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CIÊNCIA E A VERDADE
EscRITos Jues Lacan
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Estenografa da aula de abertura do seminário que realizamos no ano de 1965-66 na Écoe Normale Supérieure, sobre O objeto da psicanálise como chargé de conférences da Écoe Pratique des Hautes Études (VIª seção). Seu texto saiu no primeiro número dos Cahers pour l'nalyse, publicados peo Círculo de Epistemologia da ENS ou seja em janeiro de 966.
O status do sujeito na psicanálise, acaso diremos que no ano passado o fundamentamos? Chegamos a estabelecer uma estr tura que dá conta do estado de fenda, de Spaltung em que o psicanalista o situa em sua práxis. Essa fenda, ele a reconhece de maneira como que cotidiana. Admite-a na base, já que o simpes reconhecimento do incons ciente basta para motivá-la e que, além disso, ea o submerge, por assim dizer, em sua constante manifestação. Mas, para que ele saiba o que acontece com sua práxis, ou simplesmente que a dirige em conformidade com o que he é acessíve, não basta que essa divisão sea para ee um fato emprico, nem tam ouco que o fato emprico tenhase constituído em um paradoxo. E preciso uma certa redução, às vezes demorada para se efetuar, mas sempre decisiva no nascimento de uma ciência; redução que constitui propriamente seu objeto. É isso que a epistemoogia se propõe definir em cada caso e em todos ees, sem que se haja mostrado, peo menos a nosso ver, à altura de sua tarefa Pois, ao que eu saiba, ea não explicou penamente por esse meio a mutação decisiva que, por intermédio da física, fundou A ciência no sentido modeo, sentido que se postula como absouto. Essa posição da ciência ustifica-se por uma radical mudança de estio no tempo de seu progresso, pela forma galopante de sua imisção em nosso mundo, peas reações em 869
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cadeia que caracteriza o que podeos chaar de expansões de sua energética E tudo isso nos parece radical ua odi ficação e nossa posição de sujeito, no duplo sentido: de que ela é inaugura nesta e de que a ciência a reforça cada vez ais Koyré é nosso guia aqui, e sabeos que ele ainda é desco nhecido. Assi, não esgotei o que conceme à vocação de ciência da psicanáise Mas foi possível notar que toei coo fio condutor, no ano passado, u certo oento do sujeito que considero ser u correato essencia da ciência: u oento historicaente definido, sobre o qual tavez tenhaos de saber se ele é rigoro saente passíve de repetição na experiência: o que foi inaugu rado por Descartes e que é chaado cogito. Esse correato, coo oento, é o desfilaento de u rechaço de todo saber, as por isso pretende fundar para o sujeito u certo ancoraento no ser, o qua sustentaos cons tituir o sujeito da ciência e sua definição, devendo este tero ser toado no sentido de porta estreita Esse fio não nos guiou e vão, já que nos levou a forular, no fi do ano, nossa divisão experientada do sujeito coo divisão entre o saber e a verdade, acopanhando-a de u odeo topológico: a banda de Moebius, que eva a entender que não é de ua distinção originária que deve provir a divisão e que esses dois teros se vê juntar. Que confia, co base e Freud, na técnica de leitura que e foi preciso ipor quando se tratava sipesente de substituir cada u de seus teros e sua sincronia, esse saberá votar da chspaltung sobre a qual a orte se abate para os artigos sobre o fetichiso (de 1927) e para a perda de reaidade (de 924), a fi de neles constatar que a chaada reforulação doutrina da segunda tópica não introduz, sob os teros Ih, Überich e Es nenhu certificado de aparelhos, poré ua retoada da ex periência segundo ua dialética que ehor se define coo aquilo que o estruturaliso, ais tarde, peritiu eaborar ogi caente; ou seja, o sujeito, e o sujeito toado nua divisão constitutiva. A partir daí o princípio de realidade perde a discordância que o arcaria e Freud, se, por ua justaposição de textos, ee tivesse que se partihar entre ua noção de reaidade que incui
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a reaidade psquica e outra que faz dea o correao do sistema percepção-consciência Ele deve ser ido como de fato é designado: ou seja como a inha de experiência que o sujeito da ciência sanciona. E basa pensarmos nisso para que ogo enrem em campo as reexões que as pessoas se proem como por demais evidenes. Que é impensável por exemplo que a psicanálise como prática que o inconsciente o de Freud como descoberta hou vessem tido lugar anes do nascimento da ciência no século a que se chamou chamou século século do alento o XVII ciência ciência a ser tomada no sentido absoluo no insane indicado sentido ese que decerto não apaga o que se institura antes sob esse mesmo nome porém que em vez de enconrar nisso seu arcasmo extrai dai seu próprio fio de uma maneira que melhor mosra sua diferença de quaquer outro. Uma coisa é certa: se o sujeio está realmene ali no âmago da diferença quaquer referência humanista a ele toase su pérua pois é esta que ele corta de imediao Não visamos dizendo isso da psicanáise e da descobera de Freud ao acidente de er sido peo fao de seus pacientes terem ido procurá-o em nome da ciência e do prestígio que ea conferia no fim do século IX, aos que a serviam mesmo os de grau inferior que Freud conseguiu fundar a psicanálise descobrindo o inconsciente. Dizemos ao contrário do que se invena sobre um preenso rompimeno de Freud com o cienificismo de sua época que foi esse esse mesmo mesmo cientifi cientificis cismo mo se quiserm quisermos os apontá-lo em sua fidelidade aos ideais de um Brücke por sua vez transmitidos pelo paco aravés do qual um Helmholz e um Du BoisReymond se haviam comprometido a inroduzir a fisioogia e as funções do pensamento consideradas como includas neles nos termos matematicamene deerminados da termodinâmica quase chega da a seu acabameno acabameno em sua sua época que conduziu conduziu Freud Freud como nos demonsram seus escrios a abrir a via que para sempre levará seu nome. Dizemos que essa via nunca se desvinculou dos ideais desse cientificismo já que ee é assim chamado e que a marca que raz dese não é coningene mas lhe é essencial. E que é por essa marca que ea preserva seu crédio malgrado os desvios a que se prestou e isso na medida em que Freud se
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opôs a esses desvios, sempre com uma segurança sem reards e com um rigor inflexível Prova disso é seu rompimento com seu adepo mais prestigioso, ou seja, Jung, desde o momento em que ele deslizou para ago cuja função não pode ser definida de ouro modo senão como tentando restabeecer um sujeito dotado de profundezas, este úlimo termo no plura, o que significa um sujeito composto por uma reação com o saber, relação dita arquetípica, que não foi reduzida àquea àq uea que he permie a ciência modea, à excusão de qualquer oura, e que não é nada aém da relação que definimos no ano passado como pontual e evanescente: essa reação com o saber que, de seu momeno hisoricamente natural, preserva o nome de cogito. É a essa origem indubitável, paene em todo o rabaho de Freud, à lição que ee nos deixou como chefe de escoa, que se deve o fato fato de o marxismo não er alcance alcance e, ao que eu saiba, nenhum nenhum marxisa marxisa mostr mostrou ou aguma aguma insis insisênc ência ia nisso nisso para para quesionar seu pensameno em e m nome de suas inserções hisóricas Refirome, nomeadamene à sociedade da monarquia dupla, no que ange aos imites judaizanes em que Freud ficou confi nado em suas aversões espiriuais; à ordem capialisa que condicionou seu agnosticismo político (quem dentre vocês nos escreverá um ensaio, digno de Lamennais, sobre a indiferença em matéria de política?) e, acrescenaria eu, à ética burguesa, pea qua a dignidade de sua vida vem inspirarnos um respeito que funciona como inibição, por er sua obra reaizado, sem ser no maenendido e na confusão, o ponto de concurso dos únicos homens da verdade que nos resam: o agiador revolucionário, o escritor escritor que com seu estio estio marca marca a língua língua sei em quem esou pensando pensando e o pensamento pensamento renovador renovador do ser do do qua emos o precursor 1 É sensível minha pressa de emergir de anas precauções omadas para resiuir os psicanaistas a suas cerezas menos discuíveis.
