ou desgostar de um estímulo ou estímulos. Ambos os condicionamentos são muito similares e são utilizados indistintamente na literatura psicológica. O TDC pode estar relacionado a experiências de condicionamento avaliativo ou clássico. Os eventos desagradáveis envolvendo a aparência física de alguém podem atuar como estímulos não condicionados e desencadear uma resposta emocional não condicionada, como ansiedade, depressão, aversão, repugnância ou vergonha. Essa resposta, quando pareada com um estímulo neutro, pode desencadear a mesma reação. Em outras palavras, o bullying, abuso ou outro, ficará associado a uma palavra ou parte do corpo que passa então a ser avaliada também como negativa. Então, estímulos distintos evocam as mesmas emoções. Esses autores postulam que a predisposição biológica, associada à história de reforço na infância e ao aprendizado indireto são prerrequisitos necessários para o desenvolvimento do TDC. Esses fatores podem levar alguns indivíduos, mas não todos, à uma aumentada sensibilidade a esse tipo de evento relacionado ao condicionamento clássico e avaliativo, uma vez que muitos indivíduos experimentam eventos negativos precoces focados no corpo e não desenvolvem um transtorno da imagem corporal. Neziroglu propõe que o desenvolvimento e o processamento de um sistema de crenças no TDC pode se basear na teoria dos quadros relacionais. O condicionamento clássico em humanos é radicalmente diferente de outros animais porque temos a
habilidade de pensar e verbalizar nossos pensamentos. Apenas para os humanos, uma palavra e o objeto ou evento atual tem uma relação de estímulo bidirecional, no qual cada um igualmente suporta o outro. Um exemplo é o de que a palavra bolacha e o objeto bolacha parecem ser a mesma coisa para os humanos por conta de sua habilidade em utilizar a linguagem. Esse estímulo bidirecional é fundamental para definir a natureza da linguagem humana e a cognição além de explicar como o condicionamento avaliativo pode ocorrer e porque as associações arbitrárias podem ser feitas. Não precisamos ver o objeto bolacha para antecipar o que é uma bolacha. Simplesmente ouvir a palavra "bolacha'' é suficiente para desencadear um estímulo poderoso, porque a palavra e a comida são reforços igualmente poderosos. Outro importante aspecto da linguagem humana e da cognição é a emergência de redes complexas de eventos relacionados. A habilidade de pensar relacionado permite que possamos fazer predições, similar em outros animais pela via de condicionamento clássico e gerar várias outras relações. A resposta relaciona! é estabelecida durante o treinamento precoce da linguagem e pelo aprendizado dos quadros relacionais. Nós apreendemos que coisas são similares e também que as relações podem ser temporais (antes/depois); causais (se/então), comparadas (melhor que) e avaliativas (maior que). A teoria dos quadros relacionais de Hayes70 busca esclarecer a natureza das cognições e da geração da linguagem. Foi base a da nos condicionamentos clássico e o perante para explicar a diversidade de pensamentos e emoções. Palavras que têm conotação e conceitos similares trazem pensamentos semelhantes. Isso explica porque no TDC um indivíduo pode responder com afetos aversivos para qualquer evento ou palavra que o relembre situações similares. Se o paciente em um determinado momento tem uma reação de repugnância a uma espinha, qualquer outra referência que seja similar a uma espinha pode evocar amesma reação apenas com o pensamento, mesmo que essa espinha não exista mais. A teoria também propõe que através da linguagem é possível fazer conexões arbitrárias e não arbitrárias entre eventos e depois desenvolver certas crenças baseadas nessas associações. Em outras palavras, é pela linguagem que pensamos no futuro, fazemos planos e estamos aptos a avaliar e comparar resultados, ou seja, utilizamos a linguagem como uma forma de fazer conexões que podem ou não ser factíveis. Além do mais, como essas associações são mais frequentemente comunicadas do que diretamente vivenciadas, as associações defeituosas raramente são testadas e sendo assim não podem ser extintas. Muitas pessoas evitam consumir ovos crus porque desde pequenos foram orientados a não os comer, apesar de atualmente ser baixo o risco de infecção por salmonela por essa fonte. Esse hábito de aversão persiste porque teve um reforço verbal negativo imposto. Quando se atribui à saúde práticas continuadas e excessivas de algumas regras, não é difícil ver como hábitos pa-
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tológicos podem se desenvolver em um indivíduo predisposto. É possível que no TDC, os indivíduos façam associações arbitrárias entre a aparência, o sucesso social e/ou traços humanos indesejáveis. Além do mais, a existência da linguagem e da cognição evocam emoções, e os pensamentos podem ter significados. Se você pensa em engolir, tem uma resposta neutra, mas se você pensar em acumular e guardar sua saliva para engolir depois, você pode ter uma sensação de repugnância. Isso demonstra que por meio da linguagem, podemos fazer associações arbitrárias e ter certas respostas emocionais a esses pensamentos. A partir dos dois anos, as crianças são capazes de entender a complexa inter-relação entre eventos mesmo que não tenham sido ensinadas sobre um relacionamento específico. Assim que somos capazes de pensar, nós arbitrariamente relacionamos eventos que podem ocorrer juntos ou estar associados a eventos passados. Esses eventos podem se relacionar por condicionamentos por estímulos neutros e/ ou estímulos inespecíficos condicionados ou ser mediados pela linguagem. Como os estímulos neutros são pareados com os estímulos condicionados, um bloco de cognições é reforçado. A informação é processada nesse momento e um bloco de crenças inicialmente introduzido pelas experiências primitivas da infância continua a ser reforçado. Essas crenças podem se centrar em pensamentos como: "se eu for atraente, eu mais facilmente vou obter o que eu , . . . quero ; ser atraente e a cmsa mais Importante no mundo"; "preciso ser notada''; "a vida não tem valor a menos que eu seja atraente", e assim por diante. É também a partir dos dois anos que a atenção é direcionada para a percepção de partes defeituosas do corpo. A atenção seletiva a partes defeituosas leva a um foco maior no defeito e então ao reforço do processo de condicionamento. Pesquisas recentes mostram que o processamento de informações no TDC está alterado. Sugerem que os indivíduos com o transtorno percebem, processam e recordam informações em seu ambiente imediato por caminhos enviesados. Essa predisposição deve ser fundamental na forma como as experiências da vida primitiva são processadas e armazenadas, contribuindo para o desenvolvimento e manutenção do TDC52 . Estudos mostraram que o indivíduo com TDC têm foco aumentado para os defeitos em detrimento da imagem globaF2, atenção seletiva para estímulos emocionais, especialmente às palavras relacionadas ao TDC26. Eles interpretam de forma ambígua situações sociais em geral e relacionadas ao TDC como mais ameaçadoras quando comparadas a controles normais ou indivíduos com TOC27 . Estes pontuam as expressões dos outros como mais contenciosas em situações autorreferentes (p. ex., quando imaginam a si próprios em um cenário) e então acreditam que os outros estão olhando para eles de uma maneira desaprovadora (referência ideacional)52. O TDC é mantido por meio dos princípios do condicionamento operante especificamente via reforço ))
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negativo, no qual as emoções aversivas estão reduzidas ou prevenidas pela evitação ou pelos comportamentos de reasseguramento (safety seeking behaviours). Cash71 serefere a esses comportamentos de evitação como processos autorregulatórios que funcionam como um mecanismo de manejo para evitar, escapar ou lidar com o desconforto em relação à imagem corporal. Essas ações evasivas são mantidas via reforço negativo. Os pacientes com o TDC podem se engajar em comportamentos tais como camuflagem, solicitação de reasseguramento, checagem ou evitação do espelho excessivos e evitação de situações públicas e sociais na tentativa de reduzir a repugnância, ansiedade ou os sentimentos negativos em geral. Algumas vezes, o indivíduo pode gostar de como se parece. No caso de checagem no espelho, o ocasional feedback positivo que recebe randomicamente como resultado de se checar no espelho, encoraja o paciente a continuar se checando no espelho. O reforço intermitente é mais re sistente à extinção. Isso significa que se o indivíduo se lembrar de ter se checado no espelho e de ter gostado, pode continuar engajado na checagem no espelho por um longo período até que tenha os eventuais bons resultados. Além desses comportamentos compulsivos, os indivíduos com o TDC comparam partes específicas de seu corpo com de outras pessoas de modo compulsivo, muitas vezes concluindo que são menos atraentes. Em conclusão, o modelo comportamental do TDC desenvolvido por Neziroglu70 sugere que uma predisposição biológica pareada com experiências iniciais de aprendizado através tanto do reforço direto da atratividade como do aprendizado social faz com que os indivíduos fiquem vulneráveis as experiências de condicionamento clássico e avaliativo que podem levar à sintomatologia do TDC. Da mesma forma, a teoria dos quadros relacionais pode auxiliar na explicação de como pensamentos despertam emoções e comportamentos através da via de resposta relaciona!. Alguns pareamentos são arbitrários e ainda não muito esclarecidos; mas a associação de eventos está baseada na experiência de aprendizado de uma pessoa. Os comportamentos do TDC são mantidos com reforço negativo. Há muitas similaridades entre os modelos de Neziroglu e Veale e também com o modelo não específico de Cash71 - ambos enfatizam o impacto das experiências precoces na vida e o aprendizado social para o desenvolvimento das crenças e atitudes em relação à imagem corporal e apontam o papel do modelo parenta!, das interrelações com os pares e a família, das experiências aversivas e da influência das mídias, tentam explicar os comportamentos de evitação, as emoções negativas e os desvios seletivos de atenção. Talvez os pontos divergentes entre os dois modelos do TDC sejam que o modelo de Neziroglu aponta os condicionamentos e o aprendizado social, como centrais no desenvolvimento e na manutenção do TDC, e entende o transtorno mais de uma perspectiva de cam-
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po. Já o modelo de Veale enfatiza com maior grau de importância o processamento cognitivo, as imagens de uma perspectiva de observador e o papel dos comportamentos de reasseguramento (safety seeking behaviours). O corpo tem importância e significados simbólicos na família e na cultura e causa sofrimento em razão de conflitos psicológicos. A imagem corporal, de um ponto de vista psicanalítico, é entendida como uma representação internalizada do corpo, dentro da realidade psíquica do sujeito. Schilder (1935) considerava a imagem corporal como parte da construção da personalidade, e mais além da questão perceptiva; descreveu a imagem corporal em seu aspecto expressivo. Szasz (1957) propôs que o ego é objeto do corpo e postulou um processo progressivo de integração ego -corpo de crescente complexidade. Dessa perspectiva, os conflitos surgem da discrepância de conceitos e percepções que um sujeito possui do seu corpo, e a imagem corporal tida por esse sujeito como ideal. Na literatura, há dois casos publicados de TDC tratados com psicanálise. Em ambos os casos se interpretou a neurose de transferência instalada e as manifestações do inconsciente como sonhos e sintomas e se trabalhou com associações livres por parte do paciente. Com o trabalho interpretativo, fizeram-se conscientes os sentimentos de rejeição do pai65 •
Tratamento cognitivo- comportamental no TDC Pesquisas que utilizam técnicas cognitivo-comportamentais (TCC) no TDC consistem principalmente em sua utilização em relatos de casos ou série de casos, com diferentes estratégias de duração, formatos, inclusão ou exclusão de medicamentos e poucos estudos randomizados. A maioria dos estudos que avaliou a eficácia das intervenções psicológicas no TDC utilizou a terapia comportamental (TC) associada à terapia cognitivo-comportamental (TCC) 72 • Uma exceção é o estudo de Geremia e Neziroglu73, que utilizou apenas a terapia cognitiva, sem intervenções comportamentais. Tanto abordagens individuais74 quanto grupais72 têm sido conduzidas, em geral com duração de 7 a 30 sessões75, com resultados positivos. A TC consiste basicamente em exposição e prevenção de resposta (EPR), durante a qual os pacientes são gradualmente expostos a estímulos aversivos e orientados a evitar comportamentos que têm por objetivo reduzir a ansiedade, tais como os rituais de checagem no espelho e a esquiva. Da mesma forma que no TOC, a exposição deve continuar até que a ansiedade diminua e atinja um nível toleráveF4 • Na TCC, além da EPR, utilizam -se técnicas cognitivas, como a identificação dos pensarnentos automáticos relacionados à aparência e crenças disfuncionais chamadas distorções cognitivas, buscando modificá-las. Em uma metanálise recente, tanto a farmacoterapia quanto a TCC mostraram-se efetivas no tratamento do TDC, mas a TCC esteve associada a tamanhos
de efeito significativamente maiores do que as medicações. Além disso, em cinco dos noves estudos com psicoterapia, 100% dos pacientes completaram o tratamento, sugerindo que tal modalidade terapêutica é geralmente bem aceita75 •
Tratamento farmacológico Pesquisas conduzidas nos últimos anos mostram que inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) são eficientes no tratamento do TDC76,69, não havendo evidências suficientes que antidepressivos de outras classes ou antipsicóticos também o sejam. As evidências iniciais com séries de casos e depois com estudos abertos mostram que a fluvoxamina é eficiente, para a maioria dos pacientes41,50,77,79,80, eficácia posteriormente observada com a fluoxetina, o citalopram e o escitalopram78,79 . Hollander et al. 81 conduziram o primeiro estudo que evidenciou que um ISRS efetivo no TDC era também efetivo na suavariante delirante. Nele, comparou-se clomipramina com desipramina, um potente inibidor da recaptura de noradrenalina, e observou-se que o primeiro era mais eficaz, sugerindo que pacientes com TDC respondem preferencialmente a ISRS, assim como os indivíduos com TOC. As taxas de resposta nesses estudos variaram de 63 a 83%78. Pacientes que respondem aos ISRS gastam menos tempo com as preocupações relacionadas à aparência e têm melhor controle sobre os comportamentos repetitivos. Além disso, observa-se melhora do sofrimento associado, dos sintomas depressivos e ansiosos, da hostilidade, do comportamento suicida e do funcionamento geral43,69. Da mesma forma que no TOC, estudos parecem apontar que são necessárias doses maiores dessas drogas e por mais tempo para o tratamento do TDC, em comparação com o tratamento para a depressão43,68,78 . As doses médias e desviospadrão das medicações utilizadas em diferentes estudos foram as seguintes: clomipramina 138 (+ 87) mg/dia79, flu voxamina 187,5 (+ 52,8) mg/dia80, fluvoxamina 238,3 (+ 85,8) mg/dia 131 , fluoxetina 77,7 (+ 8,0) mg/dia78 e citalopram 51,3 (+ 16,9) mg/dia76 • De acordo com Phillips e Hollander69, recomenda-se utilizar paroxetina em doses de 50 mg/dia ou superior ou sertralina 200 mg/dia ou doses superiores de ambas as drogas. O tempo médio de resposta varia de quatro ou cinco até nove semanas68,78; entretanto, muitos pacientes responderão apenas após a décima ou décima segunda semana de tratamento com IRS, mesmo com uma titulação rápida da dose. Se a resposta for inadequada depois de 12 a 16 semanas, e a maior dose possível tiver sido utilizada por duas a três semanas, recomenda-se uma troca medicamentosa69 . Uma proporção substancial dos pacientes que não respondem a um primeiro ensaio com ISRS responderá com outra medicação da mesma classe43 • Um estudo recente demonstrou a eficácia da venlafaxina no TDC82, mas na ausência de outras investigações
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que corroborem esse achado, os antidepressivos duais não devem ser considerados tratamento de primeira linha. Relatos de casos sugerem que alguns pacientes podem responder a inibidores da monoaminoxidase em casos resistentes69 , ao passo que a eletroconvulsoterapia não se mostrou efetiva no TDC e nos sintomas depressivos secundários43·69. Estratégias de potencialização ainda não foram sistematicamente estudadas, mas a associação do ISRS com buspirona, clomipramina, antipsicóticos atípicos, bupropiona, venlafaxina, lítio ou metilfenidato está descrita69 . Questões 1. Além do transtorno dismórfico corporal, em que outros qua-
a) b) c) d) e)
dros psiquiátricos a insatisfação corporal pode estar presente: Anorexia nervosa. Bulimia nervosa. Fobia social. Transtorno de identidade de gênero. Todos as anteriores.
2. Entre as populações de risco com maior presença de pacientes com TDC, podemos salientar: a) Jóqueis. b) Modelos e manequins. c) Candidatos à cirurgia plástica e pacientes dermatológicos. d ) Pacientes oncológicos. e ) Artistas. cantores e atores de teatro. 3. a) b) c) d) e)
As principais hipóteses nosológicas colocam o TDC como : Uma síndrome independente. Parte do espectro do TOC. Quando delirante, no espectro esquizofrênico. A e B estão certas. A. B e C estão corretas.
4. As principais comorbidades descritas no TDC incluem : a) Transtornos do humor, esquizofrenia. TOC. b) Transtornos do humor. transtorno da compulsão alimentar periódica e sutismo. c) Transtorno do humor, transtornos alimentares e fobia social. d ) Transtornos de personalidade, abuso de álcool e drogas. Alzheimer. e) Todas os anteriores. 5. As drogas mais estudadas e com melhor evidência de eficácia no tratamento do TDC são: a ) Benzodiazepínicos. b) Nortriptilina. c) Tranilcipromina e outros IMAOs. d) ISRS. e) Todas os anteriores.
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Transtorno Obsessivo-compulsivo na Infância e Adolescência Mauro Victor de Medeiros Filho
Maria Alice de Mathis
Pedro de Souza Leite Anna Cláudia Dominguez Alves
Pedro Gomes de Alvarenga
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 893 Epidemiologia, 893 Etiopatogenia, 894
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Agregação familial: aspectos genéticos, não genéticos e interação entre gene e ambiente, 894 Neuroimagem: envolvimento dos circuitos córtico-estriataistálamo-corticais, 894 Neuropsicologia: validade endofenotípica, 894 Neuroquímica: papel dos sistemas serotoninérgico, dopaminérgico e glutamatérgico, 895 Imunologia e infecções estreptocócicas, 895 Manifestações clínicas, 895 Diagnóstico, 895 Idade de início dos sintomas, 896 Particularidades do TOC na infância e adolescência, 896 Dimensões dos sintomas do TOC, 896 Comorbidades e espectro do TOC, 897 Perspectivas diagnósticas, 897 Abordagem do paciente, 897 Tratamento, 898 Terapia cognitivo-comportamental e psicoeducação, 898 Farmacoterapia, 898 Perspectivas futuras: novos tratamentos e estratégias de prevenção, 899 Tratamento de comorbidades, 899 Conclusão, 899 Questões, 900 Referências bibliográficas, 901
Introdução O transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) é, atualmente, a quarta condição psiquiátrica mais prevalente em nosso meio e potencialmente incapacitante 1 • Há evidências de que mais da metade de pacientes com TOC iniciam seus primeiros sintomas na infância ou adolescência,
1. Compreender a epidemiologia do TOC na infância e adolescência. 2. Compreender os mecanismos etiopatológicos do TOC na infância e adolescência. 3. Realizar o diagnóstico de TOC na infância e adolescência e entender as características clínicas específicas do subgrupo de TOC com idade de início precoce, discutindo a abordagem categoria! e dimensional deste transtorno. 4. Compreender os fundamentos do tratamento baseado em evidências do TOC na infância e adolescência.
o que faz desse transtorno objeto de estudo da psiquiatria da infância e adolescência, bem como da psicopatologia do desenvolvimento 2. Acredita-se que o TOC com início mais precoce compõe um subgrupo com características específicas. O presente capítulo apresenta a epidemiologia e etiopatogenia do TOC na infância e adolescência, além de descrever as características clínicas e o tratamento baseado em evidências do TOC nessa faixa ' . etana.
Epidemiologia Diversos estudos demonstram que a prevalência estimada do TOCao longo da vida varia de 1,9 a 3,3%3, ao passo que os inquéritos epidemiológicos sobre TOC na infância e adolescência são mais escassos. Estudos epidemiológicos com crianças e adolescentes demonstram que a prevalência nesta faixa etária é de 0,7% no período de um ano, enquanto a prevalência acumulada é de 1 a 2,3%. Há aumento progressivo com o avanço da idade. Em média, a prevalência de TOC em adolescentes é de 2%4 . Alguns trabalhos científicos indicam que até 80% dos pacientes relatam início dos sintomas antes dos 18 anos.
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Acredita-se que 10% de todos os portadores de TOC tiveram início de sintomas aos 14 anos e 6% antes da primeira década de vida5. Em estudo recente avaliando 330 pacientes, observou-se que, em 48,5%, a sintomatologia havia aparecido antes dos 11 anos e em 22,7%, entre 11 e 18 anos de idadé, o que mostra a importância da compreensão do TOC como uma doença do desenvolvimento e do âmbito da psiquiatria da infância e adolescência. A incidência do TOC apresenta uma distribuição bimodal. O primeiro pico seria na infância, com início dos sintomas entre 7 e 12 anos, em média, e com razão de prevalência de 2-3:1 de indivíduos do sexo masculino em relação ao sexo feminino. O segundo pico ocorreria na idade adulta, com o aparecimento dos sintomas aos 21 anos, com discreta predominância no sexo feminino, sendo a prevalência de 1:1,34. Essa distribuição bimodal, com diferença entre gêneros, deu início a linhas de pesquisa que propõem a divisão do TOC em subgrupos de início precoce e início tardio, o que será discutido adiante.
Etiopatogenia Agregação familial: aspectos genéticos, não genéticos e interação entre gene e ambiente Estudos de famílias são conclusivos quanto à agregação familial do TOC, principalmente quando associado à presença de tiques e/ou início precoce dos sintomas obsessivo -compulsivos (SOC)?- 10. Investigações científicas mostram uma maior agregação familial de soe em parentes de indivíduos acometidos pelo TOC não tratados, o que reforça o impacto de fatores genéticos e não genéticos na gênese do TOC 10 • Dentre os fatores genéticos, ressalta-se o gene do transportador do SLC1A1 11 e o gene SAPAP3 12 , os quais são responsáveis pela expressão glutamatérgica e vêm sendo associados a comportamentos repetitivos em humanos e roedores 13 • Por outro lado, o TOC tem uma natureza complexa, em que diversos genes de pequeno efeito podem estar envolvidos, relacionados a fatores ambientais. Dessa maneira, pode-se classificar o TOC como uma doença poligênica multifatorial. Dentre os fatores familiares não genéticos, pode-se citar o papel das contingências de reforço social e familiar na manutenção dos SOC 14. Crianças mais jovens tendem a envolver os familiares em seus rituais, com possível acomodação e piora dos soe, ou mesmo a deflagração de TOC em crianças predispostas. Atitudes de superproteção e controle excessivo por parte dos pais também vêm sendo implicados na gênese do TOC 15. Fatores ambientais, como traumas de parto 16, infecções por Streptococcus pyogenes e outros agentes infeciosos 17 também foram associados ao TOC. Deve-se ressaltar, entretanto, que o peso dos fatores genéticos e ambientais na gênese do TOC não está eluci-
dado, assim como a interação entre tais fatores nas diversas fases do desenvolvimento cerebral.
Neuroimagem: envolvimento dos circuitos córtico-estriatais-tálamo-corticais O objetivo dos estudos em neuroimagem é identificar sistemas e funções neurais que provocam, modulam ou compensam os SOC. A identificação desses sistemas pode trazer maior compreensão do TOC e ajudar no desenvolvimento de novas ferramentas terapêuticas. Estudos de neuroimagem estrutural demonstram alterações volumétricas dos gânglios da base, tanto em adultos como em crianças com TOC 18-·20. Alterações volumétricas na substância cinzenta do giro do cíngulo anterior e no córtex frontal são descritas em crianças; as mesmas alterações são observadas em adultos tanto na substância cinzenta quanto na substância branca21 . Crianças e adolescentes com TOC parecem apresentar também redução volumétrica do corpo caloso22 e alargamento do terceiro ventrículo, quando comparadas a controles 19 . Estudos de neuroimagem funcional corroboram os achados dos estudos estruturais. As regiões do córtex orbitofrontal, cíngulo anterior e núcleo estriado encontramse hiperativadas nos pacientes com TOC em repouso e hiper-responsivas na vigência de sintomas provocados nos pacientes. Soma-se a isso o fato de essa atividade diminuir significativamente após o tratamento 23 -25 . A amígdala - região cerebral específica de resposta ao medo - está hiperativa quando há exposição de estímulos específicos ligados aos soe em população pediátrica26 . Pesquisas em neuroimagem corroboram a proximidade etiopatogênica entre os transtornos do espectro obsessivo-compulsivo27 e sugerem também anormalidades envolvendo as vias córtico-estriatais-tálamo -corticais em síndrome de Tourette (ST), tricotilomania e transtorno dismórfico corporal (TDC)28 -32.
Neuropsicologia: validade endofenotípica Diversas alterações neuropsicológicas, como alterações de flexibilidade mental, habilidades motoras e déficits executivos globais, foram descritas em indivíduos com SOC e TOC33·34 . Algumas dessas alterações também foram encontradas em familiares de primeiro grau de pacientes com TOC 35 . Além disso, estudos de seguimento suscitam que determinadas alterações neuropsicológicas na infância, como déficits executivos e visuoespaciais, podem constituir risco para o desenvolvimento de TOC na vida adulta36. O estudo do perfil neuropsicológico em pacientes com TOC, seus familiares e populações pré-clínicas possibilitarão a construção de endofenótipos válidos para compreensão etiopatogênica da doença, bem como
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para implicações clínicas, como tratamento, identificação precoce e prevençao.
síndrome em neuropsiquiatria - PANDAS (pediatric au-
Neuroquímica: papel dos sistemas serotoninérgico, dopaminérgico e glutamatérgico
tinta e com características próprias. Entretanto, a validade desse construto permanece controversa.
O sistema serotoninérgico parece ter um papel fun damental na fisiopatologia do TOC, uma vez que diversos ensaios clínicos apontam para diminuição significativa de soe com o uso de medicamentos com ação predominante serotoninérgica37 . No entanto, é controverso se a eficácia desses medicamentos se relaciona com a sua ação direta no sistema serotoninérgico ou em outros sistemas neuroquímicos como o sistema dopaminérgico e o sistema glutamatérgico38. Além disso, diversos estudos indicam anormalidades do transportador de serotonina em tecido periférico de pacientes com TOC39 e em seus familiares de primeiro grau40 . A dopamina certamente contribui para a patogênese do TOC38 . Ela é o principal neurotransmissor regulador dos núcleos da base. Pacientes com transtornos que atingem essas estruturas (como doença de Parkinson, ST, coreia do Huntington e coreia de Sydenham) apresentam maior frequência de SOC. Agentes bloqueadores dopaminérgicos são eficazes no controle de soe e outros comportamentos repetitivos, como ST e transtorno de tiques 38,41. Além disso, pesquisas com neuroimagem funcional em pacientes com TOC fazem supor uma hiperatividade dopaminérgica no estriado42. Finalmente, há evidências de que o sistema glutamatérgico possa desempenhar algum papel na patogênese do TOC38 . Ensaios clínicos relatam alívio dos SOC utilizando-se agentes antiglutamatérgicos como potencializadores do tratamento43. Além disso, os principais genes candidatos para TOC e outros comportamentos repetitivos estão envolvidos na transmissão glutamatérgica44 •
Manifestações clínicas
Imunologia e infecções estreptocócicas O sistema imunológico pode desempenhar um importante papel etiológico em alguns subtipos de TO C. Há quase duas décadas, iniciou-se uma interessante linha de pesquisa, a partir da identificação de um subgrupo com sintomas pré-puberais de TOC, tiques e outras manifestações neuropsiquiátricas associadas a manifestações inflamatórias decorrentes da febre reumática (FR) e/ou infecção por Streptococcus pyogenes45 • Estudos de família evidenciam agregação familiar entre a FR e o TOC46 • Além disso, polimorfismos da região promotora do gene regulador do fator de necrose tumoral alfa foram associados a ambos, FR e TOC, o que leva a crer que TOC e FR podem compartilhar aspectos de vulnerabilidade genética e que a infecção estreptocócica pode constituir um fator mediador de ambas as patologias47 . Um grupo de pesquisadores45chegou a propor a existência de uma nova
toimmune neuropsychiatric disorders associated with streptococcal infection) - , que seria uma entidade clínica dis-
Diagnóstico O TOC é definido, tanto em adultos como em crianças, pela presença de obsessões e/ou compulsões. Obsessões são imagens ou pensamentos intrusivos egodistônicos, sentidos como incontroláveis, que o indivíduo reconhece como seus, mas que são acompanhados por ansiedade, medo e desconforto. Compulsões são atos motores ou mentais realizados de forma repetitiva e estereotipada, que são seguidos de alívio do desconforto associado às obsessões48. As obsessões e/ou compulsões devem estar presentes pelo período mínimo de uma hora por dia e serem capazes de causar sofrimento e interferir significativamente na rotina, comprometendo o funcionamento ocupacional e/ou os relacionamentos familiares e sociais48 . A Tabela I apresenta os critérios para o diagnóstico categoria! do TOC de acordo com a Associação Americana de Psiquiatria.
Tabela I
Critérios diagnósticos do TOC
A. Presença de obsessões ou compulsões. B. Em algum ponto durante o curso do transtorno, o indivíduo reconheceu que as obsessões ou compulsões são excessivas ou . . . wrac1ona1s. Nota: este critério não se aplica a crianças. C. As obsessões ou compulsões causam acentuado sofrimento, consumindo mais de uma hora por dia, ou interferem significativamente na rotina, no funcionamento ocupacional (ou acadêmico), nas atividades ou relacionamentos sociais habituais do indivíduo. O. Se outro transtorno do eixo I está presente, o conteúdo das obsessões ou compulsões não está restrito a ele (p. ex., preocupação com alimentos na presença de um transtorno alimentar; puxar os cabelos na presença de tricotilomania; preocupação com a aparência na presença de TDC; preocupação com drogas na presença de transtorno por uso de substância; preocupação em ter uma doença na presença de hipocondria; preocupação com anseios ou fantasias sexuais na presença de parafilias; ruminações de culpa na presença de transtorno depressivo maior). E. A perturbação não se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p. ex., droga de abuso, medicamento) ou de uma condição médica geral. Especificar se, com insight pobre, na maior parte do tempo durante o episódio atual, o indivíduo não reconhece que as obsessões e compulsões são excessivas ou irracionais
Fonte: adaptada de DSM-IV, APA 1994.
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Idade de início dos sintomas O TOC de início precoce, hoje, é definido pelo aparecimento dos sintomas antes da puberdade49 . Algumas características peculiares, como presença aumentada de tiques, distribuição desigual entre os sexos (70% das crianças portadoras de TOC com menos de 7 anos pertencem ao sexo masculino), curso crônico e com pior resposta ao tratamento, mostram fortes indícios de que esse seja um subtipo específico de TO C. Estudos de neuroimagem também têm reforçado a hipótese de que pacientes com TOC de início precoce representam um subgrupo distinto de pacientes50,s 1• Apesar de esse parâmetro ser usado por muitos pesquisadores e clínicos, ele não é consensual, pois ainda pairam certas dúvidas. A primeira é a de como traçar o início exato do TO C. Existem diversas possibilidades: idade dos primeiros sintomas testemunhados por familiares, idade em que os sintomas causaram algum prejuízo ou a idade em que houve possibilidade de preenchimento exato dos critérios propostos pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV) ou pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) 52 • Outros problemas desse parâmetro relacionam-se à própria psicopatologia do TOC, que pode apresentar sintomas heterogêneos, início abrupto ou insidioso e curso flutuante com mudanças dos tipos de soe ao longo dos anos 52 •
Particularidades do TOC na infância e adolescência O diagnóstico de TOC na população pediátrica ocorre entre 10 e 15 anos, com média de 2,5 anos após o início dos sintomas 53 • Uma das explicações para esse intervalo entre o início dos sintomas e o diagnóstico é a
Tabela 11 Obsessões e compulsões mais comuns em crianças e adolescentes com TOC Obsessões 1. Preocupações com germes, sujeira, doenças 2. Preocupações com eventos catastróficos (incêndio, morte, doença) 3. Simetria, ordem ou exatidão 4. Números de sorte e azar 5. Preocupação ou nojo de secreções do corpo 6. Escrupulosidade religiosa Compulsões 1. Lavagem excessiva de mãos, excesso de banhos, rituais de escovar dentes ou pentear-se 2. Checagem de portas, cadeados, annários e móveis 3. Rituais para evitar ou remover germes de objetos contaminados 4. Repetição de idas e vindas em escada ou porta 5. Rituais de tocar ou bater (uc like) 6. Colecionismo Fonte: Lisa A. Snider; Susan E. Swedo. Pediatric Obsessive-Compulsive Disorder JAMA. 2000;284(24):31 04-31 O.
crítica pobre (poor insight), ou seja, a dificuldade em perceber os sintomas como ilógicos e irracionais, presente em grande parte das crianças e adolescentes. Alguns pesquisadores sugerem que o poor insight está relacionado a um pior resultado na terapia comportamental e a um pior prognóstico em relação aos pacientes com crítica preservadas\ além de maior risco de desenvolver outros transtornos psiquiátricos55. Outra explicação para o atraso no diagnóstico do TOC é a manobra do paciente em esconder seus sintomas por serem inaceitáveis socialmente e/ou gerarem sentimento de vergonha56. Há casos, ainda, em que os sintomas começam insidiosamente, assemelhando-se a rotinas normais da infância (p. ex., banhos prolongados, rezar compulsivo ou organização excessiva), fazendo os pais compensarem os comportamentos de modo que a criança mantenha uma rotina funcional mesmo na vigência do transtornos7 • Por todas essas razões listadas, que in correm em atraso no diagnóstico, o TOC pediátrico foi chamado por certos autores de "doença do segredo" 57 . A maioria dos jovens vivenciam tanto obsessões quanto compulsões. No entanto, quanto mais jovem opaciente, maior a chance de ter compulsões isoladas, sem a presença obrigatória de obsessões. Nos grupos com desenvolvimento mais precoce do TOC, as compulsões aparecem, em geral, dois anos antes das obsessões; nos grupos com TOC de início mais tardio, os dois sintomas aparecem concomitantemente26,ss,s9 • Uma particularidade da infância é a ocorrência de fenômenos sensoriais precedendo as compulsões. Os fenômenos sensoriais podem ser divididos em físicos (p. ex., sensações de formigamento ou "pinicadas" na pele ou em alguma parte do corpo) ou mentais (sentimentos de incompletude, tensão). Os fenômenos sensoriais podem trazer sofrimento per ses8 • Ainda há as compulsões tic-like, que são muitas vezes confundidas com tiques complexos, principalmente se as compulsões forem simpies rituais de toques ou tapas 26,s9 •
Dimensões dos sintomas do TOC O TOC é um transtorno heterogêneo, com apresentações clínicas variadas dos seus fenótipos. Apesar de a abor-
Tabela 111
Dimensões dos sintomas obsessivo-compulsivos
1. Obsessões sobre agressão, violência, desastres naturais e compulsões relacionadas; 2. Obsessões sexuais e religiosas e compulsões relacionadas; 3. Obsessões e compulsões de simetria, ordem, contagem e arranjo; 4. Obsessões de contaminação e compulsões de limpeza; 5. Obsessões e compulsões de colecionismo; 6. Obsessões e compulsões diversas.
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dagem categoria! tentar definir os subtipos do transtorno, talvez uma abordagem dimensional traga importantes contribuições49. Estudos psicométricos sugerem que a classificação do TOC seja realizada em seis dimensões de sintomas60 (Tabela III). Há evidências de que algumas dessas dimensões são estáveis ao longo do tempo e compartilham achados genéticos e de neuroimagem, além de padrões de resposta terapêutica49'61. Essas dimensões se distribuem de maneira específica nos diversos subtipos de TOC, como TOC de início precoce, anteriormente discutido, e TOC relacionado a tiques, como será visto adiante.
Comorbidades e espectro do TOC As comorbidades mais frequentemente associadas ao TOC na infância e adolescência são o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e transtorno de tiques, enquanto no adulto são os transtornos depressivos e transtornos ansiosos 62 . O TDAH está mais ligado aos meninos, nos quais predominam características de impulsividade. Os tiques incidem em mais de 1/3 das crianças com TOC63 . A ST, cujo transtorno é marcado por múltiplos tiques motores e ao menos um tique vocal, também está mais associada ao TOC na infância. A ST apresenta forte agregação familial e compartilha diversas características clínicas e etiopatogênicas com o TOC27. Clinicamente, é difícil diferenciar os tiques motores e vocais da ST com SOC. Tiques complexos se assemelham às compulsões e, assim como ocorre nos tiques, as compulsões do TOC, em grande parte das vezes, não são precedidas por uma obsessão, mas por fenômenos sensoriais64 • Pacientes mais jovens e do sexo masculino apresentam risco aumentado de desenvolver ST e transtornos ansiosos comórbidos ao TOC56. Outros transtornos, além da ST, são considerados hoje como pertencentes ao espectro obsessivo-compulsivo, por compartilharem características clínicas, genéticase etiopatogênicas com o TOC, a saber: a tricotilomania, a dermatotilexomania e o transtorno dismórfico corporal (TDC) 27'51. Esses transtornos são menos comuns em crianças e incidem mais durante a adolescência e no sexo feminino. A tricotilomania (comportamento repetitivo de arrancar pelos e cabelos) e a dermatotilexomania (comportamento repetitivo de escoriar a pele) geralmente não são precedidas de obsessões, mas sim de fenômenos sensoriais. São menos egodistônicos, podendo apresentar características como fissura, compulsão e arrependimento, semelhante a outros transtornos do impulso e dependências químicas 51'65 . O TDC, anteriormente chamado de dismorfofobia, é caracterizado pela preocupação patológica com uma deformidade imaginada ou exagerada no caso de algum defeito na aparência estar realmente presente. As preocupações mais frequentes estão direcionadas a assimetrias, excesso de pelos, tamanho e/ ou forma de partes corporais como nariz, olhos, lábios,
cabeça, genitais etcY O TDC apresenta, geralmente, início na adolescência e apresenta associação familial com o TOC e etiopatogênese semelhante aos transtornos do espectro obsessivo-compulsivo51,66 .
Perspectivas diagnósticas Pesquisadores e clínicos de diversos países têm se reunido no intuito de elaborar mudanças diagnósticas para a próxima sessão do DSM. É válido pontuar alguns itens que estão em debate para aperfeiçoar o diagnóstico do TOC. O primeiro item é se a esquiva deve ser incluída no diagnóstico. A esquiva é o ato de evitar pessoas, lugares ou ações e uma causa importante de debilidade clínica. No entanto, a esquiva pode ser direcionada às obsessões, à ansiedade ou às compulsões e há quem pense que evitar as obsessões ou rituais seja saudável, e não um sinal patológico. Assim, ainda é um desafio operacionalizar esse termo para uso clínico no TOC49 . Outro item discutido é a validade de se classificar os sintomas como excessivos e/ou irracionais para o diagnóstico. Além do elemento interpretativo, estudos mostram que a crítica (insight) apresenta um espectro, desde 100% preservada até a ocorrência de crenças delirantes49 . Uma das proposições é retirar esse item do DSM e, talvez, ampliar o conceito de insight de modo a existirem níveis (bom, pobre ou delirante) 49 . Finalmente, um ponto crucial é a classificação diagnóstica do TOC em subtipos: TOC de início precoce e TOC relacionado a tiques. Especialistas sugerem a inclusão deste segundo subtipo ligado a tiques pela associação familiar e características clínicas específicas, como predomínio do sexo masculino, presença de fenômenos sensoriais, distribuição específica de determinadas dimensões de sintomas, incluindo "simetrià', "agressão" e "sexuais"50,67. Além disso, esse grupo responde melhor à associação terapêutica com neurolépticos68,69 . Para a inclusão do subtipo de "início precoce': faltam algumas definições, como a identificação de pródromo e do início do TOC propriamente dito 62 . Deve-se ainda levar em conta que os dois subtipos se confundem, já que há sobreposição de características entre ambos 70.
Abordagem do paciente Quando há uma suspeita de TOC, é importante realizar uma entrevista detalhada com a criança, deixando-a descrever livremente as compulsões e obsessões ou sentimentos de incompletude que precedem essas compulsões. Deve-se estabelecer a duração dos sintomas e compreender como eles interferem na vida do paciente, além de questionar se há esquiva relacionada ao TOC. Entrevistas objetivas com professores, além dos pais, ajudam a identificar o contexto e a gravidade dos sintomas57. É essencial a distinção entre TOC e comportamentos ritualísticos e superstições normais de determinadas fases
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do desenvolvimento. Por exemplo, vestir a meia da sorte para um jogo de futebol ou ter algum ritual para dormir pode causar conforto na rotina da criança e é parte normal do desenvolvimento. Por outro lado, rituais com dispêndio excessivo de tempo e esforço, que tragam desadaptação, prejuízos sócio-ocupacionais e/ ou sofrimento devem ser encarados como sintomas de um transtorno mental57. O uso de escalas auxiliares validadas para infância e adolescência como a Children's Yale-Brown Obsessive Compulsive Scale (CY-BOCS)l' e a Dimensional Yale-Brown Obsessive Compulsive Scale (DY-BOCS)60 pode ajudar a predizer esta gravidade e monitorar os sintomas ao longo do tempo.
Tratamento As opções de primeira linha de tratamento do TOC na infância e adolescência são a terapia cognitivo-comportamental (TCC) e a farmacoterapia. Em casos com sintomatologia leve, o emprego da TCC sem uso de medicamentos deve ser considerado. Para casos moderados ou graves, o melhor tratamento proposto é a TCC aliada a farmacoterapia individualizada72•73 . A terapêutica também deve incluir a educação do paciente e de seus familiares sobre aspectos do TO C. Isso porque esse transtorno comumente é condicionado e reforçado pelos pais, principalmente nos casos em que há sintomas egossintônicos e crítica pobre74.
Terapia cognitivo-comportamental e psicoeducação A terapia cognitivo-comportamental (TCC) é reco nhecidamente eficaz no tratamento do TOC, mas ainda carece de mais estudos testando modelos para crianças e adolescentes. Entre as técnicas de TCC, a exposição com prevenção de resposta parece ter maior impacto nos pacientes jovens73·75 . O objetivo das sessões terapêuticas é o aprendizado de estratégias adaptativas que possam reduzir os sintomas em número e intensidade. Esse aprendizado, no caso de adolescentes e principalmente de crianças, deve ser reforçado pelo uso de recompensas73 . O sucesso da TCC irá depender da crítica que o paciente tem em relação aos sintomas e da presença ou não de comorbidades, como fobia social, transtorno de tiques e TDAH, que podem dificultar o tratamento73 . Outro pilar do tratamento do TOC é a psicoeducação, que tanto o paciente quanto sua família devem receberl5. Há evidências de que os SOC, por vezes, exigem o envolvimento dos parentes nos rituais, modificam a rotina da família e geram sentimentos de rejeição dos familiares pelo paciente74. Esses fatores influenciam a gravidade do TOC e o grau de prejuízo sócio-ocupacional do paciente. Além disso, implicam no desenvolvimento de sintomas depressivos e ansiosos nos cuidadores74 . Assim, os pacien-
tes e seus familiares precisam ter informações sobre o que é transtorno mental, o que é o TOC, qual é a sua sintomatologia, qual é a terapia empregada, qual é a influência que cada um dos sintomas exerce sobre o paciente e sobre seu tratamento, e se o emprego de técnicas comportamentais é a primeira escolha para pacientes pediátricos com TOC leve/moderado pela segurança e eficácia76.
Farmacoterapia A primeira linha farmacológica de tratamento para o TOC na infância e adolescência é composta pelos inibidores seletivos da recaptura de serotonina (ISRS). Ensaios clínicos rigorosos demonstraram a eficácia e segurança de fluoxetina, sertralina e fluvoxamina para portadores de TOC nessa faixa etária72•73·76 . Paroxetina apresenta eficácia para TOC e recente aprovação no tratamento de TOC pediátrico76·77 . Sedação e ganho de peso e outros efeitos anticolinérgicos podem ser fatores limitantes. Citalopram78 e escitalopram79 tiveram resultados semelhantes, embora o Food and Drug Admnistration (FDA) ainda não aprove o seu uso em pacientes com TOC na faixa pediátrica73·76. A clomipramina, um antidepressivo tricíclico com forte ação serotoninérgica, é a medicação que demonstrou melhor eficácia em crianças e adolescentes com TOC76·80. No entanto, a limitação do seu uso está nos efeitos colaterais - sintomas gastrointestinais, toxicidade hepática e alterações na condução cardíaca. Entre os pacientes adequadamente tratados com ISRS (quanto a tratamento por tempo e dose pertinentes ver Tabela IV), até 50% não respondem de forma satisfatória. Nesses casos, pode-se considerar a potencialização com o uso de antipsicóticos37·81 ou com a clomipramina82·83. Dentre os antipsicóticos, há vários estudos que sugerem boa eficácia do haloperidol e da risperidona como potencializadores76·81. No entanto, o prejuízo cognitivo e o perfil de sintomas extrapiramidais limitam o uso desses medicamentos. Outros antipsicóticos atípicos que podem ser usados são a quetiapina84 e o aripiprazol85 . A ziprasidona86 está associada com alterações eletrocardiográficas e a olanzapina não é recomedável em crianças em razão do seu grande risco de ganho de peso e desenvolvimento de síndrome metabólica73·87 . Na estratégia de potencialização com a clomipramina, há o risco de toxicidade em virtude da interação medicamentosa com os ISRS. Nesses casos, é recomendável a titulação cautelosa e o monitoramento do nível sérico do tricíclico, se houver essa possibilidade. Deve-se lembrar que o uso pediátrico de antidepressivos está associado com modesto aumento do risco de suicídio. Embora esses resultados tenham maior relação com transtornos depressivos, deve-se observar com atenção os pacientes dessa faixa etária que fazem uso dessas drogas88 . Esse risco, no entanto, não justifica o não tratamento farmacológico da população pediátrica com TO C.
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Tabela IV
Primeira linha de tratamento farmacológico para TOC na infância e adolescência 76 Idade mínima aprovada pelo FDA (anos)
Aprovação pelo FDA para TOC na infância
Dose inicial recomendada (mg/dia)
Dose máxima recomendada (mg/dia)
Clomipramina
5
Sim
6,25- 25
300
Fluoxetina
8
Sim
2,5- 1o
80
Sertralina
6
Sim
12,5- 25
200
Fluvoxamina
8
Sim
12,5-50
300
Paroxetina
8
Sim
2,5- 1o
60
Citalopram
2,5- 1o
60
Escitalopram
2,5- 1o
30
Agente antiobsessivo
FDA: Food and Drug Admnistration; TOC: transtorno obsessivo-compulsivo. Fonte: Rosário-Campos et al. 97•
A Tabela IV apresenta uma relação dos medicamentos com ação antiobsessiva de primeira linha no uso do TOC na infância e adolescência.
de alto risco para o desenvolvimento do TOC e o desenho de estratégias populacionais custo-efetivas específicas para prevenir esse transtorno.
Perspectivas futuras: novos tratam entos e estratégias de preven ção
Tratamento de comorbidades
Em relação ao tratamento do TOC, novas linhas de pesquisa têm demonstrado resultados eficazes utilizando técnicas comportamentais e outras abordagens psicofarmacológicas. Em psicoterapia, as técnicas mais recentemente utilizadas são a reversão de hábito (RH) e a análise funcional do comportamento. A análise funcional do comportamento se propõe a investigar em profundidade a história comportamental do indivíduo e sua relação com os comportamentos repetitivos89• A RH é uma terapia baseada no treinamento de resposta competitiva, ou seja, em direcionar o ímpeto de realizar o comportamento para uma ação diferente dele 90 • Essa terapia vem sendo estudada para tiques, ST e tricotilomania, mas com potencial ampliação ao TOC90. Em relação à psicofarmacologia, pesquisas apontam que agentes reguladores da neurotransmissão glutamatérgica, como o riluzol91 e a N-acetilcisteína92, podem trazer benefício para crianças e adolescentes com TOC refratários aos tratamentos convencionais. A memantina também está sendo estudada e é vista como um promissor potencializador93 • Todavia, esses medicamentos ainda não são aprovados pelo FDA para TOC na infância e adolescência e novos estudos controlados são necessários para justificar o seu uso. Por outro lado, sabe-se que quando o TOC se manifesta, os tratamentos atualmente disponíveis proporcionam apenas alívio dos sintomas, o que torna a prevenção do TOC uma estratégia promissora. O preciso conhecimenta de fatores de risco para o desenvolvimento de TOC (fatores fenotípicos, familiares, ambientais e neuropsicológicos) devem possibilitar a identificação de um grupo
Cerca de 50% de crianças ou adolescentes com TOC apresentam transtornos comórbidos que ocorrem sincronicamente e que potencializam o TOC. Após o correto diagnóstico desses transtornos, alguns conceitos regem a sua terapêutica. Em primeiro lugar, deve -se priorizar o tratamento daqueles que forem hierarquicamente mais severos - os que determinam sintomas mais incapacitantes. Habitualmente, isso pode ocorrer nos transtornos invasivos do desenvolvimento, na esquizofrenia e no transtorno afetivo bipolar. Quando o TOC na infância e adolescência é comórbido com outros transtornos ansiosos - como as fobias, o transtorno do pânico ou o transtorno de ansiedade generalizada - ocorre uma convergência terapêutica. Nesses casos, apresenta grande benefício o uso de inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS) em conjunto com a TCC - sendo esta adaptada também aos sintomas do transtorno ansioso concomitante94 • Nos casos em que estão presentes transtornos de tiques e ST, a primeira escolha de tratamento consiste em terapias comportamentais específicas, como a RH 89 . Farmacologicamente, esses pacientes demonstram boa resposta ao uso de a -agonistas ou na potencialização do ISRS com neurolépticos95 • Pacientes portadores de TDAH são preferencialmente tratados com psicofármacos estimulantes, como o metilfenidato96.
Conclusão O TOC é um transtorno multifatorial cuja etiologia não é totalmente elucidada. É uma condição prevalente e potencialmente incapacitante e mais de 50% dos seus
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portadores apresentam seu início na infância e adolescenc1a. Se, em alguns casos, o TOC na infância e adolescência se aproxima daquele do adulto, em outros ele se distancia a ponto de ter caraterísticas ímpares. O subgrupo de TOC chamado de "início precoce" apresenta predominância do sexo masculino e características fenotípicas específicas como: presença de fenômenos sensoriais; sintomas de simetria, agressão, sexuais e religiosos; comorbidade com tiques e TDAH. Ausência de crítica e aparente egossintonia dos soe também são particularidades do TOC na infância e adolescência que dificultam o seu diag, . nostlco e tratamento. O tratamento do TOC na infância e adolescência envolve psicoterapias cognitivas e comportamentais, acessando paciente e seus familiares, bem como medicamentos serotoninérgicos. Perspectivas futuras incluem a identificação de endofenótipos que permitam o diagnóstico precoce e estratégias de prevenção para o TOC. A
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Questões 1. A respeito das características sobre o TOC na infância e adoa)
b)
c)
d)
e)
lescência assinale a alternativa falsa: Pesquisas recentes dividem o TOC em dois subgrupos, início precoce e início tardio, visando a compreender (entender) melhor o transtorno. Apesar de estudos mostrarem que existem dois picos de idade para o aparecimento do TOC, tanto em crianças quanto em adultos, a incidência entre indivíduos do sexo masculino é significativamente maior. A prevalência do TOC entre crianças e adolescentes é, aproximadamente, em torno de 1 a 2% e há um aumento da incidência de acordo com a idade. Mais da metade dos pacientes com TOC tem início dos sintomas antes dos 18 anos, o que reforça a importância de se estudar e entender esta patologia nesse grupo. A distribuição bimodal em diversos estudos mostra que existem dois picos de aparecimento do transtorno: um dos 7 aos 12 anos e outro ao redor dos 21 anos.
Texto para as questões 2 e 3: Paciente do sexo masculino, 1O anos, vem ao consultório trazido por seus pais. Estes relatam que há um ano notaram que seu filho apresentava comportamentos "estranhos". Dizem que por diversas vezes ao dia o paciente tem um "pressentimento" de que os pais sofrerão algum tipo de acidente ou de que serão sequestrados em meio à sua rotina. Por esse motivo, o filho telefona para seus pais constantemente, o que consome cerca de 1 hora do seu dia. Eles dizem que seu filho está com discreta queda do seu rendimento escolar devido a estes sintomas - os "pressentimentos" interferem em sua atenção nas aulas e nas provas. Vêm encaminhados de um médico generalista, que não descobriu alterações clín icas que justificassem tal quadro.
Em entrevista com o paciente, a investigação psicopatológica encontra que tais "pressentimentos" invadem a consciência do paciente em forma de imagens de agressão e violência contra seus pais. Logo após a ocorrência dessas imagens, refere uma sensação de incompletude, descrita como "algo está faltando". As sensações e as imagens são atenuadas ou aliviadas quando o paciente liga para seus pais e se certifica de que "está tudo bem". Além disso, em outras situações em que os sintomas o atingem, o alívio é produzido pelo hábito de checar se a válvula de gás está fechada ou se a porta do ambiente onde se encontra está tran cada. O paciente ainda diz que vem experimentando tais situações há cerca de 2 anos, mas tentou escondê-las o quanto pôde por se sentir envergonhado pelos seus sintomas. Diz que perdeu diversos amigos, pois os mesmos se afastaram por achá- lo "estranho".
2. Assinale a alternativa que melhor define o diagnóstico do paa) b) c) d) e)
ciente: Transtorno de personalidade obsessiva-compulsiva. Transtorno obsessivo-compulsivo (com insight pobre). Transtorno obsessivo-compulsivo (com presença de fenômenos sensoriais). Transtorno de tiques. Síndrome de Tourette.
3. Considerando que o caso foi classificado como leve, assinale a) b) c) d) e)
qual o primeiro tratamento para o paciente neste momento: Terapia cognitivo-comportamental (TCC). Reabilitação neuropsicológica. Farmacoterapia com sertralina. Farmacoterapia com clom ipramina. Farmacoterapia combinada com TCC.
4. Chega ao consultório um paciente de 7 anos, sexo masculino, com diagnósticos de transtorno de tiques e TOC moderado. O diagnóstico foi realizado há 1 ano, quando iniciou tratamento com terapia cognitivo-comportamental e sertralina por dose e tempo adequados. Apesar de redução significativa dos seus sintomas, a resposta apresentada foi apenas parcial. O paciente ainda experimenta sofrimento e prejuízo sócio-ocupacional devido às suas obsessões e compulsões. Assinale qual a melhor alternativa terapêutica neste momento: a) Aumento da dose de sertralina. b) Troca da sertralina por fluoxetina. c) Troca da sertralina por clomipramina. d) Potencial ização com clom ipramina. e) Potencial ização com neurolépico. 5. Pai traz criança de 8 anos que diariamente lava, seca e guarda as louças, além de lavar a pia: "não consegue ver nada sujo". Também faz parte da rotina varrer a casa e passar pano no chão. Troca de roupa na hora se esta fica suja. Se contrariado, irrita-se e chora. Quando o pai o questiona, a criança respon-
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a) b) c) d) e)
de vagamente que precisa fazê-lo para ficar "aliviado". A mãe gosta do comportamento do filho, dizendo que ele é "bonzinho" e que ajuda nos deveres de casa. O fato de o comportamento da criança não ser precedido de um pensamento intrusivo exclui o diagnóstico do TOC, devendo-se pensar no comportamento como uma rotina saudável ensinada pela mãe. Pode-se dizer que o conteúdo ligado ao comportamento da criança está comumente associado ao TOC na faixa pediátrica; este conteúdo também é um tema da abordagem dimensional. Este é um exemplo da adequação dos sintomas na rotina familiar, facilitando o diagnóstico ao contrário de outros casos em que a criança esconde seus atos. Somente I é verdadeira. I e 111 são verdadeiras. Somente li é verdadeira. Todas são verdadeiras. Todas são falsas.
6. Assinale a alternativa incorreta: a) Um fator que dificulta o diagnóstico nas crianças com TOC é o baixo insight que muitos apresentam em relação aos sintomas. b) O início do TOC na infância e adolescência é definido pelo DSM -IV como "primeiros sintomas que causem algum prejuízo na rotina da criança". c) Obsessões comuns na infância e adolescência são simetria, ordem ou exatidão e preocupação com eventos catastróficos; já compulsões comuns são colecionismo e checagem de portas e armários. d) Os fenômenos sensoriais podem ocorrer na infância, mas não são obrigatórios para o diagnóstico do TOC. e) O transtorno de tiques está associado ao TOC na infância, assim como a síndrome de Tourette. No adu lto, os transtornos ansiosos e depressivos são as comorbidades mais encontradas.
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
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66 TRANSTORNO OBSESSIVO-COMPULSIVO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA
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Transtornos Dissociativos, Somatoformes e Síndrome da Fadiga Crônica Daniela M eshulam We rebe Guilherme Funaro
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 904 Transtornos dissociativos, 905
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Histórico, 905
1. Conhecer o padrão de acometimento da síndrome de Tourette (ST) e dos transtorn os de tiques (TT) nas diversas populações.
Classificação, 905 Teorias explicativas, 905
2. Distinguir as principais hipóteses etiopatogênicas para a ST e TI.
Epidemiologia, 907 Amnésia dissociativa, 907 Transtorno de personalidade múltipla, 907 Distúrbio de despersonalização, 908 Fuga dissociativa. 908 Transtorno dissociativo sem outras especificações, 909 Transtornos somatoformes, 909 Transtorno de somatização, 909 Hipocondria, 911 Síndrome da fadiga crônica, 911 Referências bibliográficas, 912
Introdução A histeria já foi descrita na antiguidade. Platão descreveu quadros histéricos em 400 a. C., sugerindo que o útero seria como um animal ávido por ter filhos. Quando isso não ocorria, ele se ressentia, causando transtornos para a mulher. Hipócrates e Galena fizeram as primeiras descrições sobre a histeria, sendo o deslocamento do útero considerado fator importante na sua origem. A doença seria produzida pelo estancamento de uma substância sexual, produzindo efeitos tóxicos. Em 1681, Thomas Sydenham descreveu o primeiro caso de histeria masculina, tendo importância crucial na mudança de categoria no que concerne a histeria e hipocondria como doenças psicológicas da mente e não do corpo. Jean-Martin Charcot evidenciou a importância de fatores psicogênicos nas crises de histeria convulsiva e foi
3. Reconhecer o quadro clínico de ST e n e distingui-los de suas principais comorbidades. 4. Conhecer os principais tratamentos atualmente disponíveis.
defensor da hipótese de que a histeria e a hipocondria teriam origem no sistema nervoso. Porém, Sigmund Freud, pupilo de Charcot, foi quem promoveu grande mudança ao sugerir que sintomas físicos de origem inexplicável teriam base primariamente psicológica. As três formas de transtornos (somatoforme, dissociativo e conversivo) fazem parte do "espectro histérico", sendo considerados transtornos psicorreativos (ou seja, constituem uma resposta emocional a um evento traumático), estando atrelados intimamente ao nível sociocultural, econômico e educacional, que modula o quanto de estresse emocional tomará a forma de queixa somática. Conversão, dissociação e somatização são quadros com componente histérico evidente. A somatização seria um salto do psíquico para o orgânico, com repercussão de diversas queixas somáticas em múltiplos sistemas orgânicos (p. ex., sistema cardiovascular, respiratório e digestivo). Antigamente denominada síndrome de Briquet, no DSM-III é considerada o protótipo do transtorno somatoforme. A conversão também corresponde a um salto do psíquico para o orgânico, que costuma ser precedido por conflitos e outros estressares, com repercussão no sistema de comunicação do indivíduo com o mundo, afetando as funções motoras voluntárias e/ ou sensoriais. Já no
67 TRANSTORNOS DISSOCIATIVOS, SOMATOFORMES E SÍNDROME DA FADIGA CRÔNICA
transtorno dissociativo, o salto é do psíquico para o próprio psíquico, ocasionando ruptura nas funções geralmente integradas de consciência, identidade, memória e percepção do ambiente.
Transtornos dissociativos Histórico Em 1646, Paracelsus fez a primeira descrição médica de um indivíduo com personalidades múltiplas. Tempos depois, Benjamin Rush, considerado o pai da psiquiatria americana, propunha a dualidade da personalidade como uma desconexão entre os dois hemisférios cerebrais. No final do século XIX, Pierre Janet, na França, e Prince e William James, nos Estados Unidos, iniciaram uma discussão sobre mecanismos neurológicos e psicológicos subjacentes aos casos de múltipla personalidade, amnésia e fuga. Os modelos médicos da época evocavam fenômenos dos mais variados, como sonhos, hipnose, sonambulismo, epilepsia, entre outros. A teoria e pesquisas de Janet apontavam para uma ênfase no papel de antecedentes traumáticos de dissociação, vistos como a funda ção para uma visão moderna desse fenômeno, bem como propunham um modelo no qual fatores constitucionais e ambientais coincidiriam para produzir um resultado psicopatológico dissociativo. Freud e Breuer foram influenciados também pelo trabalho de Janet em Estudos na histeria (1883), e o caso Anna O. claramente apresenta sintomas dissociativos.
pesquisa modernos que relacionam dissociação e trauma. Ignora-se também a possível sobreposição de natureza fenomenológica de sintomas dissociativos patológicos, como amnésia, fuga e distúrbio de identidade múltipla, bem como inúmeros sintomas não inclusos nos critérios diag, . . nostiCos atua1s. Alguns sintomas são essenciais para se chegar a um correto diagnóstico. Por exemplo, pacientes com amnésia ou fuga dissociativa podem descrever despersonalização; sensação de processo mental separada do resto do corpo; desrealização; experiência em que o mundo parece estranho e irreal; sintomas conversivos; entre outros. Cria-se uma situação classificatória diferente, pois muitos pacientes acabam por ser classificados como portadores de distúrbio dissociativo SOE porque diversos sintomas vão além do critério diagnóstico para amnésia ou fuga dissociativa, embora alguns deles estejam descritos como traços associados.
Teorias explicativas Teoria psicológica
Um dos expoentes das teorias psicológicas, Janet fala na predisposição de certos indivíduos em dissociar diante de situações estressantes. Nas memórias decorrentes desses episódios surgem ideias subconscientes, que emergem na forma de automatismos psicológicos com paralisias histéricas, anestesias, entre outras manifestações. Breuer e Freud também falam na divisão da mente e na emergência de estados anormais de consciência diante de situações ameaçadoras.
Classificação Teorias neurocognitivas
Também chamado de neurose histérica ou distúrbio dissociativo ( conversivo) pela CID-1O, o transtorno dissociativo (assim denominado pelo DSM-IV) caracterizase pela interrupção da integração das funções da consciência, da memória, da identidade e da percepção do ambiente, podendo ser súbito, gradual, transitório ou crônico. Acredita-se que o fenômeno dissociativo seja uma defesa contra um trauma psíquico importante, por isso ocorre comumente após desastres, perdas e guerras, a fim de preservar outras funções psicológicas importantes. Há um grande debate sobre se a dissociação dita patológica é um extremo mais duradouro da dissociação normal ou se é uma forma distinta. Há algumas divergências entre os dois sistemas de classificação, com a CID-1O abrangendo distúrbios dissociativos e conversivos como tendo um mesmo mecanismo subjacente; portanto, constituindo-se na perda parcial ou completa da integração normal entre a memória, a consciência de identidade, sensação imediata e controle dos movimentos corporais, por exemplo. O diagnóstico categoria! dos distúrbios dissociativos foi desenvolvido a partir de um sistema nosológico baseado no conceito prévio de histeria e não em modelos de
Acredita-se que o processo dissociativo represente um problema correlacionado ao hipocampo, responsável pelo armazenamento e decodificação da memória episódica, dita também memória autobiográfica. Diz-se tam bém que a serotonina age pós-sinapticamente na amígdala, sintetizando encefalinas que modulam os afetos associados com experiências amedrontadoras, alterando a consolidação de memórias potencialmente traumáticas, como um sistema de defesa dissociativo. Teoria traumogênica
A hipótese da teoria traumogênica baseia-se em alguns dados, como a alta prevalência de traumas na infância em pacientes com distúrbios dissociativos, ou mesmo histórico de abuso infantil, alta prevalência de tal distúrbio em veteranos de guerra com estresse pós-traumático ou de reações dissociativas agudas em desastres. Alguns estudos demonstram a associação de transtornos dissociativos a abusos na infância, principalmente físicos, mais do que sexuais 1 • Por outro lado, pesquisas apontam para a relação entre abuso sexual na infância e transtorno dissociativo na vida adulta, demonstrando que
905
906
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro I
•
SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNDROMES PSICOPATOLÓGICAS
Critérios da CID-1O para transtorno dissociativo (conversivo) (World Health Organization, 1993)
G1. Não deve haver evidência de um distúrbio físico que possa explicar os sintomas desse transtorno (embora distúrbios físicos possam estar presentes suscitando outros sintomas). G2. Há associação temporal entre o início dos sintomas do distúrbio e eventos estressantes, problemas ou necessidades. Amnésia dissociativa A. O critério geral para distúrbio dissociativo deve ser preenchido. B. Deve haver amnésia, parcial ou completa, para eventos recentes ou problemas que foram ou ainda são traumáticos ou estressantes. C. A amnésia é muito extensa ou persistente para ser explicada por simples esquecimento (embora sua profundidade e extensão varie muito de um acesso a outro) ou por simulação intencional. Fuga dissociativa A. O critério geral para distúrbio dissociativo deve ser preenchido. B. O indivíduo submete-se a uma inesperada, porém organizada, jornada para longe de casa ou de lugares comuns de trabalho, atividades sociais, durante a qual cuidados pessoais são preservados. C. Há amnésia, parcial ou completa, para a jornada, que também preenche o critério C para amnésia dissociativa. Estupor dissociativo A. O critério geral para distúrbio dissociativo deve ser preenchido. B. Há profunda diminuição ou ausência de movimentos voluntários, discurso e de responsividade normal a luz, barulho e toque. C. Tônus muscular normal, estática postura! e respiração (frequentemente com movimentos oculares coordenados limitados) estão mantidos. Transe e distúrbios possessivos A. O critério geral para distúrbio dissociativo deve ser preenchido. B. Quaisquer dos seguintes sintomas devem estar presentes: 1) Transe. Há alteração temporária do estado de consciência, demonstrada por quaisquer dois dos seguintes: a) Perda do senso usual de identidade pessoal. b) Estreitamento da atenção do que o cerca imediatamente, da periferia ou estreitamento não usual e foco seletivo em estímulos ambientais. c) Limitação de movimentos, postura e fala à repetição de um pequeno repertório. 2. Distúrbios de possessão. O indivíduo está convencido de que está tomado por um espírito, poder, deus ou outra pessoa. C. 1) e 2) do critério B devem ser não desejados e problemáticos, ocorrendo fora ou sendo um prolongamento de estados similares em contextos religiosos ou outras situações culturalmente aceitas. O. Cláusula excludente mais comumente utilizada. O distúrbio não ocorre ao mesmo tempo que esquizofrenia ou distúrbios relacionados, ou transtornos afetivos com alucinações e delírios. Distúrbios dissociativos motores A. O critério geral para distúrbio dissociativo deve ser preenchido. B. Quaisquer dos seguintes critérios devem estar presentes: 1) Perda completa ou parcial da capacidade de realizar movimentos normalmente sob controle voluntário Oncluindo fala). 2) Inúmeros ou variados graus de descoordenação ou ataxia, ou incapacidade de permanecer em pé sem auxílio. Convulsões dissociativas A. O critério geral para distúrbio dissociativo deve ser preenchido. B. O indivíduo exibe súbita e inesperadamente movimentos espasmódicos, lembrando quaisquer das variedades de convulsão epiléptica, porém não seguida por perda de consciência. C. O sintoma do critério B não está acompanhado por mordedura da língua, contusão séria ou laceração em decorrência da queda, ou incontinência . ' . unnana. Anestesia dissociativa e perda sensorial A. O critério geral para distúrbio dissociativo deve ser preenchido. B. Quaisquer dos seguintes sintomas devem estar presentes: 1) Perda parcial ou completa de qualquer sensação cutânea normal em parte ou totalidade do corpo (especificar. toque, vibração, calor, frio e agulhada). 2) Perda completa ou parcial de visão, audição ou olfato (especificar). Distúrbio dissociativo (conversivo) misto Outros distúrbios dissociativos (conversivos) Esse código residual pode ser usado para indicar outros estados dissociativos e conversivos que preenchem os critérios G1 e G2 para distúrbio dissociativo (conversivo). porém não preenchem critérios para distúrbios dissociativos listados previamente. Síndrome de Ganser (respostas aproximadas). Distúrbio de múltipla personalidade. A. Duas ou mais personalidades distintas existentes em um indivíduo, só uma evidente por vez. B. Cada personalidade tem suas próprias memórias, preferências e padrões comportamentais e, de tempos em tempos (de forma recorrente). assume total controle do comportamento do indivíduo. C. Há incapacidade de recordar informação pessoal importante, sendo muito extensa para ser explicada por esquecimento comum. O. Os sintomas não se devem a distúrbios mentais orgânicos (p. ex., em distúrbios epiléticos) ou distúrbio relacionado ao uso de substância psicoativa (p. ex., intoxicação ou retirada). Distúrbio dissociativo (conversivo) transiente, ocorrendo na infância e adolescência. Outros distúrbios dissociativos (conversivos) especificados. Distúrbio dissociativo (conversivo) inespecífico
67 TRANSTORNOS DISSOCIATIVOS, SOMATOFORMES E SÍNDROME DA FADIGA CRÔNICA
quanto mais cedo o abuso, maior a chance de o paciente desenvolver o transtorno dissociativo, assim como quanto mais frequente, mais intenso e de maior gravidade ' . Teoria psicossocial
A teoria psicossocial surgiu da dificuldade de confirmar relatos prévios de abuso e da possibilidade de que os distúrbios dissociativos possam ser parte de comportamentos patológicos, a fim de demandar cuidados e proteção por parte do paciente, por exemplo.
Epidemiologia Um estudo sobre distúrbio dissociativo realizado na população em geral de Winnipeg, no Canadá, aponta para uma prevalência de todos os distúrbios dissociativos da ordem de 12,2%. Um nova análise taxonométrica dos dados apontou que 3,3% da população apresentava dissociação patológica. Mais recentemente, em Shangai, na China, uma pesquisa conduzida com 423 pacientes psiquiátricos internados, 304 não internados e 618 da população geral, utilizando a versão chinesa da Dissociative Experiences Scale e da Dissociative Disorders Interview Schedule, encontrou distúrbio dissociativo em 24 respondedores, sendo os não internados com as maiores taxas de abuso físico ou sexual e dissociação patológica2 • Estudos com soldados relataram prevalência de amnésia dissociativa em 5 a 8% dos participantes. Publicouse também que 80% dos pacientes psiquiátricos internados sofriam de despersonalização, mas só em 12% os sintomas perduraram e em nenhum dos casos esse era o ' . . umco smtoma. O fenômeno de experiência dissociativa não possui estratificação social específica, ocorrendo igualmente entre homens e mulheres, pessoas com renda familiar maior ou menor, empregados e desempregados, independentemente do nível educacional, local de nascimento, religião ou número de pessoas no ambiente familiar. Contudo, a incidência de sintomas dissociativos tende a diminuir com a idade3 • Um estudo demonstra que entre os pacientes internados em enfermarias psiquiátricas, 15% apresentam níveis de sintomas dissociativos acima da média geral, sendo pouco diagnosticado por psiquiatras4 .
Amnésia dissociativa O traço essencial da amnésia dissociativa refere-se à incapacidade de recordar informações pessoais importantes, geralmente de natureza traumática ou estressante, sendo muito extensa para ser considerada esquecimento normal. Não é resultante do efeito direto de substância ou condição neurológica. Tal distúrbio pode ser baseado em mudanças neurobiológicas por exposição a estresse traumático e não ocorre exclusivamente durante o curso
do distúrbio dissociativo de identidade, fuga dissociativa, transtorno de estresse pós-traumático, estresse agudo ou transtorno de somatização. Amnésia circunscrita, amnésia generalizada, amnésia contínua e amnésia sistematizada são os tipos mais comuns. A amnésia dissociativa pode ser confundida com inúmeros diferenciais, como uso de drogas, episódio psicótico, demência, delirium, outros distúrbios amnésticos, transtornos convulsivos, transtorno pós-traumático com lesão craniana, entre outros. Tratamento
O tratamento da amnésia dissociativa envolve a retirada do paciente do ambiente estressar e a utilização de terapia cognitiva e hipnose, a fim de integrar o conteúdo dissociado. Pode-se também valer do uso de drogas (p. ex., diazepam e amoarbital), como facilitadores farmaco lógicos de entrevistas.
Transtorno de personalidade múltipla A personalidade múltipla é considerada um transtorno dissociativo de identidade, relacionado com intenso trauma infantil, sendo tida como a forma mais grave dos transtornos dissociativos. Caracteriza-se pela presença de duas ou mais identidades distintas ou estados de personalidade que assumem controlem do comportamento do indivíduo, acompanhado por incapacidade de recordar informação pessoal importante, sendo muito extensa para ser considerada esquecimento comum. As identidades (ou estados de personalidade) diferem umas das outras por terem traços relativamente duradouros na forma de se relacionar com o ambiente. Tais pacientes geralmente recebem inúmeros diagnósticos prévios até que seja feito o correto diagnóstico. Comumente exibem depressão transiente, comportamento suicida, alternância de humor e distúrbios do sono. Apresentam uma série de outros distúrbios dissociativos, como despersonalização e fuga. A mudança de personalidade geralmente associa-se com ansiedade e seus comemorativos somáticos (palpitação, sudorese e tremor). Além disso, podem também ocorrer sintomas pseudoneurológicos, como cefaleia, síncope, parestesia e diplopia, além de outros associados ao sistema cardiorrespiratório e gastrointestinal. O relato pode ainda ser permeado de elementos alucinatórios e com elementos que lembram uma psicose. Geralmente faz diferencial com inúmeras outras condições, como transtorno bipolar, esquizofrenia, depressão psicótica, síndrome de Münchausen e epilepsia parcial complexa. Tratamento
O tratamento de tal condição ainda é muito controverso, com propostas diversas: desde integrar as personalidades; procurar harmonia entre elas ou deixá-las de lado; focar em uma melhor adaptação; ou encará-las como me-
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ros artifícios e focar no tratamento de outros sintomas. Pode-se valer de psicoterapia, incluindo uma gama de intervenções psicoterapêuticas e terapia cognitiva, tendo em vista as inúmeras distorções cognitivas presentes em tais casos. Geralmente rapidez no acesso ou tratamento de tal distúrbio ocasiona ansiedade no paciente, que costuma ser autoritário e impaciente, devendo -se valer então, também, de terapia suportiva, principalmente quando há restrições com relação a uma proposta integrativa. Durante o contato breve, tais pacientes costumam conseguir suprimir a multiplicidade, porém em entrevistas extensas costumam manifestá-las. A hipnose pode ser uma ferramenta útil para acessar a multiplicidade de personalidades e para acessar eventos estressantes sem a carga de ansiedade que isso acarreta. Deve-se explorar ao máximo cada uma das facetas do paciente. Como qualquer condição crônica, não costuma haver remissão completa. Apesar do início na infância, se manifestará de forma complexa na adolescência, podendo apresentar introversão, depressão e até traços histriônicos, com homens geralmente envolvendo-se com questões relacionadas à violência. Medicações podem ser úteis no tratamento de condições associadas, como antidepressivos, benzodiazepínicos e anticonvulsivantes neurolépticos, para tratar ansiedade, sintomas de estresse pós-traumático, sintomas intrusivos e de agressividade.
Distúrbio de despersonalização O traço essencial desse distúrbio traduz-se pela sensação de distanciamento ou estranhamento com relação a si próprio. Pode-se experimentar uma sensação de automatismo, como que em um sonho ou vendo a si próprio como em um filme. Tem -se sensação de não controle sobre suas ações. Esse transtorno é muito comum em populações normais, associado ao uso de drogas, cefaleias ' sltuaçoes . - estressantes. ou mesmo apos Geralmente a queixa ocorre quando se trata de um sintoma subsidiário, por exemplo, a outras patologias, como transtornos ansiosos, depressivos, transtorno de personalidade borderline, esquizofrenia, como aura de crise epiléptica ou mesmo durante o ictus, aterosclerose cerebral, entre outros.
Tratamento Quando o distúrbio está relacionado a um sintoma subsidiário, convém tratar a causa de base. Há alguma evidência do tratamento bem-sucedido com fluoxetina e da ineficácia da fluvoxamina e da lamotrigina. Muitos tipos de psicoterapias podem também ser úteis, quando há foco na recuperação de experiências traumáticas associadas ao episódio dissociativo.
Fuga dissociativa O traço essencial da fuga dissociativa é uma viagem, repentina e inesperada para longe de casa ou dos locais que costuma frequentar. O indivíduo continua fazendo suas atividades diárias, mas não consegue recordar parte ou todo o seu passado. Geralmente está acompanhada de confusão quanto à identidade pessoal ou mesmo pode-se assumir uma nova identidade. Tal distúrbio não ocorre exclusivamente durante o curso de um distúrbio dissociativo de identidade e não se explica pelo efeito fisiológico direto do uso de substâncias ou condição médica geral. Os sintomas devem causar estresse clinicamente significativo ou prejuízo social, ocupacional ou em outras áreas importantes do funcionamento. Associa-se com eventos traumáticos, direcionando a um estado alterado de consciência, ou mesmo vivência de emoções ou impulsos intensos, encarados de forma conflituosa pelo paciente. Por isso, é muito descrito em indivíduos do sexo masculino em tempos de guerra e conflitos. As crises podem durar de minutos a meses. Geralmente, após a fuga experimenta-se confusão, perplexidade, desrealização, despersonalização e amnésia. Quanto menos dissociado fica o paciente, mais emergem trans tornos do humor, ideação suicida, sintomas ansiosos, entre outros. A fuga dissociativa difere de um quadro de amnésia dissociativa, no qual o indivíduo pode sair vagando, pois nesse caso a viagem tem um propósito. Está associada também a distúrbio dissociativo de identidade e pode ocorrer quadro semelhante relacionado a quadro de epilepsia parcial complexa, porém geralmente com comportamento bizarro, confusão mental e estereotipias motoras. Outros diferenciais incluem condições médicas gerais, intoxicações, delirium, demência, fase maníaca do distúrbio bipolar, geralmente envolvendo ideias de grandiosidade na fuga, distúrbio esquizoafetivo, esquizofrenia, geralmente com ideias psicóticas envolvidas, incomuns em pacientes com fuga dissociativa e distúrbio factício.
Tratamento O tratamento envolve psicoterapia de orientação psicodinâmica com foco em ajudar o paciente a recuperar suas experiências e memórias, podendo-se valer de hipnose e entrevista com auxílio farmacológico. Deve-se ter em vista a potencialidade de ideação suicida emergente, com a recuperação de fatos e memórias, necessitando muitas vezes de abordagem multiprofissional. Além disso, quando surge uma nova identidade, na tentativa de abarcar todas as vivências e experiências traumáticas, de forma dissociada, o foco terapêutico deve se voltar para a tentativa de integração.
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Transtorno dissociativo sem outras especificações Entram nessa categoria todos os eventos dissociativos que não se encaixam em nenhuma outra classificação de transtornos dissociativos e não preenchem exclusivamente os critérios diagnósticos para transtorno agudo de estresse, síndrome do estresse pós-traumático e transtorno de somatização, que incluem sintomas dissociativos entre os seus critérios. Inclui alucinação dissociativa, sonambulismo, experiências extracorpóreas, transes dissociativos, possessões e síndrome de Ganser. Na alucinação dissociativa, uma espécie de estresse pós-traumático, geralmente associado com histórico de abuso sexual e/ou físico, pacientes do sexo feminino podem experimentar alucinação audiovisual, transes, comportamento suicida e automutilação. Já os do sexo masculino apresentam-se com explosões de agressividade e autoagressão, mutilação e ficam aparentemente fora de contato com a realidade. Neurolépticos são desaconselháveis, podendo agravar a dissociação. Alguns antidepressivos podem ser úteis para depressão associada, insônia, despersonalização e impulsividade. Transes fazem parte do universo cultural de muitos povos. Podem ser precedidos por intensa emoção, associados com a convicção de possessão, por um espírito, poder divino ou demoníaco, comportamento dissociado, de caráter temporário, com perda da identidade pessoal, seguida de amnésia para o evento. O transe dissociativo, ou possessão, não pode ser aceito como parte intrínseca do universo cultural ou da prática religiosa, pois deve causar prejuízos ao indivíduo. Ele não ocorre exclusivamente durante o curso de um distúrbio psicótico e não é resultado do uso de substância ou condição médica geral. Na síndrome de Ganser, o indivíduo apresenta sintomas relacionados a demência ou psicose, muito exagerados ou inconsistentes, com pararrespostas, turvação da consciência, amnésia global e declínio de processos intelectuais, fazendo-se necessário diferenciá-la de distúrbio factício. Em relatos de caso, o tratamento mais eficaz foi internar e prover ambiente seguro ao paciente. Deve-se explorar possíveis estressares e diz-se que baixas doses de neurolépticos são benéficas. Geralmente, o indivíduo é amnéstico para o período da crise.
Transtornos somatoformes O termo "somatoforme" deriva do grego soma, que significa "corpo", abrangendo um grupo variado de doenças com sinais e sintomas corporais como principal componente, fundamentalmente influenciado por um distúrbio da mente, porém com pouca compreensão entre a interação que se processa no binômio mente e corpo. Sabe-se que as avaliações física e laboratorial não acrescentam dados relevantes correlacionados às queixas do paciente; no entanto, ele sofre, crendo principalmente que seu sofrimento venha de uma doença ainda não detecta-
da. Pacientes somatizadores são usuários frequentes de serviços médicos e costumam ser fonte de frustração para médicos, que não reconhecem a real natureza de suas queixas. Em geral, eles não aceitam que seu sofrimento físico tenha qualquer correlação com o universo psíquico. Muitos deles podem de fato demonstrar evidência de uma doença biológica, porém tendem a responder exageradamente aos seus sintomas e limitações impostas. Inúmeros fatores podem estar envolvidos na somatização. Por exemplo, o comportamento de adotar opapel de doente para receber cuidados pode ser uma fonte de manipulação de outras pessoas ou condição social, podendo ser uma forma de comunicação rudimentar, visto ser mais comum em populações com baixo nível sociocultural. Outro motivo relacionado é que a doença física é menos estigmatizante do que a psiquiátrica. Em termos de nosologia, somente em 1980 os distúrbios somatoformes foram agrupados, na terceira edição do DSM. Os sistemas classificatórios mais utilizados são ainda o DSM-IV e CID-1O, porém há várias outras formas de compreender esse transtorno. De fato é uma ilusão crer que tais classificações categoriais abrangem toda a complexidade desse distúrbio, que pode ser heterogêneo e fluido no que concerne a apresentação clínica e etiologia.
Transtorno de somatização Há relatos sugestivos de transtorno de somatização desde o Egito antigo. Em outros tempos, o termo hysteria fazia menção a tal síndrome, erroneamente atribuída exclusivamente ao sexo feminino, e já no século XVII Sydenham reconhecia a importância de fatores psicológicos em sua genese. Em 1859, Briquet, médico francês, descreveu em uma monografia o caso de uma mulher jovem com múltiplas queixas somáticas em diversos órgãos, tendo comentado o curso crônico da doença, que teve início antes dos 20 anos. Essa é a origem do sinônimo para essa síndrome, conhecida também por síndrome de Briquet, denominação cunhada no DSM-III. O termo somatização, primeiramente utilizado por Stekel em 1943, define um transtorno corporal que surge como expressão de uma neurose profunda, entendendose simultaneamente a conflitos inconscientes, considerando -se sua importância para o diagnóstico correto. Em geral, pacientes com esse transtorno provêm de núcleos familiares caóticos, instáveis, muitas vezes com histórico de uso de substâncias ilícitas. Há também evidências, provenientes de estudos com gêmeos, que enfatizam um pos sível componente genético familiar, ainda que não claramente, na gênese dessa preocupação, muitas vezes com amplificação de sensações corpóreas. Estima-se uma prevalência na população geral de 0,2 a 2% no sexo feminino e 0,2% no sexo masculino. Porém, as incidências são muito variáveis, dependendo da popuA
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lação estudada e das técnicas utilizadas. Apesar de ser mais comum no sexo feminino, especula-se até que ponto isso não possa ser decorrente de um conceito antigo de que somente se encontraria tal condição entre mulheres (o termo hysteria originalmente remete a útero), mas de qualquer forma o protótipo da doença ainda é de paciente do sexo feminino, não casada, não branca, de área rural com educação formal precária. Tal protótipo também evidencia a importância da construção sociocultural do corpo e mente em dizer o que é ou não aceitável de ser expresso, variando conforme a classe socioeconômica e o nível educacional. Diversos outros transtornos psiquiátricos costumam coexistir com esse distúrbio, como depressão, ansiedade, uso abusivo de substâncias e transtorno de personalidade. Deve-se sempre atentar para o diferencial com doenças orgânicas, principalmente em pacientes multissintomáticos, sobretudo no que concerne a doenças sistêmicas com queixas flutuantes, como as que ocorrem em casos de lúpus eritematoso sistêmico, esclerose múltipla, porfiria intermitente e doenças da tireoide. Em geral, alguns aspectos são mais a favor do diagnóstico de somatização do que a causa orgânica (p. ex., envolvimento de múltiplos órgãos e sistemas, início precoce e curso crônico, po-
rém sem evidência de sinais físicos e alterações estruturais). Segundo o DSM-IV, para se fazer o diagnóstico de transtorno de somatização, o indivíduo deveria ter uma história clínica de muitas queixas somáticas, envolvendo múltiplos órgãos, com início antes dos 30 anos de idade, ocorrendo em um período de vários anos, resultando em busca de tratamentos e levando a um comprometimento na vida social, ocupacional ou em outras áreas importantes de funcionamento. Tratamento Pacientes com somatização percebem-se como doentes e relutam em aceitar ajuda psiquiátrica ou reconhecer um fundamento psíquico em suas queixas. No entanto, cabe ao cuidador primário não reforçar tal papel de doente, porém evitar menosprezar as suas queixas e confrontá-lo primariamente com questões psicodinâmicas que envolvam o distúrbio, procedendo exames somente quando necessário e coordenando os cuidados e medicações. Alguns se beneficiam de terapias de grupo, uma vez que possuem pouco suporte social, permitindo maior conexão e reduzindo as necessidades de se sentir acolhido via sistema médico de saúde.
Quadro 11 A. Durante o período do transtorno, os critérios seguintes devem ser preenchidos: Quatro sintomas dolorosos: histórico de dor relacionada a no mínimo quatro dos diversos órgãos ou funções: cabeça, abdome, costas, articulações, extremidades, tórax. reto, durante a menstruação, durante a relação sexual ou durante a micção. Dois sintomas gastrointestinais: histórico de ao menos dois sintomas não limitados à dor: náusea, vômitos fora da gravidez, arrotos, diarreia ou intolerância alimentar. Um sintoma sexual: histórico de ao menos um sintoma sexual ou reprodutivo não limitado à dor: indiferença sexual, disfunção erétil ou ejaculatória, irregularidade menstrual, sangramento menstrual excessivo ou vômitos durante toda a gravidez. Um sintoma pseudoneurológico: histórico de ao menos um sintoma ou déficit, sugerindo uma condição neurológica não limitada à dor: sintomas conversivos como alteração da coordenação ou equilíbrio, paralisia ou fraqueza localizada, dificuldade para deglutir ou bola na garganta, afonia, retenção urinária, alucinações, perda da sensibilidade ao toque ou dor, diplopia, cegueira. surdez, convulsões, sintomas dissociativos como amnésia, ou perda da consciência ao desmaiar. B. Deve ainda ocorrer uma das seguintes situações: 1. Os critérios já citados, após investigação, não podem ser completamente explicados, por uma condição médica geral, ou efeito direto de substâncias (p. ex.: drogas de abuso ou medicações). 2. Quando há uma condição médica relacionada, as queixas físicas ou a incapacidade ocupacional ou social são excessivas em relação ao que se espera do histórico, do exame físico ou dos achados laboratoriais. C. Os sintomas não são produzidos intencionalmente ou simulados (como no transtorno factício ou na simulação). Transtorno somatoforrne indiferenciado A. Uma ou mais queixas físicas (p. ex.:fadiga, perda de apetite e queixas gastrointestinais) B. Condição 1ou 2: 1. Os critérios citados, após investigação, não podem ser completamente explicados por uma condição médica geral ou efeito direto de substâncias (p. ex., drogas de abuso ou medicações). 2. Quando há uma condição médica relacionada, as queixas físicas ou a incapacidade ocupacional ou social são excessivas em relação ao que se espera do histórico, do exame físico ou dos achados laboratoriais. C. Os sintomas causam prejuízo clínico, social, ocupacional ou em outras importantes áreas do funcionamento. O. A duração do distúrbio é de pelo menos 6 meses. E. O distúrbio não é mais bem explicado por outro transtorno mental (p. ex.. outro transtorno somatoforme, disfunção sexual, transtorno de humor, transtorno ansioso, distúrbio do sono ou distúrbio psicótico).
F. O sintoma ou déficit não é intencionalmente produzido ou simulado (como no transtorno factício ou simulação).
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Hipocondria Trata-se de um transtorno com múltiplas explicações para sua gênese, desde um comportamento condicionado na infância, associado a crianças que conviviam em um meio em que havia grande preocupação com doenças, até a visão de que se trata de uma forma de comportamento obsessivo compulsivo ou mesmo a incorporação de traços de personalidade neurótica, obsessiva e narcisista e outras explicações psicodinâmicas. O hipocondríaco geralmente possui uma preocupação excessiva com seu corpo, de tal modo que tudo que não diz respeito a ele tem um interesse diminuído, sob sua ótica, haja visto a tanatofobia, traço central nessa síndrome. São pacientes geralmente limitados no aspecto social e ocupacional. Costumam buscar mais explicações do que tratamento, estão frequentemente insatisfeitos com a atenção médica que recebem e julgam que ainda não diagnosticaram sua doença. Sentem alívio momentâneo quando reassegurados quanto à sua saúde, porém dentro de um curto período podem colocar tais convicções em dúvida e retornar ao médico. Os dados epidemiológicos são escassos, alguns deles apontam entre 4 e 25% na população em geral, outros entre 1,1 e 4,5% de prevalência de hipocondríase e 10% de crenças e temores hipocondríacos na população geral. O transtorno costuma ter início na idade adulta, não variando a sintomatologia conforme a idade nem sendo mais prevalente entre idosos, exceto que nessa faixa etária há mais comorbidade com depressão. A frequência é igual entre homens e mulheres e sugere-se maior prevalência em estratos com menor educação e renda. O diferencial mais comum deve ser feito com medo transiente de ter uma doença, sendo provável que ocorra quando em face de situações como doenças ou morte, bem como ter de fato uma doença não detectada. Acredita-se que 2 a 5% dos indivíduos diagnosticados com hipocondria são sintomáticos para outras condições médicas, pos teriormente diagnosticadas, fato que não justifica a utilização de técnicas diagnósticas potencialmente iatrogênicas. Além disso, ter uma doença clínica de fato, não exclui a coexistência de hipocondríase, e outros transtornos somatoformes podem se confundir com esse distúrbio. Essa população apresenta uma prevalência maior de comorbidade com depressão, ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo, ansiedade generalizada e transtorno do pânico do que a população geral. Deve-se atentar para quadros de humor com psicose associada, devendo-se excluir tais condições para chegar a um diagnóstico ade quado. Segundo o DSM-IV: a . Existe preocupação e temor de ter ou a ideia de padecer de uma doença séria, baseada na interpretação pessoal de sintomas corporais.
b. A preocupação persiste após avaliação médica apropriada e reasseguramento. c. A crença no critério A não é de natureza delirante e não é restrita a uma preocupação circunscrita sobre a aparência (como no transtorno dismórfico corporal). d. Os sintomas causam impacto clínico e prejuízo nas esferas social, ocupacional e outras importantes áreas de funcionamento. e. A duração do distúrbio é de no mínimo 6 meses. f. A preocupação não é mais bem explicada por transtorno da ansiedade generalizada, transtorno obsessivocompulsivo, transtorno do pânico, transtorno depressivo maior, ansiedade de separação ou outro transtorno so matoforme. g. Deve-se especificar qual a gradação do conhecimento do próprio distúrbio pelo doente, se subjetivamente o indivíduo acredita ou não ter uma crença excessiva, exagerada. Tratame nto O tratamento da hipocondria geralmente é de responsabilidade do clínico geral, visto que o hipocondríaco raramente vê seu problema como de ordem psiquiátrica e resiste a tal abordagem. O paciente deve ser visto então em intervalos regulares, a fim de não despertar sensação de abandono e de fortalecer o vínculo, e a cada nova que ixa deve ser feita uma breve análise, com o intuito de avaliar uma potencial doença orgânica. A relação médico-paciente deve ser agradável, permitindo que o paciente expresse seus sentimentos progressivamente. É necessário atentar sempre para o tratamento de comorbidades. Terapias de grupo são favoráveis, pois fornecem suporte social e interação, reduzindo assim o nível de ansiedade.
Síndrome da fadiga crônica A síndrome da fadiga crônica (SFC) consiste em uma condição clínica controversa, caracterizada por uma série de sintomas constitucionais e neuropsiquiátricos, que ocorre com diferentes manifestações O indivíduo deve apresentar fadiga "inexplicada" por mais de seis meses, acarretando moderada incapacidade física e mental. Pode ter distúrbios reumatológicos e sintomas neuropsiquiátricos, sem repercussão laboratorial. Geralmente, o início é abrupto, após quadro gripal. Muitos pacientes apresentam também anorexia, náuseas, sudorese noturna, tonturas, intolerância ao álcool e a psicotrópicos. Alguns deles passam a evitar relacionamentos sociais, sendo que um terço apresenta incapacidade total para o trabalho e outro terço consegue trabalhar por meio período. A SFC não está associada a aumento da mortalidade. A definição mais usada internacionalmente é a de 1994, pela revisão do CDC-(8):
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• Ao menos 6 meses de fadiga persistente, que diminui substancialmente o nível de atividade do indivíduo e no mínimo quatro dos seguintes sintomas: - diminuição de memória ou concentração; - dores de garganta; - glândulas doloridas; - músculos tensos e doloridos; - dores pluriarticulares; - cefaleias; - sono de má qualidade; - fadiga pós-sexual. Excluir doenças físicas ou psiquiátricas que possam estar causando os sintomas, como transtornos alimentares, transtornos psicóticos, transtorno bipolar, depressão melancólica e abuso de substâncias há dois anos do início da fadiga. Muitos transtornos psiquiátricos não são excludentes em relação à SFC. Existem doenças associadas, como fibromialgia, síndrome do intestino irritável e transtorno das articulações temporomandibulares. Os sintomas mais comuns são dores, fadiga persistente, dificuldades de sono e problemas cognitivos 10 • A síndrome da fadiga crônica possui diferentes definições, modelos etiológicos e tratamentos propostos. A fadiga é um sintoma muito comum (ocorre em mais de 55% da população), sendo tipicamente transitória, autolimitada e explicada por fatores circunstanciais. Ela acomete ao menos 20% dos pacientes que buscam tratamento médico, porém estudos demonstram que a síndrome da fadiga crônica é relativamente rara. As causas orgânicas da fadiga podem ser anemia e hipotireoidismo. Existem evidências de que esse distúr-
bio seja de origem genética. A prevalência da SFC, em vários estudos, é de aproximadamente 0,0007 a 2,8% da população geral e 0,0006 a 3% da população que procura serviços de saúde. A incidência é menor em crianças e adolescentes Estudos apontam para uma prevalência maior entre mulheres jovens e bem-sucedidas, com idade média entre 30 e 40 anos. O tratamento é baseado nos sintomas, podendo ser farmacológico, com terapia cognitiva e exercícios físicos.
Referências bibliográficas 1. Mulder RT, Beautrais AL, Jyce PR, Fergusson DM. Relationship between dissociation, childhood sexual abuse, childhood physical abuse, and mental illness in a general population sample. Am J Psychiatry 1998, 155: 806-811.
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Somatização na Infância
Marisol Montero Sendin
SUMÁRIO
Considerações iniciais, 913 Introdução, 914 Definições, 914 Apresentação clínica, 914 Epidemiologia, 916 Etiologia e patogênese, 916 Diagnóstico e comorbidade, 921 Diagnóstico diferencial, 924 Avaliação, 925 Tratamento, 926 Considerações finais, 928 Questões, 929 Referências bibliográficas, 930
Considerações iniciais Crianças com transtornos de somatização sofrem de uma variedade de sintomas físicos para os quais nenhuma condição médica pode ser encontrada, seja dor epigástrica, cefaleia, náuseas, urgência urinária ou evacuatória e outros transtornos semelhantes. Os sintomas parecem estar relacionados a situações que evocam ansiedade na criança, embora a criança nem sempre associe esses sintomas com a situação. A somatização tende a ocorrer em famílias com dificuldades de integrar sensações físicas, sentimentos e pensamentos. Os sintomas, que não são produzidos intencionalmente, podem surgir espontaneamente ou após uma doença leve. A criança é tipicamente convencida de que a indisposição é puramente física. Um resultado padrão é a criança usar, progressivamente, os sintomas a serviço da evitação de situações. Esse padrão pode se generalizar a ponto de a criança parecer debilitada pelos sintomas.
PONTOS-CHAVE
Ao final deste capítulo, você estará apto a: 1. Compreender os principais aspectos envolvidos nos transtornos de somatização. 2. Conhecer aspectos gerais da apresentação clínica da somatização na infância. 3. Aprender algumas das teorias etiopatogênicas dos transtornos somatoformes. 4. Entender a avaliação de crianças e adolescentes com sintomas clínicos para os quais não há causas médicas identificáveis. 5. Conhecer as principais abordagens terapêuticas dos transtornos de somatização.
O estado afetivo da criança é geralmente caracterizado por ansiedade e carência. A criança parece aflita e sofredora. A aflição pode se agravar se a criança achar que o cuidador questiona a veracidade da doença. Vendo-se desacreditada, a criança pode protestar barulhentamente, sentir-se injustiçada e ficar furiosa. Os pensamentos da criança geralmente se focam em um sintoma físico particular e frequentemente há um estreitamento de interesses, considerando-se as áreas compatíveis com a fase de desenvolvimento. Algumas crianças também experimentam numerosos medos característicos da infância. A convicção da criança da gravidade da doença levanta a preocupação sobre sérias consequências físicas, e, dependendo da idade da criança e do seu de senvolvimento cognitivo, essas preocupações podem ser vagas e mal definidas ou específicas e elaboradas. A criança pode sentir que está seriamente doente e corre o risco de morrer. Em termos de estado somático, é importante não ignorar a possibilidade de subdiagnos-
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ticar doenças físicas. Se essas condições forem encontradas ou não, é importante levar a sério a dor e a ansiedade da criança, a fim de prevenir uma escalada das queixas, que visam a demonstrar quão ruim o sofrimento é. Dependendo da dinâmica-alvo dos sintomas somáticos, as relações interpessoais da criança podem se manter razoavelmente intactas ou acarretar regressões graves. Nesse caso, as crianças podem ficar muito temerosas por terem de se separar dos cuidadores, tornando-se esquivas e isoladas. As relações interpessoais podem se caracterizar por um alto grau de dependência e evitação, especialmente aquelas que requerem exploração e curiosidadé.
Introdução Os casos de crianças com sintomas físicos nos quais não há causas físicas identificáveis são uma área complexa, caracterizada pela ausência quase total de pesquisas. Deve-se tomar muito cuidado no manejo psicológico de tais crianças, pois algumas desenvolverão doenças orgânicas não detectadas. Não é fácil decidir em que grupo colocar certos tipos de queixas somáticas. A despeito do diagnóstico físico, as crianças com sintomas físicos podem experimentar dor e desconforto relacionados tanto com a doença de base quanto com os procedimentos diagnósticos ou terapêuticos empregados no manejo de sua situação. Os sintomas podem causar prejuízos funcionais, resultando, geralmente, em aumento da utilização dos serviços de saúde e perda de produtividade e frustração, tanto para o paciente quanto para os que cuidam dele. Crianças cujos sintomas físicos têm causas orgânicas claras e bem reconhecidas, como as doenças crônicas (p. ex., asma, diabetes, enxaqueca e câncer), têm um risco significativamente alto de desenvolver transtornos psiquiátricos. Fatores psicossociais podem estar envolvidos como precipitantes no aparecimento de tais doenças ou agravando seu curso, pela exacerbação dos sintomas existentes, ou interferindo com a adesão aos regimes de tratamento. Apenas crianças com sintomas físicos inexplicáveis preenchem os critérios para transtornos psiquiátricos reconhecidos como transtorno de somatização, transtorno somatoforme indiferenciado, transtorno conversivo, transtorno doloroso e hipocondria. As crianças podem apresentar uma ampla gama de sintomas físicos, desde dores e desconfortos aparentemente inócuos e vagos até paralisia e outras alterações neurológicas mais graves. Crianças submetidas a procedimentos dolorosos ou com doenças crônicas podem ter diagnósticos psiquiátricos associados, já que a doença física crônica é um fator de risco geral para transtornos psiquiátricos, embora não seja preditivo de que tipo de transtorno 3 .
Definições Nenhum dos dois maiores sistemas de classificação, a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) (World Health Organization, 1993) e o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV) (American Psychiatric Organization, 1994) têm critérios específicos do transtorno de somatização para crianças e adolescentes, provavelmente em razão da falta de pesquisas empíricas nessa faixa etária, sendo, então, os critérios de adultos aplicados a crianças. O transtorno de somatização requer uma gama de sintomas físicos, que não podem ser explicados por uma condição médica conhecida, e que não são simulados. Esses sintomas devem causar desconforto e busca de ajuda. O CID- 10 também requer que os sintomas estejam presentes por, pelo menos, dois anos, e tem uma categoria separada - disfunção autonômica somatoforme - para sintomas primariamente relacionados com o sistema nervoso autônomo (SNA). O transtorno somatoforme indiferenciado, em ambas as classificações, refere-se à apresentação similar, mas com menos queixas físicas. O transtorno doloroso (conforme denominado pelo DSM-IV) ou transtorno doloroso somatoforme (de acordo com a CID lO) descrevem uma apresentação de dor persistente na ausência de uma explicação fisiológica adequada (embora uma condição física dolorosa possa estar presente), em que fatores psicológicos parecem estar envolvidos no surgimento e manutenção da dor. Hipocondria se refere a uma crença persistente e não delirante de que existe uma doença física. Essa crença causa um desconforto significativo e não afetado por reasseguração do médico de que tal doença não existe. O DSM-IV inclui uma categoria distinta, o transtorno dismórfico corporal (TDC), para descrever a preocupação com um defeito imaginado ou exagerado na aparência física. Essa categoria é incluída na CID-10 como transtorno hipocondríaco. Finalmente, ambas as classificações descrevem o transtorno conversivo, no qual funções motoras ou sensoriais estão prejudicadas, sugerindo um diagnóstico físico. O DSM-IV requer que os fatores psicológicos estejam associados aos sintomas. A CID- 1O, que inclui o transtorno dissociativo (conversivo) em categorias separadas do transtorno somatoforme, juntamente de outras condições dissociativas, requer uma relação, consistente no tempo, entre o surgimento dos sintomas físicos e os estressares psicológicos3,4 .
Apresentação clínica Crianças com sintomas físicos inexplicáveis podem apresentar uma variedade de problemas, desde simples episódios recorrentes de dor abdominal e vagas cefaleias até sérias perturbações das funções neurológicas, como alterações da marcha e função motora, prejuízos senso -
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riais ou pseudocrises. As crianças afetadas, suas famílias e, por vezes, seus pediatras veem os problemas em termos de causas e explicações físicas e, frequentemente, relutam em considerar explicações e referências psicológicas ou psiquiátricas. Como resultado, as crianças podem ter sintomas, por meses ou anos, quando são encaminhadas a um serviço de saúde mental. As famílias, geralmente, buscam várias avaliações e investigações clínicas, numa tentativa de encontrar explicação médica para o problema. Essas investigações, por si mesmas, podem ser nocivas para a criança, haja visto que algumas crianças estão muito incapacitadas quando chegam ao serviço psiquiátrico e podem estar fora de suas atividades sociais e escolares por semanas, meses ou mesmo anos 5 • Pode haver histórico de experiências adversas na infância precoce, aparecimento súbito (após um evento precipitante, como acidente ou doença aguda), presença de vários sintomas em um mesmo indivíduo sem um padrão lógico ou ordem de aparecimento, curso intermitente, resposta alterada ao estresse (incluindo a alteração do SNA e adrenocortical durante períodos estressantes) e resistência às abordagens terapêuticas. Transtornos psiquiátricos associados estão presentes em 1/3 a metade das crianças, sendo que problemas emocionais são mais comuns que problemas de conduta6. As crianças são geralmente descritas como conscienciosas, obsessivas ou sensíveis, inseguras e ansiosas, e podem ter dificuldades nas relações sociais e com seus colegas. Elas apresentam humor predominantemente negativo (bravo, aborrecido, descontente, irritado) e baixa persistência, raramente completando tarefas em que se engajam7 • As famílias dessas crianças são comumente descritas como preocupadas com assuntos de saúde, havendo evidências de que, sob estresse, essas mães consultam médicos com mais frequência para seus filhos se comparadas às mães da população geral. Crianças com transtorno conversivo geralmente tiveram um "modelo': acessível a elas, com sintomas semelhantes. Numa pequena minoria, há evidências de disfunções familiares graves, com abuso sendo referido como possível fator etiológico. O pico da somatização ocorre na infância tardia e no início da adolescência, em torno dos 11 anos, e, embora a dor abdominal recorrente seja comum em crianças pequenas, a cefaleia e a dor lombar se tornam mais frequentes com o aumento da idade. A taxa entre os sexos é aproximadamente igual, exceto para sintomas neurológicos, quando as meninas excedem os meninos. Os pais de crianças com transtornos de somatização têm mais sintomas psiquiátricos e sintomas físicos que a população geral. As crianças também estão mais propensas a transtornos psiquiátricos, particularmente ansiedade e pânico. Eventos vitais adversos e eventos traumáticos, tais como abuso e experiência de doenças físicas, parecem estar associados com somatização. Pacientes com somatização apresentam mais experiências de perdas na infância precoce, usualmente a perda de um
pai ou da figura cuidadora. Há também mais relatos de relações conflitivas e de menos cuidados maternos nesses pacientes que naqueles com outros transtornos psiquiátricos8. Pode haver também uma contribuição, por parte do médico, na manutenção da somatização, pela investigação excessiva ou desnecessária de causas físicas 3. O transtorno somatoforme resulta da perpetuação de determinados estímulos causadores de estresse, ou predisponentes, que promovem uma progressiva disfunção da interação da criança com o ambiente circundante. Podese traduzir em sintomas que vão se instalando de forma gradual e intermitente, com progressiva interferência fun cional. Muitas vezes identifica-se um determinado evento, precipitante, responsável por despertar ou acentuar a sintomatologia. Outras vezes, soma-se a esse processo, de progressiva sensibilização, uma agudização súbita de fatores estressares e/ ou o esgotamento dos mecanismos de defesa do indivíduo, culminando no aparecimento de sintomas agudos. A identificação dos fatores predisponentes e/ou precipitantes é, muitas vezes, dificultada pela sua não valorização por parte da própria criança ou da família. A expressão clínica varia e inclui sintomas gastrointestinais, musculoesqueléticos, respiratórios, cardíacos, neurológicos ou apenas sintomas inespecíficos, como astenia e mal-estar generalizados. Habitualmente, os sintomas abrangem diferentes sistemas e os doentes apresentam uma sintomatologia desproporcional em relação ao seu estado geral e ao que seria de esperar se sofressem da doença cujos sintomas fazem sugerir. O grau de interferência no funcionamento diário é também variável, podendo ser já patente quando da instalação progressiva dos sintomas, sendo mais evidente nas situações de agudização, em que, muitas vezes, a expressão dos sintomas impede a criança de ter uma vida dentro dos parâmetros a que estava habituada9 • Pouco se sabe sobre a evolução ou a história natural de crianças com transtornos de somatização. Um prognóstico acurado é difícil, em virtude dos muitos diferentes critérios usados no diagnóstico. A evolução dos transtornos somatoformes na criança pode ser melhor que nos adultos, porquanto as causas tendem a ser mais provavelmente externas à criança, mais facilmente identificáveis e mais tratáveis quando se instituem intervenções prontamente. Pacientes ambulatoriais têm evoluções melhores que aqueles que necessitam de internações. Uma duração prolongada antes do tratamento parece ser um fator desfavorável, assim como múltiplos sintomas conversivos. O que se pode dizer de crianças com sintomas de somatização é que muitas delas não terão sintomas no acompanhamento em longo prazo, enquanto outras serão vulneráveis a desenvolver novos sintomas, utilizando frequentemente os serviços de saúde. Múltiplos sintomas, maior cronicidade e a presença de sintomas conversivos sugerem pior evolução. Fatores ambientais, juntamente de fatores individuais, podem contribuir para as diferentes evoluções 10, 11•
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Epidemiologia Estimativas de prevalência são difíceis de interpretar em razão das diferentes definições de somatização, das diferentes medidas usadas e da falta de informação sobre o estado físico concomitante da criança. A falta de crité rios diagnósticos voltados para a criança é outro fator. A prevalência dos transtornos somatoformes varia com o tipo de população estudada e o método utilizado. As diferenças desenvolvimentais entre adultos e crianças levam a diferentes apresentações. Portanto, a literatura de adultos é de utilidade limitada na avaliação e manejo da população pediátrica. O critério diagnóstico é preenchido tipicamente antes dos 25 anos, mas os sintomas iniciais estão frequentemente presentes na adolescência. Há poucos estudos avaliando o transtorno somatoforme como um grupo, na infância6. Há mais evidências em crianças mais velhas e adolescentes. Somatização, quando definida amplamente, é encontrada em até 20% das crianças de 7 a 12 anos que procuram o serviço médico primário e em até 47% daquelas que são encaminhadas a especialistas na clínica pediátrica 12 • Na população geral, 15% das crianças em idade escolar têm sintomas físicos múltiplos e recorrentes, e 5 a 11%, na faixa de 12 a 16 anos, preenchem os critérios para transtorno de somatização. Os sintomas mais comuns são: dor abdominal, cefaleia, baixa energia, dor muscular, náuseas, gastralgia, dor lombar, visão turva e fraqueza. O relato de quatro ou mais sintomas ocorre em torno de 15% dos casos, e de 13 ou mais, em 1%. Os relatos de sintomas físicos aumentam com a idade, sendo que as meninas têm uma média de seis sintomas, ao passo que os meninos, cinco sintomas. Há uma associação entre mais sintomas referidos e atitudes de doente associadas, com desconforto mental, preocupação com a saúde e medo de doenças3. Há um predomínio dessa condição entre os adolescentes de grupos socioeconômicos mais desfavorecidos8. Estimativas acuradas de condições particulares são raras. Dor abdominal funcional recorrente é um problema pediátrico comum, que afeta de 7 a 25% das crianças e é responsável por 2 a 4% das consultas pediátricas 13. Em um estudo com 60 casos, o transtorno de dor foi diagnosticado em 70%, seguido de transtorno conversivo (18%) e transtorno de somatização indiferenciado (5%) 4 • O transtorno conversivo é raramente relatado em crianças menores de 5 anos e é incomum antes dos 11 anos8•11. Pesquisas mostram que cerca de 25% das crianças e adolescentes, em clínicas pediátricas, relatam níveis crônicos de dor.
Etiologia e patogênese Várias teorias foram propostas para explicar a etiologia e a patogênese dos transtornos somatoformes. Essas perspectivas se baseiam em fatores biológicos, teoria do aprendizado, emoções e comunicação, fatores psicodinâmicos e familiares. A diversidade de pontos de vista
sobre a etiologia sugere que não deve haver uma explicação única para os transtornos de somatização. Deve-se estar alerta para a importância de fatores como os conflitos psicológicos que se manifestam como sintomas físi cos, para a comunicação de certos pensamentos ou sentimentos que não podem ser expressos verbalmente e, portanto, manifestam-se em sintomas físicos, para oreforço e aprendizado social, para a depressão, a ansiedade ou o abuso de base. Esses paradigmas não devem ser vistos como mutuamente excludentes, uma vez que diferentes fatores podem interagir em determinado paciente para produzir um transtorno de somatização 14 . Há alguma evidência indicando um componente genético15. Os transtornos de somatização ocorrem em 10 a 20% dos parentes de primeiro grau, e há uma concordância de 29% em gêmeos monozigóticos. Nas famílias de crianças somatizadoras, dor abdominal funcional e outros sintomas físicos são comuns; muitas mães dessas crianças têm um histórico de cólon irritável, fadiga crô nica ou transtorno de somatização. Pais de crianças com transtorno somatoforme apresentam uma alta prevalência de transtornos mentais, porém ainda não é clara a importância dos fatores genéticos no desenvolvimento de somatização e a maioria dos autores argumenta a favor de uma combinação de influências genéticas e ambientais, observando que os fatores genéticos podem contribuir primariamente com traços de personalidade predisponentes. A literatura não é clara, no entanto, se os traços de personalidade predispõem o paciente a desenvolver o comportamento somatizador ou se os traços desadaptativos de personalidade se desenvolvem como resultado das tentativas do paciente de lidar com doenças crônicas, parece provável que as características de personalidade sirvam de base para o comportamento desadaptativo de busca de cuidado. A natureza crônica da somatização pode, por sua vez, reforçar tais características de personalidade ao longo do tempo. Estudos longitudinais são necessários para clarificar esse assunto. Pesquisas sugerem que, quando uma gestante é exposta a estresse intenso, os hormônios produzidos em resposta ao estresse podem cruzar a barreira placentária e afetar o curso do desenvolvimento fetal, resultando em mudanças permanentes no cérebro - se ocorre durante um período crítico da maturação cerebral - , nas funções autonômica, endócrina e imune. Essas mudanças parecem aumentar a vulnerabilidade aos estressares vitais, fazendo com que esses indivíduos corram maior risco de desenvolver transtornos caracterizados por dor e desconforto em determinados ambientes. Há uma variabilidade genética do padrão e magnitude da resposta ao estresse, e o padrão final de resposta também depende do potencial de intensidade e ameaça dos estressares ambientais, sendo mais provável que esse padrão de resposta seja mais parecido com o dos membros da família próxima que com o de indivíduos com sintomas semelhantes não relacionados (Figura 1) 16.
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Padrão genético de responsividade ao estresse
Instabilidade ambiental
+ Indivíduos afetados
Indivíduo suscetível
Fatores predisponentes
Exposição a modelos de comportamento de doente
Somatização
+ Eventos preci pitantes
Figura 1
Fatores que podem aumentar a suscetibilidade individual à so-
Exposição a traumas
Figura 2
Fatores de risco para o comportamento somatizador.
matização.
Experiências adversas na infância, como instabilidade ambiental, podem contribuir para o desenvolvimento do comportamento somatizador. Crianças expostas a modelos de comportamento doente, como pais com moléstias crônicas, podem ter risco de somatização aumentado. Adicionalmente, a exposição a traumas pode predispor pessoas a responderem ao estresse somaticamente. Essas experiências podem contribuir diretamente, ou indiretamente, para o comportamento somatizador, influenciando o desenvolvimento da personalidade 17. 19 • Abuso físico é relatado como um fator de risco para somatização, assim como abuso sexuaF0•21 • Muitos estudos mostram que os fatores cognitivos, tais como o condicionamento clássico e operante, as vias atencionais e a memória, podem influenciar o surgimento, desenvolvimento e manutenção de sintomas físicos inexplicáveis. Estudos sobre a importância dos fatores cognitivos, como a atenção a contingências comportamentais em situações nas quais eventos potencialmente traumáticos podem ocorrer, mostram que não é o evento físico em si que determina as consequências imediatas e de longo prazo, mas as expectativas do indivíduo e a sua capacidade de lidar com a situação ameaçadora. O abuso físico parece ser o melhor preditor de transtorno somatoforme, enquanto os efeitos específicos do abuso sexual são, ainda, pouco claros (Figura 2). Talvez a somatização seja mais bem explicada pela combinação de cuidado parental inadequado e doença na infância. Essa hipótese levanta a questão de que a falta de cuidado parental pode predispor a pessoa à psicopatologia em tempos de estresse, enquanto a exposição da criança a doenças e comportamento de doente pode levar à so-
matização como forma de expressão de sofrimento emocional 13 . Problemas de longo prazo que interferem na capacidade parental de prover cuidado são encontrados em cerca de metade dos pacientes com transtorno somatoforme, assim como atitudes punitivas e de rejeição. Autores consideram que, entre somatizadores, a doença promove um escape da negligência e do abuso e encoraja alguma atenção do pai retraído ou indiferente, e isso coloca em ação um padrão de comportamento de eliciar c uidado que vai ser repetido depois. Um padrão de ligação insegura se relaciona com comportamento interpessoal e traços de personalidade, tais como a persistente busca de cuidado, que se mantém na vida adulta. Em épocas de maior estresse, esses traços desadaptativos e a busca inflexível por cuidado podem resultar em interações interpessoais que culminam em rejeição pelos membros da família e profissionais de saúde. Esse padrão de interação interpessoal cria uma espiral descendente na qual o comportamento desadaptativo de buscar cuidado provoca hostilidade no outro, exacerbando, posteriormente, o comportamento de demanda de cuidado. Crianças expostas a comportamento parental desadaptativo frente à doença adotam as respostas à dor e à doença que elas observam. Observar as consequências do comportamento do outro pode inibir ou reforçar o comportamento da criança, por significar que padrões de comportamento são apropriados e reforçados, e elucidar quais são socialmente inaceitáveis e punidos. Crianças expostas a pais que lidam com a dor e com as doenças de maneira adaptativa irão adotar estratégias comportamentais similares; crianças expostas a respostas exageradas a doen-
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ças exibirão, mais provavelmente, comportamentos semelhantes, em razão de observarem as recompensas sociais obtidas por seus pais. Embora evidências suportem a importância da modelagem parental do comportamento de doente, o cuidado parental disfuncional pode ter muita influência no desenvolvimento do comportamento somatizador. Cuidado parental pobre ou inadequado se confunde, sem dúvida, com doença parental crônica, que pode acarretar em pais não acessíveis a seus filhos, tanto física como emocionalmente. Além disso, o sistema familiar pode ser rompido pela doença crônica, e esse problema amplo pode explicar o desenvolvimento do comportamento somatizador. Doenças graves ou dor crônica na infância são relacionadas com somatização na vida adulta. A doença parenta!, com o consequente distanciamento parental, também é um fator importante da somatização, assim como a perda de cuidado em razão da morte de um dos pais e/ou do luto parental (Figura 3). Diversamente do conceito fisiológico de dor como um fenômeno neurológico reproduzível, a expressão de dor é, em longa medida, determinada pelo contexto social no qual ela ocorre. Teorias demonstram que a dor crônica é um fenômeno complexo afetado por processos biológicos, psicológicos e sociais. A catastrofização da dor parece ter um importante papel no desenvolvimento da dor crônica, ou seja, parece que os fatores cognitivos aumentam a vigilância e o medo da dor, que em retorno resulta em comportamento de evitação e em queixas dolorosas. Vários fatores podem estar associados à catas-
Modelagem parenta! do comportamento de doente
+ Cuidado parenta I disfuncional
Somatização
+ Doença na infância
Figura 3
trofização da dor, principalmente o sistema de inibição de comportamento, o medo, a autorregulação pobre e a sensibilidade perceptiva aumentada. O sistema de inibição alerta o indivíduo para a possibilidade de perigo e punição, acentuando, assim, o comportamento de evitação, em contraste com o sistema de ativação do comportamento, que é sensível a sinais de recompensa e está envolvido no comportamento de aproximação. A inibição do comportamento e o medo, além de terem um impacto negativo no humor, provavelmente levam o sujeito a avaliar os estímulos como mais provavelmente ameaçadores, iminentes e aversivos e a perceber a possibilidade de lidar com a situação como pouco efetiva, resultando em aumento da preocupação e eventual catastrofização. A autorregulação se refere ao controle do esforço que permite executar os processos que regulam o comportamento e os pensamentos da criança e, quando pobre, está associada a altos níveis de pensamentos disfuncionais incontroláveis. A sensibilidade perceptual se refere ao estado de alerta e à detecção de estímulos de baixa intensidade, o que pode incluir dor leve, sendo que o aumento da percepção de sintomas dolorosos pode estar associado ao aumento da catastrofização e do medo de tais sintomas. Vários estudos mostram que a vigilância da dor, que está intimamente relacionada com a catastrofização, tem um importante papel na etiologia da dor crônica. A perspectiva biopsicológica é compatível com os modelos cognitivo-comportamentais correntes de dor crônica (Figura 4)22 • A pessoa que se submete à experiência da dor pode se virar para seu ambiente interpessoal para a validação do sofrimento ou buscar reconhecimento social para a experiência dolorosa. Essa validação (ou falta de) afeta a comunicação da dor, o que, por sua vez, influencia as respostas dos cuidadores dentro de seu sistema social. Assim, a estrutura social afeta, e é afetada, pela comunicação pessoal de dor. De acordo com a teoria sistêmica familiar, a somatização permite à família focar a atenção no comportamento do doente, retirando -a de outros conflitos. Embora as pesquisas apontem que os casos de somatização, geralmente, estão presentes em famílias disfuncionais, pouco se sabe sobre os aspectos específicos do funcionamento
Fatores de risco para o comportamento somatizador.
Inibição do comportamento Medo Autorregulação pobre Sensibilidade percentual aumenta da
Figura 4
Catastrofização da dor
Catastrofização e dor crônica.
Vigilância e medo da dor
Dor crônica
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diário familiar que podem aumentar o risco de sintomatologia física nos diferentes níveis desenvolvimentais. Alguns estudos apontam que certos aspectos da vida familiar podem se combinar para aumentar o risco de queixas físicas em crianças de diferentes níveis de desenvolvimento 16 com conflitos maritais parentais sendo frequentemente relatados, assim como famílias menos suportivas, coesas e adaptáveis. A literatura está repleta de relatos de casos de famílias nas quais sintomas funcionais, em crianças ou adultos, mascaram os verdadeiros conflitos. O termo somatização foi usado inicialmente por psicanalistas, para descrever o processo no qual defesas inconscientes bloqueiam a experiência de ansiedade e forçam sua expressão indireta na forma de sintomas físicos. Definições mais recentes de somatização continuam a olhar o fenômeno de um modo semelhante. Alguns autores descrevem a somatização como uma tendência a experienciar e comunicar a angústia e desconfortos, não relacionados a achados patológicos, atribuindo-os a doenças físicas e buscando ajuda médica para eles como doente. O papel de doente visa a proteger a sociedade dos efeitos potencialmente disruptivos da doença, sendo um papel temporário, no qual ao doente se garantem certos privilégios, enquanto este assume certas obrigações, tais como querer melhorar, buscar ajuda e cooperar com o tratamento. A autoridade que atribui o papel de doente reside no médico, o qual embasa suas decisões nas evidências de doença física derivadas do exame físico e dos exames complementares. Por definição, os transtornos somatoformes exigem que o médico descarte o papel de doente, já que o diagnóstico exige a ausência de achados físicos. Dessa forma, classificar a doença como mental ou psiquiátrica, em vez de como legitimamente física, cria conflitos entre o paciente somatizador e o médico, pois o paciente, para justificar seu papel de doente, pode exigir incessantemente do médico um diagnóstico físico. Os pacientes problemáticos e difíceis, com várias queixas vagas, vão, então, a vários serviços médicos, solicitando muito e cooperando pouco com o tratamento. Médicos que executam investigações ou recomendam procedimentos desnecessários podem reforçar a convicção do paciente de que há algo errado. Dúvidas quanto ao diagnóstico, conselhos médicos excessivos ou inadequados ou reasseguração exagerada podem contribuir com as crenças do paciente. O comportamento somatizador pode resultar de uma interação complexa entre as experiências de doente da criança e as respostas a seu comportamento. O comportamento de doente pode ser entendido em termos do comportamento de apego e da teoria interpessoal do apego. O apego está intimamente ligado à busca de cuidado e é um padrão de comportamento voltado a evocar respostas de conforto e de reasseguração no outro. Os modelos ou estilos de apego tendem a persistir ao longo da vida e influenciam as expectativas que o indivíduo tem ao lidar com os outros, especialmente com aqueles de quem de-
pende para suporte ou conselho, tais como os membros da família, os companheiros e os médicos 18 • Indivíduos com um estilo de apego seguro geralmente referem cuidados adequados na infância, têm visão positiva de si e dos outros e sentem-se confortáveis quando dependem dos outros. Indivíduos com estilo de apego de abandono geralmente relatam experiências de cuidadores irresponsivos, resultando na necessidade de serem autossuficientes, por não poderem contar com os outros. Indivíduos com estilo preocupado de apego tendem a relatar cuidadores que não eram consistentemente responsivos às suas necessidades. Essa inconsistência leva a uma autoimagem negativa, de alguém que não merece afeto, juntamente com a expectativa de que os outros são capazes de proverem cuidado mas nem sempre o querem. Nunca certos de obterem o que necessitam, esses indivíduos tornam-se hipervigilantes e agarram-se a esforços de obter cuidado dos outros. Indivíduos com estilo medroso de apego tipicamente relatam experiências de rejeição dos cuidadores, resultando em imagens negativas de si e dos outros. Esses indivíduos buscam proximidade, porém temem a rejeição e, assim, oscilam entre comportamentos de aproximação e evitação quando buscam cuidado. Apego baseado em ansiedade ou insegurança promove mais comportamento de busca de cuidados, e a resposta interpessoal para a pessoa com comportamento de doente, tanto das figuras significativas quanto do profissional médico, pode servir para acalmar os medos de que o cuidado será obtido, bem como para intensificar sua ansiedade e seu comportamento de busca de cuidado 19 • O comportamento de apego busca obter ou manter a proximidade de outra pessoa, usualmente com o propósito de receber cuidado. Relações interpessoais saudáveis são caracterizadas por ligações de apego flexíveis, nas quais as pessoas funcionam tanto como cuidadoras quanto são cuidadas, dependendo das circunstâncias. Quando a busca de cuidados, na forma de comportamento de doente, é reforçada, ela tende a se perpetuar, e a pessoa aprende métodos desadaptativos de satisfação da necessidade de apego. A doença crônica destrói o senso de autoeficácia e integridade corporal, criando um modelo de "alguém que requer cuidado", e a falta de cuidado parenta! durante a doença, ou o abuso, pode minar a auto estima e contribuir para um modelo de "alguém que não merece cuidado'~ Interações dessa natureza influenciam o desenvolvimento de constructos a respeito de si e do outro. O modelo do outro significativo também pode ser profundamente afetado pela resposta parenta! à doença. Atenção seletiva ao comportamento de doente da criança e inatenção às outras formas de busca de cuidado ou de ligação podem levar a um modelo no qual a criança acredita que o cuidado será provido apenas quando houver sofrimento físico. Crianças expostas a esse tipo de ambiente aprendem a usar expressões de dor física para exprimir sofrimento emocional; em vez de expressarem reações emocionais di-
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retamente, elas falam de dores físicas. Eles comunicam seus desconfortos e ansiedades por meio da demanda por cu idado via sintomas físicos. Esse comportamento confuso resulta em comunicação interpessoal inafetiva, deixando os pacientes menos tolerantes ao sofrimento emocional e menos capazes de lidar com conflitos interpessoais. Esse padrão de apego ansioso e o consequente comportamento interpessoal são característicos dos pacientes somatizadores, que buscam persistentemente eliciar cuidado em seus familiares e médicos, mas que, em virtude de sua insegurança na ligação, sentem que o cuidado nunca é adequado, e essa ligação ansiosa se reflete no comportamento constante de busca de cuidado, fechando -se, assim, um círculo vicioso (Figura 5). O comportamento de doente pode ser interpretado pelo potencial cuidador de várias maneiras, a saber: uma apropriada resposta à dor, um irritante apelo de atenção ou, ainda, como expressão de raiva. Esse estilo de comunicação é ambíguo e confuso, e facilmente mal compreendido pelos outros. Em vez de comunicar a necessidade de cuidado ou reasseguração diretamente, os pacientes somatizadores mostram suas necessidades na forma de sofrimento físico. Os potenciais cuidadores podem, então, focar exclusivamente nos sintomas físicos do somatizador e ignorar as necessidades psicossociais de cuidado, não expressas. Desse modo, embora o comportamento de apego, desadaptativo e ansioso do paciente somatizador, inicialmente elicie uma resposta de cuidado, sua insistente busca de cuidado, a despeito das repetidas tentativas de reasseguração, termina por levar o cuidador a se alienar e abandonar a relação. Esse desfecho, característico desse tipo de relação interpessoal, é interpretado pela pessoa insegura como uma prova evidente de que ela nunca recebe cuidado adequado (Figura 6)7. Uma das ideias centrais das concepções da escola psicossomática francesa repousa sobre a relação entre o equilíbrio somático e os fundamentos psicoafetivos da perso-
nalidade. A formulação básica pode ser enunciada da seguinte forma: uma constituição afetiva plena, equilibrada e estável ocupa um lugar essencial entre as defesas que se opõem às desordens psicossomáticas. Em razão das frequentes excitações, internas ou externas, que atingem a afetividade, o que convém é descarregá-las ou escoá-las. As três principais vias de escoamento da excitação psíquica são o trabalho mental de elaboração, os comportamentos motores ou sensoriais e a expressão somática. Quando há excesso de excitação, quer por situações externas ( estressores) ou internas (conflitos intrapsíquicos desenvolvimentais ou patológicos), quer pelo comprometimento da função parenta! de paraexcitação (modulação dos estímulos), a consequência comum é a suspensão da elaboração psíquica, por esvaziamento do pensamento afetivo e/ou transbordamento, de modo que as excitações, que não se descarregam nem escoam, se acumulam e atingem, de forma patológica, os aparelhos somáticos. A expressão somática é uma das formas, dentre várias, que a psicopatologia pode adotar, sendo o comportamento e sintomas psíquicos as outras duas principais. A qualidade das resistências físicas de um sujeito em relação às agressões depende, em grande medida, da solidez de sua constituição mental. As irregularidades qualitativas e quantitativas do vínculo influenciam globalmente a organização afetiva e prejudicam a construção das defesas psicossomáticas. A desorganização das defesas psíquicas traz consigo a desorganização das defesas biológicas. Essa noção cria a preocupação de discernir as estruturas psíquicas vulneráveis, propícias à desorganização somática frente a agressões diversas que, na impossibilidade de conseguir operar um restabelecimento por meio de uma elaboração psíquica, caem numa desordem somática. Essas personalidades mal organizadas resultam tanto de condições afetivas defeituosas, continuadas e prolongadas - a permanência de uma relação vazia - quanto de
Lig~ção _ . . . ans1osa com o cuidado r
Busca de cuidado
Busca de cuidado
Cuidado oferecido, mas experienciado como inadequado
Sensação de cuidado inadequado
Insistência na busca de cuidado
Apego ansioso
Abandono da relação pelo cuidador
Insegurança na ligação Figura 5
Círculo vicioso do comportamento de busca de cuidado.
Figura 6
Comportamento de apego desadaptativo.
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circunstâncias marcadas pela descontinuidade, com rupturas reiteradas da relação entre a criança e a família. Relatos demonstram a frequência e a gravidade das perturbações nos casos em que essas rupturas são encontradas na primeira infância, quando a criança é repetidamente mudada, deslocada, recolocada, e quando ocorrem mudanças frequentes de cuidadores ou hospitalizações reiteradas. Tais circunstâncias mostram, também, os sinais das dificuldades familiares e da falência emocional dos pais23,24 • Assim, é importante dirigir a reflexão e a prática terapêutica, com pacientes somatizadores, para as modalidades interativas geradoras de buracos relacionais ou de distorções, que evidenciam as falhas das figuras significativas.
Diagnóstico e comorbidade O DSM-IV tem critérios definidos para identificar adultos com transtornos somáticos, apoiados em perfis de comportamento e sintomas que caracterizam a somatização. Apesar da relativa abundância de crianças com sintomas de somatização, é raro que a criança apresente o grupo de sintomas que preencha os específicos critérios diagnósticos do DSM-IV Há argumentos de que esses critérios foram feitos para um agregado de sintomas experienciados por adultos, uma falha que possivelmente é a responsável pela escassez de crianças somatizadoras diagnosticadas por eles. Segundo o DSM-IV, a característica comum dos transtornos somatoformes é a presença de sintomas físicos, porém não são completamente explicados por uma condição médica geral, pelos efeitos diretos de uma substância ou por outro transtorno mental (como o transtorno de pânico). Os sintomas devem causar sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes. Em comparação com os transtornos factícios e a simulação, os sintomas físicos não são intencionais, isto é, não estão sob o controle voluntário. Os transtornos somatoformes diferem dos fatores psicológicos afetando a condição médica na medida em que não existe uma condição médica geral diagnosticável que explique plenamente os sintomas físicos. O transtorno de somatização, historicamente chamado de histeria ou síndrome de Briquet, é um padrão de múltiplas queixas físicas recorrentes e clinicamente significativas. Uma queixa física é considerada clinicamente significativa se resultar em tratamento médico (p. ex., tomar um medicamento) ou causar prejuízo significativo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo 1 • Sintomas proeminentes de ansiedade e humor de pressivo são muito comuns, podendo ser a razão para o atendimento em contextos de saúde mental. Pode haver comportamento antissocial e impulsivo, ameaças e tentativas de suicídio e desajuste conjugal. As vidas desses in-
divíduos, em geral, são tão caóticas e complicadas quanto suas histórias médicas O uso frequente de medicamentos pode levar a efeitos colaterais e transtornos relacionados a uso de substâncias. Esses indivíduos comumente se submetem a numerosos exames médicos, procedimentos diagnósticos e hospitalizações que os expõem a um maior risco de morbidade associada a tais procedimentos. Transtorno depressivo maior, transtorno de pânico e transtornos relacionados a uso de substâncias são frequentemente associados ao transtorno de somatização. Transtornos de personalidade histriônica, borderline e antissocial são os transtornos de personalidade mais associados. O exame físico é notório pela ausência de achados objetivos que expliquem plenamente as muitas queixas subjetivas dos indivíduos. Esses indivíduos podem ser diagnosticados com os chamados transtornos funcionais (como a síndrome do cólon irritável). Os resultados de testes laboratoriais são negativos para achados que apoiem as queixas subjetivas. O transtorno de somatização é um transtorno crônico, porém flutuante, que raramente apresenta remissão completa. É raro passar um ano sem que o indivíduo busque algum atendimento médico levado por queixas físicas inexplicáveis. Os critérios de diagnóstico tipicamente são satisfeitos antes dos 25 anos, mas os sintomas iniciais, frequentemente, estão presentes na adolescência. Dificuldades menstruais podem representar um dos sintomas mais precoces em mulheres. O quadro sintomático encontrado no transtorno de somatização frequentemente é inespecífico e pode sobrepor-se a múltiplas condições médicas gerais. Três características que sugerem um diagnóstico de transtorno de somatização em vez de uma condição médica geral: 1) envolvimento de múltiplos sistemas orgânicos; 2) início precoce e curso crônico, sem o desenvolvimento de sinais físicos ou anormalidades estruturais; e 3) ausência de anormalidades laboratoriais características da condição médica geral sugerida. As apresentações somatoformes que não satisfazem os critérios para transtorno de somatização devem ser classificadas como transtorno de somatização indiferenciado, se a duração é de seis meses ou mais, ou transtorno somatoforme SOE, para apresentações com duração menor 1 (Quadro I). Essa é uma categoria residual para aquelas apresentações somatoformes persistentes que não satisfazem todos os critérios para o transtorno de somatização ou para outro transtorno somatoforme. Pode haver um único sintoma circunscrito, como náusea ou, com maior frequência, múltiplos sintomas físicos. As queixas físicas crônicas e inexplicáveis frequentemente levam a consultas médicas. A frequência mais alta de queixas físicas inexplicáveis ocorre em mulheres jovens em situações socioeconômicas desfavorecidas, mas não se restringem a qualquer idade, gênero ou grupo sociocultural.
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
O curso das queixas físicas inexplicáveis individuais é imprevisível. O diagnóstico eventual de uma condição médica geral ou de outro transtorno mental é frequente. O transtorno conversivo engloba sintomas ou déficits que afetam a função motora ou sensorial, sugerindo uma condição neurológica ou médica. Os fatores psicológicos estão correlacionados com os sintomas ou déficits no tempo porque os conflitos ou outros estressares precedem o seu início ou exacerbação. Modelos na família e psicopatologia familiar também são úteis no diagnóstico1 (Quadro III). Os sintomas ou déficits não são produzidos inten cionalmente ou simulados. Quatro tipos diferentes de sintomas ou déficits são descritos: motores, sensoriais, convulsões e apresentações m ist as. A maior preocupação diagn óstica é excluir doenças n eurológicas ou gerais e etiologias induzidas por substância (incluin do medicamentos). Uma doença aguda de base pode estar presen-
Quadro I
Critérios diagnósticos para transtorno de somatização25
te, mas o transtorno conversivo aumenta ou imita os sintomas reais inadequadamente. Esses pacientes, às vezes, mostram a belle indifférence aos seus sintomas, mas isso não é um achado patognomônico. O transtorno conversivo parece ser mais comum em adolescentes que em adultos ou crianças. Também parece ser mais prevalente na população rural, em indivíduos
Quadro 11 renciado25
Critérios diagnósticos para transtorno somatoforme indife-
A. Uma ou mais queixas físicas (p. ex., fadiga, perda do apetite, queixas gastrointestinais ou urinárias). B. (1) ou (2)
(1) Após uma investigação apropriada, os sintomas não podem ser completamente explicados por uma condição médica geral conhecida ou pelos efeitos diretos de uma substância (p. ex., droga de abuso, medicamento). (2) Quando existe uma condição médica geral relacionada, as queixas físicas ou prejuízo social ou ocupacional resultante excedem o que seria esperado a partir do histórico, do exame físico ou dos achados
laboratoriais.
A. Uma história de muitas queixas físicas com início antes dos 30 anos, que ocorrem por um período de vários anos e resultam em busca de tratamento ou prejuízo significativo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes de funcionamento do indivíduo.
C. Os sintomas causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes de vida do indivíduo.
B. Cada um dos seguintes critérios deve ter sido satisfeito, com os
E. O transtorno não é mais bem explicado por outro transtorno mental
sintomas individuais ocorrendo em qualquer momento durante o curso do transtorno: (1) quatro sintomas dolorosos: uma história de dor relacionada a, pelo menos, quatro locais ou funções diferentes (p. ex., cabeça, abdome, costas, articulações, extremidades, tórax, reto, menstruação, intercurso sexual ou micção). (2) dois sintomas gastrointestinais: uma história de, pelo menos, dois sintomas gastrointestinais que não seja dor (p. ex., náusea. aumento do volume abdominal, vômito sem gravidez, diarreia ou intolerância a diversos alimentos). (3) um sintoma sexual: uma história de, pelo menos, um sintoma sexual ou reprodutivo que não seja dor (p.ex., indiferença sexual, disfunção erétil, irregularidades menstruais, sangramento menstrual excessivo, vômitos durante toda a gravidez). (4) um sintoma pseudoneurológico: uma história de, pelo menos, um sintoma ou déficit sugerindo uma condição neurológica não limitada a dor (sintomas conversivos, tais como prejuízo de coordenação ou equilíbrio, paralisia ou fraqueza localizada, dificuldade para engolir, afonia, retenção urinária, perda da sensação de tato ou dor, diplopia, cegueira, surdez, convulsões; e sintomas dissociativos, tais como amnésia ou perda da consciência desde que não por desmaio). C. (1) ou (2)
(1) Após investigação apropriada, nenhum dos sintomas do critério B pode ser completamente explicado por uma condição médica geral conhecida ou pelos efeitos diretos de uma substância (p. ex., droga de abuso, medicamento). (2) Quando existe uma condição médica geral relacionada, as queixas físicas ou o prejuízo social ou ocupacional resultante excedem o que seria esperado a partir da história. do exame físico ou dos achados laboratoriais. O. Os sintomas não são intencionalmente produzidos ou simulados (como no transtorno factício ou na simulação).
O. A duração do transtorno é de, pelo menos, seis meses. (p. ex., outro transtorno somatoforme, disfunção sexual, transtorno do humor, transtorno de ansiedade, transtorno do sono ou transtorno psicótico). F. O sintoma não é intencionalmente produzido ou simulado (como no transtorno factício ou na simulação).
Quadro 111
Critérios diagnósticos para transtorno conversivo 25
A. Um ou mais sintomas ou déficits que afetam a função motora ou sensorial que sugerem uma condição neurológica ou outra condição médica geral. B. Fatores psicológicos parecem estar associados com o sintoma ou déficit; esse julgamento se fundamenta na observação de que o início ou a exacerbação do sintoma ou déficit é precedido por conflitos ou outros estressares. C. Os sintomas não são intencionalmente produzidos ou simulados, como no transtorno factício ou na simulação.
