Para uma redefinição de Letramento Crítico: conflito e produção de significação
Lynn Mario T. Menezes de Souza DLM!SP
O mundo globalizado contemporâneo traz consigo a aproximação e justaposição de culturas e povos diferentes - muitas vezes em situações de conflito. Se todas as partes envolvidas nos conflitos tentassem ler criticamente suas posturas, procurando compreender suas prprias posições e as de seus advers!rios, "! a esperança de transformar confrontos violentos e sangrentos. #reparar aprendizes para confrontos com diferenças de toda esp$cie se torna um objetivo pedaggico atual e premente, %ue pode ser alcançado atrav$s do letramento cr&tico. '! v!rias propostas existentes de letramento cr&tico( nesta proposta procura-se redefinir o conceito de )cr&tico* enfocando e enfatizando seu aspecto temporal e "istrico e seu papel pol&tico e $tico $tico na educação. educação. +omecemos com a retomada do conceito de conscientização de #aulo reire ) conscientização conscientização não era outra coisa senão o esforço da compreensão do mundo "istrico-social sobre %ue se est! intervindo ou se pretende intervir politicamente. O mesmo ocorre com a compreensão de um texto de cuja invenção os leitores não podem escapar, embora respeitando o trabal"o realizado, neste sentido, por seu autor. /ão "! realmente, pr!tica educativa %ue não seja um ato de con"ecimento e não de transferência de con"ecimento. 0m ato de %ue o educando seja um dos sujeitos cr&ticos* 123342526. O %ue merece desta%ue nessa reafirmação mais recente de um conceito antigo de reire $ a conexão apontada entre compreensão e invenção de um texto por parte do leitor. o apontar o leitor como sujeito cr&tico, reire enfatiza a importância da%uilo %ue o leitor traz para para o ato de ler e construir significados. /este sentido vale lembrar as reflexões de reire sobre as relações entre 7palavra8 e 7mundo8. reire 123349496 fala de maneiras 7ing:nuas8 de ler o mundo baseando-se no sentido comum, onde os significados são tomados como 7dados8, 7naturais8, incontest!veis e representam uma forma de saber elaborado a partir da )experi:ncia*. )experi:ncia*. reire contrasta essa forma de saber )ing:nuo* com um saber mais )rigoroso* e anal&tico, produto de reflexão cr&tica. #or )rigor* reire não se remete a uma rigor metodolgico lgico-cient&fico e sim a um processo constante e dialgico de reflexão cr&tico );sso significa %ue a curiosidade vai )rigorisando-se*, isto
$, vai ficando mais rigorosa, mais exigente, mais metdica.. por%ue metdica ela j! $, mesmo %uando ing:nua.
de uma forma ing:nua e outra coisa $ exercer essa curiosidade diante do mesmo =objeto> de uma forma mais rigorosa, criticamente* 123349496. O momento c"ave desse processo de )rigorisação* $ a percepção por parte do sujeito leitor do papel do senso comum na apreensão e construção da significação )eu sei %ue $ senso comum, portanto, eu posso super!-lo* 1ibidem6. /esse processo da necessidade pedaggica de promover o afastamento das leituras ing:nuas do mundo para desenvolver leituras mais cr&ticas, reire enfatiza o papel de e a importância de aprender a escutar/ouvir. reire, assim nos lembra %ue )... no fundo, não $ falando %ue eu aprendo a falar, mas escutando %ue eu aprendo a falar* 1233494?6. /esse processo de desenvolvimento da percepção cr&tica da relação palavra-mundo, passa-se da consci:ncia ing:nua, do senso-comum, de simplesmente )estar no mundo* para a consci:ncia da conexão e da diferença entre estar no mundo e estar com o mundo. @n%uanto a consci:ncia do senso-comum nos leva a acreditar %ue aprendemos a )falar falando*, a percepção cr&tica de estar com o mundo vem atrav$s da conscientização social e cr&tica de %ue nunca estamos sozin"os no mundo. percepção de si mesmo en%uanto um )eu*, diz reire, surge a partir da consci:ncia de um )não-eu* do %ual surge, se destaca e a %ual se conecta o )eu* individualizado. @sse )não-eu* scio"istrico ao mesmo tempo $ distinto de e constitui o )eu* da identidade social )Auer dizer, foi exatamente o mundo, como contr!rio de mim, %ue disse a mim voc: $ voc:* 1reire 23342426. @sse imbricamento e constituição mBtua do )eu* com o )não-eu* do semel"ante com o diferente, do indiv&duo com o coletivo $ enfatizado de forma in$dita por reire )/ão $ a partir de mim %ue eu con"eço voc:... $ o contr!rio. partir da descoberta de voc: como não-eu meu, %ue eu me volto sobre mim e me percebo como eu e, ao mesmo tempo, en%uanto eu de mim, eu vivo o tu de voc:. C exatamente %uando o meu eu vira um tu dele, %ue ele descobre o eu dele. C uma coisa formid!vel* 1reire 233495D6 0m passo importante para