Alusão respectivamente a André Breton, James oyce e Martin Heidegger (N.E.) 1.
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Contudo, ainda preciso reexaminá-las, nem que seja ao preço de algumas indelicadezas. Dizer que o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência talvez passe por um paradoxo. É aí, no entanto, que se deve fazer uma demarcação, sem o que tudo se mistura e começa uma desonestidade que em outros lugares é chamada de objetiva mas que é falta de audácia e falta de haver situado o objeto que malogra. Por nossa posição de sujeito, sempre sempre somos responsáveis. Que Qu e chamem a isso como quiserem, terrorismo Tenho o direito de sorrir, pois não era num meio em que a doutrina é aberamente matéria de negociatas que eu temia chocar quem quer que fosse, ao formular que o erro de boa fé é dentre todos o mais imperdoável A posição do psicanalista não deixa escapatória, já que exclui a teura da bela alma Se ainda é um paradoxo dizêlo, talvez seja, aliás, o mesmo. Seja como for, afirmo que toda tentativa, ou mesmo tentação nas quais quais a teoria teoria em curso curso não deixa deixa de ser ser reincidente reincidente de encar ainda mais o sujeito é errância: sempre fecunda em erros e, como tal, incorreta. Como também encálo no n o homem, o que equivale voltar à criança. Pois esse homem será então ali o primitivo, o que falseará tudo do processo primário, assim como a criança representará o subdesenvolvido, o que irá mascarar a verdade do que se passa de original durante a infância. Em suma, o que Claude Lévi Strauss denunciou como a ilusão arcaica é inevitável na psica nálise, se não nos mantivermos firmes, na teoria, quanto ao princípio que há pouco enunciamos: que um único sujeito é aceito nela como tal, aquele que pode constituíla científica. Basta dizer que não afirmamos que a psicanálise demonstre nisso nenhum privilégio. Não há ciência do homem, o que nos convém entender no mesmo tom t om do "não existem pequenas economias . Não há ciência do homem porque o homem da ciência não existe, mas apenas seu sujeito. É conhecida a minha repugnância de sempre pela denominação "ciências humanas, que me parece ser a própria voz da servidão. Até porque o termo também é falso, excetuada a psicologia que descobriu meios de se perpetuar nos préstimos que oferece à tecnocracia, e até, como concluiu com humor realmente swif-
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tiano um artigo sensacional de Canguilhem, numa deslizada de tobogã do Panteão à Chefatura de Polícia. Aiás, é no níve da seleção do criador na ciência, do recrutamento da pesquisa e de sua manutenção, que a psicologia deparará com seu fracasso. Quanto a todas as outras ciências dessa classe, veremos facilmente que eas não somam uma antropologia. Examnemos Lévy-Bruh ou Piaget. Seus conceitos, a chamada mentalidade pré-lógica, o pensamento ou o u discurso pretensamente egocêntrico, não fazem referência senão à suposta mentaidade, ao pensamento presumido, ao discurso efetivo do sujeito da ciência, não estamos dizendo do homem da ciência. De modo que muita gente sabe que os os imites mentais, certamente certamente , , a fraqueza de de pensament mento o pres presum umív ível el e o disc discur urso so efe efeti tivo vo meio meio árd árduo uo do homem de ciência (o que também é diferente) vêm lastrear essas construções, decerto não desprovidas de objetividade, mas que só interessam à ciência na medida em que não trazem: nada sobre o mago, por exemplo, e pouco sobre a magia, se é que há algo sobre seus traços, mas esses traços são de um ou da outra, já que não foi Lévy-Bruhl quem os traçou; ao passo que o baanço, no outro caso, é mais severo: ee nada nos traz sobre a criança, pouco sobre seu desenvolvimento, uma vez que lhe fata o essencia, essencia, e, da ógica ógica que ea demonstra demonstra refirome à criança criança de Piaget em sua respost respostaa a enunciad enunciados os cuja cuja série constitui o teste, nada além da série que regeu sua enunciação para fins de teste, ou seja, a do cientista, na qual o ógico, não nego, nessa oportunidade conserva seu valor. Em ciências válidas de um outro modo, ainda que seu título deva ser revisto, constatamos que o fato de proibiremse a ilusão arcaica, que podemos generaizar no termo psicologização do sujeito, não cause nenhum entrave em sua fecundidade. A teoria dos jogos, mehor chamada de estratégia, estratégia, é o exemplo disso, nela se tirando proveito do caráter inteiramente caculáve de um sujeito estritamente reduzido à fórmula de uma matrz de combinações significantes O caso da lingüstica é mais sutil, uma vez que ela tem que integrar a diferença entre o enunciado e a enunciação, o que é efetivamente a incidência, desta vez, do sujeito falante como tal (e não do sujeito da ciência). Por isso é que ela vai centrarse em outra coisa, ou seja, na bateria do significante, cuja preva lência se trata de assegurar sobre esses efeitos de significação.
