Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática Gregorio F. Baremblitt 5ª.ed. Belo Horizonte, MG: Instituto Felix Guattari, 2002 (Biblioteca Instituto Félix Guattari; 2)
Baremblitt, Gregorio F. (2002) Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática, 5ed., Belo Horizonte, MG: Instituto Felix Guattari (Biblioteca Instituto Félix Guattari; 2) Copyright 1992 by Gregorio Baremblitt 1 ª edição: Editora Record, 1992 4
SUMÁRIO 5 INTRODUÇÃO.............. INTRODUÇÃO.............. 11
CAPÍTULO I: O movimento institucionalista, i nstitucionalista, a auto-análise e a autogestão..............13 CAPÍTULO 11: Sociedades e instituições..............25 instituições..............25 CAPÍTULO III: As histórias..............37 histórias..............37 CAPÍTULO IV: O desejo e outros conceitos no institucionalismo..............53 institucionalismo..............53 CAPÍTULO V: As tendências mais conhecidas do institucionalismo..............71 CAPÍTULO VI: Roteiro para uma intervenção institucional padrão..............90 CAPÍTULO VII: O institucionalismo na atualidade..............108 atualidade..............108 GLOSSÁRIO..............133 APÊNDICE..............174 POST-SCRIPTUM..............195 BIBLIOGRAFIA BÁSICA..............205 BÁSICA..............205 BIBLIOGRAFIA DE CONSULTA..............207 CONSULTA..............207
CAPÍTULO I: O movimento institucionalista, i nstitucionalista, a auto-análise e a autogestão..............13 CAPÍTULO 11: Sociedades e instituições..............25 instituições..............25 CAPÍTULO III: As histórias..............37 histórias..............37 CAPÍTULO IV: O desejo e outros conceitos no institucionalismo..............53 institucionalismo..............53 CAPÍTULO V: As tendências mais conhecidas do institucionalismo..............71 CAPÍTULO VI: Roteiro para uma intervenção institucional padrão..............90 CAPÍTULO VII: O institucionalismo na atualidade..............108 atualidade..............108 GLOSSÁRIO..............133 APÊNDICE..............174 POST-SCRIPTUM..............195 BIBLIOGRAFIA BÁSICA..............205 BÁSICA..............205 BIBLIOGRAFIA DE CONSULTA..............207 CONSULTA..............207
AGRADECIMENTOS No referente r eferente à primeira edição deste livro, o autor dá aqui testemunho de sua profunda gratidão: ao Dispositivo Instituinte de Minas Gerais, Escola de Saúde Pública de Minas Gerais, João Bosco Castro Teixeira, Cibele Ruas de MeIo, Alfredo Martin e alunos do curso do qual o livro foi uma versão. Nesta quinta edição, o autor exprime seu agradecimento à Margarete A. Amorim, que realizou inúmeras tarefas que pos sibilitaram sua publicação e distribuição, assim como à Luisella Ancis, que fez a tradução de novos capítulos, Nina Rosa Magnani, que colaborou com a revisão, e Luciana Tonelli, que fez a revisão final. O autor também agradece aos membros e funcionários do Instituto Félix Guattari de Belo Horizonte pelas diversas contri buições. Todos Todos eles aportaram aportaram sua ajuda generosamente. generosamente. O autor é grato a todos os amigos: professores universi tários, pesquisadores, pesquisadores, profissionais, estudantes e militantes da autogestão que colaboraram na distribuição das diversas edições deste escrito.
