Prólogo escrita por Sara Lecter
Prólogo “Diz-se “Diz-se dos casais que dormem sob o mesmo teto, mas que não partilham mais a cama, que vivem de aparência. aparência. Alimentam-se de aparentar ser o que não são, alegram se de aparentar um amor que já não têm, trabalham para para aparentar uma vida que não não existe. As aparências não são, contudo, o fim de um romance, pois os que aparentam, embora não amem mais, concordam em fingir juntos. Quando nem mesmo a farsa pode ser suportada a dois é porque o amor já acabou há tempos, tempos, e a convivência sem ele levou embora qualquer outra coisa que pudesse ter existido.”
Ingênua. – RUTZ, Caroline. “Sobre o fingimento” In: fingimento” In: O Bem e o Mal da Consciência Ingênua. a ser publicado um dia.
O sol se punha e irradiava seu último brilho alaranjado sobre a areia de Newport Beach. Completamente sozinha, uma uma garota segurava uma caixa e encarava as ondas com olhar perdido. Seu nome era Susan Frears. Sua face estava tomada de lágrimas e suas mãos apertavam a caixa com força, como se tivessem medo de deixá-la cair. A garota se levantou, não com muita muita decisão, mas denotando que precisava de muita coragem para o que faria a seguir. Secou mais algumas grossas lágrimas l ágrimas e andou a passos lentos rumo ao mar. Aquela Aquela praia era o seu lugar especial. Parecia recitar alguma coisa que não podia ser ouvida. Era um triste poema sobre a despedida. Com a água pela cintura, Susan abriu a caixa e a ergueu diante dos olhos. O vento espalhou cinzas a sua volta. Foi então que se pôde ver que era uma urna crematória e aquilo era um adeus. A garota avançou pelo mar, de modo que dois metros adiante, as ondas já lhe alcançavam o queixo e misturavam o que restara de um corpo às águas que banhavam a Califórnia. Fora um pedido de seu amor, um estranho es tranho pedido que a garota, com os longos cabelos cabelos morenos e cacheados encharcados pelo pelo mar, cumpria mesmo que lhe arrancasse o coração do peito. Não teria um túmulo para visitar Josie Duschamps, mas teria o oceano diante do qual se conheceram para abrigar todas as suas maravilhosas recordações e uma infinita saudade saudade ainda maior que o Pacífico. Pacífico. O sol mergulhou definitivamente no mar. Uma noite quente se erguia ao norte quando Susan deixou as águas, marcando seus passos afundados na areia e abandonando as cinzas atrás de si. Seu coração acabara ac abara de dizer o último „até logo‟, incerto sobre quando seria o reencontro, incerto inclusive se haveria um reencontro, em outra vida. Susan estava completamente sozinha pela primeira vez em muito tempo e a sensação de vazio que a dominava estaria presente até o fim de seus dias, mesmo que aprendesse a conviver com a dor. – Corta! – Corta! – ouviu-se ouviu-se uma grossa voz masculina e tudo mudou. Susan parou de chorar e foi abordada por duas pessoas com uma toalha e um suco natural. Havia câmeras por todos os lados, quilômetros de cabos, trilhos, holofotes, refletores, gente correndo de um ponto a outro na praia, falando-se por rádios portáteis. Então Susan não era Susan, era uma atriz, mas se parecia muito com alguém que estava diante de quem assistia aquela cena.
– Kirsten, Kirsten, você está bem? – bem? – perguntou perguntou a verdadeira Susan, já menos garota do que a atriz que a interpretava. Ela acompanhara de de perto todas as etapas de produção do filme que contava contava a história da sua vida. Teve consciência de si mesma. Estivera o tempo todo assistindo a uma filmagem. Não tinha cabelos, seu corpo corpo estava magro e a pele perdera toda a cor, um esforço de várias semanas para interpretar Josie Duschamps diante das câmeras, para dar vida à garota que era er a o amor de Susan. E se havia uma verdadeira Susan, um dia, anos atrás, foram jogadas naquela praia as cinzas da verdadeira Josie. Tomar consciência disso fez Kirsten cair de joelhos sobre a areia e chorar descontroladamente. Amaldiçoou o dia em que decidira filmar fil mar uma história verídica tão desoladora como aquela.
333 O travesseiro desabou da cama, seguido das cobertas. Kirsten pregou os olhos recém abertos no teto branco de seu quarto, aguardando que seu corpo parasse de suar. Sua face trazia uma expressão de desconforto que atenuava a angústia pela qual fora despertada. Um pesadelo Um pesadelo.. Bem mais real do que ela gostaria que fosse. Estava definitivamente esgotada naquele dia, mentalmente exausta. Levantou-se depois de consultar o relógio na cabeceira. Sete e meia mei a da noite. Ainda estava sozinha em casa e não se apressou, vestiu o roupão e abriu as torneiras da banheira, ambas, embora a de água fria fosse mais tímida. Desceu dois lances de escada e apanhou uma garrafa, um saca rolhas e uma taça na cozinha. Demorou-se escolhendo os sais e óleos que temperariam seu banho. Pretendia ficar horas imersa e por isso apagou todas as luzes antes de se despir. Colocou os fones de ouvido, abriu o vinho, serviu uma taça generosa – que que pousou ao lado da banheira, entre duas velas aromáticas acesas – fechou fechou os olhos e permitiu que apenas a música lenta que ouvia conduzisse seus devaneios. Apanhou mais vinho depois de ensaboar todo o seu corpo e notou que a primeira taça já começava a fazer efeito, ajudando-a a relaxar. Afundou-se um pouco mais, procurando uma posição confortável. Cortou o fluxo de água e deixou apenas sua face acima da espuma, fechando os olhos mais uma vez, depois de um longo gole, perdendo qualquer noção da realidade. A luz de seu quarto a despertou. Apanhou o MP3 e baixou a música, podendo ouvir ouvir os ruídos que vinham do cômodo, cômodo, uma vez que deixara a porta do do banheiro aberta. aberta. Notou sua pele enrugada na ponta ponta dos dedos dedos e esticou o braço para alcançar o vinho, para isso tendo de se erguer alguns centímetros. Quando voltou seu olhar para a porta, já j á não estava mais sozinha. Tentou sorrir, mas alguma coisa a impediu, então preferiu fingir que não notara a companhia e encarou o mármore már more negro da parede a sua frente. Pelo canto dos olhos viu um roupão idêntico ao seu ir ao chão, e logo depois ouviu passos lentos e muito bem planejados vindo em sua direção. – Hmm... Hmm... Que maldade, você só trouxe t rouxe uma taça... – Pode Pode usar a minha. – minha. – disse disse Kirsten. – Kirsten. – Eu Eu já passei da conta, por hoje.
– Talvez Talvez eu faça isso. – isso. – disse disse a outra, entrando na banheira com um sorriso cheio de intenções. – intenções. – Ou Ou talvez eu deixe o vinho para depois do jantar... Kirsten virou o rosto e mordeu o lábio inferior, incomodada. – Então Então ainda não jantou. – Não... – Não... – a a outra correu suas mãos pelas pernas submersas de Kirsten e foi subindo devagar, enquanto o resto de seu corpo se colocava sobre o dela. – Ensaiamos até mais tarde, de novo. Com a desculpa de se livrar dos fones de ouvido, Kirsten recusou os lábios da outra. “Hei... Cheguei tão tarde que você já você já começou sozinha? sozinha? Sobrou um um pouco pra mim? – mim? – pediu, pediu, com a voz rouca. – Mandy... Mandy... eu estou sem clima, desculpe. – Sem Sem clima? E essa banheira? E o vinho? E essas velas? Acha que não notei que deixou a porta aberta e as luzes apagadas? Eu ainda sei reconhecer os seus sinais. – É É mesmo? – mesmo? – o o tom de Kirsten deixou escapar uma certa mágoa. – Foi Foi só um atraso, estamos a poucas semanas da estréia, você conhece o rosário que eu tenho de rezar r ezar nessa época. – época. – ela ela começara a fazer teatro na infância, e na adolescência, adolescência, antes de namorar Kirsten, já era atriz profissional. – Eu Eu achei que conhecesse. – Cadê Cadê o seu pingente? – pingente? – perguntou perguntou Amanda, beijando o pescoço dela e sentindo falta do colar. – Não Não vi mais motivo para usar, uma vez que você tirou o seu já faz tempo. – Eu Eu tive uma reação alérgica na pele, você sabe disso. – protestou protestou Amanda. – Hum. – Hum. – Kirsten Kirsten fez pouco caso. Quando decidiram viver juntas, passaram a usar colares idênticos que representavam representavam sua aliança mútua, mas não despertavam a mesma especulação que anéis dourados. – Meu Meu bem, não me recuse mais... – mais... – pediu pediu ela, fazendo beicinho. – Fingir Fingir que está tudo bem só torna as coisas piores.
– Não Não estou fingindo, querida. – querida. – ela ela beijou Kirsten nos ombros. – ombros. – Mas Mas aqui. ainda nos damos muito bem na cama, ou... aqui. Amanda tinha razão. O sexo era a única coisa que restara inabalável entre elas. O relacionamento dava sinais de desgaste há meses e, nas últimas semanas, elas mal se falavam. Afastavam-se pouco a pouco sem que nenhum acontecimento grave pudesse ser apontado como motivo. Amanda usava o trabalho como válvula de escape, deixando que a rotina agitada do teatro a confortasse pela dor de notar próximo o fim de um grande amor; Kirsten parecia disposta ao inverso, não se envolvia em nada e não aparecia em público desde as premiações por seu último filme – há há mais de um ano – ano – deixando deixando crescer rumores de que abandonara a carreira no ápice de seu talento e apenas a caminho do auge de sua beleza. Por causa do receio de Kirsten com a imprensa, apenas os amigos mais íntimos sabiam do seu relacionamento com Amanda. “Quero ver um sorriso nesse rostinho. – insistiu insistiu Amanda, cuidadosa. – cuidadosa. – Por que não me conta como vai o laboratório de pintura enquanto eu trato de lhe deixar “com clima”? – Cancelei Cancelei as aulas há um mês. – disse disse Kirsten, depois de um beijo demorado que lhe devolveu um pouco do humor, enquanto suas mãos alcançavam as costas de Amanda e a puxavam delicadamente para perto de si. – E E não me contou!? Achei que gostasse. Adorei o desenho que você deixou na geladeira... – geladeira... – Amanda Amanda sorriu. – sorriu. – Você Você tem talento. Para a pintura e para muitas outras coisas... – coisas... – ela ela continuou acariciando o corpo de Kirsten por baixo da espuma, detendo-se nos seios enrijecidos pelo contato. – Só Só vinha conseguindo pintar a mesma coisa. Mar, areia e cinzas. – Teve Teve mais um pesadelo? – pesadelo? – Amanda Amanda perguntou com cautela, beijando o rosto de Kirsten carinhosamente. – Tive. – Tive. – admitiu admitiu ela, depois de um longo suspiro entristecido, com o qual interrompeu a carícia no derière de Amanda. – Pensou Pensou bem no que Richard, Debra e eu lhe dissemos? Quem sabe se você procurasse ajuda profissional, enfrentaria mais facilmente. Richard e Debra eram os melhores amigos de Kirsten desde o jardim de infância. Quando ela apresentara Amanda a eles fora praticamente amor à primeira vista. Os quatro passavam muito tempo juntos, todos os feriados e ocasiões importantes. Eram como uma família. Muito anti-convencional, anti-convencional, mas ainda assim como uma família, a parte de Kirsten que a tornava forte e que ela mantinha protegida dos holofotes. – Você – Você tem tem um caso com a promotora da sua peça e eu é eu é que preciso fazer análise? – análise? – disparou. disparou. Amanda se calou. Deixou a banheira e apanhou o roupão que deixara largado na saída para o quarto.
– Não Não vou deixar que o seu mau-humor estrague o meu dia. – disse, disse, querida, não vou mais atrapalhar. depois de muito tempo. – tempo. – Bom Bom banho para você, querida, A promotora da peça que Amanda ensaiava se chamava Bárbara Evans, era mais velha, e as duas eram grandes amigas, apesar de Amanda nunca falar sobre sua vida pessoal, à pedido de Kirsten, que não fizera qualquer questão de conhecer a outra. Kirsten atirou a taça de vinho no grosso vidro do box e molhou boa parte do banheiro ao socar sucessivas vezes a água onde permanecia imersa. – Mandy, Mandy, espera! Eu falei sem pensar. Tudo o que ela ouviu como resposta foi a porta do quarto batendo violentamente. Fechou os olhos mais uma vez. Por mais que tentasse, não conseguia imaginar como deixara de ser uma garota doce e empenhada em fazer jus ao amor de Amanda, para chegara até ali. Saiu da banheira, secou-se sem pressa e vestiu apenas uma camisola. Ao alcançar o hall ouviu Amanda no primeiro andar, com a televisão ligada. Parou no meio do caminho, guardou o vinho na geladeira e se trancou no seu esconderijo, que chamava de “estúdio”, onde guardava tudo que dizia respeito ao seu trabalho. Quando seus amigos nem tinham idade para pensar em carreira, Kirsten já interpretava. Quando eles começavam a montar o próprio negócio, ela já era uma celebridade do primeiro time de Hollywood. Olhou rapidamente os cartazes emoldurados que decoravam a parede, acima do lambris, e como ocorria há algum tempo, só conseguiu se deter no mais recente deles. Seu último filme, fil me, que lhe dera boa parte das estatuetas estatuetas que preenchiam preenchiam as prateleiras prateleiras de mogno, mogno, dera-lhe também a herança herança inglória de pesadelos que a tiravam do sério. Mar, areia e cinzas. Uma das mais belas cenas da história do cinema se repetia em seus sonhos sem que ela pudesse evitar o choro inconformado, soluçante e sufocador. Amanda, infelizmente, perdera a paciência com eles. Estava começando a vida e julgava jul gava um despropósito se afundar em um relacionamento que parou no tempo.
Nota da Autora: “Mar, areia e cinzas” deve ter sido a décima tentativa de criar um título razoável, que falhou, como devem ter percebido. Acreditem em mim: os outros eram ainda piores. N/A 2: gosto de usar nomes de pessoas ou personagens famosas em minhas fics, da mesma forma que me divirto procurando relações semelhantes semelhantes em histórias alheias. Explicarei apenas as principais aqui: Kirsten (da Kiki Cohen do the O.C.) Howard (de Jack Howard do romance Atlântis, de David Gibbins); Amanda (da Mandy da fic Kate & Rach, da gataportuguesa) gataportuguesa) Roberts (de Summer Roberts, novamente the O.C.); Susan (de Sue Norton de Salem‟s Lot, de Stephen King) Frears (de Stephen Frears, diretor de The Queen); Josie (da atriz Josie Davis) Duschamps (de Teddy Duschamps, o menino da risada engraçada em Conta Comigo). O uso do nome não significa que eu faça comparações, comparações, nem físicas nem psicológicas, psicológicas, é apenas uma brincadeira. Se alguém se habilitar a chutar a origem dos outros nomes, vou gostar.
N/A 3: provavelmente a nota mais importante. i mportante. Baseei essa pequena ficção em uma fic yuri que li recentemente, de autoria de Samantha D‟Ávila, intitulada “Tudo muda, tudo passa”, na qual Sam narra sua sua história de amor – dita dita verídica – verídica – com com Alexandra Flatcher, um enredo que se desenvolve no morro do Cantagalo e nas praias de Ipanema e Copacabana, além da Ilha do Fundão, todos no Rio de Janeiro. Alex é uma inglesa que se muda com os pais para o Brasil e precisa de aulas particulares para a faculdade de Engenharia Civil, onde conhece Sam, uma jovem a princípio heterossexual, com quem acaba se casando e construindo uma bela vida a duas. Tudo muda, tudo passa me causou uma impressão muito forte, em vários sentidos, e Mar, areia e cinzas não passa de uma singela homenagem minha a este enredo muito bem conduzido e decididamente emocionante. Susan Frears é livremente inspirada em Samantha e Josie Duschamps é imprecisamente baseada baseada em Alex. Por forças maiores, mudei mais coisas do que mantive, mas nunca com a intenção de ofender outros fãs da história original, apenas com o intuito de adaptá-la ao meu próprio enredo. N/A 4: (quase acabando) não sou uma garota deslumbrada com os Estados Unidos, longe disso. Num plano ideal eu situaria meu enredo no Brasil – por por esse é amor eterno e incondicional – incondicional – mas mas como não sou grande fã das Organizações Roberto Marinho e nem assisto muita televisão, nivelei logo por cima e, sabendo que as duas protagonistas seriam jovens atrizes, escolhi Hollywood e Broadway. Fama é uma coisa difícil de conseguir e ainda mais complicada de retratar, então a voraz imprensa marrom dos EUA também me soou como a alternativa mais simples. Esses são os motivos de eu ter transposto as personagens baseadas em Tudo muda, tudo passa do Cantagalo para Chino e de Copacabana para Newport Beach (notem mais uma vez que eu simplesmente sou viciada em the O.C.). Que fique bem claro que sou brasileira e não desisto nunca! Voltar para o índice O Medo do Desejo escrita por Sara Lecter
Capítulo 01 – O O Medo do Desejo
“A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai. Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor, mas não não são. Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza. O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si. Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar. Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu.”
Luiz Fernando Veríssimo em “O quase.”
Duas garotas tomavam sorvete e riam animadamente no saguão do shopping onde costumavam se encontrar, cochichando indecências sobre as pessoas que passavam sem
prestar atenção nelas. A mais velha, Debra, desabafava sobre os pais entre um comentário e outro, mas em nenhum momento sua complicada relação com a família se tornou o centro da conversa. O assunto fluía mais facilmente quando falavam de cabelo, roupas, da estréia de um novo seriado e principalmente quando os olhos de Debra se perdiam nos glúteos de qualquer ser do sexo masculino que passasse. Ouviram um grito estridente vindo do outro lado, perto da entrada. Olharam-se sem emoção, só havia uma pessoa em Nova Iorque com coragem ou falta de juízo suficiente para atravessar aquele saguão aos berros: – Richie. – disseram juntas, uma para a outra. O garoto se aproximou das duas e mal podia conter as palavras, ou mesmo as lágrimas. Praticamente chorava de alegria. Ainda ofegava, denotando que viera correndo. – Kiki, você não vai acreditar! – ele se curvou, apoiando ambas as mãos nos joelhos, depois se levantando novamente. – Você... você está numa revista! E não estou falando de uma notinha miúda no final, você está na capa! Debra derrubou o sorvete sobre o colo. Kirsten não conseguia respirar. Evidentemente a reportagem não era sobre ela, mas sobre o filme que rodara meses antes daquela tarde, um longa com diretor promissor, roteiro interessante, mas orçamento baixo e elenco desconhecido. – Impossível. – disse, praticamente sem mexer os lábios. – Você deu sorte, sua maluca! – Richard balançava a cabeça, atônito. – „tava com medo de ser um fracasso de mal gosto, mas pa rece que só viram arte nas cenas... Estão indicando o filme aqui como um ótimo programa cult . A bilheteria ta subindo! – Merda... – ela curvou a cabeça e a escondeu entre os joelhos. Debra e Richard entendiam sua apreensão. Tentaram alertá-la antes sobre as conseqüências, mesmo que obviamente lhe dessem toda a força para aceitar o trabalho. Ela tinha dezessete anos quando chamou a atenção de um diretor alemão. Tinha uma formação artística pífia mesmo para sua idade e nenhum contato de peso na indústria cinematográfica. Fizera cursos de interpretação, mas queria ser escritora. Quando perguntada mais tarde sobre o que a levara a se tornar uma grande promessa como atriz, respondeu que tinha, simplesmente, sorte. Naquela tarde, no shopping, pela primeira vez Kirsten sentiu uma pontada no estômago, um medo desconhecido e incontrolável. Abraçara aquele projeto como se fosse a última coisa que faria na vida e gostara muito do resultado, mas não havia parado para pensar que uma vez exposta, seria julgada. Era apenas uma adolescente tranqüila que usava calças não muito justas e camisetas de algodão. Mesmo não sendo muito alta, não gostava de saltos, mas tinha uma respeitável coleção de tênis coloridos e descolados. Preservava demais sua intimidade.
Ao ver o cartaz de seu filme em uma revista de cinema, não reconheceu a imagem que via no espelho todos os dias. A personagem nada tinha a ver com quem a encarnava. Era uma mulher , repleta de sensualidade, de feminilidade, de malícia. Uma rainha. Uma aristocrata jovem demais para o peso de sua coroa, que decretava sua morte ao se apaixonar perdidamente pelo último homem por quem poderia fazê-lo: o próprio marido, jovem como ela, manipulado por um conselho ambicioso e traiçoeiro, e atormentado pelas rígidas regras da Igreja que o sustentava no Trono. Kirsten pusera claro aos amigos os termos do roteiro. Havia mais de uma cena que insinuava sexo. Se aceitasse o papel, estaria dando um passo muito largo, não em sua incipiente carreira de atriz, mas na vida. Qualquer um poderia ver o filme, desde milhões de completos desconhecidos, até pessoas que ela via e com quem conversava com freqüência. Por alguns segundos Kirsten achou que nunca mais conseguiria sair na rua e lembraria, depois do susto, por muito tempo, que a primeira conseqüência do sucesso na sua vida foi a vergonha. A crítica foi favorável à Kirsten, embora no começo destacasse muito mais seus dotes físicos do que os cênicos. Em alguns países o longa teve exibição proibida quando se descobriu que Kirsten era menor de idade; atriz alguma de seu porte e geração poderia desejar começo melhor do que aquele, contrariando a obviedade de papéis fúteis em comédias adolescentes. – Lindinha, – disse Richard, sentando-se entre as duas amigas. – Você está a um passo de entrar em Beverly Hills pela porta da frente!
333 Uma servente terminava de varrer o chão quando ergueu os olhos para cumprimentar o trio que entrara na coxia, conversando alto e fazendo algazarra. “Todos malucos” ela pensou, embora tenha se limitado a acenar. Semestre após semestre uma nova turma júnior era formada naquele teatro comunitário. Os professores eram voluntários e o dinheiro vinha da prefeitura. Aqueles três já eram formados há um ano, mas permaneciam ligados ao projeto, ajudando com o que pudessem e lamentando não terem sido aceitos em companhias permanentes. Azar . Ainda adolescentes, começavam a descobrir que o caminho para a Broadway dependia, antes de qualquer coisa, de bons contatos e força de vontade; talento era um item dispensável naquela lista. Ainda assim, todos ali sonhavam alto. Gail tinha corpo de bailarina e disciplina irrepreensível, além de uma facilidade nata para decorar textos; Fred era sempre escolhido para estrelar as montagens, uma vez que conjugava desenvoltura no palco com um rosto atraente e uma projeção de voz incrível; Amanda não tinha nem muita disciplina e muito menos concentração, sendo de longe a mais insegura sobre seguir carreira no teatro, mas tinha o que os professores, admirados, chamavam de “alma de atriz”, o que a tornava capaz de arr ancar as emoções mais profundas do público ao subir no palco. Fred e Amanda eram namorados e estavam de aniversário no dia que toparam com a servente atrás do palco. Gail era a melhor amiga dos dois. Ela
conseguira, de um conhecido, documentos falsos que permitiriam ao trio entrar no cinema e assistir uma sessão não indicada para menores. Fred planejara um encontro romântico, mas Amanda insistira que fossem os três, não apenas porque fora Gail quem possibilitara a entrada, mas porque nunca se separava da amiga. Eram íntimas além do ponto que Fred poderia compreender. Ele ria quando as duas trocavam olhares e insinuações provocantes, quando passavam juntas, quase próximas demais, o texto que interpretariam no palco e não se importava, de modo algum, quando Amanda apanhava seu violão e cantava hits românticos olhando para Gail e não para ele, pelo menos na maior parte do tempo. Achava engraçado. Todos achavam, pois quando a brincadeira estava ficando séria demais, Amanda e Gail riam e mudavam de assunto. Sentaram-se em poltronas bem próximas da tela de projeção, pois o filme escolhido começava a se tornar concorrido e a demandar mais salas para atender o interesse do público. – Amanda e seus filmes difíceis... – reclamou Fred, com vinte minutos de enredo. – Pelo menos dessa vez não é um documentário interminável sobre política ou direitos humanos. – abrandou Gail, dando um tapa de leve no ombro de Fred, que riu. – Nem uma balela eco-chata! – completou o garoto. – Vocês não precisam ficar aqui. Eu assisto sozinha, ta legal? – Amanda se defendeu, ofendida com a cumplicidade de Gail e Fred ao criticar seus gostos. – Desculpa, não precisa ficar brava. – disse Gail. – É que... – É que o quê? – ela perguntou, irritada, logo em seguida ouvindo protestos dos ocupantes das poltronas adjacentes. – É um filme de época, amorzinho. – sussurrou Fred. – Eu não vejo graça nenhuma nisso. – É uma obra-prima sobre duas pessoas que são obrigadas a se casar sem amor e que quando passam a se amar, são obrigadas pela tradição a fazer sexo apenas para reprodução, tudo controlado pela Igreja. – explicou ela. – Então era por isso que aquele Padre estava assistindo tudo, antes? – Fred estava decepcionado com aquele encontro. – Era assim que funcionava com os monarcas, por muito tempo. A concepção do herdeiro do trono deveria ser fiscalizada, sem o risco de ocorrer pecado. – Pecado? – Prazer, seu idiota. O corpo é dom de Deus e pertence a Ele, o prazer físico é pecado e conduz ao inferno. – Amanda tentava explicar Filosofia Cristã e ao mesmo tempo prestar atenção no filme.
– Pra mim é demais. – Fred se levantou e alguns protestos foram ouvidos a sua volta. – Vou esperar na lanchonete. Amanda “pulou” para a poltrona dele. Não disse nada. Gail também estava um túmulo, mas sua respiração era nervosa e Amanda podia percebê-lo, quando apurava a audição. Esperou que a outra se distraísse com o filme, notando sua mão sobre o “braço” que separava os dois lugares. Agindo naturalmente, Amanda colocou sua mão sobre a de Gail, que não protestou. O filme se tornou mais tenso, embora nada comparado aos batimentos cardíacos das duas garotas. Estavam de mãos dadas. Gail fingiu um bocejo e inclinou sua cabeça, pousando-a sobre o ombro de Amanda, que algum tempo depois soltou a mão dela, mas passou o braço por suas costas e lhe acariciou o ombro. Era uma carícia muito diferente dos afagos amigáveis que trocavam geralmente. O filme “esquentou”. A sala estava no mais absoluto silêncio e um nervosismo palpável parecia tornar o ar mais pesado. Amanda continuava com o braço atrás da nuca de Gail, esporadicamente lhe acariciando a pele do pescoço com as pontas dos dedos, e tomou novamente a mão da outra, usando seu braço esquerdo e se sentando ainda mais próxima. Agradeceu aliviada quando a cena terminou, pois mesmo o que acontecia consigo, que era talvez o momento de maior medo e tensão de toda a sua vida – muito pior que qualquer estréia nos palcos – não conseguia evitar que seu corpo reagisse ao estímulo recebido pelos olhos. Soube antes daquela cena o que a fizera escolher esse filme. Havia alguma coisa na atriz principal, desconhecida, que a inquietava. Quando pôs os pés na sala de cinema, de mãos dadas com Fred e logo após rever o cartaz, na entrada, percebeu pela primeira vez que uma mulher era capaz de lhe despertar o mesmo desejo que sentia pelo namorado ou por homens em geral. Gail se mexeu sensivelmente e seu rosto roçou na face de Amanda. Ambas apertaram os olhos com força, além das mãos entrelaçadas. Já não podiam mais evitar. Dessa vez não haveria risadas nem mudanças de assunto, elas queriam ir até o fim, não se importando com as conseqüências daquele ato. Beijaram-se longamente, ocultadas pela escuridão do cinema, protegidas pelo anonimato e movidas pelo desejo da descoberta, que naquele momento sobrepujou, finalmente, o medo e a incompreensão do que sentiam.
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Capítulo 02 – Sedução Velada
“Cada ser humano guarda dentro de si um sonho maior e mais importante que todos os outros. Não é o de voar como os pássaros, tampouco o de mover objetos com o poder da mente; estes são tão comuns quanto o desejo de ler pensamentos alheios. O grande objetivo que ocultamos – com freqüência até de nós mesmos – é o de ser especial e poderoso. Não como alguém notório em quem buscamos referências – atores, atrizes, modelos, empresários ou talvez nossos pais – , mas como a mais perfeita e elevada versão de nós mesmos. Todas as mudanças que provocamos e que deixamos provocar em nossas vidas cumprem a única e suficiente razão de nos aproximar desse ideal que, por essência, nunca concretizamos completamente.” RUTZ, Caroline. “O Poder dos Sonhos”. In: O Bem e o Mal da Consciência Ingênua. – a ser publicado um dia.
Amanda terminava de alongar os membros. Estava tensa, mal podia respirar. O camarim coletivo e improvisado estava lotado e sua professora, Stella, andava de um lado para o outro, verificando o figurino de todo mundo, enquanto se ocupava dos próprios afazeres, uma vez que era a diretora da montagem. Gail terminara de se maquiar e começou a tirar a roupa, ali mesmo, no meio de todo mundo, como todos estavam acostumados a fazer, já que poucas coisas davam a um grupo intimidade maior do que fazer teatro juntos. Fred, já vestido, oferecia o ombro para que a namorada se apoiasse, flexionando os membros inferiores até o limite fisicamente possível. Amanda começou a contar mentalmente os dez segundos antes de relaxar e começar outro exercício, mas perdeu a noção. Gail acabara de se livrar da blusa. Não usava sutiã. Parecia alheia a tudo, os seios firmes expostos, a barriga reta, e o piercing prateado que habitava os sonhos de Amanda... Fora com Gail a um estúdio caríssimo e a jóia demandara quatro meses de mesada da garota. A aplicação foi presente de Amanda, que segurara a sua mão para que não sentisse dor. Não era em nada daquilo que Amanda pensava enquanto esquecia de passar ao próximo alongamento. Queria saber como era ter aquele piercing dentro da sua boca e os seus lábios tocando a pele de Gail; queria beijar também a tatuagem que ela tinha e que mais ninguém sabia, pois fora pensada para estar em um lugar que nem mesmo a troca de figurino no camarim lotado pudesse revelar. – Amorzinho? – Oi? Que foi? – ela perguntou, assustada. – Você está bem? – Estou... só... um... pouco... nervosa... – Toda grande estrela fica nervosa antes de ir para o palco, amorzinho. – Fred a ergueu no colo e rodopiou pelo camarim. – Mas você vai arrasar mais uma vez.
– Todos nós vamos. – disse alguém, e Fred concordou. O garoto pôs a namorada de volta ao chão e viu que Stella encontrava seus olhos de maneira cúmplice. Com um pequeno sinal, ela indicou que deveria ser seguida, e apontou para Gail também. Fred sorriu imperceptivelmente e, de maneira discreta, conseguiu tirar a namorada e a melhor amiga do meio da bagunça do camarim. – Algum problema? – quis saber Gail, ao notar a pequena reunião com a diretora da peça. – Não quero pressionar vocês três, mas sabem que são o melhor que temos. Tem algumas pessoas ali fora – Stella apontou para as cortinas, indicando a direção de onde o público deveria estar começando a se acomodar. – que vieram ver vocês. Só vocês, não a peça. – Mesmo? – Amanda sentiu seu coração disparar violentamente e como por instinto, apanhou a mão de Gail, que também vinha em direção a sua, sem que os outros dois notassem. Stella concordou e saiu rapidamente. Fred, Amanda e Gail se abraçaram e pularam de alegria, mas logo recobraram o nervosismo. Após muitos desejos de “merda” de todas as partes do elenco, começaram a peça na qual trabalhavam há meses e que, talvez pelo ineditismo daquela oportunidade, nunca lhes pareceu melhor executada. Abraçaram-se emocionados mais uma vez assim que as cortinas se fecharam no último ato, e por pouco não foram pegos assim quando elas se abriram para a saudação ao público. Gail, entre o casal principal, apertava com força a mão esquerda, que segurava os dedos de Amanda. – Magnífico! – disse um homem de aparência sisuda, terno, gravata e camisa preta, que os procurou minutos mais tarde. – Stella deve ter falado de mim, sou Oliver Townsend. – É um prazer. – Fred lhe apertou a mão com força e decisão. – E... essa belezinha... – Oliver tocou o queixo de Amanda com um sorriso arrogante nos lábios. - ...você vai brilhar nos melhores palcos do mundo, sabia? Vocês já ouviram falar da minha Companhia – claro!!! – apressaram-se em garantir. – Estamos renovando o elenco, vocês sabem como funciona. Eu fiquei impressionado com o que presenciei hoje. Há alguns anos não via talentos despertarem assim, como em um conto de fadas, em um teatro do Soho, um programa comunitário. Isso dará manchetes! – ele sorriu para Gail. – Você fez bale? – F... faço desde os t... três anos. – Belas pernas... – ele comentou, sorrindo e acendendo um cigarro. – Senhor, não pode fumar aqui.
Fred alertou Oliver, mas se arrependeu logo em seguida, pois recebeu um olhar terrível em contrapartida. – É o seguinte, jovens. – disse, perdendo o tom doce com que falara com as garotas. – Stella me disse que tinha três talentos aqui, que é o mesmo número de vagas que abriram no meu elenco. Eu só trabalho com os melhores, por isso terei de continuar procurando. Amanda sentiu como se o chão se abrisse debaixo dos seus pés. Mais uma vez criara uma grande expectativa e provavelmente mais uma vez o destino lhe puxaria o tapete. O que ela não poderia imaginar era que mesmo conseguindo a vaga com a qual sonhara tanto tempo – e ela de fato conseguiu – , a sensação com a qual dormiria naquela noite era de que perdera alguma coisa muito valiosa. “As duas garotas são perfeitas. – disse o empresário, ao ver que a diretora voltara. – Per-fei-tas, Stella. – E quando ao Fred? – Stella perguntou, incerta, provavelmente imaginando a resposta. – Nova Iorque está cheia de rostinhos bonitos que sabem representar. – ele tirou dois cartões pessoais do bolso e alcançou-os à Amanda e Gail. – Liguem essa semana, garotas. Eu não costumo esperar. Stella, mais uma vez foi um prazer. Ligue se mais alguma como esta aqui aparecer! Depois de apertar a bochecha de Amanda, Oliver Townsend deixou o teatro com todo o esplendor de sua arrogância. Stella saiu de fininho e Amanda e Gail tentavam compreender aquela aterrorizante situação na qual haviam conseguido realizar o sonho de uma vida e não poderiam esboçar nem a mínima comemoração. Fred saiu correndo, contendo as lágrimas que brotavam em seus olhos, sem se preocupar em passar no camarim para se trocar e apanhar sua mochila. Amanda foi despertada de seu terror e tentou pensar depressa: – Fred, espera! – Me deixa sozinho! – Fred, volta aqui! O garoto bateu a porta dos fundos e Amanda se viu detida em seu intuito de segui-lo. Virou-se e encontrou a face de Gail com uma expressão ansiosa. Ela soltou o braço de Amanda e mordeu os lábios, percebendo que a outra acompanhou movimento com os olhos. – Deixa a raiva dele passar. – disse Gail. – É uma pena que não conseguimos os três, mas não vou fingir que esse não é um grande momento. – Gail... – o tom de voz de Amanda beirava a pena.
– Parece que tudo que eu sonhei desde que te conheci ta acontecendo ao mesmo tempo. – Sei que prometi, mas eu não posso terminar com o Fred agora, ele já ta arrasado e antes de qualquer coisa, é meu melhor amigo. Gail fechou os olhos tristemente. Amanda tocou-a no rosto e, com a ponta dos dedos, percorreu seus lábios detalhadamente, uma carícia lenta, intensa, que as uniu com mais força do que o primeiro beijo. Quando os olhos se encontraram novamente, suas faces traziam sorrisos tímidos. “Fred precisa de mim agora. Eu te ligo amanhã. Aquela foi apenas a primeira das muitas desculpas de Amanda que deixariam a outra garota com o coração apertado, mas sem poder evitar o sorriso bobo que lhe brotava dos lábios.
333 Richard e Debra estavam perdidos em meio a revistas e jornais desorganizados. Liam trechos um para o outro, cada vez que encontravam alguma alusão ao filme de Kirsten. Ouviram quando ela desceu as escadas e a encararam impassíveis quando ela parou diante dos amigos. – Você não vai assim, vai? – perguntou Debra. – Qual o problema? – ela olhou para si mesma, abrindo os olhos. – Kiki... – bradou Richard. – Kiiiiiki, você vai aparecer na televisão! Põe um brinco, tira esses tênis, sobe essa calça e... – Não adianta, tem que trocar tudo. – completou Debra, balançando a cabeça. – Gente, eu to legal. É só uma entrevista de divulgação do filme, não é ao vivo, nada de horário nobre, emissora desconhecida... – Não interessa, lindinha. Richard se enganchou no braço de Kirsten e a arrastou escada acima, de volta ao quarto. Debra os seguiu e os dois amigos vasculharam o closet da loira em busca de algo que lhes agradasse. – Ahã! – Debra encontrou uma saia perdida entre as bermudas da amiga. – Você vai pôr isto aqui. Que acha, Richie? – Sou eu quem tem que achar alguma coisa. – Kirsten se interpôs. – E eu não visto isso nem morta.
– Kiki, você ta começando a ficar famosa, as pessoas querem te ver! Tem que estar à altura da expectativa delas. – Eu não vou me tornar uma pessoa que eu não sou, só para fazer uma entrevista. Debra a levou à força para a frente do espelho. – Tira a roupa. – ordenou. – Ficou maluca, Debby? Você não é meu tipo. – Tira a porcaria da roupa antes que nós arranquemos de você. – a outra não riu da piada da loira. Depois de muita relutância, Kirsten ficou de lingerie diante dos amigos. Tentava se cobrir com os braços e manter uma posição que não a expusesse, mas foi inútil. – Garota, quando foi que você ficou com esse corpo e a gente nem notou? – Richard deixou de lado, por hora, as roupas que tentava arrumar. Sentindo o rosto pegar fogo, Kirsten respondeu tentando parecer displicente: – Já estava com ele no filme, não notaram, não? – Teríamos visto se você não insistisse em tapar os nossos olhos, no cinema, sempre que ele aparecia. – reclamou Debra, boquiaberta. – Tem alguma coisa que você esqueceu de nos contar? – Por quê? – ela sufocava o riso. – Porque só existe uma explicação para isso, lindinha. – Richard atirou uma calça jeans e uma camiseta branca para ela e deixou seu corpo desabar sobre a cama. – Veste isso e pega suas chaves, não tem nada aproveitável aqui, teremos de sair e isso vai nos atrasar. Você conta no caminho! Entraram no táxi e Richard não titubeou em indicar a 5th Avenida como destino, ao que Kirsten protestou enfaticamente, embora a frase seguinte, de Debra, a tenha feito se animar com a idéia: – Se você quer mesmo entrar para o circo de Beverly Hills pela porta da frente, é melhor começar arrasando. Já sei que vai dizer que a fama não interessa, mas nenhum diretor em sã consciência lhe chamaria para um bom filme se te visse assim – ela apontou para a camiseta de Kirsten. – na televisão. Richard estava no céu. Passeava entre as araras, ria sozinho, parava diante dos espelhos com as peças ainda no cabide colocadas sobre o seu corpo. Teve um
“ataque” com os produtos de beleza e só sossegou quando Debra ponderou que estavam atrasados. – Richie, você não vive dizendo que seu trauma de infância foi não ter tido uma boneca? – questionou Debra, empurrando Kirsten à frente do amigo. – Agora você tem uma bem grande e, o melhor, com um cartão de crédito praticamente ilimitado. Feliz Natal! Os três riram a valer e começaram o processo de transformação de Kirsten, que relutava bastante, mas acabava aceitando os conselhos dos amigos, que não davam tempo para a assistente sequer respirar. Richard deixara o seu número de telefone com ela, no final, com a promessa de ser informado de antemão quando a nova coleção chegasse. Debra e Kirsten nunca o tinham visto tão feliz. – Agora conta. – disse Richard, quando Kirsten aprovara somente o décimo quinto vestido que experimentara. – Ah... – ela riu, nervosa, notando que Debra também prestava atenção. – Vocês sabem... foi... foi. – Foi o quê, Kiki? Onde, quando, como e principalmente com quem? – Onde: em um motel. – ela respondeu, com calma. – Quando: três semanas antes de embarcar para a Bavária, no começo das filmagens. “Como” é dispensável, já que vocês dois entendem disso muito melhor do que eu. – Nada disso, lindinha. Você vai contar tu-do! – Aqui não. – Aqui e agora, Kiki. – protestou Debra. – Como você pôde ficar todo esse tempo sem nos dizer? Kirsten baixou os olhos. Embora há muito tempo estivesse ensaiando aquela conversa, as palavras lhe faltavam e o ambiente “público” lhe incomodava. Começou balbuciando algumas frases sem sentido. – Não enrola, Kiki. – A única parte que interessa é que foi bem especial. Ta legal? E... – ela mordeu os lábios. – no dia seguinte fizemos de novo, na casa dela. – A tal arquiteta, não é? – adivinhou Debra. – Bem que eu vi que você andava saltitante por aqueles dias. – disse Richard, conduzindo as duas garotas até o caixa. – Quer que mande embrulhar? – perguntou a assistente da loja, solícita, aparecendo novamente ao lado dos três.
– Não será necessário. – Richard tomara as rédeas de tudo, com uma postura séria que era inédita para suas amigas. – Ela sairá daqui usando. – Como? – a assistente logo se deu conta. – Ah, perfeitamente, como quiserem. Por favor, me acompanhem. – Kiki, agora vamos a um belo salão ajeitar essa sua cara de marota... – De jeito nenhum! – Richie, estamos muito atrasados. – disse Debra. Richard imediatamente apanhou dois estojos que ficavam disponíveis perto do caixa e pediu para acrescentá-los ao montante. – Tudo bem, acho que eu mesma posso fazer isso, se o taxista não correr demais e se tivermos iluminação suficiente. – ele mirou a assistente. – Vocês, por acaso, não vendem luminárias? – Não... – a moça estava completamente tonta com os três adolescentes. – Rezemos para o vidro não ser filmado. Kirsten pagou a conta e viu Richard atrás de si arrancando as etiquetas da roupa. Entraram no táxi e ele começou seu trabalho, com as mãos trêmulas. – Richie, é im pressão minha ou você disse “eu mesma” ao invés de “eu mesmo” lá dentro? – recapitulou Debra. – Amiga, depois de entrar nessa loja a minha vida mudou. – ele puxou o queixo de Kirsten com pressa. – Fecha os olhos, lindinha. Isso... isso... agora abre e olha para cima. Pára! Continua olhando para cima, Kiki. – Isso dói. – É o preço de ser uma mulher deslumbrante. Todas nós pagamos um dia. Graças à Deusa seu cabelo é naturalmente perfeito, só precisa tirar de trás das orelhas... assim! Em rápida análise, cercado por contra-regras e cabos, Richard cochichou ao ouvido de Debra que Kirsten se saíra bem ao ter de entrar no palco do talk show andando sobre os saltos que ele escolhera. Aquele dia agitadíssimo foi apenas o primeiro de uma série que eles viveriam juntos, até que a carreira de Kirsten ficasse complicada demais para ser administrada apenas pelos três, como se fosse uma brincadeira adolescente. – Ela ta linda. – disse Debra, extasiada. – Acabamos de perder a nossa garotinha. – disse Richard, arrepiado.
– Ela já repetiu que não quer nada disso. – Olha para ela, Debby. Ela nunca se sentiu tão poderosa e a conhecemos mais do que o suficiente para saber que está adorando.
(até o próximo capítulo)
Notas Finais: vai parecer um comentário cheio de segundas intenções, mas não é... escrever isso me deu saudade de fazer teatro! Voltar para o índice Um Dia Especial escrita por Sara Lecter Notas do Autor: capítulo sem betagem (pressa), se alguém achar um erro, avisa!
“Tenho a dizer que nossa existência não pode ser contada nem medida em padrões comuns. Acredito, sobre todas as coisas, que temos longos períodos de inércia completa, pontuados por dias em que tudo parece acontecer ao mesmo tempo; meses em que até o nada nos cansa e raros segundos onde podemos esquecer de respirar sem que isso nos faça mal. Portanto, não vou mais contar a minha vida pelo número de vezes que o sol nasceu, brilhou e depois se pôs no horizonte, mas pela intensidade dos dias em que me encontrava ocupado demais para notar esse magnífico espetáculo da natureza.”
Autor desconhecido
Capítulo 03 – Um Dia Especial
Richard, Debra e Kirsten se encontravam ao redor de uma mesa com taças de champagne e velas já bastante consumidas, à meia luz, levemente entorpecidos e bem menos eufóricos que durante o jantar. Kirsten dispensara a cozinheira assim que o prato fora servido e nos últimos minutos abandonara a conversa para se concentrar em observar o display de seu celular. – Contando os segundos, é? – brincou Richard.
– Nem acredito que nossa caçula vai fazer dezoito. – Debra sorveu mais um gole logo depois da frase. – Qual a primeira coisa que pretende fazer depois da meia-noite? – Ainda não pensei. Mas a última que farei antes é ligar para o Phill. Debra e Richard trocaram um olhar apreensivo. – Desde quando voltaram a se falar? – perguntou o garoto. – Não voltamos. Ele ligou mais vezes depois que soube da repercussão do filme do que fez a vida inteira. Mas eu nunca atendi. – Por que não nos contou? Kirsten respirou profundamente. Selecionou o número em sua agenda de contatos e aguardou a chamada com os olhos cerrados. – Phill? (...) Não, ainda não é meia-noite em Nova Iorque. (...) Pode parar por aí, você não vai falar, vai apenas me ouvir, ok? (...) Daqui a três minutos eu estarei completamente livre de você. Eu quero que se lembre disso. Quero que pense nisso se, porventura, quiser me ligar de novo algum dia, pois eu duvido que vá aparecer. Eu quero que você saiba que não pretendo ter mais qualquer ligação com você. Assim que desligar esse telefone, eu esquecerei o seu nome, esquecerei quem você é e, se um dia me perguntarem algo, fingirei que não lhe conheço. E você vai fazer o mesmo com relação a mim. Essa é uma decisão irrevogável que tomei há muito tempo e pela qual você deveria estar esperando. (...) Isso é um adeus. Ah, e antes que eu esqueça da última coisa: eu desejo, do fundo do meu coração, com todas as minhas forças e sem o menor vacilo, que você seja profundamente infeliz, até o último dos seus dias, seu canalha arrogante, seu lixo! A garota desligou o telefone e ficou, por algum tempo, encarando o aparelho. Não chorou, embora algumas lembranças dolorosas lhe tivessem ocorrido no momento. Debra e Richard respeitaram seu silêncio. Foram pegos completamente de surpresa, mas não estavam chateados. Phill Krenddler era o jovem tio de Kirsten, por parte de mãe, que ficara com metade de sua herança em troca de nunca ter cuidado dela, como era oficialmente a sua obrigação desde que a garota tinha quatro anos. Ele morava em Monte Carlo, era solteiro, sem filhos e muito fotogênico – e isto era tudo que Debra e Richard sabiam sobre ele, pouco menos, na verdade, do que a própria Kirsten sabia. Cinco minutos depois da meia-noite, Richard e Debra começaram a cantar o parabéns e Kirsten voltou a sorrir, como se nada tivesse acontecido. Cumpriu a promessa ao pé da letra e nunca mais pensou no homem para quem telefonara, tampouco teve notícias dele.
333
Amanda usou o primeiro depósito da Companhia Oliver Townsend para cumprir uma promessa. Tomou um ônibus para Washington na primeira hora da manhã e caminhou pela cidade antes do almoço, com apenas uma mochila nas costas e uma câmera fotográfica. Tinha um endereço anotado em um bilhete que guardava no bolso de trás da calça e seguiu para lá depois de comer um sanduíche, completamente sozinha, observando as pessoas a sua volta e tentando apreender de cada uma alguma coisa que usaria no palco, um dia. O escritório era pequeno, muito bagunçado e talvez até mesmo sujo, mas em dois segundos, Amanda se sentiu à vontade entre as pessoas que a receberam. Explicou quem era, o que fazia e como chegara até ali. Aquela sala única era a sede física de uma proeminente organização que se articulava pela internet, discutindo, planejando e executando ações afirmativas de luta por direitos humanos e liberdade de expressão. Infelizmente a organização era muito mais famosa por seus protestos que algumas vezes resultaram em violência e detenções. Amanda voltou para Nova Iorque no mesmo dia, deixando para trás um envelope com o montante do primeiro pagamento que recebera como atriz. Prometera doar tudo, cada centavo, há muito tempo. Quando chegou aos camarins da Companhia Townsend, à noite, tinha um brilho desconhecido nos olhos, um orgulho quase incontido, de quem sabia que vencera apesar de passar muito tempo ouvindo de pessoas importantes para si que aquele era um sonho impossível e principalmente inadequado. Ela não conseguia acreditar que em pleno terceiro milênio ainda havia pessoas que enxergavam atrizes com preconceito. Não conseguia acreditar que fora criada por aquelas pessoas. – Amanda, por onde você andou? – Oi, Oliver. – ela sorriu sem graça para o empresário. – Minha mãe adoeceu. – mentiu rapidamente. – Sei... – ele não acreditou nem por um segundo e deixou isso bem claro em sua expressão, embora tenha deixado o assunto morrer. – Ouça, você e aquela sua amiguinha ficaram no segundo grupo, não é? – Gail. Sim, ficamos. – Eu estou montando uma peça boa, no grupo principal. Fui dar uma olhada hoje e procurei por você... não sei porque cometi esse engano, minha assistente logo me corrigiu, informando que você ficou para o grupo de apoio. – Oliver indicou uma poltrona em sua sala, mas Amanda preferiu continuar em pé, não gostava de parecer à vontade na sala dele. – Eis o que eu pensei: por que não apostar na garota do teatro comunitário de Soho? – Oliver, eu... – Não, não, não diga nada ainda. Há um segundo motivo. A garota que escolhi para fazer Christine é temperamental demais. Já estrelou três peças minhas, todas foram um sucesso, mas acho que começo a me cansar dela, sabe?
Amanda apenas balançou a cabeça, indicando que estava ouvindo. “Então eu tinha dois problemas nas mãos: achar um lugar para você no grupo principal e substituir a estrela da Companhia. – ele sorriu, notando que Amanda mal podia respirar. – Que lhe parece? – Surreal... – ela disse, envergonhada, sentando-se na poltrona por dois segundos e se levantando em seguida. – Oliver... – Não pense que é uma boa notícia. O elenco ensaia há dois meses, muitas horas por dia, mais do que você vem fazendo aqui. Também não posso te pagar mais do que combinamos porque você assinou um contrato de seis meses como atriz iniciante, depois disso conversamos. Esta Companhia é famosa pela excelência, Amanda, você será cobrada como nunca pensou que seria... quando a notícia se espalhar, choverão bajuladores no seu camarim, e você terá um só para você, mas se você não for bem no palco, ninguém aqui dentro vai poder te proteger. Nem mesmo eu. Aliás, Amanda, eu serei o primeiro a te chutar pela porta dos fundos e a esquecer o seu nome antes do sol nascer de novo. – É uma oportunidade que eu não esperava ter tão cedo. – Se der certo, sua carreira decola. Se não der, você nem poderá dizer que teve uma. – ele sorriu ao ver que ela estava sem ação. – Bem, alguma coisa que queira dizer? Ela falou o mais rápido que pôde, com medo de um vacilo impedir que a frase saísse de seus lábios: – Quero Gail no grupo principal, também. Sozinha, eu não mudo. – Garota, você não está em condições de negociar. – disse Oliver, acendendo um cigarro. – Tudo bem, eu posso esperar mais alguns anos para isso. E você pode ficar com os ataques de estrelismo da outra, enquanto isso. Ouviram uma batida na porta e somente por isso Oliver não gargalhou de satisfação. – Aprende rápido, Amanda. Gail, certo? Há uma vaga para ela, será arranjado. – ele andou até a porta e a abriu devagar. – Agora me responda: você gosta de cantar, Amanda? – Amo. Uma terceira pessoa entrou na sala de Oliver, mas Amanda não quis olhar diretamente para ela, antes de ser apresentada. – Não se preocupe, Oliver, eu a espionei a semana toda, com o violão nos intervalos. Falta técnica, é verdade, mas o timbre é adequado e a voz... – a estranha
retardou o fim da frase, esperando que Amanda a olhasse nos olhos, mesmo que fosse por curiosidade. - ...é a mais doce que eu já ouvi. – Amanda, conheça uma grande amiga minha, Tina. Ela levou mais de dez segundos para terminar de interpretar a frase de Oliver, que apesar de tudo, era simples. Tina era uma mulher intimidadora, tinha olhos claros que contrastavam com a pele morena e os cabelos escuros, quase tão negros quanto os de Amanda. Como se seu olhar intenso já não tivesse deixado a garota desconcertada, Tina ainda trazia um decote vertiginoso, realçando sua pele entre um conjunto de saia e blusa escuros, muito justos. Não precisaria, mas o salto marcava seus passos quando ela entrou na sala do produtor. – O... oi. – balbuciou. Oliver Townsend explicou à Amanda que Tina lhe daria aulas de canto, que ajudariam na composição da sua nova personagem. Amanda balançava a cabeça em concordância, mas tinha uma vontade crescente de sair correndo daquela sala. Tina não tirava os olhos de si e aquilo já estava passando do aceitável quando Oliver deixou a sala e as duas ficaram sozinhas. – Amanda Roberts... “cria” da Stella, me diss eram. Como está ela? – Muito bem. – respondeu Amanda, insegura. – Stella e eu já trabalhamos juntas. Fomos muito próximas em determinada época... – Tina falava devagar, dando a Amanda tempo para conjeturar so bre o verdadeiro significado de terem sido “muito próximas”. – Se ela e Oliver dizem que você é incrível, não me preocuparei em fazer nova avaliação. – Ah... ta. – Está tensa, Amanda? Posso te chamar de Amanda, certo? – Claro. – Por que não me fala de você? Onde aprendeu a cantar? O que já fez? O que espera de uma professora de canto? “Espero que você não se vista sempre assim ou não pode rei me concentrar nas aulas” pensou Amanda, embora tenha respondido com um sorriso e começado a contar como fora parar no teatro por causa do namorado, sendo a música o seu verdadeiro sonho de infância. Estava ficando tarde e Amanda não conseguia encontrar o momento adequado para interromper e alegar que deveria ir embora. Apesar de tudo, acabara se sentindo à vontade na presença de Tina, logo que descobriram gostos musicais semelhantes e que a mais velha demonstrara tato ímpar para criticar Amanda onde ela ainda não desenvolvera sua potencialidade. O telefone da jovem tocou e, vasculhando a mochila, ela ouviu uma frase de Tina que não tinha nem de longe um tom interrogativo.
– Você janta comigo. Amanda engoliu em seco, olhou para o aparelho e atendeu, constrangida. – Gail? (...) Estou na Companhia ainda, Oliver queria falar comigo. (...) Eu sei, é uma longa história, eu fui para Washington. (...) Sinto muito, eu precisava fazer isso sozinha. (...) Desculpe, não posso. (...) Eu realmente não posso. (...) Não fica chateada, eu tenho de ir para a casa do Fred, depois. (...) É aniversário da avó dele. (...) Não posso fazer isso hoje. (...) Não fala comigo assim. (...) Está bem, nos falamos amanhã. Chegue mais cedo, você está no grupo principal da Companhia agora. E não precisa agradecer, só falei para você parar de achar que não lhe trato como prioridade. (...) Tchau. – Problemas? – Tina arqueou as sobrancelhas, como se tivesse decifrado cada frase dita por Amanda. – Não... nada. Olha, Tina, ta tarde e eu – você deve estar faminta. Conheço um restaurante ótimo, aqui perto. Não se preocupe, eu estou de carro, te levo para onde você quiser, depois. Amanda relutou, mas quando deu por si, estava no carro de Tina. Seu estômago roncava de fome, sua cabeça estava confusa e seu coração parecia mais perturbado que nunca, para não falar em outra parte do seu corpo que reagia a cada olhar de Tina. “O que está acontecendo comigo?” Amanda balançou a cabeça, vendo a Broadway do lado de fora. Era inocente demais para perceber os sinais logo de cara, mas depois de certo tempo, compreendeu tudo de maneira simples: Tina estava dando em cima dela. Tão simples... se fosse um garoto, ela teria percebido no primeiro olhar, mas o fato era que o inesperado a pegara desprevenida. Não sabia o que dizer se Tina fosse realmente direta durante o jantar. Começou a ensaiar desculpas: eram colegas de trabalho, a diferença de idade, uma dor de cabeça que fosse... Escolhiam a entrada, separadas pelos cardápios, quando pela primeira vez ocorreu à Amanda que o fora mais simples que poderia dar era dizer que era comprometida. “Por que não pensei nisso antes?” – Não precisava ter me trazido aqui. Eu poderia comer algo na rua, ou... – Eu gosto deste restaurante, sabe? – disse Tina. – Ele tem alguma coisa que me faz sentir bem e quando te chamei para me acompanhar, não consegui pensar em qualquer outro lugar. Mágico. Amanda sentiu seu rosto começar a ficar vermelho. Sorveu o vinho pedido pela mais velha, depois mais um gole, e outro. Levou tempo demais para descobrir que aquilo era ainda pior, não ajudaria em nada. – Tina, eu preciso ir. – disse, depois do último prato. – Claro.
Tina pediu a conta imediatamente e não deixou Amanda chegar perto da mesma. “Eu a convidei, eu pago”. Quando deixavam o restaurante, ainda na porta, Amanda notou a mão de Tina tocando suas costas. Um arrepio correu seu corpo inteiro e seus músculos se tencionaram ainda mais quando ela se deu conta de que, com a mão ali, Tina havia percebido a alteração em sua pele. Prendeu a respiração, tentou buscar alguma sanidade dentro de si e entrou no carro, depois de Tina lhe abrir a porta gentilmente. – Como sabe para onde ir? – perguntou Amanda, que não dissera exatamente onde morava. – Se importa se passarmos em um lugar? Eu juro que é rápido e não sairemos da rota. – Tina pediu com uma voz irrecusável, sem tirar os olhos da rua. Não foi rápido e tampouco estava dentro da rota. Amanda comentara alguns de seus gostos durante o jantar e Tina, fingindo precisar ir até o banheiro, arrumara ingressos para um show exclusivo. Tinha muitos contatos e a maioria deles lhe devia grandes favores. Não custava começar a cobrar os primeiros. Assim, Amanda se pegou sem fala e sem ar ao entrar no camarim de sua banda favorita achando que encontrariam um amigo de Tina que a chamara até ali com urgência. – T... Tina! Meu Deus! – Desculpe, meu amigo não está... acho que me enganei... – ela falou, brincando com a mais nova. – Isso é... incrível! Meu Deus, eu não quero dormir, eu quero que esse dia dure para sempre! – abraçou Tina sem pensar, passando em seguida para os seus quatro ídolos, que pareciam menos enfadados que o normal em dar atenção a uma fã adolescente. Assistiram o começo do show e assim que Amanda mudou de expressão, deixando a outra notar que ela se lembrara dos compromissos que tinha, Tina a conduziu de volta ao carro. – Você disse que não quer dormir hoje... tem certeza que quer que eu te leve para casa? Amanda prendeu a respiração. Não fugiu dos olhos da outra. Tina acabara de fechar a porta e colocar a chave na ignição, mas não dera a partida, virandose para ela e disparando a proposta, que foi respondida quase de imediato: – Você me ouviu ao telefone, eu tenho de ir para a casa do meu namorado. – respondeu séria como nunca, devolvendo o olhar intenso de Tina. – Namorado? Rapaz de sorte... – ela acariciou a face de Amanda com uma das mãos. – ele por acaso está à altura de Amanda Roberts? Amanda entreabriu e fechou os lábios algumas vezes, muda. Tina não era nenhuma garotinha pudica e ingênua; era uma mulher, era decidida e estava
completamente atraída pela aluna. Aproveitou a hesitação da outra para lhe roubar um beijo. E depois outro. E antes que Amanda pudesse dizer qualquer coisa, deu a ela um terceiro, que nem Gail e Fred eram capazes de dar, pois eram tão inexperientes quanto Amanda e ainda não sabiam os atalhos a serem utilizados para deixar uma garota completamente entregue sem precisar tocar no seu corpo nem tirar a sua roupa. Sem chances de perder a viagem, Tina não levou Amanda para a casa do namorado, mas para o seu próprio apartamento; e uma vez lá dentro, levou a aluna para a cama. Saber que aquela era a primeira noite de Amanda com uma mulher deixava Tina ainda mais ansiosa, mas a ciência de que as duas passariam muito tempo juntas na Companhia Townsend a fez se controlar até o limite e usar todas as suas armas para tornar aquele momento longo e perfeito – em fato e na memória da jovem atriz.
(até o próximo) Notas Finais: capítulo muito grande, a cena da Tina com a Amanda fica para o próximo... e não, isso não foi de propósito para deixar na vontade. Voltar para o índice "Gaydar" escrita por Sara Lecter Notas do Autor: criancinhas, não leiam esse capítulo não... “Ela [Lindsay Lohan] não deve assumir até chegar na idade da Jodie Foster. Se essa garota assumir que é sapa agora para quem quiser ouvir, vai ter que fazer filme tipo mundo cão. Porque aqueles filminhos bonitinhos com principezinhos e patricinhas não vai colar mais né, executivos de Holly?. Nada contra lésbicas, mais o mundo é cruel..”
Autor desconhecido , cujo nome na internet é “da praia”, escrevendo so bre a recente novela Linsay x Samantha.
Capítulo 04 – “Gaydar”
Amanda largou seu casaco sobre o braço do sofá que decorava a sala de Tina. O apartamento era aconchegante, mas não tinha varanda e Amanda achou que não conseguiria morar em um lugar como aquele. Sorriu, virou-se assim que ouviu Tina girando a chave e percebeu que estava em pânico. – Quer beber alguma coisa? – Tina andou até o bar. – Não bebo. A não ser um pouco de vinho, nas refeições, mas não que seja um hábito.
– Ah, ta. – Tina serviu uma dose de uísque para si. – A gente pulou bastante no show, está com fome? Tenho uns hamburgers e... – Eu... não como carne... vermelha. – Não vai nem adiantar te oferecer um cigarro, né? – Não... – Amanda riu, balançando a cabeça. – Acho que... eu quero ir no banheiro. – À esquerda, no corredor. – indicou Tina. Amanda abriu a porta devagar e suas narinas foram invadidas por um perfume agradável. O banheiro era muito claro, mas tinha leves traços de desorganização. Típico de quem mora sozinha, como Tina. Lavou as mãos, secou-se em uma toalha perfeitamente branca e deu uma checada no cabelo em frente ao espelho. Tina entrou naquele momento, uma vez que Amanda não encostara a porta. Sentiu os lábios quentes de Tina tocando a pele do seu ombro, quase no pescoço, e espiou pelo espelho que os olhos da mais velha estava fixos nos seus, esperando pelo encontro. – Tina... – Eu quero fazer isso desde o primeiro segundo que te vi na Companhia... A voz sussurrada de Tina provocou todos os sentidos de Amanda. Ela poderia jurar que sua alma estava arrepiada com aquele contato. As mãos de Tina a seguraram pela cintura e começaram a subir sua blusa, abrindo espaço para que os dedos da outra acariciassem sua pele, enquanto seus lábios percorriam sua nuca vagarosamente. – Só fomos apresentadas essa noite. – disse Amanda, tentando não demonstrar qualquer alteração na voz. – Eu sei... – Tina lhe provocava ainda mais quando projetava sua voz quase dentro do ouvido de Amanda, em um volume tão baixo que parecia sonho. – Mas eu já estava de olho em você nos últimos dias... escondida na coxia, ouvindo a sua voz durante os intervalos... – Pára com isso. – Amanda tentou se esquivar. – Eu não sei o que você pretende, mas garanto que não vai funcionar. Tina fez dois movimentos rápidos e firmes, e quando Amanda deu por si, a mais velha segurava seus dois braços na altura dos pulsos, com força, enquanto seus olhos pareciam capazes de lhe engolir. – Devo ter me enganado com você, achei que Amanda Roberts não tivesse medo de nada. – Quem disse que eu estou com medo de alguma coisa?
Tina se aproximou novamente, tocando Amanda nos ombros. – Não se preocupe... eu vou cuidar muito bem de você... Amanda se entregou ao beijo. Deixou que Tina começasse a lhe tirar a blusa. Até ali estava muito segura de si, fazia amor com Fred há dois anos e certas coisas não mudavam apesar do sexo do parceiro. Tina tirou a própria blusa, o sutiã, soltou os cabelos e tudo ficou diferente. Amanda pousava suas mãos sobre os ombros da outra e depois de algum tempo, Tina as tomou para si, sem interromper o beijo, e insinuou com um movimento leve que Amanda deveria descê-las. Embora completamente nova, a sensação lhe agradou mais do que qualquer coisa que já tivesse feito até ali. Fechou os olhos e os manteve apertados quando a imagem de Gail lhe veio à mente. Curvou seu rosto, reabriu os olhos e tomou o colo de Tina com vontade, com desejo, com ânsia de levar aquilo até o final, não importava a que custo, precisava saber se era mesmo aquilo que queria para a sua vida. Tina levou Amanda até a cama, entre uma carícia e outra, deitando a mais nova de bruços e percorrendo suas costas enquanto abria a presilha do sutiã. Amanda gemeu baixo pela primeira vez e Tina sorriu admirada, sussurrando no ouvido da outra uma frase que a encorajava a continuar demonstrando o que sentia. Quando lhe foi permitido, depois de muito tempo, Amanda se virou. Tina já estava completamente nua e seus lábios tomaram os seios de Amanda com determinação, embora fosse possível notar que ela estava se esforçando para denotar carinho no que fazia. Amanda apertou os olhos de novo, mais uma vez vendo Gail à sua frente. “Será que ela já fez isso?” perguntou-se, logo se esquecendo do assunto, pois Tina começava a lhe abrir a calça e nem esperara se livrar da calcinha para começar a acariciar Amanda de uma maneira que era completamente nova para ela. Por alguns instantes, Amanda pensou no namorado, que tantas vezes a levara para a cama, mas que em nenhuma delas conseguira lhe deixar tão excitada quanto se encontrava naquele momento. Nunca pensara no sexo com Fred como algo aquém do esperado, ao contrário, sentia-se privilegiada de ter um namorado como ele, carinhoso e engraçado, um amante dedicado com quem ela tinha uma sintonia rara entre adolescentes. E de repente, quando já estava também completamente nua, todas as certezas consolidadas há anos viraram pó, e Amanda se sentiu ridícula não por ter dormido com Fred, mas por ter achado que aquilo lhe bastava. E não bastaria mais. Estaria muito longe disso, na verdade. Tina tomou o clitóris de Amanda entre seus lábios e viu o corpo da mais nova se contorcer quase convulsivamente. Sentiu seu peito inflar com uma adrenalina inesperada... saber que era a primeira vez que Amanda sentia aquilo dava a Tina vontade de nunca mais interromper a carícia... e por essa razão ela quase se deixou levar, mas era experiente o suficiente para perceber os sinais que o corpo da outra lhe davam, e a poucos instantes do orgasmo, diminuiu o ritmo, arrancando um protesto de Amanda, que voltou a abrir os olhos e encontrou a face ansiosa de Tina vindo em sua direção. – Estou louca para ver como você vai reagir quando gozar... – Não é nada surpreendente... – garantiu Amanda, em um fio de voz, abraçando Tina e puxando-a sobre o seu corpo, meio sem entender por que ela havia interrompido na melhor parte.
– Tem certeza? – Tina perguntou, começando a penetrá-la, ao mesmo tempo que seu polegar voltava a estimular Amanda. A resposta foi um gemido incontido, que se repetiu cada vez mais alto. Tina sorriu e aumentou o ritmo algumas vezes, parando sempre que notava que Amanda estava perdendo o controle. Na última delas, Amanda socou os ombros de Tina, raivosa, implorando para que continuasse. Tina riu arrogantemente, curvando-se para alcançar o ouvido da mais nova com os lábios e respondendo em um sussurro com uma frase que Amanda jamais imaginou que seria dita para si – e muito menos que a sua reação seria a melhor possível. Por outro lado, julgou que levaria décadas para conseguir repeti-la sem que seu rosto ficasse vermelho. Bobagem. Quando Tina a levou ao terceiro orgasmo na mesma noite, praticamente sem interrupção, já estava formulando coisas semelhantes, embora não conseguisse raciocinar direito. Amanda desabou sobre o travesseiro, achando que perderia os sentidos a qualquer momento. – Adorei. – disse, simplesmente. – Eu não precisei nem de dois segundos para ver que só uma mulher poderia te deixar desse jeito. Por um instante Amanda quis perguntar como Tina fora capaz disso, mas nem chegou a tomar fôlego, adormecendo imediatamente.
333 Kirsten recebeu uma quantidade razoável de roteiros logo depois do seu aniversário. Preferiu não descartar nenhum, a princípio, mas entre leituras, telefonemas, pesquisas e compromissos profissionais – que envolviam coquetéis e entrevistas – viu seu tempo livre se resumir a nada e decidiu ceder aos conselhos dos amigos que fizera em sua primeira filmagem e contratar um empresário, mesmo que confiasse mais à Richard e Debra a última palavra sobre suas decisões. Seus dois grandes amigos estavam crescendo como ela. Debra terminou o colegial e começou a trabalhar na lavanderia dos pais, completamente indecisa sobre um rumo profissional. Richard se inscreveu em algumas universidades, mas acabou optando por aguardar um tempo e nisso se ocupou como estagiário em uma galeria estética. Começou como mensageiro, passou a fazer serviços bancários e em poucas semanas suas intromissões no trabalho dos outros lhe renderam a fama de ótimo cabeleireiro. Tudo na sua vida passou a ter o objetivo de acumular dinheiro para abrir seu próprio negócio.
Quando finalmente decidiu aceitar uma das dezenas de propostas que recebeu, a primeira coisa que Kirsten fez foi comunicar a resolução aos amigos. Mais uma vez era um papel polêmico e ela teve de agüentar piadinhas e gozações sobre seu inconsciente levá-la a viver nas telas o que não tinha coragem de fazer fora delas. – Vocês dois são péssimos, sabiam? – lamentou ela. O roteiro era intrigante, narrava a história de uma dupla de xerifes aposentados do meio-oeste americano que chegavam à maturidade completamente desiludidos com a lei e com todos os ideais que os guiaram a vida inteira. Dentro de um carro, eles percorriam três estados em busca da juventude perdida. Kirsten se interessou pelo papel de coadjuvante: uma prostituta alcoólatra que cruzara o caminho dos dois e que acabava integrando o elenco da jornada. – Vai dizer que não seria legal não ter casa, endereço, preocupações, contas para pagar... viver um dia de cada vez e ir para onde o vento estivesse soprando? – disse Richard. – Você só esqueceu do detalhe de fazer sexo por dinheiro, Richie. – comentou Kirsten. – Sem poder escolher o parceiro. – Não é tão mal assim. – disse o garoto. Riram por mais algum tempo, aproveitando as poucas oportunidades que tinham, naquela época, para ficarem juntos. Debra reclamou do trabalho o tempo inteiro, ao contrário de Richard, que estava motivado com o seu. Por fim, Kirsten levantou a questão de temer as críticas, uma vez que não se julgava preparada para encarar um papel daquela profundidade. – Você poderia fazer mais alguns cursos, antes das filmagens. Que tal teatro? Dizem que o palco é a melhor escola de atores. – sugeriu Debra. – Nunca gostei de teatro. – O quê? – Richard não podia acreditar. – Mesmo, nunca me atraiu muito. Verei se Jerry consegue alguma coisa para mim. – ela se referia ao empresário que cuidava de sua carreira. Foi inútil resistir, Richard e Debra a levaram até um teatro indicado por amigos. Uma Companhia profissional mantida por um renomado produtor. Ao ver a foto de Oliver Townsend no jornal, Kirsten foi remetida a alguns filmes dos anos 1940, nos quais a Broadway era um ninho de mafiosos de terno risca de giz e charutos eternamente acesos no canto da boca. Ela quase pôde ouvir a música dos cabarés e sentir o ar pesado pela fumaça densa. – Isso é enorme por dentro! – comentou Debra, que fugira da lavanderia dos pais para acompanhar os amigos no “passeio”. – São só os camarins?