perceber a conexão entre o )não-eu* coletivo e o )eu* no processo educacional de desenvolver a conscientização cr&tica est! na j! mencionada importância de aprender a escutar/ouvir. o aprender a escutar, o aprendiz pode perceber %ue seu mundo e sua palavra E ou seja, seus valores e seus significados - se originam na coletividade scio-"istrica na %ual nasceu e a %ual pertence. tarefa de letramento cr&tico seria então a de desenvolver essa percepção e entendimento. ;sso significa %ue j! não basta entender o letramento cr&tico como um processo de revelar ou desvelar as verdades de um texto constru&das e tendo origem no contexto do autor do texto. @ntendemos agora %ue o processo $ mais amplo e complexo tanto o autor %uanto o leitor estão no mundo e com o mundo. mbos - autor e o leitor - são sujeitos sociais cujos )eus* se destacaram de e tiveram origem em coletividades scio"istricas de )não-eus*( isso não apenas cria um sentido de identidade e pertencimento para o sujeito social, mas também uma consci:ncia "istrica )...mais do %ue estar no mundo, ficando com o mundo criamos o tempo. Auer dizer, começamos a fazer "istria. F medida %ue começamos a fazer "istria, foi %ue a "istria começou a nos fazer e foi exatamente isso %ue ... gestou a possibilidade de termos uma consci:ncia do mundo e
uma consci:ncia de ns... a transa do tempo gera "istria, %ue por sua vez nos regesta, nos recria.* 1reire 23342426.
leituras %ue antecederam e %ue constitu&ram tanto o momento atual de produção de texto %uanto o prprio autorJleitor. +orre-se o risco de entender %ue as produções de sentido vistas assim seriam determin&sticas e %ue isso não explicaria variações no entendimento de um mesmo texto por leitores diferentes de uma mesma coletividade scio-"istrica. /ão se trata disso por uma razão simples. O )não-eu* %ue produz o )eu*, na explicação de reire, nunca $ "omog:nea e redutora. Ge fato, o )não-eu* $ constitu&do por uma complexa "eterogeneidade de comunidades e grupos 1classe social, g:nero, raça, religião, faixa et!ria etc.6, cada %ual com sua prpria linguagem e valores( apesar disso, todas essas comunidades estão interconectadas em coletividades maiores. ssim cada )eu* nasce num conjunto coletivo complexo e interconectado de comunidades do %ual se destaca( ao mesmo tempo em %ue o pertencimento a conjuntos diferentes de comunidades diferencia um )eu* de outro )eu* E gerando individualidades aparentes - o fato de todo )eu* sempre pertencer a e ser constitu&do por conjuntos de comunidades une os )eus* em conjuntos coletivos maiores de )não-eus*( isso faz com %ue seja poss&vel "aver leiturasJescritas semel"antes e compartil"adas de comunidades como gênero 1uma leitura )feminina*6, classe social 1uma leitura de )classe dominante*6, faixa etária 1uma leitura )juvenil*6 etc. #aradoxalmente, al$m de explicar semelhanças de e coincid:ncias em leiturasJescritas de um dado grupo de leitores, a genealogia pode tamb$m explicar as diferenças de leituras desse mesmo grupo %uando a )origem* das diferenças de leitura de determinados leitores est! em seu pertencimento a coletividades scio-"istricas diferentes. Gessa maneira, na acepção ps-cr&tica de letramento cr&tico, caracterizada pela genealogia e pelo processo de se ouvir escutando, torna-se importante o leitorJautor se engajar num processo de conscientização de sua prpria auto-genealogia no ato de produzir um texto 1tanto ler ou escrever6. Male lembrar %ue isso implica em perceber a conexão entre o )eu* e sua origem no )não-eu*( implica tamb$m em perceber %ue apesar de a autoria e a leitura parecerem atos individuais eJou voluntariosos, são constitu&das scio-"istoricamente pelas comunidades !s %uais se pertence e pelas suas "istrias anteriores da produção de significação. +omo j! vimos, para reire, o letramento cr&tico deve promover uma percepção do papel da história e da temporalidade da linguagem e do con"ecimento enfocando sua origem na "istria do conjunto de comunidades ao %ual se pertence. O letramento cr&tico deve promover a percepção resultante de %ue essa história, longe de ter acabado, constitui e afeta a percepção do presente. 0ma vez trazida ! reflexão cr&tica, essa percepção da ação do passado na produção de significação no presente poder! contribuir para a transformação dos poss&veis efeitos negativos atuais dessa produção em efeitos mais positivos e desej!veis para o futuro )Os "omens se relacionam com seu mundo de uma forma cr&tica. @les apreendem os dados objetivos de sua realidade atrav$s da reflexão e não por reflexo... no ato de percepção cr&tica, os "omens descobrem sua prpria temporalidade.