O. Os sintomas ou déficits não podem ser plenamente explicados por uma condição neurológica ou outra condição médica geral, pelos efeitos diretos de uma substância ou como um comportamento ou experiência culturalmente sancionados. E. Os sintomas ou déficits são clinicamente significativos, o que é evidenciado por acentuado sofrimento, prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo ou pelo fato de indicar avaliação médica.
F. Os sintomas ou déficits não se limitam a dor ou a disfunção sexual, não ocorrem exclusivamente durante o curso de transtorno de somatização e não são mais bem explicados por outro transtorno mental.
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com condições socioeconômicas menos favorecidas e naqueles com história de abuso físico e sexual. Nos estudos em adultos, baixo nível educacional, transtornos de personalidade e depressão estão comumente associados ao transtorno conversivo. A comorbidade psiquiátrica é pouco estudada, mas transtornos ansiosos e de humor podem estar presentes. O diagnóstico de transtorno de dor é feito se o foco da atenção clínica predominante for a dor. A dor abdo minal recorrente é particularmente comum e um problema potencialmente incapacitante que pode ocorrer em 10 a 30% das crianças e adolescentes. A dor abdominal recorrente é definida pela ocorrência de pelo menos três episódios de dor abdominal, com recuperação total entre os episódios, durante pelo menos três meses, em crianças maiores de 3 anos, tendo a dor intensidade suficiente para interferir com as atividades diárias da criança. Dessas crianças, 90% têm exame físico normal, juntamente com contagem de leucócitos, exame de urina e índices de VHS normais, não tendo doença física documentada. Os restantes 10% têm alguma anormalidade urinária, gastrointestinal ou, muito raramente, a causa é extra-abdominal1 (Quadro IV). O TDC é definido como a preocupação com um defeito imaginado na aparência ou com a excessiva preocupação com uma pequena anormalidade física. A preocupação desconfortável pode envolver qualquer parte do corpo, o mais comum é envolver defeitos imaginados ou leves na face e cabeça (tais como acne, cicatrizes, cabelos finos, perda de cabelos, assimetria facial ou excesso de pelos faciais). Pouco foi escrito sobre esse transtorno em crianças e adolescentes porque muitos pacientes são reservados sobre seus sintomas e relutam em procurar tratamento psiquiátrico. O aparecimento do TDC geralmente ocorre na adolescência, com taxas semelhantes entre os sexos. O aparecimento pode ser gradual ou abrupto. O curso é contínuo, com poucos períodos livres de sintomas, embora a intensidade da sintomatologia possa variar. A parte do corpo na qual a preocupação se foca pode permanecer a mesma ao longo dos anos ou mudar. Mui-
tos desses pacientes se consultam com dermatologistas e cirurgiões plásticos, porém não são bons candidatos a cirurgias cosméticas, pois geralmente não ficam satisfeitos com os resultados24 (Quadro V). Uma alta taxa dos indivíduos com TDC tem histórico de maus tratos na infância, tanto abuso físico, sexual, psicológico, quanto negligência. Os transtornos psiquiátricos comórbidos incluem depressão, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), fobia social, transtorno delirante, anorexia nervosa, transtorno da identidade de gênero e transtorno de personalidade narcisista. O TDC também está associado com repetidas internações, ideação suicida, tentativas de suicídio e suicídio. A hipocondria é definida no DSM-IV como a preocupação com medos de ter, ou a ideia de ter, uma doença séria, baseada na má interpretação dos sintomas corporais. A preocupação persiste a despeito de uma avaliação médica adequada e reasseguração. Há uma alta correlação com depressão, ansiedade e sintomas físicos, e os pacientes também apresentam taxas maiores de transtornos de personalidade. A comorbidade com TOC é comum 1 (Quadro VI).
Quadro V
Critérios diagnósticos para TDC25
A. Preocupação com um defeito imaginado na aparência. Se uma ligeira anomalia física está presente, a preocupação da pessoa é acentuadamente excessiva. B. A preocupação causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes de funcionamento. C. A preocupação não é mais bem explicada por outro transtorno mental (p. ex., insatisfação com o tamanho e forma corporal na anorexia nervosa)
Quadro VI
Critérios diagnósticos para hipocondria 25
A. Preocupação, medo ou crença de que se tem doença grave baseada na interpretação errada de sintomas físicos. B. A preocupação não tem melhor enquadramento na perturbação de ansiedade generalizada, perturbação obsessivo-compulsiva, perturbação de pânico, episódio depressivo maior, ansiedade de
Quadro IV
Critérios diagnósticos para transtorno de dor25
A. Dor em um ou mais sítios anatômicos é o foco predominante da
separação ou outra perturbação somatoforme.
apresentação clínica e de gravidade suficiente para justificar uma
C. A crença no critério A não tem intensidade delirante (como no transtorno delirante, tipo somático) e não está circunscrita a uma
intervenção clínica.
preocupação com a imagem corporal (como no TDC).
B. A dor causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes de funcionamento.
O. A preocupação causa sofrimento clinicamente significativo, disfunção social, ocupacional ou em outras áreas importantes do funcionamento individual.
C. Os fatores psicológicos são julgados como tendo um papel
E. A duração da perturbação é de, pelo menos, seis meses.
importante no início, gravidade, exacerbação ou manutenção da dor.
F. A preocupação não tem melhor enquadramento no transtorno de
O. A dor não é mais bem explicada por um transtorno de humor,
ansiedade generalizada, no TOC, no transtorno de pânico, no episódio
transtorno de ansiedade ou transtorno psicótico e não satisfaz os
depressivo maior, na ansiedade de separação ou em outro transtorno
critérios para a dispareunia.
somatoforme.
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Diagnóstico diferencial Todas as causas orgânicas dos sintomas devem ser consideradas, assim como os transtornos psiquiátricos que podem se apresentar com sintomas físicos. O diagnóstico diferencial dos sintomas físicos inexplicáveis inclui doenças físicas não reconhecidas, transtorno somatoforme, ansiedade, depressão ou outro transtorno psiquiátrico, transtorno factício e transtorno factício por procuração, simulação e fatores psicológicos afetando condições médicas (Quadro VII). No transtorno factício, os sintomas físicos ou psicológicos são produzidos intencionalmente ou simulados pelo paciente a fim de assumir o papel de doente. A distinção quanto a se determinado sintoma é produzido intencionalmente ou não é feita tanto pela evidência direta quanto pela exclusão de outras causas para o sintoma. O transtorno factício por procuração é uma forma de abuso na qual uma figura parenta! (usualmente a mãe) fabrica ou produz doenças na criança e/ou cria sinais físicos que persistentemente resultam em tratamento médico desnecessário. É um diagnóstico comumente feito em crianças pequenas, mas geralmente após meses ou anos de doenças inexplicáveis ou despercebidas e de exames e procedimentos médicos desnecessários. A síndrome de Munchausen é um subtipo incomum, perigoso e extremo de transtorno factício, caracterizada por mentira patológica (pseudologia fantástica) e uso deliberado de sintomas autoinduzidos para obter hospitalização ou transferência de um hospital para outro A morbidade psicológica do transtorno factício pode incluir retraimento, hiperatividade e comportamento factício na adolescência e evoluções ruins, incluindo óbito. O conhecimento e aceitação da possibilidade de transtorno factício é um pré-requisito para fazer o diagnóstico correto. Em todos os relatos de transtorno factício, transtornos mentais maiores raramente são encontrados.
Uma distinção deve ser feita entre simulação e transtorno factício. Na simulação, o paciente produz sintomas deliberadamente, mas tem objetivos evidentes, como compensação financeira, evitação de deveres ou escola, do cumprimento de uma ordem judicial ou obtenção de prescrições. No transtorno factício, a motivação para ser um doente é obscura - mesmo para o paciente - e o paciente não está ciente de seus motivos, além de obter o papel de doente e ser objeto de investigação, exames, consultas e operações. O transtorno factício também deve ser diferenciado dos transtornos somatoformes. O paciente com o transtorno somatoforme tem sintomas e sinais físicos sem explicação orgânica, mas, diferente do paciente com transtorno factício, não os está produzindo deliberadamente1·17 (Quadro VIII).
Quadro VIII
Diagnóstico diferencial26
Transtorno de somatização
Tem duração requerida mais longa e requer sintomas múltiplos e variados
Transtorno somatoforme indiferenciado
Requer menos sintomas e duração mínima mais curta
Transtorno doloroso, transtorno conversivo, transtorno dissociativo
Não tem queixas somáticas múltiplas afetando uma variedade de sistemas e órgãos
Transtorno factício, simulação
Caracterizados por sintomas produzidos de modo intencional ou simulados
Transtorno de ansiedade
Caracteriza-se por preocupação não limitada a queixas físicas
Transtornos depressivos
Tem queixas somáticas limitadas aos episódios de humor deprimido
Condição médica geral
Responde totalmente pelas queixas físicas
Quadro VIl Diagnóstico diferencial da etiologia orgânica e funcional 9 Orgânico
Funcional
Sintoma
Consistente
Variável
Tempo
Ocorre nas mesmas circunstâncias
Variável e/ou claramente associado a estressares
Sono
Pode ser afetado
Raramente afetado
Precipitante
Pode ser específico
Difícil associação
Fatores de alívio
Medidas específicas podem causar alívio
Tempo e descanso
Início
Geralmente agudo
Arrastado
Impacto nas atividades
Evidente
Variável, podendo ser nulo
Preocupação
Grande
Pode haver, mas muitas vezes há indiferença
Peso
Geralmente alterado
Raramente alterado
Sintomas associados
Único sistema e consistente com a doença subjacente
Múltiplos sistemas e inconsistente com mecanismos fisiológicos
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Avaliação A avaliação é a base para as intervenções subsequentes e de importância crítica no contexto de suspeita de somatização na infância. Uma avaliação ampla deve sintetizar a informação obtida diretamente dos pacientes e seus pais, por meio de entrevistas, questionários de autorrelato e observação direta, com a informação médica objetiva, obtida de prontuários ou relatórios médicos 12,27 (Figura 7). Na anamnese, deve-se investigar a existência de múltiplas queixas e repetidas avaliações médicas prévias e/ou a existência de um familiar com doença crônica (especialmente se os sintomas coincidem) ou de luto familiar não resolvido ou com resolução em curso. A existência de disfunção em algum dos ambientes da criança (família, escola, colegas) também pode apontar para o diagnóstico de somatização. A anamnese deverá fornecer dados que apontem para a exclusão de uma etiologia orgânica. Torna-se necessária a avaliação da existência de possíveis agentes causadores de estresse (predisponentes e/ou precipitantes), assim como de possíveis fatores de proteção psicossocial, como responsividade parenta!, aceitação do comportamento da criança, acesso a brinquedos e possibilidade de brincar28 . É fundamental uma avaliação integrada das possíveis repercussões nos diferentes ambientes da criança, já que a identificação de fatores predisponentes ou precipitantes nem sempre é obtida pelo relato dos pacientes ou pais, pois eles se focam na exuberância dos sintomas, o que não deixa espaço para refletir no que possa estar subjacente à utilização de uma anamnese estruturada, abrangente, que inclua os diferentes aspectos biopsicossociais da criança ou do adolescente. O modelo de entrevista HEEADSSS 29, por exemplo, abrange áreas da vida da criança, a saber: o ambiente familiar (home); o desempenho escolar e os pla-
AVALIAÇÃO ! Informação obtida da criança e dos pais
Informação objetiva (prontuários e relatórios médicos)
História psicossocial completa
[
Exame físico e psíquico completos
I
Exames complementares (laboratoriais, imagem, testes psicológicos)
Figura 7
Esquema da avaliação da somatização na infância.
nos futuros (education); os hábitos alimentares (eating); as atividades extracurriculares (activities); o consumo de álcool, tabaco e outras substâncias (drugs); a afetividade e a sexualidade (sexuality); o suicídio e a agressão (suicide); e a segurança (security). A abordagem desses temas pressupõe o estabelecimento de uma relação de confiança e confidencialidade entre o médico e a criança ou adolescente, na qual o tempo e a atenção são importantes, assim como o reconhecimento da existência e repercussão dos sintomas. A HEEADSSS pode ser utilizada com jovens a partir do surgimento dos sinais pubertários, geralmente 1O anos para meninas e 11 anos para meninos. Escalas de autorrelato são geralmente usadas para entender os sintomas nas crianças. O Children's Somatization Inventory (CSI) 12 ,30,3 1 adapta os critérios do DSM-IV de forma a serem mais apropriados para avaliar crianças. É uma escala de autorrelato com versões para os pais e para a criança e que fornece informações sobre os sintomas físicos que ocorreram nas duas semanas que antecedem a avaliação médica, podendo ser utilizado com crianças a partir de 7 anos. O Functional Disability Inventory (FDI) pode ser usado juntamente com o CSI para acessar a gravidade dos sintomas 12' 30 • A Pediatric Symptom Checklist (PSC)32 é uma escala ampla, usada em clínicas de especialidades pediátricas para determinar a disfunção psicossocial causada pelos sintomas. A PSC facilita o reconhecimento de pro blemas cognitivos, emocionais e comportamentais e é apresentada em duas versões, a dos pais (PSC) e a de autorrelato para o jovem (Y-PSC) que pode ser aplicada a partir dos 11 anos. A Child Behavior Checklist (CBCL) 12,33 é um questionário de relato parenta! amplamente utilizado que inclui uma subescala de somatização que pode ser usada para identificar crianças com um padrão de sintomas de somatização 12 • Há evidências de que as escalas que se baseiam unicamente no autorrelato da criança para acessar a ocorrência de sintomas não são tão confiáveis quanto nos adultos. Isso levou vários pesquisadores a ver a entrevista parenta! como uma fonte importante de informação so bre a saúde da criança e seu ajustamento. No entanto, a informação parenta! introduz a potencial interferência da tendência parenta! na quantificação dos sintomas da criança. Muitos autores argumentam que há baixa concordância entre os relatos das crianças e o dos pais a respeito dos sintomas subjetivos das crianças. Dadas essas incertezas, não está ainda claro se tanto o relato da criança quanto o dos pais podem ser tomados isoladamente como fontes não contaminadas e confiáveis do comportamento de doente da criança. O CSI e outras escalas de autorrelato fornecem medidas úteis do nível de prejuízo resultante dos sintomas físicos, mas não distinguem os pacientes com base em evidências médicas, pois os pacientes cujos sintomas relatados podem ser atribuíveis a doenças físicas não são sistematicamente diferenciados daqueles cujos sintomas
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são inexplicáveis do ponto de vista médico. Mesmo com o, relativamente, alto grau de confiabilidade das informações fornecidas pela criança e/ou pais por meio da CSI, da CBCL ou de outras escalas, informações objetivas são úteis para distinguir a somatização de doenças físicas, já que um componente essencial do conceito de somatização é a ausência de uma doença física conhecida, que justifique os sintomas. Obter dados objetivos do histórico médico da criança, como a frequência de utilização de serviços médicos e o número de faltas na escola, os indicadores gerais de saúde (peso, altura e pressão arterial), os diagnósticos realizados, a medicação prescrita, assim como as recomendações médicas de restrição de atividade, monitoramento de saúde e retornos programados, permite identificar o grau de preocupação com a saúde física da criança. A utilização frequente de serviços médicos e o absenteísmo escolar são, geralmente, indicadores de somatização e mostram o quanto as queixas físicas são impedimento ao funcionamento normal da criança, a ponto de necessitar repetidas consultas médicas. As medidas de pressão arterial, peso e altura, comparados com os valores normais para a idade, podem ser indicativos de doenças físicas, quando abaixo do percentil 5 e acima de 95. Os diagnósticos isoladamente não necessariamente indicam que a criança está muito doente, porém testes laboratoriais, de imagem ou outras medidas objetivas da saúde física podem ajudar a identificar ou não as causas patológicas dos sintomas. A natureza da prescrição medicamentosa assim como o grau recomendado de restrição de atividades escolares, sociais e físicas, a necessidade de monitoramento de saúde e retornos frequentes programados podem ser indicadores importantes de quão doente o médico pensa que a criança está 12 • Ao avaliar o ambiente familiar, devem -se investigar eventos estressares vitais, particularmente aqueles percebidos como negativos, tais como a perda ou morte de um membro da família, conflito marital parenta!, falta de cuidado parenta! adequado e dissolução familiar, que são comumente associados com somatização em crianças. É preciso ter em mente, no entanto, que mesmo eventos percebidos como positivos na vida da família podem ser experienciados como estressantes. Deve-se levantar também a presença de psicopatologia parenta!, modelagem e reforço do comportamento de doente, crenças e comportamentos parentais que possam ter impacto nos seus filhos34 • Investigar abuso, tanto físico quanto sexual, reconhecido como um fator de risco para somatização, depressão e ansiedade. Crianças com baixo peso ao nascer, que enfrentem sérias adversidades ambientais, como o abuso, tendem a ter pior evolução que recém-nascidos de peso normal quanto à somatização35 • A avaliação deve explorar o sintoma no tempo, suas características e o contexto em que aparece. Em particular, é importante examinar o reforço social e outros benefícios em potencial associados com o papel de doente, ou seja, o
assim chamado "ganho secundário': A presença de dificuldades escolares pode ser especialmente importante, pois a presença de transtornos de aprendizagem pode reforçar o absenteísmo e a somatização pode ter um papel secundário para uma criança com dificuldades escolares, servindo de explicação para o fato de ela não estar apresentando o desempenho esperado. O risco de somatização pode aumentar no contexto de doença física crônica, ou histórico precoce de doenças, logo após a uma doença física aguda ou a um acidente. Experienciar ou observar os potenciais benefícios associados com o papel de doente, inclusive a liberação de responsabilidades desagradáveis ou o recebimento de indulgências especiais pode aumentar o risco de somatização em algumas crianças predispostas. Deve-se tentar evitar o diagnóstico por exclusão. Alguns indícios do diagnóstico de transtorno somatoforme são a relação temporal dos sintomas com estressares psicossociais, a presença de comorbidade como ansiedade, depressão ou outro transtorno psiquiátrico, história pregressa pessoal ou familiar de somatização, evidências de reforço social ou familiar do sintoma, modelos para o sintoma na família ou no ambiente social, violação de padrões anatômicos ou funcionais e resposta sintomatológica ao tratamento psicológico, sugestão ou placebo. Nenhum desses indícios é definitivo, já que todos foram observados em pacientes com doenças físicas bem documentadas, mas vários indícios juntos são mais persuasivos de somatização. Pacientes com sintomas físicos geralmente são objeto de exaustivas baterias de testes. Isso raramente é necessário e pode ser contraproducente. O diagnóstico de somatização não deve ser um diagnóstico de exclusão, mas deve ser feito com base em achados positivos: uma história psicossocial completa e um exame físico completo, com especial atenção ao estado mental, são básicos para o diagnóstico. Uma variedade de testes psicológicos pode ser aplicada na avaliação dos transtornos de somatização, como as entrevistas estruturadas, escalas de autorrelato, testes de personalidade, testes projetivos e neuropsicológicos36 •
Tratamento Ao planejar o tratamento dos transtornos somatoformes, deve-se levar em consideração as avaliações e tratamentos prévios, investigar os medos do paciente e da família provocados pelos sintomas e reconhecer o sofrimento do paciente e as preocupações da família. Colocar a impressão diagnóstica clara, direta e francamente de modo a educar o paciente e a família sobre como os sintomas físicos, na ausência de doença física grave, são um problema comum e real, reconhecido e tratável, ajudando-os a lidar com o diagnóstico de somatização e promovendo uma expectativa positiva, a fim de diminuir a resistência ao tratamento e a perpetuação da busca por doenças. Durante o acompanhamento do paciente, deve-se manter alerta para a possibilidade de doença física não reconhecida.
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A validação das abordagens de tratamento para crianças e adolescentes com diagnóstico de transtorno de somatização é difícil em razão da variedade de apresentações clínicas e dos diferentes níveis de desenvolvimento dos diferentes pacientes. Há pouca evidência sobre que combinações de abordagens são mais bem-sucedidas, porém a necessidade de coordenar as diferentes abordagens e de chegar a um consenso entre o pediatra, o psiquiatra e a família é formalmente necessária37 . Muitas crianças têm padrões intricados de dor ou prejuízos funcionais que não respondem a intervenções puramente psicossociais, e o foco psicológico pode se mostrar irresoluto e mesmo causar ressentimentos no terapeuta pelo paciente. Contrariamente, a aplicação de tratamento médico exclusivo pode promover uma escalada de sintomas e aumento da utilização do serviço de saúde, com consequente aumento dos gastos, mas sem melhora para o paciente. A reasseguração de que o risco de morte ou de doença física grave estão ausentes é um passo importante, porém raramente suficiente, do processo terapêutico. Quando excessivo, porém, pode ser contraproducente, principalmente nos casos em que preocupações obsessivas com doenças ou medos hipocondríacos são proeminentes27. Um modelo de tratamento seria a integração das intervenções efetivas descritas na literatura, com cinco elementos importantes: o manejo do sistema médico de saúde, o manejo da dor, a identificação e resolução de dificuldades, o manejo dos sentimentos e emoções e a reabilitação. Pacientes com sintomas físicos inexplicáveis são vistos muitas vezes por vários profissionais de saúde, frequentemente sem que um saiba das regras e intervenções dos outros. O manejo bem-sucedido do transtorno de somatização requer que a equipe multidisciplinar envolvida, juntamente da família, atinja um consenso sobre o problema, de modo a conseguir atingir os objetivos do tratamento. A especulação e o ceticismo da equipe quanto à dor que o paciente refere e que não tem uma explicação clara pode ter efeitos negativos. Nos casos em que há dor significativa, o manejo deve ser efetivo, com analgesia química, medidas físicas e outros recursos, como auto-hipnose e relaxamento, de modo que o paciente perceba o empenho da equipe em efetivamente reduzir a dor. Muitas vezes, a somatização é a manifestação de uma dificuldade, de alguma forma insolúvel, em que a criança se encontra. A família, problemas como a lealdade em relação a conflito marital parenta! ou a função parenta! prejudicada podem levar a criança a lidar com as dificuldades, ficando no papel de doente. Quando a dificuldade é identificada, o seu manejo facilita o tratamento. Há uma alta prevalência de ansiedade e depressão nos transtornos de somatização e a evolução é mais favorável se esses sintomas são acessados. Clinicamente, observa-se que pacientes crônicos podem confundir sentimentos e emo-
ções, como a ansiedade, com as manifestações físicas. Além disso, sentimentos não reconhecidos e não resolvidos interferem com a adesão ao tratamento. Há alguma evidência de que o aumento da discriminação e expressão dos sentimentos e emoções melhora a qualidade de vida frente a sintomas físicos e crônicos. Muitos autores discutem as vantagens de um processo de reabilitação, ou seja, encorajamento do paciente para retornar às atividades e responsabilidades habituais antes mesmo do desaparecimento do sintoma e desencorajamento de comportamentos relacionados à doença. O processo de reabilitação ajuda o paciente e a família a rever o problema, procurando formas de lidar e ultrapassar os problemas físicos, apesar do desconforto, em vez de permanecer buscando a "curà' 27' 37 • Isso ajuda a mudar a responsabilidade pelo sucesso terapêutico do clínico ou dos pais para o paciente, embora ocorra num contexto de apoio e suporte, tanto dos pais quanto dos profissionais. O objetivo central é restaurar a função, por meio do manejo do prejuízo maior, seja musculoesquelético, neuro lógico, das atividades de vida diária (AVD) ou outras alterações funcionais. É útil permitir ao adolescente participar na determinação dos objetivos a atingir a fim de aumentar o sentimento de domínio da situação. Opaciente é tratado como um agente ativo, empoderado para superar um problema difícil, mas manejável. A melhora é entendida como um sucesso pessoal obtido por meio de trabalho duro e do qual o paciente pode se orgulhar. Intervenções ativas, focadas no problema, parecem ser superiores às passivas, que estão associadas com maior peso sintomático e comprometimento funcional. Os pacientes e familiares devem entender que esperar que opaciente funcione, a despeito do desconforto físico, não é cruel, nas circunstâncias da somatização, mas realmente terapeutlco. Pesquisas sugerem que fatores cognitivos são importantes na somatização: a percepção e amplificação dos sintomas parecem ser acentuadas pelas expectativas e crenças, do paciente e da família, de que os sintomas são os precursores ameaçadores de dano tecidual e incapacidade. Intervenções cognitivo-comportamentais, tais como técnicas de domínio cognitivo de habilidades, associadas a reforço positivo do comportamento saudável, e técnicas de automonitoramento, mostraram-se efetivas no tratamento de dor abdominal recorrente funcional. Intervenções operantes são particularmente relevantes ao ajudar a alavancar melhoras funcionais. Embora faltem pesquisas controladas de intervenções comportamentais em transtornos somatoformes em crianças, vários relatos de caso apontam para potenciais benefícios. Reforço positivo de comportamentos saudáveis assim como extinção ou retirada de reforço para os sintomas físicos, em que o papel de doente estava sendo reforçado, são as estratégias mais enfatizadas. Reforço negativo, que produz um aumento da frequência da resposta desejada A
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retirando um evento aversivo após o surgimento desta, também é empregado no manejo da somatização. Não há estudos sistemáticos da psicoterapia expressiva e interpessoal em crianças com somatização, mas parece que elas podem ser efetivas no manejo de crianças com diabetes de difícil controle, assim como podem ser úteis se há histórico de trauma psicológico27. São relatados resultados com estratégias de autocontrole, especialmente com técnicas específicas como auto monitoramento, treinamento em relaxamento e auto-hip nose e uso de biofeedback. Essas técnicas são úteis por gerarem algum grau de alívio sintomatológico e por promoverem um domínio ativo da situação, o que contribui na melhora funcional. O uso de terapia familiar tem sido sugerido em virtude de pacientes com sintomas físicos inexplicáveis formarem um grupo geralmente visto como prejudicado em termos de saúde e encorajado a adotar o papel de doente, sendo, portanto, importante confrontar a vulnerabilidade física percebida pelo paciente e o encorajamento familiar do comportamento de doente. No entanto, há poucos estudos sobre intervenções familiares nos transtornos de somatização27 • A atribuição de sintomas ao destino ou acaso indica que há falta de senso de controle na doença e comportamento passivo diante dela, com consequente dificuldade em aderir ao tratamento. A comparação entre as representações subjetivas e as percepções da doença do paciente e dos familiares pode permitir construir planejamentos diferenciados para intervenções familiares psicoeducacionais. A orientação de pais pode ajudá-los a ensinar seus filhos a participar de atividades, tanto em casa quanto na escola, apesar da dor que a criança possa estar experienciando. É importante reconhecer que a dor experienciada pela criança com transtorno de somatização é real, ao mesmo tempo em que se mantém o foco no objetivo de ampliar a habilidade da criança de lidar com a dor e participar dos relacionamentos escolares e sociais (Quadro IX). Com o maior entendimento dos mecanismos de transmissão das crenças de saúde dentro da família, que provavelmente são múltiplos, e incluem genética, psicopatologia parenta!, estresse familiar e estilo parental de
Quadro IX
Orientação de pais lidando com a dor24
Limitar ou remover a atenção do comportamento de dor Estimular a criança a ir à escola todos os dias Ajudar a criança a identificar estressares em casa e na escola Oferecer atividades especiais e atenção nos dias em que a criança não tem dor Limitar as atividades recreativas e as interações nos dias em que a criança está doente Não falar excessivamente sobre suas doenças ou desconfortos
cuidado, poderá ser possível desenvolver intervenções com vistas a prevenir o desenvolvimento de transtorno de somatização38 . Não há relatos de uso de psicoterapia de grupo no tratamento de somatização na infância. Não há estudos sistemáticos de uso de medicação psicoativa na somatização em crianças. Evidências de estudos com adultos sugerem que intervenções medicamentosas na comorbidade, como transtorno de ansiedade e depressão, podem melhorar os sintomas físicos associados.
Considerações finais O pediatra deve estar preparado para identificar precocemente pacientes com transtornos de somatização3 . Há estudos que consideram que as famílias querem discutir questões psicossociais e comportamentais com seus pediatras, sendo que essa atitude dos pais depende diretamente da capacidade do pediatra de reconhecer essas questões como relevantes. Geralmente, as crianças acompanhadas nos serviços pediátricos têm relatos mais frequentes dos comportamentos que são desagradáveis para os adultos, pois os pais são mais aptos a discutir os hábitos desagradáveis (como roer unhas), as dificuldades de aprendizagem, os problemas comportamentais, as dificuldades disciplinares e os problemas familiares do que os problemas de seus filhos nas relações sociais e com os colegas. Os fatores que levam à falta ou dificuldade de comunicação entre o pediatra e a família são, entre outros, o pouco tempo disponível na consulta pediátrica para discutir os problemas emocionais ou a falta deresposta do pediatra às demandas familiares sobre as questões psicossociais da criança, que podem levar a família a não mais comunicar suas preocupações nessa área. Pode ocorrer também de o pediatra levantar questões psicossociais baseado na sua observação do caso, mas que não foram relatadas pela família. A comunicação entre a família e o pediatra quanto a questões psicossociais é uma área a ser implementada, pois a melhora da comunicação sobre essas questões pode ajudar o médico do serviço primário de saúde a lidar melhor com os casos, já que cerca de 10% das crianças vistas em clínicas de pediatria geral têm transtornos psiquiátricos, fatores psicossociais associados a doenças físicas ou sintomas físicos inexplicáveis, mas apenas 1 em cada 5 dessas crianças é vista em serviços de psiquiatria39 • Embora alguns modelos teóricos expliquem a ocorrência de doenças físicas e psiquiátricas, o impacto fun cional de ter ambas as condições tem recebido ainda pouca atenção. Crianças com doenças físicas e psiquiátricas costumam apresentar sintomatologia mais severa em vários domínios do funcionamento emocional, assim como maior prejuízo no funcionamento educacional e social. Dados epidemiológicos sugerem que certas doenças físicas (como asma, alergia e transtornos gastrointestinais) são comuns em crianças com transtornos internalizantes, então as clínicas de especialidades pediátricas podem
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ser pontos de detecção e de tratamento. Esforços para detectar transtornos pstqmatncos nessas cnanças, nesses serviços, podem levar a melhor evolução, tanto do ponto de vista médico quanto de saúde mental. O uso de abordagens na infância que leva em conta os aspectos psicossociais pode reduzir padrões indesejáveis de uso dos serviços de saúde, já que os padrões de busca de ajuda são estabelecidos na infância. Se for de todo verdade que o atendimento deve envolver a pessoa como um todo, deve-se, então, considerar todos os membros da família no atendimento. A atenção psiquiátrica estará particularmente indicada quando houver dúvidas quanto à relevância dos fatores psicológicos como causa da sintomatologia do paciente, quando existir uma associação com outro transtorno psiquiátrico de base, quando os problemas familiares dificultarem a resolução habitual do problema e na falta de resposta da criança à abordagem pediátrica. Esforços multidisciplinares também são necessários para otimizar o tratamento e abranger as diferentes necessidades das crianças com sintomas físicos inexplicáveis, com ou sem outro transtorno psiquiátrico associado. Existe alguma evidência de que os pediatras podem oferecer um tratamento efetivo para esse grupo de crianças. No entanto, a efetividade e a aplicabilidade das intervenções pediátricas, psiquiátricas e de outras subespecialidades psicológicas necessita, ainda, de mais estudos40. •
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Questões 1. Considerando-se as crianças somatizadoras como um todo: a) O manejo psicológico é primordial nesses casos. b) São geralmente indiferentes aos sintomas físicos, que não interferem na sua rotina diária. c) São crianças ansiosas e sofredoras cujos pensamentos geralmente se focam em um sintoma físico particular e cujos interesses se estreitam, considerando as áreas compatíveis com a fase do desenvolvimento. d) A relação com seu ambiente é de grande independência e elas geralmente não buscam neste consolo ou ajuda para si. e) Os sintomas que apresentam geralmente estão relacionados diretamente com situações externas e podem ser a elas atribuídos, tanto pelas crianças quanto pela família.
2. Como se apresentam clinicamente os transtornos de somatização na infância? a) O pico da somatização ocorre na infância e a taxa entre os sexos é aproximadamente igual, exceto para sintomas neurológicos, quando meninas> meninos. b) Sempre se identificam claramente os fatores predisponentes e/ou precipitantes responsáveis por despertarem ou acentuarem a sintomatologia. c) Os sintomas têm uma ordem de aparecimento lógica. d) Crianças com sintomas físicos inexplicáveis podem apresentar uma variedade de problemas, desde episódios recorrentes
de dor abdominal ou cefaleia a sérias perturbações neurológicas ou pseudocrises convulsivas. e) A evolução natural dos transtornos de somatização na infância é bem conhecida e é possível fazer um prognóstico acurado em cada caso.
3. Várias teorias foram propostas para explicar a etiologia e patogênese dos transtornos somatoformes. Baseado nelas: a) O médico, descartando o papel de doente, sempre ajuda o paciente somatizador a compreender a gênese de seu problema. b) A falta de cuidado parenta! pode predispor a pessoa à psicopatologia em tempo de estresse, enquanto a exposição da criança a doenças e comportamento de doente pode levar à somatização como expressão de sofrimento emocional. c) O paciente somatizador tem um estilo de apego seguro, sugerindo cuidados adequados na infância. d) A exposição da criança a pais que lidam com a dor e com as doenças de maneira exagerada leva-a a adotar estratégias comportamentais adaptativas frente à dor e às doenças. e) Crianças frequentemente hospitalizadas, mudadas de lares e de cuidadores, com pais com problemas emocionais, não têm maiores probabilidades de desenvolverem somatização que crianças de grupos-controle. 4. A avaliação é a base para as intervenções subsequentes e de importância crítica no contexto de suspeita de somatização na infância. Assim, considera-se que: a) As escalas baseadas nos autorrelatos de crianças são muito confiáveis. b) Uma avaliação ampla deve sintetizar a informação obtida diretamente dos pacientes e seus pais, por entrevista, questionários e observação direta, com a informação médica objetiva, obtida de prontuários e relatórios médicos. c) Na avaliação do ambiente familiar deve-se priorizar os eventos estressares vitais negativos, tais como a perda ou morte de um membro da família. d) Os "ganhos secundários" não têm grande relevância na infância, ao contrário de sua importância no adulto. e) O diagnóstico de somatização pode ser feito como um diagnóstico de exclusão. 5. O uso de abordagens na infância, que leva em conta os aspectos psicossociais, pode reduzir os padrões indesejáveis de uso de recursos de saúde, já que os padrões de busca de ajuda são estabelecidos na infância. Ao planejar o tratamento dos transtornos somatoformes deve-se levar em consideração as avaliações e os tratamentos prévios realizados, investigados os medos e o sofrimento dos pacientes e as preocupações da família. Qual alternativa abaixo contempla melhor as considerações expressas no texto? a) O tratamento médico e a reasseguração de que o risco de morte ou doença grave estão ausentes são os pontos mais importantes dentro do processo terapêutico da somatização na infância.
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b) A psicoterapia expressiva interpessoal não tem nenhuma indicação em crianças com somatização. c) Psicoterapia familiar associada a técnicas de automonitoramento. treinamento em relaxamento e auto-hipnose e uso de biofeedback não são muito efetivas para gerar alívio sintomatológico nem para promover domínio ativo da situação. assim contribuindo para a melhora funcional. d) Pacientes com sintomas físicos inexplicáveis devem ser vistos várias vezes por vários profissionais de saúde. e) O processo de reabilitação ajuda o paciente e a família a rever o problema procurando formas de ultrapassá-lo a despeito do desconforto físico e isso. na situação de somatização, é terapêutico.
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Transtornos Alimentares
Fábio Tápia Salzano Eduardo Wagner Arata ngy Alexandre Pinto de Azevedo
Fernanda Pisciolaro Anny de Mattos Barroso M aciel Táki Athanássios Cordás
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Anorexia nervosa, 931 Quadro clínico, 932
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Diagnóstico, 933 Epidemiologia, 934 Fatores etiológicos, 935 Comorbidades na anorexia nervosa, 936 Curso e evolução, 936 Avaliação nutricional, 937 Tratamento, 937 Bulimia nervosa, 939 Histórico, 939 Epidemiologia, 939
1. Conhecer o histórico, epidemiologia e etiopatologia dos transtornos alimentares. 2. Conhecer o quadro clínico e o diagnóstico da anorexia nervosa, bulimia nervosa, transtorno alimentar não especificado e transtorno da compulsão alimentar periódica. 3. Reconhecer seus aspectos psicopatológicos mais relevantes. 4. Conhecer os aspectos particulares dos transtornos alimentares na gestação, em idosos e diabéticos. 5. Conhecer os aspectos recentes dos tratamentos farmacológicos, nutricionais e psicoterápicos.
Etiopatogenia, 939 Quadro clínico, 940 Diagnóstico, 941 Complicações clínicas, 941 Comorbidades. 942 Curso e evolução, 942 Tratamento, 942 Diferenças clínicas, 943 Transtorno da compulsão alimentar periódica, 943 Epidemiologia, 943 Quadro clínico e diagnóstico, 945 Tratamento farmacológico, 945 Transtornos alimentares e obesidade, 946 Síndrome alimentar noturna, 946 Transtornos alimentares relacionados à cirurgia bariátrica, 947 Transtorno alimentar sem outra especificação, 948 Transtorno alimentar em populações especiais, 948 Questões, 949 Referências bibliográficas, 950
Anorexia nervosa A anorexia nervosa (AN) se caracteriza como um transtorno alimentar (TA) no qual ocorre perda de peso autoinfringida na busca por magreza, acompanhada por
distorção da imagem corporal e alterações hormonais devidas à desnutrição (amenorreia ou ciclos menstruais irregulares, hipogonadismo hipotalâmico, retardo no desenvolvimento da puberdade e redução do interesse sexual) 1•2 • O termo anorexia não é o mais adequado para definir essa síndrome, já que não necessariamente cursa com perda do apetite. O termo alemão Magersucht (busca por magreza) é, do ponto de vista psicopatológico, mais adequado para caracterizar esse transtorno alimentar, já que a busca obsessiva pelo controle do peso é o sintoma cardinal do quadro 3 . Medo mórbido de engordar, insatisfação significativa com o próprio corpo e distorção da imagem corporal constituem, em geral, as motivações para a busca por magreza na anorexia nervosa2 • Em geral, o curso da AN é crônico, com graves manifestações psíquicas e clínicas. Embora tenha baixa prevalência, é responsável pela maior taxa de morbimortalidade entre todos os transtornos psiquiátricos2•3 • Mulheres entre 15 e 25 anos são o grupo mais atingido pela AN. Apenas 4 a 6% dos pacientes pertencem ao sexo masculi-
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no. O risco de uma mulher desenvolver AN durante a vida é de aproximadamente 0,2 a 0,5%2 '4 ' 5 •
Quadro clínico O quadro inicia-se quase sempre após uma dieta, em razão da insatisfação com o peso ou a imagem corporal. Inicialmente, são evitados alimentos ricos em carboidratos e aqueles considerados "engordativos" 4 • Observa-se com frequência repulsa e dificuldade para lidar com a alimentação, o que gera importantes alterações no padrão e no comportamento alimentar. Ainda que pacientes com AN possam conhecer profundamente os valores nutricionais dos alimentos, diversos comportamentos e crenças ligados à alimentação podem ser observados (Quadro I) 2,4 . Com o agravamento da AN, o paciente passa arestringir progressivamente sua alimentação, chegando a abolir grupos alimentares e minimizar o número de refeições 2 ' 5 • Em geral, o quadro clínico é crônico e associado a complicações clínicas decorrentes da desnutrição e dos métodos compensatórios inadequados (indução de vômitos, uso de laxantes e diuréticos, fórmulas para emagrecer, realização de exercício físico excessivo, uso inadequado de insulina e hormônios da tireoide, amamentação com a intenção de perder peso, sangrias autoinfringidas etc.)2'5' 6 • O paciente anoréxico passa a ter como meta emagrecer a qualquer custo. Embora a perda de peso seja cada vez maior, mostra-se constantemente insatisfeito com o resultado obtido, queixando-se de estar gordo ou de que algumas partes de seu corpo ainda precisam ser reduzidas. A distorção de imagem corporal é um dos mais inquietantes fenômenos da psicopatologia.
Quadro I
Comportamentos frequentes em pacientes com AN
Esconder alimentos no armário, no banheiro ou em roupas. Dividir as refeições em pequenas porções. Preparar alimentos para os outros. Mastigar lentamente pequenas quantidades de comida. Ruminação do alimento (mastigação seguida de descarte do alimento ou deglutição seguida de regurgitação). Evitar comer na presença de outras pessoas. Interessar-se por tudo o que está relacionado à culinária e a dietas. Ter um grande conhecimento sobre as calorias dos alimentos e sobre nutrição. Acreditar que alimentos consumidos se transformam imediatamente em gordura corporal. Evitar grupos alimentares específicos, muitas vezes com justificativas ideológicas (vegetarianismo, macrobiótica etc.). Crenças rígidas e perfeccionismo em relação a modelos estéticos e "saudáveis".
Há diversas alterações clínicas no decorrer da doença, porém, com a recuperação completa e manutenção da melhora nutricional, os parâmetros geralmente se normalizam. Mesmo pacientes que não completam todos os critérios para AN podem apresentar tais alterações 1,5 -7 • As principais alterações orgânicas decorrentes da AN serão listadas a seguir, classificadas por sistemas: • Pele e anexos: crescimento de lanugo (pelos finos) nos braços e pernas, face e tronco. Isso geralmente ocorre no período de maior perda de peso e está relacionado com baixo índice de massa corpórea e amenorreia. Pele seca, unhas finas e quebradiças e cabelo seco são outras manifestações frequentes 1' 5'7 . • Sistema digestório: queixas de constipação intestinal, intolerância alimentar, cólicas e dores abdominais difusas podem persistir por décadas ou indefinidamente3 • No início da realimentação, pode haver epigastralgia, náuseas, flatulência, câimbras e diarreia, que tendem a melhorar após duas semanas. Hepatite secundária à desnutrição pode manifestar-se com elevação das transaminases e bilirrubina e redução das proteínas séricas5'7 • Pode ocorrer rotura gástrica espontânea durante a realimentação ou após vômitos 1• Esofagite de refluxo e sangramentos mucosos são alterações fágicas comuns. Nos casos crônicos com ocorrência de vômitos surgem complicações como o esôfago de Barrett e as rupturas esofágicas. Perdas dentárias, lesões orais e halitose também são ocorrências comuns5'8. • Sistema cardiovascular: as alterações são potencialmente fatais, sendo as taquiarritmias ventriculares o motivo principal de óbito. A perda de peso grave leva à disfunção ventricular sistólica e diastólica, com risco de insuficiência cardíaca congestiva, especialmente durante a realimentação5 • Pode haver prolapso da válvula mitral em mulheres, que costuma ser solucionado espontaneamente após ganho de peso. Miocardiopatia também pode ser decorrente do uso exagerado de ipeca pelos pacientes8. Eventualmente ocorrem alterações no intervalo QT ao eletrocardiograma (ECG) e redução da frequência cardíaca (FC) basal, que normalizam após recuperação nutricionaP'7 • Em pacientes com AN crônica, notou-se que a FC mantém-se baixa, o que, associado a aumento do intervalo QT, eleva o risco de morte súbita5' 9 • Na presença de batimentos ventriculares prematuros frequentes, intervalo QT aumentado (maior que 450 mseg ou aumento de 60 mseg em relação ao ECG basal), que ocorre em vigência de hipocalemia, hipomagnese mia ou hipofosfatemia graves, deve-se considerar a mo nitorização cardíaca5. • Sistema imunológico: ocorre diminuição global da imunidade, com efeitos variáveis no que tange a imunidade humoral e consequências deletérias evidentes na imunidade celular, reversíveis após realimentação. Apesar desse defeito na imunidade, não são frequentes infecções nos pacientes anoréxicos. Surgem altos níveis de interleucina1~ e fator de necrose tumoral-a circulantes, o que parece
69 TRANSTORNOS ALIMENTARES
ser uma das causas da disfunção de subpopulações dos linfócitos Te do status de ativação desses linfócitos (principalmente down-regulation dos sistemas de ativação de CD2 e CD69). Essas alterações levam não só à disfunção dos linfócitos T (imunidade celular), mas também dos linfócitos B (imunidade humoral), como consequência. Elas são revertidas após a recuperação nutricional5,8 • • Sistema reprodutivo: pode sofrer danos permanentes em até 30% das pacientes que se recuperam do TA. Os ciclos hormonais reprodutivos se mantêm bastante sensíveis às flutuações de peso. Os ciclos menstruais podem não ocorrer por, aproximadamente, um ano após a recuperação do peso normal, mesmo que algum nível de estrogênio seja detectável antes disso 2' 5'7 . • Sistema endocrinológico: a disfunção hipotalâmica pode causar redução do hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH), bem como diminuição da resposta da hipófise ao seu estímulo, o que gera um padrão de resposta semelhante ao pré-púbere. Ocorre então redução dos níveis dos hormônios folículo -estimulante (FSH) e luteinizante (LH), interrompendo-se a variação episódica dos níveis deste último. Consequentemente, ocorre queda dos níveis de estrogênio nas mulheres. Em homens anoréxicos, o mesmo quadro é observado, levando à redução dos níveis de testosterona5' 7' 8 • A amenorreia pode ser um sintoma de surgimento precoce. Seu principal mecanismo causador parece ser a deficiência de liberação de LHRH pelo hipotálamo. Tal sintoma tende a reverter com a recuperação nutricional, mas pode persistir por longos períodos, até mesmo após a recuperação ponderal5'8 . Outras anormalidades decorrentes da disfunção hipotalâmica são deficiência nos mecanismos de reabsorção da água corporal, levando a diabetes insipidus, anormalidades da função termorreguladora e ineficácia na produção de tremores5'7' 9. Ocorrem sinais que sugerem hipotireoidismo, incluindo constipação, intolerância ao frio, bradicardia, hipotensão, pele seca, prolongamento do tempo de resposta nos reflexos profundos, taxas metabólicas reduzidas e hipercarotenemia. Essas parecem ser alterações hipometabólicas compensatórias2' 5'8 . Há elevação dos níveis de hormônio do crescimento e redução do insuline-like growth Jactar (IGF), anormalidades que tendem a se resolver após recuperação nutricional5' 9 • As alterações metabólicas presentes, como redução da taxa de metabolismo, aumento do cortisol (que estimula a gliconeogênese e reduz a utilização periférica de glicose) e diminuição das gonadotrofinas (com consequente redução da fertilidade), são todas adaptações biológicas à desnutrição5'8 . • Sistema osteomuscular: provavelmente as complicações físicas mais persistentes sejam a osteopenia, a osteoporose e as perdas e erosões dentárias secundárias a vômitos e à desnutriçãos,s,Jo,ll. A osteopenia pode levar à incapacitação secundária a fraturas recorrentes e dor crônica. Ela parece estar relacionada com baixa ingesta ca-
lórica, de cálcio e vitamina D, baixo peso, início precoce e longa duração da amenorreia, atividade física reduzida, deficiência de estrogênio e hipercortisolismo 5' 9, 10 • A amenorreia na adolescência e em adultos jovens pode ter um efeito permanente no dano causado à densidade óssea, já que ocorre um aumento rápido dessa densidade na puberdade e existem evidências de que o pico de massa óssea deve ser atingido antes dos 20 anos. Estudos longitudinais da densidade óssea mostram que há pequena ou nenhuma reversão da osteopenia com a resolução da amenorreia 12- 15. • Sistema neurológico: síndrome orgânica cerebral secundária a desnutrição proteico-calórica, deficiências (magnésio, cálcio, fósforo, tiamina e vitamina B12) e toxicidade pela vitamina A, pseudoatrofia cerebral, convulsões e nível de consciência rebaixado. Após a recuperação, não é possível dizer ainda se há a persistência de lesão cerebral, embora trabalhos recentes sugiram que déficits neuropsicológicos, em particular da memória de curta duração, possam persistir. Não se tem conhecimento se tais déficits são definitivos ou transitórios e sobre como se relacionam com o tempo e a gravidade da doença. Quando em vigência de baixo peso, esses pacientes apresentam quantidade aumentada de líquido cefalorraquidiano (LCR) e quantidades totais reduzidas de substância branca e cinzenta. Após recuperação nutricional, tais alterações mostraram reversão aparentemente completa5' 7-9 . Pacientes que não se recuperam mantêm sintomas da fase aguda geralmente em menor intensidade, como fraqueza muscular, diminuição da capacidade de exercer atividades físicas, síncopes, cansaço, incontinência uri nária ao estresse, câimbras, problemas intestinais, dores difusas, fraturas ósseas patológicas e redução da capacidade imunológica3'7' 9 •
Diagnóstico O Manual Diagnóstico e Estatístico da Associação Americana de Psiquiatria, atualmente em sua 4a edição (DSM-IV), distingue dois subtipos de AN baseados na presença ou ausência de sintomas bulímicos associados 1• Pacientes com AN que apresentam episódio de compulsão alimentar ou utilizam métodos purgativos (como indução de vômitos, abuso de laxantes e diuréticos) são considerados do subtipo purgativo. Eles possuem maior comorbidade de quadros ligados à impulsividade, incluindo abuso de substâncias, transtornos de personalidade do cluster B (borderline, histriônico, narcisista e antissocial), labilidade afetiva e maiores índices de suicídio. Além disso, podem apresentar complicações médicas mais graves em razão dos comportamentos purgativos associados ao baixo peso2' 5'7 • O subtipo restritivo caracteriza-se pela marcada utilização da restrição alimentar como método para perder peso, sem o uso regular de métodos purgativos. Tal restrição alimentar pode estar
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro 11
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Complicações clínicas da AN
Pele e anexos
Pele com aspecto amarelado por hipercarotenemia, pele seca, lanugo, cabelos finos e quebradiços, perda de cabelo.
Sistema digestório
Retardo no esvaziamento gástrico, diminuição de peristaltismo intestinal, pancreatite e constipação intestinal, alterações de enzimas hepáticas, lesões esofágicas causadas por vômitos, perda dentária.
Sistema circulatório
Bradicardia, diminuição da pressão arterial, arritimias, insuficiência cardíaca, parada cardíaca, hipotensão postura!, aumento do intervalo QT, miocardiopatias.
Sistema excretor
Edema, cálculo renal, aumento de ureia sérica, poliúria, desidratação.
Sistema hematológico
Anemia, leucopenia, trombocitopenia.
Sistema reprodutivo
lnfertilidade, recém -nascidos com baixo peso, partos prematuros, complicações perinatais.
Eletrólitos
Hipocalemia, hiponatremia, hipofosfatemia e hipomagnesemia.
Sistema endocrinológico
Amenorreia, diminuição de gonadotrofinas, LH e estrogênios, hipotireoidismo, aumento do hormônio do crescimento, do cortisol e das leptinas.
Outras alterações
Hipotermia e intolerância ao frio, convulsões, osteopenia/osteoporose, hipoglicemia, atrofia cerebral, alterações neurocomportamentais.
Quadro 111
Critérios diagnósticos para AN segundo o DSM-IV
Recusa em manter o peso dentro ou acima do mínimo normal adequado à idade e à altura. Por exemplo, perda de peso, levando à manutenção do peso corporal abaixo de 850fo do esperado, ou fracasso de ter o peso esperado durante o período de crescimento, levando a um peso corporal menor que 850fo do esperado. Medo intenso do ganho de peso ou de se tornar gordo, mesmo com baixo peso. Perturbação no modo de vivenciar o peso, tamanho ou forma corporais; excessiva influência do peso ou forma corporais na maneira de se autoavaliar; negação da gravidade do baixo peso. Em mulheres: ausência de pelo menos três ciclos menstruais consecutivos (amenorreia). Subtipos Restritivo: não há episódio de comer compulsivo ou prática purgativa. Purgativo: existe episódio de comer compulsivamente e/ou purgação.
acompanhada ou não por atividade física excessiva e uso de anorexígenos (inibidores de apetite, hormônios sintéticos, entre outros) 2·6 . Tanto o DSM -IV quanto a Classificação Estatística Internacional das Doenças Relacionadas à Saúde, em sua 10a edição (CID- 10), reconhecem o baixo peso autoinduzido, perturbações da imagem corporal e alterações hormonais como critérios necessários ao diagnóstico da AN 1•2·7 • Os Quadros III e IV listam os critérios diagnósticos da AN segundo o DSM -IV e a CID- 102.
Epidemiologia A prevalência de AN é estimada entre 0,5 a 1% da população. Cerca de 90% dos pacientes são do sexo feminino, com maiores taxas entre caucasianos e pessoas de classe social média e alta. Nos últimos anos, a crença de que essa seria uma "doença das meninas bem-nascidas" tem sido contestada, em razão do desenvolvimento do quadro
Quadro IV
Critérios diagnósticos para AN segundo a CID- 1O
Há perda de peso ou, em crianças, falta de ganho de peso. O peso corporal é mantido em pelo menos 15% abaixo do esperado (ou IMC < 17,5 kg/m 2). A perda de peso é autoinduzida pela evitação de "alimentos que engordam". Há distorção na imagem corporal na forma de psicopatologia específica com medo de engordar ou ter o corpo disforme por conta da gordura corporal. Ocorre um transtorno endócrino generalizado envolvendo o eixo hipotalâmico-hipofisário-gonadal, sendo manifestado em mulheres como amenorreia e em homens como uma perda de interesse e potência sexuais. Comentários: Se o início é pré-púbere, a sequência de eventos da puberdade é demorada ou mesmo detida (o crescimento cessa; nas garotas, as mamas não se desenvolvem e há amenorreia primária; nos garotos, os genitais permanecem juvenis). Os seguintes aspectos corroboram o diagnóstico, mas não são elementos essenciais: vômitos autoinduzidos, purgação autoinduzida, exercícios excessivos e uso de anorexígenos e/ou diuréticos.
em indivíduos de classe social mais baixa2·5•6 • Estima-se que a incidência de casos novos em mulheres jovens seja de cerca de 8 por 100 mil pessoas. Em homens, o índice é menor que 0,5 por 100 miF. Algumas profissões apresentam maior chance para o desenvolvimento de AN, em especial aquelas ligadas à estética e ao corpo, como bailarinas, atletas, profissionais da moda, atrizes e atores, estudantes de nutrição, medicina e psicologia. Para os pacientes do sexo masculino, a prevalência mostra-se crescente, em especial entre ho mossexuais2. Pacientes portadores de diabetes, fibrose cística e espinha bífida possuem maiores chances de desenvolver AN 7•8• Dentre os transtornos psiquiátricos, a AN apresen-
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ta as maiores taxas de morbimortalidade. Metade das mortes em pacientes com AN ocorre por suicídio e o restante, por complicações clínicas decorrentes do quadro, em especial arritmias cardíacas. Estima-se que a mortalidade em portadoras de AN seja 12 vezes maior que aquela observada na população de mesmo sexo e faixa etária2 • Estudos epidemiológicos ainda são escassos nessa área, podendo haver subestimação dos casos. Ao se considerar os erros diagnósticos, quadros parciais e as migrações diagnósticas (p. ex., pacientes que tinham bulimia nervosa e passam a preencher critérios para AN), esses índices podem ser maiores. Além disso, muitos dos pacientes com TA, em especial aqueles com AN, não se julgam doentes, o que prejudica as estimativas populacionais6.
góticos. A agregação familiar da AN revela a presença de fatores biológicos envolvidos na AN, ainda que eles não sejam claramente compreendidos2 ' 6 ' 7 • A presença de comorbidade psiquiátrica parece ser regra, não exceção. Na AN, ocorrem mudanças na neu rotransmissão, assim como em outros quadros psiquiátricos, o que pode causar alterações em moduladores da fome2 • Ocorre aumento do nível de cortisol sérico, o que levaria a diminuição do apetite, hipogonadismo hipo talâmico e redução do interesse sexuaF. No entanto, tais fenômenos não podem ser considerados suficientes para explicar os transtornos alimentares. Especula-se sobre o papel de diversos neurotransmissores e mediadores da fome (grelina, leptina e peptídeo Y) na patogênese da AN, sem dados reveladores.
Fatores etiológicos
Influência familiar
A etiologia da AN está relacionada a interações de fatores ambientais, psicológicos e fisiológicos, os quais criam e mantêm o comportamento alimentar. Sendo assim, quanto maior a compreensão da relação entre eles, maior e melhor será sua prevenção e tratamento7 . Fatores psicológicos
Existe a descrição clássica do tipo psicológico dos pacientes portadores de AN. Obviamente tal redução não contempla todos os casos, mas pode servir para facilitar a identificação de traços comuns em pacientes com AN. Tais características psicológicas encontram-se listadas a seguir2 ' 5 ' 7 : • alta esquiva ao dano e baixa busca por recompensas; • grande preocupação com a autonomia, a identidade e a separação; • distúrbios perceptuais e da imagem corporal; • preocupação excessiva com o peso; • distúrbios cognitivos (crenças disfuncionais); • acentuada autocrítica, perfeccionismo, sensibilidade a críticas, baixa autoestima e ansiedade interpessoal aumentada. • abuso físico e sexual na infância.
As taxas de TA entre parentes de primeiro grau são 6 a 1Ovezes maiores do que em relação à população em geraF'7'9 • O índice de incidência intrafamiliar pode ser compreendido não apenas como um fator hereditário, mas também como aprendizagem comportamental. Dependência de álcool, transtornos afetivos e obesidade também são mais comuns entre familiares de pacientes com TA2. Aponta-se a rigidez familiar, relações parentais disfuncionais e a grande importância dada às aparências, tanto na questão física quanto no desempenho de diversos setores da vida, como possível fator que influencie o aparecimento da AN 9 • Além disso, pais excessivamente preocupados com os filhos podem contribuir para a etiopatogenia da AN9 • Cultura
O ambiente cultural e a moda são determinantes na patogênese da AN. Os padrões de beleza e de saúde são, atualmente, vinculados à magreza, o que leva a pressões sociais por ideais estéticos esguios e até caquéticos. Na verdade, ser magro acaba por significar ser feliz, bemsucedido, aceito, respeitado e desejado 2' 9 . Conforme mencionado anteriormente, há profissões de risco para o desenvolvimento de TA, como modelos, bailarinas, atletas, atores e estudantes de medicina, nutrição e psicologia2' 9 . Didaticamente, pode-se dividir os principais componentes etiológicos da AN em três fatores 2 :
Fatores biológicos
Muitos estudos têm se voltado para a predisposição biológica hereditária, embora não haja comprovação definitiva. As variáveis biológicas participam da patogenia da AN, não como fatores causais, mas precipitantes, como no caso das mudanças hormonais da puberdade, e fatores mantenedores, como o efeito da desnutrição no estado mental dos pacientes7 • Ocorre maior concordância de casos de AN entre gêmeos homozigóticos em comparação com heterozi-
• Fatores predisponentes: sexo feminino, história familiar de TA, baixa autoestima, perfeccionismo e dificuldade de expressar emoções. • Fatores precipitantes: dieta, separação e perda, alterações na dinâmica familiar, expectativas irreais na escola/trabalho/vida pessoal e proximidade da menarca. • Fatores mantenedores: alterações neuroendócrinas, distorção da imagem corporal, distorções cogniti, . . vas e praticas purgativas.
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Comorbidades na AN Comorbidade de eixo I
O subtipo purgativo da anorexia apresenta maior prevalência de comorbidades psiquiátricas do que o subtipo restritivo. Há muito tempo se relaciona AN e depressão, sendo essa a comorbidade mais prevalente nas ano réxicas, com taxa aproximada de 40% em pacientes com o subtipo restritivo e de 82% em pacientes com o subtipo purgativo. Algumas das alterações encontradas, como cansaço, irritabilidade, humor disfórico, perda de libido, insônia e dificuldade de concentração podem ser decorrentes do estado nutricional alterado. Com o ganho de peso, a sintomatologia tende a desaparecer na ausência de real comorbidade2•3 • Em segundo lugar, aparecem os transtornos ansiosos, com taxa de 24% para o subtipo restritivo e 71% para os pacientes com AN do subtipo purgativo. A prevalência ao longo da vida de transtorno obsessivo compulsivo (TOC) entre as mulheres com AN varia de 10 a 62%2•3 • A dependência de álcool e drogas atinge até 25% dos pacientes com TA2•3•5. Comorbidade de eixo li
Em anoréxicos do subtipo purgativo, encontram-se mais alterações de personalidade, particularmente do tipo borderline, ao passo que os transtornos evitativo e anancástico de personalidade apresentam prevalência maior no subtipo restritivo 2•3 .
Curso e evolução As taxas de recuperação da AN são variáveis, estimando -se recuperação completa em torno de 50% dos pacientes. Outros 30% evoluem com alternância entre períodos de melhora e de recidiva da doença. O restante apresenta um curso grave, com complicações físicas e psicológicas mais sérias, encampando os pacientes que se tornam crônicos e refratários. O índice de mortalidade varia de 5 a 20%5 • Alguns fatores são preditivos de uma má evolução da doença, como peso muito baixo no início do tratamento, aparecimento tardio do transtorno, presença de comorbidades psiquiátricas, utilização de métodos purgativos, baixo peso na alta hospitalar, relações familiares comprometidas e demora na procura de tratamento 2•3•5 • A distorção da imagem corporal, sintoma nuclear dos TA, tende a permanecer em grande parte dos pacientes anoréxicos, constituindo um desafio para futuros estudos2•3 • Para minimizar as possíveis complicações físicas causadas pela AN ao longo do tempo, o rápido diagnóstico e o tratamento adequado são essenciais 10•11 • É comum os pacientes se tornarem vegetarianos no decorrer da AN e apresentarem grande conhecimento sobre o conteúdo calórico dos alimentos e sobre dietas de emagrecimento,
com supervalorização do uso de alimentos diet e light, visando à perda de peso4•14•16•17 • O consumo excessivo de café e de refrigerantes de baixas calorias pode ser uma estratégia para mascarar a fome 18•19 . Nos últimos anos, surgiram descrições na mídia de comportamentos alimentares alterados ainda não descritos como patologias psiquiátricas. Na ortorexia haveria a busca obsessiva por alimentos pretensamente saudáveis, orgânicos ou livres de toxinas. Tal tendência tem gerado o surgimento de padrões alimentares bizarros e extremamente restritivos. Uma boa definição de comportamento ortoréxico seria gastar mais energia na busca do alimento correto do que se obtém na alimentação. Outros termos como Drunkorexia e Vigorexia têm sido utilizados de modo não acadêmico e significariam, respectivamente, o uso abusivo de álcool e atividade física exagerada como métodos compensatórios para promover a perda de peso5. Em razão do medo de engordar, pacientes com AN denominam como alimentos bons os que "não engordam': os que possuem poucas calorias (saladas e frutas), e como alimentos ruins aqueles que são proibidos na dieta por apresentarem um conteúdo calórico maior ( carnes, doces, massas, pães, frituras e fast-food) 17•18 • Assim, o padrão dietético encontrado é de ingesta alimentar hipocalórica, pobre em macro e micronutrientes, com restrição de alimentos ricos em lipídios e, em muitos casos, de carboidratos4 •17•18 • Apesar de uma dieta inadequada, deficiências de vitaminas e minerais são raramente observadas na AN. Isso pode ser atribuído à diminuição da necessidade metabólica de micro nutrientes no catabolismo, à suplementação de vitaminas e minerais feita pelo próprio paciente e à amenorreia, que poupa o organismo da perda periódica de sanguell.
Quadro V
Exames na avaliação inicial e alterações mais comuns2.7
Hemograma completo: anemias e alterações hematológicas decorrentes de carências nutricionais específicas e alterações no número de células brancas. Potássio, cálcio ionizável, magnésio, sódio e fósforo séricos: desequilíbrios iônicos. Glicose sérica: hipoglicemia e diabetes. Proteínas totais e frações: sinais mais graves de desnutrição e desequilíbrio proteico. Ureia e creatinina: função renal. TSH e T4 livre: alterações da tireoide. Fosfatase alcalina: comprometimento pancreático. TGO, TGP e gama-GT: função hepática. Eletrocardiograma: arritmias e outras alterações cardiológicas. Densitometria óssea: osteopenia e osteoporose. Exames de neuroimagem (RM ou TC): quando houver suspeita de quadro neurológico associado.
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Avaliação nutricional Antropometria e composição corporal
A correta obtenção do peso e da estatura dos pacientes e a comparação com padrões de referência de normalidade para idade e sexo são importantes para se verificar o estado nutricional e também para acompanhar a evolução do paciente ao longo do tratamento 14 . O indicador nutricional mais utilizado em adolescentes e adultos é o índice de massa corporal (IMC), calculado pela divisão do peso (kg) pela altura (m) elevada ao quadrado, expresso por kg/ m 2 • A gravidade do quadro de AN pode ser considerada moderada quando o IMC estiver próximo de 17,5 kg/m2 , e grave quando o valor for inferior a 15,0 kg/m 2. 11•16 A verificação das pregas cutâneas é utilizada como medida de adiposidade e pode ajudar a determinar a composição corporal do ganho de peso e servir de ferramenta educacional para se explicar sobre a massa magra e a massa gorda. Em adultos, o cálculo da gordura corporal é feito a partir da soma das pregas do bíceps, tríceps, subescapular e suprailíaca, e classificado segundo Durnin, 197411 •13 • Durante a recuperação aguda de peso, predomina o ganho de massa gorda, com acúmulo inicialmente na região do tronco 18• 19 • A análise de bioimpedância não é recomendada em pacientes com AN por conta das mudanças nos fluidos intra e extracelular e da desidratação crônica 11 •
Tratamento O tratamento da AN requer profissionais de diversas áreas. A equipe mínima é composta por nutricionista, psicólogo e médico psiquiatra. Em razão da complexidade do quadro, é importante intervir junto à família para que ela auxilie no programa de acompanhamento2•7•9 • A abordagem na AN deve compreender o tratamento de complicações clínicas e comorbidades clínicas e psiquiátricas; promover recuperação cognitiva, volitiva e afetiva, do medo mórbido de engordar e da insatisfação relativa à imagem corporal; envolver a família dos pacientes nas diversas modalidades de tratamentos oferecidos; prevenir recaída e recorrência do quadro ali mentar disfuncional; promover recuperação funcional e de autoestima; e desenvolver autorresponsabilização sobre o tratamento7•9 • O papel das medicações na AN é menor que na bulimia nervosa. No entanto, tendo em vista a existência frequente de comorbidades, seu uso se torna necessário em muitos casos. Pela desnutrição e comorbidades clínicas que acompanham o quadro, o risco de efeitos tóxicos nessas pacientes é maior que na população geral, sendo de fundamental importância estar alerta ao surgimento de tais efeitos2•5 • O tratamento da AN pura (cerca de 16% dos casos) é a renutrição criteriosa. O uso de qualquer medicamen-
to na AN sem comorbidades ainda necessita de estudos controlados2•3•5 • Estudos com sulpirida, pimozide, tetrahidrocanabinol, reposição de zinco, antidepressivos e cisaprida não mostraram resultados promissores no tratamento da AN5 . A fluoxetina pode melhorar o prognóstico de pacientes com AN após terem atingido peso adequado, prevenindo recaídas. Em casos favoráveis, ela promoveria atenuação na psicopatologia do TA, no humor disfórico e nos pensamentos obsessivos5•9 • A olanzapina tem diminuído a ansiedade e melhorado aspectos psicopatalógicos da AN, além de contribuir para o ganho de peso em estudos abertos; no entanto, não há estudos controlados para comprovar tais evidências. A cipro-heptadina pode ser usada para facilitar o ganho de peso. Ela possui propriedades anti-histamínicas e pode ser utilizada como orexígeno subtipo restritivo4 . Em alguns casos, sintomas depressivos remitem com a melhora nutricional, fazendo parte da sintomatologia decorrente da anorexia4 • Quando indicado o uso de antidepressivos por comorbidades, dá-se preferência aos inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS) pela sua boa eficácia associada a baixas cardio e neuro toxicidade. Deve-se evitar o uso de antidepressivos tricíclicos e inibidores da monoamino -oxidase em razão do potencial de toxicidade, interação medicamentosa e incompatibilidade com certos alimentos. A bupropiona também não deve ser usada, já que aumenta o risco de convulsões5 • Entre os tranquilizantes, podem ser usados olanzapina, clorpromazina e loxapina, mas devem ser monitorizados efeitos extrapiramidais ( distonia aguda, discinesia tardia, acatisia, parkinsonismo e síndrome neuroléptica maligna) e, se presentes, deve ser realizada redução da dose ou suspensão da medicação 5•7 . Benzodiazepínicos podem ser utilizados por seu efeito ansiolítico, em especial quando administrados antes das refeições, mas não estão indicados em tratamentos de longo prazo5 . O tratamento da AN depende da gravidade e cronicidade da parte clínica e comportamental e pode ser sob regime de internação, hospital-dia ou ambulatorial 11 • Como o monitoramento do peso é uma ferramenta importante que determina a progressão do paciente, devese estabelecer um protocolo para que um profissional seja responsável pela pesagem do paciente no regime de internação. Esse protocolo deve contemplar o intervalo entre as pesagens e se o paciente será ou não informado do peso. No regime ambulatorial, a consulta nutricional é o momento mais apropriado para pesar o paciente, discutir possíveis reações ao se pesar e explicar sobre as mudanças ponderais9•11 . A restauração clínica e nutricional feita primeiramente torna a terapia psicológica mais efetiva. A restauração do peso não significa a cura da doença e o ganho ponderai forçado sem suporte psicológico é contraindi-
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
cado. Um plano alimentar individualizado com refeições estruturadas e orientações nutricionais sem muitas restrições dietéticas pode ajudar no tratamento 11. Uma técnica efetiva envolve também mudanças nas crenças errôneas e no auxílio ao paciente a ter percepções e interpretações mais adequadas sobre dieta, nutrição e relação entre inanição e sintomas físicos 5•9·11. A terapia nutricional deve ser rapidamente iniciada para permitir que o paciente entenda suas necessidades nutricionais e para se ajustar e adaptar o plano alimentar às necessidades clínicas e nutricionais. No início do tratamento da AN, isso pode ser feito de maneira gradual, aumentando-se o aporte calórico para atingir as necessidades11. Pacientes comANdo subtipo restritivo necessitam de uma maior ingestão calórica para a recuperação ponderai, quando comparados aos do subtipo purgativo, pois a taxa de metabolismo basal está alterada5•19. Durante a fase de realimentação, é necessário o monitoramento para se evitar a síndrome da realimentação, que é caracterizada por hipofosfatemia, rápida diminuição do potássio e magnésio, intolerância da glicose, disfunção gastrintestinal e arritmias cardíacas. Pode acontecer em pacientes sob regime ambulatorial ou de internação, sendo mais comum neste último grupo, em decorrência de uma terapia nutricional mais agressiva. A retenção hídrica pode acontecer durante a realimentação, sendo comum a ocorrência de edemas 11 ·18·20. Para evitar a síndrome da realimentação, no início do tratamento devem ser solicitados os exames anteriormente listados e possíveis disfunções devem ser corrigidas. Medem-se diariamente dosagens séricas de potássio, fósforo e magnésio nos primeiros sete dias. Após esse período, recomenda-se acompanhamento das dosagens séricas três vezes por semana até que o quadro se estabilize. A dieta deve ser iniciada com baixa ingestão calórica e aumentada gradualmente. São fornecidos suplementos de cloreto de potássio, solução de fosfato de sódio, complexo multivitamínico, tiamina e gluconato de zinco. O magnésio não é bem absorvido oralmente; portanto, seus níveis devem ser monitorizados e, se necessário, procede-se à correção parenteral. Se houver desidratação, também deve ser corrigida por via parenteral até a normalização do volume intravascular4·5•9·11. Em pacientes com AN do subtipo purgativo que abruptamente interrompem o uso de laxantes ou diuréticos, a retenção hídrica pode ocorrer por efeito-rebote e permanecer durante várias semanas. O uso crônico de laxantes pode acarretar constipação intestinal e formação de fecalomas após sua interrupção, com duração variáveP4. Em casos graves, a constipação intestinal e ale são das vilosidades podem provocar paralisia entérica, quadro grave que pode requerer colectomia total5 •9•11 . O ritmo recomendado de ganho de peso é de 0,5 a 1,0 kg por semana em pacientes ambulatoriais e de 1,0 a 1,5 kg em pacientes internados 11 . Na prática clínica e
no atendimento ambulatorial, tem sido observada a existência de uma variação no ganho de peso inerente a cada paciente. Torna-se necessário avaliar a colaboração dos familiares e seu empenho no tratamento, além das dificuldades individuais de cada paciente, levando-se em consideração o tempo de instalação da patologia 14 . Em geral, a indicação de internação baseada no critério do peso fundamenta-se quando o paciente estiver 20% abaixo do peso esperado para determinada altura. Quando o peso estiver 30% ou menos em relação ao esperado para a altura, a internação tende a ser prolongada, durando de 2 a 6 meses 4. Entre as causas de tratamento urgente estão gravidez, diabetes melito, dor torácica, arritmias ou outras alterações eletrocardiográficas, síncope, ideação suicida, deficiências significativas de potássio, magnésio ou fósforo 5•7•11. A indicação de internação nesses casos é baseada na gravidade do caso e risco de óbito. Os critérios para a internação dos pacientes devem se basear não apenas no baixo peso, mas na presença de desnutrição grave (peso menor que 75% do esperado de peso/altura); desidratação; distúrbios eletrolíticos; disritmia cardíaca; instabilidade fisiológica; bradicardia; hipotensão e hipotermia (< 36°C); mudanças ortostáticas (pulso e pressão sanguínea); estagnação do crescimento e desenvolvimento; falha no tratamento ambulatorial; re cusa alimentar aguda; descontrole de purgações e compulsões; complicações clínicas da desnutrição e de emergências psiquiátricas (p. ex., ideação suicida e sintomas psicóticos); e diagnóstico de comorbidades que podem interferir no tratamento do TA (p. ex., depressão grave, TOC e disfunção familiar grave)?·11 . A realimentação com ingesta oral de alimentos é a primeira escolha para a recuperação do peso e é muito mais bem-sucedida na recuperação a longo prazo4. Em raras circunstâncias, a nutrição parenteral e enteral é necessária. Os riscos associados a uma terapia nutricional agressiva são a hipofosfatemia, edema, insuficiência cardíaca, convulsões, aspiração da dieta enteral e morte. Por isso, para que o paciente normalize seus padrões alimentares e tenha mudança de comportamento, é necessário envolver o planejamento e a prática com os alimentos 11. O nível de atividade física recomendado dependerá do estado clínico, psicológico e nutricional do paciente, podendo ser limitado ou eliminado para se atingir um peso adequado. É importante enfatizar ao paciente que a atividade física é para manter o indivíduo saudável e não apenas para gastar energia e promover a perda de peso11. A recuperação da AN é longa e, mesmo sem medicamento, o suporte psicológico é essencial para se sustentar a mudança. O grande medo dos pacientes é alcançar o peso mínimo saudável e não parar de ganhar peso 11·18·20 • O nutricionista possui o importante papel de assistir o paciente a alcançar e manter um peso saudável, por meio
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da alimentação equilibrada e balanceada, ajudando-o na escolha dos alimentos, aumentando a variedade na dieta e adequando comportamentos alimentares, além de es clarecer e desmistificar crenças inadequadas e estabelecer uma relação apropriada com o alimento4,11 ,21. A psicoterapia de fundamentação cognitivo-comportamental aborda os pensamentos distorcidos e as crenças errôneas, além de tentar melhorar a autoestima. A psicoterapia individual de orientação psicodinâmica tem sido utilizada, embora não exista até o momento nenhuma evidência de que um determinado modelo de psicoterapia em adultos anoréxicos seja superior a outro 5' 7. Alterações na dinâmica familiar são mantenedores importantes da AN, de modo que a psicoterapia familiar em adolescentes e adultos jovens, ou a terapia de casal, quando indicada, são recursos que devem ser utilizados quando possíve!S.
Gerald Russell 24 descreveu a BN em pacientes com peso normal, que haviam apresentado AN no passado e referiam episódios bulímicos e vômitos autoinduzidos. Inicialmente ele julgou que essa apresentação era uma migração da AN, mas depois considerou que os dois transtornos eram quadros únicos e independentes.
Bulimia nervosa
. nos.
A bulimia nervosa (BN) caracteriza-se pela compulsão alimentar, ou seja, ingestão em um curto período de grande quantidade de alimentos com a sensação de perda de controle e compensações inadequadas para o controle de peso, como vômitos autoinduzidos, dietas compensatórias, uso de medicamentos (laxantes, diuréticos, inibidores de apetite) e exercícios físicos exagerados22. Observa-se excessiva preocupação com o peso e forma corporal, invariavelmente afetando sentimentos e atitudes do paciente com esse quadro. De acordo com o DSM-IV23, há dois tipos desse transtorno: o purgativo, no qual o paciente usa como métodos compensatórios os laxantes, enemas, diuréticos e vômitos autoinduzidos (80 a 90% dos casos); e o não purgativo (ou restritivo), no qual o paciente apresenta outros comportamentos compensatórios inadequados, como jejum ou excesso de exercícios, mas não apresenta os métodos purgativos citados. Pacientes acometidos pelo subtipo purgativo apresentam maior comorbidade clínica e psiquiátrica do que os pacientes com comportamento compensatório exclusivamente restritivo. Russell24 utilizou o termo bulimia nervosa a partir dos termos gregos boul (boi) ou bou (grande quantidade) e lemos (fome), que significaria uma fome tão intensa que seria suficiente para devorar um boi.
Histórico O termo boulimos já era usado por Hipócrates para descrever uma fome intensa, até mesmo doentia, sem relação com a fome fisiológica. Para Aristófanes, seu uso significava um apetite voraz, provocado por algo pouco comum25. Entre os egípcios, os gregos e os romanos já havia descrições de pessoas que induziam o vômito como forma de purificação ou apenas para continuar comendo mais.
Epidemiologia Os estudos epidemiológicos longitudinais da BN apresentam algumas dificuldades metodológicas, como o correto diagnóstico desse transtorno, recusa do paciente em procurar ajuda profissional e busca de tratamento apenas nos casos de maior gravidade. A incidência de BN é de 13 para 100 mil habitantes por ano, com prevalência entre 0,5 a 4% da população26,27 . Esses números podem ser maiores se TA sem outra especificação (os chamados quadros parciais) forem considerados e também em populações específicas, como jovens universitáA prevalência é maior no sexo feminino, com cerca de 90 a 95% de mulheres para 5 a 10% de homens. A maioria das pacientes apresentam peso normal ou estão discretamente acima do peso. Não é incomum que o transtorno comece após um período de dieta. O início da doença é mais comum no final da adolescência ou no início da vida adulta, atingindo as diferentes classes sociais. Nos Estados Unidos, há maior prevalência do transtorno em caucasianas e latino-americanas do que nas afro-americanas e nas demais minorias étnicas28-30. Relatou-se aumento de BN em países orientais e em países em desenvolvimento, sendo que a prevalência desse caos no Japão vem atingindo taxas semelhantes às do mundo ocidentaP 1 • Algumas profissões apresentam mais risco para desenvolvimento do transtorno, como modelos e outros profissionais da moda, jóqueis e atletas20'32.
Etiopatogenia Não há uma única causa para a BN, assim como na maioria das doenças psiquiátricas. A etiopatogenia compreende fatores biológicos, psicológicos, socioculturais, familiares e genéticos33,34 . Fatores biológicos
Nas últimas décadas, o papel dos fatores biológicos na bulimia tem recebido atenção consideráveP5,36 . Já fo ram detectadas alterações nos neurotransmissores cerebrais, como serotonina e noradrenalina, e também nos peptídeos YY, na leptina e na colecistoquinina, contribuindo nas alterações observadas em pacientes com BN, sobretudo os episódios compulsivos e os vômitos autoinduzidos. A serotonina atua na saciedade, na escolha do alimento e nos seus padrões alimentares. A colecistoquini-
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na também atua na saciedade e apresenta-se baixa em indivíduos com BN. Fatores psicológicos
Os indivíduos com BN apresentam frequentemente pensamento dicotômico, perfeccionismo, importante labilidade emocional, autodestruição, aversão a conflitos e medo de abandono, representando fatores de vulnerabilidade para o TA. Sentem-se inseguras a respeito de sua identidade e da maneira que são avaliadas por outras pessoas, esforçando-se assim na manutenção da aparência física como forma real de achar sua identidade, predispondo-as para a BN. Outras características em comum nas pacientes com BN são baixa autoestima, maiores dificuldades em verbalizar seus sentimentos e auto avaliação negativa38. Experiências traumáticas na infância, incluindo abuso sexual, estão associadas a comportamentos multiimpulsivos em pacientes com BN39 . Fatores socioculturais
No mundo ocidental é bem difundida a crença de que um corpo atrativo facilita o sucesso social e profissional. As mulheres e mesmo os homens são considerados mais bem preparados e capacitados caso sejam atraentes fisicamente. Contudo, elas são mais exigidas em relação a se manterem magras, com boa forma física e bem vestidas. Há, inclusive, cobrança dos parceiros quanto à aparência física, de modo que, se elas atendem a esse padrão de beleza esbelto, são por eles mais elogiadas. O aumento da prevalência desse transtorno nos países industrializados sustenta a importância desses fatores 37,40 . A busca desenfreada pela beleza e pela estética corporal perfeita é reforçada pela sociedade moderna. O estereótipo idealizado da mulher feminina e de sucesso é o de alguém magra. Quando as mulheres não seguem esses padrões, seja por crenças políticas como as feministas ou por serem homossexuais, elas são caracterizadas como feias, masculinizadas e mais gordas. Tal fato é uma das explicações para o grande aumento da oferta e venda de alimentos diet e light no ocidente, sobretudo nos Estados Unidos, principalmente em anos recentes. Houve também maior procura por cirurgias plásticas estéticas com o intuito de aperfeiçoar a forma corporal. A exposição a modelos de beleza ocidentalizados aumentou a preocupação e descontentamento com a imagem e peso corporais em mulheres nos países de origem árabé'. A mídia foi a grande responsável pela difusão desses novos padrões, que aumentou a prevalência da BN .nessa reg1ao. Fatores familiares
Há relatos de conflitos intrafamiliares nas pacientes com BN, alterações nas relações interpessoais e sistêmicas, dificuldade de comunicação com seus parentes e fal-
ta de coesão no núcleo familiar 42 . Outros fatores desencadeantes dos TA são comentários negativos que pais fazem a respeito do peso dos filhos, comportamento alimentar restritivo dos pais e encorajamento para que seus filhos façam dieta43 . Pais de pacientes com BN externavam grandes expectativas quanto ao seu futuro durante a infância, havendo também distanciamento afetivo nessa época44. A limitação dos estudos com as famílias é o caráter metodológico, pois são realizados retrospectivamente, assim sendo, essas mudanças podem ter ocorrido após a instalação do TA. Fatores genéticos
Há maior prevalência de episódios depressivos e de TA em familiares de primeiro grau de afetados pela doença, sugerindo um modelo genético na etiopatogenia da BN45. Não há, até o momento, identificação de alteração em um único gene causando a BN, mas estudos apontam associação entre o quadro e alterações no cromossomo 10p46. Existe alta taxa de concordância em gêmeos monozigóticos acometidos pelo transtorno em comparação a dizigóticos, sustentando esse modelo de transmissão genética47.
Quadro clínico O paciente com BN geralmente descreve grande preocupação com seu peso e forma corporal previamente ao transtorno propriamente dito, embora seu peso esteja normal ou discretamente elevado, também referindo intenso medo de engordar, mas não querendo emagrecer ou buscando ideais de beleza cada vez mais magros, como observado no anoréxico 22 . Assim sendo, inicia-se uma dieta restritiva, eliminando alimentos que julga facilitar o ganho de peso, mas sem haver a restrição desenfreada observada em pacientes com AN. O controle sobre o hábito alimentar vai se seguindo até que em determinado momento o paciente sente uma vontade grande de comer e, ao se deparar com algum alimento proscrito de sua dieta, apresenta um descontrole, ingerindo-o em quantidade maior do que o normal em um tempo curto. Fica culpada pela quebra do que estabelecera como o correto hábito alimentar e também se sente mal fisicamente por conta da grande quantidade ingerida, induzindo o vômito para evitar engordar e aliviarse física e psiquicamente. Aos poucos vem a sensação de estar agindo de maneira errada, a ansiedade aumenta, piorando a autoestima e culpando-se por não ter o controle adequado de sua dieta e, por conseguinte, de sua vida, em razão da tendência de catastrofização, observada em pacientes com essa doença. Um círculo vicioso é estabelecido, já que reinicia a dieta, às vezes mais intensamente, predispondo a novos episódios bulímicos que
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induzem aos vômitos, assim piorando a ansiedade e a culpa, voltando -se à dieta como tentativa de restabelecer o controle sobre sua vida. Os fatores biológicos anteriormente descritos perpetuam esse processo. A presença dos episódios bulímicos é um ponto fun damental desse transtorno. O episódio pode levar a in gestão de até 14 mil kcal, compondo-se de alimentos doces ou salgados, frios ou à temperatura ambiente, e que muitas vezes não são sequer mastigados. O abuso de exercícios físicos com o propósito de compensar os episódios bulímicos pode causar dano a ligamentos e músculos, fraturas ósseas por sobrecarga e até mesmo dano cardiológico48 • Pacientes com compulsão por exercícios referem grande culpa quando não conseguem realizá-los, e a motivação principal para a atividade física é o controle do peso e da imagem corporal, em detrimento da melhoria na saúde49 • Outros mecanismos compensatórios para os episódios compulsivos da BN são o uso de laxantes ou diuréticos, hormônios tireoidianos, inibidores de apetite, orlistat, maconha e cocaína50 .Também há relatos de aumento de ingestão de cafeína para aliviar a ansiedade e reduzir o apetite5 1. Os laxantes são usados como método compensatório para episódios bulímicos em 60% das pacientes com BN52 • Seu abuso indica maior gravidade do transtorno, grande insatisfação com a imagem corporal, maior hostilidade autodirigida e maior presença de sintomas depressivos. Pode haver relato de irregularidades menstruais, mas a amenorreia, presente em grande parte dos casos de AN, é muito rara. Um subtipo de BN descrito por Lacey53 , a bulimia multi-impulsiva, apresenta pelo menos 3 dos 6 compor-
Quadro VI
tamentos impulsivos que se seguem, ao longo da vida, além dos episódios bulímicos: tentativas de suicídio recorrentes, autoagressão severa, cleptomania, abuso de álcool, abuso de drogas e promiscuidade sexual54•55 . Na história pregressa dessas pacientes, por meio de dados de entrevista semiestruturada, são encontrados transtorno de estresse pós-traumático e TOC56 . Essas pacientes apresentam mais comportamento parassuicida que os da bulimia sem multi-impulsividade.
Diag nóstico Várias questões surgem sobre a validade dos critérios diagnósticos para a BN. Alguns autores consideram arbitrária a frequência exigida para os episódios bulími, . cose para os comportamentos compensatonos, argumentando que é inútil excluir os que têm compulsão ou - apenas uma vez por semana ou os que nunca purgaçao apresentam compulsão alimentar objetiva, mas que purgam regularmente. A psicopatologia desses pacientes é muito próxima dos pacientes com BN. Pesquisas sobre as questões nosológicas estão sendo realizadas e provavelmente constarão no DSM-V 57 . Os critérios diagnósticos, de acordo com o DSM-IV 23 e a CID-10 58 , são apresentados no Quadro VI.
Complicações clínicas As complicações clínicas são mais frequentes em pacientes com bulima nervosa que apresentam maior número de episódios compulsivos e práticas purgativas (Quadro VII).
Critérios diagnósticos para BN segundo o DSM-IV e a CI D-1O
DSM-IV
CID- lO
Episódios recorrentes de consumo alimentar compulsivo - episódios bulímicos - , tendo as seguintes características: • Ingestão em pequeno intervalo de tempo (1. e., aproximadamente em 2 horas) de uma quantidade de comida claramente maior do que a maioria das pessoas comeria no mesmo tempo e nas mesmas circunstâncias. • Sensação de perda de controle sobre o comportamento alimentar durante os episódios (1. e., a sensação de não conseguir parar de comer ou controlar o que e quanto come).
O paciente sucumbe a episódios de hiperfagia, nos quais grandes quantidades de alimento são consumidas em curtos períodos (pelo menos duas vezes por semana durante um período de três meses). Preocupação persistente com o comer e um forte desejo ou um sentimento de compulsão para comer. O paciente tenta neutralizar os efeitos "de engorda r" dos alimentos por meio de um ou mais do que segue: vômitos autoinduzidos, purgação autoinduzida, períodos de alternação de inanição e uso de drogas, como anorexígenos, preparados tireoidianos ou diuréticos. Quando a bulimia ocorre em pacientes diabéticos, eles podem negligenciar seu tratamento insulínico. Há uma autopercepção de estar muito gordo(a), com pavor intenso de engordar e com uso de exercícios excessivos ou jejuns.
Comportamentos compensatórios inapropriados para prevenir ganho de peso, como vômito autoinduzido, abuso de laxantes, diuréticos ou outras drogas, dieta restrita ou jejum ou, ainda, exercícios vigorosos. Os episódios bulímicos e os comportamentos compensatórios ocorrem, em média, duas vezes por semana, por pelo menos três meses. A autoavaliação é indevidamente influenciada pela forma e peso corporais. O distúrbio não ocorre exclusivamente durante episódios de AN. Tipos Purgativo: autoindução de vômitos, uso indevido de laxantes e diuréticos, enemas. Sem purgação: sem práticas purgativas, prática de exercícios excessivos ou jejuns.
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Quadro VIl Complicações físicas na BN Pele e anexos
Calosidade no dorso da mão por escoriação dentária (sinal de Russell), retração gengiva!, erosão do esmalte dentário, peliose, cáries, hipertrofia de glândulas parótidas em decorrência dos vômitos, podendo ter aumento da fração salivar da amilase.
Sistema gastrintestinal
Dor abdominal, dispepsia, gastrite, esofagite, erosões gastroesofágicas, hérnia de hiato, metaplasia de Barrett, sangramentos, obstipação, síndrome do cólon irritável, prolapso retal.
Sistema metabólico
Desidratação, alterações hidroeletrolíticas como hipocalemia.
Sistema reprodutivo
Irregularidade menstrual, risco de aborto espontâneo, parto cesariana em vez de normal, depressão pós- parto, baixo peso do recém -nato.
Sistema cardiovascular
Arritmias cardíacas.
Comorbidades As comorbidades são divididas em dois eixos: • Comorbidade de eixo I: a comorbidade mais observada na BN é a depressão, com prevalência ao longo da vida variando de 50 a 65%59 . Taxas mais altas do que as esperadas de transtorno bipolar também têm sido encontradas em pacientes com bulimia, atingindo cerca de 14,3% 60 • A prevalência ao longo da vida do uso abusivo de substâncias psicoativas varia de 30 a 60%, sendo a segunda comorbidade mais frequente na BN 59 • Estudos demonstram que a prevalência de uso abusivo de álcool em pacientes com BN é de 25%, para dependência de álcool a taxa é de 26% e para uso abusivo e dependência chega a 46%. O quadro alimentar precede o abuso de álcool em 68% dos casos61 • As taxas de prevalência para transtorno de ansiedade generalizada variam de 8 a 12%, para o transtorno de pânico é de 11%, para fobia social é 17% e cerca de 40% para TOC62 • Pearlstein verificou que 3 a 43% das mulheres com BN apresentavam TOC ou características da personalidade obsessiva. Alguns estudos demonstram que o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) é significativamente mais comum nos pacientes com BN62 . O diagnóstico da comorbidade ajuda no tratamento e na instalação de terapêutica adequada para o quadro. • Comorbidade de eixo II: a prevalência de transtorno de personalidade é significativamente maior na BN que na AN, sobretudo pela alta taxa de transtorno de personalidade cluster B63 . O transtorno de personalidade borderline é o mais prevalente (25,4% ao longo da vida), seguido do dependente (21 %), histriônico (20%), esquiva (19%), cluster A (12%), obsessivo-compulsivo (11 %), narcisista (4,8%) e antissocial ( 4,8%).
Os pacientes com BN e transtorno de personalidade borderline apresentam maior chance de tentativas de suicídio e maior comportamento suicida64 .
Curso e evolução O curso da bulimia é bastante variável, mas, como na anorexia, pode ser crônico e com recaídas. Ainda residem dúvidas quanto ao conceito de remissão, pois alguns autores a consideram mesmo quando o paciente com bulimia apresenta alguns vômitos ocasionais que não preencham a frequência exigida para seu diagnóstico. Uma recuperação favorável ocorre em cerca de 50 a 70% dos casos22•65 • Pesquisas longitudinais sugerem que quase metade dos pacientes terá recuperação total do transtorno em 5 a 12 anos de acompanhamento e um terço continuará tendo recaídas66 • Para Grilo et al., a probabilidade de remissão dos sintomas em pacientes com BN após cinco anos é de 74%67 • Alguns dos fatores preditivos de mau prognóstico da BN são grande frequência de vômitos no início do tratamento, demora para início do tratamento, tempo de doença, comorbidades associadas, ainda pior prognóstico se o diagnóstico associado for de transtorno de personalidade do cluster B, tratamentos anteriores com pouca resposta, maior gravidade sintomatológica, início tardio da doença e relacionamentos interpessoais conturbados68•69 • Em contraste com as altas taxas de mortalidade nos pacientes com AN, a mortalidade não parece ser elevada na bulimia70 • Alguns estudos demonstraram taxa de mortalidade bruta de 0,3% no acompanhamento longitudinal, mas provavelmente subestimada pela metodologia aplicada7 1. Confirmando a suspeita sobre dificuldades com a metodologia, Crow et al. 72 observaram que a mortalidade em um estudo longitudinal com 906 pacientes com BN foi de 3,9%.
Tratamento O tratamento da BN, assim como o da AN, deve ser feito por uma equipe multiprofissional, com, no mínimo, atendimento psiquiátrico, nutricional e psicológico. Os objetivos incluem primeiramente a regularização do padrão alimentar, suspensão de purgação e restrição e orientação nutricional. A psicoterapia com enfoque cognitivo-comportamental é a que tem demonstrado melhores resultados com os pacientes com bulimia, havendo também boa resposta com a psicoterapia interpessoaF2•7 3•74 • Alguns aspectos comportamentais são importantes para a regularização do hábito alimentar, como o planejamento de horários e do cardápio das refeições, evitar fazê-las desacompanhado e o diário alimentar que descreverá detalhadamente o que foi ingerido. No Quadro X são citadas algumas recomendações adicionais para o tratamento da BN75.
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O diário alimentar serve como importante auxílio na automonitorização da paciente, que nele deve relatar os alimentos ingeridos nas refeições e nos possíveis episódios bulímicos, frequência de vômitos autoinduzidos, número de laxantes e diuréticos utilizados, quantidade de tempo gasta em atividade física, local da refeição, quem a acompanhava, pensamentos e sentimentos experimentados em tais situações. O psiquiatra e o nutricionista devem avaliar o diário a cada consulta, a fim de detectar estressares envolvidos na história do paciente. Deve-se orientar a pessoa a ter três principais refeições diárias planejadas e 2 ou 3lanches entre elas, com ingestão de cerca de 1.500 kcal/ dia76. A orientação nutricional abordará a necessidade de ingerir diariamente os diferentes grupos alimentares, mostrará o tamanho adequado das porções em uma refeição e discutirá crenças errôneas a respeito da alimentação. A orientação quanto às consequências médicas do comportamento bulímico e dos vômitos é parte indispensável do tratamento. O paciente deve ser orientado sobre o risco de complicações dentárias, sangramentos gastrintestinais, arritmias cardíaca e até mesmo parada cardíaca. É necessário também alertá-lo sobre a inadequação do uso dos laxantes e diuréticos, com o objetivo de redução do peso, e quanto ao risco de se usar inibidores de apetite. É importantíssimo ressaltar que os jejuns prolongados facilitam a ocorrência dos episódios bulímicos e vômitos autoinduzidos. Deve-se orientar todas as famílias, com o objetivo de ensinar aspectos clínicos da BN, discutir alternativas para o padrão alimentar da família como um todo e diminuir as ideias de culpa que os parentes porventura possam ter. A terapia familiar é importante, apesar de os estudos nessa amostra serem mais reduzidos do que nos pacientes com AN 77 • A farmacoterapia tem sido amplamente pesquisada78. O uso de antidepressivos, sobretudo tricíclicos, ISRS e inibidores seletivos da recaptação de serotonina e no radrenalina (IRSN) são eficazes para o tratamento da BN, diminuindo episódios bulímicos, vômitos autoinduzidos e possíveis sintomas depressivos. O uso do topiramato é mais recente, mas vem mostrando resultados eficazes79 • Antagonistas narcóticos têm sido estudados como tratamento auxiliar em casos de difícil controle. O ISRS mais utilizado ainda é a fluoxetina, apesar de o uso da sertralina e da fluvoxamina indicar melhora no tratamento da BN. A dose de 60 mg/dia de fluoxetina traz melhores benefícios do que a de 20 mg/dia80 . Tricíclicos como a imipramina e a desipramina apresentam respostas satisfatórias no tratamento da BN, mas a possibilidade do efeito colateral de voracidade por doces faz com que seu uso não seja indicado nesse caso. Os inibidores da monoamino-oxidase (IMAO) também são eficazes, mas o risco de consumo de alimentos que possam desencadear uma crise hipertensiva durante um episódio bu-
límico faz com que sua indicação não seja preconizada22. Uma metanálise com 16 estudos controlados, com um total de 1.300 pacientes com BN, apontou maior re missão dos episódios bulímicos em pacientes medicados com antidepressivos do que com placebo (19,2 para 8%)81. A melhor resposta no tratamento da BN provém da combinação de terapia cognitivo-comportamental (TCC) com o uso dos medicamentos já citados 82. De acordo com a gravidade do quadro, o tratamento pode ser feito ambulatorialmente, em hospital-dia ou em internação completa22'83 •
Diferenças clínicas As principais diferenças entre AN e BN são descritas no Quadro VIII, ao passo que no Quadro IX há um resumo de critérios para ambos os transtornos.
Transtorno da compulsão alimentar periódica Também conhecido como "comer compulsivo': o transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP) é caracterizado por episódios recorrentes de impulsividade alimentar, conhecidos como compulsão alimentar, na ausência de comportamentos compensatórios inadequados utilizados para promover a perda ou evitar o ganho de peso comuns na AN e na BN23 • O comportamento de comer compulsivamente foi descrito pela primeira vez na década de 1950 por Stunkard, em indivíduos obesos em tratamento para perda de peso84• Desde então, diferentes estudos têm demonstrado que indivíduos não obesos também podem apresentar quadro clínico compatível com o diagnóstico de TCAP, embora a grande maioria das pesquisas investigue sintomatologia em portadores da comorbidade desse TA com obesidade. As últimas décadas foram marcadas pelos esforços em padronizar as características clínicas do TCAP, adequando seus atuais critérios diagnósticos. Algumas evidências científicas recentes questionam a utilidade prática do diagnóstico de TCAP, uma vez que obesos com TCAP parecem não se diferir de obesos sem TCAP em suas resposta para o tratamento da obesidade85. Além disso, o fenômeno de compulsão alimentar parece ser instável ao longo do tempo e por remitir, pelo menos por curto período, com uma variedade de tratamentos inespecíficos, inclusive placebo.
Epidemiologia Por causa da imprecisão de alguns dos critérios diagnósticos sugeridos para o TCAP, as taxas de prevalência desse transtorno na população são bastante variadas. Dependendo da interpretação do investigador da
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Diferenças clínicas entre AN e BN
Quadro VIII
AN
BN
Vômitos no subtipo purgativo
Vômitos autoinduzidos
Perda de peso grave; IMC < 17,5
Menor perda de peso, peso normal ou acima do normal
Grave distorção da imagem corporal
Quando existe, é menos acentuada
Mais jovens
Menos jovens
Negam fome
Referem fome
Mais introvertidas
Mais extrovertidas
O comportamento alimentar é considerado normal pelo paciente, o qual acredita que seu desejo de controle de peso é justo e adequado
O comportamento é motivo de vergonha, culpa e há desejo de ocultá-lo
Pouco ativos sexualmente
Mais ativos sexualmente
Amenorreia
Menstruação variando de irregular a normal, mas sem amenorreia
Traços obsessivos de personalidade podem estar presentes
Traços histriônicos e borderline podem estar presentes
Comorbidade com doenças afetivas e transtornos ansiosos
Comorbidade com doenças afetivas e abuso de álcool e drogas
Impulsividade no subtipo purgativo
Impulsividade
Quadro IX
Critérios para diagnóstico de AN e BN
Checklist dos critérios diagnósticos AN: 850fo do peso esperado; recusa e medo de ganhar peso; distorção da imagem corporal; amenorreia. BN: peso adequado; episódios compulsivos; medidas compensatórias purgativas e restritivas para controle do peso; medo de engordar. A meta de pacientes com AN é emagrecer cada vez mais. O ponto central da BN é a presença dos episódios bulímicos e de medidas compensatórias inadequadas para não ter ganho de peso. A etiopatogenia dos TA é multifatorial. O tratamento dos TA deve ser feito por uma equipe multiprofissional, com atendimento psiquiátrico, psicológico e nutricional.
Quadro X
Orientação para pacientes com BN*
Durante alguns períodos do dia, pare para pensar em como você está lidando com o seu problema. Algumas das suas técnicas podem estar funcionando bem, outras não. É necessário discutir isso com o seu médico. Planeje os seus dias antes, logo pela manhã ou na véspera; evite longos períodos não planejados ou sem atividade definida. Lembre-se: isso é muito importante - planeje antecipadamente o que e quanto vai comer. Use o diário de comportamento alimentar da maneira mais completa possível, levando-o a todos os lugares. Tente comer sempre acompanhado, nunca só. Não faça nada enquanto estiver comendo, exceto conversar com quem está comendo com você. Não veja televisão, não leia. ouvir música é possível, desde que não atrapalhe a sua concentração. Concentre-se no que come e mastigue lentamente para saborear a comida. Planeje diariamente suas refeições e horários. O esquema usual é o de três refeições: café da manhã, almoço e jantar. Dois lanches entre as refeições podem ser feitos sempre com conteúdo e horários planejados. Lembre-se: jejuar estimula os episódios de bulimia. Combine com sua família ou cuide, se você mesmo faz as compras em sua casa. para não acumular um grande estoque e não comprar alimentos que você identifica como "perigosos". Não faça compras com fome, você tenderá a comprar mais do que necessita. Carregue a menor quantidade de dinheiro possível se você costuma comer "demais" fora de casa. Isso pode incluir cheques e cartões de crédito. Identifique os períodos de maior risco e planeje atividades não compatíveis com o comer, como encontrar amigos, fazer ginástica, tomar um banho, ler . . e 1r ao cmema. Evite ao máximo áreas "perigosas" (p. ex., cozinha) entre as refeições. Se necessário, quando sentir dificuldades de controle, saia imediatamente para dar um passeio ou faça algumas das atividades sugeridas no item anterior.
(continua)
69 TRANSTORNOS ALIMENTARES
Quadro X
Orientação para pacientes com BN* - (Continuação)
Pese-se apenas na consulta médica ou não mais do que uma vez por semana; pare de se pesar indefinidamente. Não pense em perder peso nesse momento do tratamento. Se você está pensando muito a respeito de seu peso e de seu corpo, pode ser que você esteja ansioso(a) ou deprimido(a). Você se sente gordo(a) ou feio(a) quando encontra dificuldades. Discuta isso com seu médico. Faça exercícios regularmente. Eles aumentam o metabolismo basal e ajudam a diminuir o apetite, particularmente por doces. Exercícios não são para perder peso. Em relação às mulheres, é muito importante atentar para o período pré- menstrual e para a menstruação, pois o risco de descontrole é maior. Não beba álcool: pode aumentar seu apetite e diminuir seu controle. Relembre sempre os problemas físicos que a doença lhe causou ou pode causar. Você se lembra de como pode ficar seu rosto? O controle que você está tentando não é fácil, é necessário trabalhar hora após hora, mais do que dia a dia. Uma falha não justifica desistir e entregar- se a uma sucessão de falhas. Você perceberá com o tempo. * Fonte: baseado em Freeman 75·
subjetividade desses critérios, alguns indivíduos podem ser incluídos ou excluídos das pesquisas populacionais. Evidências epidemiológicas sugerem uma prevalência do comer compulsivo que varia de 0,7 até 4% na comunidade86. Estudos que se utilizam de metodologia rigo rosa revelam uma prevalência aproximada de 1%, sendo que nenhum deles investigou incidência. Essas taxas se elevam quando populações específicas, como indivíduos obesos, são avaliadas, apontando que quanto maior o grau da obesidade, maior a prevalência desse transtorno. Entre populações de obesos, a prevalência atinge 8%, elevando-se a 25 a até 50% entre obesos grau li e III, res pectivamente.
Quadro clínico e diagnóstico Para entender o TCAP é necessário definir episódios de compulsão alimentar (ECA), que são caracterizados pela ingestão de grande quantidade de alimentos definitivamente maior que a maioria das pessoas consumiria no mesmo período de tempo em circunstâncias similares. Além disso, seu portador refere a sensação de perda de controle durante o episódio, como um sentimento de que não é possível parar de comer ou controlar o que ou o quanto se está comendo87 • O comportamento alimentar do comedor compulsivo é caracterizado por comer muito mais rápido do que o habitual, comer até se sentir fisicamente desconfortável ("cheio"), ingerir grandes quantidades de alimentos quando não se está fisicamente faminto e preferir comer sozinho por conta do constrangimento pela quantidade de alimentos que se ingere23 . Além dos sintomas alimentares, sintomas afetivos são descritos na síndrome do TCAP. Sentimentos de tristeza, vergonha e culpa, além de acentuada angústia, fazem parte dos critérios diagnósticos estabelecidos pela DSM-IV23 . Comorbidades com transtornos afetivos, dependência de substâncias e transtornos de personalidade são relatadas.
Os critérios diagnósticos do TCAP, segundo o DSMIV, estão apresentados no Quadro XI. São cinco itens estruturados, sendo que o primeiro deles (critério A) define o conceito de ECA. O segundo critério (B) trata de sintomas associados ao comportamento alimentar caótico, e o critério C define o sofrimento psíquico relacionado à perda de controle alimentar. Ao contrário do encontrado para o diagnóstico de BN, no qual o critério temporal é definido como dois episódios de compulsão alimentar por semana por pelo menos três meses, no TCAP, ele é caracterizado como ocorrendo pelo menos dois dias na semana por pelo menos seis meses (critério D). O DSM-V sugere uma modificação no item D dos critérios diagnósticos sugeridos. Propõe-se uma redução de frequência dos episódios de compulsão alimentar para pelo menos uma vez por semana por pelo menos três meses, de modo semelhante ao descrito para a BN. Os outros itens são mantidos como descritos no DSM -IV. Parece haver uma tendência, com base nas revisões sistemáticas realizadas, a classificar o TCAP como categoria diagnóstica independente no manual e não mais mantê-lo no apêndice B. Evidências como não se tratar de apenas uma variação familiar da obesidade, perfil demográfico distinto dos demais TA (idade de início tardio, maior prevalência entre homens), maior prevalência de psicopatologia e menor qualidade de vida quando comparado à obesidade, sugerem alguma evidência na validade clínica do diagnóstico de TCAP88 .
Tratamento farmacológico O tratamento do TCAP deve se basear na presença ou não das suas múltiplas associações, como as frequentes comorbidades psiquiátricas ou clínicas. A associação com quadros depressivos e/ou ansiosos pode definitivamente exigir a prescrição medicamentosa específica; assim como a comorbidade com obesidade, diabetes melito ou hipertensão pode ser determinante na escolha do manejo terapêutico.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro XI
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Critérios diagnósticos do TCAP - DSM- IV
Episódios recorrentes de compulsão periódica. Um episódio de compulsão periódica é caracterizado por ambos os seguintes critérios: 1) Ingestão, em um período limitado de tempo (p. ex., dentro de 2 horas), de uma quantidade de alimento definitivamente maior que a maioria das pessoas consumiria em um período similar, sob circunstâncias similares. 2) Sentimento de falta de controle sobre o consumo alimentar durante o episódio (p. ex., sentimento de não conseguir parar ou controlar o que ou quanto se está comendo). Os episódios de compulsão periódica estão associados com três (ou mais) dos seguintes critérios: 1) Comer muito mais rapidamente que o normal. 2) Comer até se sentir incomodamente repleto. 3) Comer grande quantidade de alimentos, quando não fisicamente faminto. 4) Comer sozinho, em razão do embaraço pela quantidade de alimentos que consome. 5) Sentir repulsa por si mesmo, depressão ou demasiada culpa após comer excessivamente. Acentuada angústia relativa à compulsão periódica. A compulsão periódica ocorre, em média, pelo menos dois dias por semana, por seis meses. A compulsão periódica não está associada com o uso regular de comportamentos compensatórios inadequados, nem ocorre exclusivamente durante o curso de AN ou BN.
Segundo ensaios clínicos, tratando-se de diagnóstico de TCAP na ausência da associação com outros transtornos psiquiátricos, o tratamento de escolha é o tratamento psicoterapêutico. A TCC é a mais bem estudada e revelase o padrão-ouro atual no tratamento do TCAP Menos estudada, a psicoterapia interpessoal parece apresentar bons resultados. Contudo, a combinação com orientações alimentares, como no programa de tratamento comportamental para perda de peso para indivíduos obesos com TCAP tem se mostrado eficaz. De forma breve, o tratamento farmacológico do TCAP visa ao controle na impulsividade alimentar e inclui basicamente três classes de psicofármacos: os antidepressivos, os estabilizadores do humor e os promotores de saciedade. Os inibidores seletivos da recaptura de serotonina, cujo representante mais conhecido é a fluoxetina, são a classe mais bem estudada e parecem ser a primeira escolha no tratamento farmacológico, embora ensaios clínicos de qualidade com sertralina e fluvoxamina revelem opções terapêuticas89. Ensaios clínicos mais recentes sugerem que a presença comórbida de obesidade torna a sibutramina, agente promotor de saciedade de ação serotoninérgica e noradrenérgica, um escolha adequada. Da mesma forma, o topiramato, agente estabilizador de humor e anticonvulsivante, revela-se uma opção dentre os demais fármacos, favorecendo não somente o controle dos ECA, mas também auxiliando na perda de peso, se necessário.
Transtornos alimentares e obesidade A obesidade não deve ser classificada como transtorno do comportamento alimentar ou estar categorizada no capítulo de transtornos mentais e comportamentais da CID. Alguns autores a incluem didaticamente na categoria de TA pelos aspectos de funcionamento semelhantes aos demais transtornos, como a presença de desorganização do
comportamento alimentar e conflitos psicológicos associados, que podem merecer intervenção psiquiátrica e/ou psicoterápica90. Os transtornos do comportamento alimentar que podem estar relacionados tanto como fatores precipitadores como mantenedores da obesidade são o TCAP, a síndrome alimentar noturna (SAN) e a hiperfagia psicogênica. Esta última, por ser pouco estudada e não apresentar critérios diagnósticos sistematizados pela CID-10 58, não será explorada neste capítulo.
Síndrome alimentar noturna A SAN provavelmente representa um novo TA que permanece ainda pouco reconhecido. Contudo, com o crescimento alarmante da obesidade e a associação com a SANem alguns casos, torna-se evidente a necessidade de maiores investigações sobre essa síndrome91. A primeira descrição de SAN revelava uma população de obesos que apresentava redução do apetite pela manhã, hiperfagia noturna e insônia inicial ou dificuldade de reiniciar o sono após despertares noturnos. Também se observou que os sintomas pioravam em situações de estresse e provavelmente melhoravam com a retirada do indivíduo do ambiente estressar. A presença dessa síndrome era preditiva de prognóstico desfavorável no tratamento da obesidade, com perda insatisfatória de peso durante o estudo. Nessa descrição original, exigia-se que mais de 25% da ingestão calórica diária ocorresse após a última refeição noturna e a insônia inicial estivesse presente em mais de 50% das noites, além de anorexia matinal92 • Em 1996, Stunkard et al. revisaram a definição, tornando -a mais restritiva e exigindo que mais de 50% da ingestão calórica diária deveria ocorrer após as 19 h, associando-se com dificuldades para adormecer ou manter-se dormindo e anorexia matinal85 . Novos critérios fo ram adicionados em 1999, como resultado de um estudo
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controlado que analisou diários de sono e alimentar, incluindo despertares noturnos (pelo menos um despertar), com despertar pleno e frequentemente acompanhado de ingestão de lanches. Esses sintomas devem estar presentes por pelo menos três meses e não ocorrerem na presença de diagnóstico de BN ou TCAP93 . A SAN é primariamente caracterizada por episódios de hiperfagia entre o horário do jantar e início do sono e/ou episódios de ingestão alimentar durante despertares do sono acompanhados de total lembrança para o evento. Estima-se que sua prevalência é de 1,5% da população geral, podendo atingir taxas mais elevadas em população de obesos, mas essas taxas podem atingir até 27% em obesos grau III91. Embora a SAN apresente comportamentos similares ao TCAP, há um período do dia específico para que os episódios de hiperfagia ocorram (exclusivamente noturnos), além da presença de anorexia matinal e fragmentação do sono. Pouco se sabe sobre a etiologia da SAN. A relação entre sono e apetite sugere que uma atenção especial deve ser dada ao hipotálamo, não apenas por causa dos efeitos na alimentação, mediados por receptores no núcleo paraventricular ou outros núcleos hipotalâmicos, mas es pecialmente em razão das propriedades cronobiológicas intrínsecas dessa estrutura. Um papel de importância tem sido dado à dopamina nesses comportamentos, particularmente por conta dos seus efeitos sobre a liberação no nucleus accumbens (NAC). Os neurônios dopaminérgicos do NAC são ativados por estímulos motivacionais (ingestão alimentar) que induzem e fortalecem um efeito em busca de recompensa. Isso é viável para a hipótese de que mesmo pequenas quantidades de comida podem aumentar a liberação de dopamina no NAC, facilitando atingir os efeitos de gratificação de uma recompensa e desenvolver em alguns indivíduos uma excessiva motivação direcionada ao consumo alimentar94 . Clinicamente, a SAN deve ser diferenciada de outros comportamentos alimentares noturnos inespecíficos como: a) Ingestão alimentar como forma de combater a insoma. b) Hábito de se alimentar antes de dormir. c) Alimentação noturna como forma de aliviar epigastralgia em pacientes portadores de úlcera gastroduodenal. d) Pacientes diabéticos que apresentam hipoglicemia durante o sono e despertam para ingerir alimentos94 . Além disso, pode ser diferenciada da BN e do TCAP por não apresentar métodos compensatórios associados, pelo período circadiano da ingestão alimentar e por apresentarem episódios de pequena ingestão alimentar, como repetidos lanches, em comparação com episódios de compulsão alimentar dos demais transtornos. A
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Os critérios diagnósticos sugeridos por Allison, em 201095, são apresentados no Quadro XII.
Transtornos alimentares relacionados à cirurgia bariátrica Sabe-se que a prevalência de transtornos alimentares como o TCAP é maior em pacientes portadores de obesidade grau III e, portanto, candidatos à cirurgia bariátrica. Cerca de 25% dos candidatos à cirurgia apresentam pelo menos dois ECA por semana96 • Recentemente, Segal et al. 97descreveram uma síndrome alimentar com características particulares ocorrendo em indivíduos obesos que se submeteram a uma intervenção cirúrgica antiobesidade. Denominada postsurgical eating avoidance disorder ou transtorno de evitação alimentar pós-cirúrgica, seus pacientes apresentam comportamento alimentar inadequado, porém não preenchem critérios diagnósticos para os TA atualmente descritos, diferindo-se da BN por não apresentarem episódios claros de compulsão alimentar. Trata-se de comportamento compensatório inapro priado e distúrbio da imagem corporal associado a sintomas ansiosos, como o medo de reganho de peso96 • Além disso, há rápida perda de peso pós-cirúrgica determinada por restrição alimentar voluntária, comportamento purgativo, um intenso medo de reganho de todo o peso perdido e importante insatisfação com a imagem corporal97. Esses pacientes apresentam sintomas de desnutrição, sem crítica adequada sobre sua morbidez. Contudo, por se tratar de relato de cinco casos, ainda não é questionável se representa um TA distinto.
Quadro XII
Critérios diagnósticos sugeridos para SAN 95
1) Aumento significativo da ingestão alimentar ao anoitecer ou à noite, manifestado por: a) pelo menos 25% do consumo alimentar ocorrendo após o jantar; b) pelo menos dois episódios por semana de consumo alimentar durante despertares do sono. 2) Consciência durante o episódio de consumo alimentar e lembrança total do evento na manhã seguinte. 3) O quadro clínico é caracterizado por: c) perda do desejo de comer pela manhã ou omissão do café da manhã em pelo menos quatro manhãs por semana; d) presença de extrema urgência para comer entre o jantar e o início do sono e/ou durante despertares noturnos; e) insônia inicial ou intermediária presente em pelo menos quatro noites por semana ; f) crença de que é necessário comer para iniciar ou reiniciar o sono; g) humor frequentemente deprimido ou com piora ao anoitecer. 4) Há significativo sofrimento e/ou prejuízo no funcionamento emocional. 5) Esse padrão alimentar deve se manter por pelo menos três meses. 6) Não é secundário a abuso de substâncias ou dependência, transtorno médico, medicação ou outro transtorno psiquiátrico.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Transtorno alimentar sem outra especificação A categoria diagnóstica do DSM-IV-TR do transtorno alimentar sem outra especificação (TASOE) é o TA mais prevalente, podendo chegar a 60% em uma amostra de pacientes com sintomatologia alimentar98 • Esse diagnóstico engloba grupos de condições diversas como quadros que funcionam como AN ou BN mas não preenchem todos os critérios diagnósticos, além do TCAP e síndrome do comer noturno 99. De acordo com a CID -1O, seriam chamados de AN atípica e BN atípica. Para que o diagnóstico de TASOE seja feito, os sintomas do indivíduo afetado devem ser de gravidade clínica. Esse diagnóstico pode ser mais difícil, devendo ser feito por psiquiatra com experiência clínica, sendo que a preocupação com o tratamento desses pacientes deve ser a mesma dos casos de AN e BN. A classificação dos grupos diagnósticos chamados atualmente de TASOE ainda carece de mais estudos prospectivos e longitudinais, sendo necessário rever os critérios diagnósticos dos TA pelo DSM -IV 100. De acordo com Grilo et al. 67, a probabilidade de remissão do quadro em cinco anos é de 83%. Um estudo recente72 aponta taxas de mortalidade desse transtorno maiores do que na AN (5,2 vs. 4%), apesar da apresentação clínica heterogênea. A morte ocorre principalmente por complicações clínicas associadas à desnutrição.
As possíveis pistas de TA subjacentes nesses pacientes são: episódios inexplicáveis de cetoacidose ou hipo glicemia, níveis de hemoglobina Ale sempre elevados e controle adequado dos níveis de glicose quando estão internados, o que não ocorre nas consultas ambulatoriais. Tratamento
O controle adequado da glicemia é fundamental, sendo que muitas vezes exige internação para estabilização inicial. A desidratação e hipocalemia são riscos frequen tes. Os princípios básicos da nutrição para os pacientes diabéticos são também aplicáveis na vigência da comorbidade com o TA. O exame físico completo deve ser feito focando as sequelas da hiperglicemia de longa duração, seja de origem microvascular (retinopatia, nefropatia, neuropatia), seja macrovascular (doença arterial coronariana, doença cerebrovascular e doença vascular periférica) 105 . Os antidepressivos, principalmente os ISRS, são seguros e eficazes para pacientes diabéticos, proporcionando benefícios no tratamento dos TA e nos sintomas de pressivos que ocorrem com grande frequência 106 • A não adesão ao tratamento do TA e do controle da dieta e de outros aspectos do cuidado pessoal é comum nos pacientes diabéticos com comorbidades psiquiátricas, o que torna o prognóstico de ambas as doenças desfavorável. Gravidez
Transtorno alimentar em populações especiais Diabetes
Uma vez que o diabetes é uma doença que afeta cerca de 7% da população nos Estados Unidos 101, é possível que um grande número de pessoas apresente comorbidade entre TA e diabetes do tipo I ou Il 102•103 . O diagnóstico é mais difícil nesses pacientes por causa da superestimação do peso e da imagem corporal, que com frequência se sobrepõe aos cuidados rigorosos e adequação da dieta e necessidade da prática dos exercícios físicos por essa população para controle glicêmico. O estresse psicológico ao qual estão submetidos constantemente pelo controle da doença e o medo das sequelas graves do diabetes predispõem ainda mais as pessoas ansiosas a doenças psiquiátricas, inclusive a AN 104 . A prevalência de TA no tipo I e II de diabetes não parece diferir, mas cada tipo pode estar associado a uma psicopatologia do TA 102 . Os pacientes com tipo II apresentam mais comorbidade com depressão e sobrepeso. Pacientes que se privam da insulina, como uma medida purgativa de controle do peso, apresentam maior chance de desenvolver retinopatia, neuropatia e outras complicações decorrentes da hiperglicemia. Esses achados ressaltam que, ao se identificar sintomas da BN, a intervenção nessa população é de importância vital.
Os TA são comuns em mulheres jovens. Assim sendo, os médicos devem avaliar em detalhes como esse distúrbio pode atuar na gravidez, possivelmente causando efeitos a longo prazo na mãe e no bebê 107 • Cerca de 5% das mulheres grávidas apresentam sintomas alimentares. Fatores como baixa escolaridade, juventude, histórico de sintomas alimentares prévios, bem como de episódios depressivos, aumentam o risco de TA na gravidez 108 • Nesse período, o impacto da AN difere do impac to da BN, pois, na primeira situação, a fertilidade pode estar prejudicada pela desnutrição e suas consequências (hipogonadismo e amenorreia), ao passo que a bulimia está menos relacionada à infertilidade 109•110 • As taxas de gravidez na bulimia podem ser elevadas pelo comportamento de risco, como promiscuidade e crenças errôneas de que a amenorreia ou irregularidade menstrual acarretam infertilidade. As complicações da BN e da ANna gravidez são ganho de peso abaixo ou acima do esperado; hipotensão arterial; hipertensão (somente para BN); anemia (apenas na AN); aumento dos riscos de depressão pós-parto, cesariana, hiperêmese gravídica, interrupção da gravidez, apresentação pélvica, natimortos, pré-eclâmpsia, ruptura das suturas pós-episiotomia e sangramento vaginal 111 . Os estudos que avaliam a ocorrência dos TA na gravidez mostram vários resultados, como sintomas contí-
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nuos dos TA ao longo da gestação; início do TA na gestação; redução dos comportamentos do TA, podendo essa melhora continuar depois da gravidez; ou retorno ao nível pré-gestação e início dos TA no pós-parto 108 , 112, 113 . Os riscos potenciais para filhos de mães com TA são nascimento prematuro, mortalidade perinatal seis vezes maior do que na população sadia, fenda palatina, epilepsia, retardo no desenvolvimento, baixo crescimento, objeção exagerada aos alimentos, baixo peso ao nascer, baixo índice de Apgar e microcefalia 112, 114 . Tratamento O tratamento, conforme já citado para os quadros habituais, também deve ser realizado pela equipe multidisciplinar, buscando a restauração do peso e sua estabilização. O monitoramento ambulatorial pode ser suficiente, desde que intensivo. O tratamento sob internação deve ser considerado para segurança da mãe e do feto, principalmente quando o ganho de peso é insuficiente no segundo trimestre da gestação, a duas semanas do pós-parto e na hiperêmese gravídica114. Idosos Em 1979, Carrier introduziu o termo anorexia tardia para descrever a condição dos indivíduos idosos anoréxicos. A anorexia nesses pacientes pode ter começado na adolescência ou em uma idade avançada 115. As mulheres com anorexia tardia parecem repetir um modelo de funcionamento interpessoal particular para esse período da vida, que de certa forma as mantêm dependentes do marido, que permite e perpetua-o 116 • Em qualquer idade, a ocorrência de perda de peso inexplicada requer avaliação médica completa, sendo essa avaliação de especial cuidado na população idosa, na qual as causas físicas de perda de peso são mais importantes 117 • O diagnóstico diferencial de perda de peso em idosos está descrito no Quadro XIII. Deve-se ressaltar a morbidade e a mortalidade do transtorno alimentar na população idosa, tornando indispensáveis as avaliações cardíacas, metabólicas, gás tricas e ósseas 115 . O reconhecimento rápido dessa condição médica é essencial para reduzir a morbidade e melhorar a qualidade de vida. A definição de terceira idade varia de acordo com o autor, sendo que a maioria dos artigos de revisão considera como idosos o grupo a partir do 60 anos. A avaliação laboratorial de rotina sugerida para pacientes idosos com perda de peso inclui dosagem de eletrólitos, hemograma completo, dosagem de vitamina B12, float, teste de função tireoidiana, teste de função hepática, urina tipo 1 e urocultura, eletrocardiograma, radiografia de tórax, exame pélvico nas mulheres e pesquisa de sangue oculto nas fezes pelo método guaiac.
Quadro XIII
Diagnóstico diferencial de perda de peso em idosos
Aumento do consumo de energia: doenças cardiovasculares, diabetes, hipertireoidismo, infecção, má- absorção medicamentosa (L- dopa e estimulantes), nicotina, neoplasia, doença de Parkinson e feocromocitoma. Perda de peso por redução da ingestão: distúrbio gastrintestinal benigno, depressão, neoplasia, insuficiência adrenal, anemia, distúrbios cardiovasculares, doença pulmonar obstrutiva crônica, demência, hipercalcemia, infecção, náuseas induzidas por medicações, transtornos neurológicos indutores de disfagia, acesso precário a alimentos por conta de fatores financeiros e uremia.
Tratamento Vale ressaltar que os cuidados que envolvem a po pulação idosa com TA possuem alguns aspectos particulares115. Essa população geralmente apresenta várias comorbidades clínicas, utiliza muitos medicamentos, tanto de uso clínico como psiquiátrico, o que pode contribuir para efeitos adversos graves e interações medicamento sas perigosas. Todas as medicações devem ser revisadas com cautela e suas doses devem ser adequadas. A perda cognitiva dessa faixa etária é bastante comum e pode ser limitante para seguimento psicoterápico. A redução ou perda da acuidade auditiva não impede a psicoterapia individual ou de grupo. Muitas vezes o cuidador é o responsável pela administração e supervisão das medicações. Ele deve receber, sempre que possível, uma planilha com os nomes das medicações e respectivos horários.
Questões 1. a) b) c) d) e)
São características da AN subtipo purgativo: Uso de laxantes. Distorção da imagem corporal. Uso de diuréticos. Indução de vômitos. Todas as anteriores.
2. Entre as populações de risco com maior presença de pacientes com TA, pode-se salientar: a) Bailarinas. b) Estudantes de nutrição. c) Modelos. d) Jóqueis. e) Todas as anteriores. 3. a) b) c) d) e)
São estratég ias uti lizadas no tratamento de TA: Hospital-dia e terapia fam iliar. Internação em enfermaria e uso de anfepramona. Internação em enfermaria e exclusão da fam ília do tratamento. A e B estão corretas. A, B e C estão corretas.
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AS GRANDES SÍNDROMES PSICOPATOLÚGICAS
4. As principais comorbidades relativas à BN são: a) Episódio depressivo. esquizofrenia e pânico. b) Episódio depressivo, transtorno de personalidade esquizoide e agorafobia. c) Episódio depressivo. transtorno de personalidade borderline e uso abusivo de substâncias psicoativas. d) Transtorno afetivo bipolar. uso abusivo de substâncias psicoativas e agorafobia. e) Todas as alternativas anteriores.
5. Os tratamentos com melhores evidências no TCAP são: a) Terapia cognitivo-comportamental. paroxetina e benzodiaze, . piniCOS.
b) c) d) e)
Terapia psicanalítica. fluoxetina e topiramato. Terapia psicanalítica. sibutramina e imipramina. Terapia cognitivo-comportamental. fluoxetina e sibutramina. Terapia cognitivo-comportamental. sibutramina e imipramina
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
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Transtornos Alimentares na Infância e na Adolescência Gizela Turkiewicz Vanessa Dentzien Pinzon Bacy Fleitlich-Bilyk
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 953 Epidemiologia, 953
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Quadro clínico, 954 Peso,954 Distorção da imagem corporal, 954 Padrão alimentar, 954 Comportamentos compensatórios, 955
1. lnterar-se sobre a anorexia nervosa em crianças e adolescentes utilizando a avaliação ponderoestatural adequada. 2. Tratar crianças que relatam queixas somáticas como principal razão para alteração de seu padrão alimentar. 3. Conhecer as comorbidades mais frequentes em crianças e adolescentes em associação aos transtornos alimentares.
Alterações do eixo hipotálamo-hipófise, 955 Comorbidades, 955 Tratamento, 956
4. Saber quando recomendar a psicoterapia de orientação psicodinâmica.
A importância da criação de serviços especializados, 956 Considerações finais, 957
5. Conhecer o benefício de implantação e melhoria de tratamentos especializados.
Minicaso clínico, 957 Questões, 957 Referências bibliográficas, 958
Introdução Na infância e adolescência, os transtornos psiquiátricos relacionados à alimentação dividem -se em dois grupos, de acordo com a faixa etária e com o desenvolvimento cognitivo e emocional. Especificamente durante a infância, os problemas mais comuns são denominados transtornos da alimentação. Nos critérios diagnósticos da DSM IV 1, estão relacionados sob o item transtornos da alimentação da primeira infância (como por exemplo alotriofagia e transtorno de ruminação). Em classificações mais específicas, como a criada por Lask2 são descritos os seguintes transtornos: comer restritivo, comer seletivo, fobia alimentar, recusa alimentar, entre outros. Tais alterações da conduta alimentar não serão o foco do presente capítulo. O grupo chamado de transtornos alimentares (TA) inclui os diagnósticos de anorexia nervosa (AN), bulimia nervosa (BN) e suas formas atípicas ou subclínicas.
Caracteristicamente, esses transtornos restringiam -se à idade de início na adolescência, todavia, observa-se principalmente nas últimas duas décadas um aumento de início de casos na infância a partir de 8 anos 2• Nesse grupo de transtornos, os critérios diagnósticos foram desenvolvidos baseados em populações de adultos e são os mesmos utilizados para crianças e adolescentes. As peculiaridades da apresentação clínica e do tratamento dos transtornos alimentares na infância e adolescência, tanto em suas formas totais (anorexia e bulimia nervosa) quanto nas parciais ou subclínicas (transtorno alimentar não especificado) serão descritas a seguir3 •
Epidemiologia A prevalência de anorexia nervosa (AN) varia entre 0,5 e 0,9% para o sexo feminino4 • Nos estudos epidemiológicos que incluem apenas crianças e adolescentes, observa-se uma tendência de maior incidência de síndromes parciais ou sub clínicas, agrupadas pelo DSM- IV no item Transtornos alimentares não especificados (TANE) 5. Para
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AS GRANDES SÍNDROMES PSICOPATOLÓGICAS
síndromes parciais, as taxas de prevalência variam de 2,8 a 6,6% para o sexo feminino e de 0,5 a 0,8 % para o sexo masculino. Para os casos de bulimia nervosa em adolescentes (BN), os estudos apontam taxas de 1 a 2% e, para os casos de síndromes parciais, as taxas são um pouco mais elevadas, em torno de 2 a 3%4' 6. Os TA são mais comuns em meninas, estimando-se que a razão entre meninos e meninas seja de 1:6 a 1:10. Estudos longitudinais revelam uma tendência de aumento das taxas de incidência de AN e BN, principalmente na faixa etária de 15 a 24 anos7 . Em amostras clínicas, quanto mais jovens os pacientes, maior a chance de receberem o diagnóstico de TANE e menor a chance de apresentarem comportamentos purgativos (vômitos, uso de laxantes e diuréticos)2'8 . Com relação às síndromes completas em crianças e adolescentes, a AN apresenta maior incidência na faixa etária de 12 a 15 anos, enquanto a BN tem início e pico de incidência a partir dos 15 anos7 .
Quadro clínico A AN caracteriza-se por preocupações excessivas com peso, forma corporal e alimentação, com consequentes comportamentos que objetivam perder ou não ganhar peso. Acomete mais frequentemente crianças (pré-púberes) e adolescentes mais jovens (púberes até os 13-14 anos) do que adolescentes mais velhos. A BN caracteriza-se por episódios de excesso de ingestão alimentar (compulsões alimentares) nos quais a pessoa experimenta a sensação de perda de controle, seguida de comportamentos compensatórios para evitar o ganho de peso. Sua prevalência é maior em adolescentes a partir de 15-16 anos do que nos mais jovens. As síndromes parciais dos transtornos alimentares constituem o diagnóstico mais comum na infância e adolescência e são caracterizadas pela ausência de um ou mais dos critérios diagnósticos do DSM-IV No entanto, causam tanto prejuízo quanto as síndromes totais, e sua apresentação não difere muito das formas clínicas que serão detalhadas a seguir 1' 8 •
Peso Na AN, o peso corporal encontra-se diminuído e, portanto, abaixo do necessário para que o indivíduo continue a crescer e se desenvolver normalmente. Na infância, é esperada evolução das medidas ponderoestaturais ao longo do tempo. A estagnação do peso e da estatura nessa etapa é tão grave quanto a perda significativa de peso vista nos adultos. Na BN, o peso está normal ou um pouco aumentado em função das compulsões alimentares frequentes e da ineficácia dos métodos compensatórios empregados. Em crianças e adolescentes, o caráter dinâmico do crescimento torna necessária a utilização de gráficos de percentis ponderoestaturais (gráficos com as relações ida-
de-peso, idade-altura e peso-altura) para avaliação física precisa9 • Os percentis ponderoestaturais prévios ao quadro alimentar são considerados os parâmetros normais de crescimento de determinado indivíduo. A alteração decrescente dessas medidas indica falha do crescimento. A alteração crescente abrupta pode indicar ganho de peso excessivo. O índice de massa corporal (IMC) sem os percentuais correspondentes para a idade é considerado inadequado, sobretudo em pacientes pré-púberes 10 •
Distorção da imagem corporal Este sintoma caracteriza-se por uma percepção inadequada da forma corporal em relação a realidade. Constitui uma característica dos TA cuja forma de apresentação varia muito de acordo com nível de desenvolvimento cognitivo e emocional do paciente. As crianças frequen. , . temente apontam as queixas somatlcas como as razoes principais para alteração de seu padrão alimentar: náuseas, dores de barriga, sensação de plenitude gástrica, perda de apetite, dificuldade para engolir. Nos adolescentes mais velhos são observadas queixas similares àquelas dos adultos, fazendo referência ao tamanho das coxas, da barriga ou ao aumento de determinadas partes do corpo após a ingestão de alimentos considerados "proibidos'~ A gravidade da distorção da imagem corporal, ou seja, a diferença entre o corpo real e o percebido ou visto pelo indivíduo, costuma ser maior entre os pacientes com AN. Com relação ao corpo, as meninas tendem a valorizar muito a magreza (peso, ausência de gordura) e os meninos preocupam-se mais com as formas corporais bem delimitadas, como o abdômen definido e os braços musculosos.
Padrão alimentar Na AN e na BN, o padrão alimentar encontra-se inadequado, irregular ou caótico. As alterações podem ser tanto em relação às quantidades ingeridas (aumentada ou diminuída) quanto à qualidade dos alimentos (abuso ou restrição), e à regularidade/frequência da alimentação. A restrição alimentar é um dos sintomas mais comumente observados. Ao contrário do que se possa imaginar, os pacientes mais jovens tendem a fazer restrições alimentares graves e drásticas (AN tipo restritivo). Todavia, não é raro manterem o consumo de determinados alimentos preferidos, como doces, bolos ou sorvetes. Sua ingestão costuma ser em quantidades inadequadas e estar acompanhada de culpa ou comportamentos compensatórios. Assim, o consumo desses alimentos não exclui o diagnóstico de TA. A evitação ativa de manter hidratação adequada também é comum em crianças, podendo acarretar em quadros graves e abruptos de desidratação. Menos frequentemente, podem ocorrer comportamentos peculiares, como recusa em não engolir saliva. Se cuidadosamente
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investigadas, tais condutas poderão demonstrar associação com a tentativa de controle de peso. Os episódios compulsivos com frequência sucedem períodos prolongados de jejum ou restrição alimentar significativa e podem estar presentes tanto na AN tipo purgativo quanto na BN. Durante a compulsão, o paciente tende a abusar de alimentos tidos como proibidos e ativamente evitados em outras situações de alimentação, como doces, bolachas, refrigerantes, pães, frituras. Po dem ocorrer à noite, na escola, em lanchonetes e geralmente são acompanhados de culpa, desespero e vergo nha. O uso de comportamentos compensatórios numa tentativa de se livrar dessas sensações e do aumento de peso torna-se praticamente inevitável. Crianças e adolescentes podem ter ideias peculiares com relação a alimentos e a determinados conceitos, como peso, volume e forma, em função de seu desenvolvimento cognitivo. Alimentos pequenos, como balas e brigadeiros, podem estar associados a baixo valor calórico e, con sequentemente, alimentos maiores podem ser considerados perigosos (um bife grande). A relação entre o tamanho do prato e o alimento também pode ficar associada a valor calórico: quanto maior o lugar ocupado pelo alimento no prato, maior a sua chance de engordar. Não é raro optarem por comer pequenas porções de alimento em pratos diferentes ou "beliscar", ao invés de fazer um prato único na hora da refeição. Costumam achar que "aos pouquinhos não engordà' ou que dessa forma fica menos ameaçador. Outra ideia frequente é a de que ganho de peso significa exclusivamente ganho de gordura, desconsiderando outros fatores para sua mudança, como o aumento de estatura que é esperado nessa fase da vida.
Comportamentos compensatórios São empregados com o objetivo de perder ou evitar ganho de peso. Em pacientes mais jovens, além da restrição da ingestão alimentar, os comportamentos compensatórios mais utilizados são os exercícios físicos exces sivos e os vômitos. Laxantes são mais utilizados por adolescentes mais velhos (a partir dos 15- 16 anos), em função de maior facilidade de acesso e da menor vigilância dos pais. O excesso de exercícios físicos pode ocorrer tanto por aumento do tempo em atividades físicas formais (esportes, dança), quanto pelo incremento de atividades cotidianas, como arrumar o quarto, auxiliar nos cuidados com a casa, subir e descer escadas, brincar com o cachorro. Os exercícios também podem ser feitos em segredo, à noite (abdominais, por exemplo). Os vômitos não devem ser desconsiderados, mesmo se tratando de indivíduos mais jovens. Provocar vômitos para controlar o peso pode ser tão frequente que é prudente assumir que um paciente esteja vomitando, caso ele não esteja ganhando peso mesmo com a realimentação monitorada.
Alterações do eixo hipotálamo-hipófise Nas meninas com AN, ocorre a amenorreia (ausência de menstruação). Ela pode ser primária (antes de ter ocorrido a primeira menstruação - meninas pré-púberes), necessitando de adaptação do critério diagnóstico, ou secundária (ocorre após primeira menstruação com a interrupção de pelo menos três ciclos menstruais consecutivos - meninas púberes). Nas pacientes pré-púberes, a avaliação de alteração do eixo hipotálamo-hipófise-ovariano deve ser feita segundo os estágios de Tanner ou por ultrassonografia pélvica (determinação dos graus de crescimento e maturidade uterino e ovariano), visando determinar existência ou não de atraso no desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários. A idade média que as outras mulheres da família menstruaram pela primeira vez também pode ser um referencial nessa investigação. As meninas púberes com amenorreia secundária também podem apresentar involução dos caracteres sexuais secundários em função da desnutrição 11•12 • Nos meninos com diagnóstico de AN, esse critério diagnóstico é inaplicável. Todavia, o exame do eixo hipotálamo -hipófise-gonadal é igualmente importante e pode ser realizado tanto por intermédio dos estágios de Tanner, como por medições hormonais laboratoriais. Alterações importantes do eixo hipotálamo-hipófise-gonadal são raras nos casos de BN. Algumas pacientes podem apresentar irregularidades menstruais, em função muitos episódios de vômitos e/ ou abuso de laxantes. É importante salientar que os pacientes na infância e adolescência podem estar impedidos de executar diversos sintomas como comportamentos direcionados ao controle e perda de peso em função de sua autonomia ainda ser restrita. Dessa forma, a investigação deve abranger os aspectos cognitivos dessas patologias, buscando a existência de pensamentos que indiquem a intenção do sintoma. Assim, uma paciente pode não usar laxantes porque os pais não a deixam comprá-los embora pense nisso constantemente; um menino pode ter a intenção de perder medidas do abdômen através do uso de cremes redutores mas não o faz apenas porque sua mãe impede 13 .
Comorbidades Na psiquiatria, as definições de comorbidade mais comumente utilizadas referem-se à situação de um paciente sofrer simultaneamente de distintos transtornos ou se determinados transtornos ditos secundários der ivarem de transtornos primários em um indivíduo. A presença de transtornos comórbidos usualmente influencia de forma negativa tanto o curso quanto o prognóstico dos TA. Uma vez identificadas, requerem adaptação do tratamento, seja pela prescrição medicamentosa, modificação das técnicas psicoterápicas e adequação das metas ao longo do acompanhamento 14 .