– Não, há várias outras salas, algumas para imprensa, outras da administração, armários, essas coisas... – explicou Richard. Quando Kirsten ainda se perguntava como é que ele poderia saber de tantos detalhes, seus olhos pararam em uma garota que acabara de passar por uma das portas, e andava calmamente pelo corredor, de costas para os três visitantes. – Estou começando a gostar daqui... – sorriu a loira. – Animada, é, lindinha? Mal a primeira desaparecera de seu campo de visão e Kirsten passou a reparar em outra, um pouco mais baixa, que carregava dois cabides com fantasias brilhantes. Para essa teve a oportunidade de sorrir discretamente, ao que foi correspondida, mas foi atrapalhada pela indiscrição de Richard, ao seu lado. – Que foi, Richie? – perguntou, chateada. – Olha aquele cara ali! Minha Deusa, que pedaço de homem! – Olhou pra você? – Tive a impressão que sim. – disse o garoto. – Esse lugar é o paraíso. – concluiu Kirsten, maliciosa. – Do que vocês estão falando? – Debra se meteu na conversa. – Olha em volta, Debby. É um desfile de perdições... – disse Richard. – Mas não para vocês, certo? – Errado. – disse Kirsten, mais uma vez encontrando os olhos da garota que sorrira para ela, de longe. Gostava daquele jogo de provocar, mesmo que soubesse que não daria em nada. – Estão dizendo que eles são gays? – Debra fez um gesto amplo, indicando os outros ocupantes do hall de entrada. – A maioria, pelo menos. – disse Richard. – O quê?? – Ok, Debby, acompanha comigo: ta vendo o cara moreno, só de calças? – Aham. – Gay. – disse Kirsten, com firmeza. – Ao lado dele tem uma garota de azul. Viu? Hétero. Mas ao lado dela, a mais baixa, é gay. O cara com os jornais é gay, a
mulher de tailler é gay, o cara com ela é hétero, a menina no corredor é gay e o outro... – Kirsten hesitou. – Richie? – Bixa. Com toda a certeza. – Como é que vocês sabem isso? Conhecem essas pessoas? – Claro que não, Debby. É o “gaydar”, só isso. – “Gaydar”? – “Radar Gay”. – explicou Richard. – Uma espécie de sexto sentido que começa a se manifestar quando encontramos outro “membro da espécie”. Kirsten riu da inocência de Debra. Havia muito mais coisas que os heterossexuais não sabiam sobre os gays – e que a maioria morreria sem saber. Encontraram uma das assistentes de Oliver Townsend logo em seguida, e Kirsten perguntou sobre os cursos, mas acabou não se interessando por nenhum. Quando soube quem ela era, a assistente a levou para assistir o ensaio da peça principal da companhia, que ocorria no palco, naquele momento. Richard e Debra preferiram conhecer os camarins e o trio se separou. Na saída, Kirsten conversou superficialmente com algumas pessoas e se apressou para deixar a Companhia. A loira não tinha como adivinhar, naquele momento, que uma das pessoas que cumprimentara e com quem trocara frases desimportantes era Amanda Roberts, a estrela do espetáculo. Kirsten só se lembraria disso ao ver o rosto da outra em publicações especializadas, mas isso só ocorreria depois das filmagens de seu segundo longa-metragem, para as quais ela passou quatro meses no Texas.
(até o próximo capítulo) Voltar para o índice Da Prática à Perfeição escrita por Sara Lecter Notas do Autor: sem epígrafe, quando achar alguma legal, posto atrasado
Capítulo 05 – Da Prática à Perfeição
Kirsten se atirou sobre a poltrona de seu camarim improvisado, dentro de um trailer. O sol escaldante do deserto confundia seus sentidos. Apanhou uma garrafa de água mineral e bebeu sem copo, com os olhos perdidos em qualquer lugar. Viu sua mala aberta, a qual Richard a ajudara a preparar. Queria se livrar do figurino sujo que trajava, apenas um microvestido preto de alças finas. Seu cabelo estava igualmente imundo, ainda mais claro e em tons de rosa na ponta. Já tirara as botas de cano alto e bico fino que comprimiam os dedos de seus pés. Daria qualquer coisa por um chinelo e um short, mas não trouxera nada daquilo, em reunião com os produtores ficara sabendo que os
bastidores seriam gravados para incluírem uma sessão no DVD do filme, de modo que precisava estar sempre impecável, mesmo fora de cena. Sentia falta de seus amigos, com os quais só falava por telefone. Começava a cultivar algumas relações interessantes com os demais membros do elenco, os figurantes e principalmente o pessoal da técnica, com quem se sentia um pouco menos deslocada, mas mesmo assim, era como se estivesse o tempo todo sozinha, pois sabia que estava fadada a fingir do amanhecer ao momento que adormecia, mesmo longe das câmeras. No trabalho corria tudo bem, estava satisfeita com seu próprio desempenho e ouvia elogios cada vez mais exaltados do diretor, o que a incentivava a cobrar-se ainda mais. Notou que em uma reunião para a qual não foi convidada, algumas alterações surgiram no roteiro e seu papel aumentou. Contou o ocorrido quase às lagrimas, com Richard e Debra no viva-voz, do outro lado da linha, e aproveitou aquele dia para esquecer um pouco do stress e finalmente aceitar o convite de um dos colegas de elenco para jantar. Voltou para o hotel com a cabeça estourando. Acreditava que em geral os homens tinham um número limitado de assuntos e um arcabouço bastante restrito de galanteios – nenhum dos quais funcionava com ela; mas sua companhia naquela noite parecia ser ainda menos criativa. Nas semanas seguintes Kirsten desistiu de tentar se distrair e pensava apenas na sua personagem em cada segundo do seu tempo. Pediu para regravar algumas cenas do começo do enredo e foi atendida depois de alguma insistência, o que lhe rendeu, daquele filme até o fim de sua carreira, a fama de ser perfeccionista até o limite extremo. Quando voltou a Nova Iorque estava cinco quilos acima do seu peso normal – exigência do papel – e com a pele devastada pela exposição ao sol. Richard e Debra a reconheceram no primeiro segundo, no aeroporto, mesmo que ela tivesse alterado sensivelmente seu modo de caminhar e trajasse saltos, calça justa, uma blusa com algum decote e uma manta enrolada no pescoço, que a protegia do ar refrigerado. Seus olhos ainda eram os mesmos, de um verde esmeralda perfeito que era certamente o seu grande cartão de visitas e o detalhe mais comentado na imprensa. – Que saudade de vocês! – confessou, abraçando os dois. – Não podem imaginar o quanto esperei por esse abraço. – Como foi tudo, lindinha? – Normal. Eu conto o que não falei por telefone outra hora, agora quero ir para casa. – Conseguimos algo pelo que você deve estar desesperada, amiga... – Debra sorriu. – Não me diga! – os olhos de Kirsten brilharam.
– Sim... uma festa! Das boas... Enquanto você estava fora abriu uma boate nova, Richie e eu já fomos duas vezes. – É o lugar perfeito para nós, lindinha! – vibrou Richard. – Você vai ficar sem fôlego com as garotas de lá! – Ah, assim espero! Não consegui grande coisa nessa viagem. – lamentou ela, seguindo os amigos até o táxi. – Que bobagem, as texanas têm ótima fama. – Que se comprova na prática. – comentou Kirsten. – O problema era que em todo lugar que eu ia, tinha alguém do filme por perto. Eu só consegui ir a um bar GLS porque fiquei íntima do assistente do diretor e fiz uma ceninha “curiosa” como desculpa. – E aí? – quis saber Debra. – Simples, Debby, fingi que não gostei, que queria ir mais cedo para o hotel e saí pelos fundos. – Saiu? Sozinha? – Lógico que não. – ela sorriu, já dentro do táxi. – Upper East Side, por favor. – disse ao condutor, depois voltou ao assunto com os amigos. – O cara que foi comigo estava tão distraído com um dos go go boys que não notou nada. – Como ela era? – quis saber Richard. – Ah, normal. Bonita, mas não deslumbrante, mais baixa que eu, mas não muito, tinha aquele sotaque de lá... – E na cama? Kirsten quase se engasgou. – Você vai mesmo direto ao assunto, hein? – Oras, vamos pular etapas, lindinha. E aí? – Normal. – ela respondeu, sentindo seu rosto corar. – Como “normal”? Quem fez o quê primeiro, o que você sentiu, o que ela falava para você, como foi o depois, dormiu com ela ou foi embora, disse o seu nom – chega, Richie. Eu não vou falar essas coisas. Não em um táxi e não sóbria. – ela riu. – Por outro lado, tenho uma história interessante.
– Já sei. – antecipou Debra. – O tal ator que estava dando em cima de você. – Isso mesmo. – Kirsten bufou. – Amiga, eu tenho pena de você, porque, sério, homens heterossexuais são simplesmente insuportáveis. – Não seja tão generalista, Kiki. Ele é bonito pessoalmente? – Lindo. – admitiu Kirsten. – Um rostinho perfeito para Hollywood. – ela pensou por alguns instantes. – Você perguntou “pessoalmente”, conhece ele de algum lugar? Kirsten notou que os amigos ficaram em silêncio e insistiu, até que Richard resolveu falar: – Saíram algumas notas, por aqui, sobre um suposto romance entre vocês. – Por que não disseram antes? – Sabemos que você detesta isso. – Um boato ou outro me ligando a um homem, de vez em quando, pode até ser bom. – disse ela. – Que bobagem, Kiki. – Bobagem é deixar a imprensa descobrir alguma coisa. Minha carreira seria enterrada a sete palmos antes mesmo de começar. De qualquer modo, espero que os boatos cessem por aí. Não gosto de especulações sobre minha vida pessoal. Aliás, estou determinada a nunca falar sobre isso em público. Jerry me apoiou, disse que é o mais sensato antes de fazer 21. Richard e Debra trocaram um olhar cúmplice, que foi percebido por Kirsten. – É, nem um papel de prostituta deixou nossa melhor amiga menos “certinha”. Ela fechou a cara por algum tempo, mas a ânsia de contar as novidades aos amigos era maior e com isso ela ocupou o resto do seu dia, antes da festa, na qual expurgou todos os acontecimentos que cercavam as filmagens recentes. Era um ritual para voltar a ser a garota calma que crescera em um sobrado e conhecia o padeiro e o florista da esquina pelo nome.
333 Amanda mal podia acreditar no que tinha acontecido quando acordou. Sentiu o perfume inebriante de Tina e abriu os olhos devagar. Estava sozinha. Havia uma toalha recém usada pendurada em uma poltrona e algumas roupas jogadas sobre ela. Julgando que aquilo era um sonho muito estranho, Amanda esfregou os olhos, mas a imagem do quarto de sua professora de canto não se dissolveu. Percebeu que estava nua e viu algumas de suas roupas espalhadas ao redor da cama. Apanhou e vestiu peça por peça, ainda tonta. Achou um bilhete sobre o criado mudo e descobriu que havia café pronto na cozinha, mas não tocou nele, seguiu as instruções escritas, apanhou o botão de rosa que acompanhava o pedaço de papel e deixou o apartamento, levando a chave consigo. Chegou atrasada na Companhia de Oliver Townsend e despertou a ira dos diretores que cuidavam da montagem principal. Logo no primeiro dia, percebeu que não era vista com bons olhos pelos demais membros do elenco. Gail estava entre eles, interrogativa, e quando abordou Amanda ouviu da outra que o jantar de aniversário com a família de Fred fora até muito tarde e que não tivera, mais uma vez, uma boa oportunidade de terminar o namoro. Fred deixara uma dezena de mensagens na caixa postal de seu celular, e ela ainda formulava uma boa desculpa para lhe dar quando viu Tina pela primeira vez naquele dia, atravessando o corredor dos camarins. – Amanda! Como vai? – a mais velha a cumprimentou com entusiasmo. – B... bem. Oi... Tina se aproximou perigosamente, assim que o corredor ficou vazio. – Não consigo esquecer nossa noite... – disse Tina. – Sua chave. – entregou Amanda. – Temos aula depois do seu ensaio, porque não fica com essas? Eu tenho uma cópia. Antes que Amanda pudesse sequer pensar em uma resposta, Tina lhe deu as costas e entrou na sala de Oliver Townsend. A jovem atriz acabara de arranjar um novo problema, mas por algum motivo esse último lhe despertou um sorriso. Fred não ficou nada satisfeito com a alegação da namorada de que estaria ocupada demais nos próximos dias, mesmo assim, a cumprimentou por ter conseguido um bom papel logo depois de entrar na nova Companhia. Ele continuava como voluntário no programa comunitário de Stella e aguardaria uma nova oportunidade. Gail notou alguma diferença em Amanda, mas não queria pressioná-la, com medo de perdêla ainda antes de tudo ficar bem. As duas garotas lanchavam juntas e passavam partes do texto da nova peça no camarim de Amanda, oportunidades nas quais trocavam beijos e carícias que começavam a ficar mais ousadas, dia após dia.
Todas as quartas e sextas-feiras Amanda se livrava dos dois e batia à porta de Tina, muito embora as aulas de canto estivessem evoluindo pouco. Com o tempo Amanda aprendera a se controlar e a não ficar com o rosto vermelho quando Tina cochichava alguma obscenidade quando as duas se esbarravam pelos corredores da Companhia. – Você parece preocupada hoje... – comentou Tina, logo depois de trocar um longo beijo com Amanda ainda na porta. – Nada sério. – respondeu a mais nova, entrando no apartamento da professora. – Gail? – perguntou Tina, casualmente. Amanda se viu paralisada, o que Tina percebeu imediatamente, dando a outra um sorriso amigável. “É o jeito que ela olha para você, não tem como não notar. Vocês duas vieram da Stella, você barganhou a vaga dela no grupo principal... Mas diga, o que aconteceu? – Acho que... que ela... – Amanda se confundia com as palavras porque Tina já avançara por seu pescoço e começara a abrir os botões de sua blusa. - ...tentamos transar uma vez, não deu muito certo, resolvemos esperar. – E agora ela quer? Se soubesse como você é gostosa, aposto como ela não teria esperado. – Pára! – Amanda riu, desconcertada. – Bem, é isso. Eu estou com medo de dar errado de novo. – Gail parece o tipo romântico, arranje um lugar legal, leve-a para jantar, faça algumas coisas que ela gosta, você deve saber se virar com isso. São amigas há quanto tempo? Dois anos, três anos? – Aham. – Amanda não conseguia sorrir. A idéia lhe apavorava. – Garota, você tem um potencial muito grande, sabia? Só precisa confiar em si mesma. – Às vezes eu queria ser um pouco como você. Você parece que não tem medo de nada, que entende de tudo, que... Tina gargalhou. Voltou a beijar Amanda, com um sorriso orgulhoso. Depois de um tempo, tirou a própria blusa – ainda que mesmo com ela parecesse seminua – e sentou-se de frente para Amanda, no seu colo. – Eu pareço segura, é? – ela mordeu o lábio inferior de Amanda antes que a outra confirmasse. – E você gosta disso? – perguntou, provocante.
– Você não me dá tempo nem para respirar! – São apenas uns pequenos detalhes que você nunca pode esquecer... – disse Tina, tirando a blusa de Amanda e baixando as alças de seu sutiã. – Olhe sempre nos olhos. Sempre. Desde o primeiro segundo. Nunca deixe qualquer dúvida do que você quer. Quando puder, vigie os lábios dela e dê a impressão de que você os deseja mais que qualquer coisa. – Isso é loucura, Tina! Ninguém pode ser tão atirada e não daria certo. – Pois eu garanto que sempre dá certo. Amanda desistiu de manter a conversa depois que Tina tomara seus seios com a boca e gemia sussurradamente, insinuando seu corpo sobre o da mais nova. “Vem pra cama comigo...? – pediu a professora. – Espera. – Vem...? – ela forçava uma voz doce e praticamente irresistível. – Espera, Tina. Eu... – ela tomou coragem e falou tudo de uma vez. – Quero que você me ensine a fazer o que você faz. Tina sorriu. Saiu do colo de Amanda, se levantou e lhe estendeu a mão. Amanda a seguiu até o quarto e ouviu atentamente tudo o que a outra dizia. Sentiu-se ridícula em determinados momentos, tendo absoluta certeza de que fazia tudo errado, mas Tina parecia estar sendo bastante sincera sempre que gemia indicando que a mais nova deveria continuar. Assim como também não perdia tempo em alertar que alguma coisa estava fora do esperado. Amanda se concentrava tentando imaginar Gail sobre a cama, tentando traçar um roteiro que poria em prática com a garota, por isso seu esforço se dividia entre aplicar as dicas de Tina e memorizá-las para usar em outra oportunidade. – Você tem o dom nato, Amanda... – sussurrou Tina, depois do orgasmo, que demorara mais do que ela esperava, mas tinha um gosto especial por saber que Amanda nunca tinha feito aquilo. – ...só precisa de prática. – Acho que isso não será problema, não é mesmo? – Amanda se deitou sobre Tina, insinuante, olhando-a nos olhos com determinação. – Garota, você é a melhor aluna que eu já tive. E não estou falando sobre música... Transaram a madrugada inteira e Amanda chegou atrasada no ensaio mais uma vez. Oliver a chamou para conversar algumas vezes, mas ela parecia ter desenvolvido uma técnica infalível de se livrar da ira do chefe. Tina lhe dera a dica. Se no primeiro encontro Oliver dera em cima dela, Amanda vira a oportunidade de mudar as coisas sem precisar ceder a ele; Oliver perdera uma filha de forma trágica, e ela teria a idade de Amanda não fosse o maldito acidente pelo qual ele se julgava responsável.
De saber disso até usar a situação a seu favor, foi um passo muito pequeno para Amanda Roberts.
(até o próximo) Notas Finais: minha leitora crítica, que não é sócia do Nyah!, mas lê meus escritos na mesa do café, disse que a Tina é uma projeção de Sara Lecter com 35 anos. Minha resposta: não vai demorar tanto assim... hihihi brincadeiras à parte, já temos a primeira referência rastreada... a inspiração para o segundo filme de Kirsten veio do Thelma & Louise, embora seja uma versão oposta. continuem tentando... hihihi bjs Voltar para o índice Segundas Intenções escrita por Sara Lecter
Capítulo 06 – Segundas Intenções
Como intérprete da personagem principal de uma famosa ópera, na montagem de Oliver Townsend, Amanda estava por um fio. Atrasos, reclamações e indisposições estavam entre as principais queixas reportadas pelos diretores para o dono da Companhia. O poderoso produtor não gostava de admitir, mas não conseguia ser enérgico o suficiente com sua nova-futura-estrela. Pesavam, ainda, os conselhos de Tina, sua melhor amiga, que considerava surpreendente o crescimento de Amanda nos poucos meses de trabalho para Townsend. Havia, no começo, um segundo problema, mas Amanda tratara dele pessoalmente. Depois daquela noite em que Tina lhe dera preciosas dicas de como proceder com outra garota, ela e Gail finalmente foram para a cama. E Amanda finalmente terminou com Fred, embora tenha escondido o fato da bailarina. O elenco da peça, majoritariamente feminino, adquirira aversão à Amanda por ela ter vindo do grupo de acesso e logo entrado no lugar da estrela, mas não foi difícil para Gail perceber entre suas colegas que aquilo estava mudando. Mesmo que Amanda continuasse chegando atrasada, mesmo que continuasse distraída e atrapalhando muito mais do que ajudando na montagem. Gail notou isso principalmente em duas garotas, que eram as mais influentes entre as outras, nos corredores dos camarins. Sabia, por instinto natural, que aquelas duas também eram lésbicas, e que talvez algum dia pudessem ter namorado, mas definitivamente não faziam mais isso, tampouco eram grandes amigas. Gail notava aqueles fatos pela tensão do ar. Era boa em certas coisas, mas as guardava para si.
Phoebe e May eram parecidas demais para que uma relação desse certo. As duas tinham personalidade apaziguadora e ao mesmo tempo, espírito de liderança. Eram a alma e a consciência do grupo principal da Companhia. Nenhuma decisão do elenco era tomada sem passar pela aprovação das duas. – Oi, gatinha. – Gail ouviu um sussurro no seu ouvido. – Que susto, Amanda! – Tava distraída? Pensando em mim, só pode ser! – disse Amanda, abraçando a outra, no corredor. – Não faz isso, eu não gosto! – Não tem ninguém olhando, boba. – Mas eu não gosto. E não gosto que me chame assim. – Gatinha? – Amanda roubou um beijo de Gail e a arrastou para dentro do seu camarim. – Isso é vulgar... você não era assim. – Seria vulgar se você não fosse minha, Gail. – Amanda se atirou sobre a poltrona, em seu camarim, e ficou observando Gail ainda em pé, confusa. – Não deveríamos estar aqui, você tem ensaio! – Posso me atrasar cinco minutinhos para beijar você. – Você já está quinze minutos atrasada! Não era assim lá na Stella, tudo bem que nunca foi um exemplo de responsabilidade, mas aqui você exagera! Não vê que ganhou uma oportunidade maravilhosa do senhor Townsend? – Muitas coisas mudaram desde que saímos da Stella. – Você não precisa se tornar outra pessoa só porque descobriu que é lésbica, Amanda. Podemos fazer tudo do jeito certo, ter uma relação legal, arrasar nessa peça! – Eu também quero isso, Gail. – Amanda se levantou e deu um beijo na testa da outra. – Mas cansei de ficar parada esperando as coisas acontecerem. Pode não parecer agora, mas eu estou correndo atrás do meu destino, está bem? – Onde você vai? – Gail se virou para a porta, notando que Amanda andara até lá. – Você não disse que eu estava atrasada? Estou indo para o meu ensaio. – Amanda mandou um beijo pelo ar para Gail e deixou o camarim.
De fato Amanda cumprira o que prometera e diminuíra os atrasos na peça, estudando estudando melhor seu papel e demonstrando demonstrando que estava estava cantando cada dia melhor. melhor. Mas Gail notava outra coisa também. Olhares. Frases aparentemente sem sentido e risadas que duravam tempo demais. Seu coração não queria acreditar, mas era evidente que Phoebe estava muito interessada em Amanda. Além disso, não era um interesse inicial, inocente... era o interesse de alguém que queria mais. E se queria mais, já tivera alguma coisa. Gail observou a namorada na companhia da outra e não notou qualquer indício de que fosse recíproco. Aquilo a deixou aliviada. Não se importava que Amanda e Phoebe pudessem ter passado uma noite juntas, desde que não se tornasse rotina. Obviamente ela não comentou nada com Amanda, e foi discutir o assunto de verdade, aos berros, quando soube apenas um mês depois, que Fred não era mais um empecilho para as duas. duas. – Como Como é que você pôde me esconder uma coisa dessas!? – Esconder Esconder o quê? – quê? – Amanda Amanda parecia mais ocupada em trocar de roupa do que em ouvir Gail. – Talvez Talvez se eu disser que encontrei o Fred hoje a sua memória seja refrescada! Amanda respirou fundo e se virou para a outra com um sorriso doce. – Ele Ele contou? – Claro Claro que ele contou! – contou! – Gail Gail não entendia o sorriso de Amanda. – Amanda. – E... E... ele ainda ta arrasado, perguntou se eu sabia de alguma coisa... Tem idéia de como eu me senti? Amanda deu dois passos até ficar muito próxima de Gail. Abraçou-a com ternura. – E E o que você disse a ele? – Nada! Nada! O que queria que eu dissesse? Quer dizer, eu falei que você está diferente, que tudo que aconteceu, o senhor Townsend, o papel principal, que isso i sso tudo mexeu com você. – E E mexeu mesmo. – A A não ser o fato de d e ter escondido sobre nós, eu fui sincera com ele. Não sei mais quem quem você é, Amanda. Amanda. – Por Por que diz isso, querida? – Ouvi Ouvi Phoebe e May conversando no banheiro, essa semana. – E E daí?
– Você Você estava atrasada, de novo! Sabe o que elas disseram? – Não Não faço idéia, eu quase não falo com elas. – Ficaram – Ficaram discutindo quem teria sido “a escolhida” da vez. Ficaram insinuando que você estava atrasada porque saiu com alguém! – E E você acreditou nelas, querida? – querida? – Amanda Amanda continuava sorrindo. – sorrindo. – O O que mais elas disseram? – Que Que poderia ter sido a Dana – Dana – Gail Gail se referia a outra garota do elenco. – porque porque te viram conversando conversando com ela na noite anterior. Achei que estavam brincando, b rincando, que não poderia ser sério. – E E não é. Mal lembro da cara da Dana. Nem sei se falei com ela. – Fiquei Fiquei achando que era mentira até Phoebe e May comentarem que você anda fazendo fila aqui na Companhia! – Fazendo Fazendo fila? O que é isso? – Que Que você já saiu com quase todas as lésbicas e que já conquistou até algumas das garotas hétero. Amanda riu e acariciou o rosto de Gail. – Nossa, Nossa, então a minha moral ta alta com aquelas duas! Já imaginou, pegar todo mundo? mundo? – Não Não é engraçado, Amanda! Como é que eu fico, nisso? – Acontece – Acontece que quem “pega” a garota que “faz fila” no elenco é você, sua bobinha. Deveria estar orgulhosa. – orgulhosa. – Amanda Amanda riu de novo. – Eu Eu já não sei mais quando você está brincando ou falando f alando a verdade. Phoebe e May disseram coisas que... que... coisas íntimas sobre você. Amanda prendeu a respiração, mas disfarçou seu olhar para Gail. – Somos Somos uma Companhia de Teatro, intimidade inti midade é inevitável. – Não Não sei mais o que pensar... e agora isso! O Fred! Você está solteira solteir a há um mês e não me contou... – contou... – Gail Gail deixou notar sua tristeza. – Fred Fred estragou a minha surpresa. Eu ia te contar. Não seria hoje, mas depois de amanhã... Guardei o ultimo depósito da Companhia, já fiz a reserva em um restaurante legal, ia te levar para jantar e passaríamos a noite inteira em um hotel cinco estrelas...
Gail mudou completamente de expressão. Só conseguiu falar depois de algum tempo. – Mesmo? Mesmo? – Queria Queria que fosse uma noite especial, inesquecível. Acha que eu não quis vir correndo para os seus braços e contar assim que eu saí da casa dele? Hum? – Amanda beijou o rosto de Gail com candura. – Mas... Mas... – Foi Foi muito difícil guardar segredo, segredo, queria tanto te dizer! Quando fazíamos amor... eu quase perdia a noção e te contava, mas vinha conseguindo me controlar... a muito custo! – Amanda... Amanda... – Shhh... Shhh... não fala nada, gatinha. – gatinha. – Amanda Amanda a abraçou e acariciou suas costas. – costas. – Desculpe Desculpe se eu não cuidei de absolutamente tudo para você ter uma surpresa... Mas ainda tenho a reserva. Fica comigo? Por favor...? Gail esqueceu completamente dos boatos e de suas desconfianças com relação à Amanda. Sorriu satisfeita e encantada, no ombro da outra. Não tinha um bom ângulo com o espelho para ver a face de Amanda, e sabendo disso, a outra pôde respirar aliviada. Fora por muito pouco. E as dicas de Tina acabavam de provar que serviam tanto para conquistar alguém novo, quanto para fazer as pazes e fugir de uma u ma conversa inconveniente.
333 Kirsten não podia acreditar no que tinha t inha em suas mãos. O mesmo jornal que comentava seu bom desempenho nas filmagens no Texas reservava uma coluna detestável repleta de especulações infundadas infundadas sobre sua vida fora dos sets. Amassou as folhas e as jogou na parede. Seu quarto estava uma bagunça e ela não via Richard e Debra havia dias. Na última oportunidade oportunidade em que se encontraram, para para tomar café em em uma esquina, ela teve de ir embora antes do previsto porque notara a presença de um fotógrafo fazendo ginástica para conseguir um bom retrato. Aquilo a irritava profundamente, profundamente, sobretudo porque colocava as as duas pessoas pessoas mais importantes da da sua vida em um mundo que não era escolha deles.
Com o tempo, deixou de sair de casa, mesmo que seu bairro fosse seguro com relação à mídia, uma vez que seu endereço era desconhecido – e e ela se orgulharia muito de conseguir mantê-lo em segredo por muitos anos depois daquilo. Richard e Debra a alertaram de que estava potencializando demais um risco que ainda era incipiente, mas poucas semanas depois de voltar para Nova Iorque ela decidiu viajar mais uma vez. Insistira de todas as formas possíveis – principalmente principalmente por e-mail e telefone – telefone – para para que fosse aceita no elenco de uma nova produção que ainda não começara a ser rodada. Uma de suas últimas cartadas foi estudar o roteiro – roteiro – que que chegara às suas mãos por meio de contatos preciosos que ela começava a cultivar em Los Angeles – e e propor sensíveis sensíveis alterações. Lembrou, Lembrou, por instantes, instantes, do seu sonho sonho adormecido de de se tornar escritora. Enviou o novo arquivo ao diretor, um nome muito reconhecido que já guardava um Oscar na prateleira e angariara recursos astronômicos que lhe possibilitariam dispor do elenco que quisesse. Kirsten recebeu recebeu elogios elogios pela melhora no roteiro, mas o convite para interpretar um dos papéis não veio. Insistiu novamente, sem receios do que o diretor pudesse vir a pensar dela, queria mostrar que estava realmente interessada pela produção e, mais do que isso, que era a única pessoa que poderia levar a cabo o papel de uma funcionária pouco graduada de uma empresa de consultoria bancária que se envolvia em uma grande chantagem chantagem e chegava chegava à presidência presidência de um dos maiores bancos do país, além de se tornar amante do maior acionista do mesmo. Tudo o que conseguiu foi um talvez. t alvez. A promessa de que poderia fazer um teste, mas que enfrentaria a concorrência de nomes de peso da indústria do cinema, nomes muito mais conhecidos que o dela. Kirsten tomou aquilo como um desafio. Se era o nome mais badalado de Hollywood que o diretor queria no seu filme, era isso que ela deveria se tornar. Para a garota que entrara naquele mundo há tão pouco tempo, isso era apenas uma questão de interpretar a personagem certa nos bastidores. Aceitou um projeto mais imediato do dia para a noite. Quando Richard e Debra tiveram notícias dela, estava na Espanha, em uma cidade totalmente nova para ela, hospedada em um hotel sem luxo, l uxo, transformando-se em uma pessoa que não se parecia consigo; consigo; transformando-se na na primeira vilã que interpretaria interpretaria na carreira. Mudou Mudou os cabelos para um tom castanho muito escuro, experimentou diversas lentes de contato até encontrar o tom certo, passou a se maquiar de forma diferente e a treinar o seu olhar para dar sempre sempre a impressão de estar pensando pensando além. Mandou um vídeo para os amigos, pela internet, no qual simulava sozinha uma das cenas a ser gravada. Richard e Debra aprovaram a interpretação, mas o garoto sugeriu que além de mudar o tom, Kirsten deveria ondular os cabelos. Ela obedeceu e, diante do espelho do salão, no dia seguinte, pela primeira vez disse a si mesma que encontrara o papel. Na primeira reunião o diretor não a reconheceu reconheceu de imediato. Vira seu primeiro filme e através de de alguns contatos contatos conseguiu conseguiu as melhores cenas – ainda ainda não finalizadas pela técnica – técnica – de de seu segundo trabalho, gostando do resultado de ambos. Esperava ter de dar muitas instruções a ela, mas achou que o perfil estava perfeito e se surpreendeu quando quando se deu conta de que não trocaram sequer uma palavra em inglês. O
truque fora simples, Kirsten se mudou para Barcelona dois meses antes desse encontro e só se permitia abrir mão do idioma local para falar ao telefone t elefone com os amigos. Passou por maus bocados bocados no começo, começo, mas a necessidade necessidade aperfeiçoou aperfeiçoou seu espanhol, espanhol, que era era antes meramente instrumental. Um filme estrangeiro não era a opção mais fácil, mas Kirsten teve de jogar com as cartas cartas que a sorte lhe dera. Havia apenas apenas um nome no elenco, elenco, além do dela, que já freqüentara os estúdios de Los Angeles. Seu perfil latino – era era natural de Madri – Madri – lhe lhe rendera a fama de galã e sua popularidade crescia a cada novo trabalho. Sebastian Muñoz tinha algum talento, mas certamente era a sua aparência que dava garantia de sucesso a um filme no qual atuasse. Um caso clássico e batido, tão t ão antigo quanto o próprio glamour do cinema. Ele e o diretor do longa eram amigos e trabalhavam juntos pela quarta vez. Kirsten passava as tardes e as noites gravando, dormia de manhã e ocupava as madrugadas na internet, conversando com os amigos de Nova Iorque e procurando desesperadamente desesperadamente por informações sobre a nova grande grande produção produção de Hollywood, para a qual não desistira de ser chamada. Ficaria outros dois meses m eses na Espanha e apesar de não ter o mesmo número de cenas que Sebastian – que que era o verdadeiro protagonista – protagonista – permanecia permanecia sempre no set, enquanto o colega estivesse por lá. As primeiras notas sobre o filme espanhol começaram a sair, a princípio apenas em Barcelona, depois em todo o país e mais tarde algumas tímidas manifestações atravessaram os oceanos. Kirsten lamentou profundamente ao notar que seu nome quase nunca constava em tais comentários. Era sempre Sebastian Muñoz, o grande ator; Sebastian Muñoz, o grande galã; Sebastian Muñoz, a grande atração do filme. – Gostou Gostou da Espanha? – Espanha? – Kirsten Kirsten foi despertada de um de seus devaneios pelo colega de elenco, que tentava ser simpático, simpático, depois de uma boa cena dividida dividida pelos dois. – Um Um belo país. Uma pena que eu conheça tão pouco. – ela ela respondeu, encarando os olhos castanhos de Sebastian. – Uma Uma pena não, um pecado! – Ainda Ainda não encontrei a oportunidade perfeita. – perfeita. – disse, disse, fingindo distração. – distração. – Nem Nem uma boa companhia... – companhia... – Kirsten Kirsten mexia no figurino e observava a reação do colega pelo canto dos olhos. – As As gravações vão dar um tempo essa semana, avisaram você? – Sim. Sim. – Ah, Ah, que cabeça a minha, você é americana, não é? Deve aproveitar para voltar para casa, casa, para ver ver alguma pessoa. pessoa. – Nem Nem uma coisa e nem outra. – outra. – ela ela voltou a encará-lo e sorriu. Sebastian desviou o olhar. Sabia pouco sobre Kirsten, a não ser que ela se cobrava muito e que não raro pedia para repetir a cena, mesmo que o diretor já
estivesse satisfeito. No começo ele se irritava com aquilo, mas depois se acostumou. Acabava melhorando seu próprio desempenho, quando tinha cenas com ela. Sebastian era um homem ocupado e não ficava com o resto do elenco e do pessoal da produção nas horas vagas. Fazia campanhas publicitárias, era empresário e passava muito tempo com a mãe, particularidade de sua personalidade que a imprensa julgava adorável. Tinha uma viagem marcada para aquele feriado e perguntou, em um impulso: – Comprei Comprei um barco e ainda não experimentei. Estava pensando em ir até Málaga, ficar um dia, e voltar antes que as filmagens recomecem. Convidei alguns amigos, por que não se juntar a nós? – Claro. – Claro. – respondeu respondeu ela, sorrindo e arranjando rapidamente uma desculpa para deixar o set. Ao voltar ao hotel, naquele dia, Kirsten sorriu arrogantemente para a própria imagem no no espelho. Não ligou para Richard e Debra naquela noite, nem estudou estudou pela milésima vez as cenas que que gravaria no dia seguinte. Ficou Ficou detida em uma gama de sites de internet especializados na carreira de Sebastian. Alguns deles tinham informações que ela julgava – julgava – a a partir daquele dia – dia – preciosas. preciosas. Só um nome muito conhecido poderia estrelar estrelar o filme que ela queria tanto... por isso Kirsten não viu mal algum em atalhar o caminho da fama.
(até o próximo)
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Capítulo 07 – Precauções Precauções
Kirsten não levou mais que dois dias para ter certeza de que o balanço do barco não lhe causaria enjôos. Passaram a primeira noite ancorados em Denia, à oeste de Ibiza, e Sebastian se aproximou da atriz para comentar que a ilha paradisíaca era um dos lugares que ele mais admirava no mundo. Kirsten era atenciosa com ele com os demais convidados do colega, mas tomava o cuidado de dar a entender que o ignorava com o mesmo esmero que escolhera as roupas e biquínis mais insinuantes de um shopping em Barcelona, antes de viajar. Tomava sol na proa pela manhã e mirava o horizonte, também sozinha, no final da tarde. t arde. Quando atracavam em algum porto, geralmente para o jantar e para não passar a noite noite em mar aberto, ela ela se sentava propositalmente longe longe de Sebastian e mantinha longas conversas com os amigos dele, respondendo apenas monossilabicamente monossilabicamente as indagações i ndagações do anfitrião. Tudo lhe parecia incrivelmente simples quando se tratava de chamar a atenção de alguém.
Ela percebeu que estava dando certo quando notou alguns olhares mais demorados de Sebastian em sua direção, já no dia que passaram na casa de praia do galã, em Málaga. Kirsten nunca fora tão bajulada e bem tratada na vida e não poderia negar que aquilo lhe gerava uma euforia muito parecida com o que ela conhecia como felicidade. Sabia que Sebastian sofria de insônia e, usando a desculpa mais simples e eficaz do mundo – mundo – aa de pegar um copo d‟água – topou – topou com ele na sala, durante a última madrugada antes da volta a Barcelona. Conversaram por muito tempo, sobre assuntos em comum, riram juntos, descobriram opiniões e gostos semelhantes, mas Kirsten voltou para o seu quarto antes que Sebastian pudesse achar que teria alguma chance. O passeio de barco foi comentado timidamente na imprensa espanhola. Havia algumas fotos de Kirsten e as legendas questionavam se seria ela a nova namorada do solteiro mais cobiçado do momento. Ela entendeu que não mencionassem seu nome. O mundo a conhecia loira e de olhos verdes e ela estava completamente transformada para o papel que fazia ao lado do galã. Isso mudou rapidamente quando um tablóide conseguiu identificá-la. De volta de Málaga, retornando ao trabalho, ela já enfrentou dificuldades no caminho entre o hotel e os sets. A curiosidade da imprensa sobre o filme aumentou, mas ela e Sebastian não se falaram por três dias. Tudo devidamente planejado por Kirsten. Ao perceber que suas medidas paliativas surtiram pouco efeito, Kirsten passou à segunda segunda fase do plano. Esperou Esperou até o final das filmagens, que naquele dia foram até tarde da noite, e sentou-se sozinha em um canto escuro do estúdio. Respirou fundo, acionando o máximo de sua concentração. – Kirsten? Kirsten? Ela ouviu a voz de Sebastian e levantou o rosto, secando algumas lágrimas. – Oi. – Oi. – disse, disse, timidamente. Embora seu espanhol estivesse próximo da perfeição, ela forçava alguns tropeços quando estava com o colega de elenco, os quais ele corrigia com bom humor e encanto. – Aconteceu Aconteceu alguma coisa? – Não, Não, não, está tudo bem. – bem. – ela ela disse, embora sua expressão facial denotasse algum transtorno. – transtorno. – Não Não precisa se preocupar comigo, Sebastian. – Ora, Ora, pensei que estivéssemos nos tornando amigos... amigos... – – ele ele se sentou ao lado dela, tomando sua mão. – mão. – Você Você tem o quê... vinte anos? – Dezoito. – Dezoito. – ela ela respondeu, rindo por um instante.
– Nossa, não parece. Quer dizer, eu não estou te chamando de velha, longe disso, e sei que as mulheres odeiam que erremos sua idade, sobretudo quando chutamos para cima – ela riu. – mas você se comporta como uma adulta. – Eu entendi. – De que parte dos Estados Unidos você vem? – Nova Iorque. – Com tanto trabalho por lá, o que faz aqui? – Eu detesto coisas óbvias. – Você é forte, mas vejo que está sentindo falta de alguma coisa. Deve se sentir muito sozinha aqui... – ela voltou a derramar algumas lágrimas. – Esse é só o terceiro filme que você faz, não é? – Aham. – As coisas melhoram depois disso. Ou... pelo menos você se acostuma, eu sei que é uma grande pressão, o seu papel é denso e você tem correspondido tão bem. – elogiou Sebastian. – Desculpe por essa cena, Sebastian. Estou tão envergonhada. – ela riu sem graça e secou as lágrimas. – Foi só um momento de... eu só senti falta de ter alguém para conversar, já vai passar... – Pode conversar comigo sempre que quiser. – ele sorriu, se levantou e estendeu a mão. – O diretor encerrou por hoje, jantamos juntos? – Você deve estar cheio de compromissos, eu vi como é ocupado, os telefonemas em Málaga e... – Tem uma garota que eu adoro precisando conversar e, como eu, provavelmente morrendo de fome. Esqueça meus compromissos pois eu já os esqueci. Faremos companhia um ao outro essa noite. Kirsten lhe deu a mão, sorriu e deixou o set. Não poderia negar que a fama de conquistador de Sebastian tinha algum fundo verdadeiro. Ele era encantador. Semanas depois, quando o final das filmagens era iminente, Kirsten falou com Richard e Debra pelo telefone. Deixara os amigos de lado por algum tempo, mas eles estavam perfeitamente habituados aos sumiços dela quando um filme era rodado. – Lindinha, como você está? – Ótima! Mesmo... As filmagens foram incríveis, o país é lindo. Está tudo bem. E vocês? Alguma novidade?
– Debby levou outro “cano” do italiano... – disse Richard, mas Kirsten pôde ouvir os protestos de Debra, ao seu lado. – e eu continuo inventando penteados cada vez melhores... Como pode perceber, tudo no lugar! Ela riu um instante. – Que legal. Não devo demorar para voltar, temos de marcar alguma coisa! – Ah, é. – Que foi? – Lindinha, tem uma coisa que você precisa saber. Estamos preocupados. – Fale antes que eu tenha um ataque. – Saíram algumas notas sobre você aqui. – ele deu um tempo. – Ok, serei absolutamente sincero, saíram muitas reportagens sobre você. – Isso pode ser ótimo! – ela comemorou. – Não, lindinha. Não são sobre a sua carreira, ou pelo menos não é esse o assunto principal. Estão dizendo que você e o... o bonitão latino... – Sebastian? – Isso! Estão dizendo que vocês estão namorando. Já escreveram que você conheceu a mãe dele, que já viajaram de barco e que não se desgrudam. Já existem boatos de que vão se casar depois que o filme for lançado. Kirsten ficou em silêncio, do outro lado da linha. “Kiki? – Existe um fundo de verdade nisso. – O QUÊ??? – Não vamos nos casar, eu só falei com Elena Muñoz por telefone, mas... Sebastian e eu estamos namorando, sim. – Kiki, você pirou? – Não posso explicar agora, só liguei para ver se estavam bem. Tenho um jantar e já estou atrasada. Sebastian vem me pegar, estamos no mesmo hotel. – Mas ele é homem! Kiki, você nunca nem beijou um homem na sua vida! Quer dizer, a não ser em cena, mas...
– Eu explico quando chegar em Nova Iorque, está bem? Cuidem-se, vocês dois. Até breve. – Kiki? Kiki? Ela desligou o telefone e foi para a internet. De fato tinha um jantar, mas seria mais tarde. Aproveitou para conferir se encontrava mais alguma nota sobre a nova grande produção de Hollywood e ficou aliviada ao ver que o elenco ainda não fora definido. Ainda tinha chances.
333 Amanda andava transtornada pela aproximação de sua estréia. Deixou de se atrasar paras os ensaios e treinava sua voz mesmo nos bastidores, cantando pelos corredores e tentando encarnar sua personagem. Ligou para Stella algumas vezes, pedindo dicas. Ainda confiava muito em sua primeira professora de teatro. Tina a transformara em uma grande cantora, empregando técnica e disciplina ao talento nato de Amanda. Oliver Townsend cuidava dia e noite para que ela tivesse tudo ao seu alcance e para que a peça tivesse grande divulgação; estava apostando seu nome e sua reputação em uma completa desconhecida, mas seu faro – que o levara ao topo como um dos melhores produtores da Broadway – lhe dizia que Amanda não decepcionaria ninguém. Tina entrou sem bater na porta do camarim da jovem atriz e a encontrou em frente ao espelho, prendendo os cabelos negros displicentemente. – Você foi muito bem no ensaio de hoje. – elogiou a mais velha. – Oliver assistiu, em parte. Acho que as palavras dele foram: “eu criei a nova Sarah Bernhard”. – Não entrou aqui para me falar de Oliver, entrou? – Amanda não a encarou nem por um segundo. – Na verdade não. Vim ver a minha criação... – Não entendi. – Amanda não se virou, mas pôde perceber que Tina andara atrás de si e se sentara no sofá do camarim. – Está sendo modesta, Amanda Roberts. Chegou aos meus ouvidos que você coleciona conquistas cada vez mais arrojadas... – Tina riu. – Imagine, quem sou eu para me gabar de alguma coisa, justo com você. – Amanda se virou e sorriu. – Trancou a porta? – Ahn? – Tina viu a mais nova dar três passos em sua direção. – Não.
– Não importa, eu adoro correr riscos... – Amanda se curvou e pousou seus lábios sobre o pescoço de Tina, enquanto suas mãos acariciavam as coxas da mais velha, que usava apenas uma saia muito curta, conforme o costume. – Hei, o que deu em você? – Não veio aqui exatamente para isso, Tina? – perguntou Amanda, mordendo a orelha da outra de leve enquanto falava. – Mais ou menos. Eu esperava te levar para cama essa noite, ainda, mas... – Mas quem será levada é você e, sinto muito, acho bom se contentar com esse sofá, porque eu não estou a fim de esperar. – Amanda tirou a blusa de Tina com habilidade impensada há pouco tempo e lhe beijou os seios com ansiedade. – Amanda, estamos brincando com fogo, alguém pode entrar e... – ela não continuou a frase porque a mais nova lhe tomara os lábios em um beijo intenso e demorado, cheio de desejo. – Quer continuar conversando? Tudo bem... mas eu vou começar sozinha. Tina abraçou-a pela nuca e a puxou com força contra si. Em menos de trinta segundos Amanda a deixara completamente sem defesas. Tirou a blusa da mais nova e lhe retribuiu as carícias nos seios, mas Amanda parecia apressada, puxou-a pelos cabelos com delicadeza e tomou seus lábios novamente, passando para o seu queixo, deitando Tina sobre o sofá e percorrendo todo o seu corpo com beijos e mordidas leves. Abriu o zíper da saia de Tina e começou a lhe acariciar sobre a calcinha, enquanto beijava seu colo. Tina apertou os olhos, se fosse religiosa, rezaria para que a porta continuasse fechada, e a julgar pelas atitudes decididas de Amanda, não teria oportunidade de fazer nada concreto a respeito da tranca. Depois de deixar a amante completamente nua, Amanda observou seu corpo por alguns segundos, mordendo o lábio inferior. A pele de Tina era morena e ela tinha curvas no limite exato entre a beleza e a vulgaridade. Deveria se cuidar muito bem e desde cedo, pois já não era nenhuma garotinha e mesmo assim não havia qualquer indício de seus mais de trinta anos, a não ser a maturidade, mas não era nisso que Amanda prestava atenção quando a professora de canto entrava na Companhia Townsend, sempre com as pernas nuas, sempre com um salto muito alto e decotes que despertavam a imaginação de qualquer ser humano. Quando a penetrou, ali mesmo, no sofá, Amanda arrancou de Tina alguns gemidos e uma frase que faria seu ego inflar como nunca antes. – Ninguém, jamais, me deixou louca como você me deixa, Amanda. Ela continuou. Estava com pressa e não conseguia esquecer da porta atrás das suas costas, que poderia ser aberta a qualquer momento. Gail poderia entrar e ver tudo, ou alguma das garotas do elenco poderia presenciar o ato e espalhar o
envolvimento de Amanda e Tina para toda a Companhia, ou... Amanda afastou o pensamento rapidamente. O que de pior poderia acontecer era Oliver Townsend entrar em seu camarim. Não conseguia nem imaginar a reação do produtor. – Não era isso que você queria? – brincou com Tina, sabendo que a levaria ao orgasmo em poucos segundos. – Eu não ouso sonhar tão alto, garota. – ela disse, com dificuldade, arqueando as costas e mordendo uma almofada para abafar seus gemidos. Amanda se colocou sobre o corpo de Tina, sem cessar a carícia, e a beijou na face uma série de vezes, carinhosamente, tomando seus lábios apenas quando sentiu que ela alcançara o prazer. Era um misto de atenção e precaução, uma vez que temia que a mais velha perdesse o controle e as denunciasse para quem pudesse estar passando pelo corredor. Ficaram algum tempo abraçadas, enquanto Amanda livrava o rosto de Tina de algumas mechas de cabelo, suado pelo esforço. Beijaram-se mais algumas vezes e se levantaram, apressadas, antes que fossem pegas. Amanda percebeu que Tina perdera um pouco de seu ar eternamente altivo. – Vai me dar mais algumas aulas, até a estréia? – perguntou a atriz, já vestida, novamente arrumando o cabelo em frente ao espelho. – Amanda... – a outra apanhou sua bolsa e andou até a porta. – Você está bem, Tina? – Daqui pra frente só nos vemos como aluna e professora, está bem? Amanda não entendeu. Ficou olhando para os olhos muito claros de Tina e tentando adivinhar o que eles queriam dizer. – Ahn? – Acabou aqui. Antes que seja tarde. Tina fechou a porta e avançou a passos apressados pelo corredor. Seu coação batia tão rápido que parecia prestes a sair pela boca. No camarim, confusa, mas não sinceramente chateada, Amanda concluiu que era melhor acatar a decisão da outra. Uma paixão, àquela altura, só complicaria desnecessariamente a vida das duas.
(até o próximo)
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Notas do Autor: atendendo a pedidos, mas também seguindo o roteiro original, as duas protagonistas finalmente se encontram... mas acho que não é como vocês esperavam ^^ Na maior parte das vezes, aquilo que você mais quer é aquela coisa que você não pode ter. O desejo nos parte o coração, nos esgota. O desejo pode ferrar com tua vida. E por mais duro que seja querer muito uma coisa, as pessoas que sofrem mais são aquelas que sequer sabem o que querem”. “
Acho que é do Veríssimo, não tem nada a ver com o capítulo, mas muito a ver comigo. ^^
Capítulo 08 – Destino
O Teatro da Companhia Oliver Townsend estava lotado na noite da estréia. Amanda estava trancada em seu camarim, com Gail, e as duas comemoravam intimamente. Há poucos meses eram voluntárias em um teatro comunitário e finalmente tinham uma grande chance. – Promete que não vai sentir ciúmes do que eu vou dizer? Eu queria que o Fred estivesse aqui. – falou Amanda. – Eu entendo. Sempre fomos um trio. Também queria que ele tivesse dado certo. Ouviram uma batida na porta e se separaram rapidamente. Amanda autorizou a entrada e Oliver Townsend se precipitou pela porta, mas não estava sozinho. – Tem alguém aqui querendo ver vocês duas. – sorriu. – Fred!! – as duas mal podiam acreditar. – Oi... – disse ele, sem jeito. – Não poderia perder isso. Sei que disse coisas terríveis, que fiquei com inveja, mas isso passou. Estou muito feliz e torço pelo sucesso. Das duas... O trio se abraçou calorosamente e Fred foi ocupar um lugar conseguido na platéia por uma das assistentes de Oliver. Amanda e Gail se juntaram o resto do elenco e começaram a apresentação um pouco mais calmas depois do reencontro. Praticamente tudo deu certo. As únicas falhas foram quase imperceptíveis e não passaram do limite necessário para uma boa estréia – que por tradição e misticismo teatral, nunca pode ser perfeita, ou alguém do elenco morre no final da turnê. Havia outras lendas, como a de que um romance no elenco dá azar à peça: das duas, uma, o fracasso ou o rompimento. Amanda e Gail não queriam nem poderiam pensar muito naquilo.
Depois da apresentação Amanda deu a Gail a desculpa de que Oliver queria apresentá-la a algumas pessoas e desapareceu da Companhia. Há dias esperava pela oportunidade de conversar francamente com Tina, e por isso as duas dividiram uma mesa em um bar discreto. Tina bebia uísque, Amanda tomava um suco natural sem gelo batizado com um pouco de vodka, para espantar a tensão que a estréia lhe trouxera. – Oliver continua sendo um farejador e tanto! – exclamou a mais velha. – Em nenhum dos ensaios, mesmo nos melhores, você chegou perto de causar o que causou quando finalmente foi para valer. Que que há com você? – Não viemos aqui para falar disso, Tina. – Amanda estava vermelha com os comentários elogiosos da outra. – Mas eu tenho de dizer! Foi espetacular, Amanda. – Obrigada, mas o crédito não é só meu. Aliás, é muito seu também. As aulas foram ótimas... Tina mudou de posição e quebrou o contato visual. “Vai me dizer o que está acontecendo? – insistiu Amanda. – Não lhe parece óbvio? – Tina riu sem graça. – Tanto tempo depois, e eu fui me interessar por uma garotinha. – Eu não sou nenhuma garotinha e você sabe disso. – Mas também não vai ficar comigo, então não serve, Amanda. É loucura e burrice. Você não me ama. – Não. Mas isso não significa que eu não queira mais te ver. – Eu preciso de um tempo, Amanda. Para encarar tudo isso, de novo, como apenas sexo e nada mais. Ta bem? E chega desse assunto, como vai a Gail? – Está bem. Estamos ótimas, na verdade. – Agora que eu parei de atrapalhar... – Tina falou casualmente, sorvendo sua dose de uísque. – Você nunca atrapalhou, Tina. – Ainda sai com outras pessoas? – De vez em quando. Mas eu adoro a Gail, a gente se conhece, se da bem, se completa, se cuida... – Não precisa justificar tanto assim. – O quê?
– Você não precisa enumerar uma porção de motivos. Se está com a Gail e gosta disso, você não precisa justificar a escolha para ninguém. Amanda piscou demoradamente. Sorveu mais um gole de suco e encarou Tina. “Mas ambas sabemos que ela não é mulher pra Amanda Roberts... A atriz balançou a cabeça, mordendo os lábios. Tina ia sempre no âmago da questão. – E quem seria perfeita para Amanda Roberts? – perguntou, encarando a mais velha. – Longe de mim! – exclamou Tina, rindo. – Ela é mais jovem que você. – Não, Gail é três meses mais velha. – Não, não. Estou falando da sua garota. Ela é mais jovem, mas é como você, trabalha desde cedo. Ela é linda como você, mas é reservada, talvez seja tímida. E por isso, e outras coisas, ela vai surpreender você, te deixar sem ação. – Você me deixou completamente sem ação. – devolveu Amanda. – Mas no terceiro ou quarto encontro você já virou o jogo, Amanda. – Tina riu. – A sua garota vai surpreender você sempre. A vida inteira, eu diria, pois é esse o tempo que você vai passar com ela. Amanda gargalhou, inclinando a cabeça para trás. Notou que algumas pessoas, das mesas à sua volta, a olharam com curiosidade. Riu de novo, pousando o copo e livrando seu rosto do cabelo que lhe encobria parcialmente. Viu um trio inusitado em uma mesa perto da rua. Bebiam drinks coloridos e com toda a certeza se divertiam a valer. Havia duas garotas e um rapaz: uma ruiva com óculos de aros grossos que lhe conferiam um estilo único; o garoto tinha cabelos negros muito bem cuidados e alguns adereços que não deixavam dúvidas sobre sua sexualidade, embora não fosse necessariamente espalhafatoso; a terceira tinha cabelos castanhos levemente ondulados e olhos verdes. O olhar de Amanda parou sobre ela. Tina lhe explicara o que significara aquela sensação. – Confere uma coisa para mim? Meu Gaydar ainda não é confiável. – pediu Amanda, mudando de assunto e apontando para a mesa com o trio. – Sim, o garoto é bixa. – Tina analisou melhor. – Nossa, não sabia que esse barzinho andava tão bem freqüentado. Amanda olhou de novo. – Como assim? – A garota sem óculos... – indicou Tina. – É Kirsten Howard.
A mais nova continuou encarando Tina interrogativamente. “Só fez dois filmes até agora, e os dois são bons, até, mas ela é famosa por outra coisa. É a namorada do Sebastian Muñoz. – Sério? – Juro. Está em todos os jornais. Eles fizeram um filme juntos, na Espanha, com aquele diretor que sempre trabalha com ele. Nossa, garota de sorte. Homens definitivamente não fazem o meu tipo, mas o Sebastian... – Tina se abanou com o guardanapo. – Sou obrigada a concordar, ele é um Deus. – admitiu Amanda. Continuaram a conversa por mais algum tempo, mas Amanda tinha nova apresentação no dia seguinte e foi para casa um pouco depois da uma da manhã. Tina declinou o convite para que passassem a noite juntas e a mais nova não insistiu. Estavam finalmente se tornando amigas. E apenas isso.
333 Um seleto restaurante de Los Angeles abrigava cinco homens em ternos perfeitamente alinhados, aguardando a única mulher que se sentaria com eles. Um dos homens era Jerry, empresário de Kirsten, que se ocupou da etiqueta e a acomodou na cadeira, prestativo. Kirsten detestava atrasos e nunca cometia essa gafe, mas um telefonema difícil a levara a refazer a maquiagem. Decepcionara Richard e Debra mais uma vez, em sua última passagem por Nova Iorque. Dos outros quatro homens, três eram produtores e um era um diretor que qualquer mortal reconheceria na rua, um rosto famoso que era sempre ligado ao sucesso. Kirsten começou a conversa – mesmo nos assuntos triviais – olhando apenas para ele e ignorando todos os outros. Falou de sua carreira, de seus interesses, da idéia de propor alterações no roteiro – momento em que foi elogiada pelos produtores – e da necessidade de ser escolhida para o papel título, uma vez que se considerava a única capaz de interpretá-lo no tom certo. Os produtores a respondiam com simpatia, Jerry intervinha sempre que julgava necessário, mas o diretor não dissera palavra. Abrira a boca somente para escolher seu prato e voltara ao silêncio absoluto. Kirsten não se intimidou. Conhecia o roteiro na ponta da língua e, contrariando todo o planejamento que fizera com seu empresário, acendeu um cigarro no meio do jantar. – Estive de olho nas suas contas, senhor. Você sabe... – ela piscou, de forma insinuante. – esse era justamente o meu trabalho.
Nenhum dos homens ousou mencionar que aquela não era a área de fumantes. Reconheceram a frase dela imediatamente. Era uma das cenas chaves do roteiro, quando a personagem central descobria o desfalque no banco e começava a chantagear o acionista majoritário, ao invés de denunciar a fraude, como seria o seu trabalho. – Tenho de admitir que foi um truque muito bem arquitetado. Quase infalível, até. – ela se livrou do excesso de cinzas do cigarro e cruzou as pernas na posição inversa do que mantinha até ali. Os homens acompanharam o movimento com os olhos. – E como tal, não merece que um perdedor como o meu chefe leve os louros por ter descoberto. Engraçado, você o contratou para averiguar fraudes no seu banco, não imaginou que seria descoberto? – Kirsten? – perguntou Jerry, embaraçado. A atriz o ignorou. – Você não precisa se preocupar comigo. Eu guardo um segredo que você precisa esconder e você me dá o que eu quero. Um acordo simples que não fará mal a nenhum dos dois. Pode ser até o começo de uma... – Kirsten se curvou sobre a mesa, deixando seu rosto mais próximo do diretor, do qual ganhara atenção. Escolhera propositalmente um decote ousado naquela noite, mesmo que não tivesse certeza de que apelaria para aquele truque. – grande amizade. Kirsten apagou o cigarro em seu prato de sobremesa e saiu sem pedir licença. Muitos olhares a acompanharam até o toalete. Diante do espelho, com o coração acelerado, ela quase podia ouvir os produtores deliberando sobre o assunto. Sabia que encarnara o papel na medida exata e que eles haviam percebido isso. Fizera tudo o que estava ao seu alcance, se o papel não fosse dado a ela naquela noite, poderia se dar por vencida, e desistir, pela primeira vez na vida. Quando voltou ao seu sobrado, a primeira coisa que Kirsten fez foi conferir os recados em sua secretária eletrônica. Havia três mensagens de Sebastian, uma de Richard, duas de jornalistas querendo marcar alguma coisa e uma de Jerry, lhe dando os parabéns. Na noite seguinte ela estava com os amigos de novo. Os primeiros diálogos foram travados, ela ainda não sabia como se portar diante de Richard e Debra depois de tantos tropeços. Quando ela foi a Los Angeles para o jantar definitivo, Debra estava se formando em seu primeiro curso de culinária – sua paixão – e não pôde contar com a presença da melhor amiga. Essa foi apenas mais uma das muitas ocasiões importantes que ela perdeu. Escolheram um barzinho discreto, perto da Broadway, e pediram drinks doces e pouco alcoólicos, uma vez que Kirsten temia ser flagrada bebendo em público, o que macularia sua carreira e – além de tudo – era proibido para sua idade. – Desembucha, Kirsten, porque é a última chance que te damos de provar que você não se vendeu para o mundinho de Beverly Hills e esqueceu de quem foi seu amigo desde sempre. – disse Richard.
– Não me chama pelo nome, isso machuca. – ela suspirou. – Vão lançar um filme... uma coisa realmente grande, talvez o maior lançamento de Hollywood para a próximo inverno... Ela citou o nome do diretor, contou detalhes, narrou sua epopéia em busca do papel e mencionou o filme espanhol como uma escada para levá-la até lá. Depois de um tempo, Richard e Debra pareciam menos agressivos. – E então? – Eu não sinto nada pelo Sebastian. Só que ele estava canalizando para si todas as atenções, se eu não fizesse nada, mal seria lembrada por esse filme, e eu não poderia desaparecer. Justo agora! Eu preciso tanto desse papel... não sei se consigo explicar, não é pelo glamour, é que quando eu li o roteiro... eu não consegui imaginar ninguém mais... somente eu. Como se fosse feito para mim. Destino, sabe? – Kiki, como é que você pôde namorar um cara? Quer dizer... – disse Richard. – pelo menos você teve bom gosto, ele é estupendo! – Nisso eu tenho que concordar. – meteu-se Debra. – Ele é um sonho. Como é, na intimidade? – Ele é gentil, educado, sério. Ah, não sei... – A gente quer saber do sexo, lindinha. – perguntou Richard. – Eu disse a ele que sou virgem, o que não é uma mentira, em se tratando de homens... – Ta enrolando ele esse tempo todo?? – Não nos vemos muito... ele é ocupado, eu também... – Meu Deus, Kiki. Você namora o homem mais sexy do mundo e não vai para a cama com ele?? – Debra estava indignada. – Eu não gosto. Eu não sinto nada. Desculpa... pega ele para você, Debby. – Ah, quem me dera. Aliás, você vai terminar com ele, não vai? – Ainda hoje, quando voltar pra casa. – Pode me apresentar para ele, antes de fazer isso? Hum? Kirsten gargalhou. Debra tinha uma “tara” por estrangeiros e nenhum dom para idiomas, o que com freqüência a metia em confusões amorosas. Richard era mais centrado, mas acaba sempre se envolvendo com homens casados que jamais o assumiriam. Em última análise, nenhum dos três naquela mesa era feliz no amor. Kirsten culpava, no começo, sua imaturidade, e depois a imprensa. Sempre que se
interessava por uma mulher, levava tanto tempo para ter certeza de que ela era confiável e não revelaria o envolvimento a ninguém, que perdia a oportunidade antes de aproveitar. – Eu preciso que me perdoem. Tudo o que eu fiz, essas festas, as fotos e manchetes, meu desaparecimento de Nova Iorque, foi tudo para conseguir o papel que comentei com vocês. – E... conseguiu? – perguntou Richard, com receio. Kirsten sorriu e fez algum suspense. – Está olhando para o novo nome acima do título, querido. O filme é meu. Comemoraram com um brinde. Mudaram de assunto, Debra contou sobre o curso, Richard falou de trabalho e Kirsten ouvia os amigos com carinho e atenção. Sentira muita falta deles naqueles meses de noites de gala repetitivas e maçantes. – Agora que o galã é carta fora do baralho, podemos voltar ao nosso plano, né, Debby? – disse Richard. O “plano” era arranjar uma namorada para Kirsten. Ela r ia dos dois amigos, até participava da brincadeira, mas nunca levava o assunto a sério, pelo menos não quando estava diante deles. – Loira ou morena? – questionou Debra. – Morena. Cabelo negro – adiantou-se Richard. – e olhos escuros, para fazer frente à Kiki. Não vai ser nenhuma dessas mulheres com mais de trinta com quem você sai e diz que prefere. Aliás, ela não vai ser mais que alguns meses mais velha que você. – Ta maluco, Richie? – Kirsten riu. – Pára, eu estou prevendo o seu destino e você me interrompe? O que mais eu posso dizer sobre a garota da Kiki... Ah, ela tem de ser atriz, ou pelo menos tem de ter uma profissão artística, para entender seus sumiços e sua carreira, mas não vai ser nenhuma chata de Hollywood, não. Ela tem de amar Nova Iorque como você ama, mas precisa gostar de viajar. E isto é tudo que terão em comum, porque ela vai adorar coisas que você detesta, ela vai falar de política e amar música, ela vai tentar te ensinar a tocar violão e sugerir que você faça aulas de pintura, ou ioga, ou vai querer que você leia mais e assista mais documentários... ela vai te deixar fula com um ambientalismo que não sei de onde ela terá, mas vai ter! – ele fez uma pausa, pensando. – A garota da Kiki vai se apaixonar por nós. – continuou Debra. – Porque senão a Kiki terminaria com ela na mesma hora.
– Isso mesmo! Vocês vão se encontrar algumas vezes e você fará surpresas para ela, Kiki, e quando se der conta, vai estar morando com ela, casada com ela. – Nem morta! – E por alguma razão, um dia, vocês vão se perder... você, Kiki, vai encontrar outra pessoa e achar que pode parar de procurar, mas não vai dar certo, não por muito tempo. E aí, no dia mais importante da sua vida, quem estará diante de você será a sua garota, a de antes, a de sempre... e você vai ficar sem voz e tudo parecerá claro. Vão tocar Love Hurts e vocês terão uma última dança. Depois de velha, você vai se perguntar o que fazia antes de conhecê-la e não vai lembrar de nada. Kirsten queria rir dos amigos, mas não conseguiu. Olhou algumas mesas adiante de si, na direção do balcão, onde duas estranhas riam. Poderia jurar que estava sendo observada, não como famosa que freqüenta lugares públicos, mas como mulher. O olhar saiu de si e as duas comentaram alguma coisa. A mais nova olhou de novo, mas dessa vez era como fã. Kirsten a deixou de lado, sorveu seu drink e voltou a discutir amenidades com os melhores amigos.
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Capítulo 09 – Primeiro Encontro
Kirsten conseguiu uma cópia de seu filme espanhol e resolveu convidar Debra e Richard para assisti-la consigo, ainda antes da estréia mundial do longa metragem. Organizou sua sala, espalhou muitas almofadas, escureceu o ambiente e preparou pipocas. Quando os amigos chegaram, ela mal podia esperar. Ficou apreensiva durante a exibição, mas não fez qualquer comentário. Sabia que seus amigos detestavam que ela interrompesse a emoção do filme para explicar como determinada cena fora feita ou o que ela sentiu ao gravar aquilo. – E aí? – perguntou ela, apreensiva, assim que o filme terminou. Os dois demoraram a comentar alguma coisa. Kirsten passou a mão pelos cabelos que estavam loiros novamente e aguardou em silêncio. – Kirsten Hérmia Krenddler Howard – disse Richard. – você é a melhor atriz que conheço.
– E a única, né? – Sério, Kiki. – emendou Debra. – Ta maravilhoso. As melhores cenas são quando você aparece. Ela não sabia o que responder. Estava completamente sem graça, mas muito feliz, pois a aprovação dos amigos era a mais importante para ela. As palavras de Richard ainda ecoavam seu cérebro. Ninguém usava seu nome completo, em hipótese alguma. Sobretudo por causa do “Hérmia”. Kirsten tinha com ele uma relação de amor e ódio. Ódio porque era incomum, estranho e feio; amor porque era o nome de sua mãe, que ela mal conhecera. – E o Sebastian é mesmo um gato, lindinha. Uma pena que você não tenha casado com ele. – Credo. Há menos de um mês vocês estavam descrevendo o amor da minha vida com detalhes, e agora querem que eu case com o Sebastian? Já terminei com ele, lembram? – Alguém esquece? Saiu em todos os jornais. – disse Debra. – É, Kiki tem razão, Debby. Nós abandonamos o nosso plano. Vamos colocá-lo em prática de novo. Caçar a futura senhora Howard! – Só o que me faltava. – Kirsten virou os olhos. – E vocês acham que ela está por aí, dando sopa? – Na verdade não, lindinha. Ela é como você, tem uma vida, tem um passado, provavelmente está com outra pessoa agora... É assim que funciona... a vida dela não vai começar apenas depois de te conhecer. Isso não é cinema, é a vida. – Ta bom. E por onde vamos começar? Estou cansada de ficar em casa. – Sinto muito, lindinha, hoje estou ocupada. Debby? – Foi mal, Kiki, eu também tenho compromisso hoje. Kirsten deu de ombros. Acabou saindo sozinha e seus passos a levaram de volta ao bar que Richard lhe apresentara, na Broadway. Passou muito tempo ouvindo as conversas das pessoas nas mesas adjacentes, até um comentário lhe chamar atenção. Uma peça de teatro na Companhia Oliver Townsend. Kirsten se lembrou do dia que conhecera o lugar, guardava boas recordações, mesmo não gostando daquele tipo de arte. Voltou para casa, escolheu um modelo à altura do interesse da mídia em si e foi assistir a nova montagem. Na pior das hipóteses, algum fotógrafo poderia vê-la lá e ela passaria a impressão de ser uma garota interessada na vida cultural de Nova Iorque. Na melhor, a peça poderia ser realmente boa e fazê-la gostar dos palcos.
333
Amanda prendia os cabelos e retocava a maquiagem, completamente sozinha em seu camarim. Ficar sozinha antes de entrar em cena se tornara um hábito que apenas uma pessoa podia interromper. – Oliver? – Como está a minha estrela? Preparada? – Mais cinco minutos e estarei ótima. – Tudo bem. – Algum recado especial? – ela perguntou ao produtor. – Tivemos um tumulto na entrada, há pouco. Já ouviu falar em Kirsten Howard? – A atriz de cinema? Já sim, assisti os dois primeiros filmes dela. – Estará na platéia. Comprou uma entrada comum, mas minhas assistentes a localizaram e ela ficará no meu camarote. – E daí, Oliver? – Bem, ela é atriz, pensei em trazê-la para a coxia depois da apresentação. – Faça como quiser, você é o chefe. – Ótimo. Cinco minutos, você disse? Vou avisar aos outros. Merda pra você, Amanda.
333 Quase um ano depois de se conhecerem por acaso, após contatos superficiais diversos, Amanda e Kirsten saíram juntas pela primeira vez. O convite partiu da estrala do musical, na noite que Oliver Townsend levou Kirsten aos bastidores e ao camarim de Amanda. – Café? – ofereceu Kirsten, assim que se sentaram em uma simpática confeitaria próxima ao teatro. – Apenas suco, sem gelo. Não bebo nada quente nem muito gelado em dias de apresentação. – justificou Amanda. – Não posso arriscar a minha voz.
Kirsten sorriu. Amanda disfarçava seu nervosismo com uma sensível altivez, mas não vinha obtendo sucesso porque Kirsten era experiente em ter pessoas pisando em ovos diante de si. Pediu um café forte e o sorveu despreocupadamente, enquanto seus olhos vagavam pelos longos cabelos levemente ondulados de Amanda, que tinha olhos negros que brilhavam de forma peculiar. Só conseguia lembrar dela no palco, a segurança, o porte de uma grande atriz e a voz que enchia e encantava todo o teatro. Mais de uma vez se pegara completamente fascinada nas primeiras filas, enquanto Amanda executava as coreografias. Não era grande fã de musicais, mas aquele a conquistara por um motivo bastante óbvio. – Já veio aqui? – Kirsten tentou começar algum assunto antes que ficasse evidente demais o seu entusiasmo. – O elenco sempre se reunia aqui, no começo dos ensaios. – Claro. Amanda adoçou seu suco e esperou uma pequena distração de sua interlocutora para observá-la melhor. Já vira todos os seus filmes mais de uma vez e seu preferido, obviamente, era o primeiro. Além de ser o que oferecia os ângulos mais explícitos, era nele que a atriz se parecia mais com a Kirsten que Amanda conhecia, mesmo que fosse uma produção de época. Sabia pela imprensa e sites especializados que a mulher a sua frente era notável por sua capacidade de se modificar para desempenhar papéis. Mudava o corte e a cor do cabelo, já utilizara lentes de contato, figurinos dos mais diversos tipos e gostos. Empregava a cada personagem uma voz característica, o sotaque exigido, o tom exato. Aprimorava as expressões de seu rosto, de todo o corpo, mergulhava completamente em cada novo trabalho. – Acho que eu vi você num bar aqui perto, há dois meses, quase não a reconheci. Você estava morena. Os cabelos quase cacheados... – Ah, é... – Kirsten se ocupou em mirar o açucareiro diante de si. Detestava falar de trabalho e sabia que a conversa se encaminhava para aquele departamento. – Exigências da profissão, você também é atriz e sabe como funciona. Amanda riu, nervosa. – Não admito fazer comparações. Eu pertenço a palcos modestos e você é a menina dos olhos da América! – Ouça, eu... – Kirsten olhou para o relógio em seu pulso rapidamente. – Desculpe, esqueci completamente que tinha um compromisso. Uma sombra passou pelos olhos de Amanda. Kirsten se levantou rapidamente e num impulso, Amanda segurou seu braço, recebendo em troca um olhar tão confuso que por um instante ela questionou todas as impressões anteriores, vindas do seu sexto sentido, que diziam que a famosa Kirsten Howard era gay. Aquele era um olhar de quem não entendia o que estava acontecendo.
– Desculpe. – disse, soltando braço da outra. – Escolhi o assunto errado, não é? Kirsten avaliou em uma fração de segundo as opções que tinha. Se voltasse atrás passaria por mentirosa, mas queria continuar ao lado de Amanda. Ela era inteligente, tanto que Kirsten pôde percebê-lo à primeira vista, além disso era engraçada e sorria com facilidade. Perdeu-se por instantes na curva do queixo da outra, no desenho do nariz. Era sempre assim, primeiro o desejo, puro e simples. Depois o interesse e por fim o afastamento. Nunca se envolvia. Impreterivelmente. – Realmente preciso ir. – disse Kirsten, séria. – Quando nos vemos de novo? – Amanda deu sua última cartada. A loira anotou mentalmente que precisava acrescentar uma qualidade na lista de Amanda: ela era decidida. Até ali tudo parecia bem. Riu intimamente, sem que sua face denotasse qualquer mudança de humor. – Tenho o calendário das suas apresentações. O musical é lindo, preste atenção nas primeiras filas, semana que vem. E nisso, sem olhar para trás, Kirsten deixou a confeitaria. Andou calmamente pelas ruas que a separavam do ponto de táxi, absorvendo a cidade com os olhos, como fazia com um cenário quando precisava se habituar a ele para vestir uma personalidade que não era a sua.
