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significados culturais que são "interrninavelmente~deferidos e dissimulados" (p. 104). Minha discussão, em seguida, da função exegética daparole claire baseia-se nessa perspectiva geral, assim como em Kermode (1980). Para uma vigorosa crítica dos pressupostos "criptológicos" que perrneiam a prática de Griaule e a de muitos "antropólogos simbólicos", ver Sperber (1975: 17-50).
. TRABALHO DE CAMPO, RECIPROCIDADE E ELABORAÇÃO DE TEXTOS ETNOGRÁFICOS: O CASO DE MAURICE LEENHARDT
Maurice Leenhardt teria concordado com o missionário evangélico Lorimer Fison, das ilhas Fiji, que comentou com Codrington: I "Quando um europeu vive dois ou três anos entre os selvagens, ele está totalmente convencido de que sabe tudo sobre eles; quando fica dez anos, ou quase, entre eles, se for um homem observador, ele vai achar que sabe muito pouco e aí sim ele está começando a aprender" (Codrington [1891] 1972:vii). Leenhardt, ele mesmo um missionário evangélico na Nova Caledônia por um quarto de século, e depois antropólogo vinculado à academia e pesquisador de campo, teve muitas ocasiões de confirmar o ponto de Fison - um ponto que ainda desafia a prática etnográfica. Diferentemente de vários outros missionários que chegaram a saber muita coisa sobre os "selvagens", Leenhardt era capaz de expressar sua longa experiência de campo com o rigor analítico e o modo sistemático de exposição associados à antropologia acadêmica. Como primeiro presidente da Société des Océanistes e chefe da seção Pacífico do Musée de l'Homme, como detentor de uma cadeira influente na École Pratique des Hautes Études (cadeira
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esta por longo tempo ocupada por Marcel Mauss e, após L~enhardt, por Claude Lévi-Strauss), o antigo missionário desempenhou um papel-chave na tardia organização da etnografia científica na França. Na Universidade de Paris das décadas de 30 e 40, Leenhardt representava uma corrente singular de experiência. Ele havia sido um missionário protestante bem-sucedido, ainda que não convencional, no sudeste da Melanésia, e havia também viajado extensamente pela Africa, na região do sub-Saara. Seu trabalho evangélico era teoricamente sofisticado. Ele introduziu pioneiramente modernas técnicas etnolingüísticas de tradução da Bíblia e fez um estudo comparativo cuidadoso da psicologia e da sociologia da conversão religiosa. Durante seus anos na Nova Caledônia, de 1902 a 1926, como observador cientificamente orientado, reuniu um conjunto considerável de textos etnográficos, em sua maioria transcrições vernáculas da linguagem ritual. Como professor em Paris (1932-1953), Leenhardt evitou as abordagens mais amplas e sintéticas de um Mauss ou de um LévyBruhl. Permaneceu próximo ao campo que conhecia intimamente: a Nova Caledônia, especialmente a área de língua houailou (Ajié). Em suas aulas, o missionário de volta do campo praticava um método de escrupulosa análise semântica do ritual e da linguagem cotidiana, guiando cuidadosamente os alunos através dos complexos sentidos e interconexões situacionais de uma língua que ele compreendia profundamente. Com efeito, ele tentava comunicar uma experiência vernácula: nas palavras de Michel Leiris, seu primeiro aluno, "tinha-se a impressão de estar na presença de um verdadeiro melanésio".' A aura do veterano não era diminuída pelo fato de se saber que ele não gozava das boas graças do governo colonial da Nova Caledônia nem de sua própria organização missionária. Parece que ele tinha sido algo como um "indigênophile", um agitador pró-nativos cujo pensamento sobre política e evangelização havia sido considerado "avançado demais" por seus colegas.'
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Mauss, que disse, sobre Leenhardt, que "este pastor e antigo professor de teologia protestante era mais livre de quaisquer preconceitos e preocupações em seus famosos estudos sobre povos da Oceania do que qualquer outro etnógrafo ou sociólogo de seu tempo" (Gurvitch, 1955:107), rapidamente entregou a ele metade de sua atividade docente na Hautes Études e assegurou sua sucessão no posto. Mas se Leenhardt era apreciado (embora nem sempre compreendido) por seus contemporâneos, ele foi quase totalmente esquecido por seus sucessores. Suas idéias pouco usuais sobre fenomenologia religiosa efetivamente submergiram à onda estruturalista dos anos 50 e 60; seus relatos etnográficos singulares e, de várias maneiras, exemplares, permanecem em grande parte ignorados. O livro mais conhecido de Leenhardt, Do Kamo: Ia personne et le mythe dans le monde mélanésien (1937), apareceu em língua inglesa em 1979. Este registro de uma série de palestras dadas por ele no College de France é um bom exemplo do último estilo de Leenhardt de reflexão etnológica. Não oferece, entretanto, muito mais do que uma simples idéia da extensa documentação sobre a qual está baseada. Anteriormente a Do Kamo, Leenhardt escrevera uma seqüência de cinco livros acadêmicos sobre aNova Caledônia: quatro grandes volumes na série de publicações do Institut d'Ethnologie e um panorama geral, Gens de Ia Grande Terre (1937). O presente artigo se baseará nessa produção anterior, até Do Kamo, enfatizando a primeira fase documental da carreira de Leenhardt. Lançando mão de documentos particulares, ele delineará as condições nas quais sua etnografia foi realizada, sublinhando a natureza coletiva e dialógica do empreendimento. A experiência de pesquisa de Leenhardt, a de um etnógrafomissionário, foi, sem dúvida, não-ortodoxa, de um ponto de vista acadêmico. Alguns dos pontos fortes e fracos de seus métodos serão indicados abaixo. O exemplo incomum, embora longe de ser o único, de um missionário seriamente comprometido com a etnografia pode lançar uma luz comparativa sobre as práticas