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INTRODUÇÃO
Este livro corresponde à versão escrita de um curso pro ferido em Belo Horizonte no decorrer de 1990, organizado pelo Movimento Instituinte de Minas Gerais. Curso que, por sua vez, foi requerido para atender ao crescente interesse pelo Movimento Institucionalista ou Instituinte no Brasil e facilitar o acesso aos textos dos fundadores das diferentes correntes. Os seis primei ros capítulos correspondem às seis aulas que compuseram o cur so, enquanto o último foi escrito como artigo independente, ain da inédito. O Movimento Institucionalista é um conjunto heterogê neo, heterológico e polimorfo de orientações, entre as quais é possível se encontrar pelo menos uma característica comum: sua aspiração a deflagrar, apoiar e aperfeiçoar os processos auto-ana líticos e autogestivos dos coletivos sociais. Essa vocação libertária, o estatuto epistemológico e jurí dico absolutamente singular e a infinita variedade de tendências que compõem o Movimento tornam extremamente difícil a tare fa de ensiná-lo. Se se deseja ser coerente com os valores do Mo vimento, sua Pedagogia exige uma originalidade da qual já exis tem muitas tentativas, mas que, ao mesmo tempo, ainda está para ser produzida. 11▲
Este curso, proferido com uma metodologia tradicional, tem apenas o propósito de aproximar os leitores das finalidades e recursos mais conhecidos e do panorama atual do Institucionalismo. Mais informativo que formativo, foi inspira do pelo desejo de estender e facilitar um saber e um fazer com plexo e arriscado, mas, no meu entender, importantíssimo para o povo brasileiro. Apesar da superficialidade e rapidez com que os densos temas são apresentados, acredito que este livro seja estimulante, discretamente esclarecedor e ainda minimamente instrumental para os futuros institucionalistas. Para quem decidir continuar, ou, sejamos realistas, começar verdadeiramente sua formação nesta fascinante proposta, a bibliografia final, integrada predo minantemente por textos em português e castelhano encontráveis no Brasil, proverá boa parte da diretriz indispensável para tal fim. Entre as escolas não-incluídas neste volume devido à sua proposta introdutória, devo destacar as correntes latino-ameri canas de Pichón-Riéver, Bleger, Ulloa, Malfe, Bauleo, Kaminsky, Pavlovsky, De Brasi, Matrajt, Scherzer e tantos outros aos quais me proponho a destinar, em algum momento, um livro especial. 12 ▲
Capítulo I
O MOVIMENTO INSTITUINTE, A AUTO-ANÁLISE E A AUTOGESTÃO No início devemos esclarecer que esse livro não terá o nível que alguns esperariam, pois se procura apresentar uma exposição de nível médio, para ser entendida pelo maior número possível de pessoas. Vamos tratar do chamado Movimento Institucionalista ou Instituinte que, como o nome aproximativamente indica, é um conjunto de escolas, um leque de tendências. Não existe nenhuma escola ou tendência que possa dizer que encarna plenamente o ideário do Movimento Instituinte. Contudo, pode-se encontrar em diversas dessas escolas algumas características em comum. E é a essas características em comum que eu gostaria de referir-me agora, da maneira mais simples e mais didática possível. Em capítulos sucessivos, teremos ocasião de complicar as coisas... Agora, a intenção é, predominantemente, simplificá-las. Entre as características presentes em todas as tendências do Movimento Instituinte, há algumas que são relativamente fáceis de se colocar. Eu diria que existe o que se chama de "ideais máximos" do Movimento. Podemos chamar a isto também de 13 ▲
propósitos mais importantes, os objetivos mais ambiciosos dessas escolas. Os mesmos podem ser enunciados através de duas palavras aparentemente simples, mas que são, como veremos depois, muito complexas. As diferentes escolas do Movimento Instituinte se propõem a propiciar, apoiar e deflagrar nas comunidades, nos coletivos e conjuntos de pessoas processos de auto-análise e de autogestão. O que significam essas palavras? Depois, compreenderemos com mais detalhes que os processos de interação humana, os processos de funcionamento social, têm sido sempre muito complexos. Mas em nossa civilização chamada industrial, capitalista ou tecnológica, a complexidade da vida social atingiu seu máximo expoente em toda a história da humanidade. Se compararmos, por exemplo, uma organização social