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É também por esse lado que aparecem as antinomias, a serem dosadas segundo o extremismo da posição adoada na escolha do objeto. O que podemos dizer é que se vai muito onge na elaboração dos efeitos da linguagem, posto que nea se pode construir uma poética que nada deve à referência ao esprio do poeta, nem tampouco à sua encaação. É do lado da lógica que aparecem os diversos indícios de refração da teoria em relação ao sujeito da ciência. Ees são diferentes diferente s quanto ao léxico, quanto ao morfema sinático e quanto à sintaxe da frase. Da as diferenças teóricas entre um Jakobson, um Hjemslev e um Chomsky É a ógica que aqui faz as vezes de umbigo do sujeio, e a lógica no que ela de modo algum é uma ógica ligada às coningências de uma gramática. É preciso, literalmente, que a formaização da gramática conoe essa lógica para se estabelecer com sucesso, mas o movimeno desse contoo está inscrito nesse estabeecimento. Indicaremos mais adiane como se siua a ógica modea (erceiro exemplo). Ela é, de modo inconese, a conseqüência estritamente determinada de uma enativa de suurar o sujeito da ciência, e o úlimo eorema de Gõdel mostra que ea fracassa nisso, o que equivae a dizer que o sujeio em quesão coninua a ser o correato da ciência, mas um correlato antinômico, já que a ciência mostrase definida pela impossibilidade do esforço de suturá-o Que se apreenda nisso a marca a não perder de visa do estruturaismo. estruturaismo. Ee introduz introduz em toda toda "ciência humana enre aspas aspas que conquisa conquisa uma modaidade modaidade muito especial especial do sujeito, sujeito, aquele para o qual não encontramos nenhum ndice senão o topoógico, digamos, o signo gerador da banda de Moebius, que chamamos de oito interior. O sujeio está, se nos permitem dizêo, em uma exclusão intea a seu objeto. A fidelidade que a obra de Caude LéviStrauss manifesa a al estruturaismo só será aqui endossada por nossa ese para nos contentarmos momentaneamente com sua periferia Não obstan te, é claro que esse autor vaoriza muio mais a importância da classificação naura que o sevagem inroduz no mundo, espe ciamente por um conhecimento da fauna e da flora que ee
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mostra que nos utrapassa e que ele pode alegar uma certa recuperação que se anuncia na qumica de uma fsica das qualidades do sabor e do odor ou seja de uma correação dos vaores perceptivos com uma arquitetura de moéculas à qual chegamos por intermédio da análise combinatória isto é pela matemática do significante como em toda ciência até hoe O saber portanto, é ai bem separado do sujeito segundo a orientação correta, que não formula nenhuma hipótese sobre a insuficiência de seu desenvolvimento a qua aiás terseia bastante dificuldade de demonstrar E há mais: quando Caude Lévi-Strauss, depois de haver extrado a combinatória latente nas estruturas eementares do parentesco nos atesta que um dado informante para usar o termo dos etnólogos, é perfeitamente capaz de traçar sozinho o grafo lévistraussiano, que nos diz ee se não que, também nesse ponto, está retirando o sueito da combinatória em questão aquee que em seu grafo não tem outra existência senão a denotação ego? Para demonstrar o poder do instrumento constituído pelo mitema para analisar as transformações mitogênicas, que nessa etapa parecem instituirse numa sincronia que se simplifica por sua reversibilidade Claude LéviStrauss não pretende foecer nos a natureza do mitante. Apenas sabe que se seu informante é capaz de escrever o cru e o cozido exceto peo taento que nisso apõe sua marca ele não pode fazê-o sem ao mesmo tempo deixar no vestiário isto é no Museu do Homem, um certo número de instrumentos operatórios, ou sea de rituais que consagram sua existência de sueito como mitante e sabe que com esse depósito fica reeitado para fora do campo da estrutura aquio que em outra gramática se chamaria de seu assentimento. (La grammaire de l'assentiment, l'assentiment, de Newman não deixa de ter peso ainda que forada para fins execráveis e tavez eu tenha que toar a mencionáa) O obeto da mitogênese portanto não está igado a desen vovimento agum nem tampouco a uma parada do sueito responsável. Não é com esse sueito que ee se reaciona, mas com o sueito da ciência E seu mapeamento será traçado tão mais corretamente quanto mais o próprio informante estiver perto de nee reduzir sua presença à do sueito da ciência. Acredito simplesmente que Claude LéviStrauss fará restri ções à introdução, ao se coigirem os documentos de um ques-
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tionamento inspirado na psicanálise, de uma coleta sistemática de sonhos, por exemplo, com tudo o que isso implicará de relação transferencial. E por quê, se eu lhe afirmo que nossa práxis, longe de alterar o sujeito da ciência, o único que ele pode e quer conhecer, não traz, por direito, nenhuma intervenção que não tenda a que ele se realize de maneira satisfatória, precisamente no campo que lhe interessa? Quererá isso então dizer que um sujeito não saturado, mas calculável, constituiria o objeto que subsumiria, segundo as formas da epistemologia clássica, o corpo das ciências a que chamaríamos conjecturais, o que eu mesmo opus à expressão ciências humanas? Creio que isso é muito menos indicado, na medida em que esse sujeito faz parte da conjuntura que produz a ciência em seu conjunto. A oposição das ciências exatas às ciências conjecturais não pode mais sustentar-se, a partir do momento em que a conjectura é passível de um cálculo exato (probabilidade) e em que a exatidão baseiase apenas num formalismo que separa axiomas e leis de agrupamento dos símbolos. Não