%ual%uer texto pode ser igualmente v!lida. /esse sentido, ortI 19DDP6 c"ama atenção ao fato de %ue, se não "ouver uma medida objetiva e externa %ue limita a multiplicidade de interpretações ou produções de significação de modo %ue seja efetivamente imposs&vel de distinguir entre uma leitura certa e outra errada isso pode resultar numa paralisia $tica, pol&tica e moral caracterizada por uma situação em %ue cada autorJleitor defende sua )perspectiva pessoal* individual. Auanto a isso, vale lembrar %ue a produção de significação não $ um ato aleatrio e voluntarioso de indiv&duos independentes pelo contr!rio, a produção de significação $ um ato complexo scio-"istrico e coletivo no %ual cada produtor de significação pertence simultaneamente a diversas e diferentes comunidades %ue constituem um conjunto social coletivo. temporalidade desnuda mais uma faceta da complexidade do processo da produção de significação no letramento cr&tico ela torna cada comunidade constituinte do coletivo mut!vel atrav$s do tempo. temporalidade gera assim a complexidade e multiplicidade potenciais de leiturasJescritas produzidas num dado coletivo de comunidades( por$m, essa mesma temporalidade tamb$m reduz a multiplicidade potencial de produções de significação. ;sso ocorre pela razão seguinte se, como j! vimos, a produção de significação sempre ocorre em contextos scio-"istricos espec&ficos, produto de determinadas comunidades e suas "istrias, cada produção de significação de cada comunidade ad%uire então sua validade apenas em dado momento "istrico dessa comunidade. #or exemplo, se ao longo da "istria de uma determinada comunidade produziram-se significações mBltiplas e diferentes, a validade de cada produção est! restrita !s condições temporais e sociais espec&ficas da%uela comunidade( assim uma produção num dado momento temporal do passado da comunidade pode ter um valor diferente 1para mais ou para menos6 de outra produção em outro momento mais recente. l$m do mais, en%uanto %ue uma determinada leitura possa ser v!lida para uma comunidade espec&fica constituinte do conjunto social E uma comunidade religiosa, por exemplo, E a mesma leitura pode não ser v!lida para outra comunidade ou nem se%uer para o conjunto social todo constitu&do por v!rias comunidades. Meja o caso de %uestões de cun"o religioso como o aborto ou planejamento familiar %ue, embora em termos do conjunto social possam ter valores mBltiplos e vari!veis 1a favor ou contra6, em cada comunidade o valor dado ! %uestão pode ser Bnico e restrito 1 ou a favor ou contra ". #ortanto, $ importante no letramento cr&tico não confundir a multiplicidade de leituras e seus valores com a ausência de fatores 7redutores8 como a genealogia e o pertencimento social %ue reduzirão em determinados contextos essa multiplicidade potencial. @ssa acepção de letramento cr&tico situa a produção de significação sempre em termos do pertencimento sóciohistórico dos produtores de significação, e postula tanto leitores %uanto autores como igualmente produtores de significação( como tal, ela recusa a normatividade universal e a crença em verdades universais e não scio-"istricos %ue sirvam para fundamentar de forma )objetiva* 1isto $ a-temporal e não social6 leituras )certas* ou )erradas*. ;sso torna vulner!vel esse letramento cr&tico a cr&ticas sobre sua utilidade e seu papel pol&tico, $tico e educacional como vimos nos coment!rios de ortI acima. #or$m, como apontam Q"ite 123336 e Mattimo 123356, a falta de normas e crit$rios tidos como universalmente v!lidos não implica necessariamente na inexist:ncia