(até o próximo) Voltar para o índice O Jantar escrita por Sara Lecter Notas do Autor: de novo: acho que criancinhas não devem ler esse capítulo não...
Capítulo 10 – O Jantar
Conforme prometera, Kirsten fora assistir Amanda mais uma vez na semana seguinte. Recebeu no segundo entre-ato um bilhete da organização que a convidava para a coxia ao final da apresentação. Entrou no camarim da protagonista esperando encontrá-lo lotado de bajuladores, mas Amanda a esperava completamente sozinha, limpando a maquilagem de seu rosto com um algodão.
– Kirsten! Cheguei a achar que sairia mais cedo. – Amanda a encarou nos olhos desde o primeiro segundo, pondo em prática algo que aprendera desde que entrara na Companhia Townsend. – E por que eu faria isso? – Ouvi dizer que você tem assistido à peça com freqüência, deve estar farta. – Ah, não. De modo algum. – Kirsten olhou a sua volta e se sentou em um sofá, atrás da cadeira de Amanda, não parecendo realmente presa ao olhar dela, o que deixou Amanda insegura. – Então? Jantar? – Lamento, jantei com amigos antes de vir. – a apresentação começara tarde da noite. – Você é difícil! Amanda notou pelo espelho que mais uma vez Kirsten tinha na face a expressão de incompreensão com a qual lhe encarara outro dia, quando a tocara no braço. Cogitou a alternativa de que Kirsten estivesse apenas se defendendo do assédio que lhe deveria ser comum, sendo quem era. Quando Amanda voltou a se concentrar no algodão, Kirsten sorriu, sem se deixar apanhar. Estava quase fácil demais. – Eu sou menos ocupada do que deveria e muito mais do que gostaria, infelizmente. Mas, é claro, há sempre tempo para boas conversas. Temos duas amigas em comum e ambas me garantiram que eu só conseguiria ver Amanda e não Christine se não entrasse nesse camarim. – ela se referia à personagem de Amanda nos palcos. – Entrou mesmo assim. – disse Amanda, por dois segundos deixando seu olhar escorregar para os lábios da outra. – Para lhe dar os parabéns, mais uma vez. Lamento não ter trazido flores, conforme a praxe. – Kirsten apontou para os jarros com rosas vermelhas que decoravam o ambiente, nem um pouco intimidada com os olhares de Amanda. – Mas seu talento parece ter admiradores aos montes. Amanda fez pouco caso das flores. – Mal os conheço. – Ah, mas tenho certeza que todos esses pretendentes gostariam de lhe conhecer melhor. – disse Kirsten, lendo rapidamente alguns dos cartões e o nome de seus remetentes, todos homens. Sentia-se muito à vontade no camarim da outra. – Nenhum deles tem chance. Outra vez o olhar confuso de Kirsten foi percebido por Amanda.
– Era de se esperar que seu coração estivesse ocupado. Terminando de remover a base da face, Amanda riu sem se conter. Uma de suas colegas de elenco entrou sem bater e Kirsten rapidamente notou que sua presença não deixava a terceira à vontade, e que apesar de tal, pediu-lhe um autógrafo. Chamava-se Gail, ou esse era o nome artístico. Após a assinatura, Kirsten se despediu de Amanda sem grande intimidade e voltou para casa sozinha.
333 Viram-se novamente duas semanas depois. Propositalmente Amanda escolhera um local neutro, o Sara Roosevelt Park, que não ficava muito longe da Companhia Townsend, uma vez que não fazia idéia de onde Kirsten morava. Andaram vagarosamente, pela primeira vez conversando sobre amenidades e assuntos de interesse pessoal que não dissesse respeito ao ofício de interpretar. Amanda aprendera a lição no primeiro encontro, mas por vezes se descuidava e, tentando impressionar Kirsten com elogios, voltava ao tema de sua fama. – Por que se incomoda tanto? – Você quer mesmo saber? Deixaram o parque e tomaram um táxi. Kirsten deu o nome de um shopping center como destino e o motorista só partiu depois de se certificar que poderia obter um autógrafo de Kirsten. Assim que entraram no prédio uma porção de rostos se voltou para a dupla. Kirsten procurava ignorá-los e andar mais rápido, enquanto Amanda simplesmente aproveitava os momentos ao seu lado. Tentaram fazer compras em oito lojas, seguindo uma combinação mútua de que só sairiam delas com algo se Kirsten não fosse abordada por fãs ou curiosos. Tentaram fazer um lanche, mas mais uma vez não deu certo. Amanda observou que ela tratava todos que se aproximavam com extrema polidez e alguns até mesmo com carinho, o que era extremamente conflitante com seu conhecimento de que ela detestava ser reconhecida. – Isso sempre acontece? – perguntou Amanda, quando caminhavam pela calçada, já fora do shopping. – Não, porque eu aprendi a passar longe desses lugares ou a ser mais discreta. Para falar a verdade, Nova Iorque e Los Angeles são tranqüilas, as pessoas estão acostumadas, mas basta viajar que...
– Por que não foi discreta hoje? – Queria que você entendesse. – O quê? – Quando me trata com idolatria eu a vejo como essas pessoas. Eu não vou lhe desprezar, nunca. Mas achei que você estava interessada em outra coisa que não a minha carreira. Um arrepio correu a espinha de Amanda. Não poderia ter certeza, mas Kirsten provavelmente entendera o que ela queria. Que tipo de interesse despertava nela. Sorriu. – Então por que não me apresenta a verdadeira Kirsten Howard? Trocaram um olhar demorado e intenso. Escolheram um acolhedor restaurante vegetariano e não se apressaram com o horário, uma vez que era o dia de folga do espetáculo de Amanda e Kirsten não estava trabalhando no momento. Quando terminaram, Amanda convenceu a outra a lhe acompanhar até o seu apartamento, o que Kirsten aceitou mais para lhe dar a impressão de que não notara malícia alguma no convite. – Lugar legal. Adorei os puffs! – Kirsten se atirou sobre um deles. – Está uma bagunça desde a estréia. – Sua estréia foi há meses. – observou Kirsten, apanhando a taça de vinho que Amanda lhe oferecera. – Para você ter noção de como está bagunçado. Riram juntas e fizeram um brinde de longe, sorvendo o primeiro gole sem quebrar o contato visual. Kirsten finalmente olhou a sua volta, gostando do efeito que o lugar causava em si. Revistas sobre todos os móveis, dois violões, um piano velho, algumas peças de roupa aparentemente roubadas do armário do teatro, uma vez que foi impossível para a loira imaginar Amanda vestindo algumas delas. Artistas de teatro tinham esquisitices que, pela primeira vez, começavam a fazer algum sentindo na mente de Kirsten. Viu também algumas partituras e muitos discos de vinil que, se reunidos, formariam uma coleção de admirável sensibilidade – na opinião de especialistas – e infinita chatice – na opinião sincera de Kirsten. – Mora sozinha? – Sim. E você? – Também. – Cor preferida?
– O quê? – estranhou Kirsten. – Você não disse que tínhamos de nos conhecer melhor? Qual sua cor preferida? – Vermelho, mas infelizmente não cai bem em mim. E você? – Tem razão, olhos verdes e pele clara. Vermelho não dá. Kirsten desviou o olhar para a janela. Anoitecera antes que deixassem o restaurante. – E você? – insistiu. – Verde. Silêncio. – Eu tenho de dizer se fica bem em você ou... – Não! – Amanda riu. – Não precisa. Gosta de animais? – Detesto. Amanda riu de novo, notando que Kirsten estava mais à vontade do que jamais a vira. Em um ato impensado – ou muito bem pensado – sentou-se ao lado dela no sofá que Kirsten passara a ocupar a pouco, deixando o puff que não lhe dava apoio para as costas. – Campo ou praia? – Praia. – Inverno ou verão? – Outono. – Chuva? – Odeio. – Música? – Rock. E você? – Ópera... ossos do ofício. – Você é magra demais para cantora lírica. – disse Kirsten, sorrindo. – E nova demais para ópera.
– Já descobri que o seu sorriso é tão lindo ao vivo quanto nas telas, e que o vinho deixa seu rosto vermelho. Kirsten mordeu o lábio inferior, hesitante. “E ficou mais vermelho agora! Céus, eu te deixei sem graça. Perdão. – AmandaAo sentir as pontas dos dedos de Amanda afastando uma mecha de cabelo que caíra sobre seu rosto, Kirsten se calou. Respirava devagar e tentava não encontrar os olhos da outra. – Não diz nada... – pediu a morena. Amanda curvou seu rosto, indo ao encontro dos lábios de Kirsten, que delicadamente declinou o beijo e lançou mão de seu olhar confuso. “Eu me enganei quanto a você, não é? – disse Amanda, sentindo-se idiota. – Quanto a o quê? Amanda riu nervosamente. – Eu poderia jurar que você... que você é... que... – Lésbica? – perguntou Kirsten, que embora séria, divertia-se impagavelmente com o desconforto da outra. – É. – Faz diferença para você? – É claro que sim. Faz toda a diferença. – Então você me trouxe aqui para dormir comigo? – Não! – Não quer? – É claro que eu quero! – respondeu imediatamente, quase gritando. Amanda se deu conta de seu estado completamente desarmado diante de Kirsten, que embora lhe tenha negado o beijo, pouco se afastara do seu rosto, conservando um sorriso sincero e admirado e que ao ouvir a última confissão, se transformou em uma irresistível expressão de vitória. – Quer ou não quer?
– Você está me deixando maluca. – Desculpe, não foi a intenção. – mentiu Kirsten. – Ouça, eu não vou responder a sua pergunta. Nada pessoal, mas eu nunca falo sobre isso. Eu não acredito que pessoas devam ser rotuladas segundo suas preferências. – Tenho de me desculpar de novo. – Amanda baixou os olhos, fragilmente. – Para falar a verdade eu sempre serei solteira, o que não me qualifica em nenhum dos campos. Tive um romance rápido no começo do ano e a imprensa parecia saber mais sobre ele do que eu... você viu hoje como é a minha vida. – Kirsten fez uma pausa. – Antes que você pergunte, homo ou não, só existe uma pessoa que me interessa no momento... Amanda teve noção de como Kirsten passara por cima de todas as suas resistências, de seus truques, como se a despisse de todas as suas armas de conquista – e ela tinha orgulho de possuir muitas – que começavam com os pequenos ensinamentos de Tina, mas que foram aperfeiçoadas nos mínimos detalhes a cada nova experiência. Amanda sabia ser irrecusável quando queria e tinha consciência disso, mas quando a loira completou sua frase, ela só tinha certeza de uma coisa: estava completamente entregue. “...e eu estou olhando para ela agora. Beijaram-se com pressa e paixão, pousando no chão as taças de vinho, mudando algumas vezes de posição para que seus corpos pudessem se aproximar mais. Observavam uma na outra um desejo crescente que alimentavam com carícias que as obrigaram a se livrar, cautelosamente, de suas roupas, mas não de todas elas. Alternavam beijos com mordidas leves, afagos, arranhões apenas insinuantes e suspiros de satisfação. Amanda apanhou a única almofada ao seu alcance e deitou a cabeça de Kirsten sobre ela, avançando por seu colo e começando a lhe beijar nos seios, na parte exposta pelo sutiã que ainda não removera. Kirsten não fez qualquer objeção. Pelo contrário, envolveu o corpo de Amanda com suas pernas e lhe acariciou as costas, por baixo da blusa, que Amanda rapidamente tirou do corpo, aproveitando para abrir o zíper de sua calça antes de se deitar novamente sobre a outra, percorrendo a pele de Kirsten com beijos e chupões que se interrompiam antes de deixar marcas. Os lábios de Amanda desceram pelo abdome de Kirsten, perfeitamente esculpido, com o qual já se deliciara uma centena de vezes em sonhos e devaneios. Kirsten era seu objeto secreto de adoração, a personificação de seus desejos, o seu segredo bem guardado, que naquela noite se apresentava mais real do que nunca, tão entregue e tão ansiosa quanto a própria Amanda. Ninguém acreditaria se ela contasse, a mulher do cartaz no cinema que pela primeira vez a fizera notar seu desejo por pessoas do mesmo sexo, antes do primeiro beijo, era exatamente quem ela tinha nos braços, finalmente. Foi impossível não lembrar das cenas gravadas por sua amante. Sobre o sofá de Amanda ela se comportava de forma parecida, havia nuances de seus movimentos que ela já vira nas telas, pois praticamente decorara seus filmes, assistindo
repetidas vezes a mulher dos seus sonhos transando com um ator que acabara sendo bastante indiscreto com a imprensa depois da divulgação do trabalho, dando a entender que ele e Kirsten haviam passado do limite do profissionalmente aceitável enquanto gravavam seu primeiro longa. Pensar na possibilidade de que aquilo fosse verdade a deixava mais excitada. Amanda foi remetida também a outras cenas, Kirsten se comportando como uma verdadeira vadia no filme rodado em estradas do Texas. Parecera tão natural nas telas e parecia ainda mais real agora que era Amanda e não uma dupla de velhos barbudos que a devoravam. Entretanto, por alguma razão Amanda via também uma garota completamente diferente. Não mais contida nem menos desenvolta, apenas diferente. E finalmente entendeu que havia um abismo entre a atriz e a mulher que devolvia à mesma altura suas carícias guardadas por tanto tempo. Terminaram de se despir entre mordidas, arranhões e gemidos que se intercalavam com beijos repletos de carinho, mas também de pressa. Pareciam mais íntimas do que realmente eram, como se seus corpos já pertencessem um ao outro desde o início dos tempos. Amanda tomou Kirsten em seu colo, de costas par si, e apoiou firmemente seus pés no chão para dar segurança a sua amante enquanto lhe acariciava as coxas, subindo gradativamente até seu sexo completamente excitado, o qual alcançou ao mesmo tempo que seus lábios, língua e dentes percorriam a nuca de Kirsten e sua mão livre prendia seu cabelo no alto da cabeça, revelando sua pele alva e quente de desejo. Penetrou-a obedecendo seus pedidos sussurrados, forçando seu corpo contra as nádegas dela, de forma a conseguir um alcance maior. Kirsten mordia os próprios lábios e apertava os olhos, tonta de prazer. Amanda soltou seus cabelos e tomou um de seus seios com a mão esquerda, estimulando-o enquanto continuava a penetrá-la em intervalos cada vez menores, excitando-a ainda mais com frases sussurradas ao seu ouvido, que em qualquer outro contexto pareceriam obscenas. Kirsten gemeu alto quando chegou ao orgasmo e deitou sua cabeça sobre o ombro de Amanda, que beijava sua face ininterruptamente, enquanto a outra relaxava. Rouca e com a boca completamente seca, Kirsten sugeriu que fossem para a cama. Amanda tomou-a pela mão e se viu atirada sobre o colchão assim que entraram no quarto. Kirsten a encarava como se tivesse a exata dimensão da urgência que Amanda sentia. Quando achou que seria consumida da mesma forma quase animalesca que possuíra Kirsten a pouco, se viu pela segunda vez naquela noite totalmente desarmada. A loira prendera seus braços no alto da cabeça, sobre o travesseiro, e beijava candidamente cada centímetro da sua pele, chupando os bicos de seus seios, sem pressa. Kirsten tomou seu clitóris entre os lábios e o estimulou com a língua, com a pressa necessária para dar a Amanda um ritmo condizente com seus gemidos e súplicas agonizantes, mas também com parcimônia digna de uma amante completamente segura de si, o que só poderia resultar em momentos aparentemente intermináveis de prazer absoluto e ininterrupto, durante os quais Amanda não reconhecia a si mesma, irreversivelmente entregue aos caprichos de Kirsten. Muito tempo depois, enquanto Kirsten lhe dava tempo para que seu coração e sua respiração voltassem ao normal, Amanda pensou sobre aquilo: “irreversivelmente entregue aos caprichos de Kirsten Howard”. Suspirou satisfeita e a outra achou que fosse relativo ao que acabara de acontecer – ao seu aspecto físico. Mas Amanda sabia que seu suspiro era muito mais íntimo: era o grito de vitória de alguém
que ultrapassara sua pensada mediocridade e realizava uma fantasia utópica reservada para poucos. Meses depois, Kirsten seria eleita por uma revista consolidada como uma das mulheres mais sexys do mundo. Amanda concordava em gênero, número e grau. A diferença entre ela e as duzentas e dezessete figuras proeminentes responsáveis pela votação, era que Amanda sentira na pele o poder daquele título.
(até o próximo capítulo) Notas Finais: para bons entendedores, espero que o título seja interpretado como uma piadinha à qual não pude resistir... Voltar para o índice Cindy Sparrow escrita por Sara Lecter
Capítulo 11 – Cindy Sparrow
Kirsten deixou o apartamento de Amanda antes do amanhecer e mal pegara no sono, em casa, quando um telefonema de Jerry a despertou. As filmagens de seu novo longa começariam em Los Angeles no dia seguinte e ela esquecera completamente que já deveria estar na Califórnia àquela altura. Pediu ao empresário que reservasse a primeira passagem, tomou um banho, arrumou suas malas e deixou Nova Iorque sem qualquer previsão de volta. Não foi difícil perceber logo no primeiro dia que uma atenção especial cercava aquele filme. Havia jornalistas nos sets, intermináveis notas em revistas e jornais, e fotógrafos em todos os cantos do hotel no qual fora alojada. Num dos últimos dias de filmagem um fato que Kirsten levaria muito tempo para esquecer aconteceu. Sorvia um suco no bar do hotel, completamente sozinha, relendo o roteiro e pensando mais uma vez nas cenas que gravaria no dia seguinte quando uma garota se sentou à sua frente, com um sorriso que embora nervoso, nada tinha de forçado ou de profissional, como era o de todas as jornalistas que lhe queriam arrancar alguma fofoca. – Kirsten Howard? Posso? Não teve tempo de responder e a garota se sentou. Tinha cabelos castanhos num corte portenho, uma franja que tendia para a parte direita do seu rosto, que era redondo, e olhos doces. Vestia-se informalmente. Muito informalmente, até, mas Kirsten – talvez por isso – se sentiu à vontade com ela no primeiro segundo. “Desculpe, estou nervosa...
Kirsten notou que ela não cruzou as pernas e parecia indecisa sobre pousar a mochila no colo ou na cadeira sobressalente. Era uma mochila estilo carteiro e parecia conter apenas livros e uma pasta. – Nos conhecemos? – Não exatamente... – disse a outra, cruzando as mãos sobre a mesa. – Bem... eu sou... antes de qualquer coisa uma grande fã do seu trabalho. – Obrigada. – Estou aqui a trabalho. – Você é jornalista? – Isso. – a outra respondeu rapidamente. – Da onde? – Los Angeles Times. – Meu empresário não avisou sobre a entrevista. – Na verdade não é uma entrevista. Eu... não sei como começar. – Dizendo-me o seu nome, talvez. – Kirsten começou a achar graça do nervosismo da outra. – Cindy. – Cindy...? – Sparrow. Cindy Sparrow. – ela começou a estalar os dedos das mãos e olhar para os lados. – Bem, Kirsten... posso te chamar de Kirsten? – N – Kirsten, eu encontrei você por acaso, na verdade, estou aqui no hotel. Como disse antes, sou uma grande fã do seu trabalho, mas não é só isso. Acompanho sua carreira desde o começo. Desde o começo mesmo. Poderia se dizer que eu tenho adoração por você. Não, adoração é pouco... – Cindy se debruçou sobre a mesa. – Espere um momento. – Não, por favor. Eu esperei muito tempo para estar diante de você. Eu... nem sei como explicar isso, Kirsten. Estou até arrepiada. Posso... posso tocar em você? Kirsten sentiu seus músculos se enrijecerem. Seus sentidos apontavam para algo errado e ela imediatamente recuou.
– Senhorita Sparrow, lamento muito, mas preciso ir. – Não! Não, desculpe, eu fiquei nervosa e tomei os pés pelas mãos. Podemos começar de novo? – Não, desculpe. Agora, se me der licença... Completamente entregue ao trabalho e à personagem, Kirsten só se deu conta de que não dera qualquer satisfação para Amanda quando foi liberada das filmagens por uma semana para aparecer em público novamente ao lado de Sebastian Muñoz e divulgar nos Estados Unidos o longa no qual dividia a cena com o galã espanhol. Nada fez a respeito de nenhum deles. Comentou apenas amenidades com Sebastian e não deu notícias à Amanda. Através de Jerry, Kirsten ficara sabendo que as críticas de seu filme espanhol estavam sendo fomentadas por polpudos depósitos dos produtores de seu atual projeto, dispostos a pagar qualquer preço para que ela fosse tida como a maior estrela do momento e arrastasse multidões quando seu novo trabalho fosse lançado. Marketing. Aos dezenove anos, ela estava apenas começando a se habituar com o jogo de interesses que movimentava Hollywood por baixo dos panos. Enquanto aquilo lhe favorecesse, achou por bem não opinar; não gostava de política e não reconhecia em si qualquer talento para fazer suas idéias serem levadas a sério.
333 Amanda apoiou as duas mãos sobre o móvel do camarim, curvando a cabeça até que o queixo tocasse seu colo. Apertou os olhos e secou as incontidas lágrimas que lhe escapavam. Ouviu o chefe da contra regragem bater na porta e avisar que ela teria oito minutos antes de voltar ao palco para o último ato. Esquecera duas deixas na execução da peça, coisa que não costumava acontecer consigo, a não ser nos ensaios, nos quais estava sempre distraída. Felizmente Oliver Townsend não estava naquela noite, viajara a negócios no começo da semana e deixara Tina tomando conta da Companhia. O motivo que levara aos erros da principal estrela do espetáculo era uma lembrança recente que teimava em lhe roubar o sono; precisamente o momento que acordara na manhã seguinte à sua noite com Kirsten Howard. Levou alguns instantes para se situar, mas o perfume deixado pela loira em seus lençóis imediatamente confirmou que não se tratava de um sonho... do melhor dos seus sonhos. Mas Amanda estava sozinha em sua cama, sozinha em seu quarto escuro e vazio. Além do perfume, não havia qualquer sinal de sua amante, nenhum bilhete, um brinco perdido, algo fora do lugar. Até mesmo as taças de vinho, esquecidas na sala, haviam desaparecido. E daquela manhã até o dia em que comprometeu toda a apresentação de sua peça, Amanda não pensou em qualquer outra coisa a não ser na dor aguda que lhe assombrou no momento em que se descobriu sozinha novamente, uma dor mais forte e palpável do que a crença anterior de que jamais conseguiria ter Kirsten em seus braços, por pelo menos um instante.
A soprano de Oliver Townsend só se deu conta de que estava chorando aos soluços quando a porta do camarim se abriu e por instantes ela julgou que fosse seu mentor e protetor passando por ela. Apenas o dono da Companhia ousava entrar no camarim de Amanda. – Posso saber o que aconteceu com a minha garota? – disse Tina, sem percebê-la. Depois de mais alguns passos, no entanto, Tina se calou. Notou que Amanda enxugava o rosto e que nada dissera. Resoluta, a professora de canto se aproximou da aluna e pousou as duas mãos sobre seus ombros, carinhosamente. “Sabia que os descuidos no palco só poderiam ter um fundo emocional. – Não estou para conversas, Tina. Tenho seis minutos para refazer a maquiagem. – Qual sua primeira fala? – Ahn? – Sua primeira fala, no último ato. – É... – Amanda forçou sua memória. – É... – Esqueça a maquiagem, você precisa vestir a Christine dentro de você. Está completamente fora da personagem hoje. Sabe quantas vezes você desafinou? – Algumas. – Vinte e oito, Amanda. Tem noção de que eu não sou a única que fica contabilizando essas coisas, não? Amanhã estará em todos os jornais! – E o que você quer que eu faça!? Tina se assustou com o inesperado descontrole de Amanda. – Quero que esqueça os seus problemas. – Eu não consigo! – Pensei que você fosse uma atriz, Srta. Roberts. – Eu sou humana, tá legal? – Seus destemperos devem ficar do lado de fora da porta do teatro. Ou você sairá por ela muito antes do que imagina. – Não fale comigo como se fosse o Oliver!
– Eu o represento enquanto ele não está aqui. – E eu que pensei... – Amanda suspirou cansada. - ...pensei que pudesse contar com você. – E todos nós pensamos que você fosse uma estrela, Amanda. É só mais uma garota mimada. – Não ouse falar nesse tom comigo, Tina. – Qual o nome dela? – Não pense que – qual o nome dela? – O quê? – Sem tempo para longas conversas, Amanda. Você está prestes a voltar ao palco. Quero saber o nome da garota, e se quiser, mais tarde, você me explica tudo isso. Não se engane julgando que pode me esconder qualquer coisa. Você e Gail brigaram? – Claro que não. – Perguntei para parecer educada. Era lógico que não seria a sua namoradinha. – Tina, esquece que eu existo. – disse Amanda, levantando-se de súbito. – Você não voltará para o meu palco nesse estado. – O QUÊ? – Já errou demais nessa noite. – Você só pode estar maluca. Vai mandar o público embora? Oliver te mataria ao retornar. – Gail ensaiou todas as falas com você, ela pode assumir o papel da Christine, pelo menos no último ato. Quanto ao resto da semana, veremos. – Ela jamais aceitaria participar desse seu plano para me derrubar. – Não delire, garota. Ainda não se perguntou por que ela não está aqui te bajulando, no intervalo, como sempre faz? Amanda hesitou e por fim nada disse.
“Você me espera aqui. Verei se conseguimo s salvar a noite de hoje de um fiasco retumbante. – Tina...? Quando notou que a professora já havia deixado o camarim, Amanda parou de chamá-la e voltou a chorar, dessa vez pelo peso de seu fracasso. Ouviu, de onde estava, que os aplausos foram tímidos e apenas educados, e mais uma vez teve vontade de desaparecer, mas Tina ainda exercia sobre ela um fascínio desconhecido que a tornava incapaz de lhe desobedecer, sobretudo quando se encontrava fragilizada. Sem dar qualquer satisfação ou cumprimento à Gail, Amanda seguiu com Tina para um bar e nos primeiros dez minutos de (pouca) conversa, ocupou-se de ingerir uma quantidade absurda de álcool, decidida a esquecer o que quer que fosse. Tina em nada se esforçou para conter o surto auto-destrutivo de Amanda, após sua consciência lhe autorizar para tal, uma vez que o espetáculo só seria encenado novamente duas noites após aquela. Sabia que a jovem estrela não tinha qualquer resistência ao álcool e riu timidamente ao lembrar de como Amanda se portava quando haviam acabado de se conhecer. – Acho melhor irmos de táxi, eu já passei da minha cota. – disse a mais velha. – Nem pense em levantar daí, eu mal comecei. – Amanda, você não vai me perdoar por isso, amanhã, quando a sua cabeça estiver pesando uma tonelada. – Quem disse que eu me preocupo com o dia de amanhã? – Amanda – peça mais uma dose pra mim. – cortou a atriz, resoluta. – A última. Aquele trecho do diálogo fez parte dos últimos flashes que Amanda recordaria com clareza no dia seguinte, acometida de uma ressaca muito maior do que até mesmo Tina havia premeditado. O que ela só lembraria muitas horas mais tarde aconteceu depois que Tina ignorou o pedido de Amanda para que a levasse para casa. Com um plano simples e sem chances de erro, as duas acabaram no apartamento da professora de canto e embora soubesse que a mais nova estava muito longe de seu juízo perfeito, Tina reconheceu, admirada, que mesmo com o álcool, Amanda preservava todos os seus reflexos, sentidos e habilidades. – Você está bem? – perguntou Tina, girando a chave da porta.
– Nunca me senti melhor. – respondeu Amanda, aproximando-se da outra. – É isso que você quer? – quis saber Tina, ao notar os pulsos de Amanda sobre seus ombros. – Não era isso que você queria quando me chamou para sair? Ou melhor! – a mais nova deu as costas à outra e se afastou alguns passos, um pouco tonta pelo movimento brusco. – Quando entrou no meu camarim? – Sua impetuosidade pode custar muito caro, garotinha. – Tina a puxou para si pelos cabelos, no limite exato entre a violência gratuita e o flerte. – E você vai cobrar pessoalmente, professora? Tina tomou seus lábios sem demora, beijou-os, mordeu-os, lambeu-os, beijou-os novamente, e tomando Amanda em seus braços com segurança, conduziu-a até sua cama, sobre a qual ambas se deitaram já praticamente despidas. Os dois corpos se encontraram e se encaixaram em perfeita harmonia, entre beijos e carícias ardentes, cuja dor que poderiam gerar era abrandada pelo efeito anestésico do álcool. Embora tivesse se prometido que aquilo não voltaria a acontecer tão cedo, Tina não poderia negar para si mesma que ansiara por Amanda em todos os segundos que separavam a noite no sofá do camarim da soprano, sob o risco de serem apanhadas, do momento presente. Quando a língua de sua amante passou a explorá-la entre as coxas, julgou ter sucumbido a um estado letárgico que lhe remetia a uma espécie de inocência perdida há muito tempo. Seus próprios gemidos, quase gritados, acabaram por lhe despertar e os arranhões de Amanda por toda a sua pele a impediram de retornar à inércia. O ritmo ditado pela mais jovem se tornou frenético e Tina acabou por cobrir seu próprio rosto com o travesseiro e uma porção do lençol que seus punhos cerrados conseguiram apanhar enquanto seu corpo se contorcia sobre a cama. – Amanda – cala a boca! – cortou a soprano, percorrendo o ventre da outra com seus lábios, alcançando os seios, o colo e detendo-se no pescoço. – Eu deveria te oferecer Cosmopolitan mais vezes. – disse Tina, entre risos, satisfeita com as carícias da outra. – Trate de aproveitar, querida, não posso prometer que isso irá se repetir. Imediatamente Tina girou seu corpo, levando Amanda consigo e se colocando sobre ela, com uma expressão dominadora na face. – Você vai repetir sempre que eu quiser. – Veremos...
A resposta de Amanda foi interrompida pela sensação de prazer que a dominou quando Tina consumou aquele ato muito antes do que ela imaginava. O que conhecia sobre a mulher com quem fora para a cama mais uma vez era que a professora tinha hábil paciência para deixá-la ansiosa ao ponto de implorar; ainda assim, não se importou com sua nova postura, e os novos arranhões que marcaram a pele de Tina lhe confirmaram que nada havia ali que qualquer uma das duas quisesse interromper ou mesmo retardar. A exaustão e o álcool conduziram ambas ao sono profundo quase imediatamente após novo o clímax, e aquela noite ficaria guardada em detalhes precisos na mente de Tina, mas apenas em efêmeras recordações camufladas no inconsciente de Amanda.
(até o próximo capítulo) Notas Finais: um pirulito para quem adivinhar em quem eu me inspirei para o sobrenome da jornalista, hihihi Voltar para o índice Champagne escrita por Sara Lecter
Capítulo 12 – Champagne Quatro meses depois do telefonema de Jerry, na primeira vez que conseguiu se organizar para passar pelo menos uma semana em casa, Kirsten procurou Amanda no teatro e os primeiros diálogos foram tensos e cercados de insegurança. – Ouvi dizer que você estava filmando de novo. – disse Amanda, no camarim, despindo-se de Christine, como fazia quatro noites por semana. – É um trabalho que ainda dará o que falar. – Kirsten mal podia conter a própria euforia por saber que aquele filme seria um grande divisor de águas em sua carreira. – E você, ao que me informaram, faz um barulho cada vez maior. Amanda não respondeu. Parecia ligeiramente insegura. Kirsten tentou se aproximar e notou resistência. “Chateada? – De forma alguma. Eu deveria ter me colocado em meu lugar e sabido desde o começo que não poderia ir além... do que aconteceu. – É isto que você acha? – Caramba, Kirsten, você foi para o outro lado do país e nem telefonou! – Sentiu a minha falta? – Kirsten se aproximou, quase tocando a nuca de Amanda com os lábios.
Amanda não respondeu de imediato. Seus cabelos negros estavam ainda umedecidos pelo suor do esforço no palco. – Eu pensei em você, sim. – Perguntei se sentiu a minha falta. – Kirsten tocou-a na cintura e a obrigou a se virar. – Deveria? Poderia? Você mesma disse que nunca se envolve com ninguém. – Tem razão. – Então o que faz aqui? – Eu senti a sua falta. Quero te ver de novo. Estava trabalhando, não tive tempo de me ocupar com isso, mas... – E depois? E quando estiver trabalhando de novo? – Eu só disse que queria te ver novamente. Amanda mordeu os lábios. Estava tomando fôlego para dizer mais alguma coisa quando Gail entrou no camarim e ela se afastou de Kirsten imediatamente, antes que a outra pudesse notar o que se passava. Kirsten entendeu tudo em uma fração de segundo. Cumprimentou Gail polidamente e saiu do teatro sem olhar para trás. Dedicou a semana seguinte a Richard e Debra, período insuficiente para matarem as saudades. Em um jantar de sexta-feira, no qual Debra preparou sua especialidade, Kirsten tocou pela primeira vez no nome de Amanda Roberts para seus amigos. No final de semana seguinte Richard tratou de pôr seus contatos para trabalhar e descobriu que Amanda e Gail tinham um relacionamento substancial há mais de um ano, embora não se apresentassem como namoradas. – Gail... – disse Kirsten, em uma tarde entre amigos, no meio da semana. – Ela nem ao menos tem um nome decente. Richard e Debra riram da amiga. – Ciúmes? – Por que não? Foi uma noite inesquecível. – admitiu Kirsten. – Uma noite inesquecível com uma garota que está se tornando o nome mais comentado na Broadway e que tem dona, lindinha. – disse Richard. – Eu vou te dizer quem parecia dona dela quando... – Kirsten mordeu os lábios e mudou o tom da frase. – Bom, vocês entenderam.
– Deixa de besteira, Kiki, você gamou nela porque não pode tê-la. Olhe para os lados, qualquer ser que respire deseja você. Escolha outra. – disse Debra. – Não. Eu quero ela. – um sorriso misterioso dominou a face de Kirsten. – Pouco me importa se não posso. Richie, o telefone dela, conseguiu? Ele consultou a agenda de seu celular e passou o número para Kirsten, que não anotou. – Vai decorar, é? – Não, não vou ligar. Você vai fazer isso por mim. – ela sorriu. – Não me meta nas suas maldades. – Debby? – Nem pense nisso. – Qual é, garotas? Pela nossa amizade! – Não quero participar de uma brincadeira estúpida. Você nunca foi assim, Kiki. Que foi? O sol da Califórnia torrou seus miolos? – Talvez. – Pois eu acho que existe uma explicação mais racional. – disse Debra. – Você está gostando dela. Kirsten gargalhou, enquanto Richard concordava com a afirmação da outra. – Vocês não entenderam, não é? E se de fato eu gostar dela? E daí? Eu não posso fazer nada. Eu não quero viver me escondendo nem quero meu nome relacionado a matérias sensacionalistas. Se apaixonar não é tudo. – Esse seu medo de que alguém saiba de alguma coisa atrapalha tudo! – reclamou Richard. – Não é medo, é precaução. Uma bomba dessas seria o fim da minha carreira. – Você não liga para a fama. – Mas ligo para o cinema. Eu morreria se tivesse de parar. Nenhum diretor respeitável chama uma atriz polêmica para um bom papel. Isso está muito claro para mim, garotas. Eu nunca vou assumir. Só se der um tiro na cabeça no dia seguinte. – Isola, lindinha! – Richard bateu três vezes na mesa de madeira do café.
– E a Jodie Foster? – disse Debra. – Ela é sapatão e já ganhou até Oscar. – Ah é. – concordou Richard. – E a Angelina Jolie? Quer papéis melhores que os dela? Ela assumiu um caso com uma oriental anos atrás. – Angelina é muito bem casada com um homem e tem uma penca de filhos. E Jodie ganhou o Oscar antes de assumir, o que aliás, fez há pouquíssimo tempo. Não adianta argumentarem, é decisão tomada e irrevogável. Dito isto, Kirsten voltou a sua casa. Richard estava certo a princípio, ela memorizara o número de Amanda e nem por um segundo hesitara em apanhar o telefone e marcar um encontro. Tinha grandes planos ainda para aquela semana. Amanda e Kirsten caminhavam vagarosamente pelo parque no qual haviam se encontrado outra vez, o Sara Roosevelt. A loira contava detalhes de suas filmagens em Los Angeles e uma rápida discussão política tomou conta das duas. Kirsten defendeu a idéia de que mesmo com o papel central, pouco ou nada poderia fazer por trás das câmeras, para impedir todo o jogo de interesses que cercava a produção e influenciava o vasto mercado do cinema; ao que Amanda contra-argumentou que se alguém pudesse usar sua influência para mudar a América com alguma chance de êxito, esse alguém era Kirsten. Por fim, a loira quis saber do andamento do musical e Amanda revelou que em breve começariam uma turnê mundial. Era a deixa que Kirsten aguardava para sugerir uma comemoração. Propôs que jantassem com Richard e Debra, o que Amanda acabou aceitando, muito por sua curiosidade em conhecer os amigos de quem Kirsten falava com tanto entusiasmo. A noite foi um estrondoso sucesso. Amanda, Debra e Richard pareciam amigos de infância depois de meia hora. Com duas garrafas de vinho consumidas, já estavam trocando confidências. Embora por vezes absorta em devaneios, Kirsten participava de seus assuntos animadamente. Deixaram o restaurante já perto da meianoite e as duas atrizes seguiram de táxi para um motel, meticulosamente escolhido pela discrição. Kirsten pediu champagne, mas as duas já estavam seminuas e a meio caminho da cama quando o garçom bateu à porta, de modo que a garrafa ficou esquecida sobre o móvel enquanto se dedicavam apenas uma à outra. Amanda percorria a pele de Kirsten ligeiramente ofegante, deixando propositalmente para livrá-la da calcinha apenas quando isso se tornou inevitável. A loira contorcia-se de desejo e prendia os lençóis entre suas mãos ansiosas, enquanto Amanda estimulava seu clitóris quase que ritualisticamente. Deixou-a implorar para que a fizesse gozar, fazendo questão de deixá-la apreensiva quanto a consumação do ato, por alguns instantes. Depois, não deu tempo para que Kirsten retomasse o fôlego, penetrando-a com o dedo médio até lhe arrancar gemidos primitivos enquanto acariciava sua intimidade com uma excitação crescente. Cobriu o corpo da loira com o seu, sem deixar de penetrá-la cada vez mais forte e mais rápido. Seu próprio sexo se chocava contra o corpo de Kirsten, de modo que gemiam e sentiam prazer juntas. Kirsten puxou seu rosto para perto e a beijou intensamente, deixando Amanda perceber que a levaria ao clímax mais uma vez. – Eu sou louca por você, Mandy...
– Mandy? – Não posso chamá-la assim? – perguntou, com o coração acelerado. – Você pode me chamar do que quiser, se continuar gemendo desse jeito. Kirsten obedeceu. Gritava de prazer e puxava Amanda cada vez mais para perto de si. A morena já não conseguia suportar. Permitiu que Kirsten estendesse o braço entre seus corpos e a acariciasse também, não se demorando grande coisa para penetrá-la, percebendo que ela não precisaria de muito tempo. Amanda desacelerou seu próprio movimento, Kirsten estava descontrolada e ela queria esperar para que gozassem juntas, o que aconteceu cerca de cinco minutos depois. Os cinco minutos mais bem aproveitados de sua vida até ali, segundo julgamento acalorado pela emoção do momento. Praticamente restabelecida, Kirsten apanhou a bebida do móvel, e embora esta tivesse repousado em um balde de gelo, perdera algo de sua temperatura ideal. Kirsten não se chateou. Tinha outros planos e eles não envolviam as duas taças, que ficaram no móvel, de qualquer forma. Amanda sorriu ao perceber as intenções de sua amante. Viu Kirsten sorver a bebida em pequenos goles, sobre a sua pele, em uma carícia demorada e muito bem executada, que a deixou tão ou mais excitada do que estava antes de começarem. Apanhou a garrafa e fez o mesmo, derramando champagne sobre a pele claríssima de Kirsten e sugando sem pressa, saboreando não o gosto da bebida, mas o de sua amante. A ousadia retornou às carícias e elas fizeram amor mais uma vez, embaladas pelo desejo e por uma sintonia que só fazia crescer entre elas. Naquela madrugada, em um motel famoso pelo luxo, mas também por seu esmero intransponível em manter o anonimato de seus clientes, Amanda Roberts e Kirsten Howard não poderiam imaginar que passariam muitas outras oportunidades assim. Não poderiam imaginar que chegariam a dividir um lar, como nunca planejaram fazê-lo, não por serem lésbicas, mas por abrigarem em seus corpos, que sabiam provocar prazer mutuamente, duas almas que se julgavam livres demais – e que provavelmente por isso acabariam encontrando par uma na outra. A despeito disso, ou por já desconfiar do que a aguardava, Kirsten deixou Amanda em casa, passou em seu sobrado quando o sol já estava alto, arrumou suas malas e partiu sem previsão de volta. Amanda só ficaria sabendo que Kirsten estava na Rússia pela imprensa, que divulgava o esforço da jovem atriz em absorver o máximo de suas personagens, estudando russo e fazendo aulas de tiro e artes marciais. Kirsten voltou aos Estados Unidos para divulgar seu grande filme, que finalmente fora finalizado. A pré-estréia fora no Festival de Berlim e o Urso de Prata foi apenas o primeiro dos muitos prêmios que ela receberia por aquele trabalho, que incluíam as estatuetas de roteiro, pelo qual era parcialmente responsável. Amanda só a viu pelas revistas e pela televisão, concluindo particularmente que a beleza de Kirsten estava em uma curva ascendente desde que entrara em sua vida. Por outro lado, já a conhecia o suficiente para saber que a Kirsten Howard que o mundo admirava era nada mais que apenas uma personagem. Uma atriz que trazia a raras combinações e que recusava os cachês milionários de seus pares em favor das cifras estabelecidas pelo sindicato de Hollywood, o que a deixava em alta conta com o baixo-clero e a fazia odiada por algumas estrela s do seu cacife. “Inveja
pura”, dissera Kirsten à Richard, Debra e Amanda naquele jantar que a morena jamais esqueceria. Quando estava entre amigos, Kirsten era uma garota normal que encarava o fascinante circo de Beverly Hills como um trabalho qualquer. Com gente boa e gente ruim, talentosos e aproveitadores, simpáticos e sisudos, velhos medalhões e jovens de sucesso meteórico, mas passageiro. Para Amanda como para a maioria dos mortais, Hollywood era simplesmente a terra dos sonhos e chegava a incomodar ouvir Kirsten falar com tanto desapego.
(até o próximo capítulo) Notas Finais: também pensei em chamar esse capítulo de "Mandy", mas ficou assim mesmo. Voltar para o índice Mundo afora... escrita por Sara Lecter
Capítulo 13 – Mundo afora... A estréia da turnê mundial do musical de Amanda Roberts foi em Londres, com a Royal Opera House lotada graças a fama que ela alcançara em Nova Iorque e que a partir de então passaria a precedê-la em qualquer lugar que se apresentasse. Pela primeira vez em muito tempo sua voz falhou diante de um público ansioso. Kirsten Howard se sentava na primeira fila e os seus magníficos olhos verdes foram a primeira coisa que a estrela encontrou quando as cortinas se abriram. Ela sorria, fascinada e orgulhosa, e não fosse o olhar que ela reconheceria em qualquer lugar, quase não a teria identificado. Estava completamente mudada, os cabelos receberam apliques e estavam negros como o ébano. Sua pele poderia estar ligeiramente amarelada, ou era efeito da iluminação, Amanda não tinha certeza. Além disso, seus olhos haviam adquirido um formato sensivelmente mongol. Passaria por Russa sem abrir a boca – e Amanda lera recentemente que Kirsten já não tinha dificuldades com o idioma. Mesmo tendo aguardado muito por aquela noite, não via a hora de encerrar o espetáculo. Tão logo as cortinas se fecharam – e ela observou o lugar vago na primeira fila quase no final do último ato – Amanda correu para a coxia e encontrou em seu camarim, séria e deliciosamente irresistível, a única pessoa que queria partilhar da companhia naquela noite de consagração. Beijaram-se antes de qualquer coisa. Com paixão. Com urgência. Desesperadamente. Kirsten não conseguia soltá-la do abraço que sucedeu o beijo. – Você está diferente. – Você continua linda. – devolveu Kirsten. Bajuladores as interromperam e Amanda teve de aceitar seu destino cruel de jantar com a aristocracia inglesa. Kirsten foi para o hotel e elas só se viram
novamente no almoço do dia seguinte. Por força dos ensaios e da divulgação do musical, Amanda passou o dia detida. Kirsten não se importou. Trazia na face o sorriso inabalável de quem acabara de subjugar a crítica internacional com seu filme mais recente. A partir daquele momento – disse, em confidência à amante – a atuação seria um mero detalhe. Assim que voltasse aos Estados Unidos abriria um estúdio, não em Los Angeles, como todos os grandes do mercado, mas em Nova Iorque, a cidade que amava, e seria antes de qualquer coisa, produtora. Àquela altura Amanda já sabia que anonimamente Kirsten era uma das responsáveis pelo espetáculo que ela estrelava. Não se incomodava. Era mais um motivo para não se distanciarem mais. Enquanto finalizava sua atuação em uma trama de suspense e espionagem, situada no conturbado período da dissolução da União Soviética, Kirsten arranjava tempo para freqüentar os maiores e mais charmosos teatros do mundo – arte que aprendeu a admirar – , acompanhando Amanda aonde quer que seu talento se apresentasse: Londres, Paris, Madri, Barcelona, Lisboa, Roma, Milão, Praga, Berlim, Frankfurt, Sofia, Moscou, Estocolmo, Oslo, São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires, Santiago, Cidade do México, Toronto, Cidade do Cabo, Dubai, Sydney e Tóquio. Quase no final daquele ano agitadíssimo, alguns veículos de imprensa apontaram a estranha coincidência e Kirsten disfarçou muito mal suas recusas em continuar freqüentando lugares públicos ao lado de Amanda.
333 Amanda fizera companhia a Oliver Townsend no almoço com os patrocinadores do musical em São Paulo. Hospedara-se com o restante do elenco em um hotel, como o costume das turnês, e ao retornar ao seu quarto, já na metade da tarde, encontrou mais do que um sem número de arranjos de flores. Gail jazia sentada sobre sua cama, tendo no colo, aberto, o diário onde Amanda guardava seus maiores segredos. – Você consegue me dizer o que é isso? – disse a garota, e Amanda pôde notar que seus olhos estavam avermelhados. – Onde encontrou isso, meu bem? – Na sua mala, exatamente onde você deixou. – Mexeu nas minhas coisas!? – Não vai adiantar nada tentar virar isso contra mim, Amanda. Eu estou cansada de todas as suas mentiras, estou cansada de ser feita de trouxa. – O que está dizendo? – Todas essas fotos... – Gail apontou para o diário. - ...os recortes. Quando lhe perguntei sobre Kirsten Howard no seu camarim, você disse que era fã, mas nunca mencionou que isto havia se tornado uma adoração, como é o que esse diário dá a entender.
– Ela é uma atriz, Gail, não tem nada de errado com isso. Você tinha um álbum desses, do Leonardo DiCaprio, quando era adolescente, lembra? – A diferença era que eu sabia o meu lugar e não fui atrás dele. – Eu nunca fui atrás da Kirs... – Amanda só se deu conta do que dizia no meio da frase. – Ela, pelo contrário, eu já vi mais de uma vez no seu camarim. Amanda se sentou sobre uma das cadeiras de seu quarto e ficou encarando o vazio. Depois de tanto tempo, já não conseguia sentir mais nada, nem bom nem ruim, ao se dar conta do papel ao qual submetia Gail. Até mesmo a amizade que as unira, a princípio, parecia naquele momento algo distante e incompreensível. Algo que não fazia mais parte de sua vida. – Kirsten é uma das produtoras da nossa peça, sócia de Oliver, e eu me apaixonei por ela. – Isso não pode ser verdade. Você ama uma imagem de revistas, uma personagem de cinema, e isso não existe, Amanda! – Gail voltou a chorar. – Eu amo a mulher que está por trás de tudo isso. Essa é toda a verdade. – Ela nunca vai olhar pra você!!! – Gail... Eu não quero te fazer mal. Gosto de você, mas... – Você não percebe!? É uma ilusão. Eu sou real. Nós duas somos. Descobrimos juntas que nos amávamos, eu esperei com paciência até você terminar com o Fred, nós nos tornamos profissionais juntas e agora temos todas essas viagens... é como uma lua-de-mel pra mim, Amanda. Não estrague tudo por causa de uma pessoa que só existe numa tela de cinema! – Você sempre me fez muito bem, Gail. Mas eu não quero mais. – Por quê??? – Não faz mais sentido. – Faz sentido pra mim. Faz todo o sentido do mundo. O que você vai fazer? Correr atrás dessa Kirsten Howard? Correr atrás de um rosto num cartaz? – É mais do que isso, Gail. Não quero entrar em detalhes para não lhe machucar, mas Kirsten já é muito mais do que isso na minha vida. – Ela está te usando, Amanda! – Eu não me importo.
– Ela cuida de você? Ela sabe do que você gosta? Ela vive pra você, como eu? Ela te entende quando o mundo inteiro te condena, Amanda? Ela vai estar do seu lado se tudo desabar, se a Broadway se for, se o senhor Townsend decidir que você não é mais a queridinha dele? – Eu não sei. – Então!? – Gail... – Ela vai te deixar, Amanda. Posso sentir isso. – Já disse que eu não me importo!!! – Amanda sentiu uma dor aguda e intensa ao pensar em todas as estimativas da namorada. – Por mim ela pode fazer o que quiser, pode continuar me usando, pode sumir de novo, pode voltar a ser apenas um rosto bonito na tela de cinema. O medo que eu tenho de perdê-la não pode ser maior do que tudo que eu sinto no pouco tempo que consigo ficar com ela!!! Gail não disse mais nada por longos dez minutos, limitando-se a chorar aos soluços. Amanda deixou que o peso de todas as suas preocupações a dominasse e também chorou, mas nenhuma das duas procurou abrigo nos braços da outra. Foi um choro solitário de duas pessoas morrendo de medo do abandono. – Quando ela arruinar você... – Gail se levantou e andou até a porta. ...eu ainda estarei por perto e vou lembrar desse dia, Amanda Roberts. E você vai lamentar até a última raiz de cabelo ter jogado fora todos os nossos planos. – O que mais quero é que você fique bem, Gail. Nunca quis te magoar. – Mas magoou, Amanda. E vai ter de viver com isso. Amanda fechou os olhos com força depois que Gail bateu a porta com toda a força. Protelara o máximo possível aquele acerto de contas, mas terminar com Gail era um plano bastante antigo. Tinha pela amiga um carinho muito grande, mas sabia que nunca fora apaixonada por ela, nem mesmo quando ainda namorava Fred.
333 O musical só entrou em férias por uma semana, nas cercanias do Dia de Ação de Graças. Debra, que durante todo aquele tempo não parara de colecionar prodígios culinários – e fracassos amorosos –, preteriu os pais “com cheiro de mofo” – suas próprias palavras – e ceou com Richard, Kirsten e Amanda, no apartamento do coiffeur, que arrancou risos ao recebê-las de cavanhaque e fora obrigado a voltar a se barbear antes de se sentar à mesa com aquele aspecto que foi chamado de ultrajante pelas mulheres da sua vida, acostumadas com seu rosto limpo – a não ser pelo rímel discreto.
– Quem faz a prece? O dono da casa? – sugeriu Debra, ao servir seu peru recheado com frutas tropicais, o que agradou Kirsten e Amanda, que acabavam de voltar da América do Sul. – Tudo bem, tudo bem, antes que comecem a implorar. – iniciou Richard. – Senhor Deus bondoso e todopoderoso, nos reunimos nesta mesa e queremos agradecer pelo Peru de cada dia e – Pára, Richie! – ralhou Kirsten, depois da piada de duplo sentido mais famosa do mundo. – Ok, - ele pigarreou. – Senhor Deus, bondoso, todopoderoso, benevolente e... e... se eu disser “caridoso” vai parecer muito bicha! – Continua, Richie. – Debra estava disposta a fazer tudo do modo certo naquela noite. – Está bem, querido Deus frutinha que também gosta de Peru como qualquer mortal – hei!! – Amanda e Kirsten protestaram na mesma hora. – Argh! Última tentativa: - ele elevou o tom de voz. – Querido Deus que nos oferece esse maravilhoso Peru de Ação de Graças, preparado pela minha linda amiga, que não vê um bom Peru há anos – mesmo que as outras rissem, Richard não interrompeu seu discurso. – nós queremos te pedir que perdoe esse jovem casal – ele apontou para Kirsten e Amanda – que só lembra do Peru nesta data. Eu Richie, sua serva fiel, quero pedir muitos Perus, no Natal, no Ano Novo, no Dia de Reis, na Páscoa, de preferência em toda a Quaresma e... bem, Deus, você entendeu. Então, vou pedir em voz alta o que peço em silêncio todos os anos – ele esperou que as amigas o encarassem, sabendo que estavam curiosas. – Quero apenas que no próximo Dia de Ação de Graças estejamos todas aqui, de novo. Com Peru ou sem Peru, não importa, porque estas três belezinhas são a minha vida e eu não seria uma mulher completa, não fosse pela força delas. Alguns instantes de silêncio precederam a próxima fala. – Richie, foi um lindo discurso. – disse Debra. – Só que você nunca vai ser uma mulher completa... – Oh, eu sei. – respondeu ele, tomando a iniciativa de se sentar. – Precisava terminar com algo de efeito. Caíram na gargalhada, embora intimamente todas dissessem amém para a prece de Richard. Nada lhes parecia mais especial do que passar mais um ano reunidos pela amizade que os fazia mais fortes. Depois daquela noite, Kirsten voltou para Los Angeles, onde gravava, Amanda partiu para o Canadá e Richard e Debra receberam um cartão postal das amigas indicando que haviam passado o Ano Novo juntas, na África. Falavam-se praticamente
todos os dias, por telefone, mas não encontravam disponibilidade para se reunir, de modo que a prece de Richard começou a ficar ameaçada pelo excesso de trabalho de Kirsten e principalmente de Amanda.
333 Exausta e consagrada, a estrela dos palcos voltou a Nova Iorque no dia do lançamento do novo filme de Kirsten, que dividia a cena com dois outros grandes nomes do cinema, pelos quais se derramava em elogios publicamente, mas que desprezava até o último segmento de sua alma na intimidade. Ainda que atarefada com o personal stylist, maquiadores, produtores e telefonemas da imprensa, Kirsten achou que aquele seria a dia perfeito para fazer à Amanda um convite inusitado. Voltara à sua aparência original: loira, olhos verdes e nenhuma insinuação mongol, desfazendo os rumores de que se submetera à cirurgia plástica para encarnar o papel. – Quer dizer que é aqui que você se esconde do mundo? – perguntou Amanda, diante do portão. – Estou te apresentando a única parte de mim que você ainda não conhece. – É lindo! – exclamou Amanda, observando o sobrado. A casa tinha três andares, sendo o último marcado pelo caimento do telhado que lhe conferia um charme único, como se estivesse perdido no tempo e sobrevivesse ao crescimento de Manhattan. As janelas eram amplas e a grama tinha um verde especial, cortada por um caminho sinuoso de pedras escuras que conduziam até a porta, em uma pequena varanda repleta de flores. A cerca era de madeira crua e Amanda se surpreendeu com a aparente falta de segurança. Kirsten explicou que nunca tivera problemas nem quanto à violência e muito menos quanto à privacidade. Entraram sem pressa, Kirsten permitindo que a namorada tomasse a frente. Havia um pequeno hall que terminava em cinco degraus. A biblioteca era a primeira coisa que se poderia ver, rebaixada. Kirsten indicou um corredor aberto que levava a uma sala com puffs e sofás, além de uma enorme televisão e uma coleção de DVD‟s. Uma grande janela dava para o jardim dos fundos, onde se podia ver uma piscina modesta e alguns ciprestes que separavam o lugar do alcance da vizinhança. Amanda não pôde identificar à primeira vista em que consistiam os outros cômodos – estes fechados – do primeiro andar. Voltaram ao hall e subiram um pequeno lance de escadas, alcançando a cozinha aconchegante e charmosamente simples, quase colonial, aspecto acentuado pelas cortinas estampadas e pela cerâmica de aparência envelhecida nas paredes. Adiante havia uma sala de jantar e, à esquerda, o que Kirsten chamava de estúdio, para o qual não convidou Amanda a entrar. Voltaram às escadas e Amanda encontrou os quartos após subir dois lances de degraus projetados para não causarem esforço. Viu duas portas fechadas e a suíte principal aos fundos, com varanda sobre a piscina. Sobre a cama jazia o Valentino negro que Kirsten usaria do Madison Square Garden àquela noite, além de uma pequena caixa aveludada.
– Gostou? – Kirsten indicou a peça, de tecido leve, desenhada especialmente para as suas formas. – O vestido? É lindo. Vem com a dona? – perguntou, maliciosa. – Talvez. É algo a se pensar. O que você prefere? – Entre o vestido e a dona? – É. Ou os dois, talvez. – A dona, mas sem o vestido... Atiraram-se aos braços uma da outra. Depois de muito tempo, aquela era a primeira vez que conseguiam ficar a sós e Kirsten experimentava com ineditismo a dor e a delícia de ter alguém que era só sua e a quem considerava pertencer exclusivamente. – Eu te amo, Mandy. – disse, timidamente. Amanda não se assustou. Kirsten ainda não verbalizara tal sentimento, mas o demonstrava sem hesitação já a algum tempo. – E eu... – a morena empurrou a namorada sobre a cama e se deitou sobre ela, aos beijos. - ...senhorita Howard, te amo mais! Kirsten apanhou a caixa aveludada sobre a qual fora jogada. Abriu com certa dificuldade, tendo de se livrar dos avanços de Amanda, que já lhe abrira o zíper da calça. – Hei, espere. – Fora de cogitação. – disparou a outra, decidida, livrando-se da própria blusa e tentando fazer o mesmo com Kirsten. – Você é só minha, agora. – Sou... mas espere um instante. – insistiu. – Que é? – perguntou Amanda, com a voz abafada pelos seios da namorada, os quais beijava com urgência. – Quero que use isso. – a loira tirou da caixa um colar de ouro branco com um pequenino pingente em forma de coração. Discreto, terno e indiscutivelmente belo. – Agora? – Amanda tentou disfarçar sua grata surpresa. – Sempre.
Amanda se sentou sobre as próprias pernas flexionadas. Apanhou a jóia e a manteve suspensa diante dos olhos. Notou que havia mais alguma coisa na caixa e viu que Kirsten tirava um colar idêntico de dentro dela. “Chega de brincadeiras, Mandy. Foi maravilhoso passar quase dois anos rodando os quatro cantos do Planeta do seu lado, mas eu quero ter certeza que estaremos juntas sempre que pudermos voltar para casa. – Eu... é lindo! Eu... Sweety, eu não sei o que dizer. – Kirsten observou os olhos de Amanda ficarem marejados. – Diga apenas “sim”. Encararam-se por mais tempo do que poderiam contar, decorando suas reações e guardando para sempre, não na memória, mas em seus corações aquele momento especial. – Sim! Sim! Sim! Mil vezes sim! Eufórica, Amanda tomou os lábios de Kirsten e a puxou para perto de si, chegando próxima de sufocá-la, com um sorriso maior que sua face. A seriedade voltou aos poucos, como voltou aos poucos a necessidade do toque, de sentir e de causar prazer físico proporcional a satisfação de seus espíritos. Kirsten chegou atrasada na première, o que foi considerado charmoso pela imprensa, e anotou mentalmente que deveria fazê-lo mais vezes. Um sorriso dominou sua face enquanto deixava a limusine e pisava firmemente no tapete vermelho, posando para os fotógrafos do alto de quinze centímetros de salto e envolvida por mais ou menos a mesma quantidade de tecido. Embora ninguém ali soubesse, todos muito ocupados com os flashes, a motivação de sua notável felicidade não era fazer boa figura nos periódicos do dia seguinte, sobre os quais nem ao menos passaria os olhos. Seu coração disparava e seus olhos brilhavam toda vez que lembrava que Amanda aceitara o seu pedido e que a partir daquela noite – contrariando todas as suas próprias previsões – Kirsten Howard era uma mulher casada. Pouco importava para ela se menos de dez pessoas poderiam saber daquilo, pois conservava a crença de que o que é mantido em segredo se preserva melhor.
(até o próximo capítulo) Voltar para o índice O Enredo escrita por Sara Lecter
Capítulo 14 – O Enredo Kirsten, Amanda, Debra e Richard viajaram juntos para uma praia remota do Caribe assim que fora encerrado o último ciclo de divulgação do novo filme da loira, que no longa estava praticamente irreconhecível como uma assassina russa. Com a imprensa sem qualquer pista do paradeiro da estrela, o quarteto aproveitava o anonimato para se divertir. Degustavam frutos do mar já na metade da tarde, trocavam confidências e bebiam algo com nome impronunciável, mas gosto de abacaxi e levemente alcoólico. – Larga esse livro, lindinha. – pediu Richard à Amanda. – Um paraíso como este e você parece nem piscar! – Desiste, Richie. – argumentou Kirsten. – Há três dias que até eu sou preterida por esse romance. – Não é bem assim, sweety. Estou quase terminando, ok? – Isso você disse ontem. Debra riu das amigas e decidiu aliviar o clima. – Como é a história, Amanda? A morena mudou de posição sobre a cadeira de praia e colocou os óculos escuros que repousavam em sua testa antes de começar a falar, muito concentrada. – Subúrbio de Los Angeles, uma estudante de poucos recursos paga a faculdade dando aulas particulares. Afro-americana, órfã e cheia de amigos, ela enfrenta o preconceito dos pais de uma de suas alunas, que tem dificuldade com o idioma porque acaba de chegar da França para viver em Newport Beach. – Um romance adolescente? – quis saber Debra. – Também achei que fosse. – interveio Kirsten, que no entanto sabia um pouco mais sobre o enredo e mudara de opinião. – No começo, talvez. Mas elas se casam, a francesa é deserdada, elas enfrentam problemas reais, não é nenhum conto de fadas. – a partir dali, Kirsten ouviu com mais atenção. – Elas se mudam para New Orleans, crescem na profissão, se tornam empresárias, amadurecem juntas. – E então um rabo-de-saia entra na história e atrapalha tudo! – Richard tentou adivinhar o final. Amanda balançou a cabeça negativamente.
– É algo bem mais profundo do que isso, mas só conto quando terminar. – Legal. Vamos para a água? – propôs Debra. O sol se punha quando voltaram para a pousada. Amanda levou na bolsa o romance do qual não se separava e deixou Kirsten irritada ao abrí-lo enquanto esperavam a chegada do jantar, em um simpático restaurante francês. Qual não foi a surpresa dos outros três quando, durante a sobremesa, Amanda começou a chorar, mesmo que discretamente. – Mandy...? – Estou bem, é só... por causa da história... – ela se desculpou pela cena constrangedora. – Que isso, amor? – Kirsten a acariciou no rosto, ternamente. – É... muito muito triste. É a coisa mais triste que eu já li na vida. – ao invés de se acalmar, Amanda parecia cada vez mais emocionada e incapaz de se explicar. – Mandy, é só uma história. O que se passa? – Não é apenas uma história. É uma espécie de auto-biografia da autora, ela conta como se apaixonou pela Josie e – quem é Josie? – quis saber Richard. – Josie Duschamps, a francesinha. Elas estão bem e... elas venceram apesar de aparentemente o universo operar contra as duas, elas são felizes e... – Amanda mal conseguia recuperar o fôlego – então a Josie tem uma doença grave e vai definhando até a morte. É terrível! Kirsten se mantinha ocupada em acariciar o braço de Amanda e lhe dar apoio, mas sua mente já estava a quilômetros dali. Por alguma estranha razão aquela história a tirou do sério e ela soube, assim que a esposa terminou de contar, que aquele enredo ainda atravessaria a sua vida muitas vezes. “Elas foram tão felizes – Amanda continuou. – que a outra narra com detalhes a última noite que passaram juntas... ambas sabiam que a Josie morreria e, mesmo assim, elas... céus, eu teria morrido junto, de tanta tristeza! E elas fizeram amor sabendo que era a última vez, uma despedida definitiva e eterna! – Gente, eu estou arrepiada. – disse Debra. – Debby, Richie, eu vou levar a Amanda para o quarto. Por favor, nos desculpem. Nos vemos na piscina, para o café, amanhã? – perguntou Kirsten.
– Não! – Amanda protestou. – Você tem razão, é apenas uma história. Eu estou melhor. – ela observou os olhares. – Mesmo! Foi só... o calor da hora, já estou melhor. Kirsten a beijou na testa, carinhosamente. – Faremos o que você achar melhor. Se quer continuar aqui, continuamos. Se quer descansar, eu fico do seu lado até você dormir. – sorriu. Amanda deitou sobre o ombro de Kirsten e fechou os olhos. – Eu quero ficar aqui, com o amor da minha vida, os melhores amigos do mundo, um gostoso restaurante e um paraíso perdido na Terra, onde ninguém pensa que sabe quem somos. Ergueram um brinde e Amanda se animou. Richard foi o próximo a falar. – Eu não preciso vir para esse paraíso para não ser reconhecido. Nem a minha mãe me reconhece pelo telefone – risos – mas, ainda assim, não posso reclamar! – É isso aí. – Em pior situação está a Debby, - continuou Richard. – que em sua terceira viagem ao exterior, acrescenta mais um retumbante fracasso amoroso em sua lista. – Quer parar, sua chata! – Debra ameaçou o amigo com um talher. Kirsten e Amanda riram dos dois. Tinham às vezes a impressão de que Richard e Debra brigariam para sempre, principalmente depois que a chef deixara a casa dos pais para morar no quarto de hóspedes do coiffeur , cujo apartamento ficava confortavelmente próximo do restaurante onde ela começara a trabalhar como aprendiz – embora fosse melhor qualificada que seu superior, um nativo de Estrasburgo que contava quarenta e quatro anos de idade e dois casamentos fracassados. Já no quarto, antes de apagar a luz, Kirsten olhou pela última vez para o livro pousado na cabeceira por Amanda. Uma história verídica mais contundente do que algo que a imaginação humana poderia criar. A realidade sempre a assustava mais, e provavelmente por isso, depois de fazer amor com a esposa e de acariciá-la até que pegasse no sono, Kirsten tenha acendido o abajur e começado a ler o romance ali deixado, mesmo conhecendo seu final. Boas histórias não o eram pela surpresa que causavam, mas pelas marcas que deixavam e pelo modo como tocavam seus leitores ou expectadores. Mirou a capa, mais uma vez. “Susan Frears”. ivesse qualificaçte onde ela começara a trabalhar como aprendiz - embora a tda atravessaria a sua vida muitas vezes. acaba dAs informações sobre a autora e protagonista eram poucas e não havia foto, mas logo no primeiro capítulo ela mesma se descrevia, de modo que Kirsten pôde imaginar alguma coisa. Deveria ser muito bonita. Madrugada adentro, Kirsten devorava cada página, incapaz de ceder ao sono e abandonar o enredo. O sol nasceu, ainda
faltavam os últimos capítulos, mas por quatro ou cinco vezes a atriz se surpreendera fechando os olhos e perdendo a concentração. Fechou o livro, acomodou-se sobre as costas adormecidas de Amanda e mergulhou em um sono repleto de pequenos espasmos gerados pelas emoções da história que deixara para terminar de ler no dia seguinte. Amanda tentou acordá-la várias vezes, para que não perdessem o horário do café da manhã na pousada, mas foi impossível. Kirsten mal respondia e se entregava a exaustão. Amanda mirou o móvel da cabeceira e viu uma caneta que ficava ao lado do telefone servindo de marca páginas. Calculou, pelo volume de páginas viradas, que Kirsten deveria estar muito cansada.
333 O cotidiano de Amanda em Upper East Side logo a contagiou. Era apaixonada por Nova Iorque desde pequena e esse era o principal traço que a unia à Kirsten. Em tudo mais discordavam drasticamente. Amanda encerrara sua primeira turnê e começava a ensaiar uma nova montagem na Companhia Townsend, ocupando-se durante todo o dia. Kirsten começara um novo projeto: estava transformando em um roteiro cinematográfico a história que sua mulher lera no Caribe; como sua criatividade aflorava principalmente à noite e no decorrer da madrugada, dormia até a meia tarde. Nesse ritmo, contavam as novidades durante o jantar – não raramente acompanhadas por Richard e Debra – , e namoravam nos finais de semana, trancadas em casa, confortavelmente longe das lentes e dos olhos dos curiosos. – Como andam as coisas? – perguntou Amanda, entrando no estúdio que Kirsten mantinha em casa e beijando o rosto da loira. – Jerry tem novidades, começou a negociar os direitos da história com Susan Frears. – Ele está em Los Angeles? – Sim. Almoçaremos juntos, amanhã. – Hmm, então você vai dormir mais cedo hoje? – perguntou Amanda, sorrindo maliciosamente. Kirsten se virou, baixando a tela de seu computador portátil. Como Amanda estava em pé, ela a puxou para perto de si e seus beijos alcançaram a barriga da esposa, que ela expôs depois de levantar sua blusa alguns centímetros. – Acho que já estou indo para a cama, sim, encerrei por hoje. Mas não pretendo dormir tão cedo... – Melhor eu apressar o meu banho. – comentou Amanda, sorrindo. – Apesar do seu carinho, estou te achando preocupada. – disse a loira. – Algo aconteceu?
– Problemas de sempre, na Companhia. – Oliver? – inquiriu Kirsten. – Mais ou menos. Kirsten se virou, bufando contrariada. Como era sócia do Sr. Townsend, sabia dos pormenores daquele teatro e conhecera a primeira professora de canto de sua mulher. Ainda que Amanda não tivesse entrado em detalhes, sequer mencionado algo seguramente, Kirsten sabia que havia – ou que pelo menos houvera – algo entre Amanda e Tina. – Você não ia para o banho? – Sweety, ciúme, agora? – Claro que não, só acabo de ter uma idéia nova, não quero deixar para amanhã sob o risco de esquecer. – Você não me engana, Kirsten Howard. – E eu espero que você saiba que também não pode me enganar. – disse ela, incisiva. – Meu amor, o problema foi com a Tina, sim. Temos nos desentendido e às vezes acho que ela me envenena para o Oliver... – Despeito! – Seja o que for, pode prejudicar a minha carreira. – Você é perfeita nos palcos, Mandy. Não sei como ainda não percebeu que não precisa mais de Oliver Townsend nem de ninguém. Você é maior que essa Companhia. – Você acha? – perguntou Amanda, timidamente, notando que Kirsten não estava mais zangada. – Eu acho... – Kirsten se levantou e abraçou a esposa, aproximando seus rostos. - ...que me casei com uma grande atriz... – Kirsten a beijou brevemente. - ...e, principalmente, com uma linda mulher! Entregaram-se a um beijo ardente, intenso, urgente, que traduzia a falta que sentiam uma da outra no decorrer de suas semanas ocupadas com trabalho. Sem interromper as carícias, Amanda abraçou Kirsten pela cintura e começou a conduzi-la para fora do estúdio, rumo às escadas que levavam ao quarto. A loira não fez objeção e parou de beijá-la somente para rir quando as duas tropeçaram no último degrau, ocupadas que estavam em se livrar de suas roupas. – Sweety, o meu banho...
– Eu sei... – sussurrou Kirsten, ao ouvido da outra. – Quer companhia? Olharam-se por efêmeros instantes, seus peitos arfando e os lábios semiabertos, esboçando sorrisos contidos. Kirsten se lembrou que deixara o arquivo incompleto e o computador ligado, mas logo afastou tais preocupações. A única coisa na qual queria pensar era em como fazer daquela noite algo que Amanda demorasse a esquecer. Planejara tudo nos mínimos detalhes, mas precisava que a outra fosse surpreendida e então a beijou mais uma vez para que Amanda entrasse no banheiro de olhos fechados. Havia velas por todos os lados e a banheira estava preparada. Quando abriu os olhos, Amanda encarou a esposa e então viu, pelo sorriso que se formava nas extremidades dos lábios fechados de Kirsten, que aquela era mais uma das pequenas surpresas que a loira preparava para ela, de tempos em tempos, às vezes demorando um pouco para repetir o hábito, mas apenas para que Amanda esquecesse e se distraísse de novo. – Amor... – Te peguei de novo, não foi? Amanda balançou a cabeça afirmativamente, sorrindo. – Eu quero passar a eternidade do seu lado, Kirs. – Pode começar agora... – disse a outra, divertida. Não precisou pedir duas vezes. O roteiro ficou esquecido no computador ligado, no andar debaixo, e Amanda também esqueceu de seus desentendimentos com Tina. No dia seguinte, quando Jerry perguntou à sua cliente como ela estava, por educação ao cumprimentá-la, Kirsten não conteve um sorriso aberto e respondeu sinceramente: – Melhor é impossível, Jerry.