poderíamos, entretanto, contentarnos em constatar que um formalismo tem maior ou menor sucesso, quando se trata, em última instância, de explicar os motivos de sua preparação, que não surgiu por milagre, mas que se renova de acordo com crises muito eficazes, desde que uma certa linha reta pareceu ser tomada nela Repetimos que há alguma coisa no status do objeto da ciência que não nos parece ter sido elucidada desde que a ciência nasceu. E lembramos que se, certamente, levantar agora a questão do objeto da psicanálise é retomar a questão que introduzimos a partir de nossa vinda para esta tribuna, pela posição da psicaná lise, dentro ou fora da ciência, indicamos também que essa questão não pode ser resolvida sem que, sem dúvida, modifi quese nela a questão do objeto na ciência como tal. O objeto da psicanálise (anuncio meu naipe e vocês o verão com ele chegar) não é outro senão aquilo que já expus sobre a função que nela desempenha o objeto a. O saber sobre o objeto a seria, então, a ciência da psicanálise? Essa é precisamente a fórmula que se trata de evitar, uma vez que esse objeto a deve ser inserido, já o sabemos, na divisão do
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sujeito pela qual se estrutura, muito especialmente, e foi disso que hoje toamos a partir, o campo psicanaltico. Eis por que era importante promover, antes de mais nada, e como um fato a ser distinguido da questão de saber se a psicanálise é uma ciência (se seu campo é científico), exatamente o fato de que sua práxis não implica outro sujeito senão o da ciência. É preciso reduzir a este grau o que vocês me permitirão induzir, através de uma imagem, como a abertura do sujeito na psicanálise, para apreender o que ele ali recebe da verdade. Esse procedimento, sentese, comporta uma sinuosidade que faz lembrar o adestramento. Esse objeto a não é tranqüilo, ou melhor, melhor, caberia dizer dizer que ele não deixa vocês vocês tranqüilos? tranqüilos? e menos ainda aos que mais lidam com ele: os psicanalistas, que portanto seriam aqueles que, de maneira eletiva, eu tentaria esclarecer através de meu discurso. É verdade. O ponto em que encontrei vocês hoje, por ser aquele em que os deixei no ano passado passado o da divisã divisãoo do sujei sujeito to entre entre verdad verdadee e sabe saberr é para eles um ponto conhecido. É aquele a que Freud os convida, sob o apelo do Wo Es war, soll Ich werden que retraduzo, mais uma vez, para acentuá-lo aqui: lá onde isso estava, lá, como sujeito, devo [eu] advir Ora, desse ponto, mostro a eles a estranheza ao tomálo de trás para frente, o que mais consiste, aqui, em leválos a seu front. front . Como é que o que estava me esperando desde sempre, de um ser obscuro, viria a se totalizar por um traço que só se traça para dividilo mais nitidamente do que me é dado saber? Não é apenas na teoria que se coloca a questão da dupla inscrição, por ela ter provocado a perplexidade em que meus alunos Laplanche e Leclaire poderiam ter lido, em sua própria cisão na abordagem do problema, sua solução. Ela não é, de qualquer modo, do tipo gestaltista, nem deve ser buscada no prato em que a cabeça de Napoleão se inscreve na árvore. Está, muito simplesmente, no fato de que a inscrição não se grava do mesmo lado do pergaminho quando vem da impressora da verdade ou da do saber Que essas inscrições se misturam era algo a ser resolvido simplesmente na topologia: estava ao alcance da mão uma superfície em que o direito e o avesso acham-se em condições de se juntar por toda parte.
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É muito mas, no entanto, do que num esquema intutivo, é por encerrar o analista em seu ser, por assm dizer, que essa topologa pode captálo Eis por quê, quando ele a desloca para outro lugar, só pode ser numa fragmentação de quebra-cabeças que exige, de qualquer modo, ser reduzda a essa base. Portanto não é inútil repetr que, na experiência de escrever: penso: "logo existo com aspas ao redor da segunda oração, lê-se que o pensamento só funda o ser ao se vncular à fala, onde toda operação toca na essênca da linguagem Se cogito sum nos é foecido por Heidegger em algum lugar, para suas finalidades, convém observar que ele algebrza a frase, e temos o direito de dar destaque a seu resto: cogito ergo onde se evdencia que nada é falado senão apoiando-se na causa Ora, essa causa é o que é abarcado pelo soll Ih, pelo devo [eu] da fórmula freudiana, que, por nverter seu sentdo, faz brotar o paradoxo de um imperativo que me pressona a assumr minha própria causalidade. Não sou, no entanto, causa de mim mesmo, e não por ser a cratua Com o Criador acontece a mesma coisa. Remeto-os, quanto a isso, a Agostinho e seu De Trinitate no prólogo. A causa de si spinozista pode tomar emprestado o nome de Deus. Ela é Outra Coisa. Mas, deixemos isso nessas duas palavras, que só empregaremos para salientar que ela é também uma Cosa dferente do Todo, e que esse Deus, por ser assim outro, nem por isso é o Deus do panteísmo Deve-se apreender no ego que Descartes acentua, pela super uidade da função que ele tem em alguns de seus textos em latm (tema de exegese que deixo aqui aos especialistas), o ponto em que ele fica sendo o que se apresenta como sendo: dependente do deus da relgão. Curiosa decadência do ergo o ego é solidário a esse Deus Singularmente, Descartes toma a provdência de preserválo do Deus enganador, quando é a seu parceiro que ele preserva, a ponto de leválo ao prvlégio exorbitante de só garantir as verdades eteas por ser o criador delas. Esse destino comum do ego e de Deus, aqui assnalado, é o mesmo proferido de manera contundente pelo contemporâneo de Descartes, Angelus Slesius, em suas adjurações místcas, e que lhes mpõe a forma do dístico.