dita "primitiva", ou uma organização imperial, despótica, ou uma medieval com a nossa sociedade moderna, o grau de complexidade, de diversidade que as sociedades modernas atingem é infinitamente superior ao daquelas civilizações, apesar delas não serem nada simples. Acontece, então, que nossa época, nossa civilização, além de se caracterizar por uma grande diversidade, uma grande complicação interna, caracteriza-se também por, de fato, ter produzido uma soma de saberes que propiciou, nesses últimos duzentos anos, uma "evolução" maior do que a humanidade havia conseguido em dois mil anos; ou seja, houve um processo de produção de conhecimento e de aplicação do mesmo muito intenso. Esse saber, como ninguém ignora, resultou em aplicações tecnológicas que aceleraram o chamado "progresso" em igual proporção. E o progresso trouxe uma grande complexidade. Além desses conhecimentos produzidos pelas ciências da natureza, ciências formais, aplicações tecnológicas, existem disciplinas que versam sobre a organização social em si mesma. Ou seja, nossa civilização tem produzido um saber acerca de seu próprio funcionamento como objeto de estudo e tem gerado profissionais, intelectuais, experts que são os conhecedores dessa estrutura e do processo dessa sociedade em si. Esses conhecedores têm-se colocado, em geral, a serviço das entidades e das forças que são dominantes em nossa sociedade. Por exemplo, a serviço daquela instituição que representa o máximo 14 ▲
da concentração de poder, o extremo de concentração de controle e de hegemonia sobre a sociedade, que é o Estado. Além disso, por outro lado, já dentro da sociedade civil, esses experts têm-se colocado a serviço das grandes entidades proprietárias da riqueza, do poder, do saber e do prestígio, que são as organizações corporativas, as empresas nacionais e multinacionais etc. Essa situação, em que os "sábios", os conhecedores da estrutura e do processo da vida social estão predominantemente a serviço do Estado e das empresas, tem tido como conseqüência que os povos – em sentido amplo, a sociedade civil – têm-se visto despossuídos de um saber que tinham acumulado através de muitos anos acerca de sua própria vida, de seu próprio funcionamento. Esse
saber, criado e acumulado pelas comunidades sociais durante tantos anos de experiência vital, a partir do surgimento do saber científico e tecnológico, fica relegado, colocado em segundo plano, como se fosse rudimentar e inadequado. Tanto é assim que temos técnicos que costumam chamá-lo de ideologia, num sentido vago, geral, visando a qualificá-lo como um falso conhecimento, pobre, infundado ou, no melhor dos casos, insuficiente. Então, as comunidades de cidadãos têm visto esse saber subordinado ao saber dos experts. Junto com seu saber, elas têm perdido o controle sobre suas próprias condições de vida, ficando alheias à espacidade de gerenciar sua própria existência. Elas dependem, então, quase incondicionalmente, dos organismos do Estado, empresariais, do saber e de serviços dos experts. E a quais experts refiro-me? Aos dos ramos produtivos, primários, secundários e terciários, aos especialistas de produção de bens materiais, ou seja, comida, vestuário, moradia, transporte: aqueles bens materiais indispensáveis à sobrevivência. Toda a produção desses bens está dirigida, gerenciada por "especialistas". Mas noutro plano, refiro-me aos problemas de saúde, de educação, aos assuntos familiares, aos psicológicos e subjetivos, em geral; às questões relativas ao lazer, às que atingem a comunicação de massa, aos assuntos próprios da religião. Cada um desses campos, cada um dos serviços que se prestam nessas áreas, os bens que se produzem e administram nesses territórios, ou seja, sua quantidade, sua qualidade, sua necessidade, sua conveniência, tudo é decidido pelos experts, é arbitrado por quem se supõe que saiba e conheça sobre o assunto. O mesmo acontece no plano de administração da justiça, nos tribunais, com os 15 ▲
advogados, despachantes, registros civis, leis: tudo isso feito por experts e administrado por eles. E o que falar do exercício da força, no sentido literal, porque todas essas outras entidades também usam da força, senão da força física, da força da persuasão, da força da sedução, mas o uso da força física está reservado a organizações como a polícia, as forças armadas, que também têm seus especialistas, oficiais, delegados, guardas etc. É claro que os experts conhecem e decidem