(até o próximo capítulo)
N/A: especialmente dedicado a mim. Oras. Melhor é impossível mesmo. Voltar para o índice Dúvida Cruel escrita por Sara Lecter
Capítulo 15 – Dúvida Cruel
Kirsten ainda comemorava as boas novas dadas por seu empresário no começo daquele mês. A escritora Susan Friers autorizara o uso de seu livro como base para o enredo que Kirsten compunha, e depois disso era apenas uma questão de tempo e trabalho para levantar os fundos necessários e conceber a produção. Contudo, Kirsten ainda estava presa por compromissos relativos ao último longa que filmara, para os quais tinha um sem número de aparições públicas programadas. Era sobre isso que ela e Jerry discutiam no final de uma tarde. – Esses caras aqui ligaram, – ele lhe alcançou um pequeno bilhete – parece que querem você num clipe deles. Eu já dispensei prontamente. – O quê? Jerry, é minha banda favorita! – É, eles alegaram isso. Fico me perguntando como é que sabem... – Devo ter comentado em algum lugar. Ligue de novo e veja como vai ser, dependendo das condições, eu adoraria fazer. – Você não pode, Kirsten. – E por que não? – Sua imagem, eu já disse! Está no meio do lançamento de um filme, vai aparecer em todos os periódicos. – Música e filmes não são a mesma coisa. – Eu poderia concordar se você não tivesse firmado o pé e feito aquela participação especial em uma série de TV. Foi um equívoco. – Eu adorei fazer aquilo. – Esse é o seu problema, você adora muitas coisas, Kirsten. Precisa aprender a se preservar mais. Aliás, este é o tema da nossa conversa. – Fale. – disse a loira, muito séria. – Você tem uma gravação essa noite, aqui em Nova Iorque. Um programa de entrevistas. – Sim, estou sabendo. Você os fez assinar o contrato? Kirsten incumbira Jerry de proibir, por meio de contrato prévio, qualquer emissora ou jornal de veicular notícias sobre a vida particular da atriz. Os apresentadores ou jornalistas estavam, inclusive, proibidos de dirigir à atriz qualquer pergunta que não se encaixasse estritamente em questões profissionais. Era dessa forma que ela mantinha seu casamento com Amanda seguro, longe dos curiosos. – Não houve jeito, dessa vez, Kirsten.
– Então eu não vou. Simples. Dê o seu jeito, invente uma intoxicação alimentar ou coisa do gênero. – Não é bem assim. Você sabe que tem compromissos. Eu já pensei em tudo, não se preocupe. – Então? – Você precisa ser vista com um homem em breve. Ainda apontam você como a ex de Sebastian Muñoz e isso não é bom. – De jeito nenhum. – cortou Kirsten. – Não precisa se envolver com ele. Basta que sejam vistos juntos, os dois confirmam um começo de romance e logo tudo termina, é bem simples, minha cara. – Simples? E o que eu vou dizer para a Amanda? – Ela sabia quem você era quando se casaram, não sabia? – Não vejo como isso pode dar certo, Jerry. Sinceramente... – Existe outra opção. – começou o empresário, incerto. – Hum? – Você assume. Aposto que Amanda iria gostar. Posso falar com as pessoas certas e fazer com que isso impulsione você antes de te derrubar. – Combinamos que estava fora de cogitação. – Só quis te lembrar disso, Kirsten. Ou você arruma um namorado de figuração e me deixa promover vocês, ou eu terei de fazer isso sozinho. Porque como você mesma disse, a outra opção está “fora de cogitação”. Nisso o empresário deixou o sobrado e Kirsten ficou detida em suas próprias divagações. Ligou para o celular de Amanda depois de algum tempo, tencionando apenas ouvir a sua voz, de modo que aquilo pudesse fazê-la mais calma, mas a outra não atendeu e Kirsten conhecia o motivo: estava ensaiando. Mesmo sabendo que iriam se ver em poucas horas, Kirsten subiu para o quarto que dividia com Amanda e abraçou o travesseiro da esposa, silenciosa, solitária, pensativa. Desde que fizera o primeiro filme, sabia que um dia teria de fazer uma escolha como essa... mas não conseguira pensar em mais nada além de se unir à Amanda para sempre, desde que a conhecera, e embora tivesse lutado muito contra essa vontade, aceitara seus próprios sentimentos quando a pedira em casamento. E arriscara, assim, a imagem perfeita que todos tinham de sua carreira.
333
Amanda tentou sorrir ao entrar na sala de Oliver Townsend, mas não conseguiu por alguma coisa que se parecia com intuição. Como se soubesse, desde o momento que fora avisada da conversa, que não gostaria nem um pouco de seu resultado. – Que bom que minha estrela pôde me atender prontamente. – disse ele, indicando a cadeira diante de sua mesa. – Olá, Oliver. Como foi de viagem? – Muito bem, obrigado. Sei que gosta de permanecer em pé, mas a conversa é longa, eu gostaria que se sentasse. – Fiz algo que fere nosso contrato? – quis saber ela, impaciente. – Não... não... – ele respondeu de maneira pensativa. – Esse novo papel... você está mesmo preparada para ele? – Oliver, eu estrelei uma grande montagem como meu primeiro trabalho aqui. Por que acha que não poderia fazer o mesmo agora que tenho tanta experiência? – Os produtores querem um rosto novo. Era só isso que eu tinha para te dizer, na verdade. Planejei rodeios, mas acabo de lembrar que você não gosta deles. – Como assim? – Você está fora da peça, não precisa mais ensaiar. Amanda sentiu que seu coração parara de bater. Cerrando os punhos, ela pensou em se levantar e deixar a Companhia imediatamente. Pensou por instantes que tudo estava perdido e que sua carreira estava acabada, que afinal de contas seus pais estavam certos e que ser atriz não era “para o seu bico”. Quase riu ao pensar que aquilo poderia ser uma praga rogada por Gail, que surtira efeito tanto tempo depois... Pensou em tantas coisas ao mesmo tempo que achou que também não estava pensando em nada. E então pensou no sorriso de Kirsten e no que ela dissera sobre Amanda ser muito maior do que aquela fajuta Companhia de Teatro. Muito maior que Oliver Townsend jamais fora. Entretanto ainda tinha por aquele homem uma sincera afeição e, finalmente, juntou forças para que aquela situação fosse revertida. – Desculpe, Oliver, eu não acredito nos seus argumentos. Pode me colocar para fora, o teatro é seu, a montagem é sua, eu só peço o meu direito de conhecer o motivo. – Eu falei sério sobre os produtores. – repetiu ele. – A peça exige muito mais da sua voz do que a primeira e você não está preparada. Foi improvisada como soprano da primeira vez, agora eu tenho tempo para treinar alguém melhor. – Vamos tentar de novo, Oliver. – disse Amanda, incisiva. – O que foi que a Tina lhe disse? – Tina? Por que pergunta isso?
– Oliver, não estamos no palco, nada de encenações. – Veja como fala comigo. – Desculpe. – Por que acha que Tina falaria alguma coisa? – Sei que ela me envenena contra você. – Está discutindo meu discernimento? – Estou dizendo que você não está sempre aqui e que quando ela assume a Companhia eu tenho sérios problemas. – Você já saiu com ela? – Não vem ao caso. – Já saiu com ela, Amanda? – Não preciso responder isso. – Pois eu penso que sim. E sabe? Eu já tive mais atrizes como você do que pessoas normais encenando minhas peças, não há muito o que se exigir em termos de comportamento quando se fala em atores de teatro. – Procure não ser grosseiro. – alertou Amanda. – Eu falo como bem entender dentro da minha sala, na minha Companhia. Eu acho que você fez a besteira de se envolver com a sua professora, e mais do que isso, Amanda – ele se inclinou para frente. – eu acho que você é bem mais do que uma amiga para Kirsten Howard, porque eu não engoli a história de ela querer se tornar uma das produtoras da minha Companhia por simples amor à arte. Amanda virou o rosto, incapaz de encará-lo naquele momento. Até então tinha absoluta certeza de que Oliver sabia muito bem que eram casadas e nada comentava por discrição. A descoberta de que ele apenas desconfiava a deixara completamente sem palavras e sem ação. – Eu acho que Kirsten foi sincera em suas intenções. – disse Amanda, depois de algum tempo. – Você pode estar próxima da verdade no que insinuou sobre Tina. – disse Oliver, com muito cuidado. – Sinceramente ela anda de muito pé atrás com você. – Eu não vejo motivos, nada mudou entre nós, a relação foi sempre profissional.
Oliver não fingiu nem por um segundo que acreditava no que sua estrela estava dizendo, mas levou algum tempo para continuar o diálogo. – Além de minha melhor amiga, Tina é meu braço direito. Eu, às vezes, tenho as minhas rusgas com ela, mas preciso muito viajar de tempos em tempos e não confiaria esta Companhia a mais ninguém. – Eu sei disso. – Deixe-me terminar. – pediu ele. – Há algo que não mencionei, tampouco tenciono contar um dia, mas digamos que eu deva à Tina um pouco mais do que sucesso profissional. – Talvez eu esteja entendendo. – Ótimo, sempre soube que era esperta, Amanda. Veja, não estou em condições de ir contra a Tina nesse momento, sabe? Ela não quer você fora daqui, não realmente. Eu só acho que o problema dela é a Kirsten. – Mas – Então agora você já sabe o que fazer, Amanda, se ainda quer o papel. E depois não diga que eu não avisei. Amanda deixou a sala de Oliver com o semblante ainda apavorado demais. Instintivamente tomou entre os dedos o pingente que decorava o colar que Kirsten lhe dera ao pedir a sua mão. A não ser quando atuava, estava sempre com ele. Pensou na loira e no quanto lutara para estar ao seu lado, mas depois também pensou no sonho de uma grande carreira, que estava sendo atrapalhado por aquele romance. Simplesmente não conseguia decidir e quando chegou em casa, tinha por objetivo evitar a esposa o quanto pudesse, para que a loira não percebesse sua preocupação, mas fora impossível se manter afastada depois que Kirsten preparara outra surpresa e a esperara com um filme de seu diretor favorito, petiscos, vinho e praticamente nenhuma roupa.
(até o próximo capítulo)
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Capítulo 16 – Kirsten e Tina
Debra preparara um novo prato, que queria testar com os amigos antes de apresentar ao seu chefe, e convidara Kirsten e Amanda para um jantar. Richard fez as honras da casa e parecia bastante alegre, ao contrário do que temia sua amiga de infância, que pedira que ele não levasse o novo namorado no jantar, por receio de que este, não sendo ainda de confiança, pudesse comentar com a pessoa errada alguma coisa sobre o relacionamento de Kirsten e Amanda. Esse não era nem de longe o principal motivo do desconforto que marcou toda a refeição. Logo ficou evidente para Debra e Richard que suas amigas não estavam na melhor fase do relacionamento. Era estranho constatá-lo, pois até então, Kirsten e Amanda pareciam cada dia mais felizes juntas. – E o trabalho, lindinha? – quis saber Richard. – Pré-estréias na Europa a semana toda. – disse Kirsten, cansada só de pensar. – Mas é o maior filme da sua carreira, não? – É... – disse ela, pensativa. Richard e Debra notaram que o assunto não agradava Amanda, que parecia detida demais em seu parto, embora ele já estivesse vazio. – E o seu negócio, Richard, quando vai abrir? – a própria Amanda mudou de assunto. – Ainda preciso de mais algum dinheiro para ter segurança. Vocês sabem, não quero arriscar nada. – Posso ser sua sócia. – disse Kirsten. – Tenho certeza de que é seguro investir no seu talento. – Já conversamos sobre isso, Kiki, e eu já lhe dei meus motivos para negar. Por favor, não insista. – É inútil, Richie, Kirsten acha que seu dinheiro compra tudo. A loira suspirou cansada e largou os talheres de qualquer jeito sobre o prato, após o comentário de Amanda. Debra e Richard prenderam a respiração por alguns instantes, sabendo que uma séria discussão estava prestes a acontecer. Entretanto, Kirsten suspirou mais uma vez, mordeu os lábios, engoliu a raiva e, sorrindo, mudou de assunto: – Estava delicioso, Debra. De minha parte aprovado com louvor. – Eu concordo! – emendou Richard. – Você cozinha cada vez melhor.
Amanda pediu licença e foi ao banheiro logo em seguida. Assim que ela trancou a porta, os olhares de Debra e Richard inquiriram Kirsten, de modo que nenhuma palavra foi necessária para mostrar o que queriam. – Ela teve problemas na Companhia por eu ser sócia de Oliver. – disse Kirsten. – Desfaça a sociedade. – disse Debra, prontamente. – Seria dar o braço a torcer muito facilmente. Sem mencionar que Amanda se sentiria péssima de conseguir o papel principal novamente só porque eu não sou mais produtora da peça. – Vocês têm alguma opção? Kirsten mirou a janela, seus olhos estavam marejados e tanto Debra quanto Richard sabiam que algo muito grave estava acontecendo. – Não sei se posso mais continuar com isso. A imprensa está em cima o tempo inteiro e eu odeio esconder a Amanda de todo mundo, como se fôssemos criminosas. – Você está muito na mídia, Kiki, é a nova queridinha da América, com o tempo isso deve diminuir um pouco. – Não sei se posso suportar essa situação por muito tempo. – ela disse, pesarosa. – Mas você pretende fazer o quê, Kiki? – quis saber Debra. – Jerry quer que eu assuma um relacionamento hétero. – Quando? – perguntou Richard. – Agora. Urgentemente. – Esse cara não é dono da sua vida, Kiki. – Eu sei, Debby, mas devo minha carreira à ele. – Você deve a sua carreira ao seu talento. Os três ouviram a voz de Amanda, que deixara o banheiro e voltara para a mesa de jantar.
333
Amanda sequer esperou que ela e Kirsten entrassem no sobrado para começar a falar, depois de ter ficado silenciosa como um túmulo, no táxi, da casa de Richard até ali. – Um namorado, é isso? Você vai sair com um cara, agora? – Ainda não sei o que fazer, Mandy. – Não me chame assim. – disse ela, raivosa. – Hei... podemos conversar civilizadamente? – Não! – Tudo bem, eu vou para o estúdio, então. Não vou atrasar o meu trabalho por causa das suas crises infantis. Ainda na escada, Kirsten ouviu a porta da frente e notou que Amanda saíra por ela. Pensou por alguns instantes no que deveria fazer e deixou que seus passos lhe guiassem. Acabara de começar a nevar e Amanda não levara o casaco. “Mandy! – Me deixa, Kirsten! Kirsten a segurou pelo braço e a puxou para um abraço apertado, no meio do jardim. Permaneceram em silêncio por muito tempo, até ficarem cobertas de pequenos flocos de neve. – „tá frio aqui, entra comigo. Amanda obedeceu mecanicamente e se jogou na poltrona da sala. Kirsten se sentou ao seu lado, acariciando seu braço, depois de ter subido para apanhar um cobertor. – Eu não gosto desse papel. Não suportaria te ver nos jornais com um qualquer, quando eu sou a sua mulher. Kirsten sorriu. – É você que eu amo, está cansada de saber. Achei que fosse o bastante. – Talvez não seja. – disse Amanda, sem olhá-la. – Eu suporto seus beijos no palco. Acha que não sinto nada? Apenas sei que é o seu trabalho. – Eu também suporto seus beijos na tela. Isso é muito diferente de você fingir para a imprensa que está com um cara. A não ser que você goste disso. – acusou ela.
– Não, eu não gosto. Para ser bem sincera, eu detesto. Sinto-me suja fingindo dessa maneira. Eu não lembrava disso há anos, de como me senti enganando o Sebastian, mas se tivesse qualquer dúvida, o que fiz hoje teria me recordado. – Do que está falando? – Ainda não se perguntou aonde eu estava antes do jantar? Amanda sentiu seus músculos se enrijecerem. Kirsten parecia portar as piores notícias que ela jamais poderia receber, mas a loira sorriu lhe dando alguma confiança, e começou a contar, detalhe por detalhe, tudo o que fizera...
333 A Companhia de Teatro Oliver Townsend operava em total normalidade no começo de uma noite fria em Nova Iorque. Kirsten saíra de casa com um grosso casaco e um charmoso chapéu, além de luvas negras e óculos escuros, os quais não dispensava nem mesmo quando o sol se punha ou o ambiente era fechado. – O Senhor Townsend não está. – disse uma secretária, mecanicamente. – E quem o representa? – a voz de Kirsten soou amigável. – Deixe comigo, querida. – uma terceira voz ordenou a secretária e acrescentou: – Você está em minhas mãos agora. Kirsten notou que o olhar dela era tão incisivo que poderia lhe ter arrancado os óculos da face. Preferiu não sorrir, mas devolveu o olhar com seriedade. Enquanto estivesse oculta, garantiria um passo à frente. “Minha sala é por aqui. – disse Tina, indicando que Kirsten deveria tomar a frente. A atriz sabia muito bem que era levada para a sala do dono da Companhia, mas preferiu não comentar nada, mesma reação que teve quando notou que Tina lhe seguia tão próxima que era possível à Kirsten sentir o hálito dela em sua nuca. – Fique à vontade. – disse Tina, indicando não a cadeira diante da mesa de Oliver, mas um dos lugares em uma poltrona. – Creio que ainda não tenhamos sido apresentadas.... – Tina imediatamente se sentou ao lado da outra, bastante próxima, inclinando-se enquanto falava. – Kirsten. – respondeu a outra, no mesmo tom seguro com que Tina falava, embora acrescido de um sorriso jovial assim que os óculos escuros foram removidos da face, revelando seus olhos magnificamente verdes. – Kirsten Howard.
Por longos segundos, Tina apenas a encarou. Estava claro que não a reconhecera de imediato e Kirsten fizera aquilo de propósito. Sorria em seu íntimo ao perceber que tudo dava certo, pelo menos até aquele ponto. – Sua produtora é uma das patrocinadoras da Companhia. – disse Tina, como se recobrasse o senso de realidade, embora ainda não conseguisse agir com naturalidade. – Exatamente. – Eu sou... sou o braço direito de Oliver, o represento quando ele não está. – Claramente ele sabe escolher seus asseclas tão bem quanto seu elenco. – Kirsten sorriu amigavelmente e acrescentou, apontando para o próprio casaco: - Onde posso colocar isso? Tina pendurou o sobretudo de Kirsten no cabide onde Oliver sempre pousava o seu chapéu. Notou que Kirsten cruzara as pernas e observava a sala, enquanto a outra não voltava. – Bem, seu assunto com Oliver, eu posso ajudar? – Qual a natureza da sua relação com ele? – a pergunta de Kirsten foi incisiva. Instintivamente, Tina estreitou os olhos e sorriu depois de algum tempo. – Não... não é nada que pudesse atrapalhar... você sabe o quê. – Mas ele confia muito em você. – parecendo distraída, Kirsten se inclinou sensivelmente na direção de Tina. – Algo perfeitamente compreensível, é claro. – Simples... eu sei ser extremamente confiável e discreta. Aposto como você admira essas qualidades em uma pessoa. – Você não sabe o quanto. – Kirsten se aproximou um pouco mais. – Mas... discreta até que ponto? – Sem medida. – Esconderia um segredo estarrecedor? – Todos. – Tina notou que Kirsten alternava o olhar entre os seus olhos e os seus lábios, e aquilo começava a deixá-la tonta. – Um crime? Ou uma grande mentira? – Ambos.
– Oliver matou a própria filha por acidente. – Matou. – disse Tina, sem pensar. Kirsten se levantou, ainda sorrindo, pousou os óculos sobre a face novamente e apanhou o casaco.
333 – Você foi falar com a Tina???? – Fatalmente nos conheceríamos um dia, você não acha? Amanda não respondeu. “Ela é exatamente como eu imaginava. Detestável. – Sobre o que falaram? – Eu já disse. – E o que mais? – Nada, Amanda. – Conheço a Tina, ela não lhe deixaria sair assim. – Francamente, Mandy, ela lança mão de meia dúzia de truques baratos e acha que qualquer mulher fica babando por ela quando cruza as pernas... – Hum. – Ela pensou que eu fosse mais uma garotinha ingênua que ficaria encantada por aquele fajuto par de olhos azuis. Já vi tantas como ela, meu amor, que mais cinco minutos com ela naquela sala eu estaria bocejando. Não acredito que ela consiga conquistar alguma mulher sendo tão obviamente promíscua. Kirsten percebeu que Amanda não respondia. Fechou os olhos com força, cansada, e decidiu que era hora de parar de criticar Tina. Fosse como fosse, era a primeira mulher com quem Amanda fora para a cama e isso era algo que ela jamais poderia mudar. – Então esse é o segredo do Oliver... – disse Amanda, depois de muito tempo. – Você caiu nos truques dela, não foi? – Kirs...
A loira balançou a cabeça, decepcionada. – Você é tão melhor do que isso. – Mas não era. Não fui sempre assim. – Ela é grotesca, Amanda! – Eu estava perdida. – Preciso pensar. – Kirsten se levantou de súbito. – Espere! – Conversamos depois. Uma hora mais tarde Amanda entrou no estúdio e viu Kirsten detida em seu arquivo, escrevendo. Beijou-lhe o topo da cabeça e afagou seus ombros por algum tempo, antes de começar a falar, com os lábios próximos do ouvido esquerdo da esposa. – A raiva já passou? – Um pouco. – Estou cansada, vou deitar. – Ok. Amanda se dirigiu à porta, mas hesitou com a mão na maçaneta. – Não quero brigar. A pessoa que caiu na conversa da Tina não é a mesma com quem se casou, Kirsten. Eu mudei, por você. Kirsten se levantou e encarou a esposa, de longe. – Dormiu com ela depois de me conhecer? – Sweety... – Depois de vir morar aqui, comigo? – Claro que não. – Com Gail? – Não! – Com qualquer outra pessoa? – Kirsten, não! Você sabe que não.
Amanda secou as tímidas lágrimas que lhe escapavam involuntariamente. “Não... nunca. Você era o meu maior sonho e é o amor da minha vida. Eu não estragaria isso... jamais. – É bom que nunca se esqueça disso. – E você? Você me traiu? Kirsten ficou encarando Amanda por um longo tempo, imersa em seus próprios pensamentos e lembranças. Poderia descrever com detalhes tudo o que sentira desde o primeiro encontro, mas não sabia se era a hora de dizer aquilo à esposa. Às vezes sentia uma certa segurança escondendo de Amanda a verdadeira importância que ela tinha em sua vida. Por isso nunca contava que jamais se envolvera com outra mulher depois de a conhecer. Nunca contava que sequer tivera vontade. Nunca contava que essa idéia jamais passara pela sua cabeça. Kirsten também nunca contava que Richard e Debra haviam, um dia, descrito a mulher perfeita para ela e, acima de qualquer coisa, Kirsten escondia do mundo que achava que Amanda era a personificação de todos os seus sonhos, era a mulher descrita por seus amigos, principalmente quando tentava fazêla assistir documentários políticos ou ambientalistas ou quando dedilhava o violão na sua frente, e Kirsten fingia que não dava qualquer importância. Então Kirsten notou que seus olhos também deixavam algumas lágrimas escapar. Não conseguiu formular uma frase que concretizasse tudo o que queria dizer, julgou que nem mesmo um livro inteiro conseguiria, por isso andou até a esposa, tomou seu rosto entre as mãos, fechou seus olhos – como se o fizesse pela última vez – e beijou Amanda – como se fosse seu primeiro beijo. – Nem em sonhos... – respondeu, finalmente, sussurrando. – Fica comigo essa noite? – Eu nunca vou deixar você. Naquela noite fizeram amor como há muito tempo não acontecia, ambas cercadas de carinho e cuidado mútuo, de calma, paciência, mas também dominadas por uma paixão que parecia ter nascido naquele instante, no andar de baixo, com a última conversa. Era como a primeira vez, só que muito melhor, porque já se conheciam suficientemente bem, ainda que soubessem que havia muito por se descobrir ainda. Mas havia, também, muito tempo. Toda uma vida para se conhecerem e para se apaixonarem de novo. Sempre uma pela outra.
(até o próximo capítulo)
Voltar para o índice Sexto Sentido escrita por Sara Lecter
Capítulo 17 – Sexto Sentido Kirsten alongou as costas discretamente e mudou de posição na cadeira. Estava diante de uma mesa com outras sete pessoas que conhecia de vista, além de Jerry. Eram produtores e discutiam a criação de um novo projeto a partir do roteiro que a atriz escrevia. Ao lado esquerdo de Kirsten estava Susan Frears, autora do romance que baseava a história; na frente das duas, um grande diretor, conhecido pelo temperamento difícil. – Sweety... Kirs... – pediu Amanda, com um fio de voz, a garganta seca e o corpo inteiro amortecido. – Você... precisa... sair... cedo... amanh Kirsten não permitiu que ela terminasse a frase, cobriu seus lábios com um beijo intenso, aproveitando também para cobrir o corpo dela com o seu, movendo-se de maneira primitiva, beijando seu resto, testa, pescoço, escorregando para o colo e arranhando as costas de Amanda mesmo no pequeno espaço que restava às suas mãos, entre os lençóis e o corpo da esposa. Como se levasse um susto, Kirsten percebeu que perdera os últimos trechos da conversa. Depois de algum tempo conseguiu entender que discutiam valores, e respirou aliviada, pois isso era departamento de Jerry e não seu. – Acho que não vale a pena dormir agora... – respondeu a loira, depois de muito tempo. – Você não vai me perdoar amanhã. Estará esgotada. Amanda recuperara um pouco do fôlego e se colocara sobre a esposa, acariciando seu rosto e devolvendo seus sorrisos. – Pode ser... – disse Kirsten, pensativa. – Mas por enquanto eu ainda estou bastante disposta... – sorriu de maneira cúmplice. Os olhos de Amanda não esconderam a sua surpresa. Elas estavam na cama há horas, começaram trocando beijos tímidos e algumas carícias, mais conversando do que propriamente fazendo alguma coisa, mas aos poucos, bem aos poucos, os beijos foram se tornando mais intensos, e quando Kirsten se dera conta, Amanda estava brincando com o elástico de sua calcinha e demonstrava muito bem que não pretendia parar por ali. Era natural, eram jovens, casadas, apaixonadas uma pela outra. Não tinham uma rotina específica para fazer amor, dias marcados, hora ou lugar que escolhessem mais, tampouco faziam sempre, ou quase sempre, a mesma coisa. A única coisa que mandava nelas era o desejo, e uma sabia entender a outra muito bem, nisso.
– Tem certeza? Eu pensei que tivesse acabado com você, agora há pouco. – sorriu Amanda. – Você pensou isso das outras duas vezes também... Riram abraçadas, com os rostos colados, mas logo se deslocaram alguns centímetros, para que os lábios pudessem se buscar mais uma vez, ávidos como se fosse apenas o começo da noite. – Kirsten!? – Hum? – ela olhou a sua volta e viu que todos a observavam. – Desculpe, estava distraída. – Você pensou em alguém para o papel de Susan? – quis saber o diretor. – Pessoalmente eu acredito que devamos tentar uma novata, não consigo pensar em ninguém que se encaixe no perfil. – disse ele, olhando a verdadeira Susan, ao lado de Kirsten. – Eu... – ela tentava a qualquer custo afastar a imagem de Amanda sobre o seu próprio corpo, penetrando-lhe cada vez mais rápido, decidida a vê-la descontrolada. – Desculpe? O diretor suspirou cansado e mordeu os lábios. Jerry se inclinou na direção de Kirsten e perguntou se ela estava bem, ao que ela respondeu que apenas cansada. – Eu tenho uma sugestão. – disse Susan Frears. A idéia da escritora não foi bem aceita, e ela teve de concordar pois seu contrato previa intervenções nas filmagens, mas não na produção. A discussão sobre o papel da protagonista tomou mais um quarto de hora, no qual Kirsten conseguiu prestar um pouco mais de atenção, embora tivesse de se policiar para não ser carregada novamente para a noite delirante que tivera ao lado da esposa. Aquela não fora a primeira vez que fizera amor até o sol nascer, mas por alguma razão, Kirsten não conseguia pensar em outra coisa, e seu corpo ainda guardava muito bem as marcas e as recentes sensações. Assustada, Kirsten passou a se perguntar se seu rosto não a entregava, se não era evidente o que estava pensando. Ficou vermelha, depois quase roxa. Um apanhado de grandes produtores na sua frente e ela completamente excitada e com o olhar de quem não pensava em outra coisa que não fosse sexo. Juntou uma mão à outra, por baixo da mesa, e notou que estavam suadas. Sentiu-se ridícula, mas não conseguia parar de pensar... se afastava o prazer da sua mente, via os olhos de Amanda enquanto a própria Kirsten lhe devolvia as carícias na mesma medida. Era completamente inútil, ela sabia que aquilo não passaria até que tomasse um banho gelado ou então fosse para casa e... – e mais uma vez teve de afastar a idéia. – E quem vai fazer o papel da Josie? – perguntou Kirsten, subitamente, como forma de manter o controle sobre seus próprios instintos. A mesa inteira a encarou interrogativamente.
“Vocês já decidiram e eu perdi alguma coisa? – ela insistiu. Max, o diretor, foi quem se inclinou na direção dela para responder. – Kirsten, está com algum problema? – N... não. – O papel é seu. É a coisa mais certa desse filme, não foi necessária qualquer discussão. A ducha fria que ela precisava caiu sobre a sua cabeça, mesmo que apenas metaforicamente. – Eu fiz o roteiro. Nunca pensei em atuar nesta história. – disse com sinceridade. Jerry a encarou, pensativo. – Mesmo? E por que não me disse? – Não disse? Bem, ao menos não disse o contrário. Nunca falei que queria o papel, e não quero mesmo. – Mais essa, agora! – disse um dos produtores. – Pode nos dar um motivo? – quis saber Max. – Todos. Todos do mundo. – respondeu ela. – Teria escrito o papel para mim se assim o desejasse, mas sempre pensei em uma estranha. Aliás... – ela se distraiu consigo mesma. - ...uma estranha que nunca teve rosto. Você tem fotos da Josie? – Kirsten inquiriu Susan. – Não aqui, comigo. E, bem, também achei que você faria o papel. Todos concordaram gestualmente e Kirsten teve a estranha sensação de ser uma presa cercada por grandes caçadores, encurralada, detida em uma armadilha. – Não há ninguém para esse papel que não você. – disse o chefe dos produtores. – Sem mencionar o sucesso do filme. O seu nome acima da legenda está valando muito. Seu problema é cachê? Peça o quanto quiser, você já pode se dar ao luxo de ser a mais cara de Hollywood. E todos ganham! – Não fale de mim como se eu fosse uma mercadoria... – ela disse, sentindo algum tipo de nojo, que permaneceu na sua voz. – Olhe, não é nada pessoal, está bem? – ela esperou que Susan a olhasse nos olhos. – Mas eu não vou fazer um papel lésbico. A sala fez um silêncio tal que Kirsten teve medo de que ouvissem os pêlos de sua nuca ficando arrepiados. Tocar naquele assunto sempre a deixava pisando em ovos. – Sabemos do estigma que isso cria. – disse Jerry, tentando amenizar a situação.
Kirsten fechou os olhos. Poderia ouvir as acusações de Susan sobre o seu preconceito e intuiu que ela estava prestes a fazer isso, mas estranhamente a escritora não disse nada. – Sempre me disseram que não há nada de errado em ser gay, então você não precisa ter medo do estigma. – disse Max, sabiamente. – Essa é boa! – riu-se o chefe dos produtores. – Uma estrela homofóbica que resolve escrever um roteiro gay. Já vi que estou perdendo meu tempo aqui. – Kirsten Howard não é homofóbica. – disse Jerry. – Que seja. Por mim, acabamos por hoje, preciso de uma bebida. – tanto ele quanto os outros produtores se retiraram. Quando caiu em si, Kirsten estava na sala apenas na companhia de Jerry e Susan. – Desculpe. Julgue-me como quiser. – resmungou ela para a escritora. – Eu sei o motivo. Não se preocupe. Entendo você. Mas isso não me impede de achar que você é perfeita para o papel. Você tem a alma da Josie e me lembra muito ela. Eu guardarei o segredo, confiem em mim. Jerry interveio: – Não existe nenhum segredo a ser guardado. Kirsten ia deixando a sala, mas preferiu voltar. A curiosidade a estava sufocando. – Onde eu me entrego? Susan trocou com ela um sorriso cúmplice. – Em nada, não se preocupe. O meu bom senso é muito apurado e nunca me engana. Jamais me interessei por uma mulher heterossexual. Jerry mantinha a porta aberta e deixara Kirsten passar por ela na sua frente. Susan ficara para trás, sozinha. Apenas no carro a loira entendeu o que as palavras dela queriam dizer, eu riu de si mesma. Há tanto tempo não era cantada por uma mulher que foi quase como a primeira vez. Essa estatística excluía Tina, de quem ela já esperava tal comportamento e sabia que jamais, em hipótese alguma, corresponderia. 333 Amanda ainda dormia quando Kirsten chegou em casa. Ao entrar no quarto, silenciosamente, a atriz não pôde conter o sorriso. As cortinas ainda estavam fechadas e mantinham o sol do lado de fora, o rosto de Amanda estava petrificado em uma expressão branda de inocência e um fino lençol cobria apenas algumas partes do seu corpo, que jazia de lado, com uma das mãos sob o travesseiro e a outra com a camisola de Kirsten entre os dedos.
Kirsten passou pela cama silenciosamente e entrou no banheiro, lavando o rosto e secando com uma toalha branca que tinha as suas iniciais entrelaçadas às de Amanda. Passou para o closet e antes que decidisse o que vestir, mudou de idéia, voltou para o lado da cama e deitou sobre o colchão, com o rosto diante do da esposa, acariciando a face de Amanda com tamanho cuidado que a outra não teve seu sono interrompido. Quando acordou, bem mais tarde, Amanda abraçou a esposa com força, como se ela não tivesse saído do seu lado nem por um segundo naquela manhã. Apenas algum tempo depois ela se lembrou de todo o programado para aquele dia e, um pouco envergonhada, quis saber: – Como foi a reunião, Sweety? – Um saco, eu só pensava em voltar pra cá. – Kirsten respondeu em meio a risos de quem se recordava de sua manhã conturbada e mesmo assim, divertida. – Ah é? Porque estava com sono? – Não exatamente. Amanda também riu e as duas se beijaram longamente. – Não sei como conseguiu sair da cama tão cedo. Eu tinha acabado de fechar os olhos quando o despertador tocou. – Era muito importante, decisão de elenco. – E aí? Eu conheço alguém? – Amanda se interessou sinceramente, uma vez que fora ela própria quem encontrara o romance que começara tudo. – Está olhando para a Josie Duschamps. – Você!? – É, a minha reação também foi de total surpresa. Um pequeno mal-entendido, todos acharam que eu queria o papel e não pensaram em ninguém. – Achei que só ficaria com o roteiro, meu amor. – E só ficarei. Estava brincando com você. – E por que essa cara de preocupada? – Que cara? – Conheço você, Kirsten Howard. – a outra fingiu se zangar e abraçou um dos travesseiros. – Simplesmente todo mundo da produção quer que eu faça o papel. Susan disse que eu tenho a alma da Josie.
– Sei. – Amanda não gostara do comentário. – Você quer o papel? – Já disse que nem tinha me passado pela cabeça, Mandy. – Agora que passou, você quer o papel? Kirsten notou que Amanda estava séria e adotou também essa postura. – Talvez. – disse, depois de pensar muito. – Que acha? – Pode me chamar de maluca, Kirs... do que você quiser, mas eu não vejo isso com bons olhos. Eu não sei o que é, não sei dizer de onde vem, porque me sinto assim, mas tenho certeza que esse papel vai ficar entre você e eu. Não fará bem para nós se você atuar nesse filme. – Pensei muito nisso, Mandy. Com um papel desses, será ainda mais difícil burlar as especulações sobre a minha sexualidade. Vai ser até óbvio demais! É por isso que eu não aceitei. – Mas vai acabar aceitando. – Eu não sei. – Admita de uma vez. Você gostou tanto da história quanto eu. E sabe? Quando lia sobre a Josie eu pensava em você e foi por isso que eu chorei tanto quando o livro acabou. Kirsten apoiou suas costas na cabeceira da cama e não conseguiu responder de imediato. Amanda estava com os olhos baixos e parecia triste. Kirsten também se sentia assim. Aquela história tinha o poder de derrubar qualquer um. “Por outro lado, se esquecermos a história das especulações, pode ser o maior papel que você jamais fez, porque eu sei que o seu roteiro está lindo e que fará do enredo que eu te apresentei um grande clássico do cinema. – disse Amanda, depois de muito tempo. A loira sorriu abertamente. – Eu precisava ouvir isso... e precisava ouvir de você! Imediatamente Kirsten apanhou o telefone e discou o número de Jerry. Não foram necessárias amenidades, ela apenas comunicou que aceitava o papel e indicava ao empresário que negociasse seu cachê com os produtores. Amanda, contudo, estava certa em seu primeiro ponto de vista. Josie Duschamps realmente destruiria o casamento delas. Só que não era da forma que todos estavam esperando, porque havia um grande segredo naquela história, e apenas Susan Frears poderia revelá-lo. (até o próximo capítulo)
Voltar para o índice A Vida nos Sets escrita por Sara Lecter Notas do Autor: olha, tirem as criancinhas da sala, de novo.
“Eu corro pro mar pra não l embrar você. E o vento me traz o que eu quero esquecer. Entre os soluços do meu choro eu tento te explicar. Nos teus braços é o meu lugar. Contemplando as estrelas, minha solidão. Aperta forte o peito é mais que uma emoção. Esqueci o meu orgulho pra você voltar. Permaneço sem amor, sem luz, sem ar” Sem Ar – D’Black – a música que estava ouvindo ao escrever esse capítulo.
Capítulo 18 – A Vida nos Sets Amanda cumprimentou um cabo-man apenas acenando e se adiantou mais alguns passos entre câmeras e pessoas que andavam apressadas de um lado para o outro. Havia um cenário e ela se assustou ao perceber que era exatamente como ela imaginava o pequeno apartamento para o qual as personagens Susan e Josie se mudavam, no começo da história que a emocionara tanto. A verdadeira Susan estava em pé, na outra extremidade, com grandes fones de ouvido e um copo de café, conversando com alguém que provavelmente fazia parte da equipe técnica. Amanda não teve dificuldades em reconhecê-la, e além da escritora, o único rosto familiar por ali era o de Kirsten, que ocupada demais, não notara a presença dela. Pudera, a loira acreditava que Amanda estava do outro lado do país, em Nova Iorque, ensaiando uma peça. Chegara a vez de Kirsten receber ao invés de preparar as surpresas. Ainda incógnita, Amanda andou mais um pouco pelo set de filmagem, atenta a cada detalhe. Aquele era o mundo da mulher que ela amava, e por esse motivo mais do que por qualquer outro, Amanda tinha curiosidades sobre ele e muita vontade de se sentir mais a vontade ali. Quando percebeu que todos fariam um intervalo, seguiu Kirsten até o que reconheceu como sendo o seu camarim, atrás dos estúdios, e entrou sem bater na porta. – Sim? – questionou a loira, com uma sensível alteração na voz que denotava seu desagrado pela invasão. – Será que eu posso pedir um autógrafo? Kirsten se virou. Amanda já fechara a porta e esperava pelo seu sorriso. – Meu amor!? Que surpresa! – Atrapalho? – perguntou ela, incerta sobre se aproximar da esposa e beijá-la.
– Nunca, Mandy. – a própria Kirsten acabou tomando iniciativa do beijo, que se estendeu um pouco mais que o planejado quando ambas deram vazão a toda falta que sentiam uma da outra. – Você não deveria estar ensaiando em Nova Iorque? – Que se dane a peça, eu não consegui ficar lá, sozinha, sabendo que podem não te liberar no final de semana. – Você lê pensamentos, meu amor, estamos atrasados, não haverá folga por enquanto. – Sério? Kirsten... você não estava pensando em ficar um mês inteiro longe de mim, estava? A loira não respondeu de imediato e Amanda escondeu seu contragosto. – Como foi a viagem? – Tranqüila. – Você deve estar cansada, vou pedir a alguém para te levar para o hotel, ainda tenho duas cenas hoje. A não ser... – Hum? – Quer ficar por aqui e assistir? Já esteve na produção de um filme? – Considerando o seu hábito de sempre me contar todos os detalhes, sinto-me em casa, por aqui. Riram juntas. – Você tinha razão, este vai ser o filme da minha vida, principalmente agora que a minha mulher vai estar comigo. – Tive medo de você não gostar da idéia. – Bobagem. Não sei onde eu estava com a cabeça quando acreditei que poderia ficar em Los Angeles três meses inteiros vendo você só de vez em quando em Nova Iorque. Mas me preocupo com a sua peça. – Não se preocupe mais. Eu mandei Oliver pastar. Ele e a Tina. – Não pode estar falando sério. – Cansei daqueles dois. – Mas meu amor, achei que estava tudo resolvido. – E estava, nada disso mudou. Eu quis largar a Companhia, foi só isso. Eles até insistiram para que eu pensasse melhor.
– Claro que fariam isso, ninguém deixa Amanda Roberts escapar facilmente. – Kirsten piscou o olho. – Ah é? – U-hum... Com alguns cuidados e pequenas mentiras, Amanda foi instalada no mesmo hotel que a estrela do filme e acompanhou grande parte das filmagens, tornandose habituée dos bastidores.
333 Kirsten e Susan tinham longas conversas, quase todos os dias, sobre a história que levavam para as telas do cinema, o que era muito natural, uma vez que Susan vivera tal história e a transformara em um livro; e Kirsten interpretava uma das protagonistas e fora quem adaptara o romance em forma de roteiro cinematográfico. Em uma dessas conversas, duas semanas depois da chegada de Amanda, Susan quis saber quem era a estranha amiga da estrela. – Amiga de Nova Iorque? – apontou Susan para Amanda, que estava do outro lado do estúdio. – Aham. – Kirsten acreditava que quanto menos dissesse, menos precisaria mentir. – Ela faz o quê, é estudante? – Atriz. – respondeu a loira. – De teatro. – completou. – Hmm. Eu nunca fui muito fã de teatro. – admitiu Susan. – Eu também não. Mas Amanda me arrastou para algumas peças. – “Amanda...”? – Roberts. – O nome me soa familiar... Ah, claro! Você me falou dela. Foi a pessoa que lhe indicou o meu livro. – Exatamente. – Kirsten tentava encontrar um modo de mudar de assunto, mas nada lhe passava pela cabeça. – É por isso que está aqui. – Ela já comentou alguma coisa? – Está gostando. Parece que o pessoal da técnica e ela pensaram as mesmas coisas sobre os cenários e os detalhes.
– Fazer este filme é como viver tudo de novo. – comentou Susan. – Espero que diga isso no bom sentido. – É, claro que sim. – Susan procurou os olhos verdes de Kirsten e ela não teve como evitar. – Mas o principal de tudo é a sua semelhança com a Josie. Mesmo sem conhecê-la você pegou a essência do que a minha francesinha tinha... olhar para você é uma chance que o destino me deu de vê-la de novo, diante de mim. – Susan, e – Howard, cena quarenta e sete em dois minutos! Kirsten respirou aliviada, um dos assistentes do diretor acabara de lhe salvar. Mas como era de se esperar, Susan continuou com os comentários e eles atormentavam a estrela cada dia mais. Amanda percebeu que algo havia entre as duas que Kirsten não gostava nem um pouco, mas como sempre evitava parecer ciumenta, nada comentou. E isso deu a Kirsten a falsa impressão de que Amanda não havia percebido o quanto Susan usava de vários truques para se aproximar dela.
333 Kirsten não ficou surpresa ao constatar que Amanda a esperava em seu camarim quando rumou para este a fim de descansar antes de gravar a última cena prevista para o qüinquagésimo sexto dia de filmagem. Sorriu ao encontrar os seus olhos e ofereceu seus lábios para um beijo assim que se sentou ao seu lado, no sofá. – Cansada? – perguntou Amanda. – Só um pouquinho. – Estava gravando? A loira trajava um vestido leve, azul claro, que pouco cobria o seu corpo e fazia parte do figurino da personagem Josie Duschamps. – Não, isto é para a próxima cena. Estava em uma reunião, de novo. – ela riu. Quase dei um fora tremendo, foi por muito pouco. – O que aconteceu? – Sempre que temos de gravar alguma seqüência íntima há uma reunião antes, com duas psicólogas, Susan, Anne, Max e eu. Anne era a atriz novata que vencera oitocentas concorrentes nos testes prévios e interpretava Susan Frears no longa. Como protagonista, ela tinha mais cenas que a própria Kirsten e vinha agradando todos com seu trabalho.
– E aí? – Uma das psicólogas estava discutindo com Susan sobre como Anne deveria fazer a cena, já que ela não tem qualquer experiência empírica de lesbianismo e pediu opiniões. – Sei. E qual foi o seu “fora”? – No calor da discussão eu acabei dando uma dica para ela. Na verdade foi apenas um comentário, mas poderia ter tido conseqüências maiores. – Não entendi porque você tem de participar dessas reuniões e qual o problema de ajudar a Anne? Kirsten balançou a cabeça. – O grande problema, meu amor, é que eu freqüento essas reuniões pelo mesmo motivo que ela: aprender a pensar e agir como uma mulher homossexual. Amanda gargalhou sem se conter. Até então não lhe ocorrera que todos pensavam que Kirsten nada compreendia do assunto. – Você precisa tomar mais cuidado, Sweety. – Foi uma distração momentânea. – ela acabou rindo também. – Por falar em distração, você tem de gravar logo? – Maquiagem em quinze minutos. – lamentou a loira. Amanda passou a beijá-la no pescoço e suas mãos subiram o curto vestido de Kirsten até a cintura. – Eu acho que é tempo mais do que suficiente. Kirsten não conseguiu responder. A esposa tomara seus lábios e puxara seu corpo para que a loira se sentasse de frente para si, sobre o seu colo. “Você trancou a porta? – U-hum... – Kirsten respondeu com um sussurro, aproveitando para beijar o pescoço de Amanda. – Às vezes sinto falta da minha turnê, de quando só tínhamos o meu camarim e o tempo de um entre-ato para... – Para...? Amanda respondeu deslocando a calcinha de Kirsten e começando a acariciá-la devagar, enquanto seus lábios avançavam pelo decote da loira, ávidos,
apressados. A mão esquerda de Amanda segurou gentilmente as nádegas de Kirsten quando seus dedos começaram a penetrá-la lentamente. – Mandy... – Shhh... não faça barulho ou vão pegar a gente. Kirsten quis protestar, mas Amanda acelerou o movimento e ela rapidamente esqueceu qualquer frase que poderia ter formulado. Fechou os olhos com força quando notou que a mão livre de Amanda arranhava suas costas, na parte que o vestido deixava à mostra. – Você me paga! – disse, ofegante. Amanda não deu ouvidos e continuou determinada. Notou que Kirsten acomodava o próprio corpo para sentir mais prazer e se concentrou em empregar mais força ao movimento. Kirsten gemia cada vez mais primitivamente, com os lábios colados ao seu ouvido e as mãos, ligeiramente descontroladas, puxando o cabelo da esposa com empenho maior conforme se aproximava do orgasmo. “Continua... Amanda sorriu. Não sentia qualquer dor ou desconforto, apenas prazer; não físico, como o que provocava em Kirsten, mas emocional. A mesma sensação que tinha sempre que sabia que Kirsten estava gostando do que ela fazia. E embora a loira o traduzisse em palavras, Amanda só precisava observar suas reações para saber. Nada era mais evidente do que aquela empatia para provar que haviam nascido uma para a outra. Alguém da produção bateu à porta quando Kirsten já estava de volta ao sofá, realinhando o vestido e esperando que sua respiração e sua freqüência cardíaca voltassem ao normal. Amanda lhe alcançou um lenço e ela secava o suor de sua testa quando se levantou, apenas para avisar que estaria pronta em um minuto. – Kirsten, volta aqui! A estrela se virou e viu uma expressão de susto e arrependimento na face de Amanda, antes que ela cobrisse o próprio rosto com as mãos, terrivelmente envergonhada. – Que houve? – Sugiro... – disse Amanda, rindo. - ...que dê uma olhada no espelho. – Hum? – Suas costas, Sweety. Por favor, me perdoe... Quatro arranhões muito evidentes cortavam a pele alva de Kirsten, logo abaixo do ombro direito. Quando conseguiu parar de rir, igualmente envergonhada, Kirsten apanhou o telefone e pediu a ajuda de Jerry. Seu empresário rapidamente
inventou uma desculpa e argumentou que a estrela do filme fora “acometida de um mal estar súbito” e não poderia mais gravar naquele dia. À noite, do outro lado do país, através do viva-voz do telefone, Richard e Debra riram do descuido de suas melhores amigas por cerca de dez minutos e depois contaram as novidades. Kirsten não pôde gravar por dois dias até que os vestígios dos arranhões desaparecessem por completo e ainda teve de ouvir de seu empresário que irresponsabilidades como aquela acabariam por afundar a sua carreira. Nem ela e nem Jerry poderiam imaginar, naquela ocasião, que o problema se repetiria em breve, na noite do Oscar.
(até o próximo capítulo) Voltar para o índice Amanda escrita por Sara Lecter
“Às vezes tenho a impressão que todos os meus instintos me levam a acreditar que não devo arriscar de novo. E a não ser por esses efêmeros momentos de angústia, que uma dor que já deveria ter passado me trás, eu passo o tempo todo imaginando como seria perfeito acordar nos seus braços todos os dias... e esqueço que mesmo que isso não aconteça mais agora, pertence a você cada um dos meus suspiros.” Só porque eu não tive coragem de te escrever isso no e-mail...
Capítulo 19 - Amanda Amanda abriu a porta da frente com as suas chaves e ainda olhou para trás, vendo o táxi se afastar, antes de entrar em casa. Teve de acender todas as luzes e ligou a televisão, não se preocupando com o canal escolhido. Ver aquele sobrado “às moscas” lhe dava certa angústia e truques simples como a luz e uma voz vinda de um programa detestável amenizavam a situação. Richard e Debra a haviam convidado para jantar, mas o seu vôo atrasado acabara com o programa. Subiu para o quarto após sorver um gole de água na cozinha e largou sua mala ao lado da cama, incapaz de reagir a respeito dela. Olhou a sua volta como se o fizesse pela primeira vez e notou o quanto aquela casa refletia o seu casamento. Kirsten nascera e crescera naquele lugar, e até sugerira à Amanda que se mudassem depois do casamento, caso fosse essa a sua vontade, mas a morena recusou. Sabia que o sobrado tinha um valor sentimental incalculável para Kirsten e havia ainda o detalhe do charme de morar em lugar como aquele; para uma garota que crescera em um modesto apartamento no Soho, com infiltrações na cozinha e um aquecedor que fazia barulho
demasiado que ultrapassava os cinco andares que os separava e chagava ao quarto dela, aquilo era um palácio. Amanda riu de si mesma. Desde que o sucesso profissional alcançara a sua vida, fora ovacionada por platéias no mundo inteiro e se hospedara em lugares com o máximo do luxo que o ser humano pode produzir, mas ela nunca sentia que aquilo fazia parte da sua vida. Ao olhar para o sobrado ela lembrava do lugar onde crescera, era com o velho apartamento que ela comparava tudo. E embora parecesse uma vitória ter mudado, ela tinha saudades do seu quarto com pôsteres de seus artistas favoritos e suas coisas espalhadas pelo chão, como tinha saudades do primeiro apartamento para onde se mudara depois de ser contratada por Oliver Townsend. Aqueles lugares tinham o eu jeito, o seu cheiro, a sua cara; o sobrado era uma extensão da alma de Kirsten. Racional demais. Apanhou o telefone e só se deu conta do que fazia depois do movimento completado. O número lhe veio à mente imediatamente, mas ela recolocou o fone sobre o aparelho... tantos anos com a mesma assinatura, o velho apartamento tinha de ter ainda a mesma linha, aquela que ela tinha memorizado antes de aprender a ler. Caminhou até o closet e, no alto de uma prateleira que ficava acima dos seus vestidos de gala, olhou para uma caixa. Ali estavam alguns dos seus segredos, mas não todos eles, porque ela não poderia trazer tudo para a casa que era de Kirsten... e acabara jogando na bahia em um dia de chuva as suas fotos e cartas com Fred, Gail, algumas coisas que lembravam outras pessoas com quem tinha se envolvido. Seu coração preservara as boas lembranças, mas nada mais havia de material. O que ela viu ao abrir a caixa foram fotos de seus pais e irmãos. Sem que pudesse conter, uma grossa lágrima atravessou sua face e escorregou até o seu braço estendido, que segurava um lenço de papel com o nome da confeitaria onde seu pai levava a sua mãe para almoçar no domingo, para que ela não precisasse cozinhar, pelo menos um dia por semana. Riu sozinha e então o choro veio com muito mais força. Jogou-se na cama e tapou seu rosto com o travesseiro, tomando o cuidado de tapar os ouvidos também, mas isso não fez com que as vozes parassem de se repetir em sua mente. “Prostituta”. Isso era sinônimo de atriz para o seu pai e ninguém na sua casa ficara feliz ao saber que ela agora era uma estrela da Broadway. Ela era motivo de vergonha e lentamente foi deixando que as mágoas se interpusessem. Havia ainda o pequenogrande detalhe de seu casamento, que ninguém tomara parte. Amanda seria eternamente solteira para os seus pais, isso se eles ainda pensassem nela... mas ela sabia que pensavam, como ela pensava neles. Todos os dias. Cada maldito dia desde a última vez que os vira. Às vezes com raiva, outras com ódio mortal, mas no fundo ela sabia que o que mais sentia era saudade, e como essa saudade era tão grande e, pensava ela, irremediável, preferia não admitir para si mesma que pensava neles. Kirsten nunca a questionara nesse sentido. Amanda também não perguntara muita coisa, então o que sabiam – e o que fingiam que era a verdade – era que Amanda nunca tivera uma boa relação com os pais e não falava com eles há dois anos e que os pais de Kirsten haviam morrido quando ela era pequena demais para entender o que isso significava. E assim viviam, nunca tocando no assunto.
333 Grande parte da equipe que filmava o novo projeto de Kirsten Howard, e ela própria, havia se instalado em Nova Orleans, onde algumas das cenas mais importantes da trama seriam gravadas. Susan e Josie haviam se mudado para aquela cidade algum tempo depois de finalmente se casarem. Max calculara que todas aquelas sequências não deveriam render mais que quinze minutos de filme, mas era crucial que ficassem perfeitas. Era o período descrito como o mais importante da relação por Susan, em seu livro. A escritora acompanhara a comitiva, tendo se tornado ainda mais próxima de Kirsten, que apesar de seu medo de deixar alguma coisa escapar sobre a natureza de sua relação com Amanda Roberts, via em Susan uma excelente amiga que com freqüência a entendia como se a conhecesse há anos. A explicação para isso, dada pela escritora, era que Kirsten se parecia muito com Josie e que por isso Susan sabia lidar com ela muito bem. Kirsten duvidava. Sentia, sem poder explicar, que havia alguma coisa além daquilo, que havia alguma coisa mal contada naquela história e que havia uma força que talvez fosse sobrenatural que a mantinha ligada àquele roteiro. Quando Amanda voltou de Nova Iorque, duas semanas de separação depois, a loira sentiu um alívio tamanho que pensou seriamente em cancelar um dia de trabalho para se dedicar exclusivamente à esposa, mas Amanda foi contra. Levantaria boatos, e nisso estava certa. Jerry também não conseguira, de qualquer forma, elaborar uma boa desculpa e assim as duas partiram para os sets de filmagens, como se fossem amigas, na primeira hora da manhã. Kirsten filmaria e Amanda assistiria a tudo. Só conseguiram se encontrar de novo um pouco antes do almoço, no camarim de Kirsten, depois de uma conversa séria da estrela com Max, o diretor do longa. – Precisamos conversar seriamente. – disse Kirsten, sem fazer rodeios, como era o seu costume. – Aconteceu alguma coisa, Sweety? Kirsten se sentou diante da esposa e lhe tomou a mão. – Você leu a história antes de mim. Josie Duschamps morreu de câncer, ainda muito jovem. – Eu sei. – disse Amanda, sem entender onde a outra queria chegar. – Estou dando vida a esta mulher para o filme, meu bem. Como ela ficou muito doente, é assim que eu terei de parecer. Acho que você já sabia disso quando confirmamos que eu aceitaria o papel. – Claro. – Vamos parar as filmagens depois de alguns dias, eu vou passar um mês ou mais em Nova Iorque, Anne vai fazer as últimas cenas da Susan, tirando a da praia,
enquanto esperam por mim. Tenho de perder dez quilos, não posso mais tomar sol e vou raspar os meus cabelos. Amanda mordeu os lábios nervosamente. – Vai dar muito trabalho, não vai? – Perder tanta massa muscular não é brincadeira, eu vou ter acompanhamento, mas não há como fazer isso sem passar muita fome, talvez recorra a remédios... o meu humor vai ficar terrível, Mandy, e certamente eu não ficarei nem um pouco atraente. – Eu discordo, é impossível torná-la feia, meu amor. Kirsten desfez a expressão séria e foi obrigada a ceder quando Amanda se inclinou para um beijo. – Estou falando sério. – Eu também. – Amanda a puxou para que repetissem o beijo, e a partir de então, Kirsten não conseguiu voltar à postura que tinha quando entrara no camarim para conversar seriamente. – Tenha paciência comigo, está bem? Quando as filmagens acabarem tudo volta ao normal. – Kirs... eu também sou atriz, esqueceu? Eu vou ficar do seu lado, sempre. Faça o que tem de ser feito, eu agüento você chatinha por uns dias, pode deixar! Kirsten riu, aliviada. – Vou jogar isso na sua cara quando você me enxergar horrorosa e não quiser nada comigo... – Isso não vai acontecer... eu amo você de qualquer jeito. – Até careca? – Aham! Abraçaram-se sorrindo e trocaram mais alguns beijos e carinhos, mudando de assunto. Algum tempo depois, quando nenhuma delas lembrava do tom da primeira conversa, Amanda ficou algum tempo pensativa e Kirsten a interpelou com curiosidade: – Que houve? – Nada. Nada mesmo. Estou aqui pensando em nós duas, esse sofá, o circo que está lá fora, o dinheiro que corre nesse filme e o contrato milionário que assinei em Nova Iorque. Kirsten, às vezes eu esqueço quem nós somos, os grandes
teatros e todas as câmeras que te seguem. Para falar a verdade, na maioria do tempo, eu só me vejo como uma garota de vinte e três anos que tem de namorar escondida. – E eu, como você me vê? – Como a mulher por quem eu me apaixonei, que tem um emprego qualquer que a tira do meu lado de vez em quando, mas posso suportar. Kirsten sorriu. – É exatamente isso que somos, meu amor. O resto são manchetes. Beijaram-se, primeiro vagarosamente, aos poucos aumentando o ritmo e se permitindo algumas carícias, nenhuma delas ousada demais. Ocupadas que estavam uma com a outra, não notaram a porta se abrindo, e por muito pouco não enfartaram de susto ao ver quem as tinha surpreendido, uma nos braços da outra, não como amigas que diziam ser, mas como amantes que eram de fato.
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(até o próximo capítulo) Voltar para o índice A Personagem escrita por Sara Lecter Notas do Autor: é neste capítulo que a história alcança o ponto em que começa: a cena que desencadeia os pesadelos de Kirsten. espero que tenham imaginado assim.
“Pois no fundo sabíamos que tudo n aquele dia era uma despedida, mesmo que não quiséssemos assim. Nossos corações diziam um até mais silencioso, nossas almas sentiam a dor da separação, por antecipação, e nossos corpos se amavam segundo a angústia velada dos que se despedem contra a vontade.” Trecho de Tudo muda, tudo passa , a fic que inspirou esta história.
Capítulo 20 – A Personagem Naquele verão em Nova Iorque Amanda parou para analisar a cidade por mais vezes do que jamais fizera em toda a sua vida. Ainda que seu próprio trabalho a tirasse da
metrópole que amava, as filmagens de Kirsten estavam cada vez mais complicadas e sua esposa com freqüência se sentia uma visitante em Manhattan. Não era uma boa sensação. Aquela angústia tinha uma razão prática: conforme previra ela própria, o humor de Kirsten oscilava de uma maneira tão surpreendente nas semanas de reclusão para assumir o papel de uma doente terminal que Amanda comparava o casamento ao seu novo sentimento pela cidade. Kirsten e ela visitavam alguns dias por semana aquela realidade de duas mulheres apaixonadas e felizes, enquanto na maioria do tempo estavam distantes, separadas, em algum lugar que não sabiam precisar qual era. Talvez Amanda soubesse dizer muito bem para onde Kirsten “ia” quando não estava “com ela”. Não era exatamente um lugar, mas uma pessoa: Josie Duschamps. Aquele papel a absorvera de tal forma que Kirsten se pegava várias vezes por dia dizendo “Josie teria dito isso” ou “o que a Josie faria se isso acontecesse com ela?”. Amanda ficara tão encantada com a história, e sobretudo, com esta personagem, quanto a própria Kirsten, mas a diferença era que não precisava encarná-la diante das câmeras, e ainda que partilhasse a profissão de sua mulher, chegava a cogitar que Kirsten estivesse transcendendo os limites de realidade e ficção. Desde alguns dias antes da transformação física pela qual Kirsten passaria, a definitiva, Amanda procurou se fortalecer para o que iria acontecer. Mas nada que pudesse ter pensado, programado com antecedência, foi capaz de prepará-la. Estava esperando ter de superar a simples barreira de, por algum tempo, não sentir atração pela mulher que amava, mas o que aconteceu nada teve a ver com isso. O que ela viu quando Kirsten foi maquiada para o teste de vídeo não foi uma pessoa por quem ela não se interessaria, mas a encarnação perfeita e irrepreensível de uma mulher que até então ela só conhecia de sua imaginação, da personagem que a encantara e que a levara às lágrimas na leitura do romance de Susan Frears. E como conhecia muito bem a história, não houve qualquer tipo de aversão, mas um espantamento que ela reconheceu também no olhar de Kirsten. E mais e mais, como se fosse possível, não juntas mas ao mesmo tempo, Kirsten e Amanda passaram a admirar Josie Duschamps e a mulher forte e incrível que ela fora. Para Amanda isso significou uma espera ainda mais ansiosa pelo resultado final do filme; para Kirsten significou um novo sentimento, que ela só descobriria mais tarde e que a levaria primeiro à loucura, e depois à euforia. – Acho que não há o que mudar. – disse Max, o diretor, boquiaberto. – Susan? – ele consultou a autora do romance. – Perfeito, Kirsten. A equipe inteira voltara para Los Angeles e as últimas cenas foram gravadas, em estúdio, ficando apenas uma derradeira externa para o final: a cena em que Susan jogaria as cinzas de Josie no mar da Califórnia. O clima entre todos ficara demasiado pesado, uma vez que a trama filmada narrava os últimos dias de Josie e Susan, juntas e felizes, ainda que cientes da morte iminente da primeira. No hotel, na penúltima noite de filmagens, Amanda surpreendeu Kirsten chorando abraçada ao travesseiro. Durante o dia, trancadas no camarim, as duas haviam tido uma briga séria ocasionada pelo ciúmes de Amanda da
relação que sua mulher tinha com Susan, ciúmes esse que ficara mais evidente depois que Susan descobrira o casamento das duas e cessara qualquer tipo de investida sobre Kirsten; o que a princípio poderia parecer um contra-senso, mas acabara deixando Amanda ainda mais irada, pois deixava evidente o que significava o interesse primeiro da escritora. – Kirs...? A loira não respondeu, apenas tentou secar paliativamente as suas lágrimas e como isso não deu certo, enterrou-se no travesseiro mais uma vez. Amanda lhe beijou o ombro e permaneceu em silêncio por algum tempo, deixando Kirsten se acalmar e também pensando no que dizer. “Sweety, quer conversar? – Você vai continuar falando em separação? Amanda suspirou cansada. Dito naquele tom de mágoa, ela finalmente entendera o peso de suas palavras naquela tarde. Se já estava arrependida de ter tocado no assunto, o choro de Kirsten a fazia se sentir ainda mais horrível. Então, dentre todas as coisas que sabia que poderia e as pouquíssimas que sabia que deveria fazer, Amanda escolheu, impulsivamente, a pior delas. Levantouse e deixou o quarto. E além de solidão, o que Kirsten sentiu com a atitude de sua mulher foi que, de fato, ela só conseguia pensar naquilo como solução para os seus problemas.
333 A manhã seguinte marcava a execução da última cena a ser filmada no longa. Kirsten estava dispensada, pois não participava da mesma, mas como roteirista e produtora do filme, além de motivada por sua curiosidade, foi para uma praia em Newport com o restante da equipe e acompanhou tudo. Amanda apareceu uma hora depois, quando Kirsten conversava com Anne – a outra atriz – sobre um assunto qualquer que ela não pôde precisar. Susan só chegaria perto do pôr-do-sol pois estava muito abalada, segundo ela, por lembranças. – Pensei que você tinha voltado para Nova Iorque. – disse Kirsten, em tom de voz muito baixo uma vez que não estavam sozinhas, ainda que não houvesse ninguém muito perto. – Hum. – Amanda olhava os próprios pés na areia. – Liguei para o Richie, para o caso de você ter ido. – E por que fez isso?
– Não consigo acreditar que você possa estar bem, com isso tudo acontecendo. – E se preocupou comigo? Achei que tivesse vontade de me afogar aqui, nessa praia. – admitiu ela, envergonhada. – Se eu quisesse te afogar não teria chorado a noite toda por medo de perder você. – Kirs... Amanda se aproximou e chegou a elevar sua mão na direção do rosto de Kirsten, mas se lembrou de onde estavam e interrompeu o movimento. Seu susto com a atitude seguinte, de Kirsten, foi tamanho que nos primeiros instantes ela não conseguiu reagir. Ignorando qualquer coisa que poderia estar acontecendo em volta delas, Kirsten alcançou a mão de Amanda e completou o movimento, oferecendo seu rosto e fechando os olhos. A movimentação na praia evidenciou que Max começara a filmar um trecho da cena, como teste de luz, e Kirsten tomou a mão de Amanda novamente, firme entre seus dedos, e a convidou para se sentar ao seu lado, ali, na areia, para que assistissem em silêncio. Depois de muito tempo, a loira foi a primeira a falar: – Ter estado tão próxima da “Josie” me fez rever muitas coisas, Amanda. Eu sei que eu não sou uma pessoa fácil, e achei que isso fosse normal, que você deveria aceitar qualquer coisa simplesmente porque me ama... – ela fez uma pequena pausa. ...ou pelo menos amava, já não sei mais. – Não diga isso, é claro que eu te amo. Amanda observou que Kirsten respirava com alguma dificuldade, e ainda que seus olhos estivessem fixos na filmagens, ela sabia que sua mente estava distante daquela praia. – A Josie era tão... tão... perfeita. Ela sempre fez de tudo pela Susan, não há como não pensar nisso, pense em quantas coisas ela abriu mão ou deixou de conhecer, ela nunca hesitou. – Eu sei. Mas mulheres como ela são uma em um milhão, Kirs. – Não interessa. Desde que a Josie entrou na minha vida eu não me sinto mais satisfeita. Eu sei que poderia ter sido melhor, que devo fazer mais do que eu faço. – Sweety... esqueça o que eu disse, está bem? Eu estava de cabeça quente por causa da... – ela interrompeu sua fala e mudou de tom. - ...esqueça, ok? Não tem mais importância. – Eu não sabia que doía tanto, eu nunca imaginei que ouviria você dizendo que quer se separar. E desde que você falou isso, Amanda, eu não consegui mais respirar.
Impulsivamente Amanda abraçou sua mulher e deixou Kirsten confortada em seus braços, afagando suas costas. Alguns olhares de pessoas não ocupadas com a filmagem naquele momento se dirigiram para as duas, mas Kirsten não se afastou, ao contrário do que Amanda esperava que ela fizesse, por causa daquele seu já notório medo de que soubessem que as duas eram casadas. Depois dos primeiros segundos de tensão, quando percebeu que Kirsten não se importava, Amanda também conseguiu esquecer de tudo a sua volta, e foi por esse motivo muito mais do que por estarem de costas que elas não perceberam o flash de uma câmera fotográfica, captando um beijo, nos lábios, que gerou uma imagem tão forte quanto eram intensos os sentimentos das duas, naquele momento, ainda que a confusão fosse o maior deles; e tão linda quanto poderia ser uma cena daquelas, um beijo apaixonado e desesperado em um paraíso da natureza. “Não me deixa sozinha, Mandy, por favor . Eu não vou agüentar. – Kirsten, não pensa mais nisso. Vamos conversar direito depois, está bem? – Não! Não está nada bem. Tudo está errado, Amanda. E agora eu vou perder você porque não fui a mulher que você merecia. – Pára com isso. Se você não foi, eu também não fui, então. Kirsten, as pessoas não são perfeitas como a Josie, isso não acontece realmente. – É uma história real, Amanda. E eu acredito nela. E quer saber? Eu acho que existem pessoas perfeitas sim. Perfeitas umas para as outras. – Isso é uma bobagem. – Amanda voltou a perder a paciência. – Por que você tá tão fria? – Não estou fria, estou tentando conversar, resolver isso. Kirsten, nós temos problemas reais que precisamos superar, não importa se somos perfeitas ou não, mas se somos capazes de ficar juntas. – E você não é mais capaz de ficar do meu lado? – Não foi isso que eu disse. – Não hoje, não é? – Kirsten, chega, está bem? – Amanda se levantou. – Conversamos mais tarde, quando você parar com essa alucinação de pessoas perfeitas. Ou, já que você quer tanto uma mulher perfeita, por que não fica com a sua “Josie”? – Era o que eu deveria fazer. – respondeu ela, magoada. – Pronto! Um final feliz, maravilha. E como estou sobrando, vou voltar para o hotel. Nos vemos em Nova Iorque.
E com isso, Amanda deixou a praia. Kirsten ficou muito tempo estática, mirando o vai e vem das ondas. Susan se aproximou depois de meia-hora e as duas assistiram juntas à filmagem definitiva da cena mais emblemática do enredo. Olhando para aquilo tudo e pensando no quanto as palavras de Amanda, apesar de venenosas, faziam todo sentido do mundo, Kirsten passou a chorar descontroladamente, como se a verdadeira Josie Duschamps tivesse suas cinzas jogadas no mar bem diante dos seus olhos. Como se ela tivesse morrido. E então Kirsten se lembrou que sabia que ela estava mesmo morta, e que era loucura acreditar que havia se apaixonado por uma pessoa que só conhecia de um livro, e que sabia que jamais poderia ser sua. Quando Max gritou “corta” e uma assistente ofereceu um suco natural e uma toalha para Anne, que deixava o mar, Kirsten parou de olhar e caiu de joelhos na areia, num choro soluçante que preocupou sua amiga. – Kirsten, você está bem? – perguntou Susan. Não estava. Kirsten estava amaldiçoando o dia em que resolvera filmar uma história tão triste como aquela.
(até o próximo capítulo) Voltar para o índice A Foto Mais Cobiçada do Mundo escrita por Sara Lecter
“Sempre estamos à espera da hora. Afinal, quem dá corda no mundo? seríamos nós? Ora, cala essa boca, as maiores descobertas são feitas por acaso. E uma noite se vai às vezes tão depressa como um gole bebido às pressas, à espreita da hora. Um segundo de descuido pode brotar horas de insônia. O gozo esvaído entre as pernas, o tiro no escuro, a sede do copo, todos eles (entre diversas coisas mais) estão em débito com alguma incógnita presa no tempo.” Ricardo Nicoloso, em seu blog Exílio67.
Capítulo 21 – A foto mais cobiçada do mundo Amanda saiu mais cedo do ensaio, algumas semanas depois de voltar definitivamente para Nova Iorque, e mal chegara ao sobrado quando Jerry tocou a campainha e ela e Kirsten receberam o empresário na sala. – Como estão, garotas? Tenho novidades.
– Fique à vontade, Jerry. – Kirsten apontou para o sofá e se sentou ao lado da esposa, na outra poltrona. – Você tem uma entrevista na sexta-feira, vai falar superficialmente do filme e de moda. – Moda? Jerry, eu não posso aparecer agora. – argumentou Kirsten, apontando para a própria cabeça, com os ralos cabelos que haviam começado a nascer de novo cobertos por um lenço. – É exatamente disso que eu estou falando. Nisso, Jerry apanhou alguns recortes de jornal que trazia em sua pasta de couro, entregando-os à Kirsten e Amanda. “Você sabe quantas mulheres rasparam a cabeça desde que você apareceu assim, por causa das filmagens? – O quê? – Oitenta mulheres por dia, ao redor do globo, Kirsten. Esta é a estimativa de uma revista, que fez uma pesquisa séria sobre o assunto. Os lenços que você usa tiveram quinhentos por cento de inflação e são a última novidade. Duas grifes lançarão coleções de emergência nas próximas semanas e ambas entraram em contato comigo, para que você seja a garota-propaganda. Kirsten olhou feio para Jerry. “Eu neguei as propostas, claro. – disse ele, rapidamente. – Isso é uma loucura. – disse Amanda. – Raspar o cabelo? – Está na moda. Todos querem ver Kirsten. – Eles sabem o motivo, não? – Claro que sim. O filme está sendo tão comentado que os outros produtores querem lançar dentro de um mês. Kirsten, eles te avisaram disso, não? – Avisaram e eu não gostei nem um pouco. – ela disse, cruzando os braços e fechando a cara. – É uma jogada e tanto, Kirsten. A técnica aprontou tudo enquanto você se preparava para a última etapa de filmagens, está tudo pronto, querem aproveitar a publicidade do seu nome e estão totalmente certos. – Jerry, eu ainda estou fraca. Eu perdi onze quilos em seis semanas e não ganhei nem metade disso ainda, de volta. Sinto-me horrenda sempre que olho no espelho e não tenho qualquer disposição para fazer premier nem aqui em Nova Iorque.