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Seria proveitoso que se recordasse, entre aqueles que me seguem, o apoio que encontrei nesses dardejamentos, os do Peregrino querubínico, para retomá-os na própria pista da in trodução ao narcisismo que eu então perseguia à minha maneira, no ano de meu comentário sobre o Presidente Schreber. É que se pode capengar nessa articuação, esse é o passo da beleza, mas é preciso capengar direito. 2 E, antes de mais nada, dizer a si mesmo que os dois ados não se encaixam nela 3 Eis por que me permitirei abandoná-a por um momento, para toar a partir de uma audácia que tive, e que só repetirei para bis repetita, lembrá-la. Pois isso seria repetia duas vezes poder-se-ia dizer, no exato sentido em que essa expressão não significa a simples repetição Tratase de A Coisa freudiana, discurso cuo texto é o de um discurso segundo, por ser o da vez em que o repeti. Proferido pela primeira vez (possa esta insistência fazêlos sentirem, em sua triviaidade, o contrapé temporal gerado pela repetição) ee o foi para uma Viena em que meu biógrafo há de situar meu primeiro contato com o que realmente se deve chamar de a escória mais rasteira do mundo psicanaítico Especialmente com um personagem cuo nível de cutura e responsabiidade corres pondia ao que se exige de um soldado da guarda real,4 mas isso não me importava, eu estava faando por falar Tinha apenas querido que fosse ali, no centenário do nascimento de Freud, que minha voz se fizesse ouvir como homenagem E isto, não para marcar o ugar de um ugar deserto, mas deste outro agora deimitado por meu discurso. -
C'est
qu 'on peut boiter boiter en ce ce joint cest le pas de la beauté mas il faut y boiterjuste: boiterjuste: a frase de Lacan explora o idiomatismo emboíter le pas de quelqu 'un, seguir as pegadas de alguém imitá-lo à risca risca em algo no caso, imitá-o imitá-o em sua articulação (NE) 3. Segue o jogo feito com boiter (mancar, capengar) e emboter (encaixar). (N.E.) 4 Agente mais tarde da operação de desuição de nosso ensino cuja maqui nação conhecida pelo auditório presente só interessa ao leitor pelo desapareci mento da revista L Psychanalyse e por nossa promoção à tribuna de onde esta lição é proferida. 2
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Que a via aberta por Freud não tem outro sentido senão o que retomo retomo o inconsciente inconsciente é inguagem inguagem isso que é agora aceito já o era então para mim como se sabe Assim num gesto brincalhão talvez por se fazer eco do desafio de SaintJust ao eevar aos céus por ser inserido num púbico de assembléia a confissão de não ser nada além daquio que se transforma em pó "e este que vos faa disse ele veiome a inspiração de que ao ver animarse estranhamente no caminho de Freud uma figura aegórica e ao fazer arrepiar-se com uma nova pee a nudez com que se veste aquela que sai do poço eu he daria voz. "Eu a verdade falo. e a prosopopéia continua Pensem na coisa inomináve que por poder pronunciar essas paavras atingisse o ser da inguagem para ouvilas tal como devem ser pronunciadas no horror Mas nesse desveamento cada um entra com o que pode Confiramo-lhe o mérito da dramaticidade ensurdecida embora nem por isso menos derrisória do tempo em que termina esse texto que vocês encontrarão no número 1, de 1956 de L'Évolution Psychiatrique, sob o títuo: "A Coisa freudiana .5 Não creio que tenha sido à experiência desse horror que devi a acohida bastante fria que meu auditório deu à emissão repetida desse discurso a qual este texto reproduz. Se a patéia teve a bondade de reconhecer o valor dele ao sabor de sua obatividade sua surdez revelouse pecuiar. Não é que a coisa (a Coisa que aparece no ttulo) tenha chocado chocado esse esse auditór auditório io não tanto quanto alguns de de meus companheiros de timão na época quer dizer de timão numa canoa na qual por intermédio dees vivi pacientemente durante dez anos em prol da raçãozinha narcísica de nossos companhei ros de naufrágio em concubinato com a compreensão aspersiana aspersia na e o personaismo barato com todas as dificuldades do mundo para nos poupar a todos de sermos pintados com o piche do ama-aalma iberal A coisa essa palavra não é bonita disse ram-me textualmente; será que ele não está simpesmente aca bando com ea diante de nós com esta aventura dos finais dos refinamentos da unidade da psicoogia onde é claro não há
5 Ver essas linhas fnais na p409 deste volume.
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quem pense em coisificar, ora! fiarse em quem? 6 Nós o supú nhamos na vanguarda do progresso, companheiro As pessoas não se vêem como são, e menos anda ao se abordarem sob as máscaras flosóficas. Mas, dexemos para lá. Para dimensonar o maentendido á onde importa, no nível de meu audtório de enão, tomarei um dito que veio à tona mais ou menos nessa ocasião, e que poderamos jugar jugar ocane pelo entusiasmo entusiasmo que pressupõe: pressupõe: Por quê, apre goou alguém [D. Lagache], e esse tema coninua em circulação, por que ele não diz o verdadeiro sobre o verdadeiro? Isso prova o quanto ambos eram vãos, meu apóogo e sua prosopopéia. Emprestar mnha voz ao susteno dessas paavras intoleráveis, Eu, a verdade, falo. falo.", ", ultrapassa a aegoria. Isso quer dizer, muto simpesmente, tudo o que há por dzer da verdade, da única, ou seja, que não exise mealnguagem (afrmação feita para stuar todo o lógico-postivismo), que nenhuma inguagem pode dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro, uma vez que a verdade se funda pelo fao de que fala, e não dspõe de ouro meio para fazê-lo. É por isso mesmo que o nconsciene que a diz, o verdadeiro sobre o verdadeiro, é estruturado como uma inguagem, e é por isso que eu, quando ensino sso, digo o verdadero sobre Freud, que soube deixar, sob o nome de nconsciente, que a verdade falasse Essa falta do verdadero sobre o verdadeiro, que exige todos os fracassos que a metainguagem consttui no que ela em de falsa aparência, é propriamente o lugar do Urverdringung, do recalque orgnário que atra atra para para si todos todos os outr outros os sem conar outros efeitos de reórca, para o reconhecmento dos quais dispomos ão-somene do sujeto da ciência. É justamene por sso que, para dar conta do recado, empre gamos outros meios. Mas nisso, é crucial que os meos não possam aumentar esse sujeito. O benefco deles decero toca toca no que lhe é escondido. Mas não há outro verdadero sobre o verdadero que cubra esses ponos cruciais, a não ser nomes 6
Note-se nesse trecho a riqueza fonética do texto lacanano: songe pas à choser, fi! à q se er? (N.E.)
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ou l'on ne
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próprios, próprios, o de Freud ou o meu ou então, então, berqui berquinada nadas"7 s"7 de babá das quais se engole um testemuno doravante indelével: a saber, uma verdade cujo horror é da sina de todos recusar, se não, antes, aniquilá-o quando é irrecusável, ou seja, quando se é psicanaista, sob a mó de moinho cuja metáfora vez por outra empreguei, para embrar por outra boca que as pedras, quando é preciso, também sabem gritar. Talvez com isso estarei, a seus oos, justificado por não ter acado acado tocante tocante a pergunta pergunta que me concerniu concerniu Por que ele ele não diz.. ?, proveniente de aguém cujo c ujo cargo de direção nos escritórios de um órgão da verdade tornava sua ingenuidade duvidosa duvidosa e, sendo assim, assim, por ter ter preferido preferido prescin prescindir dir dos serviços a que ele se dedicava na minha, que não precisa de cantres para sonar com a sacristia... sacristia... Será preciso dizer que temos de conecer outros saberes que não o da ciência, quando temos que tratar da pulsão epistemo lógica? E de novo retoar àquilo de que se trata, ou seja, a admitir que nos é preciso renunciar, na psicanáise, a que a cada verdade corresponde seu saber? Esse é o ponto de ruptura por onde dependemos do advento da ciência. Nada mais temos, para conjugálos, senão esse sujeito da ciência. Mas ele nos permite isso, e vou mais adiante em seu como deixando deixando mina mina Coisa Coisa entender-se entender-se sozina com com o númeno, númeno, o que me parece fazerse prontamente, já que uma verdade que fala tem pouca coisa em comum com um númeno que, desde que a razão pura se lembra, feca-a Este lembrete não é sem pertinência, já que o termo mediano que nos servirá neste ponto, vocês me viram trazêlo á pouco É a causa: não a causa como categoria da ógica, mas como causando todo o efeito. A verdade como causa, irão vocês, psicanalistas, recusarse a assumir sua questão, quando foi a partir disso que se alçou sua carreira? Se exstem praticantes para quem a verdade como ta supostamente age, não são vocês?