prevalentemente segundo os interesses das classes, níveis hierárquicos e grupos dominantes aos quais pertencem parcialmente. Mas não se deve sempre supor uma intenção deliberada dos técnicos nesse sentido. Acontece, como veremos, que seu saber em si mesmo já está produzido por instrumentos e gera resultados que privilegiam os interesses e desejos citados. Então, o que acontece? Há um conceito básico que vamos ver depois, na Análise Institucional e em outras escolas do Institucionalismo, que se chama demanda. É possível afirmar que as comunidades ou coletividades têm necessidades básicas indiscutíveis e universais. Essas necessidades são colocadas diariamente através de demandas espontâneas, através da exigência de produtos e de serviços correspondentes. Essa idéia é uma das tantas que vai ser questionada pelo Institucionalismo, porque ele vai tentar mostrar que em todas as épocas da história, mas particularmente na nossa, não existem necessidades básicas "naturais"; não existem demandas "espontâneas", pois em todas e em cada uma dessas organizações que acabamos de descrever, a noção das necessidades é produzida, assim como a demanda é modulada; isto é, aquilo que os povos pensam que todos os membros de uma população e todos os povos do mundo precisam como "mínimo" não existe. Esse "mínimo" é gerado em cada sociedade e é diferente para cada segmento da mesma. Mas ainda dentro do condicionamento histórico, as comunidades que têm alguma noção vivencial acerca de suas necessidades a perdem, de modo que já não sabem mais do que precisam e não demandam o que "realmente" aspiram, mas acham que necessitam daquilo que os experts dizem que elas necessitam e acham que pedem o que querem e como querem, mas, na verdade, precisam, querem e pedem o que lhes inculcam que devem necessitar, desejar e solicitar. É, então, muito evidente que nossos coletivos estão, 16 ▲
atualmente, nas mãos de um enorme exército de experts que acumulam o saber que lhes permite fazer com o que as pessoas achem que precisam e solicitem aquilo que os experts dizem que precisam e que os grupos e as classes dominantes lhes concedem. Então, os coletivos têm perdido,
têm alienado o saber acerca de sua própria vida, a noção de suas reais necessidades, de seus desejos, de suas demandas, de suas limitações e das causas que determinam essas necessidades e essas limitações. Eles têm perdido um certo grau de compreensão e o controle sobre que tipos de recursos e formas de organização devem dispor para colocar e resolver seus problemas. Mal podem organizar-se para resolver seus problemas se não conseguem saber, com precisão, quais são seus verdadeiros problemas e o que se requer para resolvê-los. Falei que poderíamos enunciar dois objetivos básicos do Institucionalismo, um deles seria a auto-análise e o outro a autogestão. Agora já podemos explicar um pouco melhor em que consistiria o primeiro deles. A auto-análise consiste em que as comunidades mesmas, como protagonistas de seus problemas, necessidades, interesses, desejos e demandas, possam enunciar, compreender, adquirir ou readquirir um pensamento e um vocabulário próprio que lhes permita saber acerca de sua vida, ou seja: não se trata de que alguém venha de fora ou de cima para dizer-lhes quem são, o que podem, o que sabem, o que devem pedir e o que podem ou não conseguir. Este processo de auto-análise das comunidades é simultâneo ao processo de auto-organização, em que a comunidade se articula, se institucionaliza, se organiza para construir os dispositivos necessários para produzir, ela mesma, ou para conseguir os recursos de que precisa para a manutenção e o melhoramento de sua vida sobre a terra. Na medida em que essa organização é conseqüência e, ao mesmo tempo, um movimento paralelo com a compreensão dada pela auto-análise, ela também não é feita de cima para baixo, nem de fora, mas elaborada no próprio seio heterogêneo do coletivo interessado. Essa auto-análise e essa autogestão não significam necessariamente que os coletivos devam prescindir por completo dos experts porque, sem dúvida, com sua disciplina e seus instrumentos, eles têm acumulada uma quantidade de conhecimento importante e não inteiramente alienado, não necessariamente distorcido, ou seja: produtivo. Mas os experts 17 ▲
devem submeter seu saber, suas glórias, seus métodos, suas técnicas, suas inserções sociais como