Deixa eu apostar? Vão lançar na Europa inteira com aquelas festas de gente chata e jornalistas inescrupulosos... – Ásia e América do Sul também. – respondeu o empresário, com cuidado. – Que inferno. Olha, eu não vou nessa entrevista, ok? – Kirsten, eu já confirmei. – Mas o que eu vou dizer? – Atue. Não é o que você faz de melhor? – Não tenho disposição. Jerry suspirou cansado e trocou um olhar preocupado com Amanda. – É o filme da sua vida. Todos que tiveram acesso a alguma coisa estão te elogiando e esse lançamento relâmpago credencia a produção para a seleção desse ano, da Academia. – E daí? – Pense, Kirsten. Poucos diretores lançaram algo grande esse ano. As chances são enormes, você vai concorrer com toda a certeza e, acredite em mim, pode levar o Oscar. – Você deve estar achando ótimo, não? – Você era quem deveria achar. É o ponto alto de uma carreira. O sonho de qualquer atriz. A prova final que você dará ao mundo de que não consegue bons papéis apenas porque é bonita. – Eu não quero! Não me inscreva. – Sweety? – Amanda achou que era hora de intervir, tomando a mão da esposa entre os seus dedos. – Pelo menos pense um pouco, hum? – Eu estou horrível e uma pessoa teve que morrer para que essa história virasse um filme, sabiam? Pensem vocês dois um pouco, nisso. Eu não quero ganhar um prêmio por isso. Eu não quero que mulheres esclerosadas do mundo inteiro resolvam parecer com uma paciente de câncer só porque está na moda. Vocês não pensam nessas pessoas? Nas que realmente estão com a vida por um fio? Que tipo de seres humanos são vocês dois? – Kirsten, se acalme. Não estamos dizendo nada disso... – argumentou Jerry.
– Eu não vou ficar calma! Ela morreu, sabiam? Ela não vai estar aqui para ver como teve uma linda história de amor que agora o mundo inteiro vai conhecer. – Sweety, é só um filme. Você já fez tantos outros. Suas personagens já morreram em outros dois e você não ficou desse jeito. – Porque era ficção, Amanda! Kirsten atirou longe a primeira coisa que encontrou, uma almofada, e socou a poltrona sucessivas vezes. Apreensivos, Jerry e Amanda aguardaram que ela voltasse a se acalmar, o que demandou um certo tempo. “Desculpe. Eu ainda não saí da personagem e, por isso mais do que por qualquer outra coisa, não posso aparecer em público. Não vai ser a Kirsten Howard que as pessoas querem ver. – Tem uma coisa que você pode fazer. – disse Jerry, com calma. – Eu havia pensado que você jamais concordaria, mas... Você pode participar de uma campanha de apoio a vítimas do câncer. Fará bem pra você e para a sua imagem. Pode doar parte do cachê do filme, por exemplo, aparecer. – É uma ótima idéia. – Amanda tentou animar a esposa. – Todo o cachê. – disse Kirsten, quase sem abrir os lábios. – Isso eu faço, sim. Mas sem muita publicidade. Algumas fotos serão suficientes. – Esta é a Kirsten que conhecemos. – Jerry sorriu. – Vou pensar sobre a entrevista, ok? Desculpe pelo surto, Jerry. Meus nervos estão péssimos. – Eu entendo. – dessa vez a troca de olhares significativos foi entre Jerry e Kirsten. Amanda se levantou, beijou o topo da cabeça de Kirsten, sobre o lenço, e pediu desculpas ao empresário dela. – Jerry, eu havia acabado de chegar, vou tomar um banho, está bem? Você fica para o jantar? – Não, não, obrigado. Já estou de saída, fique à vontade, Amanda. Quando ela desapareceu, escada acima, Jerry ainda aguardou alguns instantes, observando a face curvada de Kirsten. Foi a atriz quem falou primeiro: – E aí? Qual a bomba, dessa vez? – Um blog. Ainda não identificamos a origem específica, mas tenho gente trabalhando nisso pra mim. – como ele notou que Kirsten não estava entendendo, resolveu ser mais direto. – Um blog sobre você.
– São tantos, Jerry. – Especializado em provar que você é lésbica. – Já tivemos dois casos e foi tudo desmentido, não? – Esse parece mais determinado. Aproveitou a febre quando a notícia de que você filmaria uma história homossexual se espalhou. Por enquanto as fotos são de algumas cenas suas com a Anne. – Mas...? – São setecentos e cinqüenta mil acessos diários, Kirsten. Um estouro. Há um link de leilão que está movimentando as coisas. – Leilão? – Estão prometendo uma foto sua beijando uma mulher, fora das filmagens. Segundo eles, uma foto muito nítida que não deixa qualquer dúvida. E a mulher com você não é a Anne. – Montagem. – Garantiram que não. – E daí? Já nos livramos de outros truques assim. Deixe fazerem o leilão, é mais publicidade para o filme e para a minha imagem. Não é o que você gosta? – Kirsten... – Jerry se curvou na direção dela. – Por tudo que for mais sagrado, eu sei o que fazer, mas preciso ter absoluta certeza de que essa foto não existe, é uma invenção. – Então estou lhe dando essa certeza. – ela não entendeu a preocupação demasiada dele. – O que mais sabe sobre a foto? – Serei direto, então: o cenário é uma praia e a sua “namorada”, como dizem no site, tem cabelos lisos, negros, na altura dos ombros, pele clara, mais ou menos a sua altura, talvez um pouco mais alta, olhos muito escuros e porte atraente. Kirsten achou que fosse desmaiar, apertou os olhos e apoiou as costas na poltrona, respirando devagar. “Ou você arranjou uma amante muito parecida com ela, ou... – Amanda... – É. – ele aguardou. – Alguma coisa que queira me contar? – Foi tudo tão rápido! Como conseguiram uma foto?
– Kirsten! Que descuido! – Estávamos no meio de uma briga... de mais uma delas... – Kirsten lamentou balançando a cabeça. – eu perdi a razão por alguns instantes, se não tivesse feito isso, naquele momento, teria perdido a Amanda. – Não seja tola. – Você não sabe como tem sido. – É uma fase e vai passar. – Sugestões? – Divorciei-me duas vezes desde que você me conhece. Quatro no total. Tem certeza que quer um conselho meu? – Não. Sobre o que fazer a respeito da foto, quis dizer. – Assumir. – Nunca. – Negar até a morte, então. Mas depois que a foto for vendida, e já vou adiantando que os principais lances são de revistas e não de particulares, o mundo vai saber que você, pelo menos, beijou uma mulher. Levarão menos de uma hora para identificar a mulher com você, Amanda vai ser investigada e ela não era assim tão discreta quanto você, não antes de te conhecer. Saberão que moram juntas, saberão há quanto tempo... você lembra das especulações quando ela estava em turnê com o Townsend? Vocês duas juntas em vários jantares, o fato de você ter sido sócia da Companhia... tudo se encaixará e fará todo o sentido do mundo. – Inferno! Quantas pessoas já viram a foto? – Ao que sei, o blog é administrado por uma jornalista de Los Angeles. Ela se identifica apenas como Cindy. Kirsten baixou a cabeça e por fim enterrou seu rosto entre as mãos. Não sabia o que fazer, não conseguia raciocinar direito. Quase cinco minutos depois sua memória voltou a funcionar... uma garota estranha, sem credenciais, querendo uma entrevista exclusiva quando ela ainda estava no começo da carreira. – Cindy Sparrow. – Vou anotar, isso me dá algumas pistas. O que mais sabe dela? – Eu te falei, foi há coisa de três anos, se não me engano. Suspeitei dela porque era inexperiente demais e não dei a entrevista. – Parece que a senhorita Sparrow não gostou muito da sua negativa.
– A impressão que fiquei, na época, foi de que era uma deslumbrada comum. – Ela deu em cima de você? – adivinhou Jerry. – Não do modo comum. Parecia desequilibrada. Aquelas que fundam fãclube e se penduram em árvores para me ver mais de perto, sabe? – Compreendo. Como ela é? Kirsten pensou por um instante, forçando sua memória mais uma vez. Sua conclusão inicial de que a garota era mentalmente perturbada lhe tinha confundido e ainda confundia, tanto tempo depois, mas ela conseguiu lembrar de alguns detalhes e concluiu, surpresa consigo mesma e com o fato de nunca ter pensado seriamente sobre aquilo: – Linda. Realmente muito linda, o tipo de mulher que viraria a minha cabeça se eu já não tivesse a Amanda. Deve ter pouco mais que a nossa idade. Usava um corte de cabelo latino na época, cabelos castanhos, olhos castanho-esverdeados. – Ok, eu verei o que posso fazer. Mas serei sincero, não tenho um plano. Converse com a Amanda, pense seriamente sobre ter de assumir. – E o filme? – Quer publicidade maior? – devolveu o empresário, se levantando. – Vai afundar minha carreira, você sabe disso. – Kirsten, você já não está mais no patamar de antes. Ficou doente e careca e agora isso é moda. Tem noção do efeito que causa nas pessoas? – Não ouse dizer que ser lésbica vai virar moda, porque isso seria o fim. Seria enterrar todas as coisas nas quais acredito. – E no que você acredita, Kirsten Howard? – Eu já não sei de mais nada. – disse ela, depois de pensar em responder que a única coisa na qual acreditava era que deveria ficar com Amanda para sempre, mesmo que isso custasse sua carreira. Jerry partiu. Kirsten pensou em subir para o quarto e esperar Amanda sair do banho, mas mudou de idéia e foi parar no estúdio, que foi para onde seus pés a conduziram, sem que o cérebro tivesse dado qualquer ordem consciente. Em pé, no centro do aposento, ficou olhando para os cartazes de seus filmes e pensando onde colocaria o novo, assim que ficasse pronto. Olhou para uma das estantes, onde guardava os prêmios que havia recebido, em festivais de cinema ao redor do mundo. Cobiçou, pela primeira vez, acrescentar um Oscar naquele lugar e o resultado foi um sorriso incontido. Onde estava com a cabeça quando dissera que não queria nada daquilo?
(até o próximo capítulo) Voltar para o índice Amizade(s) escrita por Sara Lecter
“Os amigos são a família que você escolhe.” Domínio público.
Capítulo 22 – Amizade(s) O tempo para Amanda começou a passar mais depressa. Ao mesmo tempo em que percebia que estava amadurecendo, sentia-se cada vez mais jovem, como uma adolescente que experimentava a vida pela primeira vez. Enquanto Kirsten ainda estava em Los Angeles, ela assinara um contrato milionário com a principal concorrente de Oliver Townsend, ainda que esta estivesse em um patamar superior no circo da Broadway. Barbara Evans fora uma grande atriz de carreira meteórica, que se encerrara depois de um escândalo envolvendo álcool e drogas pesadas. Depois de muitos anos longe das manchetes, retornara como produtora e, em cinco anos, voltou ao topo demonstrando um novo talento. Conhecia como ninguém os meandros das coxias e os dos grandes escritórios. Sua Companhia era muito maior que a Townsend, embora não tivesse teatro próprio, e mesmo um nome como o de Amanda Roberts era apenas um entre tantos talentos de primeiro time que Barbara tinha em seu cast permanente. Com o aprendizado empírico de seu primeiro emprego, Amanda optara por uma postura completamente diferente com Barbara: era profissional ao extremo e recusava qualquer indício de tratamento de celebridade, decorava os textos com antecedência e optara por um período de experiência em pequenas montagens antes de ocupar o lugar que a produtora tinha para ela, o de atriz principal. A voz de Amanda estava cada vez melhor, mas ela fugiu dos musicais e, com a ajuda de Kirsten, passou a se ver em dramas. A esposa lhe dera total apoio e fora fundamental também na mudança de postura. Observando Kirsten nos sets, Amanda percebeu o efeito de não se envolver pessoalmente e gostou dos resultados desde o começo. A principal mudança, no entanto, eram suas constantes recusas de propostas nada discretas de colegas de elenco, e embora não pudesse usar o casamento como argumento – sob o risco de ter de revelar a identidade da esposa e acabar sendo pega em mentiras – sabia que Kirsten era o seu único e suficiente motivo para não querer mais ninguém. Com o lançamento de seu filme e as campanhas pró-pacientes com câncer, Kirsten viajava em todos os finais de semana e às vezes passava menos de três
dias em casa antes de partir para mais um compromisso. As duas se falavam todas as noites, por telefone, mas com o tempo Amanda notou que o assunto era somente o relato do que haviam feito durante o dia e nada mais. Aquilo começou a angustiá-la. – Lindinha, Lindinha, não fica com essa cara. – cara. – disse disse Richard, durante um jantar j antar na casa dele, no qual, para variar, Debra cozinhou. – cozinhou. – A A Kiki já está voltando. – É. – É. – disse disse ela, vagamente. – É É só saudade? – saudade? – adivinhou adivinhou Debra. – Mais Mais ou menos. – menos. – Amanda Amanda deixou todo o ar escapar de seus pulmões de uma vez só. Richard e Debra eram os melhores amigos de Kirsten, mas acabaram se tornando seus confidentes também. – também. – Kirsten Kirsten tem andado estranha, vocês não acharam, também? – A A Kiki tem um mundo particular que é só dela, lindinha. De vez em quando ela se enterra nele e ai de quem resolver se meter. – Eu Eu sei, Richie. – É, É, você já conhece ela melhor do que nós. – comentou comentou Debra. – Eu Eu acho que dessa vez é algo mais grave. Ela anda triste, ainda não recuperou o peso, é superficial. – Ocupada Ocupada demais. Deixa a publicidade do filme passar e tudo volta ao normal. E tem o Oscar! Jerry não disse que ela vai concorrer? Isso vai animá-la tanto! Amanda não respondeu, voltou seu rosto para a janela e ficou em silêncio. O telefone tocou e Richard saiu para atender, ao que Debra se sentou ao lado da amiga e afagou seu ombro. – Richie Richie vai defender a Kirsten até a morte, Amanda. Não liga para ele, os dois são assim desde sempre, não enxergam nunca nada de errado um no outro. Não é um defeito, sabe? Eu invejo isso neles dois, esse amor desmedido e absolutamente incondicional. – Não Não estou querendo criticá-la, Debby. Eu preciso de ajuda para saber o que fazer, como ajudar. – Que Que foi? – foi? – Debra Debra adivinhou que ela estava pensando em alguma coisa. – Ela, Ela, por acaso, não comentou nada, hein? Debra pensou seriamente no que responder. Mas era tão distraída que Amanda percebeu na hora que havia, sim, algo. Se Debra abriria o jogo ou não, era outra história. “Sou eu, não é? O problema sou eu e não o trabalho.
– Não Não é, Amanda. Não diretamente. Acho que a Kirsten não está bem há bastante tempo. Desculpe... ela ela me contou sobre sobre a briga em Los Los Angeles. Quer Quer tocar no assunto? – Já Já faz tanto tempo! – Ela Ela só me contou ontem, Amanda. – Amanda. – disse disse Debra, em tom sério. sério. – – Acho, até, que nem contou pro Richie. Vocês conversaram depois disso? – Não Não temos mais brigado, Debby. – Não? Não? Mas isso se deu porque resolveram o assunto, ou porque pararam de tentar? – Meu Meu Deus, resolver o quê? Foi um momento de raiva, uma coisa que eu disse sem pensar. Eu estou com ela, não é lógico que não quero me separar? – Parece Parece lógico para mim, mas quem entende a cabeça da Kirsten? E principalmente o seu seu coração? Ela nunca gostou gostou de ninguém antes de conhecer conhecer você. Agora eu posso te dizer isso, i sso, Amanda, mas Richie e eu ficamos apavorados quando ela disse que ia te pedir em casamento. Você foi a primeira namorada dela, não sei se sabe, Amanda, aquele caso público dela com Sebastian Muñoz era fachada. – É, É, ela me disse. – Tenho Tenho certeza que Kirsten nunca cogitou uma alternativa na vida que não fosse ficar com você para sempre. Ela repetiu isso pra mim, ontem, chorando, Amanda. Chorando muito. – Mas Mas eu estou aqui... eu estou com ela! – Ela Ela está insegura. A Kirsten morre de medo de perder você porque não consegue ver que tem uma vida além disso, além do casamento. – Eu Eu não quero deixá-la. Eu só quero que ela fique bem, e se estou fazendo mal a ela, então seria melhor... ser – nem nem continue essa frase maldita. Richard estava ouvindo a conversa, apoiado na parede, em silêncio. “Se você acha que será um sacrifício altruísta deixá -la, posso lhe dizer com toda a certeza que é a pior coisa que jamais poderia fazer pela Kiki. – Então, Então, o que eu faço? Debra e Richard se encararam, apreensivos. Também não tinham idéia de qual seria a melhor forma de agir. Depois que Amanda foi embora, após o jantar, Richard entrou no quarto de Debra quando ela se preparava para dormir e acendeu a luz sem pedir licença.
– Hei! Hei! – Não Não finja que ia conseguir pegar no sono, depois do dia que teve. – ele ele riu, Debra lhe contara assim que chegara em casa que havia beijado seu chefe pela primeira vez, e havia havia gostado. Andava Andava interessada interessada por ele havia havia meses, após odiá-lo com todas as suas forças por dois anos. – Que Que foi, chata? chata? – Adoraria Adoraria te ouvir divagar sobre os lábios carnudos daquele homem, mas temos assunto mais urgente. Debra se sentou na cama, com as costas apoiadas na cabeceira. – E E aí? – Você Você está errada. Quer dizer, acho que nunca acreditou que Kiki não tivesse me contado. – É... É... – Que Que bom que sabe lidar com isso sem ciúme excessivo da nossa amizade. – Você Você e Kirsten nasceram um para o outro, de uma maneira estranha. Basta-me o papel de melhor amiga dos dois. Richard assentiu. Tomou a mão de Debra entre as suas e começou a falar, mas como a outra, não tinha idéia do que fazer, de como ajudar sua amiga. – Ela Ela sempre se enterrou nessas personagens personagens para dar o máximo de si, e sempre conseguiu... tão bem quanto conseguia se livrar delas assim que as filmagens f ilmagens acabavam. Alguma coisa deu errado dessa vez, eu só posso supor que foi porque ela se identificou demais com a tal francesinha. – Tem Tem de ser um distúrbio passageiro. – Eu Eu também acho, a própria Kiki achou que era, no começo. Sinceramente, Debby – Debby – Richard Richard suspirou. – suspirou. – , quando Amanda brigou com ela, disse que a Kiki deveria ficar com a Josie. Disse por raiva, ciúmes, sei lá. Alguma coisa aconteceu com a nossa amiga depois dessa frase. Claro que ela não admite isso, diz que não tem nada a ver com a Amanda, mas é lógico que tem. Ela só não consegue perceber. E nós duas vamos duas vamos ajudar ela nisso, não vamos? – Claro! Claro! O que mais ela disse? Era ela no telefone, não era? – Sim. Sim. Ela falou pouco, perguntou se Amanda estava bem. – Quem Quem deveria perguntar isso era ela mesma, pessoalmente.
– Toda Toda vez que eu digo isso a Kiki surta, Debby. Os dois continuaram conversando por mais algum tempo, enquanto em Londres, já no fim da madrugada, Kirsten tentava pegar no sono, em vão.
(até o próximo capítulo) Notas Finais: não se preocupem com as continuações. os próximos capítulos já estão prontos. Voltar para o índice A Indicação escrita por Sara Lecter Notas do Autor: gente, não pode sobrar nenhuma criancinha na sala neste capítulo. leiam depois da meia-noite!
“Eu queria ver no escuro do mundo Aonde está o que você quer Pra me transformar no que te agrada agrada No que me faça ver Quais são as cores e as coisas pra te prender Eu tive um sonho ruim e acordei chorando chorando Por isso eu te liguei Será que você ainda pensa em mim? Será que você ainda pensa? Ás vezes te odeio por quase um segundo Depois te amo mais Teus pêlos, teu gosto, teu rosto, tudo Tudo que não me deixa em paz.” Cazuza: Quase um segundo . Indicação Indicação de Kant.
Capítulo 23 – A A Indicação Kirsten chegou em casa e se jogou sobre a cama. Pelo horário, sabia que Amanda ainda ficaria detida muito tempo em seus ensaios e por isso tentou cochilar um pouco. Acordou sem saber quanto tempo havia se passado. Seu corpo estava suado e seus batimentos cardíacos cardíacos denunciavam denunciavam que não havia havia sido um sono sono tranqüilo. Desde Desde as filmagens, sonhava com o último dia delas, a cena em que Anne, interpretando Susan, jogava as cinzas cinzas de Josie no mar. Cambaleante, desceu até a cozinha e sorveu um grande copo d‟água, depois se sentou em uma bancada e ficou encarando a janela. Já havia escurecido. Recuperou suas forças aos poucos e avaliou o conteúdo da geladeira. Amanda dispensara a cozinheira na semana anterior, mas havia um bom estoque de comida. Kirsten se animou, subiu, tomou um banho rápido e procurou um avental, voltando a sorrir desde que tivera de fazer pose para as câmeras, na noite anterior. A diferença era que seu sorriso começava a voltar a ser sincero. Amanda chegou no sobrado e sentiu um aroma incomum vindo da cozinha. Kirsten havia ligado do aeroporto e ela sabia que a esposa estaria em casa, e provavelmente por isso, preocupou-se, preocupou-se, largando suas coisas de de qualquer jeito, no hall hall de entrada, e subindo apressada os dois lances até o segundo patamar, onde ficara a cozinha. – Kirs...? Kirs...? – Oi, Oi, amor. – amor. – disse disse ela, desanimada, de costas, mexendo em alguma coisa na pia. – Tudo Tudo bem? – Uma Uma droga. – droga. – respondeu respondeu ela. Amanda se aproximou devagar. Kirsten limpava uma panela com algo tão queimado que já não era possível identificar o prato. – Como Como foi a viagem? Tranqüila? – Tranqüila? – perguntou, perguntou, gentilmente tocando a cintura da esposa, que ainda estava de costas. – Uhum. Uhum. Desculpa... queria te receber direito e estraguei tudo. Rindo timidamente, Amanda se curvou para beijar a nuca de Kirsten, e como esta insistiu em ficar fi car de costas, sua esposa lhe puxou para que se virasse. – Olha Olha pra mim... esquece isso, eu estou com saudade. – „tava – „tava fazendo macarrão... – disse disse Kirsten, de cabeça baixa. – Desde Desde quando você sabe cozinhar, Kirsten Howard? – Pois Pois é, ainda não foi dessa vez.
Kirsten acabou rindo por alguns segundos. Amanda ficou estática, não sabendo como reagir. Então, lembrando do que lhe passara pela cabeça assim que chegara em casa, Kirsten procurou os olhos da esposa e elevou sua mão para acariciar o seu rosto. Um flash de bons momentos que passara ao lado dela e de tudo que fizera para que ficassem ficassem juntas lhe ocorreu ocorreu em menos de um segundo segundo e então, lentamente, lentamente, Kirsten colou seus lábios nos de Amanda, primeiro fechados, fechados, aos poucos avançando para um beijo, que que a morena passou passou a corresponder corresponder também sem sem pressa. Durante o beijo, Kirsten girou seu s eu corpo e levou Amanda consigo, presa pela cintura, forçando-a forçando-a contra o móvel móvel da cozinha e intensificando o beijo beijo cada vez mais. Amanda gemeu singelamente, sem interromper, e a abraçou com força. – Eu Eu te amo tanto, Sweety. Sweety. – sussurrou. sussurrou. – Mesmo Mesmo sem macarrão? – Uhum. – Uhum. – Amanda Amanda sorriu e livrou a face de Kirsten da franja fr anja que lhe cobria parcialmente, fruto de apliques para um penteado novo. – novo. – Com Com tantas surpresas que você já me preparou, a possibilidade de um dia alguma delas não sair como você esperava era grande. – Mas Mas – shhh. shhh. O que não significa que não tenha dado certo. Kirsten não conteve o seu instinto e beijou Amanda imediatamente, interrompendo qualquer outra coisa que ela planejasse dizer depois. Seus lábios avançaram para o pescoço da esposa, depois para os ombros, o colo, voltaram aos lábios, percorreram todo o rosto de Amanda, desde a testa até o queixo e pararam perto de seu ouvido, deixando escapar sua respiração levemente ofegante. – Não Não existe nada no mundo que me faça mais feliz do que voltar para os seus braços. Depois da frase, Kirsten voltou a forçar seu corpo, empurrando Amanda novamente contra o móvel, voltando a beijá-la, com pressa cada vez maior. Amanda reagiu conforme ela esperava, devolvendo as carícias na mesma medida, mas quando suas mãos adentraram a calça jeans que Kirsten usava, apertando suas nádegas sobre a calcinha, Kirsten tirou-as do contato com o seu corpo e evitou as três tentativas seguintes de Amanda de repetir, sem, contudo, parar de beijá-la. – Que Que foi? – Nada... – Nada... – respondeu respondeu Kirsten, ocupada, indecisa sobre tomar fôlego ou tomar os lábios de Amanda mais uma vez. Com isso, Amanda tentou uma investida diferente e suas mãos ergueram a blusa de Kirsten alguns centímetros, percorrendo seu abdome e começando a arranhar a pele da esposa de leve. l eve. Kirsten permitiu que ela continuasse por alguns instantes, mas
quando os dedos de Amanda chegaram perto de seus seios, por baixo da blusa, ela os afastou mais uma vez. E de novo sem parar de beijar Amanda. – Sweety, estou fazendo alguma coisa errada? – perguntou com cuidado. A primeira resposta de Kirsten foi abraçar Amanda abaixo da cintura e elevá-la sobre o móvel, voltando a beijá-la, dessa vez no colo, avançando entre o seu decote. – Não... – disse, sussurradamente, com uma expressão branda. Amanda tinha então de inclinar o rosto para baixo para encontrar os olhos de Kirsten, mas estes estavam detidos em seus seios, que ela descobrira tirando a blusa de Amanda e atirando-a em algum canto ignorado da cozinha. Seu desconforto inicial passou quando ela percebeu que não havia, mesmo, nada de errado. Kirsten estava bem como ela lembrava dela desde antes da crise, e se insistia em manter Amanda longe do seu corpo, era apenas para excitá-la mais, e não porque não queria. Amanda, que a conhecia bem, insistiu. Foi podada. Insistiu de novo, e sempre que o fazia, a própria Kirsten avançava mais, lhe beijava mais, lhe deixava ainda mais sem fôlego com beijos cada vez mais ardentes. A blusa de Kirsten foi a segunda peça de roupa a ir ao chão, depois os dois sutiãs, depois Amanda abriu o zíper da calça da loira e então Kirsten tirou também a calça de Amanda, que por dois segundos teve de se apoiar na bancada com as duas mãos e elevar o corpo. Kirsten percorreu as pernas nuas da esposa com os olhos, atentamente, sorrindo e encarando Amanda em seguida, para então voltar a beijá-la com vontade. Amanda abraçou-a pelas costas e puxou Kirsten mais para perto de si, beijando seu pescoço, sua nuca, mordendo sua pele de leve, ainda que para isso tivesse de se conter. Não seria a primeira vez que fariam amor naquele cômodo da casa e ambas tinham ótimas recordações daquela bancada, em especial. Kirsten riu baixo e Amanda sabia que elas estavam pensando na mesma coisa. Amanda esticou o braço, se curvou para trás e fechou a persiana da janela, dessa vez. Enquanto isso, Kirsten descia com os lábios entre os seus seios e começava a remover sua calcinha, gentilmente, passando a beijar suas coxas enquanto se abaixava, apoiada no balcão, para alcançar o seu objetivo. Amanda reacomodou seu corpo e afastou suas pernas, sem saber que Kirsten pretendia secretamente se demorar ali muito mais do que ela estava esperando, em uma espécie de “tortura” a qual Amanda desejava ser submetida ainda muitas vezes, sempre. E quando a morena se deu conta de que havia perdido a noção de há quanto tempo Kirsten havia começado, percebeu sem surpresas que se ela continuasse naquele ritmo, além da noção do tempo, perderia também o controle sobre suas reações, que em certa medida não poderiam ser chamadas, mais, de controladas. Com uma das mãos livre – a outra lhe apoiava – Amanda tocou a nuca de Kirsten com cuidado, percorrendo-a com suas unhas, mas sem machucá-la. Kirsten não parou e Amanda teve de protestar, novamente sem efeito. – Sweety, vá com calma, ou... – Kirsten fez exatamente o contrário, imediatamente. – ou...
E o que ela temia – não num sentido negativo – aconteceu. Sua pele denunciava a temperatura de seu corpo e nem mesmo sua respiração escandalosamente ofegante conseguia aspirar oxigênio suficiente para que o sangue, que corria muito depressa, alimentasse suas células. Kirsten equilibrou-se apoiada em um só braço e com o outro abraçou a cintura de Amanda, trazendo-a ainda mais para perto, mesmo que ela tentasse se afastar porque seu corpo não suportava mais aquele turbilhão simultâneo de sensações. Amanda deixou seu corpo pousar sobre a bancada e empurrou os ombros de Kirsten, com a visão turva, todos os sentidos em completa confusão, exceto o tato, que Kirsten continuava estimulando, inabalável. O ritmo diminuiu aos poucos e Kirsten pôde relaxar o braço que mantinha Amanda presa. Ela não se afastou. Kirsten beijou a parte interna de suas coxas, docemente, e, pela primeira vez demonstrando que estava quase tão exausta quanto Amanda, foi subindo em direção ao seu rosto, percorrendo toda a extensão da pele de Amanda com os lábios, às vezes mordendo de leve locais específicos e os beijando com carinho em seguida. Quando os olhos se encontraram, Amanda ainda não conseguia respirar normalmente, mas seus orbes estavam tão brilhantes que Kirsten ignorou a exigência fisiológica de ambas por ar, e colou seus lábios de novo, em um beijo tão intenso quanto os primeiros. – Acho que você precisa de um travesseiro, meu amor. – disse Kirsten, enquanto abraçava a esposa e acariciava sua nuca. – Uhum. Amanda respondeu com inocência premeditada. Kirsten lhe estendeu a mão e elas venceram a distância entre a cozinha e o quarto trocando beijos singelos e carinhos. Amanda alcançou a cama primeiro e Kirsten tirou a própria calça, que ainda estava aberta, antes de se deitar ao lado dela, abraçando o corpo nu de Amanda pelas costas e beijando sua nuca. Kirsten achou que a esposa fosse pegar no sono, mas assim que se distraiu, com a desculpa de se acomodar no seu ombro e fazê-lo de travesseiro, Amanda se virou. Disfarçou mais um pouco, bocejou, manteve os olhos fechados, mas suas mãos ansiosas começaram a percorrer a pele de Kirsten, lentamente. – Descansa, Mandy... eu velo o seu sono. – disse Kirsten, lhe beijando a testa. – Aham... to quase adormecendo... – mentiu ela. Kirsten percebeu que ela começava a ousar nas carícias, mas não quis se entregar a princípio, julgando que Amanda não tinha intenções de continuar. Julgou errado, e por ter se contido nos primeiros minutos, quando finalmente ficou claro que a noite estava apenas começando, só conseguia pensar em fazer amor com Amanda até perder os sentidos.
333 Quando Kirsten voltou a abrir os olhos, lentamente, depois de notar que seu corpo conseguira repousar durante o sono, encontrou o olhar de Amanda apenas lhe observando.
– Oi, amor... – disse, sonolenta. – Desculpa, sweety, você tava dormindo há horas e eu tava morrendo de fome... – disse Amanda, envergonhada. Então Kirsten viu um prato sobre o móvel, ao lado de um copo de suco. – Que bom que conseguiu fazer alguma coisa depois do meu fracasso, mais cedo. – ela riu. – Trouxe um prato para você. Quer? – Uhum. – Kirsten reacomodou seu corpo, apoiando as costas na cabeceira da cama e cruzando as pernas na posição de lótus. – Engraçado você estar com fome, senhorita Roberts... o que estava fazendo na hora do jantar? Amanda sentiu seu rosto corando, mas com a desculpa de sorver um longo gole de suco, teve tempo de elaborar uma resposta, enquanto se sentava ao lado da esposa. – Estava na cozinha, na verdade, mas bem na hora do jantar estava ocupada com outras coisas... – Que outras coisas? – Depois eu te explico, por hora, não me chame mais de “senhorita”, porque eu sou casada, muito bem casada e, aliás, estava ocupada com a minha mulher, na hora do jantar. – Hmm. Deve ser uma mulher de sorte, a sua esposa. – Kirsten continuou a brincadeira. – Eu posso saber de quem se trata? – Não sei... – Amanda bancou a difícil. – Não sou de ficar falando dela assim, para qualquer estranha que pergunta. Kirsten riu, aproximou seu rosto da esposa e ficou observando cada pequeno detalhe, ainda que a luz baixa não ajudasse muito. Amanda também sorriu, e depois apertou os olhos com força, voltando a abri-los e encontrando os orbes de Kirsten, dessa vez curiosa. Queria saber como ela iria reagir quando Amanda contasse o que já não conseguia manter somente consigo. “Tudo bem, eu posso contar algumas coisas... que eu descobri quando fui verificar os recados, lá em baixo, enquanto preparava o nosso jantar e você dormia feito uma pedra. – Hei! A culpa de eu estar dormindo é sua! – protestou Kirsten. – Nããão, eu não sei do que você está falando. – ela teve de segurar o riso. – De que recado você está falando? Richie? Debby? Jerry?
– Terceira opção. Um recado onde era informado que a lista da Academia saiu pouco depois da meia noite, em Los Angeles. Respondendo finalmente à sua pergunta, a minha esposa é uma loira aí, que pelo que eu soube recebeu três indicações ao Oscar; como produtora, como roteirista e como atriz. Kirsten teve a vaga impressão de que as quatro bases da cama havia se rompido e o colchão fora jogado no chão, com ela ainda sobre ele. Depois se deu conta de que aquilo era um efeito psicológico e que estava em choque. Não conseguia responder. Amanda aguardou pacientemente até que ela recobrasse os sentidos. – Isso é... é sério? Você tem certeza? – Foi o que Jerry disse no recado, estava eufórico. O seu filme tem outras duas indicações técnicas e Max concorre como diretor. – Mas isso é maravilhoso! – Kirsten esqueceu sua fome, tamanha a euforia. – Mandy, um filme com temática gay chamar a atenção desse jeito é um passo enorme... é uma grande vitória pra todo mundo! Amanda sorriu sinceramente. – Quem é que sempre teimou que não podia mudar o mundo com sua arte? Kirsten mordeu os lábios, envergonhada. – Não é bem assim. – É exatamente assim, mas é apenas o começo. Foi por isso que eu me apaixonei por você, Kirsten. Eu vi, desde que nos conhecemos, no fundo dos seus olhos, que havia alguma coisa muito grande reservada para você. E que eu deveria ficar por perto. – É claro que você deve ficar por perto. Isto tudo só está acontecendo porque você ficou do meu lado, você me indicou o livro, você cuidou de mim enquanto eu escrevia o roteiro, você me fez aceitar o papel da Josie, você foi me visitar nas filmagens... – Kirsten notou que estava emocionada, mas não conseguia se controlar mais. – E é você quem vai estar do meu lado, quando os louros vierem. Dane-se quem achar que não somos normais. Amanda só conseguiu, como resposta, ganhar os braços de Kirsten e tomar seus lábios com avidez. Esperava por aquela decisão, ainda que sem grandes esperanças, desde que se casara. Kirsten, por outro lado, nunca imaginara tomar tal atitude, mas não quis voltar atrás. Já passava da hora de poder parar de mentir.
(até o próximo capítulo)
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“Another turning point a fork stuck in the road Time grabs you by the wrist directs you where to go So make the best of this test and don't ask why It's not a question but a lesson learned in time
It's something unpredictable but in the end it's right I hope you had the time of your life” Green Day, trecho de Time of your life. (tradução para o português no final do capítulo)
Capítulo 24 – O Contrato Seus nervos estavam à flor da pele. Kirsten andava de um lado para o outro, já bebera duas garrafas de meio litro de água e não parava de suar. Após uma semana inteira de compromissos com a imprensa, prévias, sessões de fotos, entrevistas, reuniões com estilistas, maquiadores, cabeleireiros (ela e Richard nunca atrelavam seus nomes um ao outro publicamente) e com Jerry – que àquela altura era o mais chato de todos, por estar quase tão nervoso quanto Kirsten – a loira havia chegado à manhã do grande dia, um domingo ensolarado em Beverly Hills. – Sweety, sente um pouco. – pediu Amanda, que estava hospedada com ela em Los Angeles desde a sexta à noite. – Cadê o Jerry, que já deveria estar aqui?
– Kirs... faltam quinze minutos para o horário que ele combinou. Um minuto a menos do que faltava da última vez que você disse que ele estava atrasado. Tente se acalmar um pouco. – Jerry sempre chega cedo, por que hoje não poderia ter feito a mesma coisa? – Estou aqui, estou aqui! – disse ele, acenando gentilmente para Amanda e tomando as mãos de Kirsten entre as suas. – Sente e ouça o que eu tenho a dizer até o final. Se depois disso você quiser surtar, é um direito seu e eu não falarei nada. – Está tudo pronto? Você escreveu? Você – Kirsten, senta. – cortou ele. Ela obedeceu, sorveu mais um gole de água e passou o cabelo para trás das orelhas, aparentemente mais calma. – Bem, são três chances de fazer um discurso. Uma delas eu tenho de vencer. Seja como for, não tenho em mente nada que vá chocar ninguém, não mais que o normal. – Eu tenho certeza que você saberia ser muito correta ao anunciar uma coisa dessas, Kirsten. Tenho absoluta certeza de que seria uma declaração de muito bom gosto, antes de qualquer coisa. – “Seria”? – Amanda não se conteve e interrompeu. – Eu sei que vocês duas planejaram esta noite nos mínimos detalhes e que parar de se esconder seria tirar um peso enorme das costas de nós três. Anularia o maldito leilão que será encerrado essa noite, anularia o efeito nocivo das especulações, aliviaria muita coisa para vocês e me pouparia metade do trabalho que eu tenho. – Jerry, nada me fará mudar de idéia agora. Não foi um impulso, eu pensei muito bem e é isso que eu quero. – disse Kirsten, resoluta. – Existe um contrato, lembra? Entre os produtores de qualquer programa ou filme que você apareça, e você. Todo mundo já sabe que você não trabalha se o contrato de sigilo não for assinado e foi o que aconteceu com esse filme também. Ninguém que faça parte dele pode falar de você publicamente, a não ser de algo que se refira estritamente a sua atuação e ao seu trabalho como roteirista. – Não precisa me explicar isso, Jerry. – ela estava ainda mais impaciente. – Preciso sim, porque você é parte do contrato, Kirsten. – ele disse, pesaroso. – Você o assinou. Você concordou com todos os termos e, como qualquer outra parte envolvida, também não pode falar de si mesma em público.
Kirsten se calou. Parou de respirar, deixou de captar qualquer som a sua volta e notou que sua visão estava paralisada na última expressão de Jerry. O mundo tinha parado. – Isso não faz qualquer sentido! – protestou Amanda. – Faz, infelizmente faz. Eu já pensara nisso antes e não contei a vocês para não preocupá-las, porque tentei reverter. Sondei os advogados dos outros executivos, sabemos o que vai acontecer. A notícia desse casamento vai ser uma bomba e é lógico que será alegado que prejudicou o filme, embora eu não creia que isso vá acontecer. Acho que os seus próximos trabalhos é que seriam vistos de maneira diferente, Kirsten, não este. Este só seria beneficiado pela publicidade, mas... Você e eu sofreríamos um grande processo. – Eu enfrento o processo! – disse Kirsten. – Não. Não vamos tomar os pés pelas mãos. Você está decidida a assumir? Ótimo. Mas não vai fazer isso na hora errada, de cabeça quente. Vamos planejar isso para daqui a algum tempo, o que acha? Kirsten notou que Amanda também lhe interrogava, mesmo que em silêncio. Dizer que concordava com Jerry seria decepcioná-la mais uma vez. Seria colocar a carreira em primeiro lugar, de novo. Seria provocar outra briga, e talvez dessa vez não houvesse volta. Kirsten andava temendo que a próxima briga fosse se tornar a última, no mau sentido, e evitava qualquer atrito a qualquer custo, desde a noite em que a lista dos indicados saíra. – Mandy...? – ela encarou a esposa, suplicante. Como Amanda nada disse, Jerry resolveu se interpor. Ainda que as duas fossem quase como amigas suas, bem mais novas, é verdade, ele sempre sabia a hora de ser apenas profissional e nada mais. E aquele era o momento mais apropriado para isso. – Como empresário, eu tomei a decisão por você. Sabe que tenho outros clientes, claro que não com a sua notoriedade. Um deles é Bryan Farris, que conseguiu um bom papel num seriado de TV que estreou esse mês, um rostinho bonito com algum talento, que dentro de alguns anos pode se tornar um pouco mais do que isso. Ele precisa aparecer, vai ser ótimo para ele e melhor ainda para você. Bryan tem 26 anos, vem de família tradicional em San Diego e já está com o seu convite, Kirsten. A limusine dele passará aqui para levá-la, assim que estiver pronta. Como favorita à estatueta de melhor atriz, você é a mulher mais aguardada da noite, vai ser, portanto, a última a pisar no Red Carpet. O sol estará se pondo e seus olhos serão favorecidos pela iluminação. Isso também influencia a cor do seu vestido, mas já conversei com Domenico. Fizeram quatorze modelos diferentes para você, certamente haverá um que seja perfeito. – Jerry falava tudo ao mesmo tempo, sabendo que quando parasse, algo muito grave poderia acontecer, então ele respirou fundo e continuou com os assuntos aleatórios que tinha em mente. – Está lembrada do catálogo de jóias que lhe ofereceram? Escolhi o conjunto vinte e sete. Consegue lembrar? Vinte e sete, o acordo está assinado, você não pode mudar. E não seja, pelo amor de Deus, assaltada no caminho. Elas valem 5 milhões de dólares. Não consegui um bom contrato de seguro.
Não se preocupe se vão combinar com o vestido ou não; são diamantes, Kirsten. Como é mesmo a frase? “Os diamantes são os melhores amigos das garotas”. Esta é a noite da sua vida. Não decepcione ninguém. “Não decepcione ninguém!” A frese ecoou na mente de Kirsten por muito tempo. Teve a vaga impressão de que Jerry se despedira e voltaria mais tarde, mas não poderia afirmar com segurança o que ele havia dito. Amanda, à sua esquerda, levantou-se devagar, mas parecia tão desconcertada quanto ela. Como se ambas tivessem acabado de sofrer um grave atropelamento por veículo muito pesado. Como se nada tivesse sobrado delas a não ser o medo do próximo passo. Nenhuma queria ser a primeira a falar. – Jerry está certo, não é hora de agir com a cabeça quente. – disse Kirsten, depois de quase cinco minutos. Amanda assentiu apenas movendo a cabeça vagarosamente. Olhou a mulher a sua frente e viu, por dois ou três segundos, a garota que acordava nos seus braços quase todos os dias, inocentemente, com o rosto inchado pelo sono e os olhos ainda com remela, mas sempre com alguma frase que fazia Amanda rir, se não de seu conteúdo, da expressão mal-humorada dela. Viu a garota que não sabia cozinhar, mas que se escondia, às vezes, para fazer surpresas para ela, e depois ria com a consciência limpa de uma criança. Mas foi apenas por dois ou três segundos. Porque a mulher que estava diante dela, como Jerry salientara, era a mais aguardada em uma noite que teria quase 1 bilhão de expectadores ao redor do globo, em uma festa onde desfilavam, juntos, os melhores e os mais aguardados modelos da alta costura, as jóias mais caras do planeta, os rostos e os corpos mais desejados de todo o mundo. Kirsten era a cereja daquela sobremesa reservada para tão poucos e ao mesmo tempo que aquilo gerava em Amanda um orgulho que transbordava o seu ser, dava a ela também a exata noção de que não se casara com uma pessoa, mas uma entidade que agora era a estrela do maior de todos os contos de fada criados pelo homem: a noite do Oscar. – Jerry está certo e o que ele lhe orientou é exatamente o que você tem de fazer com relação a sua carreira, Kirsten. Kirsten notou que estava tremendo de medo, mas tinha de seguir naquilo até o fim. – Então? – Você é “Kirsten Howard”, meu amor. – ela disse o nome da esposa como se o anunciasse em um programa de televisão. – É quem o mundo inteiro quer ver nessa noite. – Mas eu não sei o que fazer, Mandy... – Não seja tola. – Amanda piscou o olho de maneira estranha. – Não vá trocar os seus milhões de fãs e admiradores por uma única garota que, afinal de contas, nem tem mais feito você sorrir ultimamente, não é?
– AmandKirsten parou de falar. Amanda lhe lançara um olhar tão perturbador que ela ficou petrificada, em pé, no meio do cômodo que antecedia o quarto, na suíte presidencial do hotel. Aquele olhar teve o efeito que um tapa na face não traria, mas foi exatamente como Kirsten se sentiu. Principalmente porque sabia que merecia. Sabia que Amanda estava lhe deixando por um motivo justo. E sabia que por mais que a amasse com todas as suas forças, faria naquela noite exatamente o que Jerry havia proposto. Por isso nada fez quando a morena deixou o quarto, calmamente. Não a chamou de volta nem mandou alguém atrás dela. Se Amanda tivesse de voltar, seria com as próprias pernas, seria pela própria vontade.
Nota da Autora: segue a tradução dos versos da epígrafe, da música “O Tempo da Sua Vida: Outro momento decisivo; uma encruzilhada na estrada O tempo agarra você pelo pulso e direciona você aonde deve ir Então, dê o seu melhor nesse teste e não pergunte por que Essa não é uma pergunta, mas uma lição que se aprende com o tempo É algo imprevisível, mas no final, dá certo Espero que você tenha curtido o tempo de sua vida
(até o próximo capítulo) Voltar para o índice Vingança? escrita por Sara Lecter Notas do Autor: gente, vocês não sabem como me fazem feliz... os últimos comentários chegaram quase ao mesmo tempo, nem dava pra ler um e vinha outro... tava mais fácil atualizar a página direto do que ir no e-mail. vocês são MARA, garotas!
“Todas as mulheres têm um sangue frio que lhes é peculiar.” Honoré de Balzac [meu autor favorito!] em Le Grand Bretèche .
Capítulo 25 – Vingança? Uma garota ajeitou a alça de sua bolsa estilo carteiro no ombro e realinhou os óculos escuros sobre a face. Tinha no bolso de trás da calça jeans, surrada, um pequeno bloco de anotações e uma caneta esferográfica, e em uma das mãos uma câmera fotográfica pequenina, mas de última geração. A mão livre, depois de mexer nos óculos, correu entre os cabelos castanhos sem desalinhá-los, pois estavam arranjados em um corte leve que a deixava jovem, mas com um aspecto de mulher forte e inteligente. Não era a única ali. Centenas de jornalistas, câmeras, fotógrafos ou mesmo curiosos se empurravam na sala de imprensa do grande hotel, aguardando pelo que seria a última entrevista de Kirsten Howard antes da cerimônia. A garota, no entanto, ficara do lado de fora. Não tinha credenciais, mas poderia contar com sua esperteza, que era notável sob diversos aspectos. Acima de tudo, a garota também tinha muita sorte, e foi provavelmente por isso que foi a única a ver a atriz Amanda Roberts deixando o hotel. Ou, quem sabe, porque era a única ali que parecia ter absoluta certeza de que Amanda era o caminho mais curto para acessar Kirsten. – Amanda! Amanda! – a garota correu na sua direção. – Sim? – Amanda teve de disfarçar seu rosto vermelho e agradeceu por estar com óculos escuros. – Nos conhecemos? – Sou sua fã. – a garota sorriu, tentando parecer sem graça. – Vi diversas apresentações suas na Broadway, sou uma admiradora incondicional de teatro e acredito que você é a maior estrela que surgiu nos últimos anos. – Obrigada. – Amanda avaliou que o efeito de receber um elogio como aquele, depois do que tivera de passar, era extremamente reconfortante. – É realmente uma grande sorte minha ter encontrado você aqui. Além de sua fã, sou jornalista. “Deve ter vindo por causa da Kirsten” pensou Amanda, suspirando contrariada. – Mesmo? – disse qualquer coisa para não ficar evidente que estava de péssimo humor. – Você, por acaso, não aceitaria se sentar comigo ali no bar do hotel, para falarmos um pouco sobre seu novo contrato com Barbara Evans? Amanda avaliou as possibilidades que tinha. A garota a sua frente provara que realmente sabia alguma coisa sobre ela e isso massageou um pouco mais o
seu ego destroçado pela esposa. Pensou em qualquer outra coisa que poderia fazer e nada lhe ocorreu. Deixara a suíte para não ter de brigar com Kirsten de novo, não no dia que poderia ser o mais importante da vida dela. Amanda aprendera naqueles últimos meses que Kirsten apenas se machucava com brigas, e por isso as evitava a todo custo. Para Amanda, cujo sangue fervia ao mínimo sinal de que as coisas não andavam bem, o sacrifício de conter seus próprios instintos era quase tão grande quanto o de engolir o seu orgulho em nome do seu amor. – Então você já está sabendo? – Amanda sorriu e começou a andar em direção ao bar, ao que foi seguida pelos passos curtos e apressados da outra. – Mas é claro que sim, Amanda. Não sei se você tem noção disso, mas seu nome é comentado. Ela não tinha qualquer noção disso. Na adolescência tinha sonhado tantas vezes em ser uma cantora famosa e agora que era uma grande atriz de excelente reconhecimento, não lembrava de fama. Mas sabia que o motivo não era ter seguido uma carreira diversa, mas ter se casado com aquela que tinha agora o nome mais comentado do mundo, a foto mais reproduzida, os atributos mais invejados. Era lógico que Amanda não perceberia a própria fama, se ela fosse sempre eclipsada pelo fenômeno Kirsten Howard. – Imagine, apenas alguns fãs mais exaltados. – ela sorriu, mas não foi de felicidade, foi para disfarçar a raiva guardada por tanto tempo. – Não, não. E sabe o que você tem de melhor? Os críticos amam você. Eu leio os principais periódicos especializados, nove entre dez críticos de teatro aprovaram você naquela grande montagem de Oliver Townsend. – Os méritos são todos da produção. – Verdade que foi sua primeira peça profissional? – Foi... Amanda admitiu baixando o rosto em um sorriso tímido, que se tornou misterioso quando percebeu que a jornalista a observava de maneira peculiar. Sentaramse juntas em uma das mesas do bar e Amanda logo fez um pedido bem simples. A jornalista não quis nada. – Você ficou quase dois anos nesta peça. Sente falta da Christine? – ela se referia à personagem de Amanda. – Às vezes lembro dela, mas não pelo papel, por todas as coisas que mudaram na minha vida enquanto a interpretava. O primeiro trabalho adulto, a primeira protagonista de musical, a primeira turnê mundial, os primeiros prêmios, foi tudo com a Christine. – E a vida pessoal? – a jornalista foi rápida, aproveitando a empolgação de Amanda. – O que a trouxe à Los Angeles essa noite?
– Amanda!!! Bela... magnífica Amanda Roberts! Amanda e a jornalista se viraram imediatamente, depois de ouvirem o carregado sotaque italiano que chamara por uma delas. Um homem de roupas leves, mas elegantes, sorria para a atriz e se aproximava da mesa. Ao mesmo tempo um garçom trazia o suco natural de Amanda. “ Bela! – ele beijou as costas da mão de Amanda, ao cumprimentá-la com entusiasmo. – Não sabe a sorte que tenho de vê-la aqui. Vittorio era acionista de um dos maiores estúdios de Hollywood, mas tinha negócios em Nova Iorque também, e por mais de uma vez fora assistir Amanda quando ela ainda se apresentava pela Companhia Townsend. Levado ao camarim na primeira vez, Vittorio se tornara um grande admirador da atriz e era o homem que mandava, em todas as apresentações, duas dúzias de rosas vermelhas para ela. Amanda sabia pouco sobre ele, a não ser que era amigo de Oliver, bilionário, e um peixe muito grande na costa Oeste. – Querido, a sorte e o prazer são todos meus. – ela tinha por ele grande afeição, mas nada que passasse disso. Além de ser homem, Vittorio tinha o dobro da idade de Amanda. – Não, você não tem sorte, eu estou aqui por causa da noite. A noite. Amanda aprendera que em Los Angeles, em dia de Oscar, ninguém dizia o verdadeiro nome da festa. Apenas “a noite”. Então ela se lembrou – como se isso fosse coisa que se pudesse esquecer – que o estúdio de Vittorio era o produtor do favorito à estatueta de Melhor Filme, o que significava, portanto, que era o principal concorrente de Kirsten e seus sócios, pelo menos nessa categoria. – Sua hospedagem, por favor. – pediu o garçom, para registrar o pedido de Amanda. – Presidente Roosevelt. – ela respondeu mecanicamente o nome da suíte. Vittorio a encarou com curiosidade e esperou o rapaz se distanciar. – “Roosevelt”? Não é a suíte da Kikiki? Kikiki. Amanda quase explodiu numa gargalhada, ao mesmo tempo em que se sentia o pior ser humano dentre todos. “Kikiki” era como qualquer pessoa que odiasse Kirsten Howard – e esse grupo era cada vez maior – se referia a ela nos bastidores de Beverly Hills. A fama tem sempre dois lados, mas Amanda nunca tinha pensado seriamente sobre o cacife das pessoas que desprezavam sua esposa e que fariam de tudo para que a carreira dela fosse transformada em pó. Kirsten mantinha Amanda fora daquilo para preservá-la, e enfrentava sozinha todas essas questões, raríssimas vezes deixando sua mulher perceber que aquilo a afetava e que, em certa medida, apavorava. Quanto mais famosa e reconhecida ficava, maior e mais aguerrido se tornava o grupo que a contrapunha. Era injusto pensar que Kirsten nunca havia feito nada contra aquelas pessoas e que seu ódio era, portanto, gratuito.
– É mesmo? – disparou ela, com um sorriso maldoso. Vittorio lhe deu dois tapinhas amigáveis nas costas e a convidou para a festa que o seu estúdio daria depois da cerimônia. Amanda alegou que não tinha certeza, ainda, se ficaria em Los Angeles até o dia seguinte. – Impossível, sairemos do Kodak Theater já bem tarde. – disse Vittorio. – “Sairemos”? – Amanda, com a sua presença na cidade dos anjos você acha que eu ousaria levar outra mulher comigo para a noite, que não fosse a nova Sarah Bernhard? Não era assim que Oliver lhe chamava? Talvez eu concorde, talvez não. Acho que em pouco tempo você será ainda maior do que ela jamais foi. – ele pareceu notar a presença da jornalista somente naquele momento. – Anote isso, querida: Amanda Roberts é uma dama do teatro, a melhor de seu tempo! – Vittorio... – E um dia eu vou colocar você num dos meus filmes! – ele a abraçou pelas costas. – Que lhe parece, por uns tempos, trocar os palcos pela tela de cinema? – Não, não... – Calma, seria apenas um papel, Amanda. Eu jamais ousaria tirar você do lugar onde nasceu para brilhar! Amanda não conseguiu responder mais nada, Vittorio se retirou em seguida, prometendo levá-la consigo para a cerimônia e Amanda reconheceu, apavorada, que já não tinha mais como se livrar daquilo. Então uma sombra passou por seus olhos e ela sorriu. Irônico como duas pessoas – uma delas era uma jornalista desconhecida, era verdade, mas o outro era um dos homens mais poderosos da mídia – lhe tinham elogiado sem medidas menos de uma hora depois de ela se sentir um lixo completo. Como da outra vez, quando acabara de brigar definitivamente com os pais e deixara sua casa, e no dia seguinte Oliver a convidava a estrelar a maior montagem da Companhia. A vida de Amanda tinha altos e baixos que se encontravam de maneira drástica. – Desculpe pela interrupção. – disse ela à jornalista. – Problema algum. Não sabia que eram íntimos. – ela se referia a Vittorio. – Vittorio é um cavalheiro, certamente estava exagerando. Onde estávamos? Ah sim, você queria saber sobre meu novo trabalho para Barbara Evans. – Exatamente. Quando estará nos palcos de novo? – Muito em breve, na verdade. – Amanda sorria e respondia tudo mecanicamente, pois já estava pensando no que faria naquela noite.
– Pode falar do seu papel? – É pequeno, tive pouco tempo para ensaiar e entrei no meio da produção. Não ficaremos mais que alguns meses em cartaz na Broadway e não deve haver turnê. – Mas... desculpe o comentário, isso não é pouco para um nome como Amanda Roberts? – É uma transição. Acabo de deixar outra Companhia, quero primeiro colocar as coisas no seu devido lugar. – Certo... certo. – Ouça, eu sei que prometi conversar, mas podemos marcar isso por telefone, para outro dia? – pediu Amanda. – Sem problemas, entendo que o convite que acabei de presenciar deve mudar sua agenda completamente. – Exatamente. – Amanda sorriu, pensando que na verdade não mudaria muitas coisas, uma vez que ela já tinha tudo preparado, pois iria com Kirsten antes de Jerry dar a fatídica notícia. Amanda se levantou, deixou o suco pela metade e pensou em dar uma volta pelas cercanias do hotel antes de voltar para ele, se registrar em outro quarto e mandar apanhar suas coisas. Mas quando estava no saguão ouviu a voz da jornalista mais uma vez, e nessa oportunidade começou a julgar que a garota tinha um “quê” de inconveniência. – Não faz isso com a Kirsten! Por um instante Amanda balançou a cabeça e piscou demoradamente, como se não acreditasse no que tinha acabado de ouvir. A expressão da jornalista mudara radicalmente e sua voz era suplicante. – Quem é você? – Não faz isso com ela, Amanda. Eu não poderia te deixar ir embora sem dizer isso, você e a Kirsten são o casal mais lindo do mundo, você simplesmente não pode ir na entrega do Oscar com um homem que odeia ela, do jeito que você viu! – Eu não sei do que você está falando. – Amanda tentou se afastar, apressada, mas a garota a seguiu. – Acredita em mim. Você pode me achar maluca, e talvez eu seja mesmo. Mas não vou te perdoar se você fizer isso, ninguém vai, muito menos a Kirsten. Está todo mundo torcendo para vocês aparecerem juntas!
– Ahn? É melhor você me dizer quem é ou terei de chamar os seguranças. – Os seguranças dela, o que prova que estou certa. – ela disse, rapidamente. – Ouça, eu tenho a foto. A foto do leilão, eu sei que é você que está nela, com Kirsten Howard. – Você é uma psicopata, está querendo fazer fortuna com uma chantagem dessas! – Eu não quero o dinheiro da foto, eu só quero que alguém a publique, e que seja para valer, por isso criei o circo do leilão. – E o que você tem a ver com isso? – Não sou apenas eu. Mas as milhares de mulheres como nós que são relegadas a um estereotipo e à vergonha, muitas vezes, por causa de algo que ninguém deveria ligar. Você tem idéia do que vai acontecer se vocês assumirem? A Kirsten é a mulher mais linda do mundo, um exemplo para todas as outras, se ela assumir que é lésbica, não todas, mas grande parte das pessoas que vêem isso com algum preconceito vão repensar seriamente. Amanda pensou sobre aquilo por algum tempo. Depois voltou a andar em direção ao interior do hotel. – Você é maluca. – Amanda, espera! Pensa bem. É o grande dia da vida dela, não faça nada que possa acabar com isso. Raivosa, Amanda se virou: – Kirsten prefere a carreira dela à mim. Vamos ver, então, como ela se vira sozinha.
Nota da Autora: um pirulito para quem acertar quem era a jornalista :P
(até o próximo capítulo)
Voltar para o índice Red Carpet escrita por Sara Lecter “Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores... mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos.” Vinícius de Moraes.
Capítulo 26 – Red Carpet Amanda parou para se olhar no espelho. Kirsten estava dando entrevista quando ela subiu para tirar suas coisas do quarto e desde então não a vira mais, apesar de saber que ela estava na suíte ao lado. Era o quarto vestido que experimentava, uma vez que os assessores de Vittorio tinham vindo ajudá-la, a pedido do executivo. Jerry ligara para o seu celular pelo menos cem vezes até a metade da tarde quando, sem bateria, o aparelho se desligou sozinho. Por fim, ela acabou escolhendo o mesmo vestido, a mesma maquiagem e as mesmas jóias que já havia decidido no dia anterior. Ligou para Vittorio com o telefone do hotel e avisou sobre o tom do tecido, atendendo a um pedido do mesmo, que estava fazendo de tudo para que ela tivesse uma noite de princesa e, não fosse pelo pequeno detalhe de ter aberto mão do amor de sua vida naquele mesmo dia, era como Amanda realmente se sentia. Oliver fora o primeiro a perceber isso nela, o fato de que nada a agradava mais do que bajulações, por mais fúteis que fossem. Um verdadeiro mar de pessoas cobria os dois lados da avenida que conduzia as limusines ao tapete vermelho. Flashes não paravam de ser disparados, mas Amanda sabia que, para além da noite mais glamurosa do ano, havia algo especial ali. – Prepare-se para o grande show, minha querida. – Vittorio lhe tomou a mão antes de começar a se levantar para deixar o veículo. – Fiz de propósito, para apagar um pouco o brilho dela, vamos entrar ao mesmo tempo que Kirsten Howard. Amanda sentiu seu estômago ceder dez centímetros, talvez produzindo um eco que Vittorio não escutou porque já estava do lado de fora, sorrindo e alinhando o terno antes de oferecer sua mão para que Amanda se apoiasse. Assim que seu tronco se elevou e ela tentou trocar um sorriso com seu par, para fazer boa figura, os flashes a cegaram e ela foi se deixando carregar pelo braço de Vittorio. Pela segunda vez ele se inclinou na sua direção e sussurrou: – Temos uma grande amiga em comum. Nos negócios eu adoraria acabar com ela, ou trazê-la para o meu estúdio, o que seria ainda melhor. Mas hoje não, Amanda. – ela notou que ele se afastava, embora seu braço a conduzisse para uma direção que ela não conseguiu discernir, tonta pelo barulho dos gritos, aplausos e perguntas, além da luz dos flashes e holofotes na entrada do teatro. – Hoje a noite é de Kirsten Howard, e o seu lugar é ao lado dela.
A primeira coisa que Amanda conseguiu ver, depois de deixar o carro, foi a figura realmente atraente de Bryan Farris, que estava tão perdido quanto ela, mas sorria para os fotógrafos e parecia estar adorando os gritos histéricos das jovens mulheres que se amontoavam no limite das cordas que isolavam o Red Carpet. Apurando melhor a visão ela olhou para trás e viu Vittorio ocupado, dando uma rápida entrevista para a imprensa oficial do evento. Então Amanda se deu conta de tudo que estava acontecendo, se deu conta de que ficaria, no total, 90 segundos sobre aquele tapete, sendo filmada e fotografada mais nesse período do que já fora em toda a sua vida, produzindo imagens e fotos que seriam reproduzidas ao redor do mundo e ocupariam desde revistas especializas em cinema, passando por revistas de moda, até jornais que no dia seguinte forrariam alguma caixa de legumes ou a casa de um cachorro. Sorriu, não era uma completa inexperiente e suas apresentações na Broadway geravam algum barulho, embora ela sempre entrasse pelos fundos para se preservar. “Quem tem de aparecer é a personagem, não você. Isso é ser atriz.” Stella, sua primeira professora de teatro lhe dissera aquilo um dia, mas nem mesmo esse sábio conselho tinha alguma coisa a ver com o Red Carpet da noite do Oscar. Nada no mundo se parece com aqueles 90 segundos de pura mágica, onde quem é esperto, sequer perde tempo respirando. – O contrato me impede de falar, mas não podem me processar pela coincidência de entrarmos juntas. Amanda ouviu, acima dos decibéis altíssimos de todos os gritos e aplausos, seu coração disparando como nunca antes. “Desde o macarrão queimado eu lhe devia uma surpresa, amor. – disse ela, com extremo cuidado de não ser captada pelas dezenas de microfones que cercavam o casal. – Agora não trema quando eu pegar a sua mão, e pose para o cara de verde à sua esquerda, será a foto oficial da sua entrada. Ela obedeceu mecanicamente. Vittorio se aproximou, numa seqüência muito rápida de eventos que fizeram Amanda se perguntar como Kirsten poderia adorar aquilo e se sentir tão bem naquela posição. Kirsten e Vittorio apertaram as mãos e o executivo beijou o rosto da atriz com candura. Muitos flashes mostraram que aquele era um momento emblemático, pois assim como Amanda, a imprensa em geral achava que eles eram inimigos. Bryan se aproximou e tomou o braço de Kirsten, posando para mais algumas fotos e sorrindo como só um jovem ator de seriado começando a ser famoso consegue sorrir. Amanda olhou para sua mulher e não conseguiu conter um sorriso largo. Kirsten estava mais linda do que ela jamais a vira, e se saía tão bem comandando aquele circo todo, tomando para si a responsabilidade de saber que era a figura mais aguardada e não decepcionando, que Amanda lembrou mais uma vez porque se apaixonara por ela. Mas com a presença de Bryan ao lado dela, Amanda lembrou também que o preço a se pagar era bem alto. A menos de meio metro de distância dela, Amanda teve a exata noção do que seria a figura de Kirsten para ela, sempre, ou pelo menos até que elas assumissem o romance: alguém muito próxima, mas intocável.
Vittorio deu dois passos decididos em direção a Bryan e cumprimentou o rapaz, assim que Kirsten os apresentou. Decidido a entretê-lo, piscou rapidamente para Amanda e, entre respostas balbuciadas do garoto para as perguntas insistentes sobre o namoro dele com Kirsten, Vittorio indicou que ela deveria continuar. Pela primeira vez os olhos de Amanda e Kirsten se encontraram, não como duas acompanhantes que se cumprimentam educadamente enquanto seus parceiros conversam sobre negócios, nem como duas mulheres que se conhecem de vista e sorriem de maneira efusiva só porque sabem que centenas de câmeras estão apontadas para elas. Para quem quisesse ver, era uma troca de olhares completamente apaixonados. Sem qualquer combinação, as duas olharam de novo para a entrada, sabendo que a cerimônia estava para começar, e cumpriram os últimos dez passos lado a lado, por duas vezes deixando seus ombros se roçarem, embora ninguém pudesse suspeitar que não se tratava de acidente.
333 Kirsten foi cercada por bajuladores assim que as duas entraram. Como a cerimônia estava para começar, elas tinham logo de tomar seus lugares e Amanda lamentou, pela primeira vez, que Kirsten estaria na primeira fila do lado esquerdo e Vittorio na quarta, do lado direito. O maldito garoto de seriados estaria ao lado da sua mulher e ela não poderia fazer nada. Ao mesmo tempo ainda sentia tanta raiva pela escolha de Kirsten que tinha ganas de sufocá-la até a morte. Sobretudo por causa daquela irritante mania de Kirsten de não discutir, de achar que suas surpresas, por mais incríveis que fossem – e a do Red Carpet dificilmente seria superada – , tornavam qualquer desentendimento coisa para se deixar para trás. Depois que os primeiros prêmios técnicos saíram e Amanda conseguiu parar de tremer, Vittorio a convidou para acompanhá-lo até o coquetel, onde as estrelas iam se distrair enquanto não chegava a sua hora de aparecer. Aquela parte da festa nunca era transmitida, e com surpresa Amanda verificou que assim que ela se levantou, sendo conduzida por seu par, um casal de modelos em trajes de gala ocupou seus lugares, evitando assim que a transmissão ao vivo captasse lugares vagos no meio da platéia. Ainda a caminho do coquetel, Amanda começou a conjecturar se Kirsten sairia também, e se elas se encontrariam nos bastidores. Não tinha idéia do que diria a ela. Felizmente ou infelizmente não foi necessário elaborar nada. Amanda e Vittorio passaram vinte minutos no coquetel e ela apenas acenou para algumas pessoas e fez boa figura ao lado do executivo. Quando perguntado sobre sua companhia, Vittorio sempre sorria e falava que Amanda era uma atriz tão boa quanto qualquer uma que estava ali, mas orgulhosa demais para se vender para o mundo de Beverly Hills. Antes de voltarem aos seus lugares, Vittorio ainda teve de responder em quem estava apostando, para as cinco principais categorias. Arrogantemente ele argumentou que seu estúdio levaria todas as estatuetas; Amanda sorriu concordando e saiu. Vittorio estava certo em sua estimativa, ou pelo menos começou acertando: Kirsten perdeu o prêmio de melhor roteiro adaptado do ano, mas não parecia realmente decepcionada, como se tivesse passado um bom tempo se preparando
emocionalmente para aquele resultado. Provavelmente a maior decepcionada era Susan, que assistia em casa, pela televisão. Amanda sentiu seu coração apertado, mais ainda por não estar ao lado de sua mulher, mas nada pôde fazer a não ser continuar na expectativa pelas outras duas chances que ela tinha. – Esta noite – assim começou o discurso de Kirsten, ao ser chamada para receber o prêmio de melhor atriz. – duas pessoas me vieram à mente. Para falar a verdade eu pensei neles o tempo inteiro. Sei que há um protocolo e que eu deveria estar falando da Susan, que escreveu um livro maravilhoso, do trabalho perfeito do Max como diretor, ou dos outros produtores, mas eu quero falar de Richard e Debra, os melhores amigos que uma pessoa poderia ter a sorte de fazer na vida. Foi o Richie que atravessou Nova Iorque correndo para me mostrar a primeira revista que trazia o meu nome e foi a Debby quem atendeu o primeiro telefonema com proposta de trabalho para mim aqui em Hollywood. Isso aconteceu há sete anos e foram nove filmes até agora; mas é um tempo tão pequeno e uma importância tão secundária se comparada aos anos ao lado desses meus dois amigos, que quem vos fala agora não é a atriz que vocês consagraram, mas a “Kiki” que eles criaram e tornaram forte, quando uma tragédia precoce parecia ter me relegado a crescer sozinha. – Kirsten fez uma pausa e procurou por um rosto na platéia. – Outra tragédia seria não falar de uma mulher... uma mulher que amou outra mulher com todas as suas forças e que sempre fez de tudo para estar ao seu lado. A mulher que é a minha maior inspiração e sem qualquer sombra de dúvida é a grande responsável por isso aqui... – Kirsten olhou para a estatueta recém entregue em suas mãos. – Dedico, finalmente, esse Oscar a todos que por alguma razão equivocada não são “normais”, mas que por todas as razões mais corretas do mundo sabem andar de cabeça erguida, como o soube Josie Duschamps. Dedico este prêmio à tolerância com a diversidade e ao amor, não importa de que forma ele se manifeste. Vittorio sorriu quando Amanda apertou sua mão entre os seus dedos. Sabia por sua larga experiência que os jornais do dia seguinte diriam que a mulher a quem Kirsten se referia no discurso era sua personagem; e admirou o fato de ela ter sido esperta o suficiente para sugestionar a imprensa, citando o nome de Josie logo em seguida. Mas também sabia que aquelas palavras eram para Amanda e em certa medida lembrou de si mesmo quando ainda era um oprimido naquele mundo cruel chamado Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Em seu próprio discurso, quando seu filme ganhou o maior prêmio da noite, Vittorio falou brevemente – era o quinto Oscar dele à frente do estúdio – e, surpreendendo a todos, encerrou a noite declarando que o sabor de seu sucesso era maior naquela oportunidade: – Sempre pensei que as raposas daqui fossem todas velhas. Estamos felizes por ganhar o prêmio mais cobiçado, mas a noite hoje, admitamos, foi de alguém que certamente está apenas começando a mostrar o porquê do nosso instinto natural de nos curvarmos ao seu talento. Kirsten, a minha maior vitória hoje foi superar você... mas não sou tolo de acreditar que o conseguirei por muito tempo. De volta à platéia, Kirsten fechou os olhos. Lembraria muito bem do sabor daquelas palavras, no ano que estava apenas começando, praticamente todas as vezes que buscasse dentro de si alguma força para voltar. Com aquela consagração ninguém no mundo poderia imaginar que a carreira dela estava por um fio, e o que Vittorio anunciara como apenas um começo, era, na verdade, o fim.
Nota da Autora: capítulo dedicado à memória do ator Heath Leadger, pela coragem de interpretar um cowboy gay em um grande filme; e pela peculiaridade de ter saído de cena enquanto ainda se ouviam os aplausos.
(até o próximo capítulo) Notas Finais: E agora? A Mandy vai perdoar a Kiki depois desse discurso? E o Jerry, o que vai dizer do truque para entrarem juntas? Não esqueçam que o leilão da foto mais cobiçada do mundo estava marcado para a noite do Oscar... Voltar para o índice Descontrolada escrita por Sara Lecter
“Vittorio, como vai? Estamos no mesmo hotel, seus assessores me deram o telefone porque quem está falando é Kirsten Howard. (...) Não é nenhum tipo de cumprimento nem desejo de boa sorte esta noite. Estou ligando para oferecer a você o meu grande segredo e a única coisa que pode me derrubar de verdade com a mídia. (...) Só preciso que faça por mim um pequeno favor e em troca, além da minha carreira totalmente nas suas mãos, você terá uma bela companhia para o Red Carpet. Sei que você apreciaria muito estas duas coisas.” Trecho da cena que excluí, propositalmente, do capítulo anterior.