Essa adaptação do ancês berquinade provém de Aaud Berquin 1747 791, auo francês de poemas e texos moralstas para a juventude A expressão se apoxima de nossos romances água-comaçúca ou dos textos "edificantes (N.E)
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Não duvidem, em todo caso, de que é por esse ponto ser veado na ciência que vocês conservam esse lugar espantosa mente preservado naquio que faz as vezes de esperança, na consciência errante que acompanha em conjunto as revouções do pensamento. Ainda que Lenin tenha escrito que A teoria de Marx é onipotente porque é verdadeira" , ee deixa vazia a imensidão da pergunta pergu nta aberta por sua faa: por quê, supondose supondo se muda a verdade do materiaismo em suas duas faces, que são uma só, dialética e históra, por que seu poder aumentara ao ser feita sua teoria? Responder com a consciência proetára e com a ação do político marxista não nos parece suficiente. Ao menos se anuncia aí a separação de poderes, entre a verdade como causa e o saber posto em prática. Uma ciência econômica inspirada no Capital não conduz necessaramente a usáo como poder de revolução, e a históra parece exigir outros auxíios que não uma dialética predicativa Sem falar num aspecto singular que não desenvolverei aqui, que é o de que a ciência, se a examinarmos de perto, não tem memória. Ea esquece as peripécias em que nasceu uma vez constituída, ou seja, uma dimensão da verdade, que é exercida em alto grau pea psicanáise. É-me, no n o entanto, preciso precisar Sabemos que a teoria teoria física ou matemática, após cada crise resovida na forma pea qua a expressão teora generaizada" não pode em absoluto ser to mada como significando passagem para o geral", muitas vezes conserva em sua classe o que ea generaliza em sua estrutura precedente. Não é isso que estamos dizendo. Existe o drama, o drama subjetivo que cada uma dessas crises custa Esse drama é o drama do cientista Tem suas vítimas, das quas nada diz que seu destino se inscreva no mito de Édipo. Digamos que essa questão não é muito estudada. JR. Mayer, Cantor, não vou fazer a ista de aureados aureados desses dramas que às vezes chegam à oucura, onde ogo surgiram nomes de pessoas vivas onde considero que o drama do que se passa na psicanáise é exemplar. E afirmo que ee própro não pode aqui incuirse no Édipo, exceto para questionáo Vocês estão vendo o programa que aqui se esboça. Ee está longe de ter sido coberto Chego até a vêo um tanto bloqueado
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Enveredo por ee com prudência e, por hoje, peçohes que se reconheçam nas luzes refetidas dessa abordagem. O que quer dizer que as transporemos para outros campos, além do psicanalítico, que invocam a verdade. Para magia e religião, as duas posições dessa ordem que se distinguem da ciência, a ponto de se haver podido situáas em reação reação à ciência ciência como com o ciência ciência falsa fals a ou menor, menor, no tocante tocante à magia, como ultrapassando seus limites e até em conito de verdade com a ciência no tocante tocante à segunda; convém dizer que, para o sujeito da ciência, ambas não passam de sombras, mas não para o sujeito sofredor com quem idamos. Porventura Porvent ura dirão aqui aqui "Lá vem ele Que é esse sujeito sofredor sofredo r senão aquele de quem tiramos nossos priviégios, e que direito he dão sobre ele suas intelectuaizações? Partirei, para responder, do que encontro num fiósofo recém laureado por todas as honras da Facudade. Ee escreve: "A verdade da dor é a própria dor Esse dito, que hoje deixo no campo que ee explora, é algo a que votarei para dizer como a fenomenoogia chega, como pretexto, à contraverdade, e qual é o status desta Apoderome dee apenas para lhes formuar uma pergunta, a vocês, anaistas sim ou não isso que vocês fazem tem o sentido de afirmar que a verdade do sofrimento neurótico é ter a verdade como causa? Proponho: Sobre a magia, parto da visão que não deixa nada vago a respeito de minha obediência científica, mas que se contenta com uma definição estruturaista Ea supõe o significante respondendo como ta ao significante O significante na natureza é invocado peo signicante do encantamento É metaforicamente mobiizado A Coisa, na medida que faa, responde a nossas objurgações Eis por que a ordem de classicação natura que invoquei dos estudos de Caude Lévi-Strauss deixa entrever, em sua denição estrutura, a ponte de correspondências correspondências pela qua a operação ecaz é concebível, do mesmo modo como foi concebida Mas essa é uma redução que negigencia o sujeito Todos sabem que a preparação do sujeito, do sujeito xama nizante, é essencia nisso. Observese que o xamã, digamos, de cae e osso, faz parte da natureza, e que o sujeito correato da
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operação tem que coincidir com esse suporte corpóreo. É esse modo de coincidência que é vedado ao sujeito da ciência. Somente seus correlatos estruturais na operação le são discer níveis, mas de um modo exato. É realmente sob a forma de significante que aparece aquilo que tem de ser mobilizado na natureza: trovão e cuva, meteoros e milagres Tudo ali está por ser ordenado segundo as relações antinômicas em que se estrutura a linguagem. O efeito da demanda, portanto, tem de ser ali interrogado por nós, no intuito de verificar se nele encontramos a relação com o deseo definida por nosso grafo. Somente pela via, a ser adiante descrita, de uma abordagem que não sea um recurso grosseiro à analogia é que o psicanalista pode se qualificar, por uma competência, para ter algo a dizer sobre a magia. A observação de que ela é sempre magia sexual tem aqui seu valor, mas não basta para autorizálo a isso. Concluo por dois pontos que devem reter a escuta de vocês: a magia é a verdade como causa sob seu aspecto de causa eficiente. O saber caracteriza-se nela não apenas por se manter velado para o sueito da ciência, mas por se dissimular como tal, tanto na tradição operatória quanto em seu ato Essa é uma condição da magia. Trata-se apenas, no que vou dizer da religião, de apontar a mesma abordagem estrutural; e, do mesmo modo sumário, é na oposição de traços estruturais que este esboço encontra seu fundamento. Podemos nós esperar que a religião assuma na ciência um status um pouco mais franco? É que, faz algum tempo, há estranos filósofos a foecer das relações entre elas a mais frouxa das definições, intrinsecamente considerando que elas se manifestam no mesmo mundo, no qual a religião, por conse guinte, tem a posição englobadora Para nós, quanto a esse ponto delicado, contra o qual alguns pretenderiam precaver-nos com a neutralidade analtica, fazemos prevalecer o princípio de que ser amigo de todo o mundo não basta para preservar o lugar de onde temos que operar.