profissionais a uma profunda crítica que os faça separar, dentro dessas teorias, métodos e técnicas, dentro dos organismos aos quais pertencem, o que é produto de sua origem, de sua pertença ao bloco dominante das forças sociais e o que pode ser útil a uma auto-análise, a uma auto gestão, da qual os segmentos dominados e explorados sejam protagonistas. Para poderem efetuar essa autocrítica, os experts não podem fazê-lo no seio de suas torres de marfim, não podem fazê-lo nas academias ou exclusivamente nos laboratórios experimentais. Eles têm que entrar em contato direto com esses coletivos que estão se auto-analisando e autogestionando para incorporar-se a essas comunidades desde um estatuto diferente daquele que tinham. Esse estatuto deve resultar de uma crítica das posições, postos, hierarquias que eles têm dentro dos aparelhos acadêmicos ou jurídico políticos do Estado, ou ainda das diretivas das grandes empresas nacionais e multinacionais. Eles têm de reformular sua condição profissional, seu saber específico. E só conseguirão reformulá-los numa gestão, num trabalho feito em conjunto com essas comunidades e na mesma relação de horizontalidade com que qualquer membro dessa comunidade o faz. Isso permitirá que, eventualmente, os experts, quando a comunidade conseguir organizar-se, tenham algum lugar dentro das organizações específicas que a comunidade se deu a si mesma para esses fins. Então seu saber, sua capacidade e sua potência produtiva estarão plenamente integrados ao movimento de auto-análise e auto gestão dessa comunidade. Eles poderão assim reformular, aprendendo e ensinando seu saber e sua eficiência nessa nova e inédita situação. À parte dessa reinvenção de sua disciplina, os experts poderão aprender como eles serão capazes de propiciar outros movimentos autogestivos e auto-analíticos quando forem chamados a participar. Esta é uma explicação sucinta dos propósitos fundamentais do Movimento Institucionalista que são sistematicamente compartilhados por todas as tendências que o integram. Ao mesmo tempo em que são os objetivos principais das propostas instituintes, eles são também os próprios meios para realizá-las. Por isso, é importante que esses dois objetivos e meios sejam não apenas superficial, mas profundamente conhecidos pelos leitores. 18 ▲
É óbvio que autogestão e auto-análise são dois processos simultâneos e articulados. Por quê?
Porque auto-análise, para as comunidades, significa a produção de um saber, do conhecimento acerca de seus problemas, de suas condições de vida, suas necessidades, demandas etc., e também de seus recursos. Mas até para que a auto-análise seja praticada pelas comunidades, elas têm que construir um dispositivo no seio do qual essa produção seja realizável. Elas têm que organizar-se em grupos de discussão, em assembléias; elas têm que chamar experts aliados para colaborarem; elas têm que se dar condições para produzir esse saber e para desmistificar o saber dominante. Ao mesmo tempo, tudo o que elas descobrirem neste processo de auto-conhecimento só terá uma finalidade: a de auto-organizar-se para que possam operar as forças destinadas a transformar suas condições de existência, a resolver seus problemas. Mas não pode haver uma organização sem um saber; não pode haver um saber sem uma organização. São dois processos diferenciados, mas eles são concomitantes, simultâneos, articulados. Costuma-se crer que os processos autogestivos implicam uma falta completa de denominações, hierarquias, quadros, especificidades etc. Na realidade, é difícil pensar qualquer processo organizativo que não inclua uma certa divisão do trabalho e que não implique uma certa hierarquia de decisão, de deliberação. Esses são funcionamentos inerentes a qualquer processo produtivo. Deverão, então, existir hierarquias, gerências. Mas a existência de hierarquia não implica diferença de poder; não equivale a privilégio ou arbitrariedade na capacidade de decidir. Implica apenas uma certa especialização em algumas tarefas, porque estes dispositivos estão feitos de tal maneira que as decisões de fundo são tomadas coletivamente. Em todo caso, os quadros hierárquicos não são mais que expressão da vontade consensual. São executores. Mas não são executores do mandato das elites mediatizado por organismos burocráticos, por correias de transmissão. Na autogestão os coletivos mesmos deliberam e decidem. Eles têm maneiras diretas de comunicar as decisões. Existem hierarquias moduladas pela potência, peculiaridades e capacidade de produzir; mas não há hierarquias de poder, ou seja, a capacidade de impor a vontade de um sobre o outro. Contudo, é evidente que o Institucionalismo, tanto quanto os processos auto-analíticos, são produtores de conhecimentos,