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convencionais do trabalho de campo. E irá ao encontro, em todo caso, de uma tendência ainda recente - melhor exemplificada em vários artigos recentes de Rodney Needham - de avaliar sem preconceito a contribuição científica dos missionários." O missionário vai aos confins da terra para converter os pagãos, o etnógrafo, para estudá-Ios. O cientista social, visto do ponto de vista do missionário, se importa bem pouco com o povo que ele investiga. Ele é um homem sem deus, um relativista moral, e comumente alguém que está de passagem. O etnógrafo tem opiniões mais duras sobre o missionário, que para ele tem a mente estreita, é etnocêntrico e inescrupuloso ao fomentar o caos cultural em benefício de questionáveis mudanças religiosas. As opiniões conflitantes são tão verdadeiras quanto a maioria dos estereótipos. Elas não são muito úteis para entender uma pessoa como Leenhardt, com quem devemos ser cuidadosos para não pensá-Io como um missionário-que-virou-antropólogo. Nunca ocorreu a ele separar nitidamente as duas vocações (embora ele freqüentemente evitasse misturar os dois diferentes tipos de discurso). Sua cegueira para o que é normalmente considerado uma contradição de papéis e objetivos não estava isenta de vantagens, como veremos. Para avaliar a contribuição de Leenhardt será necessário tratar o trabalho de campo como um trabalho coletivo, colocando assim em questão certos pressupostos sobre a escrita etnográfica. Em particular, os conceitos de descrição, interpretação e autoria demonstram ser inadequados para os processos emjogo. Um dos informantes de Leenhardt foi o chefe regional (grand chej) da área houailou, Mindia Néja. Em 1914, o missionário escreveu ao pai descrevendo o progresso de sua pesquisa sobre o parentesco local: Nas últimas três semanas tenho tentado saber mais de Mindia sobre sua família, mas ele resiste. Toda sextafeira tenho passado uma longa manhã com ele na casa do nata Neoueo [o pastor melanésio]. A primeira vez foi
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difícil conseguir relaxá-Ia. Ele me explica que nós brancos somos burros demais para entender seu parentesco, e nós, os missionários, preocupados demais com suas almas para nos interessarmos por suas obscuras relações de sangue. Fui capaz de levá-Ia, com poucas perguntas, ao centro do tema. Na segunda sexta-feira ele havia escrito uma pequena folha de papel, que trouxe consigo, após me fazer esperar uma hora. Nesta última vez ele estava esperando por mim na casa do nata, e tinha escrito quatro páginas
grandes.' A situação é familiar. Vemos uma resistência inicial do informante, os atrasos frustrantes, as questões-chave, e finalmente, com sorte, o estabelecimento de uma certa dose de confiança e interesse mútuo. Mindia Néja colocou problemas particulares como uma fonte de informação etnográfica, uma vez que suas relações familiares eram fatos de importância política imediata. Há, sem dúvida, uma dimensão política em todo conhecimento da vida local adquirido por um branco numa situação de dominação colonial. Desse modo, Mindia teve razões a priori para a percepção sobre os brancos e sua "burrice". O registro de uma genealogia requeria que se divulgassem os nomes e relações previamente ocultas àqueles - os brancos e os rivais melanésiosque poderiam fazer uso político deles. A influência de Mindia como um grand chef em toda a área houailou era baseada em suas relações de parentesco. Mas sua posição estava longe de ser segura. Ele havia consolidado seu poder apenas poucos anos antes da chegada de Leenhardt na Nova Caledônia, com o apoio de uma administração anticatólica em Noumea. Mindia nessa época converteu-se ao protestantismo, aliando-se a uma nova forma de cristianismo recém-importada pelos pastores melanésios (nata) das vizinhas Ilhas Loyalty." Logo os ventos políticos mudaram; as( entrevistas etnográficas de 1914 tiveram lugar em meio a uma prolongada luta entre o governo colonial e a missão protestante:_A administração havia acabado de criar dois novos "chefes" na reg mo como uma tentativa de enfraquecer Mindia, os natas e Leenhardt. 231
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A relação do grand chef com o missionário era ambígua. Ambos, embora aliados, mantinham distância. Leenhardt sabia que a "conversão" de Mindia à fé protestante era um misto mutável de crença sincera e expediente político. Mindia era o "pagãoprotestante" par excellence (nas palavras deselegantes porém precisas de Leenhardt). O missionário não se opunha aos papéis políticos tradicionais e legítimos de Mindia; ele defendia o direito do chefe à autoridade na extensão da área houailou. Leenhardt sentia que o governo deveria se manter afastado da política tribal tanto quanto possível, e que o protestante Mindia era a pessoa mais autenticamente qualificada por meio de relações tradicionais de fanu1ia para exercer o poder na região. A posição do missionário, tal como a do chefe, era um misto de crença sincera e expediente político. Os dois homens precisavam ser capazes de confiar um no outro. O estabelecimento de uma confiança mútua levou vários anos; mas na série de entrevistas na qual Leenhardt registra a genealogia de Mindia testemunhamos um momento de superação dos obstáculos. O grand chefconfia ao missionário os fundamentos de seu poder, fatos que Leenhardt usará para defender os direitos de Mindia contra seus rivais e a administração. Enfim se torna claro que o missionário não usará estes fatos contra seu informante. Leenhardt, de sua parte, queria um grand chef protestante seguro nas vizinhanças de sua arriscada missão. A pesquisa de Maurice Leenhardt nem sempre foi feita numa situação tão tensa como esta do início de 1914, mas nunca esteve isenta de conseqüências políticas imediatas. A relação de Leenhardt com Mindia Néja era claramente política, assim como abertamente evangélica. Poucos pesquisadores em antropologia se lembrarão de terem sido acusados de se preocuparem demais com as "almas" de seus informantes. Leenhardt, porém, ao fazer de Mindia um informante etnográfico, tinha motivos ulteriores claros, indo além dos objetivos da ciência ou da política. Ele estava interessado no homem em si, em sua
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moral interior. Inevitavelmente, Mindia se tornou um teste para o protestantismo caledoniano, aos olhos de todos. Na tradição local, o chefe era um personagem sagrado, um "irmão mais velho", e um mediador junto aos ancestrais. Sua "palavra" (parole) era a unidade do clã, e portanto o estado de sua "alma" tinha extrema importância; ela expressava o poder do grupo.' Leenhardt queria que Mindia reprimisse seu gosto pela intriga política; e esperava que o chefe viesse eventualmente a aceitar a monogamia. Vemos esta preocupação moral na medida em que Leenhardt continua seu relato sobre a coleta da genealogia de Mindia. Descemos sete ou oito gerações, e você pode perceber claramente todos os descendentes que pereceram quando os brancos chegaram. É tão chocante que parece um crime. Na próxima sexta-feira, vou de novo lá para terminar o trabalho, mas meu verdadeiro objetivo é me aproximar mais de Mindia. Nisso ainda não fui muito bem sucedido. Ele se abriu um pouco, mas [apenas] em assuntos exteriores, e sobre coisas que ele pode utilizar para conhecer e julgar melhor seu mundo. Mas assim que tento ir mais fundo, me defronto com aquela afirmação conclusiva, aquelas respostas do tipo "é verdade", tão conclusivas que não há nada a fazer a não ser ficar em silêncio.