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Na relgão, a precedente utização da verdade como causa peo sujeito, o sujeito relgoso, entenda-se, é tomada numa operação completamente diferente. A anáise a partir do sujeito da ciênca conduz, necessaramente, nela a fazer aparecerem os mecanismos que conhecemos da neurose obsessiva. Freud os vislumbrou numa fulgurânca que lhes dá um acance maior do que qualquer crítca tradiconal. Pretender calbrar a religião religião por po r eles não pode ser nadequado. Se não se pode partr de comentáros como este: que a função nela desempenhada pea revelação se traduz como uma denega ção da verdade como causa, ou seja, que ea denega o que dá ao sujeito fundamento para se tomar como parte nteressada, então, há pouca probabdade de conferr à chamada hstória das relgões quaisquer lmtes, isto é, qualquer rigor. Dgamos que o reigioso entrega a Deus a incumbência da causa, mas nsso corta seu própro acesso à verdade Por isso ele é levado a atribuir a Deus a causa de seu desejo, o que é propriamente o objeto do sacrifco Sua demanda é submetida ao desejo suposto de um Deus que, por consegunte, é precso seduzr. O jogo do amor entra por aí. O relgioso, desse modo, nstaa a verdade num status de culpa Da resulta uma desconfança em reação ao saber, tanto mais sensíve nos Padres da Igreja quanto mais ees se mostram dominadores em matéria de razão A verdade é neles remetda a fns que chamamos escatológcos, escatológ cos, quer dzer que ela aparece apenas como causa fnal, no sentido de ser reportada a um juzo de fm do mundo Donde o ranço obscurantsta que é daí levado para todo uso científico da finaldade. Assnaei de passagem o quanto temos de aprender sobre a estrutura da reação do sujeto com a verdade como causa na literatura dos Padres, e até nas primeras decsões conclares O raconasmo que organza o pensamento teoógco não é, em absouto, como magina o ugarcomum, uma questão de deva neio. Se existe fantasa, é no mas rgoroso sentido da institução de um real que cobre a verdade Não nos parece nada nacessvel a um tratamento centfico que a verdade crstã tenha tdo que passar peo nsustentável da formuação de um Deus Trntáro e Uno. O poder eclesiástco
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combina muito bem nisso com um certo desencorajamento do pensamento Antes de acentuar os impasses de tal mistério, é a necessidade de sua articulação que é saudável para o pensamento, e é com ela que este deve se dimensionar. As questões devem ser tomadas no nível em que o dogma tropeça tropeça em eresia eresiass e a questão questão do Filioque me parece poder ser tratada em termos topológicos A apreensão estrutural deve ser a primeira nisso e é a única a permitir uma apreciação exata da função das imagens. O De Trinitate tem, nesse aspecto, todas as características de uma obra teórica e pode ser tomado por nós como modelo. Se assim não fosse, eu aconselharia meus alunos a se exporem ao encontro com uma tapeçaria do século XVI que eles verão imporse a seu olar na entrada do Mobilier National, onde ela os espera, em exposição ainda por um ou dois meses As Três Pessoas, representadas numa absoluta identidade de forma que se mantém entre elas, com perfeita desenvoltura, nos limites recentes da Criação, são simplesmente angustiantes E o que se encerra em tão bemfeita trama, quando ela se vê confrontada com o casal Adão e Eva na or de seu pecado, é realmente de molde a se propor como exercício a uma imaginação da relação humana que comumente não ultrapassa a dualidade. Mas, que meus ouvintes se armem primeiro com Agostino . Assim, pareço ter definido apenas características das religiões da tradição udaica. Sem dúvida, elas se prestam para nos demonstrar o interesse disso, e não me conformo em ter tido que renunciar a referir ao estudo da Bília a função do Nome do-Pai8 O fato é que a chave é por uma definição da relação do sujeito com a verdade Creio poder dizer que é na medida em que Claude Lévi-Strauss concebe o budismo como uma religião do sueito generalizado,
8 Guardamos de reserva o Seminio que havíamos anunciado para 1963-64,
sobre o NomedoPai depois de haver encerrado sua aula inaugural (novembro de 1963) com nossa demissão do espaço de SainteAnne onde fazia dez anos nossos seminários se realizavam.