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e que todo saber envolve, necessariamente, um poder, e ambos não são homogeneamente distribuídos. Mas este saber é um saber coletivo, produzido, distribuído e exercitado na vida coletiva. Na topografia deste saber, existem alguns elementos essenciais que são compartilhados por todo mundo. Então, quando esse saber compartilhado é delegado a alguns que se especializam nessa questão, já não é um saber produzido fora dos interesses e desejos do coletivo, já não é um saber que vai cair de cima para baixo, de fora para dentro. É já uma delegação, porque foi produzido dentro, por alguns especialistas no assunto, em estreita colaboração com os diretamente interessados nos benefícios que esse saber e suas aplicações terão, uma vez realizados. Isso garante que esses especialistas são verdadeiramente "especiais": delega-se a eles um saber que é a expressão dos interesses e das capacidades essenciais do coletivo. O coletivo conserva um saber básico acerca de seu campo que lhe permite julgar quando o especialista está exercitando o seu poder com sentido instituinte-organizante, e então a serviço do coletivo, ou, pelo contrário, de ambições de segmentos individualistas etc. Vou dar um típico exemplo da medicina, embora haja mil exemplos, muitos dos quais não poderemos mencionar aqui porque são muito complexos e extensos para expor. Quem conhece a situação da saúde no Brasil sabe perfeitamente que nosso país não precisa prioritariamente de, digamos, tomógrafos computadorizados, pelo menos a nível de sua problemática prevalente atual. O que o Brasil precisa é de uma política de saúde que não começa nem acaba no campo da medicina. Seus problemas, que têm efeitos médicos, têm suas causas diretas nos problemas de habitação, alimentação, vestuário e saneamento básico. Disso todos os experts sabem, o que não impede que a ênfase da política de saúde no Brasil esteja colocada na assistência e não na prevenção, principalmente se por prevenção entende se algo que modifique radicalmente as condições de vida da população. Entretanto, há muitos centros paulistas e cariocas que se orgulham de ter os mais modernos aparelhos para resolver ou diagnosticar uma problemática altamente específica, circunscrita, que afeta 0,5% da população. Acontece que o povo, as organizações de base, não podem questionar de maneira eficiente as políticas médicas do Brasil
porque a primeira coisa 20 ▲
que lhes seria respondida é que não sabem. Mas o que acontece quando o coletivo revitaliza seu saber, revaloriza o saber espontâneo que ele tem acerca do que precisa? Os índios têm, as comunidades negras têm, as comunidades das montanhas têm, as comunidades da planície têm, todo mundo tem um saber espontâneo acerca de quais são os sofrimentos, quais são as enfermidades e como devem ser tratadas, pelo menos, basicamente. Assim, também eles sabem quais problemas devem ser abordados – mesmo que não se exprimam em sofrimento, ou quando o sofrimento ainda não tenha se tornado doença, não devendo ser tratado como tal. Desde logo este saber também desconhece muita coisa, mas isso não pode afirmar-se a priori. Só que esse saber é permanentemente desqualificado pelo saber acadêmico, que atua predominantemente a serviço de interesses estatais, nacionais e multinacionais dominantes – um saber consubstancial com esses interesses. A primeira operação que as comunidades devem fazer é recuperar, revalorizar o saber espontâneo que elas têm sobre seus problemas; a segunda operação deve ser feita em conjunto com os experts, ajudando-os a criticar essa orientação – essa medula dominante reacionária-que o saber médico (nesse caso) e suas técnicas têm. Sobretudo em termos de hierarquização de prioridades: o que vem primeiro e o que vem depois, o que é prioritário e o que é secundário. Uma vez que o expert , integrado à comunidade, demonstra a capacidade de contribuir, em pé de igualdade, para este trabalho de reformulação, pode-se delegar a ele algumas áreas do saber com menos perigo de que ele o transforme em poder, e não numa potência de colaboração com o coletivo. Nesse caso, o coletivo já não está desqualificado – ele sabe julgar o que se faz e o que se acha que se sabe. Isso não descarta que possam acontecer novamente problemas de concentração de saber e de poder, porque este processo de auto-conhecimento e autogestão é interminável. Provavelmente, haverá necessidade de muitas gerações autogestivas e auto-analíticas para que o processo possa exercitar-se em sua plenitude. Se bem que este caminhar está orientado por uma Utopia Ativa que não está
colocada num futuro longínquo, senão em cada ato do cotidiano. Como já dissemos, existiram e existem numerosas tentativas auto-analíticas e autogestivas que não apresentam o caráter purista que a gente pode imaginar em sentido abstrato. Por exemplo, as comunidades 21 ▲