Leenhardt interpretava a passividade do grand chefquando pressionado a respeito de questões pessoais sobre moral idade e crença como um sinal de desmoralização. Em outra carta ele nota que, entre os mais selvagens não convertidos, "se você fala sobre verdades morais ou religiosas, o homem tradicional pode até dar de ombros, mas isso é sempre prova de que ele entendeu"." Nas Notes d' ethnologie néo-calédonienne (1930), Leenhardt publicou três fotos de Mindia: uma, tirada em 1872, mostra um homem jovem e magro com todos os emblemas tradicionais, turbante, ornamentos plumários, estojo peniano, machado cerimonial; a segunda, de 1898, mostra o dignificado e plenamente amadurecido
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grand cheJ, envolvido em finas peles, lanças em uma das mãos e na outra um guarda-chuva. Mas a terceira, tirada em 1912, o encontra num estúdio de um fotógrafo, apoiando-se numa falsa balaustrada, assumindo uma pose ocidental estilizada. Ele veste um uniforme militar francês completo, com três medalhas, e tem uma expressão de desconforto e confusão. As mudanças exteriores são óbvias. Mas o que acontecera dentro dele? Qual teria sido o destino daquele orgulho tão claramente manifesto na segunda fotografia e tão importante para o homem e sua raça? Tal era a preocupação de Leenhardt. Para Mindia, não havia volta às fotos anteriores. Ele não mais seria deixado em paz por invasores tais como criadores de gado, fazendeiros, padres e gendarmes da ilha da Melanésia mais fortemente colonizada. Os nativos caledonianos em 1914 não podiam mais escolher ficarem sozinhos. Portanto, era importante discutir seriamente o velho e o novo, os problemas da mudança de moralidades. Tal debate, levando a uma mudança autoconsciente, era o programa do missionário liberal. Estaríamos errados em separar este programa de sua etnografia acadêmica. Leenhardt esperava que o próprio processo de registrar informações sobre a tradição estimularia a reflexão por parte de seus informantes. Ao mesmo tempo que preservavam o que era antigo através da escrita, eles se distanciavam dele. Mas a reflexão não levava a uma rejeição total; a atenção etnográfica deve atribuir valor aos modos de ser especificamente melanésiosaos olhos tanto de nativos convertidos quanto de brancos." Se algo similar a esse modo de pensar ou interpretar um costume pudesse acontecer, então os interesses da academia e da missão coincidiriam. É claro que para Leenhardt a "alma" de Mindia vinha primeiro, e seu parentesco, em segundo. (Sem dúvida, os dois não eram, na prática, nitidamente separáveis, um fato que Leenhardt iria elaborar em considerável profundidade em Do Kamo e em outros trabalhos, e que Mindia, em sua resistência às questões pessoais do missionário, estava talvez tentando tomar claro.) Mas se a etnografia podia ser o meio de um fim mais amplamente
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religioso ou moral, isso a invalida enquanto ciência? Nosso julgamento sobre tais temas deve ser baseado em situações específicas, e não em teses apriorísticas. Não há nenhuma razão aqui para suspeitar que as genealogias de Leenhardt fossem menos precisas do que aquelas que poderiam ter sido coletadas por um observador leigo supostamente neutro. Na verdade, o efeito intrusivo dos propósitos assumidamente religiosos do missionário poderia muito bem ter sido menor do que aquele causado por uma pessoa cujos motivos não poderiam ser tão claramente compreendidos como os de Leenhardt o eram. Em todo caso, Mindia Néja em 1914 não teria dado sua genealogia a nenhum outro europeu na Nova Caledônia. E os detalhes de sua linhagem foram de considerável importância ao se escrever a antropologia política da região houailou (Guiart 1963:19-77). A etnografia missionária é, sem dúvida, limitada pela natureza de seus informantes, tendendo o missionário a se basear apenas nos membros de seu "rebanho". Em larga medida, isto era verdade no caso de Leenhardt, ainda que ele mantivesse relações próximas com os não-convertidos e, em grau menor, com grupos católicos. Felizmente, porém, muitos de seus melhores informantes estavam próximos dos antigos modos de vida, e o conceito de Leenhardt de conversão religiosa desencorajava rejeições radicais do passado "pecaminoso" (Clifford 1982). Hesita-se, em todo caso, a levar esta objeção longe demais, já que é sempre difícil avaliar o status representativo dos informantes antropológicos. As etnografias, tipicamente, não revelam muito sobre isso; e existem poucos estudos como o de T. N. Pandey, "Anthropologists atZuni", que conectam precisamente etnógrafos com facções locais específicas (Pandey, 1972). As críticas mais pertinentes à etnografia missionária se centram em sua qualidade amadorística, irregular, e nas fortes ambivalências diante do "paganismo", as quais tendem a colorir suas descrições. Tais críticas freqüentemente se justificam. No entanto, existe um amplo espectro qualitativo dentro do qual as
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contribuições individuais devem ser julgadas. Pode-se lembrar a confissão de uma falha feita por Codrington - falha esta partilhada por Leenhardt: "Sob as circunstâncias de [minhas] entrevistas, muito do pior lado da vida nativa pode estar oculto, e a visão disponível parece mais favorável do que se esperaria; se for assim, não me arrependo" (Codrington, 1972:vii). Se uma qualidade irregular e preconceitos (tanto negativos quanto positivos) são falhas na observação participante, então muitas etnografias além das escritas pelos missionários devem ser criticadas. Os trabalhos de um Junod, um Crazzolara, um Schârer ou um Leenhardt provavelmente resistem ao leste do tempo, com suas prioridades continuamente em transformação, tanto quanto os de qualquer antropólogo acadêmico. Um missionário com inclinações etnográficas está particularmente bem colocado para reunir informações sobre tópicos importantes tais como mudança cultural em grandes períodos de tempo, o conteúdo dos sistemas de crença religiosa e as complexidades semânticas e gramaticais das línguas nativas. O teste crítico para o rnissionário-etnógrafo é, afinal, sua habilidade pessoal em permitir a coexistência das duas disciplinas, em cooperação, onde possível, sem interferência, quando não. Leenhardt, cujo meio familiar era impregnado tanto de caridade quanto de ciência natural, era capaz, quando necessário, de manter separados os projetos de evangelização e de pesquisa empírica. Ele podia fazê-Io exatamente porque na análise final, numa análise além de sua compreensão, eles formavam um conjunto. Ele acreditava que, nas palavras de seu pai, um teólogo e eminente geólogo, "os fatos são uma palavra de Deus" (Leenhardt, 1957:414). Isto não quer dizer que ciência e religião nunca estivessem em conflito na prática. Em 1915, Leenhardt escreveu com tristeza sobre uma oportunidade perdida por causa destas lealdades opostas. Ele nunca foi capaz de observar do início ao fim um festival de grand pilou em grande escala. Este importante ritual estava sendo
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abandonado ao longo da Ilha, ao menos em suas mais elaboradas formas, que incluíam a reunião de clãs de uma vasta região, com troca de presentes, festas, discursos e danças religiosas realizadas durante vários dias ou mesmo semanas. Na vizinha Canala, Leenhardt finalmente teve sua chance: Certamente é o último autêntico [Pilou] que será realizado na região onde o houailou é compreendido. Por algum tempo venho pensando estudar um pilou para entendê-lo como um todo. Canala é pagã: ninguém ficaria escandalizado se eu assistisse; seria perfeito. Mas o que eu encontraria [lá], senão um nata [pastor evangélico melanésio] permitindo a seu filho aprender as danças com o resto de seu rebanho? Tenho de intervir e renunciar a meu projeto por tanto tempo em preparo. Parece que nunca terei outra chance.'?