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isto é, que comporta uma diafragmatização da verdade como causa, indefinidamente variáve, que ele enaltece essa utopia, vendoa harmonizarse com o reino universal do marxismo na sociedade. Talvez isso seja fazer muito pouco caso das exigências do sujeito da ciência e confiar demais no surgimento, na teoria, de uma doutrina da transcendência da matéria O ecumenisno não nos parece ter chance senão ao se basear no apelo aos pobres de espírito. Quanto ao que ocorre com a ciência, não é de hoje que posso dizer o que me parece ser a estrutura de suas relações com a verdade como causa, já que nosso progresso neste ano deve contribuir para isso Abordála-ei através da estranha observação de que a prodi giosa fecundidade de nossa ciência deve ser interrogada em sua reação com o seguinte aspecto, no qual a ciência se sustentaria: que, da verdade como causa, ela não quer-saber-nada. Reconhecese aí a formuação que dou da Verweung ou forac foracusã usão o que viria junt juntarar-se se aqui, numa série fecha fechada, da, à Verdrngung, recalque, e à Veeinung, denegação, cuja função vocês reconheceram de passagem na magia e na religião Sem dúvida, o que dissemos das relações da Verweung com a psicose, especialmente como Verwerfung do Nomedo-Pai, vem aí oporse, aparentemente, a essa tentativa de demarcação estrutural. No entanto, quando percebemos que uma paranóia bem-su cedida apareceria igualmente como o encerramento da ciência, caso a psicanálise fosse chamada a representar essa função, e quando, por outro lado, reconhecemos que a psicanáise é essencialmente o que reintroduz na consideração consideração científica científica o Nomedo-Pai, reencontramos aí o mesmo impasse aparente, mas temos a sensação de que a partir desse mesmo impasse progredimos, e de que podemos ver se desatar em algum ugar o quiasma que lhe parece criar obstáculos. Tavez o ponto atua em que se encontra o drama do nasci mento da psicanálise e a astúcia que nee se esconde, articuan dose com a astúcia consciente dos autores, devam aqui ser levados em consideração, pois não fui eu quem introduziu a fórmua da paranóia bemsucedida.
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Decerto me será preciso ndicar que a incdênca da verdade como causa na ciência deve ser reconhecida sob o aspecto da causa forma. Isso, porém, será para escarecer que a pscanálse, ao contrário, acentua seu aspecto de causa materal. Assim se deve quaificar sua orginalidade na ciência. Essa causa material é, propriamente, a forma de incidência do significante como a eu defino. Pela psicanálise, o sgnificante se define como agindo, antes de mais nada, como separado de sua significação. É esse o traço de caráter lteral que especfica o signficante copulatório, o falo, quando, surgindo fora dos limtes da maturação boógica do sujeito, ele se imprime efetivamente, sem poder ser o signo que representa o sexo exstente do parceiro, isto é, seu signo boó gico; lembremonos de nossas fórmulas diferenciadoras do sig nifcante e do signo Basta dzer de passagem que, na psicanálise, a história é uma dmensão dmensão diferent diferentee da do desenvol desenvolvimen vimento to e que é uma aberração tentar reduzi-la a este. A história só se desenrola como um contratempo do desenvovmento. Ponto do qual a história como ciência tavez deva tirar proveito, se quiser escapar à dominação sempre presente de uma concepção providencia de seu curso Em suma, reencontramos aqui o sujeito do significante, tal como o articulamos no ano passado. Veiculado peo significante em sua reação com outro significante, ele deve ser severamente dstngudo tanto do ndivduo bioógico quanto de quaquer evolução pscológica classificável como objeto da compreensão. Essa é, em termos minimais, a função que confiro à linguagem na teora. Ela me parece compatíve com um materialismo hstórico que dexa a um vazio. Talvez a teoria do objeto a também encontre nisso seu ugar Essa teoria do objeto a é necessária, como veremos, para uma integração correta da função, no tocante ao saber e ao sujeito, da verdade como causa Vocês puderam reconhecer de passagem, nos quatro modos de sua refração que aqu acabam de ser recenseados, o mesmo número e uma analogia de ndicação nominal que se encontram na fsica de Aristóteles.
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E não é por acaso, já que essa fsica não deixa de ser marcada por um logicismo que ainda preserva o sabor e a sapiência de um gramatismo original. Tosáuta ton aritheon to día ti perieegen.
Permanecerá válido para nós que a causa seja exaamente o mesmo, ao se polimerizar? Esa exploração não em como único objetivo darlhes a vantagem de uma apreensão elegane dos quadros que em si escapam a nossa jurisdição Entendase magia, religião e até ciência Anes, é para lembrarlhes que, como sujeios da ciência psicanaltica, é à soliciação de cada um desses modos da relação com a verdade como causa que vocês têm de resistir Mas não no sentido que vocês entenderão de sada. A magia só é para nós tenação se vocês fizerem a projeção de suas suas carac caracter terstic sticas as no sujei sujeio o com quem lidam lidam para psicologizálo, ou seja, desconhecê-lo O pretenso pensameno mágico, que é sempre o do ouro, não é um esigma com o qual vocês possam etiquetar o ouro. É tão válido em seu semelhane quano em vocês mesmos, nos limies mais comuns: pois esá no princpio do menor efeito de ordem. Em suma, o recurso ao pensamento mágico não explica nada. O que se traa de explicar é sua eficiência. Quano à religião, ela deve, antes, servirnos de modelo a não seguir, na n a instituição de uma hierarquia hierar quia social em que se conserve a tradição de uma certa relação com a verdade como causa. A simulação da Igreja caólica, que se reproduz toda vez que a relação com a verdade como causa entra no social, é paricu larmente groesca numa certa Inteacional Psicanalica, pela condição que impõe à comunicação. Será preciso dizer que, na ciência, ao contrário da magia e da religião, o saber se comunica? Mas devo insistir em que não é apenas por ser esse o costume, mas porque a forma lógica dada a esse saber inclui a modalidade da comunicação como suturando o sujeio que ele implica Tal é o primeiro problema levantado pela comunicação em psicanálise. O primeiro obstáculo a seu valor cienfico é que a relação com a verdade como causa, sob seus aspectos materiais, ficou negligenciada no círculo de seu trabalho
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Concluirei eu voltando ao ponto de onde parti hoje, a divisão do sujeito? Esse ponto é um nó Lembremos onde Freud o desata: na falta do pênis da mãe em que se revela a natureza do falo O sujeito dividese ali, diznos Freud com respeito à realidade, ao mesmo tempo vendo abrirse o abismo contra o qual se protegerá com uma fobia, e, por outro lado, cobrindoo com a superfície em que erigirá o fetiche, isto é, a existência do pênis como mantida, ainda que deslocada De um lado, extraiamos o (nadade) do (nadadepênis), a ser posto entre parênteses, para transferilo para o nadade-saber, que é a nãohesitação da neurose.9 Do outro, reconheçamos a eficácia do sujeito nesse gnômon que ele erige para lhe apontar a toda hora o ponto da verdade. Revelando, do próprio falo, que ele nada é além desse ponto de falta que ele indica no sujeito Esse índex é também o que nos aponta o caminho por onde queremos ir este ano, isto é, por ali onde vocês mesmos recuam de ser, nessa falta, suscitados como psicanalistas Q de dezembro de 165
9. N gnl, as-de) (pas-de-péis) pas-de-péis) pas-desavoir
e
pas-hésitatio. (NE)