eclesiásticas de base: pode-se dizer que têm um espírito institucionalista complexamente integrado a aspectos libertários do Cristianismo, embora limitados pelos processos burocráticos da Igreja Católica. Isso abre um tema que eu teria gostado de tratar neste primeiro capítulo, mas acho que vai complicar um pouco as coisas, porque eu queria enfatizar os conceitos essenciais básicos. Mas, enfim, em que consiste o tema aqui levantado? O Movimento Institucionalista reconhece uma gênese histórico -social e uma gênese conceitual. A primeira é a história de todas as tentativas que houve na história da humanidade e as que hoje existem e exercitam um Institucionalismo espontâneo. Um desses movimentos é o das comunidades eclesiásticas de base no Brasil e em outros países. Mas muitas iniciativas autogestivas já existiram, existem e vão existir, e não precisam do Institucionalismo para se desenvolverem. O Institucionalismo é alguma coisa assim como o resultado do ensinamento dessas iniciativas históricas sobre os próprios experts. Nós, os experts – médicos, engenheiros, advogados, comunicólogos, psicólogos etc – , temos aprendido que isso existe e que poderíamos colaborar para seu desenvolvimento a partir das experiências históricas que já existiram neste sentido e das que estão existindo e se desenvolvem perfeitamente ou dificilmente sem a nossa participação. Por outro lado, a gênese conceitual refere-se ao campo das idéias, conceitos e funções: todas aquelas teorias, conceitos, idéias, categorias que têm sido produzidas pela humanidade no decorrer da história do conhecimento e podem contribuir para dar base, para fundamentar a proposta institucionalista. Agora, gostaria de referir-me à última questão, muito importante. Os leitores compreenderão que esses processos auto -analíticos e autogestivos se dão em condições altamente desfavoráveis, severamente contraproducentes. Por quê? Naturalmente porque os coletivos em questão não são donos do saber, não são donos da riqueza, não são donos dos recursos que são propriedade e servem ao poder dos organismos e entidades de classe alta e grupos dominantes.
Então, a consecução dos objetivos tem graves impedimentos que vão desde a privação de recursos (que são propriedade a serviço do poder dos organismos e entidades de classe dominante) até a morte física repressiva. Esses processos autogestivos e auto-analíticos são, para a 22 ▲
organização do sistema, um câncer, uma peste. Não há nada que seja mais temido e mais odiado pelo sistema social, porque os movimentos instituintes têm esse intuito: que os coletivos presidam a definição de problemas, a invenção de soluções, a colocação dos limites do que é possível, do que é impossível e do que é virtual, o que normalmente é feito pelas instituições, organizações e saberes de grupos e outros segmentos dominantes. Por isso a autogestão não é tarefa fácil: a prova está em que as iniciativas auto-analíticas e autogestivas não se caracterizam por seu sucesso. Elas têm aparecido muitas vezes na história e muitas vezes têm sido destruídas ou sufocadas. E as que hoje insistem em existir lutam duramente contra um conjunto de imensas forças históricas que tentam destruí-las. E quando não conseguem eliminá-las, tentam recuperá-las, incorporá-las. Isso faz com que os objetivos últimos do Institucionalismo – a auto-análise e a autogestão – não sejam atingidos nunca de forma definitiva. Eles são atingidos sempre na base da tentativa, do ensaio, da procura. Em geral têm maiores ou menores graus de fracasso. Mas isso não quer dizer que não sejam possíveis ou inventáveis. Então, esta última afirmação que faço refere-se ao seguinte: as diferentes escolas do Institucionalismo se distinguem entre si pelas teorias, pelos métodos, pelas técnicas com que elas tentam introduzir estes objetivos últimos, e pelo grau de realização com o qual se conformam. Quer dizer: há correntes, escolas" maximalistas", que buscam a instalação plena da autogestão e da auto-análise. Há outras que se satisfazem com a introdução relativa de alguns mecanismos, de alguns espaços, de alguns temas de auto-análise e autogestão. Ou seja, no Institucionalismo, como na política, existem correntes reformistas e existem correntes ultrarevolucionárias. De qualquer maneira, nada disso impede que as agrupemos em torno desses dois objetivos e recursos. Eles as diferenciam claramente da enorme maioria das propostas políticas, tanto das extremistas quanto das propostas social-democráticas. Provavelmente a tendência política tradicional que mais se aproxima das propostas institucionalistas, e com a qual o Institucionalismo está mais que em dívida, seja a de certas orientações do anarquismo.