Leenhardt não tinha objeções a presenciar como observador (se não precisamente como observador participante) os rituais tradicionais. Ele estava longe daquele tipo de missionário que tentava proibir ou acabar pela força com as práticas dos nãoconvertidos. Ele no entanto exigia autoridade moral sobre os protestantes, aqueles que, em teoria pelo menos, tinham feito uma ruptura básica com a tradição. Neste caso, o papel de Leenhardt impediu a observação direta de um autêntico grand pilou. Mas ele conseguiu aprender muito sobre sua natureza indiretamente, através de perguntas a pessoas mais velhas, da coleta de textos registrando os rituais tradicionais, da observação de "pequenos pilous" locais e de cerimônias protestantes influenciadas pela tradição. Leenhardt chegou a aprovar as celebrações menores mais espontaneamente do que os grandes encontros de vários clãs que, numa situação colonial, tendiam a terminar em bebedeira. A degeneração e o gradual desaparecimento do mais importante ritual social da Ilha preocupavam Leenhardt. Ele esperava que o pilou pudesse ser preservado em nível local e "traduzido" para a prática cerimonial
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cristã." Em 1922, ele publicou uma extensa descrição do pilou em L'anthropologie, no qual o chamou de "o rito que mantém a força unificadora do povo", ou, nas palavras de um informante melanésio, "o movimento da agulha que une as partes de um telhado feito de palha, transformando-o em um só teto, uma só 'palavra' (parole)" (Leenhardt, 1922a). As ambivalências de Leenhardt sobre o pilou certamente obstruíam em alguma medida sua descrição etnográfica do evento. A suas evocações falta algo de proximidade, como conseqüência de suas dificuldades em assistir ao evento, e pode ser que ele tenha uma tendência a minimizar a importância política dos grands pilous. Mas qualquer um que leia seus relatos, ainda os melhores disponíveis (tanto este de 1922 quanto os de Notes d'ethnologie néo-calédonienne e Gens de Ia Grande Terre), verá que nenhuma insinuação de menosprezo se imiscui na sua análise. Muito da descrição etnográfica de Leenhardt nos anos 20 e 30 retratava o inter-relacionamento dos costumes numa socie;tade mais ou menos coesa, sempre apresentada no "presente / etnográfico". Mas sua etnografia nunca estava limitada a uma perspectiva sincrônica. Leenhardt estava atento para a mudança cultural, que ele sempre retratava: com desgosto, se fosse o caso de um costume que estava sendo estraçalhado pelo colonialismo, e entusiasticamente, se ele via que o costume estava sendo recriado a partir da existência de novas condições. Por exemplo, no capítulo do pilou do Gens de Ia Grande Terre, Leenhardt não se contenta em mostrar as danças e as falas rituais como reiterações e reforços expressivos de alianças tradicionais, oferendas aos tios matemos, glorificações do clã paterno, etc. Ele enfatiza, também, as possibilidades de expressão criativa nos rituais, como em um de seus casos favoritos: Durante um dos últimos grands pilous, em Ponerihouen, uma fraternidade nébaye inventou uma dança totêmica que tem sido muito lembrada desde então. Nela, grupos de dançarinos iam e vinham graciosamente, se encon-
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trando, parando, fazendo reverências, formando um círculo em imitação a um peixe existente na área e que vinha de todas as partes e ali se concentrava para se alimentar de algas trazidas pela correnteza. De repente, se ouve um tiro de rifle: os dançarinos se deitam, de barriga pra cima. A explosão e os dançarinos deitados representam uma fatal explosão de dinamite no meio de um cardume de peixes. Representação de uma tragédia, a dança significa a morte do totem (representado por este peixe) e de seu grupo no deslocamento da sociedade nativa sob o choque desencadeado pela civilização. (Leenhardt, 1937:168)
Em outro relato desta dança, Leenhardt conta que esta foi representada para o governador da Colônia. O principal objeto de estudo do missionário-etnógrafo era a "cultura viva" (Leiris, 1950: 1973), mudando, traduzindo-se para si mesma e para os outros. Ele não se sentia tentado a confundir autenticidade cultural com pureza cultural. Esta concepção dinâmica do processo cultural se refletia no modo como Leenhardt elaborava seus textos etnográficos. Tal como Boas e Malinowski, ele acreditava que um aspecto crucial do trabalho de campo era a coleta de um vasto corpus de transcrições vernáculas. A vantagem de tal abordagem, como Helen Codere (1966) e DeU Hymes (1965) argumentaram, é tomar a etnografia aberta à reinterpretação acadêmica (e à reapropriação pelos nativos). É como diz Codere, a respeito dos textos vernáculos: "o etnógrafo adquiriu dados nos quais ele está fora do quadro, em comparação com o grau de seu envolvimento na apresentação ou na explicitação da maioria dos dados etnográficos" (1966:XV). As relações de Leenhardt com seus melhores informantes são comparáveis com as de Boas com o kwakiutl George Hunt: ele os ensinou a transcrever e a interpretar sua própria tradição. Leenhardt considerava toda a sua obra científica como um elaborado exercício de tradução. Seus primeiros três volumes feitos para o Institut d'Ethnologie de Paris formam um conjunto exemplar.