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Os estudos epidemiológicos sobre a prevalência de comorbidades nos TA com populações exclusivas de crianças e adolescentes ainda são escassos, sobretudo na BN. Os trabalhos diferem com relação aos instrumentos empregados e às amostras populacionais estudadas (comunidade vs. clínica; quadros graves vs. moderados/leves), podendo gerar resultados muito distintos. De uma forma geral, as taxas de comorbidades psiquiátricas aos TA são altas, à semelhança do que ocorre nos trabalhos com amostras de adultos. As síndromes totais e parciais dos TA não diferem entre si com relação às comorbidades psiquiátricas. Os transtornos psiquiátricos mais frequentes em crianças e adolescentes com TA são os transtornos afetivos (25,4 a 85%) 15•16, ansiosos (4 a 76%) 17•18 e o abuso de substâncias (20,5 a 95%) 19 • Em geral, ocorrem antes ou concomitantemente aos TA. Nos casos de AN, os transtornos mais comuns são depressão e distimia dentre os afetivos, o transtorno obsessivo-compulsivo, a fobia social e o transtorno de ansiedade generalizada entre os ansiosos, nessa ordem de importância. Nos casos de BN, apenas a frequência dos transtornos ansiosos varia em relação à AN, sendo mais prevalente a fobia social, seguida do transtorno obsessivo-compulsivo e do transtorno de ansiedade generalizada16- 19 •
Tratamento O tratamento dos TA na infância e adolescência deve ocorrer mesmo nos casos de síndromes parciais e/ou sem perda de peso excessiva, uma vez que demonstrem alteração persistente do padrão alimentar com prejuízos significativos para o paciente (biológico, social ou pessoal)3·5 • O tratamento padrão da AN e BN é multidisciplinar e deve abordar os aspectos físicos, nutricionais, psicológicos e relacionais. Os métodos terapêuticos devem ser adaptados a cada etapa do desenvolvimento da criança. Os melhores resultados parecem ocorrer naqueles casos de tratamento precoce durante a infância e adolescência, evitando as formas mais graves e/ou crônicas dos TA20•21 • Nenhuma modalidade de tratamento pode ser indicada como única ou isoladamente melhor, seja ela comportamental, psicanalítica ou farmacológica. Um bom atendimento requer vários métodos terapêuticos atuando de forma conjunta, abrangente e coesa22 • No trabalho com crianças e adolescentes, a abordagem familiar é crucial para o sucesso do tratamento 23•2\ garantindo que a equipe profissional e os familiares trabalhem em harmonia, proporcionando orientações firmes e coerentes. Se não desta forma, ocorrem cisões entre os membros da equipe e da família, dispersando as forças necessárias para o manejo destes transtornos. Além disso, frequentemente os pacientes não têm crítica sobre seu estado mórbido, o que dificulta ainda mais a abordagem individual e reforça a necessidade de inclusão da família no tratamento 25.
O atendimento nutricional baseia-se na reeducação alimentar por meio da introdução progressiva de alimentos que, no início, se necessário, deverá ser compulsória. O processo de realimentação deve ser integrado com a participação da família e dos outros membros da equipe. Técnicas cognitivo-comportamentais (diário alimentar e trabalho de imagem corporal) são recomendadas para viabilização das mudanças alimentares. O atendimento médico inclui identificação e manejo dos sintomas alimentares por meio de técnicas cognitivo-comportamentais e avaliação diagnóstica e o tratamento de quadros psiquiátricos comórbidos. A medicação nunca deve ser usada como única abordagem e restringe-se ao tratamento farmacológico das comorbidades (transtornos ansiosos e depressivos). Em certos casos, pode-se fazer uma tentativa de controle de sintomas alimentares compulsivos e purgativos com medicações. A classe farmacológica de escolha são os inibidores de recaptação de serotonina (fluoxetina). Não há atualmente na literatura indicação de uso de medicações antipsicóticas em crianças e adolescentes, exceto em casos de comorbidades20•21•23 • Os TA são patologias de impacto abrangente nas vidas dos jovens afetados e de suas famílias. A recuperação requer apoio psicológico que garanta a adesão e o progresso do tratamento, bem como a abordagem de aspectos da infância e adolescência envolvidos nos TA. Diversas técnicas têm sido empregadas com esse objetivo, como as psicoterapias interpessoal, psicodinâmica e cognitivocomportamentaP.
A importância da criação de serviços especializados Além de causarem sofrimento imediato, os TA podem prejudicar o rendimento escolar ou até levar a exclusão escolar. Com isso, instala-se um ciclo de problemas na vida adulta passando pela dificuldade de encontrar empregos, o aumento do risco de problemas psiquiátricose até a dificuldade para criar seus próprios filhos. Sendo assim, os transtornos mentais não tratados no início tendem a cronificar, encarecendo o custo da assistência global à saúde e tornando -se o ponto de partida para um ciclo de consequências negativas27 • Com isso o ônus do Estado aumentará, tendo de dar conta de uma sociedade com índices cada vez maiores de improdutividade. Já se sabe que o custo de políticas de saúde pública para prevenção primária (evitar que o transtorno apareça) e secundária (evitar que um transtorno já manifestado agrave-se e leve o indivíduo a apresentar outros problemas) é frequentemente inferior ao custo de lidar com as consequências acima mencionadas28 • A AN e BN, assim como suas síndromes parciais, devem ser alvo de preocupação das políticas de saúde mental para crianças e adolescentes no Brasil. Apesar de não
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serem os transtornos mais prevalentes, têm taxas relevantes de morbi/mortalidade, gravidade clínica e grau de complexidade etiológica suficientes para justificarem a necessidade de tratamento especializado.
Considerações finais Os transtornos alimentares acometem crianças e adolescentes e apresentam peculiaridades no quadro clínico e no tratamento específico para esta faixa etária. Apesar dos TA apresentarem taxas de prevalência menores do que outros diagnósticos em jovens, sua morbidade e mortalidade justificam atenção dos órgãos públicos. Quanto maior o tempo para o diagnóstico adequado e tratamento especializado, maior o tempo de tratamento, provavelmente mais exames laboratoriais e de imagem utilizados e maior a chance de requerer internação e até cuidados em unidade de terapia intensiva. Além disso, o indivíduo com TA que demora a ser diagnosticado e tratado tem maior tendência a cronificação. Quando o diagnóstico é feito adequadamente e o tratamento é realizado por equipe multidisciplinar especializada, em geral o paciente responde bem ao tratamento ambulatorial- evitando-se assim a internação. Os casos não diagnosticados ou não tratados adequadamente em geral evoluem mal e muitas vezes necessitam de internação em unidades de terapia intensiva, assim como os casos crônicos, que acabam ocupando vagas em serviços públicos de saúde por muitos anos. Portanto, o benefício da implantação e melhoria de equipes especializadas tanto para diagnóstico quanto para tratamento será não só direto, com melhora dos atendimentos aos enfermos, mas indireto, com grande impacto na diminuição dos gastos com a saúde pública. Minicaso clínico
RST. 11 anos e 9 meses, sexo feminino, parda, natural e procedente de Goiânia. R é a terceira de uma prole de 3 filhas. A primeira filha tem 18 anos e tratou de um quadro de bulimia nervosa há um ano. A segunda filha tem 15 anos e tem antecedente de ansiedade de separação aos 7 anos. A avó materna chegou a concorrer para miss de sua cidade, era muito preocupada com a imagem corporal e o peso e até hoje sua alimentação é muito restritiva. O início do quadro alimentar de R foi há 8 meses, quando viajou para um acampamento de férias e resolveu perder peso. R nunca esteve acima do peso, mas passou a se comparar às meninas mais magras do acampamento e achou que teria que emagrecer. Inicialmente resolveu parar de tomar refrigerantes e comer frituras e doces, depois diminuiu a quantidade de alimentos do almoço e jantar pela metade. Após perder 4 kg resolveu não jantar mais. A perda de peso acentuou-se nos últimos 4 meses. R foi levada a um endócrino que orientou que a paciente fosse a uma nutricionista para a qual R afirmou que desejava uma dieta para ganhar peso e omitiu que, na verdade, ainda queria perder peso.
A nutricionista orientou que R comesse cinco vezes ao dia e que aumentasse a porção de carboidrato do almoço e jantar. R não seguiu as orientações e ainda retirou completamente o carboidrato de sua alimentação. R continuava freque ntando a escola e recebendo boas notas, mas já não saía com amigos e sempre inventava desculpas para não fazer refeições com os pais. Os pais foram chamados na escola quando uma das amigas de R viu-a no vestiário e ficou muito assustada com sua magreza. Rjá havia perdido 14 kg. Alguns dias depois foi levada ao pronto-socorro por queixarse de taqu icardia, apresentava-se bastante emagrecida, desidratada, com peso para idade no percentil menor que 30/o. Menarca aos 11 anos e 3 meses, atualmente com ciclos menstruais presentes, mas irregulares e com pouco fluxo. Questões 1. Com base nas informações apresentadas no caso clínico aci-
a) b) c) d) e)
ma, segundo critérios diagnósticos do DSM-IV, qual o diagnóstico da paciente R? Anorexia nervosa, subtipo restritivo Anorexia nervosa, subtipo purgativo Comer restritivo Transtorno alimentar não especificado Bulimia nervosa
2. Entre as alternativas abaixo, qual não poderia ser classificada como transtorno alimentar não especificado (TAN E)? a) Paciente do sexo feminino. 11 anos. peso normal para idade, refere ausência de preocupação com o corpo, com recusa alimentar a alimentos como salgadinhos, massas e batata, com início por volta dos 6 anos. b) Paciente do sexo feminino, 13 anos, com perda de peso significativa, recusa em manter peso normal, distorção de imagem corporal e ciclos menstruais regulares. c) Paciente do sexo masculino, 15 anos, sobrepeso, episódios recorrentes de compulsão alimentar, seguidos de corrida com o objetivo de não ganhar peso em frequência média de 1 vez por semana. d) Paciente do sexo feminino, 16 anos, peso normal, desejo intenso de emagrecer, com períodos de jejuns prolongados, vômitos autoinduzidos esporadicamente. e) Paciente do sexo feminino, 14 anos, peso normal para idade, amenorreia, com antecedente de obesidade e perda de 1O kg em dois meses devido a restrição alimentar severa iniciada após um regime alimentar para emagrecer. 3. Qual das alternativas abaixo seria uma justificativa plausível
para a implementação de políticas públicas de saúde com foco no tratamento de TA na infância e adolescência no Brasil? a) Os transtornos alimentares têm alta prevalência em crianças e adolescentes do sexo feminino. b) Os transtornos alimentares na infância e adolescência apresentam altos índ ices de morbidade e mortalidade.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA • SEÇÃO 5 AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS c) Os medicamentos disponíveis para o tratamento dos transtornos alimentares na infância e adolescência apresentam alto custo, necessitando de apoio do estado para serem distribuídos a população. d) No Brasil, existem muitas equipes multidisciplinares especializadas no tratamento de transtornos alimentares na infância a adolescência, que necessitam multiplicar seus conhecimentos para outros profissionais. e) Todas as alternativas estão corretas.
4. Assinale a alternativa que aponta a afirmativa verdadeira coma) b) c) d)
e)
parando TA em crianças/adolescentes e adultos. Ao contrário dos adultos. crianças e adolescentes com TA não demonstram incômodo com o ganho de peso. O abuso de laxantes e diuréticos é bastante frequente em crianças. adolescentes e adultos com TA. O TA mais frequente em crianças é a anorexia nervosa e em adultas jovens do sexo feminino é a bulimia nervosa. É comum que as crianças e adolescentes que fazem restrição parem de comer inicialmente seus alimentos preferidos. assim como os adultos. O tratamento dos TA, tanto para crianças e adolescentes quanto para adultos. envolve a participação de equipe multidiscipl inar.
5. Quais são as comorbidades psiquiátricas mais frequentes com TA na infância e adolescência? a) Abuso de substâncias. transtorno de conduta e transtorno obsessivo-compulsivo. b) Transtornos afetivos. transtornos ansiosos e abuso de substâncias. c) Transtornos afetivos. transtornos de personalidade e transtor. nos anSIOSOS. d) Transtorno opositivo-desafiador. fobia específica e transtornos afetivos. e) Fobia específica, abuso de substâncias. transtorno obsessivocompulsivo.
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Transtornos da Sexualidade
Carmita Helena Najjar Abdo M arco de Tubino Scanavino
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Disfunções sexuais masculinas e femininas, 959
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Fisiopatogenia, 960 Condições socioeconômicas e culturais e comportamento sexual, 961 Quadro clínico e diagnóstico, 961
1. Reconhecer as principais hipóteses etiológicas. 2. Identificar os aspectos clínicos.
Tratamento, 963
3. Elaborar o diagnóstico.
Prognóstico, 963
4. Conhecer o curso dos quadros clínicos.
Impulso sexual excessivo e comportamento sexual impulsivo, 963 Etiologia, 966 Quadro clínico. diagnóstico e comorbidades, 966 Tratamento, 968
5. Fazer o diagnóstico diferencial com outras condições. 6. Eleger as principais intervenções farmacológicas e psicoterápicas. 7. Identificar os fatores prognósticos positivos e negativos.
Prevenção, 970 Parafilias, 970 Etiologia, 970 Quadro clínico, diagnóstico e comorbidades, 970 Tratamento, 971 Prevenção, 973 Políticas públicas, 973 Minicasos clínicos, 973 Questões, 974 Referências bibliográficas, 974
Disfunções sexuais masculinas e femininas Na década de 1960, Masters e Johnson, um casal de terapeutas sexuais americanos, conceberam um modelo de ciclo de resposta sexual constituído por quatro fases: excitação, platô, orgasmo e resolução '. Esse modelo (denominado linear) preconizava que o estímulo sexual interno (deflagrado no cérebro por pensarnentos ou fantasias), bem como o externo (desencadeado nos órgãos dos sentidos), promoveriam a excitação, identificada pela ereção (no homem) e pela vasocongestão e lubrificação da vagina e da vulva (na mulher).
Mantida essa excitação, a tensão sexual cresceria, conduzindo o indivíduo à fase de platô, à qual se seguiria, se o estímulo prosseguisse, o orgasmo, masculino e feminino. O orgasmo do homem seria acompanhado da expulsão do sêmen (ejaculação). Sucederia o orgasmo, um período refratário (resolução), sendo este mais definido no homem do que na mulher. Nesse período, o organismo retornaria às condições físicas e psíquicas basais, visto que, durante as fases anteriores, a respiração, os batimentos cardíacos, a pressão arterial, a circulação periférica, a sudorese, entre outras manifestações, tenderiam a se exacerbar. Alguns anos mais tarde foi aventada a hipótese de que indivíduos tanto do sexo masculino como do feminino, ainda que aptos para a resposta sexual, poderiam eventualmente não ter disponibilidade para essa atividade. Essa hipótese sugeria que o desejo por sexo não fora contemplado pelo modelo de Masters e Johnson. Assim, Helen Kaplan considerou que, antecedendo a fase de excitação, haveria a fase do desejo e não se justificaria um platô, visto que a excitação seria crescente, conduzindo ao orgasmo. O novo esquema de resposta sexual masculina e feminina ficou então definido por três fases: desejo, excitação e orgasmo2.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
A observação clínica evidenciou, passando a argumentar a partir dos últimos dez anos, que o modelo de ciclo de resposta sexual atualmente em vigor não responde ao que de fato ocorre com as mulheres. Há aquelas que não têm desejo espontâneo ou que, ao tê-lo, nem sempre dão sequência ao ato sexual; algumas iniciam essa atividade para acompanhar seus parceiros, não motivadas por interesse próprio3,4. Apenas é feita aqui menção a esse novo conceito, não havendo razão neste capítulo para maior detalhamento de tal situação, uma vez que as classificações vigentes das disfunções sexuais ainda se baseiam no modelo linear de Masters e Johnson, modificado por Kaplan.
Fisiopatogenia O controle neurológico da ereção peniana e da excitação genital feminina desenvolve-se em três áreas: 1) percursos neurológicos locais; 2) percursos centrais e da medula espinhal; 3) centros cerebrais superiores. Hormônios e neurotransmissores modulam influências de natureza central e periférica5. Os percursos neurológicos locais fazem a conexão entre estruturas genitais (nervos genitais e pélvicos e plexos parassimpático, simpático e sensório) e organização/controle central. Fármacos, hormônios, traumas ou cirurgias podem influenciar esse sistema de sinais4. As regiões do cérebro mais envolvidas com o ciclo de resposta sexual estão no hipotálamo (núcleos paraventriculares e ventromediais), regiões límbicas, núcleos olfatórios e área pré-óptica mediai. As informações transitam por mesencéfalo, medula oblonga, medula espinhal e sistema nervoso autônomo até os órgãos genitais6. O desejo e a excitação sexual resultam em vasodilatação e maior fluxo sanguíneo na genitália. Nesse processo, desempenham papel fundamental os hormônios estrógeno e testosterona7. O estrógeno influencia a transmissão nervosa central e a percepção sensorial ao regular a expressão da síntese do óxido nítrico (ON) na vagina e no clitóris. Perifericamente, estimula a liberação de ON das células endoteliais vaginais, induzindo a vasodilatação8. A testosterona é o verdadeiro hormônio da motivação sexual de homens e mulheres. Parece atuar perifericamente, afetando diretamente o fluxo sanguíneo arterial ou, indiretamente, na disponibilidade do estrógeno9·10 . A ereção peniana, por seu turno, é um processo neuro-hemodinâmico ativo, controlado por influências centrais e periféricas, que ocorre em ambiente endócrino adequado, em decorrência de diversos estímulos. Neurotransmissores facilitadores (como dopamina, acetilcolina e ocitocina) ou inibidores (como epinefrina, norepinefrina, serotonina, encefalinas, ácido gama-aminobutírico e prolactina) participam desse processo6•10.
Fatores hormonais, neurológicos, vasculares, endocrinológicos e psicológicos influenciam a função erétil ao longo da vida do homem. Doenças próprias do envelhecimento podem comprometer um ou mais desses sistemas. Portanto, a disfunção erétil (DE) pode ocorrer por comprometimento da rede neuronal central e/ou dos nervos periféricos (DE neurogênica) - por exemplo, esclerose múltipla, doença de Alzheimer, doença de Parkinson 11·12; aterosclerose, dislipidemia, hipertensão (DE vascular) 13•1\ diabetes, falência renal crônica 15; uso de drogas 16; déficit de hormônios sexuais (hipogonadismo do adulto) 17; depressão, ansiedade, pânico, fobia, estresse (DE psicogênica) 18·19. A ejaculação precoce (EP), por outro lado, afeta homens em todas as faixas etárias, podendo ser primária (ao longo da vida) ou secundária (adquirida). Atualmente, firmam-se evidências de que determinantes orgânicos associados a psíquicos (ansiedade) estão envolvidos na etiologia da ejaculação precoce. Assim, a EP tem causas multidimensionais, as quais refletem predisposição biológica (hipersensibilidade aos receptores) a uma latência ejaculatória curta (pênis pouco ou nenhum tempo dentro da vagina), associadas a questões psicossociais20. Na maturidade, o homem sofre o declínio lento e gradual da produção de testosterona, diferentemente do que se dá com a produção de estrógenos na mulher, abruptamente interrompida na menopausa. Entretanto, o ho mem pode vir a ter diminuição de seus níveis hormonais além de um padrão considerado natural (1 % ao ano, após os 40 anos), quadro conhecido como hipogonadismo masculino do adulto, caracterizado por diminuição da libido e consequente disfunção erétil, depressão e irritabilidade, diminuição do tecido e da força muscular, aumento do tecido adiposo abdominal (adiposidade visceral), osteoporose e diminuição do volume testicular, entre outros sintomas e sinais21·22 • Em qualquer fase da vida da mulher podem ocorrer disfunções sexuais, sendo falhas do desejo e da excitação mais comuns acima dos 45 anos, pela proximidade do dimatéria e da menopausa. As mais jovens ressentem-se especialmente de anorgasmia, em função da falta de experiência e/ou menor intimidade com o parceiro. Problemas sexuais dele (pouca experiência, falta de habilidade, desejo excessivo ou diminuído, disfunção erétil ou ejaculação precoce) podem provocar, secundariamente, disfunção sexual na mulher ou conduzir a erros de avaliação23 . Fatores psíquicos são deletérios ao ciclo de resposta sexual da mulher, tais como falta de segurança, receio de gravidez não desejada, ansiedade, fobia, experiências sexuais prévias traumáticas, inexperiência sexual ou constrangimento24·25. A função sexual feminina pode ser prejudicada, também, por numerosas doenças e condições físicas 26-29 . A mulher que se aproxima da menopausa tem níveis decrescentes de estrógeno, o que provoca adelgaçamen-
71 TRANSTORNOS DA SEXUALIDADE
to do epitélio da vagina, atrofia da musculatura lisa da parede vaginal, ressecamento vaginal (pela lubrificação insuficiente), que podem se estabelecer em pouco tempo e provocar dor durante o coito, ou seja, dispareunia. O desejo e a excitação sexual, nesses casos, podem se comprometer secundariamente8,23,30.
Condições socioeconômicas e culturais e comportamento sexual Pouca instrução produz mitos, tabus, preconceitos e expectativas errôneas a respeito da sexualidade, fatores esses prejudiciais ao desempenho sexual. Também desemprego, dificuldades econômicas, experiências sexuais traumáticas e outras condições adversas prejudicam a autoestima, a autoconfiança e, consequentemente, a performance sexual. Quando o acesso à saúde é difícil, a manutenção/recuperação desse desempenho fica comprometida. Cansaço, violência física/sexual, distorções cognitivas, autocontrole excessivo e rigidez de costumes podem levar às falhas, que, por repetição, vão constituindo as disfunções sexuais.
Quadro clínico e diagnóstico As disfunções sexuais fazem parte do Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais - 4a edição, texto revisado (DSM-IV-TR), que reconhece a resposta sexual como um conjunto de quatro etapas sucessivas: desejo, excitação, orgasmo e resolução 3 1• Genericamente, pode-se definir disfunção sexual como a incapacidade do indivíduo em realizar o ato sexual de forma satisfatória, para si, para sua(seu) parceira(o) ou para ambos 31 '32 . Para tal, concorrem elementos de ordem somática e/ ou psíquica, caracterizando diferentes causas da disfunção. Quanto mais precoce for a fase prejudicada do ciclo, tanto mais comprometida estará a resposta sexual e mais complexos serão o quadro clínico e os respectivos prog, . nostiCo e tratamento. O diagnóstico das disfunções sexuais de origem psiquiátrica é essencialmente clínico. Portanto, a queixa do(a) paciente e/ou da( o) parceira( o), além de elementos de anamnese, são fundamentais. Observa-se um mínimo de seis meses de sintomatologia. Esse critério é indispensável para a caracterização de qualquer disfunção sexual31 • Deve-se proceder, também, à investigação das condições do( a) parceiro( a), para que possíveis erros de interpretação sejam evitados. Um homem com insuficiente controle da ejaculação, por exemplo, pode levar sua parceira a se considerar anorgásmica, quando de fato o pouco controle dele resulta em precocidade ejaculatória, o que a impede de concluir o ciclo de resposta sexual com tranquilidade e êxito. Assim, o estí-
mulo sexual inadequado, no que se refere a foco, intens ida de e/ ou duração, exclui o diagnóstico de disfunção de desejo, excitação ou orgasmo, bem como de dispareunia, especialmente em mulheres. O diagnóstico, o planejamento terapêutico e o prognóstico devem contemplar a distinção entre transtornos primários (ao longo da vida) e secundários (adquiridos), bem como entre disfunção generalizada (presente em qualquer circunstância) e situacional (manifestada somente em determinadas circunstâncias e/ou parcerias)3 1• Devem -se considerar, ainda, a idade e a experiência sexual do( a) paciente. Jovens ou pouco experientes po dem temporariamente apresentar dificuldades de ereção, do controle da ejaculação (os homens), da lubrificação/ relaxamento (as mulheres), o que é compreensível e não significa disfunção, mas falta de experiência. A Associação Psiquiátrica Americana classifica as disfunções sexuais conforme apresentado na Tabela I. A Organização Mundial da Saúde, na Classificação Internacional de Doenças (CID-10), também classifica as disfunções sexuais, como apresenta a Tabela II, onde há breve descrição dos quadros e suas peculiaridades32 .
Tabela I
Classificação das disfunções sexuais, segundo o DSM- IV-TR31
Disfunções sexuais Transtornos do desejo sexual 302.71 Transtorno de desejo sexual hipoativo 302.79 Transtorno de aversão sexual Transtornos da excitação sexual 302.72 Transtorno da excitação sexual feminina 302.72 Transtorno erétil masculino Transtornos 302.73 302.74 302.75
do orgasmo Transtorno do orgasmo feminino Transtorno do orgasmo masculino Ejaculação precoce
Transtornos sexuais dolorosos 302.76 Dispareunia (não devida a uma condição médica geral) 306.51 Vaginismo (não devido a uma condição médica geraO Disfunção sexual devida a... (indicar uma condição médica geral) 625.8 Transtorno de desejo sexual feminino hipoativo devido a... (indicar a condição médica geral) 608.89 Transtorno de desejo sexual masculino hipoativo devido a... (indica r a condição médica geral) 60Z84 Transtorno erétil masculino devido a... (indica r a condição médica geral) 625.0 Dispareunia feminina devida a... (indicar a condição médica geral) 608.89 Dispareunia masculina devida a... (indicar a condição médica geral) 625.8 Outra disfunção sexual feminina devida a... (indicar a condição médica geral) 608.89 Outra disfunção sexual masculina devida a... (indicar a condição médica geral) Disfunção sexual induzida por substância 302.70 Disfunção sexual sem outra especificação
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela 11 F52.0
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Classificação das disfunções sexuais de base psiquiátrica na CID- 1032
Ausência ou perda do desejo sexual: a perda do desejo sexual é o problema principal e não é secundária a outras dificuldades sexuais, tal como dispareunia. A falta de desejo sexual não impossibilita o prazer ou a excitação sexual, mas torna a iniciação da atividade sexual menos provável.
F52.1
Aversão sexual e ausência de prazer sexual: a perspectiva de interação sexual com um parceiro é associada a fortes sentimentos negativos e produz medo e ansiedade suficientes para que a atividade sexual seja evitada. As respostas sexuais ocorrem normalmente e o orgasmo é experimentado, mas existe falta do prazer apropriado. Essa queixa é mais comum em mulheres.
F52.2
Falha de resposta genital: em homens, o problema principal é a ereção. Em mulheres, o problema principal é o ressecamento vaginal ou a falha de lubrificação. A causa pode ser psicogênica ou orgânica (p. ex., infecção ou deficiência de estrogênio na pós- menopausa). Raramente, as mulheres se queixam primariamente de ressecamento vaginal, exceto como um sintoma de deficiência de estrogênio na pós- menopausa.
F52.3
Disfunção orgásmica: o orgasmo não ocorre ou está marcadamente retardado. Isso pode ser situacional. Nesse caso. a etiologia é provavelmente psicogênica, ou é invariável, quando fatores físicos ou constitucionais não podem ser facilmente excluídos, exceto por uma resposta positiva a tratamento psicológico. É mais comum em mulheres do que em homens.
F52.4
Ejaculação precoce: incapacidade de controlar suficientemente a ejaculação para que os dois parceiros consigam prazer nas relações sexuais.
F52.5
Vaginismo não orgânico: espasmo dos músculos que circundam a vagina, causando oclusão do orifício vaginal. A penetração do pênis é impossível ou dolorosa. Pode ser uma reação secundária a alguma causa local de dor, caso em que essa categoria não deve ser utilizada.
F52.6
Dispareunia não orgânica: dor intensa durante o intercurso sexual. Pode ocorrer em homens e mulheres. Frequentemente pode ser atribuída a uma condição patológica local e deve então ser apropriadamente categorizada. Em alguns casos, entretanto, nenhuma causa óbvia é aparente e fatores emocionais podem ser importantes. Essa categoria é usada somente se não houver outra disfunção sexual mais primária, como vaginismo ou ressecamento vaginal.
F52.7
Apetite sexual excessivo: homens e mulheres podem ocasionalmente queixar-se de impulso sexual excessivo como um problema por si só, usualmente durante o final da adolescência ou o início da vida adulta. Quando o impulso é secundário a um transtorno afetivo ou quando ocorre durante os estágios iniciais de demência, o transtorno subjacente deve ser codificado.
F52.8
Outras disfunções sexuais não devidas a transtorno ou a doença orgânica.
F52.9
Disfunção sexual não devida a transtorno ou a doença orgânica não especificada.
A Tabela III sintetiza os critérios diagnósticos a serem observados diante da suspeita de disfunção sexual. Tabela 111
Critérios diagnósticos das disfunções sexuais, segundo o DSM- IV-TR e a CID- 1031·32
A. Alteração nos processos próprios do ciclo de resposta sexual ou presença de dor associada ao intercurso. B. Acentuado sofrimento ou dificuldade interpessoal. C. Não é mais bem explicado por outro transtorno do eixo I e não está relacionado exclusivamente aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância ou de condição médica geral. Considerar os subtipos pela identificação de início, contexto e fatores etiológicos associados, aspectos socioculturais, religiosos e relativos à idade e ao gênero do indivíduo: •
Ao longo da vida- esse subtipo se aplica se a disfunção sexual está presente desde o início da vida sexual.
•
Adquirido- esse subtipo se aplica à disfunção sexual que se desenvolve apenas após um período de funcionamento normal.
Um dos seguintes subtipos indica o contexto no qual a disfunção sexual ocorre:
Generalizado- nesse subtipo a disfunção sexual não está limitada a certas formas de estimulação, situações ou parceiros. •
Situacional - esse subtipo se aplica quando a disfunção sexual está limitada a determinados parceiros, formas de estimulação ou situações. Embora, na maior parte dos casos, as disfunções ocorram durante a atividade sexual com um parceiro, às vezes pode ser importante identificar disfunções que ocorram durante a masturbação.
Os subtipos abaixo indicam os fatores etiológicos associados com a disfunção sexual:
Devida a fatores psicológicos - esse subtipo se aplica quando supostamente fatores psicológicos desempenham um papel importante para o início, gravidade, exacerbação ou manutenção da disfunção sexual. Condições médicas gerais e substâncias não exercem nenhum papel na etiologia dessa disfunção sexual.
Devida a fatores combinados - esse subtipo se aplica quando: (1) fatores psicológicos supostamente desempenham um papel para início, gravidade, exacerbação ou manutenção da disfunção sexual; (2) uma condição médica geral ou o uso de substância também contribuem, supostamente, mas não bastam para explicar a disfunção sexual. Se uma condição médica geral ou o uso de substância Onclusive efeitos adversos de medicamentos) são suficientes para explicar a disfunção sexual, pode-se diagnosticar disfunção sexual devida a uma condição médica geral e/ ou disfunção sexual induzida por substância.
71 TRANSTORNOS DA SEXUALIDADE
Tratamento Os medicamentos para tratar os diferentes tipos de disfunção sexual têm mecanismos de ação que resgatam a fisiologia do ciclo de resposta sexual. O tratamento medicamentoso para ejaculação precoce (EP), por exemplo, consiste em medicamentos que interferem na transmissão serotoninérgica, retardando a ejaculação. São fármacos de primeira escolha para essa finalidade os antide pressivos inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS), os quais determinam retardo ejaculatório como efeito adverso. Esse efeito é indesejável em homens em tratamento de depressão e/ou de transtornos ansiosos que não apresentam quadro de ejaculação precoce33,34 . Tricíclicos também podem ser utilizados para tratar EP, apesar de contarem com tolerância menor, dados os seus efeitos adversos 33-35 • Para a disfunção erétil (DE), os medicamentos de primeira escolha são os inibidores da fosfodiesterase tipo 5 (iPDE-5), que recuperam e mantêm a resposta erétil perante o estímulo sexual. Na ausência do estímulo, esses fármacos não são capazes de iniciar ou manter a ereção33,36 . Estão disponíveis no mercado quatro agentes orais ati vos e seletivos na inibição da PDE-5: tadalafila, citrato de sildenafila, cloridrato de vardenafila e carbonato de lodenafila. Quando há disfunção sexual masculina por baixos níveis de testosterona, como no desejo sexual hipoativo, o tratamento hormonal deve ser proposto 17,36. A depressão e o tratamento anti depressivo, por induzir e agravar a disfunção sexual, exigem que o perfil do( a) paciente seja previamente avaliado, no sentido de prescrição do medicamento que mais se adapte e ofereça maior possibilidade de adesão, caso a caso. Aos efeitos adversos dos anti depressivos (especialmente diminuição da libido) são sugeridos "antídotos", como complementares ao tratamento da depressão. Entre eles, citam-se a bupropiona (inibidor da recaptação da dopamina; até 300 mg/dia) e a buspirona (ansiolítico; 30-60 mg/dia)37,38 . Para tratar a falta de excitação ou o desejo sexual hipoativo, uma abordagem medicamentosa não hormonal são os inibidores da recaptação da dopamina (bupropiona). Eles auxiliam a função sexual de indivíduos com libido prejudicada, mas que não apresentam deficiência hormonal ou doenças sistêmicas que ocasionem disfunções sexuais37'39 • A disponibilidade de medicamentos eficazes para o tratamento das disfunções sexuais não dispensa as técnicas psicoterápicas para esse fim40 • Elas são indicadas para as disfunções sexuais com componente psicogênico (primário ou decorrente de disfunção de origem orgânica) e podem ser aplicadas em combinação com a farmacoterapia. Além de propiciar ao( à) paciente a compreensão do contexto no qual a disfunção se originou e se desenvolveu, a abordagem psicoterápica dispõe de técnicas cog-
nitivas e comportamentais para a psicoeducação e a diminuição dos níveis de ansiedade de desempenho, possibilitando o resgate da função e da satisfação sexuais. Psicoterapia individual, terapia sexual e/ ou terapia de casal devem ser consideradas e indicadas, conforme o caso. Os esquemas da Tabela IV resumem os tratamentos acima descritos. A Tabela V ilustra os "antídotos" propostos aos efeitos adversos dos ISRS, bem como os respectivos mecanismos de ação, doses e fases do ciclo de resposta sexual em que atuam38 •
Prognóstico O prognóstico das disfunções sexuais é tanto mais reservado quanto mais cedo incidir o bloqueio no ciclo de resposta sexual. Desta feita, costuma ser mais complexo e prolongado o tratamento de desejo hipoativo do que de anorgasmia. Enquanto o primeiro demanda elucidação da causa e, muitas vezes, tratamento multidisciplinar, o segundo pode requerer apenas uma orientação ao paciente ou ao casal, a respeito de foco, intensidade e duração do estímulo que facilitem o orgasmo. O prognóstico pode tornar-se mais reservado quando há disfunção em ambos os parceiros, bem como quando a disfunção é primária (ao longo da vida), com longa evolução sem tratamento, se há comorbidade (depressão, ansiedade ou doenças orgânicas sistêmicas), conflitos conjugais e/ou má qualidade de vida da( o) paciente e/ou de seu(sua) parceiro(a).
Impulso sexual excessivo e comportamento sexual impulsivo Há mais de 100 anos, Krafft-Ebbing4 5 descreveu uma condição na qual o apetite sexual se apresentava aumentado, de modo a permear todos os pensamentos e sentimentos, levando o indivíduo a não ter outros objetivos na vida, numa busca de gratificação em detrimento de seus valores morais, resultando em se entregar impulsivamente a uma sucessão de prazeres sexuais. Essa sexualidade patológica é um flagelo para sua vítima, colocando-a constantemente em perigo de transgredir a lei, a moral, perder sua honra, sua liberdade e até mesmo sua vida. (págs. 70-71)
Ainda hoje falta consenso entre os pesquisadores quanto à classe de transtornos a que essa patologia pertence, ou seja, se aos transtornos obsessivo-compulsivos (TOC), aos transtornos afetivos, aos transtornos do controle dos impulsos ou às dependências, o que resulta no uso de variadas denominações, a saber: impulso sexual excessivo, compulsão sexual, adição sexual, dependência de sexo, hipersexualidade e comportamento sexual fora de controle.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela IV
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Esquemas de tratamento das disfunções sexuais
Disfunções sexuais masculinas33 •37" 0·41
Ejaculação precoce 1. Antidepressivos (ISRS) - paroxetina, fluoxetina, sertralina (dose variável); iniciar com doses menores e adequá- las paulatinamente 2. Antidepressivos tricíclicos - amitriptilina, clomipramina (dose variável); iniciar com doses menores e adequá- las paulatinamente 3. Ansiolíticos - alprazolam, bromazepam (dose variável) 4. Aplicações tópicas de cremes de lidocaína - exigem o uso de preservativo (para evitar a diminuição da sensibilidade da mucosa vaginal da parceira) 5. lnibidores da PDE- 5 associados a ISRS - mantêm a rigidez peniana, reduzindo a urgência ejaculatória, segundo alguns estudos42 6. Opioide analgésico de ação central (tramado!) - de uso sob demanda, eleva o tempo de latência intravaginal; uso ainda limitado a estudos clínicos; há risco de dependência
7. Psicoterapia/terapia sexual/terapia de casal 8. Nova opção de medicação oral (dapoxetina) - de uso sob demanda; disponível na Europa e no México; em processo de aprovação no Brasil
Disfunção erétil O tratamento deve iniciar-se com a primeira linha. Se esta for ineficaz, passar para a segunda linha, e assim por diante.
Tratamento de primeira linha 1. Educação/mudanças no estilo de vida/adoção de hábitos saudáveis · Atenção e tratamento dos fatores de risco (maus hábitos de vida, tais como bebida alcoólica em excesso, tabagismo, sedentarismo, estresse, alimentação hipercalórica, uso de drogas ilícitas) · Orientação/aconselhamento 2. Psicoterapia/terapia sexual/terapia de casal - em casos de disfunção psicogênica ou mista (orgânica e psicogênica) 3. Agentes orais (inibidores da PDE- 5) - uso sob demanda · Tadalafila - 1 cp, duas a três vezes por semana (20 mg) ou uso diário (5 mg) · Citrato de sildenafila - no máximo 1 cp/dia (25, 50 ou 100 mg, conforme a gravidade da DE) · Cloridrato de vardenafila - no máximo 1 cp/dia (5, 1O ou 20 mg, conforme a gravidade da DE) · Carbonato de lodenafila - no máximo 1 cp/dia (80 mg)
Tratamento de segunda linha 1. Agentes injetáveis · Injeções intracavernosas de substâncias vasoativas (papaverina, fentolamina, clorpromazina, prostaglandinas). combinadas ou isoladas 2. Medicações intrauretrais (alprostadil) - uso restrito no Brasil 3. Dispositivos a vácuo, aplicados no pênis - uso restrito no Brasil
Tratamento de terceira linha · Próteses penianas
Desejo sexual hipoativo 1. Tratamento da depressão, se esta for a causa · Antidepressivos (dose variável); evitar, se possível, aqueles que inibam a libido ':Antídotos" para disfunção sexual induzida por ISRS, s/n; por exemplo: - Bupropiona (150-300 mg/dia) - Buspirona (30-60 mg/dia) - Amantadina (1 00-200 mg/dia) - Mirtazapina (15-45 mg/dia) - Trazodona (200-400 mg/dia) - lnibidores da PDE- 5 (ver agentes orais para DE) 2. Terapia androgênica (em caso de homem com hipogonadismo do adulto comprovado clínica e laboratorialmente e que não tenha contraindicação) 3. Psicoterapia/terapia sexual/terapia de casal - em casos de disfunção psicogênica ou mista (orgânica e psicogênica)
Anorgasmia 1. Antidepressivo (dose variável) - que não interfira na função sexual, se anorgasmia por depressão 2. Buspirona (30-60 mg/dia) ou alprazolam (0,5-2,0 mg/dia) - se anorgasmia por ansiedade 3. Amantadina (uso sob demanda) - se anorgasmia induzida por ISRS 4. Ciproeptadina (uso sob demanda) - se anorgasmia induzida por ISRS 5. Psicoterapia/terapia sexual/terapia de casal - em casos de disfunção psicogênica ou mista (orgânica e psicogênica)
(continua)
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Esquemas de tratamento das disfunções sexuais (continuação)
Tabela IV
Disfunções sexuais femininass.2s.37.39.40,43.44 Desejo sexual hipoativo ou inibição da excitação 1. Se devidos à depressão • Administrar, sempre que possível, antidepressivo de menor efeito sobre a função sexual (p. ex., bupropiona, mirtazapina, desvenlafaxina, agomelatina) • Se necessário, acrescentar "antídotos" Onibidores da recaptação da dopamina), caso o tratamento de eleição seja com ISRS · Bupropiona (150-300 mg/dia)* · Buspirona (30-60 mg/dia) · Mirtazapina (15-45 mg/dia) Trazodona (200-400 mg/dia) · Amantadina (1 00-200 mg/dia)** · Psicoestimulantes (baixas doses diárias)** • Não indicada se houver histórico de anorexia, bulimia, antecedentes de convulsão, inquietação, insônia •• Embora recomendado em consenso de especialistas5, o uso não é corrente no Brasil • Adequação da dose do antidepressivo utilizado (quando possível) ou troca por outro que não cause inibição da libido 2. Terapia androgênica criteriosa - pelo menor tempo possível e com menor dose terapêutica. Indicada para mulheres na pós- menopausa, ooforectomizadas bilateralmente, em radio ou quimioterapia e sob tratamento estrogênico43 3. Psicoterapia/terapia sexual/terapia de casal - em casos de disfunção psicogênica ou mista (orgânica e psicogênica) Anorgasmia 1. Antidepressivo - se anorgasmia por depressão (por exemplo bupropiona), dose variável que não interfira na função sexual 2. Buspirona (30-60 mg/dia) ou alprazolam (0,5-2,0 mg/dia) - se anorgasmia por ansiedade 3. Psicoterapia/terapia sexual/terapia de casal - em casos de disfunção psicogênica ou mista (orgânica e psicogênica) Dispareunia, dificuldade de lubrificação 1. Antidepressivo - em baixas doses e que não interfira na função sexual; indicado para dor neuropática 2. Gel hidrossolúvel - se a lubrificação estiver diminuída 3. Cremes de estrógeno (uso tópico) - contra a atrofia da mucosa vaginal, que pode levar à dor 4. Fisioterapia específica para o assoalho pélvico e os genitais 5. Psicoterapia/terapia sexual/terapia de casal - em casos de disfunção psicogênica ou mista (orgânica e psicogênica) Vaginismo 1. Ansiolítico - dose variável, conforme o caso 2. Gel hidrossolúvel - melhora a lubrificação 3. Fisioterapia específica para o assoalho pélvico e os genitais 4. Psicoterapia/terapia sexual/terapia de casal
Tabela V
"Antídotos" para disfunção sexual secundária aos ISRS (adaptada de Clayton e West, 2003 38)
Droga
Dose (mg/dia)
Fase(s) do ciclo sexual envolvida(s)
Mecanismo de ação
Bupropiona*
150- 300
Desejo, excitação e orgasmo
Aumento de dopamina
Buspirona*
30- 60
Desejo, orgasmo
Redução de serotonina
Ciproeptadina
4- 8
Orgasmo
Antisserotoninérgico
Hormônios sexuais
Variável
Desejo, excitação
Aumento da função horrnonal
Mirtazapina*
15- 45
Orgasmo
Antagonista alfa-2-adrenérgico central e antagonista 5-HT2, 5-HT2C e 5-HT3
Psicoestimulantes
Variável
Desejo, excitação e orgasmo
Agonista dopaminérgico
Amantadina
100- 400
Desejo e orgasmo
Agonista dopaminérgico
lnibidores da PDE-5*
Variável
Excitação e orgasmo
Aumento de óxido nítrico
Trazodona•
200- 400
Desejo
Antagonismo adrenérgico periférico
*Drogas de uso mais indicado, segundo nossa experiência.
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Estima-se que de 3 a 6% dos norte-americanos apresentem comportamento sexual impulsivo, com prevalência maior entre os homens, o que se atribui a fatores socioculturais46. Considerando o estigma cultural associado a esse comportamento e a grande resistência dos portadores em procurar tratamento, acredita-se que essa condição esteja subdiagnosticada. Não há estimativas no Brasil.
Etiologia As teorias biológicas propõem que os correlatos neuroanatômicos do processo aditivo (incluindo o impulso sexual excessivo) envolvam dois sistemas cerebrais: ( 1) córtex orbitofrontal, área septal e hipocampo; e (2) núcleo accumbens, área tegmental ventral e estruturas relacionadas. A disfunção no primeiro pode estar relacionada ao comprometimento da regulação do afeto e da in ibição comportamental, enquanto no segundo, ao funcio namento inadequado do sistema de recompensa e motivacional47. Por outro lado, a maioria das teorias psicanalíticas valoriza nessa disfunção as deficiências e distorções da responsividade materna às necessidades da criança durante os primeiros dois ou três anos de vida. O desenvolvimento da compulsão ocorreria pela interação de tendências pessoais com eventos e/ou ambientes catalisadores (em determinadas famílias). O desequilíbrio na estrutura (caótica ou rígida) e na intimidade (fusão ou distância) não atenderia à criança em muitas de suas necessidades básicas, comprometendo o desenvolvimento de sua autoestima e autoconfiança. A experiência do abuso sexual (frequentemente referida por tais indivíduos) fortaleceria a crença de que o sexo é a necessidade mais importante. O "incesto secreto" (no qual os pais demonstram interesse superficial, agem de forma sedutora ou até mesmo de forma sexualmente excitante com seus filhos) seria ainda mais patogênico do que o incesto que ocorre abertamente46 . Há autores que sugerem que as excessivas e repeti tivas cognições sexuais são uma tentativa de reparação de experiência sexual traumática infantil, em uma busca por reviver e reparar o trauma48 . Por sua vez, a proposta de uma teoria integrada para o impulso sexual excessivo baseia-se na noção geral das disfunções compulsivas, segundo a qual todas elas, independentemente do comportamento que as caracterizam, compartilham um processo psicobiológico subjacente, denominado processo compulsivo. As compulsões asso ciam-se basicamente a falhas na integração dos sistemas que envolvem a regulação dos afetos: o motivacional e de recompensa, e a inibição do comportamento. Essas condições estão associadas a alterações nos sistemas de norepinefrina, serotonina e dopamina, sendo que a alteração no sistema das endorfinas pode contribuir para todos esses comprometimentos funcionais47.
O prejuízo do funcionamento neuroquímico e neuroanatômico decorre da interação de predisposição genética com deficiências ambientais nos primeiros anos de vida, quando o cérebro é mais sensível às influências ambientais, além de depender da qualidade das trocas com o ambiente para um desenvolvimento saudável47 . Goodman 47 identifica a origem desse processo no comprometimento do sistema de regulação psicobiológica dos estados subjetivos, principalmente dos afetos e do comportamento. Essa condição leva o indivíduo a depender de ações externas para a autorregulação. O sistema de autorregulação se desenvolve por meio da interação entre a constituição genética e o relacionamento com os cuidadores nos primeiros anos de vida. No desenvolvimento saudável, a maturação biológica interage continuamente com a ação regulatória dos cuidadores. Por meio desse processo (denominado internalização), a criança torna-se gradativamente capaz de exercer essa fun ção por si mesma. Diversos fatores podem interferir nesse processo, resultando em falha no sistema de regulação dos afetos e predispondo a estados emocionais instáveis, intensos e desorganizados. Estes, por sua vez, favorecem a busca por prazer sexual de modo impulsivo. Também pode ocorrer falha no sistema de autopreservação, quando as habilidades para evitar perigos, proteger-se e atender às necessidades tornam -se deficientes, podendo desencadear insatisfação crônica e a consequente busca de prazer sexual de modo impulsivo. A falha no sistema de autocontrole estaria relacionada à distorção de valores e significados. Aspectos morais não seriam respeitados, fa vorecendo ações impulsivas sexuais transgressivas47.
Quadro clínico, diagnóstico e comorbidades O quadro de impulso sexual excessivo inicia-se usualmente no final da adolescência ou no início da vida adulta32. Mas a busca por tratamento costuma ser tardia, coincidindo com as consequências negativas para a saúde, a vida afetiva, familiar e ocupacional ou na área judicial. O início frequentemente é acompanhado por certa egossintonia, o que impede o portador de se tratar precocemente. A negação (característica do quadro) favore ce a ocultação ou minimização das dificuldades do indivíduo, também contribuindo para o retardo na procura por auxílio 49 . A exacerbação do comportamento sexual se manifesta por: busca compulsiva de novas parcerias (múltiplos parceiros); masturbação compulsiva; múltiplos relacionamentos sexuais; consumo exacerbado de filmes ou de literatura erótica e uso compulsivo da internet para a excitação sexual (sites ou salas para prática de sexo virtual)47'50• O impulso sexual excessivo se caracteriza por episódios de busca por sexo que seguem uma complexa sequência de fases46, a saber:
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1a fase - Fissura: como num transe, o indivíduo fica absorto em pensamentos sobre sexo, com frequentes relatos de experiências dissociativas. O campo cognitivo se estreita parcialmente, fazendo com que predominem ideias acerca de objetos sexualmente estimulantes. 2a fase - Ritualização: passa a desenvolver uma rotina que conduz ao comportamento sexual impulsivo, com excitação crescente. 3a fase - Gratificação sexual: sente-se incapaz de cessar o processo antes de se satisfazer. Nesse estágio, dificilmente estímulos ambientais adversos o detêm antes da finalização do ato sexual. 4a fase - Desespero: vem acompanhado de sensação de impotência e, muitas vezes, de remorso. Com o passar do tempo, a frequência dos episódios aumenta, concomitantemente à crescente perda da sensação de prazer e à exacerbação da angústia. Indivíduos impulsivos sexuais apresentam histórico e repertório abrangentes de práticas sexuais: sexo com homens e mulheres (bissexuais) e experiência homossexual; sexo a três; sexo grupal; suingue; sexo por dinheiro; sexo com profissional; comportamentos sexuais parafílicos; sexo desprotegido 46,51. Classificações diagnósticas
A falta de consenso na literatura acerca da psicopatologia do sexo compulsivo se reflete na precária descrição nosográfica dessa condição, apresentada pelas duas principais classificações diagnósticas. Na CID- 10 (pág. 190) é encontrado: "F52.7 Impulso sexual excessivo: ambos os gêneros (homens e mulheres) podem ocasionalmente se queixar de impulso sexual excessivo como um problema por si só, usualmente durante o final da adolescência ou o início da vida adulta. Quando o impulso sexual é secundário a um transtorno afetivo ou quando ocorre em estágios iniciais de demência, o transtorno subjacente deve ser codificado. Inclui ninfomania e satiríase"32 . Por outro lado, no Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais (DSM-IV-TR, pág. 553) encontra-se entre os transtornos sexuais sem outra especificação: "sofrimento acerca de um padrão de relacionamentos sexuais repetidos, envolvendo uma sucessão de parceiros sexuais sentidos pelo indivíduo como coisas a serem usadas" 31. Além dessas descrições, é sugerida uma estruturação psicopatológica mais condizente com as observações clínicas47 , que se apoia nos critérios para as Dependências de Substâncias do DSM-IV-TR31, conforme resume a Tabela VI. Os critérios diagnósticos do DSM-IV-TR estão sendo revisados para a quinta versão. Foram propostos critérios para o transtorno hipersexual (uma categoria nova), que poderão ser aprovados, modificados ou desaprovados52. São eles: a) Por um período mínimo de seis meses, intensas e recorrentes fantasias, impulsos ou comportamentos sexuais,
associados a quatro ou mais dos seguintes critérios: (1) o tempo gasto com as intensas e recorrentes fantasias, impulsos ou comportamentos sexuais frequentemente interfere nos outros objetivos (não sexuais), atividades e obrigações; (2) engajar-se repetidamente em fantasias, impulsos ou comportamentos sexuais, em resposta a estados de humor disfórico, tais como ansiedade, depressão, irritabilidade, tédio; (3) engajar-se repetidamente em fantasias, impulsos ou comportamentos sexuais, em resposta a eventos estressantes; (4) esforços sucessivos, mas sem êxito, de tentar reduzir ou controlar fantasias, impulsos ou comportamentos sexuais; (5) frequentemente se engajar em comportamentos sexuais sem observar o risco de prejuízo físico ou emocional para si e para o outro. b) Há evidente sofrimento clínico pessoal ou prejuízo nas áreas ocupacional, social ou outras áreas importantes do funcionamento, associados com a frequência e a intensidade dessas fantasias, impulsos ou comportamentos sexuais. c) Essas fantasias, impulsos ou comportamentos sexuais não são devidos ao efeito direto de uma substância exógena (droga de abuso ou medicação). Especificar se há masturbação, pornografia, relacionamento sexual consentido com adultos, cybersex, sexo por telefone, clubes de strip, entre outros. Comorbidades
Os impulsivos sexuais constituem população hete rogênea, com comorbidades psiquiátricas e diversos pro b lemas comportamentais em maior proporção que na população geral: depressão maior ou distimia (39%), histórico de distúrbio fóbico (42%), histórico de abuso de substância (64%), além de transtornos de personalidade
Tabela VI
Critérios diagnósticos para adição sexual 47
Comportamentos sexuais exagerados (repetitivos, muito frequentes) que causam sofrimento e prejuízo clínico significativo, manifesto por três ou mais dos seguintes aspectos: 1. tolerância, quando são necessárias práticas sexuais cada vez mais
intensas e frequentes para obter a mesma satisfação que havia no início do quadro. À medida que isso não ocorre, o ciclo se retroalimenta; 2. abstinência, em que há sintomas físicos ou psíquicos, quando o indivíduo se abstém de se engajar em práticas sexuais; 3. duração longa e intensidade crescente do comportamento; 4. fracasso em controlar o comportamento; 5. ritual de busca: muito tempo e energia são gastos com atividades para a obtenção de sexo; 6. comprometimento das atividades sociais, ocupacionais e . . recreac1ona1s; 7. continuidade do comportamento, a despeito das consequências
adversas.
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(paranoide, histriônica, obsessivo-compulsiva, subtipos passivo-agressivo), com manifestações diversas de comportamento sexual compulsivo, incluindo práticas parafílicas e não parafílicas 53. Tem sido descrita frequentemente a associação do sexo compulsivo com outros transtornos do impulso, tais como comprar compulsivo, jogo patológico, cleptomania, piromania e exercício compulsivo53. A comorbidade com esses transtornos é a tendência principal47 . Quanto à dependência de substâncias, o consumo de álcool está incorporado aos rituais de busca por sexo de grande parte dos impulsivos sexuais. O alcoolismo pode desencadear, desinibir ou até mesmo ajudar a encobrir a compulsão sexual49. Abuso e dependência do álcool e das drogas, principalmente as psicoestimulantes, são frequentemente relatados. A adição sexual é um elemento-chave para a recidiva em outras doenças aditivas50. Em relação aos transtornos afetivos, a literatura identifica comorbidade importante com transtornos de hu mor, de ansiedade, de déficit de atenção e transtornos de personalidade54 . Quanto ao TOC, há poucas evidências para relacionar essa condição ao sexo compulsivo, principalmente pelas diferenças entre cognição e comportamento53 . O diagnóstico diferencial com transtornos da preferência sexual é importante. As manifestações parafílicas dos portadores de compulsão sexual fazem parte de um amplo corolário de práticas sexuais e refletem o comprometimento do sistema de inibição de comportamentos 50, geralmente não preenchendo os critérios diagnósticos para as parafilias, nos quais frequentemente ocorre a formação sintomática de um ou mais comportamentos sexuais incomuns predominantes e necessários à satisfação sexual55 . Portadores de transtorno afetivo bipolar em fase maníaca poderão apresentar desinibição psicossexual, resultando em comportamentos sexuais impulsivos durante a fase de exacerbação do humor. Tais comportamentos, entretanto, não costumam persistir após a estabilização do humor. Em tais casos, os dois diagnósticos devem ser descritos47.
Tratamento Consta de programa integrado que envolve fármacos e psicoterapia, terapia de casal ou familiar, psicoterapia de grupo e atendimento psicoeducacional, além de farmacoterapia direcionada às condições comórbidas47,49 . Quando há risco para o( a) paciente e para a sociedade, pela excessiva falta de controle, recomenda-se internação. A busca por tratamento costuma ser adiada até o momento em que o(a) paciente é confrontado(a) com uma situação-limite (p. ex., perda do emprego, do casamento, dos filhos, prisão) e levado( a) a reconhecer sua incapacidade de controle. Diante dessa crise, passa a bus-
car meios para não repetir essa situação. Dessa forma, a identificação dos sérios prejuízos motiva o tratamento. Fármacos
São indicados antidepressivos inibidores seletivos da recaptação da serotonina - ISRS (fluoxetina, sertralina, paroxetina) - e estabilizadores do humor47 . Fármacos de ação antiandrogênica, como o acetato de medroxiprogesterona (Depo®-Provera®), não são autorizados para esse fim no Brasil56. Índices maiores que 50% de descontinuidade do uso de antiandrogênicos sugerem que medicamentos de regulação dos afetos (antidepressivos e estabilizadores de humor) são preferenciais47. Os esquemas medicamentosos mais indicados são: ISRS em monoterapia; estabilizadores de humor em monoterapia; ISRS e estabilizador de humor associados; ISRS e naltrexona; e ISRS e bupropiona associados47,57,58 • ISRS em monoterapia
O uso desse grupo de medicamentos se pauta nas elevadas taxas de comorbidades, com quadros ansiosos e depressivos. Porém, ele tem sido utilizado, com bons resultados, em compulsivos sexuais sem depressão. As taxas de melhora oscilam entre 50 e 90%, observando-se efeito seletivo sobre o comportamento sexual compulsivo e não sobre o comportamento sexual saudável. Fluoxetina é a droga de primeira escolha no tratamento da compulsão sexual (20-80 mg/dia). Recomenda-se tatear a dose terapêutica, pois a inibição completa do desejo sexual pode prejudicar a adesão terapêutica numa fase inicial. É particularmente indicada quando estiverem associados estados de humor negativos, sintomas obsessivo-compulsivos e impulsividade exacerbada. A sertralina pode ser utilizada (100-200 mgldia) particularmente em pacientes com sintomas físicos e que façam uso de outros medicamentos, devido à menor interação medicamentosa. A paroxetina (20-60 mg/dia) é indicada na presença de sintomas ansiosos. Estabilizadores de humor em monoterapia
São indicados quando houver afetos instáveis asso ciados ao quadro compulsivo. O topiramato controla a impulsividade, devido ao seu mecanismo de ação: modulação dos canais de cálcio e de sódio, potencialização da transmissão GABAérgica e bloqueio dos receptores de glutamato. Foi descrito um caso em que o topiramato (introduzido na dose de 25 mg/dia e aumentado a cada cinco dias em 25 mg, até atingir 200 mg/dia) provocou importante melhora das sensações de tensão antecipatória à busca por sexo e maior sensação de controle. Entretanto, após seis meses, o paciente apresentou urolitíase. Apesar de não haver comprovação, o quadro foi associado ao uso do medicamento, sendo este descontinuado, mantendo-
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se apenas terapia cognitivo-comportamental. Depois de três semanas, os sintomas impulsivos voltaram e a medicação foi reintroduzida (100 mg/dia), mas sem o mesmo efeito terapêutico, retomando-se os 200 mg/dia58 . A lamotrigina é outro estabilizador de humor que vem sendo utilizado em transtornos do controle dos impulsos, particularmente quando há sintomas afetivos associados. Reduz o impulso sexual, na dose de 200 a 400 mg/dia59 . ISRS e estabilizador de humor associados
No tratamento das compulsões sexuais, devido ao forte efeito depressor sobre a libido, os ISRS são a primeira escolha, diferentemente da abordagem dos transtornos do controle dos impulsos, quando um estabilizador é mais indicado. Para as compulsões sexuais, o estabilizador de humor é geralmente associado aos ISRS. A ausência da resposta esperada aos ISRS ou a presença de sintomas afetivos importantes, como disforia ou irritabilidade, são determinantes para essa associação. ISRS e naltrexona
A naltrexona vem sendo utilizada em transtornos do controle dos impulsos, além da indicação primeira contra dependência de álcool. Tem sido adotada, também, para tratar jogo patológico, cleptomania e abuso de cocaína. Em impulso sexual excessivo, a naltrexona pode ser associada aos ISRS60 • A introdução do inibidor opioide melhora a sensação de urgência por sexo, na dosagem de 150 mg/dia. No passado, evitavam-se doses acima de 50 mg/dia para não elevar o nível das enzimas hepáticas. Porém, com 150 mg/dia, isso raramente é observado. Se eventualmente ocorre, a medicação é descontinuada.
doze e 24 meses63 . Como principal efeito adverso, devido à queda dos níveis de testosterona, observou-se perda de densidade óssea, que pode ser combatida com a suplementação de biofosfonato64. Além disso, pode ocorrer perda de pelos e cabelos, astenia e dor no local da injeção. Um estudo com antidepressivos, duplo-cego, controlado com placebo, acompanhou quinze parafílicos cujos sintomas apresentavam característica compulsiva. Os pacientes foram divididos em dois grupos, de modo a comparar aqueles que receberam desipramina aos medicados com clomipramina. Ambas as drogas obtiveram êxito terapêutico, sem distinção65 . Ensaio clínico randomizado duplo -cego, investigando citalopram e placebo em 28 homens que fazem sexo com homens e apresentam comportamento sexual impulsivo, mostrou melhora quanto ao impulso sexual, à frequência de masturbação e ao comportamento sexual de risco 66. Recomendações à prescrição
A medicação deve ser oferecida desde o início do tratamento com o objetivo de alívio e controle sintomático. Como a abstinência sexual aumenta a insatisfação, o antidepressivo pode melhorar as condições do( a) paciente impulsivo( a), com vistas a tolerar o sofrimento de encarar sua realidade. A dose deve ser tateada. No início é frequente uma forte ambivalência do( a) paciente quanto ao tratamento. Efeitos adversos dos medicamentos, principalmente a diminuição da libido, podem ter consequências negativas à adesão, fortalecendo as resistências em caso de pouca motivação. Psicoterapia
ISRS e bupropiona associados
O uso de bupropiona está indicado se houver associação com sintomas depressivos que não respondam aos ISRS ou sintomas do transtorno do déficit de atenção e hiperatividadé'. Mais estudos são necessários para ratificar essa indicação. Análise crítica dos estudos farmacológicos
Faltam estudos metodologicamente adequados que ofereçam maior suporte às terapêuticas medicamentosas. A literatura tem mais relatos de caso ou séries de casos e poucos ensaios clínicos. Dignos de nota são: uso de 3,75 mg de triptorelina por trinta homens parafílicos durante oito a 42 meses. Parte deles preenchia critérios para prejuízo do controle sobre os impulsos sexuais. Todos apresentaram melhora clínica após três a dez meses62 . O maior estudo com portadores de impulso sexual excessivo foi desenvolvido por Safarinejad com autorreferidos adictos sexuais, que receberam triptorelina (3,75 mg por períodos variáveis). Esse estudo prospectivo observou a diminuição do número de intercursos sexuais no seguimento de seis,
Vários autores apontam a importância da psicoterapia para essa população47'49' 64' 67 • Psicoterapia psicodinâmica é o tratamento de escolha, possibilitando o fortalecimento dos mecanismos de autorregulação e a capacidade para estabelecer ligações interpessoais significativas, envolvendo compreensão, integração e internalização. Os impulsivos sexuais temem três situações básicas: intimidade; perda do controle; isolamento, alternando com o medo de confiar suficientemente. Por essas características, a psicoterapia do impulsivo sexual apresenta algumas peculiaridades49 • Na psicoterapia individual de base psicodinâmica, os principais objetivos são: aumentar o autocontrole do indivíduo e a capacidade para estabelecer relações interpessoais significativas47 • Em todas as etapas desse processo, o relacionamento terapêutico tem também a função de indicar os padrões relacionais 49 • O(A) paciente pode chegar a um processo delirante que o( a) isola das pessoas. Nessa condição, a psicoterapia de grupo é a modalidade de escolha, porque favorece a observação de outros indivíduos com mecanismos
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semelhantes, como também o grupo pode constituir-se em um ambiente acolhedor e com funções regulatórias durante o processo de desenvolvimento dessas funções pelo(a) próprio(a) pacienté8 • Frequentemente em famílias de impulsivos, um ou mais filhos podem ser levados a desempenhar funções domésticas incompatíveis com sua idade, ou até mesmo a cuidar de adultos, compulsivos, desorganizados, irresponsáveis, o que causa funcionamento interpessoal codependente, com condutas obsessivas e de controle. O impulsivo é atormentado pelo objeto que lhe dá o prazer imediato, enquanto o codependente é obcecado por controlar. Portanto, a dinâmica codependente do casal e dos familiares também precisa ser tratada68 • Os grupos formados por impulsivos sexuais anônimos são homogêneos, sem custos, provendo apoio contínuo. Há coerência do referencial para abordagem dos problemas de adição e de questões gerais da vida, incluindo honestidade consigo mesmo e aceitação das limitações. Os doze passos oferecem, de forma não impositiva, bases para a recuperação 47 .
Prevenção A prevenção do impulso sexual excessivo depende de políticas públicas de saúde que enfoquem o fenômeno da violência sexual na infância, tanto no âmbito juríclico como da saúde. O trauma psíquico e sexual resultante do abuso sexual compromete o desenvolvimento de relacionamentos afetivos saudáveis na vida adulta. Devido ao trauma e à tentativa de reparação, é frequente que vítimas padeçam de comportamentos sexuais compulsivos, entre outros transtornos 69 • A aids mostra-se associada a comportamentos sexuais menos convencionais, relacionados à impulsividade (sexo com penetração em orifícios corporais não convencionais, sexo a três, sexo grupal, suingue, comportamento exibicionista, comportamento voyeurista, desejo sexual uma ou mais vezes ao dia), bem como a histórico sexual relacionado à impulsividade sexual (histórico de uso da pílula do dia seguinte, contracepção de emergência [mulheres]; ter provocado aborto [mulheres]; ter sofrido vio lência sexual; ter sofrido assédio sexual; início precoce da vida sexual)?0•71 . Portanto, o tratamento de portadores de impulso sexual excessivo também é uma ação de prevenção secundária para infecção pelo HIV, entre outras doenças sexualmente transmissíveis.
Parafilias As parafilias (ou transtornos da preferência sexual) incidem de modo variável quanto à idade. Podem começar na infância (ou adolescência) e se tornar mais bem definidas ao longo da vida. O início do interesse sexual
parafílico frequentemente ocorre antes dos 18 anos de idade, manifestando-se nas seguintes médias etárias: fetichismo transvéstico (13,6 anos), fetichismo (16 anos), voyeurismo (17,4 anos), pedofilia não incestuosa homossexual (18,2 anos), sadismo (19,4 anos) e pedofilia não incestuosa heterossexual (21,1 anos)?3 • A maioria das parafilias é crônica. A frequência de atos sexuais pode aumentar ou diminuir ao longo do tempo, mas geralmente diminui na idade avançada (acima dos 60 anos)3 1 • Os homens cometem a maioria dos crimes sexuais. Aproximadamente 50% dos perpetradores são casados. Mulheres parafílicas geralmente têm diagnóstico de masoquismo. A incidência de parafilia quanto ao gênero é de aproximadamente vinte homens para cada mulher31 . Dados atuais de prevalência e incidência não são completamente conhecidos para nenhuma das parafilias. No entanto, já se tem alguns dados úteis sobre a epidemiologia da pedofilia. De 6 a 62% das meninas e de 10 a 30% dos meninos relatam ter sido vítimas de violência pedófila durante a infância. Entre as mulheres americanas, 24% informaram ter tido interação sexual com homem pelo menos cinco anos mais velhos, quando elas eram menores de 14 anos. O intercurso sexual ocorreu em 3% dos casos. Os contatos não envolveram genitais em 31% dos casos. No Canadá, 18,1% da população (23,5% mulheres e 12,8% homens) relatou ter sido vítima de violência sexual quando criança ou adolescente73 •
Etiologia Do ponto de vista psicanalítico, as parafilias resultam de uma impossibilidade de resolver a crise edipiana. Por outro lado, a teoria do aprendizado defende a ideia de que o comportamento parafílico possa ser modelado pela repetição, a partir de uma primeira experiência com um adulto molestador55 • Estudos sem amostragem probabilística encontraram alterações orgânicas nesses indivíduos: níveis hormonais alterados (74%), sinais neurológicos leves a moderados (27%), anormalidades cromossômicas (24%), convulsões (4%), dislexia (9 %), alterações eletroencefalográficas (4%), retardo mental (4%) e síndromes psiquiátricas maiores (4%)?4 •
Quadro clínico, diagnóstico e comorbidades As parafilias caracterizam-se por intensas fantasias, impulsos ou comportamentos sexuais, por um período de seis meses ou mais, geralmente envolvendo: (1) objetos não humanos ou cadáveres; (2) sofrimento ou humilhação, próprio ou do( a) parceiro( a); (3) crianças ou adultos sem o consentimento deles (critério A). As fantasias, impulsos ou comportamentos sexuais causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo ocupacional ou
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social e em áreas importantes do funcionamento ( critério B). O transtorno não é mais bem explicado por outro transtorno do eixo I (critério C)3 1• Os principais tipos de parafilias estão relacionados na Tabela VII. Estímulos não convencionais podem ser necessários para a excitação erótica, sendo um componente essencial e sempre presente na atividade sexual. Ou podem ser episódicos (quando o indivíduo estiver sob estresse e não responder aos estímulos comuns). Pedofilia, voyeurismo, exibicionismo e frotteurismo são diagnosticados se o indivíduo atua sob impulsos ou fantasias sexuais, levando a sofrimento acentuado ou dificuldade interpessoal. Para as outras parafilias, o diagnóstico é feito se os impulsos ou fantasias sexuais produzem os efeitos descritos no critério B31 • Os problemas mais comuns atendidos em clínicas especializadas no tratamento de parafilias são pedofilia, voyeurismo e exibicionismo. Transtornos psiquiátricos associados incluem disfunção sexual, transtornos de personalidade e depressão. O diagnóstico diferencial inclui transtornos do desenvolvimento, demência, alterações de personalidade, alterações de comportamento devido a
Tabela VIl
Principais tipos de parafilias. de acordo com o DSM-IV-TR31
Parafilia
Descrição
Exibicionismo (302.4)
Exposição de genitais para estranhos (diferencia-se de urinar em público)
Fetichismo (302.81)
Uso de objetos não vivos como método preferencial ou exclusivo de alcançar prazer sexual (botas de couro, roupas, sapatos, roupa íntima)
Frotteurismo (302.89)
Tocar e roçar em outra pessoa sem o consentimento dela
Pedofilia (302.2)
Crianças são o objeto de desejo. O perpetrado r tem 16 anos ou mais, e cinco anos ou mais de diferença da vítima
Masoquismo sexual (302.83)
O perpetrador recebe humilhação ou sofrimento (pode levar à morte em caso de "hipoxifilia" ou excitação sexual durante hipoxia)
Sadismo sexual (302.84)
O perpetrador inflige sofrimento ou humilhação (geralmente a severidade aumenta com o tempo)
Transvestismo fetichista (302.3)
Cross-dressing ou usar roupas do sexo oposto
Voyeurismo (302.82)
Observar atividade sexual ou pessoas desnudas
Parafilia SOE (302.9)
Miscelânea de tipos, como coprofilia (fezes), urinofilia (urina), necrofilia (cadáveres), telefonia escatológica (discurso obsceno), zoofilia (animais), "clismafilia" (enema), "misofilia" (sujeira), "narratofilia" (discurso erótico)
SOE: sem outra especificação; os números correspondem aos códigos numéricos do DSM-IV-TR.
condições médicas gerais, intoxicação por substâncias, episódios maníacos e esquizofrenia3 1• A maioria dos dados sobre recaídas é de pedofilia, ocorrendo entre 10 e 50% dos casos. Pedofilia homo e bissexual têm incidência mais elevada do que a heterossexual (50% as primeiras e 25% a última), bem como entre não parentes, enquanto parafilias incestuosas têm incidência menor. Níveis mais elevados de recaídas também estão associados com: mais práticas sexuais desviantes, atração por crianças mais novas, mais traços de personalidade antissocial, maior índice de abandono de tratamento e maior variedade de interesses parafílicos7 5. Comorbidade com transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) tem sido descrita, estimulando a hipótese de serem ambos transtornos associados, dadas as semelhanças da idade de início, curso crônico e resposta aos ISRS76. Indivíduos portadores de síndrome de Tourette apresentam clara associação entre carga genética presuntiva de Tourette e comportamentos sexuais repetitivos, parte deles parafílicos, o que sugere associação entre TOC e parafilias, já que a referida síndrome tem sido considerada um transtorno do espectro de doenças associadas ao TOC77•
Tratamento Terapias não farmacológicas
Castração cirúrgica (orquiectomia) teria resultados definitivos, mesmo em pedófilos reincidentes, reduzindo a taxa de reincidência em 2 a 5%73 . No entanto, pode ser revertida pela administração de testosterona exógena, o que permite a retomada do comportamento75 • A castração cirúrgica foi introduzida na Suíça em 1892 (para o tratamento de hipersexualidade). Até 1970, esse procedimento foi utilizado em vários países europeus e nos Estados Unidos78 . Atualmente, é permitido somente na Alemanha e em alguns estados americanos (Califórnia, Flórida, Iowa, Louisiana e Texas, como uma das condições para a liberdade condicional). Um fator considerado significativo é a diferença substancial do custo da castração química comparado ao da castração cirúrgica, uma vez que a primeira é efetuada com drogas antiandrogênicas, cujo valor varia de 5.000 a 20.000 dólares por ano 79 • Quanto à psicoterapia, ela pode ser individual, em grupo ou familiar. A primeira é representada por terapias voltadas ao insight cognitivo-comportamental e psicoterapia de apoio. Esse tipo de terapia tem sido considerado o "padrão-ouro" das abordagens não farmacológicas oferecidas, principalmente aos pedófilos80 • Entretanto, a terapia individual é onerosa81 e apresenta resultados conflitantes nos ensaios clínicos82 • Essa variabilidade pode estar relacionada, em parte, ao fato de que o sucesso terapêutico é possível apenas se o infrator reconhecer a necessidade de tratamento e aceitar a responsabilidade pessoal. Por outro lado, mesmo infratores com nível intelectual limítrofe ou
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retardo mental leve podem se beneficiar da psicoterapia adaptada às suas necessidades especiais83• A psicoterapia associada à medicação indica melhores resultados 55 . Terapias farmacológicas Anti depressivos Os resultados dos estudos clínicos com inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) mostram respostas desfavoráveis em alguns casos 84 e favoráveis em outros85-87 . Psicoestimulantes Um estudo com parafílicos em uso de ISRS investigou a resposta à associação com metilfenidato de liberação prolongada (média de 40 mg/dia) por nove meses. Observouse redução do tempo de comportamentos parafílicos88. Neurolépticos Fenotiazinas e butirofenonas são consideradas medicamentos precários para as parafilias, com base em estudos desenvolvidos na década de 197055 • Na década de 1990, um ensaio clínico observou redução no apetite sexual, na frequência de orgasmos e de intercursos sexuais89 . Não foram apresentados dados quantitativos no estudo, mas a pletismografia peniana revelou menor reatividade sexual (apesar de não ter sido feita análise estatística) 55 • Lítio Não há estudos com metodologia apropriada para avaliar o efeito do lítio em comportamentos sexuais não convencionais. Considera-se precário o efeito nesses casos, mas seu uso pode auxiliar quando houver associação com transtornos do humor. Naltrexona Um estudo com adolescentes agressores sexuais testou naltrexona (dose média de 160 mg/dia) por período mínimo de dois meses. Os critérios de inclusão eram masturbação pelo menos três vezes ao dia, fantasias sexuais durante pelo menos 30% do tempo acordado, falta de controle do impulso sexual e percepção de que os pensamentos sexuais atrapalhavam a rotina diária. Resposta positiva seria a perda de mais de um dos critérios de inclusão. Responderam favoravelmente 71% dos adolescentes90• Estrógenos Para homens agressores sexuais, implantes hormonais têm sido utilizados com mais frequência no Reino Unido, sendo o mais comum o estradiol subcutâneo (100 mg). Estrogenioterapia para o sexo masculino está associada a risco de câncer de mama, embora raro (um em 1.000). Toxicidade cardiovascular também constitui preocupação pela terapia estrogênica oral em homens 55 •
Agonistas do LHRH Agonistas do hormônio de liberação do hormônio luteinizante (LHRH) produzem completa castração química, sendo o hipoandrogenismo e a esterilidade as consequências. Os efeitos biológicos dependem do tempo de uso. Inicialmente, a liberação de LH e FSH conduz a maiores níveis sanguíneos de hormônios sexuais. Com a continuidade de uso, a resposta ao LHRH é suprimida, resultando em queda da secreção de LHe FSH e, portanto, na produção de hormônios sexuais. A supressão, entretanto, ocorre em um a dois meses após iniciado o uso do agonista. É recomendada a utilização de antiandrogênico puro (flutamida ou um dos seus congêneres) no período inicial. Leuprolida e triptorelina são agonistas sintéticos do decapeptídeo GnRH, um hormônio produzido no hipotálamo. Estão aprovados no Brasil para o tratamento de câncer de próstata, puberdade precoce de origem central, endometriose, mio mas uterinos, câncer de mama (em mulheres na pré-menopausa) e infertilidade55 • Acetato de ciproterona O acetato de ciproterona é um potente progestágeno com efeito antiandrogênico. Para obter esse efeito são necessários de oito a quinze meses de tratamento (com doses de 100 mg/dia) até quinze a vinte meses (com 200 mg/dia). A droga foi aprovada nos Estados Unidos para tratamento do câncer de próstata, puberdade precoce central, problemas de pele induzidos por andrógenos (por exemplo, acne, seborreia, hirsutismo idiopático, alope cia), elevado impulso sexual em comportamentos sexuais desviantes e ondas de calor após orquiectomia9 1 • Grave hepatotoxicidade não tem sido observada, mas pode ocorrer se a substância for associada à flutamida. Antiandrogênicos podem levar à perda de massa óssea, conduzindo à osteopenia e à osteoporose. Acetato de medroxiprogesterona (MPA) Comparado ao acetato de ciproterona, o MPA é menos potente como antiandrógeno e progestágeno e relativamente mais progestágeno do que antiandrógeno (ao contrário da ciproterona). Pode inibir a secreção de gonadotrofinas e, consequentemente, a de testosterona, com quase completa ausência da última, em uma a duas semanas após o início da terapia. Foi aprovado para tratamento de menorragia, amenorreia secundária, endometriose leve a moderada, contracepção feminina, epilepsia catamenial, além de tratamento de câncer renal, de próstata, de mama e do endométrio92 • As contraindicações absolutas ao uso de antiandrogênicos são: insuficiência hepática, doença tromboembólica e doença pituitária ativa. Recomendações à prescrição No Brasil, antidepressivos (ISRS e tricíclicos) e neurolépticos são os medicamentos autorizados para o tra-
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tamento das parafilias. Em outros países, é utilizada a combinação inicial de dupla terapia (serotoninérgico + antiandrogênico) em infratores mais graves55. Nesse sentido, progestágenos devem ser usados antes de agonistas de LHRH ou estrogênios. Acetato de ciproterona oral e MPA intramuscular são recomendados como progestágenos93. A falha da combinação serotoninérgica-progestágeno deve levar à substituição de uma ou ambas as drogas (p. ex., ISRS por antidepressivos tricíclicos, ou ciproterona por MPA ou vice-versa) ou à adição ou substituição de uma delas por um agonista do LHRH, como leuprolida ou triptorelina55 . Os estrogênios são agentes de segunda ou terceira linha. Raramente a terapia de combinação tripla é necessária (serotoninérgico + agonista LHRH ou progestágeno + estrogênio) 55 . Prevenção
Tal como comentado para a prevenção do impulso sexual excessivo, a atenção e os cuidados às vítimas de violência sexual na infância são fatores preventivos às parafilias na vida adulta, principalmente porque há associação entre adulto agressor sexual e histórico de abuso sexual na infância. Além disso, também se observa associação entre violência sexual na infância e comportamentos de risco para a transmissão do HIV na idade adulta94 . Portanto, atenção à violência sexual na infância é preventiva às parafilias, ao comportamento sexual impulsivo, ao comportamento sexual de risco e ao HIV/aids. Políticas públicas
O parecer do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) 95 , aprovado em sua 3.29Ja Reunião Plenária, sinaliza: "O reconhecimento da pedofilia como distúrbio mental internacionalmente aceito implica a admissão de que a vontade do sujeito pedófilo está comprometida, ao menos em relação ao seu comportamento sexual. A quebra de sigilo nos casos de paciente pedófilo não pode ser entendida como dever legal. O dever legal de comunicar as autoridades policiais em caso de prática pedofílica caberia ao médico que assiste a criança ou o adolescente, não ao que cuida do pedófilo. O rompimento do segredo no caso de paciente pedófilo deve ser considerado uma faculdade do médico, não uma obrigação. A autonomia do médico deve prevalecer nessa circunstância. Pode ser admitido como justa causa em casos particulares. A opção pela quebra do sigilo, mediante comunicação à Vara da Infância e da Juventude, deve levar em conta as características clínicas do paciente. Os seguintes parâmetros, entre outros, são propostos: a) o sexo e a condição psíquica do pedófilo; sua história pregressa; a presença de outro distúrbio mental associado à pedofilia; as características do relacionamento sexual com
a criança ou o adolescente; a avaliação da periculosidade do paciente; seu real interesse na cura da condição; o tipo e gravidade do prejuízo infligido à criança ou ao adolescente; b) a seu critério, o médico pode submeter sua decisão à Comissão de Ética Médica da instituição à qual estiver vinculado. Ou pedir parecer de outro colega, re gistrado no prontuário médico do paciente pedófilo, buscando não assumir sozinho a responsabilidade da comunicação; c) tentar, caso seja viável, alertar parentes ou o responsável legal pela criança ou adolescente, antes de notificar a autoridade competente". Minicasos clínicos
Disfunções sexuais masculinas e femininas AM, 24 anos, iniciou a vida sexual aos 17 anos. Teve apenas um namorado, com quem se casou há dois anos. Não tem filhos e não pretende engravidar por enquanto. Trabalha como relaçõespúblicas em uma agência de marketing. Queixa-se de total desinteresse sexual há sete meses. Refere falta de lubrificação vaginal e ausência de fantasias sexuais. O marido, publicitário, tem 27 anos e, segundo a paciente, não apresenta nenhum problema sexual ou de saúde. É atencioso, carinhoso e preocupado com ela. Ambos têm uma vida financeira confortável, mas há conflitos no relacionamento. Ela relata ter feito tratamento para fobia social, na adolescência, tendo sido curada (sic). Atualmente sente-se ansiosa e insegura, creditando esses sentimentos ao problema sexual. Não apresenta nenhum outro tipo de dificuldade ou doenças. Diagnosticada como portadora de desejo sexual hipoativo, foi medicada com buspirona (60 mg/dia). o que controlou sua ansiedade. Iniciou terapia de casal, o que sanou conflitos do relacionamento. A satisfação e o desempenho sexual da paciente melhoraram. Impulso sexual excessivo e comportamento sexual impulsivo P., 40 anos, negro, solteiro, professor de português aposentado, homossexual, HIV positivo. A partir da maioridade, começou a frequentar saunas, cinemas e banheiros públicos diariamente em busca de sexo. Mantinha práticas homossexuais desprotegidas e múltiplos parceiros, chegando a ter dez ou mais em um mesmo dia. Frequentemente abandonava a rotina profissional para sair em busca de sexo, comprometendo sua carreira. Não terminou o curso superior. Não constituiu união estável. Tem péssimo relacionamento familiar e não possui amigos. Não tem hábitos de lazer. Em 199 1 contraiu sífilis e herpes anal e peniano. É portador do H IV desde 1994. Preenche seis dos sete critérios para adição sexual47. Obteve 26 pontos (depressão moderada a grave) no Inventário de Depressão de Beck72. O tratamento constou de cloridrato de paroxetina (40 mg/ dia) associado à psicoterapia psicodinâmica. Após um ano de seguimento, obteve melhora em todos os parâmetros clínicos, desenvolvendo maior controle sobre os impulsos sexuais.
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Parafilias P., 26 anos, masculino, chega ao consultório relatando apresentar fantasias sexuais intensas com crianças e adolescentes prépúberes há mais de um ano. Diz sentir-se culpado por esses pensamentos, considerando-os uma aberração da natureza. Fala que ao se aproximar de algumas crianças chega a ejacular de tanta excitação, mas nega contato físico. Refere preferir meninos a meninas. Relata períodos de depressão, inclusive com pensamentos suicidas, mas não consegue "tirar essas ideias da sua cabeça" (sic).
Questões Disf unções sexuais mascul inas e femininas 1. O desejo sexual pode estar diminuído (assinale a alternativa correta) : a) pelo uso de medicação antidepressiva. b) em quadros de ansiedade, pânico ou fobia. c) quando o(a) paciente tem depressão. d) quando o(a) paciente tem dispareunia ou deficiência androgênlca. e) todas as anteriores estão corretas.
2. Disfunção sexual primária é aquela que (assinale a alternativa correta) : a) inibe o desejo. b) atinge indivíduos com baixa instrução. c) tem tratamentos mais eficazes. d) ocorre desde o início da vida sexual e se mantém ao longo da vida. e) tem etiologia exclusivamente psicogênica. 3. No tratamento das disfunções sexuais de homens e de mulheres, a psicoterapia está indicada (assinale a alternativa correta) : a) somente para desejo sexual hipoativo e inibição da excitação sexual. b) somente para ejaculação precoce e anorgasmia. c) somente para disfunção erétil e anorgasmia. d) somente para dispareunia e desejo sexual hipoativo. e) para todas as disfunções sexuais. 4. lnibidores seletivos da recaptação da serotonina são medicamentos de primeira escolha no tratamento de (assinale a alternativa correta) : a) disfunção erétil. b) desejo sexual hipoativo. c) ejaculação precoce. d) dispareunia. e) disfunção orgásm ica. 5. São "antídotos" às disfunções sexuais induzidas por antidepressivos (assinale a alternativa correta) : a) citalopram e fluoxetina. b) moclobemida e fenelzina. c) paroxetina e sertralina. d) bupropiona e buspirona. e) amitriptilina e imipramina.
Impulso sexual excessivo e parafilias 6. Quais os comportamentos sexuais paratnicos mais atendidos na prática clínica? (assinale a alternativa correta): a) zoofilia, voyeurismo e sadomasoquismo. b) sadomasoquismo, fetich ismo e exibicionismo. c) voyeurismo, pedofilia e frotteurismo. d) pedofil ia, exibicionismo e voyeurismo. e) exibicionismo, transvestismo fetichista e pedofilia.
7. Quanto ao tratamento para portadores de impulso sexual excessivo, são objetivos da psicoterapia (assinale a alternativa incorreta): a) a abstinência sexual. b) o aumento do controle sobre o impulso sexual. c) favorecer capacidades de desenvolver vínculos afetivos estáveis e significativos. d) ampliar a motivação para a mudança de comportamento. e) identificar a dinâmica familiar.
8. Não é comorbidade do impulso sexual excessivo (assinale a alternativa correta) : a) adição alcoólica. b) transtornos do humor. c) uso de drogas ilícitas. d) transtornos de personalidade e práticas parafílicas. e) quadros psicóticos. 9. Em relação às parafilias, pode-se afirmar que (assinale a alternativa correta): a) são mais prevalentes em mulheres. b) caracterizam-se por fantasias e comportamentos sexuais envolvendo crianças, objetos e/ou cadáveres. c) o interesse paratnico só se manifesta em adultos. d) esquizofrenia e episódios maníacos não fazem parte do diagnóstico diferencial. e) terapêutica antiandrogênica é permitida no Brasil. 1O. Quanto ao tratamento das parafilias, pode-se afirmar que (assinale a alternativa incorreta) : a) a administração de agonistas do LH RH para promover castração química está autorizada no Brasil. b) a psicoterapia associada a medicamentos obtém os melhores resultados. c) o acetato de ciproterona tem efeito negativo sobre a libido. d) a utilização de ISRS tem resultados não consensuais. e) neurolépticos e lítio têm apresentado resu ltados precários.
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Transtorno de Identidade de Gênero
A lexandre Saadeh
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 977 Etiologia, 979 Epidemiologia, 982 Quadro clínico, diagnóstico, outros transtornos de identidade de
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
gênero, diagnóstico diferencial e comorbidades, 984 Tratamento, 987 Políticas públicas, 990 Considerações finais, 990 Minicaso clínico, 990 Questões, 991 Referências bibliográficas, 991
1. Compreender a diversidade sexual existente quanto aos gêneros
sexua1s. 2. Entender e saber diagnosticar casos de transtorno de identidade sexual e transexualismo. 3. Reconhecer os critérios, indicações e formas de tratamento para esses transtornos. 4. Reconhecer as condições de atendimento à população transexual e com transtorno de identidade de gênero no Brasil. 5. Ter uma visão crítica do diagnóstico e do acompanhamento dessa população após o tratamento atualmente proposto.
Introdução É comum, ao se pensar em sexo ou gênero, vir à mente homem ou mulher, macho ou fêmea. Existem tantas outras possibilidades que a nossa formação cultural nos parece primitiva, primária. Mesmo entre os animais, a pluralidade de comportamentos sexuais ligados ao gênero ou orientação sexual é extensa 1•2 • Vários mitos e religiões abordam essa questão de maneira recorrente em diferentes culturas: mito de Tirésias de Tebas, que teria tido os dois gêneros por vontade dos deuses; Mahabharata hindu, que relata a história de um rei que teria se transformado em mulher e se recusou a ser transformado novamente em homem; sacerdotes romanos do deus Átis, que se emasculavam e se vestiam de mulher; em termos culturais, esse comportamento é encentrado da Sibéria à Patagônia, estando presente entre os indígenas norte-americanos (Berdache, Cocopa, Mojave, Navajo etc.) e entre as castas dos Hijras e Jankhas na Índia3 . São comuns também, na História ocidental, personagens que mudaram de gênero. Alguns só foram identi-
ficados após a sua morte, ao serem preparados para o enterro. Exemplos: Sporus, escravo de Nero, imperador romano; Heliogábalo, também imperador romano; Papa João VIII; Trotula, médico da Idade Média que na real idade era um homem que se travestia de mulher; Chevalier d'Eon, amante de Luís XV; Lorde Cornbury, primeiro governador colonial de Nova York e tantos outros3 . Cientificamente, cabe diferenciar sexo de gênero. Robert Stoller, psicanalista importante no estudo do transexualismo, na década de 1960, separa sexo de gênero, atribuindo a sexo uma definição biológica e a gênero, uma definição sociopsicológica4 • Essa separação entre o biológico e o psicológico torna-se realidade com a visão do sexo como quatro formas biopsicológicas distintas, mas relacionadas, tanto na visão de Money quanto na de Stoller4 : 1. sexo biológico definido por seis características anatômicas e fisiológicas: cromossomos, gônadas, genitália interna, genitália externa, hormônios e caracteres sexuais secundários; 2. gênero, composto pela identidade de gênero, ou núcleo da identidade de gênero (noção de ser "macho" ou
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"fêmea': homem ou mulher) e pelo papel de gênero ou papel de identidade de gênero (noção de ser masculino ou feminino) e comportamento ligado ao papel de gênero; 3. comportamento sexual, declarado e fantasiado, expresso em ambos pela escolha do objeto e da natureza da atividade; 4. reprodução, capacidade biológica relacionada com a propagação da espécie. Outros conceitos fundamentais no estudo de transtornos de gênero são: • Identidade de gênero: a identidade, harmonia e persistência da individualidade de alguém como masculina (homem), feminina (mulher) ou ambivalente, em maior ou menor grau, especialmente como ela é experimentada em sua própria consciência e comportamento; identidade de gênero é a experiência privada do papel de gênero e papel de gênero é a expressão pública da identidade de gênero. Portanto, identidade de gênero é a noção que cada ser humano tem de que é homem, mulher ou algo entre essas duas definições. • Papel de gênero: tudo o que uma pessoa diz e faz para indicar aos outros, ou a si mesmo, seu grau de masculinidade, feminilidade ou ambivalência; isso inclui, mas não se restringe, ao desejo e à resposta sexual; papel de gênero é a expressão pública da identidade de gênero e identidade de gênero é a experiência privada do papel de gênero 5. • Orientação sexual - que define heterossexualidade, homossexualidade e bissexualidade: está relacionada ao desejo sexual por pessoas do mesmo sexo (ou gênero) que o seu, ou de sexo (ou gênero) diferente do seu6 • Dessa maneira, podemos entender que um indivíduo pode ter um transtorno de identidade de gênero e ao mesmo tempo ser homossexual ou heterossexual. É no final do século XIX, período de início dos estudos sobre Sexologia, que Richard Von Krafft-Ebing, em 1886, lança seu livro-texto Psychopathia Sexualis. Nesse compêndio, uma ampla classificação e descrição de comportamentos sexuais desviantes, ele descreve o que denominou de sexualidade antipática: Total falta de sentimento sexual pelo sexo oposto. Concentra toda a sexualidade em seu próprio sexo. Só as propriedades físicas e psíquicas de pessoas do mesmo sexo produzem efeito afrodisíaco e despertam desejos de união sexual. Isto é uma anomalia puramente psíquica, na qual o instinto sexual não corresponde de nenhuma maneira às características sexuais primárias e secundárias. Em detrimento da diferenciação sexual total e do desenvolvimento e atividade normal das glândulas sexuais, o homem é dirigido sexualmente a outro homem, porque conscientemente ou qualquer que seja o motivo ele tem instintos de fêmea?
Essa entidade clínica teria graus de desenvolvimento variados e "afetaria pessoas sem doenças mentais"7 • É
Magnus Hirschfeld, no entanto, o pioneiro no uso do termo transexual8 . Em 1949, David O. Cauldwell utiliza o termo "psicopatia transexual" para descrever o mais extremo exemplo de desconforto de gênero9 . Com a explosão jornalística do caso Christine Jorgensen, nascida George Jorgensen Jr., em 1952, as questões de identidade de gênero ganham interesse e curiosidade públicas 10. Apesar das assim chamadas cirurgias de mudança de sexo não serem uma novidade, elas ficavam restritas a diagnósticos de intersexo. São descritos os casos de Lili Elbe (nascida Einar Wegener) e Roberta Cowell (nascida Robert Cowell), que, apesar de não terem o diagnóstico de intersexo, fizeram a cirurgia e se adaptaram ao novo sexo 11 ' 12• É, no entanto, na década de 1960 que as questões ligadas ao transexualismo saem da mídia e ganham o terreno da medicina, com a participação do dr. Harry Ben. . Jamm. Seu trabalho com transexuais culminou com a publicação, em 1966, do livro The transsexual phenomenon, no qual expõe suas ideias a respeito dessa "síndrome". O livro foi considerado pornográfico, quando de seu lançamento4. Foi Harry Benjamin quem tornou o termo popular e acrescentou um segundo "s" à expressão transexual em inglês, já existente 13 . Benjamin estabeleceu uma escala de orientação sexual chamada Harry Benjamin Sex Orientation Scale
(S. O. S.), Sex and Gender Disorientation and Indecision (Males) - Escala Harry Benjamin de Orientação Sexual, Desorientação e Indecisão de Sexo e Gênero (Homens) - baseada em sua percepção desses indivíduos, na qual descreve tipos, diferenciando transvestismo de transexualismo. Essa tipologia serve como guia diagnóstico, sendo muito parecida com as classificações propostas por KrafftEbing, Hirschfeld e Ellis, mas não serve como definição diagnóstica. Avanços importantes são a exclusão da homossexualidade e a diferenciação entre transvestismo e transexualismo14. Dos anos 1960 em diante, inicia-se ampla pesquisa sobre o tema. Seja por conta de etiologia, diagnóstico, tratamentos ou por seu efetivo critério de transtorno psiquiátrico. Apesar de alguns locais terem interrompido os programas de cirurgias de redesignação sexual 15 por questões ligadas a questionáveis resultados de acompanhamento pós-cirúrgico, a grande maioria continua ativa e atuante. No Brasil, é apenas em 1997 que se inicia um trabalho ético e profissional com essa população. A aprovação da Resolução n. 1482/97 do Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizando, segundo determinados critérios,
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a realização da cirurgia de transgenitalização muda completamente a maneira médica brasileira de entender o transexualismo 16. Em 2002, o Conselho Federal de Medicina aprova nova Resolução, a de n. 1652/200217, que amplia e revoga o já disposto na Resolução 1482/9716. Em resumo, a cirurgia de transgenitalização (redesignação sexual) deve ocorrer apenas em pacientes avaliados e acompanhados por pelo menos dois anos por equipe multidisciplinar (psiquiatra, psicólogo, cirurgião, endocrinologista, assistente social) que tenha firmado diagnóstico médico de transexualismo, seres maiores de 21 anos de idade e sem características inapropriadas para cirurgia. Além disso, não deve haver no paciente outros transtornos mentais e permanência desse distúrbio de forma contínua e consistente por pelo menos dois anos. Para os pacientes chamados de transexuais masculinos (homem para mulher), as cirurgias estão liberadas em qualquer hospital. Para os transexuais femininos (mulher para homem), as cirurgias foram consideradas experimentais e restritas aos hospitais universitários ou públicos ligados à pesquisa. Tal distinção - discutível, já que a grande maioria dos procedimentos cirúrgicos é estabelecida e conhecida e, portanto, não experimental - se deve à neofaloplastia, cirurgia ainda em desenvolvimento. O Conselho Federal de Medicina, em setembro de 201 O, decide corrigir essa distinção entre transexuais masculinos e femininos, publicando a Resolução n. 1955/201017b, que estabelece a liberação de todos os procedimentos cirúrgicos seja para transexuais masculinos, seja para femininos em todo Brasil. Mantém, contudo, a neofaloplastia como experimental e restrita a hospitais-escola ou hospitais públicos ligados à pesquisa. Em 2008, são publicadas Portarias do Ministério da Saúde, a primeira instituindo o Processo Transexualizador18 e a segunda definindo as Diretrizes Nacionais e regulamentando o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS) 19 . Hoje são considerados quatro centros que cumprem os requisitos do Ministério da Saúde para o assim chamado Processo Transexualizador: Convênio Universidade Estadual do Rio de Janeiro e Universidade Federal do Rio de Janeiro; Universidade Federal de Goiás; Universidade Federal do Rio Grande do Sul; e Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Muito ainda há a ser feito. Em nosso país estamos apenas iniciando o acompanhamento dessa população. As primeiras cirurgias realizadas de forma oficial e legal no país têm menos de 15 anos. O acompanhamento é fun damental para legitimar esse procedimento em termos científicos. Para tanto, a principal característica do trabalho psiquiátrico com essa população é vencer o preconceito e superar o trabalho com as diferenças. Entender a pluralidade sexual é questão básica na formação psiquiátrica.
Etiologia Até a década de 1990 predominavam as hipóteses psicológicas de gênese dos transtornos de identidade de genero. Estudiosos da psicanálise e de diversas escolas psicológicas procuraram sistematizar o conhecimento a respeito do tema. As dificuldades conceituais e as divergências em relação aos referenciais psíquicos, apesar de aumentarem a confusão já existente, contribuíram com informações e observações valiosas. Existiriam duas categorias psicológicas de entendimento da etiologia do transexualismo, o principal quadro dos transtornos de identidade de gênero: uma hipó tese não conflitiva e outra conflitiva20 . A hipótese não conflitiva avalia a relação mãe-filho como emocional e corporalmente feliz e que se prolonga em uma simbiose na qual o menino se identifica com o gênero da mãe. Já a hipótese conflitiva é um mosaico de diferentes teorias propostas no qual o pedido de mudança sexual nada mais é do que uma "formação de compromisso patológico', ou seja, "nesse contexto, o transexualismo é considerado uma defesa contra a homossexualidade, uma forma de perversão, um transtorno narcísico ou uma perturbação da fase de separação-individuação"20 . Segundo essa linha de pensamento, haveria concordância geral de que o transexualismo apareceria como manifestação de um transtorno de personalidade do tipo borderline, pois os transexuais apresentam muitas características similares às desses indivíduos (ansiedade crônica, difusa e flutuante; isolamento; depressão; baixa tolerância ao estresse etc.). Em um entendimento muito próximo, Stoller desenvolve maneira particular de pensar e entender apenas o transexualismo masculino e que, segundo ele, teria como possível origem a seguinte sequência21: • Invasão da mãe em seu filho e a proximidade entre eles: extrema simbiose entre mãe e filho, gerando identificação intensa que não é rompida. Aparentemente não existe conflito edipiano na situação edipiana. Isso porque não existe (praticamente) pai. O menino não tem rival em relação a sua mãe; ele a possui, talvez mais completamente do que o possa qualquer outra criança, porque eles são praticamente um. O filho não se sente ameaçado em sua virilidade e masculinidade pelo pai, por isso o con flito edipiano não se estabelece. • Ausência do pai: a figura paterna não ameaça e não estabelece um conflito edipiano. A escolha da mãe por um pai com as características de ausente, infantil, desleixado consigo e com o mundo, ou mesmo alcoólatra e, ou distante não é por acaso, e tem relação direta com a forma dessa mãe encarar a própria sexualidade e a relação com esse filho. • Passividade e bissexualidade do pai: esses pais não são apenas incapazes de tomar parte na família como homens masculinos, mas os seus relacionamentos com as A
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esposas são distantes e mal-humorados. Eles não desejam assumir a responsabilidade de sua função de marido e pai, mas, sem reclamações, persistem em um casamento sem amor e quase sem sexo. Alguns até demonstram efeminação e bissexualidade. • Baixa frequência de divórcios: a taxa de divórcio costuma ser praticamente zero, apesar dos casamentos infelizes, com ataques de raiva, insatisfação sexual, desprezo e silêncios prolongados, mulheres poderosas e iradas que não podem abandonar seus maridos passivos, maridos calados que dizem que as coisas estão bem e não ouvem o desespero atrás da hostilidade de suas esposas. O casamento é seguro e essencial para ambos e a separação seria um desastre. • Influência da irmã: uma irmã também pode reforçar ou dar origem ao comportamento feminino do irmão. Se a mãe não é tão competitiva nem ultramasculinizada, muitas vezes, uma irmã pode sê-lo e, com isso, originar o comportamento no irmão. Stoller diz: "minha tese, a ser mais bem testada no futuro, é de que o grau de feminilidade que se desenvolve em um menino irá variar exatamente (não aproximadamente) com aquilo que lhe tenha sido feito no início da infâncià'2 1 • O mesmo autor faz ainda duas ressalvas importantes no tocante ao transexual masculino: o transexual não é psicótico; ele sabe e reconhece que seu corpo é biologicamente masculino e que possui pênis e testículos. A segunda ressalva diz respeito ao conceito de bissexualidade que ele emprega, querendo dizer a presença de qualidades masculinas e femininas demonstradas, na mesma pessoa. "Masculino" e "feminino': então, serão usados para demonstrar qualidades psicológicas e não biológicas21 . Stoller relata ainda que os transexuais masculinos teriam determinadas qualidades (ou características) de "personalidade psicopáticà' que seriam: leve irresponsabilidade, não de uma maneira hedonística criminosa, mas em seus compromissos, especialmente com o terapeuta; mentira infantil que não traz nenhum benefício óbvio para o paciente e sobre detalhes pouco importantes; não têm relacionamentos duradouros com outras pessoas, as relações que estabelecem são aparentes e pouco profundas. Por fim, não têm comportamento criminoso. A explicação que oferece para essas características é a falta de uma firme relação transferencial, pois se não há conflito edipiano, não há potencial de um vínculo intenso. Portanto, não há possibilidade de uma relação transferencial, daí a dificuldade em se psicanalisar um transexual. E vai além, relatando a dificuldade de se estabelecer empatia e contratransferência com essa população. Para o autor, o transexualismo masculino e o feminino teriam dinâmicas diferentes. Chiland descreve que crianças com transtorno de identidade sexual interpretam as mensagens conscientes e inconscientes de seus pais como sinais de que não são
amadas por ser quem são, especialmente em relação ao gênero ao qual pertencem, portanto não podem amar a si próprias se não pertencerem ao sexo oposto. Embora os pais possuam um papel importante, essa causalidade não é linear, os pais são muitas vezes experenciados como ausentes ou pouco presentes, mas isso não corresponde necessariamente à realidade22 • Outras características analisadas pela autora são a resistência dos transexuais em falar - falam pouco ou não faIam - sobre sua infância; sua resistência à transferência, já que, fechados em suas conchas narcísicas, não se importam com as reações próprias do analista ao que falam; e por fim, questiona-se sobre o que vem antes, se a identificação com o sexo oposto ou a rejeição de seu próprio sexo. Quanto ao transexualismo feminino, a autora diz que as transexuais femininas não têm, como regra, experiências felizes com suas mães na tenra infância. Elas foram incapazes de valorizar as mamas como a base da experiência da amamentação. Elas frequentemente tiveram mães deprimidas, que sofreram por ser mulheres e depois retiraram a feminilidade de seus valores. Elas às vezes estabeleceram experiências positivas com seus pais, não em nível edípico, mas como companheiras de atividades realizadas com sucesso e reconhecidamente de homens em nossa cultura. Na realidade, seus pais frequentemente foram pouco participativos e incapazes de conferir valor às suas esposas, protegê-las e tirá-las da depressão. Essas pacientes se obrigam a reparar e ajudar suas mães e adotam um papel masculino de proteção em relação às suas companheiras femininas 22 • Outra autora, a psicanalista parisiense Agnes Oppenheimer, posiciona-se a favor das ideias de Stoller e acres centa-lhes alguns dados 23 : • transexuais são invadidos por uma obsessão, uma crença invasiva sobre sua transformação corporal; • eles não apresentam nem transvestismo perverso . nem psiCose; • eles são desconfiados, mentem facilmente, veem as diferenças entre os sexos de forma estereotipada, trivializam seus problemas, e como não se reconhecem homossexuais, desaprovam completamente a homossexualidade. A mesma autora, ao analisar a possível origem do transexualismo masculino, diz que existiria grave depreciação da masculinidade e intolerável sentimento de castração associado a um ferimento narcísico no indivíduo. Associado a isso, as funções parentais estão aparentemente desconectadas com as diferenças entre os sexos, o que não faz nenhum sentido para o filho. Não há identificação com o pai, que é desvalorizado e perigoso, en quanto a identificação com a mãe seria uma compensação acompanhada de idealização. A relação com essa mãe é complicada, pois ela faz do filho um espelho para si mesma e não inclui masculinidade, mesmo que infantil. O pai não intervém para quebrar esse sistema e, além
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de não admirar o filho, não permitirá que esse o idealize. O filho percebe esse ódio e se volta para a mãe para satisfazer suas necessidades de idealização. Além de identificar-se com ela, estabelece um vínculo reparatório para satisfazê-la de suas frustrações. Com isso seu narcisis mo está estabelecido, bem como sua identificação com a mãe e sua necessidade de gratificá-la23 . Já a respeito do desenvolvimento do transexualismo feminino, poucos autores ligados à psicanálise desenvolvem hipóteses. Socarides, em trabalho clássico da década de 70, faz a descrição de quatro características presentes em "transexuais femininos verdadeiros" que também podem ser aplicadas aos transexuais masculinos: • intenso, insistente e persistente desejo de ter seu corpo transformado no de uma pessoa do sexo oposto; • convicção de ter sido aprisionado no corpo do sexo errado; • imitação concomitante do comportamento de uma pessoa do sexo oposto; • procura insistente de transformação sexual por meio de cirurgia e de uso de hormônios 24 • Os psicanalistas Volkan e Masri, seguindo as diretrizes de Socarides, apresentam as seguintes características de desenvolvimento psicológico possivelmente ligadas ao transexualismo feminino: • associado à fase pré-edípica, entre os 18 meses e três anos de idade; • identidade masculina se inicia precocemente na vida e se manifesta pelo uso de objetos entre as pernas, simulando um pênis; • desenvolvimento da identidade masculina está ligado à relação estabelecida com a mãe e à ausência do pai. A mãe é usualmente deprimida e sexualmente faminta. A menina, para compensar o sofrimento materno, de forma inconsciente, se identifica como homem e passa a usar objetos entre as pernas que substituem o pênis que lhe falta e a diferencia da mãe deprimida e sofredora; • fase edípica, ao não contar com o reconhecimento paterno, identifica-se com ele para escapar da relação intensa com a mãe. Como consequência, a menina desenvolve a característica de ser centrada em si mesma e, na adolescência, o desejo cirúrgico de transformação para concretamente ter um pênis25 • Em síntese, essas afirmações mantêm o eixo de raciocínio psicanalítico desenvolvido no entendimento do transexualismo masculino. A especificidade no tocante ao transexualismo feminino encontra-se na ligação com a mãe e na busca do pênis como amenizador do sofrimento materno e legitimador de sua identidade. Em relação ao psicodrama, outra linha teórica de entendimento do funcionamento psíquico, observando as histórias de vida de seus pacientes, alguns autores perceberam que eles - transexuais masculinos ou femininos tiveram em seu desenvolvimento uma mãe ou figura ma-
terna desempenhando o papel de ego - auxiliar na fase de reconhecimento do eu sexual e que era ainda participante ativa na aceitação e no estímulo do reconhecimento do eu sexual contrário à sua anatomia. Ou seja, ao fi lho anatomicamente do sexo masculino, uma aceitação e estímulo a pertencer ao sexo feminino, e vice-versa26. Para o psicodrama, os alicerces do primeiro processo de aprendizagem emocional e sexual da criança são lançados pela Matriz de Identidade. A criança vive no tempo imediato e essa coexistência, coação e coexperiência exemplificam a relação do bebê com as pessoas e objetos a sua volta. Particularmente em relação à mãe, seu ego-auxiliar, tudo o que ela faz e preconiza é para a criança porção inconsciente de seu eu. Aconteça o que acontecer durante o crescimento da criança, essa experiência precoce de identidade modela seu futuro 27 • A passagem pela brecha entre a fantasia e a experiência da realidade possibilitaria à criança estabelecer a posterior tomada de papel do outro e a inversão de papéis. Portanto, o transexualismo poderia ser explicado pela impossibilidade de haver ocorrido o estabelecimento da função de realidade, que deveria operar mediante a interpolação de resistências propostas pela mãe, que provavelmente não o fez. Sendo assim, não havendo facilitação pelo seu ego-auxiliar (mãe) para vencer essa barreira, pouco adianta a imposição social de uma realidade que não lhe pertence. É como se uma parte fundamental de sua existência estivesse deslocada das outras vivências afetivas, sensoriais e perceptivas, e presa a uma figura aceita por seu egoauxiliar e estimulada por ele. A construção de uma identidade sexual madura ficaria prejudicada. Não haveria, portanto, superação da brecha entre fantasia e realidade e a estruturação de uma identidade sexual se daria a partir de um eu ilusório, um eu parcialmente diferenciado e reconhecido como verdadeiro por aquele indivíduo, que poderia ser chamado de eu delirante 26 . Desde os anos 1990, as hipóteses biológicas vêm ganhando força e evidências38 • Analisando a influência do hormônio testosterona na função e estrutura cerebral, observou-se que transe xuais geneticamente masculinos e homens apresentam diferentes padrões de lateralização auditiva - ou que transexuais geneticamente masculinos e mulheres exibem padrões similares de lateralização auditiva - , acrescentando evidências à hipótese de que a influência neuroendócrina na modulação da assimetria funcional cerebral não é necessariamente determinada no cérebro perinataF8 . Essa correlação entre hormônio masculino e a diferenciação e desenvolvimento cerebral e comportamento masculino e feminino, passou a ser uma linha de pesquisa fundamental nos últimos anos. Estudos anatômicos correlacionando o tamanho de determinadas regiões do hipotálamo ( bed nucleus da stria
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
terminalis) entre transexuais masculinos e mulheres obtiveram alguma evidência, apesar de o estudo ter sido feito com apenas 6 indivíduos post mortem, em 11 anos de pesquisa. Esses achados não se mostraram diferenciados quanto à idade de manifestação do transexualismo, ou seja, a diminuição do núcleo guarda relação com o transtorno de identidade e não com a idade do paciente na manifestação do transtorno. Outro achado é que o tamanho do núcleo não mostra diferença entre homens hetero e homossexuais29. Outro estudo que utilizou 42 cérebros de pacientes - sendo que 26 eram do mesmo estudo anterior - chegou à conclusão de que o número de neurônios no bed nudeus da stría terminalis de transexuais masculinos é similar ao das mulheres e, em contraste, o número de neurônios de uma transexual feminina (apenas o cérebro de uma transexual feminina foi analisado) é equivalente ao de um homem. Os autores concluem que, em transexuais, a diferenciação do cérebro e dos genitais corre em direções opostas e indicaria a base neurobiológica do transtorno de identidade de gênero30 . Sabe-se que a diferenciação do hipotálamo ocorre aproximadamente por volta dos quatro anos de idade e depende de fatores genéticos e níveis de hormônios prénatais, estabelecendo-se, portanto, a mesma relação entre comportamento masculino e andrógeno31·32. Outros achados indiretos, ainda pouco conclusivos, têm sido propostos como marcadores biológicos: uso preferencial de mãos (refletindo lateralidade cerebral organizada antes do nascimento), com transexuais masculinos e femininos utilizando mais a mão esquerda do que os controles35 ; padrões de assimetria em impressões digitais, que se desenvolvem antes do nascimento e provavelmente são influenciados por esteroides sexuais, tanto em transexuais masculinos quanto femininos, diferindo dos controles, homens e mulheres3\ ordem de nascimento, com os trans-homossexuais masculinos tendo irmãos mais velhos; dado similar ao encontrado com homossexuais masculinos não transexuais33·37·39 ; os transexuais masculinos tendo mais tias maternas do que tios maternos, achado similar aos dos homossexuais masculinos não transexuais36; relação de tamanho entre o segundo e o quarto dedos da mão direita40·41 , há evidências de que a influência de hormônios sexuais afeta a identidade sexual e o demonstram pela análise da relação de tamanho entre o segundo e o quarto dedo da mão. Homossexuais masculinos e femininos e transexuais masculinos e femininos apresentaram uma menor relação entre o segundo e o quarto dedo em comparação com os heterossexuais. Isso, segundo os autores, demonstraria a ação de altas doses de andrógeno intraútero e sua correlação com a formação da identidade de gênero. Hoje, portanto, temos uma linha de pesquisa que busca cada vez mais evidências da correlação entre an -
drógenos circulantes intraútero e o desenvolvimento da identidade de gênero.
Epidemiologia A incidência do transexualismo tende a permanecer a mesma, enquanto a prevalência revela uma variação muito grande desde os primeiros trabalhos a esse respeito até os mais recentes, variando entre países e em épocas estudadas dentro de um mesmo país. Contudo, a razão entre transexuais masculinos e femininos se mantém estável em 3:1 independentemente do país ou da época42 . O cuidado a ser tomado é se os dados avaliados são para transexuais ou para indivíduos diagnosticados com transtorno de identidade de gênero sem especificação e que requisitam cirurgia. Muitas vezes se leva em conta a solicitação do indivíduo e sua ansiedade, deixando de lado a história de seu desenvolvimento, o estresse vivido naquele momento e a evidência de que o grupo que requisita a cirurgia de redesignação sexual é heterogêneo. O tópico acerca do diagnóstico mais uma vez se torna importante para a definição do fenômeno com o qual se está lidando. Como primeira pesquisa sobre prevalência com essa população, temos o trabalho clássico que Pauly (1968) realizou nos EUA. A pesquisa apresentou números como 1:100.000 de transexuais masculinos e 1:400.000 de transexuais femininos nos EUA 43 . Já a pesquisa realizada por Wallinder (197 1) na Suécia revelou números da ordem de 1:37.000 de transexuais masculinos e de 1:103.000 de transexuais femininos. Quanto à incidência anual, aponta números da ordem de 0,20:100.000 e ainda mais interessante é a proporção encontrada entre transexuais masculinos e femininos, que variava de 2,8:1 em 1967 a 1:1 em 1971 44. Na Inglaterra e no País de Gales, Hoenig e Kenna (1974) encontraram valores como 1,90:100.000 na população, 1:34.000 de transexuais masculinos e 1:108.000 de transexuais femininos. Já a proporção por sexo é de 3,25:1 de transexuais masculinos em relação aos femininos. A incidência encontrada foi de O, 17-0,26:100.000 habitantes e a proporção entre homens e mulheres, 1:1 45. Ross et al. (1981) encontraram na Austrália prevalência total de 1:42.000, sendo 1:24.000 de transexuais masculinos, 1:150.000 de transexuais femininos e uma proporção de 6,1:1 a favor dos transexuais masculinos. Além disso, referem incidência de 0,58:100.000 habitantes e proporção de 5:1 entre homens e mulheres46. Em Cingapura os números encontrados por Tsoi (1988) foram de 35,2:100.000 no total, de 1:2.900 de transexuais masculinos e 1:8.300 de transexuais femininos, uma proporção de 3:1 a favor dos transexuais masculinos47. Na Holanda, Eklund et al. (1988) apresentaram valores de 1:18.000 de transexuais masculinos e 1:54.000 de transexuais femininos e uma proporção de 3:1 de transe-
72 TRANSTORNO DE IDENTIDADE DE GÊNERO
xuais masculinos em relação aos femininos 48 , o que difere em números absolutos de outra pesquisa realizada no mesmo país por Bakker et al. (1993), que revelou 1:11.900 transexuais masculinos, 1:30.4000 transexuais femininos e uma proporção de 2,5:1 de transexuais masculinos em relação aos femininos49 • Na Alemanha, Weitze e Osburg (1996) encontraram números compatíveis com 1:36.000 de transexuais masculinos e 1:94.000 de transexuais femininos. A prevalência total foi de 1:42.000 e a proporção, de 2,3:1 de transexuais masculinos em relação aos femininos 50. Na Escócia, Wilson et al. (1999) encontraram números da ordem de 8,18:100.000 de prevalência total de transexualismo, sendo a relação de 1:7.500 para transexuais masculinos e de 1:31.000 para transexuais femininos, revelando uma proporção de 4: 1 de transexuais masculinos em relação aos femininos 51 • Na Bélgica, a proporção seria de 1:12.900 homens e 1:33.800 mulheres52 • Na Espanha, seria de 1:21.031 homens e 1:48.096 mulheres53 . Na Nova Zelândia, encontrou-se 1:3.639 homens e 1:22.714 mulheres54 • Por fim, na Sérvia, a relação proporcional entre homens e mulheres encontrada foi de 3:2 55 . A Tabela I compara todos esses valores encontrados. Na Tabela II está apresentada a relação proporcional entre homens e mulheres para cada pesquisa realizada. Um estudo com duração de 20 anos realizado na Suécia encontrou incidência anual de solicitações para mudança de sexo de O, 17:100.000 habitantes. A proporção
Tabela I Prevalência estimada de transtorno de identidade de gênero em várias pesqu1sas
de transexuais masculinos para femininos foi de 1,4:1 e a incidência de transexualismo primário foi de 0,14:100.000 habitantes, além da proporção ser a mesma para homens e mulheres com esse diagnóstico56• Os autores concluem que a incidência de transexualismo se mantém constante através dos anos e que a incidência de transexualismo primário é a mesma entre homens e mulheres, enquanto em um grupo maior de solicitantes de redesignação sexual que inclui homossexuais, travestis e outros casos de diagnóstico incerto, os indivíduos biologicamente homens predominam. Os mesmos autores57, em trabalho de revisão, discutem as variações encontradas e chegam à conclusão de que: • a prevalência se encontra próxima dos valores adotados pelo DSM- IV, de 1:30.000 de adultos masculinos e de 1:100.000 de adultos femininos que buscam cirurgia de redesignação sexual; • a incidência permanece praticamente a mesma, de 0,15 -0,17:100.000 habitantes acima dos 15 anos de idade; • a proporção entre homens e mulheres varia de 1: 1 entre transexuais masculinos e femininos primários até 4:1 entre homens e mulheres de um grupo com diagnóstico incerto; • a proporção total de pessoas que buscam avaliação para redesignação sexual ficaria por volta de 1,7:1 entre homens e mulheres da amostra geral. Pelos dados apresentados, vê-se que as conclusões a que esses autores chegam mostram-se consistentes e adequadas a uma realidade geraP7 • Contudo, pesquisas realizadas na Polônia58 e na antiga Checoslováquia59 afirmam que, diferentemente dos países ocidentais, o transexualis-
Tabela 11
Relação de proporção entre os sexos
Autores/ano/país
Masculino (homemmulher)
Feminino (mulherhomem)
Pauly, 1968 - EUA
1:1 00.000
1:400.000
Wallinder, 1971 - Suécia
1:37.000
1:1 03.000
Hoenig e Kenna, 1974 - Inglaterra/País de Gales
1:34.000
1:1 08.000
Ross et ai., 1981 - Austrália
1:24.000
1:150.000
Tsoi, 1988 - Cingapura
3:1
Tsoi, 1988 - Cingapura
1:2.900
1:8.300
Eklund et ai., 1988 - Holanda
3:1
Eklund et ai., 1988 - Holanda
1:18.000
1:54.000
Bakker et ai., 1993 - Holanda
2,5:1
Bakker et ai., 1993 - Holanda
1:11.900
1:30.400
Weitze e Osburg, 1996 - Alemanha
2,3:1
Weitze e Osburg, 1996 - Alemanha
1:36.000
1:94.000
Wilson et ai., 1999 - Escócia
Wilson et ai., 1999 - Escócia
1:7.500
1:31.000
De Cuypere et ai., 2003 - Bélgica
2,6:1
De Cuypere et ai., 2003 - Bélgica
1:12.900
1:33.800
Gómez et ai., 2006 - Espanha
2,3:1
Gómez et ai., 2006 - Espanha
1:21.031
1:48.096
Veale, 2008 - Nova Zelândia
6,1:1
Veale, 2008 - Nova Zelândia
1:3.639
1:22.714
Duisin et ai., 2009 - Sérvia
Autores/ano/país
Relação homens:mulheres
Pauly, 1968 - EUA
4:1
Wallinder, 1971 - Suécia
2,8:1 a 1:1
Hoenig e Kenna, 1974 - Inglaterra/País de Gales
3,25:1
Ross et ai., 1981 - Austrália
6,1:1
4:1
3:2
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
mo masculino para feminino é muito menos comum que o feminino para masculino na Polônia, estando na pro porção de 1:3,4, ou seja, um transexual masculino para 3,4 femininos 58, e de 1:5 na antiga Checoslováquia59 . Um trabalho realizado na Suécia60, ao avaliar os pedidos de cirurgias de redesignação sexual, no período de julho de 1972 até junho de 2002, encontrou dados significativos de que a razão sexual de 1:1 (final dos anos 1960) elevou-se para 2:1 (final dos anos 1990) em favor dos transexuais masculinos. Atualmente, os transexuais masculinos são seis anos mais velhos que os femininos na época do pedido e oito anos mais velhos do que eram há 20 anos no momento da requisição. Outro dado importante é que todo transexual teve transtorno de identidade de gênero na infância e na adolescência, mas nem toda criança que tem o diagnóstico de transtorno de identidade irá se desenvolver transexual. A grande maioria se desenvolverá homossexual59 •
Quadro clínico, diagnóstico, outros transtornos de identidade de gênero, diagnóstico diferencial e comorbidades A precisão diagnóstica é essencial para a definição exata de um transtorno de identidade sexual ou de gênero, e mais especificamente para o transexualismo. Isso porque os candidatos a cirurgia de redesignação sexual nem sempre são transexuais e nem sempre apresentam melhora na qualidade de vida com a cirurgia, além de ela ser irreversível em muitos casos e, em outros, ser de difícil reversão61. O cuidado clínico na realização do diagnóstico e na elucidação dos diagnósticos diferenciais é etapa funda mental para o trabalho médico, psicológico e social que se pretenda fazer, pois a busca por um instrumento de elucidação diagnóstica ainda não se mostrou frutífera6. As manifestações dos transtornos de identidade de gênero são muito parecidas, sendo o transexualismo uma das possibilidades existentes. Tal fato, pela sua complexidade, acabou gerando terminologias muitas vezes confusas a esse respeito. Na tentativa de facilitar o entendimento, Money13 faz um esforço para descrever e diferenciar a síndrome de transexualismo da síndrome de disforia de gênero, dizendo que a síndrome de transexualismo é também conhecida como uma disforia de gênero, de acordo com um sistema de nomenclatura que é baseado em conceitos que o paciente tem de seus próprios sentimentos e convicções, e como uma alternativa de evidência mais empírica e objetiva. Disforia de gênero e transexualismo não são, portanto, perfeitamente sinônimos, pois existem muitos pacientes com disforia de gênero que não são transexuais e não desejam a cirurgia de redesignação sexual.
Aliás, expressões como disforia de gênero, transtorno de identidade de gênero, transtorno de identidade sexual e transgênero foram e ainda são utilizadas como sinônimos, designando uma síndrome, sendo o transexualismo uma das possibilidades diagnósticas dessa síndrome. Fisk62 é quem descreve a síndrome de disforia de gênero, visando a facilitar o diagnóstico para um grupo heterogêneo de indivíduos que não deve ser classificado como transexual. O termo transexual deve se restringir a um grupo de indivíduos que, sem ser psicótico, mostra intenso desconforto com seu sexo anatômico e expressa forte desejo e busca intensa de mudança de gênero. A síndrome, segundo o autor, pode ser subdividida em cinco entidades clínicas, além do transexualismo: • tipo homossexual afeminado; . ' . • tlpo transvestlco; • tipo personalidade esquizoide-inadequada; • categoria de psicose em remissão; • tipo exibicionista-sociopático. Buscando melhor caracterização e facilitação do diagnóstico de transexualismo, que nada mais seria do que um dos tipos (o mais grave) de transtorno de identidade de gênero, Derogatis63 afirma que: • transexuais têm experiências sexuais limitadas quando comparados com a população heterossexual masculina. Existiria até um subgrupo transexual masculino que pode ser chamado de "assexual': ou seja, desinteressado de qualquer atividade sexual; • masturbação não varia estatisticamente em fre quência entre os dois grupos ( transexuais e heterossexuais); • transexuais masculinos são pessoas rígidas, moralistas e isoladas; • foram encontrados elevados níveis de depressão e ansiedade, com significativa autodepreciação, comportamentos agorafóbicos e um marcante sentido de alienaçao; • transexuais sofrem de redução geral de afetos positivos, bem como de altos níveis de emoções negativas; • a presença de anedonia significativa e condizente com os níveis de depressão pode servir de base para uma mensuração do ajustamento pós-cirúrgico. Em relação aos transexuais femininos, os mesmo autores64 afirmam que: • apesar de dois terços revelarem relações sexuais íntimas com homens em algum momento de suas vidas, há baixa atividade sexual presente nessa população; • não há diferenças significativas entre transexuais femininas e heterossexuais femininas nos quesitos masturbação e fantasia sexual; • não apresentam disforia em níveis dramáticos, apesar de apresentarem afeto depressivo; • geralmente o papel de gênero é bem desenvolvido e desempenhado. Passam relativamente bem por homens e têm ocupações masculinas. Isso acontece com mais fa-
72 TRANSTORNO DE IDENTIDADE DE GÊNERO
cilidade nesse grupo do que no grupo de transexuais masculinos, no qual se passar por mulher e ter atividade feminina são tarefas mais difíceis (Figuras 1 e 2). Essas caracterizações dos dois grupos, assim chamados de transexuais, ainda são atuais e podem ser utilizadas na identificação diagnóstica. Dentro dos transtornos de identidade de gênero, a caracterização do diagnóstico de transexualismo, que seria o mais grave desses transtornos, ainda é difícil, pois há confusão de termos, caracterizações e diagnósticos. Levine e Lothstein65, numa tentativa de facilitar a caracterização diagnóstica, identificam alguns fenômenos que influenciarão a determinação das diretrizes diagnósticas da CID-10 e do DSM-IV-TR:
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Lea T., transexual masculina brasileira. Revista Vogue francesa. Imagem disponível na Internet.
Figura 1
-•
Figura 2
Transexual feminino após mastectomia e cirurgia de redesignação sexual com manutenção de clitóris aumentado por uso de hormônio masculino. Imagem disponível na Internet.
• transexualismo é um diagnóstico feito pelo próprio paciente e é notório que em medicina o autodiagnóstico não deve ser aceito. A mídia criou a ilusão de que o transexualismo é bem definido, é uma entidade psiquiátrica única e só pode ser tratado com a cirurgia de rede signação sexual; • transexualismo é utilizado para descrever três fenômenos relacionados, mas que seriam mais bem descritos de outra maneira: o desejo de se tornar membro do sexo oposto; viver no papel de gênero contrário ao seu; status pós-cirurgia de redesignação sexual; • mesmo fazendo uso de hormônios, vivendo no papel de gênero oposto e realizando a cirurgia de mudança de sexo, não são possíveis a mudança genética e a experiência psicológica. Hoje, em termos de critérios diagnósticos, tem -se três referências importantes: o DSM-IV-TR66, a CID-1067 e a Standards of care for gender identity disorders, 6a edição (fevereiro de 2001), da antiga HBIGDA (The Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association) e atual WPATH (World Professional Association for Transgender Health) 68 . Para cada uma dessas referências, temse um quadro explicativo com todas as diretrizes diagnósticas (Tabelas III, IV e V) . Fazendo um apanhado consistente de todo o histó rico da dificuldade diagnóstica e entendendo o transexualismo como transtorno mental que deve ser diagnosticado e tratado como tal, o AMTIGOS - NUFOR do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Núcleo de Psiquiatria e Psicologia Forense) utiliza-se dos seguintes critérios para defini-lo: • anamnese: histórico desde a infância de inadequação de gênero (brinquedos, roupas, trejeitos do gênero oposto; urinar na característica do gênero oposto; evitar esportes e brincadeiras estereotípicos de seu gênero anatômico); quadro não relacionado a situação de estresse; ausência de sinais de fetichismo; experiências homossexuais raras e geralmente na fase de definição pessoal, quando descobre que nem a categoria homossexual, nem a de travesti lhe são adequadas; vivência no gênero desejado sem conflitos; crença de que é heterossexual e de que é membro do gênero oposto ao seu sexo anatômico; busca a transformação hormonal e cirúrgica; mostra repugnância por seus genitais e vontade de transformá-los; grande sofrimento psíquico por sua situação com sintomas depressivos e histórico de autoagressão, havendo até mesmo tentativa de suicídio anterior; • uso de hormônios e busca de transformação física a partir da puberdade; • uso de roupas e nome do gênero desejado; • desconforto e inadequação de gênero com duração de no mínimo dois anos;
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Tabela 111
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AS GRANDES SÍNOROMES PSICOPATOLÓGICAS
Tabela de diagnóstico DSM-IV TR (APA, 2000)
Transtorno de identidade de gênero
Tabela 111 Tabela de diagnóstico DSM-IV TR CAPA. 2000) (continuação)
A. Uma forte e persistente identificação com o gênero oposto (não meramente um desejo de obter quaisquer vantagens culturais percebidas pelo fato de ser do sexo oposto). Em crianças, a perturbação é manifestada por quatro (ou mais) dos seguintes quesitos: • declarou repetidamente o desejo de ser, ou insistência de que é, do sexo oposto; • em meninos, preferência pelo uso de roupas do gênero oposto ou simulação de trajes femininos; em meninas, insistência em usar apenas roupas estereotipadamente masculinas; • preferências intensas e persistentes por papéis do sexo oposto em brincadeiras de faz de conta, ou fantasias persistentes acerca de ser do sexo oposto; • intenso desejo de participar em jogos e passatempos estereotípicos do sexo oposto; • forte preferência por companheiros do sexo oposto. Em adolescentes e adultos, o distúrbio se manifesta por sintomas como desejo declarado de ser do sexo oposto, passar-se frequentemente por alguém do sexo oposto, desejo de viver ou ser tratado como alguém do sexo oposto, ou a convicção de ter os sentimentos e reações típicas do sexo oposto. B. Desconforto persistente com seu sexo ou sentimento de inadequação no papel de gênero desse sexo. Em crianças, a perturbação manifesta-se por qualquer das seguintes formas: em meninos, afirmação de que seu pênis ou testículos são repulsivos ou desaparecerão, declaração de que seria melhor não ter um pênis ou aversão a brincadeiras rudes e rejeição a brinquedos, jogos e atividades estereotipadamente masculinos; em meninas, rejeição a urinar sentada, afirmação de que desenvolverá um pênis, afirmação de que não deseja desenvolver seios ou menstruar ou acentuada aversão a roupas caracteristicamente femininas. Em adolescentes e adultos, o distúrbio manifesta-se por sintomas como preocupação em ver-se livre de características sexuais primárias ou secundárias (p. ex., solicitação de hormônios, cirurgia ou outros procedimentos para alterar fisicamente as características sexuais, com o objetivo de simular o sexo oposto) ou crença de ter nascido com o sexo errado. C. A perturbação não é concomitante a uma condição intersexual física. O. A perturbação causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo. (continua)
Codificar com base na idade atual: 302.6 Transtorno da identidade de gênero em crianças; 302.85 Transtorno da identidade de gênero em adolescentes ou adultos. Especificar se (para indivíduos sexualmente maduros): Atração sexual por homens; Atração sexual por mulheres; Atração sexual por ambos os sexos; Ausência de atração sexual por quaisquer dos sexos. Além dessa classificação, existe a Categoria 302.6: Transtorno da identidade de gênero, sem outra especificação.
Essa categoria é incluída para a codificação de transtornos da identidade de gênero não classificáveis como um transtorno da identidade de gênero específico. Exemplos: Condições intersexuais (p. ex., síndrome de insensibilidade a andrógenos ou hiperplasia adrenal congênita) e disforia concomitante quanto ao gênero. Comportamento transvéstico transitório, relacionado ao estresse. Preocupação persistente com castração ou penectomia, sem desejo de adquirir as características sexuais do gênero oposto.
Tabela IV Tabela de diagnóstico CID- 10 (OMS, 1993) F64.0 Transexualismo
Desejo de viver e ser aceito como membro do sexo oposto geralmente acompanhado por sensação de desconforto ou impropriedade de seu próprio sexo anatômico e desejo de se submeter a tratamento hormonal e cirurgia para tornar seu corpo tão congruente quanto possível com o sexo preferido. Diretrizes diagnósticas: para que esse diagnóstico seja feito, a identidade transexual deve ter estado presente persistentemente por pelo menos 2 anos e não deve ser um sintoma de outro transtorno mental, como esquizofrenia, nem estar associada a qualquer anormalidade intersexual, genética ou do cromossomo sexual.
F64.1 Transvestismo de duplo papel
O uso de roupas do sexo oposto durante parte da existência para desfrutar a experiência temporária de ser membro do sexo oposto, mas sem qualquer desejo de uma mudança de sexo mais permanente ou de redesignação sexual cirúrgica associada. Nenhuma excitação sexual acompanha a troca de roupas, o que distingue o transtorno de transvestismo fetichista (F65.1). Inclui: transtorno de identidade sexual da adolescência ou da idade adulta, tipo não transexual. Exclui: transvestismo fetichista (F65.1).
Outros transtornos de identidade sexual classificados na CI 0 - 1O, mas sem importância conceitual com o tema, são: F64.2 Transtornos de identidade sexual na infância; F64.8 Outros transtornos de identidade sexual; F64.9 Transtorno de identidade sexual, não especificado.
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Tabela V
Tabela de diagnóstico HBIG DA. 2001
Transtorno de identidade de gênero
O maior propósito dos Padrões de Cuidados para Transtornos de Identidade de Gênero é articular o consenso de organizações profissionais internacionais a respeito das características de manejo e tratamento psiquiátricas, psicológicas, médicas e cirúrgicas dos transtornos de identidade de gênero. Discorda dos valores apresentados pelo DSM-IV e afirma, com base em pesquisa recente holandesa, que a prevalência do transexualismo, entendido como o final do espectro dos transtornos de identidade de gênero, é de 1:11.900 para homens e 1:30.400 para mulheres. Em termos diagnósticos há pouco a acrescentar; valoriza os critérios do DSM-IV e da CID- 1O. Ressalva que o termo "transgênero" não serve de diagnóstico, pois é usado sem a conotação psicopatológica. O sentido é, sobretudo, o de informalmente caracterizar pessoas com identidades de gênero pouco usuais.
• vivência no papel de gênero desejado já estabelecida ou a se estabelecer durante o acompanhamento; • ausência de anormalidades genéticas ou interse xual; • não decorrente de quadro esquizofrênico, trans torno de humor psicótico, transtorno mental orgânico ou oligofrenia; • busca real e intensa pela cirurgia, mas com compreensão das dificuldades presentes na indicação desse recurso; • disponibilidade efetiva para psicoterapia como fa cilitador para a eventual indicação endocrinológica e ci' . rurg1ca; • o fato de ter sido casado ou ter filhos não é fator de exclusão diagnóstica. A caracterização da orientação sexual tem uma importância relativa e designa um subtipo particular dentro do grupo dos transexuais69•70 • As discussões a respeito do diagnóstico de transtorno de identidade de gênero e transexualismo continuam e geram debates importantes em termos de caracterização, denominação e importância nosológica7 1•72 . Em termos de diagnóstico diferencial de transexualismo, é importante ter em mente todos os outros transtornos de identidade de gênero que não têm indicação cirúrgica: travestismo, travestismo de duplo papel, travestismo fetichista (fetichismo transvéstico), autogynephilia, descrita por Blanchard como excitação por sentirse mulher e com atributos femininos73 . Além desses, vale ressaltar os casos de homossexualidade homofóbica, quadros psicóticos com delírios de identidade de gênero ( esquizofrenia e transtornos de humor psicóticos), transtornos de personalidade borderline grave74•7 5. Quanto às comorbidades, as principais estão listadas a seguirl6•77 • Os transtornos de eixo I são os mais comuns, sendo os mais característicos, esquizofrenia, transtornos do humor e transtornos de ansiedade. Abuso de drogas também tem frequência significativa. Os transexuais mas culinos seriam mais afetados que os transexuais femininos em ambas as comorbidades.
Transtornos de personalidade também costumam ocorrer associados em pacientes com diagnóstico de transtorno de identidade de gênero. Além disso, suicídio, autolesão, causar ou ser vítima de violência e de doenças sexualmente transmissíveis podem ser características dessa população. Relacionando alteração de imagem corporal e transexualismo78, autores têm encontrado associação entre transtorno alimentar e transexualismo masculino, espe cialmente anorexia nervosa79 · 81 •
Tratamento Após a elucidação diagnóstica de cada caso e firmado o diagnóstico de transexualismo ou transtorno de identidade de gênero grave inicia-se o processo de tratamento. Em linhas gerais, existe consenso atual entre profissionais que trabalham com pacientes que sofrem de transtorno de identidade de gênero de que o tratamento para alívio da disforia e resolução das questões relativas à identidade de gênero, especialmente o transexualismo, baseia-se em um tripé formado por: • psicoterapia; • tratamento hormonal; • cirurgia de redesignação sexual. Esse tripé não é necessariamente sequencial; muitas vezes um recurso é somado a outro, visando a maior eficácia82•83 • Referência fundamental e amplamente disseminada entre os pesquisadores da área são as recomendações existentes em Os Padrões de Cuidado para Transtorno de Identidade de Gênero da The Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association (HBIGDA), hoje conhecida como WPATH (World Professional Association for Transgender Health). Atualmente em sua 6a versão, publicada em 2001, a referência é subdividida em treze capítulos que abordam epidemiologia, diagnóstico e tratamento para adultos, adolescentes e crianças68 . Esses padrões da The Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association (HBIGDA, 2001) valorizam não apenas o tripé terapêutico (psicoterapia, hormo-
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nioterapia e cirurgia), mas também a necessidade do paciente de viver integral e realmente como se pertencesse ao gênero desejado antes de qualquer medida definitiva, como a cirurgia. A seguir é apresentado como cada etapa do tratamento é preconizada pelos padrões de cuidado da HBIGDA. Em relação à psicoterapia, a HBIGDA avalia que: • pode ser extremamente útil para as descobertas e o processo de amadurecimento e conforto pessoal; • não é requisito absoluto para o tratamento em três etapas. Fica a cargo da avaliação da equipe profissional, a indicação ou não dela; • o estabelecimento de uma relação terapêutica verdadeira e efetiva é o primeiro passo necessário para o sucesso do trabalho da equipe; • o processo pode ser longo e envolve até o acompanhamento pós-cirúrgico. Não necessariamente a psicoterapia vai caminhar para a hormonioterapia e a cirurgia. Várias questões podem ser abordadas e deve-se levar em conta o processo todo de transformação e amadurecimento; • vários processos de transformação ocorrem espontaneamente durante a psicoterapia. Essa adaptação de gênero deve ser acompanhada e estimulada para melhores condições afetivo-emocionais. Em termos de ações a serem tomadas pelos pacientes: • biologicamente homens: transvestismo; mudança corporal como, p. ex., a retirada de pelos, aumento do cuidado pessoal, guarda-roupa e voz; • biologicamente mulheres: transvestismo; mudanças corporais tais como usar faixas peitorais, aplicação de pelos faciais teatrais, uso de próteses penianas ou outros recursos similares, como enchimentos; • para ambos: aprender mais sobre o fenômeno de transgênero, frequentando grupos de apoio, lendo sobre, participação em grupos de discussão na internet etc. Em termos do processo psicoterapêutico propriamente dito: • aceitação das fantasias pessoais, sejam elas homossexuais ou bissexuais, e dos comportamentos (orientação), diferenciando-as das aspirações relativas à identidade de gênero e papel de gênero; saber avaliar as necessidades e compromissos familiares e profissionais assumidos; saber integrar as mudanças de gênero no seu dia a dia; identificar e incrementar seus pontos destoantes e frágeis na adequação ao gênero pretendido tanto nas relações de trabalho como pessoais. É importante assinalar que a aceitação de tais diretrizes propostas pela HBIGDA por entidades e equipes de pesquisa não reflete um esquema específico de trabalho psicoterapêutico, nem mesmo a aceitação de apenas uma linha teórica, mas, sim, um consenso do que pode e deve ser alcançado pelo paciente e pela equipe de trabalho.