Capítulo 27 – Descontrolada Kirsten entrou na Suíte Presidente Roosevelt tentando não fazer barulho, mas o álcool ingerido na festa que seus sócios prepararam para ela, em comemoração ao Oscar, alterava suas percepções. Fechou a porta com cuidado e olhou para a sala que antecedia o quarto. A janela conservava aberta uma pequena fresta que permitia a entrada de uma brisa fresca do final da madrugada em Los Angeles e todas as luzes estavam apagadas. Kirsten esperou que seus olhos claros se adaptassem à escuridão e começou a tirar os sapatos de salto, apoiada em uma mesa próxima da entrada, onde pousara também a estatueta que recebera. Ouviu alguma movimentação e apurou seus olhos. Conseguiu discernir a silhueta de Amanda andando em sua direção. Sabia que a pouca luz que entrava pela janela favorecia o seu próprio rosto e sorriu, mas foi tudo tão rápido que ela largou os sapatos de qualquer jeito para poder se apoiar no móvel mais uma vez, imediatamente levando sua mão até a face que acabara de receber um violento tapa, um comportamento que ela jamais esperaria de Amanda. – Se divertiu na festa, meu amor ?
– Mandy... – “Mandy” é o raio que te parta, Kirsten Howard! Eu estou cansada de ser o seu brinquedo. – Mas – cala a boca e me escuta! Uma vez na sua vida seja capaz de me ouvir quando eu quero falar, porque eu estou farta de ver você fazer uma cara de superior e dizer que volta quando eu estiver mais calma. Kirsten engoliu sua próxima frase. Amanda a conhecia bem, ela estava realmente pensando em dizer para conversarem no dia seguinte. Mas não se poderia dizer, na verdade, que ela estava em pleno gozo de suas funções psicológicas. O tapa ainda lhe ardia na face e seu caráter inesperado tinha mostrado em dois segundos uma coisa sobre Amanda que ela não tinha aprendido em cinco anos, três e meio deles morando sob o mesmo teto. “Você vem me magoando tanto, Kirsten, tanto! Dia após dia uma nova decepção, eu não sei como chegamos até aqui. Eu não entendo porque você nunca consegue dizer não ao Jerry, tomar decisões por si mesma e por nós. Eu realmente não agüento mais te ouvir falar que não gosta da fama, quando tudo... tudo o que você faz é aparecer cada vez mais. Não sei como pude me enganar tanto com você, acho que foi por causa daqueles seus discursos demagógicos e hipócritas quando me chamava para sair. Eu acreditei em você, Kirsten. Eu me apaixonei por uma mulher que você me fez crer que existia, por trás de todos esses flashes, mas ela não existe! – Existe sim, Amanda, e você está sendo dura de uma maneira que eu não mereço. – Não merece!? Você passou o último mês inteiro me fazendo acreditar que estaríamos livres desse pesadelo. Você me iludiu! – Amanda, não foi escolha minha, você ouviu o Jerry, havia um contrato! – Você não é “Kirsten Howard”? Rasgue o contrato na cara de quem assinou! – Isso não é um modo correto de agir. – É isso que eu detesto em você! – Amanda cuspiu as palavras. – Você é tão racional que chega a irritar. Por que pensar tanto antes de fazer qualquer coisa? Porque você não pode simplesmente errar uma vez na vida, Kirsten? Desde que tenha sido tentando fazer a coisa certa!? Kirsten se aproximou, tocou a cintura de Amanda com cuidado e tentou puxá-la para perto de si, mas a outra a empurrou, com violência. “Não ouse tocar em mim, eu tenho nojo de você! Ou talvez eu tenha nojo de mim mesma por ter deixado esse casamento chegar aonde chegou.
– Meu amor, procure se acalmar... – Kirsten tentou se aproximar de novo, e embora tenha se mostrado arredia, Amanda não a empurrou dessa vez. – Aliás, “casamento”? Que espécie de casamento nós temos? Você nunca quis colocar isso oficialmente. – Amanda, eu sei que as leis de Nova Iorque nos permitiriam um contrato de união civil, mas você sabe que isso teria conseqüências sérias. É lógico que a notícia vazaria. Eu não preciso de nenhum papel pra me dizer que você é minha mulher. – Eu poderia suportar todas essas coisas, Kirsten. Eu tinha aceitado tudo como você queria... mas hoje... – Amanda interrompeu sua fala para tentar afastar Kirsten mais uma vez, mas foi inútil, a loira a abraçou com força e não havia forma de se soltar. – Kirsten, chega! – Meu amor, não foi como havíamos planejado, mas você entrou do meu lado. Você estava lá, comigo. Eu achei que tivesse gostado da surpresa... – Kirsten tentou beijá-la, e embora tenha demorado a se afastar, quase cedendo, Amanda inclinou o rosto para trás e refugou a carícia. – As suas surpresas nunca compraram o meu perdão, Kirsten. Uma pena que você tenha acreditado nisso por tanto tempo. – Eu nunca quis comprar você. – Engraçado... – disse Amanda. – Porque é exatamente o que você faz com todo mundo. Você compra as pessoas. Kirsten apertou seus olhos por meio segundo, e sentiu algo que, naquele momento, avaliou que deveria se parecer com a sensação da morte... como se o seu corpo tivesse simplesmente explodido e nada mais fosse capaz de prender o seu espírito. Irracionalmente foi ela quem empurrou Amanda desta vez e, tonta, virou também a mesa que estava ao lado delas, derrubando um imenso jarro de flores e alguns pequenos objetos decorativos. Kirsten estava tão fora de si que não pôde notar que Amanda estava apavorada com aquele comportamento. Geralmente quem explodia era ela e não Kirsten, que às vezes a morena julgava ser a pessoa mais controlada da face da Terra. – É isso mesmo! Eu compro todo mundo, e sabe? Vem dando muito certo, porque você tem a exata de noção de onde eu cheguei, sobretudo esta noite. Eu estou no topo do mundo e só cheguei aqui porque comprei todo mundo. Não vai dizer que eu comprei os jurados da Academia também? – Kirsten arrancou um dos quadros que decorava a parede próxima e o atirou longe. – Você não acha que eu mereci, acha? Talvez se eu tivesse desembolsado um pouco mais, estaria com três e não apenas um Oscar, o que você pensa disso? – Kirsten atirou a estatueta contra a parede oposta e nem olhou em seguida para ver se estava inteira ou se partira em vários pedaços. – Acho que nada... você não pensa nada, porque você é a Super Amanda Roberts, aquela que sabe mais que todos os senadores deste país juntos, a que está sempre pensando no bem do nosso planeta, a última romântica do mundo e a mais incorruptível das pessoas! Eu só não consegui comprar você, mesmo. E ainda bem que não fiz isso, está ouvindo? –
Kirsten se aproximou perigosamente do rosto de Amanda, que então percebeu que todos os poros de Kirsten exalavam um ódio guardado por muito tempo. – Ainda bem que eu não comprei você, porque você não tem idéia de como é difícil conviver com uma mulher que se acha perfeita eAmanda não piscou, não pensou no que estava fazendo. Se tivesse raciocinado, jamais acreditaria que ver Kirsten com tanta raiva a deixaria naquele estado. Tomou seus lábios e interrompeu seu discurso como se fosse morrer caso não o fizesse. Kirsten correspondeu na hora, mas seu beijo era desesperado, ainda era um beijo de quem estava fora de si, como suas mãos, que começaram a tirar o vestido de Amanda como se nada as pudesse impedir. – Kirs... espera... – Minha vez de mandar calar a boca! Kirsten parecia desesperada, ofegante, descontrolada. Seu corpo inteiro tremia, mas mantinha Amanda presa junto a si, e por mais que a morena tentasse se livrar dela, Kirsten empregava cada vez mais força. – Kirs, eu não quero agora. Ainda estou muito magoada. – Magoada com o quê? – Kirsten segurou o rosto de Amanda com as duas mãos, diante do seu. – Com o quê, Amanda? – Com a sua carreira... – disse ela, assustada, não reconhecendo a própria esposa. – Lembra das filmagens? – O quê? – VOCÊ LEMBRA DAS FILMAGENS? – Kirs... – Foram as últimas, está bem? Eu nunca mais vou fazer um filme na vida, se isso vai te fazer feliz. – disse ela, rasgando o vestido de Amanda na costura lateral e avançando seus beijos pelo decote dela. – Você não precisa chegar a tanto, Kirsten. E pare... eu não quero. – Não quer o quê? – Kirsten perguntou, aproximando seus lábios dos de Amanda, provocando-a com todas as armas que conhecia. – Não quero... – Amanda permitiu que Kirsten beijasse seus lábios. – Não quero... – ela perdeu a concentração quando Kirsten começou a morder sua orelha, de leve, enquanto suas mãos acariciavam os seios de Amanda, por cima do sutiã. – Eu não...
Kirsten tocou a nuca de Amanda com determinação e a obrigou a se aproximar. Ela era sempre tão cautelosa e cuidadosa na cama que Amanda teve impressão de estar com outra pessoa naquele momento, uma pessoa que não era menos capaz de excitá-la, mas que o fazia com violência, de uma maneira quase selvagem, e ao mesmo tempo que lembrava que tinha desejado que Kirsten fosse um pouco menos contida às vezes, lamentava que ela tivesse ido tão rápido de um extremo ao outro. – Não diga que não quer transar agora, porque eu sempre sei quando você quer ou não. Eu leio isso nos seus olhos. – disse Kirsten, arrogantemente, terminando de rasgar o vestido de Amanda e empurrando-a para o sofá, deitando-se sobre ela. – Para com isso, eu não quero assim! – Amanda tentava se livrar dos braços, das pernas e dos beijos de Kirsten. – Você quer porque me ama. – Eu odeio você! – Amanda a empurrou com tanta força que Kirsten caiu do sofá. Arrependida, ela se aproximou para ver se sua mulher estava bem. – Kirs...? Ela não respondeu. Como depois do tapa, estava em choque. Manteve os olhos fechados para não precisar dizer nada, e começou a pensar em todo o álcool que tinha consumido e em seu súbito ataque de raiva, seguido por um ataque obsessivo. “Sweety, abre os olhos! Kirsten? Kirsten, fala comigo! – Estou bem. – balbuciou, virando o rosto para o lado oposto ao que Amanda ocupava no tapete. – Eu não medi a força, desculpe. Por favor, Kirsten, me perdoa. Eu não queria ter chegado nesse ponto. Nunca brigamos desse jeito. – Porque você sempre brigava sozinha. – Kirsten ainda olhava para algum lugar na parede oposta, ao invés dos olhos da esposa. – Mas eu sempre soube que éramos uma bomba relógio, juntas, e era por isso que nunca deixava uma discussão ganhar terreno. Amanda a abraçou com força e as duas ficaram em silêncio por muito tempo. Quando se levantaram para ir até a cama, Kirsten começou a sentir os efeitos da briga no seu corpo, havia marcas roxas nos joelhos, hematomas nos braços, arranhões nas costas e, o que era mais surpreendente uma vez que não lembrava em que momento tinha ocorrido, Amanda havia arrancado uma mexa dos apliques em seu cabelo. – Foi uma noite e tanto e eu ainda nem lhe dei os parabéns. – sussurrou Amanda, depois de apagar as luzes e abraçar o corpo da esposa, na cama. – É... – ela disse qualquer coisa para demonstrar que estava ouvindo. – Tenho certeza que Richard e Debra estavam chorando lá em Nova Iorque. Foi lindo você falar deles.
– Uhum... – E... – Amanda a beijou na nuca. – Vittorio estava certo, você só tem a crescer, conseguiu enganar todo mundo. – Talvez. – Como conseguiu fazer? Achei que ele fosse um inimigo declarado. – E é. Mas era também a minha melhor alternativa. Eu sabia que ele conhecia você porque da primeira vez que entrei no seu camarim, na Townsend, li os cartões nas rosas e vi que eram dele. – Memória de elefante, a sua. – Ele estava aqui no hotel, eu o tinha visto na noite de sábado, mas ele apenas acenou rapidamente e me ignorou. Tivemos uma pequena rusga quando do lançamento de meu último filme. O estúdio dele queria comprar os direitos de distribuição e eu vetei. – E como a bilheteria foi imensa e os lucros maiores ainda, ele deve ter ficado realmente zangado, se conheço aquele italiano. – comentou Amanda. – Aham. – Mas isso não explica como fez para que ele me levasse na festa, e aceitasse entrar na mesma hora que você. Kirsten suspirou. Como se falasse sobre a cor de uma roupa ou o tempo no dia seguinte, esclareceu: – A última obsessão dele era arruinar a minha produtora em Nova Iorque. Ainda que pequena, estava prejudicando os negócios dele, tenho certeza que ele temeu perder este Oscar para nós. – Kirs... você não...? – Vendi. Para ele. Esta semana oficializaremos a fusão com o estúdio de Vittorio. – Mas essa produtora era o sonho da sua vida! – O sonho da minha vida é envelhecer do seu lado, Amanda. Agora não pense mais nisso. Boa noite.
333
Jerry estava lívido no dia seguinte. Kirsten tinha uma entrevista coletiva às quatro da tarde e, além de estar atrasada, não tinha qualquer condição de aparecer em público depois da noite agitada naquela suíte. – Vocês ficaram malucas? Kirsten, você ganhou um Oscar! Um Oscar, garota! É o prêmio máximo na carreira de uma atriz de cinema, você tem compromissos agora, tem de dar entrevistas, tem a foto oficial, sem contar que ano que vem é você quem entrega o Oscar de Melhor Ator! – Bom dia pra você também, Jerry. – Bom dia? São duas e meia da tarde, Kirsten! Você está arranhada, roxa, o seu cabelo não tem conserto! Como é que você vai entrar num vestido e dar a coletiva oficial? – Simples, eu não vou. – O que vocês tentaram fazer? Sexo selvagem para comemorar? Não dava para ter esperado uma noite? – O que aconteceu não é da sua conta, Jerry. Aliás, você vai resolver pra mim tudo o que precisarei para essa entrevista e depois pode procurar uma cliente que não lhe desobedeça tanto quanto eu. Podemos continuar amigos, se você quiser, mas está demitido a partir de amanhã. Ele perdeu a fala e Amanda olhou para Kirsten muito surpresa. – Perdão? – Você não cuida mais da minha carreira, Jerry. Acho que tivemos um lindo final feliz, um Oscar, como você mesmo disse, o sonho de qualquer atriz. Ocorre que ficamos próximos demais e isso começa a me incomodar. Enquanto ainda há respeito, prefiro cortar a relação profissional. Porque do jeito que as coisas estão, eu não consigo dizer não a você mesmo quando acho que não está com a razão, Jerry. Não é incompetência sua, não me interprete mal. – Lamento por tudo, Kirsten. Eu fiz o meu melhor. – Eu sei. – Kirsten se levantou, respirando profundamente. – Coletiva, você falou? Eu tinha esquecido... – Você não pode aparecer assim. – Não mesmo. Tem razão. Consegue se lembrar da penúltima cena que eu gravei como Josie Duschamps? Aquela caminhada ao lado da Susan, no deck da praia? – Creio que sim. – o empresário respondeu.
– Veja a cena de novo, eu preciso que você vá a um shopping ou qualquer coisa e me traga uma roupa idêntica àquela, ou pelo menos muito parecida. Era uma calça leve, uma blusa de gola alta e um fino casaco. – Ok, mas não é realmente a roupa com a qual esperam te ver depois do momento da sua vida. – Nenhum vestido conseguiria disfarçar isso aqui! – ela se virou e mostrou alguns dos arranhões. Jerry balançou a cabeça, derrotado. Lembrou de um dia, durante as filmagens, em que Kirsten havia tido de cancelar a gravação porque Amanda a arranhara daquele jeito. – Jovens... Mas e o seu cabelo? Tem como recolocar os apliques? – Não até às quatro. – lamentou Kirsten. – Chame alguém, as roupas da Josie não são acaso, eu vou para a entrevista como estava no dia da gravação. – Vai raspar a cabeça?? – Melhor do que ontem eu não vou conseguir aparecer, Jerry. Vamos fingir que é minha última homenagem à Josie, isso vai justificar até mesmo a minha expressão de quem não dormiu nada. Ainda não recuperei todo o meu peso... enfim. – É uma ótima idéia, na verdade. – admitiu ele. – Vou fazer de tudo para ser bem interpretada. – Arranje as roupas e a cabeleireira. O resto eu sei fazer, Jerry. Depois que ele saiu, Amanda abraçou a esposa com força, pousando a cabeça em seu ombro. – Vai voltar para a Josie? – Será uma homenagem bonita, depois de tudo que esse papel me trouxe. – Não se entrega a esse papel de novo, Kirs... – Eu vou sair, dessa vez. Você vai ver. – ela sorriu de maneira confiante e deixou o quarto. Amanda não viu, mas o ato seguinte, de Kirsten, foi ligar para Richard, que foi interrompido em seu intuito de parabenizá-la e agradecer pelas palavras no discurso, para ouvir um pedido que lhe pareceu sombrio: “Cuide da Amanda quando eu mesma não puder. E de mim, quando ela desistir de fazer isso.”
Sem mais explicações, Kirsten desligou o telefone e desceu. A cabeleireira contratada por Jerry havia chegado e elas usaram uma das salas no primeiro andar do hotel. A entrevista foi perfeita, Kirsten não respondeu nenhuma pergunta relacionada à Bryan e confirmou que se referia à Josie em seu discurso. A única pergunta realmente embaraçosa foi se ela tinha medo da foto leiloada na noite anterior acabar vindo a público. Kirsten sorriu brandamente e explicou: – Como eu vinha dizendo desde o começo, não havia foto alguma. Naquela noite, a última do casal em Los Angeles, Amanda voltou ao tema: – Que será que houve com a maldita foto? – Tenho meus meios de resolver as coisas, Mandy, você não deve mais se preocupar com isso. – Mas – a não ser, e eu desconfio que sim, estivesse torcendo para ela vir a público. – acusou Kirsten. – Talvez eu estivesse, sim. Se você tivesse assumido no Oscar, não seria nada mal. – É, mas não houve jeito. Amanda encarou sua esposa, meio séria, meio decepcionada, mas sem querer criar mais mágoas. – É melhor eu parar de me iludir que isso vai acontecer um dia, não? Kirsten balançou a cabeça afirmativamente, bem devagar, olhando nos olhos de Amanda sem piscar. – Vamos colocar as coisas dessa forma: não se toca mais no assunto. Amanda estendeu a mão e Kirsten a apertou. – Negócio fechado, Howard. – Eu dei o lance mais alto, por telefone. – ela esclareceu, beijando os lábios da esposa em seguida. – É uma bela foto, quer ver? – Uhum. Kirsten deu alguns passos em direção ao móvel no qual deixara o lap top, mas acabou se virando no meio do caminho: – Que foi? – quis saber, vendo Amanda estática.
– Você ta muito machucada. – Tomei um analgésico, os arranhões só doem no chuveiro. – Kirsten abriu o arquivo e esperou Amanda se aproximar, tocando os seus ombros. – É linda mesmo! – Amanda lhe beijou a nuca. – E acho melhor a senhorita não ir mais sozinha para o banho...
(até o próximo capítulo) Notas Finais: e agora? as duas yuris mais amadas do nyah (pelo menos por vocês) vão voltar às boas? e sem o Jerry, como a Kirsten vai se virar? quem pediu mesmo que a Amanda arranjasse uma nova personagem? e quem pediu a Gail de volta? prometo tudo isso, nas próximas emoções... Voltar para o índice O Ano Dourado de Amanda Roberts escrita por Sara Lecter
“Sometimes is never quite enough If you're flawless, then you'll win my love Don't forget to win first place Don't forget to keep that smile on your face” Perfect. Alanis Morissete
Capítulo 28 – O Ano Dourado de Amanda Roberts Seis meses e meio depois do Oscar, Amanda ainda não tinha conseguido esquecer seus 90 segundos de tapete vermelho, todos os flashes e o absurdo de tanta exposição. Depois da briga que sucedeu a cerimônia, ela e Kirsten nunca mais discordaram sobre nada, a não ser sobre pedidos de comida em casa ou a opção de sair para jantar. Richard e Debra estavam sempre por perto, e a vida dos dois tinha mudado consideravelmente naquele curto período: ele assumira seu próprio negócio e o salão crescia em número de clientes e em prestígio, de modo que ele tivera de contratar uma dúzia de funcionários novos quando o empreendimento ganhou o seu nome na fachada; Debra estava namorando seriamente pela primeira vez na sua vida e tudo ia bem no emprego que já tinha desde os anos anteriores.
Kirsten recebia, nas primeiras semanas, nada menos que uma média de trinta propostas diferentes de trabalho, diariamente. Como recusava todas elas sem nem ao menos pensar no assunto, aos poucos o b oato de que estava “de férias por tempo indeterminado” se espalhou e as propostas diminuíram. Vittorio fora o mais insistente, e era um dos únicos que ainda tentava ter Kirsten em algum de seus filmes, mas nem mesmo cachês astronômicos eram capazes de atraí-la. Em geral ela passava o dia em casa, lendo ou assistindo televisão, saía para caminhar pelo bairro duas vezes por semana e acompanhava Amanda em alguns compromissos menos sérios, além de sair com Richard e Debra sempre que estes tinham tempo. Recuperara facilmente o peso que tinha antes das filmagens como Josie Duschamps pois se viciara em duas coisas: doces e um seriado de TV chamado “O Vale”. Depois do susto em Los Angeles, a que mais mudara fora Amanda. Assim que voltou para a cidade que amava, procurou Barbara Evans e conseguiu adiantar a estréia do espetáculo que estava ensaiando, além de começar um novo trabalho antes de encerrar este outro. Era a primeira a chegar e às vezes a última a sair da galeria que Barbara alugava na Broadway para abrigar sua Companhia. Com um papel pequeno em apresentação, Amanda tinha tempo para estudar muito bem a nova personagem, fazer aulas – o que não fazia desde que deixara o teatro comunitário no Soho – ensaiar sua voz e ainda praticar seus dotes com instrumentos musicais, que também estavam adormecidos desde a adolescência. Quando podia, caminhava com Kirsten por Upper East Side, e quase todos os dias almoçava com Richard porque o salão dele ficava ao lado da galeria onde ela trabalhava. Assim, com tanto trabalho, chamou mais atenção até do que pretendia, e um pequeno empurrão das pessoas certas, alguns jantares e aparições públicas muito bem planejadas colocaram o seu nome na ponta da língua de qualquer um que apreciasse o bom teatro de Nova Iorque. – “Sua opção por um papel não mais do que tímido em um drama que é bom, mas não fará qualquer história, prova que tato para gerenciar a própria carreira em tempos de entre-safra é algo que não lhe falta. – disse Kirsten, atravessando o corredor com um jornal na mão e andando em direção à biblioteca, onde Amanda estava decorando um texto. – Ela começou como a estrela meteórica descoberta por Oliver Townsend em um teatro comunitário, fez turnê mundial logo com a primeira peça profissional e abandonou aquele que poderia ser um segundo sucesso retumbante, para recomeçar do zero com a polêmica Barbara Evans. Os críticos a amam, o público a aplaude de pé e o palco é, sem dúvida, o seu lugar. Amanda Roberts volta a brilhar esta noite como o nome que sustenta o grande lançamento desse mês na Broadway...” – Bom dia, Sweety. – Amanda sorriu. – Como você tem acordado cedo! – Então? Anunciaram a estréia aí? – ela apontou para o jornal. Kirsten sorriu, deixando metade do jornal tombar para frente, segurandoo pela outra parte. – Capa do caderno de espetáculos. – quando notou que Amanda não conseguia acreditar que estava na capa de um encarte de um dos principais periódicos
do mundo, Kirsten acrescentou: – A foto está tão linda... Acho que vou querer ver essa tal Amanda Roberts hoje. – Tem certeza? – Ué, você não tinha me convidado? – Sim, mas você não sai assim desde o Oscar, Kirs... – É a sua estréia, Mandy. Posso aturar qualquer coisa para ver você voltar de onde nunca deveria ter saído. Amanda se levantou e abraçou a esposa. Estava muito feliz com a inesperada resolução de Kirsten, cujo desaparecimento chegava a gerar especulações seriamente negativas na imprensa. Entretanto Amanda estava preocupada com outra coisa: – Você se sente bem para ir? – Uhum. – Kirsten sorriu, acariciando o rosto de Amanda. – Faz três noites que os pesadelos pararam, eu acordei bem, até o meu humor está melhor, você não está achando? Ela concordou, mas não ficou menos preocupada. Kirsten vinha acordando muito exaltada durante a madrugada, acometida de terríveis pesadelos que a atormentavam, como se revivesse todas as noites o último dia de filmagens do seu trabalho mais recente. O afastamento total do trabalho, pensava Amanda, não lhe fizera bem e mesmo que quisesse voltar a fazer alguma coisa, Kirsten havia vendido sua produtora para Vittorio e demitido Jerry, seu empresário. Entretanto, ela não queria. E esta era uma decisão que ela reafirmava sempre.
333 Cindy livrou seu rosto da franja que o cobria parcialmente e depositou quatro dólares sobre o balcão de um café. Acabara de fechar o jornal do dia, apanhara sua bolsa e a acomodara no ombro, não sem antes apanhar os óculos escuros e cobrir seus olhos castanho-esverdeados, saindo para a rua. – Se esta é a cidade que você ama, Kirsten, aprenderei a gostar de Nova Iorque também. – disse ela, para si mesma, fazendo espaço entre os pedestres. Acostumada a Los Angeles, Cindy sentia frio o tempo todo, na costa leste, mas se esforçava para parecer uma novaiorquina nata. Depois de ler o jornal, conseguira uma ótima pista e todos os seus instintos diziam que saberia onde encontrar Kirsten naquela noite. Quando chegou ao apartamento que acabara de alugar, duas quadras adiante do café que freqüentava, a primeira coisa que fez foi ligar o computador, e
enquanto esperava por este processo, apanhou uma caixa de suco na geladeira, pousando a mesma ao lado do teclado. Conectou-se à internet, logou o blog que administrava e, antes de voltar a escrever, leu em voz alta o post do dia anterior, para apreender o efeito que ele causava nas mais de dez mil pessoas que o acessavam todos os dias, naquela época. “ Hoje não vou começar falando das últimas informações que descobri, ou comentando alguma notícia falsa sobre ela – até porque elas andam escassas. Quero falar de cada um que está lendo isso, que continua visitando nosso blog e que não abandonou o barco. Faz mais de nove meses que a Kirsten lançou seu último filme e por enquanto ninguém menciona um novo trabalho. Em Hollywood o boato se que ela deu uma parada para fazer charme tem perdido força para um novo, algo em que não consigo acreditar. Em minha última passagem por Los Angeles ouvi dois homens em um restaurante dizendo que Kirsten Howard abandonou a carreira. Ouvir aquilo foi como ter o meu coração esmagado. Mas tudo melhorou quando eu lembrei de todos vocês, que entram aqui e comentam algo, que mantém a esperança, como eu, de que isso tudo não passa de uma grande brincadeira de mal gosto. Kirsten vai voltar em breve, e vai ser melhor do que antes!!! Cindy fez uma pausa para beber mais um gole de suco. Agora, o grande mistério: onde Kirsten se esconde? Ela já cansou de afirmar em entrevistas que nunca vai deixar Nova Iorque, que Manhattan é parte de seu ser, mas por que ninguém consegue o endereço exato? Por alguma estranha razão, e disso eu me certifiquei, os registros postais e fiscais de Ken e Hérmia Howard foram apagados de todas as repartições públicas. Deve ter sido obra de Jerry, ele conseguia qualquer coisa, lembram? E ela, certamente, passou seu apartamento, ou casa, ou sei lá onde vive, para o nome de alguém em quem confia, alguém que ela acha que não podemos rastrear. Estou em Nova Iorque para mudar isso. E qualquer pista que algum de vocês puder descobrir, por favor, envie. Até amanhã, Cindy.”
333 Kirsten respirou fundo e pediu, com um aceno, que Richard aguardasse alguns segundos. O táxi acabara de parar em frente ao teatro e, além dos dois, Debra também estava no banco de trás. – Está tudo bem, lindinha? – Está. – ela mordeu os lábios. – Ok, vamos agora. Richard lhe ofereceu a mão para que ela deixasse o veículo e Kirsten segurou a barra do vestido perolado para não tropeçar. Assim que Richard ajudou também Debra, os três começaram a caminhar em direção a entrada. Não foi difícil para seus amigos perceberem que Kirsten estava muito nervosa. – Que foi? – quis saber Debra.
– Vamos mais rápido, tem um jornalista à cem metros, à nossa direita. – Ele te viu? – Espero que não, mas por via das dúvidas... – ela acelerou o passo e seus amigos a seguiram. Duas mulheres os encararam com curiosidade e fizeram menção de andar na sua direção. Kirsten acelerou ainda mais, mas foi impossível desviá-las. Ela sorriu, perguntou seus nomes e lhes deu um autógrafo, mas argumentou que não poderia posar para fotos porque estava atrasada. – Ainda falta algum tempo, lindinha. – Faz meio ano que eu não ponho o pé na rua sem estar disfarçada e no primeiro dia é isso! – Calma, Kiki, foram só duas garotas. – abrandou Debra. – Chamaram a atenção do jornalista. Da pra vocês dois andarem mais rápido? Richard e Debra trocaram um olhar preocupado, mas obedeceram. Kirsten não esperava encontrar um ambiente mais calmo depois de passar pela porta, mas quase deu meia volta e saiu correndo quando foi imediatamente cercada por um grupo de pessoas. Sorriu mais uma vez, respondeu às perguntas sobre estar longe de Hollywood e disse que aquela era apenas uma noite para se distrair com os amigos. Retirou-se assim que conseguiu uma oportunidade e, mais uma vez ladeada por Richard e Debra, andou em direção à porta que levava aos camarotes. – Ora, ora, ora. Achei que estivesse escondida em uma ilha do Caribe... Ela se virou, engolindo sua raiva e a transformando em um sorriso que parecia bastante espontâneo. – Oliver Townsend. – acenou. – Já fomos sócios, Kirsten. Que tal um abraço? – Claro. O cheiro dos charutos de Oliver impregnou as narinas de Kirsten e ela se sentiu enjoada pela primeira vez, mas não pela última, naquela noite. – Pelo visto estamos aqui pelo mesmo motivo. – disse ele, sorridente. – Então Amanda o convidou. Ele hesitou.
– Não perderia isso por nada. – gargalhou. – Deve ter seu próprio camarote, ou a convidaria para o meu. – Achei que teria eu de oferecer a gentileza. – Não seja tola, Kirsten. Barbara é uma grande amiga. – Se for tão amiga quanto Tina, está em sérios apuros. Oliver secou sua testa com um lenço e ficou em silêncio. Virou-se, por fim, e antes de sair completou: – Você era menos mordaz antes do Oscar. Bom espetáculo para todos. Quando as cortinas se abriram, Kirsten sentiu seu coração sobressaltado. Amanda saíra de casa cedo da tarde e estava tão entregue ao papel que a loira quase não poderia enxergar a sua mulher por trás de uma personagem. Como em todas as outras vezes que fora assisti-la, teve de se controlar para não ordenar que tudo fosse parado. Tinha medo que Amanda perdesse a concentração e errasse. Pavor de que ela desafinasse ou que seu figurino desmontasse no meio de uma cena. E, acima de tudo, Kirsten não conseguia controlar o efeito de sua impotência sobre os seus nervos. Entre o primeiro e o segundo ato, teve de permitir que Debra fosse grosseira com uma dupla de jornalistas que queriam uma declaração dela sobre a peça, e no segundo intervalo, quando precisou ir ao toalete, Kirsten percebeu que seria impossível atravessar a multidão sem causar um alvoroço. Deu meia volta, entrou no camarote e, profundamente chateada, disse: – Fiquem aqui, não deixem de convencer a Amanda a sair com vocês, depois. – Mas e você, Kiki? – Eu vou pra casa, não se preocupem, posso me virar. Eu simplesmente não consigo continuar. – É a estréia da Amanda, lindinha! – Eu sei... – Kirsten teve de conter as lágrimas. – Mas eu não posso! Vocês, pelo menos, têm de me entender. Estou sem ar, não paro de tremer, não consigo nem pensar direito. Amanda chegou ao sobrado quatro horas depois. Largou suas coisas no hall e foi direto para o quarto. Encontrou Kirsten abraçada aos próprios joelhos, sentada na cama delas, encarando o vazio. Seu rosto estava vermelho e Amanda notou uma garrafa de vinho e uma taça sobre o móvel de cabeceira. – Não conseguiu dormir? – perguntou, de maneira amena. Kirsten balançou a cabeça tristemente.
– Amanda, eu vou entender se não quiser ficar perto de mim agora. Posso até ir para o quarto de hóspedes. – ela começou a se levantar, mas Amanda a deteve. – Richie e Debby me contaram sobre a cara de pau do Oliver. – comentou. – Acredita que ele tentou falar comigo antes da peça? Claro que eu não permiti, mas... – Ele se deu conta do que perdeu. Foi tudo bem? – Errinhos de cenário e eu esqueci uma deixa, mas meu par improvisou bem. Terceiro ato, no final da cena. – explicou Amanda. – Ótimo, não pode ser perfeito, né? – Não, da azar para a temporada toda. As duas ficaram comentando amenidades por mais alguns minutos, enquanto Kirsten pousava sua cabeça no colo de Amanda, que lhe acariciava os ombros. – Eu lamento tanto, meu amor. Eu queria tanto ter ficado até o final, eu tentei agüentar, eu fiz tudo o que eu pude, eu... – Eu sei, Kirs, não precisa chorar. – Era a sua estréia, eu tinha de estar lá! – Meu amor, você não saía desse jeito há muito tempo, eu posso entender. – Mas eu vou, ta? Outro dia, quando não estiver tão cheio, aqueles jornalistas... todas as pessoas olhando e – shhh. – Amanda a beijou na face, carinhosamente. – Vai ser muito divertido. Quem sabe, quando o meu nervosismo tiver passado um pouco, podemos até namorar no camarim antes de eu ir pro palco, o que acha? Kirsten riu, depois abriu os olhos, ergueu seu tronco e encarou a esposa. – Você cuida tão bem de mim, Mandy. Às vezes eu nem consigo acreditar. – É amor, sweety, você não precisa acreditar, desde que sinta. Amanda fechou os olhos e ficou sentindo as pontas dos dedos de Kirsten percorrem os detalhes do seu rosto cansado depois de um dia de consagração. Beijaramse sem pressa, atentas a cada movimento, degustando cada sensação. Aos poucos Kirsten inclinou seu corpo sobre o da esposa e a obrigou a se deitar sobre um dos travesseiros. Continuaram o beijo, como se estivessem deitadas sobre uma nuvem muito leve que vagava no alto de um céu azul em fins de outono. Os móveis e o quarto
desapareceram e em pouco tempo só tinham uma a outra. O ritual de se livrarem de suas roupas foi cumprido sem contratempos e Amanda e Kirsten dedicaram, cada uma, grande parte da sua criatividade ainda às preliminares. Haviam feito amor outras quatro vezes naquela semana, mas com o cansaço e nervosismo de Amanda por causa da estréia, em nenhuma delas haviam se dedicado daquela maneira. Era como um reencontro.
Nota da Autora: essa vale uma caixa enorme de chocolates, porque é bem difícil... alguém é capaz de rastrear em quê eu baseei o seriado em que a Kirsten se vicia?
(até o próximo capítulo) Notas Finais: Joycita, perdão, não consegui enviar ontem :( Voltar para o índice Bárbara Evans escrita por Sara Lecter
“Stayed in bed all mornin' (deitada na cama a manhã toda) Just to pass the time. (apenas passando o tempo) There's somethin' wrong here. (há algo errado aqui) There can be no denying. (que não pode ser negado) One of us is changin' (uma de nós está mudando) Or maybe we just stopped trying (ou talvez nós apenas paramos de tentar)
And it's too late, baby, (e é muito tarde, querida) Now it's too late, (agora é tão tarde) Though we really did try to make it. (então nós realmente tentamos fazer isso) Somethin' inside has died (algo dentro de mim morreu) And I can't hide and I just can't fake it. (e eu não posso mais esconder porque não consigo ser falsa)
It‟s too late. Carole King. – não é uma tradução literal, mas uma versão da autora.
Capítulo 29 – Barbara Evans Amanda abriu os olhos assustada e acendeu o abajur do seu lado da cama, virando-se imediatamente. – Sweety? Kirs...? – ela aguardou, apreensiva. – Kirsten, acorda! Ela não respondeu. Seu rosto trazia uma expressão de desespero que Amanda já conhecia, mas que sempre a assustava de novo, sobretudo quando junto com os pesadelos de Kirsten, vinha uma febre que embora baixa, era cada vez mais preocupante. “Amor... acorda, eu estou aqui. Estou do seu lado. – sussurrou no ouvido dela. Kirsten demorou a reagir. Ainda que Amanda soubesse que ela estava acordada, finalmente, nenhuma delas sabia o que dizer. Por fim a loira esfregou seu rosto várias vezes, secou sua testa suada com o lençol e limpou a garganta. – Interrompi seu sono de novo... – comentou, decepcionada. – Não se preocupe com isso. Você está se sentindo melhor? – Acho que sim. – Vou apanhar um copo d‟água. – Não precisa, Mandy. – Nós exageramos de novo. – ela sorriu. – Você ficou vulnerável, foi só isso. Kirsten devolveu o sorriso, em certa medida Amanda tinha razão, com o corpo exausto, Kirsten ficava mais suscetível aos espasmos de seu inconsciente. – Queria saber como a Josie iria se virar se tivesse de viver com esses malditos pesadelos. – Esqueça isso, meu amor. – Não tem como esquecer. Estou certa de que ela teria uma solução para isso, forte como era. – Talvez se você não pensasse nela o tempo inteiro... – comentou Amanda. – Se não ficasse se comparando dessa maneira cruel.
A loira não respondeu. Enterrou-se no travesseiro e tentou voltar a dormir, ao que Amanda fez o mesmo, pois estava igualmente exausta. Apresentava-se na Broadway duas tardes e quatro noites por semana, e no pouco tempo livre entre uma peça modesta e uma grande produção, estudava. Música, interpretação, francês, o que aparecesse pela frente, além de se manter por dentro das últimas resoluções políticas do país e novidades sobre a luta em prol do meio ambiente. Com o noivado de Debra, muito celebrado por seus amigos, Amanda compensou o afastamento da chef cultivando uma nova amizade que crescia todos os dias: Barbara Evans. A atriz não tinha dúvidas de que havia ainda muito a aprender no seu ofício, e a experiência da mais velha, além de seus sábios conselhos, faziam Amanda evoluir cada vez mais rápido. As críticas evoluíram junto; a fama também. Como uma brincadeira do destino, depois de Amanda amaldiçoar tantas vezes a briga de Kirsten com os holofotes, naquela época era ela própria que se via vitimada por boatos, fofocas, especulações sobre a sua vida fora dos palcos, mas também pelo lado bom de ser uma celebridade, o carinho efusivo do público e algum reconhecimento na rua. – Hmm, carinha de quem não dormiu nada. – comentou Barbara, na manhã seguinte. – Só um pouco cansada. – disse Amanda, afinando seu violão, abrigada na sala da dona da companhia para ter alguma privacidade. – Se abre comigo, Amanda, às vezes faz bem. – Me abrir sobre o quê? Barbara sorriu brandamente e se sentou diante dela. – Eu vivi um pouco mais que você e conheço o cotidiano de uma atriz do seu nível. Tudo anda maravilhosamente bem nos palcos, Amanda, então eu só posso crer que a razão desse brilho triste no fundo dos seus olhos seja pessoal. Amanda pousou o violão ao seu lado, constrangida. – Não vai adiantar dar a você o mesmo discurso destinado aos jornalistas, certo? – De que você não tem uma vida pessoal? Não. – Eu sou casada. – ela esperou uma expressão de surpresa no rosto de sua interlocutora, mas esta não veio. – Com... com... – Você é lésbica, eu sei. – ela sorriu de maneira cúmplice mais uma vez. – Não é exatamente raro no mundo do teatro. Amanda riu por dois segundos. – Não mesmo.
– Então? Problemas conjugais? Há quanto tempo estão juntas? – Mais de seis anos, desde o primeiro encontro. – Hmm... é mais do que eu jamais fiquei com alguém. – Mesmo? – Longa história. – ela fez um gesto vago. – Mas falávamos de você e não de mim. Outro dia te chamo para um drink e conto tudo. – Ok. – Brigas? – Não... não. Não brigamos há muito tempo, mas também não fazemos mais nada. – ela notou que Barbara configurou sua face em uma expressão curiosa e acrescentou: – Não estou querendo dizer que não vamos mais para a cama. – riu. – Ah bom. – Quase não nos vemos, conversamos tão pouco... eu tenho impressão de que ela mudou tanto que já não a conheço, e nem ela a mim. Ela não sabe disso aqui – Amanda abrangeu a Companhia com um gesto. – Não dos detalhes, de como são os meus dias, e eu só sei que ela fica em casa, me esperando, mas não sei o que faz, desde a hora que acorda até me ver entrar pela porta, não sei no que ela fica pensando. – Eu não tinha imaginado que a sua garota fosse assim, “devotada”. – Eu cobrei tantas coisas dela, Barbara. Até meses atrás eu só fazia cobrar que ela ligasse mais para mim ou para o casamento e agora ela anulou sua vida completamente e eu me sinto uma tola por me sentir responsável, e principalmente por desejar, mais de uma vez por dia, que as coisas voltem a ser como eram antes. E eu detestava aquilo! Mas não consigo mais sonhar com um meio-termo razoável. – Meio-termo razoável? – Caramba, Barbara, você tem se mostrado uma amiga maravilhosa e eu nem posso te dizer o nome da mulher com quem me casei. – Kirsten Howard. – disse a outra, sem emoção. Amanda arregalou os olhos. “Não sei em que mundo ela vive, ou acha que vive, que não percebe que todos sabem que ela é gay. A atriz não conseguiu responder.
“Você também acredita nisso? Que ninguém desconfia? Francamente, Amanda, eu te julgava mais esperta. As pessoas simplesmente não comentam. Ela é uma boa atriz e tem uma carreira sólida, nunca se envolveu em escândalos, aparece atrelada às campanhas certas. Expor a vida pessoal de uma celebridade é andar bem próximo do limite de depreciá-la... nenhuma emissora ou jornal arriscaria jogar contra uma estrela que tem a opinião pública toda do seu lado. – Não... não tinha avaliado essa possibilidade. – Quanto a você, é outra história. Teatro não é cinema e vocês quase nunca apareceram juntas. A não ser por aqueles que realmente queriam ver alguma coisa e prestaram atenção, no Oscar, por exemplo, quando ela discursou para você, lamento informar que você não é tão invejada quanto deveria ser. – “Invejada”? – Não me diga que só porque faz tantos anos você perdeu a noção que se casar com ela é o sonho de qualquer mortal? – Não sei se seria mais. – Perdeu a atração? Desculpe, mas é difícil acreditar, mesmo usando toda a minha imaginação e uma combinação do aspecto dela no final do último filme. – Não o desejo, mas outra coisa. – admitiu Amanda. – A beleza foi crucial no começo, mas o que fez com que eu me casasse com a Kirs foi uma coisa que eu só vi nela, até hoje, e tem a ver com personalidade, força. Você nem pode imaginar as coisas que ela já conseguiu, ela põe uma dúzia de executivos de Hollywood no bolso, se quiser, ela é capaz de manipular muitas coisas ao mesmo tempo, num estalar de dedos. É delicada, mas se impõe de um jeito... Barbara riu discretamente. – “Kirs...” – E ela abriu mão disso. Eu insisti desde o começo para que ela usasse essa força, essa coisa mágica que ela tem para algo realmente importante, mas ela só conseguia projetar na própria carreira. – Amanda, nem todo mundo quer salvar o mundo, como você. – Mas é um desperdício ela passar o dia em casa, de camisola na frente da televisão quando poderia estar... poderia... Eu não consigo mais amar uma mulher que abriu mão do que poderia ser, abriu mão do que era para se tornar uma... – Uma...? Amanda não respondeu. Barbara aguardou algum tempo e depois afagou seu ombro e deixou a sala. Quando Amanda voltou para casa, mais cedo porque não era noite de espetáculo, Kirsten estava detida na frente da televisão, assistindo “O Vale” e
mastigando alguma coisa que sua esposa não discerniu. Amanda subiu direto para o terceiro andar, tomou um banho, apanhou um livro, não chegou a vencer as dez primeiras páginas e resolveu apagar a luz, ainda que soubesse que estava sem sono. Kirsten subiu uma hora depois, beijou-a na testa e perguntou se havia jantado, mas antes de ouvir a resposta, ocupou o outro lado da cama e cobriu seu rosto com o travesseiro.
(até o próximo capítulo) Notas Finais: até a publicação desse capítulo ninguém tinha ganho a caixa de chocolates. vou estender o prazo até que todas leiam... depois eu conto, mas acho que ninguém vai ganhar, hihihi Voltar para o índice A Bailarina escrita por Sara Lecter
“Confessando bem Todo mundo faz pecado Logo assim que a missa termina Todo mundo tem um primeiro namorado Só a bailarina que não tem Sujo atrás da orelha Bigode de groselha Calcinha um pouco velha Ela não tem” Chico Buarque. Ciranda da Bailarina .
Capítulo 30 – A Bailarina A figura que Amanda viu, sentada na cadeira de Barbara, com as longas pernas sobre a mesa da diretora da Companhia, quase a fez cair de costas. Passara a noite praticamente
em claro depois que Kirsten tivera mais uma séria crise desencadeada por um pesadelo, e embora ela tivesse conseguido voltar a dormir, Amanda ficara preocupada demais, e não pregara mais o olho até a hora de sair para o trabalho. – G...Gail!? – Amanda... – ela sorriu. – Você parece mais alta... ou é efeito de ter ficado mais poderosa? – Meu Deus, por onde tem andado? – Você realmente me procurou? – Gail tirou as pernas de cima da mesa e se levantou, andando até Amanda. – Eu... Gail, que saudade! A jovem olhou para o colo de Amanda e tomou seu pingente entre os dedos, com muito cuidado. – Vi um igual a esse no pescoço dela, em mais de uma foto, por aí. São um par? – S...são. Gail sorriu. – Engenhoso. – Posso perguntar o que você está fazendo aqui? – Claro. – ela abriu os braços. – Eu trabalho aqui. É bom estar entre amigos de novo. – Mas – preciso ir, ainda vamos nos ver muito nessa galeria, então até logo. Gail deixou a sala e Amanda não sabia o que pensar. Ela estava tão diferente de como lembrava dela e ao mesmo tempo ainda tinha um semblante que nunca saíra de suas boas memórias. A grande diferença era o tempo, que a tornara mais madura, mas Gail conservara sua essência. – Chegou cedo hoje. – comentou Barbara, entrando na sala. – Mais cedo do que já chega, sempre. – Não consegui dormir, não havia razão para ficar em casa. – Nenhuma melhora?
– Nossos amigos e eu estamos tentando convencê-la a procurar um analista. – Parece sensato. – Parece uma grande admissão de fracasso, na minha opinião. E sei que a Kirs pensa o mesmo, por isso reluta. – Bobagem, faria bem a ela. E a você também. – acrescentou Barbara. – “Terapia de casal”? Barbara riu. – Não. Só estou querendo dizer que você anda enfrentando muita pressão por cuidar dela. Também precisa se cuidar, garota. – Você cuida de mim. – Sei. – Barbara ocupou sua cadeira e olhou alguns papéis sobre a mesa. – Temos um novo membro na equipe. Gail Pilcher, bailarina clássica, fez teatro, mas voltou à dança, é de Nova Iorque mas chegou ao auge em Praga e agora voltou pra casa... para essa Companhia. Vai re-coreografar todos os nossos números e... – Barbara notou que Amanda a encarava com curiosidade. – Que foi? – Ela estava aqui, já nos vimos. – Conhecidas? – Ex-namoradas. – Oh-ho-ho... – Barbara sorriu. – Mundo pequeno, hein? Achei que Gail fosse hétero, é casada com o filho do principal patrocinador do Ballet de Praga. – Que mais sabe sobre ela? – Não têm se visto? – ela aguardou a confirmação. – Eu conto, em troca da sua história. Saí de casa sem café, me acompanha? – Uhum. No caminho até a lanchonete, Barbara contou à Amanda que Gail se tornara uma bailarina reconhecida, mas que no último ano, depois de receber quase todos os prêmios individuais que poderia, dedicara-se a coreografar. Amanda lembrou que este era o verdadeiro sonho de sua amiga da adolescência. – E vocês? – Nos conhecemos no colegial, começamos a fazer teatro juntas, no Soho. Fomos chamadas por Oliver na mesma noite.
– Pule para a parte interessante. – pediu Barbara, ingerindo uma fatia de bolo. – Éramos um trio: ela, eu e Fred, meu namorado. Eu descobri sobre ser homossexual com ela. Passei algum tempo sem ter coragem de terminar com o Fred, estávamos juntos há anos, eu achava que me casaria com ele. Doce ilusão... – Eu tenho motivos para acreditar que você e ela terão atritos aqui dentro? – Não sei, Barbara. Ela estava estranha quando falou comigo e eu fui pega completamente de surpresa. Ficamos juntas muito tempo, namorando nas coxias da Townsend, ela era figurante quando da minha primeira turnê mundial, viajamos muito. – Como acabou? – Quando meu caso com a Kirsten ficou mais sério, terminamos. Ela ficou muito magoada e deixamos de nos falar. A turnê acabou e ela saiu da Companhia, no começo tentei procurá-la, depois desisti. Se você diz que estava em Praga, isso explica.
333 O mês passou voando para Amanda, que comemorou muito o fato de Kirsten ter se inscrito em aulas de pintura, o que acrescentava duas saídas semanais do sobrado, dentro do qual ela estava se enclausurando cada vez mais. Na galeria tudo andava bem, a não ser por uma espécie de orgulho ferido após a volta de Gail, que praticamente ignorava a sua existência. Se nos bastidores da Townsend, no começo da carreira, Amanda colecionara conquistas amorosas – que não duravam mais que uma noite – na Companhia de Barbara Evans era Gail quem não dava qualquer chance ao azar, provando que os anos de Europa haviam lhe ensinado um pouco mais do que os passos de dança mais invejados do mundo. Há algum tempo Amanda freqüentava a galeria também no seu dia de folga, uma fuga para não ficar em casa. Aquele dia Kirsten havia deixado um desenho preso aos ímãs da geladeira e ela se sentiu mais culpada do que nunca por não ter ficado algum tempo a mais na cama. Dedilhava seu violão no refúgio da sala de Barbara, eventualmente parando para acrescentar notas em uma letra escrita na semana anterior, quando ouviu a porta se abrindo às suas costas. – Você canta para ela, como fazia comigo, Amanda? Ela não respondeu. “Aposto como não. – Bom dia, Gail.
– Sabe o que dizem sobre o primeiro amor? – Hum? – Que é o único verdadeiro. – Gail respondeu seu próprio questionamento. – Nos outros, por toda a sua vida, você está tentando não repetir os erros que cometeu na primeira chance. – Interessante. – disse Amanda, largando o violão. – Foi por isso que se casou com o filho do bilionário? – Por favor, não pare de tocar. – Gail sorriu. – O que quer de mim, Gail? – Nada, Amanda. Eu gosto de te ouvir, sempre gostei. Ou estou atrapalhando? – ela se levantou. – Desculpe, não foi a intenção. – Não, não. Não está atrapalhando. Eu só... você voltou, trabalhamos juntas e agora a gente mal conversa. – Fale-me de você. Por que deixou a Townsend? – Intrigas com Oliver. – Ou Tina? Aquela vaca. Sempre a detestei. Mas ela te ensinou a cantar num tom mais grave, e ele deixa a sua voz mais sexy. Amanda virou o rosto. Por alguma razão lembrou da tatuagem peculiar de Gail, e tentou afastar o pensamento rapidamente. – E você? No topo... eu fiquei muito feliz de saber. Teve notícias do Fred? Stella? O pessoal daquele tempo? – Quem ficou em Nova Iorque foi você. – Viajei muito. – Ah, claro, com a estrela de Hollywood. Vocês têm uma vida muito agitada? Por enquanto minha previsão não se confirmou, não é? Continuam juntas... – Gail fez uma pausa. – Quantas coisas você já teve de engolir para continuar com ela? Vi o cara com quem Kirsten Howard foi no Oscar, qual a sensação de saber que o mundo inteiro achou que ela foi pra cama com ele depois da festa, e não com você? – Tem razão, perto do seu, o nosso casamento é um fracasso. – Amanda se irritou com a ex. Gail riu, acenou e deixou a sala de Barbara. Amanda tentou voltar à sua música, mas não conseguiu. Não teria ensaio nem aula naquele dia e cogitou ir para casa, mas pensou melhor e foi espiar o elenco de apoio ensaiando, com supervisão de
Gail. Ela se parecia muito com Stella, o mesmo jeito de ensinar. Naqueles detalhes Amanda via que não a tinha perdido por completo, que fragmentos daquela época estavam vivos na bailarina, e então passou a se perguntar o que ela própria ainda trazia daquele tempo. Olhou para o violão que segurava pelo braço, apoiado no chão enquanto espiava o ensaio. Amanda era uma estrela da Broadway, mas como aquela adolescente do Soho, ainda sonhava com outra carreira. Baixou os olhos, encarando o chão, tristemente.
333 Cindy largou o copo de plástico que ainda continha dois ou três goles de café sobre o painel do carro. Apanhou seu bloco de anotações e marcou o horário em que viu Amanda Roberts deixando a galeria. Acima destas, muitas outras anotações do mesmo tipo. Deixando o carro, Cindy atravessou a rua e se camuflou entre os transeuntes. Entrou na galeria como se estivesse distraída, respondeu perguntas banais ao porteiro, tomou o elevador e chegou ao hall que dava acesso às salas alugadas por Barbara Evans. Sorriu, sozinha, em um dos corredores. – Então é aqui que a mulher que você ama trabalha, Kirsten. Parece um bom lugar, mas não entendo como pode ser mais atrativo do que passar o tempo todo com você. – disse em voz baixa, para si mesma. A jornalista se interessou, ou fingiu estar interessada, em alguns dos cursos. Conseguiu mais algumas informações e deixou a galeria, prometendo voltar mais vezes. Numa dessas vezes, uma funcionária se ofereceu para mostrar as dependências da Companhia, e acompanhou Cindy em um pequeno passeio, que incluía as salas de ensaio e até mesmo os vestiários. Com curiosidade genuína, mas objetivo disfarçado, Cindy quis saber qual dos armários pertencia a Amanda Roberts, e aquela informação fez seu coração bater mais forte.
Nota da Autora: tudo bem, Kant não teve um encontro. Mas isso pode ser revertido, né Renji??? Melhor sorte (eu acho) teve a Joyce, que EU convidei pra sair, mas ela não quis!!! Sara leva mais um bolo, gentém. Quem é que vai cuidar de mim? Hum?
(até o próximo capítulo)
Notas Finais: pelo que pude apurar, as apostas para a separação estão na paunocuzagem (adorei o termo da AB) da Amanda, que vai pegar a Barbara, é isso? Alguém tem outra teoria? Ai, gente, vocês estão tão longe da verdade... *autora se diverte* tão esquecendo que uma certa loira, que anda quieta no canto dela, pode nunca ter aprontado, mas já não lhes disseram que "as quietinhas são as piores"? Voltar para o índice O Segredo escrita por Sara Lecter Notas do Autor: quero agradecer a todas que fizeram teorias, sobretudo Tokiko e Lady, que chegaram bem perto da verdade. E agradeço à Joycita, que deu dica sobre o título. É isso mesmo? Todas querem saber o segredo? Pois bem... esse é o capítulo que o desvenda. E Kirsten voltará a encontrar a sua paz. Já a Amanda... ih, coitada.
“Quando me perdi, você apareceu Me fazendo rir do que aconteceu E de medo olhei tudo ao me redor Só assim enxerguei Que agora estou melhor. (...) E a dor saiu, foi você quem me curou Quando o mal partiu, Vi que algo em mim mudou E agora eu sou feliz, Pois lhe tenho bem aqui. Cogumelo Plutão. Esperando na Janela .
Capítulo 31 – O Segredo O sofá da sala íntima do sobrado estava completamente ocupado. Além de revistas especializadas em séries de TV, vários números aparentemente aleatórios, todos abertos em reportagens sobre “O Vale”, havia também uma caixa de bombons e a capa do DVD do último filme que Kirsten estrelara em sua carreira cinematográfica – que a imprensa acabara perdendo a relutância em dizer que estava encerrada. Ao lado de todas estas
coisas, a própria Kirsten, que lia pela enésima vez o romance de Susan Frears, embora já o conhece talvez até melhor do que a própria autora. O filme acabou, e enquanto uma música terrivelmente triste conduzia a subida dos créditos, Kirsten ficou olhando para a tela plana e lembrando das filmagens e de todos os bons momentos que vivera naquele período, além do discurso de Vittorio na noite do Oscar, fragmentos aos quais ela se agarrava sempre que se percebia sucumbindo ao fundo do poço. Abriu o jornal do dia e, mais uma vez, localizou algumas notas sobre o espetáculo de Amanda, esta sim cada vez mais amada, elogiada, cada vez mais famosa. Kirsten não sabia dizer aonde tinha ido parar tanta força e tanta garra para ser uma atriz reconhecida, tanto talento para o estrelato, tanta desenvoltura diante das câmeras. Abandonara o curso de pintura, mas já conseguia sair de casa sem problemas, e mesmo que não tenha contado à esposa, assistira seu espetáculo varias vezes, sempre disfarçada, disfarçando também o seu orgulho ao ver a grande mulher que Amanda havia se tornado, sem deixar de ser a garota facilmente impressionável que era na época em que elas tinham nada mais do que um caso que parecia ser passageiro, sempre interrompido pelos sumiços da própria Kirsten. O último item que ocupava o sofá era um grosso envelope pardo, que chegara à caixa de correios do sobrado naquela mesma manhã, três dias depois da briga de Kirsten e Amanda na banheira. Desde então elas não haviam voltado a se falar. Amanda chegou em casa uma hora depois do término de sua apresentação, de tarde. Teria a noite de folga, e geralmente ela acabava ficando na rua até quase a madrugada, mas naquele dia não tinha motivação alguma para sair. Se não tivesse recebido o envelope pardo daquela manhã, Kirsten continuaria acreditando que Amanda andava estranha por causa da briga...
333 O aeroporto estava calmo quando Kirsten atravessou o saguão com apenas uma mala e uma bolsa. Vestia-se do modo que Jerry sempre a obrigava, quando apareceria em público, mas não porque já poderia desconfiar que seria vista, e sim por um motivo que ainda não sabia precisar. Talvez tivesse reencontrado naquela mesma manhã o caminho que deixara para trás em um ano que quase inexistência. – Kirsten Howard!? Ela tirou os fones dos ouvidos e se virou, oferecendo um sorriso maravilhoso. – Sim? Seu interlocutor se apresentou, estendendo a mão, um tanto nervoso. Anunciou o nome de uma revista conceituada e Kirsten sorriu mais uma vez, educadamente.
– Atraso você? – De modo algum, temos alguns minutos. – Posso saber o destino? – Los Angeles. – Não diga? Uma filmagem? Você está voltando ao cinema? Ela hesitou, sem se deixar perceber. Notou que algumas pessoas os observavam e viu uma garotinha lhe fotografando com o celular. Sorriu para ela e indicou que se aproximasse, ao que a menina quase nem acreditou. Kirsten lhe deu um autógrafo, um abraço, acenou para os seus pais e voltou a conversar com o jornalista. – Estou voltando, mas ainda não é uma filmagem. – Certo. – Agora eu preciso ir. O homem lhe desejou boa viagem e Kirsten entrou na sala de embarque. Seu vôo foi tranqüilo e a chegada em Los Angeles lhe fez sorrir. Tomou um táxi sem demoras e ele a levou até um endereço que era novo para a atriz, embora a pessoa que iria encontrar lá fosse uma grande amiga. – Kirsten? Você veio mesmo... – Oi, Susan, desculpe por não ter marcado isso com antecedência. – Não se preocupe... – ela acomodou Kirsten na sala. – Quer alguma coisa? Uma bebida, ou... – Um café seria ótimo, não posso misturar álcool com os remédios. Kirsten explicou à amiga que vinha se submetendo a um tratamento para depressão e os remédios eram bastante fortes, mas felizmente vinham trazendo ótimos resultados para a fobia social e a insônia. – Eu torci muito por você. Sabia que havia de ter um fundo de verdade nas notícias sobre você não estar nada bem. – É. – E Amanda? – Da última vez que conversamos, ela sugeriu que eu viesse vê-la, Susan. É por isso que estou aqui. – “Da última vez que conversamos”?
– Longa e desagradável história, não estou pronta para falar dos detalhes, ainda. – Kirsten se calou por algum tempo, mirando a janela. – Bem, Susan, eu estive muito mal, sim. Pior até do que disseram os jornais. Eu não consegui fazer mais nada da minha vida desde que o filme foi lançado. – Por quê? – Busquei todos os motivos, durante todos esses meses. Nada parecia fazer sentido. O filme foi um sucesso, eu ganhei um Oscar, fizemos um bem enorme pela causa homossexual, mas... algo ainda me incomoda. Eu não sei o que é. Vim aqui, Susan, porque desconfio que você seja a única pessoa que pode me ajudar. – Não estou entendendo. – Tem alguma coisa a ver com a história da Josie. Sabe, eu cheguei a acreditar que estivesse apaixonada por ela. Pelo que conheci dela através de você. Susan prendeu a respiração e foi incapaz de continuar encarando Kirsten. “Sei que ela foi sua mulher, não deve ser fácil ouvir isso, lamento. Estou apenas sendo sincera. – Claro. – Então eu acho que é isso, Susan. Acho que eu entrei em depressão porque me apaixonei por uma mulher que nunca poderá ser minha. Nunca mesmo. Eu não acredito em vida após a morte... – Kirsten... – Só não entendo como isso pode ter acontecido! – ela começou a chorar e Susan se aproximou para abraçá-la. – Amanda é maravilhosa, e sei que o que ela fez, agora, foi só porque eu a obriguei a passar um ano inteiro ao lado de uma pessoa infeliz. Eu não posso culpá-la... eu não posso... eu não... – Isso é impossível... – Eu sei!!! Acha que eu não sei? Também acha que eu fiquei louca, não acha? – Não Kirsten, não. – Tem alguma coisa na sua história, na história da Josie, que não faz sentido. Eu vi o filme mais de cem vezes esse ano, Susan. Eu sei a ordem de cada frase do seu livro! Eu procurei... eu procurei por respostas, mas estou hoje tão ou mais perdida do que estava naquele dia... naquele dia de mar, areia e cinzas. Eu tenho pesadelos com aquela filmagem, Susan, quase todas as noites! É como um sinal de que existe alguma coisa ali que eu não percebi, e que explica porque eu estou assim, porque não posso admitir que perdi toda a minha razão!
Susan passou algum tempo afagando os cabelos loiros de Kirsten, e logo começou a chorar também. Um segredo que ela jurara guardar para sempre era a única coisa que poderia salvar a sua amiga, mais do que isso, uma mulher que ela aprendera a amar, ainda que soubesse que Kirsten nunca a corresponderia. “Diga-me, Susan, eu enlouqueci? – Essa história parece sobrenatural. – disse a outra. – Quando esses pesadelos vão acabar? Os remédios acabaram com tudo, menos com eles... – Kirsten... olhe pra mim. Existe uma coisa, sim. Mas... – Susan voltou a chorar. – É um segredo tão grande que nem sei se consigo colocá-lo em palavras. – Conte, Susan, por favor. Salve a minha vida. Susan respirou fundo, secou as lágrimas, consultou sua consciência mil vezes em apenas cinco segundos, fechou os olhos e disse, num sussurro preso: – Josie não morreu.
333 Amanda foi direto para o quarto e, transtornada, não notou que havia muitas coisas diferentes naquele cômodo. Tomou um banho não muito demorado e se aproximou da cama, com os cabelos ainda molhados, enrolada apenas em uma toalha cor de rosa. Notou, finalmente, alguns objetos sobre ela. Sentou-se sobre o colchão e apanhou duas taças deixadas ali. Levou algum tempo para reconhecê-las, embora não tivesse certeza se sua memória lhe pregava uma peça ou se realmente eram as taças nas quais havia servido vinho para Kirsten, da primeira vez que passaram uma noite juntas. Recordou-se que as taças haviam, assim como a loira, sumido de seu apartamento na manhã seguinte. Ao lado delas, sobre um envelope pardo, estavam entrelaçados os dois colares que simbolizavam o seu casamento. O coração de Amanda disparou violentamente. Ela havia perdido a sua jóia, na semana anterior, e não tinha certeza de onde a tinha visto pela última vez. Dera a Kirsten a desculpa de que ela causava alergia na sua pele enquanto tentava desesperadamente conseguir uma cópia exata. Dentre todas as coisas, sua única certeza era a de que não perdera a peça em casa, então era um mistério que Kirsten estivesse com ela. Um mistério que ela começou a desvendar quando apanhou o envelope sem registros do serviço postal, identificado apenas com o nome de sua esposa em uma das faces. Amanda prendeu o envelope junto ao peito, antes de abrir. Fechou os olhos e deixou grossas lágrimas caírem por sua face. Olhou para trás e viu a porta dupla do closet aberta. Um lado era seu, o outro de Kirsten, e estava quase vazio.
“Não pode ser verdade...” diss e para si mesma. Abriu o envelope com as mãos trêmulas e então todo o seu pavor se confirmou. Uma frase impressa na primeira página, uma branca folha de ofício, dizia: é doce o sabor da vingança. Amanda não quis olhar as fotos, já sabendo do que se tratava. Caíra em tentação uma maldita única vez, uma fraqueza estúpida da qual se arrependeria eternamente, mesmo que não fosse descoberta: transara com Gail, no quarto de hotel cinco estrelas que o marido da bailarina pagava para ela, enquanto trabalhasse em Nova Iorque. Já tinha decidido que contaria a verdade à Kirsten assim que ela estivesse um pouco melhor, pois notara que ela vinha se recuperando, mas de nada adiantaria aquilo agora. De nada adiantaria o seu arrependimento, principalmente porque ela podia fazer idéia de como Kirsten se sentira abrindo aquele envelope. E agora Kirsten havia desaparecido... Tentou ligar para o celular da esposa diversas vezes, mas estava sempre desligado. Richard e Debra nada sabiam dela e também se preocuparam, mas não tanto quanto depois de um jantar horrível, no qual Amanda contara a eles toda a verdade, para que lhe ajudassem a encontrar Kirsten e se certificar de que a loira estava bem, na medida do possível. – Eu sei que eu fui horrível! – disse ela, aos prantos, no apartamento de Richard. – Podem me julgar como quiserem, eu mereço. Mas estou desesperada. A Kirsten já não estava bem, ela desapareceu, ela... ela... – Amanda, procure manter a calma. – Ela tirou as coisas dela do sobrado, Richie!!! Da casa dela!!! Se não está com vocês, para onde pode ter ido?? – Agora temos de pensar. – ponderou Debra. – Avaliar as possibilidades. Podemos ligar para os hotéis da cidade, mas acho difícil que consigamos alguma coisa, porque ela sempre se hospeda com nome falso, eles permitem por causa da exposição. – Eu não quero nem pensar... não quero nem pensar que ela pode ter feito algo mais grave. – Kiki não seria tão fraca. – defendeu Richard. – Não sei não. – Debra o contrariou, sabendo do peso de suas palavras. – Ver as fotos... Desculpa, Amanda, mas... – Eu sei! Eu sei que eu sou um monstro! Eu não agüentava mais, essa é a verdade. A fraca fui eu. Tinha de ter ficado do lado dela, tinha de ter ficado! – Calma, Amanda! – Richard a abraçou. – Vamos resolver, vamos dar um jeito. Quando foi a última vez que conversaram? Ela disse alguma coisa? Mencionou alguém?
Amanda deixou todo o ar escapar de seus pulmões. Não conseguia pensar direito por causa do choque e da culpa imensa que sentia. – Falamos de Susan Frears. Eu sugeri que, já que a Kirs não conseguia parar de pensar no filme, na Josie, que procurasse a Susan para saber se não havia alguma coisa errada... fora de lugar. Debra se levantou prontamente. – Vou ligar para o Jerry, ele ainda deve ter o número da escritora. – Ótima idéia. – aprovou Richard. Jerry ficou muito surpreso em, tanto tempo depois, atender a melhor amiga de sua cliente mais famosa. Ou ex cliente. Deu o número, Debra ligou, mas a companhia de telefone informou que Susan havia mudado de linha, e se recusou a dar o novo. Sem saída, ela e Richard fizeram o que podiam naquele momento: cuidaram de Amanda e de seu desespero, torcendo em silêncio para que Kirsten não tivesse feito nenhuma besteira.
Nota da Autora: o seriado preferido de Kirsten é uma adaptação de “The Valley”, o seriado que as personagens Summer e Marisa assistem em “The O.C.”. A pista estava nas notas do prólogo, onde eu disse que essa série me influenciou muito na fic. Ninguém levou a caixa de chocolates.
(até o próximo capítulo) Notas Finais: e agora? o que aconteceu com a Josie? Por que a Susan mentiu sobre ela? A história do seu livro é mesmo real? e se a francesinha, na verdade, nunca existiu? depois do envelope, haverá volta para o seu casal yuri preferido? Voltar para o índice Josie Duschamps escrita por Sara Lecter Notas do Autor: bom, esse é o segundo capítulo "pós" cena do prólogo
“Seu coração é muito mais bonito com as feridas que ele traz.” Autor Desconhecido.
Capítulo 32 – Josie Duschamps Kirsten notou que toda a sua vida passou diante dos seus olhos enquanto esperava que a porta fosse aberta, depois de tocar a companhia. A casa diante da qual se encontrava era linda e tinha um estilo peculiar. Kirsten estava exausta depois de um vôo de emergência e ainda não sabia se estava agindo por impulso como nunca fizera em sua existência ou se nada daquilo estava acontecendo, e a qualquer momento ela iria acordar e ver que estivera sonhando. – Pois não? – atendeu uma senhora, de uniforme. – Boa noite. – Kirsten tentou sorrir e não conseguiu, principalmente depois que notou pelo semblante da mulher que ela havia lhe reconhecido. – P... procuro por Josie Duschamps. – Entre, por favor. Verei se ela se encontra. Respirando fundo, Kirsten se sentou no sofá. Uma das paredes da sala era composta por uma armação de ferro e vidro e ela lembrou que essa fora a característica que levara a empresa de Susan e Josie a obter grande sucesso no ramo da construção civil. A empregada apareceu mais uma vez e ofereceu um café, mas Kirsten preferiu apenas um copo d‟água, que não havia chegado quando ela viu uma mulher de estatura idêntica à sua e aparência muito atraente descendo as escadas. Levantou-se imediatamente, não sabendo onde enfiar as próprias mãos, se atrás do corpo ou nos bolsos, então lembrou que não tinha bolsos e lamentou, mas ainda não resolvera o seu problema. Estava suando frio e sua boca se abria e voltava a se fechar debilmente. – Não sei o que dizer. – falou Josie, sem saber que expressão denotar em seu rosto. “Você é exatamente como eu sabia que seria.” – pensou Kirsten, agindo como uma tola. Quando se deu conta de que teria de falar alguma coisa, mordeu os lábios e emendou: – Josie Duschamps? – Em carne e osso, embora depois do seu filme tenha sido difícil fazer os outros acreditarem. Por favor, fique à vontade. – ela indicou o sofá. Kirsten notou que não tinha mais respirado desde que Josie surgira na escada e então se sentou, quase ofegante, ainda embasbacada. – Preciso me apresentar? – Não. Só me diga como chamá-la, senhorita Howard. – Apenas Kirsten. – ela disse, sem jeito. – Bem... até entrar aqui eu ainda não conseguia acreditar.
– Você descobriu ou Susan quebrou a promessa? – Ela acabou de me contar, vim direto de Los Angeles, ainda estou em choque. Peço que a desculpe por romper o acordo, ela mencionou que você pediu para permanecer incógnita por causa da repercussão do filme, mas foi inevitável. Tão logo eu possa lhe explicar, tenho certeza de que vai entendê-la. E lamento por ter usado o seu nome, filmado a sua vida, sem a sua aprovação. Eu simplesmente não tinha questionado, em momento algum, a passagem do seu falecimento. Para mim era uma história completamente verídica. – Susan foi esperta, sem esse final a história não seria metade do que é. Nem o filme... – Você viu? – Claro que sim. Aliás, parabéns, o filme é lindo, uma verdadeira obra prima. Muito superior ao livro que o inspirou, na verdade. Kirsten balançou a cabeça, juntando suas mãos, que estavam muito suadas pelo nervosismo. – Então vocês apenas... vocês... – ela parou sua frase no meio. – Desculpe, não tenho intenção de invadir a sua privacidade. – Nos separamos. Sim. Parece um horror, principalmente porque você sabe que tivemos uma linda história de amor, mas até mesmo essas, às vezes, não duram para sempre. Kirsten engoliu a frase como se fosse um chá muito amargo. Lembrar de seu último ano ao lado de Amanda lhe doeu como uma punhalada no coração. Ainda sem saber como agir, para onde olhar, o que fazer e que tom de voz empregar, ela contou à Josie o pedido que fizera à Susan e mencionou os pesadelos, a sua intuição de que havia um segredo oculto naquela trama. – Foi isso. E agora eu estou aqui, olhando para você e me perguntando se isso não é fruto da minha imaginação. – Não é. – garantiu Josie, com a voz firme. – Você tem muito mais sotaque francês do que como eu a interpretei. – comentou Kirsten, envergonhada. – É só agora, estou nervosa. – ela disse, preferindo não encontrar os olhos de Kirsten. – Você não sabe o quanto foi estranho ver outra pessoa fazendo o papel de... bem, o papel de “eu”. – ela riu. – Também é estranho conversar com você e lembrar que esse foi o papel mais difícil de esquecer. Talvez eu ainda nem tenha saído dele. – Um ano depois?