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O Institut havia sido fundado em 1925 por Marcel Mauss, Paul Rivet e Lucien Lévy- Bruh1. Ele se tomou o núcleo da antropologia profissional em Paris, levando em 1936 à criação do Musée de l'Homme. O trabalho de campo profissional começou relativamente tarde na França, e os fundadores do Institut d'Ethnologie sentiam agudamente o atraso de seu país nesse campo. Em 1925, havia uma escassez embaraçosa de trabalho empírico de boa qualidade para a nova organização publicar. Assim, quando Leenbardt retomou a Paris, Lévy- Bruhl e Mauss imediatamente o encorajaram a publicar os frutos de sua extensa pesquisa. Comparados aos trabalhos de Malinowski, que ostentavam títulos evocativos tais como The sexual life of savages, Os argonautas do Pacífico Ocidental, Coral gardens and their magic, os primeiros três volumes de Leenhardt pareciam mais tateantes e restritos. Seus títulos, Notes d'ethnologie néo-calédonienne (1930), Documents néo-calédoniens (1932), Vocabulaire et grammaire de la langue houailou (1930), transmitem uma sensação de incompletude e localismo. Nestes trabalhos, Leenhardt faz poucas generalizações sobre os modos de vida "selvagens" ou "p~ivos". Ele fornece não uma interpretação geral da vida melanésia (isso viria depois), mas sim um seleto conjunto de instrumentos com os quais um leitor sério poderia penetrar na vida da arcaica Nova Caledônia. A precaução de Leenhardt refletia seu sentimento de que a filosófica antropologia francesa tinha no passado sido rápida demais em erigir suas teorias da "mentalidade primitiva" ou das "formas elementares" da vida social, sem espaço suficiente para a experiência concreta vista do "ponto de vista nativo". Para Leenhardt, este esquivo ponto de vista não era acessível através do "rapport" ou empatia do trabalho de campo; nem era o resultado da decodificação de um comportamento "textualizado" .12 O que estava envolvido era um trabalho produtivo, coletivo, de tradução, que, por causa de sua forma específica, não poderia ser facilmente controlado por uma interpretação privilegiada. Os primeiros três trabalhos de Leenhardt para o Instituto de Etnologia de Paris, ainda que formando um conjunto, 240
têm uma abertura ausente da maioria das etnografias holisticamente organizadas. Eles são feitos para envolver o leitor no específico, nunca muito distantes da transcrição vernácula; eles fornecem 1.200 páginas densamente repletas de dados juntamente com os meios para sua tradução. A peça central da trilogia é Documents néo-calédoniens. Aqui, uma parte dos dados textuais de Leenhardt é mostrada. Numa página típica, o houailou é apresentado com os equivalentes em francês; em seguida, uma demonstração livre é tentada. Finalmente, notas de pé de página, freqüentemente detalhadas, dirigem a atenção do leitor para as complexidades de significado e áreas nas quais possivelmente houvesse alguma confusão. Isto, no entanto, não esgota os instrumentos que Leenhardt fornece em seus textos. Os dois volumes que o acompanham representam um papel essencial. Os Documents -lendas, orações, canções e cenas da vida - não são compreensíveis sem uma noção de sua inserção no ritual e na sociedade da Nova Caledônia como um todo. Esta contextualidade é fornecida nas Notes d' ethnologie néocalédonienne, um livro que seu autor pretendia ser primeiramente não um retrato integrado de uma sociedade, mas sim uma espécie de introdução aos Documents e às perplexidades da tradução. Na visão de Leenhardt, isso também não era suficiente para descrever o contexto institucional/ecológiéo dos documentos em língua nativa. Leenhardt considerava a língua em si mesma como uma fonte primordial de insight. O terceiro volume de sua trilogia, Vocabulaire et grammaire de la langue houailou, toma acessível muito do conhecimento de Leenhardt sobre uma língua me1anésia. Como uma referência para a leitura de Documents, suas cinco mil multifacetadas definições forneciam um amplo acesso às complexidades semânticas e variações situacionais do discurso e da prática ritual na Nova Caledônia. "Procure no dicionário (de Leenhardt)", aconselhava Mauss a seus alunos; "ele leva você a um outro mundo" .13 Os três livros de Leenhardt, juntos, pretendiam constituir "uma documentação inicial, bem classificada, para utilização no 241
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estudo da mentalidade arcaica"." Ao atribuir um papel central aos textos em língua nativa, o etnógrafo sentia que eles representavam a fonte disponível mais verdadeira da expressão melanésia. Ele baseava essa crença na sua modalidade específica de "coleta" de dados. Documents néo-calédoniens é um empreendimento de grupo. No índice constam os nomes de quinze diferentes transcripteurs, O que faz com que esses textos sejam diferentes da maioria dos documentos vernáculos é o fato de que aqui o etnógrafo não estava presente e ativamente envolvido no momento primeiro da transcrição - aquele processo no qual a transição de um modo oral para um literal é mais abrupto, e portanto no qual o risco de distorção é grande. Os textos de Leenhardt não eram, como os de Malinowski o eram, por exemplo, soletrados na presença de um etnógrafo inquisidor. Ao invés disso, eles eram elaborados em particular por informantes usando uma língua nativa, na qual eles haviam .recentemente aprendido a ler e escrever. Leenhardt encorajava uma grande variedade de pessoas a registrar em cadernos de exercícios escolares quaisquer lendas tradicionais, discursos rituais ou canções que eles conhecessem bem. Quando os cahiers estavam prontos, o missionário discutia seu conteúdo com os autores, um processo árduo e demorado, pois a língua era freqüentemente arcaica e a escrita, altamente idiossincrática. Claro que "erros" podiam fornecer oportunidades para se ir além das codificações da escrita. Algumas vezes, também, os textos obtidos dessa forma frouxa não se coadunavam com qualquer categoria de lenda, canção ou discurso formal: por exemplo, a história pessoal de "Jopaipi", o relato deúiii transe, uma cena da vida mítica que Leenhardt depois sujeitaria a repetidas análises em suas descrições do personnage, ou eu "participatório" melanésio (Leenhardt, 1932: 334-6, 1979:158-9). Há desvantagens neste procedimento de Leenhardt para a transcrição. Primeiro, os textos obtidos eram separados do contexto imediato de sua apresentação. Além disso, informantes traduzindo eloqüência oral numa escrita ainda insuficientemente manejada