Em relação à hormonioterapia em adultos, a HBIGDA (2001) avalia que as razões para a hormonioterapia se justificam pelo fato de que o tratamento com hormônios do sexo desejado desempenha importante papel anatômico e psicológico no processo de transição de gênero e na seleção adequada de adultos com transtorno de identidade de gênero. Eles melhoram a qualidade de vida e limitam a comorbidade psiquiátrica, pois o paciente passa a se sentir e se parecer com os membros do gênero preferido, além de serem medicamente necessários para se viver nessa nova condição. Estabelecem -se ainda três critérios de inclusão para a hormonioterapia: • ter mais de 18 anos de idade; • conhecimento demonstrável dos limites e das possibilidades de ação dos hormônios, além de seus riscos e benefícios sociais; • experiência de vida no gênero desejado, documentada de pelo menos três meses antes do início do tratamento hormonal ou um período de psicoterapia de duração especificada pelos profissionais da equipe de saúde antes da avaliação inicial para a hormonioterapia (geralmente um mínimo de três meses). Em circunstâncias especiais é aceitável a prescrição de hormônios para pacientes que não preencham o terceiro critério, por exemplo, para monitorar terapia com hormônios conhecidos com o intuito de evitar o uso sem supervisão médica ou o mercado negro. Levantam ainda a possibilidade, em casos especiais e após avaliação de equipe responsável, de se prescrever hormônios a pacientes que não queiram a cirurgia ou que não desejem uma experiência de vida no outro gênero ou mesmo que estejam encarcerados. Os efeitos desejados e benéficos da hormonioterapia, em adultos, relatados pela HBIGDA (2001), são: • para os biologicamente homens tratados com estrógenos: crescimento das mamas, redistribuição da gordura corporal no padrão feminino, diminuição da força no segmento superior corporal, maciez da pele, diminuição dos pelos corporais, diminuição ou parada da queda de cabelos, diminuição do tamanho e da fertilidade testicular, ereções com menor frequência e com menor firmeza. A grande maioria desses efeitos é reversível, com exceção do aumento das mamas; • para as biologicamente mulheres tratadas com testosterona, as seguintes mudanças podem ser consideradas permanentes: voz mais grave, aumento do clitóris, atrofia de mamas, aumento de pelos faciais e corporais no padrão masculino. Mudanças reversíveis são: aumento da força no segmento superior corporal, ganho de peso, aumento do interesse social e sexual, aumento do desejo sexual e diminuição da gordura do quadril. Em função dos riscos envolvidos, alguns pacientes devem ser avaliados clinicamente antes do início de hormonioterapia: fumantes, obesos, idosos, pacientes com
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doenças cardiovasculares, hipertensos, com doenças endócrinas, com câncer e aqueles com problemas de coagulação. Os efeitos colaterais descritos pela HBIGDA (2001) sao: • para os biologicamente homens tratados com estrógenos ou progestagênios: aumento da propensão à coagulação sanguínea, desenvolvimento de prolactinomas benignos, infertilidade, ganho de peso, labilidade emocional, doenças hepáticas, formação de cálculos biliares, sonolência, hipertensão e diabetes m elittus. • para as biologicamente mulheres tratadas com testosterona: infertilidade, acne, labilidade emocional, aumento do desejo sexual, mudança dos perfis lipídicos para o padrão masculino com aumento do risco de doenças cardiovasculares e potencial para desenvolver tumores benignos ou malignos de fígado, além de disfunções nes' se orgao. Os hormônios podem ter suas doses reduzidas após a gonadectomia e o uso de antiandrógenos pode ser considerado tratamento adjunto ao uso de estrógenos, em indivíduos biologicamente homens. Após a psicoterapia e a hormonioterapia, sequenciais ou não, a avaliação da capacidade do paciente em viver adequadamente no gênero desejado é uma das variáveis mais importantes para a HBIGDA (2001). Antes da cirurgia de redesignação sexual, a experiência de viver no gênero desejado é considerada fundamental para a indicação adequada desse procedimento terapêutico. Saber enfrentar as mudanças de vida, sejam elas profissionais, afetivas, estudantis, sociais e mesmo parental, é de fundamental importância para a indicação cirúrgica. Avaliar cada situação específica é dever da equipe. Mediar a fantasia e o que se quer, com a realidade é a tarefa principal da equipe e do paciente antes de aventar e enfrentar essa possibilidade de definição, que é irreversível. Em relação à cirurgia de redesignação sexual, a HBIGDA (2001) avalia: • constitui tratamento efetivo e apropriado para transexualismo ou transtorno de identidade de gênero pro fundo; • o cirurgião deve fazer parte da equipe, conhecê-la e confiar em suas opiniões; • os critérios de indicação cirúrgica envolvem des de idade mínima (maioridade legal, que varia de país para país), tempo de hormonioterapia e experiência real de vida no gênero desejado, até conhecimento de riscos, custos e possíveis complicações; • o cirurgião deve possuir competência especializada em técnicas de reconstrução genital. Deve ser urolo gista, ginecologista, cirurgião plástico ou geral, sendo reconhecidamente hábil e suficientemente treinado para as tarefas a serem realizadas. As cirurgias indicadas são:
• cirurgia de mamas - retirada de mamas para transexuais femininos ou aumento dessas ou colocação de próteses para transexuais masculinos; • cirurgia genital - para transexuais masculinos: orquiectomia, penectomia, vaginoplastia, clitoroplastia e labiaplastia. A manutenção, sempre que possível, da enervação no tecido usado na construção da neovagina é fundamental na recuperação cirúrgica e na funcionalidade do órgão. Para transexuais femininos: histerectomia, salpingo-oforectomia, vaginectomia, metoidioplastia, escrotoplastia, uretroplastia, colocação de próteses testiculares e faloplastia; • outras - para transexuais masculinos, redução plástica da cartilagem tireoide, lipoaspiração da cintura e do quadril, rinoplastia, redução dos ossos da face e blefaroplastia. Para transexuais femininos, lipoaspiração dos quadris, coxa e nádegas. Além de todas essas medidas indicadas, a HBIGDA (2001) recomenda acompanhamento cirúrgico, psicoterápico e hormonal a curto e a longo prazo. A partir desses padrões estabelecidos pela experiência adquirida em anos de trabalho, pesquisa e estudos, o atendimento da população que sofre de transtornos de identidade de gênero estandardizou-se, sem, no entanto, deixar de respeitar sempre as particularidades de cada país, sua legislação e cultura. No Brasil, a resolução do Conselho Federal de Medicina em 2002 17 autoriza a realização de cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo masculino, e autoriza, a título experimental, as cirurgias de transgenitalização do tipo mastectomia e neofaloplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo feminino. Para tanto, assume as seguintes determinações: • a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos seguintes critérios: desconforto com o sexo anatômico natural; desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do pró prio sexo e ganhar as do sexo oposto; permanência desse distúrbio de forma contínua e consistente por pelo menos dois anos; ausência de outros transtornos mentais; • a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá à avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, psicólogo e assistente social, segundo os critérios definidos, após dois anos de acompanhamento conjunto: diagnóstico médico de transexualismo; maior de 21 anos; ausência de características inapropriadas para cirurgia; • consentimento livre e esclarecido, de acordo com a Resolução CNS n. 196/96; • as cirurgias para adequação do fenótipo feminino para masculino só poderão ser praticadas em hospitais
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universitários ou hospitais públicos adequados para a pes. qmsa; • as cirurgias para adequação do fenótipo masculino para feminino poderão ser praticadas em hospitais, públicos ou privados, independentemente da atividade de pesquisa. Existe uma ampla discussão no momento sobre todas as formas de tratamento propostas aos pacientes com transtorno de identidade de gênero, especialmente os transexuais. Questiona-se ou afirma-se a necessidade de psicoterapia8\ estabelecem-se critérios para a hormonioterapia85,86, avaliam-se e estabelecem-se critérios para as cirurgias para transexuais, especialmente as de redesignação sexual em vários países87. Há questionamentos importantes sobre a validade cirúrgica dessa população 15 e o acompanhamento póscirúrgico, na grande maioria dos casos, se mostra positivo e com perspectivas de melhoria na qualidade de vida dessa população, inclusive sexual, e maior inserção social88-95, o que valida os métodos terapêuticos aceitos hoje em dia.
Políticas públicas Em 2008, são publicadas no Diário Oficial da União Portarias do Ministério da Saúde, a primeira instituindo o Processo Transexualizador 18 e a segunda definindo as Diretrizes Nacionais e Regulamentando o Processo Tran sexualizador no Sistema Único de Saúde - SUS 19. Elas resultaram do empenho de várias pessoas, entidades e instituições públicas (Ministério da Saúde, Ministério Público, profissionais da saúde, pesquisadores e a sociedade civil) na construção de política pública em saúde preocupada com a promoção da equidade e orientada por princípios dos Direitos Humanos. Elas estabelecem critérios para um órgão de saúde se tornar um dos possíveis centros credenciados pelo SUS como transexualizador. O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo é um dos quatro centros atualmente credenciados no Brasil. Os outros três são: Hospital Universitário da UFGO, UFRGS e UFRJ em parceria com a UERJ. Apesar de todos os avanços expostos, não existe ainda no Brasil legislação específica a respeito da mudança de prenome e registro civil para transexuais. Mesmo depois de realizada cirurgia ou cirurgias de redesignação sexual, a adequação do nome e de sexo civil depende de decisão judicial, caso a caso. Políticas públicas específicas para a população transexual começam a surgir a partir de experiências isoladas, como a criação pelo Governo do Estado de São Paulo do Ambulatório para Transexuais e Travestis no Centro de Referência e Tratamento Santa Cruz ( CRT). Práticas de saúde específicas para essa população já são realidade em outros países96'97 .
Considerações finais Os transtornos de identidade de gênero, cujo quadro mais conhecido é o transexualismo, apresenta-se como fenômeno médico, psiquiátrico, psicológico e social. A demanda pela cirurgia de redesignação sexual é uma realidade e as mudanças jurídicas decorrentes dessa nova identidade se fazem cada vez mais presentes e atuais. Não se trata de um transtorno mental como outros. Algumas razões: a especificidade do quadro e suas manifestações; a dificuldade diagnóstica frente a outros possíveis diagnósticos; as questões sociais, morais e religiosas envolvidas; a necessidade hormonal e cirúrgica e sua urgência na vida dessas pessoas; a questão premente de se esse é mesmo um transtorno psiquiátrico, uma questão médica, ou um tema sociocultural. Tantos embates e debates pela frente por conta de uma manifestação, um quadro psíquico que só se tornou relevante a partir dos anos 1950 do século XX, ou seja, há muito pouco tempo. Posições contra ou a favor da cirurgia, do diagnóstico ou da existência ou não desse fenômeno médico existem e devem ser discutidas. Só não se deve cair no pretenso fenômeno do politicamente correto de acreditar que tudo que nos cerca é perfeitamente explicável por entendimentos socioculturais, muitas vezes equivocados ou determinados por ideologias políticas. Os transexuais sofrem. Isso é uma realidade. Quem tem o diagnóstico de transtorno de identidade sexual sofre. Porque se sente diferente e é. Isso não faz de ninguém uma aberração, uma monstruosidade. Ser diferente não é doença, mas pode ser. Ser diferente não caracteriza um transtorno, mas pode caracterizar. Precisa-se vencer essas visões muitas vezes estereotipadas dos conceitos médicos e psicológicos e propor uma revalorização deles. O nome em si, transtorno de identidade sexual ou mesmo transexualismo, não promove a exclusão, mas sim garante recursos terapêuticos e de inclusão a essas pessoas. Afinal de contas, o ápice do tratamento, que é a cirurgia, não pode e nem deve ser considerada estético, mas sim corretivo. Um direito conquistado a duras penas e um dever do Sistema de Saúde. Cabe aos profissionais da saúde promover a inclusão, vencer o preconceito e abolir a discriminação. Com os transexuais, devemos vencer ainda o autopreconceito e a autodiscriminação. É um trabalho árduo que aqui no Brasil está em seus primórdios.
Minicaso clínico FSL, nascida menino em 26/02/ 1981. Natural de Praia Grande (SP). Primeiro atendimento em 30/08/ 1999. Vem buscar cirurgia para "mudança de sexo". Sente-se diferente, ou seja, como menina, desde os seis anos de idade. Desde pequena sempre brincou com meninas fazendo papel de heroína, princesa. Tem duas irmãs e brincava muito com elas. Sempre se deu melhor com a mãe do que com o pai; tinha
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medo dele. Relata masturbar-se pouco. mas diz ter ereções e poluções noturnas. No primeiro atendimento diz que ainda não é hora de se assumir como mulher. mas vem vestida de forma provocante e com nome feminino escolhido. Diz ter sido violentada aos seis/ sete anos de idade no banheiro do parquinho por garotos mais velhos. Acha o sexo oral nojento e evita fazê-lo com seus namorados. Masturba-os sem culpa. Tem paixões platônicas e impossíveis por colegas de escola que não se interessam por ela. Sempre foi passiva nas relações sexuais e só uma vez. por solicitação de um parceiro, tentou utilizar o pênis, mas sem sucesso e com muito sofri mento depois. Urina sentada sempre que pode e só se assume como rapaz quando é obrigada. É a filha do meio. Nasceu menino entre duas meninas. Antes do seu nascimento a mãe teve aborto e o médico disse que seria muito difícil ela engravidar de novo. Não utiliza medicamentos. não iniciou uso de hormônios femininos ainda por medo; quer orientação médica. Não aplicou silicone industrial no corpo e nem se prostituiu. DN PM normal e refere doenças típicas da infância. Realizou cirurgia para correção de hérnia umbilical e fimose. Nega ter problemas de saúde. Diz que é muito briguenta e agressiva por ter sido sempre excluída das situações e muito maltratada pelas pessoas com que convivia. A mãe é viva, atualmente tem 50 anos de idade e se diz "nervosa". Pai vivo e separado da mãe, 50 anos de idade, saudável. Tem duas irmãs, uma com 39 anos e outra com 26 anos atualmente. Vestida como moça, voz ainda indefinida, trejeitos femininos exagerados. sem alterações de consciência, memória, orientação, atenção. Sem sintomas produtivos. sem alterações do humor. Im pulsividade aumentada, especialmente no tocante à agressividade ao meio. Diagnóstico: F.64.0 - Transexualismo masculino. Iniciou psicoterapia grupal em 30/08/1999. Teve boa frequência. Trabalhou questões importantes. como, p. ex., relação com o pai (difícil e com muito rancor); relacionamento com a mãe, sempre vista como especial, frágil, necessitando de sua proteção; relacionamento afetivo e sexual com os homens; relação com chefia. no trabalho e nos estudos; relação com homossexuais e travestis, pois durante muito tempo foi reconhecida como travesti na escola e discriminada por isso. Em maio de 2002 foi encaminhada para a Endocrinologia para harmonização e para aguardar a cirurgia de redesignação sexual. Fazendo uso de hormônio feminino (Perlutan) e antiandrogênico (acetato de ciproterona) desde então. Deprimiu-se em 2007 por razões afetivas e da demora cirú rgica. Saiu da depressão sem necessidade de medicamentos antidepressivos. Realizou a ciru rgia de redesignação sexual em 19/07/2010 . Está bem e se recuperando de maneira acelerada. No primeiro encontro após a cirurgia, ainda na enfermaria da Urologia, mostrouse confiante. feliz e realizada, após dez anos em psicoterapia e uma espera muitas vezes angustiante pela transformação definitiva.
Questões 1. O transexualismo pode ser caracterizado como : a) Transtorno de identidade de gênero leve.
b) c) d) e)
Transtorno de identidade de gênero moderado. Transtorno de identidade de gênero grave. Transtorno de orientação sexual. Transtorno de personalidade.
2. No Brasil, as cirurgias de transgenitalização foram liberadas para transexuais masculinos em: a) 1970 b) c) d) e)
1980 1990 2000 2002
3. Fazem parte do tripé de tratamento para transexualismo: a) Psicoterapia, hormonioterapia e ciru rgia de redesignação sexual. b) Psicoterapia aversiva, hormonioterapia a favor de seu sexo anatôm ico e ciru rgia estética. c) Cirurgia de redesignação sexual, viver no sexo desejado e participação política nas associações de transgêneros. d) Viver no sexo desejado, hormonioterapia e participação política. e) Psicoterapia corretiva, hormonioterapia. cirurgia estética e participação política. 4. São riscos de efeitos não desejados da hormonioterapia com andrógenos para transexuais femininos: a) Redistribuição da gordura dos quadris. b) Lesão hepática. c) Aumento da força muscular. d) Aumento da libido. e) Aumento do desejo sexual. 5. Não são considerados diagnósticos diferenciais para o transexualismo: a) Homossexualidade homofóbica. b) Transvestismo. c) Fetichismo transvéstico. d) Pedofilia. e) Outros transtornos de identidade de gênero.
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72 TRANSTORNO DE IDENTIDADE DE GÊNERO
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993
Transtornos do Sono
Flávio Aloé A lexandre Pinto de Azevedo
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 994
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Transtorno de insônia, 996
1. Identificar e diagnosticar os principais transtornos primários do sono.
Epidemiologia, 996 Consequências. 996 Transtorno de insônia crônica, doenças sistêmicas e riscos de transtornos mentais, 996 Os vários tipos de transtornos de insônia, 997 Diagnóstico, 998 Tratamento, 998
2. Identificar os principais sintomas diurnos do transtorno de insônia. 3. Realizar o diagnóstico diferencial entre hipersonia idiopática e narcolepsia. 4. Reconhecer os sintomas de sono dos principais transtornos psiquiátricos. 5. Reconhecer as principais parassonias.
Farmacoterapia, 998 Hipersonia idiopática e recorrente, 999
Introdução
Narcolepsia, 1000 Transtornos do ritmo circadiano, 1001 Síndrome do atraso da fase de sono, 1001 Transtorno do sono do trabalhador em turnos, 1001 Parassonias, 1001 Parassonias do sono REM, 1002 Parassonias do sono NREM, 1002 Síndrome das pernas inquietas, 1004 Bruxismo, 1006 Transtornos mentais e sono, 1006 Transtornos do humor, 1006 Transtorno afetivo bipolar, 1008 Oistimia, 1009 Antidepressivos, 1009 Transtornos de ansiedade, 1009 Transtorno obsessivo-compulsivo (TO C), 1O1O Benzodiazepínicos, 1O1O Esquizofrenia, 1O1O Antipsicóticos, 1O11 Transtornos alimentares, 1O11 Transtornos do sono relacionados ao uso de álcool, 1O11 Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (fOAH), 1012 Considerações finais, 1O12 Questões, 1O12 Referências bibliográficas, 1O13
Queixas relacionadas ao sono são frequentes entre pacientes que buscam tratamentos psiquiátricos. Dificuldade para iniciar o sono, sono não reparador de má qualidade e sonolência diurna estão entre as queixas mais frequentes. Transtornos do sono conhecidos, como, a insônia, podem infelizmente muitas vezes não fazer parte da anamnese psiquiátrica, assim como outros menos conhecidos, como os transtornos do ritmo circadiano, que podem também complicar o diagnóstico diferencial com sintomas afetivos. Torna-se, sem dúvida, clara a importância do conhecimento sobre os transtornos primários do sono e a adequada identificação destes quadros em comorbidade ou não com outros transtornos psiquiátricos. A classificação internacional dos transtornos do sono de 2005 (CITS-2005) 1, em sua segunda revisão, lista oito diferentes categorias diagnósticas de acordo com três eixos centrais (Tabela I): • sintoma principal (p. ex., insônias, hipersonias, movimentos anormais durante o sono); • sistema funcional afetado (p. ex., transtornos respiratórios); • fatores fisiopatológicos (p. ex., parassonias, alterações do ritmo circadiano).
73 TRANSTORNOS DO SONO
Tabela I
Classificação internacional dos transtornos do sono
Classificação internacional dos transtornos do sono (Continuação)
Tabela I
1) Insônia a) Insônia aguda b) Insônia psicofisiológica c) Insônia paradoxal d) Insônia idiopática e) Insônia secundária a um transtorno mental f) Higiene do sono inadequada g) Insônia comportamental da infância h) Insônia secundária a drogas ou substâncias i) Insônia secundária a uma condição médica j) Insônia não secundária a substância ou condição fisiológica conhecida, não especificada k) Insônia fisiológica, não especificada 2) Distúrbios respiratórios relacionados ao sono a) Síndromes de apneia central do sono b) Síndromes de apneia obstrutiva do sono c) Síndromes de hipoxemia/hipoventilação relacionadas ao sono d) Hipoxemia/hipoventilação relacionadas ao sono secundária a uma condição médica e) Outros distúrbios respiratórios relacionados ao sono
• Distúrbio alimentar relacionado ao sono • Parassonia, não especificada • Parassonia secundária a drogas ou substâncias • Parassonia secundária a condição médica 6) Distúrbios do movimento relacionados ao sono (DMRS) a) Síndrome das pernas inquietas b) Distúrbio dos movimentos periódicos dos membros c) Cãibras relacionadas ao sono d) Bruxismo relacionado ao sono e) Distúrbio do movimento rítmico relacionado ao sono f) DM RS, não especificado g) DMRS secundário a drogas ou substâncias h) DMRS secundário a uma condição médica 7) Sintomas isolados, variantes aparentemente normais e questões não resolvidas a) Dormidor longo b) Dormidor curto c) Ronco d) Sonilóquio e) Sobressaltos do sono f) Mioclonia benigna do sono da infância g) Tremor do pé e ativação muscular alternada do sono h) Mioclonia propioespinal do início do sono
3) Hipersonias de origem central a) Narcolepsia com cataplexia b) Narcolepsia sem cataplexia c) Narcolepsia secundária a uma condição médica d) Narcolepsia, não especificada e) Hipersonia recorrente f) Hipersonia idiopática com tempo de sono longo g) Hipersonia idiopática sem tempo de sono longo h) Síndrome do sono insuficiente induzida comportamentalmente i) Hipersonia secundária a uma condição médica
i) Mioclonia com fragmentação excessiva 8) Outros distúrbios do sono a) Outros distúrbios fisiológicos do sono b) Outros distúrbios do sono não relacionados a substâncias ou condição fisiológica conhecida c) Distúrbio do sono ambiental
j) Hipersonia secundária a drogas ou substâncias k) Hipersonia não secundária a substâncias ou condição fisiológica conhecida I) Hipersonia fisiológica
Apêndice A. Distúrbios do sono associado com condições classificadas em outro lugar: 1) Insônia fami liar fatal 2) Fibromialgia 3) Epilepsia re lacionada ao sono 4) Cefaleia relacionada ao sono 5) Refluxo gastroesofágico relacionada ao sono 6) lsquemia da artéria coronária relacionada ao sono 7) Laringoespasmo, engasgo e deglutição anormal relacionado ao sono
4) Distúrbios do sono do ritmo circadiano (DSRC) a) DSRC, tipo fase do sono atrasado b) DSRC, tipo fase do sono avançado c) DSRC, tipo sono-vigília irregular d) DSRC, tipo curso livre e) DSRC, tipo jetlag f) DSRC, tipo trabalho em turnos g) DSRC secundário a uma condição médica h) Outro DSRC i) DSRC secundário a drogas e substâncias
Apêndice 8 . Outros transtornos psiquiátricos e comportamentais frequentemente encontrados no diagnóstico diferencial dos distúrbios do sono: 1) Transtornos do humor 2) Transtornos de ansiedade 3) Transtornos somatoformes 4) Esquizofrenia e psicoses 5) Transtornos diagnosticados primeiramente na infância e adolescência 6) Transtornos de personalidade
5) Parassonias a) Distúrbios do despertar (NREM) • Despertar com confusão mental • Sonambulismo • Terror noturno b) Parassonia usualmente associada com SREM • Distúrbio comportamental do sono REM • Paralisia recorrente isolada do sono • Distúrbio de pesadelo c) Outras parassonias • Distúrbio dissociativo relacionado ao sono • Enurese noturna • Gemido relacionado ao sono • Síndrome da explosão na cabeça • Alucinações relacionadas ao sono (continua)
Neste capítulo, discutiremos os principais transtornos do son o de interesse para a psiquiatria. São eles: transtorno de insônia; hipersonias; narcolepsia; transtornos do ritm o circadiano; parassonias do sono REM; parassonias do sono NREM; síndrome das pern as inquietas e bruxismo.
995
996
CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
•
SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNDROMES PSICOPATOLÓGICAS
Transtorno de insônia O transtorno de insônia é a queixa de sono mais comum na população de adultos, podendo ser agudo, crônico, secundário ou ser um fator associado a outras doenças médicas e transtornos mentais ou ainda mais raramente ser um transtorno primário2 • O termo transtorno de insônia se refere a um quadro clínico caracterizado por um conjunto de queixas atribuídas ao período principal de sono noturno e queixas referentes ao período principal de vigília 1•2 • Os sintomas relacionados ao período principal de sono são: dificuldade em adormecer, dificuldade em permanecer dormindo com despertares prolongados, des pertar precoce, padrão de sono não restaurador ou combinações dos sintomas já mencionados. As queixas de sintomas relacionados ao período principal de sono encontram-se na Tabela II. O termo transtorno de insônia só pode ser aplicado em uma pessoa que desfrute de um local adequado e oportunidade de tempo para dormir. Esse fator diferencia a insônia da privação voluntária de sono 1•2 • A insônia pode ser classificada quanto a duração do transtorno de insônia: aguda quando de duração inferior a 1 mês, subaguda quando dura entre 1 e 3 meses e crônica, se superior a 3 meses3 . Apesar dos diferentes fatores causais associados ao transtorno de insônia, a apresentação clínica em termos de seus sintomas noturnos e diurnos é inespecífica, isto é, diferentes subtipos de transtorno de insônia não produzem sintomas específicos, sendo o quadro clínico semelhante entre os diferentes fatores causais2 •
Epidemiologia As estimativas de incidência e prevalência de insônia na população adulta variam muito dependendo da metodologia e população analisada (idade, sexo e população geral versus populações clínicas com doenças méTabela 11
Sintomas relacionados ao período principal de sono
Fadiga Déficit de atenção, concentração, memória Disfunção social, profissional ou acadêmica lrritabilidade Sonolência diurna Falta de motivação, energia Propensão a erros, acidentes no trabalho ou dirigindo Cefaleias, tensão Sintomas gastrointestinais Preocupações com o sono durante o dia2.3
dica e transtornos mentais) em estudos longitudinais ou seccionais4 . A insônia crônica dura mais de três meses e apresenta alta prevalência na população geral e na população de pacientes com transtornos médicos e psiquiátricos de centros médicos de cuidados primários5 • Um estudo de revisão com 50 publicações sobre prevalência de insônia na população geral lançou mão de uma regra simples para a estatística da insônia na população geral, é a regra do 30-20-10, ou seja, cerca de 30% (30 a 48%) da população geral relata sintomas noturnos de insônia, 20% (lO a 28%) relata sintomas diurnos de grau moderado de insônia e 10% (9 a 15%) relata sintomas noturnos e diurnos de insônia intensos de transtorno de insônia segundo os critérios diagnósticos para o DSM-IV-R6 • O transtorno de insônia acomete principalmente pessoas na terceira idade, indivíduos de segmentos socioeconômicos inferiores e no sexo feminino 7•8 • Em estudo populacional de larga escala com 9.851 pessoas de uma comunidade urbana revelou-se que o transtorno de insônia é 1,60 a 3 vezes mais frequente no sexo feminino a partir da puberdade independentemente da causa quer seja em populações de pacientes com insônia ou em estudos epidemiológicos na população geral9 • Estudos de prevalência de insônia na faixa populacional adolescente são poucos; os dados disponíveis indicam que 4,40% dessa população apresentam insônia, 13,40% no último ano e 10,70% para o ciclo de vida 10 .
Consequências O maior grau de evidências científicas em relação às principais consequências do transtorno de insônia correspondem a disfunções de natureza individual e a custos sociais, como redução desempenho social e profissional, redução de índices de qualidade de vida, riscos de acidentes com máquinas ou condução de veículos, custos econômicos relacionados com afastamento do trabalho, perda de produtividade e despesas com tratamentos 4•11• Resultados da aplicação de questionários padronizados para avaliar a qualidade de vida (SF-36) demonstram que o transtorno de insônia causa prejuízos comparáveis com doenças como insuficiência cardíaca, diabetes, artrite e depressão 12• 13 • A população de pacientes com transtorno de insônia possui riscos de 2,5 a 4,5 maiores de acidentes quando na condução de veículos do que controles saudáveis. O custo econômico da insônia é estimado entre 92 e 107 bilhões de dólares por ano nos EUA4 •
Transtorno de insônia crônica, doenças sistêmicas e riscos de transtornos mentais A insônia de evolução crônica associa-se a diversas condições médicas. Essa informação é extremamente relevante, devendo o médico ficar ciente de que é necessário questionar sintomas de sono durante o levantamen-
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to do histórico médico nas populações de risco, tratar o transtorno de insônia independentemente do fator causal e idem aos resultados do tratamento de longo prazo4 • Populações de pacientes com transtorno de insônia possuem maior prevalência de doenças médicas sistêmicas e populações de pacientes com doenças médicas sistêmicas e neurológicas apresentam maior prevalência de insônia apesar do controle para sintomas de ansiedade e depressão que possam estar causando os sintomas de insônia5•6 • Estudos epidemiológicos de natureza trans versal controlados para depressão, ansiedade e uso de medicamentos demonstram que o transtorno de insônia associa-se com diversas doenças sistêmicas 13 : • hipertensão arterial sistêmica; • doenças cardiovasculares; • acidentes vasculares cerebrais; • cefaleias; • doenças renais; . ' . • transtornos resp1ratonos; • transtornos urológicos; • transtornos gastrointestinais; • dor crônica; • infecções virais. O transtorno de insônia associado com doenças médicas sistêmicas manifesta-se mais comumente com manifestações de sono noturno fragmentado caracterizando na forma de sintomas de manutenção do sono e de tempo total de sono reduzido 13 . O transtorno de insônia crônica está relacionado com aumento do risco longitudinal de desenvolvimento de transtornos psiquiátricos (depressão, ansiedade, abuso de álcool, uso crônico ou dependência de hipnóticos), riscos de acidentes de carro e aumento da mortalidadé 10 • A insônia é o maior fator de risco, potencialmente tratável, para o aparecimento do primeiro episódio de depressão ou recorrência de depressão em adultos e na terceira idade5•7 . A associação de sintomas de insônia crônica e transtornos mentais, principalmente depressão e ansiedade, é bem comprovada5•8 . Insônia crônica é uma comorbidade em cerca de 90% dos casos de transtornos mentais mais graves 11 • Em alguns casos de insônia associada à depressão, os sintomas de sono são a queixa principal e mais significativa do que os sintomas depressivos subjacentes, levando o portador a buscar tratamento médico queixando -se de insônia 11 • Nos casos de ansiedade e insônia, os sintomas de sono são simultâneos, e nos casos de depressão, a insônia geralmente precede seus sintomas.
Os vários tipos de transtornos de insônia Insônia psicofisiológica Também denominada de insônia primária, é o subtipo mais comum de insônia crônica primária, com taxas de prevalência de 1 a 2% na população geral e represen-
ta de 12 a 15% da população com transtorno de insônia 1• Os critérios diagnósticos de acordo com a CITS-2005 incluem uma duração mínima de 1 mês; os sintomas de sono não são causados por nenhum outro transtorno mental, neurológico, clínico, ou uso de medicações e abuso de substâncias 1 ou ainda por outros transtornos do sono. A insônia psicofisiológica cursa com um estado de hiperalerta cognitivo caracterizado por ansiedade r elacionada ao ato de dormir e hiperatividade autonômica e hiperatividade do eixo hipotálamo-pituitária-adrenaP. O portador de insônia psicofisiológica apresenta principalmente sintomas de dificuldade de adormecer (insônia inicial), podendo apresentar também insônia de manutenção com despertares noturnos de longa duração. Há também componentes de má higiene do sono 2 • Os pacientes com insônia crônica apresentam, em geral, alterações inespecíficas da arquitetura do sono com aumento da latência de sono para estágio 1 (> 30 minutos), aumento do tempo de vigília após o início do sono(> 30 minutos) e aumento da latência de sono REM(> 120 minutos) com redução da eficiência do sono ( < 85%). As principais indicações de polissonografia na insônia psicofisiólogica são descartar outros transtornos de sono simultâneos, dúvidas diagnósticas e resistência ao tratamento adequado 3•4 . Insônia causada por higiene do sono inadequada A prática de hábitos inadequados para uma boa qualidade e quantidade de sono é denominada de má higiene do sono, podendo causar ou agravar sintomas de in sônia e sintomas diurnos da insônia. As práticas de higiene inadequada do sono estão sob o controle da pessoa. Os sintomas de insônia não são causados por nenhum outro transtorno mental, neurológico, clínico, outros transtornos do sono, uso ou abuso de medicações e de substâncias 1 • Entre as práticas de má higiene de sono estão o consumo de cafeína, nicotina ou álcool no mínimo 6 horas antes de dormir; refeições pesadas à noite; atividade física vigorosa até 4 horas antes de dormir; atividade psicologicamente estressante à noite; horários inconstantes para dormir e acordar; e cochilos longos ou próximos do horário do sono principaP. A prática de hábitos de má higiene do sono pode precipitar ou perpetuar sintomas em todos os tipos de insônia. A interrupção dos maus hábitos de sono é a base do tratamento dessa modalidade de insônia4 . Insônia idiopática A insônia idiopática inicia-se antes da puberdade, persistindo durante a vida adulta, e há geralmente his tórico familiar de insônia 1• Além dos sintomas de insô nia, podem existir sintomas neurocognitivos, como hiperatividade e desatenção, prejudicando o rendimento escolar e socioprofissionaP. Fatores agravantes incluem abuso de álcool, hipnóticos e drogas que dificultam o
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diagnóstico e tratamento. A insônia idiopática tem prevalência de 0,5 a 0,7% entre a população de adolescentes e adultos jovens 1 • A idade de início dos sintomas e ausência de outros transtornos médicos ou psiquiátricos confirma o diagnóstico 1 • Insônia aguda, transitória ou de ajustamento
A característica principal dessa forma de insônia é a presença de sintomas agudos de sono secundários a um fator precipitante causal claramente identificável em uma pessoa com sono previamente normal e sem queixas de insônia 1•2 • O quadro clínico deve necessariamente durar alguns dias ou, no máximo, 1 mês 1• A prevalência é de 15 a 20%, sendo mais comum em mulheres e em adultos idosos3 • O fator precipitante pode ser um estresse psicológico ou físico, p. ex., demissão de trabalho, prova, vestibular, viagem, mudanças de fusos horários, diagnóstico de uma doença médica, hospitalização ou ambiente de sono desconfortável 1• A insônia aguda naturalmen te é resolvida com a suspensão do fator precipitante ou com a adaptação ao estresse. Indivíduos suscetíveis a de senvolver insônia aguda apresentam um padrão hiperalerta semelhante a pacientes com insônia crônica, ao passo que pessoas nao suscetlvets ao estresse nao apresentam marcadores de hiperalerta2 • Esses achados levantam a possibilidade de que o tratamento precoce da insônia transitória previne o desenvolvimento da insônia crônica e outras comorbidades em populações suscetíveis3. O diagnóstico clínico é realizado pela história do paciente e os achados polissonográficos são inespecíficos3·4 • -
Tabela 111
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Diagnóstico O histórico médico da insônia deve ser feito com o paciente, com o cônjuge ou com familiares. A avaliação deve levar em consideração dois componentes principais, a intensidade e a frequência de sintomas subjetivos de sono e sintomas físicos neurocognitivos diurnos 1• História de tratamentos prévios é igualmente importante. Os sintomas noturnos e subjetivos de transtorno de insônia caracterizam-se pela incapacidade de iniciar ou manter o sono, sono de má qualidade e aumento do relatos de sonhos3. Apesar de os sintomas noturnos possuírem muita importância no diagnóstico do transtorno de insônia, a intensidade dos sintomas diurnos é o principal fator que direciona o paciente com insônia a procurar tratamento médico e o que se correlaciona com índices de saúde mental9. Dados fundamentais devem constar no histórico médico do transtorno de insônia (Tabela III) 1· 3.
Tratamento O primeiro ponto a ser abordado na terapêutica da insônia é a regularização da higiene do sono. As principais orientações e medidas para uma boa higiene do sono estão referidas na Tabela IV6 .
Farmacoterapia A farmacoterapia é o método de tratamento mais frequentemente utilizado porque surte efeitos mais rápidos e
Levantamento histórico médico do transtorno de insônia
Duração dos sintomas (aguda, crônica, intermitente) Quando os sintomas começaram, sintomas de sono (dificuldade de iniciar, intermediária ou terminal), hábitos de sono (horários e sonecas) Número e duração dos despertares durante a noite Presença de despertar precoce (duas horas antes do habitual) Tempo de vigília após o início do sono, sensação de bem- estar ou cansaço ao acordar Sensação de sono restaurador ao terminar o período de sono principal Uso de despertador para acordar Hábitos antes de dormir (TV, leitura, trabalho, exercícios físicos) Qualidade e padrão de sono fora de casa Variabilidade dos sintomas e frequência dos mesmos ao longo da semana, finais de semana e férias Duração da jornada de trabalho Intensidade dos sintomas neurocognitivos diurnos (sonolência, irritabilidade, dificuldades de memória e de atenção, concentração, motivação) Sintomas que afetam o sono (tosse, dispepsia, queimação retro-esternal, dispneia, dor, prurido, parestesias), ruminação Preocupações com o sono durante o dia Uso de drogas, álcool, cafeína, tabaco, hipnóticos, medicamentos antiepilépticos, anti- hipertensivos vulnerabilidade para apresentar queixas de ansiedade Queixas de sono perante um fator estressar Sintomas de depressão
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Tabela IV
Orientações para adequada higiene do sono
Procurar dormir no máximo 6 horas por noite Deite-se quando estiver sentindo sono Evitar café, chá, chocolate, refrigerantes a base de colas, nicotina, anti- inflamatórios e medicamentos com cafeína. Evitar álcool no mínimo 6 horas antes de dormir Evitar fumar no mínimo 6 horas antes de dormir Evitar comer, fumar e álcool no meio da noite Evitar refeições pesadas antes de dormir Evitar sonecas durante o dia Fazer exercícios físicos 4 a 6 horas antes de deitar (de preferência ao ar livre) Procurar exposição a luz solar logo após levantar e no final da tarde Tomar banho quente (15 a 20 minutos) duas horas antes de dormir Ingerir um lanche com leite e/ou derivados e carboidrato antes de dormir Não use relógio de pulso ou despertador no seu ambiente de dormir (seu quarto) Reserve o ambiente de dormir (seu quarto) para o ato de dormir somente, não ler, assistir TV Se não conseguir dormir, levante-se depois de 20 a 30 minutos, não fique tentando dormir Se não conseguir dormir, procure se distrair, leia, assista TV fora do seu quarto Manter horários constantes para dormir e acordar mesmo nos finais de semana
por causa da maior disponibilidade 3•6 • A farmacoterapia apresenta a vantagem de produzir efeitos imediatos ainda na primeira semana reduzindo a latência do sono, despertares e aumentando o tempo total de sono6 . Entre as opções terapêuticas encontram-se deferentes agentes com ação hipnótica como antidepressivos, benzodiazepínicos hipnóticos não benzodiazepínicos e anticonvulsivantes6. Os medicamentos aprovados pelo FDA15 para uso na insônia são: • os benzodiazepínicos hipnóticos estazolam, flurazepam, triazolam, quazepam e temazepam; • o antidepressivo tricíclico doxepina; • os hipnóticos não benzodiazepínicos zolpiden, zoplicone, zaleplom e eszopiclone; • agonista dos receptores melatonínicos ramelteon 15; • os benzodiazepínicos ansiolíticos clonazepam ou bromazepam; • os antidepressivos como trazodona, mirtazapina e amitriptilina.
Hipersonia idiopática e recorrente Transtorno de etiologia desconhecida, provavelmente decorrente de uma disfunção da neurotransmissão no SNC, caracteriza-se como um transtorno do sono NREM com sonolência excessiva diurna, cochilos prolongados não reparadores e sono noturno longo sem despertares 16 • O paciente também apresenta dificuldade para despertar pela manhã, com confusão mental e atitudes agressivas. A sonolência excessiva, por acarretar comportamentos automáticos, pode causar acidentes graves. Tipicamente inicia-se na segunda década de vida. A PSG demonstra sono noturno prolongado, sem despertares e com aumen-
to de sono delta. O TLMS revela latências curtas de sono sem a presença de sono REM. O tratamento da hiperso nia idiopática se faz com as mesmas drogas estimulantes do tratamento da narcolepsia, sem a mesma eficácia 1• O diagnóstico mais comum é a síndrome de KleineLevin (SKL) 17 • Na sua forma típica apresenta episódios de hipersonia, hiperfagia e alterações psíquicas. Os episódios críticos duram de 12 horas a 3-4 semanas (mais comumente 4-7 dias) podendo ser desencadeados por ansiedade, infecção viral. Os intervalos assintomáticos podem durar de meses a anos 17 • Durante o surto, o paciente dorme por períodos prolongados (18 a 20 horas), acordando geralmente para comer de maneira compulsiva, sendo que nas formas atípicas não há compulsão alimentar'. Podem ocorrer alterações do comportamento sexual (hiper ou hipossexualidade), agressividade, transtorno de memória, sintomas depressivos e até alucinações, por vezes com dificuldade diagnóstica com quadros depressivos ou esquizofrênicos7 . Nos intervalos, os pacientes são absolutamente normais e geralmente relatam amnésia ao período crítico. SKL é rara, mais frequente no sexo masculino (4:1), com início geralmente na segunda década de vida1 • É autolimitada, desaparecendo geralmente antes dos 25-30 anos de idade'. A etiopatogenia é desconhecida, mas há indícios de uma desregulação dopaminérgica-hipotalâmica 17 • O diagnóstico diferencial da SKL deve ser feito com transtornos que cursam com sonolência intermitente, como tumores do terceiro ventrículo, encefalites, trauma cranio-encefálico e com transtornos psiquiátricos 17• O tratamento é empírico e utiliza-se lítio ou carbamazepina em doses baixas para prevenir as crises e estimulantes do SNC durante a crise de hipersonia17•
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Narcolepsia Narcolepsia é definida como um transtorno neurológico crônico de causa genética e ambiental possivelmente autoimune com disfunção da neurotransmissão das hipocreatinas do hipotálamo lateral e com forte associação com o antígeno HLA DQB1 *602 16·18. Clinicamente caracteriza-se por sonolência excessiva crônica, pela presença de fenômenos de sono REM ( cataplexia, alucinações hipnagógicas e paralisia do sono) e sono noturno fragmentado 1. Esses sintomas constituem a pêntade da narcolepsia. A prevalência de narcolepsia é de 0,02 a 0,018% da população geraP 6. O principal sintoma, a sonolência excessiva, inicia-se caracteristicamente na segunda década, sendo incapacitante, crônica e não progressiva 1. Pode ser persistente e pode se manifestar por ataques súbitos e incontroláveis de sono. Os cochilos, mesmo de curta duração, são reparadores e a sonolência diminui por períodos variáveis de até horas de duração 16. É frequente o relato de sonho nes tes cochilos diurnos. A cataplexia é a perda súbita total ou parcial do tônus da musculatura voluntária (há preservação da musculatura ocular e respiratória) desencadeada exclusivamente por emoções principalmente de riso e raiva 1. A consciência está preservada durante o episódio de cataplexia e há recuperação imediata do controle motor ao final do ataque. Às vezes o paciente dorme após o episódio entrando em sono REM. Cataplexia é o sintoma mais específico e, portanto, patognomônico de narcolepsia podendo ser o sintoma inicial em 6 a 10% dos casos 16. Os outros três sintomas: alucinações hipnagógicas, paralisia de sono e sono noturno fragmentado da pêntade não são patognomônicos de narcolepsia1. Alucinações hipnagógicas são experiências de percepção onírica vívida ocorrendo na transição vigília-sono, acompanhadas por medo-terror, às vezes com fenômenos táteis, visuais e auditivos e não há manifestações autonômicas 16. Estão presentes em 50 a 65% dos casos e a frequência dos episódios é variável 16 . A paralisia do sono se caracteriza por uma incapacidade total para se mover ou falar, ocorrendo no início do sono ou ao despertar. É apavorante, podendo ser acompanhada por sensação de incapacidade para respirar e por alucinações variadas. Os episódios podem durar de 1 a 10 minutos, terminando subitamente após esforço mental ou por alguma estimulação sensorial externa, com recuperação dos movimentos. Ocorre em 30 a 60% dos narcolépticos, podendo diminuir ou desaparecer com a idade 1. Outros sintomas e sinais que podem estar presentes na narcolepsia-cataplexia são comportamentos automáticos, humor depressivo, alcoolismo, disfunções neurocognitivas, transtorno comportamental do sono REM e discreto sobrepeso6. Estudos imunogenéticos do complexo HLA em narcolepsia demonstram uma forte associação
com antígeno HLA DQBl *0602 em 85 a 95% dos casos de narcolepsia com cataplexia e apenas 27% dos casos sem cataplexia18. O diagnóstico definitivo de narcolepsia é muito importante por causa do tratamento crônico com agentes estimulantes do SNC 1. A presença de sonolência excessiva e cataplexia é patognomônica de narcolepsia auxiliando no diagnóstico clínico. A avaliação laboratorial do paciente narcoléptico requer uma PSG seguida no dia seguinte do TLMS 1. A PSG mostra latência curta de sono NREM e REM, múltiplos despertares com aumento de tempo acordado após o início do sono e aumento de estágio 1. O TLMS mostra latências curtas inferiores há 5 minutos, com a presença de dois ou mais episódios de sono REM 16. O diagnóstico diferencial de narcolepsia é feito com outros transtornos com sonolência excessiva diurna. A presença dos sintomas auxiliares, idade de início, características dos cochilos são importantes para o diagnóstico 1. Cataplexia isolada é rara e deve ser diferenciada de crises convulsivas atônicas, simulação, transtornos psiquiátricos, lipotímia, episódios isquêmicos transitórios, transtornos vestibulares. Os episódios de alucinação hipnagógica devem ser diferenciados de sintomas alucinatórios da esquizofrenia. O tratamento da narcolepsia é multifatorial e emprega o uso de drogas estimulantes do SNC, antidepressivos, abordagens comportamentais e apoio psicossocial, visando a controlar os sintomas narcolépticos e permitir que o paciente leve uma vida tão normal quanto possíveP9. O tratamento comportamental inclui observação de horários constantes para dormir e acordar, evitar álcool, sedativos, abuso e abstinência de cafeína e privação de sono 19. Programação de cochilos durante o dia melhora significativamente o nível de alerta e de rendimento psicomotor, sendo que um cochilo de manhã e outro à tarde após o almoço produzem os melhores resultados e possibilitam redução da dose de estimulantes 19. Uso não abusivo de cafeína ou pó de guaraná intercalado com os cochilos pode ser útil no controle da SED. Medidas de higiene do sono representam um papel importante no manejo da doença, mas a maioria dos pacientes requer tratamento farmacológico para alívio da sonolência diurna 19. O tratamento farmacológico inclui estimulantes do SNC como anfetaminas (metanfetamina e dextro-anfe tamina), metilfenidato, pemoline, selegilina, mazindol e o novo estimulante atípico denominado modafinil20 • Devem-se individualizar os horários e dosagens de medicação estimulante e doses adicionais podem ser feitas em períodos de sonolência antecipada (p. ex., uma prova, uma viagem etc.). O tratamento da cataplexia, paralisia do sono e alucinações hipnagógicas envolve o uso de agentes que aumentam a neurotransmissão noradrenérgica e serotoni-
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nérgica 19 • São utilizados os medicamentos da Tabela V. A melhora da sonolência induzida pela medicação estimulante reduz a frequência dos ataques de cataplexia diurna.
Transtornos do ritmo circadiano Os transtornos de sono relacionados à ritmicidade circadiana são importantes para a medicina de sono devido à sua alta prevalência. A característica fundamental dos transtornos circadianos do sono é a interrupção do sistema de temporização circadiano ou de uma dessincronização entre o relógio circadiano endógeno e o ambiente físico e social de 24 horas externo, causando sintomas de dificuldade de dormir e/ ou de sonolência excessiva, bem como prejuízos em áreas importantes de funcionamento e de qualidade de vida21 • A apresentação clínica atual desses distúrbios é dependente de fatores fisiológicos, comportamentais e ambientais2 1.
Apresenta um período de sono habitual com duração e qualidade normais, porém com os horários de início de sono (18 h às 21 h) e de acordar (2 h às 5 h) várias horas mais cedo que o desejado mimetizando e confundindo-se com o despertar precoce do transtorno depressivo maior 22 • É caracterizada por queixas de sonolência no final da tarde ou no início da noite, sono precoce e despertares espontâneos ainda durante a noite (escuro) levantando-se entre 2 e 5 horas da madrugada, o que pode ser erroneamente interpretado como insônia terminal e despertar precoce, habitualmente visto no transtorno depressivo maior22 • Existem poucos casos de síndrome do avanço da fase do sono bem documentados na literatura. A prevalência tende a aumentar com a idade, sendo estimada em 1% na meia-idade e em idosos 1 • Ambos os gêneros são igualmente afetados. Existem casos familiares com herança autossômica dominante 21 . O diagnóstico é clínico, e a polissonografia mostra constituição de sono normal para a idade quando o registro é realizado nos horários de preferência.
Síndrome do atraso da fase de sono Essa síndrome caracteriza-se pelo tempo de sono habitual atrasado por três a seis horas relativo aos desejados ou socialmente aceitáveis horários de sono-vigília. O período principal de sono ocorre de maneira atrasada, por exemplo, entre 5 horas da madrugada até 2 horas da tarde. Uma vez iniciado, o sono é geralmente normal, sendo esse dado muito importante para o diagnóstico diferencial com outras formas de insônia21. A prevalência varia de 0,13 para 0,17% em populações adultas e 7,3% em adolescentes 22 • O pico do início desse distúrbio parece ocorrer na infância ou no começo da adolescência. As séries de caso na literatura relatam uma distribuição por sexo variando de 10/1 homem/mulher na adolescência, a 1/1 em séries com mistura de adolescentes e adultos 1• Não há padrão familiar conhecido. O diagnóstico é clínico e a polissonografia mostra arquitetura de sono normal para a idade quando o registro é realizado nos horários de preferência de sono.
Tabela V
Antidepressivos tricíclicos Nortriptilina lmipramina
Transtorno do sono do trabalhador em turnos Cerca de 5 a 8% da população economicamente ativa é formada por trabalhadores de turnos. A prevalência do transtorno do sono do trabalhador em turnos é de 2 a 5%21•22 • O transtorno do trabalho em turno é tipicamente caracterizado por sonolência excessiva ou insônia, associadas com as horas de trabalho no período que seria o de sono habitual. O período principal de sono e a jornada de trabalho estão em horários de oposição à propensão circadiana para dormir e estar em alerta, respectivamente. Os sintomas de insônia e sonolência excessiva podem persistir por vários dias após a última noite de trabalho e nos dias de folga, mesmo depois da restauração do sono para os horários convencionais 1• Os efeitos negativos usualmente encontrados são diminuição do tempo total de sono e qualidade de sono ruim, fadiga, redução do estado de alerta, déficits cognitivos, aumento de acidentes, morbidade cardiovascular gastrointestinal e oncológica21 • Além disso, a maior parte do tempo de folga pode ser utilizada para a recuperação do sono e essa alocação de tempo traz consequências sociais negativa. O diagnóstico normalmente é feito pela história clínica e não há necessidade de exames como polissonografia (PSG). O diagnóstico é clínico e a polissonografia está indicada para diagnosticar outros transtornos do sono subjacentes.
Clomipramina Desipramina
Parassonias
lnibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina Venlafaxina Milnaciprano Reboxetina (primeira escolha para o tratamento da cataplexia 19l Paroxetina Fluoxetina
As parassonias são manifestações físicas e emocionais que ocorrem durante o sono, podendo acometer o sistema nervoso autonômico, locomotor e cognitivo em combinações diferentes. As parassonias primárias (distúrbios dos estados de sono per se) são classificadas de acor-
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do com o estado de sono em que ocorrem (REM, NREM ou transições) e as secundárias (distúrbios de outros sistemas de órgãos que se manifestam durante o sono) po dem ser classificadas pelo órgão ou sistemas envolvidos 1 •
Parassonias do sono REM Transtorno comportamental do sono REM O transtorno comportamental do sono REM (TCSREM) é caracterizado por comportamentos motores complexos que emergem principalmente durante o sono REM, causando ferimentos no paciente, ferimentos no cônjuge ou danos materiais. O principal achado polissonográfico é a persistência de tônus neuromuscular durante o sono REM 1. Os principais achados clínicos do TCSREM são23 : predominância no sexo masculino (9:1 ); pródromo clínico com anos de duração, com história de sono tumultuado; evidente mudança no tema dos sonhos, que passam a ter conteúdos repletos de ação com fuga, luta e defesa; episódios de onirismo caracterizados por vocalizações como falar, rir alto, gritar palavras de ordem ou obscenidades; atividade locomotora complexa durante os episódios de onirismo, com atos agressivos, violentos, bruscos ou exploratórios sempre com os olhos fechados; lesões como fraturas, hematomas, lacerações e luxações são comuns, e o paciente geralmente não acorda apesar das lesões; comportamento em vigília é normal, exceto nos casos de associação com doenças neurodegenerativas 1• Existem dois tipos de TCSREM, a forma primária ou criptogênica e a forma secundária24 • A forma secundária do TCSREM é relacionada à retirada de álcool, ao uso de antidepressivos tricíclicos, inibidores da monoamino-oxidase, inibidores de recaptação de serotonina, antidepressivos serotoninérgicos e noradrenérgicos (principalmente a venlafaxina, desvenlafaxina e mirtazapina), selegilina, agentes anticolinérgicos para doença de Alzheimer, biperideno, cafeína, chocolate. O TCSREM pode também pode ocorrer em pacientes com lesões anatômicamente especificamente localizadas nas regiões de tronco cerebral responsáveis pelo controle do tônus neuro muscular durante o sono REM submetidos à circulação extracorpórea no período pós-operatório. A forma se cundária é geralmente aguda e os sintomas geralmente desaparecem com a eliminação do medicamento24 • A prevalência de TCSREM está em torno de 0,50%, sendo mais comum no sexo masculino na faixa etária superior a 50 anos, mas pode ocorrer em todas as idades 1 • O TCSREM pode ser a manifestação inicial de doenças degenerativas do tipo alfa-sinucleopatias, como síndrome de Parkinson, atrofia de múltiplos sistemas e demência dos corpúsculos de Lewy25 . Também foi constatado que ocorre em doenças neurológicas, como doença de Joseph-Machado, lesões vasculares ponto-mesencefálicas, síndrome de Guillan-Barré, encefalopatias mitocondriais, hidrocefalia de pressão normal, paralisia supranuclear progressi-
va, doença de Gilles de la Tourette, esclerose múltipla e síndrome de Down. Cerca de 50-70 % dos portadores de TCSREM crônica evoluem para doença de Parkinson ou demência de corpúsculos de Lewy em 1O a 15 anos25 • A história característica de onirismo e outros sintomas de sono e vigília em homens idosos é altamente sugestiva do diagnóstico de TCSREM atingindo cifras de 92%24 • Contudo, onirismo não é específico e nem patognomônico de TCSREM. Onirismo pode estar presente também em sonambulismo, terror noturno, despertares confusionais, transtorno dissociativo durante o sono, SAOS e epilepsia parcial 25 . O diagnóstico definitivo é realizado com a história médica de onirismo e o padrão ouro é a confirmação pela vídeo-EEG-polissonografia com alterações da atividade EMG no canal de mento na polissonografia durante o sono REM 1 • Onirismo e alterações EMG são critérios suporte CITS de 2005 para diagnóstico de TCSREM. Os achados da polissonografia no TCSREM são 1: ausência de atonia muscular ou excesso de atividade fásica muscular durante o sono REM; aumento da quantidade de sono de ondas lentas para a idade. O diagnóstico diferencial do TCSREM deve ser feito com parassonias do sono NREM, epilepsia e transtornos psiquiátricos24 • Transtorno de pesadelo O pesadelo é um sonho que cursa com despertar do sono REM com manifestações autonômicas e sensação de ansiedade. Os conteúdos dos pesadelos são desagradáveis ou assustadores, podendo causar insônia, dificuldade para retornar ao sono, queixas relacionadas à interrupção do sono, como irritabilidade, sonolência e alterações cognitivas26 • Pesadelos são mais comuns em crianças e mulheres, diminuindo a frequência com a idade. Os fatores predisponentes incluem uso de medicamentos (1 -dopa, propranolol), retirada de antidepressivos e hipnóticos, abuso de álcool. O diagnóstico de transtorno do pesadelo requer ausência de histórico psiquiátrico 26. Mudanças nos padrões de sonhos podem ter significados clínicos. Uma pessoa jovem que apresenta um aumento de sonhos bizarros, pesadelos, sonhos vívidos pode estar desenvolvendo um episódio psicótico. Em pessoas mais idosas pode significar o início de TCSREM. O tratamento inclui medidas gerais de higiene de sono e agentes farmacológicos. Os mais usados são hipnóticos benzodiazepínicos ou não benzodiazepínicos (zolpidem), agentes supressores de sono REM como os antidepressivos tricíclicos, inibidores da recaptação da serotonina ou inibidores da monoamino -oxidase26.
Parassonias do sono N REM Transtornos do despertar Apresentam-se como um amplo espectro clínico desde despertar com confusão mental, sonambulismo e terror noturno e/ou mescla dessas entidades 1 • São conside-
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rados como um despertar parcial do sono NREM com ativação parcial do sistema motor ou autonômico e apresentam certas características em comum27 como: histórico familiar positivo; surgem do sono delta (estágios 3 e 4 do sono NREM); ocorrem no primeiro terço do ciclo do sono; há amnésia parcial ou total para o evento; são co muns na infância e diminuem ou desaparecem com a idade; fatores desencadeantes incluem febre, privação de sono, uso ou retirada de álcool, retirada de benzodiazepínicos, uso ou retirada de antidepressivos, ansiedade e síndrome da apneia obstrutiva do sono 1'28 . Fatores genéticos da regulação e maturação do SNC levam ao fenô meno de "despertar parcial" de sono delta27. O diagnóstico dos transtornos do despertar é clínico, mas a polissonografia está indicada em casos de dúvida diagnóstica, necessidade de diagnóstico diferencial com epilepsia, resistência ao tratamento, e deve ser realizada com derivações para eletroencefalografia27. Medidas gerais de higiene de sono e medidas de segurança no ambiente de sono são fundamentais. Os agentes farma cológicos mais usados são os benzodiazepínicos, os antidepressivos tricíclicos e as drogas antiepilépticas28 . A medicação antidepressiva é a primeira opção, que causa menos dependência, tolerância e sedação28 . Em muitos pacientes, os ataques ocorrem em surtos que duram dias ou semanas, necessitando de tratamento apenas nesses períodos28. Os transtornos do despertar mais comuns são: Despertar com confusão mental ou embriaguez do sono
Mais comum em crianças, esse fenômeno é caracterizado por despertar com confusão mental, fala arrastada, amnésia ao evento e, eventualmente, sudoresé7. Comportamento inadequado ou choro inconsolável e agressividade (principalmente se houver manipulação) podem estar presentes. Os episódios duram de 1 até 10 minutos e não há ativação autonômica, exceto sudorese28 . Sonambulismo
Caracterizam-se por comportamentos motores semiestruturados, estereotipados automáticos como sentar-se na cama, levantar e até deambular de olhos abertos com uma expressão facial vaga e distante, terminando com o paciente voltando para a cama ou permanecendo em outro ambienté7. A duração dos episódios pode ser de alguns minutos. A atividade autonômica é mínima e se o paciente é acordado há confusão mental. É mais comum em crianças entre 4 e 8 anos. A persistência de sonambulismo após os 1O anos de idade ou o início na vida adulta está fortemente associado com histórico familiar ou pessoal de parassonias28 . Terror noturno
O despertar é súbito e o paciente emite um grito estridente e agudo, sentando-se na cama com uma fácies de extremo terror; há manifestações autonômicas mui-
to intensas com taquicardia, taquipneia, vermelhidão de pele, sudorese e midríase27. Os episódios duram de 5 a 20 minutos. A persistência ou aparecimento na idade adulta tem as mesmas implicações fisiopatológicas que o sonambulismo28 . Comportamentos violentos durante o sono
Esse transtorno é uma outra variante clínica de apresentação de despertar com confusão mental em adultos. Foi descrito originalmente em adultos jovens do sexo masculino com comportamento sexual normal durante a vigília, mas que apresentavam histórico pessoal ou familiar de transtornos do despertar do sono NREM. Manifestações violentas durante o sono29 podem ocorrer como consequência de parassonias de sono REM e NREM ou de crises epilépticas. A maioria dos casos de violência durante o sono ocorre em pacientes do sexo masculino com associação de terror noturno e sonambulismo. Episódios de violência durante o sono se apresentam como episódios geralmente não recorrentes, respondem favoravelmente ao tratamento e são bem mais frequentes do que estimados. Os fatores predisponentes são histórico familiar, presença de antecedente pessoal de parassonia na infância, sexo masculino, histórico de abuso sexual, desajuste familiar, abuso de drogas e lesão cerebral. Privação de sono, fatores de piora da qualidade de sono (álcool, estresse, ansiedade, dores) outros transtornos que causam fragmentação do sono como SAHOS desencadeiam episódios de violência durante o sono em indivíduos suscetíveis29 . Enurese
Enurese (micção noturna) é um transtorno de sono mais prevalente na faixa pediátrica (até seis anos de idade) e no sexo masculino (25%) do que no feminino (15%), mas 2% dos adultos apresentam esse transtorno 1. Antecedentes de história positiva de enurese na família são comuns. Os episódios de emissão urinária ocorrem em todos os estágios do sono, porém mais frequentemente no sono estágio li do NREM e menos em sono REM 1. O controle vesical noturno se completa até o quinto ano de vida e a ausência de controle miccional após essa idade é considerada anormal. A enurese é classificada como primária quando não houver fatores orgânicos e engloba cerca de 90% dos casos1, sendo que vários fatores são sugeridos como causa: fatores genéticos, comportamentais, fatores como redução da capacidade residual vesical, anormalidades reativas da dinâmica vesical, retardo no amadurecimento do controle vesical ou menor nível plasmático do hormônio antidiurético vasopressina30 • Enurese secundária pode ser a manifestação de convulsões noturnas ou de um transtorno urológico ou disfunção medular. Estudo polissonográfico é indicado nos casos de histórico atípico ou em casos que não respondem às terapias convencionais. O tratamento é realizado
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com medidas comportamentais e uso de antidepressivos tricíclicos como imipramina, clomipramina, doxepina, amitriptilina, nortriptilina nas doses de 10 a 50 mg 30 • Transtorno alimentar relacionado com o sono
Esse transtorno caracteriza-se pela ocorrência de episódios de ingestão alimentar durante o sono associados com despertares confusionais e amnésia parcial ou totaP 1,32 • Os episódios alimentares ocorrem após certo intervalo de sono NREM, estágios N2 ou N3. São episódios alimentares caracteristicamente sem controle e desorganizados. O padrão dessa ingestão alimentar inclui misturas aberrantes de alimentos, doces, salgados, condimentos, alimentos frios, congelados ou quentes, elementos químicos como detergentes, cinzas, ração de animais 1• Não há ingestão de álcool, frutas ou alimentos de baixo teor calórico. Os episódios com alteração do nível de consciência ocorrem sem cuidados adequados no preparo de alimen tos. Risco de incêndio, queimaduras de pele (mãos, tronco ou rosto) e mucosa oral, riscos de engasgos, aspiração, lesões odontológicas, cortes ou danos materiais podem ocorrer 1 • Sintomas sistêmicos como ganho de peso (vários quilos de 3 a 32 kg), anorexia matinal, desconforto abdominal, hipercolesterolemia, hiperglicemia, crises de gota são comuns32 . Comportamentos purgativos clássicos durante a vigília não são relatados, mas pode haver restrição calórica para compensar o ganho de peso. Cerca de 65% dos casos ocorrem com o sexo feminino, com início entre 22 e 30 anos de idade, e 50% dos pacientes apresentam histórico de outros transtornos do sono 1 • Algumas subpopulações desenvolvem episódios alimentares noturnos causados pelo zolpidem31 ,32 . Comportamento sexual durante o sono
Esse transtorno é uma outra variante clínica de apresentação de despertar com confusão mental em adultos. Foi descrito originalmente em adultos jovens do sexo masculino com comportamento sexual normal durante a vigília, mas que apresentavam histórico pessoal ou familiar de transtornos do despertar do sono NREM. As manifestações caracterizam -se por atos sexuais, assédio sexual ou masturbação com vocalização obscena e ocorrem durante um despertar confusional sem recordação ou consciência dos atos. Houve resposta terapêutica satisfatória com doses baixas de clonazepam33 . Não há descrições de comportamento sexual durante o sono a partir de sono REM ou associado ao TCSREM.
Síndrome das pernas inquietas A síndrome das pernas inquietas (SPI) foi descri ta clinicamente em 1945 pelo neurologista sueco Karl Axel Ekbom34,35 , sendo considerada atualmente uma
síndrome neurológica muito prevalente e ainda bastante desconhecida da classe médica34, 35 . O Grupo de Estudos Internacionais da Síndrome das Pernas Inquietas (International Restless Leg Syndrome Study Group IRLSSG)3\ a CITS-2005 1 e a Opinião de Especialistas Brasileiros de 2007 consideram critérios mínimos essenciais para o diagnóstico de SPP5: • presença de uma necessidade compulsiva, irresistível e intensa de movimentar os membros, geralmente acompanhada de ou causada por sensações sensoriais desagradáveis ou dolorosas nas pernas entre o tornozelo e o joelho; • os sintomas começam ou pioram em períodos de repouso, com o paciente sentado ou deitado; • atividade física, exercícios e massagens levam ao alívio temporário dos sintomas; • o quadro apresenta característica circadiana, ocorrendo no horário noturno antes de dormir durante a no ite. Em casos especiais ou duvidosos, como, p. ex., em pacientes com transtornos cognitivos ou em crianças que não podem fornecer dados subjetivos confiáveis para o histórico pode-se utilizar os critérios de suporte e critérios associados para o diagnóstico da SPP,34,35 . São critérios de suporte para o diagnóstico de SPI: • histórico familiar positivo de SPI em parentes de primeiro grau, a prevalência é 3 a 5 vezes maior em parentes de primeiro grau; • presença de movimentos periódicos de membros durante o sono (MPMS) e durante a vigília (MPMV). São critérios associados para o diagnóstico de SPP6: • evolução é clínica variável mas tipicamente crônica e progressiva. Algumas populações podem apresentar um quadro evolutivo mais protraído com períodos de remissão de até 30 dias. Em populações de pacientes com mais de 50 anos de idade, os sintomas são mais abruptos e progressão, mais rápida; • sintomas de dificuldades de iniciar o sono por causa de desconforto nos membros inferiores ocorrendo à noite; • exame físico normal nas formas idiopáticas e familiar, exceto nos casos deSPI associadas com comorbidades (neuropatia, esclerose múltipla). As alterações sensoriais podem ser descritas de diversas maneiras: queimação, formigamento, cãibras, comichão e pontadas36 • Há relatos de sensações de desconforto nas pernas (menos usualmente como dor), em geral localizadas profundamente nas panturrilhas, em cerca de 90% dos casos, mas 50% dos pacientes desenvolvem desconforto nos membros superiores37. Os sintomas pioram ou ocorrem exclusivamente em repouso (deitado ou sentado) com uma clara variação circadiana na apresentação dos sintomas, piorando ao entardecer e à noite com repouso antes do período principal de sono, mesmo quando há alterações dos horários de sono como no caso dos trabalhadores em turnos 35 . Privação de sono
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pode agravar os sintomas. O desconforto físico nos membros causa insônia inicial, insônia de manutenção e numerosos despertares durante a noite, que deterioram a qualidade do sono. Os sintomas de desconforto de membros inferiores geralmente melhoram ou desaparecem por volta das 3 a 4 horas da madrugada, quando o portador consegue obter algumas horas de sono. Desenvolvimento de sintomas depressivos e desajustes sociofamiliares são comuns36 . Quase 100% da população com SPI apresenta uma resposta clinicamente significativa com agentes dopaminérgicos quer precussor L-Dopa ou agonista dopaminérgico em doses baixas comparativamente às doses utilizadas no tratamento da doença de Parkinson35 . A sensibilidade é de 80 a 88% e a especificidade é de 100%. O sintoma urgência se correlaciona positivamente com a resposta depaminérgica35. Nenhuma das condições médicas diagnóstico diferencial conhecidas respondem ao agente dopaminérgico. A prevalência deSPI classificada como clinicamente significativa (sintomas moderados ocorrendo pelo menos duas vezes por semana) é menor do que 2% em adultos caucasianos da Europa ocidentaP7. A prevalência aumenta na terceira idade; sua proporção é de 1,5 mulher/homem. Cerca de 63 % dos pacientes com SPI têm um parente afetado, e, destes, 39% são parentes em primeiro grau. Algumas famílias com casos de SPI de início anterior aos 35 anos de idade apresentam um padrão de herança autossômica dominante35 . A teoria mais atual e mais abrangente sobre a fisiopatologia da SPI rege que há uma deficiência de ferro no sistema nervoso central (SNC), causada por mecanismos genéticos no transporte de ferro iônico por meio da barreira hem ato encefálica ou a deficiência de ferro é secundária a um estado ferroprivo periférico (anemia, insuficiência renal dialítica) ou combinação dos dois fatores. A redução de ferro no SNC mais precisamente na substância negra é muito bem comprovada por estudos de autópsia e neuroimagem sendo um fato bem estabelecido na SPP5. A redução do ferro no SNC leva a uma redução da densidade do receptor dopaminérgico D2 no estriado, e da atividade da proteína transportadora de dopamina (DAT) para a membrana pré-sináptica e leva a um aumento da atividade da tirosina hidroxilase que transforma a tirosina em dopamina. Portanto, ao contrário da doença de Parkinson que é uma doença hipodopaminérgica, há na SPI um estado hiperdopaminérgico sináptico com um aumento de 4 vezes da amplitude da variação circadiana da dopamina extracelular. Há igualmente uma despopulação e dessensibilização dopaminérgica receptor D2 pós-sináptico e portanto uma redução da neurotransmissão dopaminérgica pós-sináptica basaP5. A neurotransmissão dopaminérgica pós-sináptica basal já reduzida, descompensa na janela de tempo circadia-
na noturna de redução fisiológica da atividade fisiológica dopaminérgica, dando vazão aos sintomas circadianos de SPI que são corrigidos pela ação de precussores ou ago nistas dopaminérgicos com afinidade pelo receptor D2. A terapia dopaminérgica da SPI com doses terapêuticas de agentes dopaminérgicos D2 associada ao estado hiperdopaminérgico basal causa ao longo do tratamento complicações relacionadas exclusivamente ao tratamento dopaminérgico D2 representadas pela aumento e pelo transtorno do controle do impulso35 . A aumentação é uma intercorrência clínicamente significativa e exclusiva do tratamento da SPI com agentes dopaminérgicos e geralmente aparece depois de seis meses de tratamento34'35 . Ocorre mais precocemente com levodopa e é geralmente mais branda e tardia com agonistas dopaminérgicos. Entre os fatores de riscos para a ocorrência de aumentação estão o uso de doses acima de 200 mg de levodopa, formas secundárias da SPI, ferritina sérica e liquórica baixa, perda crônica de ferro e o nível de gravidade do quadro clínico pré-tratamento como nas formas diárias e refratárias. Sexo e idade não repre sentam riscos de aumentação. Não há relatos de aumentação com antiepilépticos ou opioides (exceção ao tramadoi). A aumentação é portanto um fenômeno dependente do agente farmacológico dopaminérgico, quer seja precursor ou agonista dopaminérgico37 . Transtorno do controle do impulso é uma complicação do tratamento da SPI com agentes dopaminérgicos em doses terapêuticas37. O transtorno do controle do impulso é caracterizado pela presença de atividades repetitivas, excessivas e compulsivas que interferem no funcionamento de uma vida normal (jogo patológico, sexo compulsivo, compras compulsivas, ingestão alimentar compulsiva, uso compulsivo de medicamentos, punding). A subpopulação em risco são: a) homens; b) personalidade do tipo que busca por novidades; c) histórico de depressão; d) histórico de estresse; e) histórico de abuso de substâncias; f) histórico de insatisfação com a qualidade do sono. A prevalência do transtorno do controle do impulso na SPI é desconhecida, mas comportamentos sexuais e jogo patológico situa-se entre 4 e 6%. Uma média de 9,50 meses de decurso de tempo do início dos sintomas de transtorno do controle do impulso após o início do tratamento com agentes dopaminérgicos sinaliza que é necessária a monitorização a longo prazo para realização do diagnóstico36. O diagnóstico da SPI é clínico e obtido pelo histórico do paciente e do acompanhante. A presença dos quatro itens descritos é o requisito mínimo para o preenchimento dos critérios diagnósticos 1' 35'37 . A investigação de alterações do metabolismo de ferro com dosagem sérica de ferro, níveis de ferritina (< 40 ~g/L é considerado anormal) e a capacidade total de ligação de ferro deve ser rea-
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lizada em todos os pacientes para excluir SPI secundária à deficiência de ferro. Cerca de 80 a 90% dos pacientes com SPI primária ou secundária apresentam movimentos periódicos dos membros durante o sono associados a despertares e fragmentação do sono, contribuindo para a morbidade da SPP7 .
Transtornos mentais e sono Apesar de não existir uma medida específica de sono objetiva ou subjetiva que possua um alto grau de especificidade para qualquer diagnóstico psiquiátrico, diferentes padrões polissonográficos de sono associam-se com categorias de diagnósticos psiquiátricos diferentes.
Bruxismo O bruxismo é listado na CITS-2005 como transtorno do movimento relacionado com o sono 1 • Bruxismo é caracterizado por uma atividade involuntária esterotipada e repetitiva da musculatura mastigatória, resultando em contato dentário anormal e sintomas e sinais locais e sistêmicos38. A prevalência de bruxismo durante o sono (BS) é semelhante para os dois sexos, ocorrendo em 14 a 17% das crianças, reduzindo-se para 12% nos adolescentes, e aco metendo 8% dos adultos e 3% dos idosos. BS pode ser primário (sem causas) ou secundário38. O BS secundário está associado com transtornos neurológicos (Tabela VI). O diagnóstico clínico é feito por meio da história do paciente, cônjuge e principalmente pelo exame odontológico. Os critérios de diagnóstico são: • hipertrofia da musculatura mastigatória; • sinais de desgaste dentário ou reabsorção óssea; • sintomas locais (dor na ATM, dor local, sensibilidade térmica etc.); • ruídos de ranger de dentes durante o sono. A polissonografia documenta atividade muscular mastigatória anormal principalmente durante o estágio N1 e N2 do sono NREM, microdespertares com ativação autonômica antecedendo a atividade muscular, alterações da constituição do sono ou achados polissonográficos característicos de SAOS 1 •
Tabela VI
Causas associadas ao bruxismo secundário
Demências Doença de Parkinson Discinesia tardia Distonia oromandibular - síndrome de Meige Síndrome de Gilles de la Tourette Retardo mental Transtorno do déficit de atenção e hiperatividade Hemorragia cerebela r Transtornos alimentares (anorexia, bulimia nervosa) Medicamentos (antidepressivos, bloqueadores dopaminérgicos, metilfenidato, flunarizina, lítio, agentes antiarrítmicos) Doenças médicas (fibromialgia, refluxo gastroesofágico) Diversas drogas (nicotina, cocaína, anfetaminas, álcool) Transtornos primários do sono (síndrome da apneia obstrutiva do sono, roncos primários, SPI e transtorno comportamental de sono REM)38
Tran stornos do humor Sintomas de transtorno de sono estão fortemente ligados com a fisiopatologia e quadro clínico dos transtornos do humor. Insônia ou hipersonia fazem parte dos critérios diagnósticos de depressão. Na maioria dos casos de transtorno do humor prevalecem os sintomas de insônia, sonolência excessiva ou a co-existência de sonolência excessiva com sintomas de insônia. A associação de sintomas de sonolência diurna e de insônia é mais prevalente no sexo feminino. Alguns fenó tipos apresentam um desregulamento do padrão de sono oscilando ora com insônia, ora com sonolência diurna ao longo da evolução clínica do transtorno do humor39 . Tanto as manifestações subjetivas como insônia, sonolência excessiva e os achados de EEG de sono mais fre quentemente se desenvolvem antes do início do quadro clínico de transtornos do humor e persistem nos períodos de resposta e remissão se perpetuando cronicamente em 45% dos casos39 . O fator mais preditivo de depressão em uma população com insônia não é o subtipo de insônia, quer ela seja inicial, intermediária, terminal ou combinações. O grau de intensidade dos sintomas de transtorno de insônia, o número de despertares, a redução do tempo total de sono durante a noite de sono são os fatores de maior correlação com o diagnóstico de um transtorno depressivo em uma população sem moléstias orgânicas associadas que possam estar causando o quadro depressivo e a insônia. O transtorno de insônia por si só aumenta os riscos de desenvolvimento, recaída, recorrência do transtorno depressivo maior e está associado com riscos de suicídio. Portanto, o transtorno de insônia possui um valor preditivo e prognóstico no quadro de transtorno de humor40•4 1. Sintomas de transtorno de insônia precedem em cerca de 41% dos casos o primeiro episódio de transtorno do humor40 • Insônia é sempre um fator de risco para o primeiro episódio de depressão ao longo do ciclo de vida em espaços de tempo de 6 meses até 3 anos ou até décadas em uma taxa de 3,5 vezes maior do que uma população geral sem insônia4 1. Insônia com duração de duas semanas é preditivo de transtorno depressivo maior e idem insônia com 3 ou mais despertares noturnos por noite é preditivo de transtorno depressivo. Outros estudos mostram que a insônia precede o início do transtorno depressivo em até cinco semanas41 •• Cerca de 38 a 50% dos ca-
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sos de depressão permanecem com sintomas residuais de insônia apesar do tratamento específico para depressão. A insônia é um fator preditivo de recaídas e de recorrência e nessa população com insônia residual e nos casos de depressão recorrente4°. A piora dos sintomas de transtorno de insônia são preditivos de recaída do transtorno depressivo 40 '4 1 • A frequência de noites de insônia impacta negativamente na evolução do quadro depressivo 42 • Portanto os pacientes com depressão e insônia apresentam respostas clínicas mais pobres e lentas ao tratamento tradicional com antidepressivos apesar de um grau de aderência adequado. A presença de insônia bloqueia a melhora dos sintomas depressivos e coloca-se como uma barreira para o caminho da remissão do quadro depressivo 40 • Em resumo, a insônia é mais do que uma sintoma associado no início do quadro, mas uma entidade independente que impacta na evolução, no resultado do tratamento e representa riscos de recaídas41 . Cerca de 90% dos pacientes com TDM apresentam combinações de sintomas de insônia, alterações da continuidade de sono, despertar precoce, sono fragmentado, sono de má qualidade, pesadelos ou sonhos sem conteúdo afetivo nenhum e fadiga diurna.Despertar precoce cerca de duas horas antes do horário habitual associado com humor deprimido é característico do TDM principalmente nos pacientes mais idosos42 . Cerca de 15% dos pacientes podem apresentar um aumento do tempo total de sono e sonolência excessiva diurna, principalmente mulheres jovens com sintomas atípicos de depressão 39 • A maioria dos pacientes com TDM com sintomas de insônia não apresenta evidências de sonolência no teste das latências múltiplas do sono. Apesar de quase 20 anos de pesquisa e de abundância de dados na literatura, não há um conjunto de marcadores de arquitetura de sono que diferencie populações normais de populações com transtorno depressivo maior. Exceção feita para alguns estudos com populações idosas. Os três marcadores apresentam melhor índice de discriminação são latência do sono, latência de sono REM e densidade de sono REM 39 • Entre 60 e 90% dos pacientes com TDM com fenótipo transtorno de insônia apresentam marcadores fisiológicos característicos do sono, sendo mais comuns nos adultos e idosos do que nas faixas etárias mais jovens 39 • Esses marcadores de padrão de sono não estão presentes na população de depressivos com queixas de hipersonia. São descritas quatro classes de alterações do EEG de sono. São elas: Marcadores de estado - alterações da quantidade de sono 41.43
Os itens polissonográficos a seguir e os sintomas de transtorno de insônia são classificados como marcadores de estado porque estão presentes apenas durante a ativi-
dade clínica do transtorno afetivo e desaparecem uma vez alcançada a recuperação ou remissão com o tratamento farmacológico e comportamental efetivo: a) redução do tempo total de sono; b) redução da eficiência de sono; c) aumento da latência de sono (principalmente em pacientes jovens); d) aumento do número de despertares breves; e) aumento do tempo de vigília após o início do sono de ondas lentas (se correlaciona com índices de hiperatividade do eixo HPA); f) despertar precoce duas horas mais cedo do que o horário desejado. Marcadores de traço - alterações da quantidade, da dinâmica e distribuição do sono de ondas lentas41 .42 a) Redução da quantidade de sono de ondas lentas
que é maior no sexo masculino do que no feminino pareado para idade; b) presença de sono de ondas lentas depois do primeiro episódio de sono REM na primeira metade da noite; c) inversão da distribuição de sono REM e sono delta com a presença de sono de ondas lentas na segunda metade da noite e mais sono REM na primeira metade da noite; d) redução da taxa de sono de ondas lentas TSOL (este índice é calculado dividindo-se a quantidade de sono de ondas lentas do primeiro ciclo de sono pela quantidade de sono delta do segundo ciclo de sono). Em fenó tipos normais a taxa de sono de ondas lentas é> 1,60 enquanto na população com depressão a taxa de sono de ondas lentas é< 1,10. A taxa de sono de ondas lentas possui valor prognóstico no tratamento e reflete riscos de recorrência do quadro depressivo. A combinação da redução do tempo total de sono, da redução da eficiência de sono aliadas com a redução dos índices de continuidade e dinâmica do sono de ondas lentas correlacioanam-se com queixas de sono não reparador e fadiga durante o período de vigília43 . Estudos com análise espectral do EEG de sono mostram uma redução da atividade na faixa de frequência delta indicando que no TDM há uma redução do fator homeostático do sono contribuindo com os sintomas de insônia. Alterações da homeostase do sono de ondas lentas e dinâmica da atividade de ondas lentas40 - AOL (s/ow wave
sleep activity) a) Redução da taxa de acúmulo e dissipação da AOL
(exclusiva do sexo masculino); b) maior atividade espectral relativa de ondas lentas no segundo episódio de sono de ondas lentas do que no primeiro episódio de sono de ondas lentas; c) aumento da atividade alfa durante o sono de ondas lentas que é inversamente proporcional a atividade de ondas lentas.
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Alterações de sono REM (marcador de traço) 42 A 3 a) A redução da latência de sono REM (menor do
que 60 ou 70 minutos) é dependente da idade. A latência de sono REM será mais curta nos quadros com maior intensidade dos sintomas depressivos e na faixa geriátrica. Os SOREMPs podem ocorrer em casos de sintomas depressivos muito intensos, psicóticos ou geriátricos. A prevalência de latência de sono REM reduzida é de 20 a 80% da população de pacientes deprimidos e de 20% na po pulação geral. SOREMP não é um achado específico da depressão unipolar ou do transtorno bipolar nas fases depressiva ou de mania; b) redução da latência do segundo episódio de sono REM; c) aumento da duração do primeiro episódio de sono REM; d) aumento da densidade de movimentos oculares rápidos (MOR) durante os episódios de sono REM. O aumento da densidade de MOR é indepentente da idade e portanto é um marcador de traço depressivo mais estável ontogeneticamente melhor do que a latência de sono REM. O aumento da densidade de MOR se correlaciona com o grau de intensidade dos sintomas depressivos e prognóstico da depressão; e) redução da latência para os primeiros movimentos oculares rápidos durante o sono REM; f) relação entre atividade de ondas lentas e latência de sono REM (quanto menor a AOL, mais curta será a latência de sono REM). As medidas de sono REM variam em função da idade42. Reduções da latência de sono REM não ocorrem na infância e n a juventude até a metade da quarta década de vida. A latência de sono REM será mais curta na faixa geriátrica por causa da redução da quantidade de sono de ondas lentas. As medidas de sono REM descritas acima correlacionam-se com o pico de ACTH e do pico de cortisol matinal e não são exclusivas de quadros depressivos primários podendo estar presentes em outros subtipos depressivos e em depressão secundárias. Em pacientes idosos a latência de sono REM é ainda mais curta podendo ser menor do que 15 minutos 42. Quanto maior o componente endógeno no quadro depressivo, mais intensas e duradouras serão as alterações de sono com sintomas de sono e achados de polissonografia. Insônia terminal, anedonia, redução de apetite, humor não reativo ou seja sintomas endogenomórficos se correlacionam com as alterações de sono REM descritas acima. Os achados do EEG de sono descritos acima não são específicos de um subtipo de transtorno afetivo 41. Além da depressão maior, essas alterações estão pre sentes em populações com depressão reativa, depres são psicótica, depressão secundária, transtorno bipolar tipo I mais do que no do tipo li. Portanto, estas alterações do sono não são altamente específicas do transtorno depressivo maior. Contudo, quanto mais intensa a
sintomatologia da depressão mais frequente será a queixa de insônia e mais acentuadas serão as alterações da arquitetura do sono com aumento da latência de sono, aumento do tempo total de vigília e redução do tempo total de sono ou seja, o grau de intensidade dos sintomas depressivos se correlacionam mais com a frequên cia de noites de insônia e com as alterações da arquitetura do sono 41 . Os marcadores de traço persistem nos pacientes em recuperação e remissão do quadro depressivo e de insônia mesmo após a retirada do antidepressivo. Podendo estar presente em parentes saudáveis de primeiro grau de pacientes depressivos 40. No caso de parentes de primeiro grau, o marcador de traço afetivo significa suscetibilidade individual para quem nunca apresentou sintomas afetivos. Em pessoas com histórico de transtorno depressivo em fase de remissão ou recuperação, os marcadores de traço representam vulnerabilidade para recaídas ou recorrência para TDM ou transtorno bipolar56 • Sintomas de transtorno de insônia em pacientes com transtorno do humor é preditivo de recaída e recorrên cia. Esses achados sugerem que a insônia crônica residual com transtorno do humor deve ser valorizada e tratada de uma form a adequada e independente42. Os achados de marcadores de traço são marcadores de vulnerabilidade ligados a mecanismos genéticos. As alterações polissonográficas de sono, descritas acima, ocorrem principalmente na fase ativa do transtorno depressivo e são chamadas de marcadores de estado. Elas refletem um processo neurobiológico relacionado com o mecanismo do transtorno depressivo 39 • Mesmo em pacientes considerados em remissão ou recuperação do transtorno depressivo, essas alterações polissonográficas de sono podem persistir. A persistência de marcadores de estado (presentes apenas durante a atividade do TDM), como continuidade do sono, aumento da densidade de movimentos oculares rápidos em sono REM e sintomas residuais de transtorno insônia, indica que o transtorno não entrou em remissão com o tratamento ou uma remissão incompleta. Os marcadores de estado correlacionam-se mais fortemente com o risco de recaídas e recorrência do TDM. Esses estudos sugerem que na subpopulação de depressivos em remissão, a ausência de achados objetivos e polissonográficos de arquitetura de sono apresentam menores riscos de recaídas do que na população com sintomas de sono.
Transtorno afetivo bipolar Pacientes com transtorno afetivo bipolar em fase de mania apresentam uma sensível redução da necessidade e quantidade de horas de sono podendo passar alguns dias sem dormir e sem sinais de fadiga ou sonolência. Insônia pode ser o fator desencadeador ou um dos sinto-
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mas precoces do episódio de mania. Sintomas intensos de insônia são associados com pior prognóstico do transtorno bipolar. Os mesmos achados de EEG de sono constantes no transtorno depressivo maior são encontrados no episódio de mania39 •
Distimia Pacientes com distimia apresentam queixas de insônia inicial, sono de má qualidade, despertares durante o sono, fadiga e sonolência leve durante o dia. O quadro clínico de sono na distimia e na insônia psicofisiológica são semelhantes, sendo um dos diagnósticos diferenciais importantes. A intensidade de sintomas afetivos na distimia auxilia na diferenciação com a insônia psicofisiológica.Os mesmos achados de EEG de sono constantes no transtorno depressivo maior são encontrados em 25 a 50% dos pacientes com distimia39 •
Anti depressivos De modo geral, diferentes classes de antidepressivos podem provocar sintomas de insônia ou sonolência em voluntários saudáveis, podendo aliviar ou até intensificar sintomas de sono nos quadros de depressão 44 • Os antidepressivos inibidores da monoamino -oxidase A e B do tipo irreversíveis (fenelzina e tranilcipromina) e do tipo reversíveis (meclobemida) podem causar insônia ou sedação. Os antidepressivos tricíclicos como a doxepina, amitriptilina, imipramina, clomipramina apresentam efeitos sedativos importantes. O efeito sedativo é imediato ao início do uso do medicamento e em razão do perfil antihistamínico -1, antiadrenérgico alfa- 1, anticolinérgico e pelo bloqueio dos receptores SHT2. Os agentes inibidores seletivos da recaptação da serotonina (fluoxetina, sertralina, paroxetina, citalopram, excitalopram, fluvoxamina) causam sintomas persistentes de insônia em 5 a 35% dos pacientes. Mais especificamente, a fluvoxamina pode induzir sintomas de síndrome do atraso da fase do sono. Os agentes duplos, inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS) e da noradrenalina como a venlafaxina e o milnaciprano causam insônia em 4 a 20% e sonolência em 7 a 31% dos pacientes. Antidepressivos com perfil agonista dopaminérgico (bupropiona) causam insônia em 5% a 20%. Não existem estudos com duloxetina. Trazodona, mirtazapina e nefazodona apresentam efeitos sedativos mediados pelo bloqueio dos receptores histarnínico-1 e bloqueio dos receptores serotoninérgicos STH2. A trazodona e mirtazapina (em doses baixas) são mais sedativas do que a nefazodona44. Uso ou retirada de antidepressivos pode desencadear pesadelos, paralisia do sono e transtorno comportamental de sono REM e despertares confusionais.Os an-
tidepressivos tricíclicos, principalmente aqueles com maior ação serotoninérgica como a clomipramina e os ISRS podem causar ou intensificar sintomas de transtorno dos movimentos periódicos de membros durante o sono, bruxismo, causar ou intensificar sintomas de síndrome das pernas inquietas e transtorno comportamental de sono REM. Exceção é feita a bupropiona e duoloxetina44 .
Transtornos de ansiedade Os principais diagnósticos dessa categoria são o transtorno de ansiedade generalizada, fobia social, transtorno de estresse pós-traumático e transtorno de pânico que atingem a taxa de prevalência de cerca de 25% da população ao longo da vida4 5 • Sintomas de sono fazem parte dos critérios diagnósticos de transtorno de ansiedade generalizada e de transtorno de estresse pós-traumático. Dificuldade para iniciar e manter o sono desenvolve-se geralmente simultaneamente com os sintomas de ansiedade diferentemente dos transtornos do humor nos quais os sintomas de sono podem se desenvolver até meses antes do início do quadro clínico. Apenas 18% dos casos de ansiedade são precedidos de insônia. Contudo, a frequente associação de transtorno depressivo maior como comorbidade nos transtornos ansiosos provoca uma acentuação dos sintomas de sono ou até mesmo reproduz os aspectos clínicos e de EEG de sono característicos dos transtornos afetivos4 5. Transtorno de ansiedade generalizada
Estima-se que 60% dos pacientes com transtornos de ansiedade generalizada apresentam sintomas crônicos de insônia e sono de má qualidade4 5. Queixas como preocupação constante e dificuldade de relaxar dificultam o início do sono, múltiplos despertares e sintomas de fadiga durante a vigília são comuns. Aumento da latência de sono, redução da eficiência do sono, redução da quantidade de sono profundo e de sono REM são achados comuns e inespecíficos do EEG de sono no transtorno de ansiedade generalizada. Os mesmos achados de EEG de sono constantes no transtorno depressivo maior são encontrados em pacientes com ansiedade generalizada e depressão associada como comorbidade45. Transtorno de estresse pós-traumático (fEPD
O TEPT é um transtorno de ansiedade que surge após um evento traumático envolvendo o paciente. O sintoma de sono mais comum é a insônia, mas o sintoma de sono mais específico do TEPT é a presença de pesadelos recorrentes relacionados ao evento aterrorizante em cerca de 80% dos casos. A marca registrada do TEPT é a réplica exata do evento traumático no conteúdo do pesadelo. O TEPT na sua fase inicial (semanas até meses após o evento com horror) é a causa mais comum de pesadelos em adultos, sendo que pesadelos é o sintoma mais re-
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corrente e resistente ao tratamento podendo persistir mesmo após o controle dos demais sintomas de TEPT. Em alguns casos os pesadelos persistem com a mesma inten sidade, porém menor frequência e os sonhos neutros e agradáveis praticamente desaparecem ou se empobrecem intensamente tornando -se breves, curtos e sem conteúdo simbólico e afetivo-emocional46 . Despertares conscientes a partir de pesadelos com ansiedade e intensa ativação autonômica (taquicardia, sudorese), recordação do conteúdo dos pesadelos (horror) sem onirismo são as manifestações principais que diferenciam o pesadelo do TEPT de terror noturno, ataques de pânico noturno, transtorno comportamental de sono REM ou crises epilépticas durante o sono. Os pesadelos do TEPT podem emergir de sono REM e menos comumente de sono NREM (estágio I e II) imediatamente após um período de sono REM. Além dos pesadelos recorrentes com memórias reais do evento aterrorizante, fobia de dormir e privação crônica de sono também são comuns46. Estudos polissonográficos demonstram aumento do número de despertares e da quantidade de movimentos oculares durante o sono REM e pausas respiratórias. As alterações do EEG de sono constantes nos transtornos afetivos podem estar presentes no TEPT se houver co morbidade com depressão. Transtorno de pânico
Os ataques de pânico durante o sono são semelhantes aos ataques durante a vigília. Entre 35 e 45% dos pacientes com síndrome do pânico apresentam episódios noturnos e cerca de 3 a 4% dos pacientes apresentam ataques de pânico exclusivamente durante o sono47 . Ataques de pânico durante o sono ocorrem na transição de estágio II para sono delta na primeira metade da noite. Há ativação fásica e súbita do sistema nervoso autonômico, mas não há relatos de sonhos e o paciente desperta plenamente consciente e sem amnésia. Os ataques de pânico durante o sono causam privação deste que podem desencadear mais ataques diurnos e noturnos. Cerca de 70% dos portadores de síndrome do pânico apresentam insô nia inicial ou fobia de dormir. As alterações da arquitetura do sono na síndrome do pânico sem depressão associada como comorbidade não são específicas47 •
Transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) Portadores de TOC geralmente não apresentam alterações da arquitetura do sono. Achados inespecíficos de sono são diminuição da eficiência e aumento da latência do sono45 • Contudo, em alguns pacientes, os comportamentos obsessivos podem interferir com a rotina noturna do início do sono causando uma insônia inicial pela execução de rituais obsessivos ou após despertares durante a noite. Há relatos de casos de associação de TOC com transtorno comportamental do sono REM 29 •
Benzodiazepínicos A ação sedativa dos benzodiazepínicos pode causar sedação e sonolência excessiva diurna e a sua retirada pode induzir episódios de despertares confusionais27 • O efeito relaxante neuromuscular dos benzodiazepínicos pode intensificar ou causar sintomas compatíveis com os transtornos respiratórios relacionados com o sono48 . Outros efeitos a longo prazo dos benzodiazepínicos são tolerância e dependência que serão mais evidentes e se desenvolvem mais rapidamente com drogas com maior afinidade pele receptor GABA-A, menor meia-vida e maior tempo de uso. Sintomas de insônia rebote ou síndrome de abstinência com tremor, náuseas, sudorese, ansiedade, irritabilidade e até crises convulsivas podem ocorrer na descontinuação abrupta de BZDs.
Esquizofrenia Os sintomas de sono variam amplamente em intensidade e variedade em consequência do nível de atividade da doença49 • Durante os surtos psicóticos, os pacientes podem ficar diversas noites sem dormir por conta de níveis elevados de ansiedade e agitação. Pode haver também alterações do ritmo circadiano com inversão total do ciclo sono-vigília, trocando o dia pela noite 1• Piora dos sintomas de insônia, pesadelos, aparecimento de alucinações hipnagógicas podem ser um sinal precoce de um novo surto psicótico. Pacientes esquizofrênicos clinicamente estáveis apresentam sintomas de insônia inicial, múltiplos despertares e aumento do tempo total de vigília após o início do sono. Inversão total do ciclo sono-vigília com a presença de sono durante o dia e vigília durante a noite, padrão de sono polifásico (diversos períodos de sono com menos de duas horas de duração) e práticas de má higiene de sono com cochilos longos podem persistir em pacientes crônicos contribuindo mais ainda com o isolamento social49 • O EEG de sono mostra redução da eficiência de sono, redução da latência do sono REM e aumento da densidade de sono REM 1 • As anormalidades de sono delta são as mais intensas e específicas da esquizofrenia, variando de reduções moderadas até ausência total mesmo em pacientes jovens. Redução de sono delta se correlaciona com o grau de sintomas negativos, redução do volume cerebral e aumento do volume do terceiro ventrículo. A intensidade de sintomas de insônia e as alterações de sono REM correlacionam-se com sintomas positivos como alucinações, delírios ou desagregação 49 • Os efeitos dos antipsicóticos típicos e atípicos no sono de pacientes esquizofrênicos também variam de acordo com a fase da doença. Em geral aumentam os índices de continuidade de sono na fase aguda. Os atípicos como a olanzapina e clozapina aumentam a quantidade de sono delta. Os típicos com perfil bloqueador dopami-
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nérgico podem causar transtorno dos movimentos periódicos de membros e síndrome das pernas inquietas; essa última deve ser diferenciada de acatisia nos pacientes em uso de antipsicóticos típicos. Os antipsicóticos atípicos podem induzir obesidade e secundariamente SAHOS49 • Alterações do sono relacionadas com comorbidades secundárias como depressão ou uso de álcool e tabaco podem ocorrer na esquizofrenia.
Antipsicóticos Agentes típicos como a tioridazina e clorpromazina são mais sedativos que o haloperidol. Os antipsicóticos atípicos sedativos ( olanzapina, quetiapina, clozapina e respiridona) apresentam efeitos antidopaminérgicos D -2, anti-histamínicos- 1, anti-SHT2A, antimuscarínico e antiadrenérgico alfa- 1 gerando sedação e sonolência excessiva diurna44 • Todos os antipsicóticos típicos e atípicos podem causar ou intensificar sintomas de transtorno dos movimentos periódicos de membros durante o sono, causar ou intensificar sintomas de síndrome das pernas inquietas 44 • Olanzapina e quetiapina são os mais sedativos e apresentam muito menos efeitos colaterais extrapiramidais do que os antipsicóticos tradicionais44 •
Transtornos alimentares Anorexia nervosa (AN) e bulimia nervosa (BN) acometem principalmente adolescentes do sexo feminino, uma população com baixa prevalência de sintomas de sono. Contudo, sintomas de sono nessa população são relativamente comuns39 • Pacientes com anorexia nervosa com peso abaixo do ideal redução do tempo total de sono e aumento do tempo de vigília. O EEG de sono mostra redução do sono REM, redução de sono delta e redução da eficiência de sono que são relacionados com o grau de desnutrição. Após a regularização do peso, há uma melhora da insônia e normalização dos achados EEG de sono. Pacientes com bulimia nervosa não apresentam um padrão específico de EEG de sono. Outros transtornos primários do sono associados podem estar associados com transtorno alimentares. Há casos isolados de sonambulismo em pacientes com BN e a prevalência do transtorno alimentar relacionado com o sono (TARS) é de 8 a 17% na população portadora da TA39 • A prevalência de bruxismo durante o sono parece ser maior em pacientes com BN do que na população geral. A síndrome alimentar noturna recentemente descrita como sendo um transtorno alimentar circadiano diferencia-se do TARS em diversos aspectos. Os episódios de ingestão alimentar excessiva ocorrem exclusivamente à noite entre o jantar e o horário de início do sono, e essa ingestão é consciente, organizada e não bizarra como no TARS, não há consumo de alimentos hipercalóricos e não há associação com outros transtornos de sono 1,39 •
Transtornos do sono relacionados ao uso de álcool Álcool é a substância mais frequentemente usada como hipnótico nos EUA. Em torno de 13% da população adulta dos EUA usa álcool cerca de duas vezes por semana para produzir sedação como hipnótico apesar dos riscos de desenvolver dependência50• O abuso de álcool pode levar a diferentes alterações agudas e crônicas do sono classificadas com transtorno do sono induzido por uma substância. A intoxicação aguda tipicamente produz um efeito sedativo imediato acompanhado de um aumento do sono NREM (estágio II) e redução do sono REM e sono delta na primeira metade da noite50 • O metabolismo hepático do álcool é rápido (meia-vida de cerca de 60 minutos) produzindo uma abstinência relativa na segun da metade da noite com sono de má qualidade, despertares, pesadelos, taquicardia, sudorese, náuseas e riscos de quedas e fraturas 50 • A ingestão de álcool por pessoas com fatores de risco para SAHOS pode desencadear ou piorar roncos, acentuar significativamente o número e a duração das pausas respiratórias e o grau de dessaturação da oxi-hemoglobina48 • A piora da SAHOS é dose-dependente e mais acentuada em homens acima de 60 anos de idade, aumentando significativamente o risco de um evento cardiovascular durante o sono48 • Além disso, o álcool usado durante o dia piora as manifestações psicomotoras relacionadas com a sonolência diurna, aumentando o risco de acidentes. Até 27% da população de alcoólatras crônicos sem outras comorbidades médicas ou psiquiátricas apresentam in sônia que reforça o hábito de uso de álcool como sedativo. Sintomas subjetivos (por exemplo, aumento da latência de sono e pesadelos recorrentes) e sintomas objetivos, como a má qualidade do sono, são fortemente preditivos de recaídas de abuso de álcool como sedativo antes de dormir e uso de álcool durante a vigília50 • Outras manifestações relacionadas com a intoxicação aguda são: manifestações parassônicas como, por exempio, despertares confusionais, terror noturno, sonambulismo, inércia do sono, enurese, sonilóquio, transtorno comportamental de sono REM 50• Durante o período de abstinência aguda há uma intensa fragmentação do sono, redução do sono delta e rebate de sono REM com sonhos e pesadelos, registro de sono REM sem atonia e até onirismo. Alterações subjetivas e objetivas do sono com redução do sono delta e rebote de sono REM podem persistir mesmo após meses de abstinência. As manifestações de EEG de sono características dos transtornos afetivos podem estar presentes se houver depressão como comorbidade. O tratamento dos transtornos do sono relacionado com o uso de álcool representa um enorme desafio. A alta prevalência de recaídas e o alto risco de desenvolvimenta de dependência de hipnóticos benzodiazepínicos tornam essa classe de medicação um risco. Uso de antidepressivos sedativos e medicações para controlar o impul-
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so de ingestão de álcool associados com medidas comportamentais parecem ser os mais seguros e eficientes para o tratamento desse transtorno quando não houver outra comorbidade mental associada50.
Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TOA H) TDAH é o transtorno mental mais prevalente da infância e da adolescência com uma taxa de prevalência estimada de 3 a 12% com predomínio no sexo masculino. Diversos estudos indicam sintomas de transtornos de sono em portadores de TDAH, causados também pelo uso de medicação de estimulantes para o tratamento. Os sintomas comportamentais de sono mais comuns relatados pelos pais são 51 : sono agitado, dificuldades para iniciar o sono, despertares noturnos, tempo total de sono mais curto, pesadelos, enurese, sonambulismo, bruximo e sonolência excessiva diurna objetiva documentada pelo teste das latências múltiplas do sono. A arquitetura do sono em TDAH mostra alterações muito variáveis51 com aumento do tempo total de vigília, redução da quantidade de sono REM, aumento das latências de sono NREM e REM, sendo que essas não são específicas de TDAH. Contudo, a redução da quantidade de sono REM se correlaciona com os déficits neuropsicológicos diurnos. A relação entre a síndrome da apneia-hipopneia obstrutiva do sono, síndrome das pernas inquietas e transtorno dos movimentos periódicos dos membros relacionado com o sono e TDAH é mais complexa e de suma importância para o tratamento 51 • A prevalência da síndrome da apneia-hipopneia obstrutiva do sono não é maior na população com TDAH do que na população geral, mas há uma associação fenomenológica entre as duas condições. A fragmentação do sono induzida pela pausas respirató rias causa sonolência excessiva e sintomas de hiperatividadé9. Os episódios de dessaturação da oxi-hemoglobina causam sintomas de desatenção e a presença de SAHOS em crianças pré-escolares é fator preditivo de desenvolvimento de TDAH na idade escolar51 • A prevalência de sintomas de pernas inquietas é mais elevada na TDAH do que na população geral. A insônia inicial gerada pelo desconforto sensitivo dos membros associada com a fragmentação do sono causada pela movimentação de membros inferiores causa sonolência excessiva e sintomas de desatenção. O desconforto físico de membros mimetiza os sintomas de hiperatividade durante a vigília52 • Cerca 30 a 50% dos adultos com TDAH apresentavam sintomas de TDAH na idade escolar. Contudo, há poucos estudos em adultos com TDAH. Portanto, o especialista envolvido com o diagnóstico e o tratamento de TDAH principalmente em crianças e em adultos deve ter em mente que sintomas de sono são comuns nessa população. Deve-se pesquisar indícios clínicos de parassonias, bruxismo, síndrome das pernas
inquietas, transtorno dos movimentos periódicos dos membros relacionado com o sono, síndrome da apneia e hipopneia do sono utilizando-se de uma anamnese dirigida, questionários de sono, diários de sono e até polissonografia. O tratamento desses transtornos do sono deve aliviar em parte a sintomatologia de desatenção e hiperatividade, pois a sonolência excessiva diurna em crianças normais pode gerar sintomas de hiperatividade e desatenção 51 •
Considerações finais O reconhecimento dos transtornos primários do sono pelo psiquiatra clínico se faz urgente. Saber identificar, diagnosticar, e conduzir o manejo de um transtorno do sono deve fazer parte da formação dessa especialidade. Além disso, o diagnóstico diferencial, e por vezes, comórbido, entre os diversos transtornos do sono e particularmente os transtornos afetivos e ansiosos é obriga,. , . . ., . tono na pratica ps1qmatnca.
Questões 1. No tratamento farmacológico da insônia é correto afirmar:
a) A mirtazapina é um antidepressivo inibidor da recaptação da serotonina com efeitos sedativos. b) A mirtazapina apresenta maiores efeitos sedativos em doses acima de 30 mg. c) Associação de trazodona com ini bidores da recaptação da serotonina não previne sintomas de insônia. d) Amitripitilina é menos sedativa do que a clomipramina e) A doxepina é um antidepressivo que é ind icado no tratamento da insônia. 2. A insônia crônica tem como principal comorbidade:
a) b) c) d) e)
Acidentes. Abuso de álcool. Sintomas depressivos. Fibromialgia. Sintomas gastrointestinais.
3. É correto afirmar em relação às parassonias primárias:
a) O transtorno comportamental do sono REM em pacientes abaixo de 40 anos de idade é mais comum nas mulheres. b) Choro inconsolável em lactente é considerado parassonia do sono REM. c) Os episódios de transtornos do despertar geralmente ocorre na primeira metade da noite e é acompanhado de amnésia. d) O principal tratamento do transtornos do despertar é prescrição de clonazepam. e) Não tem componente familiar. 4. Durante um ataque de cataplexia. é incorreto afirmar que:
a) Há arreflexia tendínea profunda. b) O ataque pode evoluir com alucinações hipnopômpicas.
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c) A consciência está preservada durante o episódio de cataplexia. d) Pode haver fenômenos motores positivos durante o ataque. e) Pode ocorrer fala arrastada e diplopia. Sobre o transtorno de insônia é correto afirmar: Sintomas de sono não reparador. Queixas de sono de má qualidade e sintomas diurnos. Sintomas de depressão e ansiedade não fazem parte dos critérios de transtorno de insônia. d) Não deve ser necessariamente uma condição crônica. e) Insônia paradoxal não é classificável como transtorno de insônia.
5. a) b) c)
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nanceiro na pre\isão de tun evento futuro. O resultado des')e evento não depende das ações de que m apostou. 'e o resultado final co nfirmat as prcvic;õc~ do :.po~t~dor, o v.1lor empenhado scr.í. retornado, acrescido de um "alor prc-
vi4lmen te combinado. Se o re~uhado fo r difc r~ nte do pre-
A. Figura 1
Jogos de azar existem em diferentes formas fle apresentação,
mas todos envolvem apostas e um grau variado de pa rticipa~ cllo acaso
na produção do resuttado.
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visto, o apostador perde o valor empenhado. Jogar é ao mesmo tempo excitante e alienante. Diversas gravuras que representam a crucificação de Jesus mostram soldados romanos disputando suas vestes nos dados, alheios ao seu sofrimento e a tudo mais a sua volta (Figura 2). As sociedades ocidentais apresentam uma postura em relação ao jogo de azar que oscila periodicamente entre a tolerância e a proibição. O caso do Brasil é ilustrativo. O primeiro registro histórico de jogo de azar no Brasil data de 1784, quando se realizou a primeira "loteria de bilhetes': com o objetivo de angariar fundos para a construção de Vila Rica, antiga Ouro Preto. Em 1892, o Barão João Batista Viana Drummond, fundador do zoológico do Rio de Janeiro, inventou o jogo do bicho para financiar sua pro priedade. Parte da popularidade inicial do jogo do bicho se deve ao fato dele recorrer a imagens e assim contornar o problema do analfabetismo. O jogo do bicho se expandiu na forma de uma loteria ilegal e paralela às loterias oficiais com raízes profundas na cultura popular e infelizmente também na criminalidade. Os cassinos conheceram uma breve popularidade nas décadas de 1930 e 1940, compresença em balneários pelo país afora. Em 1946, o presidente Eurico Gaspar Dutra proibiu os jogos de azar no Brasil numa guinada conservadora, mas poupou as loterias e as corridas de cavalos. Enquanto o jogo permaneceu proibido no Brasil, relatos de caso de jogadores patológicos eram raros, mas o cenário sofreu uma drástica mudança quando casas de bingo foram legalizadas em 1993. Pouco tempo depois, brechas na lei de regulamentação permitiram a entrada disfarçada de caça-níqueis sob a designação de "videobingo': Ao redor do mundo observa-se uma expansão sem precedentes do jogo de azar calcada justamente nesses aparatos eletrônicos de jogo e com ela a preocupação de que, em virtude do acesso maior, mais pessoas vulnerá-
Figura 2
Aos pés do Cristo crucificado, soldados disputam nos dados as suas roupas, indiferentes ao sofrimento alheio. A imagem re trata a profunda alienação que o jogo pode causar.
veis serão expostas aos aspectos nocivos do jogo, tais como: potencial de dependência, perda de controle sobre as apostas, endividamento, sofrimento mental e desajuste social. Atualmente, o jogo de azar passa por novo período de proibição em nosso país, mas após a introdução dos caça-níqueis em nossa sociedade parece que a "caixa de Pandora" foi definitivamente aberta e, mesmo após o veto, casas de jogos eletrônicos operam intensamente nas principais cidades do Brasil. Shaffer e colaboradores2 propuseram uma classificação do comportamento de jogar, dividindo-o em três categorias: • Nível1: engloba os jogadores que jogam sem sofrer consequências adversas, os assim chamados jogadores sociais. • Nível2: reúne os jogadores que já apresentam algum sintoma decorrente de seu envolvimento com jogo de azar; é o chamado jogo-problema. • Nível3: inclui aqueles que preenchem os critérios de diagnóstico do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 4.ed. (DSM-IV-TR) para jogo patológico2. Um quarto grupo foi retirado do nível3, compondo o nível 4; esse nível, por sua vez, corresponde aos jogadores patológicos que procuram por tratamento e apresentam um comportamento ao jogar particularmente grave. Os primeiros dados da prevalência de jogo de azar em nosso país mostram que 12% da população apostaregularmente (pelo menos uma vez por mês), 1% preenche critérios para jogo patológico (JP) e 1,3% para jogo-problema. Comportamento problemático com jogos de azar é mais frequente entre homens do que entre mulheres em uma proporção aproximada de 3:1. Esses números fazem do jogo de azar o comportamento de abuso/dependência mais comum em nossa sociedade depois do tabaco e do álcool. Vários fatores de risco foram associados ao jogo problemático, tais como: sexo masculino, baixa condição socioeconômica, desemprego e baixos níveis de educação3• Jogo problema e JP são considerados mais prevalentes entre as minorias étnicas e religiosas, mas há controvérsias em torno dessa associação. Alguns autores alegam que a vulnerabilidade ao jogo de azar pode estar relacionada a dificuldades na inserção social e não a grupos culturais específicos. Uma série de fatores individuais pode contribuir para o desenvolvimento do JP. Além dos relatos de agregação familiar, estudos apontam para uma herdabilidade genética em torno de 50%4 . Traços de personalidade, particularmente impulsividade, parecem estar envolvidos no início e no desenvolvimento do jogo problemático5, bem como estilos de enfrentamento de problemas (coping) e estilos cognitivos6 • No cenário da psiquiatria, o JP é um diagnóstico ainda em busca de uma classificação mais precisa. Atualmente, encontra-se classificado entre os "Transtornos do Controle dos Impulsos Não Classificados em Outro Local" do
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DSM-IV-TR2, mas sua abordagem e tratamento baseiamse principalmente no conhecimento prévio obtido das dependências. De fato, diversas reivindicações foram feitas para classificar o JP em uma categoria mais ampla, incluindo ambas as formas de dependência química e comportamental. Ao se avaliarem jogadores patológicos, é preciso ter em mente os múltiplos fatores envolvidos e suas complexas interações na origem e na manutenção do jogo nocivo.
Etiologia Como em outros transtornos mentais, supõe-se uma complexa interação entre fatores biológicos e psicológicos na gênese do JP, mas a totalidade desses fatores, a contribuição específica de cada um e os mecanismos de interação entre os mesmos ainda são desconhecidos. Investigações em neuroquímica sugerem o envolvimento das monoaminas transmissoras, noradrenalina, serotonina e dopamina7 • Estudos mostram atividade noradrenérgica elevada em jogadores patológicos, particularmente durante atividade de apostas. Contudo, a natureza transversal das investigações não permite concluir se noradrenalina apenas intermedeia a elevação autonômica observada durante o jogo ou se alguma vulnerabilidade prévia das vias noradrenérgicas predispõe a reações particularmente intensas em contexto de apostas e outras formas de risco8 - 10 • Evidências sugerem atividade serotoninérgica reduzida no sistema nervoso central em JP. Primeiro, foram encontradas concentrações reduzidas do ácido 5-hidróxi-indolacético (5-HIAA), um metabólito direto da serotonina, no liquor de jogadores patológicos comparados a controles normais. Segundo, jogadores patológicos apresentaram elevação da prolactina e relataram uma sensação de "barato" quando ingeriram meta-clorofenilpiperazina (m-CPP), um agonista serotoninérgico. Os autores enfatizaram respostas semelhantes em outros estudos envolvendo portadores de transtorno antissocial de personalidade, transtorno borderline de personalidade e dependência de álcool. Convergentemente, dados indiretos sugerem a participação da dopamina via sistema de recompensa cerebral (SRC) na intermediação das propriedades gratificantes e reforçadoras do jogo de azar. Coerente com a visão de que JP se assemelha do ponto de vista comportamental às dependências, diversos estudos em genética, neuroimagem e psicofarmacologia sugerem o envolvimento do SRC em sua fisiopatologia (Figura 3). Estudos deressonância magnética funcional (RMf) mostram a ativação de diferentes regiões cerebrais dependendo do tipo de tarefa a que são submetidos os indivíduos durante a produção de imagens, geralmente incluindo o córtex órbito-frontal (COF), a amígdala e o estriado ventral, particularmente o núcleo acumbens. O COF tem sido implicado na memorização das contingências de gratificação e a amígdala na associação entre estímulo, gratificação, punição e contex-
Septo
Córtex pré-fJOntal
Nucteus accwnbens
Área tegmental ventral ----'
Figura 3
o mesmo sistema de grallf~.Caq;ao partlopa na f1Sioparolog.a da
dependência de substâncias psicoativas e elo jogo patológíco.
to emocional. Finalmente, a ativação dos estr~ado ventral tem se mostrado diretamente proporcional à magnitude da recompensa antecipada e sua desativação à obtenção da mesma (Figura 4). Quase todas as investigações de JP em gêmeos foram realizadas sobre a mesma amostra, reunida através do Registro de Gêmeos da Guerra do Vietnã (RGV). Investigando 3.359 pares dessa amostra, Eisen e colaboradores demonstraram que fatores genéticos responderiam por 50 a 60% da herança de JP e que a participação dos mesmos se mostrava maior quanto mais grave fosse o quadro clínico. Outros estudos envolvendo o RGV mostraram uma interessante interação entre ambiente e genética, na medida em que fatores ambientais, principalmente acesso facilitado a locais de aposta, respondia por 30% da variação
O
Ganhar Perder
y = 10
Figura 4 Imagem de ressonância magnética funcional mostra região cerebral correspondente ao núcleo acumbens com maior variação de ativação entre ganho e perda durante jogo de cartas. Fonte: Miedl SF et ai. Psychiatry Research: Neuroimaging. 2010;181 :165- 73.
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do comportamento ao jogar no último ano, mas por apenas 13% ao longo da vida. Em outras palavras, o surgimento de JP na vida de um indivíduo parece ser grandemente influenciado pela genética, mas sua persistência é modulada pela permeabilidade ambiental ao jogo. Jogo patológico tem comorbidade frequente com transtornos do humor, dependência de álcool, conduta e traço antissocial de personalidade. Outros estudos de gêmeos do RGV mostraram que JP e transtorno depressivo compartilhavam 34% de fatores genéticos, porém os fatores ambientais eram independentes para cada condição, enquanto JP, dependência de álcool e conduta antissocial compartilhavam até 28% de fatores genéticos. Apesar de expressivo, esse número sugere que fatores específicos para herança de JP precisam ser investigados. Mais ainda, o compartilhamento entre JP e conduta antissocial foi maior na vida adulta comparada à infância e à adolescência, sugerindo que parte dessa associação pode ser secundária ao próprio desenvolvimento de JP. Os estudos de genéti ca molecular reforçam a percepção do envolvimento do SRC em JP. Estudos de genes candidatos sugerem o envolvimento de polimorfismos de ambas as famílias de receptores dopaminérgicos D1/D4 e D2/D3, mais especificamente DRD1 alelo T, DRD4 exon III e DRD2 alelo T, além de polimorfismos da MAO-A, mas não da MAO-B6. Jogo patológico é nitidamente influenciado por fato res contextuais, mas pouco se sabe sobre o impacto de fatores estressantes psicossociais e ambientais no comportamento de jogo. Levantamentos epidemiológicos claramente correlacionam JP e indicadores de solidão (divórcio, separação, viuvez etc.), inserção superficial na comunidade (migração, desemprego etc.), privação financeira e problemas com o sistema legalll. No entanto, a direção da causalidade nesses casos permanece indefinida. Um único estudo investigou eventos traumáticos prévios ao JP 12 na coorte de gêmeos do RGV. JP foi significativamente associado com abuso e negligência infantil, violência doméstica testemunhada e ataque físico. Além disso, fatores genéticos e familiares mediaram parcialmente o processo entre exposição traumática e desenvolvimento posterior de sintomas de jogo. No jogo envolvendo adolescentes, o papel de fatores psicossociais é ainda mais acentuado. Em uma amostra de estudantes da 7a série ao 3° ano do ensino fun damental, descobriu-se que o jogo problemático estava associado com falta apoio de familiares e colegas, uso de substâncias, problemas de conduta, problemas familiares e envolvimento dos pais com jogo e uso de substâncias13.
Quadro clínico, diagnóstico e comorbidades Psicopatologia Conforme foi observado anteriormente, o diagnóstico de JP acompanha o raciocínio geral das dependências. É preferível entender tal raciocínio, que não mudou
nos últimos 40 anos, a memorizar os critérios do DSM para JP que são revisados a cada edição do DSM. A adaptação de JP ao modelo das dependências foi questionada, mas até o momento nenhum modelo alternativo se mostrou melhor 14 • O modelo da dependência prediz que o estímulo potencialmente causador de dependência altera o estado subjetivo do indivíduo, modificando a atividade cerebral, por meio da estimulação ou depressão da atividade nervosa. O jogo é considerado uma atividade estimulante que, em muitos aspectos, pode mimetizar os efeitos do abuso de estimulantes 15 • Segundo a teoria geral das dependências 16 , para que uma substância ou comportamento possa causar dependência, ela deve preencher duas necessidades subjetivas: (A) compensar um nível de ativação nervosa (arousal) acima ou abaixo do ideal; e (B) reparar, ainda que momentaneamente, uma auto imagem comprometida promovendo alienação ou sensação de força e poder 17. A exposição recorrente ao estímulo causará dois tipos de adaptações cerebrais: ( 1) mecanismos compensatórios que diminuem o impacto do estímulo a fim de proteger a atividade cerebral e (2) sensibilização que propicia resposta comportamental rápida ao estímulo e a outros estímulos relacionados. O processo de sensibilização estabelece uma associação com sinais ambientais, tornando o comportamento de busca pelo estímulo uma característica progressivamente dominante na conduta do indivíduo. Em termos clínicos, esse ciclo se traduz em três grupos de sinais e sintomas: • tolerância ao efeito do estímulo e sintomas de abstinência se a estimulação for abruptamente interrompida ou diminuída, o que não permite readaptação em tempo hábil aos mecanismos compensatórios descritos acima; • perda do controle sobre o comportamento de autoadministração causada por sensibilidade progressiva ao estímulo; • consequências negativas que se originam da persistência do comportamento. Essa lógica de três grupos de sinais e sintomas aplica-se a qualquer comportamento de dependência, independentemente do fato de esse comportamento estar relacionado à substância ou ao comportamento. Contudo, JP apresenta um quarto grupo que abrange as características mais intimamente relacionadas ao comportamento do jogo. São elas o escapismo e o "jogar para recuperar" dinheiro que foi perdido em apostas anteriores. Ambos os comportamentos encerram o paradoxo de tentar mitigar efeitos que o próprio jogo causou, ou pelo menos agravou. O escapismo, jogar para lidar com estados emo cionais negativos, está presente em outras dependências, mas por ser particularmente relevante em JP foi inclusive alçado à condição de critério diagnóstico no DSM. Críticas foram feitas sobre o fato de o diagnóstico de JP se basear em suas consequências, estabelecendo uma lógica circular que produz uma coerência interna aparente, porém falsa (o jogo é patológico porque é nocivo, então ele
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é nocivo porque é patológico). Em situações específicas, a presença ou a ausência de danos ou prejuízos provocados pelo jogo pode não retratar a patologia do jogo - em um meio social extremamente intolerante ao jogo, o ato de apostar provocará danos, mesmo se o indivíduo não apresentar outras características de JP. Por outro lado, uma família tolerante e benevolente, com dinheiro suficiente para dispor, pode não exercer pressão sobre um jogador que, por sua vez, pode apresentar todos os outros sinais de uma relação patológica com o jogo. Na verdade, o problema real não é o dano ocasionado pelo jogo, mas sim o fato de que o jogo é autorreforçado, apesar de quaisquer outras consequências negativas. De fato, a persistência do jogo diante de prejuízos crescentes é, ao mesmo tempo, o fenômeno mais desconcertante e mais comum na clínica de JP. As características mencionadas acima foram todas contempladas nos critérios diagnósticos para JP adotados internacionalmente. Contudo, características adicionais têm sido consideradas na pesquisa e na clínica do JP, são elas: a avidez (tradução do inglês craving, ou fissura, como é coloquialmente relatada pelos pacientes), perturbações nos processos de tomadas de decisão e as distorções cognitivas a respeito de eventos aleatórios e probabilidades de ganho no jogo. A fissura é um fenômeno central nas dependências e um desafio para o tratamento das dependências. Ela representa um desejo persistente, que surge em picos e pode durar anos após a interrupção do comportamento. Koob 18 definiu a fissura como a memória de experiências prazerosas do comportamento dependente sobreposta a um estado afetivo negativo. Em dois estudos independentes, o desejo pelo jogo foi asso ciado com depressão e declínio de afetos positivos durante a abstinência nas primeiras semanas de tratamento 19•20 . Em ambos os estudos, a fissura de jogadores patológicos por jogo era mais frequente, mais intensa e mais difícil de resistir do que a fissura de alcoolistas por álcool. No JP as apostas são estimuladas pela esperança de ganhar, em uma súbita virada da sorte, uma quantia significativa de dinheiro que possa reverter uma situação financeira desesperadora. De maneira geral, jogadores patológicos parecem tomar decisões com base nas consequências imediatas, ignorando os efeitos tardios, isto é que com as probabilidades sempre contra o apostador a tendência a longo prazo no jogo é perder e não ganhar dinheiro. Bechara21 chamou isso de "miopia do futuro'~ Ele sugere que um desequilíbrio entre dois sistemas relacionados, o sistema impulsivo baseado no corpo estriadoamígdala e o sistema reflexivo baseado no córtex ventromedial, é responsável pelo comprometimento dos processos de decisão. Esse modelo prediz duas possibilidades: (A) um sistema impulsivo hiperativo domina o sistema reflexivo, estabelecendo uma sensibilidade demasiada à recompensa; ou (B) um sistema reflexivo hipoativo é incapaz de fornecer uma perspectiva temporal quando o contexto demanda uma decisão.
No entanto, a sensibilidade à gratificação imediata e a falta de perspectiva temporal podem não ser os únicos fatores responsáveis por decisões ruins. Outra possibilidade é que jogadores patológicos observam os resultados dos jogos de azar e subtraem falsas conclusões baseadas em erros lógicos. Nos anos 1970, autores como Langer demonstraram como um simples jogo de cara ou coroa pode produzir uma ilusão de controle por meio de sequências específicas de resultados. Sharpe e Tarrier22 sugerem que tais erros ou distorções cognitivas são o elo entre dois mecanismos de condicionamento presentes no jogo, o operante e o clássico. Inicialmente, fatores ligados ao condicionamento operante (vitória, entusiasmo, alívio de um humor negativo etc.) estimulam a persistência no jogo. Com as apostas recorrentes, as vitórias ocasionais são associadas a eventos que ocorrem simultaneamente ou temporalmente próximos (p. ex., apostar em uma certa hora do dia, numa combinação específica de números, pressionar o botão da máquina com o polegar etc.), ocasionando dois tipos de pensamento distorcido: ilusões primárias de controle (o jogador acredita ser capaz de manipular o jogo e os aspectos ambientais a fim de obter o resultado desejado) e ilusões secundárias de controle (o jogador acredita ser capaz de interpretar os sinais do jogo e do ambiente que predizem o resultado). Essas distorções cognitivas fomentam expectativas não realistas de vitória e mais investimentos no jogo. Por fim, a re -experiência frequente dos efeitos psicofisiológicos do jogo consolida um processo de condicionamento clássico, estabelecendo uma associação entre sinais ambientais e o ato de jogar. O contato com esses sinais trariam à tona as memórias de vitórias anteriores e o desejo de jo. gar ma1s uma vez. Toneatto23 catalogou diversas variantes de distorções cognitivas relacionadas ao jogo: crenças supersticiosas (incluindo amuletos, rituais e estados particulares da mente que podem favorecer a vitória) e análises tendenciosas dos resultados do jogo. Os jogadores lidam com a sorte e o azar como unidades distintas, ambas sujeitas a transmissão e contágio (p. ex., passar a mão nas costas de um jogador que já experimentou uma vitória ou evitar o contato com alguém que está em uma maré de "azar"). A "falácia do jogador" e o aprisionamento são dois exemplos de distorções interpretativas - em ambos os casos, o jogador não reconhece que o resultado de cada aposta independe de resultados prévios ou futuros. No caso da "falácia: o jogador analisa os resultados anteriores e os compara à probabilidade esperada. Se determinado resultado estiver abaixo do esperado - p. ex., se os números pares saíram menos vezes que os ímpares na roleta - o jogador conclui que nos próximos lances haverá uma probabilidade maior de sorteio de números pares para manter a proporção esperada entre números pares e ímpares. Na distorção por aprisionamento, o jogador acredita que, depois de perdas sucessivas, ele deve continuar jogando, pois não pode abrir mão
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do dinheiro e do esforço investidos ou simplesmente porque um período de vitórias terá que ocorrer para compensar as perdas anteriores.
História natural e evolução do jogo patológico Jogadores Anônimos (JA), os primeiros relatos clínicos e o DSM afirmam que o JP é um transtorno crônico e progressivo. Contudo, contribuições mais recentes apontam para a existência de recuperação natural entre alguns jogadores patológicos e sugerem uma frequência maior de curso intermitente para jogadores problemáticos e patológicos24 . Nos anos 1970, o Dr. Robert Custer fundou a primeira unidade terapêutica para jogadores patológicos em Brecksville, Ohio. Com base em sua experiência clínica, ele propôs uma evolução de JP dividida em três estágios: fases de ganho, perda e desespero. Mais tarde, Rosenthal acrescentou um quarto estágio chamado de fase de "desistência ou abandono" 25 . É comum jogadores relatarem um período inicial de ganhos. Isso pode ocorrer porque às vezes no começo é dada preferência a jogos nos quais habilidade e experiência ainda podem influenciar, mesmo que parcialmente, o resultado (caso das cartas e das corridas de cavalo), ou simplesmente porque é mais fácil se lembrar de grandes somas de dinheiro ganhas isoladamente, do que de múltiplas e pequenas perdas contínuas que se fossem somadas igualariam ou superariam as vitórias eventuais. A fase de perda frequentemente começa com uma maré de azar que, mais cedo ou mais tarde, é experimentada por qualquer jogador assíduo, ou com um incidente bizarro, que torna uma vitória prevista em uma perda (um cavalo quebra a perna pouco antes de atravessar a linha de chegada, o dealer ou crupiê retira do baralho a única carta que poderia dar a vitória ao adversário). Outras vezes, a mera percepção de que o saldo bancário está negativo e que o jogo parece menos lucrativo e mais pesado sobre o orçamento do que costumava ser é suficiente para que a visão de si mesmo como um vencedor seja duramente golpeada, deflagrando um padrão de apostas maiores e mais arriscadas para reversão das perdas financeiras26. Jogadores de pôquer se referem a essa deterioração do comportamento de jogo como "entrar em tilt" ou simplesmente tiltar. Episódios de perda de controle e mentira para encobrir as perdas se tornam frequentes, aprofundando o abismo entre o jogador e a família. Nesse momento, ele se volta para os outros para lidar com obrigações financeiras urgentes, prometendo a interrupção do jogo em troca. O jogador patológico entra na fase de desespero quando o dinheiro de vários empréstimos é perdido no jogo e não há mais linhas de crédito disponíveis. Seu comportamento imprudente e irresponsável torna-se notório e ele passa a considerar o suicídio como uma "saída honrosà'27. A busca pelo tratamento é mais provável nessa fase do que
em outras. Os jogadores que procuram ajuda chamam esse momento de "chegar ao fundo do poço': Nesse ponto, o jogador depara-se com três possibilidades: tenta diminuir ou parar de jogar sozinho, procurar ajuda especializada, ou progredir para a fase final de abandono. Essa última fase, proposta por RosenthaF5, representa a cronificação do jogo quando a vitória não é mais uma meta, os laços sociais são postos de lado e manter a atividade de jogo é a única coisa que importa. Contudo, diante das novas evidências, essa cronificação de JP parece um evento infrequente. Um estudo recente baseado em uma grande amostra de jogadores provenientes da comunidade constatou que menos de 30% dos indivíduos que sempre preencheram critérios para JP em anos anteriores continuavam preenchendo no ano vigente da pesquisa24. Com base em duas amostras comunitárias internacionalmente representativas de jogadores patológicos, Slutske28 concluiu que o curso de JP pode ser descrito em três possibilidades: variável, crônico e episódico. Na amostra do NESARC, o padrão mais comumente identificado foi um único episódio de JP por toda a vida (61 %), com duração de um ano ou menos. Os jogadores com mais de 1 episódio de JP relataram durações variáveis, desde um mês a décadas. Slutske e colaboradores29 acompanharam uma amostra de jogadores problemáticos jovens (de 18 a 29 anos de idade) e verificaram que a incidência, prevalências do jogo problemático no ano anterior e por toda a vida, permanecia estável desde a adolescência até a fase adulta jovem; porém em nível individual o jogo problemático mostrava-se transitório e episódico. Assim, as fases de Custer ainda podem ter significado clínico, mas os jogadores problemáticos podem alternar períodos de abstinência com movimentos osci!antes de ida e volta pelos estágios de vitória, perda e desespero. O inexorável avanço até JP crônico (se não tratado) previsto pela fase de abandono de Rosenthal pode ser aplicado apenas a uma minoria. Outro aspecto do curso de JP considerado é a rapidez com que o jogo passa de um comportamento social para um quadro problemático no indivíduo. As primeiras contribuições nesse sentido enfatizaram o papel desempenhado pelo sexo (gênero) na determinação da velocidade de evolução do jogo. Entre jogadores que buscaram ajuda, os jogadores do sexo feminino avançavam mais rápido que suas contrapartes masculinas, desde o princípio do jogo até o início de problemas relacionados a essa atividade, com intervalos de tempo variando de 6 meses a 2 anos30 • Em geral, as mulheres começavam ajogar mais tarde que os homens, mas pelo fato de elas desenvolverem problemas mais rapidamente, a busca de ambos pelo tratamento ocorre mais ou menos com a mesma idade, usualmente em torno dos 45 anos de idade. Além do gênero, tipos de jogos foram relacionados ao maior potencial para causar dependência e evolução mais rápida para JP. Jogos capazes de manter um nível de excitação
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contínua têm maior risco de incitar apostas maiores e perda de controle. Isso pode ser obtido associando-se o jogo com algum evento contínuo, em que o resultado seja conhecido no final - o caso da corrida de cavalo, ou abreviando-se o tempo entre a realização da aposta e a observação do resultado, o que permite mais reapostas (caso dos caça-níqueis, videobingos, videopôquer e máquinas afins). Em dois estudos, a preferência pelo videojogo foi associada com evolução mais rápida para JP 31. Dessa forma, os jogadores do sexo feminino podem estar sob particular risco de evolução rápida para problemas relacionados ao jogo, em virtude dos fatores associados ao gênero em si e da maior preferência pelo videojogo em comparação aos homens. Apenas uma minoria dos jogadores patológicos procura tratamento para seus problemas. Portanto, é importante estudar tanto o que motiva a busca pelo tratamento como o que adia a sua procura. Suurvali e colaboradores32 conduziram uma revisão sobre os motivadores para solucionar o problema do jogo por si mesmo ou por meio de ajuda específica. Os jogadores que buscam ajuda diferem daqueles que resolvem o problema sozinhos no sentido de que, entre eles, o dano relacionado ao jogo (questões financeiras, problemas de relacionamento e emoções negativas, inclusive "chegar ao fundo do poço") era a razão mais frequente para tentar se abster do jogo. Os jogadores que resolvem o problema sozinhos relatavam mais frequentemente que o jogo se tornou incompatível com mudanças recentes no ambiente ou em seu estilo de vida. Também era mais provável que eles interrompessem o jogo por meio de autoavaliação e tomada de decisões. Vale a pena notar que os jogadores que buscam tratamento têm mais consciência das consequências negativas do jogo, mas têm mais dificuldade de reconhecer as chances reduzidas de ganhar dinheiro através do jogo e tomar uma decisão pautada nessa avaliação. Esse fato dá suporte às técnicas de intervenção motivacional e reestruturação cognitiva propostas para tratamento do JP.
tivo recorrente que não é melhor explicado por episódios maníacos ou hipomaníacos. Para ser diagnosticado como jogador patológico, um indivíduo deve preencher, no mínimo, 5 dos 1O critérios descritos na Tabela I. Como descrito anteriormente, nota-se o paralelo entre os critérios 2 e 4 e os conceitos de tolerância e abstinência em dependência de substâncias. Os critérios 1 e 3 marcam a perda de controle tanto cognitiva quanto comportamental, respectivamente. O critério 5 representa o escapismo e o 6 o comportamento de "jogar para recuperar". Os critérios restantes caracterizam a deterioração psicossocial e financeira progressivas.
Escalas de rastreio e diagnóstico A South Oaks Gambling Screen (Escala de Rastreio de Jogo de South Oaks, SOGS34) é uma ferramenta de triagem de JP baseada nos critérios do DSM-III. Contudo, essa ferramenta correlaciona-se bem com as versões seguintes do DSM, especialmente nas populações clínicas35• Por ser uma das primeiras escalas de jogo e em virtude de sua natureza flexível (a escala pode ser aplicada como uma entrevista semiestruturada ou como uma escala de autorrelato), a SOGS ainda hoje é o instrumento mais popular para a avaliação de JP (Figura 5). As questões iniciais so-
Tabela I
Critérios diagnósticos para jogo patológico
A. Comportamento de jogo maladaptativo, persistente e recorrente, indicado por cinco (ou mais) dos seguintes quesitos: 1. Preocupação com o jogo (p. ex., preocupa-se com reviver experiências de jogo passadas, avalia possibilidades ou planeja a próxima parada, ou pensa em modos de obter dinheiro para jogar). 2. Necessidade de apostar quantias de dinheiro cada vez maiores, a fim de obter a excitação desejada. 3. Esforços repetidos e fracassados no sentido de controlar, reduzir ou cessar o JOgo. 4. lnquietude ou irritabilidade quando tenta reduzir ou cessar o jogo.
Critérios diagnósticos O termo Jogo Patológico foi proposto em 1980 à publicação do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - 3. ed. (DSM-III) e consolidou em critérios operacionais o que a cultura popular já designava como jogo compulsivo. Na revisão seguinte da terceira edição, o DSM-III-R, os critérios diagnósticos de JP fo ram submetidos a extensa revisão 33 • Do DSM-III-R ao atual DSM-IV-TR, ocorreram poucas mudanças na conceitualização de JP e de seus critérios operacionais e, apesar das diferenças estruturais entre o DSM-III e suas versões subsequentes, JP vem sendo diagnosticado de forma semelhante desde 1980, a despeito de sucessivas revisões dos procedimentos diagnósticos. No DSM-IV-TR, o JP é definido como um comportamento de jogo mal-adapta-
5. Joga como forma de fugir de problemas ou de aliviar um humor disfórico (p. ex., sentimentos de impotência, culpa, ansiedade, depressão). 6. Após perder dinheiro no jogo, frequentemente volta outro dia para ficar quite ("recuperar o prejuízo'} 7. Mente para familiares, para o terapeuta ou para outras pessoas, a fim de encobrir a extensão de seu envolvimento com o jogo.
8. Comete atos ilegais, como falsificação, fraude, furto ou estelionato, a fim de financiar o jogo. 9. Coloca em perigo ou perde um relacionamento significativo, o emprego ou uma oportunidade educacional ou profissional por causa do jogo. 1O. Recorre a outras pessoas com o fim de obter dinheiro para aliviar uma situação financeira desesperadora causada pelo jogo. B. O comportamento de jogo não é mais bem explicado por um episódio maníaco.
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AS GRANDES SÍNDROMES PSICOPATOLÓGICAS
SOGS- The South Oaks Gambling Screen 1. Por favor. indique quais das formas de jogo descritas a seguir você já praticou ao longo de sua vida. Para cada tipo assinale uma resposta: • nunca pratiquei; • menos de uma vez por semana; .