de normas verdades e fundamentos, fatores importantes para %ual%uer ação pol&tica. O %ue propõe essa acepção de letramento cr&tico $ %ue existem sim fundamentos sobre os %uais normas, verdades e ações $ticas e pol&ticas possam ser empen"adas( por$m, esses fundamentos são vistos como contingentes e comunit!rios - não universais E e, portanto, temporais, locais e mut!veis. /os termos de Mattimo, no lugar de uma concepção dura e substantiva de fundamentos, propõe-se uma concepção )fraca* 1no sentido de mut!vel e contingente6 de fundamentos( não se trata de defender a inexist:ncia, falta ou não necessidade de fundamentos, apenas sua conting:ncia, ou seja, a percepção de %ue as verdades e os fundamentos prprios são produtos das comunidades !s %uais pertencemos e de sua "istria. #ara concluir, o %ue pode contribuir essa acepção redefinida de letramento cr&tico para ensinarJaprender a lidar com situações de conflito e confrontos com a diferençaR #rimeiro, ele propõe %ue as verdades e valores dos outros, como os nossos, são tamb$m produtos das suas comunidades e de suas "istrias - diferentes, portanto, de nossas verdades e valores - mas igualmente fundamentados . Sendo assim, diante de situações de conflito com outros de valores diferentes, surge a importância de aprender a escutar , nos termos de reire( aprender a escutar não apenas o outro, mas tamb$m a escutar ns mesmos ouvindo o outro. O %ue implica o processo de escutar o outroR ;mplica e se perguntar como a nossa genealogia e pertencimento scio-"istrico interferem nesse nosso processo de escutar o outroR #erguntar-nos tamb$m como as relações de poder nos unem ou nos separamR +omo a genealogia e o pertencimento scio-"istrico do outro interferem em seu processo de produção de significações e em seu processo de nos escutarR @sse enfo%ue cr&tico nas condições sociais e "istricas complexas da produção de significação de ambos os lados envolvidos em conflitos pode ajudar a entender a complexidade do conflito em %uestão e a impossibilidade de eliminar as diferenças E e, portanto, os conflitos - de ambos os lados. criticidade est! em não apenas escutar o outro em termos de seu contexto scio-"istrico de produção de significação, mas em tamb$m se ouvir escutando o outro. O %ue resulta desse processo de escutar $ a percepção da inutilidade de %uerer se impor sobre o outro, domin!-lo, silenci!-lo ou reduzir sua diferença ! semel"ança de nosso 7eu8( a escuta cuidadosa e cr&tica nos levar! a perceber %ue nada disso eliminar! a diferença entre ns mesmos e o outro, e nos levar! a procurar outras formas de interação e conviv:ncia pac&fica com as diferenças %ue não resultem nem no confronto direto e nem na busca de uma "armoniosa eliminação das diferenças.
Letramento Crítico Tradicional
Letramento Crítico $edefinido
@nfo%ue no contexto e nas condições de @nfo%ue no contexto e na produção de produção da escritura do texto e do autor significação 1leituraJescritura( autorJleitor6 +omo o Outro produziu a significaçãoR +omo o @u 1do autor e do leitor6 produz a significação. Aual $ esse significado 1certo6R
#oder dividido entre dominante e oprimido 1Misão marxista6. Heitura como consenso: con"erg#ncia entre leitores. #or$ue o outro escreveu assim% #or $ue o outro diz & e $uer dizer '
Aual a diferença entre contexto de produção da escritura e da leitura do texto percepção da significação no texto nunca pode ser final ou certa mas sempre pass&vel de ser re-interpretada. s leiturasJescrituras de um mesmo texto s poderão ser semel"antes 1nunca iguais6 se forem produzidas por leitoresJautores de comunidades scio-"istricas semel"antes #oder distribu&do entre todos, por$m de formas desiguais 1oucault6. Heitura como dissenso, conflitante di"erg#ncia entre produtores de significação. #or$ue eu entendi/ele entendeu assim% #or$ue eu acho/ele acha isso natural/óbvio/inaceitável%#or$ue eu acho $ue ele $uer dizer &%
%i&liografia
KaL"tin, . 19D?T6 arxismo e ilosofia da Hinguagem. São #aulo, 'ucitec oucault, . 19DDP6 Ordem do Giscurso. São #aulo, HoIola. reire, #. 123346 #edagogia da
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