– Um ano que passou para mim como um piscar de olhos. O telefone tocou e Josie se levantou para atender. Kirsten a ficou observando: o modo de caminhar, a maneira como mexia nos cabelos enquanto falava, o jeito, o tom de voz. Era como se a conhecesse desde sempre, como se tivesse reencontrado alguém muito querida. Sabia exatamente o que ela faria a seguir, sabia o que ela estava pensando e sentindo apenas pelas suas reações e sabia, principalmente, que aquilo não se dava porque a tinha interpretado, mas porque eram iguais. – Desculpe, trabalho. – disse em tom de lamento. – Eu é que tenho de me desculpar. Vim aqui intempestivamente... – É um encontro muito inusitado. Já conhecia Seattle? – Primeira vez. – disse Kirsten. – Bela casa. Você quem projetou, não é? – Uhum. – Josie sorriu orgulhosa. – Tinha uma empresa aqui, mas vendi há pouco tempo. O telefonema foi por causa disso, últimos detalhes a serem resolvidos. – Vendeu? – Quero dar um tempo, aproveitar um pouco a vida. – explicou Josie. – Talvez viajar, me mudar, não sei. Esse último ano foi complicado, com a história do filme eu tive de me esconder, sempre inventar alguma coisa e dizer que era coincidência ter o nome da sua personagem. – Lamento. Josie riu de Kirsten. – Só o que você sabe dizer é que lamenta? – Não, não. É que... eu lhe causei tantos transtornos, mesmo sem querer. – Pelo que você me contou, também não teve um ano nada fácil e a culpa é minha, indiretamente. – Claro que não! – apressou-se em dizer. Continuaram conversando por mais algum tempo, Josie fez questão que Kirsten jantasse com ela e, durante a refeição, a engenheira mudou o rumo do diálogo. – Eu nunca imaginei, em toda a minha vida, que Kirsten Howard jantaria na minha casa, como se fôssemos velhas conhecidas. Kirsten sorveu um gole de vinho e respondeu:
– De um modo não convencional somos mesmo velhas conhecidas. – ela sorriu. – Mas eu só sei de você até o ponto que a história termina. Então, o que fez depois de se curar do câncer? – Não, não, nada de histórias chatas, eu não fiz nada além de construir essa casa e trabalhar. Ainda bem que Susan escreveu um destino bem mais lírico para mim. Por que não tentamos outra coisa? Eu só conheço você pelos jornais. O que mais preciso saber? A atriz engoliu de uma vez só toda a porção de sobremesa que tinha boca. – Eu... não sei. Não sei o que você sabe. – Órfã, perfeccionista, tímida, genial no trabalho, hábil em negociações, detesta exposição e... – Josie fez uma pausa. – não tenho bem certeza, mas acho que concordo com alguns blogs e jornais menores que disseram que você ficou tão à vontade em um papel homossexual porque também o é. Ela apenas sorriu. Então se pegou admirando a capacidade de síntese que Josie tinha. – Concordo com tudo, menos que sou genial. E fora isso, tudo o que você precisa saber é que eu amo Nova Iorque e trocaria qualquer coisa por uma tarde de risadas e de choros com meus melhores amigos. – Richard e Debra. – disse Josie, e depois acrescentou: - Você os citou no Oscar. Achei tão bonito... lembrar dos amigos quando se está no topo do mundo. Kirsten baixou os olhos. “Gostei do que você disse, mas preciso saber mais uma coisa. Por que largou a carreira? – Estava tudo fora de rumo. – disse Kirsten. – Começou como um estouro, e eu nunca mais parei de fazer filmes, de lançar filmes, de aparecer na televisão, de aparecer nos jornais, de... fui ficando cansada, cheguei aos vinte e quatro anos e me dei conta de que nem era isso que eu queria para a minha vida. – Não!? – Eu sempre quis ser escritora. – Ah é, você escreveu o roteiro. – Uhum. – Escritoras são o meu karma. – gracejou Josie, e Kirsten foi obrigada a rir.
Meia hora depois do jantar, quando as duas estavam de volta à sala, Kirsten andou até a janela e ficou observando a cidade. Josie construíra a sua casa no alto de uma colina que oferecia uma bela vista. O bairro era bastante privilegiado. – Está tarde, vou para o hotel. Sem pensar, Josie a abraçou pelas costas e pousou a cabeça em seu ombro. Kirsten tremeu dos pés à cabeça, mas não se afastou. O que sentiu não foi um estranhamento ou um susto, mas a vaga noção de que precisava daquele abraço há muito tempo. Precisava de alguém que lhe entendesse até o segmento mais profundo de sua alma, e Josie era sem dúvida essa pessoa. Ela não precisava de mais tempo para saber disso, ela não precisara de mais do que uma troca de olhares, que ocorreu durante o jantar, quando as duas ficaram em silêncio, apenas se admirando, como se nada nem ninguém mais existisse no mundo. – Meu Deus, não sei o que me deu, perdão. Kirsten se virou rapidamente e impediu que Josie se afastasse. – Seja o que for, não está acontecendo apenas com você. – Eu tenho vontade de pedir que você fique, Kirsten. Tenho vontade de gritar por isso. Os rostos se aproximaram ainda mais, e uma podia sentir o calor da respiração descompassada da outra. – Eu te procurei esse tempo todo... – a mão de Kirsten alcançou a nuca de Josie e começou a afagá-la com delicadeza. – Eu sonhei com você praticamente todas as noites, desde que soube do filme. – confessou Josie. – Achei que fosse um distúrbio por você interpretar uma parte da minha vida, mas agora eu entendo... não era a personagem, era você que eu queria, mesmo sem... – ...sem que nunca tenhamos nos visto. – completou Kirsten, fechando os olhos meio segundo antes de colar seus lábios nos de Josie. Josie tocou a cintura de Kirsten com as duas mãos e a trouxe delicadamente de encontro ao seu corpo. Inclinou seu rosto, deixou que a atriz tomasse a iniciativa de colar os lábios, mas assim que pensou em aprofundar o beijo, Josie sentiu Kirsten se afastando. Kirsten viu a expressão de dúvida no rosto de Josie assim que abriu os olhos e se sentiu ainda pior, mas não poderia continuar. Antes que resolvesse o maior conflito da sua vida, pelo menos até ali, teria de estar realmente livre. E ainda não estava, porque pensou em Amanda por quatro ou cinco vezes desde que entrara na casa de Josie.
Nota da Autora: capítulo muito influenciado pela fic “Um Game para o Amor”. Vocês não conhecem??? O quê??? Deve ser porque a Joyce ainda não postou ¬¬ Faremos pressão!
(até o próximo capítulo) Voltar para o índice O Adeus ao Sobrado escrita por Sara Lecter Notas do Autor: capítulo crucial dessa história, gente. “I dont know what I've done Or if i like what I've begun But someone told me to run And honey you know me it's all or none There were sounds in my head Little voices whispering That I should go and this should end Oh and I found myself listening
Cause i dont know who I am, who I am without you All I know is that I should And I dont know if I could stand another hand upon you All i know is that I should Cause she will love you more then I could She who dares to stand where I stood
See I thought love was black and white That it was wrong or it was right
But you aren't leaving without a fight And I think I am just as torn inside
Cause I don't know who I am, who I am without you All I know is that I should And I dont know if I could stand another hand upon you All I know is that I should Cause she will love you more then I could She who dares to stand where i stood
And I wont be far from where you are if ever you should call You meant more to me then any one I've ever loved at all But you taught me how to trust myself And so I say to you, this is what i have to do. Cause I don't know who I am, who I am without you All I know is that I should And I dont know if I could stand another hand upon you All I know is that I should Cause she will love you more then I could She who dares to stand where I stood She who dares to stand where I stood.” Where I Stood. Missy Higgins. Essa música não tem tradução pra mim.
Capítulo 33 – O Adeus ao Sobrado
O dia estava nascendo quando Kirsten chegou em Upper East Side, sabendo que seria a última vez, pelo menos com o intuito de “ir para casa”. Não conseguira dormir nem por dez minutos no vôo que a trouxera de Seattle, estava exausta, precisando de um banho e talvez de muito café, sem mencionar que não levara seus remédios e a abstinência deixava suas mãos trêmulas. Não podia interromper o tratamento bruscamente. E fora por isso, mais do que por qualquer outra coisa, que fora para o sobrado e não para o lugar onde deixara suas coisas antes de partir. – Meu Deus, Kiki, nós quase morremos de preocupação! – exclamou Richard, que estava na sala, com a cabeça de Amanda em seu colo, esperando Debra preparar mais café. Kirsten não olhou para ele, mas para Amanda, que acabara de se levantar, com os olhos cheios d‟água. – Kiki! – Debra desceu correndo os dois lances de escada que a traziam da cozinha. – Kirsten! A loira abraçou a amiga, não muito calorosamente. Richard se levantou, motivado por aquilo, e também a abraçou. E então Kirsten lhe olhou nos olhos: – Podemos conversar depois? – pediu, sussurrando. – Como você está? – Debra insistiu. – Bem. Agora... – ela indicou Amanda, que não olhava para os três. – Claro, claro. Vamos, Debby. – disse Richard. Amanda notou que Kirsten fechara a porta, depois de seus amigos saírem, mas que não viera até ela. Virou-se, e viu sua mulher diante de um dos armários embutidos do primeiro andar que ficava sempre fechado. Tantos anos naquela casa e Amanda nunca o tinha visto com a porta entreaberta, como estava naquele momento. – Kirs... – Hum? – O medo de que você pudesse ter feito uma besteira quase me matou! – disse, sinceramente. Kirsten continuava olhando para dentro do armário que acabara de abrir. Amanda reparou que não havia quase nada ali. O silêncio que interpunha as duas deixava Amanda apavorada, Kirsten parecia distante e estranha. – Você teve irmãos, não? – disse a loira. – Fico me perguntando como teria sido... Eu adorei a idéia, quando me contaram que mamãe estava esperando um menino. Mas eu era apenas uma criança, também tinha ciúmes, e me escondia pela casa para que fossem me procurar.
– Você nunca fala disso... – comentou Amanda, em tom ameno. – Um dia eles foram ao teatro e eu me escondi aqui dentro. – Kirsten apontou para um canto do armário. – A babá ia embora quando me fazia dormir, naquele dia eu fingi, desci para cá e me escondi. Vi quando eles chegaram em casa, como dois namorados, estavam no melhor momento do casamento, minha mãe grávida de novo... – Nossa, Kirs... – Ele entrou logo depois. Começaram a discutir, eu forço a minha memória e nunca consigo lembrar o que ele queria... – Kirsten secou as lágrimas que corriam em sua face. – Eles discutiram, ele sacou uma arma e atirou nos dois. Duas vezes em cada um, depois desarrumou a casa, subiu para o quarto deles, pegou algumas jóias para simular um assalto e saiu. E eu aqui, bem aqui! Vendo tudo pelo buraco da fechadura. Amanda abraçou-a com força e se prometeu não largar Kirsten enquanto não a fizesse se sentir melhor. “Ninguém acreditou em mim. Ele foi investigado, mas tinha um álibi, um álibi que era muito melhor do que as coisas que uma menina de quatro anos dizia. Deram a minha guarda para ele. – Quem? – Phill. Irmão da minha mãe. – Meu Deus, Kirsten! Por que nunca me contou? Ela não respondeu. Amanda a levou até o sofá e apanhou um copo d‟água. Depois de algum tempo voltaram a conversar. – Eu fui para Los Angeles, falar com Susan. – Cogitei essa possibilidade. Kirsten, eu – um dos imóveis que era do meu pai vagou neste mês, está mobiliado, vou me mudar para lá. Você pode ficar no sobrado quanto tempo precisar. – Mas você está bem? – Só preciso dos meus remédios. – disse Kirsten. – Kirs... por que não me disse que estava fazendo um tratamento? – Mudaria alguma coisa? – ela perguntou, magoada. – Você teria ficado mais, comigo? Eu acho que não, Amanda. Sabemos que já faz um bom tempo que eu deixei de ser a mulher que você amava e é injusto te forçar a permanecer do meu lado.
– Kirsten, eu vou me arrepender pra sempre do que eu fiz. É sério, eu lamento tanto, sinto-me suja, sinto-me o pior ser humano dentre todos. É que... Gail voltou, e a carreira, e todas essas coisas acontecendo ao mesmo tempo, eu fiquei fora de mim, eu... – Não tente explicar. – pediu Kirsten. – Tudo bem. Tudo o que você quiser. – disse Amanda, encarando a janela e vendo que o sol já estava alto e ela nem o vira nascer. – Eu fui muito feliz do seu lado, Amanda. Não quero discutir a sua traição, nem quero pensar nela. É estragar um mundo de boas lembranças por causa de uma única, terrível. – Uhum. – Vamos fingir que o casamento acabou naquele hotel em Los Angeles, e fomos boas amigas desde então. – Por quê? – Porque foi naquele dia que você deixou de me amar. – explicou Kirsten. – Você acha que eu não sentia? Achou que eu não percebia os seus olhares, o seu choro, de madrugada, quando acreditava que eu estivesse dormindo? Posso ter estado, ou ainda estar, muito doente, Amanda, e não ter conseguido reagir. Mas não fazer nada não significa que eu não notasse as coisas. Eu sabia de tudo, de cada coisa que você sentia, e do meu jeito eu tentei te trazer de volta, mas não consegui... – ela voltou a chorar. – e como você, também nunca vou me perdoar por isso. Abraçaram-se calorosamente. O silêncio dominou o sobrado por quase uma hora, enquanto Kirsten pousara sua cabeça no colo da Amanda e a deixava lhe afagar. Pela última vez... – Não é justo eu ficar aqui. Essa casa é sua. – disse Amanda. – É tão sua quanto minha desde que veio morar aqui, comigo. – Mas eu não suportaria ficar aqui. Desculpe. – Não se desculpe. Eu entendo. – Vou para um hotel, hoje. Depois vejo o que fazer. Amanda se levantou, subiu para o terceiro andar e arrumou duas grandes malas. Durante esse tempo, Kirsten ficou deitada no sofá da sala, pensativa, lembrando de cada detalhe daquele casamento e se despedindo, com amor, de um período maravilhoso. Já tinha conseguido parar de chorar quando Amanda desceu as escadas, carregando as malas com dificuldade. Aquela visão a derrubou mais uma vez, assim como Amanda, e ambas correram uma para os braços da outra, num abraço sufocado,
cheio de urgência, mas também de mágoa, cheio de amor, mas também de ódio, repleto de carinho, mas que no fundo era – sabiam as duas – um adeus. Já na rua, caminhando em direção ao táxi, Amanda teve a impressão de que um flash fora disparado, mas afastou aquilo de sua mente. Olhou para os lados, nada viu. Deixou que carregassem suas malas e entrou, pela porta de trás, cobrindo o rosto com um grande óculos muito escuro. Indicou o destino, respirou fundo e olhou para trás... afastando-se aos poucos do sobrado. Mirou as árvores nas calçadas de Upper East Side, olhou para as pessoas, abriu a janela para sentir o cheiro do bairro mais charmoso de Manhattan, e a impressão que teve foi de que estava no final de um filme, que os créditos subiriam. Amanda pôde até ouvir, ao fundo, uma música muito triste. Era assim que ela via tudo: um final infeliz.
Nota da Autora: jamais me permitiria escolher outra coisa para ser posto na epígrafe além desta música, que eu peço perdão por não ter traduzido, mas simplesmente não faz sentido em português. Não o sentido que ela tem pra mim. Há um motivo principal de ela constar justo nesse capítulo, que é o fato de ter imaginado essa cena inteira – meses atrás – enquanto ouvia essa música; o segundo o motivo é ter ouvido enquanto escrevia; e o terceiro é pensar que ela marca também o meu final infeliz. ¬¬
(até o próximo capítulo) Voltar para o índice As Manchetes escrita por Sara Lecter “Uhhhh, Se a gente não consegue mais Rir um do outro, meu bem Então o que resta é chorar...” Los Hermanos. O Vento
Capítulo 34 – As Manchetes Kirsten sabia que não estava exatamente “vivendo”, que aquele estado deveria ser uma licença poética que os regentes do universo lhe haviam dado, uma compensação por um ano inteiro de inércia, traduzida em dois dias em que tudo na vida dela mudou radicalmente, e o tempo parecia ser um item que não precisava ser observado. Estava mais uma vez em um aeroporto, acabara de desembarcar em Seattle e correu para apanhar um táxi. Não conseguia imaginar como suportaria os
quarenta minutos que a separavam de sua volta à casa de Josie. Só conseguia pensar no sorriso tímido dela, na noite anterior, durante a intensa troca de olhares que marcou o jantar, e sorrir sem se conter. Mordeu os lábios, observando a cidade pela janela. Sentiase estranhamente à vontade ali, mesmo sendo apenas sua segunda vez. – Kirsten! – Josie a abraçou com força, parecendo uma garotinha, quando a atriz apareceu à sua porta. – Oi... – disse ela, sem jeito. – Então? Meu Deus, você voltou muito rápido. – Não consegui ficar em Nova Iorque. – a mais nova falou, sorrindo e andando até o centro da sala. – Ainda bem... Kirsten se virou para encontrar os olhos de Josie e notou o quanto eles se pareciam com os seus. E não porque tinham o mesmo tom de verde esmeralda, mas porque transmitiam a mesma sensação: ansiedade e medo; um medo bom, se é que algum deles pode ser, um medo de se entregar ali, imediatamente, sem medir as conseqüências, sem pensar que poderia ser um erro, um passo largo demais que acabaria lhes derrubando. “Você descansou? – Não, odeio aviões. Josie se aproximou e a tomou pela mão, puxando Kirsten escada acima e comentando alguma coisa sobre nunca ter pensado que teria uma estrela de cinema na sua casa. Kirsten pediu que ela não pensasse naquilo e argumentou, coerentemente, que nem era mais atriz, o que desfazia o seu mito. Josie abriu a porta do quarto e deixou que Kirsten entrasse primeiro, apreensiva. – Quer alguma coisa? Tomou seu remédio? – Um pouco atrasado, mas sim. Josie tirou a colcha de cima da cama e afofou o travesseiro, tentando fugir do olhar de Kirsten porque não saberia como correspondê-lo. – Venha. – apontou para o travesseiro. – Há dois dias que você não dorme. Eu cuido de você. – ela sorriu. Kirsten sentou sobre o colchão e desamarrou seus tênis, deitando muito sem jeito, mas apreciando quando Josie livrou sua testa do cabelo loiro que a cobria, para então se inclinar e lhe dar um beijo. – Isso é muito estranho, você estava ansiosa para me ver, e agora eu chego aqui e vou dormir?
– Não vou sair do seu lado, Kirsten. E isso me basta. Kirsten adormeceu quase imediatamente, sentindo uma paz que já não conhecia mais. Não haveria mais pesadelos, dor, angústia para saber se ouviria o choro da mulher ao seu lado mais uma vez. O que ela sentiu foi uma plenitude que se parecia com a inocência das crianças que dormem de consciência limpa.
333 Kirsten acordou e viu Josie sentada na cama, lhe observando. Fechou os olhos de novo, ainda que com medo de então acordar de verdade, acordar de um sonho bom. – Descansou, meu bem? – Uhum. – ela sorriu, vendo Josie tomar a sua mão e beijar-lhe as costas, singelamente, várias vezes. – Quanto tempo eu dormi? – Hmm... – ela riu. – Cinco horas... – O QUÊ? Céus... – Calma, você precisava de repouso. – Mas – trouxe um lanche. Não sei o que você gosta, mas... Kirsten olhou para o móvel ao lado da cama, havia uma linda bandeja de café e ela achou muito estranho lembrar só naquele momento que, além de não ter dormido, também não tinha se alimentado. Josie lhe alcançou a bandeja e elas se sentaram, lado a lado, com as costas apoiadas na cabeceira. – Está tudo perfeito. – Pensei que você fizesse o tipo “famosa que só come macrobióticos” e aquelas coisas. Ela riu sem se conter. Mas lembrou, com tristeza disfarçada, que a enjoada com comida era, na verdade, Amanda. – Nada disso. Minha melhor amiga é cheff de cozinha, ela me obriga a experimentar tudo. – Você tem algum defeito, por acaso? – quis saber Josie. – Porque eu olho pra você e vejo tudo como eu sempre quis, e parece um presente que eu não mereço, na verdade.
– Sou viciada em doces. – admitiu Kirsten, sem constrangimento. – E em um seriado adolescente. – Qual? – O Vale. – Não!? – Que foi? – A-do-ro! Riram juntas. Kirsten se virou e ficou encarando a face cândida de Josie. Sentiu um desejo puro e urgente como não lembrava de ter sentido havia muito tempo. Deu-se conta de que já tinham tanto... mas nunca haviam trocado nenhum beijo. Preferiu quebrar o contato e olhou o quarto. Durante o seu sono Josie fizera uma mala e ela estava próxima da porta. – Então pensou no que eu disse? – Claro. Tudo o que eu queria agora, depois de vender a empresa, era sair dessa casa. – Podemos conversar direito se você quiser. – Por quê, Kirsten? Você ama Nova Iorque, será perfeito viajar do seu lado. Quem sabe você não muda de idéia sobre aviões? Ela sorriu. Afagou a nuca de Josie e ficou detida no aroma que emanava dos cabelos quase ruivos dela... fechou os olhos lembrando de seu sotaque e concluindo que Josie ainda ficava nervosa na sua presença. – Quando quer partir? – Assim que você achar que está bem. – Do seu lado tudo sempre será maravilhoso. Como se tivessem combinado, se abraçaram afetuosamente, mas não se beijaram, não nos lábios. Kirsten se levantou, lavou o rosto, espreguiçou-se, olhou-se no espelho e viu que era hora de encarar o seu destino. Teria tempo de descansar quando estivesse em casa, uma bela cobertura na quinta avenida, para a qual nunca se mudara porque gostava do sobrado; mas era sem dúvida a melhor propriedade que seu pai lhe deixara.
333
Amanhecia mais uma vez, e mais uma vez Kirsten estava embarcando em um avião. Cumprimentou a tripulação na entrada e foi acomodada na primeira classe, ao lado de Josie. Cada uma levava apenas uma bolsa como bagagem de mão, que uma comissária se prontificou a guardar, com sorrisos mais efusivos que o normal. Os outros passageiros ainda embarcavam quando a comissária voltou, trazendo consigo uma câmera digital e pedindo, muito nervosa, para tirar uma foto com Kirsten. A loira aceitou, Josie apanhou a câmera e foi a autora do clic. Kirsten deu ainda um autógrafo e depois disso outras duas comissárias apareceram, solicitando fotos. Kirsten aceitou de novo e notou com sincera surpresa que estava de ótimo humor naquele dia, ou teria recusado. Quando a primeira comissária voltou, trazendo os jornais do dia – os quais Josie solicitara – , Kirsten notou a aeromoça se inclinando na sua direção e sussurrando de maneira cúmplice: – Obrigada! Kirsten sorriu, mas não entendeu. Josie, que tinha ouvido, encarou-a com surpresa, depois balançou a cabeça e sorriu. – Então é assim? – Estranho, né? Acho que ela queria dizer alguma coisa que eu não entendi. Ainda comentavam o ocorrido quando um homem passou por elas, no corredor da aeronave, procurando sua poltrona. Quando reconheceu Kirsten, sorriu imediatamente e a loira notou que havia nele alguma semelhança com seu melhor amigo, Richard. O homem fez sinal de positivo para ela e desapareceu entre os outros passageiros. Nada daquilo havia acontecido nos demais vôos que Kirsten tomara, e não acontecia havia muito tempo, porque ela não saía de casa ou quando o fazia, estava disfarçada. Josie apanhou os jornais, olhando na verdade pela janela e, ao encarar a mulher ao seu lado, viu que Kirsten mirava o periódico, atônita. – Kirsten? Kirsten, você está branca... está tudo bem? Ela estava sem voz, tentando pensar em uma maneira de tirar o jornal das mãos de Josie antes que esta o abrisse, mas seria impossível fazê-lo sem despertar suspeitas. “Meu bem? Derrotada, Kirsten indicou o jornal e Josie finalmente deu atenção a ele. Havia uma grande foto na capa, que mostrava um sobrado em Upper East Side ao fundo, um táxi no primeiro plano e uma mulher de rosto devastado pela dor, deixando a casa com uma mala em cada uma das mãos e uma bolsa no ombro. A manchete mencionava Kirsten, mas levando em consideração as possibilidades, ela até julgou que fora amena.
– Não... isso não está acontecendo. Josie analisou melhor a capa e abriu o jornal, mas Kirsten pousou sua mão sobre ele, suplicante. – Não quer que eu leia? – É um direito seu, mas não na minha frente. – pediu Kirsten. – Tudo bem. – ela aguardou um instante. – Nunca saiu nada assim, tão descarado, na imprensa, não é? – Claro que não! Kirsten socou o braço da poltrona e se virou para a janela. Entendeu imediatamente: a comissária era lésbica e o homem que se parecia com Richard era gay. Era isso, por isso o olhar de orgulho. Achavam que ela tinha assumido. E só depois de pensar, por muito tempo, em todas as conseqüências que aquilo traria para a sua vida, Kirsten pensou em Amanda. Ficou tentando imaginar como seria o dia dela depois de ter o rosto estampado na capa do jornal de maior circulação dos Estados Unidos. Kirsten pelo menos só tivera o nome. – Então foi por isso que você não conseguiu ficar em Nova Iorque. – disse Josie, quando notou que Kirsten estava mais calma. – Eu iria te contar assim que chegasse. – Mon Dieu, você acabou de se separar! – Não, Josie, não. Amanda foi apenas buscar suas coisas, ontem. – Kirsten, eu não quero ser a responsável pela infelicidade dos outros. Kirsten sorriu, estendeu a mão e acariciou a face de Josie com candura. – Não se preocupe, meu bem. Eu já sou sua há muito tempo e até Amanda sabia disso. Foi uma conversa difícil, ontem, mas não houve brigas. Se choramos, foi por causa de lembranças. – Quem deixou quem? – Não é uma pergunta justa, Josie. – É sim. Susan lhe contou tudo sobre meu casamento com ela. Injusto seria eu não saber nada da sua vida. Kirsten suspirou cansada e voltou a olhar a janela, com o sol brilhando o horizonte longínquo, acima das nuvens, onde estavam. – Amanda foi meu primeiro amor, nos conhecemos no teatro, ela-
– eu sei muito bem quem ela é. Amanda Roberts. Nunca imaginei que... Quer dizer, já tinha lido comentários na internet, mas achei que fosse balela de fãs, querendo forçar alguma coisa, só porque vocês duas são as lésbicas mais famosas do momento. – Eu não me arriscaria a dizer tanto. – disse Kirsten, que por causa da proximidade, não conseguia compreender o alcance do crescimento da fama de Amanda no último ano. – Então são casadas mesmo? – Não somos mais, Josie. – Kirsten tentou controlar sua raiva. A coisa que mais detestava no mundo era ciúmes. – Moramos juntas por quatro anos. Nossa última briga séria foi depois do Oscar, há onze meses. Respondendo à sua pergunta... – Kirsten suspirou. – ela me deixou. – Por quê? – Porque eu nunca fui capaz de assumir que a amava sem me importar com a opinião dos outros. Josie não soube o que dizer. Ainda que sentisse ciúmes, a informação mais contundente que apreendera era sobre a personalidade da mulher por quem estava apaixonada. Havia, entretanto, a capa do jornal, que ela deixou de lado, atendendo ao pedido de Kirsten, mas tão logo apanhou outro exemplar, deparou-se com a mesma foto, e uma manchete semelhante. Kirsten também viu. Josie passou ao terceiro, ao quarto e ao quinto jornal... todos eles mencionavam o escândalo, e o último dava à separação um tom de espetáculo. O tom que Kirsten sempre temera. – Acho que vou apanhar meu livro, na bolsa. – disse Josie. Kirsten apanhou os jornais, sem dizer nada, e começou a ler, um por um, tudo o que diziam. Josie notou nisso a aprovação para que também lesse e agradeceu, estava muito curiosa. – Todos ao mesmo tempo, eu não entendo isso... tem coisas aqui que nem sonhava que alguém poderia saber. Sinto como se tivesse sido espionada por toda a minha vida. – Kirsten, você não achava que poderia esconder, achava? Era apenas um detalhe da sua biografia que ninguém comentava, mas todos sempre souberam. Só estavam esperando um escândalo envolvendo isso para dar vazão a todas as fotos e fatos que tinham. – Não é correto invadir desse jeito a vida de uma pessoa. – Você é pública, Kirsten. Tudo sobre você vira notícia. É um milagre que tenham te respeitado por tanto tempo. – Nada atenua o que fizeram agora!
– Você é mesmo pirada com essa coisa de fama, não é? Kirsten esmurrou as costas da poltrona da frente, sem se importar se estava ocupada ou não. Cobriu seu rosto com as mãos e começou a chorar. Viu tudo desmoronando em menos de um segundo... Voltou aos jornais, eles traziam tantas lembranças ao lado de Amanda... havia fotos do começo do namoro, os jantares depois das apresentações de sua ex-mulher ao redor do mundo, quando ainda era Christine, encontros reservados em restaurantes de Nova Iorque, viagens juntas, tudo. Tudo estava registrado desde sempre, e guardado muito bem pelo que ela só pôde imaginar como um acordo entre todos os veículos de imprensa. Uma carta na manga a ser usada no momento certo. Então Kirsten começou a pensar nas revistas, na televisão... se estava nos jornais, estaria em todos os lugares. Pensou na multidão de jornalistas que a estaria esperando no aeroporto, quando chegasse, e começou a entrar em pânico, suar frio, sentir sua boca seca. Josie lhe apertou a mão com força, mas não foi suficiente para afastar de Kirsten o pavor que ela sentia ao imaginar o que estariam dizendo, ao imaginar que os fãs e os críticos que a tinham um dia levado ao topo, torceriam o nariz para ela por causa de um maldito detalhe que não era da conta de ninguém.
(até o próximo capítulo) Voltar para o índice Dreams Come True escrita por Sara Lecter “Na maioria das vezes, quando você quer muito alguma coisa, ela acontece. Só que para alguns desafortunados a espera é tão longa que o momento já se foi. E então, de nada adianta ter mudado. E eu não sei o que é pior: se é nunca acontecer, ou se é acontecer na hora errada.” Sara Lecter – hehe.
Capítulo 35 – Dreams come true Amanda voltou ao hotel e bateu a porta de seu quarto, atirando-se na cama. Ligou a televisão em um canal de músicas e ficou ouvindo melodias tristes. Era como uma conspiração do universo para que tudo naquele dia lhe arrancasse lágrimas. Estava na primeira página de todos os jornais e não era por causa de um bom papel no teatro. Olhou para trás e lembrou de todas as vezes que desejara, em pranto silencioso, que seu casamento acabasse de uma vez. Agora estava livre de Kirsten, mas não se sentia nem um pouco aliviada. Não se sentia nem um pouco “livre”. Apanhou o celular e pensou em ligar para a loira, pois Kirsten ainda era a única pessoa no mundo capaz de consolá-la quando tudo estava desmoronando. Mas desistiu... Se ela estava tendo um dia terrível, Kirsten deveria estar ainda pior.
Não conseguia nem imaginar a reação dela ao saber que o romance se tornara público, que todos os seus pesadelos eram agora realidade e que, do dia para a noite, o mundo inteiro descobrira o que ela lutara durante anos para manter em segredo. Depois de reunir muita coragem para se levantar, Amanda foi até o mini bar e apanhou uma dose de uísque. Sorveu-a assim que rompeu o lacre da embalagem diminuta, sem gelo, sem nada. Correu a mão pelos cabelos negros e suspirou cansada. Foi até o banheiro, parou diante do espelho e encarou seus orbes escuros. Os olhos que haviam atraído Kirsten Howard... e agora não passavam de duas esferas tristes e umedecidas, talvez um pouco avermelhadas. Ligou a ducha, tirou a roupa e ficou sentindo a água lhe atingir a nuca com força, como se fosse uma massagem. Secou-se, continuou nua e voltou ao mini-bar, apanhando a segunda dose. Barbara havia ligado ainda de manhã, chamando-a para uma conversa, mas Amanda recusara o amparo da amiga. A Companhia anunciara imediatamente o cancelamento das apresentações de Amanda Roberts naquela semana, prometendo transferir os ingressos e ainda devolver o dinheiro das entradas, e Amanda agradeceu muito por aquilo. Não teria qualquer condição de trabalhar depois de uma tragédia pessoal, muito menos de enfrentar a pressão da mídia. Ela era agora a “ex-mulher de Kirsten Howard” e aquele título lhe pesava tanto quanto um cofre amarrado às suas costas. Amanda sabia que seu nome estaria atrelado ao de Kirsten para sempre, e amaldiçoou a si mesma porque sabia que tinha desejado isso muitas vezes, num canto escuro e muito bem disfarçado do seu ego. O que ela não queria era tê-la perdido. Arrependeu-se de toda a pressão que fizera, das brigas, de suas súplicas para que Kirsten parasse de se esconder, de esconder Amanda do mundo... nada daquilo surtira efeito e ela deveria ter parado muito antes. Nem Kirsten conseguira se esconder, nem Amanda teria agora o prazer de usufruir da liberdade de sair com ela para onde quisesse. – Alô? – ela atendeu o telefone que vibrava sobre a sua cama. – Lindinha, é o Richie. – Oi... – Bom, eu não vou nem perguntar, não tem como você não estar sabendo. – É... – Você está bem? – Não, né? – Como aconteceu? – Eu não sei! Eu não faço idéia, Richie. Eu não falei nada, juro. – Calma, lindinha.
– Kirs deve estar achando que eu deixei vazar, mas eu juro que – ela não está achando nada, Amanda. – ele usou um tom mais duro. Amanda respirou fundo quatro vezes antes de voltar a falar. – E como ela está? – Acho que você deve imaginar. Destruída. – Tenho ganas de matá-los, todos! Você viu? Você leu? – Considerando o que de pior poderia acontecer, acho que pegaram leve, lindinha. Na boa... – O nome da Kirsten ainda impõe respeito. – constatou Amanda. – É. Onde você está? – Num hotel. Tentei sair na rua, mas é impossível, tem um plantão de sangue-sugas no saguão. – Então vamos resolver pela internet. Você tem acesso aí? – Uhum. Que houve? – Você conhece a Kiki, o mundo pode estar desabando, mas ela tem sempre de pensar no que fazer. Amanda virou os olhos. Richard tinha absoluta razão sobre Kirsten e sua racionalidade e aquilo irritava tanto Amanda que ela poderia ter gritado de ódio naquele mesmo instante. – Eu posso ajudar? – Ela vai publicar uma nota à imprensa. Acho que isso pode ser bom para resguardar o nome das duas. – Vai negar? Richie, é impossível, depois de todas as fotos. Até aquela do leilão foi parar no canal 14, você viu? – Ela vai falar do casamento, Amanda. Pediu que eu discutisse com você os termos da nota, para que assinem juntas. A atriz estava completamente sem palavras. Richard aguardou pacientemente do outro lado da linha. – E quais são os termos? – foi a única coisa que lhe ocorreu perguntar. – Em resumo, lindinha, a verdade: que a separação foi amigável.
– Vai assumir a homossexualidade, então? – Vai assumir que foi casada com você. Não haverá nenhum termo que remeta à orientação sexual, até porque isso é dispensável. Se pensar com calma, lindinha, verá que o melhor a se fazer. Nós discutimos por horas, até ela se acalmar. – Ela está bem? – Amanda perguntou muito rápido. – Tomou um sedativo há duas horas. – Onde... onde ela está? Onde vocês estão? Eu posso ir praí? – Ela está dormindo, lindinha. Amanda notou que Richard estava escondendo alguma coisa, mas não quis insistir, apesar de ter ficado muito preocupada. – Então vamos focalizar a atenção no casamento, é isso? Quer dizer... na separação? – Isso. E desviar os outros comentários. – Tudo bem. Vou dar um jeito de arrumar um computador. Ate breve, Richie. E obrigada. – Até breve, lindinha. E fica bem... isso tudo vai passar. Com o telefone na mão, Amanda não conseguiu concordar, nem por educação. Desligou a chamada e se sentou na cama, incapaz de reagir. “Felizmente não descobriram que eu a traí” pensou ela, voltando a chorar. “Não ainda...”. Apanhou o telefone, tremendo, e ligou para Richard. – Richie... Richie, por favor, peça para ela esperar. – Lindinha? – Eu não quero assinar nenhuma nota, Richie. Eu sei o que eu fiz, sei que é terrível, mas talvez... talvez tenha volta. Kirsten e eu nem conversamos sobre isso. Ela ouviu um suspiro decepcionado do outro lado da linha e notou que o seu coração parara de bater. – Amanda, não sou eu quem tem de dizer isso a ela. Só que... A Kiki não vai querer te ver tão cedo. Conversamos depois. Amanda deixou o aparelho escorregar entre seus dedos e seu corpo desabou, de volta à cama. Fechou os olhos, na esperança vã de desaparecer, simplesmente desaparecer da face da Terra. Naturalmente, não deu certo.
333 Algumas horas antes, no aeroporto: Kirsten desembarcou e solicitou à segurança do aeroporto que fosse retirada do desembarque por uma saída alternativa, ao que foi atendida imediatamente, uma vez que a própria administração do terminal já não sabia como conter a multidão de curiosos e jornalistas que se aglomerava na saída, misteriosamente sabendo que vôo ela tinha tomado e a hora em que chegaria. Ela viu, por uma janela de vidro, um grupo carregando bandeiras com o símbolo do orgulho gay, e sentiu algo desconhecido ao perceber que este grupo conseguia ser maior que o de jornalistas. Havia, entretanto, um grupo religioso com cartazes e expressões nada amenas, que se empurrava para ganhar espaço entre os outros. O cenário não era nada amistoso. – Sente-se um pouco. – disse Josie. – Você ainda está tremendo. – Pensa, Kirsten, pensa! – disse ela, para si mesma, embora não estivesse alheia aos cuidados de Josie. – Vamos resolver tudo, daqui a pouco estaremos na sua casa, longe dessa maluquice. Ela respirou profundamente, fechou os olhos, curvou a cabeça e forçou sua memória o máximo que pôde. “Pensa, Kirsten, pensa” repetia para si mesma, mentalmente. – Um telefone. – disse, subitamente. – Seu celular está no bolso. – Não, uma linha fixa. – disse ela, levantando-se e andando até a mesa de segurança. – Posso? – Claro. – disse o agente. Kirsten ligou para um produtor de Hollywood, apreensiva. Tinham boa relação porque ele fora seu sócio, antes de ela vender o negócio para Vittorio, em troca da chance de entrar no Red Carpet ao lado de Amanda. Assim que começou a conversa, que prometia ser rápida, tirou do bolso o próprio celular e anotou um número dado por seu interlocutor. Agradeceu, rui de algo que ele disse e desligou. Josie se aproximou e afagou seu ombro, Kirsten sorriu para ela, tentando demonstrar que estava mais calma, embora não estivesse. Discou o número que havia anotado e aguardou. – Senador? É Kirsten Howard, a atriz, nos conhecemos há um ano e meio. Como vai? – Creio que melhor que você, senhorita Howard. Acabam de entregar o jornal no meu gabinete. Acho que se lembra que no nosso encontro eu lhe entreguei um projeto.
– Lembro. Li mais de dez vezes, na verdade, ao longo dos últimos meses. – Mesmo? – Acha que pode falar sobre isso? – Podemos nos encontrar? – Claro, claro, certamente que vamos, mas hoje eu estou um pouco impossibilitada de ir até Washington. De ir a qualquer lugar, na verdade. – Onde você está? – Presa no John Kennedy. – Malditos jornalistas. – Não vieram sozinhos. – Era de se esperar... O que achou do projeto, então? – Ótimo. Só não entendi porque ainda está engavetado, Senador. – Até onde eu lembro, foi uma cláusula no seu contrato que impediu de usarmos seu filme para a nossa causa. – Arte é arte, Senador. Não teria sido conveniente. Você não pode atrelar ficção e personagens a uma ideologia. Acredite em mim, não daria certo. – Política é mais um dos seus talentos, senhorita Howard? – Não. Sem dúvida que não. – ela disse, convicta, embora tenha notado na respiração do outro lado da linha que o Senador não acreditava. – Você saiu dos holofotes, menina. – Por um ano, sim. Mas é agora que serei testada de verdade. Você arrisca um palpite, Senador? – É um caso sem precedentes. Você não assumiu, você foi descoberta. – Eu não tenho que assumir nada, este é todo o erro. Eu vivi um casamento e ele naufragou, e isso é tudo que me aconteceu. – Um casamento com outra mulher, e é nisso que as pessoas estão pensando. – Porque estão erradas. Mesmo as que pensam em fazer de mim um símbolo gay, Senador. Nós não precisamos de símbolos, porque não somos diferentes de ninguém.
– Vejo que não poderei contar com você a frente da minha campanha para o projeto, então. – lamentou ele. – Não, Senador. Mas eu posso estar por trás dela. Eu não posso ser um alvo, mas teria grande prazer se o mito que cerca o meu nome servisse de flecha. Tenha um bom dia. Eu ligo mais tarde. Kirsten viu seu próprio reflexo no vidro da parede da sala de segurança. Amanda tinha razão, havia no fundo dos seus olhos um brilho de quem poderia mudar o mundo. E naquele momento, mesmo que seus nervos a consumissem, Kirsten achou, pela primeira vez, que poderia ser essa pessoa, que esse era o seu destino.
(até o próximo capítulo)
Voltar para o índice Madrugada escrita por Sara Lecter “Quero te ver enquanto não é dia. Hoje sinto mais aflição. Sinto saudade e solidão. Das coisas que eu escolhi... E das coisas que deixei passar e que vem e vão. Já senti necessidade de te ter ao meu lado. Hoje não mais. Ontem Pensei duas vezes antes de respirar. Hoje eu já respiro aliviada. Pois sei que é só encucação. Saudade eu sinto do toque da pele. O gosto do beijo. O jeito de olhar... O ruído do sorriso. Sentimentos que vem e vão. Para onde? Eu não sei. Não gostaria de saber”. Janine Pozes, em seu blog Aprendendo a Escrever.
Capítulo 36 – Madrugada
Kirsten olhou para seu apartamento tão surpresa quanto Josie, a qual trazia pela mão. Deixara alguém responsável por tornar o lugar habitável, pois não tivera qualquer oportunidade de cuidar desses detalhes, e sorriu satisfeita com o resultado. – Sinta-se livre desde já para opinar. – disse Kirsten. – Essa vai ser a nossa casa, eu quero que você faça dela um lar. – Tudo bem. – a francesa respondeu. – Mas... não quero pensar nisso agora. – Cansada? – Ansiosa. – ela respondeu rapidamente. Kirsten a conduziu até o quarto, denotando estar muito mais segura do que realmente estava. Só estivera naquele apartamento por uma hora, antes de seguir para Los Angeles e descobrir que Josie estava viva. “A vista é perfeita, meu bem. – disse Josie, olhando pela janela. – É Manhattan, é claro que é perfeita! Josie riu e a abraçou pela cintura, procurando seus olhos. Kirsten não fez qualquer objeção, e pousou suas mãos nos ombros de Josie, delicadamente. – Eu acho que já esperamos tempo demais por isso... – a voz de Josie saiu em um tom quase sussurrado. – Eu amargaria de novo cada segundo dessa busca. – Kirsten se inclinou para beijar os lábios de Josie rapidamente e voltou a se afastar. – Se tivesse certeza que você estaria nos meus braços, agora. Não disseram mais nada. Nenhuma frase, em qualquer idioma, traduziria o que estavam sentindo. Josie tirou a mão que repousava no quadril de Kirsten e a levou até o seu rosto, acariciando-o demoradamente. As testas se encontraram com delicadeza, e depois de uma troca intensa de olhares, ambas fecharam suas pálpebras bem devagar, e o que viram não foi escuridão, mas um eco do brilho que haviam encontrado nos olhos uma da outra. Seus corações batiam em um compasso semelhante e os lábios se buscaram naturalmente. Josie deixou sua mão correr pela pele do rosto de Kirsten e alcançou sua nuca, delicadamente puxando-a e aprofundando o beijo. A atriz correspondeu algum tempo depois, permitindo que a língua da outra avançasse entre os seus lábios e tomasse conta de sua boca, o que Josie fazia com delicadeza, mas certa urgência. Kirsten afagoua nas costas, na nuca, por baixo dos cabelos, voltou às costas e envolveu todo o corpo de Josie em um abraço cada vez mais apertado; foi a sua vez de avançar, de conduzir o beijo, de tomar a boca de Josie como se ela fosse a sua única fonte de felicidade. A outra mão de Josie subiu para o ombro de Kirsten, enquanto esta alcançou a pele de Josie, na porção que o conjunto de calça jeans e blusa deixava à
mostra. Tocou-lhe abaixo do umbigo e depois foi subindo, vagarosamente, por baixo do fino tecido, deixando suas mãos sentirem cada detalhe da pele de Josie, aproveitando ao máximo o ineditismo irrepetível daquela oportunidade. Com os olhos fechados, deixou que o tato lhe guiasse. Josie já lhe tirava a blusa e Kirsten não resistiu de modo algum, pelo contrário, voltou a procurar os lábios de Josie imediatamente, na ânsia de mostrar o quanto a desejava, mas assim que as bocas se encontraram novamente, Josie empurrou Kirsten pelos ombros e ela caiu de costas sobre a cama, imediatamente percebendo que não era a mais ansiosa das duas. Despiram-se entre carícias e beijos que com o tempo se tornaram menos longos, mas nem por isso, menos saborosos. Kirsten notou sua respiração alterada enquanto a mão de Josie subia sorrateiramente entre as suas coxas, acariciando a sua pele enquanto seus beijos se concentravam no pescoço da atriz, que deixou escapar um gemido um pouco mais audível quando Josie começou a tocá-la. – Você não sabe o que é passar um ano inteiro desejando uma coisa que achei que nunca fosse acontecer... – sussurrou Josie, ao ouvido da outra. – Eu... – Kirsten mordeu os lábios quando a carícia de Josie se tornou mais acelerada. – sei... muito... bem... Eu quis tanto você, tanto! – Ah é? – Você não faz idéia. – Mesmo? As provocações de Josie estavam acabando com a paciência de Kirsten, que tentava de todas as formas demonstrar o que queria, mas no fundo sabia que Josie não tinha qualquer dúvida e estava apenas lhe deixando mais ansiosa, meticulosamente. – Josie... – Hum? Kirsten puxou-a pela nuca e exigiu um beijo intenso, ao qual ambas se entregaram sem qualquer pudor. Josie deixou que seus dedos escorregassem alguns milímetros e viu a face desejosa de Kirsten se transformar em um sorriso satisfeito quando começou a penetrá-la, sem qualquer pressa, pois além de causar prazer, ou mesmo para consegui-lo, tinha de primeiro conhecer o corpo de sua amante e ele lhe era completamente novo. Com esforço para não demonstrar qualquer reação, Kirsten afastou de sua mente um pensamento indesejado, uma lembrança incômoda de que há anos não transava com qualquer mulher que não fosse Amanda, e que inevitavelmente acabaria fazendo comparações. À exceção de encontros furtivos na adolescência e no começo da carreira, que se contabilizados não demandariam todos os dedos de uma única mão, tudo o que Kirsten conhecia sobre sexo vinha de seu casamento, vinha de sua relação com Amanda, que por ter sido muito íntima lhe dava naquele momento a impressão de ter durado muito mais do que realmente durou.
“Tudo bem? – questionou Josie. – Claro. Com a afirmativa de Kirsten, Josie acelerou seu movimento e notou o efeito imediato na outra, que apertou os olhos e tateou a cama à procura de um travesseiro ou de qualquer coisa que pudesse apertar com força, de modo a não machucar a pele delicada de Josie. – Se você não quiser continuar, tudo bem... Kirsten deixou todo o ar que mantinha preso em seus pulmões escapar de uma vez só, não sabendo se aquilo era um riso, uma súplica ou uma demonstração de raiva – que nesse caso seria de si mesma. – Eu quero... muito. Josie obedeceu, continuando com suas brincadeiras e provocações, o tempo todo testando Kirsten, fazendo-a exigir o que quisesse e sempre encontrando um motivo para ouvir que ela queria realmente fazer aquilo, e o quanto queria. Por um momento ocorreu à atriz que aquilo era uma falsa demonstração de segurança, que mascarava exatamente o contrário: o medo de Josie de ser a única ali a estar entregue.
333 Amanda pagou sua conta e deixou o bar. Recebera tantos olhares indecifráveis naquela noite que chegou a pensar que não poderia mais sair de seu quarto de hotel, mas tampouco conseguia ficar nele. O que sentiu, ao ganhar as ruas de Nova Iorque, foi que pertencia àquele lugar, à calçada. Tinha tantos lugares para onde ir, cogitou ligar para Barbara, para Gail, para Richard, e depois se deu conta de que não fazia qualquer sentido acordá-los no meio da madrugada. O que diria? Que estava bêbada e não agüentava mais ficar sozinha olhando televisão? Que tinha tentado ir para um bar, depois para o outro, e no terceiro se dera conta que não era o olhar das pessoas, mas sua própria consciência lhe acusando? Que estava se lixando para todos aqueles estranhos e a única reação que realmente conseguia provocar alguma coisa nela era a de Kirsten? Que nada fazia diferença a não ser o fato de ter perdido a mulher da sua vida? Andou sozinha até se perder, até não ter qualquer idéia de onde estava e esquecer até mesmo de onde tinha saído. Havia prédios e luzes, mas o que ela via era somente escuridão, e não se surpreenderia se começasse a garoar, então olhou para o céu na esperança de que algo pudesse lavar sua alma, ainda que fosse apenas uma chuva. Uma chuva que não veio. Carros passavam por ela em grande velocidade, mas Amanda não lhes discernia nem mesmo a cor, eram apenas borrões disformes, como a voz que ela ouviu, chamando por alguém. Acelerou seus passos, a voz continuou, até que alguém reteve seu braço e ela foi obrigada a se virar. O homem usava um gorro e roupas escuras, Amanda não conseguiu ver seu rosto, ou nem tentou.
– Quer alguma coisa? – ele perguntou. – Como? – Quer alguma coisa? Eu tenho... – ele mexeu no bolso e ela entendeu rapidamente. – Eu... não, não. – O que veio fazer aqui, então? Essas ruas não são seguras para uma garota sozinha. “Nenhum lugar do mundo é seguro para mim, agora” ela pensou, mas apenas balançou a cabeça afirmativamente. – O que você tem? Não tenho muito dinheiro. – Quanto você tem? Amanda tirou os dólares do bolso de trás da calça, lembrando por um instante que ainda tinha mais algum dinheiro em outro bolso e que este lhe garantiria, com folga, um táxi. – Isso. – mostrou o troco do terceiro bar. Rapidamente o homem apanhou o dinheiro e no mesmo movimento depositou um papelote que ela envolveu com seus dedos, instintivamente. Tão repentinamente quanto aparecera, o homem sumiu entre as sombras e provavelmente voltou ao beco de onde tinha de ter saído. Amanda não olhou para o que tinha nas mãos, enfiou no bolso, andou mais uma quadra e parou um táxi. Quando chegou ao hotel manteve todas as luzes do quarto apagadas e ligou a TV. Tirou o casaco, olhou-se no espelho, lavou as mãos e notou o que poderia ser uma espinha se formando em sua testa, mas não deu muita atenção a ela. Ligou a ducha e saiu do banheiro, apanhando o controle remoto. Sentou-se na cama, mas imediatamente se levantou, tirando tudo o que tinha nos bolsos. O barulho da ducha abafou os gritos de sua mente, ela andou até o mini-bar e, satisfeita por este ter sido reabastecido na sua ausência, apanhou mais uma dose de álcool e virou de uma vez só, como se precisasse de coragem. Mas para o que ela decidira fazer, sabia, no fundo, que tinha na verdade cedido a sua covardia. Então, por três horas que passaram voando, até depois que o sol nasceu, o fim do casamento parecia não lhe machucar mais, ainda que fosse tão recente. Por três horas ela se julgou capaz de reconstruir sua vida num estalar de dedos. Por três horas, Amanda lembrou que era uma grande atriz e vislumbrou um futuro brilhante para a sua carreira. Por três horas ela pensou em todos os seus amigos e no quanto era feliz ao lado deles. Mas quando as três horas passaram e ela se enfiou embaixo do chuveiro – sem tirar qualquer peça de roupa – tudo estava no mesmo lugar, e as paredes a sua
volta não paravam de girar, lhe dando náuseas, tontura, um incômodo terrível que não passava. Havia chegado exausta ao hotel, e já não tinha mais sono. O sol brilhava lá fora e ela, encharcada, sentada na cama, olhando a TV sem prestar atenção, percebeu que sua vontade de fazer tudo não era mais forte que sua certeza de que era completamente impotente diante dos fatos. Amanda se recusara a assinar a nota à imprensa e Kirsten desistira, então, de se manifestar. Deixariam as coisas como estavam... e como elas estavam era uma coisa que Amanda não sabia definir. Mais do que isso, acreditava que nunca conseguiria se adaptar.
(até o próximo capítulo)
Voltar para o índice A Desculpa do Silêncio escrita por Sara Lecter
“O silêncio é uma forma de discurso que carrega a sua própria mensagem.”
Capítulo 37 – A Desculpa do Silêncio Richard saiu do quarto com um sorriso no rosto apesar do sono e do cansaço. Começou a fazer café e quando deu por si estava assoviando. Recebeu um abraço por trás e fechou os olhos, sorrindo abertamente. Inclinou a cabeça sobre o ombro de Derek e deixou que ele lhe afagasse o tórax carinhosamente. – Você tem mais algum segredo? – Como assim? – Richard não entendera. – Bem, no começo da semana eu descobri que a sua melhor amiga misteriosa é Kirsten Howard... – Derek o puxou pelos ombros, fazendo com que se virasse. – e esta noite eu pude finalmente ter certeza de que você é um amante maravilhoso. Richard não sabia o que dizer, então beijou Derek com ternura. Havia protelado aquela primeira noite o quanto pudera, pois andara se decepcionando bastante com os últimos homens com quem saíra. Todo o escândalo envolvendo Kirsten acabara aproximando os dois porque Derek estava lá quando ela chegou, pedindo sua ajuda.
Derek deixou Richard com o café e apanhou o jornal do dia. Entre algumas leituras e meras passagens de olhos, ocupou-se com o editorial. Debra apareceu na cozinha quando Richard terminava de passar geléia em algumas torradas e aceitou uma caneca de café com leite. – Bom dia, Derek. – sorriu ela, que fizera questão de dizer a Richard, depois de conhecê-lo, que era o homem mais lindo que ela já tinha visto. – Novidades? – ela apontou para o jornal. Os três sabiam que ela se referia ao escândalo Howard-Roberts. – Nada, ainda. – Um dia eles esquecem. – comentou ela, distraída em apanhar um bolo na geladeira. – E Enrico? – quis saber Richard. – Ah, aquele cretino. Espero que esteja descansando em paz. Richard e Derek trocaram um olhar divertido de quem sabia que Debra e seu noivo fariam as pazes em seguida e não havia qualquer motivo para preocupações. – Liguei para Amanda ontem à noite. – disse Richard, para quebrar o silêncio. – Como ela está? – Não atendeu... deixei recado e ela não retornou. – Três noites seguidas, então? – concluiu Derek. Debra se sentou à mesa e sorveu seu café. Tinha o rosto cansado de quem passara a noite toda discutindo ao telefone, e chorando até quase de manhã. – Que acharam da Josie, afinal de contas? Até então, nem Richard nem Debra tinham ousado tocar no assunto. Só se falava na reação de Kirsten ao escândalo e no sumiço de Amanda, mas Josie ficara em suspenso. – Bom, eu não conheci Amanda, não posso dizer nada. – esquivou-se Derek. – Eu prefiro evitar comparações. – disse Richard, encarando a amiga. – Hmm. Pois eu gostei dela. – Debra apanhou uma fatia de bolo. – Madura, sensata, calma... Richard riu.
– A Kiki nunca teve saco para os ataques da Amanda, né? – Olha, não quero me afastar dela, não mesmo. Mas o casamento estava no fim há tanto tempo... – comentou Debra. – Você consegue se lembrar da última vez que as vimos felizes, Richie, juntas? Ele pensou por um bom tempo. – Não, eu não consigo, Debby. E pensar que elas pareciam feitas uma para a outra. – Pelo menos dessa vez não teremos trabalho em arranjar alguém para ela, Kiki fez isso s – olha isso aqui! – Derek interrompeu a fala do namorado. – Desculpe, querido, é que... – Tudo bem. Leia... – Chama-se „O fim do Armário‟. “ Alguns leitores manifestaram extremadas opiniões sobre o episódio Howard-Roberts e até mesmo programas de televisão têm acusado a imprensa escrita de colocar panos quentes sobre o que aconteceu. Notável como algumas pessoas ainda não entenderam que não somos mais o país dos grandes escândalos e que há muito mais com que se preocupar do que o fim do casamento entre duas pessoas famosas”. – Derek encarou o namorado e Debra. – Aqui ele começa a falar sobre política e uma porção de coisas nas quais a população deveria prestar mais atenção. – Mas e aí? – Espere, ele volta ao assunto no final: “Alguém realmente acredita que Kirsten ficou em silêncio porque se envergonha? Já pensaram que essa é uma hipótese tão mais improvável do que a de que ela apenas está sofrendo o fim do casamento? Ninguém deve culpá-la por nunca ter assumido , isso seria admitir que é diferente em alguma coisa e ela não é; gays não são. Se as pessoas pretendem aprender alguma coisa com todo esse circo, que seja isso. Nossa sociedade não precisa mais de armários. E, definitivamente, não precisa de líderes espirituais como o Bispo de Nova Iorque. Para quem não sabe, ele chamou Kirsten Howard de emissária do demônio, num acirramento de críticas que já havia feito quando ela lançou seu último filme. Oras, ele não é um dos principais porta-vozes de uma Igreja que prega, acima de qualquer coisa, o amor ao próximo e a tolerância? Que tipo de tolerância é essa de promover uma nova caça às Bruxas? Que tipo de amor é esse a uma próxima que sempre tomou o cuidado de não se expor justamente para preservar os fãs que, sabia ela, poderiam não entender completamente as suas escolhas? Já passa da hora de discutir o assunto sem medos em sem tabus. Alguns supuseram que as notícias sobre Kirsten Howard e sobre Amanda Roberts, duas atrizes que estão entre as mais talentosas de sua geração, ocasionariam um movimento em massa de outras figuras públ icas „saindo do armário‟. Felizmente isso não aconteceu; os homossexuais não precisam mais de um rosto e de uma bandeira, não precisam de uma causa própria. Nós é que precisamos parar de cobrar deles o que o resto da sociedade teima em não enxergar: ricos e pobres, negros,
brancos e latinos, homens e mulheres, americanos e imigrantes, gays e heterossexuais... somos todos a mesma coisa, todos seres humanos , e como prefere a Igreja, somos todos filhos de Deus”. Debra sentiu uma vontade quase incontrolável de se levantar e aplaudir, assim que Derek terminou a leitura. Olhou nos olhos de seu melhor amigo e viu que Richard sentia a mesma coisa, um misto de orgulho e esperança. Aquele editorial pertencia ao principal jornal do país e isso era um avanço considerável frente as dificuldades que eles vivenciavam todos os dias. Não era uma mudança concreta, mas poderia significar o começo dela. Milhões de pessoas eram influenciadas por aquelas páginas, e se não quisessem mudar de opinião – o que era o seu direito – , poderiam pelo menos começar a pensar no assunto. E Richard tinha certeza absoluta que esse era o passo principal: quebrar o gelo daquele silêncio... um silêncio social, mas também um silêncio íntimo, como o de famílias iguais aquela na qual ele tinha crescido, que preferiam nunca se manifestar achando, equivocadamente, que aquilo dava aos seus filhos a noção de aceitação que eles sempre precisaram. Fora Amanda quem lhe colocara aquelas idéias na cabeça, quando falara sobre seus pais a terem expulsado de casa. Muitas vezes a discordância era, pelo menos, um sinal de que pensavam no assunto e de que tinham opinião. Ainda que esta opinião não fosse a que eles desejavam, era infinitamente melhor do que o maldito silêncio, que para a atriz nada mais era do que covardia e fazia mais mal do que qualquer outra postura. – E você? – Richard dirigiu a pergunta ao novo namorado, depois de discutirem rapidamente o assunto com Debra. – Isso me atormentou tanto... – disse ele, com uma expressão que se tornara triste. – Na adolescência eu tinha medo, eu me escondia de todas as formas, eu tentava me enquadrar , eu fazia o papel de um filho que qualquer pai queria ter. No começo eu fazia o tipo desencanado que não queria compromisso com garotas e isso assegurou um considerável atraso nas perguntas sobre quando apresentaria uma namorada em um jantar ou coisa do tipo. E com o tempo, também, as perguntas foram desaparecendo e a cara deles foi ficando cada vez mais amarela quando uma tia ou qualquer amigo deles fazia a maldita pergunta. Você quer saber se eles sabem? Eu nunca contei, nunca disse abertamente: “pai, mãe... eu sou gay!”. Nunca disse porque nunca houve espaço para isso lá em casa. Acho que o silêncio é o modo que eles encontraram de me dizer que não se importam tanto assim, ou já teriam feito alguma coisa. – Vocês são felizes assim? – Debra perguntou. Derek pensou por algum tempo. – Nem eu e nem eles. Nunca completamente. Richard largou sua torrada e o abraçou carinhosamente. Depois de alguns segundos Debra se levantou e se juntou ao abraço, beijando o topo da cabeça de seus dois amigos, afagando-os. Choraram os três, não sabendo definir se era tristeza por tantos anos de angústias mascaradas, de orgulho ferido e de liberdades negadas – Debra
era hétero, mas acompanhara Richard e Kirsten tão de perto que se sentia tão ameaçada quanto eles por demonstrações de homofobia – ; ou se era um choro de felicidade, de esperança de que o mundo pudesse se tornar um lugar melhor, de alguma forma.
(até o próximo capítulo)
Voltar para o índice Verdades e Fingimentos escrita por Sara Lecter
“Se você encontrou outra pessoa, se foi esse o motivo, não me diga, não me conte, que não quero saber. Ainda que a curiosidade venha a me consumir, ainda que eu possa transformar a sua vida em um inferno por demonstrar com ódio todo amor que sempre vou sentir, não me deixe saber, porque eu não posso... eu não agüentaria, seria como te perder mil vezes de novo. Não consigo me sentir mal por saber que prefiro a sua morte a isso. Meu amor não é correto, não é caridoso nem deseja acima de tudo o bem da pessoa amada; o meu amor é egoísta, o meu amor é daqueles irracionais, como são todos os amores verdadeiros e imortais.”
Capítulo 38 – Verdades e Fingimentos As semanas passaram rápido demais, na corriqueira conclusão de Debra. Derek se tornou figura indispensável nos jantares dos amigos e, depois da última briga – e das pazes – , a cheff acabou se mudando definitivamente para a casa de Enrico, seu noivo, outro que estava sempre presente. Depois do primeiro editorial pós-escândalo Howard-Roberts, o cenário tinha mudado drasticamente. Por aqueles dias era difícil afirmar que houvesse um lugar, programa ou família que não tivesse abrigado discussões sobre tolerância, direitos civis, e, especialmente, homossexualidade. Ao andar pelo restaurante, numa noite de quintafeira, Debra entreouviu dois empresários discutindo alguma coisa em alto e bom som, com termos nem um pouco polidos e manifestando sua discordância e incredulidade frente à possibilidade de uma pessoa se apaixonar por alguém do mesmo sexo. Contou o que viu aos amigos e a coisa mais interessante, e estranha, que ouviu foi de Amanda: “pelo menos estavam discutindo e não fingindo que isso não existe, como faz a maioria”. Começou com uma seleta camada da população, letrada, politizada, acostumada a prestar atenção em jornais e programas de debate. Com o tempo foi ganhando a imprensa mais “popular” e o fenômeno aos poucos chegava a casa de cada americano. Richard comentou, sabiamente, que a grande prova de que o assunto era
uma espécie de “epidemia nacional” se deu quando várias autoridades de diversas religiões decidiram firmar um acordo de ajuda mútua na luta contra o efeito. Mas essa força tarefa não teve mais sucesso que o outro lado, porque entrar na briga consistia, justamente, em participar da discussão. – Vai ser um duelo de gigantes. – disse Amanda, apanhando um copo d‟água na geladeira, enquanto Richard e Debra estavam sentados ao redor da mesa da cozinha. – Algumas religiões são tolerantes. – comentou Richard. – Muitas igrejas foram criadas como dissidências idênticas a congregação de origem, mas com membros gays. Um fenômeno bem interessante. – Isso é misturar duas coisas tão... – Debra não tinha palavras. – Alguns gays realmente são religiosos. – devolveu Amanda. – E não se pode criticá-los, nem pré julgá-los. – Eu só não sei como eles lidam com a questão da culpa e do pecado. – disse Richard. – Vocês sabem bem que eu fui criado dentro de uma Igreja Cristã e sei muito bem o que a Bíblia diz sobre pessoas como nós. E isso me atormentou muito, no começo. – Acreditar em um deus é um direito, Richie. – comentou Amanda, sorvendo o segundo copo de água. – Longe de mim pregar o ateísmo só porque eu não acredito. Até onde eu sei, quem pratica confia no amor de Deus sobre todas as coisas, até mesmo sobre a sua homossexualidade. E de resto são ótimos fiéis. – Eu não conheço nenhum gay ou lésbica que seja convertido. – disse Debra. – Oras, a Jos... – Richard ficou vermelho, depois branco, depois se deu conta de que não havia remédio para o seu lapso, sobretudo quando Amanda o encarou, curiosa. – Quem? Ele procurou o olhar de Debra desesperadamente, mas sua amiga parecia não ter tido nenhuma idéia brilhante. Depois de gaguejar por alguns segundos, Richard completou. – Josie. Conhecida nossa. Como estava ocupada com seu terceiro copo de água, Amanda achou por bem deixar o comentário de lado, ainda que tenha percebido que havia algo estranho naquela cozinha. Não sabia precisar se Richard havia se encabulado porque aquele era o nome da última personagem de Kirsten ou se a tal conhecida era alguém que ela não poderia saber quem era, pelo motivo que fosse. Richard agradeceu imensamente quando
o interfone tocou e Debra rapidamente mudou de assunto, mas o que os dois não sabiam, até a fala do porteiro, era que as coisas só poderiam piorar. – Deixa, eu abro a porta. – ofereceu-se Amanda. – Afinal, será a primeira vez que farei isso como moradora da casa, não é? – ela sorriu. – Lindinha, não. Ela finalmente decidiu parar de ignorar que alguma coisa estava muito errada ali. – „tá... – suspirou, derrotada. – É a Kirsten, não é? – É... – disse Richard, muito devagar. – E ela ainda não sabe que eu „to morando aqui... – Não... – ele disse vagarosamente, de novo. – Olha, eu não me importo. Mesmo. Não somos duas crianças e quem sabe seja até melhor que esse primeiro encontro seja com vocês, assim vai ser mais fácil. Debra e Richard se viram incapazes de dizer qualquer coisa, de reagir de alguma maneira. Amanda os ficou encarando com a mão na cintura, a meio caminho da sala. “Preferem que eu saia, é isso? Tudo bem, eu vou pelos fundos. – Não! – disse Richard. – Isso seria um absurdo. Claro que não. – Richie, já tava mais do que na hora. Eu vou abrir a porta. – Debra se levantou. Amanda aguardou alguns instantes, acompanhou Richard até a sala, atrás de Debra, e perguntou, como que para se certificar: – “Mais do que na hora” de quê? A resposta veio com a porta aberta e o sorriso de Kirsten, que imediatamente se transformou em uma expressão gélida que vagava entre o susto, o descontrole, o pavor, o arrependimento e talvez uma pontinha de orgulho refeito. – Como vai, Debra? – cumprimentou Josie, alheia à figura petrificada de Amanda no meio da sala. – Muito bem, e você? – ela sorriu, nervosa.
Richard se adiantou e também cumprimentou Josie, polidamente, e só então a francesa percebeu Amanda. E a reconheceu imediatamente. Kirsten interrompeu o que seria um silêncio profundamente constrangedor para todos. – Amanda... – Kirsten tentou sorrir, mas uma fração de segundo bastou para notar que só conseguira que sua voz se projetasse ainda mais cínica. A morena não respondeu. Parecia ter a mente presa em algum outro lugar, quem sabe um universo paralelo que ela mesma acabara de criar para não ter de viver em um mundo onde Kirsten tinha outra mulher. – Kiki, como a Debby „ta praticamente casada com o Enrico, Amanda veio pra cá. – disse Richard, sem conseguir se sentir descontraído como queria. – Desculpe... – Amanda meneou a cabeça rapidamente, voltando a si. – Tudo bem, Kirs? – Uhum. E você? Richie e Debby me contaram que voltou aos palcos e... eu tinha visto no jornal. – É... Não se abraçaram. Não estenderam as mãos. Ainda que pudessem fingir com palavras, seus corpos não estavam prontos. Kirsten apanhou a namorada pela mão, enquanto Richard e Debra já tomavam o caminho dos sofás. – Josie Duschamps. – apresentou Kirsten. Amanda acenou, conseguiu fazer brotar um maldito sorriso simpático e no meio do raciocínio que consistia basicamente em “dez segundos depois de te conhecer você já a pessoa que mais odeio na vida”, a ficha caiu... e o baque foi como o de uma bigorna despencando do alto de um prédio, sobre a sua cabeça. Ou seria sobre o seu coração? – Josie Duchamps? Como... como a Josie do... do livro? – A própria, na verdade. – Josie sorriu e lhe estendeu a mão. – Não se preocupe, eu estou acostumada com essa reação nas pessoas, depois que o livro da minha ex-mulher virou filme. Ela só mudou o final e... como pode ver, estou bem viva. – sorriu de novo. “Por pouco tempo, no que depender de mim” p ensou Amanda, mas não disse nada. Depois riu internamente. Um riso que nada tinha de graça, mas muito de desespero. A estrela da Broadway não levou mais que dois minutos para achar uma brecha na conversa e alegar que tinha compromissos na galeria, com Barbara Evans, e tratou de sumir do apartamento onde morava. Com aquele clima estranho, as visitas também não ficaram muito, e Kirsten usou a desculpa de que tinha de viajar para Washington no dia seguinte para tomar Josie pela mão e partir sem demoras. Quando as
duas estavam diante do elevador, esperando, Josie notou que a mão de Kirsten estava gelada. – Meu bem? Aconteceu alguma coisa? – Nada. – ela sorriu. Dentro do apartamento, ainda tentando absorver tudo que acontecera, Richard e Debra trocaram poucas frases. – Qual das duas você acha que fingiu melhor, Debby? Ela pensou, pensou, chegou a abrir a boca pra dizer alguma coisa e pensou muito bem, mais uma vez: – Não esquecendo que estamos falando de duas grandes atrizes, Richie, o que aumenta o seu mérito, sou obrigada a admitir que quem fingiu melhor, na verdade, foi a Josie. Richard pensou em rir, mas não conseguiu. Muito porque concordava com Debra, mas muito também porque não sabia direito o que aquilo queria dizer.
(até o próximo capítulo)
Notas Finais: Baseei o Derek em Derek Kettering. Alguém sabe de que história estou falando? Vale um pirulito. Voltar para o índice O Outro Lado escrita por Sara Lecter “I've got a midnight bottle gonna drink it down A one way ticket takes me to the times we had before When everything felt so right If only for tonight I've got a midnight bottle gonna ease my pain From all these feelings driving me insane When I think of you and everything's all right if only for tonight
Got a midnight bottle drifting off into the candlelight where I can find you in your time A midnight bottle I forgot how good it felt to be in a dream just ike you had me Cuz lately I've been stumbling feels like I'm Recovering But I think it's only for tonight”. Midnight Bottle. Colbie Caillat.
Capítulo 39 – O Outro Lado Richard se aproximou da porta do quarto de Amanda e ficou ouvindo a melodia. Ela dedilhava seu violão e cantava baixinho, uma canção melancólica que ele ainda não conhecia. Chegou a pensar em bater, mas mudou de idéia. Foi para o seu quarto, ligou para Derek, apagou as luzes e tentou dormir. Ouviu alguma movimentação no corredor, mas não se levantou. Todas as noites, naquela mesma hora, Amanda saía, para voltar apenas no final da madrugada. Os jornais já não eram mais nem um pouco discretos ou amenos. De estrela dos palcos, Amanda passara a protagonista de pequenos escândalos. Desmaiara no meio de duas apresentações no começo daquele mês, fora afastada da peça que encenava à tarde e corria o risco de comprometer toda a temporada de seu grande espetáculo, à noite. Chegava na galeria sem qualquer condição de trabalhar e nem mesmo o apadrinhamento de Barbara Evans conseguia fazer com que escapasse da ira dos produtores e principalmente da imprensa. O talento continuava crescendo. Quando não entrava em cena bêbada, arrasava. Todo aquele circo acabou atraindo ainda mais a atenção do público, que lotava qualquer lugar para onde ela fosse; alguns queriam ver uma boa peça, outros esperavam ansiosamente pelo momento em que ficaria claro que ela estava fora de si. Richard não sabia, mas Amanda não ia muito longe quando deixava o apartamento. A atriz conhecera um bar de respeitabilidade duvidosa ali perto e já era figurinha carimbada, ainda que mentisse sobre sua identidade. Foi muito simples, na primeira noite o garçom pediu um autógrafo e atraiu a atenção de todos, ela sorriu, assinou “Loraine Gaap” e explicou que sempre passava por situações como aquela por causa de sua semelhança com a atriz. “Lori” se tornou tão parte dela que Amanda cogitou fazer uma tatuagem com aquele apelido. Circulava entre as mesas, dividia cigarros, era quase uma atração local. Por vezes aceitava que seus novos amigos a usassem em alguma brincadeira e enganassem terceiros, simulando que ela era a verdadeira Amanda Roberts. Todos riam.