• uma vez por semana ou ma1s. uma vez menos que nunca uma vez por por semana ou ma1s pratiquei semana a. c ) c ) c ) Jogou baralho. a dinheiro b. c ) c ) c ) Corrida de cavalos (no jóquei. ou em balcão de apostas. ou com um agenciador de apostas) C. c ) c ) c ) Rodeios. briga de galo ou outros animais d. c ) c ) c ) Jogo do bicho e. c ) c ) c ) Apostar em esportes (bolão) f. c ) c ) c ) Jogos com dados. a dinheiro g. c ) c ) c ) Foi a cassino (legal ou ilegal) ) ) ) h. Jogou em loteria (loto. sena. loteria federal. loteria esportiva) c c c . ) ) ) Jogou em loteria instantânea (raspadinha) I. c c c . J. c ) c ) c ) Jogou em loterias veiculadas pela TV (papa-tudo, tele-sena ou outros) I. c ) c ) c ) Jogou bingo m. c ) c ) c ) Jogou videopôquer ou similar (carros de corrida no lugar das cartas tradicionais) n. c ) c ) c ) Caça-níquel ou outra máquina de jogo O. c ) c ) c ) Jogou em ações ou outro investimento financeiro de risco (commodities. mercado de capitais) p. c ) c ) c ) Sinuca a dinheiro q. c ) c ) c ) Jogou boliche. bocha. golfe ou outro jogo que requer habilidade, a dinheiro r. c ) c ) c ) Outro 1 (especificar): S. c ) c ) c ) Outro 2 (especificar): t. c ) c ) c ) Outro 3 (especificar): 2. Qual foi a maior quantia de dinheiro que você já apostou em apenas um dia? ( ) nunca apostei ( ) 1 real ou menos ( ) de 1 a 1O reais C ) de 1O a 100 reais C ) de 100 a 1.000 reais C ) de 1.000 a 10.000 reais ( ) mais de 10.000 reais 3. ( ( ( (
Seus pais têm ou tiveram problemas com jogo ? ) Meu pai e mi nha mãe jogam ou jogaram muito ) Meu pai joga ou jogou muito ) Minha mãe joga ou jogou muito ) Nenhum deles joga ou jogou muito
4. Quando você joga, com que frequência você retorna outro dia para recuperar o dinheiro que você perdeu? C ) Nunca c ) Algumas vezes (menos que a metade das vezes em que perdi) c ) Na maior parte das vezes em que perdi
c
) Sempre que perdi
5. Você já afirmou estar ganhando dinheiro com o jogo sem realmente estar. quando na verdade, você estava perdendo? ( ) Nunca (ou nunca joguei) C ) Sim, menos da metade das vezes em que perdi C ) Sim. a maior parte das vezes 6. Você acredita que alguma vez já teve um problema com jogo ? C ) Não C ) Sim, no passado, mas não agora C ) Sim
7. Você já jogou mais do que pretendia ? Figura 5
C
)
sim
Escala de Rastreio de Jogo de South Oaks, SOGS.
C
) não
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8. Pessoas já criticaram seu hábito de jogar ?
C ) sim
C
)
não
9. Você já se sentiu culpado pela forma como você joga ou por causa das consequências do seu jogo? 1O. Você já quis parar de jogar. mas achou que não conseguiria ?
C ) sim
C
)
C
)
sim
C
) não
não
11 . Você já escondeu comprovante de aposta. cartão de loteria. dinheiro de jogo ou outros sinais de jogo de sua esposa. filhos ou outra pessoa importante para você ?
C
) sim
C
) não
12. Você já discutiu com as pessoas com quem você mora a respeito de como administra seu dinheiro ?
) sim
C
C
)
não
13. (Responda apenas se você espondeu sim na questão 12): As discussões sobre dinheiro foram alguma vez a respeito do seu hábito de jogar?
C
) sim
C
) não
14. Você já emprestou dinheiro de alguém e não pagou por causa de seu hábito de jogar ? 15. Você já perdeu tempo de trabalho ou estudo por causa do jogo ?
C
) sim
C
C )
) sim
C
)
não
não
16. Se você já emprestou dinheiro para jogar ou para pagar dívida de jogo, de quem ou de onde você emprestou? (Assinale sim ou não para cada) . nao s1m
-
a. do orçamento doméstico b. da sua esposa (ou do seu esposo) C. de outras pessoas da família
d. de bancos. companhias de empréstimo ou companhia de crédito e. cartão de crédito
f. de agiotas g. trocou ações. apólices ou outros títulos por dinheiro h. você vendeu propriedade pessoal ou da família I.
J.
cheque especial ou cheque sem fundo você tem ou tinha uma linha de crédito com um agenciador de apostas ou agiota
k. você tem ou tinha uma linha de crédito com um bingo, cassino. lotérica ou outra casa de jogos
c c c c c c c c c c c
) ) ) ) ) ) ) ) ) ) )
c c c c c c c c c c c
) ) ) ) ) ) ) ) ) ) )
Instruções para pontuação As questões de 1 a 3 não são contabilizadas no escore total. Elas fornecem informações breves. porém valiosas sobre preferências por jogos de azar. quantias apostadas e histórico familiar. A questão 4 é considerada positiva se forem assinaldas as repostas "na maior parte das vezes em que perdi" ou "sempre que perdi". A questão 5 é considerada positiva para qualquer resposta diferente de "nunca". As questões 12, 16(J) e 16(K) não são pontuadas. A primeira serve como uma introdução para a questão 13, enquanto os subitens J e K da questão 16 fornecem informações sobre a existência de linhas de crédito mantidas pelo entrevistado em casas de apostas e locais de jogos de azar. Cada questão respondida afirmativamente soma 1 ponto ao escore final que totaliza um valor máximo de 20. Valores iguais ou maiores que 5 são considerados indicativos de provável jogo patológico. Os escores entre 1 e 4 sugerem jogo-problema. _
Questão 4: na maior parte das vezes em que perdi ou
__ Questão 5: sim. menos que a metade das vezes em que perco ou
sempre que perdi
sim a maior parte das vezes __ Questão 7: sim
_Questão 6: sim. no passado, mas não agora. ou sim _Questão 8: sim _Questão 10: sim
__ Questão 9: sim
_
__ Questão 13: sim
Questão 12 não é contabilizada
__ Questão 10: sim
_Questão 14: sim
__ Questão 15: sim
_Questão 16a: sim
__ Questão 16b: sim
_
Questão 16c: sim
__ Questão 16d: sim
_Questão 16e: sim
__ Questão 16f: sim
_Questão 16g: sim _Questão 16i: sim
__ Questão 16h: sim __ Questões 16j e 16k não são contabilizadas
Total = __
Figura 5
(Conunuação) Escala de Rastreio de Jogo de South Oaks, SOGS.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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SEÇÃO 5
AS GRANDES SÍNDROMES PSICOPATOLÓGICAS
bre preferências de jogo podem ser modificadas para se adequar aos jogos disponíveis em uma determinada comunidade e suas instruções podem ser alteradas para co brir períodos específicos. A SOGS foi traduzida e adaptada a muitas culturas e línguas, inclusive espanhol, italiano, alemão, turco, japonês, hebraico e português36. Indivíduos com escore 5 ou mais devem passar por avaliação clínica e confirmação diagnóstica pelos critérios do DSMIV-TR. O propósito original da SOGS é investigar JP em dependentes de bebidas alcoólicas e drogas, populações sob risco e outros grupos em que a prática frequente de jogos de azar é um comportamento comum. Por isso, preocupações foram expressas quanto ao seu uso além do propósito original em pesquisas populacionais. Stinchfield35 descreveu que em amostras da população geral a SOGS demonstrou tendência a superestimar o número de jogadores patológicos. Outro modo fácil de fazer a triagem de Jogo Patoló gico é o Questionário Lie-Bet (LBQ). O LBQ foi obtido dos critérios diagnósticos do DSM-IV. Comparando 191 jogadores patológicos e 171 controles, Johnson e colabo radores37 concluíram que duas questões derivadas dos critérios 2 e 7 diferenciaram de forma mais eficiente casos e controles. O formato final do questionário com apenas duas perguntas apresenta elevadas sensibilidade (99%) e especificidade (91 %). As questões são: "Você já mentiu para familiares e amigos sobre o quanto você gasta em jogos de azar?" e "Você já sentiu forte necessidade de apostar mais e mais vezes?" Contudo, a precisão do questionário não é a mesma em amostras coletadas da população geral, onde a frequência de JP é mais baixa. Nesses casos, o LBQ se mantém altamente sensível e específico, mas o valor preditivo positivo (isto é, a proporção entre indivíduos que realmente apresentam o diagnóstico e aqueles com teste positivo) foi comparativamente menor (cerca de 60%). Dessa forma, como ocorre com outras ferramentas de rastreio, uma triagem inicial pelo LBQ necessitará de confirmação pelos critérios diagnósticos do DSM. A triagem e o diagnóstico de JP entre os adolescentes podem ser um desafio, pois o jogo excessivo não incorre em sinais observáveis de intoxicação. Problemas financeiros, que constituem os sinais mais facilmente observáveis de transtorno de jogo patológico, não são fre quentes nesse segmento etano, pms os JOVens nao tem acesso direto ao crédito. Autores previamente criticaram os critérios diagnósticos do DSM por serem muito concentrados no prejuízo financeiro, dificultando com isso a identificação de JP em jovens. Foi proposta uma adaptação dos critérios originais: o DSM-IV Juvenil (DSM-IVP8). No DSM-IV-J, os critérios 2 (tolerância), 5 (escapismo) e 6 ("jogar para recuperar") foram mantidos inalterados, enquanto os critérios 1 (preocupação), 4 (abstinência) e 7 (mentiras) receberam pequenos ajustes. Os critérios 3 (perda de controle), 8 (atos ilegais) e 9 (trabalho/educação de risco) foram submetidos a maiores alterações a fim de re,
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•
•
-
A
produzir com mais precisão aspectos relevantes do meio social dos jovens. Após essas adaptações, os critérios 8 e 10 foram parcialmente sobrepostos; por essa razão, o primeiro foi excluído. No DSM IV-J, um indivíduo é diagnosticado como jogador patológico se, no mínimo, 4 dos 9 critérios forem positivos. A SOGS também foi adaptada para adolescentes pela mesma razão. A SOGS - Versão Revisada para Adolescentes (SOGS-RA) tem 12 itens, sendo que um escore igual ou superior a 4 indica um provável jogador patológico, 2 a 3 um jogador de risco e 1 ou O ausência de problemas com jogo. O SOGS-RA exibiu boa confiabilidade (alfa= 0,80) e significativa correlação com várias medidas de JP O SOGS-RA foi comparado ao DSM-IV-J, e ambas as escalas revelaram um grau elevado de concordância. Outros segmentos populacionais de interesse são mulheres e idosos. Os homens ainda constituem a maioria dos jogadores problemáticos e patológicos, mas a prática de jogos de azar cresce paulatinamente entre as mulheres39. Vários relatos descrevem diferenças de gênero na motivação e no comportamento de jogo. Jogadoras patológicas cometem menos crimes e relatam endividamento menor que os homens. Por outro lado, as mulheres po dem apresentar uma evolução mais rápida da doença e comorbidade mais elevada, com ansiedade e depressão 30. Elas também relatam jogar por escapismo com maior fre quência40. Jogadores idosos têm menos pessoas que dependem deles, assim, a identificação de um jogar problemático neles pode demorar mais. Ao investigar o prejuízo causado pelo jogo em idosos, os clínicos devem considerar o comprometimento proporcional da aposentadoria e o estreitamento das estratégias de lazer para lidar com o ócio, que, no momento da avaliação, podem não ser concebidos como ameaças pelo paciente4 1 •
Comorbidades psiquiátricas e outras comorbidades médicas A comorbidade psiquiátrica é a regra para jogadores patológicos avaliados em amostras clínicas e na comunidade também. Por isso, é de suma importância que o clínico gaste tempo na investigação de outros sintomas psiquiátricos, além do comportamento de jogo, ao examinar um jogador patológico. Tipicamente, o JP está associado com maior frequência a transtornos de humor, ansiedade e personalidade, bem como a transtornos relacionados ao uso de substâncias. O estudo "Levantamento Epidemiológico Nacional sobre Álcool e Problemas Relacionados" (National Epidemiological Survey on Alcohol and Related Conditions - NESARC) relatou que 73,2% dos jogadores patológicos tinham algum transtorno relacionado ao consumo crônico de álcool, 60,4% exibiam dependência de nicotina, 38,1% apresentavam algum transtorno relacionado ao uso de drogas, 49,6% tinham transtorno de humor, 41,3% sofriam de transtorno de an-
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siedade e 60,8%, transtorno de personalidade, entre as quais se relataram associações mais frequentes para transtorno de personalidade antissocial, histriônica, paranoide e dependente (os transtornos de personalidade esquizotípica, limítrofe e narcisística não foram avaliados nessa primeira leva da pesquisa). Todas as associações permaneceram fortemente significativas quando comparadas a indivíduos não jogadores, mesmo após controle para variações no perfil demográfico e no estado socioeconômico42. Um transtorno importante, porém negligenciado, em caso de comorbidade com JP é o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Na forma adulta, a faceta de hiperatividade do TDAH tende a desaparecer, mas os déficits nos componentes mais complexos de atenção permanecem. As avaliações neuropsicológicas de jogadores patológicos classicamente exibem déficits nas funções executivas, sobretudo no controle inibitório, flexibilidade cognitiva e planejamento. Infelizmente, a pesquisa sobre comorbidade entre TDAH e JP está limitada até o mo mento a poucos relatos clínicos. Specker e colaboradores43 constataram uma taxa de 20% de TDAH adulto em uma amostra de jogadores patológicos, enquanto RodriguezJimenez e colaboradores44 relataram que aproximadamente 30% de uma amostra de jogadores patológicos adultos sem transtorno por uso concomitante de substâncias (exceto nicotina e cafeína) apresentaram critérios de TDAH na infância. Jogadores patológicos apresentam déficits sobre controle inibitório e planejamento, porém têm um desempenho satisfatório nos testes de sustentação da atenção e memória operacional (workingmemory) desempenho contínuo e na memória de trabalho45. Essa dissociação entre as funções executivas no JP sugere um envolvimento isolado de estruturas ventromediais (associadas com inibição, tomada de decisões e integração temporal de informações) do córtex pré-frontal, excluindo-se a porção dorsolateral (relacionada à atenção sustentada). A eficácia de estratégias terapêuticas direcionadas à melhoria das fun ções executivas poderia ser avaliada por testagem neuropsicológica. Jogadores patológicos com TDAH ou traços dessa comorbidade poderiam se beneficiar com administração de psicoestimulantes. Conforme foi mencionado anteriormente, JP está relacionado a atitudes impulsivas e necessidade de regulação emocional. Como o conceito de personalidade lida com as predisposições inatas no comportamento motivado e com o processamento e a expressão de emoções, é natural supor que os componentes da personalidade possam desempenhar um papel no início e na persistência do jogo 14 . De fato, traços de personalidade impulsiva identificados no início da infância previram o envolvimento com o jogo no final da infância5 e o jogo problemático na adolescência46 em dois estudos de coorte. Duas abordagens distintas são utilizadas para abordagem dos problemas de personalidade em JP. Uma delas implica in-
vestigar as frequências dos transtornos de personalidade conforme as categorias especificadas no DSM, enquanto a outra consiste em comparar traços e dimensões de personalidade em JP com controles normais ou jogadores sociais. Os resultados variam extremamente entre estudos que investigam a prevalência dos transtornos de personalidade em JP, de 25 até 93%, em razão de variações e inconsistências metodológicas. No estudo mais rigoroso e conservador conduzido até o momento, Bagby e colaboradores47 compararam jogadores patológicos com jogadores sociais; 23% dos jogadores patológicos apresentaram, no mínimo, um transtorno de personalidade, mas apenas o transtorno borderline de personalidade (TBP 10%) continuou significativamente associado com JP após a aplicação de controle estatístico para as comorbidades dos eixos I e li. Duas características fundamentais do TBP são impulsividade e desregulação afetiva, o que está de acordo com descrições prévias da psicopatologia do JP. Coerentemente, os estudos que fazem uso de diferentes modelos dimensionais de personalidade exibem uma clara convergência. Geralmente, os jogadores problemáticos e patológicos apresentam escores mais altos nas dimensões representativas de emocionalidade negativa e escores mais baixos nas dimensões representativas de contenção e autocontrole (ou, por oposição, escores mais altos nas medidas de impulsividade) quando comparados aos não jogadores e aos jogadores não -problemáticos48 • Vachon e Bagby49 sugerem que as dimensões de personalidade devem ser assumidas como uma plataforma para investigar subtipos de JP. Eles descreveram três subtipos de JP. O grupo 1 exibiu escores normativos de personalidade, com pouca ou nenhuma comorbidade nos eixos I e li, sendo distinguido de jogadores não patológicos apenas pela presença de JP, chamados JP simples. Os grupos 2 e 3 compartilharam escores baixos de constrição, traduzindo -se em dificuldade de controle do impulso e conduta comportamental sem consideração pelas consequências. Contudo, tais grupos distinguiam-se em alguns aspectos do perfil de traços impulsivos. O grupo 2, no meado de jogadores hedônicos, mostrava busca acentuada por excitação, sendo descritos como curiosos, excitáveis e atraídos por promessas de estimulação e prazer. O grupo 3, nomeado como jogadores desmoralizados, apresentava alto neuroticismo e baixa extroversão, caracterizados por afetos negativos extremos, instabilidade emo cional e inibição social. Tanto levantamentos epidemiológicos como relatos clínicos descrevem frequências elevadas de consumo crônico de álcool (mais de 70%) e de cigarro (em torno de 60%) entre os jogadores patológicos50 . Além disso, a prática frequente de jogo prejudica comportamentos de ro tina, como alimentação e sono. Tudo isso adicionado à angústia contínua induz à conclusão de que jogadores patológicos presumivelmente não apresentam um estilo de vida saudável. Jogadores patológicos, comparados a não
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AS GRANDES SÍNDROMES PSICOPATOLÓGICAS
jogadores e jogadores sociais, apresentam risco 2 vezes maior de serem recebidos em pronto -socorros, risco maior que o dobro de serem diagnosticados com taquicardia e/ ou angina, risco quase 4 vezes maior de apresentarem cirrose hepática e risco 3 vezes maior de terem qualquer outra hepatopatia51. Tais associações permaneceram significativas mesmo depois que o controle estatístico foi exercido para variações demográficas, índice de massa corporal, ingestão de álcool, tabagismo e comorbidade com transtorno de humor e ansiedade. O fato de que JP continuava significativamente associado com hepatopatia mesmo após o registro da ingestão de álcool chama a atenção para outros fatores de dano hepático, inclusive doenças hepáticas infecciosas. Como muitas dessas doenças são causadas por vírus sexualmente transmissíveis, é possível especular que a impulsividade permeia e invade outros aspectos da vida dos jogadores patológicos, tais como comportamento sexual, o que os expõe a maiores ameaças à saúde física 52 • O risco de aterosclerose, doenças coronárias e outras cardiopatologias deve ser elevado também, considerando -se todos os fatos descritos anteriormente (álcool, fumo, obesidade, estresse psicológico etc.). Apesar disso, a potencial associação entre JP, infarto agudo do miocárdio e outros eventos cardíacos permanece inexplicavelmente subinvestigado e sub-relatado. Até o momento, todas as evidências ou provas disponíveis são indiretas. Jogar em cassino foi relacionado a elevações na frequên cia cardíaca e no cortisol salivar, demonstrando que o jogo é uma atividade estressante53 . Um estudo investigou 398 mortes relacionadas a cassino em Atlantic City de 1982 a 1986 e concluiu que 83% delas foram causadas por infarto agudo do miocárdio 54 . Contudo, os autores pedem cuidado na interpretação desse resultado, porque as limitações metodológicas não possibilitam a ponderação da contribuição específica do jogo para a ocorrência de paradas cardíacas súbitas. Uma nova interface entre jogo e problemas clínicos recentemente descoberta consiste na associação de doença de Parkinson e JP. Os primeiros relatos datam do ano 2000. Depois disso, mais de 100 relatos podem ser encontrados em uma busca rápida no PubMed, apenas cruzando os unitermos Gambling e Parkinson. O surgimento de jogo descontrolado em pacientes acometidos por doença de Parkinson foi associado com o uso de agonistas dopaminérgicos para o tratamento do déficit de movimento da síndrome. A estimulação excessiva do sistema dopaminérgico córtico-estriado por essas medicações pode induzir não apenas à prática de jogos de azar, mas também a uma série de comportamentos impulsivos, tais como compras, compulsão alimentar e hipersexualidade55. Foram feitas especulações sobre o maior risco da assim chamada síndrome de desregulação dopaminérgica e agonistas dopaminérgicos específicos, em particular Ldopa e agonistas seletivos dos receptores D3 (pramipexol
e ropinirol), localizados principalmente no sistema límbico. Contudo, como na maioria dos casos relatados até o momento havia mais de um agonista dopaminérgico em associação, não é possível afirmar que os comportamentos impulsivos induzidos pelos agonistas dopaminérgicos se devem a alguma ação específica sobre qualquer um dos receptores dopaminérgicos ou à estimulação excessiva genérica do sistema dopaminérgico. Todavia, os clínicos devem ter consciência do risco inerente ao tratamento de doença de Parkinson, outros transtornos do movimento (p. ex., síndrome das pernas inquietas) ou qualquer outro problema clínico (prolactinoma) para o qual esteja indicado o uso de agonistas dopaminérgicos.
Funcionamento global e comportamentos de risco associados É comum que jogadores patológicos busquem tratamento durante episódios de crise pessoal. Em tais situações, eles podem ser subjugados por sintomas psiquiátricos, e uma série de problemas médicos e psicossociais somados pode comprometer sua capacidade de resposta às exigências da vida cotidiana. Nessas condições, o fun cionamento global do jogador pode apresentar déficit mo derado a grave no funcionamento social, ocupacional ou escolar em virtude de ideias suicidas e comportamentos de risco. É um erro comum, ao iniciar o tratamento especializado para jogo ou qualquer outra dependência, concentrar-se na queixa principal do paciente e se esquecer que as dependências e os transtornos do controle de impulsos costumam estar associados com outros comportamentos de risco. Por exemplo, Hurt e colaboradores56 relataram que mais da metade das mortes ocorridas entre os pacientes previamente tratados para dependência de álcool estavam relacionadas ao fumo. O mesmo pode ser verdadeiro para jogadores patológicos, considerando -se a alta prevalência da dependência de nicotina entre eles. Os clínicos especializados em dependência tendem a se concentrar na dependência primária, deixando o tabagismo para mais tarde, o que em termos práticos significa que, durante o tratamento, eles se esquecerão de tratar do fator de risco mais importante de morte passível de prevenção. JP está significativamente associado com comportamentos de risco, tais como tentativa de suicídio, comportamentos sexuais de risco (principalmente decorrente de prática de sexo sem proteção com parceiro causal ou com algum parceiro sob risco de doenças sexualmente transmissíveis), uso de substâncias (principalmente álcool e fumo) e problemas legais que exigirão atenção médica. Impulsividade, idade, gênero e estresse emocional desempenham papéis distintos em diferentes comportamentos de risco. Em uma amostra clínica de jogadores patológicos, as tentativas de suicídio foram associadas com gênero feminino e depressão. O comportamento sexual de risco foi associado com
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sexo masculino e traços impulsivos de personalidade. O uso de álcool foi exclusivamente relacionado ao gênero masculino. Atividades ilegais para manter o jogo foram igualmente relatadas por homens e mulheres, mas correlacionadas com idade mais baixa e impulsividade52. As tentativas de suicídio são preocupantemente frequentes em amostras clínicas (22% dos pacientes declararam ter tentado suicídio pelo menos uma vez antes de receber qualquer tratamento psiquiátrico52 e também são comuns nas amostras de JP extraídas da comunidade. Newman e Thompson57 relataram risco 3 vezes maior de tentativas de suicídio em jogadores patológicos, comparados a não jogadores, mesmo após controle para outros transtornos psiquiátricos comórbidos. Petry e Kiluk27 relataram que os jogadores em tratamento que apresentaram ideias suicidas tinham mais sintomas e comorbidades psiquiátricas, estavam mais insatisfeitos com suas condições de vida e declaravam ter mais discussões e confrontos no mês anterior ao engajamento na terapia. As ideias suicidas também foram associadas com gravidade do jogo, fissura elevada e grandes quantias de dinheiro gastas antes de ingressar no tratamento. Reconhecer os fatores associados com tentativas suicidas e outros comportamentos de risco em JP ajuda a ampliar a cobertura terapêutica e a prevenção de complicações.
Tratamento O tratamento de JP pode ser resumido em três diretrizes principais: supressão do comportamento de jogo problemático, reparo dos problemas causados pelo jogo, promoção da saúde geral (mental e física) e qualidade de vida. Uma avaliação completa do paciente envolvido com jogo ajuda a identificar as questões que necessitam de atenção urgente. Essa avaliação também deve permitir a formulação de hipóteses sobre fatores indutores e mantenedores do jogo problemático, o que determinará a estratégia terapêutica e o grau de intervenção. Para otimizar o uso de recursos, foram desenvolvidas intervenções breves que tentam compatibilizar a gravidade do jogo e a magnitude da intervenção. As intervenções mínimas propostas envolvem breve aconselhamento, uma ou poucas entrevistas motivacionais, livro de autoajuda isolado ou combinado com uma entrevista motivacional por telefone ou pessoalmente58 . A seguir, será descrita a abordagem terapêutica mais completa possível do JP. A aplicação de uma parte das técnicas descritas, ou todas elas, dependerá, sobretudo, das necessidades do paciente e dos recursos disponíveis. Além das intervenções estritamente orientadas ao jogo, o tratamento de JP pode se beneficiar em casos particulares de apoio extra, como terapia familiar 59 , terapia de casais60 e orientação sobre questões financeiras e forenses. A participação em JA pode ser particularmente benéfica para jogadores que enfrentam di-
ficuldades com administração das dívidas e problemas legais - estratégias práticas e valiosas são transmitidas em grupos de alívio de pressão organizados por esse programa de autoajuda.
Primeiras medidas Tratamento farmacológico da comorbidade, impulsividade e fissura
Assim que a comorbidade psiquiátrica for identifi cada no início do tratamento de um jogador, ela deverá ser tratada imediatamente, pois o contrário pode comprometer a adesão ao tratamento. Além disso, a instituição de farmacoterapia apropriada de acordo com o transtorno comórbido pode ajudar no controle da fissura. O controle de sintomas depressivos pode ser particularmente útil nesse sentido, uma vez que a intensidade da fissu ra por jogo parece ser proporcional à gravidade da depressão19. Contudo, os antidepressivos apresentam uma limitação importante, pois necessitam pelo menos duas semanas para expressarem efeito clínico significativo e a fissura pode ser uma experiência perturbadora desde os primeiros dias de tratamento 20. Nesse caso, as medidas complementares podem incluir manejo de contingências e prática de exercícios físicos. Alguns fatores ambientais atuam como deflagradores quase universais do desejo de jogar, por exemplo, disponibilidade de dinheiro e proximidade de locais de jogo e estímulos relacionados. Portanto, algumas das primeiras recomendações aos pacientes são reduzir o acesso ao crédito (deixar talão de cheques e/ou cartões de crédito e débito em casa) e evitar companhias e lugares relacionados ao jogo, sempre que possí vel. Em um estudo piloto, o exercício físico mostrou-se benéfico para o tratamento agudo da fissura por jogo; além disso, o declínio médio da fissura após as sessões de exercício foi significativamente correlacionado com a redução da frequência do jogo, do tempo e dinheiro gasto em apostas e do estresse causado por jogo após um programa de 4 semanas de atividade aeróbica61. Contudo, tanto o controle de contingências como a prática de exercícios são iniciativas que necessitam de motivação e disposição para mudança de comportamento. Por isso, em alguns casos, é aconselhável a implementação dessas estratégias após avaliação da prontidão para mudança e realização de intervenção motivacional. Até o momento, nenhuma medicação foi aprovada para o tratamento específico de JP. No entanto, a psicofarmacologia da impulsividade e da fissura pelo jogo é um campo promissor. Em uma meta-análise recente de tratamentos farmacológicos para JP, Pallesen e colaboradores62 descreveram um tamanho de efeito global de 0,78. Cohen propôs que, para as ciências comportamentais, tamanhos de efeito entre 0,5 e 0,8 devem ser considerados um efeito médio e que os valores acima de 0,8 são considerados um efeito grande. Assim, o impacto do tratamen-
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to farmacológico pode ser considerado relevante, mas é imprescindível relativizar a avaliação por algumas considerações. Em primeiro lugar, em outra meta-análise conduzida pelo mesmo grupo63 , o tamanho estimado de efeito para os tratamentos psicológicos foi de 2,01. De fato, as pesquisas em intervenções psicossociais para JP começaram mais cedo que as farmacológicas e parecem estar em um estágio mais avançado de desenvolvimento. To davia, a comparação dos tamanhos de efeito dessas duas abordagens distintas pode ser um desafio, por causa das diferenças metodológicas na mensuração dos resultados (um tanto mais estrito para ensaios farmacológicos) e na escolha da condição de controle, geralmente ativo para ensaios farmacológicos (ingestão de placebo) e passivo para ensaios psicológicos (lista de espera). Em segundo lugar, os tamanhos de efeito de estudos controlados costumam ser mais baixos do que estudos do tipo "antes/ depois" da intervenção terapêutica (a mesma amostra como controle de si mesma). Também não foram observadas diferenças no resultado para as três principais classes farmacológicas ( antidepressivos, antagonistas opiáceos e estabilizadores do humor). Portanto, ainda não há evidências empíricas sólidas para a preferência de um tipo de medicação em detrimento de outra. O fato de que a maioria dos ensaios farmacológicos inclui apenas indivíduos com baixa ou nenhuma comorbidade psiquiátrica dificulta a avaliação de como essas medicações funcionam em situações clínicas da vida real. Além disso, esses ensaios não fornecem insights em relação à hipótese de que o perfil da comorbidade pode determinar o medicamento mais adequado para o paciente (p. ex., dar preferência a estabilizadores do humor sobre antidepressivos para indivíduos que se enquadram no espectro do transtorno bipolar). Uma melhor correspondência entre as necessidades clínicas do paciente e o agente terapêutico escolhido poderia auxiliar na adesão à medicação e reduzir a taxa de abandono de tratamento, que costuma ser razoavelmente alta tanto na pesquisa como na clínica de JP. Outro achado interessante foi que as mulheres responderam melhor que os homens nos ensaios farmacológicos de JP. Não se sabe ainda se isso pode ser atribuído às diferenças sexuais nas bases bioquímicas de JP ou à sensibilidade ao placebo. A elevada resposta ao placebo em JP é um desafio para pesquisadores6\ mas uma boa notícia para os clínicos. Essa resposta pode ser atribuída a outros fatores que seguem junto da intervenção farmacológica, tais como diversas reavaliações que estimulam uma autoavaliação pelo paciente e reforçam o vínculo terapêutico em desenvolvimento durante o acompanhamento65 . Em outras palavras, a aliança terapêutica traduzida em objetivos compartilhados e um rapport positivo podem fazer "maravilhas" por qualquer via terapêutica escolhida. Com exceção da bupropiona, todos os antidepressivos experimentados no tratamento de JP tinham ação serotoninérgica, pois a baixa atividade serotoninérgica foi
relacionada à impulsividade e ao próprio JP7. A maioria deles era inibidores seletivos da recaptação de serotonina (SSRI, sigla em inglês), como fluvoxamina, paroxetina, citalopram, escitalopram e sertralina. Até o momento, os resultados são discordantes por diversos motivos: inconsistências metodológicas (pequeno tamanho da amostra, estudos abertos e falta de grupo -controle), perda amostrai e alta resposta ao placebo. Para lidar com o último problema mencionado, os pesquisadores têm recorrido a um procedimento chamado lead-in, em que todos os pacientes são submetidos ao placebo por um período de tempo variável antes da alocação aleatória em um dos grupos de tratamento. Os estudos duplo -cego controlados que não aplicaram o procedimento de lead-in relataram taxas de resposta ao placebo de 4798 a 72%66. Tipicamente, os medicamentos que demonstraram alguma promessa nas investigações do tipo "antes/depois" não confirmam sua superioridade sobre o placebo nos testes controlados. A fluvoxamina é um desses casos. Em 1998, Hollander e colaboradores67 relataram que 7 de 1O jogadores patológicos que concluíram uma fase lead-in de 8 semanas com placebo, seguida por um esquema simples-cego de 8 semanas com fluxovamina, ficaram melhores ou muito melhores. Dois estudos controlados subsequentes não constataram uma diferença significativa entre a fluvoxamina e o placebo. Hollander e colaboradores67 usaram um modelo cross-over e descobriram que no segundo estágio do estudo (após a troca dos grupos: quem toma a medicação passa a tomar placebo e vice-versa) a fluvoxamina apresentou melhora significativa comparada à condição controle, sugerindo que a resposta ao placebo pode diminuir com o tempo. Contudo, Blanco e colaboradores68 realizaram um estudo duplo -cego mais prolongado (6 meses) com fluvoxamina e não verificaram diferenças. A taxa de resposta ao placebo foi de 59%. Apesar disso, a fluvoxamina foi significativamente superior em pacientes do sexo masculino e nos mais jovens. Esse achado aponta para o fato de que não ter uma tipologia estabelecida de JP é um obstáculo potencial na previsão de respostas terapêuticas que poderiam ser específicas para certos subgrupos de JP. A paroxetina foi testada em um lead-in de 1 semana seguido de intervenção duplo -cega controlada de 8 semanas, revelando um impacto significativo do antidepressivo sobre a compulsão e a gravidade do jogo69 . Contudo, os resultados foram inconclusivos no estudo multicêntrico maior subsequente conduzido pelo mesmo grupo65 . A sertralina também foi testada em outro estudo duplo-cego com resultados negativos66. O citalopram70 e o escitalopram71 -73 foram testados unicamente em estudos abertos com pequenas amostras e, apesar dos resultados promissores preliminares, tais agentes ainda aguardam validação adicional. A bupropiona é um antidepressivo com perfil incomum de ação, incluindo atividade agonista de noradre-
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nalina e dopamina, e foi considerada útil no tratamento de dependência de nicotina e TDAH 74 . Jogo de azar foi associado com alterações na neurotransmissão de dopamina7, tabagismo50 e TDAH 44, o que fomentou investigações de pesquisa sobre a utilidade da bupropiona no tratamento de JP. Novamente, os resultados promissores de um estudo aberto não foram confirmados em estudo dupio-cego subsequenté4. Alguns autores propuseram que os jogadores patológicos que sofrem de instabilidade afetiva deveriam responder melhor a estabilizadores do humor do que a antidepressivos75. O único estudo duplo-cego controlado conduzido com estabilizador do humor testou a eficácia do carbonato de lítio de liberação prolongada em 40 pacientes com JP e comorbidades incluídas no espectro bipolar (transtorno bipolar II, transtorno bipolar não especificado, ou ciclotimia). Os pacientes submetidos ao lítio apresentaram diminuição significativa na fissura por jogo e nos comportamentos relacionados ao jogo; além disso, a melhora na gravidade do jogo foi significativamente correlacionada com redução nos sintomas de mania. Oitenta e três por cento dos pacientes submetidos ao lítio foram classificados como responsivos, em oposição a apenas 29% do grupo placebo. Um único estudo comparou o lítio com o valproato no tratamento de JP76. Ambos os agentes se mostraram igualmente eficazes, com uma leve vantagem para o valproato na cobertura dos sintomas de ansiedade; a avaliação desse estudo, no entanto, é dificultada pela falta de um grupo-controle. A carbamazepina de liberação prolongada foi testada em um pequeno estudo aberto para JP, mas muitos abandonos de tratamento no estudo em virtude de efeitos adversos levantaram preocupações quanto à tolerabilidade do tratamento, apesar da alta taxa de resposta (88%). Os antagonistas opiáceos provavelmente constituem a classe medicamentosa mais estudada no tratamento de JP. O uso desses agentes baseia-se nas diversas similaridades entre JP, dependência de álcool e de outras substâncias. A naltrexona é um antagonista do receptor opioide-fl que modula a liberação de dopamina no circuito da área tegmentar ventral, do núcleo acumbens e do córtex fron tal orbital mediai, o assim chamado sistema de recompensa cerebral. Esse agente demonstrou eficácia no tratamento da síndrome de dependência do álcool, principalmente por reduzir as propriedades de reforço da bebida e a fis sura por álcool. A naltrexona foi superior ao placebo para o tratamento de JP em dois estudos duplo-cegos controlados metodologicamente sólidos. O primeiro estudo aplicou um modelo de dose flexíveF?. Curiosamente, a dose média prescrita foi de 187,5 mg/dia, que é bem maior que a dose prescrita para dependência do álcool (50 mg/dia). O segundo estudo investigou o efeito específico de regimes terapêuticos constituídos de três doses (50, 100 e 150 mg/dia) contra o placebo na fissura por jogo78 . Todos os três grupos submetidos à naltrexona foram superiores ao
placebo, mas não foi constatada qualquer diferença da redução da fissura entre eles. A naltrexona é bem tolerada e segura, desde que o paciente se abstenha de tomar paracetamol, aspirina e outros agentes antiinflamatórios não esteroides; caso contrário, pode ocorrer elevação das enzimas hepáticas. Na mesma linha, Grant e colaboradores73 conduziram um ensaio duplo -cego de nalmefeno em JP. O nalmefeno também é um antagonista do receptor opioide-fl. Comparado à naltrexona, as vantagens do nalmefeno são meia-vida mais longa, biodisponibilidade oral superior e nenhuma associação dose-dependente com toxicidade hepática. Também se mostrou mais eficaz que o placebo, mas quando comparado com os estudos da naltrexona, o nalmefeno foi associado com mais efeitos adversos (náusea, tontura e insônia) e doses acima de 25 mgl dia foram pouco toleradas. Examinando uma amostra combinada dos três RCTs descritos, os autores descobriram que histórico familiar de alcoolismo foi um forte indicador de reposta, enquanto relatos de fissura elevada e doses mais altas de antagonistas opioides eram apenas sugestivos de melhor resposta terapêutica. Apesar disso, um estudo duplo-cego controlado recém-conduzido para jogadores patológicos que apresentam comorbidade com abuso ou dependência de álcool não revelou qualquer ação significativa da naltrexona sobre o comportamento relacionado ao jogo ou à bebida79 • O fato de que ambos os grupos receberam orientação cognitivo-comportamental durante o ensaio pode ter ofuscado diferenças potenciais, mas também enfatiza a importância de tratamento psicológico em casos de JP De fato, a maioria dos pacientes de ambos os grupos manteve os efeitos terapêuticos no acompanhamento de 1 ano, demonstrando o forte impacto do programa terapeutlco. Outros meios de se intervir no sistema de recompensa cerebral foram investigados pelo uso de moduladores da neurotransmissão mediada por glutamato e bloqueadores de dopamina. Grant e colaboradores80 conduziram um ensaio aberto de 8 semanas com N -acetilcisteína, um aminoácido que parece restaurar a concentração extracelular de glutamato no núcleo acumbens. Dezesseis de 27 pacientes foram classificados como responsivos (59%). O topiramato é um antagonista dos receptores NMDA (Nmetil-D -aspartato) e agonista dos receptores GABA-A (ácido gama-aminobutírico). Em diferentes RCT, o topiramato foi superior ao placebo no tratamento da síndrome de dependência do álcool81 e no transtorno de compulsão alimentar periódica82. Um único estudo comparou o topiramato e a fluvoxamina - ambos foram considerados eficazes, mas o significado de tal achado é limitado pela falta de grupo-controle83 . Em um relato de caso, uma jogadora patológica de 57 anos de idade com transtorno bipolar comórbido sob terapia com lítio parou de jogar somente depois da adição de uma dose de 200 mg/ dia de topiramato à prescrição84 . O bloqueio específico de receptores D 1 e D2 foi especulado no tratamento de JP. ContuA
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do, dois estudos controlados com olanzapina com resultados negativos desencorajam o uso de antagonistas dopaminérgicos no tratamento de JP85•86 . Psicoeducação, aumento da motivação e controle da contingência
As medidas psicológicas iniciais descritas aqui não têm limites teóricos específicos. Tais medidas podem ser usadas apenas em intervenções breves ou, conforme a necessidade, como passos que antecipam intervenção psicossocial adicional. O fornecimento de informações ao paciente sobre definições de jogo (jogo problemático e patológico) ajuda a estabelecer a base da terapia. A visão leiga de JP é maciçamente contaminada com avaliações morais, que constituem as percepções dos jogadores e de seus parentes. Essa perspectiva é orientada ao passado (o que deveria ou não deveria ter sido feito; "se eu fosse você"; "se soubéssemos o que estava acontecendo" etc.), trazendo a culpa à tona, o que pode aumentar o desespero e mais investimento no jogo. Os jogadores patológicos cos tumam se comportar como se a perda de controle aparecesse "do nada'' ou se fosse apenas obra do destino. Assim, é importante que, juntamente com as definições de jogo, os pacientes conheçam os fatores de risco da dedicação excessiva ao jogo, o que estimulará uma atitude mais pró-ativa em relação aos seus problemas. O forne cimento de números sobre a participação em jogo na po pulação geral faz com que os pacientes comparem seu próprio comportamento com a norma. Além disso, informações sobre o faturamento da indústria do jogo e os tributos governamentais derivados estabelecem uma visão mais crítica do papel social do jogo, podendo reproduzir um desejo de se livrar da tributação implícita derivada dessa prática. Petry e colaboradores58 desenvolveram uma breve intervenção de aconselhamento e a comparou com avaliação (condição controle), intervenção motivacional e intervenção motivacional associada a três sessões de tratamento cognitivo-comportamental. O aconselhamento breve consistia em uma entrevista de 1Ominutos - período durante o qual o terapeuta fornecia ao paciente um folheto de uma página que comparava o nível de jogo do paciente com o da população geral, descrevia os fatores de risco associados aos graves problemas relacionados ao jogo e fornecia quatro passos para refrear o desenvolvimento desses problemas. Curiosamente, o aconselhamento breve isolado foi a única intervenção que demonstrou uma redução significativa do jogo em comparação à condição controle entre o nível basal e a semana 6, reforçando a importância da psicoeducação no tratamento de JP Com a mente cheia de preocupações em relação ao jogo, é difícil que o paciente se concentre na terapia. Portanto, o terapeuta precisa adotar medidas que possam conferir períodos significativos livres de jogo. Estratégias de controle de contingência, como as citadas acima, são úteis,
mas a sua implementação pode ser difícil, pois elas tendem a ser vistas pelos pacientes como restrições impostas a sua liberdade. Nesse ponto, intervenções motivacionais podem ser particularmente úteis nesse momento da terapia. Uma intervenção simples e eficiente é pedir que opaciente faça um balanço geral das decisões tomadas, preenchendo um formulário (Figura 6). Esse formulário contém uma tabela dividida em quatro quadrantes. Os quadrantes superiores se referem aos prós e contras do jogo, enquanto os inferiores, aos prós e contras da abstinência. O paciente é convidado a preencher os quadrantes em forma de tópicos (por exemplo, os benefícios do jogo no quadrante superior esquerdo, os benefícios da abstinência no quadrante inferior esquerdo e, assim por diante). Uma simples olhada no formulário ajuda a inferir se o paciente está pronto para mudança. Grande quantidade de tópicos no quadrante de prós do jogo e poucos tópicos nos outros quadrantes sugerem um jogador em pré-contemplação. Os tópicos concentrados no quadrante de contra do jogo sugerem contemplação ou preparação para ação. Maior quantidade de tópicos na metade inferior da tabela implica maior prontidão para entrar em ação e começar a mudança de comportamento do indivíduo. O significado dos estágios no modelo de prontidão à mudança pode ser discutido com o paciente, podendo ser transmitidas dicas práticas, tais como: "você precisa se concentrar um pouco mais nos custos do jogo" para um paciente em pré-contemplação, ou "você pode começar a refletir sobre sua vida sem o jogo; do contrário, será difícil mudar sem saber o que vem pela frente" para um paciente em contemplação ou preparação. É importante ressaltar a importância de passar pelos estágios de mudança, pois isso motiva o paciente. De fato, a prontidão para mudança foi relacionada à melhor resposta terapêutica ao jogo42 • Uma estratégia adicional pode ser aplicada. Após o preenchi-
Vantagens (+) do jogo
Vantagens (+) de não jogar
Desvantagens (-) do jogo
Desvantagens (- ) de não jogar
Releia cada um dos pontos feitos e corrija qualquer um que possa não ser completamente verdadeiro. Adicione qualquer coisa que você tenha omitido. Que quadrado tem a maioria dos pontos? Que fato res são mais importantes? Em geral, há mais consequências positivas ou negativas do jogo a longo prazo? Quais as consequências de não jogar (abstinência) a longo prazo? Quais as conclusões tiradas a partir dessa avaliação?
Figura 6
Avaliação dos prós e contras de jogo patológico e abstinência.
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mento do formulário, o terapeuta convida o paciente a observar os tópicos listados como consequências do ato de jogar ou não jogar. Em seguida ele dirige a atenção do paciente para o fato de que algumas são consequências de curta duração e outras, de longa duração. Na sequência, o terapeuta pede para o paciente os tópicos de curta duração e considerar os itens remanescentes nos quatro quadrantes. Isso inserirá pela primeira vez no tratamento a tão necessária perspectiva de tempo discutida anteriormente. É muito interessante observar o olhar de admiração dos pacientes quando se dão conta de que a maioria dos prós do jogo foi eliminada do formulário, em outras palavras que os prazeres advindos do jogo são de vida curta. Para os pacientes ainda em dúvida sobre os benefícios do jogo, pode ser útil solicitar a produção de registros semanais de atividades relacionadas ao jogo, calculando-se junto com o paciente o resultado financeiro líquido do jogo no início de cada sessão. Ao término do exercício motivacional, deve-se solicitar aos pacientes que declararem seus objetivos em relação ao tratamento. Considerando-se a atividade relacionada ao jogo, é aconselhável apresentar uma escolha forçada entre três possibilidades: reduzir o jogo (jogar controlado), abandonar os tipos mais preocupantes de jogo ou abstinência de todos os tipos de jogo. Nesse ponto, há muita controvérsia. Por causa do raciocínio herdado do campo da dependência, a abstinência total é o objetivo mais frequentemente proposto; no entanto, há argumentos contra o fato de a abstinência ser o único objetivo terapêutico aceitável. Se o paciente escolher um objetivo terapêutico que não seja o da abstinência, a melhor coisa a se fazer é lidar com esse objetivo de forma muito imparcial, admitindo a controvérsia em torno dele. Também pode ser assinalado que definir o que é o jogar controlado e a avaliação do autocontrole são tarefas complexas e que a abstinência do jogo é algo mais fácil de se definir e monitorar. Por fim, o terapeuta pode sugerir que os pacientes tentem manter a abstinência durante o tratamento, pois isso pode melhorar a eficácia da terapia e, que depois disso, eles estão livres para decidir o nível de envolvimento no jogo que eles desejam manter. Se o terapeuta não teve ainda a oportunidade de discutir o controle das contingências e as atividades de apoio (participação em JA, exercício físico etc.), o momento subsequente ao término da intervenção motivacional é o momento ideal para isso.
Intervindo nos processos subjacentes: os modelos comportamental, cognitivo e psicodinâmico Os pacientes com problemas graves relacionados ao jogo podem necessitar mais do que apenas psicoeducação, intervenção motivacional e controle de contingências. Para tanto, foi sugerida uma série de propostas que tratam das bases hipotéticas de JP. No campo da terapia do jogo, ainda reina a democracia, modelos comportamentais, cogni-
tivos e psicodinâmicos já foram aplicados ao JP. Intervenções mistas são populares, especialmente tratamento cognitivo-comportamental (TCC) e programas multimodais ecléticos que incluem técnicas psicodinâmicas87,88 . Foram conduzidas poucas comparações diretas entre os programas de orientação teórica diversa e não há como, até o momento, saber qual o tratamento mais indicado baseado nas características do paciente. As tentativas feitas nos anos 1960 de aplicação de princípios comportamentais ao tratamento de JP concentraram-se principalmente nos métodos de condicionamento aversivo. Mais tarde, sensibilização encoberta, dessensibilização por imaginação, dessensibilização sistemática, treinamento de relaxamento e fontes alternativas de satisfação foram descritos de forma isolada ou em combinação com tratamentos comportamentais multimodais87 em uma pequena série de casos. A técnica comportamental mais estudada até o momento é a dessensibilização por imaginação: em um ambiente tranquilo, os pacientes são ensinados a fazer um relaxamento gradativo; em seguida, o terapeuta pede para que eles visualizem uma circunstância em que é provável a ocorrência do jogo; depois, é feita uma sugestão para que eles fujam dessa situação e participem de uma atividade alternativa. O formato da terapia de dessensibilização por imaginação variou ao longo dos estudos, desde 14 sessões distribuídas 2 vezes ao dia por 1 semana em um programa de internação89 até duas ou três exposições imaginárias por dia por meio de fita cassete gravada ao longo de 5 semanas90 . Três ensaios controlados compararam a dessensibilização por imaginação com outras técnicas. O primeiro estudo comparou a dessensibilização por imaginação com a terapia aversiva (administração de choque elétrico nas extremidades do dedo). Ambas as terapias foram consideradas eficazes um mês depois do tratamento, mas apenas a dessensibilização por imaginação manteve uma redução significativa do jogo (70%) 12 meses após o tratamento. O segundo estudo comparou a dessensibilização por imaginação com terapia aversiva, relaxamento imaginário e exposição in vivo a situações de jogo89 . A dessensibilização por imaginação superou todas as outras modalidades com uma taxa de resposta perto de 80%. Finalmente, em um estudo recente, Grant e colaboradores90 compararam a dessensibilização por imaginação combinada com técnicas mot1vaciOna1s, cogmhvas e outras tecmcas comportamentais distribuídas em um programa de 8 semanas versus encaminhamento ao JA. O programa combinado foi significativamente superior ao encaminhamento ao JA, com uma taxa de abstinência de 64% ao término do tratamento. Contudo, o formato multimodal do programa impede a avaliação da contribuição específica da dessensibilização por imaginação aos resultados terapêuticos. O único método comportamental testado em um estudo controlado foi a exposição in vivo. Nessa técnica, o paciente é conduzido por sessões de exposição progres•
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siva a estímulos relacionados ao jogo, mas somente após um período de abstinência - quando um certo grau de estabilidade emocional é obtido. As primeiras sessões podem incluir permanecer em pé do lado de fora de um estabelecimento de jogo sem dinheiro, ao mesmo tempo em que é orientado pelo terapeuta a evitar qualquer resposta comportamental. Os pacientes devem sentir o aumento da ansiedade e da excitação, a exposição só deve ser finalizada quando ambos os sentimentos houverem nitidamente declinado. As sessões seguintes proporcionam uma exposição progressiva por meio da manipulação de contingências ambientais (dentro e fora do local do jogo, costas viradas para a máquina/de frente para a máquina, com/sem o terapeuta e com/sem dinheiro). Echeburúa e colaboradores91 compararam a exposição in vivo apenas, a reestruturação cognitiva e uma combinação de ambas as técnicas versus uma lista de espera como condição controle. Ao término do tratamento, a exposição isolada apresentou uma taxa de abstinência de 69%, comparada com 38% nos grupos submetidos a outros tratamentos e 25% para o grupo-controle. O problema, como no caso da terapia aversiva, foi a queda íngreme das taxas de abstinência poucos meses após o término da terapia. A exposição in vivo deve ser considerada quando o ambiente impede a esquiva aos estímulos relacionados ao jogo ou quando evitá-los implicaria um grande isolamento social. Por exemplo, em algumas localidades da Espanha, máquinas de jogo são permitidas em bares e as pessoas têm o hábito de se reunir com amigos e familiares nesses lugares após o trabalho. A reestruturação cognitiva visa à correção das distorções cognitivas previamente descritas. Entre as técni.. . , cas cogmtlvas e comportamenta1s propostas ate o momento, a reestruturação cognitiva foi a mais estudada. Sua eficácia foi testada em formato individual e em grupo 92 •
Impulso/ compulsão
(0-1O)
Deflagradores Internos
Situação (onde, quando, com quem?)
Sentimentos Durante ou emoções impulso e/ou (sensações enquanto está jogando corpora1s
Dia 2 Dia 3 Dia 4 Figura 7
Pensamentos/solilóquio (diálogo interior)
Externos
Dia 1
Registro semanal da vontade de jogar.
Os primeiros estudos aplicaram a reestruturação cognitiva em conjunto com psicoeducação, resolução de problemas, treinamento das habilidades de enfrentamento (coping) e prevenção de recaída. Em consequência disso, surgiram dúvidas se a reestruturação cognitiva contribuía ou não para os resultados relatados. Para tratar dessa questão, Ladouceur e colaboradores conduziram dois estudos controlados, comparando reestruturação cognitiva in dividual e em grupo92 com listas de espera, nos quais foram aplicados apenas métodos para identificar as percepções errôneas dos jogadores sobre aleatoriedade. Em ambos os casos, as condições experimentais foram superiores à lista de espera em diversas medidas relacionadas ao jogo: frequência do jogo, percepção de controle e autoeficácia percebida e desejo de jogar. A reestruturação cognitiva é melhor conduzida solicitando-se que os pacientes elaborem formulários de registros semanais do desejo de jogar (Figura 7). Nesses formulários, os pacientes tomam nota de qualquer ocorrência de desejo de jogar, atribuindo um escore de acordo com sua percepção subjetiva de intensidade, bem como as condições ambientais e internas (sensações e emoções corpóreas) durante as quais o desejo surgiu. Os pacientes devem, então, registrar seus pensamentos enquanto sentem o desejo de jogar, avaliando se eles são racionais ou irracionais, isto é, se tais pensamentos levam em consideração princípios da aleatoriedade, como incontrolabilidade, independência e imprevisibilidade de eventos futuros. Para cada crença irracional registrada, os pacientes devem fornecer uma alternativa racional concebida por eles mesmos, estabelecendo-se o diálogo interno. Por fim, um registro do que aconteceu depois disso é solicitado a fim de verificar se o enfrentamenta da vontade de jogar foi eficaz ou não. O que ele fez? Jogou? Como se sentiu? Os formulários semanais devem ser entregues no início de cada sessão. O cumpri-
Pensamentos Quais pensamentos são . . . 1rrac1ona1s e por quê? Ilusão de controle? Risco vs. habilidade? Independência dos eventos?
Consequências Ações
Diálogo interior O que você fez? de enfrentamento: (Se você apostou dinheiro) Qual é a coisa mais racional para dizer a si mesmo? Como você consegue conversar cons1go mesmo longe do jogo?
Sentimentos Como você se sente depois?
Pensamentos O que você fala para si mesmo depois?
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mento dessa tarefa deve ser elogiado e um breve retorno do terapeuta deve ser dado na ocasião. Uma avaliação mais detalhada do registro semanal pode ser entregue na sessão seguinte, escrita no verso do formulário com observações e dicas específicas para cada paciente de como lidar com a vontade de jogar. Além disso, sempre se deve elogiar o paciente por qualquer progresso registrado. Muitas vezes, o paciente fica ansioso pela sessão apenas pelo prazer de ler o que o terapeuta escreveu para ele. Além da revisão dos registros, é aconselhável fornecer folhetos sobre como os jogos de azar operam (incluindo informações sobre as reais probabilidades de vencer, a porcentagem negativa de retorno financeiro etc.) e as distorções cogmtlvas ma1s usua1s que vem a mente ao JOgar; em seguida, é preciso gastar um tempo para discutir em sessão que tópicos dos folhetos se aplicam à experiência real dos pacientes com o jogo. As propostas psicodinâmicas ou psicanaliticamente orientadas para JP prevaleceram na primeira metade do século XX, mas depois disso não ocorreram investigações além de estudos e relatos de séries de casos. Com isso, os tratamentos psicodinâmicos perderam terreno para os tratamentos baseados em outros modelos teóricos. Apesar disso, as perspectivas e os métodos psicodinâmicos sobrevivem encobertos em programas terapêuticos ecléticos multimodais. Em uma revisão sobre métodos orientados psicodinamicamente para o tratamento de JP, Ro senthal88 concluiu que há provas suficientes para justificar pesquisas clínicas adicionais sobre esse assunto. A psicoterapia psicodinâmica concentra-se em questões específicas que a diferenciam de outras formas de terapia: foco nas emoções do paciente, ênfase nos relacionamentos passados e nas experiências interpessoais, exploração de desejos secretos ou inconscientes, fantasias e sonhos. Os mecanismos inconscientes que supostamente constituem a base de jogo desenfreado são: I) tensão no relacionamento com a figura paterna concebida como dura e sempre insatisfeita, levando a um desejo secreto de superar as leis da realidade representadas pelo pai; II) desejo masoquista inconsciente de perder conferido pela culpa de se rebelar contra a autoridade dos pais; III) necessidade de restaurar a auto -imagem ferida por negligência dos pais, utilizando o jogo como oráculo ou teste para averiguar se o indivíduo é amado e merece o poder que ele secretamente deseja. Nas abordagens ecléticas multimodais propostas (juntamente com técnicas como psicoeducação, treinamento das habilidades de enfrentamento etc.), os pacientes são incentivados a produzir uma autobio grafia verbal ou escrita, ao mesmo tempo em que relacionam cada passagem com sua experiência emocional e potencial função do jogo na intermediação de conflitos. Ainda precisa ser explorado, no entanto, se esse tipo de intervenção contribui para elaboração de mecanismos de defesa mais maduros e, consequentemente, ganhos terapêuticos de longa duração no tratamento de JP. •
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Melhorando as habilidades de enfrentamento: solução de problemas, treinamento de habilidades sociais, controle do estresse, ampliação do repertório de lazer e prevenção de recaída À medida que o tratamento evolui para o fim, é importante reforçar as habilidades de enfrentamento do jogador a fim de evitar o retorno do jogo problemático e consolidar os ganhos terapêuticos. Os métodos aplicados nesse estágio irão variar de acordo com as necessidades do paciente (treinamento de habilidades sociais para pacientes com ansiedade social moderada a grave ou técnicas de controle do estresse e relaxamento básico para jogadores que sofrem de ansiedade generalizada). Nesse momento, espera-se que um período de tempo significativo de abstinência ou uma redução considerável do jogo tenha sido obtido. Com isso, os pacientes se deparam com uma porção extra de tempo livre. O lazer e os benefícios relacionados previamente conferidos pelo jogo deverão ser obtidos por meio de novas atividades. Em um estudo que investigou os fatores relacionados à abstinência do jogo em jogadores em tratamento, a qualidade do lazer e a duração do tratamento foram os melhores indicadores de redução do jogo. A inscrição em JA isoladamente ou em combinação com o tratamento formal foi associada com melhor qualidade de lazer93 • É útil ter um folheto com uma lista de opções de lazer de baixo custo ou gratuito disponível na comunidade e abordá-lo com os pacientes, para que as restrições financeiras não se tornem uma barreira intransponível. Considerando-se os déficits do jogador patológico nas funções executivas (isto é, controle e planejamento) e vulnerabilidade aos estados afetivos negativos (ansiedade e depressão), quase todos os programas de TCC multimodal incluem sessões práticas de solução de problemas e métodos de enfrentamento afetivo. Uma descrição detalhada de técnicas simples e eficientes para essa finalidade é apresentada no manual de terapia cognitivo-comportamental com ênfase em habilidades de enfrentamento por Kadden e colaboradores94• Com o auxílio de um formulário de 5 questões, os pacientes são guiados por um processo escalonado de solução de problemas. Nesse processo, espera-se que eles: I) identifiquem o problema; II) descrevam seus constituintes; III) formulem abordagens diferentes com base na avaliação prévia; IV) ponderem os prós e contras de cada opção; e V) avaliem os resultados da abordagem escolhida. Para aprimoramento do enfrentamento afetivo, o terapeuta pode fornecer aos pacientes um folheto com os diferentes tipos de distorções cognitivas que geralmente acompanham estados depressivos e ansiosos. Essas distorções são revisadas e os pacientes solicitados a fornecer exemplos relacionados ao jogo ou a outros problemas de suas vidas quando apropriado. Então, os pacientes são orientados a identificar e desafiar as distorções em seu próprio pensamento. Kadden e colabo-
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radores94 forneceram um conjunto de 20 questões, cuja intenção é guiar os pacientes por esse processo. As questões visam a incentivar uma avaliação imparcial dos fatos baseada em evidências, evitando o exagero das consequências e o tipo de pensamento de "tudo ou nada". Dois estudos independentes, um de frequentadores de JA e outro de jogadores patológicos que foram recrutados por meio de anúncios na mídia e que recentemente haviam parado de jogar95, relataram que apenas 8% dos jogadores eram capazes de conseguir abstinência completa durante 1 ano de acompanhamento. Sob condições naturais, durante ou após o tratamento, a recorrência do jogo é esperada, daí o argumento prévio de que a abstinência completa como o único resultado terapêutico aceitável é um critério muito restritivo e que, nas fases subsequentes da vida após o tratamento, podem ocorrer apostas ocasionais sem comprometer o bem-estar geral dos pacientes. De fato, Marlatt e Gordon96, em seu trabalho pioneiro com recaídas, insistiram na utilidade de se identificar dois tipos de recorrência: o lapso e a recaída. Um lapso é definido como um episódio isolado em que o comportamento-alvo é efetuado (p. ex., jogo, bebida, ingestão de medicamento etc.) ou quando as ações representam uma transgressão de limites previamente estabelecidos (p. ex., apostar além de um limite acordado para jogadores que buscam o jogo controlado, comer demais quando se está sob dieta etc.). Uma recaída envolve um episódio mais prolongado ou várias recorrências a companhadas por uma sensação subjetiva de perda de controle. Costuma significar um retorno ao padrão de comportamento dependente presente antes do tratamento ou da resolução pessoal. Toda recaída se inicia por um lapso, mas nem todo lapso conduzirá necessariamente a uma recaída. Dessa forma, um lapso deve ser considerado uma situação de risco para recaída. Se o lapso resultará em uma recidiva ou não depende dos vários sentimentos e das atitudes tomadas após ele ter acontecido. Entre as várias medidas que podem ser utilizadas para evitar a evo lução de um lapso, Marlatt e Gordon96 enfatizaram a prevenção da catastrofização pelo paciente. A violação da abstinência gera culpa, que pode levar ao desespero que, por sua vez, fornecerá paradoxalmente uma desculpa subjetiva para mais investimento no comportamento dependente ("se tudo está perdido.. :'). Na prevenção de recaída em jogo, os pacientes são instruídos a respeito desses importantes fatos sobre as recidivas e treinados a identificar um lapso, seus deflagradores e outras situações de alto risco. A elaboração de estratégias eficazes de enfrentamento capacitará os pacientes a lidar de forma apro priada com tais circunstâncias, diminuindo a probabilidade de recaída. Isso pode ser alcançado investigando-se as condições prévias do paciente às recaídas. Em seguida, um problema é proposto: o que poderia ser feito para prevenir uma recaída caso o paciente tivesse que enfrentar essa situação novamente? Na sequência, eles tentam
responder à questão, utilizando o método de resolução de problemas de cinco passos, descrito anteriormente. Hodgins e el-Guebaly95 acompanharam jogadores patológicos que haviam se comprometido com a abstinência do jogo por um ano. A Tabela II mostra os principais fatores de recaída identificados segundo os próprios jogadores. Nesse ponto, pode ser útil reavaliar a impulsividade e a cognição do paciente a respeito do jogo, já que ambas foram relacionadas com um risco mais elevado de recaída na fase pós-terapêutica. Goudriaan e colaboradores96 relataram que testes neuropsicológicos que avaliam controle inibitório e tomada de decisões eram bons preditores de recaída. O treino de solução de pro blemas pode ser particularmente bom para lidar com disfunção executiva e tomada de decisões impulsivas. De fato, uma combinação de resolução de problemas e reestruturação cognitiva foi julgada eficaz não apenas no tratamento de jogo, mas também na prevenção do desenvolvimento de JP em jogadores de risco 97 . Se houver necessidade de reforço, sessões com foco na impulsividade e nas distorções cognitivas poderão ser oferecidas antes do término do tratamento.
Manutenção: interrompendo o pêndulo do jogo por meio da melhoria da qualidade de vida Estudos naturalistas e pesquisas comunitárias sugerem que o diagnóstico de JP aparece e desaparece ao longo do tempo. Portanto, mesmo para indivíduos tratados persiste a necessidade de interromper as oscilações pendulares do jogo. Sander e Peters98 descreveram que a boa qualidade de vida serve como uma espécie de tampão, tornando menos provável a recaída do jogador caso elevenha a passar por situação de estresse. Do mesmo modo, o comparecimento frequente em reuniões e o apoio social foram os melhores indicadores de abstinência entre membros de JA. As iniciativas pós-terapêuticas devem ir além das questões relacionadas ao jogo, sendo aconselhável uma mudança de foco, do jogo para a qualidade de vida, durante essa fase de manutenção. Magalhães e colaboradores99 relatam uma atividade em grupo, composta por nove sessões abertas oferecidas aos jogadores que concluíram
Tabela 11 Fatores que contribuíram para recaídas em jogadores em recuperação Expectativas positivas de ganhar
23%
Necessidade de fazer dinheiro
17%
Falta de rotina estruturada ou tédio
13%
Fissura
11 %
Emoções negativas
11 %
Necessidade de socialização ou inclusão
80fo
Busca por excitação
70fo
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um programa terapêutico regular para JP. Os tópicos discutidos durante as sessões incluíam: saúde mental, saúde física, vida social, relacionamentos íntimos, trabalho (com fo co em ergonomia), família, saúde financeira, espiritualidade e lazer. Resultados preliminares revelam que, dentre 24 pacientes iniciais, 17 (71%) eram frequentadores assíduos após 2 anos de acompanhamento. Desses participantes regulares, cinco (29%) mantiveram a abstin ência absoluta, enquanto o restante, apesar de ter jogado ocasionalmente, nunca preencheu os critérios de JP novamente. De novo, se o paciente não se envolveu em exercícios físicos regulares, esse pode ser um bom mo mento para tentar motivá-lo. No caso de pessoas absolutamente sedentárias, é importante encontrar hobbies que sirvam como passatempo ou desafio alternativo que possam trazer um sentimento de vínculo e envolvimento. O objetivo é criar um estilo de vida coerente e saudável que seja incompatível com comportamentos compulsivos, e manter um nível ideal de estimulação, que torne a recaída em jogo menos provável. Questões 1. Os axiomas que orientam o diagnóstico de jogo patológico a) b) c) d)
e)
são: Endividamento, comportamento esqu ivo e mentiroso. Apostas altas e diárias. jogar por escapismo e para recuperar dinheiro de apostas anteriores. Manipulação dos relacionamentos interpessoais e conduta antissocial. Perda de controle, tolerância, abstinência, jogar por escapismo e para recuperar dinheiro de apostas anteriores, prejuízos . pSICOSSOCiaiS. Apostas altas e diárias, endividamentos. jogar por escapismo e para recuperar dinheiro de apostas anteriores. prejuízos psicossociais.
2. A melhor definição de jogo de azar é: a) Qualquer atividade que envolva empenhar um valor numa previsão cujo resultado não depende das ações do apostador, ou que depende ao menos em parte do acaso. b) Qualquer atividade lúdica que envo lva dispêndio financeiro para sua execução. c) Toda atividade que envolve interação lúdica com aparato tecnológico seja mecânico (caça-níqueis). ou eletrônico (videogame, computador, celulares. etc.). d) Atividade lúdica que é fraudada para favorecer um dos participantes em detrimento dos demais. e) Investimento continuado em relacionamento amoroso falido.
3. Escolha a assertiva mais correta sobre Jogo Patológico: a) Seu curso é variável com os homens apresentando uma progressão mais rápida que as mulheres. b) Sua etiologia não está definida, mas envolve fatores associados ao condicionamento propiciado pelos jogos de azar, vul-
JOGO PATOLÓGICO
nerabilidade psiquiátrica e fatores neurobiológicos de provável determinação genética. c) Indivíduos ansiosos estão naturalmente protegidos do Jogo Patológico, pois a aversão ao risco torna as apostas excessivamente aversivas e impedem o envolvimento prolongado com as apostas. d) Jogo de azar é um fenômeno recente na história da sociedade e por isso não há consenso quanto a sua regulamentação. e) Ansiedade e depressão são comumente associados com Jogo Patológico como fenômenos secundá rios ocasionados pelo endividamento e exclusão sociofamiliar.
4. Sobre o tratamento do jogo patológico indique a assertiva falsa: a) Técnicas motivacionais não se mostraram úteis porque os pacientes que buscam tratamento já acumularam prejuízos suficientes que dispensam este tipo de intervenção. b) No início do tratamento é necessário o controle das contin gências ambientais e técnicas para redução de estresse. c) A consolidação da abstinência é favorecida pela correção de distorções cognitivas que dão falsas impressões de controle, previsibilidade e habilidades especiais por parte do jogador. d) A consolidação dos ganhos terapêuticos requer desenvolvimento da habilidade de estabelecer metas de longo prazo e estratégias para melhorar a qualidade de vida. e) A avaliação psiquiátrica do paciente é fundamental para identificação precoce e tratamento das comorbidades comumente envolvidas no diagnóstico. 5. Sobre o tratamento farmacológico do Jogo Patológico : a) É realizado preferencialmente com antipsicóticos para redu ção das distorções cognitivas. b) Estabilizadores do humor são os fármacos de preferência, pois reduzem a perda de controle com apostas . c) Visa principalmente o tratamento das comorbidades. d) Nenhum fármaco se mostrou eficaz no controle do desejo (fissu ra) de jogar. e) A associação entre naltrexone e inibidores seletivos de recaptação de serotonina é contraindicada pelo risco de sobrecarga hepática.
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Impulsividade e Transtornos do Controle do Impulso Hermano Tavares
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 1038 Impulsividade, fenomenologia e endofenótipos, 1039 Diagnosticando transtornos do controle do impulso, 1040
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Dependências comportamentais, 1040 Impulsividade agressiva, 1043 Transtornos do autocuidado (grooming), 1045 Tratamentos, 1046 Psicoterapia, 1046 Farmacoterapia, 1046 Condutas de risco associadas, 1047 Considerações finais, 1047 Questões, 1048 Referências bibliográficas, 1048
Introdução Impulsividade é uma característica de comportamentos descritos como reações r ápidas e não planejadas, geralmente sem avaliação das consequências. Quando barreiras contingenciais impedem a entrada imediata em ação pode haver algum planejamento, contudo este é fo cado apenas na superação de tais barreiras e nos aspectos imediatos potencialmente gratificantes, sem consideração pelas consequências de longo prazo 1•2 • A impulsividade é um traço presente nos principais modelos de personalidade em uso atuaP. Ela representa a resultante final de um equilíbrio dinâmico entre fun ções propelentes da resposta comportamental e seus moduladores4. A impulsividade e as síndromes relacionadas foram descritas pelos pioneiros da psiquiatria moderna. No século XIX, Esquirol descreveu exemplos clínicos do que ele chamava de monomania instintiva, oferecendo uma das primeiras descrições de cleptomania na qual ele apontava o impulso patológico e n ão a deficiência moral, como
1. Definir impulsividade e seus subtipos. 2. Compreender o impacto social da impulsividade. 3. Reconhecer e diagnosticar os principais transtornos do controle do impulso. 4. Traçar as linhas gerais do tratamento dos transtornos do controle do impulso.
o elemento eliciador do furto 5. Em 1915, Kraepelin cunhou o termo oniomania para descrever o comportamento de consumo desenfreado de senhoras da sociedade frente a um novo fenômeno da época: o advento das lojas de departamento, sugerindo que tal comportamento era o correlato feminino da perda de controle observada em alguns homens frente aos jogos de azar. Traços impulsivos também fazem parte da descrição de outros transtornos psiquiátricos. Reconhecendo este fato, o DSM-IV-TR reúne as síndromes descritas acima sob a rubrica dos transtornos do impulso não classificados em outro lugar, lembrando que - "transtornos relacionados a substâncias, parafilias, transtorno da personalidade antissocial, transtorno de conduta, esquizofrenia, transtornos do humor podem ter aspectos que envolvem problemas de controle dos impulsos" 6 • Os diagnósticos agrupados nesta seção são: transtorno explosivo intermitente (TEI), cleptomania, piromania, jogo patológico (JP), tricotilomania e transtorno do controle dos impulsos sem outra especificação. Esta última categoria agrupa diagnósticos ainda em estudo como: oniomania, impulso sexual excessivo, dermatotilexomania, automutilação recorrente, uso indevido de internet etc. Dados recentes indicam que os transtornos do controle do impulso (TCI) são mais frequentes na população do que o inicialmente estimado, exceto pela piroma-
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nia, diagnóstico pouco estudado e sem dados definidos de prevalência. O comportamento de atear fogo tem sido associado a outros transtornos psiquiátricos principalmente em amostras clínicas de crianças e adolescentes7 . Nos últimos anos tem crescido o número de estudos relacionando transtorno afetivo bipolar8, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) 9, conduta antissociaF0, dependência de substâncias' ' e bulimia nervosa12 aos TCI e a traços impulsivos de personalidade. Contudo, o fenômeno da impulsividade transcende o escopo da Psiquiatria para revelar-se uma questão relevante na saúde pública e no âmbito socioeconômico. Cálculos conservadores estimam que 8% da população sofre de algum transtorno do impulso (esta conta não inclui dependências químicas e outros transtornos psiquiátricos descritos no parágrafo anterior7). O impacto econômico é alto, embora difícil de mensurar, visto que os TCI são altamente prevalentes e tem início em geral na adolescência ou no princípio da vida adulta e podem causar incapacitação duradoura ou definitiva 13 • O comportamento suicida é um dos fenômenos que melhor representa este impacto negativo da impulsividade, pois pode mutilar, deixar sequelas permanentes, ou abreviar a vida de pessoas que se tratadas poderiam continuar contribuindo com a sociedade. Tentativas de suicídio têm sido correlacionadas amplamente com traços impulsivos e agressivos de personalidade 14. Além do comportamento autoagressivo, a impulsividade também é relacionada com comportamento heteroagressivo e comportamentos de risco em geral como atividade ilegal, abuso de substâncias e comportamento sexual de risco 15 que por sua vez também afetam a saúde e o bem -estar social. De fato, 75% das mortes em adolescentes são causadas por fatores previníveis, todos direta ou indiretamente relacionados à impulsividade 16, tais como mortes por envolvimento com o crime e condutas antissociais; dirigir embriagado, intoxicado, ou de forma imprudente; abuso de substâncias e condutas sexuais de risco.
Impulsividade, fenomenologia e endofenótipos Apesar do evidente impacto social, a impulsividade como fenômeno comportamental permanece em grande parte negligenciada. Isso se deve em parte à natureza dos comportamentos impulsivos que podem ocorrer em qualquer indivíduo ao longo da vida e que se alinham ao longo de um continuum entre comportamento normal e psicopatológico. Esta característica tem dado ensejo a críticas de que os TCI representam uma tentativa de "medicalização" do livre arbítrio 17. Na verdade o desenvolvimento histórico do conceito de síndromes impulsivas aponta para perturbações no exercício deliberativo que impedem o exercício do livre arbítrio e o aprisionamento em uma rotina repetitiva de condutas irrefletidas que subvertem a autodeterminação do indivíduo.
Em carta ao seu amigo e editor Joseph Cottle, o poeta inglês Samuel T. Coleridge (1814) 18 exemplifica esta condição de perda do ato voluntário e subversão da razão pelo impulso (para uma revisão sobre volição e im pulso vide capítulo sobre Psicopatologia da Volição neste mesmo livro) ao comentar sobre seu comportamento errático causado pela dependência de láudano: .. . o meu caso é uma espécie de loucura, ocorre que é uma perturbação, uma impotência suprema da vontade e não das faculdades intelectuais - você pede que eu me erga- vá, peça a um homem paralítico de ambos os braços que os esfregue vigorosamente que isto irá curá-lo. Ai de mim! (ele responderia) porque eu não poder mover meus braços é minha queixa e minha miséria.
A dificuldade de classificação dos TCI compromete a investigação das relações entre a impulsividade e a clínica psiquiátrica. Os códigos diagnósticos atuais admitidamente agrupam os TCI em seções classificatórias residuais, como afirmado no Código Internacional de Doenças 10a versão 19 : Esta categoria compreende certos transtornos do comportamento que não podem ser classificados sob outras rubricas ... Estão aqui reagrupados em razão de certas semelhanças grandes nas suas descrições e não em função de outras características comuns importantes conhecidas.
O DSM-IV-TR explícita este traço comum como a impossibilidade de impedir um impulso de executar um ato perigoso para a própria pessoa ou para outros6. Po rém a natureza díspar dos comportamentos considerados é evidente (por exemplo, apostas desenfreadas movidas pelo desejo do ganho monetário no jogo patológico e comportamento destrutivo movido por agressividade incontida noTEI) e sugere subdivisões dentro da supracategoria dos TCI. Ambas as classificações também fa lham ao não apontar a diferença entre TCI e parafilias. Nos dois casos se observam alterações do impulso, contudo os primeiros marcados pela falta de controle e o consequente exagero são desvios quantitativos dos comportamentos normais, enquanto no segundo a eleição de objetos de desejo peculiares e exclusivos apontam para uma alteração qualitativa do impulso e de sua finalidade. Sendo um fenômeno multidimensional, a impulsivida de não se limita aos TCI como vimos acima e a desinibição comportamental, sua característica central, pode ser atribuída a diferentes origens envolvendo: instabilidade afetiva com perda da ação reguladora dos afetos sobre o comportamento; instabilidade cognitiva por debilidade dos sistemas atencionais e perda de foco; deficiência de empatia que impede regulação do comportamento pelo contexto social; desejos imperiosos como os observados nas dependências; e dificuldade de contenção de impulsos
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agressivos. Estas variações da apresentação da impulsividade foram organizadas no modelo ACEDA 2 , abordado em mais detalhes no capítulo sobre psicopatologia da volição neste mesmo livro. Cada subtipo de impulsividade seria representado por um diagnóstico prototípico, respectivamente: transtorno borderline de personalidade, trans torno de déficit de atenção e hiperatividade, transtorno antissocial de personalidade, dependência e transtorno explosivo intermitente. Como cada um é resultante de um processo neurobiológico específico, é possível afirmar que representam endofenótipos de impulsividade. A dimensão da impulsividade agressiva merece algumas considerações particulares. Primeiro é preciso diferenciá-la da agressão não impulsiva. Enquanto a primeira não tem objetivo estabelecido e caracteriza-se mais por uma ab-reação paroxística desencadeada por frustração, a agressão não impulsiva tem objetivo definido e como tal pode ser premeditada em geral com vistas à delimitação e defesa de território físico, afetivo, ou intelectual, disputa por recursos, obtenção e confirmação de domínio sociaF0 . Mais ainda, a impulsividade agressiva pode ser bidirecional, voltada para fora (heteroagressividade), ou contra o próprio indivíduo (autoagressividade). Interessantemente ambas as apresentações parecem compartilhar as mesmas bases fisiopatológicas envolvendo falhas no controle por estruturas pré-frontais e liberação de raiva e irritabilidade por debilidade de sistemas inibitórios baseados em transmissão serotoninérgica21 • Contudo, dentre os comportamentos de autoagressão é importante reconhecer uma divisão entre lesões autoinfligidas de forma deliberada (cortes, queimaduras, pancadas, chamados automutilação), de atos repetidos es tereotipicamente resultando em lesões não intencionadas (arrancar cabelos, cutucar a pele, roer unha). Estes últimos comportamentos parecem constituir uma sexta dimensão não prevista no modelo ACEDA, formada por comportamentos inatos, geralmente desencadeados por estresse, mas que adquirem caráter de automatismo à medida que progridem para formas de expressão mais desajustadas e patológicas. Sua execução por vezes ritualizada e paralelos etológicos que mostram associação frequente com ansiedade e estresse sugerem tratar-se de um grupo específico chamado de transtornos do autocuidado (grooming disorders) que compartilharia bases etiopatogênicas com o transtorno obsessivo-compulsivo22. Uma avaliação dos diagnósticos classificados entre os TCI sugere uma divisão em três grupos como representado na Figura 1.
Diagnosticando transtornos do controle do impulso Dependências comportamentais Dentre os diagnósticos incluídos nos TCI, jogo patológico (JP) tem sido o mais estudado, talvez por estar
Dependências comportamentais
Jogo patológico Cleptomania Compra compulsiva (oniomania)
Agressividad e impulsiva
Figura 1
Transtornos de autocuidado (grooming)
Transtornos do controle do impulso - subgrupos.
conceituado a mais tempo, por ser prevalente e porque sua natureza toca um espectro amplo de questões caras à sociedade como lazer, moralidade, regulação social, economia e custo-benefício da legalização (dada sua relevância JP é revisado em detalhes em um capítulo específico deste livro). Estas mesmas questões permeiam, por exemplo, a discussão sobre controle e regulamentação de subs tâncias psicoativas legais (álcool, tabaco) ou ilegais (maconha). Mas jogo parece compartilhar mais do que questões sociais com substâncias psicoativas. O JP é um exemplo de que, em indivíduos vulneráveis, o envolvimento com jogos de azar pode levar à perda de controle, escalada de aposta e envolvimento, causando grave comprometimento psicossocial, como observado nas dependências de substâncias, também denominadas dependências químicas (DQ). JP e DQ apresentam estrutura psicopatológica assemelhadas, comorbidade frequente, agregação familiar, fatores genéticos e neurobiológicos compartilhados, ao ponto de JP ser considerado um paradigma de dependência comportamentaF3 • Cleptomania Marta tem 27 anos, é solteira, estudante de direito. Ela conta que aos 13 anos, sem um motivo que ela consiga identificar, passou a praticar pequenos furtos, roubando inicialmente de pessoas da família e colegas na escola. Ao longo da adolescência os furtos foram crescendo em frequência. Ela não tem preferência por objetos específicos, mas notou que tem procurado objetos cada vez maiores e mais difíceis de retirar do local, "talvez por causa do desafio, porque pegar coisa pequena já não dá mais emoção". Atualmente, ela furta principalmente em lojas de departamento, pelo menos uma vez por semana. Marta não usa os objetos furtados, jogando fora ou doando a maioria deles. Ela já foi flagrada três vezes, sendo que em duas delas sua família precisou buscá-la na
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delegacia. Sua família a condena por isso e o relacionamento, particularmente com a mãe que é muito severa e religiosa, está muito comprometido. Ela confessou seu problema ao noivo apenas recentemente e às vezes interrompe o trabalho dele pedindo que ele vá até o shopping retirá-la do local porque ela se sente na iminência de cometer um furto, mas não consegue se retirar sozinha. Muitas características da cleptomania sugerem que a mesma também se enquadraria entre as dependência comportamentais. O paciente cleptomaníaco vive uma sofrida ambiguidade entre o risco, a consecução bem-sucedida do furto e o prazer da posse do objeto de um lado e a culpa e o medo de outro. Tentativas vãs de controle geram uma luta interna marcada por crises de desejo, "fissura'', de roubar. Interessantemente, cleptomania parece responder ao naltrexone, medicação hoje usada para tratar "fissura'' de dependentes de álcool e jogo de azar. Além disso, pacientes cleptomaníacos também apresentam boa resposta a terapias cognitivo-comportamentais (TCC) estruturada sobre modelos derivados do tratamento de dependências 24• Caracteristicamente, o paciente cleptomaníaco relata inúmeras tentativas frustradas de controlar ou cessar os furtos. O ato em geral é antecedido de grande tensão e alívio após a sua execução, que pode ser seguido de remorso genuíno, ou não. Os furtos habitualmente têm início na adolescência e podem passar anos sem serem percebidos - mais da metade dos cônjuges desconhecem esta condição dos seus parceiros. Contudo, eles são relativamente frequentes, ocorrendo em média duas a três vezes por semana. A intensa vergonha e o pesado juízo moral sobre o furto impedem que a maioria desses pacientes procurem tratamento. A negação é comum mesmo quando pegos roubando e, por vezes, esses pacientes preferem sofrer as consequências legais do que revelar sua patologia. Tentativas de suicídio podem ocorrer quando o cleptomaníaco é ameaçado de delação, ou quando cruelmente exposto. A Tabela I exibe os critérios diagnósticos do DSM-IV-TR para cleptomania6 .
Tabela I
Critérios diagnósticos para cleptomania
A. Fracasso recorrente em resistir aos impulsos de furtar objetos que não são necessários para o uso pessoal ou por seu valor monetário. B. Sentimento aumentado de tensão imediatamente antes da realização do furto. C. Prazer, satisfação ou alívio no momento de cometer o furto.
O. O furto não é cometido para expressar raiva ou vingança, nem ocorre em resposta a um delírio ou alucinação.
E. O furto não é melhor explicado por um transtorno da conduta, um episódio maníaco ou um transtorno da personalidade antissocial. Fonte: DSM-IV-TR6
Dados epidemiológicos da cleptomania são desconhecidos. Sua prevalência na população é estimada em 0,6%, porém este número pode estar subestimado em função do medo e da vergonha. A síndrome parece ocorrer mais em mulheres do que em homens numa proporção duas a quatro vezes maior. Sintomas cleptomaníacos são comuns em população psiquiátrica, sendo que em média 9% preencheria critérios para um diagnóstico de cleptomania. Por razões ainda desconhecidas, a cleptomania pode ser particularmente frequente em pacientes com transtorno alimentar, tendo um estudo relatado que 24% das pacientes que se apresentaram para tratamento de bulimia nervosa fecharam critérios para este TCI ao menos uma vez ao longo da vida 25. As comorbidades psiquiátricas mais comumente relatadas em pacientes em tratamento para cleptomania são: outros TCI (20 a 46%), abuso de substância (23 a 50%) e transtornos do humor (45 a 100%). Transtornos da personalidade (TP) parecem ser comuns; em um estudo com 28 pacientes ambulatoriais os TP mais comuns foram paranoide (17,9%), borderline (10,3%) e esquizoide (10,7%). A associação com TP indicava início mais precoce e sintomatologia mais grave. A qualidade de vida desses pacientes é grandemente comprometida, independente da presença ou não de comorbidade psiquiátrica. Estima-se que mais de 80% deles já foram detidos legalmente e cerca de 15 a 20% já cumpriram pena de extensão variável por causa dos furtos 24 • A etiopatogenia da síndrome é desconhecida, mas sugere-se uma associação com maus tratos na infância e possível comprometimento de estruturas do córtex préfrontal. No único estudo de neuroimagem conduzido em cleptomania, 1O pacientes foram comparadas a 1O controles normais quanto à integridade da substância branca cerebraP. As imagens por difusão de tensão mostraram um prejuízo da integridade da substância branca nas regiões inferiores do lobo frontal, mostrando que enquanto as estruturas frontais não apresentavam alterações morfométricas, as mesmas pareciam "desconectadas" do restante das estruturas cerebrais (Figura 2). Em concordância com estes achados, um estudo demonstrou que prejuízo de funções executivas estavam significativamente associadas a maior gravidade dos sintomas de cleptomania, reforçando a sugestão de prejuízo da função inibitória e reguladora do comportamento por comprometimento de estruturas da região pré-frontaF 7 • Vários métodos psicoterápicos incluindo tratamentos psicodinâmicos ou psicanaliticamente orientados, TCC, sensibilização encoberta e dessensibilização foram propostos, porém todos limitados a séries de caso sem controle adequado 22 • Antidepressivos tricíclicos, inibidores darecaptação de serotonina (ISRS), lítio, topiramato e ácido valproico já foram propostos para o tratamento da cleptomania, porém o único fármaco testado em estudo con-
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Imagens por difusão de tensão. A: Imagem de controle normal; B: em portadora de cleptomania a região destacada exibe rarefação e descontinuidade da matéria branca e em região frontal inferior decorrente de provável degeneração axonal. (Veja imagem colorida no encarte).
Figura 2
trolado e randomizado foi o naltrexone que se mostrou superior ao placebo28 • Oniomania (compras compulsivas)
Aparecida tem 57 anos de idade, casada, dois filhos, aposentada. Ela procurou tratamento porque o seu marido está exasperado com os seus gastos. Aparecida é filha de uma família de classe média C e relata que na infância sentia-se humilhada por ter que usar roupas que tinham pertencido aos seu irmãos mais velhos. Ela notou que sua prodigalidade com dinheiro se manifestou desde o primeiro emprego aos 17 anos. Contudo, ela só passou a apresentar dívidas depois dos 40 anos quando os bancos e financeiras passaram a oferecer crédito pessoal facilitado sem exigência de comprovação de renda. Há dois anos ela fechou um acordo com a empresa em que trabalhou por 25 anos para resgatar uma compensação financeira e se aposentou. Ela usou o dinheiro para saldar dívidas com credores, porém com o ócio sua dedicação às compras aumentou muito e ela está novamente endividada. Os objetos comprados são em sua maioria peças de vestuário e enfeites para a casa. Ela não usa a maioria deles e os tem quase todos guardados em armários de sua casa. Ela tem grande dificuldade de se desfazer dos objetos e fica muito irritada quando alguém mexe nos seus armários. Ela descreve suas emoções como: Uma montanha-russa; quando saio da loja com cinco sacolas em cada mão me sinto poderosa, no estacionamento já me sinto culpada e nervosa porque não sei como tirar as compras do porta-malas do carro e guardá-las em casa sem que meu marido veja.
A oniomania, ou compras compulsivas, não consta dos códigos atuais de classificação, exceto pela possibilidade de
ser nomeada como TCI sem outra especificação. Contudo, as primeiras descrições clínicas datam do início do século XX, tendo sido produzidas por fundadores do pensamento psiquiátrico moderno como Kraepelin e Bleuler. O termo vem do grego oné (compras) e mania (frenesi). Bleuler classificava a oniomania entre os impulsos reativos juntamente com a piromania e a cleptomania. Sobre ela ele disse: O elemento particular (da oniomania) é a impulsividade; eles não podem evitar o que às vezes se expressa no fato de que, a despeito de uma boa educação escolar, os pacientes são absolutamente incapazes de pensar diferentemente e conceber as consequências sem sentido dos seus atos e a possibilidade de não realizá-los. Eles nem mesmo sentem o impulso mas agem de acordo com a sua natureza como a lagarta que devora a folha.
Inicialmente acreditava-se que a oniomania seria uma expressão frustra da cleptomania, porém, observações posteriores mostraram que ambas apresentam curso independente e que a oniomania parece ser muito mais prevalente. Aliás, se fosse oficialmente reconhecida, a oniomania seria o TCI mais frequente, com taxas de prevalência estimadas entre 5 e 8% da população geral, com uma proporção homem/mulher de aproximadamente 1:4. Considerando-se esta elevada frequência e o fato de que estes pacientes consomem quantidades muitas vezes superiores do que as do consumidor comum é plausível supor que a oniomania tem influencia no varejo, no sistema de crédito, uma vez que muitos deles passam por períodos de inadimplência, e deve apresentar impacto significativo na economia de um país, o que torna ainda menos justificável a pouca atenção dada a esta síndrome até o momento 29. Uma possível razão para esta negligência são as dúvidas que cercam a sua psicopatologia. Comportamento pró-
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digo e gastador também é observado em portadores de transtorno afetivo bipolar (TAB), porém como resultado de uma desinibição comportamental secundária à polarização do humor para a euforia em fases maníacas ou hipomaníacas. Os pacientes oniomaníacos relatam que com frequência as compras são levadas a cabo como forma de lidar com a angústia, ou esquecer uma frustração, mas enquanto afetos negativos podem atuar como desencadeantes, nota-se que nestes pacientes os episódios ocorrem de forma independente da presença ou ausência de polarização do humor, mesmo em relação à depressão que é provavelmente a comorbidade psiquiátrica mais comum. Outros autores sugerem uma aproximação do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) destacando as formas por vezes ritualizadas com que estes pacientes armazenam e zelam pelos objetos comprados, porém, ainda sobressaem neles o caráter ego-sintônico, irrefletido e irreprimível das compras que reforçam seu caráter impulsivo. A Tabela II exibe os critérios diagnósticos propostos por McElroy et al. 30. Oniomania apresenta elevada comorbidade com transtornos do humor, transtornos ansiosos, dependências, transtornos alimentares e outros TCI. Transtornos de personalidade também são comuns com relatos oscilando entre 50 e 60% em pacientes em tratamento por oniomania. Os diagnósticos mais comuns são borderline, antissocial e narcisista. Por sinal, questões associadas à autoimagem estão no cerne de especulações feitas sobre o significado das compras. Os objetos mais comprados são roupas e acessórios, sapatos, bijuterias, maquiagem e CDs. A maioria está aparentemente relacionada à necessidade de construção e confirmação de uma identidade de gênero, entretanto, estudos qualitativos sugerem que a relação entre auto imagem e compras é mais verdadeira para mulheres do que para homens31. Os poucos dados sobre a neurobiologia da oniomania sugerem o envolvimento de vias dopaminérgicas. Comings et al. encontraram uma correlação significativa entre a região promotora do gene do receptor D 1 e uma associação
Tabela 11
Critérios diagnósticos para oniomania
Preocupação, impulsos ou comportamento mal adaptativos envolvendo compras, como indicado por, ao menos, um dos seguintes critérios: Preocupação frequente com compras ou impulso de comprar irresistível, intrusivo, ou sem sentido. Comprar mais do que pode, comprar itens desnecessários, ou por mais tempo que o pretendido. A preocupação com compras, os impulsos ou o ato de comprar causam sofrimento marcante, consomem tempo significativo, e interferem no funcionamento social e ocupacional, ou resulta em problemas financeiros. As compras compulsivas não ocorrem exclusivamente durante episódios de hipomania ou mania.
de transtorno de Tourette com JP, abuso de álcool e compras. Mais recentemente, surgiram relatos de ocorrência de comportamentos impulsivos em pacientes com doença de Parkinson em tratamento com agonistas dopaminérgicos, na chamada síndrome de desregulação dopaminérgica, sendo que os transtornos mais comuns são JP, impulso sexual excessivo, comer e comprar compulsivos32. Citalopram e outros ISRS têm sido propostos para o tratamento de oniomania, porém nenhum deles em contexto controlado. O único estudo do gênero mostrou superioridade de um programa TCC sobre lista de espera33 .
Impulsividade agressiva Transtorno explosivo intermitente
Júlio tem 35 anos, é casado, advogado e tem dois filhos. Ele procurou ajuda porque se irrita facilmente, tendo se envolvido em confrontos físicos por causa de discussões com desconhecidos no trânsito. Júlio não tem um histórico de comportamento violento na infância, nem de transtorno de conduta, sendo descrito como uma criança afável, porém um pouco tímida. Contudo, ele descreve os pais como irritadiços e relata que quando adolescente teve que algumas vezes conter o pai para impedir que ele tomado de fúria machucasse seu irmão mais novo. As crises de fúria de Júlio começaram durante a faculdade, mas aumentaram de frequência após o casamento e nascimento do primeiro filho. Durante estes episódios ele se descontrola e já perdeu um bom emprego por agredir um colega de trabalho. Recentemente, em uma discussão com a esposa ele sentiu um ímpeto de agredi-la e para se conter bateu a própria cabeça com força várias vezes contra a parede. A característica central deste transtorno são as explosões súbitas de raiva e agressão cuja exuberância e intensidade estão em flagrante desproporção com seu desencadeante. Para ser caracterizado como episódio específico doTEI, o ato agressivo deve envolver violência suficiente para produzir lesão corporal, ou dano considerável à propriedade. Infelizmente os critérios diagnósticos atuais não estabelecem limites precisos para intervalo de tempo e frequência da ocorrência desses episódios. Contudo, o diagnóstico exige que tais sejam recorrentes e causem embaraço, sofrimento emocional e prejuízo de ajuste social. A Tabela III exibe os critérios diagnósticos propostos pelo DSM-IV-TR para o diagnóstico de TEI. Apenas dois estudos nacionais epidemiológicos sobre TEI foram publicados até o momento. Um estudo norte-americano34 encontrou prevalências ao longo da vida e nos últimos 12 meses de 7,3 e 3,9% respectivamente. A média de ataques por indivíduo foi de 43 ao longo da vida. A idade das primeiras manifestações foi em torno dos 14 anos de idade, não havendo fatores étnicos ou sociodemográficos particularmente associados. Apesar de a maioria dos portadores de TEI ( 60%) ter recebido algum tipo de apoio profissional em saúde mental, menos de um ter-
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ço foi tratado para as crises de raiva (28%). Um estudo sul-africano35 identificou uma prevalência ao longo da vida de 2%, usando critérios mais rigorosos de intervalo de tempo e frequência de ataques e de 9,5% usando critérios menos exigentes (ao menos três ataques ao longo da vida). TEI foi relacionado com etnia branca e mestiços e exposição a eventos traumáticos. Em ambos os estudos foram frequentes as comorbidades com transtornos do humor, transtornos ansiosos e abuso de substâncias. O envolvimento de vias serotoninérgicas na modulação do comportamento agressivo-impulsivo é um dos dados mais robustos em neurobiologia do comportamento, sendo descrito em estudos genéticos e de desafio tanto em modelos animais e quanto em seres humanos. Agonismo de receptores pós-sinápticos 5-HT la e antagonismo de receptores pré-sinápticos 5-HT 2 reduzem a expressão de agressividade, sendo que medicações como buspirona e ISRS e neurolépticos atípicos, respectivamente, têm sido verificados como úteis no controle de ataques de raiva36. Entretanto, tratamento farmacológico estrito não é suficiente para remissão dos episódios agressivos. Intervenções psicossociais também se mostram eficazes no tratamento do TEI, particularmente programas pautados em técnicas de manejo de raiva, treino de assertividade e TCC37. Piromania
Muitas dúvidas cercam o diagnóstico de piromania. Primeiro é importante considerar que as implicações legais e morais do comportamento de atear fogo apropriedades, ou mesmo a pessoas, deflagra vigorosa reação social e legal, fazendo com que tais pacientes sejam extremamente furtivos e reticentes à busca por tratamento. Mais do que em consultórios, a hipótese de piromania surge com maior frequência em contextos forenses, nos quais o diagnóstico diferencial se impõe em relação a suspeitas de incêndio criminoso envolvendo fraude securitária, destruição de provas, vingança ou simples crueldade.
O paciente típico é descrito como sendo fascinado pelo fogo e tudo que se relaciona com ele desde jovem, apreciando testemunhar incêndios causados por terceiros, ou por ele mesmo. Relatos de caso informam que tal encanto leva alguns desses indivíduos a participarem como voluntários em brigadas de incêndio, ou mesmo a se integrar ao corpo de bombeiros. Contudo, esta apresentação clássica é rara e sua prevalência desconhecida. De outro lado, o comportamento incendiário transgressivo é relativamente comum, atingindo cerca de 1% da população norteamericana com importante impacto socioeconômico. Consequentemente nota-se um claro movimento da literatura atual de abandonar as investigações centradas no diagnóstico de piromania e focar no comportamento incendiário (arsonism). No único estudo epidemiológico conduzido em amostra nacional com entrevistas domiciliares que inquiriu sobre comportamento incendiário, este comportamento foi associado ao gênero masculino, cor branca, morador da porção oeste dos Estados Unidos, indivíduos jovens com idade entre 18 e 35 anos, nascidos no próprio país. Comorbidades frequentes com conduta antissocial, abuso de álcool, maconha e transtorno de personalidade, principalmente antissocial e obsessivo-compulsivo foram relatadas.Em acordo com estes achados, estudos anteriores têm relacionado comportamento incendiário em adolescente com déficits de aprendizagem. Relatos de asso ciação com psicoses, síndromes mentais orgânicas e intoxicação aguda por álcool durante o ato de provocar o incêndio reforçam a percepção desse comportamento como indicador de psicopatologia grave associada ao desenvolvimento38 e fragiliza ainda mais o diagnóstico de piromania. A Tabela IV exibe os critérios operacionais do DSM-IV-TR para piromania. Não há modelos de tratamento específico para a pi. . romama; as mtervençoes propostas ate, o momento sao
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Tabela IV
Tabela 111
Critérios diagnósticos para transtorno explosivo intermitente
Critérios diagnósticos para piromania
A. Comportamento incendiário deliberado e proposital em mais de uma ocasião. B. Tensão ou excitação afetiva antes do ato.
A. Diversos episódios distintos de fracasso em resistir a impulsos agressivos, resultando em atos agressivos ou destruição de propriedades. B. O grau de agressividade expressada durante os episódios está nitidamente fora de proporção com quaisquer estressares psicossociais desencadeantes. C. Os episódios agressivos não são melhor explicados por outro transtorno mental (p. ex., transtorno da personalidade antissocial, transtorno da personalidade borderline, episódio maníaco, transtorno da conduta ou transtorno de déficit de atenção/ hiperatividade), nem se devem aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p. ex., droga de abuso, medicamento) ou de uma condição médica geral (p. ex., traumatismo craniano, doença de Alzheimer). Fonte: OSM-IV-TR 6•
C. Fascinação, interesse, curiosidade ou atração pelo fogo e seus contextos situacionais (p. ex., parafernália, usos, consequências). O. Prazer, gratificação ou alívio ao provocar incêndios, ou quando os testemunha ou participa de seus resultados. E. O comportamento incendiário não ocorre visando a obter ganhos monetários, expressar uma ideologia sociopolítica, encobrir uma atividade criminosa, expressar raiva ou vingança, melhora r as próprias condições de vida, em resposta a um delírio ou alucinação, ou em consequência de um prejuízo no julgamento (p. ex., na demência, no retardo mental ou na intoxicação com substância).
F. O comportamento incendiário não é melhor explicado por um transtorno da conduta, um episódio maníaco ou um transtorno da personalidade antissocial. Fonte: DSM-IV-TR6 •
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pautadas no tratamento das condições neuropsiquiátricas associadas ao comportamento incendiário identificadas caso a caso.
Transtornos do autocuidado (grooming) Tricoti lomania
José Carlo tem 42 anos, é administrador, casado e tem um filho. Ele foi encaminhado por uma dermatologista a quem procurou para tratar de calvície, quando se constatou que a rarefação capilar era causada pelo ato de arrancar cabelos conduzido por ele mesmo. José Carlos sente muita vergonha do seu problema e inicialmente se mostra reticente a discuti-lo na primeira entrevista. Sentindo-se mais à vontade ao fim da consulta, ele revela que arranca fios diariamente, porém com mais intensidade após um dia de trabalho tenso, ou desgastante. Isto em geral ocorre enquanto ele brinca no computador, ou relaxa na frente da TV. Ele tentou evitar fazê-lo por dois dias, mas depois de uma discussão com a esposa sentiu uma vontade incontrolável e na frente do espelho arrancou quase metade do seu escalpo. José Carlos conta que arrancar cabelos brancos, ou com textura "estranha" era um hábito desde a adolescência, mas que só se tornou um problema a três anos quando ele descobriu um caso de infidelidade da esposa. O corte de cabelo e outras formas de manipulá-lo são uma das formas mais antigas de expressão cultural. Cortá-los, puxá-los, arrancá-los e até queimá-los podem representar expressão de desespero, angústia, ou luto. O ato de arrancar cabelos ou pelos repetidamente ao ponto de prejudicar a cobertura capilar foi registrado pela primeira vez por Hipócrates em sua obra Epidemias I. Porém, o comportamento só foi isolado como síndrome e nomeado tricotilomania (do grego thrix - cabelo e tillein - arrancar) por Hallopeau em 1889. O ato de arrancar deve ser intenso e frequente o suficiente para causar uma região derarefação da cobertura capilar que seja visível a olho nu. As regiões mais comumente afetadas são escalpo e face (incluindo cílios, sobrancelhas, barba e bigode), seguida de região púbica, extremidades e axilas. Enquanto a maioria dos paciente se limita apenas a arrancar os pelos, em outros o ato pode ser mais complexo. Alguns pacientes são mais meticulosos ao arrancar o cabelo, pois sentem uma satisfação estranha a eles mesmos quando conseguem extrair o fio juntamente com o bulbo piloso. Não raro, eles apreciam observar e às vezes morder o bulbo sentindo-o estourar entre os dentes incisivos. Outros passam o fio arrancado ao redor ou sobre os lábios. Mastigar e/ou engolir o fio também pode ocorrer eventualmente ocasionando erosão dentária, ou formação de tricobezoar (bola de pelo) no trato gastrointestinal com risco de obstrução que requer intervenção cirúrgica - achamada síndrome de Rapunzel, uma complicação menos frequente, porém grave. Estima-se que aproximadamen-
te metade dos portadores de tricotilomania apresentam algum dos comportamentos orais descritos acima39 . Outros comportamentos comumente associados são onicofagia, chupar o polegar, morder a língua ou as juntas dos dedos. Antes considerada uma síndrome, a tricotilomania tem se mostrado uma das mais prevalentes síndrome dentre os TCI. Um levantamento recente encontrou uma taxa de ocorrência ao longo da vida de aproximadamente 4% em uma população universitária4 0 • A Tabela V exibe os critérios operacionais do DSM-IV-TR para tricotilomania. A maior parte dos portadores de tricotilomania relatam que o momento mais comum de arrancar os cabelos é durante atividades de rotina ou de relaxamento, como dirigir, assistir a TV, ou falar ao telefone, quando geral mente eles estão distraídos. Neste contexto, arrancar os cabelos é habitualmente um gesto automático do qual se tem uma consciência apenas parcial, sendo frequente que posteriormente o paciente se assuste com a extensão das lesões provocadas ao couro cabeludo. O binômio tensão antecipada e alívio após o ato não se observa tão claramente em todos os casos, sendo que sua exigência (critérios b e c) podem limitar artificialmente o diagnóstico. Por outro lado, observa-se que eventos traumáticos e estresse estão relacionados ao desencadeamento e agravamento da síndrome. A caracterização psicopatológica da tricotilomania é incerta, talvez pela própria heterogeneidade dos pacientes. Alguns relatam uma luta interna entre o prazer de arrancar cabelos e fios e o medo de se expor ao ridículo que lembra a ambiguidade dos dependentes. Outros apresentam um processo ritualizado de retirada dos fios, procurando fazê -lo seguindo padrões geométricos ou de simetria sugestivos de TOC. Finalmente, alguns paciente relatam retiradas em salvas curtas e rápidas, algo estereotipado que lembra tiques motores. Estes fatos e a co-ocorrência comum com dermatotilexomania (escarificação repetida da pele), transtorno dismórfico corporal e transtorno de movimento estereotipado têm conduzido a propostas de revisão da das-
Tabela V
Critérios diagnósticos para tricotilomania
A. Comportamento recorrente de arrancar os cabelos, resultando em perda capilar perceptível; B. Sensação de tensão crescente imediatamente antes de arrancar os cabelos ou quando o indivíduo tenta resistir ao comportamento; C. Prazer, satisfação, ou alívio ao arrancar os cabelos;
O. O distúrbio não é melhor explicado por outro transtorno mental, nem se deve a uma condição médica geral (p. ex.: uma condição dermatológica) E. O distúrbio causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo. Fonte: DSM-IV-TR6•
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sificação da tricotilomania, com retirada da exigência dos critérios B e C, foco nas variações do comportamento de arrancar cabelos e inclusão da síndrome em uma nova seção específica para transtornos de comportamentos fo cados no corpo. Tem sido especulada uma associação entre tricotilomania e TOC, mas o dados ainda são controversos. Dados de comorbidade apontam para uma associação significativa com depressão, ansiedade generalizada, abuso de substância e TOC (em ordem decrescente). O compartilhamento de fatores genéticos ainda não está esclarecido. Dois estudos investigaram a ocorrência de variações alélicas do gene da proteína SAPAP3 em transtornos do espectro obsessivo-compulsivo. A SAPAP3 é uma proteína pós-sináptica associada a vias glutamatérgicas. A sua deficiência em cobaias tem sido associada a comportamentos de autocuidado (grooming) repetitivos e ansiedade pronunciada que são compensados pela administração de fluoxetina. Zuchner et alY encontraram uma frequência significativa de variações alélicas mais raras em portadores de TOC e tricotilomania, porém Bienvenu et al. 42 encontraram associação significativa com variações alélicas do SAPAP3 para tricotilomania e outros transtornos de autocuidado ( dermatotilexomania e onicofagia), mas não para TOC. Dentre as intervenções psicossociais propostas para tratamento da tricotilomania, a terapia de reversão de hábito (TRH), que combina diferentes técnicas comportamentais, foi a mais estudada. Em uma metanálise sobre estudos controlados para tricotilomania a TRH mostrouse mais eficaz que a clomipramina e os ISRS. A clomipramina foi superior ao placebo, mas o ISRS não 43. Dois estudos duplo-cegos controlados sugerem uma superioridade de n -acetil-cisteína, um aminoácido que modula a concentração extracelular de glutamato, e olanzapina, um neuroléptico atípico, ao placebo no tratamento da trico tilomania.
Tratamentos Psicoterapia A falta de uma classificação melhor dos comportamentos impulsivos e dos subtipos de impulsividade tem comprometido o estudo sistemático tanto do tratamento de sintomas impulsivos quanto dos TCI. Revisões na área sugerem tamanhos de efeito superiores para intervenções psicoterápicas quando comparadas aos resultados de es tudos de tratamentos farmacológicos. Contudo, os estudos sobre intervenções psicossociais ainda apresentam carências metodológicas; em poucos se observam a adoção de grupo controle e alocação aleatória nos grupos. Além disso, os poucos estudos controlados adotaram lista de espera, ou tratamento usual que em geral se traduz por psicoterapia não estruturada e de composição técnica e refe-
rencial teórico variados. Nenhum estudo comparando diferentes abordagens, ou fatores de predição de resposta a diferentes técnicas para o mesmo diagnóstico, foi publicado até o momento. Os estudos com melhor estrutura metodológica em TCI sugerem eficácia das abordagens cognitivo-comportamentais em JP, TEI e oniomania. A abordagem cognitivo-comportamental teria o benefício adicional de ser comprovadamente eficaz no tratamento de sintomas depressivos, que são quase universais em portadores de TCI em tratamento. Porém, em todos os estudos, controlados ou não, não há comparação entre o método cognitivo-comportamental e outras linhas com referencial teórico diverso. Abordagens psicodinâmicas44 e modelos híbridos combinando técnicas psicodinâmicas e cognitivo-comportamentais, p. ex. terapia focada em esquemas45, têm sido propostos. Porém, a ausência de estudos comparativos impede a eleição dos métodos mais adequados de acordo com diagnóstico, tipo de impulsividade e características do paciente.
Farmacoterapia No campo dos tratamentos farmacológicos, com exceção da indicação de ISRS para controle de impulsos agressivos46, o uso de psicofármacos geralmente se dá em uma perspectiva que considera a impulsividade como um fenômeno secundário. É o caso da indicação de estabilizadores do humor e neurolépticos de segunda geração no tratamento das síndromes inclusas no chamado espectro bipolar e do metilfenidato em casos em que se suspeita de uma comorbidade com TDAH. Os estudos que consideram uma alteração primária no sistema de gratificação cerebral e a perda de controle sobre comportamentos motivados em TCI ainda são incipientes, porém animadores. O melhor exemplo é o caso do naltrexone. Naltrexone é um bloqueador do receptor ~ -opioide sintetizado pela primeira vez com o intuito de bloquear os efeitos hedônicos de derivados opiáceos no tratamento do abuso dessas substâncias. Estudos experimentais durante a década de 1980 confirmaram que naltrexone também diminuía significativamente o comportamento de autoadministração de etanol em modelos animais devido a uma provável redução dos efeitos reforçadores desta substância. Em 1992, Volpicelli et al. 47 publicaram o primeiro estudo duplo-cego controlado sobre naltrexone no tratamento da síndrome de dependência do álcool (DAS). No final da década de 1990, alguns autores passaram a especular sobre o uso do naltrexone nos transtornos do controle do impulso como uma ferramenta para redução do caráter hedônico desses comportamentos48. Neste mesmo período, Crockford e el-Guebaly4 9 relataram o primeiro estudo de caso e anos depois Kim et al. 50 publicaram o primeiro estudo duplo-cego controlado para jogadores patológicos. Desde então, observa-se um interesse crescente pelo uso de
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naltrexone em JP51, cleptomania, automutilação 52, impulso sexual excessivo53 e tricotilomania54. Contudo, o uso do naltrexone nos TCI deveria levar em conta a heterogeneidade dos mesmos. Por exemplo, no caso da SDA há sugestões de que os pacientes com história familiar de SDA55, episódios de fissura - cravings - frequentes ou intensos, abuso de outras substâncias e início precoce dos problemas com álcool respondem melhor ao naltrexone56. A ação localizada do naltrexone no núcleo accumbens reforça a hipótese de que sua ação terapêutica se dê por uma modulação da atividade dopaminérgica no sistema de gratificação cerebral. A transmissão dopaminérgica também é modulada pela atividade glutamatérgica neste mesmo circuito57, um fato que abre uma ampla possibilidade de especulações e investigações sobre o efeito de novos agentes farmacológicos com ação na transmissão glutamatérgica58. Neste sentido dois compostos têm recebido crescente atenção: topiramato e modafinil. Topiramato, um anticonvulsivante com propriedades de antagonismo glutamatérgico e agonismo GABA59, parece reproduzir os passos do naltrexone no campo dos TCI. Foi testado na SDA60 e em transtornos alimentares cursando com episódios de compulsão alimentar61·62 com relatos iniciais auspiciosos. Atualmente especula-se sobre seu uso em TCI como JP 63 e oniomania64, embora neste caso ainda não existam estudos duplo-cegos controlados com placebo.
Condutas de risco associadas Os TCI são diagnósticos que englobam condutas de risco para o seu portador e para as pessoas a sua volta. Porém, cada categoria é restrita a um tipo de comportamento, o que leva à falta de reconhecimento de outros comportamentos de risco associados. Este fato pode ter impacto determinante na qualidade e expectativa de vida dos pacientes. Hurt et al. 65 relatam que em portadores de SDA mais da metade das causas de morte são atribuíveis ao tabagismo. Frequentemente um paciente recorre à atenção médica por problemas com álcool e/ou jogo; as consequências agudas de ambos (comprometimento da saúde geral e profundo endividamento) capturam a atenção imediata do clínico que estabelece as medidas para o seu controle. A co-ocorrência do tabagismo, que em pacientes com este perfil chega a 70%66, é esquecida e anos depois este paciente tem sua vida abreviada pelas consequências do fator mais comum de morte prevenível. Infelizmente, tal negligência não se limita ao tabagismo, mas se estende por outros comportamentos que a experiência clínica e alguns poucos estudos mostram serem bastante comuns em TCI. A associação entre jogo e abuso de álcool e substâncias está bem documentada, porém dentre todos os TCI, JP parece ter sido o único sistematicamente estudado neste sentido. Igualmente, a investigação de ocorrência de práticas sexuais de risco para contágio por doenças sexualmente transmissíveis se limi-
ta a dois estudos em JP 67. O estudo da impulsividade sexual e das condutas sexuais de risco em portadores de outras síndromes impulsivas é de fundamental importância para a epidemiologia e prevenção da disseminação das doenças sexualmente transmissíveis. Portadores do diagnóstico de impulso sexual excessivo têm frequência de atividade sexual duas a dez vezes maior do que a média populacional, sendo que a maioria se dá com parceiros desconhecidos e uma parcela expressiva sem uso de proteção adequada68 . A despeito de sua inegável relevância, este campo permanece inexpli cavelmente inexplorado. Em relação a condutas de risco envolvendo auto e heteroagressividade em TCI, o cenário não é muito diferente, porém iniciativas recentes têm buscado cobrir o vácuo de informações. No campo dos transtornos alimentares está bem estabelecida a relação entre ocorrência de episódios bulímicos, histórico de abuso na infância, im pulsividade e risco elevado de suicídio69 . Transtornos de personalidade e transtornos por uso de substância psicoativas são fatores de risco para suicídio quase universais entre diferentes culturas, contextos e populações, além de transtornos do humor, ansiedade e síndromes psicóticas70 . Todas estas condições e fatores de risco estão presentes nos TCI. Porém, a prevalência de tentativas de suicídio em jogadores masculinos pode ser subestimada em função da maior letalidade associada a este gênero. Assim como no caso do JP, prevalência, características e fatores de risco para comportamento suicida são desconhecidos em outros TCI, um fato preocupante se considerarmos a estreita relação entre impulsividade e suicídio71. Fechando o grupo dos comportamentos autoagressivos, temos os comportamentos de automutilação (AM) que não tem por objetivo a abreviação da vida. Pacientes psiquiátricos que cursam com este fenômeno tipicamen te referem recorrer a este tipo de comportamento como uma forma de lidar com emoções intoleráveis, obtendo uma sensação de alívio e serenidade temporários. AM é classicamente descrita em pacientes com TBP e portadores de variantes impulsivas de transtornos alimentares, anorexia nervosa subtipo purgativo e bulimia multi-impulsiva72. Exceto por relatos de caso envolvendo cleptomania, AM permanece não investigada nos TCI.
Considerações finais Os TCI são uma classe de diagnósticos mais prevalentes e com provável impacto na sociedade maior do que o imaginado antes. Ainda assim, permanecem grandemente desconhecidos pelos profissionais de saúde e pelo público em geral. Além dos diagnósticos abordados neste capítulo, outras manifestações impulsivas são relevantes e merecem a atenção de clínicos, pois podem afetar a saúde coletiva como o impulso sexual excessivo e o transtorno
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compulsivo alimentar periódico, ambos abordados em outros capítulos deste livro. Além deles, comportamentos como uso excessivo da internet, automutilação repetida e dermatotilexomania merecem investigação própria. Sobre eles pesa a dúvida se representariam síndromes específicas, ou se são sintomas contidos em síndromes mais amplas, porém nossas dúvidas nosológicas não têm impedido que todos os dias milhares de indivíduos procurem serviços de saúde para tratar exatamente dessas queixas, ou de outras diretamente causadas por elas. Este cenário tão amplo de sintomas e apresentações pede uma classificação melhor que contemple as subdivisões dos fenômenos impulsivos e que facilite a compreensão dos TCI, pois seu tratamento significa o resgate de características que definem o caráter humano, o autocontrole e o livre arbítrio.
Questões 1. As características centrais dos transtornos do controle do ima) b) c) d) e)
pulso segundo o DSM -IV-TR são: Risco, tensão e alívio. Exagero, risco e arrependimento. Frequência elevada, risco e arrependimento. Risco, tensão e afetos negativos. Exagero, tensão e alívio.
2. Qual das características abaixo não define impulsividade? a) Desinibição comportamental que não é melhor explicada por um episódio maníaco, ou hipomaníaco. b) Traço adquirido por lesão do SNC, ou elemento constitutivo da personalidade. c) Privilegiar consequências imediatas em detrimento de consequências, em geral negativas, a médio e longo prazo. d) Um fenômeno unidimensional. e) Um fenômeno dinâmico resultante de um desequilíbrio entre elementos propulsores e os freios do comportamento.
3. Sobre dependências comportamentais: a) São diagnósticos raros de mau prognóstico. b) São fruto de uma sensibilização causada pelo abuso de uma substância psicoativa. c) Seus portadores apresentam uma ambiguidade quanto ao comportamento alvo. d) Tricotilomania é o melhor modelo de dependência comportamental. e) É secundária ao transtorno antissocial de personalidade. 4. Em relação aos TCI : a) É uma classe diagnóstica que reúne todos os transtornos psiquiátricos que cursam com impulsividade elevada. b) Dividem-se em três tipos: ansiosos/instáveis, compulsivo e antissociais de outro. c) É uma classe diagnóstica agrupada por compartilhar uma origem comum baseada em falência de sistemas reguladores límbico-corticais.
d) Dividem-se em três tipos: dependências comportamentais, impulsividade agressiva e transtornos de autocuidado (grooming). e) São decorrentes de falhas cognitivas no processo de tomada de decisão.
5. Em relação à impulsividade agressiva, assinale a alternativa incorreta: a) Não é premeditada, sendo que os rompantes ag ressivos não têm objetivo específico. b) É secundá ria à sociopatia por que resu lta de uma hierarquia idiossincrática de valores. c) Pode ser subdividida em auto e hetero-agressiva. d) Apresenta redução marcante com tratamento farmacológico focado em agonismo serotoninérgico central. e) Seu tratamento deve incluir intervenção psicossocial baseada em técnicas de manejo da raiva.
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Transtornos da Personalidade
Herma no Tava res Renata Barboza Ferraz
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Epidemiologia e relevância, 1051
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Definição de personalidade, 1052 Fatores de temperamento, 1053 O que é transtorno de personalidade, 1053 Diagnóstico dos transtornos de personalidade, 1054 Transtorno de personalidade para no ide, 1054 Transtorno de personalidade esquizoide, 1055 Transtorno de personalidade esquizotípica, 1055 Transtorno Transtorno Transtorno Transtorno
de personalidade antissocial. 1055 de personalidade borderline (ou fronteiriço), 1056 de personalidade histriônica. 1057 de personalidade narcisista, 1057
Transtorno de personalidade de esquiva, 1058 Transtorno de personalidade dependente, 1058 Transtorno de personalidade obsessivo-compulsiva, 1058
1. Reconhecer as implicações do transtorno de personalidade para a clínica e a saúde mental. 2. Estabelecer os elementos básicos da personalidade normal. 3. Familiarizar-se com os principais modelos vigentes de personalidade. 4. Definir personalidade anormal e transtorno de personalidade. 5. Descrever os principais tipos de transtorno de personalidade. 6. Entender os desafios associados à classificação dos transtornos de personalidade. 7. Conhecer modelos dimensionais para os transtornos de
personalidade.
Semelhanças e diferenças entre os modelos de DSM-IV-TR e da CID- 10, 1059
8. Integrar fatores genéticos e ambientais na compreensão do transtornos de personalidade.
Os problemas do modelo categoria!, 1060 Uma alternativa dimensional para os transtornos de personalidade, 1060
9. Orientar o tratamento de portadores de transtorno da personalidade.
Dimensões psicopatológicas dos transtornos da personalidade, 1060 Caráter e fisiopatogenia dos transtornos da personalidade, 1061 Tratamento dos transtornos de personalidade, 1062 Questões, 1063 Referências bibliográficas, 1064
Epidemiologia e relevância Os estudos sobre a prevalência dos transtornos de personalidade (TP) apresentam taxas variáveis de 5 a 20%, com uma tendência para 15% da população. As grandes variações podem ser explicadas por diferenças nos critérios e instrumentos adotados, porém mesmo considerando-se as estimativas mais conservadoras, os TP estariam entre os transtornos psiquiátricos de maior prevalência em todo o mundo 1• Contudo, os TP permanecem sub-investigados e grandes lacunas de informação persistem
quanto ao seu perfil epidemiológico. Investigações em amostras clínicas sugerem prevalência ainda mais elevada oscilando entre 30 e 50% dos pacientes em tratamento por outro transtorno psiquiátrico e mais da metade dos pacientes tratados em regime de internação 2 • Os TP são fonte de grande sofrimento subjetivo e dificuldades de adaptação para ambos portadores e familiares. Sua presença está associada a maior risco de incapacidade para o trabalho, deficiência de suporte social, dificuldades de relacionamento interpessoal, problemas com autoridades legais e maior risco de tentativa de suicídio. No caso específico do transtorno borderline de personalidade, o risco de suicídio foi estimado em cerca de 30 vezes superior ao da população normaP. Raramente, o TP é a causa primária da busca por tratamento médico
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geral ou psiquiátrico, o que aumenta o risco deste ser negligenciado. Isto pode comprometer a eficácia do tratamento proposto. Além disso, os TP têm sido habitualmente relacionados como preditores de mal prognóstico no tratamento de transtornos do humor, de ansiedade e de alimentação. Além da elevada prevalência dos TP, seus portadores demandam mais atenção clínica do que a média da população. Portanto, os TP são um desafio também à saúde pública, em termos de organização e capacitação de equipes de saúde mental aptas para lidar com suas demandas e prevenir suas complicações mais comuns. De fato, muitos dos pacientes considerado "difíceis" em serviços de atenção primária são portadores de TP, pois a natureza intrínseca desses transtornos representa um desafio à relação profissional-paciente.
Definição de personalidade Um transtorno de personalidade define-se em primeiro lugar por antonímia ao que se considera personalidade normal, ou sem transtorno. Portanto, para se compreender os TP é importante conhecer os elementos básicos e estruturais do conceito de personalidade. O termo personalidade deriva da palavra grega persona que se refere à máscara usada pelos atores no teatro grego clássico. A persona identificava o personagem, indicando o primeiro significado atribuído à personalidade, o de identidade. Vulgarmente, personalidade é associada às preferências, força de vontade e constituição moral do indivíduo. A abordagem científica se diferencia da percepção leiga ao excluir avaliações morais, porém, confirma a relação com as disposições motivacionais e afetivas, definindo personalidade como característica que podem ser compartilhadas entre indivíduos, mas cujo conjunto é distintivo, determinando a forma única como cada indivíduo responde e interage com outros indivíduos e com o ambiente4. Os estudos empíricos sobre os componentes básicos da personalidade tiveram início no século XX, durante a década de 1940, com o trabalho pioneiro de Cattel. Partindo de uma lista com milhares de léxicos descritores de características individuais extraídos de dicionários da língua inglesa, ele eliminou redundâncias organizou os termos restantes em 171 pares antagônicos, por exemplo: tenso/ relaxado. Em uma análise fatorial inicial ele agrupou estes pares em 16 fatores. Seguiram-se 50 anos de revisões, até que inúmeros estudos independentes chegaram a conclusões muito similares. Quando extraídos da mesma fonte, organizados e revisados em sucessivas análises os 16 fatores poderiam ser reagrupados em cinco superfatores ou dimensões, relativamente estáveis independente da amostra, cultura, ou época. Esta linha de trabalho deu origem a um dos modelos mais populares
de personalidade em uso hoje em dia, o chamado modelo 5-fatorial, Big-Five5 , seus componentes são: • Neuroticismo - agrega os traços associados à expressão de afetos negativos e à instabilidade emocional. • Extraversão - reúne os traços associados à expressão de afetos positivos, busca de interação com o meio (espírito aventureiro) e com seus semelhantes (socialização). • Conscienciosidade - descreve traços associados à adoção de escrúpulos morais, sentimentos de responsabilidade e preocupação com o futuro em oposição a um espírito livre, inconsequente e impulsivo. • Cordialidade - representa o conjunto de traços que caracterizam a afabilidade, a tolerância e a cooperação em contraste com a agressividade e competitividade. • Abertura - reúne os traços que representam facilidade para aceitar novas idéias e raciocínio não convencional em oposição ao conservadorismo e apego às tradições. Em paralelo à abordagem léxica, desenvolveu-se a proposta de abordagem psicobiológica durante as décadas de 1960 e 1970 nos trabalhos independentes de Gray e Eysenck. Ambos partiram de um modelo teórico simplificado em que supunha a existência de duas instâncias básicas de personalidade com as devidas correspondências no sistema nervoso central (SNC): um fator de inibição do comportamento e um fator de iniciação do comportamento. Eysenck denominou estes fatores respectivamente de neuroticismo e extraversão. Contudo, em estudos imediatamente subsequentes notou-se uma divisão interna no construto da extraversão. Traços ligados à expressão de afetos positivos, iniciativa e socialização permaneceram no construto original, porém traços independentes da expressão afetiva, caracterizados por reatividade comportamental e não conformidade se agruparam num terceiro fator independente nomeado psicoticismo. O termo infelizmente dá margem à confusão, pois pode sugerir indevidamente associação com vulnerabilidade à psicose, quando na verdade a intenção de Eysenck era enfatizar a relação com a conduta antissocial, por vezes simplesmente referida como psicopatia4 . Este modelo 3-fatorial representa outra convergência sólida na teoria psicobiológica da personalidade, dividindo-a em três conjuntos de traços, dois relacionados à expressão e regulação de afetos, especificamente positivos e negativos, e um terceiro independente de expressão afetiva que concentra traços relacionados a respostas inatas não condicionadas e impulsividade. Contudo, ambos os modelos léxico e psicobiológico são criticados por justamente não apresentarem uma dimensão representativa da construção e do reconhecimento de uma identidade própria. No caso do modelo 5-fatorial especula-se que a decisão de se excluir léxicos judicativos excluiu a possibilidade de se investigar a estrutura de traços autovalorativos. No caso do modelo 3-fa-
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torial, a ênfase em correlatos observáveis com modelos biológicos teria excluído a observação de fenômenos intermediados pela linguagem e de raro paralelo fora da espécie humana. Revisores dos modelos de personalidade vigentes apontaram para falta de uma ou mais instâncias que pautadas em aprendizado simbólico expressassem a forma particular que cada indivíduo apresenta de conciliar tendências antagônicas, eleger metas, planejar-se em fun ção delas e como resultante da construção desses conceitos estabelecer para si uma identidade. Extrapolando -se a formação e atribuição de símbolos, o indivíduo constrói também uma percepção/valoração da relação com outros indivíduos e com uma nova realidade que ampliada pela formação de conceitos, transcende a mera percepção dos estímulos sensoriais. Cloninger desponta como o principal revisionista do conceito de personalidade na atualidade. Em sua tentativa de integrar dispo sições biológicas e linguagem, ele propôs uma nova de finição dos termos temperamento e caráter, que antes eram usados como sinônimos. Temperamento passaria a ser o conjunto de fatores ou dimensões associadas à afetividade e impulsividade, que teriam determinação predominantemente genética e estabilidade temporal. Em oposição, o caráter agregaria dimensões mais dependentes da experiência, apresentando maior influência do tempo à medida que seus traços, acompanhando o status de desenvolvimento de conceitos pelo indivíduo, se estruturariam ao longo do histórico biográfico6 . Este modelo chamado 7 -fatorial é descrito abaixo sinteticamente, com suas correspondências conceituais com os modelos descritos anteriormente:
Fatores de temperamento • Busca de novidades: expressa a tendência individual de responder intensa e rapidamente a estímulos novos e potencialmente gratificantes; agrupa os traços relacionados à curiosidade, falta de reflexão, comportamento desinibido, espontaneidade, criatividade e pouco apreço por regras. Corresponde conceitualmente ao psicoticismo no modelo 3-fatorial e apresenta sobreposição parcial com a dimensão Conscienciosidade e traços de instabilidade e impulsividade da dimensão neuroticismo no modelo 5-fatorial. • Esquiva ao dano: representa a vulnerabilidade individual à punição, ameaça e condicionamento por reforço negativo intermediado pela suscetibilidade aos afetos negativos; agrupa traços como ansiedade antecipatória, intolerância à incerteza, timidez e fatigabilidade. Corresponde à dimensão neuroticismo em ambos os modelos 3 e 5-fatorial. • Dependência de gratificação: expressa a suscetibilidade ao aprendizado por condicionamento clássico e por reforço positivo, intermediado pela expressão de afetos positivos; agrupa traços como sentimentalismo, ape-
go e dependência de aprovação. Corresponde à dimensão Extraversão em ambos os modelos 3 e 5-fatorial. • Persistência: antes um subfator de dependência de gratificação, foi separado após estudos de análise fatorial; representa a capacidade de persistir em um comportamento a muito tempo recompensado, mesmo depois de ausência prolongada de reforçamento. Mede, em outras palavras, a resistência à extinção de comportamentos. • Autodirecionamento: verifica a capacidade de solução de conflitos internos e percepção de si como um in divíduo autônomo; agrupa traços associados à responsabilidade, determinação, desenvoltura, autoaceitação e autodisciplina. Tem convergência conceitual parcial e direta com Conscienciosidade e parcial indireta com Neuroticismo no modelo 5-fatorial. • Cooperatividade: verifica a capacidade de ser empático e habilidade de conciliar diferentes disposições em um grupo de indivíduos; agrupa traços como tolerância, empatia, compaixão e generosidade. Sobrepõe-se conceitualmente à dimensão Cordialidade no modelo 5-fatorial. • Autotranscendência: corresponde à visão de si mesmo como parte integrante de uma realidade ampliada não alcançada pela apreensão sensorial; agrupa elementos como altruísmo, comunhão cósmica e espiritualidade. Corresponde conceitualmente à dimensão da Abertura no modelo 5-fatorial. Coincidentemente ambas são questionadas quanto a serem elementos naturais da personalidade, ou fruto de intelectualização determinada pelo desenvolvimento em contextos específicos (academia, ambientes clericais, etc.). Em resumo, os modelos atuais de abordagem dimensional da personalidade convergem para uma estrutura que divide a personalidade em dimensões inatas (afetos negativos, afetos positivos e impulsividade) e dimensões modeladas pelo desenvolvimento que modelam a relação do indivíduo com ele mesmo, com o próximo e com o universo. Esta estrutura como veremos adiante tem implicações importantes em como definimos e abordamos os TP.
O que é transtorno de personalidade Contrariamente aos modelos científicos, os modelos clínicos seguiram o padrão médico e privilegiaram o diagnóstico pautado em categorias. Kraepelin, considerado o pai da psiquiatria moderna, entendia os TP como manifestações frustras das grande síndromes psiquiátricas que estabeleciam um continuum entre si e as variações normais do comportamento. Porém, a primeira metade do século XX foi dominada por linhas de pensamento cujos princípios conflitavam com o conceito de personalidade. De um lado, a psicanálise lidava com a personalidade como um aparato que se interpunha entre o observador e os mecanismos inconscientes subjacentes, um artefato a ser su-
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perado para que a verdadeira essência do indivíduo pudesse ser reconhecida. De outro, o behaviorismo colocava ênfase nos processos de condicionamento e aprendizagem, reduzindo a importância das inclinações inatas7a. Somente na década de 1970, pelas mãos da fenomenologia se observou um resgate do conceito de personalidade e TP com o trabalho seminal de Kurt Schneider7b. Ele começa por definir personalidade anormal como uma apresentação que se diferencia não por uma variação qualitativa, mas sim quantitativa, desvios extremos daquilo que é observado como habitual. As personalidades são consideradas psicopáticas quando "em consequência de sua anormalidade, sofrem ou fazem sofrer". Schneider descreveu dez subtipos de personalidades anormais, salientando que não são categorias mutuamente excludentes, havendo sobreposições entre elas. Atribui -se a Schneider e seu construto da personalidade psicopática, o conceito dominante de TP expresso nas classificações psiquiátricas a partir do DSM-III em 1980, com algumas modificações, no DSM-IV-TR. Contudo, há uma diferença fundamental, ao contrário das classificações atuais baseadas em critérios operacionais e categorias isoladas, Schneider optou por uma abordagem prototípica, descrevendo dez perfis, onde cada indivíduo seria classificado de acordo com o perfil do qual ele . . se aproximasse mais. O DSM-IV-TR8 aborda os TP a partir de uma estrutura categoria! politética, pautada em critérios operacionais, essencialmente descritivos. Estes critérios não apresentam relação hierárquica entre si. O diagnosticado é estabelecido pela constatação de um número mínimo de critérios positivos estabelecido consensualmente por um painel de especialistas. Além disso, o DSM-IV-TR estabelece que os TP são uma condição que se manifesta precocemente, compromete os elementos estruturais da personalidade e acompanha o indivíduo ao longo da vida como: Um padrão persistente de vivência íntima e comportamento que se desvia acentuadamente das expectativas da cultura do indivíduo, é generalizado e inflexível, tem início na adolescência ou no início da idade adulta, é estável ao longo do tempo e provoca sofrimento ou prejuízo, e se manifesta em pelo menos duas das seguintes áreas: cognição, afetividade, funcionamento interpessoal ou controle dos impulsos.
A CID-109 também estabeleceu seis diretrizes gerais para caracterização dos TP: • Atitudes e condutas marcantemente desarmônicas, envolvendo em várias áreas de funcionamento, por exemplo afetividade, excitabilidade, controle dos impulsos, modos de percepção e de pensamento e estilo de relacionamento com os outros.
• Padrão anormal de comportamento é permanente, de longa duração e não limitado a episódio de doença mental. • Padrão anormal de comportamento é invasivo e claramente mal-adaptativo para uma ampla série de situa- pessoais. e sociais. çoes • Manifestações previamente listadas sempre aparecem durante a infância ou adolescência e continuam pela idade adulta. • Transtorno leva à angústia pessoal considerável, mas isso pode se tornar aparente apenas tardiamente em seu curso. • Tanstorno é usual, mas não invariavelmente associado a problemas significativos no desempenho ocupacional e social.
Diagnóstico dos transtornos de personalidade Os critérios diagnósticos mais utilizados na atualidade, tanto para pesquisa quanto para manejo clínico, são aqueles propostos pelo DSM-IV-TR e pela CID-10. Ambos trabalham com uma estrutura categoria!. O DSM-IVTR divide os transtornos de personalidade em três grupos (clusters), com base em semelhanças descritivas. O grupo A reúne os TP paranoide, esquizoide e esquizotípica. São classificados aqui os indivíduos com pouco apreço pelo contato social e em geral portadores de crenças idiossincráticas sobre fenômenos naturais, ou sociais. No grupo B estão incluídos os TP antissocial, borderline, histriônico e narcisista. Tais pessoas são vistas habitualmente como impulsivas, emocionalmente instáveis e de comportamento errático. O grupo C inclui os transtornos de personalidade de esquiva, dependente e obsessivo-compulsiva; tendo em ansiedade acentuada, estilo de enfrentamento esquivante e necessidade de controle do ambiente e das relações interpessoais.A seguir apresentamos uma breve descrição das categorias diagnósticas de TP e seus critérios a partir do DSM-IV-TR.
Transtorno de personalidade paranoide Os portadores deste diagnóstico são caracterizados por extrema suspeita em relação a terceiros. Embora possa estar presente desde muito cedo na vida de um indivíduo, o TP paranoide é habitualmente identificado mais tarde quando se torna particularmente intenso e desajustado. Revisões recentes do diagnóstico sugerem uma estrutura bidimensional com dois componentes principais: desconfiança e hostilidade. Este caráter combativo suscita reações semelhantes em terceiros que por sua vez confirmam as pressuposições do paciente sobre um contexto inamistoso. Estes indivíduos com frequência se envolvem em disputas informais ou legais, pautadas em fantasias de poder e alimentam estereótipos negativos a respeito
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de minorias e grupos específicos. A prevalência do TP paranoide varia entre 0,5 e 2,5% da população geral e entre 2 e 10% em pacientes psiquiátricos, sendo mais co mum entre homens 10 . A Tabela I exibe os critérios diagnósticos para o TP paranoide.
Tran storno de personalidade esquizoide Este transtorno é caracterizado por pouco apreço e acentuado afastamento do contato interpessoal. Em situações sociais, este pacientes se mostram reservados e com pouca expressão afetiva. Portadores de TP esquizoide aparentam abulia e em geral pouco apego a metas ou objetivos específicos. A falta de desejo por envolvimento amoroso ou sexual conduz a uma marcante redução do círculo social. Contudo, estes pacientes podem desempe nhar bem em trabalhos envolvendo isolamento social. Especula-se que déficits de estimulação durante as fases iniciais do desenvolvimento infantil conduziriam a um funcionamento inapropriado de circuitos responsáveis pela afiliação social no SNC. Pacientes com TP esquizoide raramente procuram tratamento e sua prevalência na população geral é desconhecida 11 • A Tabela II exibe os critérios diagnósticos para o TP esquizoide.
Tran storno de personalidade esquizotípica A característica mais marcante deste transtorno são as distorções cognitivas e condutas excêntricas pautadas
Tabela I ranoide
Critérios do DSM-IV-TR para transtorno de personalidade pa-
em um sistema de crenças que não sendo delirante, ainda assim é idiossincrático, não compartilhado com ou tros, ou apenas com uma minoria de pessoas. Como em outros TP do grupo A, existe marcante dificuldade de socialização, entretanto o TP esquizotípica é o mais claramente associado ao risco de desenvolvimento de esquizofrenia, sendo que alguns autores propõem a sua transferência do Eixo II para um seção no Eixo I de transtornos do espectro esquizofrênico. Dois subtipos com provável sobreposição são propostos: um claramente relacionado à herança genética, apresenta associação com história familiar de esquizofrenia e sofrimento perinatal, responderia melhor à medicação antipsicótica; e outro associado a maus tratos e condições sociais adversas responderia melhor a intervenções psicossociais 12 .A prevalência do TP esquizotípica na população geral é estimada em 4% 13 . A Tabela III exibe os critérios diagnósticos para o TP es. ' . qmzotlpiCa.