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podiam estabelecer transcrições inexatas e apressadas para expressões que uma pessoa mais competente seria capaz de capturar. A escrita.finalmente, implicava num grau considerável de distância autoconsciente em relação aos costumes descritos, e portanto podia impor um elemento de abstração e um excesso de intelectualização à evidência etnográfica primeira. Ao lado destas desvantagens estão consideráveis benefícios no procedimento de Leenhardt. Um informante está sob pressão e controle menos imediatos do que estava alguém chamado para ditar num microfone ou compor suas palavras na presença de um transcritor freqüentemente apressado que em última análise não consegue evitar o uso de questões que acabam por conduzir a resposta. Mais ainda, no método de Leenhardt, que supunha várias etapas, a interpretação do costume podia se tornar um processo dialético de tradução. Uma textualização preliminar, uma "descrição densa", na frase de Geertz e Ryle, seria inicialmente fixada pelo falante nativo." Então esta versão seria discutida, expandida e checada em colaboração com o etnógrafo. O ponto de partida não seriam as descrições interpretativas do antropólogo, mas sim aquelas do informante, considerado aqui no papel de etnógrafo indígena. Leenhardt estava, em todo caso, menos interessado em tratar a cultura como um objeto de descrição do que como se ela estivesse ativamente "pensando a si mesma". Aqui a prática acadêmica tinha paralelo com o trabalho missionário. Em ambos os campos, Leenhardt tentava se envolver nas observações e reflexões conscientes dos melanésios sobre sua vida em transformação. Podemos ver este processo mais completamente no caso de seu melhor informante, Boesoou Erijisi. A maioria dos etnógrafos contou com "informantes privilegiados", embora não tenha sido comum escrever em detalhes sobre esses cruciais intermediários." Na verdade, o acesso ao "ponto de vista nativo" depende apenas parcialmente da interpretação do comportamento descrito ou textualizado. Além disso, representantes de distintas
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culturas entram em algum tipo de interlocução a respeito das crenças, uma colaboração que se constrói com base em familiaridade, interesse mútuo e confiança. A colaboração deve, em alguma medida, inventar sua própria língua, adequada à transmissão de nuanças e complexas informações. Como um resultado direto desta interlocução, um texto é produzido, e o texto é sempre algo mais que uma descrição, ainda que densa. Ele é um processo de tradução - de "making it new", na fórmula de Pound - em que ambas as partes podem aprender algo sobre si mesmas através da outra. O contato de Leenhardt com Boesoou Erijisi incluía mais do que uma instrução mútua que durou um quarto de século: um exemplo extremo de intercâmbio etnógrafo-informante, certamente, mas valioso como tipo ideal. É condescendente e falso afirmar que apenas o etnógrafo ganha conhecimento sobre os costumes a partir das colaborações do trabalho de campo, ou que os textos e as interpretações assim constituídos são significativos apenas para o autor da eventual etnografia. Boesoou era, para os objetivos de Leenhardt, o informante perfeito. Ele nasceu por volta de 1866 numa família de chefes, muito considerada na área houailou. Sua iniciação tribal, ele recordava, ocorreu no tempo da grande insurreição neocaledoniana de 1878. Assim, ele se tomou adulto no momento em que os modos tradicionais começaram a ficar sob grande pressão. (A supressão da rebelião foi seguida por três décadas de intenso estabelecimento na área por parte dos europeus). Homem de temperamento sério e reflexivo, ele ficava mobilizado pelas condições adversas de seu povo. Desmoralizada, expulsa das terras ancestrais, a população melanésia decaiu em mais de 30%, durante esse período. Quando, na década de 1890, houailou se tornou um ponto de apoio para o protestantismo das Ilhas Loyalty, Boesoou viu uma esperança pois era sabido que nas Ilhas Loyalty (onde a colonização branca era proibida) havia paz e menos alceclísmo. Boesoou se tomou protestante. Assim, quando Leenhardt chegou e abriu uma pequena escola para pastores, Boesoou Erijisi estava entre a primeira classe
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de 16 pessoas. Com cerca de 40 anos de idade, ele era o mais velho do grupo e o primeiro pastor neocaledoniano a ser consagrado. Homem de grande experiência e tato, ele foi um assistente de . • ,. 17 inestimável valor em todos os aspectos do trabalho rmssionano. Na tradução e na etnografia, Boesoou era indispensável. De 1912 a 1925, ele compôs uma longa série de cadernos de notas, cobrindo uma ampla variedadede costumes tradicionais. Boesoou havia sido um experiente escultor e organizador de pilous. Seus textos eram notavelmente precisos e detalhados, contendo (como Guiart, que ainda trabalha sobre eles, assinalou) não registros • • 18 meramente precisos de costumes, mas Importantes interpretaçoes. Traduzi-los era, no entanto, uma tarefa complexa, sendo a língua freqüentemente elíptica e obscura. O velho pastor e seu missionário passariam longas horas debruçados sobre os cadernos de notas, cujas margens eram logo preenchidas com as anotações de Leenhardt. Boesoou estabeleceu seu próprio ritmo. Suas respostas vinham devagar, após muito pensar. Leenhardt freqüentemente tinha tempo de escrever uma ~arta no intervalo que sep~rava u~a pergunta de sua resposta. As vezes a resposta vinha muito depois. O missionário havia aprendido a ter paciência - como, por exemplo, fazer perguntas sem pressionar por respostas - em sua prática de tradução da Bíblia, uma busca pelo que veio a se cha.mar "equivalências dinâmicas"." Leenhardt trabalhou por quinze anos num Novo Testamento em houailou que, tal como sua etnografia, era empreendimento coletivo. Ele levantava pro~lemas ~e tradução em sermões, aulas, conversas, sempre que podia, e OUVIa a resposta - às vezes esperava anos por elas. Por exemplo, em seu primeiro ensaio sobre tradução da Bíblia, Leenhardt conta como finalmente chegou a um termo houailou para "redenção" (Leenhardt, 1922b:214-15). Os missionários anteriores nas Ilhas Loyalty haviam usado o conceito em termos de troca, uma troca de vida: a de Jesus pela nossa. Mas no pensamento melanésio, equivalências reais eram exigidas em termos de trocas sociais; permanecia obscura a questão
