ANALISE DO POEMA ISMÁLIA
No caso de "Ismália" (veja abaixo), o poema expressa a dualidade entre corpo e alma. Aqui está revelada a imagem de todo homem preso ao desejo de unir matéria e espírito, mas frustrado pela consciência da distância intransponível que o separa de seu objetivo. Levada, sutil e delicadamente, por um desvario, Ismália se permite sonhar com o possível encontro de matéria e espírito. Mas, já que ele não é realizável em vida, então é à morte que Ismália se entrega. No entanto, essa entrega está banhada por uma singeleza única: semelhante a um anjo, sua alma sobe embalada por um cântico, enquanto seu corpo repousa na imensidão do oceano. Fica a impressão de que, para Ismália, não bastaria o reflexo da lua - que bem poderíamos entender como símbolo do poder celestial - sobre o mar (a vida terrena). Desse modo, a experimentação de um sentimento de completude não se daria apenas pela presença constante do divino no cotidiano, mas sim pelo encontro com o Absoluto, o que lhe exigiria transpor a fronteira da vida para a morte: Quando Ismália enlouqueceu, Pôs-se na torre a sonhar... Viu uma lua no céu, Viu outra lua no mar. No sonho em que se perdeu, Banhou-se toda em luar... Queria subir ao céu, Queria descer ao mar... E, no desvario seu, Na torre pôs-se a cantar... Estava longe do céu... Estava longe do mar... E como um anjo pendeu As asas para voar... Queria a lua do céu, Queria a lua do mar... As asas que Deus lhe deu Ruflaram de par em par... Sua alma, subiu ao céu, Seu corpo desceu ao mar...
Nesta análise do poema Ismália, de 5 estrofes com 4 versos cada, com rimas alternadas, uma leitura possível sugere que a personagem-título enlouquece e se suicida, enquanto que a estruturação nos remete para um aspecto gráfico-formal, observamos que nas primeiras 4 estrofes, sempre nos versos 3 e 4 , um verbo que se repete: viu/viu; queria/queria; estava/estava; queria/queria. A repetição serve para reforçar idéias contrastantes, já que em cada um desses versos está presente um substantivo, um verbo, um complemento que exprime oposição: céu/mar; subir/descer; perto/longe; subiu/desceu. Destes, a oposição céu/mar é constante nas 5 estrofes. Na primeira estrofe, o poema narra o enlouquecimento de Ismália que, à janela da torre, viu a lua a espelhar-se no mar ("Viu uma lua no céu, Viu outra lua no mar"). Na
segunda estrofe, a loucura ("sonho") leva-a a debruçar-se mais para fora da janela ("Banhou-se toda em luar") e ter desejos conflitantes - a lua do céu e a lua do mar, como se estivesse entre duas escolhas. Na 3ª estrofe, já delirando ("no desvario seu") ela começa a cantar; na 4ª, é sugerido que Ismália estendeu os braços para 'voar' ("... como um anjo pendeu/ As asas..."); na 5ª e última estrofe, a imagem torna-se ambígua: as "asas" dadas por Deus são seus braços, ou se referem à alma que voou para o céu? A "loucura" de Ismália é também comparada a um sonho: "No sonho em que se perdeu". A 'loucura' é assim vista de forma poética, não agressiva, e nem necessariamente negativa: aproximando "loucura" e "sonho", o poeta pode estar sugerindo que a loucura é um estado fora do ordinário, do comum da vida, como é o estado do sonho. Sonhamos dormindo, ou mesmo acordados, quando imaginamos alguma coisa ou situação. Considerando que estas análises apenas sugerem possibilidades entre tantas leituras que se façam deste primoroso poema, a questão da intertextualidade entre este e outros textos também pode ser amplamente explorada, e então se tem início ao fantástico e infindável horizonte que se abre no universo literário e que nos permite imaginar, por exemplo, a inadjetivável aproximação da grandiosidade da criação de Alphonsus de Guimaraens com a fascinante obra do genial Fernando Pessoa. O mar, com que Guimaraens encerra cada estrofe de seu poema, pode ser comparado com o mar dos versos de “Mar Português, com que Fernando Pessoa engrandeceu os feitos dos navegadores portugueses no grande Poema épico “Mensagem” que narra toda
a trajetória de Portugal, que antes só tinha acontecido nos textos camonianos. É o mar, agente supremo de toda a essência portuguesa, que em Guimaraens representa o reflexo do céu e a dimensão de profundidade e distanciamento próprios daqueles cuja insanidade volteia, em Fernando Pessoa representa o medo e o desafio que os lusitanos precisaram superar para solidificar os alicerces da nação. Uma leitura do texto pessoano sugere que o mar poderia ter sido doce e que ficou salgado com as lágrimas do povo português. Talvez fosse para imortalizar o lado doloroso e trágico dos heróis portugueses que o poeta escreveu “quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor”. Se com Guimaraens o mar alcança a
sublimação da busca pela liberdade semelhante à ascensão aos céus, em Pessoa é a valorização dos sentimentos de um povo, é a cor, o sabor. Se com um representa o delírio que antecede a morte, com o outro é a imortalidade.