Transtorno de personalidade antissocial As características mais claras e observáveis desse transtorno são violações recorrente das normas sociais, incluindo mentiras, furtos, vadiagem, inconsistência no trabalho e condutas irresponsáveis que expõem terceiros a riscos desnecessários, ou expõem a si mesmo. Porém, Robert Hare, um dos autores mais tradicionais no estudo da personalidade antissocial, é um dos principais críticos da estrutura do conceito de TP antissocial como proposto no
Tabela 11 quizoide
Critérios do DSM-IV-TR para transtorno de personalidade es-
A. Um padrão de desconfiança e suspeitas em relação aos outros, de modo que as intenções alheias são frequentemente interpretadas como maldosas. O padrão se manifesta na adolescência ou no início da idade adulta, e está presente em uma variedade de contextos, o que é indicado por, no mínimo, quatro dos seguintes critérios:
A. Um padrão global de distanciamento das relações sociais e uma faixa restrita de expressão emocional em contextos interpessoais, que se manifesta na adolescência ou no início da idade adulta e está presente em uma variedade de contextos, o que é indicado por, no mínimo, quatro dos seguintes critérios:
1) suspeita, sem fundamento suficiente, de estar sendo explorado, maltratado ou enganado por terceiros;
1) não deseja nem gosta de relacionamentos íntimos, incluindo fazer parte de uma família;
2) preocupa-se com dúvidas infundadas acerca da lealdade ou confiabilidade de amigos e colegas;
2) quase sempre opta por atividades solitárias;
3) reluta em confiar nos outros por um medo infundado de que essas informações possam ser maldosamente usadas contra si; 4) interpreta significados ocultos, de caráter humilhante ou ameaçador em observações e acontecimentos benignos;
3) manifesta pouco, se algum, interesse em ter experiências sexuais com um parce1ro; 4) tem prazer em poucas atividades, se alguma ; 5) não tem amigos íntimos ou confidentes, outros que não parentes . . em pnme1ro grau;
5) guarda rancores persistentes. sendo implacável com insultos, injúrias ou deslizes;
6) mostra-se indiferente a elogios ou críticas;
6) percebe ataques a seu caráter ou reputação que não são visíveis pelos outros, reagindo rapidamente com raiva ou contra-ataque;
7) demonstra frieza emocional, distanciamento ou embotamento afetivo.
7) tem suspeitas recorrentes, sem justificativa, quanto à fidelidade do cônjuge ou parceiro sexual. B. Não ocorre exclusivamente durante o curso da esquizofrenia, transtorno do humor com características psicóticas ou outro transtorno psicótico, nem é decorrente dos efeitos fisiológicos diretos de uma condição médica geral.
B. Não ocorre exclusivamente durante o curso da esquizofrenia, transtorno do humor com características psicóticas, outro transtorno psicótico ou transtorno global do desenvolvimento; nem é decorrente dos efeitos fisiológicos diretos de uma condição médica geral.
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sistema classificatório do DSM. Ele argumenta que a ênfase deliberada em sinais concretos, mais facilmente observáveis, excluem a possibilidade de apreensão em um conjunto de sinais mais sutis que compõem o âmago da síndrome. São sintomas derivados do que Hare denominou insensibilidade e que Schneider nomeou como "frieza de alma", suas características mais importantes são: um senso de importância pessoal em detrimento dos outros, ausência de remorso, indiferença aos problemas alheios, compreensão idiossincrática das normas sociais, atitudes manipulativas, e uso de charme superficial e agressividade para obtenção de vantagens e domínio das relações interpessoais. A ênfase estrita às condutas formalmente classificadas como transgressivas nos códigos legais reduz artificialmente a prevalência do TP antissocial em mulheres, pois nelas são mais comuns transgressões encobertas e ausência de vinculação afetiva mais óbvia, por exemplo com filhos ou progenitores. Uma análise da estrutura do TP antissocial mostra uma estrutura pautada em duas dimensões, uma que agrupa as características associadas à indiferença emocional e outra a um estilo de vida nômade e socialmente desviante 14• A prevalência do TP antissocial oscila em torno de 3% dos homens e 1% das mulheres na população geral. Em pacientes psiquiátricos esta taxa varia de acordo com contexto clínico e diagnóstico,
variando entre 3 e 30%. O risco de TP antissocial aumenta quando há relato de transtorno de conduta na infância, história familiar de TP antissocial, abuso e dependência de substâncias, ainda que neste último caso a prevalência do TP antissocial poder ser superestimada pela ocorrência de comportamentos transgressivos secundários ao envolvimento com substâncias 15 • A Tabela IV exibe os critérios diagnósticos para o TP antissocial.
Tran storno de personalidade borderline (ou fronteiriço) O conceito original deste transtorno supunha que o mesmo estivesse na fronteira entre a normalidade e a psicose. Entretanto, desenvolvimentos posteriores conduziram a uma migração conceitual e o TP borderline passou a abranger indivíduos com instabilidade afetiva pervasiva, déficits de autoimagem com relatos de sensação de vazio interno e marcante impulsividade. Comportamentos de automutilação e tentativas de suicídio são comuns, sendo que estes pacientes podem responder por um quinto das internações psiquiátricas. Estudos recentes mostraram que o TP borderline é mais comum do que o anteriormente estimado, atingindo cerca de 6% da população. Ele atinge igualmente homens e mulheres, porém a elas está associada a maior incapacitação sociaP 6 . A Tabela V exibe os critérios diagnósticos para o TP borderline.
Tabela 111 Critérios do DSM-IV-TR para transtorno de personalidade esquizotípica
A. Um padrão global de déficits sociais e interpessoais, marcado por desconforto agudo e reduzida capacidade para relacionamentos íntimos, além de distorções cognitivas ou perceptivas e comportamento excêntrico, que se manifesta na adolescência ou no início da idade adulta e está presente em uma variedade de contextos, o que é indicado por, no mínimo, cinco dos seguintes critérios:
Tabela IV Critérios do DSM-IV-TR para transtorno de personalidade antissocial
1) ideias de referência (excluindo delírios de referência);
A. Um padrão global de desrespeito e violação dos direitos alheios, que ocorre desde os 15 anos, indicado por, no mínimo, três dos seguintes critérios:
2) crenças bizarras ou pensamento mágico que influenciam o comportamento e não estão de acordo com as normas da subcultura do indivíduo;
1) incapacidade de adaptar-se às normas sociais com relação a comportamentos lícitos, indicada pela execução repetida de atos que constituem motivo de detenção;
3) experiências perceptivas incomuns, incluindo ilusões somáticas;
2) propensão para enganar, indicada por mentir repetidamente, usar nomes falsos ou ludibriar os outros para obter vantagens pessoais ou prazer;
4) pensamento e discurso bizarros (vago, circunstancial, metafórico, estereotipado);
3) impulsividade ou fracasso em fazer planos para o futuro; 5) desconfiança ou ideação paranoide; 6) afeto inadequado ou constrito;
4) irritabilidade e agressividade, indicadas por repetidas lutas corporais ou agressões físicas;
7) aparência ou comportamento esquisito, peculiar ou excêntrico;
5) desrespeito irresponsável pela segurança própria ou alheia;
8) não tem amigos íntimos ou confidentes, exceto parentes em . . pnme1ro grau;
6) irresponsabilidade consistente, indicada por um repetido fracasso em manter um comportamento laboral consistente ou de honrar obrigações financeiras;
9) ansiedade social excessiva que não diminui com a familiaridade e tende a estar associada com temores paranoides, em vez de julgamentos negativos acerca de si próprio. B. Não ocorre exclusivamente durante o curso da esquizofrenia, transtorno do humor com caractensticas psicóticas, outro transtorno psicótico ou um transtorno global do desenvolvimento; nem é decorrente dos efeitos fisiológicos diretos de uma condição médica geral.
7) ausência de remorso, indicada por indiferença ou racionalização por ter ferido, maltratado ou roubado alguém. B. O indivíduo tem, no mínimo, 18 anos de idade. C. Evidência de transtorno de conduta antes dos 15 anos de idade. O. A ocorrência do comportamento antissocial não se dá exclusivamente durante o curso da esquizofrenia ou episódio maníaco.
76 TRANSTORNOS DA PERSONALIDADE
Tran storno de personalidade histriôni ca As principais características desse transtorno são a dramaticidade, a expressão de afeto intensos e a necessidade de atenção. Entretanto, a conquista da intimidade emocional nesses indivíduos é comprometida pelas tentativas de controle da relação amorosa por meio de sedução, manipulação emocional e dependência excessivas. Sem uma clara percepção do fato, estes pacientes parecem estar sempre encenando um personagem, em geral de vítima, ou de príncipe/princesa. A amizade com indivíduos do mesmo sexo é frequentemente prejudicada pela atitude sexualmente provocativa. Estes indivíduos são marcantemente impulsivos, sequiosos por estimulação e propensos ao tédio. Apesar de sua descrição relativamente fácil de apreender, o TP histriônica tem sido questionado quanto à sua validade, pois com frequência se sobrepõe aos TP borderline e narcisista. Sua estrutura é igualmente dupla, apoiada em dois fatores, um associado ao exibicionismo e necessidade de atenção e outro ao estilo dito "impressionistà' com produções narrativas intensas nos afetos e vagas em elementos objetivos (o que e quando aconteceu, o motivo, etc. 17 Sua prevalência na população geral é estimada em 2%, sendo igualmente
Tabela V Critérios do DSM-IV-TR para transtorno de personalidade borderline
A. Um padrão global de instabilidade dos relacionamentos interpessoais, da autoimagem e dos afetos e acentuada impulsividade, que se manifesta na adolescência ou no início da idade adulta e está presente em uma variedade de contextos, indicado por, no mínimo, cinco dos seguintes critérios: 1) esforços frenéticos no sentido de evitar um abandono real ou . . 1magmano; .
distribuída entre homens e mulheres 15. A Tabela VI exibe os critérios diagnósticos para o TP histriônica.
Transtorno de personalidade narcisista Este transtorno é caracterizado por uma sensação pervasiva de grandiosidade, necessidade de admiração, falta de empatia e exploração dos relacionamentos interpessoais. Os portadores de TP narcisista são particularmente sensíveis à crítica, sentindo-se com frequência menosprezados, tratados injustamente sem a necessária consideração. Isto por vezes implica um recolhimento rancoroso, com uma atitude de falsa modéstia e fantasias de redenção pelo reconhecimento de suas qualidades, ou pelo poder de revidar frustrações passadas, interpretadas como graves humilhações. O conceito de narcisismo tem sido criticado como excessivamente abrangente atravessando descrições de personalidade normal e patológica, com traços compartilhados por quase todos os TP. Uma análise dos seus componentes propõe a existência de pelo menos três dimensões dife rentes: liderança e autoridade, grandiosidade e exibicionismo, sentimento de direito (entitlement) e exploração. Os dois últimos fatores, particularmente direito e exploração se mostraram mal-adaptativos, porém o fator liderança e autoridade, ao contrário, associou-se à boa adaptação sociaP8 . Estudos valendo -se do modelo 5-fatorial acrescido de valores para medida de autovaloração mostraram que a atribuição elevada de qualidades positivas a si mesmo combinada à instabilidade e baixa cordialidade aumenta a discriminação do TP narcisista19. O TP narcisista é um pouco mais frequente em ho -
~
2) um padrão de relacionamentos interpessoais instáveis e intensos, caracterizado pela alternância entre extremos de idealização e desvalorização; 3) perturbação da identidade: instabilidade acentuada e resistente da autoimagem ou do sentimento de se/f, 4) impulsividade em pelo menos duas áreas potencialmente prejudiciais à própria pessoa (exemplos: gastos financeiros, sexo, abuso de substâncias, direção imprudente, comer compulsivo); 5) recorrência de comportamento, gestos ou ameaças suicidas ou de comportamento automutilante; 6) instabilidade afetiva devido à acentuada reatividade do humor (episódios de intensa disforia, irritabilidade ou ansiedade geralmente durando algumas horas e apenas raramente mais de alguns dias); 7) sentimentos crônicos de vazio;
Tabela VI Critérios do DSM- IV-TR para transtorno de personalidade histriônica
A. Um padrão global de excessiva emotividade e busca de atenção, que se manifesta na adolescência ou no início da idade adulta, e está presente em uma variedade de contextos, o que é indicado por, no mínimo, cinco dos seguintes critérios: 1) desconforto em situações nas quais não é o centro das atenções;
2) a interação com os outros frequentemente se caracteriza por um comportamento inadequado, sexualmente provocante ou sedutor; 3) mudanças rápidas e superficialidade na expressão das emoções; 4) constante utilização da aparência física para chamar a atenção para si próprio; 5) estilo de discurso excessivamente impressionista e carente de detalhes objetivos; 6) dramaticidade, teatralidade e expressão emocional exagerada;
8) raiva inadequada e intensa, ou dificuldade de controlar a raiva (exemplos: demonstrações frequentes de irritação, raiva constante, lutas corporais);
7) sugestionabilidade, sendo facilmente influenciado pelos outros e pelas circunstâncias;
9) ideação paranoide transitória e relacionada ao estresse ou graves sintomas dissociativos.
8) tendência a considerar os relacionamentos mais íntimos do que realmente são.
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mens (7%) do que em mulheres (5%), sendo mais incapacitante no primeiros20 • A Tabela VII exibe os critérios diagnósticos para o TP narcisista.
Transtorno de personalidade de esquiva Os portadores deste transtorno são caracterizados por timidez acentuada, sentimentos de inadequação, rejeição e inferioridade, com resultante retraimento social, mas nestes casos o contato interpessoal é temido, porém desejado. O TP esquiva deve ser cogitado com cautela em adolescentes e adultos jovens, pois às vezes sintomas de timidez podem ceder com a entrada definitiva na vida adulta. A comorbidade mais frequente é com fobia social. Alguns autores argumentam que a separação de ambas síndromes é um artefato classificatório, apontam para fatores genéticos compartilhados entre ambas e propõe que o TP esquiva é apenas uma forma mais grave e pervasiva de ansiedade sociaF 1• Estudos recentes sobre TP esquiva estimam sua prevalência em torno de 2,4% 15 . A Tabela VIII exibe os critérios diagnósticos para o TP esquiva.
tênico com ênfase na percepção de si mesmo como incapaz de funcionar apropriadamente sem a ajuda de terceiros. Os portadores de TP dependente podem apresentar dificuldades em tomar decisões cotidianas sobre que roupa usar, ou qual prato escolher e confiam em pessoas próximas para tomar decisões importantes sobre a vida como onde morar, ou que carreira seguir. Uma análise da estrutura dos critérios do DSM-IV usados para classificar TP, identificou duas dimensões as quais os critérios de TP dependente se associaram, uma associada à necessidade de vínculo e receio do abandono e outra à dependência e sentimento de incompetência22• Contudo, o TP dependente tem sido criticado por ser excessivamente calcado em valores culturais ocidentais com ênfase na individualidade e independência e que em outras referências culturais, como por exemplo o confucionismo, submissão e dependência seriam atitudes naturais que favoreceriam a adaptação em algumas comunidades asiáticas23 • Dentre os TP, o D P dependente foi constatado como dos menos prevalentes, com taxa estimada de 0,5% 15 • A Tabela IX exibe os critérios diagnósticos para o TP dependente.
Transtorno de personalidade dependente
Tran storno de personalidade obsessivocompulsiva
Este transtorno é caracterizado por um sentimento pervasivo e intenso de necessidade de ser cuidado que conduz a relações de apego e submissão e medo de separação. No passado, este transtorno era designado TP as-
Este transtorno é caracterizado por preocupações exageradas e grande apreço atribuídos à regras, organização e controle. Os portadores de TP obsessivo-com pulsiva, em geral, são discretos em suas manifestações
Tabela VIl narcisista
Critérios do DSM-IV-TR para transtorno de personalidade
Tabela VIII de esquiva
Critérios do DSM-IV-TR para transtorno de personalida-
A Um padrão global de grandiosidade (em fantasia ou comportamento), necessidade de admiração e falta de empatia, que se manifesta na adolescência ou no início da idade adulta, estando presente em uma variedade de contextos, o que é indicado por, no mínimo, cinco dos seguintes critérios:
A Um padrão global de inibição social, sentimentos de inadequação e hipersensibilidade à avaliação negativa, que se manifesta na adolescência ou no início da idade adulta, estando presente em uma variedade de contextos, o que é indicado por, no mínimo, quatro dos seguintes critérios:
1) sentimento grandioso acerca da própria importância;
1) evita atividades ocupacionais que envolvam contato interpessoal significativo por medo de críticas, desaprovação ou rejeição;
2) preocupação com fantasias de ilimitado sucesso, poder, inteligência, beleza ou amor ideal;
2) reluta a envolver-se, a menos que tenha certeza da estima da pessoa;
3) crença de ser "especial" e único, e de que somente pode ser compreendido ou deve se associar a outras pessoas (ou instituições) especiais ou de condições elevadas;
3) mostra-se reservado em relacionamentos íntimos, em razão do medo de passar vergonha ou ser ridicularizado;
4) exigência de admiração excessiva;
4) preocupação com críticas ou rejeição em situações sociais;
5) presunção, possuindo expectativas irracionais de receber um tratamento especialmente favorável ou obediência automática às suas expectativas;
5) inibição em novas situações interpessoais, em virtude de sentimentos de inadequação;
6) é explorador em relacionamentos interpessoais, tirando vantagens de outros para atingir seus próprios objetivos; 7) ausência de empatia, relutando em reconhecer ou identificar-se com os sentimentos e necessidades alheias; 8) frequentemente sente inveja de outras pessoas ou acredita ser alvo da inveja alheia; 9) comportamentos e atitudes arrogantes e insolentes.
6) vê a si mesmo como socialmente inepto, sem atrativos pessoais, ou inferior; 7) extraordinariamente reticente em assumir riscos pessoais ou envolver-se em quaisquer novas atividades, pois estas poderiam vir a provocar vergonha.
76 TRANSTORNOS DA PERSONALIDADE
emocionais e sentem-se desconfortáveis diante de expressão afetiva exuberante. O apreço pela ordem e controle parece funcionar como um fator de proteção contra condutas de risco (abuso de drogas, busca por emoções fortes, etc.). Estes pacientes em geral são descritos como trabalhadores dedicados. Porém, o perfeccionismo, inflexibilidade e dificuldade de delegar tarefas podem comprometer a eficiência no trabalho. Interessantemente, o TP obsessivo-compulsiva mostrou ser o TP mais prevalente na população (8%), mas o de menor comprometimento funcional 15 • Sua relação com o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) é incerta, com estudos ora sugerindo uma associação superior ao que seria esperado pelo caso, ora não. Uma possível explicação é uma relação diferenciada entre os critérios que compõem o TP obsessivo-compulsiva e o TOC, com sintomas de armazenamento, perfeccionismo e preocupação apresentando uma associação mais forte 24 • Em uma análise da composição dos sintomas da síndrome foi encontrada uma estrutura dual dividida em perfeccionismo (conceitualmente mais próximo do TOC) e rigidez interpessoal (marcada pela dificuldade de exprimir e tolerar expressão de afetos). A primeira dimensão foi associada com maior risco de depressão e tentativa de suicídio e a segunda à expressão de raiva e agressividade 25 • A Tabela X exibe os critérios diagnósticos para o TP obsessivo-compulsiva.
O modelo da CID-I O é semelhante ao proposto pelo DSM-IV-TR na medida em que ambos apresentam uma solução categoria!. O CID-10 aponta que um transtorno específico de personalidade é uma perturbação grave da constituição caracterológica e das tendências comportamentais do indivíduo, usualmente envolvendo várias áreas da personalidade e quase sempre associado à considerável ruptura pessoal e social. Além disso, adverte que tais condições não podem ser diretamente atribuíveis à lesão ou à doença cerebral flagrante ou a outro transtorno psiquiátrico. Por outro lado, a CID-1Onão apresenta divisão em grupos de TP e descreve apenas oito tipos categoriais distintos, sem sugerir qualquer agrupamento entre eles. Cinco TP são descritos tanto pelo DSM-IV-TR quanto pela CID-10 com as mesmas denominações: paranoide, esquizoide, antissocial, histriônica e dependente. Os três outros tipos de transtorno de personalidade descritos pela CID- I O não são quadros distintos em relação aos descritos no DSM-IV-TR, sendo mais variações nominais, assim o TP obsessivo-compulsiva do DSM-IV-TR equivale ao TP anancástico na CID-10, e o TP esquiva ao TP ansiosa. O conceito de transtorno de personalidade borderline do DSM-IV-TR no CID-10 é
Tabela IX Critérios do DSM- IV-TR para transtorno de personalidade dependente
Tabela X Critérios do DSM-IV-TR para transtorno de personalidade obsessivo-compulsiva
A. Uma necessidade global e excessiva de ser cuidado, que leva a um comportamento submisso e aderente e a temores de separação, que se manifesta na adolescência ou início da idade adulta, estando presente em uma variedade de contextos, o que é indicado por, no mínimo, cinco dos seguintes critérios:
A. Um padrão global de preocupação com organização, perfeccionismo e controle mental e interpessoal, à custa de flexibilidade, abertura e eficiência, que se manifesta na adolescência ou no início da idade adulta, e está presente em uma variedade de contextos, o que é indicado por, no mínimo, quatro dos seguintes critérios:
1) dificuldade em tomar decisões do dia a dia sem uma quantidade excessiva de conselhos e reasseguramento da parte de outras pessoas;
2) necessidade de que outros assumam a responsabilidade pelas principais áreas da sua vida;
Semelhanças e diferenças entre os modelos de DSM-IV-TR e da CID-lO
1) preocupação tão extensa com detalhes, regras, listas, ordem, organização ou horários, que o alvo principal da atividade é perdido;
2) perfeccionismo que interfere na conclusão de tarefas;
3) dificuldade em expressar discordância de outros, por medo de perder apoio ou aprovação;
3) devotamento excessivo ao trabalho e à produtividade, em detrimento de atividades de lazer e amizades (não explicado por razões de natureza econômica);
4) dificuldades em iniciar projetos ou fazer coisas por conta própria, em vista de uma falta de autoconfiança (e não por falta de motivação ou energia);
4) excessiva conscienciosidade, escrúpulos e inflexibilidade em questões de moralidade, ética ou valores (não explicado por identificação cultural ou religiosa);
5) vai a extremos para obter carinho e apoio, a ponto de oferecer-se para fazer coisas desagradáveis;
5) incapacidade de desfazer-se de objetos usados ou inúteis, mesmo quando não têm valor sentimental;
6) sente desconforto ou desamparo quando só, em razão de temores exagerados de ser incapaz de cuidar de si próprio;
6) relutância em delegar tarefas ou trabalhar em conjunto com outras pessoas, a menos que estas se submetam a seu modo exato de fazer as co1sas;
7) busca urgentemente um novo relacionamento como fonte de carinho e amparo, quando um relacionamento íntimo é rompido; 8) preocupação irrealista com temores de ser abandonado à própria sorte.
7) adoção de um estilo miserável quanto a gastos pessoais e com outras pessoas, pois o dinheiro é visto como algo que deve ser reservado a catástrofes futuras; 8) rigidez e teimosia excessivas.
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designado TP emocionalmente instável, porém nestes caso ele é dividido em dois subtipos: o impulsivo, com predomínio de instabilidade emocional e falta de controle dos impulsos; e o tipo borderline, no qual há um predomínio da perturbação da autoimagem, com sentimentos crônicos de vazio e propensão ao envolvimento em relacionamentos intensos e instáveis, que podem culminar em tentativas de suicídio. O TP esquizotípico e narcisista não são contemplados pela CID- 1O.
Os problemas do modelo categorial O primeiro problema, quando se examinam os diagnósticos em TP é a elevada taxa de comorbidades. De fato em um sistema categoria! perfeito as categorias são mutuamente exclusivas, e as co-ocorrências, se ocorrerem, devem ser exceções. Definitivamente este não é o caso entre as categorias de TP existentes. Pesquisas apontam que ao ser diagnosticado com um TP, as chances de um indivíduo preencher critérios para um segundo TP pode exceder os 50%. Além disso, TP sem outra especificação é o terceiro diagnóstico mais comum entre os TP. Isto aponta para dois problemas, os limites das categorias atuais são imprecisos, com considerável sobreposição entre elas, ao mesmo tempo em que o conjunto de TP reconhecidos não é suficiente para cobrir toda a variação de fenômenos e apresentações associados aos TP26 . Estas são as principais razões pelas quais a substituição do modelo categoria! por um dimensional tem ganhado força na reformulação do Eixo li prevista para a futura quinta edição do DSM.
Uma alternativa dimensional para os transtornos de personalidade Faz sentido que, sendo o conceito original de TP associado a variações quantitativas da personalidade, modelos dimensionais fossem contemplados ao se pensar em uma nova classificação. Contudo, esta promissora abordagem também apresenta desafios na sua estruturação, começando pelo fato de que apesar da convergência apontada acima sobre elementos básicos da personalidade, não existe ainda um modelo consensual capaz de amalgamar satisfatoriamente todos os demais. Além disso, estabelecidas as dimensões b ásicas da personalidade, seria necessário identificar quais delas seriam responsáveis pelo ajustamento do comportamento às demandas ambientais, particularmente aquelas relacionadas ao ajuste do comportamento às demandas contextuais mais complexas que envolvem escolha de metas pessoais, interação interpessoal, conduta social e perspectiva histórico-temporal. Identificadas estas dimensões, o próximo passo seria estabelecer pontos de corte que estabelecessem níveis críticos para o desempenho satisfatório da funções descritas anteriormente27 . Alguns estudos preliminares testaram a utilidade dos principais modelos de personalidade em uso atualmente
na predição da ocorrência de TP. No modelo 5-fatorial verifica-se uma tendência dos TP de se associarem a escores elevados de neuroticismo e reduzidos de cordialidade28. No modelo 7-fatorial de Cloninger, baixos esco res em autodirecionamento (também uma medida de estabilidade assim como o neuroticismo) e a cooperatividade (equivalente conceitual de cordialidade no modelo 5-fatorial) eram os melhores preditores de TP29 . Em outras palavras, as características universais dos TP de acordo com os modelos dimensionais de personalidade são instabilidade afetiva, deficiência na integração de uma identidade própria e dificuldade para reconhecer e conciliar perspectiva e inclinações alheias com as próprias. As variações em outras dimensões da personalidade servem à especificação do tipo de TP, mas não à determinação de sua presença ou não. Assim sendo, no modelo de Cloninger os TP do grupamento A, B e C estão respectivamente associados à dependência de gratificação reduzida, busca de novidade elevada e esquiva ao dano elevada. Contudo, essa dimensões de temperamento não conseguem prever o TP, que é definido pela configuração das dimensões de caráter, que são em última análise responsáveis pela adaptação das predisposições inatas e individuais (temperamento) ao contexto socioambiental.
Dimensões psicopatológicas dos transtornos da personalidade Uma outra linha de abordagem dimensional dos TP segue a direção contrária do método descrito anteriormente. Partindo do modelo categoria! do DSM, esses autores adotaram os critérios operacionais dos diagnósticos de TP como traços disfuncionais da personalidade e verificaram a sua estrutura fatorial. Dois grupos independentes liderados por Livesley3° e Clark31seguiram esta linha de trabalho e chegaram a resultados interessantemente semelhantes, respectivamente expressos nas escalas Di-
mensional Assessment of Personality Pathology - Basic Questionnaire (DAPP-BQ) e a Structured Assessment of Normal and Abnormal Personality (SNAP), a primeira com 18 traços e a segunda com 22. Os estudos conduzidos por Livesley? mostram boa convergência entre este modelo de personalidade psicopatológica e os modelos 3-fatorial de Eysenck e 5-fatorial de personalidade, sugerindo uma continuidade entre modelos de personalidade normal e afetada. Um estudo posterior32 usando critérios operacionais do DSM-IV chegou à mesma divisão em quatro fatores que eles nomearam como a estrutura dos 4. As da psicopatologia da personalidade: astênico, antissocial, A-social e anancástico (vide Tabela XI). Uma das vantagens dessa abordagem é a possibilidade de pensar nos traços psicopatológicos da personalidade como entidades específicas e não como resultado da falta de desenvolvimento de traços, ou dimensões inteiras da personalidade.
76 TRANSTORNOS DA PERSONALIDADE
Fatores e traços da estrutura psicopatológica dos transtornos de personalidade - O modelo dos 4 As
Tabela XI
Fatores
Traços básicos
Desregulação emocional (astênico)
Ansiedade, labilidade afetiva, submissão, problemas de identidade, esquiva social, apego inseguro, desregulação cognitiva
Comportamento dissociai (antissocial)
Insensibilidade, rejeição (raiva-hostilidade), problemas de conduta, busca de estímulo, desconfiança, narcisismo
Inibição (A-social)
Problemas de intimidade, expressão restrita de afetos, apego inseguro negativo
Compulsividade (anancástico)
Compulsividade (organização, precisão e conscienciosidade), oposicionalidade
Caráter e fisiopatogenia dos transtornos da personalidade De acordo com o exposto anteriormente, o caráter se apresenta como o repositório de funções complexas responsáveis pelo ajuste das disposições inatas do indivíduo (temperamento) ao meio como consciência e conciliação dos próprios processos mentais, planejamento, inferências sobre a vida mental alheia e projeções no tempo e no espaço. O exercício dessas funções se adequado ou não, determina a ausência ou presença de TP. Tratam-se de fun ções complexas cujos sítios anatômicos estão localizados no neocórtex, estruturas mais recentes na filogenia do SNC, sugerindo que tais características da personalidade poderiam ser apenas parcialmente, se é que são compartilhadas com outras espécies animais. Evidências de modelos lesionais, estudos de genética e neuroimagem sugerem o envolvimento de estruturas como o córtex pré-fron tal ventromedial (CVM) em uma gênese composta oriunda da interação geneambiente. O famoso caso de Phineas Gage, no século XIX, é um exemplo de mudança drástica da personalidade, após lesão direta ao CVM. Phineas foi vítima de um acidente de trabalho e teve sua face esquerda perfurada por uma lança de ferro abaixo do arco zigomático. A lança seguiu trajetória ascendente saindo através dos ossos parietais, região mediai anterior, conforme esquematizado na Figura 1. Antes do acidente, Phineas era descrito como um rapaz respeitador que frequentava os cultos religiosos e que era estimado por sua comunidade. Contudo, sua personalidade passou por uma transformação gradual nos meses que se seguiram ao seu acidente. Aos poucos ele se tornou agressivo, desorganizado, errático, enfim socialmente dissonante. Damasio33 propôs que a ablação acidental bilateral do CVM privou Phineas da possibilidade de ajuste e correção do comportamento mediante a percepção dos efeitos negativos de sua conduta em seus pares. Em outras palavras, o exercício empático foi comprometido.
Simulação com base em crânio exumado da lesão cerebral sofrida por Phineas Gage. Fonte: Damásio AR. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. Companhia das Letras, 1996. (Veja imagem colorida no encarte.) Figura 1
Estudos de neuroimagem sugerem que este exercício é regido pelo CVM, mas não restrito a ele. A empatia, sendo um conceito complexo, pode ser dividida em três possibilidades: suposição do pensamento alheio (empatia cognitiva), suposição dos sentimentos alheios (empatia afetiva) e suposição das sensações alheias (empatia sensorial). Em diferentes estudos de neuroimagem em que foram solicitados exercícios empáticos, estruturas como o CVM, junção temporoparietal e polos temporais foram ativadas. Em exercícios em que indivíduos são solicitados a supor a perspectiva alheia sobre um determinado evento, foi observada a ativação do córtex órbitofrontallateral, giro frontal mediai, giro cuneiforme e giro temporal superior. Quando a tarefa foi ampliada para avaliação dos sentimentos envolvidos, observou-se então a ativação de estruturas límbicas, notadamente das amígdalas bilateralmente34. Surpreendentemente quando o exercício empático envolve reconhecimento de sensações corpóreas, como a dor, observa-se ativação de estruturas associadas à experiência emocional da dor (ínsula anterior e região rostral do giro do cíngulo anterior), além do córtex somatossensorial correspondente à localização corporal da dor sugerida no exercício35. Em resumo, a função empática depende de estruturas neocorticais que recrutam estruturas adicionais correspondentes aos processos cognitivo, afetivo, ou sensorial que se busca compreender. Um prejuízo do funcionamento dessas estruturas do neocórtex frontal ou temporal, ou de estruturas subsidiárias poderia explicar as deficiências de leitura e compreensão do outro observada nos TP.
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Além das dificuldades interpessoais, o DSM -IV-TR aponta impulsividade, instabilidade afetiva, suscetibilidade a afetos negativos e alterações cognitivas como quesitos definidores de TP. O TP borderline ilustra com propriedade a combinação de todos estes fatores, além de constituir um excelente exemplo da interação entre fato res genéticos e ambientais. Um estudo investigou mais de 6.000 pares de gêmeos idênticos e não idênticos a associação entre histórico de trauma infantil e a ocorrência de TP borderline na vida adulta. Foi encontrado um efeito aditivo entre contribuição genética e exposição a trauma, em uma relação de duplo sentido onde características hereditárias de personalidade aumentam o risco de exposição ao trauma, que, por sua vez, em indivíduos vulneráveis desencadeia reações ao estresse com sequela duradouras para esta mesma personalidade36 • De fato, estudos anteriores já demonstraram alterações volumétricas no corpo caloso, hipocampo e amígdala de indivíduos e alterações no funcionamento dos sistemas responsáveis pela regulação do estresse no SNC com secreção alterada de glicocorticoides e hiperatividade do sistema noradrenérgico de alerta37 • Imputa-se à noradrenalina um efeito tônico sobre a dimensão da afetividade negativa (neuroticismo). A reatividade do reflexo de dilatação da pupila, considerada uma medida indireta da atividade central de noradrenalina, está diretamente correlacionada à vulnerabilidade ao estresse, representada por ativação autonômica sustentada, ruminações ansiosas e sensibilidade aumentada a estímulos negativos38 •
Tratamento dos transtornos de personalidade O foco psicopatológico compartilhado por todos os TP está localizado no caráter que reúne os traços mais plásticos e suscetíveis à aprendizagem da personalidade. Portanto, não é surpresa que no campo do tratamento dos TP, predominem as propostas de intervenções psicossociais. Infelizmente, estudos sobre tratamentos para TP específicos são poucos e isolados. Mais raros ainda são estudos controlados, que neste caso são quase que exclusivamente limitados a investigações de modelos de tratamento do TP borderline. Acredita-se que muitos dos princípios destes tratamentos possam ser generalizados para portadores de TP graves de diferentes tipos, contudo este potencial para generalização ainda precisa ser testado. No TP borderline duas linhas de abordagem têm ganhado força, uma que tem como referencial teórico o modelo psicodinâmico e outra que se pauta em princípios behavioristas. No primeiro grupo temos a psicoterapia de mentalização (PM) e a psicoterapia focada na transferência (PFT). O termo mentalização foi usado pela primeira vez por Fonagy sendo inspirado em conceitos híbridos da escola de psicossomática de Paris e de investigadores da teoria da mente. Ele se refere ao processo pelo qual um indivíduo estabelece um senso de si mesmo e dos outros a sua
volta. Fonagy argumenta que a PM é particularmente indicada para o TP borderline porque dificuldades com o processo de mentalização seriam o cerne psicopatológico deste transtorno e pelo que foi exposto anteriormente, talvez da maioria dos TP. O modelo da mentalização repousa amplamente sobre a teoria do apego de Bowlby e em evidências empíricas de que nos portadores de TP borderline o vínculo interpessoal é caracteristicamente desorganizado, ou ambivalente. O objetivo inicial é estabilizar a expressão emocional com uma atitude acolhedora, investigando ativamente as experiências do paciente em uma perspectiva mais descritiva do que explicativa. Em seguida, os sentimentos que emergem no relacionamento com terceiros e na relação terapêutica são explorados e reinterpretados em um trabalho "a quatro mãos". Estudos de pacientes em regime misto de internação, hospital-dia e moradia assistida com período de seguimento de pelo menos 18 meses, mostrou superioridade do modelo de PM sobre tratamento usual não estruturado39 • Com variações específicas, o método da PFT de Kernberg também se pauta na releitura dos relacionamentos interpessoais tendo a relação terapêutica como apoio e ponto de partida. A PFT também foi testada em estudos controlados se mostrando mais eficaz do que modelos não estruturados de psicoterapia40 • Seguindo uma orientação teórica diversa, temos a terapia dialética comportamental (TDC), baseada em princípios do tratamento comportamental dos anos 1970 para tratamento de pacientes suicidas crônicos, que foi posteriormente generalizados para o tratamento de dependentes de substância graves e portadores de TP borderline. A relação dialética proposta no título do programa se refere à oposição entre mudança e aceitação dos fatos frus trantes, um antagonismo que deve ser solucionado pelo paciente para "se ter uma vida que vale a pena ser vivida". O programa tem cinco objetivos específicos: I) aumentar a motivação do paciente para mudança; II) melhorar as habilidades do paciente para lidar com desafios cotidianos; III) desenvolvimento e generalização de novos comportamentos; IV) estruturação do ambiente; V) dar suporte e manter o terapeuta motivado para o enfrentamento dos desafios impostos pelo contato com pacientes tão graves. Em um contexto ambulatorial, estes objetivos são postos em prática por meio sessões individuais, grupos de treino de habilidades, consultas a distância por telefone e terapia para os terapeutas. Estudos controlados mostraram superioridade da TDC sobre a condição controle em dependentes químicos, portadores de TP borderline e em pacientes com ambas condições41 • O tratamento farmacológico sofre dos mesmos pro blemas descritos para a psicoterapia. Os estudos contro-
76 TRANSTORNOS DA PERSONALIDADE
lados são raros e quase todos concentrados no tratamento do TP borderline. Uma revisão sistemática sobre o tema mostrou que as intervenções farmacológicas enfocam principalmente a agressividade, instabilidade e impulsividade em TP borderline. A impulsividade e a agressividade têm sido tratadas com o uso de inibidores seletivos da recaptação serotonina (ISRS - principalmente fluo xetina e paroxetina). Lítio e estabilizadores do humor também são usados no controle da impulsividade, especialmente quando associada à labilidade afetiva. A associação com neurolépticos atípicos é preconizada na potencialização dos ISRS e estabilizadores descritos anteriormente, bem como no controle da hiperexpressividade emocional. Enquanto ezsse fármacos se mostram úteis no controle de sintomas isoladas, ainda faltam evidências de que sejam úteis no tratamento dos aspectos globais do TP borderline, ou de outros TP, incrementando a capacidade de organização interna, tolerância com terceiros e sentimento de conexão com a realidadé2 •
Questões 1. Os componentes básicos da personalidade normal são: a) b) c) d)
Afeto e caráter. Temperamento e afeto. Afetividade negativa, estabilidade emocional e motivação. Afetividade negativa, afetividade positiva, impulsividade, identidade e moral. e) Afetividade negativa, afetividade positiva, impulsividade, identidade, cordialidade e abertura.
2. Sobre os transtornos de personalidade: a) Traços são frequentes na população, porém sua apresentação plena é um fenômeno raro. b) Raramente são a causa da demanda por tratamento de saúde mental, porém quando presentes são associados a prognósti cos mais reservados. c) São apresentações subclínicas dos transtornos classificados no Eixo I do DSM -IV-TR. d) São caracterizados por uma sensibilidade exacerbada às necessidades alheias. ao ponto do prejuízo das próprias necessidades e objetivos. e) O traço antissocial e transgressor é o elemento comum a todas as suas variações e que identifica o portador de transtorno de personalidade. 3. A melhor definição de um transtorno de personalidade é: a) Padrão intermitente de conduta que resulta em imprevisibilidade e dificuldade de adaptação comportamental. b) Uma mudança súbita dos padrões de comportamentos observados ao longo do desenvolvimento com consequente prejuízo da adaptação. c) Padrão persistente de comportamento mal adaptativo que surge em geral na adolescência com prejuízo marcante da identidade, fu ncionamento interpessoal e estabilidade.
d) Alterações persistentes da personalidade ocasionadas por abuso de substância, traumas. ou outras formas de agressão ao SNC. e) Déficits focais de fu nções relacionadas ao desempenho cognitivo, controle dos afetos. ou controle dos impulsos. 4. Escolha a assertiva mais correta sobre modelos de personali dade: a) O modelo categoria! é o ideal para classificação dos transtornos de personalidade. b) A insatisfação com o modelo categoria! é grande, mas o aperfeiçoamento das categorias diagnósticas é crescente e promissor. c) O modelo dimensional deve substituir o atual modelo categoria! porque é compatível com ambas as formas de personalidade normal e transtornada. d) O modelo dimensional deve ser reservado apenas para descrição da personalidade normal, enquanto o modelo categoria! se ajusta melhor aos transtornos de personalidade. e) Os modelos categoriais são superiores aos modelos dimensionais porque além de permitir o diagnóstico de transtornos da personalidade, fornecem uma visão da estrutura da personalidade.
5. Qual o papel do temperamento e caráter no diagnóstico do transtorno de personalidade: a) Variações extremas do temperamento indicam transtorno da personalidade e a estrutura do caráter indica a sua gravidade. b) Caráter e temperamento são forças motivadoras antagônicas do comportamento, transtornos da personalidade representam perturbações no equilíbrio dinâmico estabelecido entre ambos. c) O diagnóstico se baseia no perfil temperamental e o caráter é verificado em casos duvidosos. d) Nem toda variação extrema de temperamento determina um transtorno de personalidade, porque isto depende do grau de desenvolvimento do caráter. e) Um caráter bem desenvolvido impede variações extremas do temperamento. 6. Sobre a divisão das categorias diagnósticas dos transtornos de personalidade: a) É composta por três grupos - retraídos (afetividade positiva reduzida). impulsivos (impulsividade elevada) e ansiosos (afetividade negativa elevada). b) É composta de dois grupos - introvertidos e extrovertidos. respectivamente associados à baixa e alta impulsividade. c) É composta por três grupos - antissociais (impulsividade elevada). depressivos (afetividade negativa elevada) e obsessivos (afetividade positiva reduzida). d) É composta de dois grupos - introvertidos e extrovertidos. respectivamente associados à afetividade negativa e positiva. e) É composta por cinco grupos - neuróticos, extrovertidos, conscienciosos. cordiais e abertos/liberais.
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Retardo Mental
Francisco Baptista Assumpção Jr.
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 1065 Etiologia, 1066
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Fatores que atuam antes da concepção, 1066 Fatores perinatais, 1069 Fatores pós- natais, 1069 Quadro clínico, diagnóstico e comorbidades, 1070 Comorbidades, 1073 Tratamento, 1076 Atenção primária, 1077 Atenção secundária, 1078 Atenção terciária, 1078 Terapêutica medicamentosa, 1079 Minicaso clínico, 1081 Questões, 1082 Referências bibliográficas, 1082
Introdução O conceito de retardo mental (RM) é muito amplo e sofre as influências do meio no qual foi estruturado, sendo, portanto, uma entidade clínica difícil de ser precisada e, neste momento, tende a ser denominado por aqueles que trabalham na área com a designação preferencial de deficiência intelectual. A variedade de ideias existente sobre o tema é grande e vai desde o conceito simplista de Kraepelin citado por Weitbrechf5, para o qual "... os débeis mentais são pessoas em cujo cérebro não ocorrem muitas coisas", até a proposta de 1959 da Associação Americana de Deficiência Mental, que define que "... o retardamento mental refere-se ao funcionamento intelectual geral abaixo da média, que se origina durante o período de desenvolvimento e está associado a prejuízo no comportamento adaptativo" 1•2 • Dessa maneira, o indivíduo afetado é incapaz de competir, em
1. Definir retardo mental. 2. Conhecer sua heterogeneidade e sua multicausalidade. 3. Conhecer as principais etiologias do retardo mental. 4. Reconhecer seu quadro clínico, bem como os critérios diagnósticos e os sistemas para ele utilizados. 5. Reconhecer as diferenças psicométricas e clínicas observadas em cada um de seus níveis. 6. Reconhecer as principais comorbidades psiquiátricas observadas, bem como sua dificuldade diagnóstica. 7. Conhecer como se estrutura o tratamento do retardo mental em
seus diferentes níveis de atenção e as dificuldades da abordagem medicamentosa nesses quadros.
termos de igualdade, com os companheiros normais, dentro de seu grupamento social. Para delimitar melhor o conceito, a Organização Mundial da Saúde propõe, de acordo com Anderson3 , o quadro apresentado na Figura 1, que corresponde ao processo envolvido no retardo mental e que é caracterizado, principalmente, com base nas consequências que o problema apresenta no âmbito pessoal, familiar e social, sendo sempre decorrente de uma deficiência biológica que gera uma incapacidade funcional, o que leva o indivíduo a não apresentar o desempenho esperado de acordo com sua idade, sexo e grupo social. Em consequência, ele passa a apresentar um prejuízo, que o leva a sofrer socialmente condutas de exclusão, conforme observado na Figura 1. Em função dessas considerações, entende-se que: 1. Deficiência: diz respeito a uma anomalia de estrutura ou da aparência do corpo humano e do funcionamento de um órgão ou sistema, independentemente de
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AS GRANDES SÍNDROMES PSICOPATOLÓGICAS
Fatores etiológicos
Ambiente Enfermidade Deficiência
Atitudes Necessidades sociais Prejuízo
Incapacidade
I .~
Figura 1
.~
~
Consequências pessoais
Consequências familiares
Consequências sociais
Diminuição de autonomia, mobilidade, atividades de lazer, integração social, independência e conduta
Necessidade de cuidados, perturbação das relações . . . soc1a1s, carga econom1ca
Demanda de cuidados, perda da produtividade, má integração social
~
Processo da deficiência mental. Fonte: adaptada de Anderson, 198P .
sua causa, tratando-se, em princípio, de uma perturbação de tipo orgânico. 2. Incapacidade: reflete as consequências de uma deficiência no âmbito do rendimento funcional e da atividade do indivíduo, representando, desse modo, uma perturbação no plano pessoal. 3. Prejuízo: refere-se às limitações experimentadas pelo indivíduo em virtude da deficiência e da incapacidade, refletindo -se, portanto, nas relações do indivíduo com o meio, bem como em sua adaptação a ele. Para se pensar, portanto, a questão do retardo mental, muito além das perturbações orgânicas, deve-se dar atenção às dificuldades de realização de atividades esperadas socialmente, bem como às consequentes alterações no relacionamento do indivíduo com o mundo circundante. O retardo mental deve ser considerado, portanto, "... não uma moléstia única, mas um complexo de síndromes que têm como única característica comum a insuficiência intelectual"4 • Desse modo, sua abordagem tem de ser realizada de acordo com uma proposta multidimensional, que inclui dimensões biológicas, psicológicas e sociais. Mais que a maioria dos problemas psiquiátricos, em nosso meio não há estudos que definam sua frequência populacional, por isso é preciso ater-se a dados projetivos, organizados e coletados em outras realidades que não podem ser projetados de forma adequada para nosso meio. Esse fato, em que pese o retardo mental já ser objeto de estudo no Brasil desde o início da implantação da própria psiquiatria na medicina5, reflete o descaso e o desinteresse por um quadro que proporciona pequenas possibilidades de atuação medicamentosa e um trabalho crônico com pouca repercussão social. Assim, as melhores estimativas de retardo mental, com quociente intelectual abaixo de 50, realizadas em países desenvolvidos sugerem uma prevalência ao redor de 3 a 4:1.000 pessoas. Usualmente, estima-se que o retardo mental leve (psicometricamente, observando-se QI entre 50 e 70) ocorra em 2 a 3% das pessoas2 •
Etiologia Com base em novas visões proporcionadas pela AAMR6, pensar-se a etiologia do retardo mental consiste em pensar-se um constructo multifatorial composto por categorias de risco biomédicos, sociais, comportamentais e educacionais que interagem durante toda a vida do indivíduo e intergeneracionalmente. Isso substitui a ideia de etiologias de origem biológica e em razão da privação psicossocial que, por muito tempo, dificultaram a concepção do quadro, levando às críticas referentes a um processo de medicalização diagnóstica que poucos benefícios trouxe. Assim, esse modelo de múltiplos fatores de risco parece ser mais abrangente no que se refere às diferentes causas que interagem e ocasionam esse funcionamento deficitário. Pode-se pensar então conforme o estabelecido no Quadro I. Assim, pensar a etiologia do retardo mental é difícil, e seus aspectos biomédicos podem, de modo geral, ser subdivididos da seguinte forma, ainda segundo a OMS 2 •
Fatores que atuam antes da concepção Os fatores que atuam antes da concepção envolvem causas genéticas e ambientais, consistindo nos aspectos mais importantes na gênese da deficiência mental, a exemplo do que cita Kuo-Tai7, com cifras da ordem de 50% da população estudada por esse autor. Fatores genéticos
Entre os fatores genéticos, há os que estão relacionados a um único gene e os que se devem a vários genes. Aqueles oriundos de alteração ou mutação de um único gene afetam cerca de 1 a 2% dos nascidos vivos e correspondero a três a quatro mil doenças já descritas8 . Patologias de herança dominante
Entre as patologias de herança dominante, há inúmeras síndromes, algumas caracterizadas por deficiência
77 RETARDO MENTAL
Quadro I
Fatores de risco para o retardo mental segundo a AAMR
Ocorrência
Biomédicos
Social
Comporta mental
Educacional
Pré-natal
1. Distúrbios cromossômicos
1. Pobreza
1. Deficiência cognitiva dos
2. Distúrbios de gene único 3. Síndromes 4. Distúrbios metabólicos 5. Disgênese cerebral 6. Doenças maternas 7. Idade dos pais
2. Má nutrição materna 3. Violência doméstica 4. Falta de acesso ao cuidado pré-natal
1. Uso de drogas pelos pais 2. Uso de álcool pelos pais
1. Prematuridade
1. Falta de acesso aos
Perinatal
2. Lesão no nascimento 3. Distúrbios neonatais Pós-natal
1. Lesão cerebral traumática
2. Má nutrição 3. Meningoencefalite 4. Distúrbios convulsivos 5. Distúrbios degenerativos
cuidados ao nascimento
1. Cuida dor da criança
2. 3. 4. 5.
incapacitado Falta de estimulação adequada Pobreza familiar Doença crônica na família lnstitucionalização
3. Hábito de fumar por parte dos pais 4. Imaturidade dos pais
.
.
pa1s sem apo1o 2. Falta de preparação para serem pa1s
1. Rejeição dos pais ao cuidado da criança 2. Abandono da criança pelos pais
1. Falta de encaminhamento
1. Abuso e negligência da cnança 2. Violência doméstica 3. Medidas de segurança inadequadas 4. Privação social 5. Comportamentos difíceis da criança
1. Incapacidade dos pais
médico para serviços de intervenção na alta hospitalar
2. Diagnóstico retardado 3. Serviços de intervenção precoce inadequados 4. Serviços educacionais especiais inadequados 5. Apoio familiar inadequado
Fonte: AAMR. 2006 6 •
mental associada a malformações ectodérmicas, mesa dérmicas, musculares ou ósseas. Como exemplo, podem ser citadas as neuroectodermatoses ou facomatoses, dentre as quais estão a esclerose tuberosa ou epiloia - descrita por Bourneville em 1880, caracteriza-se por lesões hamartomatosas em grande variedade de tecidos, principalmente pele e cérebro. Também a neurofibromatose: descrita por von Recklinghausen em 1882, apresenta uma incidência de cerca de 1:3.000 habitantes9, caracterizando-se por áreas de hipo e hiperpigmentação, manchas caje-au-lait em número de seis ou mais, com mais de 1,5 em de diâmetro. Ainda dentro do grupo, estão as angiomatoses cerebrais (Sturge-Weber e Von Hippel-Lindau), com a sequência de Sturge-Weber correspondendo à combinação de malformações na pele do rosto, olhos e meninges, e o aparecimento de hemangiomas planos e avinhados, podendo ocorrer simultaneamente convulsões. A síndrome de Von Hippel-Lindau, descrita em 1926, combina a angiomatose de retina com tumores angiomatosos de cerebelo e outras partes do sistema nervoso central9 • Importantes ainda são os retardas mentais com alterações ósseas como as disostoses craniofaciais, como a síndrome de Apert, descrita em 1906 e caracterizada pela diminuição do diâmetro frontoccipital, fronte alta e abaulada, associada (ou não) a retardo mental. Nesse grupo, encontra-se ainda a síndrome de Marfan, apresentando tendência à estatura alta e membros longos e delicados, com escassez de panículo adiposo e hipotonia muscular, frouxidão articular, tórax em quilha, subluxação de cristalino e miopia. Outras síndromes são descritas, como a síndrome de Porot (com discondroplasia).
Patologias de herança recessiva Podem ser encontradas alterações diversas, principalmente no que se refere às alterações metabólicas, cabendose citar os distúrbios do metabolismo lipídico, entre os quais encontram-se a idiotia amaurótica (doença de Tay-Sachs), a doença de Bielschowsky-Jansky, doença de SpielmeyerVogt, doença de Kufs, doença de Normann-Wood, síndrome de Niemann-Pick e doença de Gaucher. Existem também os distúrbios do metabolismo de mucopolissacárides, entre os quais estão a doença de Hurler, identificada em 1919, com diminuição no ritmo de crescimento, atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, macrocefalia, fronte abaulada, traços fisionômicos grosseiros, lábios grossos, nariz em sela, dentes pequenos e irregulares e alterações ósseas ( cifose, dilatação de caixa torácica, alargamento de diáfises); a doença de Mórquio, descrita em 1929, com crescimento diminuído, traços fisionômicos grosseiros, turvação de córnea, dilatação de caixa torácica, ossos longos e arqueados, flacidez articular e dentes espaçados com coloração acinzentada; a doença de Scheie, caracterizada por boca larga com lábios grossos, prognatismo, opacificação de córnea, limitação de mobilidade articular, hirsutismo e pigmentação de retina; a doença de Sanfillipo, identificada em 1963, mostrando crescimento normal ou acelerado, retardo no desempenho intelectual, hepatomegalia e dentina irregular; e a doença de Maroteaux, com manifestações observadas a partir dos três anos de idade, caracterizadas por déficit estatura!, opacificação de córnea, rigidez articular, vértebras achatadas, costelas largas, cifose e hepatoesplenomegalia9. Podem ser citados ainda os distúrbios do metabolismo glicídico, como a glicogenose (doença de von Gierke)
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e a galactosemia, bem como os distúrbios do metabolismo protídico, entre os quais está a fenilcetonúria, com prevalência ao redor de 1:15.000 e quadro caracterizado por retardo mental, pele e pelos claros, bem como presença frequente de síndrome convulsiva associada. Outras formas poderiam ainda ser citadas como a doença do xarope de bordo, a cistationúria, a doença de Wilson e a doença de Hartnup, a microcefalia familiar, a doença de Sjogren-Larsson, descrita em 1957 e caracterizada por ictiose associada a espasticidade e retardo mental; e a síndrome de Laurence -Moon, caracterizada por obesidade, retardo mental, polidactilia, sindactilia, hipoplasia de genitais e retinite pigmentosa9 • Patologias de herança ligada ao sexo
Faz parte deste grupo - somente a título de informação - a doença de Hunter, que mesmo sendo uma mucopolissacaridose apresenta esse outro padrão de herança e que fenotipicamente se caracteriza por apresentar fácies grosseira com atraso de crescimento, rigidez articular, córneas transparentes, macrocefalia, dilatação óssea e hepatoesplenomegalia9. Considerando-se os fatores cromossômicos, as alterações quantitativas ou qualitativas dos cromossomos afetam o material genético, ocorrendo na maioria das vezes em pais normais. Cerca de 50% dos abortos espontâneos devem-se a aberrações cromossômicas estabelecidas no zigoto em razão de falhas na produção dos gametas. Dessa maneira, a frequência de aberrações cromossômicas é reduzida para aproximadamente 0,06% dos nascidos vivos. Para fins didáticos é possível estabelecer a seguinte classificação: 1) Anomalias do número de cromossomos somáticos: a mais importante é a trissomia do cromossomo 21 (síndrome de Down), com frequência de 1 para 600 nascimentos, aumentando de acordo com o aumento da idade materna. Seu grau de deficiência situa-se entre a deficiência mental moderada e a grave 10 , e seu diagnóstico clínico é feito por meio de sinais físicos característicos, embora seja importante sua confirmação laboratorial, objetivando-se um possível aconselhamento genético. Embora com maior gravidade, chegam menos frequentemente ao psiquiatra os portadores de trissomia do 18 (síndrome de Edwards): descrita em 1960, com frequência de 0,3 por 1.000 recém-nascidos, apresentando predomínio no sexo feminino e sendo caracterizada por movimentos fetais fracos, retardo de crescimento, retardo mental, hipertonia muscular, abaulamento de região occipital, malformação de orelhas, fendas palpebrais curtas e micrognatia9. Também é importante de ser citada a trissomia do 13- 15 ou síndrome de Patau, descrita em 1960, com malformações de sistema nervoso central (SNC), abalos motores, crises de apneia, retardo mental, surdez, microcefalia, microftalmia, displasia de retina, alterações de pavilhões auriculares e hemangiomas capilares9 .
2) Anomalias do número de cromossomos sexuais:
a síndrome de Klinefelter é caracterizada por displasia testicular tubular, cariótipo XXY, hipogonadismo e membros compridos, com predomínio de segmento inferior. Pode-se observar ainda microcefalia com malformações múltiplas e criptorquidia, associada a cariótipo XXXY e caracterizada por hipogonadismo, diminuição das cristas papilares nas pontas dos dedos e alterações articulares9, bem como a disgenesia gonádica e oligofrenia (síndrome de Turner) apresentando cariótipo XO e feno tipicamente se caracterizando por baixa estatura, caixa torácica larga, disgenesia de ovários, linfedema congênito transitório e malformações ósseas. Finalmente, podem ser descritas as chamadas superfêmeas, com cariótipo XXX, retardo mental, hipoplasia de terço médio da face e amenorreia inconstante9. Fatores ambientais
Embora desconsiderados muitas vezes quando são abordadas as deficiências mentais, os fatores ambientais são de extrema importância tanto no que se refere a prevalência quanto no que se refere a prevenção. Assim, po dem ser estudados em relação a: 1. Infecções: consideram -se, aqui, a toxoplasmose congênita, causada pela infestação pré-natal ocasionada pelo Toxoplasma gondii e que se caracteriza pela tétrade de Sabin (deficiência mental, micro cefalia, calcificações intracranianas e coriorretinite) e a rubéola congênita, que ocasiona, além do déficit cognitivo, deficiência sensorial, principalmente nas esferas auditiva e visual. Ainda importante em nosso meio, a lues congênita, caracterizada por malformações físicas, como tíbia em sabre, nariz em sela, fronte olímpica e dentes de Hutchinson. Dentre as viroses, cabe citar o citomegalovírus. 2. Fatores nutricionais: é indiscutível que a desnutrição materna ocasiona fetos pouco desenvolvidos e, com maior frequência, apresentando comprometimento intelectual. 3. Fatores físicos: representados aqui, principalmente, pela exposição à radiação. 4. Fatores imunológicos: incompatibilidade de gru' po sangumeo. 5. Intoxicações pré-natais: as intoxicações pré-natais são representadas especialmente pela síndrome alcoólica fetal, caracterizada por retardo mental, deficiência no crescimento pré e pós-natal quanto à altura e ao peso, alterações de SNC (pode ocorrer microcefalia) e anomalias craniofaciais: epicanto, ponte nasal baixa, filtro hipoplásico e fácies achatada 11 • Estudos a respeito da utilização da cocaína por gestantes também parecem apontar a toxicidade do agente químico sobre o feto 12, bem como estudos realizados com maconha mostram também déficit no crescimento fetal e subnutrição, embora com poucos relatos de alterações na morfogênese 13•14.
77 RETARDO MENTAL
Outros fatores podem ser citados, tais como gases anestésicos, Busulfan, DDT, hexaclorobenzeno, reagentes laboratoriais (benzeno e xileno), metotrexato, cádmio etc. 15 • Entretanto, como drogas de maior interesse, cabe citar um estudo referente a anticonvulsivantes, que refere maior índice de retardo mental ligado ao uso dos principais anticonvulsivantes durante a gravidez 16 . 6. Transtornos endocrinológicos maternos: os mais importantes são o diabetes materno e as alterações tireoidianas. Estudos realizados na década de 196017 referem presença aumentada de malformações congênitas em nascidos de mães diabéticas em percentual maior do que na população comum, embora sem poder se caracterizar um padrão definido de malformações. Do mesmo modo, alterações tireoidianas maternas refletem-se nos fetos, com o aparecimento de alterações morfológicas 17 • 7. Hipoxia intrauterina: na prática clínica, a anoxia fetal pode ser causada por hemorragia uterina, insuficiência placentária, anemia grave, administração de anestésicos e envenenamento com dióxido de carbono.
Traumatismo obstétrico
Fatores perinatais
Infecções
Os fatores perinatais envolvem toda a problemática decorrente do atendimento materno -infantil, sendo representada principalmente pela anoxia neonatal. Em nosso meio, esses são provavelmente os fatores mais importantes de deficiência mental, obviamente decorrentes de uma estrutura de saúde carente e não privilegiada.
É representado principalmente pelas distocias de parto e as consequentes lesões físicas fetais por elas provocadas. Prematuridade
Favorece a ocorrência de anoxia em virtude da imaturidade fetal, o que também favorece a hemorragia cerebral. Para Peterson20, ela corresponde à mais importante associação com a deficiência mental, sendo que 50% de crianças com até 32 semanas de gestação que demandaram suporte respiratório apresentaram hemorragias intraventriculares e, embora nenhuma delas tivesse apresentado deficiência mental posterior, algumas apresentaram hidrocefalia e paralisia cerebral (fortemente associadas à DM) decorrentes da hemorragia interventricular. A leucomalácia periventricular é também consequência comum da prematuridade, sendo relacionada a hipoxia.
Fatores pós-natais Devem ser consideradas, aqui, as meningoencefalites bacterianas e as virais, principalmente por herpes vírus, diagnosticada com base em reações sorológicas e alterações radiológicas características. Meningites bacterianas, sobretudo causadas por Haemophilus influenzae e Diplococcus pneumoniae, podem ser responsáveis. As encefalites virais são causas incomuns, exceção feita as herpéticas20 • Abcessos cerebrais são raros.
Anoxia
É considerada fator causal pouco importante em países desenvolvidos; entretanto, é de extrema importância no Brasil, uma vez que, nos serviços especializados em deficiência mental, observam-se altos índices de anoxia neonataP 8 • Tais dados contrastam com os encontrados por outros autores, como McQuen et al.l 9 , que referem cifras ao redor de 1% da amostra institucional deficiente mental como decorrente de anoxia neonatal, contrariamente à cifra de 20,29% observada no Brasil, também em amostra institucional. Para Peterson20 , crianças com índices de Apgar baixo aos 5 minutos de nascimento apresentam, com maior frequência, diminuição de reflexos e síndrome convulsiva ao redor de 48 horas após o nascimento, sendo fre quente paralisia cerebral espástica ou atetoide associada a retardo mental consequente a essa encefalopatia hipóxico -isquêmica. A anoxia envolve, portanto, não apenas problemas específicos da gestante, como o fumo durante a gestação, mas toda uma problemática socioeconômica representada pela desnutrição materna e pelo mau atendimento materno-infantil, bem como anemia da gestante, eclâmpsia e hemorragias intracranianas durante o período perinatal.
Traumatismos cranioencefálicos - fatores químicos
Os fatores químicos são representados principalmente pela ação de fatores tóxicos que provocam lesão cerebral na criança. O próprio oxigênio, usado com frequência na reanimação de crianças recém-nascidas, está relacio nado à fibroplasia retrolental, causadora de intenso déficit visual. Do mesmo modo, são descritas, há muito tempo, as intoxicações por chumbo pós -ingestão de alimentos que contenham esses fatores químicos 17 • Fatores nutricionais - privações diversas
Privações diversas (sensoriais, familiares, sociais etc.), descritas durante muito tempo como possíveis causas de retardamento mental, devem ser vistas com bastante cuidado, uma vez que são difíceis de serem diagnosticadas, pois se sobrepõem a diversos outros fatores causais, tornando-se quase impossível a sua separação. Causas desconhecidas
Em serviços especializados no diagnóstico de deficiência mental que contam com todos os recursos possíveis, os índices de causas desconhecidas representam, atualmente, 28 a 30% dos casos.
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Quadro clínico, diagnóstico e comorbidades Para o DSM-IV TR21 , em seu quadro clínico, as características fundamentais do retardo mental são: a. funcionamento intelectual global significativamente inferior à média; b. déficits ou prejuízos concomitantes no funcionamento adaptativo atual; c. início anterior aos 18 anos de idade. Para a AAMR 22, na realização de seu diagnóstico é de fundamental importância considerar os padrões culturais e linguísticos, as diferenças comportamentais e culturais envolvidas, a existência de limitações em determinados padrões adaptativos, consequentes ao meio cultural em questão, e as limitações adaptativas específicas; com mecanismos de suporte adequados, a melhoria no funcionamento da pessoa deficiente é consideravelmente aumentado. A doença é então caracterizada como uma limitação substancial no funcionamento presente, com desempenho intelectual médio diminuído (com escores de QI quociente intelectual - abaixo de 70-75), limitando a adaptação em áreas como comunicação, autocuidado, vida independente, sociabilidade, inserção na comunidade, autonomia, educação acadêmica, lazer e trabalho. Tal diagnóstico é realizado independentemente de se verificar ou não a coexistência de um transtorno físico ou outro transtorno mental. Ela se constitui, então, em complexa e multifacetada estrutura que envolve esses três aspectos (biológico, psicológico e social), sempre levando em conta que eles podem estar individualmente presentes sem, no entanto, constituírem o complexo sindrômico que a caracteriza. A revisão de 20026 conceitua o retardo mental como "uma incapacidade caracterizada por importantes limitações, tanto no funcionamento intelectual quanto no comportamento adaptativo, expresso por habilidades adaptativas conceituais, sociais e práticas, todas com início antes dos 18 anos de idade". Essas limitações sempre devem ser consideradas dentro de um contexto ambiental e relativas a indivíduos de mesma idade e cultura. Comparativamente ao sistema de 1992, observam -se as mudanças conforme referido no Quadro II. O novo modelo tenta, assim, refletir o entendimento da multidimensionalidade do retardo mental e o papel que as estruturas de suporte desempenham no próprio funcionamento individual. Com essa complexidade até agora descrita, é impossível a simplificação, habitualmente observada, de se diagnosticar o retardo mental simplesmente com base na mera observação clínica, uma vez que o diagnóstico realizado dessa forma apresenta pouca ou quase nenhuma utilidade. Assim, as crianças com deficiência mental devem ser submetidas a uma bateria de avaliações que possibilite o
Quadro 11 Comparativo entre os sistemas diagnósticos referentes ao retardo mental Sistema de 1992
Sistema de 2002
Funcionamento intelectual e habilidades adaptativas
Habilidades intelectuais
11
Considerações psicológicas e . . emOCIOnaiS
Comportamento adaptativo (habilidades conceituais, sociais e práticas)
111
Saúde e considerações físicas
Participação, interações e papéis SOCiaiS
IV
Considerações ambientais
Saúde (saúde física, saúde mental e etiologia)
Dimensões
v
Contexto (ambiente e cultura)
Fonte: AAMR, 2006 6 •
esclarecimento da provável etiologia do quadro. Essa pesquisa, entretanto, é extensa e trabalhosa, partindo de cuidadosa anamnese e exame físico que visam ao detalhamento da história gestacional e obstétrica. Detalhes sobre abortos maternos prévios, idade dos pais, saúde dos de mais membros da família, incluindo demais afetados, que podem ser encontrados em cerca de 10% dos casos, devem ser incluídos na avaliação23 • Posteriormente ao exame físico, cabe a tentativa de caracterização de três ou mais sinais físicos que são significativamente comuns em indivíduos com deficiência mental, assim como malformações primárias de SNC, segundo Newell e Green23 . A pesquisa de infecções congênitas é de fundamental importância, uma vez que, segundo os mesmos autores, cerca de 2% dos casos são por elas provocados. Doenças progressivas, embora não frequentes, também são passíveis de serem pesquisadas, assim como disfunções de SNC e sinais de lesão cerebraF3 • Assim, algumas estratégias podem ser possíveis, ainda conforme a AAMR24 para melhor elucidação das prováveis etiologias, conforme apresentado no Quadro III. Sobre a questão diagnóstica cabe ainda, a despeito das muitas críticas frequentemente relatadas, o diagnóstico psicométrico. Isso porque a classificação do retardo mental também é ampla, uma vez que ele não corresponde a uma ruptura no desenvolvimento intelectual do indivíduo, estabelecendo, assim, um conceito de patologia. Ele é, ao contrário, um continuum que se estende do próximo ao normal ao francamente anormal, de acordo com o potencial adaptativo do indivíduo em questão, potencial este representado pela sua capacidade intelectual. É importante salientar, no entanto, que definir inteligência já é, a princípio, bastante difícil. Assim sendo, sua avaliação apresenta dificuldades ainda maiores.
77 RETARDO MENTAL
Quadro 111
Hipóteses e estratégias para avaliação dos fatores de risco etiológicos
Início
Hipótese
Estratégias
Pré-natal
Alteração cromossômica
Exame físico Encaminhamento a geneticista clínico Análise cromossômica e de DNA
Síndrome
História familiar Exame de familiares Exame físico Encaminhamento a geneticista clínico
Erro inato de metabolismo
Exame do recém -nascido Análise de aminoácidos em sangue e urina Análise de ácidos orgânicos na urina Níveis sanguíneos de lactato, piruvato, ácidos graxos, carnitina e acilcarnitinas Ensaios de enzimas específicas Biópsias de tecidos específicos
Disgenesias cerebrais
Neuroimagem (tomografia axial computadorizada - TAC - ou ressonância nuclear magnética)
Fatores de risco sociais, comportamentais e ambientais
Crescimento intrauterino e pós-natal Patologia placentária História social dos pais História médica e exame da mãe Exame toxicológico da mãe (pré-natal) e da criança (ao nascimento) Encaminhamento a geneticista clínico
Perinatal
Transtornos intraparto e neonatais
Exame dos registros maternos, durante o trabalho de parto e no parto Registros de parto e neonatais
Pós-natal
Lesão craniana
História médica Raio X e neuroimagem de crânio
Infecção cerebral
História médica Análise de liquor
Transtornos desmielinizantes
Neuroimagem Análise de liquor
Transtornos degenerativos
Neuroimagem Estudos específicos de DNA Ensaios de enzimas específicas Biópsias de tecidos específicos Encaminhamento a geneticista clínico ou neuropediatra
Transtornos convulsivos
Eletroencefalograma (EEG) Encaminhamento a neuropediatra
Transtornos tóxico-metabólicos
Ver erros inatos de metabolismo Estudos toxicológicos Estudos com chumbo e outros metais pesados
Má nutrição
Medidas corporais História nutricional História nutricional familiar
Prejuízo ambiental e social
1. História social 2. História de abuso e negligência 3. Avaliação psicológica 4. Observação em ambiente novo
Inadequação educacional
Encaminhamento e registros iniciais de intervenção Exame de registros educacionais
Fonte: adaptada de AAMR, 2006 6•
Simplesmente por uma questão também didática, considera-se aqui o conceito de inteligência desenvolvido por Stoddar em 194325, que a refere como a capacidade de realizar atividades caracterizadas por serem difíceis, complexas, abstratas, econômicas, adaptáveis a um certo objetivo, de valor social, carentes de modelos e para mantê-
las em circunstâncias que requeiram concentração de energias e resistência às forças afetivas. Isso porque, por mais variadas que sejam as definições de inteligência, elas têm, em geral, um ponto comum, pois todas falam em adaptar-se ou agir de modo satisfatório diante de situações novas, para que, assim, possam
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lidar com o meio ambiente. Para tanto, faz-se necessário que o indivíduo consiga resolver os problemas apresentados de forma satisfatória. É óbvio que essa capacidade de solucionar proble mas será profundamente influenciada pelo aprendizado, que pode ser pensado como"... a mudança do comportamento diante de uma situação dada, incorrida por suas experiências repetidas naquela situação, desde que essa mudança de comportamento não possa ser explicada com base em tendências de respostas nativas, maturação ou estados temporários do paciente" 26 • Considerar a inteligência um processo adaptativo passa a ter extrema importância na questão do retardo mental, uma vez que foi essa função, decorrente de modificações cerebrais ocorridas durante o desenvolvimento filogenético da espécie, que proporcionou nela o aparecimento de comportamentos cada vez mais específicos que poderiam ser 27 : • comportamentos individuais propriamente ditos; • comportamentos desenvolvidos diante de um ambiente específico; • comportamentos similares aos congêneres e ligados à reprodução e à sociabilidade (visto tratar-se de uma espécie predominantemente gregária). Com base nisso, deve-se considerar que, embora a sobrevivência biológica tenha se resolvido há alguns milhares de anos, a questão adaptativa é, no homem moderno, uma questão adaptativa eminentemente social, posto que para tal habilidades cognitivas específicas passam a ser exigidas do indivíduo de forma que ele consiga perceber e reagir, adequadamente, em relação ao outro. Essas características, frutos de um substrato biológico, desenvolvem -se com base na relação do indivíduo com o ambiente e se constituem em programas individuais. Des sa forma, o conhecimento dessas habilidades passa a ser fundamental para as questões adaptativas e, posteriormente, os sistemas de suporte. Assim, quando se estabelece um teste de avaliação, procura-se definir o padrão de conduta em comunidades diferentes, em populações de nível socioeconômico diverso e grupos raciais também diferentes, da mesma forma que se procura evitar a utilização de conceitos ou imagens que dependem de variações de moda ou acontecimentos. Entretanto, a questão adaptativa continua presente como forma de reação ao ambiente, reação esta que, quanto mais adaptada, mais possibilidades de autonomia, independência e, consequentemente, de sobrevivência fornecem ao indivíduo afetado. Independentemente da análise individual de cada teste, parece clara a relação deles com habilidades específicas, características de uma sociedade pragmática, que vive em regime de produção de bens e que cataloga o indivíduo em função dessa capacidade de produção. Assim, uma avaliação das características permite classificá-lo como de-
fi ciente com uma incapacidade pessoal e na realização de atividades, que lhe proporcionam prejuízo social. Avaliações padronizadas permitem, desse modo, o estabelecimento de um índice que expressa "teoricamente" o nível de habilidade de um indivíduo de acordo com as "normas de sua idade", prevendo um desempenho futuro. Apesar de todas as considerações ao esquema de normatização e avaliação da inteligência, é preciso utilizar o critério estatístico de norma com finalidade eminentemente prática de classificação da deficiência mental, usando -se para isso o estabelecido internacionalmente pela OMS2 e até agora considerado, conforme pode-se observar no Quadro IV Para melhor visualização desses indivíduos, mais do que pela questão psicométrica, podem ser pensados também de acordo com suas características2 : 1. Retardos mentais profundos: correspondem à pequena minoria com déficit intelectual refletido nos QI inferiores a 20 e com nível de desenvolvimento relativo à idade de desenvolvimento abaixo de 2 anos, em geral com déficits motores acentuados. 2. Retardos mentais graves e moderados: abrangem cerca de 0,3% de todas as crianças que alcançam alguma independência durante a infância e a adolescência. Seu nível de independência nas atividades cotidianas depende basicamente de treinamento; de modo geral, pode-se pensar seu padrão de desempenho em pensamento préoperatório, de acordo com a teoria piagetiana, caracterizado, então, por egocentrismo, irreversibilidade de fun ções e pensamento com caráter predominantemente pré-lógico, com o consequente desenvolvimento de uma moral heterônoma. 3. Retardos mentais leves: grupo mais amplo, com cerca de 2 a 3% das crianças em idade escolar. Sua adaptação social é muito influenciada por fatores econômicos, históricos e sociais, também dependendo dos processos de treinamento e de adequação. Seu padrão de pensamento permanece, a princípio, no nível das operações concretas dentro do modelo piagetiano, o que permite imaginar sua conduta como basicamente dependente das análises realizadas sobre experiências e fatos concretos, incapaz, portanto, de projetar sua própria experiência no tempo e no espaço.
Quadro IV Classificação e distribuição das deficiências mentais, propostas pelo comitê de experts em saúde mental da OMS
Ql
Proporção na população DM (Ofo)
Profunda
0-20
5
Grave
20-35
Grupo
20
Moderada
36-50
Leve
50- 70
75
77 RETARDO MENTAL
Outro modelo classificatório, também utilizado pela OMS é a CIF (International Classilication oflmpairments, Disabilities and Handicaps) 6 • A CIF vai além da perspectiva puramente biomédica, incluindo aspectos sociais e ambientais. Complementa, assim, a própria CID 1O, pois proporciona uma estrutura conceitual que permite melhor compreensão do funcionamento e da deficiência propriamente dita, assim como um sistema classificatório e codificado e uma linguagem comum que engloba a questão das habilidades da pessoa deficiente. Dessa forma, a noção de funcionamento passa a indicar estados neutros e não problemáticos, enquanto o termo deficiência passa a ser usado para problemas no funcionamento. Não é, entretanto, um modelo de avaliação, mas sim um instrumento conceitual geral. É importante se pensar, portanto, não somente so bre a questão psicométrica, mas também a da funcionalidade, embora esta também deva ser verificada por meio de instrumentos estabelecidos e padronizados, conforme pode-se observar no Quadro V.
Comorbidades Primitivamente, a criança é um ser indiferenciado, pois não estabelece noções claras de Eu, assim como de espaço e tempo. Com o passar do tempo, por meio do seu desenvolvimento cognitivo, define categorias que irão constituí-la enquanto ser, de forma cada vez mais complexa, até que o processo de desenvolvimento culmine no indivíduo adulto, com consciência de si mesmo e do meio que o rodeia. Durante esse período de desenvolvimento, as categorias de Eu, de espaço e tempo vão se organizando, embora de forma primitiva, permitindo ao indivíduo perceber pouco a pouco e de forma cada vez mais elaborada quem ele é, onde e como se relaciona. No indivíduo portador de retardo mental, essas categorias desenvolvem-se de forma mais lentificada, e seu processo de desenvolvimento termina mais cedo sob o ponto de vista cognitivo 10 • Tal fato pôde ser observado com crianças portadoras da síndrome de Down, nas quais observa-se uma parada no desenvolvimento intelectual
Quadro V
ao redor dos 8 anos de idade, com grau de deficiência médio, correspondendo aos níveis moderado e severo 10 • A compreensão desse fato permite ver o deficiente mental com uma problemática adaptativa decorrente dessa dificuldade cognitiva que lhe impede de perceber e reagir aos estímulos externos e internos de forma adequada e adaptada ao ambiente que o rodeia. Entretanto, embora seu sistema valorativo esteja prejudicado, permanecendo, na maioria das vezes, num momento de moral heterônoma em que os modelos são buscados nas figuras parentais, grande parte de suas alterações de conduta pode ser controlada com processos educacionais e de habilitação, que procuram adaptá-lo e integrá-lo em seu meio. Assim, comparados à população geral, indivíduos portadores de RM demonstram maior suscetibilidade para condições psiquiátricas e apresentam maior incidência e prevalência de transtornos de conduta28 • Trabalho realizado durante o período de um ano na Holanda29 apresenta como os cinco quadros mais prevalentes: TDAH (21,1 %), TID não especificados (14%), dislexia (13,9%), cefaleia crônica (12,7%) e autismo (10,9%). Parece, entretanto, curioso tal cenário, uma vez que o diagnóstico de TDAH é discutível em portadores de retardo mental, tanto considerando-se o DSM IV-TR21 como o trabalho de Antshel et al. 30 que, embora considerando que a presença dessa sintomatologia em portadores de retardo mental seja mau preditor, mantêm essa questão ainda em aberto, passível de futuras pesquisas e estudos. Estudo de comorbidade em TDAH realizado por Tai e Chiu3 1 em 18.321 jovens com menos de 18 anos de idade observou a associação com transtornos ansiosos, retardo mental leve e autismo, concluindo da importância de sua pesquisa na associação com esses quadros clí. mcos. Serrano32 , ao citar crianças diagnosticadas com re tardo mental e sintomas de TDAH, principalmente hiperatividade, com alterações de linguagem e delirium, sugere a pesquisa de amônia e níveis plasmáticos do aminoácido, uma vez que alterações no ciclo da ureia podem ser responsabilizadas por quadros desse tipo. Entretanto, considera-se que condutas hiperativas são comumente observadas, sendo caracterizadas não
Avaliação de comportamento adaptativo
Instrumento
Habilidades sociais
Habilidades conceituais
Habilidades práticas
Escala de comportamento adaptativo
Autossuficiência
Responsabilidade pessoal-social
Autossuficiência
Vineland
Comunicação
Socialização
Hábitos de vida diária
Escala de comportamento independente
Acidente vascular cerebral (AVC)
Interação social e habilidades . . . comun1cac1ona1s
Hábitos de vida pessoal
Teste abrangente de comportamento adaptativo
Habilidades acadêmicas
Habilidades sociais
Hábitos de autoajuda e vida doméstica
Fonte: AAMR. 2006 6 •
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apenas pelo aumento de atividade motora, mas também pela extrema dificuldade em fixar a atenção em situações adequadas. Sua prevalência em portadores de retardo mental também varia consideravelmente com os critérios diagnósticos utilizados, estendendo-se entre 4 e 11%33. São frequentes as alterações de conduta que, embo ra não constituam diagnóstico de transtorno de conduta conforme refere o DSM IV-TR21 , manifestam-se com base no próprio conceito de retardo mental, que já engloba as dificuldades de conduta adaptativa, que, portanto, não podem ser consideradas dentro da concepção de problemas psicopatológicos significativos, pois fazem parte do próprio ser-no-mundo do deficiente. Na maioria das vezes, as alterações significativas de conduta são decorrentes mais das dificuldades ambientais do que de problemas inerentes ao próprio retardo mental. Kohen 34, estudando indivíduos portadores de deficiência mental em Londres, observou 17% referindo quadros de emergências psiquiátricas, caracterizadas principalmente como distúrbios de conduta, embora quadros convulsivos também sejam observados, demonstrando uma relação interessante e forte entre os quadros de base neurológica e psiquiátrica. Também Goldberg-Stern et al. 35, estudando epilepsias benignas com espículas centro-temporais, observaram déficits na capacidade de processamento de informações verbais não dependente da lateralidade do foco, do número de convulsões ou do tipo de tratamento antiepiléptico a que o indivíduo tenha sido submetido. Também são encontrados, com frequência, quadros diagnosticados como síndrome de Lennox Gastaut. Herranz et al.36, estudando 331 pacientes em 50 hospitais espanhóis, encontraram uma distribuição de 89% apresentando crises tônicas axiais, ausências atípicas em 84% e crises atônicas em 69%, sendo todos eles tratados com politerapia (ácido valproico, lamotrigina e topiramato ), sempre com alto índice de associação com o retardo mental. Em trabalho referente à observação de população deficiente mental atendida em instituição especializada37 , observou-se um percentual irrisório de transtornos alimentares; quando ocorriam, eram decorrentes do próprio déficit cognitivo que dava ao paciente condições muito primitivas de relacionamento com o ambiente circunjacente, efetuado de forma predominantemente sensorial, buscando quase que exclusivamente a sua satisfação. Assim, observou-se a presença de pica e mericismo, predominantemente em portadores de retardo mental profundo e grave. A abordagem dessa problemática é de predominância comportamental, com pequenas possibilidades de atuação medicamentosa, pois os transtornos observados com mais frequência não são acessíveis a tais tipos de tratamento. Em relação ao controle esfincteriano, observaram-se enurese e encoprese, também decorrentes do próprio atraso cognitivo que impedia a possibilidade de treinamento no momento considerado normal. Os quadros de enure-
se secundária, decorrentes de quadros de tipo conflitual, não foram por nós observados. Sua abordagem, embora possa ser realizada com base na terapêutica medicamentosa (a imipramina é a droga em geral utilizada no controle da enurese), deve ser pensada muito mais em fun ção de técnicas de treinamento, uma vez que a maior frequência de enurese e encoprese na população deficiente mental é de quadros primários e, portanto, ligados à própria deficiência, sem nenhuma das características encontradas nas enureses e nas encopreses secundárias. Tiques e hábitos também foram observados em um pequeno número de pacientes. A maior frequência de transtornos de conduta foi na área da sociabilidade, refletindo exatamente as dificuldades adaptativas da população estudada. Foram verificados, então, dois fenômenos: o primeiro representado pelas dificuldades de relacionamento social, definindo condutas como timidez e isolamento, por consequência da baixa autoestima e da percepção das reais dificuldades no relacionamento; o segundo grupo caracterizado por condutas de tipo irritável e agressivo nas suas mais diversas formas, decorrente de dificuldades na instrumentalização e no controle dos impulsos e a consequente inadequação ao ambiente social. São, assim, um problema comum, com prevalência de 5,5%, 8,5%, 13,9% e 17,3% para retardos mentais em graus leve, moderado, grave e profundo, respectivamente (Jacobson apud Feinstein, 199633). Cabe aqui a caracterização das condutas do tipo automutilação. Elas referem-se diretamente a atos dirigidos ao próprio corpo que resultam em dano. Dificilmente, levam a quadros de morte, embora sua ocorrência seja comum em quadros graves de retardo mental. São mais fre quentes, portanto, quanto maior o grau de retardo, bem como quando associadas a transtornos comunicacionais, problemas neurológicos, anomalias genéticas e outros transtornos de comportamento adaptativo38 . As condutas do tipo auto mutilação têm etiologia diversa e são encontradas como características de síndro mes genéticas, tais como a síndrome de Lesch-Nyhan ou de Cornélia de Lange39 . Estudos neurobiológicos sugerem que a depleção de dopamina em gânglios da base ou alterações no balanço de dopamina cerebral causadas por desenvolvimento perinatal alterado podem ser os responsáveis pelos mecanismos de autoagressividade nessas populações38. Sugere-se, também, que poderiam ser encontrados padrões anormais de opioides com aumento de níveis de betaendorfina. Concomitantemente, existem ainda interpretações psicodinâmicas relacionando o comportamento a tendências suicidas ou masoquistas desencadeadas por rejeição parental38 . O tratamento é medicamentoso, sendo descrito o uso de neurolépticos (mais frequentemente), assim como lítio, antidepressivos, ansiolíticos, naltrexone e carbamazepina. A respeito dessa ideia de fenótipo comportamental, pode ser citado o trabalho de Verhoeven et al.4°, que es-
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tabelecem um perfil psiquiátrico de portadores da síndrome de Rubinstein-Taybi, apresentando diferentes graus de retardo mental acompanhados de impulsividade, distraibilidade, instabilidade de humor e estereotipias com alguns casos apresentando sinais que permitiam o diagnóstico de depressão atípica. Ainda de extrema importância são os comportamentos antissociais e a agressividade. Ambos podem ser pensados com base em fatores biológicos e decorrentes do aprendizado social associado aos fatores cognitivos. Dessa maneira, a abordagem terapêutica vai ser diferente de acordo com a problemática observada, podendo-se utilizar desde drogas como neurolépticos até programas educacionais baseados, principalmente, em modelos comportamentais. Trabalho de Shang et al. 71 , explorando características criminológicas de portadores de retardo mental, estudaram uma população de 83 indivíduos e observaram maior prevalência de portadores de retardo mental leve, considerando-se a premeditação e o objetivo, que de portadores de retardo mental moderado ou grave, o que pode ser decorrente do próprio desenvolvimento cognitivo capaz de avaliar as implicações do ato. A própria distribuição geral mostrou predomínio de retardo mental leve (62,7%) comparado com portadores de retardo mental moderado ou grave (22,9%). O tipo de comportamento observado foi de ofensa sexual em 37,3%, homicídio involuntário em 34,7% e ofensas à propriedade em 28% dos casos. Concomitantemente, 96,1% deles tinham motivos definidos para o ato criminal e a história criminal foi estabelecida em 34,7% dos casos. As alterações referentes à sexualidade não se mostram importantes nessa população, a despeito das ideias correntes de que o indivíduo com retardo mental constitui ameaça potencial. As condutas observadas foram a masturbação em pacientes portadores de retardo mental profundo, decorrente da própria limitação cognitiva, representando uma exploração corporal puramente sensorial. Outras condutas de caráter delitivo não foram observadas, ficando as queixas familiares referentes à inadequação do desempenho das condutas usuais do desenvolvimento sexual. Entretanto, Fegan et al. 41 consideram mitologia a ideia de o homem portador de deficiência mental apresentar aumento de libido e pobre controle de impulsos, verificando-se, na grande maioria dos casos nos quais o ofensor é uma pessoa com retardo mental, que o fato resulta da educação insuficiente ou inapropriada. Finalmente, considerando-se as patologias psiquiátricas, é preciso lembrar-se de que não é frequente a sua coexistência com quadros de retardo mental. Estudo realizado por Myers e Pueschel42 com pacientes portadores de síndrome de Down, a mais importante patologia genética causadora de retardo mental, apresenta dados que referem menores proporções de problemas psiquiátricos que os demais portadores de retardo men-
tal, sendo comparáveis aos estados obtidos em populações infantis. Gath e Gumley43 observaram maior índice de autismo infantil em pacientes portadores de retardo mental, fato esse compatível com as atuais concepções da síndrome autística, vista como déficit cognitivo que torna o indivíduo incapaz de estabelecer relacionamentos sociais de forma adequada. O autismo, aliás, proporciona uma situação característica, pois, se primitivamente foi descrito como transtorno psiquiátrico característico, da linha da esquizofrenia, ele é visto atualmente dentro do grupo dos transtornos abrangentes de desenvolvimento e, como tal, bastante próximo às deficiências mentais. Assim, se no início foi descrito como independente delas, hoje é encontrado (a partir desse seu novo conceito) associado a um grande número de retardas mentais, comumente na faixa de retardo mental moderada (35 < QI < 49), segundo o DSMIV (APA,1994). Constitui -se, então, um chamado continuum autístico vinculado ao déficit intelectual e que se estende daqueles mais comprometidos, com sintomatologia caracterizada primordialmente por ausência de linguagem, estereotipias gestuais e atividade ritualística, até aqueles menos comprometidos, no qual o isolamento é menos intenso, a linguagem, bizarra, e as estereotipias gestuais, pouco frequentes, constituindo-se naquilo descrito com o nome de "autismo de alto funcionamento': Entretanto, traços extremos de autismo parecem ser geneticamente independentes do retardo mental, conforme referem Hoekstra et al. 4\ parecendo que genes específicos e diversos fazem considerar a existência de padrões biológicos definidos em algumas alterações de desenvolvimento como o retardo mental, o autismo e a própria esquizofrenia45 • Finalmente, deve-se pensar também que quadros autismo-like, caracterizados por retardo mental moderado ou grave, resultante de piora gradual, perda linguística, ansiedade e, esporadicamente, quadro de tipo alucinató rio, podem conduzir ao diagnóstico de transtornos de sintegrativos, conforme referem Bussing et al. 46 . Quadros de depressão também são descritos como raros, alguns casos esporádicos estando descritos na literatura especializada, sendo o tratamento similar a depressões em indivíduos de inteligência normal. Nos portadores da síndrome de Down, é descrita ainda a maior frequência de quadros demenciais tipo síndrome de Alzheimer, aventando-se a hipótese de gene localizado no cromossomo 21 como responsável pelas alterações cerebrais. Os problemas emocionais do deficiente mental são em geral mal-reconhecidos. Em primeiro lugar, porque habitualmente são considerados imunes a eles pelo seus déficits intelectivos e, em segundo, porque parte-se de outra premissa errada, a de que o indivíduo pode ser somente deficiente mental ou apresentar outras patologias
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mentais, esquecendo que as duas categorias podem ser superponíveis. Finalmente, em terceiro lugar, há o engano frequente da interpretação dos sintomas psiquiátricos como sendo decorrentes exclusivamente da própria deficiência mental47. Alguns autores referem que quadros ansiosos são mais comuns em indivíduos com retardo mental que sem retardo 47, baseados no fato de que o déficit intelectual aumenta as dificuldades educacionais e sociais, com experiências emocionais aversivas, nas quais se observa a ansiedade. Richardson ( apud Feinstein, 199633) refere que 26% dos retardas mentais leves apresentam quadros ansiosos associados, o que caracteriza, de maneira marcante, a importância desses quadros. Craft (apud McNally, 1991 47 ) refere 33% de problemas emocionais em 319 pacientes estudados e 10,8% de quadros ansiosos em outra amostra de 119 pacientes. São assim considerados relativamente comuns nas fobias simples - 57,5%, segundo Novosel47 - ,e seu tratamento é similar ao daqueles indivíduos sem deficiência mental com associação de estímulos de reforço. As fobias sociais também são observadas, podendo ser compreendidas ainda em função de sua rejeição social. Craft (apud McNally, 1991 47) refere também transtornos de pânico na população deficiente mental num percentual de 10,8%, não havendo dados referentes ao tratamento de tal quadro nessa população. Transtorno obsessivo-compulsivo também é relatado, com aparecimento de condutas de tipo ritualístico. Tais quadros, entretanto, são considerados raros, e seu tratamento segue as mesmas normas do tratamento em indivíduos não deficientes. Podem ser observados ainda estresse pós-traumático e quadros de ansiedade generalizada, cujos tratamentos também seguem as mesmas diretrizes utilizadass em outras populações. Na população portadora de retardo mental, os distúrbios de estresse pós-traumático parecem ser bem mais frequentes, uma vez que o déficit intelectual não oferece proteção contra os eventos estressores33 • Também doenças afetivas, incluindo o transtorno bipolar, são descritas, embora com taxas de prevalência extremamente baixas. Ao contrário, quadros esquizofrênicos podem ocorrer em portadores de retardo mental, como refere Menolascino ( apud Feinstein, 199633), encontrando que 20,4% dos transtornos psiquiátricos nessa população preenchem os critérios para esquizofrenia. A avaliação de uma amostra de crianças australianas com idades entre 4 e 19 anos, com a utilização do "Developmental Behavior Checklist" (DBC), evidenciou as características psicopatológicas48 apresentadas no Quadro VI. Estudo recente, realizado por Martorelli et al. 49 , refere que as experiências traumáticas em portadores de retardo mental têm importante papel no estudo de sua psicopatologia, citando que doenças crônicas em portadores
Porcentual de alterações de conduta em amostra de crianças com idades entre 4 e 19 anos. por meio do DBC
Quadro VI
Subescala Escores positivos na subescala
Porcentagem (Ofo)
1. Disruptivos
22.7
2. lntroversão (self-absorbed)
13,4
3. T. linguagem
6,7
4. Ansiedade
23,2
5. T. sociabilidade
10,8
6. Antissocial
3,6
Escores positivos em
Porcentagem (Ofo)
uma subescala
80,4
duas subescalas
14,4
três subescalas
3,1
Escores negativos
2,1
Obs.: n = 194 de um n total de 450.
de retardo mental aumentam a frequência de problemas emocionais e comportamentais. Cabe frisar que falar dos transtornos psiquiátricos no retardo mental é abordar os mesmos transtornos observados em populações com inteligência normal, embora sua dificuldade diagnóstica decorra da sintomatologia deficitária. Assim sendo, parece longo e repetitivo descrever todas as possibilidades e suas abordagens terapêuticas. Entretanto, vale salientar que o maior problema no retardo mental é sua relação com outros quadros psiquiátricos e o desconhecimento do psiquiatra em relação a ele, o que faz com que não consiga reconhecê -lo de forma adequada, limitando a sintomatologia decorrente do próprio déficit cognitivo para que possa identificar outros sinais que a ele se superponham.
Tratamento Conforme as ideias de evolução, não existem dois indivíduos iguais em uma mesma população, de modo que não existem, nessa mesma população, dois indivíduos com as mesmas probabilidades de sobrevivência, o que permite concluir que os comportamentos cooperativos entre indivíduos aumentam as possibilidades de sobrevivência em grupo. Os comportamentos em relação aos estranhos ou diferentes, quando observadas as outras espécies animais ou se pensa evolutivamente, raramente são comportamentos altruístas, uma vez que grupos distintos competem. Devem ser considerados, então, comportamentos éticos, característicos do homem civilizado, provavelmente não naturais nem produzidos automaticamente pela evolução. Pode-se pensar que esse altruísmo inato é di-
77 RETARDO MENTAL
recionado, culturalmente, para os estranhos, por isso ele é frágil e é uma escolha ética e voluntária. Segundo essa concepção, os sistemas de suporte para a população com retardo mental são considerados uma escolha ética, permeada por valores morais e defensável dentro de um processo civilizatório. Não se trata de questão óbvia e indiscutível. Dentro desse raciocínio, ao se considerar que a população portadora de retardo mental é numericamente significativa, são necessários programas de atenção que se estendam da sua prevenção aos métodos de habilitação, que serão mais complexos quanto mais comprometida for a população. Esse processo de habilitação define as necessidades básicas e os serviços essenciais para a implantação do atendimento que vai determinar, de certa forma, o prognóstico da população envolvida, uma vez que, quanto maior o investimento do processo de habilitação, maiores as possibilidades de adaptação e de integração social dessa população, fazendo com que as estruturas de tipo hospitalar e asilar, tão em voga, sejam desnecessárias. Envolve ainda questões referentes à qualidade de vida e à dignidade dessa população, questões essas também dignas de consideração sob o ponto de vista ético. Os elementos-chave para esse processo podem ser delimitados 22 como um triângulo equilátero, estando em um dos lados as capacidades adaptativas e intelectuais, decorrentes de todos os processos biológicos envolvidos. O outro lado envolve o ambiente familiar, escolar, social e comunitário. Da confluência dos dois lados estabelece-se a base da reabilitação com a construção dos suportes adequados (Figura 2). Isso caracteriza o impacto da carga biológica sobre a autonomia do deficiente, o peso do prejuízo intelectual inicial e a necessidade dos meios de suporte na constituição da autonomia50 • A noção de apoio vai então consistir "nos recursos e estratégias que visam a promover o desenvolvimento, a educação, os interesses e o bem -estar de uma pessoa e que melhoram o funcionamento individual"24 • Suas funções são ensino, auxílio de amigos, planejamento financeiro,
auxílio empregado, apoio comportamental, assistência doméstica em casa, acesso e uso da comunidade e assistência à saúde. Sua intensidade varia entre intermitentes (quando realizados de forma episódica e com base na necessidade ocasional), limitados (caracterizados pela consistência ao longo do tempo, porém limitados), extensivos (envolvimento regular em pelo menos alguns ambientes e sem tempo limitado) e abrangentes (caracterizados pela constância, alta intensidade, provisão nos locais e com finalidade de manutenção da própria vida). Para avaliação e instalação desses apoios estabelecem-se os seguintes passos6 : a. identificação das áreas de apoio importantes; b. identificação das atividades de apoio importan, tes para a area em questao; c. avaliação do nível e da intensidade do apoio requerido; d. estabelecimento de um perfil de necessidades de . apmo. Estes apoios deverão, posteriormente, ser avaliados após a verificação de seus resultados, por meio de medidas objetivas e funcionais que permitam a observação dos ganhos obtidos em independência, relacionamentos pessoais e sociais, participação no próprio ambiente, contribuições do próprio indivíduo e bem-estar. Entretanto, apesar da tendência de inclusão em serviços usuais ser bastante defendida na modernidade51- 53 , serviços específicos, muitas vezes, tornam-se ainda necessários para que tais modelos de suporte tenham efetividade. Em função disso, podem ser esquematizados da seguinte maneira, de acordo com diversos autores 2,54,73•
Atenção primária Medidas pré-natais
• Planejamento familiar. • Aconselhamento genético. • Pré-natal. Diagnóstico pré-natal, feito com base na amniocentese (12a semana de gestação) ou pelo estudo de vilosidade coriônica (8a semana de gestação). A partir do diagnóstico pré-natal, pode-se propor a alternativa do abortamento terapêutico, ainda proibido no Brasil. Medidas perinatais
Ambiente Casa -trabalho/escola Comunidade
Capacidades Inteligência Padrões adaptativos
Funcionamento
it
Suportes
Figura 2
Elementos a serem considerados no processo de reabilitação para portadores de retardo mental.
• Atendimento ao parto e ao recém-nato. • Screening neonatal, representado hoje pelo estudo de erros inatos de metabolismo, como a fenilcetonúria, com ocorrência de 1:15.000 nascimentos, ou o hipotireoidismo congênito, com frequência de 1:5.000 nascimentos. O diagnóstico precoce dessas doenças permite a instalação de tratamento consistente de dieta sem fenilalanina, no primeiro caso, e a administração de hormônio tireoidiano, no segundo. Com essa abordagem precoce, evitase o advento do retardo mental.
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Diagnóstico precoce, visando ao chamado diagnóstico multiaxial, que tem em vista o grau da deficiência, a etiologia provável e o quadro clínico que a caracteriza, sempre dentro de um contexto sociofamiliar. Somente um diagnóstico dessa magnitude possibilita a estruturação de um projeto de trabalho. Embora não existam terapêuticas medicamentosas específicas para o retardo mental, o diagnóstico precoce permite a elaboração de planos de trabalho visando à compensação dos déficits percebidos na tentativa de facilitar o desenvolvimento e, em consequência, a integração da pessoa deficiente. Medidas pós-natais
• Serviços de puericultura. • Diagnóstico precoce decorrente do conhecimento do médico sobre o quadro em questão (não usual em nosso meio) e dos recursos de propedêutica armada a sua disposição. • Serviços de estimulação sensório-motora, tendo em vista proporcionar à criança deficiente melhores condições de desenvolvimento dentro de sua limitação. Eles atuam sobre o desenvolvimento das capacidades sensório-motoras da criança, de forma que sejam um passo básico ao desenvolvimento de outras capacidades, facilitando a exploração do mundo circundante e sua reação a ele. Assim eles procuram, entre outras coisas, o desenvolvimento do controle adequado dos movimentos e das posturas necessárias para a satisfação das necessidades básicas do indivíduo, bem como o desenvolvimento de possibilidades cognitivas com base em seu conhecimento e exploração do ambiente, além de sua capacidade co municacional e emocional. A intenção é permitir que sejam estruturados hábitos básicos no cuidado de si mesmo e adquiridos novos conhecimentos e experiências. Assim, aborda-se a criança a partir de estímulos visuais que permitam a identificação, o estabelecimento de constância de formas e de figura-fundo. Estímulos linguísticos serão responsáveis pelo desenvolvimento da compreensão, da formulação da integração de ideias, bem como de estocagem de informações e de aquisição de vocabulário. A estimulação psicomotora permite o melhor controle tônico -postural, de equilíbrio, de lateralidade e da melhor percepção do próprio corpo no espaço. Finalmente, considerando-se a importância da sociabilidade, sua estimulação facilita a atividade lúdica com o desenvolvimento da atenção seletiva e uma melhor participação social.
• Serviços de estimulação centrada principalmente no desenvolvimento sensório-motor. Estes serviços de atenção secundária decorrem daqueles estabelecidos na atenção primária.
Atenção terciária • Diagnóstico. • Tratamentos biomédico e cirúrgico. • Serviços pré-escolares. • Educação especial: estes serviços, dentro de uma proposta de inclusão como a apresentada atualmente na política educacional brasileira, passam a ser dispensáveis. Entretanto, deve-se lembrar que os modelos de educação são bastante característicos dos países que os utilizam e mesmo países com bom nível e desenvolvimento têm dificuldades em estabelecer modelos educacionais com inclusão total. Dessa maneira, ao menos com a finalidade de reflexão sobre o tema, apresenta-se uma proposta de encaminhamento que pode ser adaptada conforme o meio social adequado. Essa proposta, de maneira adaptada, é sugerida por alguns países para as pessoas portadoras de RM (Figura 3). • Programas profissionalizantes: da mesma forma, a questão profissional, ainda que garantida pela legislação brasileira por meio de cotas específicas, deve ser considerada, sob o ponto de vista teórico, com base em um modelo social capitalista que privilegia a produção. Assim, não é o mesmo caso de colocação profissional para pessoas portadoras de deficiência física e portadoras de retardo mental. • Programas residenciais: extremamente importantes para a autonomia e o próprio envelhecimento familiar. Apesar de muito comentados, têm pouca penetração no Brasil, onde não são prioridades nem no contexto de programas de saúde mental definidos por meio de políticas governamentais, nem no contexto de programas acadêmicos, que não privilegiam a reabilitação e o acompanhamento da criança portadora de retardo que cresce e, consequentemente, demanda novos modelos de atendimento. Cabe lembrar que o foco desses programas pode ser muito diverso, estendendo-se desde a busca de maior autonomia até a simples solução da questão da moradia
Integração total Ensino regular {
Integração parcial
Avaliação => Encaminhamento escolar
Atenção secundária • Diagnóstico. • Tratamentos biomédico e cirúrgico. • Serviços de apoio às famílias.
Educação especial => Atendimento especial Figura 3
Encaminhamento escolar para pessoas portadoras de RM.
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para pacientes adultos. Entretanto, dentro de uma contextualização teórica, esses projetos se embasam na questão da autonomia, da independência e dos direitos civis da população deficiente mental.
Terapêutica medicamentosa Conforme referem Elliot e Haider55 crianças que apresentam retardo mental são, frequentemente, avaliadas e medicadas por pediatras que nem sempre estão devidamente treinados para tal. Mesmo psiquiatras treinados no atendimento de adultos portadores de transtornos mentais têm dificuldades marcantes na abordagem de pacientes que apresentam retardo mental, valorizando como psicopatológicos sintomas que, muitas vezes, são decorrentes meramente do atraso no desenvolvimento. Isso porque, apesar dos sintomas cardinais da DM não serem amenizados pela intervenção farmacológica, o uso de medicações psicotrópicas em seu tratamento tem se tornado lugar-comum. Tal fato contrasta com as preocupações, há muito tempo estabelecidas, que envolvem a propriedade e os fundamentos empíricos de tais medidas. No centro dessa controvérsia, está a relativa pobreza de suporte científico para intervenções medicamentosas específicas, especialmente entre crianças e adolescentes. Os clínicos que abordam pacientes com RM são então abandonados à mercê de um pequeno número de bem-estruturadas investigações ou, na ausência de dados consistentes, trabalham com base em estudos com agentes farmacológicos em pessoas não portadoras de DM. Um dos objetivos para as eventuais pesquisas futuras será demonstrar as circunstanCias em que os tratamentos por analogià' podem ser realmente efetivos. No presente, a experiência clínica convencional sustenta que indivíduos com RM e uma síndrome psiquiátrica específica respondem à medicação, geralmente, num padrão similar a pacientes sem atraso de desenvolvimento concomitante28 • Um grande problema a ser solucionado, conforme citado anteriormente, seria o TDAH que tem de ser avaliado de maneira cuidadosa e criteriosa, uma vez que essa associação ainda é motivo de estudo. Entretanto, conforme o trabalho de Bygdnes e Krystiansen56, cerca de 44% dessa população encontra-se medicada por drogas psicotrópicas, o que leva a pensar na questão das comorbidades, mas, mais ainda, na questão das demandas sociais, uma vez que o mesmo trabalho refere aumento dessa prescrição quando se observam mudanças de instituição por parte dos pacientes. Assim, deve-se considerar que a pessoa portadora de retardo mental precisa ser avaliada cuidadosamente e o próprio retardo mental tem de ser levado em consideração quando da iniciativa de medicá-lo, posto que, da mesma maneira que diversas outras patologias, são observados predominantemente sintomasalvo que devem ser cuidadosamente selecionados e localizados considerando-se seu custo-benefício. •
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Alterações de conduta são, em geral, associadas à deficiência mental pelo próprio conceito de déficit adaptativo que ela implica. Assim sendo, a utilização da psicofarmacologia é frequente e de extrema importância. Sua utilização segue, no entanto, as mesmas normas do uso das drogas em psiquiatria. A agressividade é uma razão comum primária para que pessoas com RM sejam submetidas a tratamento, sendo também a principal razão para que esses indivíduos recebam a prescrição de drogas para o controle de comportamento. Embora a raiva seja um ativador significativo da agressividade, pouco se sabe a respeito dos aspectos emocionais da vida de pessoas com RM que possam ser considerados fatores desencadeantes. Existem muitas motivações para tal, mas inexistem medidas de avaliação validadas e confiáveis, o que é a regra nesse meio. Em consequência, Taylor57 revisa a literatura sobre esse tema e entende que não há evidência que sustente o uso de medicaçoes psiCotropicas com esse mtmto. Grande interesse foi observado pelos opioides endógenos na patogênese da autoagressividade, o que gerou investigação clínica com os antagonistas de receptores opiáceos, como o naltrexone e o naloxone. Os resultados observados são contraditórios, ora se observando achados encorajadores envolvendo a autoagressividade, ora indicando a não efetividade dessas drogas que poderiam, na verdade, exacerbar comportamentos estereotipados e autoagressivos. Casner et al. 58 , revisando 8.000 prontuários de pacientes com RM atendidos ao longo de um período de 5 anos, dos quais 56 fizeram uso de naltrexone, obtiveram relato de resposta positiva em 32 deles (por parte de seus clínicos), o suficiente para garantir a continuidade do tratamento. Entretanto, apenas 13 deles fo ram avaliados, por meio de critérios mais restritos e apenas 2 indivíduos experimentaram efeitos adversos (não conductuais). É importante lembrar-se que a melhora dos comportamentos disruptivos tendeu a ser gradual, levando os autores a depreender que estudos anteriores foram de duração muito curta para, de fato, acessar seu efeito. Algumas drogas específicas foram tentadas no decorrer do tempo, pensando-se especificamente em sua relação direta sobre o metabolismo cerebral com o intuito de melhorar o rendimento cognitivo59 . É muito difícil a avaliação da eficácia desses medicamentos pela própria deficiência mental em si, com todo seu polimorfismo, bem como pela dificuldade de avaliação específica de vários fatores que interferem no processo. Acredita-se que nenhuma dessas drogas apresenta eficácia reconhecida; entretanto, cabe citá-las para se esclarecer sobre sua utilização, pois até hoje são empregadas em alguns serviços. O ácido glutâmico foi utilizado na terapêutica da deficiência mental desde meados de 1945, em doses de 1 a 2 g diárias. Nossa prática clínica não mostrou, contudo, resultados no que tange à melhora no desempenho da população atendida. Da mesma forma, utilizou-se o ácido -
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clorofenoxiacético, a piridoxina e o piracetam, sempre sem a observação de resultados satisfatórios. Mais recentemente, na pós-utilização dos neurolépticos (as drogas mais utilizadas no controle das alterações de comportamento), alternativas foram tentadas, objetivando -se evitar, com o seu uso, os problemas descritos pela bibliografia especializada60. São citados, então, para o controle das alterações de comportamento como a auto e a heteroagressividade, a irritabilidade, a hiperatividade, o isolamento e os déficits de atenção, drogas como betabloquadores, anticonvulsivantes, antagonistas opioides, amantadina e fluoxetina61-66 • A desinstitucionalização progressiva de portadores de RM associada a um aumento da expectativa de sua sobrevida levou os psiquiatras a se depararem com maior frequência com a necessidade de avaliação e manejo dessa população, não sem algum desconforto por parte deles que, muitas vezes, são absolutamente despreparados para tal abordagem67 • Dessa maneira, todas as drogas utilizadas em psiquiatria podem ser utilizadas em quadros associados a deficiência mental, embora resultados discrepantes te nham sido observados por diferentes autores em diferentes circunstâncias (Quadro VII). São apresentados, assim, alguns estudos referentes especificamente aos transtornos de comportamento social, os mais frequentemente associados a deficiência mental, conforme mencionado anteriormente.
A doença bipolar de ciclagem rápida em portadores de DM, segundo a literatura, pode diferir quando ocorre em portadores de RM, no sentido de uma preponderância relativa em homens, maior possibilidade de instalação da ciclagem rápida nos bipolares de início na fase pré-puberal e resposta diferente às drogas profiláticas. A eficácia do tratamento e da profilaxia nessas doenças de ciclagem rápida em portadores de RM necessita, entretanto, de maiores pesquisas69 • Assim, medicar o portador de RM não pode ser considerado algo simples. Aman et aF 0 ressaltam que, dada a alta prevalência de prejuízos cognitivos nesse grupo, é importante abordar qualquer efeito cognitivo, apesar de pouquíssimos dados sobre efeitos cognitivos em estudos clínicos randomizados, recomendando a compilação ro tineira dos efeitos colaterais, peso e estatura, sinais vitais e abordagem dos efeitos colaterais extrapiramidais, sendo apropriada a investigação laboratorial, além da continência e do padrão de sono. Uma consideração clínica refere-se à heterogeneidade dessa população no que diz respeito à sua habilidade comunicacional, pois somente aqueles com funcionamento intelectual limítrofe ou no RM leve podem fornecer uma história clara e confiável. Portadores de RM grave ou profundo, ao contrário, podem ter limitações significativas na sua capacidade de descrever estados de espírito ou experiências subjetivas, fato esse que traz implicações diagnósticas e terapêuticas visualizadas, por exemplo,
Quadro VIl Tratamento dos comportamentos disruptivos Estudos
Autores
Medicação
Achados
Controlados (crianças, adolescentes, adultos)
Milhichamp (1987)
Clorpromazina
Aumento dos sintomas
Tyrer (1984)
Lítio
Aumento dos sintomas
Vanden Borre (1993)
Risperidona
Sintomas aumentados significativamente
Helstad (1979)
lioridazina
Sintomas diminuídos
Aman (1988)
lioridazina
Sintomas diminuídos
Singh (1992)
lioxantenos
Sintomas aumentados
Cratt (1987)
Lítio
Sintomas aumentados
Cratt (1980)
Flufenazina
Sintomas significativamente aumentados
Mikkelson (1986)
Haloperidol
Sintomas significativamente aumentados
Ratey (1986)
Propanolol
Sintomas reduzidos
Willians (1982)
Propanolol
Sintomas reduzidos
Ratey (1989)
Buspirona
Sintomas reduzidos
Tee (1992)
Carbamazepina
Sintomas reduzidos
Spreat (1989)
Lítio
Sintomas reduzidos significativamente
Sovner (1981)
Lítio
Sintomas reduzidos significativamente
Elliot (1986)
Lítio
Sintomas aumentados
Amin (1987)
Lítio
Sintomas reduzidos
Controlados (adultos)
Com adultos
Fonte: adaptada de Bregman, 199668 .
77 RETARDO MENTAL
com a presença de sintomas de dor ou de qualquer outro d esconforto f ísi co que pode ser m anifesto d e m an eira inespecífica, sob a forma de alter ação comportamental, o qu e f az com qu e doen ças físicas subjacent es p ossam ser n ão detect adas ou confun di das com problemas psiqui át ricos ou conductuai s. Assim, é fundament al que se excluam cau sas m édicas subjacent es, quando se obser va piora ou i nstalação de novos si ntomas28 . Fin alment e, embora r el egad a a segun do plano p el a maioria dos psiqui atras, o retardo mental se constitui num univer so vast o e m ultifacet ado qu e, p el as su as implicações popul acionais e p el as i nterfaces qu e est ab elece com diver sas áreas do conhecimento humano, tem importância fundament al no camp o da psi qu iat ria.
Minicaso clínico I. Dados de identificação BNC, masculino, branco, natural de São Paulo, capital, com idade de 8 anos ao momento da avaliação. 11. Motivo de encaminhamento Atraso de desenvolvimento (déficit de linguagem e sociabilidade) e episódio de agitação em seu comportamento [sic] há um ano. 111. Avaliação psiquiátrica Ao exame objetivo, apresentava-se em bom estado geral, fácies atípica, vestes compostas, vigil, dispersividade, inquieto, contato precário (quase não olha para o observador). memória diminuída (não sabe onde mora, nem quando faz an iversário). inteligência parece diminuída (dificuldade em compreender o que lhe é perguntado). Linguagem verbal pouco expressiva (emite frases desconexas e sem sentido). voz bitonal (variando do grave para o agudo sem fator desencadeante) e estereotipias linguísticas (ecolalia e assobios) e motoras (brincadeiras com os dedos das mãos e maneirismos de face) . inversão pronominal (utiliza a terceira pessoa do singular em lugar da primeira). Crítica diminuída. Não se observam distúrbios senso-perceptivos. Humor estável embora apresente risos imotivados. Pouca ressonância afetiva. Pragmatismo conservado, mostrando desenho bem organizado e rebuscado, porém bizarro (desenha cometas e meninos passeando entre eles de forma perseverativa). Durante a avaliação, não foi observado o quadro descrito pelos pais como existente somente há um ano, verificando-se atraso durante todo seu desenvolvimento. Ao exame físico, mostrou desenvolvimento ponderoestatural normal para a idade, sem outras alterações. Exame neurológico normal.
IV. Avaliação psicométrica e de personalidade (realizada pela psicologia) Foi submetido à seguinte avaliação: • Escala de pontuação de autismo (CARS) - 32,5 (autismo leve)
• Escala de comportamento adaptativo de Vineland OD com = 44 - déficit linguístico moderado OD avd = abaixo de 20 - déficit grave na independência e na autonomia OD soe = 33 - déficit grave na sociabilidade OD total = 30 - déficit global grave • Escala de inteligência Wechsler para crianças - 3a edição (WISC - 111) 0.1. verbal = 50 0.1. execução = 67 0.1. total = 54 • Teste WISCONSIN de classificação de cartas (WCSD não conseguiu realizar em razão das dificuldades de atenção e perseveração. Entretanto observa-se que fornece respostas de nível conceitual; percebendo as mudanças de reg ras com atraso. V. Avaliação funcional (realizada pela terapia ocupacional) Nota-se interesse por desenhos, principalmente relacionados a cometas, sempre acompanhado de discurso repetitivo. Aceitou propostas de realizar jogos e outras brincadeiras, no entanto apresenta inflexibilidade em modificar o pad rão de jogo, permanecendo sempre da mesma maneira na atividade proposta. Dificuldade em manter a atenção, o que prejudica sua permanência na atividade com tendência a um discu rso relacionado a cometas. Sem dificuldades em relação à coordenação motora e planejamento motor. Independente nas atividades de vida diária, embora com algumas dificuldades como, ao comer. preferir se alimentar somente com o uso da colher. VI. Exames complementares Foram realizados os seguintes exames: • EEG digital: atividade irritativa de projeção na região parietal mediana com propagação para as regiões parietais direita e esquerda; • pesquisa por PCR para X frágil: negativa; • ressonância magnética do encéfalo: exame normal; • função tireoidiana normal; • avaliação metabólica para erros inatos do metabolismo: negativa. V. Hipótese diagnóstica Conforme apresentado no decorrer do capítulo, um diagnóstico que envolve atraso de desenvolvimento é sempre multiaxial. Obedecendo-se então esses eixos diagnósticos tem-se que: Eixo 1: transtorno invasivo de desenvolvimento, ti po autismo - considerada uma das comorbidades mais importantes relacionadas ao retardo mental, nesse caso o diagnóstico foi feito pela sintomatologia caracterizada por déficit na sociabilidade, linguagem com pouca fu nção comunicativa e atividades de tipo repetitivo. Eixo li: retardo mental leve expresso pela pontuação obtida por meio da escala WISC que, entretanto, foi prejudicada em fu nção do déficit atencional e da perseveração observada nas respostas fornecidas.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
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AS GRANDES SÍNDROMES PSICOPATOLÓGICAS
Eixo 111 : nenhuma hipótese de quadro associado pode ser estabelecida, uma vez que ao exame físico não apresenta nenhuma dismorfia e a pesquisa laboratorial não mostrou alterações. Eixo IV: superproteção e dependência, observadas na dificuldade em algumas atividades de vida diária, decorrentes de excesso de cuidado e proteção parenta!. Eixo V: 51 - 60 (AG F) - fornece seu atual estado de autonomia e independência. VIl. Orientação Em fu nção do diagnóstico estabelecido e do quadro clínico observado estruturou-se o seguinte projeto terapêutico: • seguimento médico visando acompanhamento psicofarmacoterápico, uma vez que foi introduzido neuroléptico visando ao controle de agitação e diminuição das estereotipias (sintomas-alvo); • atividade escolar em pequenos grupos (pelo déficit de sociabilidade) e com supervisão individual e constante; • treino de habilidades sociais; • treino de atividades de vida diária, para que adquira gradualmente maior nível de autonomia; • jogos lúdicos que ampliem seu repertório. Poderão ser utilizados jogos de memória, com bolas, imaginativos, brinquedos representativos, de completar figuras, quebra-cabeças, de sequência de ações simples e competitivos. Este projeto de reabilitação pode ser realizado somente se a estrutura diagnóstica tiver sido bem feita e, principalmente, bem compreendida.
Questões 1. Indivíduo apresentando déficit intelectual refletido em uma avaliação de inteligência que apresenta OI inferior a 20 e nível de desenvolvimento correspondendo a uma idade de desenvolvimento abaixo de 2 anos, algumas vezes associado a déficits motores caracteriza um: a) Retardo mental leve. b) Retardo mental moderado. c) Retardo mental grave. d) Retardo mental profundo. e) Inteligência limítrofe. 2. Para o estabelecimento dos sistemas de suporte, fundamentais na abordagem terapêutica da pessoa portadora de retardo mental, não vai ser considerada importante a: a) Avaliação de inteligência. b) Avaliação das capacidades adaptativas. c) Avaliação do ambiente doméstico e familiar. d) Avaliação do ambiente social em que se insere. e) Avaliação dos fatores neurobiológicos implicados. 3. Os apoios que consistem em "recursos e estratégias que visam a promover o desenvolvimento, a educação, os interesses e o bem-estar de uma pessoa e que melhoram o funcionamento individual" não podem ser considerados : a) Estáticos. b) Intermitentes.
c) Limitados. d) Extensivos. e) Abrangentes.
4. Não faz parte dos erros metabólicos causadores de retardo mental, com herança autossômica recessiva, a a) Fenilcetonúria. b) Síndrome de Hunter. c) Síndrome de Tay-Sachs. d) Síndrome de Marfan. e) Síndrome de Morquio. 5. Retardo mental, deficiência no crescimento pré e pós-natal quanto à altura e peso, alterações de SNC (pode ocorrer microcefalia) e anomalias craniofaciais, como epicanto, ponte nasal baixa, filtro hipoplásico e fácies achatada, caracterizam a: a) Síndrome de Marfan. b) Síndrome de Hurler. c) Síndrome do alcoolismo fetal. d) Síndrome do X frágil. e) Neuroectodermatoses.
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Transtornos lnvasivos do Desenvolvimento
Fábio Pinato Sato Marcos Tom anik Mercadante
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 1085 Autismo infantil - o transtorno invasivo do desenvolvimento
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
prototípico, 1085 Histórico, 1085 Epidemiologia, 1087 Etiologia, 1087 Genética, 1088 Critérios diagnósticos, 1088 Características do endofenótipo, 1089 Diagnóstico, 1090 Tratamento famacológico, 1090
1. Definir o conceito e identificar a categoria diagnóstica de transtornos invasivos do desenvolvimento. 2. Entender a nova nomenclatura proposta: transtornos do espectro do autismo. 3. Perceber as dificuldades que existem acerca de suas hipóteses etiológicas. 4. Comparar os critérios diagnósticos existentes para o autismo infantil.
Programa de intervenções, 1091 Minicaso clínico, 1092
5. Compreender os vários aspectos que envolvem o diagnóstico clínico do autismo infantil.
Questões, 1093 Referências bibliográficas, 1093
6. Pensar nas possibilidades de tratamento e acompanhamento.
Introdução Os transtornos invasivos do desenvolvimento (TID) são uma categoria diagnóstica que tem como característica principal um distúrbio da socialização de curso crônico e início precoce, possuindo um impacto variável em múltiplas áreas do desenvolvimento, desde o estabelecimento da subjetividade e das relações pessoais, passando pela linguagem e comunicação, até o aprendizado e as capacidades adaptativas. Compreendem quatro transtornos propriamente ditos e uma categoria residual: • autismo infantil; • síndrome de Asperger; • síndrome de Rett; • transtorno desintegrativo da infância; • transtornos invasivos do desenvolvimento sem outra especificação (SOE). A nomenclatura desses transtornos foi adotada no Brasil em duas variantes: transtornos globais do desen-
volvimento (TGD) e transtornos invasivos do desenvolvimento (TID). A Edusp, na tradução do CID-10, utilizou o termo "global" como tradução para pervasive 1; porém, a Artmed, que além de ter traduzido o DSM-IV, também fez uma tradução do CID-lO, optou pelo termo "invasivo". Portanto, as duas traduções são utilizadas. Neste capítulo, optou-se por abordar especificamente o autismo infantil (AI), considerado a manifestação paradigmática dos TIDs e o conceito de transtornos do espectro autista (TEA).
Autismo infantil- o transtorno invasivo do desenvolvimento prototípico Histórico O autismo infantil foi descrito oficialmente na primeira metade do século XX por Leo Kanner, médico austríaco, que observou as diferenças clínicas entre as crianças com psicose infantil e crianças com algumas caracte-
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rísticas distintas não descritas até então. A essas características, Kanner destacou comportamentos disfuncionais e permanentes ao longo do tempo, isolamento estrutural, rotinas estabelecidas e uma aparente falta de interesse nos pais ou em qualquer figura humana 2 • Kanner observou onze crianças por cinco anos e des creveu alterações comportamentais que se repetiam e permaneciam inalteradas ao longo do tempo, um apego completo às rotinas do dia a dia, um isolamento extremo e uma preferência dos objetos inanimados às pessoas. Além disso, descreveu alterações complexas da linguagem, como a ecolalia imediata e tardia, e a inversão pronominal. Todas as características descritas, associadas muitas vezes a um retardo mental evidente, criavam uma barreira ao relacionamento humano. Ao conjunto de sinais e sintomas descritos por Kanner foi dado o nome de autismo infantil precoce3 . Nas décadas que se seguiram, diversos auto res passaram a citar as mesmas crianças, com base em suas visões teórico-profissionais, descrevendo os aspectos da doença que lhes pareciam mais marcantes. Apesar de Kanner originalmente considerar a nova síndrome como um "distúrbio autista inato de contato afetivo", não atribuído às questões estabelecidas entre os primeiros contatos pai-filho, ele considerou, tendo sido influenciado pelas teorias vigentes na época (décadas de 1940 e 1950 do século XX), o autismo como um problema emocional; o resultado de influências parentais patogênicas. "Mães geladeiras" não afetuosas, distantes e ob sessivas que forneciam "cuidados mecanizados" eram vis tas como causadoras do autismo em seus filhos. Esse fato o levou à retratação pública aos pais de crianças autistas, alguns anos mais tarde 2 • Em 1964, Rimland publicou o livro Autismo, no qual critica a teoria psicogênica do autismo, citando evidências sugestivas de uma etiologia orgânica. Esse trabalho ajudou a mudar o conceito de autismo de um distúrbio psicogênico para um transtorno neurobiológico a ser compreendido por estudos sistematizados. Entretanto, esses estudos foram prejudicados pela falta de consenso sobre a classificação de transtornos severos da infância. Em 1965, Rutter propôs que a distinção maior entre as psicoses infantis é aquela que se faz entre a síndrome de Kanner, que começa entre os dois primeiros anos de vida, e os distúrbios que surgem mais tardiamente, ainda na infância, similares à esquizofrenia do adulto 4 . As prin cipais diferenças, além da idade de início dos sintomas, sao: • Baixo percentual de esquizofrenia na família das crianças que apresentam uma psicose precoce, em comparação com a elevada incidência nas famílias de crianças esquizofrênicas, cuja doença apareceu mais tardiamente. • Elevado nível socioeconômico dos pais de crianças cuja doença apareceu precocemente, em comparação com o nível mais modesto dos pais de crianças esquizo frênicas cuja doença se iniciou mais tarde.
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• Diferenças nos padrões das funções cognitivas. • Diferenças na evolução: na criança esquizofrênica, podem se desenvolver alucinações e ideias delirantes, ao passo que isso é muito raro naquelas em que a psicose se manifestou precocemente5 . Se por um lado os estudos acerca do autismo tiveram um grande desenvolvimento a partir dos estudos de Rutter, ao mesmo tempo Kolvin produziu uma série de estudos que puderam aumentar a compreensão acerca da esquizofrenia da infância, principalmente na distinção entre os dois quadros6 . O autismo infantil, como uma condição médica vinculada ao desenvolvimento anormal com início na infância, foi incorporado e reconhecido como tal apenas vinte anos após a descrição clássica de Leo Kanner. Sua primeira menção na Classificação Internacional de Doenças (CID) foi na 8a Revisão, em 1967, como um subgrupo da esquizofrenia. Em meados da década de 1980, o autismo recebeu um reconhecimento oficial, diferente da esquizofrenia, e em seu próprio contexto evolutivo, quando foi incluído na terceira edição do DSM (DSM-III) como um tipo de TID. Nesse período, foi subdividido em dois subgrupos diagnósticos: o primeiro, que recebia a denominação de autismo infantil, e que tinha como critério fundamental o início dos sintomas antes dos 30 meses de idade; e o segundo, que recebia a denominação de transtorno invasivo do desenvolvimento da infância, que prescrevia o início dos sintomas após os 30 meses de idade, mas antes dos 12 anos. Em 1979, Wing e Gould, desenvolveram o conceito de transtornos do espectro do autismo (TEA), estabelecendo a tríade de prejuízos centrais dos TID: a sociabilidade, a comunicação e linguagem, e o padrão alterado de comportamentos. O objetivo desse conceito foi introduzir a ideia de que os sintomas relacionados a qualquer um dos três domínios citados podem ocorrer em variados graus de intensidade e com diferentes manifestações7 • A ideia do conceito de TEA foi iniciada no DSMIII -R, edição revisada, em 1987; mas os subgrupos dos TIDs, como existem hoje, somente foram incorporados a partir da 4a Revisão do DSM, o DSM-IV, em 1994. Nessa revisão, os TIDs passaram a ser compostos por quatro grupos de doenças, e uma categoria de exclusão, dita SOE, sem regras específicas para a sua aplicação. O AI caracteriza-se por anormalidades qualitativamente graves, invasivas e abrangentes do desenvolvimento normal. Essas anormalidades são expressas por comprometimentos que se manifestam em três áreas do desenvolvimento: • interação social recíproca; • linguagem e comunicação; • presença ou repertório de comportamentos e interesses restritos, repetitivos e estereotipados.
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Na maioria dos casos, a manifestação dos sintomas ocorre nos primeiros cinco anos de vida da criança; mais precisamente no final do segundo ano de vida, ocasionando um desvio em relação ao nível de desenvolvimento esperado para sua idade, podendo ainda estar associado com algum grau de retardo mental. A etiologia não está estabelecida, mas o autismo e os TEAs possuem as mais fortes evidências de terem bases genéticas. Associações ainda são feitas com acidentes pré ou perinatais, infecções, além dos casos ligados a outras síndromes neurológicas8'9.
Epidemiologia A primeira pesquisa epidemiológica sobre autismo foi realizada por Victor Lotter em 1966, na Inglaterra, e desde então mais de 30 pesquisas já foram realizadas na tentativa de estimar-se a incidência ou prevalência desse TID. O índice de prevalência obtido, para o autismo infantil, pela maioria dos estudos até o final da década de 1990 foi de 0,4/1.000, e índice de 2/1.000 para os TEAs 10'11 • Fombonne et al. 11 agruparam em dois períodos os 32 estudos epidemiológicos realizados. No período compreendido entre 1966 e 1991 foram agrupados 16 estudos e o índice médio foi de 4,4/10.000 para autismo, enquanto no período de 1992 a 2001 foram agrupados outros 16 estudos e o índice foi de 12,7/10.000. Esses dados indicam um aumento na prevalência estimada de autismo nos últimos quinze anos. Para a estimativa da prevalência atual de autismo, esse autor selecionou as pesquisas publicadas após 1987, com amostras superiores a 10.000 crianças perfazendo um total de dezenove estudos com índice médio de 1/1.000. A estimativa global derivada de uma análise moderada dos dados presentes nos estudos foi de 27,5/10.000 para os TID, de 15/10.000 para os transtornos invasivos do desenvolvimento sem outra especificação (TID-SOE) e de 2,5/10.000 para o transtorno de Asperger. Segundo Fombonne, as comparações entre tais pesquisas são dificultadas por diferenças metodológicas e de critérios diagnósticos adotados 11 • As pesquisas relatadas, porém, apresentam dados consistentes como: • 70% dos casos de autismo são associados com retardo mental; • a razão de quatro casos de autismo do sexo masculino para um do sexo feminino 11 . Os resultados de três pesquisas relevantes 12,- 14 sugerem um aumento desses índices de prevalência, com índice médio de 6/1.000 para o espectro autista. Esse aumento da prevalência é resultado de diversas variáveis dentre as quais se destacam: • as diferenças metodológicas adotadas entre os diversos estudos; • maior conhecimento dos níveis cognitivos asso ciados aos TIDs;
• ampliação do conceito ao longo do tempo - TEA; • maior conhecimento das condições médicas associadas aos TIDs; • o desenvolvimento de centros especializados para o diagnóstico 15'16. Considerando-se o índice de 27,5/10.000 aplicado à população dos Estados Unidos no ano de 2000, estimouse que a população de TID é de 221.000 indivíduos abaixo dos 20 anos e de 53.000 com idade inferior aos 5 anos. Por outro lado, aplicando o índice de 60/10.000, esse número seria de 483.000 indivíduos com TID abaixo dos 20 anos e 114.000 crianças com idade inferior aos 5 anos, o que representa uma população expressiva estatisticamente1 1'17. Os valores populacionais estimados acarretam implicações financeiras aos serviços de saúde e de educação, e aos programas de intervenção precoce, em razão da assistência que se torna imprescindível a essa população, motivando ainda mais o empreendimento em pesquisas relacionadas aos TIDs. Atualmente a prevalência do AI no mundo é de até sessenta casos para 10.000 crianças 11' 17' 18 . As discussões acerca do crescente número de casos todos os anos são corroboradas por vários fatores, dentre alguns, pela normatização de critérios diagnósticos mais claros e precisos nas décadas de 1970 e 1980, pela sua posterior ampliação (noção dos transtornos do espectro autista TEA), pelo maior esclarecimento profissional e pelo melhor preparo nos centros de estudo e pesquisa dos TIDs7. A avaliação das características autísticas em uma criança continua essencialmente clínica, não existindo exames comprobatórios que orientem o diagnóstico.
Etiologia Modelos neuroanatômicos em autismo
Embora se acredite hoje que uma variedade de condições neuropatológicas podem levar a comportamentos autísticos, alguns pesquisadores propuseram de uma forma geral que áreas específicas do cérebro são disfuncionais no autismo. Inicialmente alguns estudos sugeriram um aumento global do volume cerebral 19 e também um aumento da circunferência craniana20. No entanto, diferenças entre volume cerebral e alterações da circunferência craniana foram observadas em crianças e adolescentes com idades entre 5 e 16 anos, não ficando restrita apenas à infância precoce21. Os métodos de pesquisa para a identificação das anormalidades estruturais dos indivíduos com AI incluem os estudos post mortem, os estudos anatômicos de imagem cerebral e os estudos por meio de técnicas de imagem cerebral funcional (em repouso e durante atividades específicas). Com isso, algumas grandes regiões anatômicas foram descritas: o tronco cerebral e o cere-
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belo, o sistema límbico (hipocampo e amígdala), o córtex cerebral e o lobo temporal. Os grandes estudos realizados por esses procedimentos, principalmente os das décadas de 1980 e 1990 revelaram uma série de achados não replicados. Mesmo assim, houve evidências de hipoplasia nos lóbulos vermianos cerebelares VI e VII; alterações no volume da amígdala, do hipocampo e do giro do cíngulo; diminuição da porção caudal do corpo caloso; e, mais recentemente, anormalidades da substância cinzenta nas regiões fron to temporal e nos sulcos temporais superiores22 •
Genética O AI e todos os TEAs são patologias com um im portante caráter genético, com uma herdabilidade estimada em 90%. Gêmeos monozigóticos têm um índice de concordância entre 40 e 60%, enquanto os dizigóticos têm 25%. As recentes pesquisas genéticas se baseiam em diferentes técnicas de procedimento, como a análise de ligação genética, a análise citogenética e os estudos de genes candidatos para contribuir diretamente no esclarecimento da etiologia dos TEAs23 • Na verdade, os estudos atuais sugerem que não há um gene único determinante na etiologia do AI, mas um pool de genes, sendo, no entanto, difícil predizer o número de regiões genéticas, ou Zoei que contribuem para isso. Estima-se que aproximadamente 15 genes possam estar envolvidos. Mais de 100 genes foram avaliados quanto à asso ciação com TEA, com múltiplos resultados positivos; no entanto, a replicação tem sido a exceção e não a regra24 . Do ponto de vista clínico, a análise cromossômica (e outros testes genéticos) em pacientes com TEA pode apontar para uma síndrome conhecida, como a síndrome do cromossomo X frágil ou de Angelman, ou para a presença de uma transposição ou outro rearranjo cromossômico, que podem requerer aconselhamento genético. A alta incidência relativa de mutações do cromossomo X Frágil em pacientes diagnosticados com TEA sugere que o teste de ocorrência dessa síndrome deva ser sempre a r o tina25 • Mais recentemente, as anormalidades cromossômicas têm levado à identificação da família de genes NLGN (neuroligina) como fortes candidatos para o envolvimento no retardo do desenvolvimento e no autismo e também o EN2 como um forte candidato para a associação com o fenótipo do autismo e uma região de ligação genética no cromossomo 17q foi confirmada em amostras independentes utilizando critérios estatísticos rigorosos. Apesar de esses resultados, particularmente em relação ao NLGN4, serem bastante entusiastas e fornecerem uma grande perspectiva para a pesquisa sobre as consequências moleculares de uma mutação relacionada ao autismo, a frequência em que os NLGNs podem contribuir para o autismo idiopático parece ser baixa, como seria de se esperar, com base nos achados iniciais26•27 .
Critérios diagnósticos O DSM -IV foi publicado nos Estados Unidos em 19949 e além de acrescentar novos transtornos aos TIDs, dentre os quais o transtorno de Asperger e o transtorno de Rett, essa revisão ampliou o período obrigatório para o aparecimento dos primeiros sintomas das doenças, dos 30 meses iniciais, para 36 meses. Os TIDs no DSM -IV estão estruturados da seguinte maneira: • (299.00) Transtorno autista (Tabela I); • (299.80) Transtorno de Rett; • (299 .1 O) Transtorno desintegrativo da infância; • (299.80) Transtorno de Asperger; • (299.80) Transtorno invasivo do desenvolvimento, sem outra especificação que inclua autismo atípico. No entanto, na 5a Revisão do DSM (DSM-V), que deve ser publicado em 2012, não haverá mais a nomenclatura de TID, sendo proposta a classe diagnóstica de transtornos do espectro autista (TEA), compreendendo o autismo infantil, o transtorno de Asperger, o transtorno desintegrativo da infância e o transtorno invasivo do desenvolvimento sem outra especificação. O transtorno de Rett será excluído da categoria de TEA. Os três domínios de alteração passarão a ser dois: déficits na socialidade e comunicação; e padrões de interesses restritos e comportamentos repetitivos. Os prejuízos sociais, da comunicação e do comportamento deverão ter início precoce na infância, mantendo-se o limiar dos 3 anos de vida. Na CID- 108 o núme ro de transtornos agrupados nesse bloco difere do DSMIV; além disso, o termo infantil é mantido ao conceito de autismo. A revisão do capítulo 5 sobre os transtornos mentais e de comportamento, da CID- 10, é fruto da colaboração de inúmeras pessoas e organismos de diversos países, representando um avanço em termos de classificação, bem como de diagnóstico psiquiátrico. Os transtornos invasivos do desenvolvimento (F84) estão inseridos no bloco dos transtornos do desenvolvimento psicológico (F8089), sendo caracterizados da seguinte maneira: • (F84.0) Autismo infantil; • (F84.1) Autismo atípico; • (F84.3) Outro transtorno desintegrativo da infância; • (F84.4) Transtorno de hiperatividade associado ao retardo mental e movimentos estereotipados; • (F84.5) Síndrome de Asperger; • (F84.8) Outros transtornos invasivos do desenvolvimento; • (F84.9) Transtorno invasivo do desenvolvimento, não especificado. A categoria residual de TID -SOE é uma classificação de exclusão e não possui regras específicas para a sua aplicação, representando uma entidade com características
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Tabela I Critérios diagnósticos do DSM-IV para o transtorno autista
A. Um total de pelo menos seis (ou mais) itens de (1), (2) e (3), com pelo menos dois de (1), um de (2) e um de (3) (1) Comprometimento qualitativo na interação social,
manifestado por pelo menos dois dos seguintes aspectos:
(2) Comprometimentos qualitativos na comunicação, manifestados por pelo menos um dos seguintes aspectos:
(3) Padrões restritos e repetitivos de comportamento, de interesses e de atividades, manifestados por pelo menos um dos seguintes aspectos:
a. comprometimento acentuado no uso de múltiplos comportamentos não verbais, tais como contato visual direto, expressão facial, posturas corporais e gestos para regular a interação social. b. fracasso em desenvolver relacionamentos apropriados, com seus pares, próprios do nível de desenvolvimento. c. ausência de tentativas espontâneas de compartilhar prazer, interesses ou realizações com outras pessoas (p. ex., não mostra, trazer ou apontar objetos de interesse). d. ausência de reciprocidade social ou emocional. a. atraso ou ausência total de desenvolvimento da linguagem falada (sem tentativas de compensar por meio de gestos ou mímicas). b. em indivíduos com fala adequada, observa-se acentuado comprometimento na capacidade de iniciar ou manter uma conversação. c. uso estereotipado e repetitivo da linguagem ou linguagem idiossincrática. d. ausência de jogos ou brincadeiras de imitação social, variados e espontâneos apropriados ao nível de desenvolvimento. a. preocupação persistente com um ou mais padrões estereotipados e restritos de interesse, anormais em intensidade ou foco. b. adesão aparentemente inflexível às rotinas, ou rituais específicos e não funcionais. c. maneirismos motores estereotipados e repetitivos (p. ex., agitar ou torcer mãos ou dedos, ou movimentos complexos de todo o corpo). d. preocupação persistente com partes de objetos.