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de como a doação pessoal de Cristo poderia redimir toda a humanidade. Isso era tão pouco claro que os pastores melanésios desistiram de tentar explicar o conceito que eles não entendiam e simplesmente empregavam o termo "libertação". Assim ficou' o problema, sendo Leenhardt obrigado a usar incômodas paráfrases, suas explicações ressentindo-se de concretude. Então, durante uma discussão sobre os Coríntios 1:30, ele ouviu Boesoou Erijisi usar uma expressão surpreendente. O termo nawi se referia ao costume de plantar uma pequena árvore na terra amaldiçoada pelo sangue de uma batalha ou por alguma calamidade. "Jesus era portanto aquele que fez o sacrifício e se plantou a si mesmo, como uma árvore, como se para absorver todos os infortúnios dos homens e lib~rtar o ~1Undo de seus tabus." Aqui estava um conceito que mars parecia se aproximar do de "redenção", ao mesmo tempo que penetrava com profundidade suficiente nas formas vivas de pensamento. Quando Leenhardt tentou essa tradução com seus pastores e alunos eles ficaram, conta ele, entusiasmados pela "profunda" tradução. Leenhardt também estava encantado e comovido, por testemunhar o que ele via como a Palavra de Deus voltando à sua concretude original. A definição do papel do tradutor pelo missionário também é relevante para as relações etnográficas:
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trabalho do tradutor não é interrogar seus ajudantes nativos, como se compilasse dicionários humanos mas sim provocar seu interesse, despertar seu pensamento ... Ele. não ,cria uma língua; esta é composta pelo próprio nativo; e o produto e a tradução de seus pensamentos. (Leenhardt, 1934)
. . . O tradutor registra um processo social e expressivo que ele InlClOUe sobre o qual tem bem pouco controle. O tradutor tenta capturar um momento do pensamento intercultural. Ele age dentro do processo normal da língua de se reformar e renascer no encontro com outras línguas.
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O tempo aqui é o tempo essencial - o tempo melanésio, estruturado a partir dos ritmos da troca. O tempo etnográfico é muito freqüentemente de outro tipo: controlado, linear, com o pesquisador "coletando" dados, em vez de "produzi-Ios" em colaboração com os informantes. No fundo, o trabalho de campo requer uma certa cumplicidade (um termo melhor, talvez, que rapport). Mas cumplicidade não é reciprocidade, embora possa . ser parte da reciprocidade. Uma pergunta desencadeia a troca; uma resposta institui uma dívida. O contínuo processo de dom e contradom obedece a ritmos regulares, um tempo que nem sempre sincroniza com o calendário acadêmico ou com a duração dos recursos da pesquisa. A resposta a uma pergunta pode vir décadas depois." Naturalmente, é um tanto inapropriado comparar uma experiência como a de Leenhardt - abrangendo mais de três gerações e envolvendo uma ativa aliança espiritual e política com seus informantes - com uma típica estadia acadêmica, ou mesmo uma série de estadias. Mas a comparação pode nos estimular a repensar os processos sociais pelos quais os textos etnográficos são criados, devolvendo à palavra "dados" o significado de sua raiz etimológica, "coisas dadas". Uma teoria completa da produção e da interpretação do texto etnográfico está ainda por ser escrita. Mas em todo caso não deve mais ser possível falar de dados como algo encontrado ou descoberto, como se fosse um bilhete numa garrafa. Nem deve ser suficiente conceber dados inicialmente formulados como um tipo de "descrição" problematizada." A palavra tende a preservar uma posição autoral privilegiada, tal como o faz a palavra "interpretação". Muito em uma etnografia tem a ver com descrição e interpretação, mas nem tudo, e certamente não, como foi sugerido acima, seus compromissos centrais, interpessoais. Há, finalmente, uma dimensão política em conceber o texto etnográfico como um documento mais aberto, mais processual e plural. Em situações de rápida mudança de estilos de vida oral para estilos de vida letrados, não pode haver um serviço mais útil
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a longo prazo que um etnógrafo pode oferecer do que encorajar transcrições da língua nativa. Uma obra como a de Leenhardt é hoje incomumente acessível à reapropriação por parte dos melanésios, já que boa parte dela, de formas discretas e óbvias, foi escrita por melanésios." Não se sabe por que esta forma de produção não é mais amplamente reconhecida como parte essencial do trabalho de campo. O caráter colaborativo da tarefa de transcrição, uma tarefa que também requer tempo, apresenta certos obstáculos, mas eles não são insuperáveis." Esse tema deve pelo menos ser levantado, especialmente num momento em que os pesquisadores de campo estão procurando formas de tomar sua atividade mais recíproca. Será que os etnógrafos podem se dar ao luxo de deixar este tipo de trabalho, fundamental ao futuro desenvolvimento das literaturas indígenas, a cargo dos missionários? Será que eles não devem encontrar formas de assegurar que pelo menos alguns dos escritos produzidos no campo sejam acessíveis e úteis àqueles que são freqüentemente, na verdade, seus co-autores?"
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1955). Sobre a "palavra" de Mindia, ver Leenhardt (1979: 114-18, l37). Leenhardt a seus pais, 31/10/1903, carta manuscrita. Esta atitude permeia suas cartas; ver também Leenhardt (1938). 10
Leenhardt a seus pais, 6/11/1915, carta manuscrita.
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Leenhardt a Jeanne Leenhardt, 15/7/1918; 17/8/1918; cartas manuscritas, citadas em Clifford (1977:263-9).
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A "textualização", uma pré-condição para a intepretação, é um processo pelo qual o comportamento, as crenças, a tradição oral, as ações rituais, etc., não escritas, vêm a ser "fixadas" (como algo com um significado), "autonomizadas" (separadas de uma específica intenção autoral), tornadas "relevantes" (para um mundo contextual) e "abertas" (para a interpretação por um público competente). O comportamento assim transformado se torna suscetível à "leitura", um processo que não depende mais de interlocução com um sujeito presente. Estes termos são propostos por Ricoeur (1971).
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Retirado das notas tomadas num curso, em 1935-1936, arquivos de Mauss, Musée de l'Homme, gentilmente fornecidas por C.