B. Atrasos ou funcionamento anormal em pelo menos uma das seguintes áreas, com início antes dos 3 anos de idade: (1) interação social
(2) linguagem para fins de comunicação social (3) jogos imaginativos ou simbólicos C. A perturbação não é mais bem explicada pelo transtorno de Rett ou transtorno desintegrativo da infância
clínicas diversas, promovendo entre os clínicos um certo grau de desacordo 28. Ainda que os estudos epidemiológicos tenham sugerido que a frequência do TID-SOE seja duas vezes mais comun do que a do AI, essa categoria continua a estar subinvestigada e subdiagnosticada. Atualmente, algumas categorizações têm sido propostas na tentativa de identificar grupos dentro dessa categoria residual: 1. Proposta de categorias baseadas em descrição clí. mca: • Transtorno de desenvolvimento múltiplo e complexo; • Transtorno de evitação patológica às demandas; • Transtorno de prejuízo multidimensional; • Transtorno esquizoide infantil; • Transtornos de vinculação. 2. Proposta de categorias baseadas em outras abordagens: • Transtornos de aprendizado não verbal; • Síndrome semântico-pragmática.
Características do endofenótipo Teorias cognitivas
As dificuldades de socialização dos indivíduos com algum tipo de TEA têm sido explicadas por meio de três
teorias: teoria das funções executivas, teoria da mente e teoria da coerência central. Teoria das funções executivas
As funções executivas se referem a um conjunto de habilidades que possibilita o indivíduo escolher ou abandonar estratégias, resolver problemas imediatos e avaliar seu comportamento29 • As crianças com o TEA têm dificuldades no planejamento de tarefas, de inibir respostas irrelevantes, de monitorar suas ações, bem como de encontrar caminhos diferentes para resolução de problemas imediatos, de médio e longo prazo. Esses prejuízos estão relacionados com a função executiva29 . Os prejuízos nessa função sugerem possíveis disfunções pré-frontais do cérebro, ocasionando distúrbios no controle atencional e perseverações no comportamento. Considerando o desenvolvimento ontogenético, as funções executivas desenvolvem-se intensamente entre 6 e 8 anos e continuam seu processo de desenvolvimento ao longo da vida adulta. Entretanto, os TEAs não são uma patologia das funções executivas, mas apresentam uma importante correlação entre o nível de prejuízo na socialidade e comunicação e o nível de disfunção das funções executivas30-33 .
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Diagnóstico
Teoria da mente
A teoria da mente se refere à capacidade de entender estados mentais -opiniões, desejos e intenções dos outros34 . Os indivíduos com o TEA têm dificuldades de pensar, intuir e se antecipar em relação ao que o outro tem em mente de uma forma geral, assim como de perceber o estado mental deles mesmos e dos outros, o que é naturalmente desenvolvido em crianças típicas. Assim, há uma dificuldade de formar representações do estado mental de outras pessoas e usar essas representações para entender, predizer e julgar declarações e comportamentos3s,36. Teoria da coerência central
Nas crianças com TEA há uma alteração no processamento da informação em vários níveis (perceptivo, visuo espacial e semântico verbal), que resulta em um processamento centrado nos detalhes, em detrimento ao contexto global. Assim, indivíduos com o desenvolvimento típico lembram com mais facilidade o essencial da histó ria do que os detalhes específicos. Já as crianças com TEA tendem a relembrar palavras exatas da história mais do que o essencial. A teoria da coerência central no nível semântico refere-se à capacidade de integrar informações de um contexto e avaliar o significado que está sendo empregado 37-39 . No entanto, alguns estudos realizados demonstraram uma baixa associação entre coerência centrai e TEA em razão do fato de se observar que quando treinados e ensinados, os indivíduos com TEA aprendem o processamento da informação total e não apenas das partes do todo 40·41 .
Desintegrativa Síndrome semântico-pragmática
Rett
Autismo
TID
Asperge r
T. aprendizado não verbal
TID-SOE Multiplex (?) - TDMC T. evitação patológica às demandas (?)
Atualmente existem instrumentos específicos que orientam a realização do diagnóstico clínico, tornando se ferramentas interessantes a serem utilizadas, principalmente pela quantificação objetiva de informações em pesquisas epidemiológicas. Esses instrumentos são divididos em tres grupos pnnCipals: • listas de verificação ou questionários, por exemplo a Autism Behavior Checklist (ABC - Inventário de Comportamentos Autísticos), e a Social Communication Questionnaire, (SCQ - Questionário de Comunicação Social); • escalas de observação, como Childhood Autism Rating Scale (CARS - Escala de Avaliação de Autismo Infantil) e a Autism Diagnostic Observation Schedule (ADOS - Roteiro de Observação Diagnóstica de Autismo); • entrevistas com informantes, como a Autism Diagnostic Interview (ADI - Entrevista Diagnóstica de Autismo), como também a sua forma revisada, a Entrevista Diagnóstica de Autismo-Revisada (ADI-R) 42. A
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•
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Cada tipo de instrumento diagnóstico tem sua importância durante a avaliação, sendo tanto as observações diretas quanto as entrevistas essenciais nesse processo. No entanto, as observações exploram apenas os comportamentos manifestados em breves períodos, mas são incapazes de avaliar o curso do desenvolvimento das anormalidades. Já as entrevistas são consideradas fundamentais para esse tipo de avaliação42. Até o momento, existem apenas três instrumentos diagnósticos devidamente validados para o uso no Brasil: a Escala de Avaliação de Traços Autistas (ATA - Escala d'avaluació deis trests autistes) 43 , o Inventário de Comportamentos Autísticos (ICA) 44•45 e o Questionário para Avaliação de Autismo (ASQ) 45. A ADI-R ainda encontrase em processo de validação para o seu uso formal no país47. Não existem testes diagnósticos específicos para a confirmação dos TIDs, principalmente no que diz respeito ao AI. Os instrumentos servem apenas para auxiliar, orientar, prover esclarecimentos e ajudar no raciocínio clínico investigativo. Portanto, a avaliação clínica, no tocante à anamnese e à observação de padrões de comportamentos em diversas situações, é soberana na realização diagnóstica final.
Tratamento famacológico Transtornos do espectro do autismo
Diagrama das categorias de transtornos invasivos do desenvolvimento (TIO) e transtornos invasivos do desenvolvimento sem outra especificação (TI D-SOE)3s. Figura 1
Geralmente, os tratamentos de primeira linha para crianças com autismo incluem tratamentos psicossociais e intervenções educacionais, com o objetivo de maximizar a aquisição da linguagem, melhorar as habilidades sociais e comunicativas e acabar com os comportamen-
78 TRANSTORNOS INVASIVOS DO DESENVOLVIMENTO
tos mal-adaptativos. Não existem atualmente tratamentos medicamentosos padrões disponíveis, que tratem os sintomas nucleares do autismo. Existem apenas dois tratamentos medicamentosos aprovados pelo FDA (Food and Drug Administration, dos EUA) para crianças acima de 5 anos com quadro de agitação/irritabilidade associado ao TEA: a risperidona e o aripiprazol. Em 2002, o Research Units in Pediatric Psychopharmacology (RUPP) Autism Network completou um ensaio clínico multicêntrico que avaliou a eficácia de curto e de longo prazo da risperidona em crianças e adolescentes com autismo acompanhado de graves explosões de raiva com auto ou heteroagressão48 • Os resultados demonstraram que o uso de risperidona nesses casos foi marcadamente benéfico, diminuindo os sintomas e prevenindo a ocorrência de outras crises. Em comparação com o haloperidol, os índices de efeitos colaterais foram mais baixos49 • O mesmo aconteceu com o aripiprazol, tendo sido liberado para o uso em crianças com autismo infantil para o tratamento de auto e heteroagressividade, episódios de agitação psicomotora e alterações do humor50• Apesar do limitado suporte empírico, o tratamento psicofarmacológico de crianças e adultos com autismo e TEA é comum na prática clínica. Quando utilizadas, as intervenções farmacológicas geralmente têm como alvo sintomas específicos que acompanham os sintomas nucleares e que incapacitam gravemente o funcionamento do indivíduo, comumente não permitindo que ocorram intervenções educacionais e comportamentais de "primeira linhà' (p. ex., agressão, comportamento autodestrutivo, rituais compulsivos, baixa tolerância à frustração com acessos explosivos, hiperatividade etc.). Os agentes frequentemente utilizados na prática clínica pertencem a grupos de medicação diversos, não sendo específicos para os sintomas-alvo e afetam um amplo espectro de funções neurológicas e cerebrais, não necessariamente afetadas pelo autismo. Ainda que os medicamentos possam melhorar a qualidade de vida de alguns pacientes, seus benefícios podem ser restritos em seu escopo. Além disso, os dados disponíveis tornam difícil predizer quais pacientes responderão positivamente a qual medicamento. Por fim, benefícios de longo prazo de qualquer dos agentes utilizados em autismo são em sua maioria desconhecidos e uma significativa parte dos pacientes os descontínua quando percebe a perda de eficácia do uso dos medicamentos ou os efeitos colaterais.
Programa de intervenções O programa de intervenção para as crianças com TEA ou propriamente o autismo infantil não é puramente médico, medicamentoso ou psicológico. Trata-se de um programa extenso que exige uma série de intervenções socioeducacionais (Tabela II). Muitos autores concebem
Tabela 11 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 1O.
Programa de intervenção
Individualizado Currículo adaptado Hiperinvestimento em comunicação Ensino sistematizado e estruturado Engajamento (mínimo de 20 horas semanais) Práticas adequadas para o desenvolvimento Contato com crianças "típicas" Atividades físicas Envolvimento familiar Psicoeducação familiar
um planejamento de tratamento estruturado de acordo com as etapas de vida de cada um. Nas crianças pequenas, a prioridade deve ser a terapia da fala/comunicação, da interação social, educação especial e suporte familiar; nos adolescentes, os grupos de habilidades sociais, sexualidade e terapia ocupacional; e nos adultos, as questões de moradia/níveis de independência e tutela51-53 • Alguns autores delimitaram quatro alvos básicos para qualquer tratamento psicoeducacional: • Estimular o desenvolvimento social e co municativo. • Aprimorar o aprendizado e a capacidade de solucionar problemas. • Diminuir comportamentos que interferem no aprendizado e no acesso às oportunidades de experiências do cotidiano. • Ajudar as famílias a lidar com o autismo. Alguns sistemas educacionais são amplamente utilizados para o manejo do desenvolvimento da cognição social das crianças com autismo infantil: o PECS - Picture Exchange Communication System 55 e o TEACCH - Tre-
atment and Education of Autistic and Related Communication Handcapped Children 56 • O PECS55 é um exemplo de como a criança pode exercer um papel ativo utilizando velcro ou adesivos para inclicar o início, alterações ou final das atividades, facilitando tanto a comunicação quanto à compreensão, quando se estabelece a associação entre a atividade/ símbolos53 • O TEACCH 56 é um programa altamente estruturado que combina diferentes materiais visuais para aperfeiçoar a linguagem, o aprendizado e reduzir comportamentos inapropriados. Áreas e recipientes de cores diferentes são utilizados para instruir as crianças sobre situações comuns do seu cotidiano 53 . O trabalho multidisplinar no diagnóstico e intervenção precoce dos TEAs é de fundamental importância para o sucesso no desenvolvimento sistemático da socialidade, linguagem e comunicação durante as diversas fases da vida; lembrando sempre que o engajamento familiar é de fundamental importância.
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CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Quadro I
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Principais instrumentos diagnósticos de TI O - autismo infantil Childhood
Autism Behavior
Autism Oiagnostic
Autism Diagnostic
Escala D'avaluació
Questionário para
Autism Rating
Checklist (ABC)
lnterview (ADI/
Observation
Deis Trets Autistes
Avaliação de Autismo
ADI- R)
Schedule (ADOS)
- ATA
ASQ
Le Couteur et al. 42,
Lord et al. 42
Ba li abri ga et aI.,
Berument et ai., 1999
Scale (CARS)
Autores
Schopler et ai.,
Krug et ai., 1980
Lord et al. 28
1980
Método
1994
Escala de
Escala de
Entrevista
Protocolo
Escala de avaliação
Questionário
avaliação para
comportamentos não
semi estruturada
padronizado de
padronizada
para os pa1s ou
observações do
adaptativos
com pa1s ou
observação de
fundamentada na
' responsave1s
comportamento
- observação direta/
' responsave1s
comportamentos
observação
entrevista com pais ou cuidadores Estrutura
15 itens
57 itens
111 itens
Roteiro com 8
23 subescalas
40 perguntas de SIM
Pontuação
Pontuação
Pontuação - O a 9
tarefas
Pontuação - O a 2
ou NÃO
- normal a
- 1 a 4 - normal a
ou padrão numérico
apresentadas pelo
para itens positivos
gravemente
máxima gravidade
estabelecido
examinador
anormal
Pontuação - O a 2 - normal a
anormalidade clara Idade para
Acima de 18
uso
meses
Tempo médio
20 a 30 minutos
Acima de 18 meses
Acima de 5 anos
5 a 12 anos
Acima 2 anos
Acima 5 anos
Até 1 hora
Mínimo de 1 hora e
20 a 30 minutos
20 a 30 minutos
20 minutos
Proposto como instrumento
Fácil e rápida aplicação Rastreamento de suspeitos de AI Fornece o perfil de conduta Favorece o acompanhamento da evolução do quadro Boas medidas psicométricas avaliadas Traduzida e validada para o uso no Brasil
Autopreenchimento Fácil e rápida
30 minutos
de avaliação Características
> 30 pontos: AI Versão revisada associada ao método TEACCH* A ltos graus de consistência interna e confiabilidade entre entrevistadores
Ava liação de comportamentos autísticos em população com retardo mental Traduzi da e parcialmente validada para o uso no Brasil Identifica AI** (ponto de corte: 49), tanto na clínica como em contextos educacionais
Diagnóstico diferencial dos TIOs, principalmente AI Instrumento válido e confiável para diagnosticar AI em idade pré-escolar Há apenas a versão para a língua portuguesa sem, no entanto, a sua validação
complementar à ADI- R Observação interativaobservador Avalia a qualidade do comportamento social Boas medidas psicométricas avaliadas
aplicação Rastreamento dos casos de TEA Importante instrumento para tri agem e diversos serviços pediátricos Boas medidas psicométri cas Traduzi da e validada no Brasil
Nota: *TEACCH (treaúnent and education of autistic and re/ated communication handicapped children): tratamento e educação para autistas e crianças com déficits re!acionados à comunicação. Fonte: Lewis e Costa de Leon, 1995. **AI: Autismo infantil.
Minicaso clínico OJC, 4 anos de idade, segu ndo filho de uma prole de três. nascido de parto normal na 37a semana. sem intercorrê ncias de uma gestação planejada. Ap resentou à avaliação um evidente atraso neuropsicomotor. principalmente no que diz respeito a linguagem e comu nicação. Os pais relatam que a criança "era normal" [sic] no seu primeiro ano de vida, mas que a partir do segundo, começou "a ficar estranho e distante" [sic]. A mãe conta que nesse período sua babá, com a qual se dava muito bem. foi embora da cidade inesperadamente. Mais ou menos nessa época. O. começou a ter um comportamento estranho : ficava muito entretido com o balanço do móbile que estava acima de seu berço ; permanecia muito tempo "desligado" [sic] com isso. Não chorava. não reclamava, ficava apenas "vidrado" [sic]. Os pais tam -
bém notaram que O. parecia não escutar direito quando falavam com ele, não respond ia mais com um sorriso e não esticava mais ' os braços para sair do berço. As vezes. porém. respond ia e olhava quando era algo ou alguma situação que despertava algum interesse. Passou a ficar longos períodos brincando sozinho com cubos e latinhas. aos quais demonstrava grande interesse. Essa atividade se estendia po r longos períodos. quando 0., nestes momentos. passava a bala nça r o seu co rpo em movimento de pêndulo. Os pais também notaram que O. gostava que algumas coisas fossem feitas segui ndo uma mesma rotina. por exemplo, a mesma sequência da disposição dos alimentos no prato durante as refeições. Tinha acessos de raiva quando não acontecia desta forma. Parou de falar e tentava se comunicar de outros jeitos. como pegando as mãos dos pais para ab rir as portas e manusear outros objetos.
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Questões 1. Em relação aos quadros clínicos dos transtornos invasivos do a) b) c) d) e)
desenvolvimento, é correto afirmar que: No transtorno desintegrativo da infância, os interesses restritos e a história familiar são os sintomas mais importantes. O transtorno de Rett está associado ao início dos sintomas antes dos 36 de idade, sem a predileção por sexo. A presença de episódios convulsivos é necessária para o diagnóstico de transtorno invasivo do desenvolvimento SOE. Os indivíduos com o transtorno autista podem apresentar a fala e o Ql normais. no transtorno de Asperger há perdas das habilidades adquiridas, retardo mental severo e prognóstico ruim.
2. O sintoma que excluiria o diagnóstico de transtorno de Rett sena: a) evidência de retardo intrauterino b) criança normal até os 6 meses c) apraxia após os 4 anos d) convulsões e) movimentos estereotipados das mãos 3. É importante para o melhor prognóstico dos transtorno do espectro autista: a) desenvolvimento da linguagem antes dos 1Oanos b) diagnóstico antes dos 7 anos c) presença de comprometimento cognitivo grave d) comorbidade com outras doenças psiquiátricas e clínicas e) orientação e suporte familiar 4. Sobre a epidemiologia dos transtornos do espectro autista, é correto afirmar que: a) o transtorno autista típico é o mais prevalente. b) são mais comuns em meninos, numa proporção de 3:1 . c) 500/o das crianças com o transtorno autista apresentam retardo mental associado d) 1o;o da população pode um diagnóstico de transtorno do espectro autista. e) 35% das crianças com o transtorno autista apresentam convulsões em algum momento da vida. 5. Sobre os transtornos do espectro autista podemos afirmar: a) o transtorno autista de alto funcionamento é uma nosologia plenamente definida b) o transtorno de asperger sempre compreende algum nível de retardo mental associado c) as Teorias da Mente, da Coerência Central e das Funções Executivas estabelecem um roteiro para o estabelecimento de um endofenótipo d) o transtorno de aprendizado não verbal e a síndrome semântico pragmática fazem parte de categorias baseadas em descrições clínicas e) Os transtornos do espectro autista foram descritos e incorparados já no OS M 11.
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Déficits Específicos de Aprendizagem e Transtornos da Fala e da Linguagem Luciene Stivanin Cristiana Castanho de Alm eida Rocca Christian César Cândido de Olive ira
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 1095 Definições: comunicação, linguagem (oral e escrita) e fala, 1096
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Considerações sobre o desenvolvimento da linguagem, 1096 Déficits específicos de aprendizagem e transtornos da fala e da linguagem, 1097 Etiologia, 1097 Quadro clínico e comorbidades, 1099 Avaliação, 1103 Tratamento, 1106 Minicaso clínico, 11 08
1. Diferenciar linguagem e fala. 2. Entender os fatores na etiologia dos transtornos. 3. Conhecer as características dos transtornos em alguns quadros. 4. Conhecer os instrumentos de avaliação disponíveis. 5. Considerar os transtornos da fala e linguagem com fatores cognitivos, emocionais e comportamentais. 6. Intervenções.
Questões, 111 O Referências bibliográficas, 111 O
Introdução Alterações no desenvolvimento da linguagem, problemas e transtornos de aprendizagem são queixas frequentes em vários quadros da infância, sejam de etiologia neurológica ou psiquiátrica. Muitas das queixas de dificuldade no aprendizado escolar estão de algum modo relacionadas a dificuldades na linguagem oral, escrita ou lida, as quais podem estar primariamente localizadas em falhas na aquisição ou na compreensão da criança quanto a esses signos e podem também afetar a compreensão do interlocutor, gerando dificuldades na interação social. Desde que existe comunicação, o homem busca formas de aprimorar essa habilidade e minimizar possíveis alterações. Não há evidências históricas, bíblicas ou arqueológicas de que Moisés tivesse gagueira, um importante transtorno da comunicação. No entanto, a Bíblia aponta que apesar de Moisés ter sido educado para ser o novo faraó em razão de suas capacidades, apresentava uma possível patologia da comunicação ou ineficiência de oratória.
Se por um lado algumas interpretações bíblicas dão margem ao questionamento de que Moisés era gago (há um trecho em que Moisés pede a Deus para tirar a "travà' de sua língua), pode-se também fazer referência à não proficiência de uma língua ou dialeto. Enfim, nesse caso, pode-se dizer que esse profeta teria uma dificuldade de fala ou de linguagem? Não apenas Moisés, mas Charles Darwin, Winston Churchill, Machado de Assis e Nelson Gonçalves são grandes personalidades que, apesar de terem excelente desempenho cognitivo e funcional, apresentavam importantes limitações na comunicação. Como desmistificar que uma pessoa com problemas de fala possa apresentar inteligência normal? Como evidenciar que problemas no desenvolvimento de linguagem podem impactar negativamente o desenvolvimento cognitivo? Como um problema na linguagem oral pode repercutir na linguagem escrita? Como limitações no processamento e planejamento da linguagem podem aumentar as chances de um sujeito fazer parte das estatísticas de população em situação de risco e vulnerabilidade social? Como as alterações de fala podem desencadear sintomas psiquiátricos ou, quando já existentes, intensificá-los? De que forma a interpretação adequada de sinais linguísticos, não linguísticos e auditivos pode ser considerada fa-
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tor protetor para a cronificação de outras patologias da comunicação? Enfim, esses questionamentos só podem ser solucionados, se antes, entendermos do que se trata a fala e a linguagem, bem como a interface dessas habilidades com o funcionamento cognitivo e emocional.
Definições: comunicação, linguagem (oral e escrita) e fala A comunicação, independentemente de sua modalidade, permite ao ser humano expressar conhecimentos, emoções, intenções, desejos e insatisfações. A comunicação oral, a mais utilizada nas relações pessoais, é efetiva quando uma série de habilidades é estabelecida entre locutor e interlocutor: saber ouvir, compartilhar um mesmo código linguístico e ter discernimento sobre o que, onde e como falar etc. Já a escrita contém o registro dos conteúdos e pode ser revista a qualquer momento, permitindo a comunicação entre diferentes interlocutores separados pelo tempo. De acordo com modelos cognitivos de processamento da informação, a comunicação envolve o reconhecimento sensorial dos sons da voz do falante ou das características visuais da palavra escrita, a detecção de diferenças entre as características dos estímulos, o acesso às propriedades fonológicas (e ortográficas), o acesso ao significado, às regras sintáticas, à prosódia, o planejamento motor da fala ou da escrita e sua execução. A linguagem é uma capacidade inata e definida como um sistema de símbolos convencionais, utilizados para a transmissão de mensagens. A linguagem pode ser dividida didaticamente em três grandes componentes: conteúdo, forma e uso. O conteúdo refere-se ao aspecto semântico, ou seja, ao significado das mensagens (o conhecimento específico de uma palavra, de categorias conceituais e a interpretação de significados dentro de contextos variados). A forma contém os componentes sintático, morfológico e fonológico, sendo que a sintaxe refere-se à ordem e organização das palavras em sentenças ou frases (regras que indicam como combinar palavras em frases e como transformar essas frases em outras); a morfologia refere -se às regras utilizadas em uma língua para derivar as formas de palavras e as regras que determinam o uso de marcadores ou inflexões (plural, tempo verbal, advérbios e superlativos); a fonologia diz respeito à organização dos sons da língua. O uso corresponde ao componente pragmático (ou seja, ao uso funcional da linguagem em diferentes contextos sociais). Cada componente é governado por regularidades e um conjunto de regras que todos os falantes devem aprender para se comunicarem efetivamente. Embora seja possível discutir cada componente separadamente, eles estão inter - relacionados no funcionamento da linguagem 1•
O conjunto de símbolos arbitrários compartilhados por membros de uma comunidade deve ser percebido pelos órgãos do sentido e expresso por meio oral, escrito, gráfico, gestual etc. As modalidades oral (por meio da fala) e escrita (por meio da grafia) são as mais utilizadas socialmente, enquanto outras como o Braille e a Língua Brasileira de Sinais (Libras) evoluem significativamente para inserção e compartilhamento entre todos os interlocutores de uma comunidade. A fala é um meio de comunicação exclusivo da espécie humana e a forma de expressão da linguagem oral. Os sinais da fala são compostos por sons ou segmentos fonéticos, regulados pelas regras da língua e características do falante e envolvem aspectos perceptivos, linguísticos, motores, cognitivos e orgânicos, adquiridos e organizados na infância e passíveis a modificações com o envelhecimento. Após a conceituação (conteúdos semânticos, significados e léxico) e a formulação de um enunciado verbal (formato linguístico do conteúdo - melodia, prosódia, inflexão, acento e ritmo), ocorrem a seleção de segmentos para uma palavra ou uma série delas, a sequencialização desses segmentos no contexto das sílabas e a fixação dos parâmetros de entonação e ritmo. Esses processos criam padrões de movimentos coordenados pelos órgãos fonoarticulatórios, sendo possível a expressão verbal. Outra forma de expressão da linguagem, mais recente do que a fala, é a escrita. Por intermédio dela, o indivíduo extrai conhecimentos a partir da leitura que envolve os processos de decodificação (conversão de grafemas em fonemas) e compreensão (apreensão do significado) e pode se expressar por meio de símbolos gráficos, também convencionalmente aceitos. A escrita, assim como a fala, envolve aspectos linguísticos (conceituação e elaboração) e motores.
Considerações sobre o desenvolvimento da linguagem Sabe-se que crianças que estão em processo de aquisição de linguagem podem apresentar variações no seu desenvolvimento. Existem variações na velocidade com que as crianças adquirem a linguagem (p. ex., algumas crianças podem começar a usar palavras distintas aos 1O meses, outras não antes dos 18 meses). A aquisição e desenvolvimento da linguagem dependem das capacidades sensoriais para apreensão dos estímulos. Considerada como um sistema cognitivo, a linguagem relaciona-se a outras funções cognitivas como atenção, memória, funções executivas e aprendizagem, cuja interação permeia todo o processamento da informação linguística. Existe um componente genético que determina parte de seu desenvolvimento e sofre influência do ambiente que deve fornecer condições favoráveis para o amadurecimento do sistema nervoso e das rotas envolvidas no processamento em questão.
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No início da aquisição de linguagem, o cérebro da criança funciona e é estimulado de maneira difusa, não sendo possível observar áreas corticais especializadas e responsáveis por determinada habilidade. Com o passar dos anos, a influência ambiental e o amadurecimento cerebral, pode-se observar que essas manifestações difusas tornam-se específicas e, então, determinadas áreas podem ser correlacionadas a funções mais específicas. A funcionalidade dos órgãos sensoriais, aliada a uma rede complexa de neurônios distribuída em diferentes regiões cerebrais, garante a expressão e a compreensão da linguagem e propiciam, dessa forma, a modulação do comportamento nas relações interpessoais. As áreas de Broca (região frontotemporal) e Wernick (região parietal) são essenciais para a linguagem expressiva e receptiva. Além do funcionamento de estruturas neurológicas, o desenvolvimento da linguagem depende também da estimulação ambiental e das relações disponíveis à criança. Sob essa perspectiva, a criança adquire a linguagem a partir da interação comunicativa com os adultos, que funcionam como interlocutores habilitados ao papel de aproximar o nívellinguístico da criança ao seu. No entanto, antes mesmo de começar a falar, formas de comunicação não verbal são prioritárias para a interação social. Enquanto a criança vai aprendendo a discriminar os sons da fala, o olhar, a expressão facial e o gesto são utilizados de modo preponderante nos primeiros anos de vida na interação social, principalmente na relação entre mãe e bebê. Estudiosos da teoria da interação social postulam que a fala materna deve corresponder ao nível de habilidades cognitivas e linguísticas da criança, ajustando-se às suas condições. Assim, caracteriza-se por certa simplicidade sintática com sentenças simples e curtas, para facilitar a compreensão da criança e favorecer o desenvolvimento de uma linguagem própria, bem como possibilitar o envolvimento da criança na interação social. Essa fala materna é denominada como motherese (manhês) e coloca a mãe sob uma condição privilegiada no desenvolvimento dos aspectos linguísticos e comunicacionais da criança. Todavia, essa fala simplificada deve sempre ter um aspecto estimulador, no sentido de não se tornar uma fala infantilizada e pouco favorável a novas aquisições. A natureza da linguagem apresentada à criança precisa variar de acordo com o seu estágio de desenvolvimento. Dessa forma, nos primeiros estágios linguísticos, quando a criança está adquirindo vocabulário e ainda se expressa de maneira simplificada, a fala motherese terá um efeito facilitador. Porém, à medida que a criança avança para um nívellinguístico mais complexo, será preciso adaptar o estilo de linguagem oferecido. Isso significa que o modelo materno deve ser efetivo para que a criança possa aprimorar, ao longo do seu desenvolvimento, sua expressão e compreensão linguística, construindo progressivamente uma fala mais bem elaborada quanto ao seu conteúdo e aspecto pragmático.
Além da fala motherese, outras condições na interação entre mãe e criança auxiliam no desenvolvimento da linguagem. A condição da mãe em dar continuidade ao tópico de interesse desenrolado pela criança propicia uma maior oportunidade de participação na conversação. Soma-se a esse comportamento contingente da mãe a apresentação de feedbacks, especialmente os de repetição e reformulação do enunciado, bem como as solicitações de clarificações e a emissão de questões2 • À medida que a linguagem se estrutura, outros processos cognitivos também se desenvolvem e possibilitam a imersão do indivíduo no campo social e acadêmico. O desenvolvimento da linguagem oral ocorre de maneira informal, relaciona-se a habilidades perceptuais, cognitivas e sociais, sendo facilitado pela interação entre interlocutores em uma comunidade linguística. Por outro lado, a linguagem escrita é uma capacidade que deve ser aprendida e isso acontece, com raras exceções, antes de a criança ter completado o desenvolvido da linguagem oral. A área parieto-occipital participa do processo de aquisição da linguagem escrita, sendo que na região occipital ocorre o processamento dos símbolos gráficos, e o lobo parietal responde pelas habilidades visuoespaciais envolvidas na grafia. O reconhecimento e a decodificação das informações processadas ocorrem na área de Wernicke, que responde pela compreensão da linguagem. A ativação do córtex motor primário em conjunto com a área de Broca possibilita a grafia. Contudo, para que todo esse processo ocorra é importante que as fibras de associação intra-hemisféricas estejam intactas. Estudos de neuroimagem mostram a ativação de áreas distintas durante a leitura, com algumas áreas mais sensíveis à demanda semântica e outras mais sensíveis à demanda fonológica. A conversão grafema-fonema requer a ativação occipitotemporal esquerda, área também ativada na nomeação de figuras 3 •
Déficits específicos de aprendizagem e transtornos da fala e da linguagem Alterações nos componentes da linguagem ou da fala podem impactar a comunicação, dificultando a recepção e a transmissão de ideias, sentimentos e necessidades. Em razão das diferenças existentes entre as regras que dominam o código linguístico dos diversos idiomas, é importante considerar as etapas de desenvolvimento da comunicação dos falantes de cada língua. Da mesma forma, levantar os transtornos em cada língua/cultura permite o entendimento dos fatores de risco e protetores que circundam cada patologia e que podem estar relacionados a políticas públicas.
Etiologia Não existe uma etiologia comum a todos aos quadros com transtornos de linguagem e fala e/ou déficits es -
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pecíficos de aprendizagem. Pesquisadores defendem fatores biológicos ou ambientais como causas de alteração no desenvolvimento típico da linguagem e da fala, havendo consenso por parte de outros pesquisadores quanto à interação entre genética e ambiente, determinantes da caracterização do quadro, de sua gravidade e prognóstico. Alguns transtornos específicos da comunicação apresentam fortes indícios da influência genética como fator etiológico único ou associado, como o distúrbio específico de linguagem, dislexia, gagueira e deficiência auditiva. Estudos com gêmeos monozigóticos apontam que nem sempre os irmãos apresentam distúrbios coincidentes. Isso pode explicar as variações individuais nos distúrbios da linguagem/aprendizagem, que têm etiologia multifatorial (ou seja, resultam da ação conjunta de fatores genéticos e ambientais) 4 . Estudos mostram traços de hereditariedade com mutação genética no FOXP2 (localizado no cromossomo humano 7q31), gene importante para o desenvolvimento de redes cerebrais que estão envolvidas na aprendizagem, no planejamento e na execução orofacial e, em particular, nas sequências motoras para o discurso, bem como na realização manual e em outras sequências motoras. A região do cromossomo 7q aparece como melhor região candidata e está compreendida entre os marcadores D7S2459 e D7S64395 • Pesquisas com foco no transtorno da leitura identificaram quatro genes candidatos para o quadro: DYXlCl no cromossomo 15q21, DCDC2 no cromossomo 6p22, KIAA0319 no cromossomo 6p22, e ROBOl no cromossomo 3pl2. Esses genes estão envolvidos na migração neuronal e a mutação causa alterações nas áreas corticais perisilvianas envolvidas com o processamento dos sons da fala, importante para o desenvolvimento da linguagem escrita, e em áreas talâmicas e no cerebelo, causando déficits motores, auditivos e visuais6 • Adolescentes com problemas de leitura apresentam cinco vezes mais possibilidades de serem de famílias com histórico do mesmo quadro. Porém, nem todos os processos relacionados à leitura são herdáveis. Há forte influência genética para o processamento fonológico (conhecimento do fonema, consciência fonológica, associação grafema-fonema), porém a leitura de palavras irregulares (correspondências ortográficas não governadas por regras) correlaciona-se com a exposição à escrita e com o vocabulário receptivo. Dessa forma, componentes genéticos e ambientais estão implicados no transtorno de leitura e o impacto maior de um desses fatores determina os diferentes subperfis desse transtorno 7 . Resultados do uso de técnicas de neuroimagem, em crianças e adultos com dislexia, sugerem atividade cerebral alterada no córtex auditivo esquerdo8 , desenvolvimento de circuitos compensatórios, como observado no funcionamento no hemisfério direito e no giro frontal inferior, áreas não tão envolvidas na leitura em indivíduos
com desenvolvimento típico de leitura9, e mudanças na atividade cerebral com melhora no desempenho após intervenção terapêutica 10 • O ambiente exerce importante influência no desenvolvimento da criança e situações adversas podem prejuclicar o seu curso normal. Situações como desnutrição podem retardar a aquisição e desenvolvimento da linguagem. O indivíduo necessita de quantidades de energia e nutrientes obtidos por meio dos alimentos para que ocorra seu crescimento e desenvolvimento. Caso não sejam fornecidas corretamente, o organismo utilizará suas reservas que, se não repostas a tempo, proporcionarão uma deficiência nutricional caracterizando a desnutrição proteicocalórica (DPC), que acarreta graves e geralmente irreversíveis repercussões no sistema nervoso central (SNC). A má nutrição nos primeiros anos e meses de vida pode resultar em graves sequelas ao indivíduo como alterações no desenvolvimento cognitivo, mostrando um retardo significativo na aquisição da linguagem e na formação do conceito verbal. Se, além disso, as crianças foram pouco estimuladas, pode haver uma séria diminuição de seus coeficientes intelectuais, consequentemente dificuldade na aquisição da linguagem e maiores taxas de fracasso escolar 11• Em outras situações ambientais, destacam-se as crianças e adolescentes que vivem em situação de vulnerabilidade social: em situação de rua, vítimas de violência, da exploração do trabalho infantil, de abuso e exploração sexual, envolvidos em conflitos familiares, ameaçados de morte, adolescentes com orientação sexual diversa, com perda de relação afetiva na infância, remoção do lar, supervisão e controle inadequado por parte dos pais e negligência emocional. Nesses indivíduos, observa-se prejuízo no desenvolvimento cognitivo com presença significativa de alterações na comunicação oral 12 • As alterações de comportamento, com agressividade física e verbal, inúmeras vezes, podem substituir o comportamento e a comunicação socialmente estruturados. Consideram-se como fatores associados a presença significativa de transtornos mentais nos pais, a falta de estimulação precoce, a linguagem utilizada pelas mães na interação com seus filhos, a presença de quadros mentais decorrentes da exposição à vulnerabilidade e a constatação de alterações cerebrais decorrentes de traumas (diminuição da atividade no hemisfério esquerdo relacionada a percepção e expressão da linguagem, na área de Broca, no córtex pré-frontal e diminuição do volume hipocampal - memória verbal, com menor recrutamento dessas áreas durante o processamento de emoções) 13 • Somando-se a esse cenário, o uso de drogas assume um papel importante, com maior impacto em adolescentes do que em adultos, porque, apesar de menor tempo de consumo, os jovens estão em desenvolvimento. As drogas podem alterar o funcionamento do cérebro do adolescente, que passa por um período da vida marcado por importantes mudanças psicológicas e cognitivas. A literatu-
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ra relata as possíveis consequências decorrentes do uso de drogas, como déficit de atenção, dificuldades na aprendizagem, rupturas na sequência do pensamento e prejuízo na memória, com dificuldades para resgatar sua história de vida por meio de elaboração linguística. Assim, o curso normal de desenvolvimento da linguagem e da fala depende de aspectos biológicos e ambientais. Fatores pré, peri e pós-natais podem causar transtornos como a ingestão de substâncias psicoativas por gestantes, carência na ingesta de nutrientes, icterícia, anóxia, síndromes genéticas (hereditárias ou não), lesões cerebrais, doenças metabólicas e quadros psiquiátricos.
Quadro clíni co e comorbidades De acordo com os critérios médicos da Classificação Internacional das Doenças - CID-10 14, a maioria dos problemas de aprendizagem, linguagem e fala faz parte dos transtornos do desenvolvimento psicológico, descritos no Quadro I. Já no Diagnostic and Statistical Manual ofMental Disorders - DSM-IV 15, esses problemas são divididos nas categorias: transtorno da linguagem expressiva, transtorno misto da linguagem receptivo-expressiva, transtorno fono lógico, tartamudez, transtorno da comunicação sem outra especificação e transtornos da aprendizagem (transtorno da leitura, transtorno da matemática, transtorno da expressão escrita e transtorno da aprendizagem sem outra especificação). Entretanto, existem outros termos utilizados por
especialistas da área, como a dislexia para o transtorno específico de leitura e o distúrbio específico da linguagem para o transtorno da linguagem receptiva e/ou expressiva, o que muitas vezes acarreta uma confusão terminológica. O importante é identificar se as alterações aparecem isoladas, em associação com outros fatores, se há comorbidades ou, ainda, se é causa ou consequência. Partindo desse pressuposto, apresenta-se a divisão a seguir, com a ressalva de que o diagnóstico é complexo, necessita de avaliação multiprofissional e muitas vezes é necessário o início da intervenção para que o diagnóstico se defina: • transtorno específico da linguagem oral: retardo na aquisição ou desenvolvimento da linguagem, distúrbio específico da linguagem e transtorno fonológico; • transtorno específico da fala: alterações musculo esqueléticas; • transtorno específico de aprendizagem: transtorno da leitura, transtorno da escrita e transtorno da mate' . mahca; • comorbidades entre os transtornos de linguagem, fala e aprendizagem; • consequências ou comorbidades com outros quadros: - desenvolvimento - retardo mental, transtorno global do desenvolvimento, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, depressão, esquizofrenia, mutismo seletivo etc.; - adquiridas - encefalopatia não progressiva, epilepsia, doenças cerebrovasculares etc. As alterações de fala e linguagem em alguns desses quadros serão descritas a seguir:
Quadro I
Transtornos do desenvolvimento psicológico
Transtornos específicos do desenvolvimento da fala e da linguagem
Ret ardo no desenvolvi mento da linguagem
(FSO)
O comportamento linguístico encontra-se compatível ao de faixas etárias anteriores. Decorre geralmente de imaturidade e questões ambientais ou socioemocionais. Os sintomas são transitórios e passíveis de superação sem qualquer outro prejuízo.
Transtorno específico da articulação da fala (FSO.O) Transtorno expressivo de linguagem (F80.1) Transtorno receptivo da linguagem (F80.2) Afasia adquirida com epilepsia (F80.3) Outros transtornos de desenvolvimento da fala ou da linguagem
Distú rbi o específico da linguagem (DEL)
(F80.8)
Encontrado por terminologias como afasia desenvolvimental, afasia congênita, disfasia, transtorno da linguagem expressiva, transtorno misto de linguagem etc. Refere-se a uma alteração de linguagem primária que ocorre na presença de perda auditiva, alteração no desenvolvimento cognitivo e motor da fala, síndromes, distúrbios abrangentes do desenvolvimento, alterações neurossensoriais e lesões neurológicas adquiridas, e que impede o desenvolvimento da linguagem da forma esperada. O DEL geralmente é diagnosticado na infância, porém as dificuldades advindas do quadro persistem por toda a vida. O perfillinguístico desses sujeitos se modifica e transita entre os sistemas de classificação por subgrupo e suas manifestações linguísticas são variadas:
Transtorno não especificado do desenvolvimento da fala ou da linguagem (F80.9) Transtornos específicos do desenvolvimento das habilidades escolares
(F81) Transtorno específico de leitura (F81.0) Transtorno específico da soletração (F81.1) Transtorno específico da habilidade em aritmética (F81.2) Transtorno misto de habilidades escolares (F81.3) Outros transtornos do desenvolvimento das habilidades escolares
(F81.8) Transtorno não específico do desenvolvimento das habilidades escolares (F81.9)
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• uso de processos fonológicos de desenvolvimento e idiossincráticos; • vocabulário abaixo do esperado para a normalidade; • menor número de intenções comunicativas; • déficits nas habilidades morfológicas e sintáticas; • pior desempenho em habilidades cognitivas não verbais, evidenciado pela dificuldade no desenvolvimento do jogo simbólico 16 ; • dificuldades para interpretar pistas pro só dicas relacionadas a emoções 17; • problemas no desempenho escolar 18 • Estudos sobre as habilidades cognitivas no DEL identificaram dificuldade no controle atencional e inibição, gerando erros de perseveração, déficits na memória fo nológica e dificuldade para gerar conceitos e integrar as ideias. Levam mais tempo para pensar e planejar resolução de problemas e prejuízo no processamento visuoespacial apenas quando são necessárias transformações mentais e recordação de modelos abstratos 19 . Transtorno fonológico As alterações encontram -se especificamente na área da fonologia, sem ser observada alteração na execução do controle motor responsável pela articulação. Segundo o DSM-IV 15, o transtorno fonológico é definido como um fracasso no uso de sons da fala esperados para o estágio do desenvolvimento, próprios da idade e do dialeto do indivíduo. Isso pode envolver erros na produção, no uso, na representação ou na organização dos fonemas, como substituições de um som por outro ou omissões de sons; as dificuldades na produção dos sons da fala interferem no desempenho escolar ou profissional ou na comunidade social. O transtorno fonológico inclui erros de produção fonoló gica, que envolvem o fracasso em formar corretamente os sons da fala e problemas fonológicos de base cognitiva que envolve um déficit na categorização linguística dos sons. A gravidade varia de pouco a nenhum efeito sobre a inteligibilidade da fala até uma fala completamente incompreensível. A prevalência é de aproximadamente 2% das crianças de 6 e 7 anos com transtorno fonológico de moderado a grave, embora a prevalência de formas mais leves seja superior, sendo maior no sexo masculino. Em estudo com 1.076 crianças falantes do português do Brasil, na cidade de São Paulo, Patah e TakiuchF0 verificaram a prevalência de 8,27% de transtorno fonológico aos 7 anos de idade, sendo 77% do sexo masculino. Transtorno de fala por alterações musculoesqueléticas As alterações musculoesqueléticas correspondem aos distúrbios causados por problemas na musculatura, ossos ou cartilagens envolvidas na produção da fala. As alterações de fala podem ser de origem muscular, por lesões ou remoções musculares; fibroses; atrofia muscular; perda ou diminuição da mobilidade; alteração de tamanho ou de
forma. Podem ser de origem esquelética por alterações nos ossos, conformação da face, ausência de dentes, entre outros. Nas alterações musculoesqueléticas, o ponto articulatório é geralmente o mais alterado, acarretando omissões, substituições, distorções ou imprecisões na articulação21 • Nesse caso, a fala de um indivíduo está alterada porque o movimento necessário dos órgãos fonoarticulatórios não se realiza de forma adequada por comprometimento em sua estrutura. Por exemplo, uma criança com frênulo lingual curto encontra dificuldade para elevar a língua e produzir o fonema /1/, acarretando a pronúncia de /boa/ em vez de /bola/. Da mesma maneira, o tônus lingual diminuído pode dificultar o movimento de vibração e comprometer a produção do fonema /r/ vibrante, como em /arara/. Em um estudo realizado com 1.810 escolares falantes do português falado no Brasil22, a prevalência de desordens de fala nas crianças estudadas foi de 24,6%, sendo maior em crianças com 5 a 6 anos, quando comparadas com as crianças com 1O anos ou mais. A prevalência de alteração de fala por volta dos 5 anos de idade foi de 57% e entre 8 elO anos, 42%. A proporção de alteração de fala foi semelhante entre os sexos. As alterações se associaram ao grau de escolaridade das mães e dos pais, 9,5% e 78,6%, respectivamente,com menos de um ano de estudo. Transtorno da leitura O transtorno da leitura também pode ser denominado dislexia, de acordo com o DSM-IV. KamhF3 considera, além da dislexia, outros dois quadros de alterações na leitura: • Language learning disabled - presença de dificuldades na identificação da palavra escrita e na compreensão de linguagem e, consequentemente, na compreensão da leitura; • Hiperlexia - a capacidade de identificação da palavra está preservada, mas há dificuldade na compreensão da linguagem, o que acarreta problemas na compreensão da leitura; • Dislexia - ocorre dificuldade na identificação da palavra escrita, apesar de capacidades normais de compreensão e produção da linguagem. A compreensão da leitura está prejudicada em razão da imprecisão ou da lentidão na decodificação da palavra escrita. A dislexia é uma das diversas incapacidades na aprendizagem, um distúrbio específico da linguagem, mais especificamente da linguagem escrita, de origem biológica, caracterizada por dificuldades na decodificação de palavras isoladas, que geralmente refletem capacidades insuficientes de processamento fonológico. Essas dificuldades na decodificação de palavras individuais são frequentemente inesperadas em relação à idade ou a outras capacidades cognitivas e não são resultantes de uma incapacidade no desenvolvimento ou de um comprometimento sensorial24 • A dislexia difere dos distúrbios de aprendizagem mais gerais por se constituir em prejuízo que persiste na vida
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adulta, enquanto as pessoas com dificuldades de aprendizagem mais gerais apresentam soletração melhor e aritmética pior, além de fazerem progresso em programas de estimulação da leitura25 . Embora a maioria dos indivíduos com dislexia apresente problemas na leitura de palavras e de não palavras, alguns apresentam dificuldades particulares com leitura de não palavras, enquanto a leitura de palavras irregulares está relativamente conservada. Esse padrão de déficit, interpretado pelo modelo de dupla-rota como um prejuízo específico para adquirir a rota não lexical, é característico da dislexia designada fonológica. Por ouro lado, algumas crianças apresentam mau desempenho na leitura de palavras irregulares, enquanto a leitura de palavras regulares e não palavras está preservada, sugerindo déficit na aquisição da rota lexical, o que caracteriza a dislexia de superfície, sendo que 55% das crianças com dislexia apresentam o primeiro tipo, 30% o segundo e 10% ambos os tipos26. Na dislexia, as alterações são causadas por dificuldades básicas na aprendizagem da decodificação da palavra escrita. Essa dificuldade em mapear símbolos alfabéticos em sons (princípio alfabético) depende em parte da consciência fo nológica (consciência que as palavras faladas compreendem sons individuais da fala) e da consciência ortográfica (sensibilidade da criança para constatar como as letras são organizadas nas palavras escritas). Assim, pode-se dizer que os problemas na consciência fonológica, mapeamento alfabético e decodificação fonológica conduzem a dificuldades para estabilizar conexões entre sons e letras27• Prejuízos na nomeação28, na formulação de sentenças e na recontagem de histórias 29 são encontrados nesse quadro, em decorrência das dificuldades de acessar as formas fonológicas das palavras ou com representações fo nológicas não tão estabilizadas. As representações das palavras no léxico compreendem representações semânticas, fonológicas e ortográficas que são interdependentes. Como resultado, a qualidade das representações fonológicas das palavras afeta o desenvolvimento e uso das representações semânticas e ortográficas. Pode ser mais difícil acessar palavras familiares, mantê-las na memória de trabalho e reconhecê-las durante a leitura. Comorbidades entre transtornos de linguagem, fala e dislexia
Aproximadamente 11% de meninos e 15% de meninas com atraso no desenvolvimento da fala apresentam distúrbios concomitantes na linguagem sem alterações cognitivas, enquanto 7,6% dos meninos e 4,8% das meninas com DEL apresentam atraso na fala. Embora possam ocorrer de maneira simultânea, o transtorno fonológico e o DEL são frequentemente independentes 30 • Estudos prospectivos de crianças com transtorno fonológico apontam risco elevado de atraso no desenvolvimento da leitura31, embora a associação seja mais acentuada quando há comorbidade com problemas na linguagem oral. Crianças apenas com trans-
torno fonológico caracterizado por omissão e substituição de vários sons na infância apresentam menos chance de terem problemas na leitura, escrita e soletração32 • Para os três distúrbios (linguagem, fala e leitura), os déficits fonológicos são citados como causa principal, apesar de não acarretarem as mesmas manifestações comportamentais nos quadros, as quais dependem de outros déficits e capacidades. Esse tipo de modelo está implícito na análise de Bishop e Snowling33 , que argumentam que DEL e transtorno da leitura envolvem déficit no processamento fonológico, acompanhado no DEL por déficits em outras áreas da linguagem como a sintaxe. Crianças com transtorno fonológico apresentam déficits persistentes em consciência fonológica, mas se a nomeação rápida estiver preservada (indicando funcionamento da rota ortográfica para a leitura) o nível de leitura se mantém normal. Da mesma forma, DEL sem transtorno da leitura apresenta desempenho esperado em nomeação rápida. Os perfis variam em função da comorbidade e das capacidades preservadas que agem como fatores de proteção. Retardo mental
O transtorno da linguagem, fala e aprendizagem se caracteriza de acordo com o nível intelectual do indivíduo, podendo haver desde ausência total de linguagem e fala até um desenvolvimento com uso funcional da linguagem, embora com rebaixamento quando comparados aos de indivíduos de mesma idade cronológica. Nesses casos, definir os componentes de linguagem alterados e as capacidades e dificuldades do indivíduo contribui para o estabelecimento do plano terapêutico. Transtornos globais do desenvolvimento
O autismo caracteriza-se por um déficit na interação social observado pela inabilidade em relacionar-se com o outro, geralmente combinada com déficits de linguagem e alterações de comportamento. As alterações de linguagem que esses sujeitos podem apresentar variam de caso para caso, desde ausência total de fala até mesmo a seu uso peculiar, dificuldade de compreender informações e utilizar a linguagem de forma efetiva. Dentre as características linguísticas, cita-se a ecolalia, comumente definida como uma repetição em eco da fala, repetições que podem ocorrer imediata ou tardiamente, podendo ter uma intenção diante de uma situação comunicativa sendo considerada, portanto, um fator positivo para o prognóstico do quadro. Outras alterações referem-se a dificuldades de compreender informações sociais e utilizarse de linguagem efetiva34 . Tais alterações linguísticas e comunicativas (como falhas na fase do simbolismo) estão intrinsecamente relacionadas às habilidades cognitivas. Esquizofrenia com início na infância
As alucinações e dificuldades na organização das ideias relacionam-se com a produção de um discurso oral
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e/ou escrito quantitativamente adequado, porém de conteúdo incoerente, repetitivo, estereotipado e com alterações sintáticas. A perda de interesse e diminuição da iniciativa de manter relações sociais também prejudicam o desenvolvimento da linguagem. Depressão infantil
Pantano 35 observou, em crianças e adolescentes com depressão, dificuldades nos níveis sintático, semântico e lexical da linguagem, principalmente relacionadas a informações extensas e/ou complexas, mostrando assim comprometimento no processamento da linguagem. As alterações encontradas não foram diminuídas após três meses da introdução da medicação, mesmo com a melhora da sintomatologia clínica.
dade, repercutindo na aprendizagem. O prejuízo cognitivo está relacionado com a gravidade do quadro motor, extensão da lesão e crises epilépticas, sendo observado que 71% dos casos apresentam prejuízo cognitivo. Os sujeitos com melhores performances cognitivas têm o local da lesão em regiões subcorticais em 50% dos casos e os 37% mais prejudicados, em áreas corticais e corticosubcorticais39 • As alterações na comunicação podem ser encontradas não em razão do acometimento cerebral, mas porque as dificuldades e limitações motoras incapacitam a criança a agir no meio e participar de experiências importantes para a formação das noções de espaço, tempo e relações, refletindo prejuízos no desenvolvimento das funções corticais superiores. Epilepsia
Transtorno de conduta
Adolescentes com esse quadro podem apresentar problemas no entendimento social, que envolve interpretação inadequada da intenção do outro. Esses indivíduos são menos hábeis em decodificar e codificar as informações sociais (ou seja, perceber e identificar as informações que se fazem presentes em um contexto interpessoal) e atribuem mais hostilidade às intenções alheias. Na comunicação, observa-se falha na percepção do contexto conversacional, na identificação de expressão facial, interpretação errada do discurso do outro, dificuldade na realização de inferências, seleção errada de elementos para expressão, falta de atribuição de estados mentais no discurso, menor número de verbos de estado e diminuição de referências pessoais36 . Transtorno do déficit de atenção e hiperatividade
O TDAH está associado a alterações dos aspectos fo nológicos, sintáticos, semânticos e pragmáticos. Entre as alterações observadas na linguagem, constatam-se déficits fonológicos, alterações na organização da narrativa oral e escrita, com dificuldade na manutenção do tema37 e velocidade de fala aumentada. A relação entre a linguagem e as habilidades cognitivas foi constatada por Malerbi e Scheuer38, que relataram a influência da semântica e da fonologia sobre as memórias de curto prazo, implícita e semântica em crianças de 7 a 9,11 anos diagnosticadas com TDAH, além de melhor processamento das informações auditivas do que as visuais relacionadas com a leitura. Encefalopatia não progressiva
Sendo uma anormalidade causada por lesão no cérebro imaturo, de caráter não progressivo, os sintomas e sinais devem expressar a área lesada e a sua extensão, refletindo neurologicamente os padrões anormais de postura e movimento; pode ser constatado maior ou menor envolvimento de linguagem, percepção visual, auditiva, memória, comportamento e afeto em maior ou menor grau de gravi-
As crianças epilépticas não apresentam um desenvolvimento esperado para a faixa etária, e o atraso é maior quanto mais precoce for o início das crises, sendo maior a frequência e tipo. Entram como causa dos déficits cognitivos em crianças epilépticas: ocorrência de vários tipos de crises, fisiopatologia da epilepsia, possível patologia cerebral de base, uso de medicamento, estigma social, problemas educacionais, fatores genéticos, distúrbio do sono por crises ou descargas e descargas subclínicas que causam dano cognitivo transitório. Há registros de comorbidade com RM, problemas de linguagem e de aprendizado. Quanto melhor o nível cognitivo antes da crise, melhor a manutenção da função após o acompanhamento. A linguagem em pacientes epilépticos foi pouco estudada até o momento. O início precoce da epilepsia focal está associado a problemas de linguagem em crianças e adultos, com piores desempenhos na epilepsia temporal à esquerda. Foi observado que crianças epilépticas falam menos, usam menos pronomes demonstrativos ou comparativos para referir-se a pessoas ou objetos e usam menos conjunções para unir as sentenças. A gravidade do comportamento está relacionada ao controle das crises, ao inicio precoce e à disfunção cognitiva geral40 • Lesões tardias ou adquiridas
São causadas por traumatismo cranioencefálico (TCE), doença cerebrovascular (DVC) e neoplasias. Acometem o SNC em fases mais adiantadas do neurodesenvolvimento. O TCE é a principal causa, sendo provocado por quedas ou acidentes automobilísticos. Na expressão e/ou compreensão da linguagem oral, depende do local e da extensão da lesão, de alterações motoras centrais ou periféricas (disartria, apraxia), além de alterações nas funções estomatognáticas (p. ex., disfagias). Nos casos mais leves, os indivíduos apresentam nível insatisfatório de concentração, mudanças de personalidade e problemas educacionais. As neoplasias acometem o SNC em cerca de 20% dos indivíduos na infância. A maior parte dos tumores se localiza na fossa posterior, sendo o meduloblastoma o tipo
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mais comum. O tratamento oncológico pode causar alterações neuropsicológicas como déficits na memória operacional e prejuízos na velocidade de processamento da informação, além de prejuízo nas tarefas de memória que requerem habilidades estratégicas. A ocorrência de DVC na infância é rara, sendo relacionada a certas doenças sistêmicas como anemia faleiforme, quadros infecciosos decorrentes de meningite bacteriana, traumas vasculares ou ruptura de aneurismas, causando alterações cognitivas relacionadas à memória explícita e déficits de linguagem e fala, além de baixo rendimento acadêmico. Como a lesão pode ocorrer em áreas focais ou difusas alterando as funções neuronais, as habilidades da linguagem podem encontrar-se alteradas de forma transitória ou permanente, dependendo da época, do tipo e do local da lesão neurológica41 • Crianças em situação de risco e vulnerabilidade social
Em estudo realizado com 11 O crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social (idade 13,3 anos), atendidos no Programa Equilíbrio, serviço especializado para o atendimento dessa população no centro de São Paulo, constatou-se, entre setembro de 2007 e março de 2008, que 43% dos casos amostra apresentavam algum tipo de atraso e/ o distúrbio da comunicação oral, sendo a idade média de 12,8 anos. Do total de alterações, 74,5% concentrava-se no desenvolvimento da linguagem oral, 42,5% na articulação da fala, 4,25% em fluência e 2,12% em voz 12 ; quando relacionadas a quadros comportamentais, observa-se maior prejuízo. Em estudo com a mesma população mencionada (n = 26, sendo 14 com problemas na comunicação - 13,4 anos e 12 sem problemas - 13,6 anos), observou-se que os indivíduos com problemas na comunicação obtiveram pontuações maiores para pro blemas no comportamento pró-social, hiperatividade, problemas emocionais e de relacionamento 42 • Em outro estudo em 200943 com amostra de 257 sujeitos (média de idade de 12,2 anos, 70,9% do sexo masculino), atendidos neste mesmo serviço, 25% de sujeitos apresentaram alterações na linguagem escrita (média de idade de 12,3 anos e 78,20% no gênero masculino. As alterações em linguagem escrita foram separadas em quatro grupos: 1. Dificuldade na associação grafema-fonema, impossibilitando leitura e escrita (em 40,60% dos sujeitos, idade média de 11,15% anos, prevalência de 15,4% dos adolescentes e em 88,4% dos meninos). 2. Alteração na precisão e velocidade da decodificação (em 20,31% dos sujeitos, idade média de 12,76 anos, prevalência de 61,53% dos adolescentes e em 69,23% dos meninos). 3. Dificuldades na recordação e/ ou compreensão escrita (em 14%, dos sujeitos, idade média de 14,4 anos, prevalência em 77,7% dos adolescentes e em 77,77% dos meninos).
4. Dificuldade apenas na expressão escrita, com re-
lação à estruturação do discurso, coesão e coerência textuais (em 25% dos sujeitos, idade média de 15,4 anos, prevalência em 62,50% dos adolescentes e em 62,50% dos meninos). Um ponto que merece destaque é que alguns desses sujeitos apresentam alterações concomitantes na linguagem oral (48,43%) e no uso social da linguagem (15,62%). Há dificuldade no diagnóstico de alterações na linguagem escrita, tendo em vista a existência de alta taxa de evasão escolar nessa população, assim como de sérias limitações e críticas ao atual sistema educacional brasileiro. Também se deve levar em consideração os problemas emocionais, familiares e sociais, que podem acarre tar maiores dificuldades no desenvolvimento global, inclusive na linguagem escrita.
Avaliação A avaliação clínica pressupõe o conhecimento e o uso de técnicas ligadas à comunicação humana, mas também de questões mais abrangentes como relações sociais, funcionamento cognitivo e emocional. A consideração e avaliação desses diversos fatores determinarão a melhor caracterização de cada quadro e planejamento terapêutico. Como já mencionado, o diagnóstico dos transtornos de linguagem e fala e de aprendizagem é complexo. É importante determinar se a presença de alterações é específica à linguagem (oral ou escrita) e à fala, se são consequências ou causas de outras alterações, se ocorrem em conjunto com outros quadros patológicos ou ainda se fazem parte das características que definem cada quadro, como no autismo. Uma criança pode apresentar baixa autoestima e dificuldades no relacionamento em decorrência da presença de dificuldades na comunicação e acadêmicas, enquanto uma outra pode não se comunicar na família e na escola em razão da falta de motivação e do ambiente agressivo. O enfoque no tratamento é diferente em ambos os casos: no primeiro, o desenvolvimento da comunicação e aprendizagem vão impactar o desenvol vimento emocional; no segundo, intervenção no humor e mudanças no meio se fazem necessárias para que a criança mostre sua comunicação (que está intacta). Indivíduos que apresentam alterações de linguagem e aprendizagem poderão encontrar dificuldades escolares e criar uma autoimagem negativa, levando consequentemente a maiores índices de evasão escolar, maior quantidade de problemas familiares e emocionais, tendência ao abuso de substâncias psicoativas, atividade sexual precoce e violência, aumentando o risco de delinquência8 . Aspectos importantes na avaliação da linguagem (oral e escrita) e fala
Cada componente da linguagem - fonologia, morfologia, sintaxe, semântica e pragmática - deve ser avaliado
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e comparado a valores esperados para a faixa etária correspondente. Deve-se determinar com precisão o tipo e grau de alteração, considerando que vários componentes podem estar alterados em um quadro, ou a alteração em um impactar outras habilidades. Por exemplo, uma criança com dificuldade no estabelecimento de trocas de turno comunicativo pode apresentar atraso no desenvolvimento do vocabulário e do sistema fonológico, uma vez que existe a dificuldade para o contato com interlocutores, que é essencial no desenvolvimento do repertório linguístico. Da mesma forma, aproveitar o vocabulário diversificado de uma criança auxilia na compreensão da distinção entre os traços fonéticos das várias palavras, influenciando a eliminação de alterações fonológicas. Assim, caracterizar cada componente da linguagem auxilia o clínico na elaboração de sua intervenção e no prognóstico. Outro ponto importante é a distinção entre as capacidades receptivas e expressivas na avaliação da linguagem. Crianças que apresentam déficits expressivos acompanhados de déficits receptivos necessitam de tratamento diferenciado daquelas que apresentam apenas déficits ex. preSSlVOS. Deve-se também atentar para a distinção entre transtorno da linguagem e transtorno da fala, que muitas vezes é tratado como quadro único. A alteração fonética, que faz parte dos transtornos da fala, tem como principais causas as alterações de estruturas ósseas e/ou musculares, envolvidas na articulação e nas alterações de produção da fala. A alteração fonológica (parte do transtorno da linguagem), por sua vez, ocorre na ausência de alterações orgânicas, o riginando-se nas dificuldades de contextualização dos sons, na organização linguística e na combinação dos traços fo nêmicos. As alterações fonéticas e fonológicas devem receber diagnóstico diferenciado, uma vez que o tratamento desses quadros passa por procedimentos terapêuticos distintos. Basicamente, o critério de distinção entre essas alterações é o estabelecimento ou não de contraste entre os sons da fala. Nas alterações fonológicas, observa-se a eliminação do contraste entre os sons, ocasionando omissões e substituições fonêmicas. As alterações fonéticas ou distorções fonêmicas podem ser definidas como a substituição de um som padrão por um som não padrão, mantendo o contraste entre o som distorcido e os demais sons da língua. É necessário avaliar morfologia, tônus e mobilidades das estruturas moles da boca e face, e a morfologia das estruturas duras, os tipos de compensação utilizados e o comprometimento que a alteração causa na inteligibilidade. No que diz respeito às alterações na linguagem escrita, a avaliação deve considerar as características do aprendiz, do material a ser aprendido e do contexto escolar. O objetivo central da leitura é a compreensão. Os estudantes com dificuldades de compreensão devem ser bem avaliados, pois a alteração pode estar em vários níveis: nos processos básicos de leitura, que é a decodificação e velocidade de processamento, na extração do significado das
palavras impressas e/ ou nos processos cognitivos de alto nível, como capacidade de realizar inferências, habilidades linguísticas gerais, habilidades de memória e conhecimento de mundo, que juntos contribuem para a construção de uma representação macroestrutural do texto 44 • Da mesma forma que na leitura, fatores como características das palavras, tempo de processamento e escolaridade influenciam o processo de escrita, porém pouco é estudado nesse processamento. Muitas crianças têm dificuldades de compreender como as palavras são grafadas, o que leva a uma série de alterações ortográficas, os chamados erros ortográficos. Esses erros fazem parte da aprendizagem, são ocorrências típicas e esperadas nessa aquisição, o que dá origem a hipóteses segundo as quais as crianças vão construindo seus conhecimentos sobre a escrita de forma gradativa. Fatores importantes envolvidos na recepção (aspectos sensoriais), na elaboração (aspectos cognitivos) e na expressão (aspectos motores) das informações linguísticas devem fazer parte da realização do diagnóstico. Avaliação da audição/processamento auditivo
Com o decorrer do desenvolvimento linguístico, aperfeiçoam-se os mecanismos responsáveis pela análise da informação auditiva. Os órgãos periféricos da audição e o funcionamento adequado dos mecanismos centrais permitem a percepção da fala e a compreensão da linguagem. Alterações no desenvolvimento das vias auditivas podem prejudicar o desenvolvimento da linguagem, já que a criança necessita ouvir seus interlocutores e ter o feedback da própria produção vocal. Alterações no processamento auditivo podem causar dificuldades na recep ção da mensagem oral, memorização, integração de ideias, e quando expostos em ambientes mais ruidosos e desfavoráveis, como a sala de aula, o quadro pode se agravar. Se o desenvolvimento da leitura depende da associação entre grafemas e fonemas, a dificuldade de identificar, discriminar e memorizar os sons pode comprometer esse processo. Sauer et al. 45 encontraram em disléxicos alterações no processamento auditivo, que indicam dificuldades na organização de eventos sonoros no tempo, dificuldade na memória auditiva de curto prazo e dificuldade de bloquear sons competitivos. A dificuldade do grupo de indivíduos disléxicos de realizar a assimetria perceptual na etapa de atenção direita indica dificuldade na atenção seletiva e sustentada, podendo também ser um fator predisponente para falta de habilidade em decifrar o código não verbal da comunicação. Avaliação do processamento visual
É necessário um processamento visual refinado dos sinais gráficos para que se dê a realização de varredura textual para identificação das partes constituintes da palavra e, consequentemente, sua fixação, codificação e posterior compreensão. Tal habilidade é requisitada, portanto, logo que a criança inicia a alfabetização46.
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Avaliação dos aspectos motores: 1. articulação: a avaliação das estruturas e funções dos órgãos fonoarticulatórios permite identificar se o nível de alteração na produção da fala é o motor. 2. escrita: escrever requer a integração das funções sensoriais, motoras, perceptuais e cognitivas, dessa forma a avaliação da escrita não se limita a observação e análise da qualidade e da precisão do traçado das letras. Apesar das dificuldades na escrita se refletirem como uma consequência comum dos problemas de coordenação motora fina, antes de estar apta a escrever, a criança deve desenvolver habilidades motoras relacionadas ao equilíbrio corporal, apreensão voluntária de objetos, bem como a capacidade de liberá-los, manuseio de utensílios e destreza motora47 • Avaliação neuropsicológica
A avaliação neuropsicológica tem como objetivo mapear as forças e fraquezas cognitivas para auxiliar no delineamento das formas de intervenção mais apropriadas a cada caso. Há grande demanda para avaliação na área da psiquiatria da infância e da adolescência, porque essas crianças tendem a apresentar uma multiplicidade de problemas, os quais incluem: atrasos no desenvolvimento neuropsicomotor, atrasos na aquisição da linguagem, problemas de comportamento e transtornos de aprendizagem48• Crianças com transtornos da linguagem e fala e déficits de aprendizagem costumam apresentar também comprometimentos em funções cognitivas instrumentais, como: atenção, memória e funções executivas. Dessa forma, é importante que várias funções cognitivas sejam mapeadas e tenham seus resultados colocados em perspectiva com as queixas trazidas na entrevista de anamnese. A linguagem e a atenção são dois sistemas cognitivos amplamente avaliados. A atenção e o esforço para manter ou modular a atenção influenciam os processos de linguagem. As habilidades ou respostas aos estímulos podem se tornar automáticas, não apenas mais rápidas e mais exatas, mas conduzidas por caminhos qualitativamente diferentes. A demanda atencional e energia para coisas novas é diferente daquela para coisas já vistas (que já foram aprendidas enquanto língua), estando relacionada com o tipo e a forma de linguagem utilizada (características dos estímulos frequência, extensão, cor; instrução dada; gestos, oralidade etc.). Assim como déficits atencionais podem prejudicar os estágios de processamento da informação linguística, falhas nesses estágios podem prejudicar o fluxo da atenção. A intenção do falante exerce diferentes efeitos na utilização da atenção visual. Por exemplo, se uma pessoa necessita falar sobre o que vê, foca a atenção em aspectos específicos que são relevantes para o planejamento da sentença, mobilizando rapidamente recursos linguísticos para a produção oral. A memória de trabalho (MT) tem a função de reter sequências de sons não familiares e processá-las, facili-
tando o entendimento daquilo que foi emitido, além de reter características visuais e espaciais (grafemas, faces, objetos, rotas, movimentos e gestos). A compreensão de uma oração ocorre com base em fragmentos da oração armazenada na MT; conforme cada fragmento vai se processando, a alça fonológica mantém ativo o fragmento seguinte, por meio do ensaio subvocal. A limitação na MT pode causar prejuízo na linguagem por resultar em re presentações linguísticas mal estabelecidas, dificultando a construção de representações permanentes na memória de longo prazo, interferindo principalmente na compreensão de enunciados longos e complexos49 • No estudo de Ferreira51 com crianças falantes do português do Brasil, houve correlação entre MT e compreensão de sentenças (em crianças com DEL). Dificuldades relacionadas à memória de longo prazo prejudicam a capacidade de estabelecer conhecimento sobre o mundo, incluindo fatos, conceitos e vocabulário independentes do contexto temporal e espacial (memória semântica), de registrar e evocar informações em um determinado contexto espacial e temporal, por vezes inespecífico, prejudicando a elaboração e/ou recordação de fa tos de sua história pessoal, familiar ou social (memória episódica) 51 . A dificuldade em funções executivas pode compro meter a atenção sustentada e a capacidade de iniciar e manter uma atividade. Além disso, pode ocorrer empo brecimento na estimativa de tempo, déficits no controle de impulsos e impaciência. Especificamente em relação à linguagem, observa-se dificuldade para lidar ao mesmo tempo com duas informações linguísticas ou alterná-las, ou ainda para conseguir inibir uma para trabalhar com a outra. A fluência verbal pode estar reduzida. Disfunções executivas também se caracterizam por problemas de planejamento, inquietação comportamental, agressividade e pouco insight52 • Instrumentos para avaliação
O diagnóstico de alterações no desenvolvimento da linguagem deve ser feito a partir de testes formais confiáveis e válidos estatisticamente. Um teste deve avaliar a habilidade geral de linguagem e as habilidades receptivas e expressivas, fornecer informações normativas que possibilitem comparações entre grupos e entre faixas etárias, identificar habilidades e dificuldades, ser útil para profissionais que trabalham com avaliação e não somente para os especialistas em linguagem, ser administrado em um curto período de tempo para evitar fadiga da criança e do examinador e incluir uma amostra normativa significativa. No Brasil, porém, a escassez de instrumentos formais e objetivos comercialmente disponíveis e indicados para avaliação e diagnóstico, na área da fonoaudiologia é significativa. A falta de instrumentos formais e objetivos, além de refletir certamente no diagnóstico, também re flete na definição das condutas terapêuticas e na elabora-
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ção dos planos de intervenção, chegando a comprometer a eficácia e a eficiência dos tratamentos oferecidos. Destaca-se, para rastreamento, o Communication Chjjd Checklist(CCC), validado por Malerbi e Scheuer5\ para crianças de 7 a 11 anos e aplicado a um grupo de crianças com transtorno do déficit de atenção e hiperatividade. O CCC tem como objetivo investigar e classificar comportamentos linguísticos e não linguísticos importantes no desenvolvimento típico e na descrição de quadros com alterações de linguagem difíceis de serem detectados em testes padronizados ou em contexto natural. É um instrumento composto por 70 questões subdivididas em 9 subescalas: produção de fala, sintaxe; iniciação apropriada, coerência, conversa estereotipada, uso de contexto conversacional, concordância conversacional, relacionamento social e interesses; podendo ser utilizado em ambiente clínico ou de pesquisa. A subescala da produção de fala tem 11 questões, da sintaxe tem 4, da iniciação apropriada tem 6, da coerência, conversa estereotipada, uso de contexto conversacional e concordância conversacional têm 8 questões, do relacionamento social tem 10 questões e de interesses tem 7. As subescalas produção de fala e sintaxe estão relacionadas aos déficits de estrutura de linguagem: iniciação apropriada, coerência, conversa estereotipada, uso de contexto conversacional e concordância conversacional, relacionando-se com o uso da linguagem. Relacionamento social e interesses referem-se ao domínio não linguístico. Estudos têm mostrado sua eficácia na identificação de crianças com alterações de linguagem, mais especificamente quanto a seu uso. O material é eficaz para traçar um perfil de comportamentos linguísticos e não linguísticos. No Brasil, até o momento, temos comercialmente disponíveis apenas um teste de linguagem infantil, o teste ABFW5 \ destinado à avaliação das áreas de fonologia, vocabulário, fluência e pragmática, indicado para crianças de 2 a 12 anos de idade e um Protocolo de Observação Comportamental (PRO C) 55 para avaliação da linguagem e dos aspectos cognitivos infantis, indicado para crianças de 12 a 48 meses.
Tratamento A intervenção nos quadros de déficits específicos da aprendizagem, fala e linguagem deve ser traçada de acordo com o tipo de patologia diagnosticada, fase de sua identificação, gravidade e impacto no desenvolvimento global da criança/adolescente. Deve considerar os aspectos a serem trabalhados e as características da criança, estabelecendo assim o procedimento mais adequado ao contexto. A função do papel do terapeuta, como adulto que orienta os procedimentos estruturados para ensinar os aspectos formais da linguagem e fala, é permitir que a criança tenha papel ativo nesse processo de aquisição e/
ou desenvolvimento das habilidades trabalhadas. A participação da família e da equipe escolar é essencial, uma vez que constitui o meio no qual a criança exercita sua . comumcaçao. Recentemente, uma série de teorias sobre a aquisição de linguagem derivada dos modelos de processamento da informação (modelos psicolinguísticos ou neuro psicolinguísticos), considera as bases perceptivas e cognitivas subjacentes à linguagem. A descrição dos fenômenos patológicos é importante, mas antes dela os conceitos teóricos são verificados em situações específicas que favorecem comportamentos de utilização exclusiva de uma ou outra via, uma ou outra memória de armazenamento ou de processamento 56 • Assim, além de aspectos específicos da linguagem, habilidades subjacentes como discriminação auditiva, consciência fonológica, velocidade de processamento e memória de curto prazo também são consideradas. Conceitos e metodologias das áreas da linguística, psicologia e neurologia são utilizados para definir estratégias de intervenção que não sejam guiadas unicamente por uma observação. A intervenção deve enfocar os níveis comprometidos previamente identificados e aproveitar as habilidades preservadas para ajudar na reabilitação, como as vias sensoriais (visual ou auditiva), para maior aproveitamento dos estímulos utilizados. O estímulo utilizado para intervenção deve ser cuidadosamente selecionado, pois suas propriedades (frequência, familiaridade, extensão, complexidade articulatória, regularidade etc.) influenciam a forma como o material vai ser percebido e estocado na memória, facilitando ou dificultando o seu acesso, em precisão e velocidade. Por exemplo, uma criança pode ter alterações para nomear objetos e pessoas ao seu redor e essas dificuldades podem estar em diversos níveis. Quando há atraso significativo na formação de conceitos, o objetivo da terapia foca na identificação e elaboração de medidas semânticas das palavras, incluindo grupo e categorização de palavras por classe, contraste, semelhança e diferença entre as palavras e identificação do melhor exemplo de cada categoria. Quando a dificuldade está em acessar ou recuperar vocabulário, a intervenção deve focar em identificar estratégias apro priadas, bem como desenvolver flexibilidade com essas estratégias. O tratamento que envolve formação de estratégias para recuperação a partir de associações (visuais, verbais semânticas e fonológicas, motoras), dependendo do processo afetado, pode facilitar que as representações lexicais tornem-se disponíveis para produção. Em caso de dificuldade no processamento fonológico, como observado em crianças com transtorno fonológico e DEL, deve-se levar em conta o nível afetado. Em crianças com transtorno fonológico, observa-se prejuízo na recuperação das formas fonológicas das palavras com conhecimento semântico preservado; no DEL, observa-se prejuízo na recepção e organização do sistema fonológico associado a um déficit na memória de trabalho, resul-
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tando em quebras entre os diferentes domínios linguísticos, aumentando a demanda nos processamentos semântico e sintático. Dessa forma, a intervenção deve basear-se, no primeiro caso, no ensino de estratégias para consolidar as representações fonológicas das palavras e para recuperá-las, e aproveitar o processamento semântico intacto para compensar as dificuldades. Além de enfocar no processamento da informação, atividades metacognitivas são importantes no sentido de tornar explícitos os processos envolvidos no aprendizado da linguagem e o ensino de estratégias que a criança poderia utilizar independentemente de sua capacidade linguística, como estratégias cognitivas de recuperação de palavras, construção de palavras na mente para a estrutura fonológica, identificação de componentes danarrativa (como, quem e onde). Uma ferramenta importante utilizada para intervenção e que integra várias habilidades é a narrativa, que trabalha a capacidade da criança de entender e aplicar a estrutura típica de uma narrativa (personagens, setting, problema, objetivo, tentativa, resolução e conclusão) e a coerência (produção de narrativa organizada) e as estruturas linguísticas utilizadas para criar a narrativa oral, como complexidade gramatical e o número de diferentes palavras utilizadas. Quando há impossibilidade de comunicação oral, como em distúrbios de linguagem causados por doença vasculocerebral, encefalopatia crônica não progressiva e surdez congênita, outras modalidades de comunicação devem ser implementadas como as pranchas de comunicação alternativa. No transtorno da leitura, o tratamento do distúrbio de reconhecimento da palavra escrita, baseado no processamento da informação, envolve identificar as vias prejudicadas e as habilidades perceptivas e cognitivas envolvidas. Para crianças com transtorno da leitura, há grande dificuldade para transferir o que foi aprendido para novas situações. As intervenções afetam especificamente as habilidades trabalhadas, com o treinamento das habilidades fonológicas sendo mais eficaz para a leitura de não palavras e menos eficiente para as palavras irregulares, enquanto a monitorização da leitura em relação com o vocabulário falado é mais eficiente para a leitura de palavras e menos para as não palavras57 . As atividades metafonológicas (ensinar as crianças a segmentar palavras em fonemas e a manter a informação sobre a estrutura fonológica das palavras na memória) pode auxiliá-las a formar representações fonológicas das palavras cada vez mais precisas, acarretando melhora no léxico, produção da fala e decodificação e codificação do material escrito. As habilidades semânticas são necessárias quando a rota fonológica não consegue decodificar a palavra (contém irregularidade) ou para resolver uma ambiguidade (homófono). As conexões semânticas das palavras escritas e suas características visuais podem aumentar a eficácia do reconhecimento da palavra escrita 58 •
Com relação à intervenção nos problemas de compreensão escrita, deve-se partir do fator causal: quando a compreensão está prejudicada por causa da decodificação, a intervenção em decodificação deve acarretar a melhor direta na compreensão. Além disso, o aumento da velocidade de decodificação associado ao ensino de procura pela compreensão do texto deve resolver o problema. Quando as capacidades linguísticas prejudicam a compreensão do texto escrito, deve-se avaliar as áreas que foram prejudicadas (semântica, sintaxe) e os níveis envolvidos. Além de se trabalhar diretamente nos aspectos linguísticos e cognitivos (atenção, memória de trabalho e de longo prazo envolvidos na compreensão da informação linguística), segundo a literatura, a intervenção direta em narrativas pode aumentar a compreensão. Há uma importante relação entre o conhecimento da estrutura narrativa de uma história e sua compreensão de leitura. Leitores habilidosos ativam o esquema de conhecimento que permite não apenas entender textos, mas também relembrar e reconstruir histórias. O trabalho com narrativa de crianças com dificuldades de leitura, com idades entre 6,2 e 8,9, focando na instrução da estrutura narrativa (componentes da gramática da história e uso destes para criar histórias), mostrou que após intervenção as histórias criadas tinham mais componentes. Não há estudos que analisam a transferência entre as modalidades oral e escrita após intervenção em uma modalidade 59 • Em outro estudo60, foram pesquisados os efeitos de um programa de intervenção em narrativa oral para melhorar essa habilidade e a de compreensão de leitura em 1Ocrianças com déficit de leitura em habilidades de decodificação e compreensão, com idades entre 7;11 e 9;2, com déficits persistentes em compreensão e produção oral e compreensão de leitura. Os resultados indicaram efeitos significativos na compreensão da narrativa oral superior aos controles. Todavia, não houve efeito na produção, emhora fosse melhor que os controles. Não houve efeitos da intervenção em medidas de semântica e morfossintaxe, mas houve aumento da atenção à estrutura narrativa e redução da disfluência verbal. Também não foram observados efeitos para a compreensão de leitura, pois ela envolve também habilidades de decodificação. Talvez fosse necessário seguimento de maior tempo para verificar se há transferência de uma modalidade para outra. Tendo sido pouco estudadas, as dificuldades presentes na escrita podem ser decorrentes de problemas linguísticos, de recuperação de informações fonológicas para associação entre fonema e grafema, ou de problemas motores. O enfoque da terapia fonoaudiológica baseia-se em habilidades linguísticas e cognitivas/perceptivas subjacentes; pode-se também recorrer a profissionais como o psicomotricista. As crianças com dificuldades na linguagem escrita expõem -se menos a situações de leitura do que os leitores típicos. A contribuição da exposição ao material impres-
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so é maior para os aprendizes deficientes, visto que eles necessitam do contexto para as habilidades de decodificação. Intervenção baseada em livros de histórias tem documentado resultados positivos por permitir o engajamento e interesse pela leitura, promover interação verbal entre adultos e crianças, estimular as regras pragmáticas e generalizar conceitos de linguagem, além de aumentar as habilidades das crianças em reconhecimento de palavras e consciência fonológica61 . A aprendizagem da linguagem escrita começa por volta dos 6 anos de idade, mas por oferecerem menores situações de estimulação verbal e escrita, são reconhecidos fatores de risco para o desenvolvimento de problemas na linguagem escrita: fatores hereditários e crianças com prejuízos em habilidades cognitivas e de linguagem e nível social desfavorável. Houve um interesse crescente na estruturação de programas de prevenção. Programas destinados a crianças em risco para o fracasso da leitura e que envolveram instrução explícita na decodificação fonêmica com o treinamento de habilidades de consciência fonológica, associadas à prática da leitura, tiveram melhores progressos no desenvolvimento da leitura nos anos seguintes62 , incluindo crianças com nível socioeconômico baixo63 . Conscientização e motivação para o tratamento Além do enfoque nas manifestações e processamentos linguísticos relacionados alterados, tornar o indivíduo consciente da importância de uma comunicação eficiente na sociedade pode motivá-lo no engajamento para o tratamento, tanto fonoaudiológico como psicológicos ou . ., . ps1qmatncos. Adolescentes usuários de drogas e com problemas na comunicação foram convidados a participar de sessões fonoaudiológicas, nas quais houve abertura de um espaço de comunicação, propiciando a eles maior contato com a própria comunicação, bem como um processo de conscientização sobre o sentido e a forma. Como estratégia de abstinência discutiu-se a relação do adolescente com a droga. Os adolescentes sentiram -se seguros para falar sobre o uso e sua implicação em sua vida. Eles passaram com o fonoaudiólogo e ficaram mais tempo em tratamento multidisciplinar (30 + 19,5 semanas vs. 13 + 11,5, p = 0,023), e os usuários de maconha passaram mais tempo abstinentes (17 + 14 semanas vs. 6 + 7,5 semanas, p = 0,01) do aqueles que não participaram desse tipo de atendimento 64. Como o objetivo foi verificar a percepção e o impacto social dos transtornos da comunicação na percepção dos próprios adolescentes, foram ouvidos 30 adolescentes com transtorno na comunicação, atendidos entre 7 de setembro e 8 de janeiro, de ambos os sexos, com idade média de 13,7 anos e com diagnóstico Z.61 (remoção do lar na infância) atendidos no Programa Equilíbrio. Após avaliação inicial, os adolescentes foram questionados sobre as
consequências dos problemas na linguagem oral e escrita. Os resultados foram discutidos entre fonoaudiólogo, assistente social e psicopedagoga e apontaram que 66,66% dos adolescentes referiram consequências negativas oriundas do transtorno da comunicação. Entre elas, destacam-se: dificuldade em relacionamento social (54,16%), emprego (25%) e desempenho escolar (20,83 %). Esses dados demonstram que os transtornos da comunicação podem prejudicar as relações interpessoais e, consequentemente, o desenvolvimento de habilidades sociais importantes nesse período da vida e, sobretudo, para essa população. Porém, nem todos tinham percepção do próprio transtorno. Assim como aqueles que percebem seu problema, esclarecer sobre o transtorno, o impacto na sociedade e o possível tratamento pode facilitar a aderência ao tratamento65 . Nesse mesmo serviço, é desenvolvido juntamente às crianças um jornal Uornal da Cultura Jovem), no qual são trabalhadas as manifestações e processamentos linguísticos preservados e prejudicados. As crianças engajam-se mais ao tratamento (fono e outros), melhoram a autoestima e o nível atencional (o que influencia diretamente no processamento linguístico) e podem pensar em planos futuros apresentando uma comunicação que é aceitável na sociedade. Nesse sentido, essas ações podem fazer parte de propostas e planos a serem traçados dentro de políticas públicas. Os déficits específicos da aprendizagem e os transtornos da fala e linguagem trazem grande repercussão para o desenvolvimento global da criança/adolescente. Assim, é importante que dentro dos serviços de saúde, profissionais habilitados para a detecção precoce, prevenção e ações dirigidas à (re)habilitação de déficits e patologias específicas façam parte da equipe de assistência a essa população, tais como fonoaudiólogos, neuropsicólogos e psicopedagogos.
Minicaso clínico Paciente X de 16 anos. do sexo masculino, parou de estudar no 1° ano do ensino médio. No último ano faltou com frequência por motivos relacionados ao uso de droga. Seu desempenho escolar foi mediano (informação dada pelo paciente). alegando dificuldades para se concentrar e prestar atenção nas atividades propostas em sala, motivo pelo qual acabou por ser reprovado. O pai relatou que X também apresentava dificuldade de atenção em atividades rotineiras realizadas em casa. O adolescente não exerce qualquer tipo de atividade remunerada. X iniciou o uso regular de álcool aos 7 anos. aos 12 começou a fazer uso regular de maconha e referiu não ter feito uso de outras substâncias psicoativas. Usou maconha pela primeira vez acompanhado por amigos. porque tinha curiosidade, já que sempre ouvia os colegas usuários falarem dos efeitos prazerosos causado pela droga (sic.) . Apesar de negar prejuízos decorrentes do uso de maconha, admitia envolvimento com roubos. tráfico de drogas e internação
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na Fundação Casa. Só procurou tratamento psiquiátrico por ordem judicial. Segundo o pai. X não tinha antecedente familiar para uso abusivo de álcool e drogas. tentativas de suicídio e outros problemas psiquiátricos e/ou criminais. Nunca esteve internado por problemas relacionados ao consumo de maconha. As hipóteses diagnósticas. consideradas por psiquiatra. foram transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) subtipo combinado 14 e dependência de maconha. de acordo com o DSM- IV 15 • O uso do metilfenidato (cloridrato de metilfenidato) foi prescrito pela psiquiatra responsável pelo caso. com objetivo de melhorar os processos atencionais de X. buscando assim motivar seu retorno à escola. O paciente passou por avaliação fonoaudiológica com intuito de investigar o funcionamento de sua linguagem oral. Foram obtidas amostras de fala em dois momentos distintos do tratamento. No primeiro momento. no qual houve o início do acompanhamento ambulatorial, o paciente estava abstinente da maconha (há cerca de uma semana). não fazia uso de metilfenidato ou de qualquer outra substância psicoativa. No segundo momento. o paciente estava abstinente da maconha há mais de um mês. de acordo com seu relato e de seu pai. além de fazer uso de metilfenidato 40 mg/dia. A amostra de fala em discurso autoexpressivo (aquele que não requer nenhuma atenção para qualquer aspecto de sua produção. além dos envolvidos na geração da mensagem linguística) foi gravada em minidisc. Essa amostra expressa os sentimentos e intenções do falante. formulados em um código linguístico - fonológico. morfossintático. semântico e pragmático - com intenção comunicativa. Para iniciar a produção do discurso. foi apresentada uma figura e solicitado ao paciente que falasse livremente sobre o que quisesse. Nesse caso não foi necessária interferência por parte do avaliador para estimular a produção. Para a análise da fluência do discurso. foi adotada metodologia proposta por Andrade 67. Após a transcrição das primeiras 200 snabas expressas (fluentes). contou-se o número total de rupturas na fala. tanto as mais comuns (hesitações. interjeições. revisões. palavras não terminadas. repetições de segmentos. repetições de frases e repetições de palavras) como as típicas da gagueira (repetições de sílabas. repetições de sons. prolongamentos. bloqueios. pausas e intrusão de sons ou segmentos). Foi também analisada a velocidade da fala (fluxo de palavras por minuto - que mede a velocidade de acesso lexical. e fluxo de sílabas por minuto - que mede a velocidade articulatória) e a frequência de rupturas (porcentagem de descontinuidade de fala e porcentagem de sílabas gagas). As duas avaliações. antes e após o uso do meti lfenidato. foram comparadas entre si. de forma descritiva. Os dados analisados mostraram que na segunda avaliação a tipologia das disfluências comuns foi menor que na primeira. avelocidade de fala aumentou em sílabas e palavras por minuto e a frequência de rupturas diminuiu. apontando melhor funcionamento da linguagem e processamento motor para a fala. provavelmente em razão de maior período de abstinência e uso de medicação com potencial para agir nos mecanismos responsáveis pela linguagem e pela produção de fala. uma vez que provoca estimulação cortical. via estimulação dopaminérgica e do sistema de ativação reticular67.
Tabela I
Perfil da fluência do discurso antes e após uso de metilfeni-
dato Tipologia das disfluências
Velocidade de fala
Frequência de rupturas
Disfluências comuns
Disfluências gagas
1a aval
2a aval
1a aval
2a aval
32
15
1
o
Palavras por minuto
Sílabas por minuto
1ª aval
2ª aval
1ª aval
2ª aval
89
128
135
240
o;o de descontinuidade de fala
o;o de disfluências gagas
1ª aval
2ª aval
1ª aval
2ª aval
16,5
7,5
0,5
o
As amostras de fala nas duas situações foram apresentadas ao paciente. que encontrou nessa ferramenta uma forma concreta para motivar-se ao tratamento. A promoção de um maior período de abstinência da maconha aliado ao uso de um psicoativo propiciou uma melhor comunicação oral do paciente. no aspecto da fluência discursiva. Nesse caso. a avaliação fonoaudiológ ica representou importante instrumento para evidenciar uma das consequências do uso da maconha. mas principalmente motivar o paciente a se empenhar no tratamento. por meio da constatação objetiva dos prejuízos e da melhora deles em curto período. Assim, esse caso sugere que a avaliação fonoaudiológica pode ser um recurso a mais na difícil tarefa de mobilizar o adolescente dependente a se tratar e a se empenhar na obtenção de abstinência. Esse fator de motivação é especialmente importante para tratamento de usuários de maconha. que costumam ser mais resistentes à ideia de abstinência. talvez por essa droga ter uso mais aceito nos dias atuais. Encontrar uma forma para motivar o adolescente a se tratar é um dos maiores desafios dos profissionais que se dedicam a tratar os pacientes dessa faixa etária. A avaliação dos processos linguísticos é essencial na infância, dada a importância do papel dessa função no desenvolvimento cognitivo global da criança. Crianças e adolescentes que manifestam problemas psíquicos. neurológicos e psiquiátricos acabam comprometendo sua adaptação psicossocial em decorrência do impacto negativo dos sintomas sobre o desenvolvimento. A linguagem oral é um importante meio de comunicação sobre sentimentos. desejos e intenções. propiciando que o pensamento possa ser traduzido por palavras. A dificuldade na comunicação oral pode levar à manifestação de comportamentos disruptivos. porque a criança passa a agir mais do que falar. As dificuldades na linguagem escrita e na leitura interferem no desempenho escolar e tendem a ter como consequência principal o baixo rendimento escolar. Por sua vez. o baixo rendimento acadêmico ocasiona inúmeros problemas emocionais e sociais. Nesse sentido. fica enfatizada a necessidade de atenção à área da linguagem em crianças que apresentem risco de problemas emocionais. neurológicos e psiquiátricos.
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Questões
bolos convencionais, utilizados para a transmissão de mensagens. São os movimentos dos órgãos fonoarticulatórios para a expressão oral de ideias. Tem como um de seus componentes a sintaxe, fonologia e morfologia. Pode ser expressa por meio da fala ou da escrita. A Libras (Língua Brasileira de Sinais), utilizada por su rdos, é considerada um sistema de linguagem.
c) A avaliação neuropsicológica deve contemplar o estudo das funções executivas porque as dificuldades de lidar ao mesmo tempo com duas informações linguísticas ou alterná-las ou, ainda, consegu ir inibir uma para trabalhar com a outra são comuns em crianças com problemas de linguagem. d) Na avaliação neuropsicológica, a fluência verbal de crianças com dificuldades de linguagem tende a estar adequada, porque a dificuldade deve ser específica na leitura. e) A avaliação neuropsicológica deve contemplar a memória de trabalho CMD em razão de sua função de reter sequências de sons não familiares e processá-las, facilitando o entendimento daquilo que foi emitido, além de reter características visuais e espaciais (grafemas, faces, objetos, rotas, movimentos, gestos).
2. Sobre o desenvolvimento típico ou alterado da linguagem, assinale a incorreta: a) A herança genética é fortemente determinante para o desenvolvimento da linguagem e aprendizagem, sendo que fatores ambientais auxiliam apenas para o planejamento terapêutico. b) O uso de drogas pode causar alterações cerebrais importantes, impactando no desenvolvimento cognitivo e de linguagem. c) Há evidências de que crianças expostas a situações estressantes têm risco elevado de apresentar atraso no desenvolvimento da linguagem e aprendizagem. d) Pesquisas apontam o envolvimento de genes no transtorno da leitura com fator de hereditariedade. e) A má nutrição nos primeiros meses e anos de vida pode resultar em graves sequelas ao indivíduo, como alterações no desenvolvimento cognitivo e de linguagem.
5. No que tange à avaliação da habilidade de escrita, assinale a alternativa incorreta: a) Escrever requer a integração das funções sensoriais, motoras, perceptuais e cognitivas. b) A avaliação da escrita não se limita a observação e análise da qualidade e da precisão do traçado das letras. c) A avaliação da escrita deve priorizar a análise da qualidade e da precisão do traçado das letras porque esses aspectos refletem as dificuldades visuoespaciais. d) A avaliação de habilidades motoras relacionadas ao equilíbrio e destreza motora é importante em crianças com dificuldades de escrita. e) As dificuldades na escrita podem ser compreendidas como uma consequência comum dos problemas de coordenação motora fina.
3. Sobre o transtorno de leitura ou dislexia, assinale a incorreta: a) As dificuldades específicas na decodificação do material escrito podem prejudicar a compreensão textual, levando a problemas na aprendizagem dos conteúdos escolares e na autoestima. b) Pesquisas recentes apontam que as alterações na decodificação do material escrito, que caracterizam a dislexia, são resultantes de alterações no processamento fonológico. c) Existem alterações na compreensão do material escrito, que são decorrentes do conhecimento de mundo limitado e outras alterações cognitivas, embora a decodificação esteja preservada. d) As alterações presentes no quadro não resultam de comprometimento sensorial. e) Prejuízos na nomeação de figuras e recordação de histórias são características observadas no quadro.
Referências bibliográficas
1. A respeito do termo linguagem, assinale a alternativa incorreta: a) É uma capacidade inata e definida como um sistema de sím-
b) c) d) e)
4. Em relação à avaliação neuropsicológica, é incorreto afirmar que: a) A avaliação neuropsicológica tem como objetivo mapear as forças e fraquezas cognitivas para auxiliar no delineamento das formas de intervenção mais apropriadas a cada caso. b) Avaliar crianças com transtornos da linguagem, fala e déficits de aprendizagem é importante porque pode haver comprometimentos em funções cognitivas instrumentais, como: atenção, memória e funções executivas.
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79 DÉFICITS ESPECÍFICOS DE APRENDIZAGEM E TRANSTORNOS DA FALA E DA LINGUAGEM
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Transtorno de Déficit de Atenção/ Hiperatividade Guilherme Va noni Polanczyk Júlio Re nó Sawada Ênio Roberto de Andrade Luis Augusto Rohde
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 1113 Aspectos históricos , 1113
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Apresentação clínica, 1114 Comorbidades, 1115 Processo diagnóstico, 1116 Epidemiologia, 1118 Prevalência, 1118 Curso dos sintomas, 1119 Etiologia, 1119 Substrato neuropsicológico, 1121 Neurobiologia, 1123 Tratamento, 1124 Questões, 1128 Referências bibliográficas, 1128
1. Conhecer quais são os sintomas que caracterizam o TDAH: desatenção, hiperatividade e impulsividade. 2. Saber peculiaridades do TDAH, origens e sintomas é um transtorno desenvolvimental, com suas origens em períodos anteriores à manifestação dos sintomas, que podem persistir até a idade adulta. 3. Saber que o TDAH é um transtorno heterogêneo do ponto de vista etiológico, refletindo em heterogeneidade patofisiológica e clínica. 4. Compreender que o TDAH está associado a sofrimento, prejuízos funcionais, pior qualidade de vida e desenvolvimento de comorbidades. 5. Entender que os fatores genéticos estão fortemente associados ao transtorno, assim como fatores ambientais principalmente relacionados ao período perinatal.
Introdução Dificuldades atencionais, impulsividade e agitação são manifestações comportamentais que estão presentes em uma parcela significativa da população. Dentre os indivíduos com estas manifestações, muitos apresentam uma constelação típica de sintomas que manifestam-se de forma intensa e persistente ao longo do tempo e que levam a prejuízos funcionais significativos. Estes indivíduos apresentam o transtorno de déficit de atenção/hiperatividade, uma condição médica comum na população de crianças, adolescentes e adultos que é responsável por um significativo custo individual e social. Este capítulo aborda os avanços no entendimento de aspectos clínicos e fisiopatológicos deste transtorno.
Aspectos históricos A primeira descrição de crianças com sinais típicos do que atualmente entendemos como transtorno de
déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) é de autoria de Heinrich Hoffman, datada de 1846, em um livro de contos infantis 1 • Em 1902, o pediatra George Still publicou no periódico The Lancet a descrição de crianças com comportamento caracterizado por agitação motora, problemas de atenção, dificuldade de controlar impulsos e necessidade de gratificação imediata sem consideração pelos outros, sem comprometimento intelectual, o que chamou de déficit no ''controle moral" 2 • Nas décadas seguintes, a identificação de alterações comportamentais decorrentes de infecções e traumas cerebrais, semelhantes às descritas por Still, levou o surgimento do termo "dano cerebral mínimo" 3.4. Ao mesmo tempo que se buscava fatores etiológicos relacionados aos sintomas, Bradley, em 1937, descobriu que a benzedrina reduzia a inquietude e aumentava a concentração e a motivação de crianças com alterações compor-
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tamentais5 • Considerando que em muitas crianças não era demonstrado "dano físico", mas ainda enfatizando a origem orgânica dos sintomas, o termo para a constelação de sintomas de desatenção, hiperatividade e impulsividade foi subsequentemente modificado para "disfunção cerebral mínima'' 6 • A criação de sistemas classificatórios e a busca pela definição de entidades nosológicas válidas e confiáveis beneficiou significativamente o estudo e o entendimento do TDAH. A Organização Mundial de Saúde incluiu na 9aversão da Classificação Internacional das Doenças (CID9)? a síndrome hipercinética da infância e na sua versão subsequente, a CID-10,8 o transtorno hipercinético. A As sociação Americana de Psiquiatria incluiu na 2a versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-II) 9 a reação hipercinética. Nas revisões subsequentes do manual, modificou a terminologia para transtorno de déficit de atenção com ou sem hiperatividade (DSM-III) 10 e transtorno do déficit de atenção/hiperatividade (DSM-III-R 11 e DSM-IV 12 ). Atualmente, está sendo feita uma nova revisão dos critérios diagnósticos propostos pela Associação Americana de Psiquiatria e a publicação do DSM-5 deve ocorrer no ano de 2013 13 • As diferenças entre as versões estão principalmente relacionadas à ênfase dada a dimensão de desatenção ou hiperatividade e ao número de sintomas exigidos em cada dimensão para o diagnóstico. Em paralelo à evolução na definição diagnóstica, foi gerado um extenso corpo de conhecimento sobre o transtorno a partir de diferentes perspectivas e metodologias, como estudos clínicos transversais e longitudinais, de genética comportamental e molecular, funcionamento cognitivo e neuroimagem 14 • Os estudos nos possibilitaram entender com mais profundidade o TDAH, e um dos importantes avanços foi a conceitualização do transtorno como uma condição crônica, que pode acompanhar os indivíduos ao longo de todo o desenvolvimento 15 • O extenso conhecimento acumulado na literatura científica sobre o TDAH o coloca atualmente como uma das condições mais bem estudadas da Medicina 16 •
Apresentação clínica O TDAH é caracterizado por sintomas de desatenção, hiperatividade e impulsividade, que podem manifestar-se de forma isolada ou coexistir. Por definição, os sintomas manifestam-se desde a infância e devem ser inapropriados do ponto de vista desenvolvimental, ou seja, não são esperados no estágio maturacional em que o indivíduo se encontra12 • Desatenção refere-se a um padrão de comportamento caracterizado por dificuldade em iniciar uma tarefa, em manter-se engajado e atento e em concluir a tarefa. Inclui também dificuldade de organização, distratibilidade, dificuldade de escutar o que é dito, esquecimento de
compromissos e objetos e dificuldade de planejamento e de execução das atividades. Em adolescentes e adultos, é comum a alteração da noção de tempo, como superestimar o tempo em relação às tarefas que devem ser real izadas, e a procrastinação. • Hiperatividade refere-se a um padrão de comportamento caracterizado pelo excesso de atividade física, pelo sentimento de inquietude que impossibilita o indivíduo de permanecer inativo quando seria esperado ou desejado. A hiperatividade manifesta-se não relacionada a uma determinada tarefa, ou seja, não tem propósito, e afeta de forma negativa o ambiente em que o indivíduo se encontra. • Impulsividade refere-se a um padrão de comportamento caracterizado pela dificuldade de adiar uma ação ou resposta apesar da antecipação de que haverá consequências negativas. A impulsividade está associada à necessidade de obter gratificações imediatas, em oposição à capacidade de adiá-las para avaliar a situação que se apresenta. Apesar de experiências prévias que mostraram as consequências negativas dos atos, indivíduos impulsivos apresentam grande dificuldade para modificar o comportamento em função apenas do aprendizado. Impulsividade pode ser observada na incapacidade de aguardar a vez para falar, para utilizar um brinquedo, para atravessar a rua de forma segura. Pode ser observada também por meio do tempo curto de reação a estímulos, que se reflete em respostas rápidas a questões ou testes, levando a erros, respostas curtas, muitas vezes não relacionadas às perguntas. A manifestação dos sintomas de desatenção, hiperatividade e impulsividade é influenciada por características ambientais, como nível de motivação e estruturação do ambiente. Quanto maior a motivação do indivíduo para a realização de uma tarefa, maior o envolvimento e atenção na sua execução. Tarefas divertidas, prazeirosas, dinâmicas, que fornecem recompensas rápidas, tendem a motivar os indivíduos e, consequentemente, tendem a receber maior atenção. Em relação ao ambiente, quanto mais estruturado, menor será a chance da manifestação dos sintomas. Ambientes com regras explícitas, objetivos claros, e monitoramento externo próximo tendem a reduzir a chance de manifestação dos sintomas. Da mesma forma que os sintomas são influenciados por características ambientais, estes também são influenciados pelo estágio do desenvolvimento em que o indivíduo se encontra: • Na idade pré-escolar, indivíduos com TDAH frequentemente são identificadas em função do excesso de agitação e impulsividade, que podem perturbar o ambiente escolar, afetar negativamente a relação intrafamiliar e da família nuclear com amigos ou com a família extensa. Estes sintomas também se associam com frequência a acidentes, brigas com outras crianças e à dificuldade de manejo por parte de pais e professores. Estes comportamentos são mais frequentemente identificados nesta faixa etá-
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ria quando associados à agressividade e comportamento opositor. • Na idade escolar, sintomas de desatenção podem passar a ser percebidos com mais clareza, por meio de dificuldade de completar tarefas, desorganização e distratibilidade, ocasionando prejuízo no desempenho escolar. As crianças escolares têm dificuldade em permanecer sentadas para ouvir os professores e em seguir as regras na sala de aula. • Na adolescência, a hiperatividade motora tende a reduzir ou a modificar-se, passando a ser referida como uma sensação subjetiva de inquietude. Adolescentes com TDAH apresentam-se com dificuldade de organização e planejamento, de manter a atenção em leituras, de controlar os impulsos. Podem envolver-se em situações potencialmente perigosas, como brigas, direção perigosa, esportes arriscados. • Na idade adulta, a procrastinação, o aproveitamento instatisfatório do tempo disponível, desorganização com compromissos e na execução de tarefas podem ser percebidos pelo próprio indivíduo. Os indivíduos podem referir sensação de inquietude e a impulsividade manifesta-se nas relações interpessoais, brigas com superiores no trabalho, mudanças de emprego, acidentes de carro, gestação não planejada, abuso de drogas. Nesta fase do desenvolvimento, é frequente a redução do número de sintomas em relação à infância, principalmente da dimensão de hiperatividade e impulsividade. Do ponto de vista clínico, é fundamental determinar a presença de sintomas e o prejuízo funcional asso ciado. Futuros sistemas classificatórios deverão incorporar essas particularidades desenvolvimentais 13 . A capacidade de percepção do indivíduo sobre os sintomas tende a aumentar com o tempo, à medida que suas capacidades cognitivas tornam-se mais sofisticadas. Durante a infância, a busca de atenção médica em função dos sintomas é geralmente motivada pelo comportamento disruptivo ou pelo prejuízo no desempenho escolar. Com frequência, os pais adaptam -se aos sintomas de forma a minimizar os prejuízos ocasionados pelo transtorno, como evitar locais em que o comportamento disruptivo será muito disfuncional ou organizar sua rotina em função das obrigações escolares dos filhos. Nestas situações, geralmente são os professores quem identificam sinais disfuncionais. Na adolescência e idade adulta, é frequente a busca por atendimento médico em função de comorbidades, como abuso de substâncias ou depressão, de prejuízos acarretados pelo transtorno, como dificuldades nos relacionamentos interpessoais, ou do sofrimento gerado pelas limitações impostas pelos sintomas. Quando os sintomas não são distônicos para o indivíduo afetado, ou seja, quando este entende que, porque sempre os apresentou este é o seu "modo de ser", a busca por atendimento é muito menos frequente. Quando ocorre, em geral é
motivada por uma pessoa próxima, como o cônjugue, que interpreta os comportamentos como disfuncionais e identifica os seus prejuízos.
Comorbidades Inúmeros transtornos mentais ocorrem em comorbidade com o TDAH, com uma frequência variável em função da origem da amostra estudada (clínica ou comunitária) e de métodos empregados para avaliação. Condições comórbidas são bastante frequentes em pacientes clínicos com TDAH, o que pode dificultar a avaliação diagnóstica e interferir na resposta terapêutica. Os transtornos disruptivos são as comorbidades mais frequentes: aproximadamente 50% das crianças com TDAH apresentam transtorno de oposição e desafio (TOD) ou transtorno de conduta (TC). 17 Crianças com TDAH eTC tendem a apresentar quadro clínico mais grave e menos responsivoa tratamento, com prognóstico menos favorável. Indivíduos com este perfil apresentam maior de risco de personalidade antissocial na idade adulta, abuso de substâncias e piores índices de adaptação social e ocupacional 18 . O TDAH está associado a idade mais precoce de uso de substâncias, como nicotina, álcool e outras drogas, e ao abuso 19 . Esta relação parece ser influenciada pela presença de TC, que aumenta o risco de forma substancial20 . Aproximadamente 30% das crianças com TDAH apresentam transtornos de ansiedade, como fobias simples, fobia social e transtorno de ansiedade generalizada 17 • Apesar de aventada a hipótese de que crianças com este perfil de comorbidades responderiam menos ao tratamento para TDAH, as evidências empíricas não apontam neste sentido2 1. Depressão acomete cerca de 1O a 20% das crianças com TDAH, e transtorno do humor bipolar é identificado em uma menor proporção. Há sobreposição de alguns sintomas entre as duas síndromes, mas a psicopatologia subjacente é de diferente natureza e a presença de alterações significativas de humor não faz parte do quadro clínico do TDAH 17,22 • O TDAH frequentemente ocorre em comorbidade com transtorno de tique motor e síndrome de Tourette, estando presente em até 50% dos pacientes com estes transtornos, que apresentam frequência mais reduzida em indivíduos com TDAH 23 • Sintomas do TDAH frequentemente são identificados em crianças com transtornos globais do desenvolvimento. Entretanto, os sistemas classificatórios atuais não prevêem a possibilidade de diagnóstico de TDAH na presença de transtorno globaF3,24 • A exclusão do diagnóstico de TDAH na presença de transtornos globais do desenvolvimento deve ser revista nos futuros sistemas classificatórios. O TDAH também está fortemente associado à enurese25 . Além da comorbidade com outros transtornos mentais, é frequente a comorbidade entre TDAH e transtornos de aprendizagem, incluindo dislexia, sendo estima-
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da em até 25% dos casos com TDAH 17 • A suspeita desta condição deve ser feita quando há dificuldades específicas em leitura, escrita ou matemática ou quando o de sempenho escolar encontra-se bastante prejudicado, principalmente em crianças com alta capacidade cognitiva e/ ou que, apesar da redução dos sintomas nucleares do TDAH com o tratamento, não obtiveram melhora do desempenho escolar.
Processo diagnóstico O diagnóstico do TDAH é clínico, baseado em critérios operacionais claros e bem definidos gerados por sistemas classificatórios como o DSM-IV26 e a CID-108 • A avaliação clínica deve levar em consideração a intensidade, duração e pervasividade dos sintomas, além do estágio de desenvolvimento em que o indivíduo se encontra. Os sintomas listados em ambos os sistemas classificatórios são essencialmente os mesmos, mas a CID- 10 exige que sintomas nas três dimensões de desatenção, hiperatividade e impulsividade estejam presentes, enquanto o DSM-IV considera duas dimensões distintas (sintomas de desatenção e sintomas de hiperatividade e impulsividade agrupados) e permite o diagnóstico na presença de sintomas de uma única dimensão (Tabela I). Rohde et aJ.2 7 ,28 demonstraram a adequação dos critérios propostos pelo DSM-IV em amostras de crianças brasileiras, reforçando a aplicabilidade destas em nosso meio. Como apresentado na Tabela I, o DSM-IV propõe a necessidade de pelo menos 6 sintomas de desatenção e/ou 6 sintomas de hiperatividade-impulsividade para o diagnóstico deTDAH. Conforme o número de sintomas em cada uma das duas dimensões, há três possíveis subtipos de TDAH: a) predomínio de sintomas de desatenção: acomete mulheres com mais frequência do que outros subtipos e apresenta, conjuntamente com o tipo combinado, uma elevada taxa de prejuízo acadêmico. São menos frequentemente encontradas em ambientes clínicos, pois o encaminhamento para atenção médica é menos frequente. Não apresentam sintomas disruptivos, são caracterizadas por "estar no mundo da luà: são desorganizadas e em geral apresentam déficits cognitivos, como prejuízo em funções executivas, e atraso no desenvolvimento; podem apresentar déficit intelectual. b) predomínio de sintomas de hiperatividade-impulsividade: é o subtipo menos frequente em amostras clínicas e populacionais e parece ser prevalentes apenas na idade pré-escolar. c) combinado: é o subtipo mais frequentemente diagnosticado em ambiente clínico. Embora sintomas de conduta, oposição e desafio ocorram mais frequentemente em crianças com qualquer um dos subtipos de TDAH do que em crianças normais, o subtipo combinado está mais fortemente associado a estes comportamentos. Além dis-
to, apresenta um maior prejuízo no funcionamento glo bal quando comparado aos dois outros grupos. Estudos recentes, entretanto, têm questionado a validade de diferenciar o TDAH nesses três subtipos em função da baixa estabilidade ao longo do desenvolvimento, ausência de transmissão familiar e indiferenciação de resposta a medicação entre os subtipos. As apresentações fenotípicas diferentes parecem refletir mais as apresentações no momento da avaliação do que subtipos estáveis (Willcut, em revisão). Adicionalmente ao número de sintomas, o DSM-IV exige que estes causem prejuízos funcionais significativos. A avaliação do prejuízo gerado pelos sintomas deve ser realizada em função do potencial do indivíduo e do nível de esforço e sofrimento (seu e, muitas vezes, de sua família), necessário para a manutenção do ajustamento. Além disso, o DSM-IV exige a presença de sintomas causando prejuízo antes dos 7 anos de idade para o diagnóstico de TDAH. Entretanto, as evidências empíricas existentes não suportam este critério 29' 30, dificultando ainda mais o diagnóstico em adolescentes e adultos em que o viés de lembrança é maior3 1• As novas classificações diagnósticas devem estender esse critério até 12 anos e enfatizar mais a presença dos sintomas do que a verificação de prejuízo associado aos mesmos. Adicionalmente ao número de sintomas e ao prejuízo funcional associado, o DSM-IV exige que estes estejam presentes em dois ambientes distintos (critério de pervasidade). A avaliação de pervasividade deve preferencialmente ser realizada diretamente com pessoas que observam o indivíduo em diferentes ambientes como escola, atividades esportivas, trabalho, etc. Assim, serão colhidas informações de mais de um informante, frequentemente pais e professores. Cabe ao clínico agregar e julgar as informações obtidas. A concordância entre pais e professores é baixa, possivelmente por viéses inerentes às condições que ocupam. Os pais, por um lado, observam seus filhos desde o nascimento e fornecem importantes informações longitudinais sobre o seu desenvolvimento; além disso, os observam em diferentes ambientes. Por outro lado, os pais tendem a ter dificuldades em aceitar as limitações de seus filhos, minimizando os sintomas. Além disso, muitas vezes não conseguem identificar determinados comportamentos ou funcionamentos como disfuncionais, por não terem parâmetros de comparação e porque seus filhos apresentam tais características desde o início da vida. Os professores, por um lado, podem observar a mesma criança ao longo de alguns meses, com parâmetros objetivos de rendimento acadêmico, em comparação com um grande número de crianças no mesmo estágio do desenvolvimento; dessa forma, comportamentos disfuncionais tendem a ser mais facilmente identificados. Por outro lado, podem identificar hiperatividade ou desatenção em crianças que apresentam outras difi-
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Tabela I Critérios diagnósticos do TDAH segundo o DSM-IV26
A. Ou (1) ou (2) (1) seis (ou mais) dos seguintes sintomas de desatenção persistiram por pelo menos 6 meses, em grau mal-adaptativo e inconsistente com o nível de desenvolvimento: Desatenção: a) frequentemente deixa de prestar atenção a detalhes ou comete erros por descuido em atividades escolares, de trabalho ou outras b) com frequência tem dificuldades para manter a atenção em tarefas ou atividades lúdicas c) com frequência parece não escutar quando lhe dirigem a palavra d) com frequência não segue instruções e não termina seus deveres escolares, tarefas domésticas ou deveres profissionais (não devido a comportamento de oposição ou incapacidade de compreender instruções) e) com frequência tem dificuldade para organizar tarefas e atividades
f) com frequência evita, antipatiza ou reluta a envolver-se em tarefas que exijam esforço mental constante (como tarefas escolares ou deveres de casa) g) com frequência perde coisas necessárias para tarefas ou atividades (por ex., brinquedos, tarefas escolares, lápis, livros ou outros materiais) h) é facilmente distraído por estímulos alheios a tarefas i) com frequência apresenta esquecimento em atividades diárias (2) seis (ou mais) dos seguintes sintomas de hiperatividade- impulsividade persistiram por pelo menos 6 meses, em grau mal- adaptativo e inconsistente com o nível de desenvolvimento: Hiperatividade: a) frequentemente agita as mãos ou os pés ou se remexe na cadeira b) frequentemente abandona sua cadeira em sala de aula ou outras situações nas quais se espera que permaneça sentado c) frequentemente corre ou escala em demasia, em situações nas quais isto é inapropriado (em adolescentes e adultos, pode estar limitado a sensações subjetivas de inquietação) d) com frequência tem dificuldade para brincar ou se envolver silenciosamente em atividades de lazer e) está frequentemente "a mil" ou muitas vezes age como se estivesse "a todo vapor"
f) frequentemente fala em demasia Impulsividade: g) frequentemente dá respostas precipitadas antes de as perguntas terem sido completadas h) com frequência tem dificuldade para aguardar sua vez
i) frequentemente interrompe ou se mete em assuntos de outros (por ex., intromete-se em conversas ou brincadeiras) B. Alguns sintomas de hiperatividade- impulsividade ou desatenção que causaram prejuízo estavam presentes antes dos 7 anos de idade. C. Algum prejuízo causado pelos sintomas está presente em dois ou mais contextos (por ex., na escola [ou trabalho] e em casa). O. Deve haver claras evidências de prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, acadêmico ou ocupacional. E. Os sintomas não ocorrem exclusivamente durante o curso de um transtorno invasivo do desenvolvimento, esquizofrenia ou outro transtorno psicótico e não são melhor explicados por outro transtorno mental (p. ex., transtorno do humor, transtorno de ansiedade, transtorno dissociativo ou um transtorno da personalidade). TDAH: transtorno de déficit de atenção/ hiperatividade.
culdades, emocionais, cognitivas ou relacionadas à aprendizagem, ou ainda que não estão adaptadas ao ambiente escolar ou ao método de ensino-aprendizagem32 • Além da investigação de sintomas com pais e professores, o exame do estado mental da criança é obrigatório. Inicialmente, a avaliação objetiva da criança pode não acrescentar informações significativas para o diagnóstico de TDAH, em função do encontro com o médico coibir a
manifestação dos sintomas. Além disso, a criança frequentemente não tem condições cognitivas de identificá-los e relatá-los verbalmente. Por outro lado, a avaliação da criança é fundamental para descartar possíveis comorbidades e, à medida que a criança se familiariza com o profissional, é possível que passe a manifestar os sintomas no próprio ambiente médico. Na adolescência e idade adulta, é frequente que os indivíduos, pensando retrospectivamen-
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te em sua infância, não se lembrem de apresentar determinados sintomas. Investigando mais cuidadosamente, pode-se perceber que interpretam sintomas como comportamentos adaptativos ou minimizam suas repercussões. O relato de pais ou a investigação do histórico escolar, mesmo de adolescentes ou adultos, pode fornecer informações relevantes, assim como o relato de cônjuges ou de pessoas que convivem com o indivíduo32 • A entrevista clínica detalhada com os pais permite a avaliação minuciosa de cada sintoma, a descrição dos comportamentos, o entendimento da história do desenvolvimento da criança, sua adaptação à escola, relacionamen tos com pares e com a família, condições médicas e investigação de outros transtornos mentais que possam explicar os sintomas ou que possam coexistir com o TDAH. Em relação a avaliações complementares sugere-se: • Utilização de escalas objetivas de sintomas com os pais e escola: além de agregar informações para o processo diagnóstico, permite a avaliação objetiva da evolução dos sintomas com o tratamento. • Avaliação neurológica: é relevante quando há suspeita de patologias neurológicas subjacentes, que possam mimetizar o TDAH ou que ocorram em comorbidade, como epilepsia. Pode fornecer dados que corroboram o diagnóstico (como resultados do exame neurológico evolutivo, principalmente a prova de persistência motora). A literatura eletrofisiológica indica que a razão das frequências theta/beta no eletroencefalograma é relacionado ao TDAH, da mesma forma que aumento absoluto da atividade theta. Entretanto, o desempenho diagnóstico do eletroencefalograma não justifica a sua introdução na rotina clínica com este objetivo. Testagem Psicológica: a avaliação do potencial e do desempenho cognitivo por meio de instrumentos psicométricos validados, como a Escala de Avaliação da Inteligência de Wechsler (com diferentes versões dependendo da idade do indivíduo) é importante para o processo diagnóstico e para o plano de tratamento. A informação da presença de deficiência intelectual ou de superdotação não descarta ou confirma o diagnóstico mas, em conjunto com a apresentação clínica e a história do desenvolvimento, permite inferir se os sintomas apresentados são reacionais à dissonância entre o ambiente escolar e as potencialidades do indivíduo, por exemplo. Além disso, desempenhos em determinados subtestes podem fornecer dados objetivos da capacidade atencional, distratibilidade, corroborando a impressão clínica. Outros testes neuropsicológicos, como Continuous Performance Test (CPT-II), Wisconsin Cart-Sorting test, STROOP test, Go/No go test, assim como exames de neuroimagem, como tomografia computadorizada, ressonância magnética, tomografia computadorizada por emissão de fóton único, não apresentam propriedades diagnósticas que justifiquem a sua incorporação irrestrita à avaliação clínica de rotina32 •
Epidemiologia Prevalência Os estudos de prevalência do TDAH em amostras de crianças e adolescentes da comunidade apresentam estimativas variáveis, com taxas que variam de menos de 1% em amostras não representativas da população de diversos países, como Alemanha, Austrália, Índia, Emirados Árabes e Coreia até aproximadamente 20% em amostras também não representativas de países como Ucrânia, Colômbia, EUA e Brasil. 33 Entretanto, estimativas bastante discordantes também são encontradas em um mesmo país, como no Brasil, com taxas de 0,9%3 \ 13%35 e 26,8% no Rio de Janeiro,36 1,8% em São Paulo37, 5,8%38 e 17,9%39 em Porto Alegre. Por outro lado, taxas similares de aproximadamente 5% são detectadas mesmo em regiões com diferenças socioculturais importantes, como Suíça, Congo, Itália e Taiwan33. Uma revisão sistemática agregou 102 estudos de prevalência, conduzidos com um rigor metodológico mínimo, realizados em diversos países do mundo e computou uma estimativa de prevalência de 5,29% entre indivíduos menores de 18 anos de idade. 40 Entre crianças em idade escolar, a estimativa de prevalência foi de 6,48% e entre adolescentes, 2,74%. Estes resultados, conforme indicado por achados de uma análise de metarregressão, apresentam heterogeneidade significativa e são largamente influenciados por diferenças em três estratégias metodo lógicas adotadas: critérios diagnósticos, exigência de prejuízo funcional e fonte de informação40. Este estudo não detectou evidências consistentes de que a localização geográfica dos estudos, um indicador da cultura, explique a variabilidade entre os estudos40 • Na idade adulta, o primeiro inquérito populacional a avaliar o TDAH, o World Mental Health Survey Initiative, conduzido pela Organização Mundial de Saúde, investigou 60.463 adultos de 14 países. O TDAH foi incluindo na categoria de transtornos de controle de impulsos (bulimia, transtorno explosivo intermitente, TDAH, transtorno de conduta e transtorno oposicional desafiante), cuja prevalência variou de 0,3% na Itália e Alemanha a 6,8% nos EUAY Subsequentemente, a presença de sintomas de TDAH foi avaliada em uma amostra comunitária de 1.813 adultos pacientes de serviços médicos primários da Holan da. 42 A presença de sintomas de desatenção e hiperatividade esteve associada de forma significativa a prejuízo funcional. Indivíduos com quatro ou mais sintomas apresentaram prejuízo significativamente maior do que in divíduos com dois, um ou nenhum sintoma de TDAH. A prevalência de TDAH foi estimada em 1,0% (IC 95%, 0,6 1,6) utilizando um ponto de corte de seis sintomas e em 2,5% (IC 95%, 1,9-3,4) utilizando um ponto de corte de quatro sintomas, com a exigência dos três sintomas nucleares durante a infância42 •
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A avaliação do TDAH entre adultos de 18 a 44 anos de idade foi incluída no National Comorbidity Survey Replication (NCS-R) 43, que avaliou uma amostra representativa da população dos EUA. O TDAH foi investigado em subgrupos de indivíduos e por meio da prevalência nestes subgrupos, foi imputada uma taxa de prevalência para a amostra global de 4.4%.43 Uma estratégia similar à adotada pelo NCS-R foi empregada no estudo World Health Organization World Mental Health Survey Initiative para avaliar a prevalência do TDAH entre adultos em dez países (Bélgica, Colômbia, França, Alemanha, Itália, Líbano, México, Holanda, Espanha e EUA) 44 • Uma amostra de 11.422 indivíduos entre 18 e 44 anos de idade foi avaliada de forma retrospectiva para TDAH na infância, tendo os participantes respondido a uma questão única a respeito da continuidade dos sintomas na idade adulta. Baseado nos resultados de calibração clínica do desempenho dos critérios adotados pelo estudo na subamostra proveniente dos EUA, foi utilizada a estratégia de múltipla imputação para estimar a prevalência na amostra global. O resultado foi de 3,4% para a amostra global, com estimativas significativamente mais altas encontradas na França (7,3%) e mais baixas na Espanha (1,2%), Líbano (1,8%), México (1,9%) e Colômbia (1,9%) 44 . Apesar das diferenças, a utilização da imputação múltipla, que não foi testada, levanta dúvidas se diferenças significativas entre os países seriam encontradas caso fossem utilizados outros métodos diagnósticos. Uma revisão sistemática identificou oitos estudos que avaliaram a prevalência de TDAH em adultos e calculou, por meio de uma metanálise, uma estimativa agregada de 2,5% (IC 95% 2,1 -3,1).45 Sexo e idade dos indivíduos esteve associada às taxas de prevalência e análise de metaregressão indicou uma influência significativa de características metodológicas sobre as estimativas.
Curso dos sintomas Diversos estudos longitudinais com amostras clínicas foram realizados com o objetivo de descrever a histó ria natural do TDAH ao longo do desenvolvimento. Uma revisão destes estudos aponta para uma grande variabilidade das estimativas de persistência do diagnóstico ao longo do tempo, de 8 a 72% 46, sendo discutida a hipótese de que a variabilidade das estimativas seria secundária a artefatos metodológicos, como definição de persistência na idade adulta (sintomática ou sindrômica) e idade dos indivíduos na reavaliação47. Neste sentido, Biederman et al. 48 demonstraram a influência da definição de remissão sobre as taxas de persistência. Em uma amostra clínica de 128 meninos acompanhados durante 4 anos, a taxa de persistência do diagnóstico aos 18 anos de idade foi de 40%, enquanto 90% dos indivíduos permaneciam com prejuízo funcional neste momento. Estes achados indicaram que a redução dos
sintomas vista durante o desenvolvimento não necessariamente é acompanhada pelo desaparecimento do prejuízo clínico, desafiando o critério de pelo menos seis sintomas para o estabelecimento do diagnóstico em adultos. Mais ainda, os sintomas avaliados foram construídos para crianças e adolescentes, não contemplando, portanto, as particularidades desenvolvimentais. Assim, adultos podem apresentar outros sintomas que não aqueles contemplados na lista do DSM-IV, o que de fato é observado dinicamente49 . Com o intuito de definir a taxa de persistência do transtorno ao longo do tempo, Todd et al. 50 avaliaram uma amostra comunitária de crianças e adolescentes ao longo de 5 anos. O TDAH foi definido conforme os critérios do DSM-IV e conforme "subtipos derivados da população': por meio de análise de classes latentes. A estabilidade dos subtipos do TDAH variou de 11 a 24%, conforme os critérios do DSM -IV, e de 14 a 35%, conforme os subtipos derivados da população. Biederman et al. 51avaliaram uma amostra clínica de indivíduos 10 anos após o diagnóstico inicial de TDAH, com idade média de 21 anos. Neste in tervalo de tempo, 58% dos indivíduos apresentaram critérios para o diagnóstico atual de TDAH pleno ou sublimiar (4 ou 5 sintomas). Faraone et al.5 2 conduziram uma revisão sistemática e metanálise e testou a influência da definição de persistência do TDAH sobre a sua estimativa. Os autores encontraram uma taxa de persistência de 15% para o diagnóstico pleno e de 40-60% quando casos de TDAH em remissão parcial eram incluídos. Em análises retrospectivas do NCS-R, a taxa de persistência do TDAH da infância à idade adulta foi estimada em 36,3%. 53 Em relação a preditores de persistência, maior gravidade dos sintomas na infância e presença de tratamento do transtorno neste período da vida estive ram associadas a continuidade dos sintomas. Indivíduos com sintomas combinados na infância tiveram maior risco de persistência do TDAH em comparação àqueles com sintomas isolados de um grupo ou de outro. 53 A persistência do transtorno está associada a diversos desfechos negativos ao longo do desenvolvimento, como menor aquisição educacional, 54 maior insatisfação com o casamento e problemas conjugais, maiores taxas de divórcio e de dificuldades na criação dos filhos, 55 baixo rendimento laboral, desemprego, colocação em posições aquém de suas potencialidades, 54·56 envolvimento em acidentes de trânsito,57 além do risco aumentado para uma série de comorbidades58.
Etiologia A etiologia do TDAH é entendida como multifatorial, em que diferentes condições ambientais, genéticas e biológicas concorrem para elevar o risco do transtorno. Não existem até o momento condições identificadas como suficientes ou necessárias para o surgimento do transtor-
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no. As evidências atuais indicam a existência de mecanismos psicopatológicos heterogêneos que levam ao TDAH, o que possivelmente relaciona-se à heterogeneidade do transtorno em diferentes níveis. Estudos de famílias e de gêmeos estimam o coeficiente de herdabilidade (isto é, a proporção da variância do traço que pode ser explicada por fatores genéticos) do TDAH em aproximadamente 76%59 . Assim, um grande investimento vem sendo realizado na identificação de fatores de risco genéticos para o transtorno por meio de estudos de genética molecular. Dezenas de estudos de associação de genes candidatos foram realizados, investigando principalmente genes relacionados aos sistemas catecolaminérgicos, uma vez que a disfunção deste sistema é um dos substratos neurobiológicos mais consistentemente associados ao transtorno 59 • Além de genes envolvidos nos sistemas catecolaminérgicos, genes serotoninérgicos, nicotínicos, relacionados ao neurodesen volvimento, entre outros, também foram investigados. Metanálises destes estudos indicam a associação significativa de polimorfismos nos genes DATl, DRD4, DRDS, SHTT, H TRlB e SNAP25 com o transtorno. 60 O risco que a variante de risco isolada de cada polimorfismo confere para o TDAH é pequeno, com razões de chance cujos intervalos de confiança não ultrapassam 1,6. Estes resultados sugerem a hipótese de variantes comuns - doenças comuns, ou seja, que o TDAH surja a partir do efeito em conjunto de variantes de risco de múltiplos polimorfismos, todos eles com um tamanho de efeito pequeno ou no máximo moderado61 . Entretanto, assumindo um modelo aditivo de contribuição genética, estima-se que o conjunto de variantes até então associados ao TDAH explique apenas cerca de 4% da herdabilidade genética (Kuntsi, 2006). O coeficiente de herdabilidade residual para o TDAH não explicado pelos polimorfismos já identificados seria explicado por polimorfismos "anônimos", cuja identificação não foi possível devido às limitações inerentes a estudos genéticos de associação. Com o surgimento de estudos de associação de genoma completo (genome wide association studies ou GWAs), tornou-se possível, em vez de avaliar a associação de um polimorfismo único com a doença, como fazem os estudos de genes candidatos, avaliar centenas ou milhares de variantes genéticas ao mesmo tempo, comparando indivíduos com o transtorno em relação a controles saudáveis. O surgimento desta tecnologia representou a possibilidade de testar a hipótese de variantes comuns - doenças comuns. Ao contrário do enfoque de estudos de genes candidatos, esta abordagem não é guiada por hipóteses e investiga centenas de milhares a um milhão de polimorfismos de nucleotídeos únicos (SNPs) em milhares de pessoas simultaneamente (Cichon, 2009). Até o momento, apenas cinco estudos de GWAs para o TDAH foram realizados. Dois deles referem-se a uma
mesma amostra e diferem entre si na operacionalização do transtorno (de forma quantitativa62 ou categórica63) e outros três avaliaram amostras independentes. 64-66 Os resultados dos estudos individuais não identificaram polimorfismos associados ao TDAH a partir do critério de significância restrito, imposto em função de múltiplos testes realizados. As variantes associadas ao TDAH por meio de estudos de genes candidatos não foram detectadas por estudos de GWAs e h á sobreposição limitada dos resultados entre os cinco estudos. Uma metanálise agregando 4 estudos de GWAs, com tamanho amostrai final de 2.064 trios, 896 casos e 2.455 controles, não detectou associações significativas. Considerando que o TDAH é um transtorno com alto coeficiente de herdabilidade, os resultados negativos podem sugerir que o efeito devariantes genéticas de risco deve ser muito pequeno ou que outros tipos de variantes, como variantes raras, podem explicar uma grande proporção da herdabilidadé7 • Buscando testar hipótese alternativas à hipótese de variantes comuns - doenças comuns, têm sido estudados modelos etiológicos complementares, como o efeito da interação entre fatores genéticos e ambientais e o efeito de variações no número de cópias (copy number variations, CNVs). A partir do modelo de interação gene-ambiente, o efeito de variantes genéticas sobre o desenvolvimento do TDAH pode ocorrer de forma indireta, alterando a suscetibilidade dos indivíduos ao efeito de estressores ambientais e colocando-os em maior ou menor risco de apresentar o transtorno. Nestas condições, diz-se que há interação gene-ambiente, contrapondo-se a noção tradicional de que genes e ambiente agiriam apenas de forma aditiva, não interativa68 . A presença de interação gene-ambiente para o desenvolvimento de transtornos mentais é conceitualmente esperada a partir da perspectiva da psicopatologia desenvolvimental69 , tendo sido consistentemente identificada em transtornos como depressão, conduta e psicosé8. Aproximadamente duas dezenas de estudos foram publicados até o momento investigando a interação entre fatores genéticos e ambientais e sintomas ou diagnóstico de TDAH70. Entre os estudos realizados, predomina o desenho transversal com amostras clínicas ou com populações restritas. Apenas uma amostra comunitária e representativa da população foi acompanhada por um estudo longitudinaF 1,72 • Exposição intra-útero à tabaco é o fator de risco ambiental mais frequentemente avaliado e variantes nos genes DATl e DRD4 são os fatores de risco genético mais frequentemente avaliados. Os estudos com maior qualidade metodológica (quanto à representatividade amostrai, qualidade da medida de risco ambiental e do desfecho) são aqueles que apontam para interação entre um conjunto de polimorfismos no DATl e exposição intra-útero ao álcool (replicada em uma segunda amostra de outra populaçãof 3, entre uma variante no DATl e adversidade familiar (medida por meio da escala de adver-
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sidade familiar de Rutter) e interação entre dois polimorfismos (no DATl e DRD4) e exposição intra-útero à nicotina.71 Um estudo único de GWAs avaliou a emoção expressa materna como um fator moderador do efeito de polimorfismos sobre o risco de TDAH e detectou interação quanto à gravidade do TDAH e a presença de transtorno de conduta comórbido? 4 Além do modelo de interação gene-ambiente, estuda-se também atualmente a hipótese de que deleções ou duplicações do DNA de tamanho variável, chamadas de variações no número de cópias (copy number variations, CNVs), seriam importantes para o desenvolvimento do TDAH. Estas duplicações ou deleções apresentam extensão variável e são encontradas com frequência na população. São distintas entre famílias e por isso, associadas a grande variabilidade na apresentação clínica, elevando o risco para uma série de transtornos do neurodesenvolvimento75 , como autismo e esquizofrenia75 . Dois estudos até o momento avaliaram o efeito de CNVs no TDAH. O primeiro investigou CNVs de tamanhos variáveis e não encontrou associação com o transtorno. 76 O segundo estudo avaliou CNVs com tamanho igual ou maior a 500 kb e identificou 57 CNVs grandes e raros, incluindo tanto deleções como duplicações, com uma frequência aumentada em crianças com TDAH em relação a contro les. A frequência foi particularmente elevada em crianças com TDAH e deficiência intelectual. Além disso, foi detectada duplicações mais frequentes no cromossomo 16p.13.11, uma região já implicada em outros transtornos do neurodesenvolvimento, como esquizofrenia?7 Além de investigações centradas no efeito de fatores genéticos sobre a etiologia do TDAH, há inúmeros estudos que avaliaram o efeito de fatores de risco ambientais sobre o desenvolvimento do transtorno 78 . Para que as associações identificadas pelos estudos sejam interpretadas como causais, é importante a existência de hipóteses conceituais subjacentes e que características metodológicas sejam satisfeitas. Entre as características metodológicas necessárias, destaca-se a relação temporal entre o fator de risco e o desfecho, demonstrada por estudos longitudinais, e o controle de potenciais variáveis de confusão, principalmente história familiar ou parenta! de TDAH. Neste sentido há condições ambientais cujos efeitos fo ram avaliados por estudos longitudinais, com diferentes níveis de rigor metodológico, constituindo-se em testes adequados da avaliação de causalidade. Entre as condições com evidências conclusivas de associação com relação temporal, destaca-se prematuridade79. Entre as condições com evidências limitadas ou sugestivas de associação com relação temporal, destaca-se exposição intra-útero ao tabaco80,81 e baixo peso ao nascimento82,83. Há evidências inconclusivas ou insuficentes relacionadas à exposição intra-útero ao álcool81 e adro gas8\ condições psicológicas maternas durante a gestação81, complicações no período pré e perinatal85, trau-
matismo craniano gravé6, duração do aleitamento materno87, privação grave precocé8 e fatores familiares psicossociais81. Há evidências limitadas ou sugestivas de ausência de associação entre exposição intra-útero à cafeína81 e nascimento em estações do ano específicas 89 . Entre estas condições com evidências insuficientes para demonstrar relação causal, destacam-se exposição a aditivos alimentares e dieta90, toxinas ambientais como chumbo ou poluentes orgânicos91 '92, exposição à televisão93 e abuso na infância94. Em resumo, as evidências disponíveis, apontam para diversos potencias agentes causais, tanto de natureza ambiental como genética, para o desenvolvimento do TDAH. Nenhum dos fatores de risco identificados até o momento parece ser necessário para o desenvolvimento do TDAH, bem como se mostram inespecíficos, já que associam-se com outros transtornos mentais e alterações do neurodesenvolvimento. Ainda, as magnitudes de associação detectadas são pequenas. Estas evidências podem ser entendidas a partir de diferentes perspectivas. Uma perspectiva seria de que a maior parte dos casos de TDAH é causado por múltiplos fatores de risco que, uma vez somados e alcançando um determinado limiar, desencadearia o transtorno. Outra perspectiva seria de que existem múltiplas vias causais, independentes entre elas, e que os diferentes agentes causais se relacionariam a diferentes vias, cada uma delas explicando uma pequena proporção de todos os casos de TDAH. É possível que ambas as perspectivas sejam corretas, ou seja, de que existam agentes causais suficientes (mas não necessários) e que outros não sejam suficientes ou necessários, mas que quando associados aumentem o risco para o transtorno. Os dados atuais não são capazes de distinguir entre ambas perspectivas. Considerando a diversidade de fatores ambientais e genéticos relacionados à etiologia do TDAH e a limitada magnitude de efeito de cada um deles, futuros estudos que busquem esclarecer vias causais necessitarão de grandes tamanhos amostrais. Além disso, desenhos inovadores e métodos analíticos robustos podem aumentar a possibilidade da detecção de efeitos relativamente pequenos.
Substrato neuropsicológico As disfunções executivas e na memória de trabalho foram amplamente estudadas em indivíduos com TDAH, sendo que prejuízos nestas funções caracterizam o modelo cognitivo inicialmente proposto como subjacente ao transtorno 95 . Memória de trabalho é um sistema de pro cessos e mecanismos que permite que informações relevantes a uma tarefa sejam temporariamente mantidas em um estado ativo para que sejam mais adiante processadas ou lembradas, a serviço de um processo cognitivo complexo. Este registro interno, que é continuamente atualizado por novas informações relevantes, controla a atenção, guia a tomada de decisões e o comportamento mo-
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mento a momento96 • Estas funções são mediadas pela via mesocortical do sistema dopaminérgico, relacionadas a centros de controle cortical, como o córtex pré-frontal dorsolateral97. Metanálises que avaliam diferentes funções executivas encontram associações entre TDAH e disfunções em diferentes domínios, como planejamento, vigilância, mudança de atenção frente a novas demandas, memória de trabalho verbal e visuo-espacial, particularmente a sua manipulação 96·98 . Entre as diversas funções executivas, o déficit central relacionado ao TDAH seria o prejuízo na resposta inibitória, necessária para a regulação de todos os comportamentos e processos cognitivos95·98. O controle da resposta inibitória é comumente avaliada por tarefas stop-signal e Go/No-Go, que recrutam o córtex pré-frontal inferior direito. Indivíduos com TDAH apresentam respostas mais lentas e variadas na instrução para ação (go) e tempo de reação significativamente mais longo à instrução de parada (no-go). 99 De fato, um dos achados mais consistentes em indivíduos com TDAH é a variabilidade no tempo de reação em tarefas que avaliam o tempo de resposta 96, que reflete alta frequência de respostas lentas assim como alta frequência de respostas rápidas antecipatórias. Há evidências de déficits na regulação da resposta em familiares de indivíduos com TDAH não afetados96 • Uma importante limitação dos achados envolvendo disfunções executivas, do controle inibitório e de memória de trabalho é a falta de controle para processos cognitivos ou fisiológicos anteriores a estas funções96 . Além disso, esses déficits parecem não ser específicos ao TDAH. Há achados contraditórios na literatura e déficits nestas funções que não são identificados em todos os indivíduos com TDAH96 • Em um estudo agregando três amostras de crianças com TDAH, comparados com controles em respeito a cinco medidas de funções executivas, entre 16 e 51% das crianças com transtorno eram classificadas como apresentando prejuízo nestas funções 100. Apenas 31% das crianças com TDAH (versus 9% dos controles) apresentavam prejuízos em três ou mais medidas e 10% apresentavam prejuízos nas 5 medidas 100. Em contraste, 21% das crianças com TDAH (versus 53% dos controles) não apresentavam prejuízos em qualquer uma das medidas 100 . Este estudo reforça a hipótese de que, apesar do modelo de prejuízo em funções executivas e controle inibitório ser consistentemente identificado no TDAH, este não seria o único substrato cognitivo subjacente ao transtorno 96·97·101 . Um modelo alternativo às teorias cognitivas chamadas "frias" relacionadas ao TDAH, envolve disfunções motivacionais, que seriam "quentes" em relação às primeiras 102. Este modelo propõe que o TDAH seria o desfecho de alterações neurobiológicas relacionadas ao poder e eficiência da sinalização de contingências da ação presente e recompensas futuras. Estas alterações levariam a uma redução do controle exercido pela recompensa fu tura sobre o comportamento atual, emergindo um com-
portamento caracterizado por aversão à demora (delay aversion) 103 • Aversão à demora refere -se a uma reação emocional negativa à imposição em aguardar, manifestada por uma tendência em selecionar uma gratificação imediata em detrimento a aguardar por uma gratificação maior, relacionando -se ao surgimento de impulsividade, desatenção e hiperatividade e uma série de desdobramentos cognitivos 103 . Subjacentes a estas alterações seriam encontradas anormalidades em vias dopaminérgicas mesolímbicas, relacionadas ao núcleo accumbens, com projeções do córtex orbitofrontaP03 . Os dois modelos neuropsicológicos relacionados ao TDAH, cognitivo e motivacional ou relacionado a funções executivas "frias" e "quentes" 97, foram investigados em um mesmo estudo em que crianças com TDAH subtipo combinado foram avaliadas em relação à resposta inibitória e aversão à demora 104. Os resultados indicaram não haver associação entre prejuízos inibitórios e aversão à demora, sugerindo que ambas são características independentes, com reduzida sobreposição104. Adicionalmente, o desempenho em ambas as tarefas esteve associado de forma independente e robusta com o TDAH. Em conjunto, ambas as medidas classificaram corretamente cerca de 90% das crianças com o transtorno104. Estes achados foram replicados em crianças pré-escolares105. Estas evidências embasaram a proposta de um modelo de dupla via (dual pathway model) sobre a psicopatofisiologia do TDAH 106 . Esta hipótese é fundamentada na ideia de que alterações no circuito de funções executivas, modulado pelo sistema dopaminérgico mesocortical com projeções do córtex pré-frontal dorsolateral, e de gratificação, modulado pelo sistema dopaminérgico mesolímbico com projeções do córtex órbito-medial, constituem-se em bases neuropsicológicas mais ou menos discretas para processos psicológicos dissociáveis96·103 . Estas alterações levam, respectivamente, a déficits executivos ou inibitórios, caracterizados como processos "frios': em contraste com aspectos afetivos "quentes", como aversão à demora. A partir deste esquema, funções executivas "frias" seriam elicitadas por problemas relativamente abstratos e descontextualizados, como teste Stroop, Go/No-Go, desempenho continuado e tarefas de memória de trabalho. Funções executivas "quentes" seriam elicitadas para problemas caracterizados por alto envolvimento afetivo ou que exija avaliação flexível do significado afetivo do estímulo 97. Neste sentido, a heterogeneidade clínica do TDAH (predomínio de desatenção ou hiperatividade/impulsividade, ou a combinação de ambos) refletiria o predomínio de prejuízos em funções "frias", "quentes" ou a combinação de ambas. A hipótese de modelo de via dupla, por sua vez, não encerra todas as possibilidades de vias psicopatológicas e processos subjacentes ao TDAH97 . De fato, a partir do desempenho neuropsicológico de indivíduos com TDAH em outros testes, foram propostos outros modelos cognitivos além de disfunções executivas, disfunção do con-
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trole inibitório e aversão à demora. Destacam-se o mo delo energético, que sugere que prejuízos em tarefas exigindo esforço para controlar atenção e processos executivos poderia ser, em parte, a deficiências na ativação, prontidão e esforço que controlam a alocação de recursos cognitivos. Um dos potenciais índices de dificuldades no estado regulatório seria a variabilidade no tempo de reação 107 . Outro modelo cognitivo enfatiza déficits no processamento temporal, traduzido por prejuízos em discriminar e reproduzir duração temporal, também consistentemente detectado em indivíduos com TDAH 108.
Neurobiologia Em função dos prejuízos cognitivos de funções executivas e controle inibitório observados em indivíduos com TDAH e das similaridades entre estes e pessoas com acometimento do lobo frontal, foi proposta a hipótese de que estaria subjacente ao transtorno uma desordem fron to-estriatal97. Esta desordem, caracterizada pelas alterações nas funções executivas, seria representada do ponto de vista neuroanatomico por alterações no circuito tálamo-córtico-estriatal97 . Projeções originadas do córtex pré-frontal, especificamente da região dorsolateral, para o neoestriado (especificamente o núcleo caudado) trafegam por meio de vias diretas e indiretas dos gânglios da base por meio do tálamo e retornando ao córtex pré-frontal. Este sistema tem fortes conexões com regiões mais posteriores, incluindo o córtex motor, o córtex parietal e o cerebelo. A atividade neste circuito é mediada por glutamato e GABA e modulada pelas catecolaminas dopamina e norepinefrina109 . Neste sentido, há evidências que sugerem uma desregulação catecolaminérgica no transtorno. Primeiro, os sintomas do TDAH são reduzidos por agonistas dopaminérgicos e noradrenérgicos, como metilfenidato, anfetamina e atomoxetina. Segundo, há inúmeros genes associados ao sistema catecolaminérgico que elevam o risco do transtorno. Terceiro, modelos animais em que os genes catecolaminérgicos são silenciados e com desafios farmacológicos produzem sintomas de TDAH. Quarto, noradrenalina e dopamina, embora amplamente distribuídas no cérebro, estão presente de forma importante nas regiões implicadas em déficits cognitivos do TDAH. Além disso, estudos de PET mostraram aumento da densidade de transportadores de dopamina em indivíduos com TDAH, um achado com subsequentes não replicações. Apesar das evidências relacionadas à disfunção do paminérgica, relações de causa e efeito são difíceis de serem demonstradas e há interações complexas com sistema noradrenérgico, assim como com outros neurotransmissores109-111. Além do foco na disfunção fronto -estriatal, diversos estudos apontam para o envolvimento de outras funções neuropsicológicas, condizentes com alterações em outras
áreas cerebrais, como lobos temporal, occipital e parietal, corpo caloso, amígdala e cerebelo. De forma geral, entende-se que disfunções fronto -estriatal estão associadas ao TDAH, mas esta não parece ser a disfunção única do transtorno, necessária para a sua ocorrência 111 . O estudo da estrutura e funcionamento cerebral de indivíduos com TDAH avançou de forma importante com o desenvolvimento tecnológico, particularmente com a ressonância magnética (RM). Estudos neuroanatômicos encontram uma redução de cerca de 3 a 4% do volume cerebral total de indivíduos com TDAH, sendo afetados todos os lobos cerebrais, o cerebelo e ambas as substâncias branca e cinzenta 112 . Uma metanálise indicou que as regiões mais frequentemente avaliadas e cujos resultados mostram diferenças maiores entre indivíduos com TDAH e controles são cerebelo, corpo caloso, volume cerebral total e direito e caudato direito 113 . Familiares de primeiro grau de indivíduos com TDAH sem o transtorno também demonstraram diminuição do volume cerebral 114. É importante notar que as evidências indicam que a redução dos volumes cerebrais e cerebelares não pode ser atribuída ao tratamento medicamentoso. 115 Estudos da estrutura cerebral de indivíduos com TDAH indicam alterações do núcleo caudado, como aumento e redução de volume 115' 116 . Uma metanálise de estudos de RM estrutural indicou significância estatística entre estudos apenas para redução de volume do putâmen/globo pálido direito 117 • Adicionalmente, há evidências que apontam para alterações corticais na região pré-frontal em indivíduos com TDAH 116. Diversos estudos têm investigado estruturas subcorticais, como o hipocampo e a amígdala, e há evidências de aumento da cabeça do hipocampo (correlacionado a uma menor gravidade de sintomas) e irregularidades no formato da amígdala 115. Além do interesse em estruturas corticais e sub-corticais, o cerebelo também vem recebendo considerável atenção 118 • Um estudo longitudinal demonstrou a ocorrência de uma diminuição não progressiva do volume do vermis cerebelar superior em indivíduos com TDAH, a qual não esteve correlacionada com o desfecho clínico 119. Também foi encontrada uma redução progressiva do vo lume dos lobos cerebelares posteriores inferiores entre aqueles que apresentaram pior desfecho 119 . Um avanço importante no entendimento da neurobiologia do TDAH ocorreu a partir do estudo da evolução da maturação cortical em crianças e adolescentes com o transtorno, possível por meio da realização de exames seriados de RM 120 . O estudo comparou a maturação de diferentes regiões cerebrais, avaliada por meio da espessura cortical, de 223 crianças com TDAH e 223 controles por meio de 880 exames. Os pesquisadores demonstraram que indivíduos com TDAH não apresentam um desvio no desenvolvimento cerebral típico, com as áreas sensitivas e motoras primárias atingindo o pico de espessura cortical antes das áreas de associação superiores em
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ambos os grupos, mas sim um atraso global para alcançar o pico de espessura cortical. Crianças com desenvolvimento típico alcançam o pico da espessura cortical global em média aos 7,5 anos, ao passo que crianças com TDAH o alcançam com idade média de 10,5 anos. Este atraso é mais proeminente em regiões importantes para o controle da atenção, particularmente no córtex pré-frontal lateral, e crianças com TDAH alcançam o pico maturacional mais precocemente em áreas envolvidas no desenvolvimento motor 120 . Outro estudo longitudinal avaliou a relação entre a espessura cortical e desfechos clínicos de indivíduos com TDAH. Foi evidenciada redução global da espessura cortical em pacientes em relação aos controles; entre aqueles com melhor desfecho, foi detectada uma normalização da espessura do córtex parietal direito 121 . No que diz respeito ao impacto de psicoestimulantes sobre a estrutura cerebral, um estudo longitudinal comparou a espessura cortical de 43 adolescentes TDAH que fizeram uso contínuo de psicoestimulantes contra 19 que não fizeram uso da medicação e 24 controles 122 • Foi encontrada uma maior redução da espessura cortical entre aqueles que não fizeram uso de psicoestimulantes em relação aos que fizeram uso contínuo da medicação na região mediai da faixa motora direita, no giro frontal mediai/inferior esquerdo e na região parieto-occipital direita. Quando comparados com adolescentes com desenvolvimento típico, aqueles que não fizeram uso de estimulantes apresentaram redução de espessura cortical maior do que a esperada para a idade. Os estudos utilizando exames de ressonância magnética funcional (RMf) têm buscado elucidar mecanismos neurais subjacentes aos prejuízos comportamentais e executivos observados em indivíduos com TDAH 118, 123 • Estes estudos comumente utilizam paradigmas que envolvem a execução de tarefas, sendo possível então identificar as regiões que são engajadas durante a realização destas. Alternativamente, estudos de RMf podem avaliar o funcionamento cerebral em estado de descanso (resting state), sem que os indivíduos estejam realizando tarefas, e assim oferecem parâmetros neurofisiológicos independentes de processos cognitivos 124 • Uma metanálise de estudos de RMf indicou que indivíduos TDAH apresentam hipoativação de áreas dos córtices pré-frontal ventral e dorsolateral esquerdos, córtex cingulado anterior esquerdo, lobos parietais, tálamo direito, giro occipital médio esquerdo e claustrum (ínsula e striatum) direito 125 • Estes resultados dão suporte à teoria relacionada à disfunção frontal no TDAH, apontando para disfunções do circuito fronto-estriatallll. Estudos de RMf, apesar de grande ênfase direcionada a disfunções em redes fronto-estriatais no TDAH, têm reconhecido o envolvimento de áreas parietais e tempo rais em função executivas e controle atencional 115 • Com relação às regiões parietais, os estudos que não envolvem
execução de tarefas têm relatado consistentemente uma hipeperfusão de áreas somatossensoriais, o que poderia levar a um aumento da excitação sensorial 115 • Já os estudos que envolvem execução de tarefas sugerem que alterações da atividade parietal estão presentes em diversas funções relacionadas à atenção, como monitoramento de desempenho de tarefas, realocação da atenção, atenção visuoespacial e mapeamento motor 115 • Entretanto, também existem evidências de que estruturas parietais são recrutadas de maneira compensatória em resposta a déficits em regiões frontais e do cíngulo anterior 126 • Com relação às regiões temporais, estudos que não envolvem execução de tarefas relatam redução de perfusão no giro temporal médio e aumento de perfusão em regiões occiptotemporais 118 • Em estudos que envolvem execução de tarefas, os achados apontam para uma diminuição da capacidade de recrutamento destas regiões para processamento linguístico, alocação da atenção a estímulos raros e processamento cognitivo-emocional complexo. Por outro lado, estudos também sugerem que regiões temporais podem ser recrutadas para compensar déficits de função e desempenho cerebraP 26 • O papel do circuito estriatal ventral mesolímbico também tem despertado interesse, particularmente em função de déficits relacionados aos processos de recompensa e reforço no transtorno 115 . Há evidências de hipoativação da região estriatal ventral em indivíduos com TDAH, que apresentaria correlação inversa com sintomas de impulsividade 115 • Poucos estudos com RMf estiveram voltados para o envolvimento do cerebelo na patofisiologia do TDAH, mas há evidências de que disfunções no circuito frontocerebelar estão ligadas a prejuízo na previsão de eventos futuros, o que pode estar relacionado a uma incapacidade de preparo de respostas apro priadas e de alterações comportamentais em resposta a contingências ambientais 115, 118 .
Tratamento O tratamento do TDAH é multimodal, ou seja, inclui múltiplas abordagens, cada uma delas com objetivos particulares, focadas em aspectos específicos do transtorno e do quadro clínico, como sintomas, padrões cogniti. . , vos ou comportamenta1s, preJmzos e repercussoes, comorbidades, psicopatologia parenta! e situações familiares ou escolares associadas. As abordagens devem ser planejadas e implementadas de forma integrada, seguindo um plano de tratamento. O plano de tratamento, que deve ser específico para cada indivíduo, é traçado pelo médico especializado a partir do diagnóstico e deve ter uma perspectiva longitudinal, levando em consideração a cronicidade do TDAH. Entretanto, deve ser constantemente revisto em função da resposta do indivíduo às abordagens implementadas e de novas situações que surgem ao longo do tempo 32 .
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A psicoeducação é parte integral do tratamento de todas as condições médicas e deve ser a primeira abordagem implementada seguindo a comunicação do diagnóstico. Apesar de ser um elemento inicial no plano de tratamento, componentes psicoeducativos poderão estar presentes ao longo de todo o tratamento. O médico deve fornecer informações objetivas e precisas ao paciente e à família, embasado em evidências científicas, por meio de linguagem de fácil entendimento. Os objetivos da psicoeducação são: a) garantir que o paciente e a família entenda o que éoTDAH b) envolver o paciente e a família no planejamento terapêutico e facilitar a sua adesão c) identificar as potenciais barreiras para a implementação do tratamento. Além disso, a psicoeducação para o TDAH deve envolver a escola. A psicoeducação é um elemento essencial para o estabelecimento da relação terapêutica, que será a base sobre a qual o tratamento se desenvolverá. Além do componente educativo, faz parte da psicoeducação a atenção às reações do indivíduo e da família frente ao diagnóstico, às expectativas em relação ao tratamento e à evolução do transtorno. Terapia comportamental e tratamento medicamentoso são as duas modalidades de tratamento que mostraram-se eficazes para o tratamento dos sintomas nucleares do TDAH. Portanto, em um plano de tratamento, pelo menos uma destas duas modalidades deve necessariamente estar presente. A terapia comportamental ou manejo de contingências é baseada na teoria do aprendizado e inclui princípios de condicionamento clássico, condicionamento operante, teoria cognitivo-comportamental e teoria do aprendizado social. Estes princípios vêm sendo utilizados com sucesso para tratar problemas de comportamento externalizante na infância há muitas décadas. Uma metanálise agregou 174 estudos de diferentes modalidades de terapia comportamental e estimou o tamanho de efeito entre 0,83 e 3,78, variando conforme o desenho do estudo, para o tratamento do TDAH 127 • Muitos enfoques compreendem a descrição específica dos problemas, o estabelecimento das contingências que os afetam e o monitoramento sobre a sua ocorrência. Dessa forma, as consequências dos comportamentos indesejados são manipuladas para aumentar o comportamento desejado 128 • Entre as técnicas utilizadas nesta modalidade psicoterápica, a economia de fichas com o uso de gratificações ou reforçadores comportamentais é central. Os reforçadores têm o objetivo de reduzir os comportamentos indesejados e alcançar mudanças desejadas e podem incluir ganhos tangíveis, como tempo extra para brincadeiras ou meios para obter itens de valor, ou aprovação social. Uma
atenção particular deve ser dada à rapidez com que as gratificações são oferecidas ou os custos aos comportamentos-problema. Além disso, a gratificação deve variar, garantindo a novidade e o interesse nestas. Uma segunda técnica envolve consequências negativas, que tem um lugar especial para coibir de forma imediata um comportamento disruptivo ou ofensivo. Uma terceira técnica é o "tempo fora do reforço social" (time out from social reinforcement), útil quando o comportamento indesejado é reforçado pela atenção de outros ou quando ocorre na interação. Envolve colocar a criança fora do contato social, quando espera-se que fique cooperativa, por um tempo variável, conforme a sua idade. É fundamental que fique claro às crianças qual comportamento foi responsável pelo reforço positivo ou negativo 128 • O componente cognitivo pode ser adicionado à intervenção comportamental com o objetivo de auxiliar o paciente a entender as conexões entre pensamentos, sentimentos e comportamentos e como estes podem resultar em consequências inapropriadas ou prejudiciais. É ensinado ao paciente como alterar os pensamentos, sentimentos e comportamentos, por meio de abordagens como autoinstrução, resolução de problemas, registro de pensamentos disfuncionais, automonitoramento e autoavaliação. A terapia envolve auxiliar o indivíduo a desenvolver uma forma mais planejada e reflexiva de pensar e comportar-se. Ela tem maiores evidências de eficácia na idade adulta e em complemento ao tratamento medicamentoso (ver o estudo recente no JAMA do Safren). Procedimentos de modificação comportamental devem envolver pais e professores, de forma que sejam programadas contingências comportamentais em casa, na escola e em ambientes de recreação. Neste sentido, treinamento parenta! é uma intervenção comportamental baseada em teoria do aprendizado, que objetiva ensinar aos pais como utilizar técnicas comportamentais com seu filho. A intervenção incorpora também questões como crenças, emoções, questões sociais mais amplas e barreiras para o sucesso da parentagem, como sentimentos de incompetência, depressão, isolamento social e dificuldades maritais. A intervenção busca ensinar princípios do manejo comportamental de crianças, aumentar a competência parental e a confiança e melhorar a relação en tre pais e filhos. Há atenção especial à comunicação e atenção positiva ao desenvolvimento das crianças. Estes pro gramas são estruturados e seguem um programa ao longo de algumas semanas, geralmente são conduzidos em grupo, mas podem ser modificados para um formato individual. O treinamento parenta! é uma intervenção eficaz para o tratamento dos sintomas nucleares do TDAH, embora seja dependente da adesão dos pais ao treinamento e da continuidade da sua implementação 128 . O tratamento farmacológico do TDAH tem como objetivos, além da redução dos sintomas, uma duração de efeito consistente ao longo do dia, com mínimos efei-
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tos adversos e satisfação do paciente, facilitando a adesão. Diversas medicações, com diferentes formulações, tiveram sua eficácia e segurança demonstrada para o tratamento do TDAH, e estas podem ser agrupadas em medicações estimulantes e não estimulantes. As medicações estimulantes são utilizadas há muitas décadas para o tratamento do TDAH e licenciadas em muitos países com este objetivo. Entre elas, destacamse o metilfenidato, dexmetilfenidato, dextroanfetamina, sais mistos de anfetamina e lisdexamfetamina, em diferentes formulações. A eficácia e tolerabilidade destas medicações foram extensivamente avaliadas por diversos ensaios clínicos randomizados, agregados em revisões sistemáticas e metanálises 111' 129- 133 • Os ensaios clínicos são consistentes em demonstrar a eficácia destas medicações em comparação ao placebo, com tamanhos de efeito variando entre 0,8 e 1,1% e resposta clínica favorável inicial em aproximadamente 70% dos casos. As diretrizes de tratamento para o TDAH da Academia Americana de Psiquiatria da Infância e Adolescência e da Academia Americana de Pediatria apontam os estimulantes como as medicações para as quais há evidências mais consistentes acerca de sua eficácia e segurança no tratamento de crianças com TDAH e as recomendam como primeira escolha de intervenção medicamentosa32' 134 • No Brasil, estão disponíveis metilfenidato e lidexamfetamina. O metilfenidato é um estimulante com eficácia consistente na redução dos sintomas de TDAH. Entre as suas ações sobre o sistema nervoso central, destaca-se a inibição de transportadores de dopamina no neurônio pré-sináptico, com consequente aumento da concentração de dopamina na fenda sináptica, que estaria relacionada a sua ação terapêutica. A sua formulação oral de liberação imediata é rapidamente absorvida, com pico de concentração máxima ocorrendo em 1 a 3 horas. O metilfenidato alcança rapidamente o SNC e tem duração de efeito de aproximadamente 4 horas. Há, no entanto, considerável variabilidade entre os indivíduos em relação aos parâmetros farmacocinéticos. Portanto, são necessárias múltiplas ingestões durante o dia. Como alternativas ao metilfenidato de liberação imediata, há formulações de metilfenidato de liberação prolongada. No Brasil, duas formulações estão disponíveis: metilfenidato SODAS (sistema esferoidal de absorção oral da medicação) e metilfenidato OROS (com sistema de controle osmótico de liberação). O metilfenidato SODAS libera 50% da dosagem imediatamente após a ingestão e 50% aproximadamente 4 horas após. O metilfenidato OROS libera uma dose de metilfenidato imediatamente após a sua ingestão e, por meio de controle osmótico, permanece liberando metilfenidato de forma sustentável ao longo de 9 horas, com efeitos comportamentais observáveis ao longo de 12 horas. Os efeitos adversos mais comuns do metilfenidato são insônia, cefaleia, nervosimo, ativação, irritabilidade,
tremor, redução do apetite, náuseas, perda de peso. Estes efeitos adversos tendem a ser leves, dose-dependentes e transitórios. O metilfenidato pode exacerbar tiques, precipitar sintomas psicóticos, maníacos e convulsões em indivíduos em risco para estas condições. Na presença destas condições, estas devem ser controladas para a posterior introdução do metilfenidato. Em relação aos efeitos adversos menos comuns do metilfenidato, há três controvérsias na literatura intensamente discutidas: efeitos adversos cardiovasculares, interferência sobre o crescimento e potencial de abuso. O metilfenidato tem efeitos adversos cardiovasculares, como aumento leve da pressão arterial e frequência cardíaca. Há relato de morte súbita em indivíduos com anormalidades estruturais cardíacas em uso de metilfenidato, mas não há evidências de que a frequência destes eventos em indivíduos em uso da medicação seja maior do que a frequência na população em geral 135, 136 . As recomendações atuais sugerem a investigação clínica para alterações cardiovasculares, incluindo mensuração de pressão arterial, frequência cardíaca e ausculta cardíaca, história pessoal e familiar de eventos cardiovasculares. Caso haja indícios de alterações cardiovasculares, recomenda-se avaliação complementar com exames específicos e consulta com cardiologista135 - 137 • Em relação ao crescimento estatura!, há evidências que o tratamento com metilfenidato possa causar desaceleração no crescimento e reduções pequenas na altura final. Recomenda-se monitoramento clínico e, caso seja verificada redução da taxa de crescimento, avaliação da relação custo-benefício entre continuidade ou interrupção do tratamento 32. Em relação ao potencial de abuso, o metilfenidato po deria ser utilizado como uma droga recreativa se ingerido por via inalatória ou injetável. Neste sentido, em indivíduos com história de uso de drogas, prefere-se a utilização de formulações de liberação prolongada, que não podem ser ingeridas por estas vias. É importante ressaltar que os estudos de seguimento de indivíduos com TDAH mostram que o tratamento com estimulantes não aumenta o risco de abuso de substâncias e possivelmente protege o desenvolvimento ao longo do tempo desta comorbidade 138 • A lisdexamfetamina foi recentemente aprovada para o tratamento do TDAH em crianças e adultos nos EUA e em crianças no Brasil. Trata-se de um componente inativo (pró -droga), que torna-se farmacologicamente ativo por meio da ação de peptidases na circulação sistêmica que a convertem em 1-lisina, um aminoácido, e na forma ativa d -anfetamina. A absorção de lisdexamfetamina ocorre em aproximadamente 1 hora e sua conversão para d anfetamina não é afetada pelo pH gástrico. O seu efeito terapêutico é prolongado, com evidências de eficácia de até 13 horas, e menor variabilidade farmacocinética. Há evidências iniciais de que as anfetaminas teriam um tamanho de efeito maior do que o metilfenidato sobre sintomas de TDAH 133 .
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Medicações não estimulantes também mostram-se eficazes para o tratamento do TDAH, entre elas atomoxetina, bupropiona, antidepressivos tricíclicos, clonidina, guanfacina e modafinil. Há menos evidências em relação a estas medicações e, embora não exista consenso, o tamanho de efeito parece ser menor do que aquele estimado para medicações estimulantes32, 129, 139, 140 . A atomoxetina é um inibidor seletivo da recaptação de noradrenalina potente, com ação agonista leve indireta sobre o sistema dopaminérgico. O tamanho de efeito estimado é de aproximadamente 0,7, menor do que o tamanho de efeito dos estimulantes, e seu efeito terapêutico máximo pode ocorrer até 2 meses de uso. Dados de ensaios clínicos randomizados com crianças e adultos sugerem que a atomoxetina teria um papel importante em indivíduos com transtornos de ansiedade, pois poderia reduzir também os sintomas de ansiedade. Também há indicativos menos robustos para o uso de atomoxetina em pacientes com abuso/ dependência de substâncias em comorbidade com o TDAH, ou na presença de tiques. Eventos adversos associados ao uso de atomoxetina incluem sintomas gastrintestinais transitórios, perda de apetite, alteração de sono e aumento na frequência cardíaca e na pressão arterial. Entre os eventos graves, muito raramente foram relatados ocorrência de hepatotoxicidade, com aumento de enzimas hepáticas, bilirrubinas e icterícia; também há descrição de comportamento suicida (tentativas e ideação) associado ao uso de atomoxetina. Os antidepressivos, como bupropiona e tricíclicos, são eficazes no tratamento do TDAH, embora não sejam medicações de primeira escolha. Clinicamente são indicados nos casos em que não há resposta ao tratamento com estimulantes ou com a atomoxetina. Apresentam menor tamanho de efeito em relação aos estimulantes e efeito potencial sobre a condução cardíaca (tricíclicos) e risco de convulsões (bupropiona). Clonidina e guanfacina são agonistas de receptores adrenérgicos alfa-2, sendo o segundo mais seletivo que o primeiro, atuando predominantemente no córtex préfrontal. As evidências de eficácia no tratamento do TDAH são mais restritas em comparação às evidências com estimulantes e atomoxetina: Podem ter um papel importante no tratamento de pacientes com TDAH em comorbidade com tiques ou transtorno de Tourette, para os quais as evidências de sua eficácia são superiores. Recentemente, uma formulação de longa-ação de guanfacina foi aprovada nos EUA para o tratamento de TDAH. O modafinil, uma medicação não estimulante, com eficácia demonstrada para o tratamento de narcolepsia, tem sido estudada também para o tratamento de TDAH, com eficácia demonstrada por ensaios clínicos. A escolha entre tratamento medicamentoso e terapia comportamental deve levar em consideração questões como idade do paciente, perfil e gravidade dos sintomas, risco de efeitos adversos, adesão às intervenções
e preferência do indivíduo e da família. Um sofisticado ensaio clínico randomizado multicêntrico, o Multimodal Treatment Study of ADHD (MTA) incluiu 579 crianças e comparou quatro grupos de tratamento (tratamento medicamentoso com metilfenidato, terapia comportamental para crianças e treinamento para pais, tratamento medicamentoso combinado com terapia comportamental e tratamento padrão comunitário) em relação à melhora de diversos desfechos relacionados ao TDAH 141 . O tratamento foi mantido de forma controlada du rante 14 meses, tendo sido evidenciada superioridade do tratamento medicamentoso sobre a terapia comportamental e tratamento padrão comunitário, e ausência de diferença em relação à abordagem combinada, na redução dos sintomas centrais do transtorno. Análises secundárias sugerem que pacientes com TDAH e transtornos comórbidos, como transtornos disruptivos e de ansiedade 142 , podem apresentar uma melhor resposta ao tratamento combinado. A avaliação 3 anos após o tratamento, quando o tratamento não era mais mantido de forma controlada pelos pesquisadores (perda da randomização), ou seja, quando a família e o médico do paciente definiam o tratamento a ser utilizado, mostra que os desfechos clínicos dos quatros grupos convergem 143 . Uma interpretação possível para estes achados seria de que o efeito do tratamento medicamentoso intensivo, observado aos 14 meses de tratamento, perde-se ao longo do tempo. Entretanto, como perdeu-se o controle da alocação dos pacientes para os grupos, é possível que os fatores individuais associados a escolha de um ou outro tratamento também estivessem associados aos desfechos clínicos. A avaliação 8 anos após o tratamento mostra que a modalidade inicialmente proposta não prediz desfechos clínicos, mas sim a intensidade dos sintomas. As crianças com maior gravidade dos sintomas apresentam maior risco de prejuízo ao longo do tempo 144 • Uma vez iniciado o tratamento, recomenda-se que seja feito monitoramento periódico da evolução dos sintomas e dos efeitos adversos. Pausas no tratamento medicamentoso com estimulantes nos finais de semana podem ser realizadas, conforme indicação clínica, sem evidências de perda de eficácia com a reintrodução da medicação. A indicação de pausas pode ocorrer se a sintomatologia é predominante na escola ou associada a menos prejuízo funcional em casa, ou se os efeitos adversos, como redução de apetite, são importantes. O período de duração do tratamento é variável e será determinado pela evolução natural dos sintomas ao longo do desenvolvimento. Após um período assintomático, mesmo durante interrupção temporária nos finais de semana, pode ser proposta a interrupção da medicação e observação dos sintomas. Frequentemente, os pacientes que chegam à adolescência em tratamento medicamentoso para o TDAH solicitam a interrupção da medicação ou reduzem a adesão. Nas situações em que a continuidade do tratamento não é aceita
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pelo paciente, um período de tempo sem medicação, com acompanhamento, pode se tornar uma oportunidade para que o paciente identifique os sintomas ou, caso tenham remitido, para que o tratamento seja modificado e p asse a ser focado nos novos objetivos. Recentemente, novas abordagens terapêuticas para o TDAH vêm sendo estudadas. Entre as mais promissoras, com resultados iniciais positivos, destacam-se neurofeedback145-147 e treinamento cognitivo 148 , que deverão ser testadas por novos estudos. Entre as intervenções não facadas especificamente nos sintomas nucleares do TDAH, mas que f requentemente são incluídas no plano de tratamento de um indivíduo com o transtorno, estão as abordagens para comorbidades psiquiátricas e transtornos de aprendizagem, abordagens sistêmicas focadas em disfunções familiares, abordagem de psicopatologias parentais, entre outras.
3. Sobre o TDAH. é incorreto afirmar que: a) Há fortes indícios de que a prevalência do TDAH é maior nos EUA do que na Europa. b) A idade de início dos sintomas antes dos 7 anos de idade é um critério pouco amparado por evidências científicas. c) Está fortemente associada com fracasso e evasão escolar. d) Está presente na idade adulta. com manifestações específicas. e) Depressão e abuso de substâncias ocorrem com frequência ao longo do curso do transtorno.
4. Sobre as bases neurobiológicas do TDAH. é correto afirmar a)
b) c)
Questões 1. Sobre o tratamento do TDAH, considere as seguintes afirmações: I) O tratamento com estimulantes é uma estratégia recente. utilizada a partir das décadas de 1980-90, quando foram feitos os primeiros estudos com metilfenidato em crianças hiperativas. li) Crianças com TDAH devem preferencialmente ser tratadas com manejo psicoterápico. enquanto adolescentes e adultos são candidatos a tratamento medicamentoso. 111) Em crianças ou adolescentes com TDAH em comorbidade com depressão e ansiedade, a pri meira escolha para o tratamento do TDAH deve ser bupropiona e atomoxetina. São verdadeiras: a) Nenhuma b)lel ll c) I e li c) Apenas 11 1 e)l. lle lll 2. Assinale a afirmativa verdadeira em relação ao tratamento do TDAH: a) O tratamento do TDAH deve ser instituído apenas quando há repercussão dos sintomas no ambiente escolar. b) O estudo MTA mostra que. após 14 meses de tratamento. os desfechos clínicos dos diversos grupos tratados convergem, embora não seja possível descartar o efeito de potenciais fatores de confusão. c) Não faz parte do tratamento do TDAH abordagens psicoterá.
piCaS.
d) Deve-se evitar entrar em contato com a escola de crianças com TDAH com o objetivo de evitar a estigmatização. e) O tratamento do TDAH por parte do psiquiatra deve ser focado nos sintomas e outras dimensões devem ficar sob responsabil idade de outros profissionais.
d) e)
que: alterações na reatividade da amígdala estão entre os achados em exames de imagem fu ncionais mais consistentemente associados ao transtorno. alterações em vias dopaminérgicas são componentes necessários para o desenvolvimento do TDAH. alterações em vias de recompensa são subjacentes a déficits em funções executivas ditas "frias" que estão presentes no TDAH. áreas motoras parecem ter uma maturação mais tardia em crianças com TDAH do que em crianças controles. alterações no córtex pré-frontal dorsolateral e cerebelo estão fortemente associados ao transtorno.
5. Sobre a etiologia do TDAH. é correto afirmar que: a) a herdabilidade de aproximadamente 760fo indica que. entre todas as crianças afetadas com o transtorno. cerca de 76% delas têm causas genéticas. b) entre as variantes genéticas envolvidas no transtorno, destacam-se aquelas nos genes da MAO-A, COMT e DAT1 . c) o modelo de doença complexa com variantes comuns com efeito pequeno é sustentada pelos recentes achados de estudos de associação de genoma completo (GWAS). d) recentes estudos genéticos indicam que podem haver alterações cromossômicas com tamanho de efeito moderado para o desenvolvimento do transtorno. e) entre os estressares ambientais mais consistentemente associados ao TDAH. encontram-se exposição a chumbo e adrogas durante o período intra-uterino.
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Transtornos de Conduta e Comportamentos Externalizantes Paulo Germano Marmorato
SUMÁRIO
PONTOS-CHAVE
Introdução, 1133 Breve histórico, 1134 Etiologia, 1136
Ao final deste capítulo, você estará apto a:
Características em nível individual, 1136 Influências em nível familiar, 1139 Fatores de risco extrafamiliares, 1140 Quadro clínico, diagnóstico e comorbidades, 1140 Avaliação, 1140 Quadro clínico e psicopatologia, 1142 Diagnóstico diferencial e comorbidades, 1146 TDAH, 1146 Transtornos afetivos e ansiosos, 1146 Abuso e dependência de substâncias, 1146 Retardo mental, 114 6 Transtornos psicóticos, 1146 Transtornos globais do desenvolvimento, 1146 Transtornos específicos do aprendizado, 1147 Evolução e curso, 1147 Epidemiologia, 1148 Tratamento, 1149 Grupos de orientação e treinamento de habilidades parentais, 1149 Treinos de habilidades interpessoais da criança. 1150 Psicoterapias psicodinâmicas, 1150 Psicofarmacoterapia, 1150 Medidas aplicadas à escola, 1151 Prevenção, 1151 Políticas públicas, 1151 Minicaso clínico, 1152 Questões, 1153 Referências bibliográficas, 1153
Introdução O termo transtornos de conduta se refere ao agrupamento diagnóstico caracterizado por um padrão persistente de agressividade e comportamentos antissociais, por meio dos quais um indivíduo repetidamente rompe
1. Compreender a importância dos transtornos de conduta na sociedade e no campo médico. 2. Definir transtornos de conduta. 3. Identificar fatores de risco envolvidos na sua etiologia. 4. Familiarizar-se com particularidades de sua avaliação clínica. 5. Reconhecer suas apresentações psicopatológicas. 6. Saber aspectos do diagnóstico diferencial e de suas mais frequentes comorbidades. 7. Identificar as possíveis evoluções do quadro clínico.
8. Reconhecer as diferentes etapas de evolução. 9. Elencar as intervenções terapêuticas mais importantes.
regras sociais básicas. Trata -se do quadro psiquiátrico de maior prevalência na infância em todo o mundo e arazão mais comum de encaminhamento de crianças e adolescentes a serviços de saúde mental em países ocidentais. Muitos jovens com transtornos de conduta se tornam adultos antissociais, com estilos de vida empobrecidos e destrutivos, gerando grande sofrimento pessoal e um imenso fardo para seus familiares e para a sociedade. Os transtornos de conduta têm experimentado uma situação de especial descompasso entre a sua importância geral e a atenção a eles despendida. Existem dados consistentes que apontam tal grupo diagnóstico como o mais prevalente da psiquiatria infanto juvenil, alcançando 5 a 10% de populações em idade escolar. Sabe-se também a respeito da grande morbidade que envolve os jovens afetados, a seguir algumas características: graves comprometimentos de sua vida escolar e, posteriormente, laboral; relacionamentos afetivos e sociais pobres ou problemáticos; ocorrência frequente de comorbidades psiquiátricas e médicas; maior risco de envolvimento em práticas criminosas. Além disso, estudos epidemiológi-
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cos têm mostrado um aumento expressivo de delitos cometidos por adolescentes nas últimas décadas 1• Ainda assim, observa-se certa negligência na abordagem desses casos: não há políticas públicas que se voltem integralmente ao problema e, mesmo entre profissionais de saúde mental, esse é um tema pouco abordado, tanto na prática clínica quanto na formação de psiquiatras, psicólogos e profissionais afins. Para tal situação, é possível atribuir algumas causas, a saber: o interesse científico voltado a tal campo de estudo é relativamente recente; o predominante pessimismo em relação à perspectiva de melhora dos pacientes; a contratransferência negativa que tais pacientes e suas famílias problemáticas tendem a gerar nos responsáveis por seus cuidados; a estéril disputa entre correntes biologizantes e psicossocializantes, que dificulta abordagens integradas e mais eficazes. De fato, o diagnóstico de transtorno de conduta é objeto de inúmeras controvérsias a respeito de sua natureza e das maneiras mais adequadas de se lidar com os jovens acometidos. Uma vez que sua manifestação inclui uma falha ou recusa em seguir regras sociais, existem correntes de pensamento que acreditam que tal condição seja, em sua essência, determinada socialmente. O determinismo social julga as ações individuais como o resultado exclusivo de conjunturas sociais desfavoráveis e opressoras ao indivíduo, favorecendo, portanto, o argumento de que a abordagem médica, nesse caso, estaria a serviço de um controle social repressor, por meio do uso nocivo de rótulos diagnósticos e medicações psicotrópicas para controlar o indivíduo e mantê-lo obediente em vez de reformar a sociedade. De modo inverso, uma visão exclusivamente biológica também dá margem a concepções equivocadas, como a possível ideia da existência de uma mente maligna estática, unicamente determinada pela herança genética. No entanto, o conjunto e a evolução dos estudos envolvendo jovens antissociais têm mostrado que a confluência e interação complexa de fatores biológicos e ambientais intimamente relacionados entre si é que são responsáveis pela gênese de tais quadros. De forma mais ampla, será considerado, neste capítulo, o agrupamento diagnóstico - grafado no plural, como transtornos de conduta (TsC) - , que inclui o transtorno opositivo-desafiador (TOD) 1 e o transtorno de conduta (TC) propriamente dito. Estudos sistemáticos a respeito dos TsC passaram a ser realizados em maior número apenas a partir da década de 1980. Em razão desse recente interesse, os estudos ainda utilizam termos distintos ao nomear as populações-alvo. Consequentemente, é comum certa confusão semântica, como, por exemplo, dar à chamada delinquência juvenil o sinônimo de transtorno de 1
A tradução brasileira da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) para "oppositional defiant disorder" é "transtorno desafiador de oposição'~ Apesar dessa, optou-se por utilizar "transtorno opositivo-desafiador': que se acredita ser menos confuso.
conduta. Vale lembrar: a delinquência é um termo jurídico que se refere ao ato criminoso, mais habitualmente utilizado quando seu agente é menor de idade. Ora, apesar da grande frequência com que jovens com TC incorrem em atos delinquenciais, um tal ato isolado não indica a presença do transtorno - e um adolescente pode ter um diagnóstico de TC e, ainda assim, não realizar atividades criminosas do ponto de vista legal. Outros termos frequentemente utilizados nessa área são transtornos de comportamentos externalizantes e transtornos disruptivos do comportamento. Comportamentos ou sintomas externalizantes se referem àqueles sintomas manifestos por conflitos com a norma e o meio social: atos desrespeitosos, sérias violações de regras, agressões, destruição de objetos, furtos etc. São atuações no meio externo e, por isso, mais claramente observáveis por outras pessoas. Eles fazem contraste com os sintomas internalizantes, que são vivenciados internamente por meio de ansiedade, angústia, tristeza, anergia, pensamentos obsessivos, entre outros. Os comportamentos externalizantes são frequentemente disruptivos, isto é, causam incômodo, barulho, problemas, de modo romper com a harmonia de uma situação ou atividade. Transtornos disruptivos do comportamento é o termo genérico para o conjunto que abrange o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), o TC e o TOD. É justamente essa característica disruptiva a principal causa da grande procura de serviços de saúde mental para jovens com TsC, em virtude da repercussão que suas atitudes têm em seu meio social.
Breve histórico Jovens cujas vidas são marcadas pela relação de hostilidade para com seus mundos circundantes são um problema que parece ter preocupado as mais antigas civilizações. O Deuteronômio, livro bíblico tradicionalmente atribuído a Moisés, datado de cerca de 1250 a.C., prescreve no trecho do capítulo 21, denominado "O castigo dos filhos rebeldes" 2 : Se alguém tiver um filho contumaz e rebelde, que não obedece à voz de seu pai e à de sua mãe e, ainda castigado não lhes dá ouvidos, seu pai e sua mãe o pegarão, e o levarão aos anciãos da cidade, à sua porta, e lhes dirão: Este nosso filho é rebelde e contumaz, não dá ouvidos à nossa voz, é dissoluto e beberrão. Então, todos os homens da sua cidade o apedrejarão até que morra; assim, eliminarás o mal do meio de ti; todo o Israel ouvirá e temerá.
Philo de Alexandria, filósofo judeu helenístico que viveu entre 20 a.C. e 40 d.C., teceu uma série de comentários exegéticos sobre tal passagem3 . Observa que as acusações partem dos pais, aqueles de quem se esperaria preservar o filho, os quais serão convertidos em seus inimigos e deverão, finalmente, atuar para sua ruína. O
81 TRANSTORNOS DE CONDUTA E COMPORTAMENTOS EXTERNALIZANTES
. . pa1 representana a correta razao e a mae os costumes, a convenção e a educação secular'~ Ao dizerem "este nosso filho", há a indicação de que este possui irmãos que, em contraste com sua postura, honrariam os ensinamentos parentais. Os pais listam quatro acusações em ordem crescente de gravidade, a saber: desobediência, rebeldia, devassidão e embriaguez. Esse filho, então representante da subversão da moralidade, do mal incurável presente no seio de toda uma nação deverá ser destruído. O filho rebelde é tido como um tipo de apaideutos, isto é, aquele em que o processo da paideia grega não ocorreu. Nesse caso, Philo se mostrava profundamente influenciado pela paideia, a prática educativa grega que visava identificar as aptidões psicológicas e morais, revelar qualidades humanas presentes em estado virtual, estabelecer solidariedade entre jovens e fortalecer as relações entre classes etárias para a formação de cidadãos responsáveis. A história da Roma antiga é marcada pela mítica passagem sobre Rômulo e Remo, irmãos gêmeos que foram encontrados por pastores nas margens do rio Tibre sendo amamentados por uma loba. Rômulo e Remo aglomeraram em sua juventude toda sorte de enjeitados de cidades vizinhas, servos rebeldes e sediciosos, escravos fugitivos, devedores insolventes e homicidas. O sucessivo rapto de mulheres permitiu a sobrevivência e a consolidação numérica de seu povoado. A primeira fase da vida dos jovens gêmeos, ocorrida ainda sob o signo da natureza selvagem, tem como episódio fundamental um evento em que ambos celebravam um sacrifício e colocavam a carne da vítima para assar quando foram avisados de que ladrões estavam roubando seu gado. Após recuperarem seus animais, Remo volta antes do irmão e, juntamente com seu grupo, lança mão das carnes ainda meio cruas e declara-se único vencedor daquela luta. Com esse gesto, Remo exclui o irmão e os companheiros dele de um banquete que deveria . . ser comum, ass1m como, ao comer carnes sem1cruas, pratica um gesto de barbárie absolutamente inconveniente para o futuro cidadão. Tempos mais tarde, Rômulo vence o irmão em outra disputa e ganha o direito de ser o fundador de Roma. Quando Rômulo traçava com um arado o perímetro das futuras muralhas da cidade, Remo, com um gesto de desprezo, ultrapassa-o armado e Rômulo, então, o mata. A sorte de Remo se torna, assim, emblemática da exclusão de práticas e atitudes ilícitas do espaço da cidade. Tais marcas fundantes parecem ter permanecido na vida civil e, posteriormente, no período republicano, porquanto os legisladores romanos procuraram criar medidas legais que visavam exercer maior controle sobre os jovens, tido como um grupo etário especialmente perigoso, em vitude da alta frequência de crimes por estes cometidos, dentre os quais o parricídio era o mais temido4 • São numerosos os relatos de diversas cidades da península itálica medieval5, assim como de comunidades da Baviera do século XVI, em que se buscavam soluções para lidar com jovens recorrentemente insubordinados e agres((
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sivos. Na Suíça reformista do século XVI, o clero pedia medidas enérgicas contra jovens que realizavam "ataques anônimos de todo o tipo contra a pessoa e a propriedade, lambuzavam fechaduras com fezes, cortavam árvores frutíferas, blasfemavam, embriagavam -se e empanturravam -se noite adentro'~ Dentre tantas medidas visando à contenção de tais atos estavam a reclusão em diversas prisões temporárias6 • Na Alemanha da segunda metade do século XIX, tornou-se muito popular a história criada pelo poeta e desenhista Wilhem Busch. Publicada pela primeira vez em 1956, "Max e Moritz" conta a história de dois meninos que atormentavam a vida de um vilarejo com suas brincadeiras malvadas. Seus habitantes respiraram aliviados quando os meninos foram triturados em uma moenda, recebendo, assim, conforme consenso popular, a merecida lição7• Da insistente desobediência aos pais à realização de homicídios, a juventude têm sido reiteradamente apontada como um período de maior propensão à rebeldia e à violência. Ao longo dos tempos, os jovens infratores das normas sociais foram abordados de maneira quase que exclusivamente punitiva, sob os pontos de vista tão somente jurídico e policial. A ideia de que alguns jovens especialmente agressivos ou desajustados poderiam ser diagnosticados com uma patologia mental é relativamente recente. Segundo Earls e Mezzacappa8 , os esforços para compreender e tratar os TsC marcam umas das primeiras atividades que definiram a disciplina da psiquiatria infantil. Com o surgimento da psiquiatria moderna a partir do século XIX, esses jovens passaram a receber um olhar médico, ainda que atrelado a questões judiciais, e passou -se a postular a ocorrência de alterações mentais que justificassem a recorrência de atos delinquenciais. Os primeiros reformatórios destinados especialmente para jovens delinquentes surgiram na França, na segunda metade do século XIX. Com o estabelecimento de clínicas ligadas a coortes juvenis no início do século XX, uma abordagem sistemática e terapêutica de jovens antissociais e delinquentes teve início nos Estados Unidos e na Inglaterra. Assim que o movimento psicanalítico ganhou proeminência na primeira metade do século passado, a ideia de um superego pouco desenvolvido no caso de jovens delinquentes ganhou espaço, e diversas abordagens a partir desse conceito foram realizadas. Foi influente também, nesse período, a obra de Cleckley, The mask of sanity, de 1941, a qual popularizou a ideia de psicopatia em adultos, conceito já descrito em 1923 por Kurt Schneider sob a alcunha de "psicopatas carentes de remorso': John Bowlby, por sua vez, em 1944, associou pela primeira vez a delinquência juvenil à separação precoce e prolongada de bebês de suas mães. Donald Winnicot realizou, a partir dos anos 1940, contribuições com o estudo de jovens com manifestações psíquicas que definiu como "tendência antissocial"9 • Na segunda metade do século XX, sob diversa orientação teórica da psiquiatria americana, termos como so-
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ciopathic personality disorder, antisocial and dyssocial reactions passaram a ser usados para descrever crianças que "que se encontram sempre em problemas, que parecem não aprender com experiência ou punição"; ou "unsocialized agressive reaction of childhood (or adolescence)" pelo Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-II). No clássico estudo publicado em 1966, Deviant children grown up, Robins mostrou, após o seguimento de 100 jovens por cerca de 25 anos, que 45% daqueles com problemas de conduta vieram a desenvolver personalidade antissocial, salientando o curso potencialmente duradouro de tais quadros 10 • Foi apenas em 1980 que o termo transtorno de conduta passou a constar nas classificações psiquiátricas, inicialmente no DSM-III, e, em 1992, na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID - 10), trazendo impulso para estudos empí. ' ncos nessa area.
Etiologia A coleção de estudos de diversas vertentes parece reforçar a tese de que os TsC são resultantes de diversos fatores que, associados ao longo do tempo, contribuem para o desenvolvimento de padrões de interação agressivos e antissociais. Em virtude do curto período em que tais características vem sendo estudadas, existem ainda muitas
incertezas a respeito do real papel de cada uma na gênese dos TsC. Boa parte desses fatores são considerados correlatos, isto é, características habitualmente encontradas nesses jovens, nas suas famílias ou no meio social, mas sem papel causal seguramente estabelecido. A clínica mostra que, dentre os inúmeros correlatos associados aos TsC, cada indivíduo reúne um conjunto distinto de fatores de risco que se conjugam para ocasionar sua particular manifestação clínica. O diagrama da Figura 1 procura ilustrar de forma esquemática como os principais fatores de risco para os transtornos de conduta podem se conjugar de modo a propiciarem o desenvolvimento de um transtorno de conduta. Vale notar que cada indivíduo apresenta uma configuração particular de fatores de risco e uma dinâmica própria de interação ao longo do tempo. Serão apontados os principais fatores de risco associados à ocorrência dos TsC em três áreas distintas, como propostas por Moffi.tt & Scott 11 : características em nível individual, influências em nível familiar e fatores de risco extrafamiliares.
Características em nível individual Suscetibilidade genética
É bem documentado o fato de que comportamentos antissociais se agrupam em famílias. Estudos em gêmeos e em adoção têm mostrado altas concordâncias para pa-
TOLERÂNCIA À FRUSTAÇÃO = - - ··' SOCIALIZAÇÃO POBREJ r+ Inquietação ·-;=;~f Agressividade Abandono escolar
APRESENTAÇÃO ClÍNICA
f
f-+ Criminalidade
t
Opositividade ,----+
-------------------------------------FATORES INDIVIDUAIS
r+ EMPREGABILIDADE=-
Rend imento escolar = ~ Delinquência
-------------- f- ---1---------- ---
r-+ Temperamento = ----,
t GENÉTICA ---++ Neurotransmissores = + - - -C. Comorbidades
--- ~ _ ::~:çã~~pe:___ _
--------------- 4-FATORES FAMILIARES
Déficit cognitivo
. Toxmas
Abusos
• Autoimagem
=
-++-+
1-- - - - - - - - - ..
Abuso de substâncias
------------
--------
Contato efetivo =
GENÉTICA ---~-+----- Transtornos mentais
- - . Práticas parentais =---'
------------------------------------------------------ ~ ---f-------------
~~~~EE~TAIS
CONDIÇÕES PERIPARTO = -
l
POBREZA SOCIOCULTURAL
-
Escola
Pares=
l
l
- - - - - - - - - - - - - - - Estado - - --
Instituições
=
Figura 1 Principais fatores de risco para os transtornos de conduta. O sinal negativo indica aspectos adversos que determinado fator pode apresentar de modo a se configurar como contribuinte dos TsC. Por exemplo: a pobreza sociocultural eleva as chances de uma gestante não realizar acompanhamento prénatal mais adequado, ser exposta a condições de parto inadequadas em razão de um sistema de saúde ruim (fator ambiental), e de que a mãe consuma substâncias como o tabaco, que se configura como uma toxina (fator familiar). Uma hipóxia no parto, assim como a exposição a toxinas, afetará a formação do sistema nervoso central da criança (SNC), resultando em um desequilíbrio em vias neuronais monoaminérgicas (fator individual). Um desequíbrio em neurotransmissores, assim como uma herança genética particular, pode acarretar a constituição de um perfil temperamental difícil, manifestado por baixa tolerância à frustração e tendência à agressividade (apresentação clínica), podendo acarretar uma pobre socialização da criança e suscitar mais práticas parentais coercitivas (fator familiar) que reforçarão tais comportamentos, e assim por diante.
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res monozigóticos 12'13 • Pfiffer et al. mostraram que, em meninos com TsC e TDAH, comportamentos externalizantes dos pais estiveram fortemente associados com TC comórbido e moderadamente associado com TOD comórbido dos filhos 14. Na busca da identificação de genótipos envolvidos na gênese dos TsC, o gene mais estudado tem sido o promotor do polimorfismo da monoamina-oxidase-A (MAO -A), uma importante enzima para a degradação de monoaminas como noradrenalina, serotonina e do pamina. Estudos de replicações positivas e negativas foram publicados e uma metanálise desses estudos mos trou que a associação entre o genótipo MAO-A e o TC é modesto, mas estatisticamente significativo 11 ,15. As influências genéticas parecem ter um peso mais forte no desenvolvimento de transtorno da personalidade antissocial (TPAS) e criminalidade do que nas formas mais brandas de TsC. De qualquer forma, como ressaltam Moffitt e Scottu, saber que os TsC estão sob influência genética é menos útil clinicamente que saber que essa influência genética parece estar reduzida ou aumentada dependendo da interação com circunstâncias do ambiente da criança. Complicações perinatais
Complicações no nascimento podem ser um fator contribuinte para déficits neuropsicológicos que são associados com TsC. Relatos recentes de estudos populacionais de larga escala encontraram associações entre TC de tipo "início precoce-curso persistente" com complicações perinatais, anomalias físicas menores e baixo peso ao nascimento. Estudos indicaram que o tabagismo na gravidez é um preditor de risco estatístico para prole com problemas de conduta 16, incluindo aqueles com início precoce 17, mas uma ligação causal entre o tabagismo e problemas de conduta não foram estabelecidos. Abuso de álcool e outras drogas também têm sido ligados a TsC na prole 18,19, assim como complicações na gestação e no parto20, o que se pode inferir dos estudos de Goodman com crianças com paralisia cerebraF 1. Temperamento
Diversos estudos prospectivos mostraram associações entre temperamento e problemas de conduta, constatando que determinadas constituições temperamentais aumentam a chance de ocorrência de TPAS e atitudes criminosas na idade adulta. Sansor e Prior22 concluíram que o temperamento precoce (especificamente emocionalidade negativa, responsividade intensa e reativa, e inflexibilidade) é preditivo de problemas de comportamento externalizantes na infância tardia. Em contrapartida, o temperamento inibido ou esquivo foi associado com menos problemas externalizantes no mesmo período. Gjone e Stevenson, ao utilizarem dados de estudos com gêmeos, encontra-
ram uma contribuição genética significativa na relação entre emocionalidade temperamental e comportamento agressivo 23 . O temperamento, como originalmente concebido, deve ser fortemente herdável, e não influenciado pela experiência. No entanto, mensurações de temperamento são apenas moderadamente herdáveis e o engajamento de uma criança ao mundo social a partir do nascimento significa que as mensurações de temperamento inevitavelmente avaliam a evolução de processos sociais. Novamente, é provável que as contribuições do temperamento sejam vistas mais consistentemente em combinação com fatores de risco ambientais24. Neurotransmissores
Neurotransmissores têm sido associados a comportamento antissocial em amostras de adultos e em modelos animais 25 . Baixos níveis de um metabólito da serotonina (ácido 5-hidroxi-indol-acético) no líquor têm sido associados a altos índices de agressividade momentânea26 e futura 27 . Esses estudos sugerem que uma redução no turnover da serotonina no SNC esteja associada com agressividade e outros transtornos de comportamento disruptivo em crianças. Algumas evidências limitadas sustentam a visão de que, assim como nos adultos, a serotonina está ligada à agressividade em crianças, mas os achados para índices de funcionamento de serotonina em crianças são bastante inconsistentes28,29 . Deve-se levar em conta que a função serotoninérgica também está ligada com a regulação do humor e com o comportamento impulsivo 30, bem como a outros neurotransmissores. Desse modo, a ligação entre serotonina e agressividade provavelmente reflete uma relação mais complexa entre conectividades neuroanatômicas e neuroquímicas, funções cerebrais executivas e desregulação comportamental. Em um estudo de coorte com jovens de Pittsburgh, EUA, meninos com problemas de conduta de longa duração mostraram alterações para baixo no nível de adrenalina em seguida a uma tarefa estressante, enquanto meninos pró-sociais mostraram, diante da mesma tarefa, elevação do nível de adrenalina31 . Outros estudos, no entanto, não encontraram associações entre TC e noradrenalina em crianças32 . Deve-se ter em mente que neurotransmissores no cérebro são apenas indiretamente mensurados; a maio ria dos níveis de neurotransmissores são indicadores de atividade e pouco se sabe a respeito de neurotransmissores no cérebro juvenil. Além disso, como se verifica, por meio dos estudos sobre o papel do polimorfismo da MAO -A, não se pode atribuir os comportamentos agressivos como decorrentes de disfunção de apenas um tipo de neurotransmissor. Além dos neurotransmissores, têm-se buscado re lações entre os TsC e alterações hormonais. Pesquisas também encontraram, repetidamente, baixos níveis do
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hormônio cortisol em jovens com TOD eTC de início precoce e persistentes33' 34 • A relevância desses achados para a apresentação clínica dos TsC, no entanto, permanece indeterminada. Reatividade autonômica
A baixa frequência cardíaca em repouso foi encontrada consistentemente em associação com comportamento antissocial, e uma metanálise de 40 estudos sugere que esse é o correlato biológico de comportamento antissocial melhor replicado 35 • Outros indicadores psicofisiológicos de baixa reatividade do sistema autonômico também têm sido examinados. Por exemplo, num estudo longitudinal com meninos de Pittsburgh, aqueles mais antissociais e psico páticos foram também os mais lentos em mostrar resposta de condutância da pele a repentes de barulhos aversivos36. Especula-se que a baixa reatividade autonômica torna indivíduos menos temerosos e responsivos a punições e os induz à busca de forte estimulação para elevar seus níveis de excitabilidade, sendo um marcador de outros processos implicados no comportamento antissocial. Correlatos neuropsicológicos
Baixo nível de inteligência é frequentemente considerado como um precursor para TsC, porém uma revisão realizada37 sugeriu que essa conclusão pode ser prematura. De 27 estudos que relataram uma associação positiva entre TC e quociente de inteligência (QI), 80% não faziam controle para TDAH. Quando TDAH foi controlado, a relação TC-QI foi frequentemente reduzida à insignificância. Além disso, como o QI está associado ao baixo rendimento escolar, o qual também está relacionado com futuro comportamento antissociaP8, não se pode estabelecer uma relação direta entre QI e TsC. Têm-se demonstrado que transtornos específicos de leitura estão relacionados com TsC, mesmo quando se realiza controle para condição socioeconômica e etnia39,40 • Essa ligação pode ser aparente a partir da infância e pode estar associada com processamento de linguagem anormal no córtex temporal esquerdo4 1 • Alguns estudos mostraram que quadros disruptivos são um fator de risco para problemas de leitura futuros, mas não vice-versa. Para meninas, no entanto, problemas de leitura precoces são preditivos de comportamento disruptivo na adolescência, sugerindo que problemas de leitura tem um impacto mais sério em meninas que em meninos42,43 • Tem sido mostrado consistentemente que crianças e adolescentes com problemas de conduta apresentam disfunções executivas quando submetidas a testes padronizados11. Funções executivas compreendem aquelas habilidades implicadas na realização de objetivos com sucesso por meio de ações efetivas apropriadas e incluem: aprendizado e aplicação de regras contingentes; raciocínio abstrato; resolução de problemas; automonitoramento, atenção e concentração sustentados; relacionamento de ações
prévias a objetivos futuros; e inibição de respostas inapropriadas. Essas funções mentais são amplamente associadas com os lobos frontais. Dados importantes podem ser retirados de um estudo de coorte realizado em Montreal com crianças a partir de 6 anos de idade44 • O estudo utilizou testes de função executiva que tinham sido associados com estruturas anatômicas diferentes do cérebro com base em estudos de imagem funcional. Agressividade crônica foi associada com baixos desempenhos em testes de funções executivas de regiões cerebrais frontais e os achados permaneciam após o controle de memória geral, QI e TDAH. Apesar de a maioria dos estudos de déficits em funções executivas envolver adolescentes, tais disfunções também têm sido associadas a problemas disruptivos em crianças no início da vida pré-escolar45 • Têm sido demonstrado também que crianças com problemas de conduta têm índices aumentados de déficits de habilidades verbais baseadas na linguagem 11. Crianças com TC, adolescentes delinquentes e adultos antissociais mostram desempenhos pobres em testes padronizados de habilidade verbal; em testes de QI, escores de desempenho e verbal pobres46 • Estudos longitudinais apontam que a persistência de comportamento antisso cial ao longo de anos é prevista por baixo QI verbal na infância. Déficits de capacidades verbais também são encontradas em meninos com TOD em idades pré-escolar encaminhados a serviços de saúdé7 . Diversas vias possíveis na qual a habilidade verbal pode influenciar o comportamento podem ser apreendidas na teoria de Luria a respeito do papel da memória verbal e do raciocínio abstrato verbal no desenvolvimento do alto controle. As habilidades de recordar instruções orais e de usar linguagem para pensar por meio de consequências de ações contribuem para o efetivo controle das ações. Crianças que não conseguem raciocinar ou se afirmar verbalmente podem tentar ganhar controle de trocas sociais utilizando a agressão 48 • É provável que também haja efeitos indiretos, nos quais baixo QI verbal contribui para dificuldades acadêmicas, que, por sua vez, significa que a experiência escolar da criança se torna não recompensado ra em vez de uma fonte de autoestima e apoio. Kerr et al. 49 pesquisaram a distinção entre inibição e isolamento social em meninos disruptivos e verificaram que a inibição comportamental diminuiu o risco de delinquência futura, enquanto meninos isolados socialmente estavam em maior risco para a delinquência. Inibição comportamental pode ser positivamente relacionada à ansiedade, que parece moderar a agressividade física, mesmo entre meninos disruptivos 50 • Pesquisas envolvendo processamento de informação e cognição social também têm encontrado resultados interessantes. Dodge5 1 propôs um modelo de processamento de informação particular para a gênese de comportamentos agressivos em interações sociais. O modelo hipotetiza que crianças que são propícias à agressão fo -
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cam em aspectos ameaçadores de ações alheias, interpretam intenções hostis em atitudes alheias neutras e são mais propensas a selecionar e favorecer soluções agressivas para desafios sociais. Numerosos estudos demonstraram que crianças agressivas cometem tais erros de cognição social. Dodge inferiu que essas tendências seriam resultado de exposição a maus tratos físicos. Essa hipó tese foi testada prospectivamente. Abusos físicos documentados no jardim da infância foram fortemente asso ciados a problemas de conduta na escola primária; 28% do grupo abusado desenvolveram problemas de conduta comparado com 6% dos não abusados. Erros de codificação, atribuições hostis e vieses para escolha e favore cimento de respostas agressivas foram todas associadas com evolução de problemas de conduta e com a experiência de abuso físico. Erros de codificação e escolha de repostas agressivas mediavam a ligação entre abuso físico e problemas de conduta, mas atribuições hostis e avaliação positiva de respostas agressivas, não. De fato, meninos e meninas com TC tendem a apresentar menor empatia e identificação com sinais interpessoais52 que aqueles sem TC. Uma revisão de Eisenberg53, sobre empatia e comportamento pró - social, sugere que a ligação entre os dois é de modesta a moderada e deve ser examinada para fatores moderadores.
Influências em nível familiar Apego
Na segunda metade do século XIX, o psiquiatra britânico John Bowlby concebeu a teoria do apego, segundo a qual as interações precoces entre mãe e bebê estabelecem as bases para a aquisição de segurança psicológica da criança e, por conseguinte, de seu desenvolvimento social posterior. A partir de então, têm-se levantado a hipótese de que algumas formas de apego inseguro, como o resistente e o desorganizado, estariam associados a transtornos de comportamento disruptivo no futuro. Alterações no apego se mostraram relevantes, mas estudos mais recentes54 tendem a relativizar a importância das dificuldades com apego como um fator causal independente para o desenvolvimento de TsC. Práticas de parentagem
Desde a obra de Patterson, "Coercive Family Pro cess"55, de 1982, padrões de parentagem tem sido asso ciados com TsC. Foi verificado, nesse trabalho, que pais de crianças antissociais apresentavam as seguintes características de parentagem: eram inconsistentes no uso de regras, davam ordens mais frequentemente, as quais eram mais confusas; mais propensos a responderem aos seus filhos baseados em seu próprio humor que nas características do comportamento da criança; menos inclinados a monitorar o que seus filhos estavam fazendo; e pouco responsivos aos seus comportamentos pró-sociais. Des-
de então, os TsC têm sido fortemente associados, por meio de ampla evidência empírica, a práticas parentais de disciplina errática, hostilidade dirigida a criança, ausência de carinho e supervisão geral pobre56 . Estudos de seguimento e intervenção têm apontado que esses padrões duradouros de relacionamento com a criança possuem papel causal no início e na manutenção do transtorno infantil, e que não são apenas uma reação ao comportamento da criança. No entanto, esta parece ser uma mão de dupla via, já que há também boa evidência de que crianças com TsC incitam mais frequentemente uma parentagem negativa57 . Assim, ambos os mecanismos parecem operar nesses casos, ocasionando um círculo vicioso em que pais e filhos reciprocamente alimentam comportamentos agressivos em suas relações. Um estudo realizado com crianças pré-escolares mostrou que práticas maternas negativas aos 4 anos estavam significativamente associadas a problemas de conduta aos 9 anos, mesmo após o controle de problemas comportamentos iniciais aos 4 anos 58 • O Enviromental-risk Longitudinal Twin Study, realizado com famílias do Reino Unido, examinou o efeito da parentagem paterna sobre a agressividade de crianças pré -escolares59 • A ausência de um pai pró-social previa mais agressividade em seu filho, mas a presença de um pai antissocial previa mais agressividade ainda e seu efeito danoso era exacerbado por mais tempo, a cada semana que a criança permanecia sob cuidados desse pai. Em outro relato do mesmo estudo60, mostrou-se com grande consistência que a já observada maior incidência de TsC em filhos de mães deprimidas ocorria em razão de práticas parentais da mãe, mesmo após controle para a vulnerabilidade psicopatológica e fatores de confusão cronológica. Na adolescência, a supervisão se torna um fator maior, sendo que pais de jovens com TsC tipicamente ignoram onde seus filhos estão por horas. A discordância parenta! tem sido associada com a manutenção de TsC, mas argumenta-se que a associação de TsC com lares desfeitos (divórcio, pais solteiros e adoção) parece mais mediar as práticas parentais que possuir um impacto significativo por si próprios. Alguns estudos sugerem que a avaliação de conflito na estrutura dinâmica da família (p.ex., díades mãefilha; diferenças de comportamento parenta! entre irmãos) têm importância particular para meninas em risco61 ·62 . Maus tratos e abusos
Abusos físico e sexual têm sido consistentemente associados ao surgimento de TsC em crianças que previamente não apresentavam comportamentos externalizantes. Estudos longitudinais envolvendo casos de abuso verificaram que até 26% dos adolescentes vitimizados apresentavam comportamento antissocial. A agressão fí sica realizada pelo pai se associava a mais que o dobro de índices de TC na adolescência e ao quádruplo do índice de TPAS na idade adulta 11 .
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A exposição repetida a conflito familiar pode ser um causador da diminuição do limiar para desregulação emocional, resultando em maior reatividade ao estresse. Além disso, por meio da agressão parenta!, as crianças estariam mais propensas a aprender que a agressão é uma parte normativa dos relacionamentos familiares, que este é um meio efetivo de controlar os outros e que a agressão é sancionada, e não punida. Pouco se sabe a respeito dos mecanismos que ligam os maus tratos aos problemas de conduta, apesar de ameaças à segurança do vínculo, dificuldades na regulação do afeto, distorções no processamento de informações, e o autoconceito parecerem estar envolvidos. Além disso, é importante observar que o tamanho do efeito dessas práticas surge do fato desses casos estarem fre quentemente acompanhados de outros importantes fatores de risco, como rejeição afetiva e parentagem pobre, além da predisposição genética. 63
Fatores de risco extrafamiliares Influências de pares
De modo geral, observa-se que os TsC ocorrem com maior frequência em crianças e adolescentes que se associam a pares que também tem atitudes antissociais, valorizam a agressividade e cometem atos ilegais e destrutivos. Crianças com problemas de conduta mantém relações sociais mais pobres e discordantes com seus pares sem comportamentos disruptivos, experimentam rejeição de pares não desviantes e tendem a se associar com outras crianças com comportamentos semelhantes64 • Eviciências empíricas foram encontradas para três hipóteses: comportamentos antissociais levam a ter problemas com seu pares; relacionamentos com pares desviantes levam a comportamentos antissociais; ou algum fator comum leva a ambos. Uma consequência da rejeição por parte de pares saudáveis é que, já com 5 anos, as crianças são obrigadas a se associar com outras crianças desviantes. A observação de que a influência de pares aumenta comportamentos antissociais se aplica mais comprovadamente à adolescência. As evidências empíricas mais claras vem de tratamentos que colocavam jovens antissociais em grupo: meninos colocados juntos para tratamento de grupo reforçavam mutuamente seus comportamentos antissociais e, frequentemente, aumentavam os níveis de com portamentos antissociais65 . No geral, deve-se considerar as maneiras recíprocas e dinâmicas pelas quais as crianças com problemas de conduta influenciam quem são seus amigos que, por sua vez, estimulam a realização de comportamentos agressivos e antissociais66. Ambiente social
A associação de problemas de conduta com regiões mais pobres socioeconomicamente coloca em questão se a pobreza seria um fator causal ou um marcador de ou-
tros fatores de risco. Análises multivariáveis sugerem que, quando fatores como parentagem disfuncional e depressão materna são levadas em consideração, os efeitos da vizinhança e da pobreza diminuem consideravelmente. De fato, é plausível que condições de vida mais carentes, com situações financeiras desfavoráveis e excesso de demandas parentais prejudique a habilidade dos pais em criar os filhos responsável e construtivamente. A frequência a escolas de baixa qualidade, com menos recursos de apoio pedagógico e atividades construtivas para as crianças, assim como maior exposição precoce a drogas também poderiam submeter crianças de bairros mais pobres a mais fatores de risco para os TsC. Áreas em que existem relações mais próximas entre os vizinhos e com alta coesão social percebida pelos residentes apresentam menos comportamento antissocial, assim como a mudança de áreas depauperadas já mostrou reduzir os índices de comportamentos antissociais 11 • Restringindo -se ao contexto brasileiro, vale lembrar que as instituições criadas para lidar com jovens infratores se mostram um imenso fracasso. Para citar apenas um dentre seus inúmeros aspectos nocivos, a reclusão de jovens agressivos dentro de um mesmo ambiente sabidamente tende a reforçar comportamentos antissociais. Por fim, ao se elencar os possíveis fatores causais para os TsC, não se deve ignorar o papel deletério do estado em sua gênese por meio da responsabilidade na manutenção de pobreza social, a incompetência em construir um sistema educacional público razoável, a truculência na abordagem dos jovens infratores e o próprio exemplo da desonestidade cínica como meio de ascenção social de diversas figuras públicas.
Quadro clínico, diagnóstico e comorbidades Avaliação A avaliação de jovens com transtornos de conduta apresenta diversos desafios, os quais serão abordar em três tópicos distintos: apresentação do jovem; apresentação familiar e integração de informações. Apresentação do jovem
Habitualmente, a criança vem à primeira avaliação ignorando seu real objetivo ou claramente a contragosto, enxergando -se como vítima da autoridade dos adultos e interpretando o contato clínico como uma punição pelo último conflito gerado em casa ou na escola. Atitudes como evitar contato visual, recusar-se a falar, manifestações explícitas de raiva e provocações são comuns e o avaliador deve evitar a armadilha de entrar em confronto direto ou rapidamente desistir de estabelecer contato. Uma postura empática, clara e honesta por parte do clínico é indispensável na construção da confiança necessária para a cooperação e obtenção de informações relevantes. Mostrar que a entrevista intenciona o auxílio da criança, que
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seus pontos de vista serão levados em consideração e que a avaliação não será mero instrumento para corroborar as críticas familiares abrem uma nova perspectiva para a sua participação. Nessas condições, muitas vezes, os ado lescentes revelam informações que os pais até então ignoravam, como uso de drogas ou realização de atos delinquenciais. Para tanto, a curiosidade genuína e mente aberta auxiliam o entrevistador a superar sentimentos negativos que podem enviesar a entrevista. Há ainda outras abordagens que são indicadas no intuito de auxiliar o andamento da entrevista, por exemplo: focá -la nos problemas apresentados, não no jovem como "o problemà'; auxiliá-lo as manifestar seus pontos de vista e fontes de sofrimento; reconhecer suas características pessoais positivas e seus progressos; engajá-lo na participação ativa de solução dos problemas apresentados, entre outras. O uso de bom humor tende a auxiliar, porém comentários provocativos e confrontação de poder devem ser evitados. O clínico deve estar atento a sinais de que o paciente esteja na iminência de perder o controle e deve-selevar em conta que, nesses casos, o jovem possa estar se sentindo ameaçado a ponto recorrer a meios violentos. Em tais situações, o avaliador experiente pode auxiliar a converter agitação física e beligerância em catarse verbal. O clínico pode enfatizar a periculosidade e os riscos que o adolescente corre se consumar algumas ameaças feitas e pode auxiliá-lo a ter outro ponto de vista para suas atitudes, bem como ajudá-lo a compreender melhor seus potenciais de atuação. No caso de jovens especialmente agressivos, a entrevista diagnóstica deve ser interrompida sempre que se julga que sua segurança pessoal esteja sob risco. Outras fontes de auxílio à avaliação de jovens com sintomas disruptivos podem ser encontradas em Cepeda67• A apresentação de uma criança com TOD pode ser muito variada: ela pode vir à consulta correndo, ouvindo música, esmurrando a mãe. Pode brincar tranquila com brinquedos oferecidos, caçoar das pessoas, mostrar-se cooperativa e simpática com o avaliador, chorar em silêncio ou ter uma convulsão epiléptica na sala de espera. Ou ela pode apresentar várias dessas manifestações ao longo do tempo. Nenhuma dessas apresentações é suficiente ou necessária para indicar o diagnóstico, tampouco para descartá-lo. A maioria dos comportamentos problemáticos se dão fora do contexto clínico, e não em uma hora de entrevista. Se o local em que a criança é atendida é organizado e acolhedor, sua postura durante a avaliação pode fornecer um bom parâmetro de comparação. Assim, crianças com quadros mais leves tendem a apresentar autocontrole suficiente para conter-se ou assumir uma postura defensiva no ambiente desconhecido que é um consultório. Essas crianças podem ter manifestações agressivas restritas a determinados contextos: só na escola quando provocado ou incitado por colegas agressivos ou apenas quando se depara com um ambiente familiar hostil e imprevisível. Comportamento mais claramente agres-
sivo na avaliação tende a indicar quadros mais graves, com maior impulsividade, ou o sentimento de ameaça atual, como o temor de ser internado. Mais interessante que se limitar a inquirir os critérios dos manuais diagnósticos, é investigar como suas relações se estabelecem, sua capacidade de fazer vínculos, suas manifestações de trocas afetivas, em suma, como é sua socialização. Em um segundo tempo, a utilização de um instrumento padronizado pode ser útil para complementação de dados relevantes. No caso de adolescentes, deve haver especial cuidado para a distinção dos TsC em relação a apresentações disruptivas transitórias, típicas do processo de busca de identidade e autonomia dessa faixa etária. Como, de qualquer forma, algumas dessas apresentações podem trazer riscos reais de complicações posteriores - abuso de drogas, gravidez precoce, problemas com a lei - , a avaliação clínica se mostra, em muitos casos, uma boa oportunidade de discussão sobre tais temas com o jovem e sua família. Uma série de aspectos clínicos do jovem devem ser considerados para uma avaliação global: • Padrão e contexto: a variedade de atos antissociais e o contexto em que são realizados. • Nível: gravidade e frequência de atos antissociais comparadas com crianças da mesma faixa etária e gênero. • Evolução temporal: duração, persistência e mutação dos comportamentos ao longo do tempo. • Impacto: sofrimento e prejuízo social para a criança, danos e lesões causados a outrem. • Comorbidades: presença dos diagnósticos psiquiátricos mais comumente associados. • Fatores associados: histórico de abusos físico, sexual e emocional, gestação de eventos clínicos relevantes e vitimização em contextos extrafamiliares, como bullying. • Aprendizagem: histórico escolar, dificuldades no aprendizado e possíveis problemas pedagógicos. • Características positivas: realizações, talentos e aspectos favoráveis da personalidade devem ser ativamente questionados. Apresentação familiar
Em geral, as famílias vêm à avaliação após um longo e desgastante percurso de passagens por diversos profissionais, mudanças de escola ou encaminhamentos de instituições. Assim como ocorre com o jovem, o clínico deve ativamente engajar a família na avaliação e tratamento de modo a ganhar sua confiança e cooperação. É comum se observar pais apresentarem descontrole emo cional ou realizarem muitos dos atos de que se queixam nos filhos, tais como burlagem de regras, uso de termos ofensivos, mentiras e manipulações. Com frequência, encontram-se familiares que tecem apenas críticas ou observações negativas a respeito dos filhos, ignorando seus aspectos positivos e sem autocrítica de suas próprias atitudes inadequadas. A ausência da figura paterna e mães que não conseguem exercer autoridade sobre os filhos é
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comum nesses casos. Uma avaliação detalhada dos padrões de interação familiares e dos modos de parentagem é fundamental para a compreensão de cada caso e a criação de propostas terapêuticas. A investigação a respeito de quadros psiquiátricos na família é também imprescindível. Entrevistas em distintas etapas, com criança ou adolescente só, os pais sós e todos juntos, habitualmente ocasionam apresentações particulares e oferecem informações distintas que são úteis para a compreensão da dinâmica familiar. Os profissionais envolvidos devem desenvolver habilidades para mediação de conflitos frequentes entre os membros da família, com o cuidado de não tomar partido de um dos dois lados. Integração de info rmações
A habitual estruturação social complicada comumente oferece dados incompletos ou contraditórios. É recomendada a obtenção de diversas fontes de informação, de mais de um membro da família e de uma fonte externa, na maioria das vezes, dados de professores que convivem com o jovem na escola. Além disso, a obtenção de avaliações complementares como avaliação neuropsicológica e de psicodiagnóstico, pedagógica, fonoaudiológica e social mais aprofundadas são importantes para identificar fato res de risco a serem abordados no tratamento. Em condições ideais, essas informações deverão ser integradas e discutidas em equipe para a formulação de um diagnóstico amplo e para que seja elaborado um plano de tratamento adequado para as necessidades de cada caso.
Quadro clínico e psicopatologia A agressão é um fenômeno amplo, área de pesquisa dentre diversos ramos do saber. De forma breve, poderse-ia conceituá-la como um ato que visa atacar, provocar um dano ou lesão, geralmente a um objeto externo, mas ocasionalmente a si mesmo. A agressividade, por extensão, a prontidão para praticar agressões, é considerada um comportamento natural de boa parte do reino animal e, por conseguinte, também do ser humano. A criança nasce com um instinto agressivo, herança filogenética que a evolução natural selecionou, sem a qual o Homo sapiens não teria sobrevivido aos seus predadores e hominídeos rivais. A agressividade instintiva é um recurso habitualmente usado pelas crianças para lidarem com todo tipo de adversidade, a vida infantil é rica em manifestações agressivas e a incapacidade de realizar uma agressão também pode indicar déficits constitucionais. O período de maior agressividade no ser humano ocorre por volta do 3° e 4° anos de vida, em que cerca de 50% de crianças apresentam frequentes manifestações agressivas. Crianças de 2 e 3 anos muitas vezes brigam e agridem -se, geralmente em torno da posse de brinquedos e outros objetos desejáveis. Com o passar do tempo, a agressividade física tende a diminuir e a agressividade verbal, como ca-
çoar e dizer ofensas, a aumentar durante os anos da préescola e da escola primária. Como crianças mais velhas entendem melhor as intenções alheias, uma parte maior de sua agressividade é de retaliação e consiste em respostas à frustração e aos ataques de outras pessoas68 . Nesses casos, não representam necessariamente um sintoma ou comportamento desadaptativo, mas sim uma maneira inata de reagir a estímulos ameaçadores. O desenvolvimento é que deve propiciar a gradual redução desse re curso para a resolução de conflitos ou obtenção de gratificações. Para tal, contribuem tanto o amadurecimento do SNC quanto o processo civilizatório realizado pelas atuações familiar, escolar e ambiental mais ampla. Mesmo assim, a agressividade permanece no dia a dia adulto de forma mais ou menos atenuada em relações competitivas, no trabalho ou nos esportes e de maneira mais brutal nas guerras e nas diversas formas de criminalidade. A profusão de filmes e jogos de conteúdo explicitamente violento é uma clara indicação do fascínio que esse tema exerce sobre a humanidade. É a configuração da agressividade como modo predominante de interação, a sua ocorrência persistente e regular que indica um possível processo patológico envolvido. Em outras palavras, é quando a maior parte dos contatos interpessoais é mediado pela agressividade e afeta a socialização que se pensa na hipótese de um TC. De forma bem simples, pode-se conceituar socialização como a assimilação que cada indivíduo faz dos hábitos de seu grupo social por meio da compreensão dos símbolos, dos sistemas de ideias e das relações que constituem seus sistemas sociais. Essas relações são mediadas por regras básicas, normas, valores e modelos de comportamento da sociedade em que o sujeito está inserido. Na ocorrência de um desenvolvimento favorável a sua adaptação, a criança gradualmente adquire habilidades para se relacionar com outras pessoas nos mais diferentes contextos, inclusive naqueles conflituosos. Dentre essas habilidades, o uso da linguagem tem papel primordial. A linguagem permite a resolução de conflitos sem o uso da força física. Uma condição importante para uma socialização dita saudável é a capacidade de se inserir no código de normas de determinado grupo. Não que o indivíduo tenha que se adequar totalmente a regras muitas vezes arbitrárias, mas existem princípios gerais para uma boa socialização que tendem a ser os mesmos nas diferentes culturas: limites e contextos para manifestações de agressividade, princípio de respeito aos semelhantes, relações hierárquicas a serem observadas, entre outros. É importante ressaltar que atos de desobediência e transgressão a normas não indicam por si sós uma patologia, sendo, muitas vezes, manifestações de autonomia e lucidez. No entanto, a contestação e a mudança de condições sociais injustas ou opressoras não se efetivam sem a observação desses princípios universais de socialização. Sob esse ponto de vista, pode-se considerar, então, os TC como alte-
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rações particulares no desenvolvimento das formas de socialização que crianças e adolescentes devem adquirir para se relacionar com o mundo ao seu redor. Se as ações de uma criança ou adolescente se restringem à agressividade e sua inserção no conjunto de normas sociais básicas está prejudicada, algo na sua estruturação psíquica, na construção da sua relação com o mundo não vai bem. De qualquer modo, definir quando um padrão de comportamentos sociais passa a ser considerado patológico ou disfuncional é difícil, pois não existe uma clara linha demarcatória para tal. Estudos empíricos não indicam um nível em que os sintomas tornam-se qualitativamente diferentes, tampouco existe um ponto corte nos quais eles se tornam claramente prejudiciais para a criança. Os TsC, assim como outros diagnósticos psiquiátricos, encontram no modelo nosológico dimensional uma correspondência mais próxima da realidade observada, mas o diagnóstico categórico permanece mais difundido em razão de sua fácil aplicabilidade nos contextos clínico e de pesquisa. Uma ampla avaliação clínica se configura, então, como a maneira mais segura de definir que casos requerem o auxílio de uma equipe de saúde mental. Nesse sentido, os sistemas diagnósticos da CID e do DSM para o TOD e o TC, apesar de algumas fragilidades a serem discutidas mais adiante, constituíram-se em instrumentos úteis para um primeiro reconhecimento desses quadros e para a ordenação de uma série de informações que os cercam. Os critérios diagnósticos segundo o DSM-IV-TR69 sao:
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1. Tra nstorno de conduta a) Um padrão repetitivo e persistente de comporta-
mento, no qual são violados os direitos individuais dos . . . , . outros, ou normas, ou regras sociais Importantes propnas da idade, manifestado pela presença de três (ou mais) dos seguintes critérios nos últimos 12 meses, com presença de, pelo menos, um deles nos últimos seis meses: Agressão a pessoas e animais • provocações, ameaças e intimidações frequentes • lutas corporais frequentes • utilização de arma capaz de infligir graves lesões corporais (p.ex., bastão, tijolo, garrafa quebrada, faca, revólver) • crueldade física para com pessoas • crueldade física para com animais • roubo em confronto com a vítima (p.ex., bater carteira, arrancar bolsa, extorsão, assalto à mão armada) • coação para que alguém tivesse atividade sexual . consigo Destruição do patrimônio • envolveu-se deliberadamente na provocação de incêndio com a intenção de causar sérios danos • destruiu deliberadamente o patrimônio alheio (diferente de provocação de incêndio) Defraudação ou furto
• arrombou residência, prédio ou automóvel alheios • mentiras frequentes para obter bens ou favores ou para esquivar-se de obrigações legais (i. e., ludibria pessoas) • roubo de objetos de valor sem confronto com a vítima (p.ex., furto em lojas, mas sem arrombar e invadir; falsificação) Sérias violações de regras • frequente permanência na rua à noite, contrariando proibições por parte dos pais, iniciando antes dos 13 anos de idade • fugiu de casa à noite pelo menos duas vezes, en quanto vivia na casa dos pais ou lar adotivo (ou uma vez, sem retornar por extenso período) • gazetas frequentes, iniciando antes dos 13 anos de idade b) A perturbação do comportamento causa comprometimento clinicamente significativo do funcionamento social, acadêmico ou ocupacional. c) Se o indivíduo tem 18 anos ou mais, não são satisfeitos os critérios para TPAS. Especificar gravidade: Leve: poucos problemas de conduta, se houver, além dos exigidos para fazer o diagnóstico, sendo que os pro blemas de conduta causam apenas um dano pequeno a outras pessoas. Moderado: o número de problemas de conduta e o efeito sobre os outros são intermediários, entre leve e grave. Grave: muitos problemas de conduta além dos exigidos para fazer o diagnóstico ou problemas de conduta que causam dano considerável a outras pessoas. 2. Transtorno opositivo-desafiador a) Um padrão de comportamento negativista, hos-
til e desafiador com duração mínima de seis meses, durante os quais quatro (ou mais) das seguintes características estiveram presentes: • frequentemente perde a calma • frequentemente discute com os adultos • frequentemente desacata ou recusa-se ativamente a obedecer a solicitações ou regras dos adultos • frequentemente adota um comportamento deliberadamente incomodativo • frequentemente responsabiliza os outros por seus erros ou mau comportamento • frequentemente mostra-se suscetível ou irrita-se com facilidade • frequentemente enraivecido e ressentido • frequentemente rancoroso ou vingativo Nota: considerar o critério satisfeito apenas se o comportamento ocorre com maior frequência do que se observa tipicamente em indivíduos de idade ou nível de desenvolvimento comparáveis.
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b) A perturbação do comportamento causa compro-
metimento clinicamente significativo no funcionamento social, acadêmico ou ocupacional. c) Os comportamentos não ocorrem exclusivamente durante o curso de um transtorno psicótico ou transtorno do humor. d) Não são satisfeitos os critérios para TC e, após os 18 anos, não são satisfeitos os critérios para TPAS. Os critérios da CID-10 são muito semelhantes aos do DSM-IV-TR, com apenas algumas diferenças entre ambos. Enquanto o DSM classifica o TOD como uma entidade mórbida distinta, a CID o classifica como um subdiagnóstico do TC. No DSM, não há a especificação de subtipos da CID "socializado': "não socializado" e "restrito ao contexto familiar': Em contrapartida, o DSM inclui em sua taxonomia os subtipos "início precoce" e "início tardio". A CID apresenta também a categoria "transtornos mistos de conduta e emoções" e o "transtorno de conduta hipercinética", o que engloba apresentações que, no DSM, seriam consideradas condições comórbidas do TC com transtornos ansiosos e afetivos ou com TDAH, respectivamente. Ambos os sistemas apresentam especificações quanto à gravidade, divididos em leves, moderados e graves, e também apresentam uma série de diagnósticos afins para apresentações que podem ter relevância clínica mas não preenchem todos os critérios necessários para TO D e TC. O diagnóstico de TC teve como um dos principais elementos de validade os achados de estabilidade dos comportamentos ao longo do tempo. Estudos verificaram que as manifestações de comportamento agressivo e an-
Tabela I
Subdiagnósticos do DSM- IV-TR e da CID- lO
DSM-IV-TR •
Transtorno de comportamento disruptivo sem outra especificação
•
Transtornos da adaptação: com perturbação mista das emoções e da conduta
•
Transtorno da adaptação: com perturbação da conduta
•
Comportamento antissocial em criança ou adolescente
CID-lO •
F90.1
Transtorno de conduta hipercinética
•
F91.0
Transtorno de conduta restrito ao contexto familiar
•
F91.1
Transtorno de conduta não socializado
•
F91.2
Transtorno de conduta socializado
•
F91.8
Transtornos de conduta
•
F91.9
Transtorno de conduta não especificado
•
F92.0
Transtornos mistos de conduta e emoções
•
F92
Transtorno de conduta depressivo
•
F92.8
Outros transtornos mistos de conduta e emoções
•
F92.9
Transtorno misto de conduta e emoções, não especificado
tissocial apresentam a maior continuidade para a idade adulta depois do nível de inteligência 11• Isso sugere traços temperamentais fortemente arraigados no modo de perceber e agir de tais indivíduos, que os predisporia aos comportamentos antissociais. Contudo, se, por um lado, os TsC apresentam grande estabilidade ao longo do tempo, por outro, os sistemas diagnósticos, ao requererem a presença mínima de apenas três critérios entre 15 possíveis do TC, ocasionam um diagnóstico bastante abrangente e in específico, com diversidade muito grande de apresentações e quadros muito heterogêneos, o que sugere quadros de naturezas diversas, classificados sob o mesmo diagnóstico. Além disso, fenômenos muito distintos como fugas de casa e crueldade física com animais têm mesmo peso, sem que se considere a profunda diferença qualitativa entre eles. Assim, uma menina de 9 anos que, no último ano, mentia frequentemente, cabulava aulas e furtava objetos receberia o mesmo diagnóstico de um rapaz de 17 anos com frequentes atos de crueldade, assalto à mão armada e roubos de automóveis. Vale mais uma vez observar que comportamentos disruptivos se constituem numas das principais formas de crianças e adolescentes reagirem a adversidades. A forte propensão de crianças desenvolverem comportamentos externalizantes como resultado de limitações constitucionais e adversidades vindas do ambiente pode ser exemplificada pela alta prevalência de TsC em crianças com diagnóstico de paralisia cerebral hemiplégica. Goodman encontrou 25% de crianças com manifestações compatíveis com o diagnóstico de TsC nessa forma de lesão cerebral precoce7°. Diante da grande heterogeneidade de apresentações, têm -se sugerido subtipos que visam distinguir grupos de pacientes com diferentes constituições e prognósticos. Além dos subtipos mencionados anteriormente, há ainda outros sugeridos, mas não plenamente incorporados pelos sistemas classificatórios por não terem sua validade clínica e científica comprovada: início precoce versus início na adolescência; socializado versus não socializado; predominância de sintomas encobertos versus sintomas expostos; presença de agressividade reativa versus agressividade proativa ou instrumental; com TDAH versus sem TDAH; com transtornos afetivos versus sem transtornos afetivos. Dentre os subtipos sugeridos, aqueles que distinguem início precoce (antes da puberdade) e início na adolescência têm sido mais estudados e mostrado consistente validade prognóstica. Tal subdivisão, proposta por Moffi.tt e Scott 11, mostra as seguintes distinções: Início precoce: aqueles com início precoce mostram comumente comportamento agressivo e desafiador antes dos 8 anos, sendo que este se inicia, tipicamente, por volta dos 3 anos. Eles passam a ampliar seus comportamentos antissociais na medida em que crescem. No entanto, nem todos com esse padrão progridem para dificuldades
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mais graves. Cerca da metade persiste e o restante apresenta remissão espontânea. Comparado com o grupo de início na adolescência, esse grupo mostra temperamento mais difícil por volta dos 3 anos de idade (inquietação, desatenção, negatividade, irritabilidade etc.). Na idade escolar, esse grupo tem mais déficits motores, de linguagem e cognitivos, dificuldades de leitura, contextos familiares adversos e parentagem pobre. Com 18 anos, eles possuem poucos amigos, sentem-se alienados socialmente, vitimizados e são frios e desconfiados. Em virtude da frequente manutenção dos sintomas ao longo do tempo, esse grupo é também denominado "início precoce-curso persistente'~ Início na adolescência: esse grupo, cerca de 3 vezes mais comum, abrange os adolescentes que não apresentavam comportamento antissocial antes da puberdade. Além disso, a maioria dos indivíduos desse grupo cessa a apresentação de comportamentos antissociais na idade adulta. Seus comportamentos tendem a ser menos impulsivos, agressivos e violentos. Os adolescentes desse grupo possuem menos déficits cognitivos e neuropsicológicos, e tendem a vir de ambientes familiares menos disfuncionais e a ter qualidades sociais mais adaptativas, por isso são também chamados de grupo "limitado à adolescência''. A frequência geral de prisões e condenações judiciais é significativamente menor que a de início precoce. Nesse grupo, cresce a prevalência feminina, porquanto a proporção entre a razão masculina e a feminina cai de 4:1 para 2:1. A listagens dos comportamentos utilizados como critérios dos manuais diagnósticos se limita a servir como uma triagem inicial, que, no entanto, não oferece uma avaliação da mente do jovem em questão. Para tal escopo, é necessário lançar mão de conceitos de psicopatologia. Embora este capítulo não comporte uma exposição mais ampia sobre tal metodologia, acredita-se que alguns de seus princípios merecem ser observados71 • Nesse sentido, as funções mentais são vistas de maneira distinta hierarquicamente e colocadas em contexto com o todo do psiquismo. Essa estrutura total do psiquismo teria, por sua vez, papel central em manifestações de funções específicas, realizando uma relação em que o todo é pelas partes constituído e, também, as determina, formando o chamado círculo hermenêutico. Em um raciocínio psicopatológico não se furta a observação da temporalidade mental, aspecto que, em se tratando de infância e adolescência, se mostra crucial. Aspectos como a capacidade de antecipação dos fatos e da visualização do transcorrer temporal mostram-se como ponto a ser melhor compreendido na psicopatologia dos transtornos de conduta, desde a realização de ações de forma inconsequente, tanto em relação a outras pessoas como ao próprio realizador. É comum o relato de jovens sobre nem sequer terem considerado, o que poderia suceder uma agressão física. Nesses casos, o ato fica circunscrito ao aqui e agora. Em outras palavras, nota-se que a constituição da temporalidade se dá de for-
ma diversa, porém, mais limitada que a esperada para determinada faixa etária. Uma avaliação dos modos em que são expressos os comportamentos-alvo é muito importante para a distinção da natureza do fenômeno apresentado. Boa parte dos comportamentos requeridos para o diagnóstico de TC podem representar estados psíquicos de natureza diversa e que indicam constituições e processos psíquicos distintos, com importância capital para uma avaliação do jovem em questão. Furtos frequentes, por exemplo, carregam consigo, de acordo com as circunstâncias, diversos conteúdos inarticuláveis em pensamentos: a aquisição de um bem negado, a esperança de presentear e ser reconhecido, um ato de heroísmo, rendição à autoimagem de marginal ou vingança72 . Jenkins 73 propõe que a psicopatologia externalizante, manifesta por suas expressividades, é "baseada numa organização afetiva na qual a raiva predomina. A raiva como uma orientação em direção ao mundo na qual a frustração é experienciada e se busca dominância sobre a outra pessoa". Observa-se, nessa inferência, mais um exemplo do afeto mediando a interação com o mundo. Em situações em que a raiva é repetidamente incitada, a . , . . cnança estara ma1s propensa em constrmr um esquema mental do outro e mesmo do mundo como intencionalmente impeditivo de realizar seus desejos. Trata-se de uma situação em que a construção de princípios de conduta se baseariam num contexto de embate e disputa. Com o "eu" constantemente ameaçado, a noção de bem comum teria pouco espaço, pois raramente coexistiria com vivências de bem pessoal. Numa situação dessas, a moralidade do discurso comum soaria como um palavrório que a realidade já mostrara ser um engodo. Em alguns casos, condutas antissociais refletiriam uma moralidade construída para a adaptação a um mundo hostil, este próprio baseado em regras inconsistentes. Não se estranha, então, o fato de ambientes familiares marcados por hostilidade, ausência de afeto, ausência de supervisão e disciplina inconsistente constarem como fatores de risco frequentes para o desenvolvimento de TsC. Vale notar aqui também o quão pouco o amadurecimento moral é considerado na literatura a respeito dos TsC. Apesar de o diagnóstico valer-se do termo conduta, que, na língua inglesa (conduct: behaviour- especially in its moral aspect), possui uma forte conotação moral, a construção do diagnóstico não leva qualquer aspecto da moralidade na sua constituição. Jean Piaget e Lawrence Kohlberg elaboraram concepções a respeito do desenvolvimento moral, que estão por ser melhor estudadas em relação aos jovens com TC. O conceito de TsC como é conhecido hoje foi estabelecido em 1980 e, desde então, houve uma grande proliferação de pesquisas sobre esse tema. Porém, ainda carece de investigações que aprofundem o conhecimento fenomenológico e psicopatológico desses quadros.
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Diagnóstico diferencial e comorbidades A realização de um diagnóstico diferencial e uma simultânea consideração das possíveis comorbidades é, naturalmente, muito importante para o estabelecimento de medidas terapêuticas adequadas. Em relação ao diagnóstico diferencial, vale lembrar que o princípio da consideração cronológica do surgimento dos comportamentos e sintomas dos quadros a serem investigados é de suma importância. Assim, apresentações nas quais um suposto TC se inicia claramente a partir da instalação de quadros depressivos, psicóticos ou do uso de drogas, tendem a indicar que os comportamentos disruptivos são secundários a outra enfermidade e o diagnóstico de TC não se aplica.
TDAH O TDAH é, sem dúvida, um quadro de particular importância para a avaliação dos TsC, em razão dos altos índices de comorbidade - cerca de 50% dos jovens com TDAH apresentam quadros compatíveis com TsC. Uma vez que a fisiopatologia dos dois quadros compartilham uma série de fatores de risco (por exemplo, déficits executivos) e apresentações clínicas (por exemplo, impulsividade), o diagnóstico diferencial se faz difícil, já que, às vezes, é difícil realizar uma linha demarcatória entre os dois diagnósticos. Mesmo o critério cronológico não tem o mesmo valor, uma vez que o TDAH, como um transtorno do nerodesenvolvimento, representa um fator de risco para TC. Não surpreende que o uso de metilfenidato, a medicação de escolha no tratamento do TDAH, resulte em melhora significativa de comportamento externalizante em uma parcela dos jovens com TC. Por isso mesmo, a CID-1O e outros autores propõem um subdiagnótico de TDAH-TC. De qualquer forma, trata-se de uma comorbidade importantíssima, já que, além de sua alta frequência, a apresentação de TsC tende a caracterizar quadros mais graves de TDAH, assim como a comorbidade com TDAH tende a ser apontada como um fator de risco para TsC de pior evolução.
Transtornos afetivos e ansiosos Em meninos, especialmente, observam-se quadros depressivos mascarados por manifestações agressivas e antissociais. O próprio hábito cultural de associar masculinidade com bravura e de desestimular manifestações de fragilidade parece fazer com que meninos evitem a todo custo mostrar tristeza e expressem emoções por meio da raiva, menos ridicularizada entre seus pares. A avaliação cuidadosa do humor e afeto do jovem, principalmente em situações em que conflitos estão menos presentes é recomendada para a consideração de transtornos afetivos ou ansiosos. O questionamento a respeito de sintomas ansiosos como medos ou ideias obsessivas deve ser realizado ativamente, pois frequentemenete o jovem não
relata esses sintomas espontaneamente e os familiares os desconhecem. Outros sintomas, como anergia, anedonia, irritabilidade pronunciada e alterações no sono ou ape tite, indicam a necessidade de consideração de transtorno depressivo ou transtorno afetivo bipolar. O transtorno de estresse pós-traumático deve ser investigado, já que crianças e adolescentes são mais comumente vítimas de exposição a diversas formas de violência.
Abuso e dependência de substâncias Os TsC devem naturalmente ser descartados quando os comportamentos disruptivos ocorrem apenas claramente associados a um período de consumo frequente de álcool ou outras drogas. A comorbidade entre tais diagnósticos é, no entanto, frequente, já que diversos fatores de risco fazem com que jovens disruptivos se exponham mais precocemente a substâncias e delas façam um uso abusivo. Os TsC são mais associados ao abuso de substâncias que outros diagnósticos psiquiátricos. Em um grande grupo de jovens delinquentes, Weiz74 constatou que o abuso de substâncias predizia a escalada de comportamento violento. Dessa forma, essa comorbidade é importante, pois tende a ocasionar, em padrões mais graves de ambos os diagnósticos, um efeito de retroalimentação positiva de intensificação dos sintomas.
Retardo mental Como já mencionado anteriormente, existe uma associação significativa de TsC com baixos Qis. A maior ocorrência de dificuldade de controle de impulso, desregulação emocional e déficits cognitivos traz a essa população maiores riscos de desenvolver padrões agressivos de interação social. É importante notar, no entanto, que em boa parte de jovens com retardos mentais, comportamentos disruptivos ocorrem como resultado claro de desadaptação a ambientes que não sabem lidar com suas necessidades especiais. É comum, por exemplo, que jovens recebam erroneamente o diagnóstico de TC quando frequentam séries escolares mais adiantadas mas não estão alfabetizados e acabam sendo vítimas de bullying de colegas.
Transtornos psicóticos Períodos prodrômicos de quadros psicóticos podem ser apresentados por meio de comportamentos disruptivos em adolescentes, que, porém, se revelam, com o tempo, como secundários a dificuldades de adaptação ou à sintomatologia delirante persecutória.
Transtornos globais do desenvolvimento A recente consideração de algumas semelhanças em termos de cognição social tem chamado a atenção para
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uma possível confluência de apresentação dos dois quadros numa pequena população de pacientes com quadros do espectro autista de autismo de melhor rendimento intelectual. Na maioria dos pacientes com transtornos globais do desenvolvimento, no entanto, comportamentos disruptivos são secundários à desadaptação ao meio, como descrito a respeito dos retardos mentais.
Transtornos específicos do aprendizado Dislexia, discalculia, dentre outros transtornos são encontrados com maior frequência nos TsC e representam um fator de risco para a progressão do quadro, já que aumentam muito a chance de fracasso escolar.
Evolução e curso Uma série de estudos de seguimento mostra altos índices de permanência dos TsC ao longo da vida. Sabe-se, por outro lado, que cerca de 50% das crianças com TOD apresentam remissão espontânea e não evoluem para um TC na adolescência. Já metade dos jovens, aproximadamente, que apresentam diagnóstico de TC mantém um padrão de comportamento antissocial até a idade adulta. A incidência e permanência de diversos fatores de risco ao longo de diversos períodos da vida parece ter papel fundamental para uma evolução favorável ou não. Mesmo aqueles que evoluem com atenuação ou abolição de comportamentos antissociais na idade adulta podem apresentar uma série de dificuldades decorrentes das desadaptações ao longo da adolescência, como dificuldades em encontrar um emprego em virtude do histórico de insucesso escolar, dependência de álcool e drogas, entre outros. Uma evolução desfavorável dos TsC é aquela que se apresenta na idade adulta como o quadro de TPAS. Vale destacar aqui a necessidade da apresentação clínica de TC antes dos 15 anos para o diagnóstico de TPAS. Essa re quisição reforça a necessidade de estabilidade de padrões de comportamento, estilo de vida e modo de se relacio nar do indivíduo para que se considere haver um distúrbio da personalidade. Um quadro que se instala subitamente a partir dos 20 anos, sem antecedentes de padrões alterados de interação social, deve suscitar a hipótese de um quadro de origem estritamente orgânica ou um processo, uma quebra súbita na estrutura pessoal prévia. Tacitamente, o DSM requer o TPAS como um distúrbio do desenvolvimento, segundo a clássica nosologia de Jaspers (1948). As bases da apresentação final já estariam dadas precocemente e caberia aos fatores de risco psicossociais contribuir para o desenrolar patológico. O TC compartilha com o TPAS a característica de ser essencialmente constituído por padrões de comportamentos desviados das normas sociais, mais que de conjuntos de sinais e sintomas propriamente ditos. Isso traz consigo a questão: os TsC e o TPAS não fariam parte de um conti-
num temporal de um único quadro nosológico? Adentrase, assim, no tema da pertinência da consideração do diagnóstico de TPAS antes da idade adulta. Os sistemas classificatórios oficiais não contemplam o diagnóstico de transtornos de personalidade para a infância e adolescência. Isso se deve, antes de tudo, à ausência de estudos que comprovem ou refutem de forma inequívoca tal possibilidade nessas faixas etárias. Soma-se aí o argumento teórico de que, uma vez que a personalidade dos jovens não está completamente consolidada até a idade adulta, seria errôneo realizar um diagnóstico de conotação permanente. Finalmente, existe a preocupação de que um diagnóstico de transtorno de personalidade acarretaria estigmatização e desinvestimento precoce do jovem por conta de uma condição por muitos considerada como intratável. Por outro lado, Kernberg, Weiner e Bardenstef5 defendem a realização do diagnóstico de transtornos de personalidade em crianças e adolescentes. Eles argumentam que uma série de características da personalidade, tais como empatia, impulsividade, estilo de pensamento, entre outros, tem sido sistematicamente estudadas e verificadas precocemente em crianças e apresentam significativa estabilidade ao longo do tempo. Defendem que os transtornos de personalidade em crianças são confiavelmente identificáveis e demonstram um padrão de persistência que torna seu impacto abrangente e grave. Segundo esses autores, a despeito do problema da estigmatização, não diagnosticar um transtorno de personalidade na criança pode também comprometer seu futuro, dificultando ou impossibilitando-a de obter os tratamentos necessários e apropriados. Independentemente da realização de diagnóstico de TAPS na infância, estudos realizados nas últimas décadas trazem uma série de informações relevantes para a compreensão da relação entre os TsC e o TPAS. Como mencionado na introdução deste capítulo, Robins foi a primeira pesquisadora a constatar o alto índice de evolução de jovens com perfil antissocial para quadros de TPAS na idade adulta. O outro lado da moeda foi que 55% dos jovens estudados não persistiam no padrão antissocial, cujo dado se mantém semelhante em estudos mais recentes. Surgiram daí questões acerca de que características poderiam indicar que jovens evoluiriam para o TPAS e se a intervenção sob algumas dessas características poderiam ter aplicabilidade clínica para tratamentos mais eficazes. Uma das características mais estudadas tem sido o surgimento precoce do quadro. Moffif6 mostrou em diversos estudos que crianças que apresentavam o diagnóstico de TC antes da adolescência apresentam maior risco de evolução para TPAS. Características de temperamento parecem estar fortemente associadas a maior incidência e manutenção de comportamentos agressivos na infância. Isso porque o temperamento, constituinte inato e primordial da personalidade, fornece as bases nas quais se apoiarão uma série de comportamentos a serem integrados ao modo de ser individual. Diversos estudos indicam traços
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particulares de temperamento que favorecem o desenvolvimento de comportamentos desadaptativos e disruptivos em particular. Clarck77 afirma que o traço temperamental mais provável de contribuir para o espectro de comportamentos disruptivos é uma tendência geral para a desinibição em detrimento da contenção, que inclui tanto uma baixa conscienciosidade quanto uma baixa concordância. Como já mencionado, diversos estudos mostram que a tendência à desinibição está frequentemente associada a TsC. Crianças com baixa capacidade de exercer autocontrole, planejamento, cuidado e deliberação apresentam maior risco de desenvolver comportamento opositivo, agressividade e problemas de conduta78 . Além da desinibição, outros padrões de temperamento têm sido associados a subtipos específicos de TC. Primeiro, há jovens disruptivos caracterizados por altos níveis de raiva, irritabilidade e agressividade reativa. Crianças que ficam facilmente enraivecidas, mas que possuem baixo autocontrole podem ser particularmente vulneráveis a desenvolver problemas de conduta e opositividade, nesses casos, o problema é forte mente o da baixa autorregulação emocionaF9. Esses jovens teriam seu quadro mais facilmente exacerbado por condições ambientais adversas. Tal perfil de personalidade parece caracterizar jovens com TDAH eTC comórbidos80, assim como aqueles que desenvolvem problemas de abusos de substâncias81 • No subgrupo de jovens que desenvolve TsC apenas na adolescência são apontadas personalidades caracterizadas por uma falta de valores tradicionais e uma forte motivação para atrair atenção e exercer influência sobre os outros82. Por fim, é apontado outro subgrupo de jovens, com tendências psicopáticas que apresentam aspectos de baixa concordância (manifesta por manipulação, baixa empatia e remorso) e baixo temor a estímulos ansiogênicos83. Como características centrais da psicopatia são apontadas: a disfunção emocional, em que há baixa responsividade afetiva; um processamento prejudicado de expressões de temor e tristezas alheias; e pobreza nos sentimentos para com outras pessoas84 . Diversos estudos mostram que esse subgrupo apresenta alterações na regulação do sistema nervoso autonômico (SNA) com mais frequência, como menor resposta de frequência cardíaca diante de eventos estressores85 • Esses jovens são menos inclinados à socialização e seus comportamentos disruptivos são menos relacionados ao contexto. Apesar das fortes relações repetidamente identificadas entre o início precoce, variantes agressivas do TC e problemas persistentes ao longo da infância e adolescência frequentemente levam a comportamentos antissociais adultos, entretanto, nem todas as crianças que apresentam essa forma mais grave do TC se tornam adultos antissociais. O trabalho de Magnusson e Bergman86 é especialmente instrutivo a esse respeito ao salientar as relações multifatoriais complexas envolvidas com as características e curso dos TsC. Ao fazer uma abordagem orientada do estudo do TC, esses investigadores apontam que crian-
ças altamente agressivas que eram deficitárias de outros modos, incluindo relações pobres com pares, baixa motivação escolar e baixo desempenho escolar frequente mente progrediam para comportamento adulto antissocial. Crianças com níveis comparáveis de agressividade sem tais déficits não progrediam para comportamentos antissociais adultos tão frequentemente. Talvez a forma mais útil de conceituar a evolução dos TsC seja aplicar um modelo de desenvolvimento aos processos transacwna1s que ocorrem entre as caractenstlcas do indivíduo e os múltiplos níveis de ambiente (lar, esco la, vizinhança e a comunidade e cultura maiores) aos quais ele está continuamente exposto. Em tais modelos transacionais, pode-se construir um número plausível de vias que levem a distúrbios graves e persistentes da conduta e, consequentemente, a sério prejuízo para a vida do jovem87. Também é preciso enfatizar que a questão davariação no tempo é de importância central para a recons trução da evolução dos TsC, pois raramente todas as manifestações e complicações desses transtornos se apresentam simultaneamente, e tampouco se manifestam em níveis de máxima gravidade em todos momentos. As relações de comportamentos sintomáticos com os fatores de risco envolvidos que variam com o tempo abrem uma perspectiva extremamente importante para a compreensão da psicopatologia do desenvolvimento dos TsC8. Destaca-se, a seguir, as características mais frequentemente associadas com evoluções desfavoráveis dos TsC: • Início precoce • Apresentação comportamental mais variada, fre quente e intensa • Comorbidade com TDAH • Baixo QI • Características psicopáticas • Criminalidade parenta! • Parentagem inadequada • Associação com pares antissociais •
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I
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Epidemiologia O seminal estudo de Rutter na Ilha de Wight, publicado em 1970, mostrou uma prevalência de 4,2% de TsC numa população de 10 e 11 anos. A maioria dos estudos epidemiológicos realizados nos países ocidentais a partir de então tem mostrado prevalências de TsC entre 5 e 1O % em crianças e adolescentes, com variações de acordo com as populações estudadas e os instrumentos utilizados88 . No Brasil, em estudo recentemente realizado no município de Taubaté, em São Paulo, Fleitlich-Bylick89 encontrou a prevalência geral de 7% de TsC numa população escolar de 7 a 14 anos. Observou-se uma razão aproximada entre os gêneros de 3 meninos para cada 1 menina afetada. Bastante significativos foram os achados de diferentes prevalências de acordo com o tipo de escola fre quentada: 2,1% em escolas particulares, 4,9% em escolas
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públicas no meio rural e 8,0% em escolas públicas urbanas. Esses dados também encontram-se em consonância com outros estudos que mostram maior acometimento no sexo masculino, em populações urbanas e em áreas socioeconômicas menos favorecidas.
Tratamento Assim como a avaliação, o tratamento também oferece uma série de dificuldades a serem encaradas, asaber: os altos índices de abandono, a baixa adesão às orientações realizadas, ocasionadas pela própria condição psicopatológica dos pacientes, suas famílias e instituições responsáveis etc. O pessimismo e o pouco investimento que os próprios profissionais de saúde oferecem a tais casos parecem ainda refletir antigas concepções deterministas. Para evitar essa postura, faz-se necessário a oferta de informação aos profissionais a respeito da atual compreensão dos TsC e das formas de tratamento que têm mostrado resultados mais animadores. Outro ponto fundamental e desafiador no tratamen to dos TsC é realizar uma verdadeira integração dos diversos profissionais envolvidos. Em virtude dos múltiplos fatores de diferentes naturezas envolvidos, o tratamento apresenta melhores respostas quando envolve a atuação combinada de profissionais das áreas de psiquiatria, psicologia, pedagogia e serviço social na maioria dos casos. De forma complementar, fazem-se frequentemente necessárias as atuações de profissionais de direito, fonoaudiologia, enfermagem, terapia ocupacional, pediatria, entre outros. A integração de tantos profissionais e o equacionamento racional de um plano de tratamento fun cionam melhor com a formação de equipes treinadas para reconhecer e lidar com as especificidades dessa população. Na atual realidade brasileira, a falta de recursos, principalmente humanos, faz com que sejam raros os locais em que tratamentos integrados sejam oferecidos. Uma vez realizado o diagnóstico de TC ou TOD, deve-se estabelecer um plano de tratamento adequado à condição clínica particular de cada paciente e aos diversos fatores sociais que o envolvem, com destaque para a família e a escola. As próprias avaliações iniciais já realizarão um mapeamento dos fatores de risco que deverão ser abordados. Assim, alguns desses fatores poderão ser minimizados (constituição temperamental difícil, comorbidades), outros, abolidos (práticas parentais abusivas ou inadequadas) e, se possível, evitados (abuso de drogas, fracasso escolar). Os fatores protetores, por sua vez, como talentos específicos, poderão ser reforçados. É muito comum que os familiares tenham expectativas fantasiosas e irrealistas sobre o tratamento e esperem que seja rápido e eficiente, o que raramente acontece. Além disso, frequentemente os cuidadores ignoram a necessidade de assumir um papel ativo, fundamental até, para que mudanças ocorram. Com frequência, observam-
se famílias que se queixam da desobediência constante de seus filhos, mas que, diante do tratamento, também não seguem as orientações dadas, mentem e manipulam informações. Para assegurar uma melhor participação, é de grande valia a exposição das condições do tratamento, como: assiduidade, comprometimento com as propostas oferecidas, aspectos legais envolvidos etc. Medidas para reforçar o engajamento familiar são particularmente importantes para esse grupo de crianças e famílias, já que o abandono do tratamento é alto, por volta de 30 a 40%. Medidas práticas, tais como assistência com o transporte, provisão de cuidado para crianças mais novas, realização de sessões terapêuticas à noite ou aos fins de semana para favorecer a presença da família, auxiliam a participação. Muitos pais de crianças com TC são intolerantes a críticas e apresentam dificuldades com autoridade. Por isso, as abordagens tendem a render melhor quando são respeitosas em relação ao seu ponto de vista, não oferecem soluções de modo claramente prescritivas e não criticam o estilo de parentagem diretamente. Quando os responsáveis não colaboram ou um relacionamento abusivo é detectado, pode ser necessário o contato com instâncias públicas, como o conselho tutelar ou a vara da infância, para assegurar a continuidade do tratamento ou abrigar a criança, em casos em que sua segurança está sob grande risco. É importante, durante esse período, manter o trabalho com a família para melhorar suas posturas com a criança, de modo que ela possa recuperar a sua guarda. Quando há problemas graves e duradouros, a permanência no abrigo a longo prazo ou adoção podem ser recomendados. Para uma visão geral das abordagens terapêuticas mais habitualmente realizadas nos TsC, sugere-se a revisão realizada por Eddy90• Em seguida, algumas informações sobre as modalidades de tratamento mais divulgadas na literatura médica e psicológica serão expostas.
Grupos de orientação e treinamento de habilidades parentais Com base nas observações de que as atitudes dos pais estão relacionadas com o desenvolvimento dos TsC, como disciplina inconsistente e supervisão inadequada, foram criados diversos programas de treinamento para pais a fim de ajudá-los a redirecionar seus esforços, passando da criação inadvertida de problemas de comportamento para o ensino sistemático de comportamentos pró-sociais. Esse treinamento os ajuda a tornarem-se ''modificadores de comportamentos" mais eficazes, que monitoram adequadamente quais são os problemas na família, fazem planos para resolvê-los e implementam-nos. Diversos estudos apontam programas de orientação ou treinamento familiar como a medida terapêutica mais eficaz. O modelo mais bem estudado é a realização de grupos de famílias nos quais um ou mais terapeutas discutem e orientam as melhores
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maneiras de lidar com tais jovens, e tratam de temas tais como colocação adequadas de limites, promoção de atitudes positivas, como lidar com questões escolares etc. Segundo Scott91, o treino de habilidades parentais tipicamente inclui cinco elementos: 1) A promoção do brincar e de uma relação positiva. No intuito de romper o ciclo de comportamento desafiador e recriminações, é importante estimular algumas experiências positivas para ambos os lados e começar a construir um relacionamento. Ensinar aos pais as técnicas de como atuar de uma forma construtiva e não hostil com seus filhos ajuda-os a reconhecer as necessidades da criança e a responder sensivelmente. A criança, por sua vez, passa a respeitá-los mais, tornando-se mais segura no relacionamento. 2) Elogio e recompensas para comportamento sociável. Os pais são auxiliados a reformular comportamentos difíceis nos termos do comportamento positivo que eles desejam, de forma que o comportamento esperado seja encorajado em vez de o comportamento indesejado ser apenas criticado. Por exemplo: ao invés de gritar com a criança para que não corra, eles o elogiariam sempre que ele caminhasse calmamente; assim a criança o faria mais frequentemente. Por meio de centenas de interações pro saicas, o comportamento pode ser substancialmente modificado. Ainda assim, alguns pais encontram dificuldade em elogiar e falham em reconhecer um comportamento positivo quando este acontece, o que consequentemente leva a tornar-se menos frequente. 3) Regras e comandos claros. As regras precisam ser explícitas e constantes; comandos precisam ser firmes e breves. Assim, gritar com uma criança para parar de ser travesso não diz o que deve ser feito, enquanto dizer para ele brincar calmamente é uma instrução clara, o que torna a aceitação mais fácil. 4) Consequências ponderadas e consistentes para comportamentos inadequados. Desobediência e agressão devem ser confrontadas de modo firme e calmo - por exemplo, colocando a criança num quarto durante alguns minutos. Esse método de 'pausa para reforço positivo' soa simples, mas requer uma habilidade considerável para ser administrada efetivamente. Comportamentos irritantes como gritos e choro alcançam boas respostas por parte da criança quando ignorados, mas, na prática, é difícil para os pais conseguirem agir dessa forma. 5) Reorganização do dia da criança para prevenir problemas. Há pontos problemáticos no dia a dia que respondem bem a medidas simples, como colocar irmãos em quartos diferentes para evitar brigas ao voltar da escola para casa, banir a televisão de manhã até a criança estar vestida, entre outros. As intervenções familiares devem abordar também temas além do desenvolvimento de habilidades e tocar em fatores indiretos para assegurar mudanças. Por exemplo, abuso de álcool e drogas por ambos os pais, depressão materna e relacionamento violento com o parceiro
são todos comuns. Assistência na obtenção de auxílios financeiros e no planejamento financeiro podem reduzir o estresse causado por dívidas.
Treinos de habilidades interpessoais da criança A maioria dos programas para melhorar as habilidades interpessoais da criança derivam de terapia cognitivacomportamental (TCC), cujas três mais efetivas são selfinstructional training, anger coping program e promoting alternative thinking strategies (PATHS). Esses e outros programas têm em comum o treinamento de jovens para: 1) parar e pensar em situações de desafio para diminuir respostas impulsivas; 2) reconhecer seu nível de excitação fisiológica, assim como o próprio estado emocional; 3) reconhecer e definir problemas; 4) criar diversas repostas alternativas; 5) escolher a melhor alternativa, baseando-se na antecipação dos resultados; 6) reforçar o uso da proposta descrita. Tipicamente, aplicado isoladamente, o tratamento é reforçado com o treinamento de habilidades interpessoais, mas, apesar de ter seu valor, apenas generaliza situações reais do cotidiano, como o recreio na escola. Quando realizado como parte de um programa mais abrangente, porém, pessoas que participam do dia a dia da criança podem reforçam a abordagem, acrescentando ganhos na evolução.
Psicoterapias psicodinâmicas Apesar de não terem suas eficácias práticas empíricamente asseguradas nos TsC, é certo que psicoterapias psicodinâmicas individuais dos jovem e dos familiares podem contribuir consideravelmente ao seu tratamento. Assim como nas terapias de família, servem tanto para fazer uma avaliação de que casos estão mais aptos a se beneficiar com esse tipo de abordagem, como para identificar seu melhor momento de realização. Trata-se do contato com a sua historicidade e com os significados de sua inserção no mundo. O estabelecimento de um relacionamento interpessoal significativo com o terapeuta tem um efeito transformador para alguns jovens. É, naturalmente, uma medida terapêutica que demanda continuidade ao longo do tempo para que mudanças estruturais possam ser observadas.
Psicofarmacoterapia Não existem medicações psiquiátricas de uso padrão ou de primeira escolha para os TsC. Há ainda relativamente poucos estudos publicados sobre a eficácia de psicofármacos nos TsC e a maioria envolve populações pequenas ou com outros quadros comórbidos. Seu emprego de medicações está mais claramente recomendado quando da presença das comorbidades que comumente ocorrem com os
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TsC. As intervenções farmacológicas mais estudadas investigaram a ação de psicoestimulantes (metilfenidato) em crianças e adolescentes com TsC e TDAH comórbidos. Nesses casos, há evidências de que redução na hiperatividade e impulsividade resulta também na redução em problemas de conduta92 • Um estudo de Klein93 encontrou melhoras em sintomas de TC, independentemente da redução de sintomas de TDAH, mas ainda há necessidade de replicação para concluir que estimulantes reduzem a agressividade na ausência de TDAH. De modo análogo, quando transtornos afetivos são detectados, podem-se obter respostas favoráveis com uso de antidepressivos ou estabilizadores do humor. Pesquisas indicam que alguns fármacos agem em determinados sintomas dos TC, constituindo, portanto, abordagem coadjuvante significativa, especialmente em pacientes com comportamentos impulsivo ou agressivo pronunciados. Alguns antipsicóticos têm sido usados mais recentemente, com mais estudos positivos envolvendo o uso de risperidona94·, e podem auxiliar em casos em que predominam impulsividade ou agressividade física pronunciada. Alguns estudos mostraram eficácia do lítio, do valproato de sódio e da carbamazepina na redução de agressividade em populações com TsC95 • O uso de clonidina e propranolol também tem mostrado alguma eficácia na redução de agressividade em alguns estudos com pequeno número de pacientes. O uso de inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS), bem como de bupropiona, tem mostrado resultados incondusivos ou contraditórios. As medicações parecem agir melhor em agressividade e fúria, enquanto sintomas mais complexos como furtos e mentiras não respondem tão bem. Outros possíveis papéis dos medicamentos no tratamento dos TsC são melhorar a atenção e reduzir a irritabilidade, auxiliando que algumas crianças se tornem capazes de obter benefícios com as intervenções psicossociais. A diversidade de medicações utilizáveis na redução de sintomas dos TsC, sendo que nenhuma delas é inequivocamente efetiva, parece corresponder a uma grande heterogeneidade, mesmo do ponto de vista biológico, das causas para sua constituição.
Medidas aplicadas à escola Podem ser dividas em medidas que abordam problemas de aprendizado e que abordam os comportamentos disruptivos. Existem, fora do Brasil, programas para lidar com problemas específicos de aprendizado, como o Programa de Recuperação de Leitura (Reading Recovery Program) que combate o déficit específico de leitura; no entanto, poucos são aqueles que foram avaliados especificam ente por bons resultados em crianças com TC, emhora tais avaliações estejam em progresso. Programas de educação pré-escolar para populações de alto risco mostraram redução de incidência de prisões e a melhora do emprego na vida adulta. Há numerosos esquemas para a melhora do comportamento na sala de aula, variando daqueles que enfatizam
uma melhor comunicação, como o circle time, e daqueles que trabalham em princípios comportamentais como o good behavior game, ou que são partes de um programa multimodal. Muitos desses esquemas mostraram a melhora do comportamento na sala de aula e alguns se direcionam especificamente para crianças com TC. Dessa forma, envolver a escola no tratamento, por meio de visitas e oferta de estratégias, para lidar com a criança é geralmente útil, assim como a oferta de tutoria extra quando necessário. Se a escola se mostra incapaz ou resistente em lidar com a criança apesar de recursos extras serem oferecidos, deve -se levar em consideração a mudança para outra escola mais apta ou disposta a manejar dificuldades de comportamento. É importante também o contato com as escolas e tem sido crescente a proposta de atividades de capacitação de professores para lidar com alunos de comportamentos mais difíceis. O auxílio pedagógico com frequência se faz necessário para auxiliar jovens com distúrbios de aprendizado ou mesmo com dificuldades escolares gerais para se recuperar a motivação para o aprendizado escolar. O contato com redes de apoio social que ofereçam atividades esportivas e culturais também são instrumentos úteis para a promoção de socialização e o desenvolvimento de capacidades dos pacientes, bem como para afastá-los do contato com pares antissociais.
Prevenção A alta prevalência e cronicidade dos TsC, combinada com sua refratariedade ao tratamento e altos custos para a sociedade, faz desse diagnóstico um candidato preferencial para prevenção. Segundo Moffitt e Scott 11 , os TsC oferecem boas oportunidades para a prevenção, uma vez que: (a) podem ser relativamente bem detectados precocemente; (b) a intervenção precoce é mais efetiva que a tardia e; (c) há numerosas intervenções que já se mostraram efetivas. A maioria dessas, realizadas em países como Canadá, Reino Unido e Estados Unidos, procuram selecionar populações de alto risco, às quais são oferecidos programas multimodais constituídos por: treinamento parenta! em grupos; treinamento de professores e tutorias acadêmicas; e desenvolvimento de habilidades sociais. Uma análise de custo demonstrou que o dinheir o economizado por agências governamentais em virtude da redução de chamados a polícia e bombeiros e da redução de vandalismo em um período de três anos excediam em muito os gastos de um programa realizado no Canadá96.
Políticas públicas As políticas públicas em relação aos TsC deveriam se voltar a abordagem desse complexo problema em diversos níveis: (a) por meio de programas de prevenção e capaci-
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tação de equipes de saúde primária para a detecção de casos precoces; (b) na ampliação da integração do número de profissionais de diversas formações aptos a atender pacientes com TsC e suas famílias; e (c) no apoio a pesquisas voltadas para ampliar o conh ecimento a respeito da causas do quadro, assim como para estudar novas e melhores formas de tratamento adequadas à realidade brasileira. Gostaria de manifestar meus agradecimentos a Fernanda Lachat pelo inestimável auxílio na elaboração gráfica dos diagramas deste capítulo.
Minicaso clínico O diagrama da Figura 2 exemplifica uma possibilidade desse desenvolvimento ao longo do tempo, demonstrando como os fatores de risco, tanto biológicos quanto psicossociais, interagem de modo sinérgico para engendrar um quadro de TPAS97. Imagine dois jovens adolescentes que vivam em localização de baixas condições socioeconômicas. Janete, uma jovem de 16 anos, estudante do ensino médio que vive em um ambiente fam iliar hostil marcado por conflitos com o pai dependente de álcool. Gilson, um rapaz de 17 anos que abandonou os estudos, sem ocupação estável e que faz uso abusivo de álcool e cocaína. Após se conhecerem, têm um relacionamento rápido e a jovem engravida sem desejar. Gilson não reconhece a paternidade e desaparece. Janete tem de lidar com a revolta familiar, a falta de apoio e vive o drama de optar pelo aborto até o quarto mês, quando é informada dos altos riscos de tal procedimento nesse momento. Leva a gestação adiante com acompanhamento pré-natal irregular e aumenta o uso de cigarro para lidar com a ansiedade nesse período. Ao fim dos nove meses, dá à luz Lucas, um saudável bebê de 2.800 g. Nesse ponto, já é possível fazer algumas considerações. Baixas cond ições socioeconômicas são apontadas como um fator de risco para os TsC98 Dificuldades financeiras com mais frequência redundam em conflitos familiares. Jovens pobres, com menos aces-
8 e 8 G
NEGLIGÊNCIA ABUSOS TCE
TPAS
REJEIÇÃO FRACASS_O ESCOLAR EDU CAÇAO AUTO-AVALIAÇÃO DESESPERANÇA
YOD IOENTIOAOE COMPANH IAS DELINQU ÊNCIA
DESINIBIÇÃO FISSURA
8 Figura 2
TC
•
•'•
ÁLCOOL E DROGAS
____ ... ' ' ' '
DESEM PREGO CRIM INALIDADE
Interação dos fatores de risco em um quadro de TPAS.97
:
'
so a educação e cultura são mais vulneráveis ao uso de cigarro. por exemplo, que tem sido apontado como fator de risco para o TDAH quando de uso durante uma gestação. Problemas econômicos também aumentam o risco de má nutrição infantil, cond ição que predispõe a déficits neurocognitivos, que, por sua vez. predispõem a comportamentos externalizantes persistente99 . Ressalta-se que, no exemplo citado, a mãe de Lucas enfrenta uma gestação precoce não planejada e tem de interromper boa parte do caminho de formação educacional almejado a fim de trabalhar e contribuir com as despesas que um filho trará Sem a participação do pai da criança e sob o olhar e discurso condenatório da famnia, vive um período crítico sem apoio emocional e contato afetivo. A postura irresponsável do pai e sua história de abandono escolar e abuso de drogas sugere possível TC, que, por fatores hereditários, poderá transmitir à criança a predisposição a comportamentos disruptivos. Lucas se mostra difícil já nos primeiros meses. Tem dificuldade para dormir, chora muito e é custoso acalmá-lo. Isso gera exaustão à Janete que, aliada à lembrança do abandono do pai, à vinda quase intrusiva do bebê e a interrupção precoce de sua vida juvenil, suscita sentimentos de raiva e culpa difíceis de serem elaborados e que acabam por comprometer o estabelecimento de um vínculo entre mãe e bebê saudável. Como em tantos casos semelhantes, boa parte dos cuidados com Lucas passam a ser realizados pela avó materna. Na creche, Lucas é agressivo com outras crianças e pouco tolerante a frustrações. Tem desenvolvimento neuropsicomotor básico adequado, mas apresenta hipercinesia marcante e tem alguns déficits nas expressão verbal. Mais tarde, no ensino fundamental, apresenta dificuldades na alfabetização, não realiza as atividades propostas e passa a ter posturas provocativas na sala de aula. Em casa, é agressivo principalmente com a mãe, a qual assume postura ambígua, algumas vezes é extremamente permissiva, outras vezes, aplica severos castigos físicos. O avô exerce certa postura paternal, mas com marcante agresssividade física principalmente em momentos de embriaguez. Verifica-se que se configura em Lucas um quadro de TDAH. Sua grande inquietação motora e, principalmente, seu comportamento impulsivo suscitam em seus familiares atitudes agressivas e medidas educativas caóticas e contraproducentes, as quais são apontadas como um dos principais fatores de risco para os TsC. Aqui se evidencia de que forma uma constituição biológica (inquietação psicomotora) induz respostas do ambiente (castigos físicos). que, por sua vez. tendem a reforçar vias neuronais específicas e moldar um padrão de comportamento típico. Este padrão de comportamento pode se configurar justamente como aquele do TOD. Os comportamentos típicos de uma criança com TOD e TDAH tendem a levar a um percurso de dificu ldades e fracasso escolar o que suscita mais reprovações por parte dos adultos - e a manifestações ag ressivas e egoístas - o que induz à rejeição por boa parte de seus colegas. A combinação de déficits cognitivos e o comportamento antissocial podem agir sinergicamente. Nesse contexto, a criança encontra-se numa situação desfavorecida e, juntamente com o discu rso vigente, passa a alimentar uma imagem negativa de si mesmo. Um contexto desfavorável juntamente com um SNC suscetível pode desencadear um quadro depressivo quere-
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forçaria dificuldades (p.ex., déficits cognitivos) e comportamentos disruptivos (p.ex., furtos como medida compensatória). Como afirmaram Patterson et al 100, a criança pode tornar-se tanto vítima quanto arquiteta de um estilo de vida desadaptativo no qual o investimento no comportamento agressivo é dominante. A partir dos 12 anos, Lucas passa a ficar mais rebelde. Falta com frequência as aulas, já que para ele a escola não é um ambiente gratificante. Realiza atos de vandalismo, como quebrar objetos da escola e telefones públicos. A busca por uma identidade encontra eco na companhia de rapazes mais velhos que apreciam seu destemor para aventuras mais perigosas. O uso de cigarro e bebidas lhe oferece a imagem de alguém que finalmente está à frente de seus colegas da escola. Recusa-se a voltar para casa no horário determinado e passa a ameaçar a família caso o impeçam de sair. Aos 14 anos, no ga ano do ensino fu ndamental, após várias suspensões e com o aprendizado muito defasado, abandona a escola. Com sua avidez por novos estímulos, passa usar cola, maconha, cocaína. Furta dinheiro e objetos de casa para comprar drogas, durante o uso, torna-se mais agressivo fisicamente e, nessas condições, realiza assalto à mão armada duas vezes. Aos 16 anos, associa-se a criminosos para traficar drogas e conseguir dinheiro para comprar uma moto e roupas de marca. Suas relações afetivas são fugazes e de caráter utilitário. Este caso fictício equivale aos relatos habitualmente encontrado na clínica de jovens com TsC para ilustrar os eventos em cascata que geram uma retroalimentação positiva, que leva à progressão para um padrão de inserção vital que se pauta por vias específicas de ação e interação social. Em um grande grupo de jovens delinquentes, Weisz et al. 74 verificaram que o abuso de substâncias predizia a escalada de comportamento violento. Uma visão imediatista de busca de prazeres, a desconsideração pelo outro, a obtenção de seus objetivos por atitudes desonestas são alguns dos componentes marcantes nessa personalidade. Já próximo dos 20 anos, com concepções de mundo e vias de atuação bem marcadas, aliadas a um repertório restrito de maneiras de como lidar com adversidades, as possibilidades de mudança se tornam consideravelmente pequenas. O indivíduo acaba se equilibrando entre a busca de suas satisfações e as formas ineficientes da sociedade, principalmente do Estado, em lidar com ele. A Figura 3 procura ilustrar como alguns diagnósticos podem se suceder ao longo do tempo em um desenvolvimento lógico, em que cada um deles adiciona novos fatores de risco que agem de forma a contri buir para a estruturação final de um TPAS.
Questões 1. Em relação à ocorrência de agressividade: a) Atinge seu pico de manifestação na adolescência. b) Indica um quadro patológico quando ocorre já aos 3 anos. c) Na espécie humana, é determinada principalmente pela influência cultural. a) É uma manifestação comum em crianças com quadros psiqUiátriCOS.
e) Em crianças, indica uma provável evolução para transtorno de personalidade.
2. a) b) c) d) e)
Em relação ao diagnóstico de transtorno opositivo-desafiador: Mais frequentemente ocorre como resultado de uso de drogas. Não sofre influência de práticas parentais. Habitualmente, ocorre sem comorbidades psiquiátricas. Tem como principal etiologia maus cuidados parentais. Possui importante associação com transtornos de aprendizado.
3. As mais importantes comorbidades com o transtorno de conduta são: a) TDAH, transtornos afetivos e abuso de drogas. b) Transtornos ansiosos, transtornos psicóticos e abuso de drogas. c) Transtornos psicóticos, abuso de drogas e TDAH. d) Depressão, retardo mental e transtornos ansiosos. e) Retardo mental, TDAH e autismo infantil. 4. Os fatores de risco mais frequentemente associados à evolução desfavorável nos transtornos de conduta são: a) Desregulação serotoninérgica e sintomatologia numerosa. b) Herança genética e déficits neuropsicológicos. c) Início precoce e parentagem inadequada. d) Início na adolescência e uso de drogas. e) Depressão e contato com pares antissociais. 5. Em relação ao tratamento dos transtornos de conduta, assinale a alternativa verdadeira: a) Está baseado no uso de antipsicóticos visando à redução da agressividade. b) Terapia em grupo com jovens disruptivos mostram os melhores resultados. c) Está baseado no uso de metilfenidato em razão da alta comorbidade com TDAH. d) Programas de orientação e treinamento de pais mostram os melhores resultados. e) Intervenções terapêuticas nas escolas mostram os melhores resultados.
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81 TRANSTORNOS DE CONDUTA E COMPORTAMENTOS EXTERNALIZANTES
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