Comunicação pessoal: o retrato de Leenhardt é derivado de Leiris e de outros estudantes que ainda vivem; ver também as reminiscências de Poirier (1955) e Routhier (1955).
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Para um relato completo da carreira de Leenhardt, ver Clifford (1977). Sobre suas atividades políticas, ver Guiart (1955; 1959; 1977).
Esta definição dos três volumes como um todo, centrados no Documents, é baseada na própria descrição de Leenhardt contida num extenso curriculum vitae, feito por volta de 1950.
15
Geertz (1973: capo 1). Na página 19, Geertz discute a etnografia ( como a "inscrição" do discurso social, os meios pelos quais (seguindo Ricoeur) um evento se torna um significado interpretável. Mas se, como Geertz indica em sua famosa análise da briga de galos balinesa (especialmente na página 450), a cultura é sempre já interpretada, pode-se extrapolar que ela é também sempre já inscrita. (Uma ocasião ritual já é um "texto"? Como a expressão "literatura oral" chega a significar alguma coisa?).
Needham (1968; 1972:23-4). Ver também, sobre as relações entre missionários e etnógrafos, Burridge (1978) e Hughes (1978). Leenhardt a seus pais, 29 de janeiro de 1914, carta manuscrita. (Todo material não publicado, salvo quando indicado, está sob posse de R. H. Leenhardt, Rue Claude Bernard, 59, Paris.) A prática missionária de Leenhardt era significativamente
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fluenciada pelo trabalho de seu corpo pastoral. Os natas eram nativos das Ilhas Loyalty cuja mensagem evangélica - seguindo padrões tradicionais de troca entre as ilhas - precedia a chegada de Leenhardt em uma década (Clifford, 1977: Parte 1; Guiart,
Notas Robert Henry Codrington, missionário e etnógrafo inglês, que, antes de Maurice Leenhardt, trabalhou na Melanésia.
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Nestes casos, a etnografia é menos um processo de inscrição, a passagem de algum evento oral essencial para a textualidade, do que um procedimento de transcrição, de "escrever sobre". 16
Uma importante exceção Casagrande (1960), embora seja significativo que esses retratos tenham encontrado lugar numa edição separada, "popular", e não dentro das etnografias que eles tornaram possível. Ver também Liberty (1978), que contém um retrato de vários informantes antropológicos, e Fontana (1975), na introdução a uma reedição dePirna Indians, de Russell, que discute o oculto co-autor do livro, o índio papago José Lewis. A recente discussão de Rabinow (1977), embora forneça uma excelente visão das relações etnógrafo-informante como constitutivas da etnografia, não foge inteiramente da convenção que ela critica, a de compartimentalizar tais reflexões. Um livro que vai mais além ao questionar implicitamente a "autoridade" é Conversations with Ogotemmêli (1965). Para um excelente exemplo recente de um trabalho abertamente de co-autoria ver Majnep e Bulmer (1977). Ver R. H. Leenhardt (1976), que fornece detalhes biográficos e uma lista dos cadernos de notas de Boesoou, seus conteúdos, e as seções correspondentes dos Notes d'ethnologie e Documents néo-calédoniens de Leenhardt.
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Comunicação pessoal; sobre a qualidade dos informantes de Leenhardt como pesquisadores independentes, ver Guiart (1963: Introdução ).
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Ver particularmente Nidia e Taber (1969:22-32), que estabelecem princípios desenvolvidos por Nida numa carreira de renome como lingüista e teórico da tradução da Bíblia. Traduzir buscando a "equivalência dinâmica" requer a confirmação dessa tradução a partir da resposta dos receptores. "( ...) uma tradução da Bíblia deve não só fornecer informações que as pessoas possam entender, mas deve apresentar a mensagem de um modo que as pessoas possam sentir sua relevância (o elemento expressivo da comunicação) e possam então responder a isso através da ação (a função imperativa)" (p. 24). (Nida era leitor de Do Kamo de Leenhardt; ver seu Customs and cultures: anthropology for Christian missions (New York, 1954), passim; como editor de The Bible translator ele publicou uma tradução do artigo de
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Leenhardt de 1922 sobre o Novo Testamento houailou: v. 2, n. 3, jul., 1951, e n. 4, out., 1951.) Muitas das idéias gerais de Leenhardt podem ser encontradas em páginas recentes de Practical anthropology (hoje Missiology: an international review). Por exemplo, uma extensão do princípio da "equivalência dinâmica" para a estrutura das igrejas indígenas (uma perspectiva bem "leenhardtiana") pode ser vista em Kraft (1973:39-58).
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J. Guiart, escrevendo assumidamente na tradição leenhardtiana de pesquisa contínua na Nova Caledônia, apontou algumas destas questões em recente polêmica, prise de position, "L'ethnologue et l' oceánien" (1976).
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Geertz (1973:9). Em sua discussão sobre a "descrição densa", os exemplos de Geertz dos dados colhidos no campo são altamente textualizados e sobredeterminados interpretativamente. Exatamente como eles foram constituídos como textos, por quem e com quem, em quais condições, não é considerado. Uma coleção de brigas de galo se torna uma briga de galo "ideal", que é significativa porque não é típica (Ver Boon, 1977:32-4).
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Ver, por exemplo, o uso da obra de Leenhardt por Tjibaou (1976a: 1976b).
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Um obstáculo mais sério é a relutância dos editores em imprimir documentos extensos em língua nativa; o atual modelo de uma etnografia altamente focalizada, de 250 páginas, constrange a "abertura" do texto. Assim, para mencionar só um exemplo, o recente trabalho de A. Weiner, Womem of value, men of renown (1976), embora complemente de forma excelente as monografias de Malinowski sobre Trobriand, não parece suscetível de ser, interminável e criativamente, reinterpretada, como os trabalhos de seu predecessor, que produziu grandes compêndios como Coral gardens, Os argonautas e Sexuallife of savages, e que era capaz de incluir em seus trabalhos dados textuais que ele não compreendia teoricamente. Para uma excelente discussão desta e outras questões afins, ver Beidelman (1979:511-12).
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A problematização da autoria e do texto aqui recomendada se tornou, sem dúvida, um lugar-comum da moderna crítica, especialmente na sua variedade "pós-estruturalista". A literatura é extensa; para formulações suscintas ver Barthes (1977) e Foucault (1977).
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