Amanda ria mais do que eles. Às vezes saía de lá tão bêbada que realmente não sabia mais dizer quem era. – Leu os jornais de hoje, Lori? – disse um de seus conhecidos, que também estava sempre lá, bebendo uísque e organizando partidas clandestinas de pôquer. – Não... por quê? – A ex-mulher da sua irmã gêmea está neles. – Mesmo? – Amanda disfarçou seu interesse imediato. – Boatos de que ela fará um novo filme. – esclareceu ele. – Só espero que não seja gay de novo. – disse um segundo homem, com quem Amanda tivera um caso de três noites, na semana anterior, sem revelar sua identidade, claro. – Um verdadeiro desperdício uma mulher como aquela ser... bom, vocês sabem. Amanda riu. – Sapatão? – perguntou ela. – É, isso aí. – Vai ver ela nunca encontrou um homem de verdade. – disse maldosamente. – Mas soube escolher bem a ex-mulher. – comentou o bebedor de uísque. – Engraçado, não consigo imaginar que elas tenham vivido como... como marido e mulher. Não da pra entender. As duas são mulherões, qual delas será que... – Ah, não. – disse o segundo. – Kirsten Howard nunca me enganou. Era ela. – Eu acho que era a outra. Amanda ficou ali, assistindo a discussão, vendo a fraca iluminação do bar se tornar disforme e destilando toda a sua frustração em forma de comentários que eram ainda mais pejorativos que os de seus companheiros de mesa. Ela sabia bem do que estava falando, ela ouvia aquele tipo de coisas há anos e entendia profundamente como elas eram capazes de machucar alguém. Então ela machucava a si mesma, ainda que ninguém ali soubesse que era isso que ela estava fazendo, que era dela e do amor de sua vida que estavam caçoando, que as piadinhas sujas eram sobre um casamento que Amanda tinha vivido e que a tinha feito a mulher mais feliz do mundo, era sobre uma relação de carinho, amor, paixão e respeito que estava, de qualquer maneira, muito afastada daquilo ali, muito afastada do que os olhares e opiniões maldosas poderiam imaginar ou supor um dia. Amanda falava com nojo “das duas atrizes” para ver se em
algum momento conseguia realmente acreditar naquilo, e finalmente parar de sofrer porque não estava mais ao lado de Kirsten. Um homem trajando preto entrou no bar e se aproximou do balcão. Amanda esperou seus novos amigos se distraírem e parou ao lado do estranho, sem lhe olhar nos olhos. O homem pediu uma cerveja e Amanda esperou o garçom se afastar, para dizer duas palavras em um volume tão baixo que ninguém mais poderia ouvir. Estendeu a mão entre o corpo do estranho e o balcão, entregou o dinheiro e guardou o que recebeu em troca. Voltou para sua mesa, mas suas mãos tremiam e a ansiedade a consumia. Pediu licença aos amigos e foi até o banheiro. Demorou. Voltou até a mesa e pediu mais uma dose de álcool, mas não conseguiu nunca lembrar quando a dose chegou e como foi parar em casa, depois daquilo. Todos os efeitos colaterais do dia seguinte não foram suficientes para lhe tirar a convicção de que estava dando certo. Não importava o quanto doesse, o quanto lhe fizesse mal, não importava que agora não conseguisse mais subir no palco sem tremer, a não ser que usasse de novo, uma pequena dose. Estava funcionando. Amanda estava conseguindo esquecer tudo por pelo menos algumas horas. Ainda que nunca soubesse direito o que tinha feito naquele período, tinha absoluta certeza de que eram suas únicas horas de alegria, em dias de tristeza sem fim.
333 Kirsten estava rindo sem se conter, mesmo que já fosse intervalo. Ao seu lado, Josie não agia diferente. O penúltimo bloco do último episódio de “O Vale” na temporada havia primado pelo humor e elas estavam satisfeitíssimas com o resultado, como todos os fãs incondicionais da série de televisão. – Me passa mais um? – Kirsten apontou para a caixa de doces. – Desse jeito eu vou ficar sem nada. – Eu avisei no primeiro dia que era viciada em doces. – Ah é? – Josie apanhou um dos chocolates e fez menção de oferecê-lo à Kirsten, mas assim que ela se inclinou, Josie puxou-o de volta. – Você quer...? – Pára boba, claro que eu quero. – Kirsten riu. – Então... vem pegar... Kirsten inclinou-se sobre ela, em busca do bombom, mas ambas estava rindo tanto que acabaram derrubando tudo mais que havia sobre o sofá. – Hei, eu vou pegar à força, hein? – ameaçou Kirsten. – Tente. – provocou Josie.
Não foi preciso muito tempo para que a brincadeira se transformasse em um beijo cada vez mais urgente, mas ainda que ocupada com os lábios da namorada, Kirsten tateava o vazio à procura do braço estendido de Josie que mantinha seguro o chocolate. – Eu quero... Josie a beijou de novo, segurou-a pela nuca, mantendo os lábios colados, os corpos se roçando, estendidos sobre o sofá. Conforme percebia que Kirsten ia desistindo do doce e investindo no seu corpo, Josie se entregava mais, correspondia mais, provocava mais. – Quer o chocolate...? – Quero... você... A francesa largou o bombom e ele rolou sobre o tapete, completamente esquecido. Kirsten rapidamente ergueu o corpo de Josie alguns centímetros e tirou sua blusa com urgência, ao que a outra não protestou em momento algum. Buscavam-se cada vez mais, trocando carícias e declarações, mas acabaram rindo quando o intervalo acabou e “O Vale” voltou a ser transmitido. – Meu bem... último bloco, do último episódio... – implorou Josie. – Eu sei... – disse Kirsten, envergonhada. – Eu também quero ver. Abraçaram-se e voltaram a se sentar no sofá, assistindo televisão e fazendo todo tipo de comentários sobre a série. – Que pena que vai acabar. – lamentou Josie. – Não dá pra entender... – Você é que deve saber dessas coisas... por que, simplesmente por que acabar com a melhor série de todos os tempos? Só porque o roteirista se demitiu? – Li umas fofocas, coisa de brigas internas de estúdios. Ele vai ganhar o dobro na concorrência. As pessoas fazem isso, acredite. – De que vai adiantar ganhar o dobro? Aposto que o novo projeto dele nem vai ser tão bom. – Relaxa, Jo, não é todo mundo que consegue pensar na própria carreira a longo prazo. Josie mordeu os lábios, repensou, e decidiu dizer o que havia lhe ocorrido. – Por falar em carreira, e você?
– Já disse, o seu foi meu último papel. Chega. – Pra sempre? – Aham. – disse Kirsten, embora soubesse que não estava assim tão segura dessa resolução. – E vai fazer o quê? – Podemos viajar pelo mundo. – sugeriu. – Seria maravilhoso por um tempo, mas e depois? – Sei lá, Jo. – ela começou a se irritar com a cobrança. – O que você fica fazendo aqui quando eu vou pra Seattle? – perguntou a francesa. – Escrevendo. – É o que você gosta? – Sim, sempre gostei. – O roteiro ficou perfeito, como eu já te disse um milhão de vezes. Já pensou nisso? Pensou seriamente? Kirsten, você conhece todo mundo em Hollywood, se vira muito bem nesse meio, escreve coisas incríveis, já foi até produtora... – Eu vendi a minha produtora, você sabe disso. E escreveria o quê? Josie apenas olhou para a tela da televisão. Kirsten entendeu o que ela estava querendo dizer e pela primeira vez começou a pensar seriamente em voltar a trabalhar. Em questão de segundos, tudo fez sentido em sua mente, lembrou dos nomes, dos telefones ou de como consegui-los, sabia exatamente o que fazer. Tanto tempo depois, estava se sentindo viva de novo.
(até o próximo capítulo)
Voltar para o índice Juntas e Separadas escrita por Sara Lecter “A distância entre duas pessoas não é medida pelo espaço entre os seus corpos, mas pelo que separa os seus corações”. Domínio Público.
Capítulo 40 – Juntas e Separadas Amanda experimentava o sexto vestido e continuava insatisfeita. Olhava-se no espelho, virava-se várias vezes, mas nunca gostava do resultado. Havia perdido algum peso e apesar de saber que apenas olhos apurados perceberiam, via sobras de tecido que não poderiam estar ali. – Quer ajuda, lindinha? – Richard enfiou a cabeça pela fresta da porta. – Não adianta, nenhum me serve mais. Richard entrou, bastante sério. Havia acabado de sair do trabalho e ainda estava com a roupa da rua. – Almocei com Barbara Evans, hoje, na lanchonete de sempre. A atriz prendeu a respiração, mas não foi capaz de encarar o amigo. – Hum. – disse algo apenas para deixar claro que ouvira. – Lindinha, será que podemos conversar? – Sobre? – Você sabe muito bem. Você foi demitida, Amanda... E eu sei o quanto amava esse novo trabalho. – Não tenho culpa se Barbara não estava mais satisfeita. – Amanda – ele elevou o tom de voz – ela sabe muito bem o que está acontecendo com você, porque foi a mesma coisa que destruiu a carreira dela! Barbara estava sozinha naquela época e assim permaneceu, tendo de sair sozinha do fundo do poço. Só que você, Amanda Roberts, não está sozinha e nunca estará. Você está me ouvindo? – Não tenho tempo nem clima para sermões, Richie. Ele a segurou pelos ombros, com força. – Não permitiremos que se afunde dessa maneira, Amanda. – Quem? – Todas as pessoas que te amam, lindinha. – Ninguém me ama, Richie.
– Amanda, pára com isso. O seu casamento acabou, está certo, mas você não pode desistir de todo o resto! Da sua carreira maravilhosa, Amanda... Você ia ganhar todos os principais prêmios da Broadway esse ano e sabe disso. – Eu não quero prêmio algum, eu não quero mais nada, Richie. Nada, nada, nada, nada, nada, nada – shhh. Venha cá... Richard a abraçou com força e deixou que Amanda chorasse em seu ombro. Ela disse mais algumas coisas que ele não conseguiu discernir com perfeição, mas sabia que diziam respeito à Kirsten. Não se preocupou com o tempo, esqueceu de qualquer outra coisa que teria de fazer naquele dia, para ficar ali cuidando de sua amiga. – Desculpa por isso, Richie. – disse Amanda, que muito depois começava a se recompor. – Só se você prometer que vai me procurar de novo quando estiver mal. Ou a Debby. Ouviu? Você pode chorar nos nossos ombros sempre que quiser, até a dor passar, porque ela vai passar, Amanda... sempre passa, não importa o quanto pareça difícil agora. Barbara, eu garanto, também estará sempre disposta a lhe ajudar. – Ta bom. – disse ela, de qualquer maneira. Richard foi mais enfático e a obrigou a olhar nos seus olhos. – “Ta bom” nada! Prometa. – Richie... – Amanda, se eu te pegar drogada de novo eu te interno à força em uma clínica, está me ouvindo? – O quê? Isso é impossível. – Só preciso da aprovação de um médico e de duas pessoas que te conheçam. Debra, Barbara, Enrico, Derek... posso pedir a assinatura da Kirsten também, o que acha? Ela vai ser a primeira a concordar. Amanda tentou se afastar e Richard não permitiu. “Como acha que Kirsten reagiria se te visse como eu te vi chegando em casa essa semana, Amanda? – Ela não se importa mais. – Você não faz idéia do que está dizendo, Amanda. Foi como se a frase a despertasse de um longo sono letárgico. Amanda respirou devagar, algumas vezes, e tentou parecer desinteressada, mas no fundo sabia
que aquilo tudo tinha de ter uma relação. Richard não era de falar as coisas da boca para fora e, ela sabia bem, era o melhor amigo de Kirsten. Se alguém no mundo sabia o que se passava com a loira, era ele. “Você não acha, por acaso, que ela esqueceu um casamento de anos em questão de três meses e pouco, não é? Ela não soube o que responder. Richard continuou. “Lindinha, vamos a uma loja, você compra um vestido deslumbrante, eu maquio você, e você vai nesse coquetel de uma vez. Quem sabe não tem uma grande surpresa por lá? – Não sei se estou pronta. E não vou me sentir bem chagando lá, sozinha. Richard pensou por alguns instantes. – Acho que tenho a solução. Você disse que vai estar cheio de gente de negócios por lá, não disse? – Uhum. – Se importaria de levar o Derek? De repente, no meio de uma conversa, um aceno, qualquer coisa, ele pode ser apresentado à pessoa certa... Os olhos de Amanda brilharam. – Claro! Claro, como é que eu não tinha pensado nisso, é lógico, vai ser ótimo para ele começar a ser visto em lugares assim. – Vou ligar pra ele, então. E você, se arrume, já estamos de saída. Amanda riu do jeito como Richard ficava ao falar de Derek. Era como se mudasse completamente e ao mesmo tempo não se podia dizer que virava outra pessoa, porque aquele era o Richard de verdade, em toda a sua pureza.
333 A recepção estava lotada e Amanda apanhou a mão de Derek porque sabia que ele estaria nervoso, como ela havia ficado, nas primeiras vezes que freqüentara aquele tipo de evento. – É tudo muito simples, você apanha uma bebida e sorri para as pessoas, ok? – Está bem. – disse ele, conduzindo Amanda entre os convidados.
Os olhares se voltaram para os dois imediatamente. A notícia do afastamento de Amanda dos palcos correra naquele mesmo dia e provavelmente ninguém esperava vê-la ali, quanto menos deslumbrante como estava – obra de Richard – e acompanhada de um homem que foi chamado, por todos, imediatamente, de semiDeus. Esperavam me ver na sarjeta, não é? Pensava Amanda, consigo, enquanto sorria para os conhecidos. Era esperta o suficiente para saber que alguns ali ficariam contando quantos drinks ela seria capaz de consumir e por isso solicitou que Derek lhe apanhasse apenas um suco. Vão dizer que está batizado com alguma coisa, pensou ela, de novo apenas para si, mas balançou a cabeça e continuou sorrindo e acenando. Então, em uma fração de segundo que mudaria a história daquela noite, ela pegou seu coração acelerado ao ponto de achar que desabaria ali, no mesmo instante. Entre os convidados, tinha certeza, havia enxergado uma silhueta que reconheceria em qualquer lugar. Os quinze minutos seguintes a mantiveram em completo suspense. Olhava por cima dos convidados, equilibrando-se no salto, mas não vira de novo. Só teve certeza de que Kirsten Howard estava naquela recepção quando viu, muito bem, a figura de Josie conversando com um pianista. – Amanda, Derek! Virou-se. Não fazia idéia de como estava o seu rosto, mas desconfiava que tivesse conseguido sorrir. – Oi Kiki! – Derek a chamava como fazia Richard e Kirsten nunca se importou. – Nossa, a perspectiva dessa noite fica muito melhor com vocês aqui. – disse a loira, esperando por algum comentário de Amanda, o que não aconteceu. – Eu sou penetra, para ser bem sincero. – Derek deu de ombros, rindo. – Amanda me convidou, ando com poucos trabalhos e... quem sabe... – Claro! Isto é... – ela procurou os olhos de Amanda e o que a morena viu foi uma expressão de orgulho no rosto de Kirsten. – Mandy, que ótima idéia. Tem muita gente aqui que pode te oferecer alguma coisa, não deixe de conversar com todo mundo, Derek. Um a zero para mim. Pensou Amanda. O brilho orgulhoso dos olhos de Kirsten provavelmente não sairia tão cedo da sua memória. – E Josie? – perguntou, educadamente. – Foi apanhar uns canapés pra mim, eu só consegui me livrar de um produtor chato agora. Um a um. Kirsten falava de Josie com um encanto na voz que não deixava dúvidas sobre sua felicidade naquele relacionamento.
– Vittorio! – Amanda deixou Derek e Kirsten para trás e optou por uma nova tática. – Bella! – ele beijou as costas da mão de Amanda demoradamente e seu tom de voz alto atravessou a recepção, atraindo a atenção de todos. – Que prazer vê-la aqui. Ela ia sorrir, mas a mão de Vittorio apanhou a sua e ele a conduziu de volta ao lugar de onde ela saíra. – Vittorio. – cumprimentou Kirsten, polidamente. – Nosso destino é nos encontrarmos, não é mesmo? – disse o italiano. – Os três, de novo, e um belo rapaz. – ele avaliou Derek rapidamente. – Não deve ser seu novo namorado, não é mesmo, Amanda? – Um grande amigo nosso. – Kirsten interveio. Dois a um pra mim. Kirsten reagira muito mal à idéia de Amanda estar com outra pessoa. Amanda tratou de apresentar Derek para Vittorio e notou, satisfeita, que ele estava bem preparado para aquele tipo de encontro. – Sabe, Kirsten. – disse o produtor. – Ainda estou precisando de um rosto para aquela campanha que lhe falei. Faça o seu amigo fazer o teste em Los Angeles. – Ele fará. – ela sorriu. – Confie na sua amiga, Derek , não é? Isso. Derek. Não vou esquecer o seu nome, começo a pensar que a campanha ficará ainda melhor com ele, testamos oitocentos modelos, Kirsten, e não gostei de nenhum... já estava ficando de cabelo em pé. Os três riram. Vittorio era praticamente careca. – Projetos novos, Vittorio? – quis saber Amanda. – Oh, sim. Agora que eu consegui tudo o que eu queria, não é? – ele olhou para Kirsten rapidamente e Amanda ficou sem entender exatamente do que ele estava falando. – Kirsten está voltando para Hollywood. – disse Josie, que acabara de voltar. Dois a dois. – Josie me deu a idéia perfeita, lembra de “O Vale”? De cada detalhe, porque é o seu seriado favorito. Como pode fazer uma pergunta dessas como se fosse banal?
– Vagamente. – respondeu Amanda. – Tive um problema com o roteirista. – disse Vittorio. – E agora Kirsten Howard estará num projeto meu. Maravilhoso! Maravilhoso! Ela sorriu sem graça. Queria o olhar cúmplice de Amanda para dizer em um segundo que todo aquele circo a enjoava, mas julgou que não seria correto. Ainda assim, o fez. E recebeu o mesmo olhar em retribuição. Três a dois para Amanda. – E você, Amanda, trabalhando? – perguntou Josie. Empatou. Eu vou matar você lenta e dolorosamente, francesinha estúpida e metida. Acha que não sei que leu todos os jornais do dia, tudo sobre o fim da minha carreira? É esse o seu jogo? Pois não vai me derrubar. Você não tem idéia de com quem está lidando. – Preciso de uma folga, agora. – sorriu. (você vai entender direitinho quando perder a Kirsten também!) – Eu precisei de um belo susto, como deve estar sabendo, para entender que nunca quis ser exatamente atriz. Kirsten sorriu, sem se deixar apanhar, a não ser por Amanda, que já esperava por aquela reação. Enquanto ainda eram casadas, as duas discutiram várias e várias vezes sobre aquilo, sobre “vocação”. Por acomodação, Amanda continuava sendo atriz, mas Kirsten sempre a tentava convencer de que ela precisava estudar mais para aquilo, ou seguir outro ramo. “Sua estrela brilha sozinha no palco e por isso estará sempre acima de qualquer personagem. Seu público é como eu, que ia para a Townsend ver Amanda Roberts como Christine, e não simplesmente uma peça. Você é seu próprio espetáculo, meu amor”. Amanda jamais esqueceria aquela frase, dita entre beijos e carícias, em uma tarde em que nenhuma das duas tinha coisa alguma para fazer a não ser aproveitar a companhia uma da outra. À medida que os convidados consumiam a bebida oferecida e acabavam com os canapés, o coquetel foi ficando menos enfadonho. Amanda se afastou de Kirsten e Josie assim que conseguiu, sabendo que era o mais sensato a se fazer, depois de conseguir uma “vantagem” que em sua contagem lhe dava doze a oito sobre a “adversária”. Derek foi apresentado a outros importantes empresários e algumas garotas contratadas para entreter os convidados se encantaram por ele, que pediu ajuda com os olhos para Amanda, que se divertiu muito com a cena. – Não deixe de ser fotografado ao lado de alguns desses caras. É bom aparecer, outros convites virão, para noites como essa. – disse Amanda, ao amigo. – Pode deixar. – ele respondeu sorrindo.
Os fotógrafos se detiveram no outro lado do ambiente e Amanda ficou assistindo. Flagravam Kirsten e Josie, conversando intimamente. Doze a nove. Ao perceber os flashes, Josie acariciou a face da namorada e sorriu singelamente para ela. Doze a dez. Amanda começou a suar frio. Ouvia as vozes dos jornalistas e uma pergunta direcionada à sua ex-mulher lhe fez prender a respiração. – Não, não. – Kirsten sorria. – Amanda Roberts e eu somos grandes amigas agora. Doze a onze. Amanda sentiu que as paredes do lugar se movimentavam na sua direção, sufocando-lhe. Mais uma resposta de Kirsten, dessa vez sobre Josie, a fez achar que perderia os sentidos. Doze a doze. E por fim, quando já decidira ir embora – o coquetel estava quase vazio àquela altura – ainda viu aquilo que mais temia em sua vida. Um beijo. Um beijo apaixonado de Josie em Kirsten. Treze, quatorze, quinze... um milhão! Sem se despedir de Derek, Amanda deu o fora, mas não voltou para casa e sim para um beco escuro que agora conhecia muito bem. E com o conseguiu ali, quem sabe, teria um pouco de paz.
(até o próximo capítulo)
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Capítulo 41 – Recaída
Kirsten pensou em se afastar, mas toda razão lhe dizia que não daria certo, que mesmo que desse uma ordem ao seu corpo para que deixasse aquele apartamento, ele não obedeceria. Sabia que sempre desejaria Amanda, mas os meses de separação acabaram por fazê-la esquecer – somente até ali – o quão forte era aquele desejo e o quão impotente ela era diante dele. Esse era um bom resumo do que fora a relação das duas: elas simplesmente não conseguiam não se quererem com todas as suas forças. – Eu sei exatamente o que você está pensando agora. – disse Amanda. A loira corou e virou o rosto, mas não por muito tempo. Amanda puxou seu braço com firmeza e os rostos ficaram a um centímetro de distância. – Não... – disse Kirsten, uma negação vaga que não especificava se ela queria dizer que Amanda não sabia no que ela estava pensando ou se admitia que ela sabia, mas significava que Kirsten não permitiria que acontecesse.
– Eu só preciso de um segundo, de um som, e eu posso te mostrar a única coisa que interessa agora... nós duas precisamos disso mais do que qualquer coisa. Kirsten fechou os olhos e Amanda tomou isso como um consentimento silencioso, livrou a loira do cabelo que cobria parte de sua face e aproximou seus lábios do ouvido de Kirsten, respirando devagar e marcadamente. Também fechou seus olhos e deixou um sussurro escapar lentamente: “Kirs... Bingo. Amanda ficou eufórica com seu sucesso, mas o disfarçou muito bem. O corpo de Kirsten entrou em chamas imediatamente, sua pele ficou arrepiada da cabeça aos pés e suas mãos, que haviam repousado na cintura de Amanda, estavam geladas. Amanda podia ouvir seu coração batendo acelerado e sendo espremido por um par de pulmões que tentavam sugar todo o ar da sala, sem sucesso. Kirsten tomou seus lábios com tanta ânsia que quase a derrubou, e foi correspondida tão logo Amanda conseguiu se apoiar contra as costas da poltrona na qual tinham se chocado, desequilibradas. – Você pode saber o que estou pensando, Mandy, mas duvido que faça idéia do quanto eu sou capaz de sentir . Amanda não pôde responder em seguida porque Kirsten a tinha tomado novamente, um beijo desesperado, ansioso, angustiado, urgente, profundo, intenso, interminável e simplesmente perfeito. Foi a vez de Amanda perceber que seu corpo estava completamente alterado, como se gritasse de desejo, implorando para ser satisfeito. – Então diga... – pediu Amanda, quando Kirsten lhe deu uma folga somente para praticamente arrancar o casaco que ela vestia e jogá-lo em qualquer lugar longe dali. A resposta foi outro beijo como o anterior, só que ainda mais urgente e acompanhado das mãos de Kirsten emoldurando o rosto de Amanda, dispostas a impedir que os lábios dela se separassem dos seus, a qualquer custo. Amanda puxou-a pela cintura, suas mãos tentavam explorar o corpo da outra, mas se atrapalhavam facilmente, tamanha era a pressa – de ambas. Kirsten soltou por instantes o rosto de Amanda e tirou o próprio casaco, com movimentos bruscos, impacientes, da mesma forma que tirou sua manta e começou a desabotoar a própria blusa, ao que Amanda se juntou a ela e elas perceberam, juntas, que mesmo com quatro mãos não conseguiriam abrir aqueles botões com a rapidez que necessitavam. Amanda abriu a blusa de uma vez, fazendo cair pelo chão alguns dos botões que haviam despregado. Enquanto tirava as mangas, Kirsten inclinou sua cabeça para trás e permitiu que o beijo de Amanda vagasse seu colo, seu pescoço, escorregasse para os seus seios e a deixasse ainda mais louca. Amanda já tentava lhe abrir o sutiã quando ela exigiu os seus lábios de novo, beijando-os, chupando-os, lambendo-os, beijando de novo, mordendo de leve, deixando muito claro o que queria. Amanda começou a empurrar Kirsten, sem que interrompessem o beijo, e engalfinhadas como estavam, tropeçando nas roupas e acessórios que tiravam do
corpo sem qualquer preocupação a não ser que fosse o mais rápido possível , chegaram à porta do quarto que Amanda ocupava. – Eu tentei fugir, Mandy, mas o que eu sinto é que essa é a única coisa certa que fazemos por nós em muito tempo. Eu quero tanto... e eu sei que você também quer... – Não se preocupe, meu amor. – respondeu Amanda, detida em descalçar seus sapatos sem precisar parar de beijar os ombros já nus de Kirsten. – Ninguém vai te julgar, muito menos eu. Não pode haver conseqüência que te impeça de... de... – Hum? – questionou Kirsten, enquanto mordia o lóbulo da orelha de Amanda, sensualmente. – Você e eu... – disse Amanda, tonta com as carícias de Kirsten no bico de seu seio esquerdo, já sabendo que em breve Kirsten faria aquilo com os lábios. – somos nós... nós! Amanda e Kirsten! O resto do universo vai ter que entender isso. Kirsten não respondeu, nem fez nada que deixasse claro o quanto tinha gostado daquela explicação. Amanda estava coberta de razão, o mundo que fosse para o inferno, elas estavam fazendo amor de novo e isso era só o que importava. Kirsten levara muito tempo – anos – mas finalmente tinha aprendido a se jogar de cabeça e tinha entendido o que todo mundo tentava, sem sucesso, lhe explicar: se ela amava Amanda, não tinha que se preocupar com mais nada. Jogaram-se na cama entre beijos e carícias nem um pouco contidas, que ignoravam a presença da última peça de roupa que cada uma ainda usava. Beijavam-se cada vez menos nos lábios e cada vez mais em diferentes partes do corpo, uma querendo (re)experimentar cada centímetro da pele da outra, senti-lo, cheirá-lo, degustá-lo, agradá-lo, aproveitá-lo, saciá-lo, às vezes mordê-lo, com uma ânsia crescente que lhes roubava todo o fôlego. – Eu te amo, Amanda. E eu nunca vou amar outro alguém desse jeito, nem nunca vou deixar de amar você com todas as minhas forças. Voltaram aos lábios, por muito tempo, embora não conseguissem ter noção de como os segundos, os minutos e as horas passavam. Não havia necessidade, Amanda estivera sempre certa, o mundo parava quando elas estavam juntas. – Eu não vivo, Kirs... – ela interrompeu sua frase porque um gemido escapou de sua boca enquanto Kirsten começava a lhe acariciar, ainda que fosse por cima da calcinha. – ...eu amo você. Essa é a essência do meu ser, é por esse amor que eu acordo todos os dias, que eu me alimento, que eu trabalho... é só por esse amor que eu respiro e qOutro gemido, desta vez mais alto, interrompeu a frase. Kirsten havia acabado de deslocar a roupa íntima de Amanda e lhe acariciava com determinação cada vez maior. Amanda conseguiu prender a respiração por um instante e engolir em seco, recobrando alguma sanidade:
“...e quer saber? É razão mais do que suficiente para existir. Duvido que alguém tenha uma razão mais forte e verdadeira que a minha. Kirsten respondeu com um beijo que calou os lábios de Amanda, mas não a submeteu. Com grande destreza, a morena tirou a calcinha de Kirsten e devolveu as carícias dela, que não protestou, embora não tenha parado com o que fazia. Depois de algum tempo, no qual testaram todas as suas resistências ao máximo, Amanda decidiu prender o pulso de Kirsten e afastá-la de seu corpo. A loira não estranhou, pelo contrário, entregou-se por completo e ainda que soubesse exatamente o que ia acontecer, julgou que aquela era uma sensação completamente nova, quando Amanda a penetrou, finalmente. E de novo. E de novo. E mais uma vez. E outra. E a cada oportunidade com mais força – ainda que seu cuidado fosse estremo. Kirsten sabia muito bem que se existisse um manual de instruções do seu corpo, seria a própria Amanda. Ela sabia de tudo. Sabia como tocá-la, quando, sabia a intensidade perfeita, conhecia o seu ritmo, entendia quando era hora de parar ou alternar a carícia e sabia reconhecer os seus sinais. Ainda assim ela precisava dizer, precisa pedir, precisava implorar , porque daquilo dependia a sua vida, precisava manifestar o que estava sentindo e precisava informar, verbalmente – depois de algum tempo ficava difícil discernir suas frases febris – que Amanda era absurda e inexplicavelmente perfeita. Amanda gostava... adorava ver Kirsten sibilando frases cada vez mais confusas, por vezes incompletas por causa de um gemido mais alto que não conseguia reprimir. Às vezes Amanda brincava com ela. Esperava que voltasse a falar e então a penetrava com mais força, de propósito, e Kirsten se perdia completamente, de novo. E Amanda acabava se perdendo também, porque ver o corpo de Kirsten se contorcendo de prazer daquela maneira era algo que ela jamais conseguiria colocar em palavras, e o seu controle sobre aquele efeito lhe fazia o peito inflar, umedecia seus olhos e disparava seu coração. – Mais... Mandy... eu quero mais... Ela obedeceu, depois de se aproximar do rosto de Kirsten e lhe roubar um beijo dos lábios secos e trêmulos. Acelerou gradativamente e calculou o momento exato em que queria que acontecesse, porque até mesmo disso era capaz, quando se tratava do corpo da mulher da sua vida. Não se preocupou em reprimir Kirsten cobrindo seus lábios ou beijando seu colo, tentando de alguma forma conter o seu corpo. Deixou que ela aproveitasse, que a sua carne ficasse tão livre quanto se libertava o seu espírito naqueles preciosos segundos de orgasmo. Enquanto se recuperava, ao invés de se virar, como às vezes fazia, e retomar seu fôlego aos poucos, Kirsten abraçou o corpo de Amanda e o beijou sucessivas vezes. – Eu te amo, Mandy, eu te amo, eu te amo, eu te amo, eu te amo, eu te... amo! Você é perfeita, indescritivelmente per-fei-ta. – disse a última palavra pausando entre cada sílaba. Amanda moveu a cabeça negativamente, embora sorrisse para Kirsten. Beijou seus lábios singelamente, depois beijou todo o seu rosto, sugando as lágrimas
tímidas que escapavam dos olhos verdes de Kirsten, que brilhavam como nunca. Beijou-lhe o pescoço, o colo, os ombros, tomava o suor de sua pele, aspirava o seu aroma misturado com tanto cuidado cosmético. Para Amanda aquele era o melhor cheiro do mundo, assim como o sabor levemente salgado da pele dela. Foi difícil discernir em que momento aquelas carícias deixaram de ser uma distração enquanto Kirsten se refazia, para se tornarem uma nova maneira de provocar Amanda, como se ela já não estivesse completamente excitada... Kirsten acomodou o seu corpo sobre o de Amanda e tomou seus seios com avidez, um deles com os lábios e a língua, o outro com a ponta dos dedos, depois a palma da mão, depois a mão inteira, de vez em quando as unhas, e no outro, de vez em quando os dentes. Era o seu segredo, o seu ponto fraco, provavelmente, pois Kirsten sabia muito bem o quanto era capaz de descontrolar Amanda antes mesmo de chegar perto do seu sexo. E foi o que fez, com tenacidade inabalável. Quando Amanda já não agüentava mais, Kirsten tomou seus lábios, calou seus gemidos e usou as pontas dos dedos para provocar a pele sensível das coxas de Amanda, chegando cada vez mais perto de seu objetivo. Penetrou-a finalmente, e Amanda se contorceu, tentando livrar seus lábios do domínio de Kirsten, em busca de ar, em busca de uma brecha para extravasar o prazer que sentia, mas Kirsten não permitiu, e não satisfeita, penetrou-a de novo, com pressa, com urgência, sufocando Amanda, submetendo seu corpo, mostrando à força quem estava no controle. – Não... – pediu Amanda, quando finalmente conseguiu se libertar. – Isso é uma escolha minha... – disse Kirsten, arrogantemente. – Não, Kirs, por favor. A expressão de Kirsten se transformou em um milésimo de segundo e ela se inclinou novamente, para se aproximar do ouvido de Amanda: – O que você quer, meu amor? – perguntou docemente. – Eu não quero que acabe agora. – pediu ela. – Eu não quero gozar ... quero que dure para sempre. Kirsten entreabriu os lábios, mas desistiu, antes de elaborar qualquer frase que pudesse dizer. Com cuidado para não ser brusca, foi diminuindo a intensidade dos seus movimentos e libertando Amanda aos poucos. Ao invés de penetrá-la, movia seus dedos dentro dela, vagarosamente, e observava as suas reações. “Isso... não pára nunca, Kirs... A resposta dela foi voltar a penetrar Amanda, mas sem qualquer pressa. Sabia muito bem que mantendo aquele ritmo ela sentiria prazer, mas seria preciso outras medidas para levá-la ao clímax. Como este estava fora dos planos, por enquanto, pôde aproveitar da maneira que queria. Executou várias carícias diferentes, sempre estudando a reação de Amanda, percebendo como poderia “torturá -la” melhor. Movendo o polegar com extrema sensibilidade, conseguiu sentir o clitóris de Amanda pulsando
desesperadamente, e notou assim que começou a estimulá-lo, que Amanda contraía seus músculos com toda a aptidão de seu auto-controle... o seu corpo suplicava por mais prazer, mas sua mente o impedia, e aquela guerra que começara razoavelmente justa passava a ficar desigual, porque os instintos de Amanda eram mais fortes que a razão dela e de Kirsten, juntas. Seu quadril lhe desobedecia e movia-se sem comando, buscava as carícias de Kirsten como se tivesse vontade própria, suas pernas se afastavam cada vez mais, seu corpo inteiro se oferecia escandalosamente, ao passo que sua garganta não conseguia mais deixar morrer os pedidos desesperados de seu corpo, traduzidos em frases desconexas e em palavras que há muito tempo ela não usava. Um fio de esperança ainda restava, o de que Kirsten conseguisse suportar ver Amanda naquele estado sem ceder, mas ela achou, em rápida análise, que nada poderia ser mais impossível do que aquilo. Se Amanda estava fora de si, ela estava mais ainda, estava quase tendo um orgasmo junto com ela. Respirou fundo e apertou seus olhos em busca de uma força que porventura pudesse ter escondida em algum lugar de sua alma. Lembrou dos olhos de Amanda, do pedido tão doce de que aquilo não acabasse nunca, e encontrou ali uma razão para resistir, ainda que ao fundo ouvisse os gemidos gritados e sentisse as mãos de Amanda sobre a sua pele como que tentando obrigá-la a terminar de uma vez. – Não vai acabar... nunca... – sussurrou ao ouvido de Amanda logo antes de roubar-lhe um selinho e descer com seus lábios entre os seios dela. Foi difícil, a princípio, controlar o corpo de Amanda, que se movia, se contorcia, se afastava por meio segundo, para voltar a se oferecer, mas Kirsten a segurou com força e começou, devagar, a lamber o clitóris da amante no mesmo ritmo que continuava a lhe penetrar. Muito devagar . Sob a pele dela, Kirsten podia sentir suas contrações, e não se deteve em manter sua língua mais firme quando acelerou o movimento, pelo contrário, deixava que toda a sua extensão tocasse aquele pequeno órgão pulsante, às vezes em movimentos circulares, às vezes fazendo uma pequena pausa para chupá-lo com ânsia e com pressa – carícia que era interrompida no exato limiar anterior ao caminho que não tinha volta. A cama já estava encharcada com o suor de Amanda e ela sabia que ficaria com a voz rouca por pelo menos uma semana, de tanto que já havia suplicado. Kirsten era realmente teimosa, ou, realmente a amava com todas as suas forças, pois fora capaz de abrir mão da própria realização para atender aquele estranho pedido. Quando Amanda estava para começar a julgar que estava exausta demais e que aquilo poderia cansá-la, a partir dali, Kirsten pareceu adivinhar tudo, retirou seus dedos de dentro dela com cuidado, lambeu-os com o olhar fixo nos olhos de Amanda e tomou-a com os lábios novamente, provocando seu clitóris de todas as formas possíveis até parar naquela que já sabia há muitos anos ser a preferida de Amanda. Sua pele parecia prestes a derreter, e sentindo isso, Kirsten acelerou, se determinou mais... e mais... e mais, segurando Amanda com força contra a sua boca que a tomava por completo, e já não tinha mais certeza se estava conseguindo dar à Amanda o orgasmo mais longo que ela já tivera ou se aquilo era um segundo gozo, imediatamente após o primeiro. Não soube dizer se tinha desmaiado ou adormecido por causa do cansaço, mas lembrava vagamente que tinha beijado a pele de Amanda e sentido seus lábios arderem pelo calor que ela emanava, e que tinha acomodado a cabeça dela sobre
o seu ombro, antes de tudo ficar escuro. O que sabia, também, era que não tinha ficado inconsciente por mais que dois minutos: mesmo que adormecida, Amanda ainda estava ofegante. Muito ofegante. – Recuso-me a acreditar que esse mundo não aceite o nosso amor. – disse Amanda, revelando que também estava desperta. – Se é esse o problema, Amanda Roberts – Kirsten a beijou na nuca e a guardou em seus braços com todo o seu carinho. – então eu prefiro criar um novo mundo e prefiro ter que mudar cada maldita pessoa, à admitir que não existe um lugar onde você possa ser minha. – Eu nunca vou te deixar... – Amanda usou a frase que Kirsten sempre proferia. Apertou os olhos. Acordou de novo. Olhou a sua volta e estava sozinha. Completamente sozinha. Tateou a cama de casal para se certificar, ainda não conseguia acreditar. Seu corpo tremia, ainda estava completamente exausto, como se tudo tivesse acabado de acontecer... como se fosse real . Lavou o rosto... seus cabelos loiros estavam desgrenhados. Apanhou o telefone sem pensar, depois se arrependeu, mas era tarde demais e Amanda já tinha atendido. Kirsten só tinha certeza de que era ela porque a morena estava gritando, mas havia muito barulho em volta. Kirsten não entendeu nada, muito porque não queria acreditar no que Richard tinha lhe confirmado naquela mesma tarde. Não queria acreditar nos jornais. Não podia acreditar que Amanda estava viciada. Não ela, não Amanda Roberts, não o pilar que a tinha sustentado desde que conseguia se lembrar... não a sua Mandy... – Amanda, onde você está??? – Estou com meus amigos e...!!! – Kirsten não ouviu o final da frase. – Amanda, você está bem? – Nunca me senti melhor na vida! – disse ela, eufórica, e Kirsten teve de afastar o celular do ouvido. – Amanda, vá para casa... – pediu. – Você vai comigo? – Amanda... – Então não adianta, Kirsten. Não me enche. Tchau! Sentiu-se mais distante de Amanda do que jamais havia se sentido. Apenas um minuto depois de ter acordado com a nítida impressão de que nunca haviam se separado.
(até o próximo capítulo)
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“Suas personagens passaram por grandes mudanças, e é incrível a forma como ela vem evoluindo com o tempo. Os problemas se tornando cada vez mais confusos e difíceis de lidar. Você representou nessa fiction problemas que muitas de nós já enfrentamos e alguns que ainda teremos de enfrentar, é um espelho da vida real”.
YumiHikaru, em seu review para o capítulo “Barbara Evans” desta mesm a fic. Obrigada, amiga, foi um maravilhoso presente de Natal que eu jamais conseguirei retribuir à altura.
Capítulo 42 – Stalker Kirsten pousou o telefone sobre o móvel de cabeceira e acendeu as luzes. Correu para o closet e procurou por algo básico e que não lhe desse trabalho para vestir. Não se preocupou em se olhar no espelho, apanhou mais algumas coisas, uma bolsa, calçou as botas, enrolou o pescoço com uma manta – presente de Josie – e saiu do apartamento no qual morava. Começou a achar que o elevador estava demorando mais que o comum, mexia uma das mãos, nervosamente, no bolso do casaco. Amanda estava completamente fora de si e Kirsten o percebera por seu tom de voz. Por alguma razão quis acreditar que a tinha convencido a ir para casa, mas só então se lembrou que Richard estaria dormindo na casa de Derek naquela noite. O porteiro lhe chamara um táxi. Kirsten era sempre muito simpática com ele porque o seu rosto redondo transparecia serenidade. Ela chegou a pensar, um dia, em criar uma personagem que se baseasse neste homem, o coitado que cobria o turno da noite. Até chegar ao apartamento de Richard, Kirsten não tinha mais unhas. Não quis ligar para Amanda de novo, temendo que ela fosse desagradável uma segunda vez. Bateu à porta várias e várias vezes antes de usar a cópia da chave que possuía. Era como se alguma coisa a tivesse levado até ali. Como se aquele sonho tórrido que tivera fosse um aviso ou um sinal, um alerta de que Amanda precisava dela. A casa estava vazia. Kirsten olhou aquele quarto, muito bagunçado, no qual nunca tinha entrado e se apavorou ao ver todos os detalhes do seu sonho ali. Esperou algum tempo, sentada na cama. Mas Amanda não ia voltar pra casa.
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Cindy Sparrow saiu da frente do computador para atender seu telefone, sem saber que aquela estranha ligação no meio da madrugada mudaria a sua vida. Deixou seu corpo tombar no sofá quando a interlocutora se identificou, e levou algum tempo para deixar de acreditar que era um sonho ou um trote. Vestiu-se apressada, apanhou apanhou sua bolsa, as chaves do carro, deu um jeito no cabelo e lamentou muito não conseguir ser uma pessoa vaidosa, porque achou que aquilo ajudaria, daquela vez. Dirigiu feito louca pelas ruas de Nova Iorque e estacionou – muito muito mal, por causa da pressa – pressa – em em frente ao endereço dado a ela pelo telefone, embora o conhecesse conhecesse muito bem. Era o apartamento de Richard. O apartamento do melhor amigo de Kirsten Howard e o lugar onde Amanda Roberts estava morando. Viu uma figura loira sair das sombras da portaria e apanhou seu coração disparado. Kirsten estava absolutamente fabulosa para Cindy, muito diferente do que todos os mortais estavam acostumados. Usava jeans, uma blusa preta, um casaco grosso e bastante elegante, mas muito simples. Era nada nada se se comparado a quando ela desfilava sempre com alta-costura. Mas Cindy gostou mais dela assim. Parecia-se mais com um ser humano, e o que mais a tinha agradado era que aquilo marcava o fim de tantos anos de sua grande heroína fingindo ser alguma coisa que não era. Ela entrou no carro com pressa, mas não fazia idéia do que diria e se conseguiria olhar Cindy nos olhos. Já lhe fora um custo enorme ligar para ela. – Oi... – Oi... – disse disse Cindy, timidamente. Aquilo quebrou as defesas de Kirsten. Ela queria parecer etérea, queria parecer qualquer qualquer coisa, menos uma uma mulher desesperada, desesperada, que no momento era o que ela era. – Não Não foi educado te ligar a essa hora. – disse disse Kirsten, encarando a própria bolsa no seu colo. – colo. – Mas Mas já que você vigia a minha vida há tanto tempo, não deve ser nada de mal eu ter conseguido o seu número, para um caso de emergência, não é? Cindy mordeu os lábios e Kirsten o percebeu, pelo canto dos olhos. A loira acrescentou: “Acho melhor irmos de uma vez. – Claro, Claro, Kirsten. E... – E... – ela ela tirou uma das mãos da direção e tomou t omou a mão trêmula de Kirsten com candura. – candura. – Fique Fique calma, não deve ter acontecido nada grave com a Amanda. Kirsten tirou a sua mão debaixo da de Cindy e virou o rosto para a janela. Simplesmente Simplesmente não conseguia conseguia parar de tremer. Depois Depois de duas ou três quadras, quadras, não conseguiu mais reprimir as lágrimas que brotavam de seus olhos apertados. Respeitosamente, Respeitosamente, Cindy ligou o som do carro em um volume baixo, agradável, apenas o suficiente para Kirsten disfarçar melhor os seus fracos soluços.
– É É tudo culpa minha... – minha... – disse disse Kirsten, baixinho. – baixinho. – Eu Eu nunca assumi e ela não agüentou ficar do meu lado... eu... eu... – Mas Mas agora todo mundo sabe, Kirsten. Ela pensou em Josie, por um segundo. Como ficaria com Amanda se não estava mais sozinha? Se nunca estivera, na verdade, pois se apaixonara por sua própria personagem personagem sem saber que ela estava viva? viva? Como podia amar amar duas pessoas pessoas ao mesmo tempo? Como se adivinhasse seus pensamentos, Cindy acrescentou, depois de algum tempo: “Você já pensou que essa nova namorada pode ser uma ilusão? lógico que você já sabe dela. – – Ah, Ah, claro, lógico que dela. – Kirsten Kirsten virou os olhos. – olhos. – Vai Vai destruir essa relação também? – também? – disse disse com mágoa. – Destruir Destruir ? Do que você está falando? – Daquele Daquele maldito envelope que você me mandou. Cindy disfarçou seus pensamentos prestando atenção atenção no trânsito. A cidade estava quase vazia. – Eu Eu realmente não sei do que você está falando, Kirsten. Ela não acreditou, mas preferiu não insistir porque precisava de Cindy naquela noite. Tinha recorrido a todas as suas opções e a única que sabia onde o nde Amanda estava era a jornalista maníaca que a seguia com freqüência. – Que Que lugar é esse? – esse? – perguntou, perguntou, séria. – Um Um bar ou uma boate, ou alguma coisa entre esses dois. Amanda vem aqui todas as noites. – Que Que aspecto terrível. – terrível. – disse disse Kirsten, saindo do carro. Cindy a segurou, mas foi extremante polida em seu gesto. – Kirsten, Kirsten, deixa eu ir na frente. – Eu Eu preciso ver a Amanda! – Não! Não! Você não vai querer entrar ali, você não vai querer ver isso. Além do mais, vai ser reconhecida. As pessoas aqui não sabem quem ela é, acham que é uma sósia da Amanda, ela inventou uma história muito consistente sobre isso. – Céus... Céus...
– É É uma boa atriz, você sabe disso. Ouça, eu vou tentar trazê-la aqui, está bem? Cindy saiu do carro. Kirsten queria segui-la, mas uma das frases da jornalista lhe pesava pesava toneladas: “você “você não vai vai querer ver isso”. isso”. Perdeu -se no tempo. Voltou a chorar, secou suas lágrimas, chorou de novo. n ovo. Olhou no relógio, Cindy estava demorando. Apanhou o telefone, queria chamar alguém, pessoas estranhas passavam pela calçada, calçada, olhando para o carro, e por meros meros instantes Kirsten deixou deixou de temer por por Amanda e passou a se preocupar com a própria segurança. Dois homens saíram pela porta, Amanda estava apoiada entre os dois e ria histericamente, alternando tropeços com pedidos de que fosse levada de volta. Cindy saiu logo depois do trio. Kirsten abriu a porta e hesitou, mas acabou se levantando, para abrir a porta de trás. Não quis olhar os dois homens nos olhos, tampouco t ampouco conseguiu conseguiu erguer sua face e encarar Amanda, que ainda ria ri a histericamente. Estava irreconhecível. – Lori, Lori, já chega, você exagerou hoje. – disse disse um dos homens. “Lori”? Quem diabos era Lori? Seria a sua Mandy? sua Mandy? – Me Me deixa!!! – Eu Eu levo ela pra casa. – casa. – disse disse Cindy. – Cindy. – Obrigada Obrigada pela ajuda. Um dos homens protestou, mas o outro argumentou que Cindy era “irmã da Lori” e a levaria em segurança. Kirsten suava frio, sentia como se seus pés estivessem pregados pregados na calçada. Cindy acomodou Amanda no banco de trás e entrou no carro novamente. Os dois homens ficaram olhando Kirsten e se cutucaram por um instante. Ela virou o rosto, entrou no carro, bateu a porta e desejou com todas as suas forças que aquilo não fosse real . Cindy dirigia com pressa e nem ela nem Kirsten conseguiam dizer coisa alguma. Amanda não sabia onde estava, não saberia dizer o próprio nome, quanto menos tinha reconhecido a mulher no banco da frente. fr ente. Gritava algumas coisas que não faziam sentido e pedia sempre por mais... mais... Cindy e Kirsten sabiam o que ela queria, mas não conseguiam responder. Amanda passou a bater no vidro e Cindy teve de trancar automaticamente as portas. Elas levaram algum tempo para ver que não era um descontrole comum, que Amanda estava tendo a primeira das três convulsões que teria antes que chegassem ao hospital. – Eu Eu vou com ela! – ela! – disse disse Kirsten, empurrando um enfermeiro e se colocando ao lado da maca. – Sinto Sinto muito, senhorita, só a paciente. Kirsten insistiu, correu atrás da maca que era levada às pressas para a emergência, cheia de pessoas de verde claro em volta. – EU EU NUNCA VOU DEIXAR VOCÊ! – VOCÊ! – gritou, gritou, esmurrando a porta que fora trancada na sua cara.
Não conseguiu discernir muita coisa a partir de então. Sentiu que braços a envolveram e que uma voz doce lhe pedia calma. Foi conduzida a algum lugar, l ugar, mas não conseguia dizer nada além de balbuciar o nome de Amanda, apertando os olhos. – Ela Ela vai ficar bem, a culpa não é sua... – sua... – repetia repetia Cindy, afagando suas costas e sua nuca, em um abraço apertado ao qual Kirsten se entregou sem entender, sem saber por que queria tanto trocar de lugar com Amanda e estar sendo reanimada na sala ao lado ao invés de apenas poder esperar. – Eu Eu quero entrar lá, me deixa entrar lá... – pedia. pedia. Teve a vaga impressão de notar Cindy apanhando seu celular e ligando para Debra e Richard. Já não conseguia conseguia nem nem lembrar quem eram eram aquelas pessoas. pessoas. Só queria morrer. O que lhe pareceu ser um século depois, ouviu uma voz estridente. – Lindinha! Lindinha! Lindinha, vem cá. Disse a ele as mesmas coisas que dissera à Cindy, mas suas frases não faziam sentido. Tentavam consolá-la, mas ela não acreditava. Não queria aceitar. Debra chegou em seguida, Cindy se apresentou e tentou contar tudo o que acontecera, mas os amigos estavam mais preocupados em conseguir informações dos médicos do que prestar atenção atenção naquilo. – Eu Eu não acredito nisso! Eu não acredito nisso! A minha vida é uma completa merda! – Kiki, Kiki, você precisa ser forte agora. – De De que adianta? Eu fiz tudo errado, Richie. Eu fiz tudo t udo errado, Debby. – Não Não fez não, Kiki. – Quando Quando estava com ela eu tinha aqueles pesadelos... aqueles pesadelos e... – e... – ela ela só conseguia chorar. – chorar. – E E agora que eu achei a Josie eu fico sonhando com a Mandy... Eu não sei o que eu quero, eu acabei com todo mundo, eu... eu... – Chega, Chega, lindinha... é melhor você tomar t omar alguma coisa enquanto a gente espera. – NÃO NÃO QUERO NADA!!! EU SÓ QUERO MORRER! Uma enfermeira se aproximou. Kirsten secou suas lágrimas paliativamente e encarou a mulher. Ela lhe reconheceu reconheceu imediatamente imediatamente e pareceu perder a convicção séria e inabalável de quem portava sempre as piores notícias e tinha de transmiti-las sem sentir nada. – Amanda Amanda Roberts. – Roberts. – disse. disse. – Somos Somos nós. – nós. – confirmou confirmou Richard.
– Alguém Alguém da família? – Nós. – Nós. – repetiu repetiu Richard. A enfermeira balançou a cabeça. Não era hora de discutir. – Alguém Alguém que queiram avisar? Kirsten pensou nos pais dela. No irmão. ir mão. Não os conhecia, mas sabia que existiam. Sabia que Amanda fora criada em um lar americano comum. Mas não conseguiu pensar neles como a “família de Amanda”. Nisso, só pensava em si mesma. – Estão Estão todos aqui. – aqui. – disse disse Debra, depois de algum tempo. t empo. – Ela Ela está em coma. – coma. – disse disse a enfermeira, olhando para uma prancheta em suas mãos. – mãos. – A A equipe fez tudo que estava ao seu alcance, agora depende da reação dela. Vai ficar quarenta e oito horas na terapia intensiva, só depois poderão dizer se ela tem condições de... de se recuperar. Se a droga tivesse agido por mais tempo não haveria o que fazer, agradeçam aos Céus pelos segundos que fizeram diferença. dif erença. Kirsten apertou a mão de Cindy, Cind y, que estava ao seu lado. Apertou com tanta força que teve medo de machucá-la, mas não parou. A maldita stalker sempre perseguindo as duas. O que era aquilo? Admiração? Obsessão? Demência? Um estranho tipo de amor? Por quem? Pela própria Kirsten? Por Amanda? Pelas duas ao mesmo tempo? Seria inveja? Seria Cindy Sparrow um anjo disfarçado? As fotos. O envelope. As manchetes. “ É “ É doce o sabor da vingança” vingança” . Mais uma vez em completo desespero, Kirsten começou a pensar. Dera sempre a mesma resposta fácil para tudo aquilo que talvez algumas pistas lhe tivessem escapado.
(até o próximo capítulo)
Notas Finais:
*frases da Darknaná* e agora? Amanda escapa dessa? E a Kirsten, como vai ficar? Afinal de contas, onde está a Josie que simplesmente desapareceu? desapareceu? Alguém quer começar as apostas para o(a) autor(a) da vingança? Qual seria o motivo? Voltar para o índice Má notícia escrita por Sara Lecter
“Como vamos falar de amor Se ele não nos sobrevive mais oh baby Feito fogo que se apagou apagou Só uma história pra lembrar Como vamos falar de nós Se o passado ainda dói demais oh baby Tantas mágoas ficaram presentes em vão Não vou te esquecer Mas sei que perdi No jogo do amor tudo tudo acabou Só eu não vi, não percebi Que em teu olhar Não pode brilhar Estrela do mar feito farol Brilhou outro alguém Como vamos nos perdoar Se feridas tão abertas oh baby Pesadelos fazem despertar solidão oh não”. Farol. Anjos do Hanngar.
Capítulo 43 – Má Má notícia
Abriu a porta da frente e apanhou a mala que largara aos seus pés. Josie reuniu toda a coragem que tinha para entrar no apartamento da Quinta Avenida e teve de reforçá-la quando viu a luz da sala apagada, embora uma luminária destacasse a poltrona onde Kirsten a esperava, de costas. Seus passos foram lentos, mas bem marcados. Queria ser notada, embora soubesse que Kirsten hesitaria. Quando a loira se levantou e encontrou os seus olhos, Josie achou que fosse cambalear. Não estava pronta para aquilo. Definitivamente não estava. – Por favor, não faça isso. – disse, largando a mala mais uma vez. – Oi, meu bem. – Kirsten sorriu de maneira amena. – Como estava Seattle? – Kirsten... – Que houve...? – Me abraça? Kirsten não o fez imediatamente. Um pouco porque não tinha forças, outro tanto porque não estava entendendo nada. Por fim, deu alguns passos decididos, atravessou a sala e tomou a namorada em um abraço longo e apertado, no qual não sabia se a consolava ou se buscava algum conforto. “Eu senti. – disse Josie, baixinho. – Senti algo muito estranho, Kirsten, e agora eu vi nos seus olhos. Por favor, não me deixe. Eu não suportaria... O choro desesperado de Josie a desarmou. Kirsten elaborara tão bem as suas palavras, mas no meio daquele abraço afetuoso percebeu que elas seriam insuficientes, que nada poderia traduzir o que ela estava sentindo. – Meu bem, e a viagem? – preferiu não tocar no assunto. – Normal. Eu senti sua falta... – Resolveu o que tinha para resolver? – Uhum. Kirsten pegou a mão dela e a conduziu até o sofá. Continuavam naquela quase escuridão, e suas gargantas doíam como se tivessem sido estranguladas há bem pouco. “Eu senti muito muito muito a sua falta, K irsten. – Josie a abraçou. – Não quer tomar um banho e descansar? – Só se você for comigo, eu não quero sair dos seus braços agora.
Ela mordeu os lábios. Seria mil vezes mais difícil do que nas suas piores estimativas. – Josie... Ficaram em silêncio por um longo tempo, trocando carícias, ronronando, abraçando-se. – E você? O que fez nesses quatro dias? Kirsten mordeu os lábios. Não atendera várias das ligações de Josie e no pouco que se falaram, foi distante e evasiva, sempre arrumando uma desculpa para desligar rapidamente. A verdade era que estava exausta, e como um cobertor, sentiu que estar nos braços da namorada era a primeira boa sensação que tivera naquele período. – Aconteceram muitas coisas... – introduziu, com certo medo. – E eu vou precisar que você seja forte, porque eu não estou nada bem. Nada bem... Josie a abraçou, a confortou, beijou seu rosto com candura, tomou sua mão, acariciou-a, beijou-a, deitou a cabeça de Kirsten em seu colo e ficou bagunçando o seu cabelo, cautelosamente. – Então comece a me contar. Um milhão de opções. Esse era o número que Kirsten tinha em mente. Como falar? Como começar? O que diria? Que tom usaria? Seria direta ou ficaria enrolando por horas até não agüentar mesmo e descarregar tudo? Josie merecia isso? Kirsten sabia que não. Kirsten a amava desde que encarnara o seu papel no cinema, e fora Josie quem a tirara de uma longa e profunda depressão. E Kirsten também amava Amanda. Ainda. Sempre amaria. Saberia escolher? Precisava mesmo fazer isso? Não era tão mais fácil simplesmente deixar as coisas como estavam? A última possibilidade a agradou, porque doeria menos... porque ela não precisaria daquela maldita conversa e, por um instante que lembraria eternamente como a pior fração de segundo da sua vida, desejou que Amanda não acordasse. Desejou que as forças do destino escolhessem no seu lugar. Desejou que Amanda morresse, e quando se deu conta disso, achou que seu coração fosse explodir. Onde estava a porcaria dos seus pais, que não a consolavam? Afinal de contas, por que eles tinham de morrer e deixá-la completamente sozinha? Kirsten nunca tinha sentido tanta falta deles quanto naquele dia. Era uma falta que, ao contrário das outras, Richard e Debra não supriam. Nunca seriam capazes. Kirsten desejava que alguém desse uma pausa no mundo e resolvesse todos os seus problemas enquanto ela ficava ali deitada, triste, sofrendo, esperando. Mas ninguém faria isso por ela. Tinha de ser forte. Estava sofrendo tanto, e justo nessa hora, tinha de ser corajosa. Por quê??? – Amanda está no hospital, sofreu um acidente.
Josie prendeu a respiração, interrompeu o afago por meio segundo e depois continuou, tentando manifestar que aquilo não mexia com ela, que fora uma notícia corriqueira. – Acidente? – Ela não andava nada bem, você sabe, deixou o teatro, estava saindo muito, arranjou as companhias erradas... Não estou dizendo que ela não seja a maior responsável, mas... Foi overdose. – E como ela está? – a preocupação de Josie era genuína. – Entre a vida e a morte, há três dias. – Oh, Kirsten... Um abraço apertado, um beijo no rosto e lágrimas de carinho. Essa era a resposta de Josie para aquela notícia. Kirsten se entregou àquele abraço e chorou tanto, mas tanto que seu peito doía e o ar não parecia suficiente. Não conseguia respirar. “Podemos ajudar? Ela está num bom hospital? Quer que eu vá lá com você? E pronto. Alguém estava finalmente cuidando dela. Cuidando da pequena Kirsten Howard, que já não tinha mais coragem de resolver os próprios problemas. – Richie e Debby estão lá, fazem rodízio com a ex-produtora dela, mas de qualquer modo ninguém pode vê-la. – Você foi? A maldita pergunta. – Josie, ela estava comigo quando aconteceu. Silêncio. O pior silêncio que Kirsten já tivera na vida. “Falamos ao telefone duas horas antes, mas ela já estava fora de si. Eu fui procurá-la, tive ajuda de uma amiga que sabia onde ela ia, sempre. Foi horrível, Josie, um lugar deplorável, pessoas deploráveis. Quase não a conseguimos pôr no carro e então, quando íamos para a casa do Richie, aconteceu. Até ali não sabíamos que ela tinha exagerado tanto. Mais um abraço apertado. “O coração dela parou três vezes, seg undo os médicos, mais um minuto e ela não teria chegado viva ao hospital. – Então você a salvou...
– Não, Jo, eu a matei!!! – Não fale assim, ela vai se recuperar. E a culpa não é sua. – Ela está assim porque eu a deixei, Jo. – Você também a perdeu e não ficou desse jeito. Amanda é adulta, sabia dos riscos que corria. – Mas eu não cuidei dela! – Você mesma disse que foi ela quem te deixou. Meu bem, não se sinta culpada... não vai adiantar nada, agora. – Nada vai adiantar agora. Eu só quero morrer . – Ninguém vai morrer, ouviu bem? Amanda vai ser tratada e você vai ficar comigo. Eu agüento a barra com você. Eu agüento a barra com você. – Não posso. – disse, com coragem que viera do completo desespero. – Não posso, Josie. – Kirsten, não faça isso. Não tome decisões numa hora dessas. – É o que eu tenho de fazer. – Não. Eu não permitirei que faça isso conosco. – Josie a olhou com calma. – Há quanto tempo você não dorme, meu bem? – Não sei... Três dias. Josie a levou para o quarto. Kirsten queria protestar, mas não o fez. Não queria alguém que pensasse e agisse por ela? Josie o estava fazendo. Deitaram-se na cama, lado a lado, e Kirsten fez do ombro da namorada um travesseiro. Chorou por meia hora, um choro que não foi solitário, embora estivessem pensando em coisas diferentes. Em perdas diferentes. Quando a loira se acalmou, Josie a soltou do abraço, mas continuou acariciando suas costas com candura. Também estava cansada, e assim que notou pela respiração de Kirsten que ela estava inconsciente, deixou o sono vencê-la. – Eu te amo, Kirsten. – sussurrou, mesmo sabendo que ela não ouviria.
(até o próximo capítulo)
Voltar para o índice Lento Recomeço escrita por Sara Lecter
“Por onde quer que eu vá vou te levar pra sempre... a culpa não foi sua, os caminhos não são tão simples mas eu vou seguir Viagem e pensamento numa estrada de ilusão Que eu procuro dentro do meu coração Toda vez que eu fecho os olhos é pra te encontrar”. 1 minuto. D’Black.
Capítulo 44 – Lento Recomeço Barbara segurava a sua mão e o rosto adormecido de sua amiga foi a primeira coisa que ela enxergou. Sabia que em algum momento já havia retomado a consciência, mas não conseguia falar, e acabara apenas deixando os médicos mais agitados. Tinha alguma noção do que acontecera, mas não conseguia pensar naquilo. – Amanda...? – um sussurro a fez voltar a abrir os olhos depois de algum tempo. – Estou aqui. Um beijo na testa. Barbara estava emocionada, mas Amanda não conseguia sentir nada direito, a não ser a agulha do soro em sua mão esquerda, do lado oposto ao que Barbara ocupava, na beira do leito. – Como se sente? – Bem. – Precisa de alguma coisa? – Apenas tente me explicar o que aconteceu.
– Você passou da conta. Passou muito da conta. Ficou três dias na UTI. Amanda, foi muito sério, e eu... eu me sinto em parte responsável, porque eu não quis acreditar que isso aconteceria com você. Achei que você fosse mais forte que eu, que a demissão dos palcos te faria acordar. Amanda não respondeu. Ficaram em silêncio por algum tempo. – Três dias, você disse? – Hoje é o quinto. Você foi melhorando aos poucos. – Devem ter feito um circo e anunciado a minha morte... – ela pensou nos pais por um instante, um instante que demorou a passar. – Isso se eu realmente estiver viva. – Pare de brincadeiras. Use isso como um motor para sair dessa fossa, Amanda. Pelo amor de Deus, você quase se foi... é tão jovem, é linda... Ela apenas negou com a cabeça e começou a sentir lágrimas escapando de seus olhos. Barbara continuou: “E não saiu em jornal algum. – ela fez uma pausa. – Parece que a sua exmulher é mais influente do que eu imaginava. – Kirs? Ela sabe?? – Foi ela quem encontrou você, Amanda. As lágrimas passaram a molhar o travesseiro listrado do hospital. Amanda só conseguia pensar na reação de Kirsten ao encontrá-la completamente fora de si. E ela tinha ligado, tinha tentado conversar. Amanda lembrava claramente, só não lembrava por qual razão não tinha respondido, não tinha corrido para os braços dela. – Onde ela está? – Ligou há uma hora. Estão todos com você, Amanda. Richard e aquela sua amiga Debra. A Gail apareceu, mandou flores ontem, quando você veio para o quarto, mas uma enfermeira levou embora faz pouco. Amanda lembrou que tinha visto flores da primeira vez que abrira os olhos. – Mas e a Kirsten? – Ela veio até o terceiro dia, Amanda. Até você sair do coma, mas não conversamos, você sabe, nossos gênios não batem. Os médicos entraram e Amanda foi obrigada a voltar a descansar. Ela não poderia imaginar, naquela noite, que só voltaria a ver Kirsten Howard muito tempo depois daquilo.
333 No dia seguinte os jornais divulgaram as primeiras notas à respeito, mas elas se limitavam a informar que Amanda se recuperava, ainda no hospital, de problemas advindos do consumo inapropriado de álcool. Cindy Sparrow estava com um dos periódicos na mão e acabara de ler a nota em voz alta, portando um copo de café processado na outra mão e um sorriso ameno, mas satisfeito, no rosto. Encarou Kirsten curiosa: – Melhor assim. Amanda é artista, não fica tão mal para a imagem dela. – Ligou para o hospital? – Kirsten encarava a janela, pensativa. – Richard foi pra lá, Amanda ainda não acordou. Kirsten moveu a cabeça afirmativamente e não reagiu mais. Cindy ficou esperando por alguma coisa, depois julgou que seria melhor terminar de tomar seu café na cozinha. Havia acabado de ser admitida como assistente pessoal da mulher que mais admirava e, embora preocupada com o estado de Amanda, estava nas nuvens. Apenas encostou a porta da biblioteca, que Kirsten usava como escritório, e deixou a loira com seus pensamentos. Uma hora mais tarde a casa estava muito mais agitada. O Senador viera em pessoa para uma pequena reunião e trouxera consigo três assistentes. Havia ainda um advogado contratado por Kirsten e uma garota que o acompanhava, sendo provavelmente sua secretária. Cindy deu de ombros, era tão boa em captar pequenos detalhes que sacou na hora que eram amantes. Podia fazer isso com qualquer pessoa. Uma pequena olhada e lhes descobria os maiores segredos. Kirsten aprenderia logo a usar os dotes de sua nova assistente a seu favor. – Soubemos de Amanda. – disse o Senador. – Como ela está? – Recuperando-se. – disse Kirsten, friamente. Mudava completamente de ares quando estava em um ambiente como aquele. – Vamos discutir o texto? – pediu um dos asseclas do político. – Não vai passar. – disse o advogado. – De jeito nenhum. Kirsten moveu a cabeça em concordância. – Que pensam em mudar? – quis saber o Senador. – O legislador é você. – disse Kirsten. Todos trocaram olhares nervosos.
– Talvez devamos remarcar essa reunião. – alguém sugeriu. – Semana que vem, em Washington. – Não. – disse Kirsten. – Não. Desculpem. Eu só preciso me concentrar, não quero mais adiar. – Mudar o mundo não é uma tarefa fácil. – disse o Senador, compreensivo. – Só que eu não vou desistir até conseguir. – disse a loira, voltando-se para Cindy. – Se importa de me apanhar um café? – então voltou aos membros da reunião: – O que precisamos é de tempo. – E de gente. – Isso já temos. Existe uma infinidade de grupos organizados. O problema é que estão organizados em si, mas não em cadeia. Isolados, nunca conseguirão nada mais que barulho e um discurso chateado de um Padre de vila. Cindy encostou novamente a porta da biblioteca, cada vez mais admirada com Kirsten. Sabia tanto sobre ela, mas havia muito o que descobrir, ela tinha uma visão das coisas que era clara e madura. Seria sem dúvida uma peça chave, se aquele projeto realmente saísse do papel. Pensando nisso, andou distraída até a cozinha. Apanhou uma caneca em um armário alto e andou até a cafeteira, completamente absorta. Voltou à biblioteca, levando outra caneca de café. Kirsten a encarou com curiosidade e depois riu. A blusa de Cindy tinha uma enorme mancha de café. – Você está bem? – Um pequeno acidente. – ela fez um gesto despreocupado. – Não viu, por acaso, se a Jo está em pé? Cindy pousou a caneca na mesa, diante de Kirsten, e respondeu displicentemente: – Por acaso está sim. Ela foi meu acidente. Kirsten sorveu um longo gole e voltou seu olhar para os membros da reunião. Cindy se sentou ao lado dos outros e recomeçou com suas anotações. – Então sua idéia é essa? – retomou o Senador. – Sim. Mas não vamos deixar ler todo o conto para todos eles. Sabemos como perdem o controle com facilidade. Vai ter de ser uma caminhada silenciosa, no começo.
– Perdão, mas... gays não exatamente o que se pode chamar de “silenciosos”. – disse o advogado. – É pra acabar com opiniões como a sua que estamos aqui. – disse um dos assistentes do Senador. – Desculpe, mas é que... – É um estereótipo e você acredita nele. Ótimo, se vamos pensar por estereótipos, gays também são mais inteligentes que a média, o que nos dá vantagens. – disse Kirsten. Ela estava começando a se irritar. Amanda sempre dizia que ela tinha muito argumento, mas pouca paciência para discussões que não surtiriam resultado imediato. Estava completamente certa. Então Kirsten apanhou uma das cópias do projeto, uma caneta, rabiscou alguma coisa no canto, rapidamente, e mostrou para Cindy, enquanto a reunião continuava. Cindy saiu discretamente, voltou dez minutos mais tarde e entregou um bilhete à Kirsten. “Consciente. Completamente fora de perigo. Começa a fisioterapia esta tarde. Richard no quarto, liga mais tarde”. Kirsten agradeceu com um aceno discreto, que não interrompeu a reunião. Meia hora mais tarde, com todos munidos de novas tarefas, o grupo se desfez. Kirsten convidou o Senador para almoçar com ela e Josie, mas ele tinha de voltar imediatamente para Washington.
333 – Pensei ter ouvido de você que sua nova assistente era “feia, velha e heterossexual”. – disse Josie, depois do jantar, massageando as costas de Kirsten. Ela riu. – Devo ter me confundido. – disse. – Sei. – Você é ciumenta mesmo, hein? – Muito! – Cindy é meio desequilibrada, mas vamos nos dar bem no trabalho. Preciso de alguém comigo, com essas reuniões políticas, o novo emprego em Los Angeles. – Quando você vai pra lá?
– Amanhã. – Posso ir com você? Kirsten estranhou, mas depois sorriu. – Claro. Alguma coisa em mente? Josie pesou bem a força de suas palavras antes de responder. – Pensei em... bom, eu não vejo a Susan há anos, não pessoalmente. Kirsten se afastou imediatamente. “Hei, eu só quero conversar com ela. – Sei bem o que vocês duas vão conversar. – Kirsten, nosso casamento acabou há tanto tempo, não há motivos para você... – Conheço a história, ok? O que foi? Vão reafirmar o juramento? – Que juramento? – quis saber Josie. – Não me tome por tola. Juraram nunca se separar. Francamente, eu li isso mil vezes, eu encenei isso, como se fosse você. – Kirsten, quando você vive uma história intensa como foi a minha com Susan, faz coisas desse tipo, você jura ficar junto pra sempre, você promete que nem a morte vai lhes separar, mas sabemos que acaba um dia. – Não acaba não. – ela disse, cuspindo as palavras. – Não pode acabar, se você diz as coisas, tem de cumprir, porque você sentiu de verdade na hora e isso não desaparece nunca. – Ta falando de quem? – Josie se irritou. – De você e dela. – Porque por um momento eu achei que você estava falando de si mesma. E de você-sabe-quem. Kirsten não respondeu. – Cindy vai com a gente, amanhã. – informou. – Ah é? Você é muito descarada mesmo, contratar uma assistente dessas... – disse, tentando divertir a namorada, para aliviar o clima pesado que tinha dominado a conversa.
– Pra mim ela é velha, feia e hétero. Eu nem tinha reparado. – disse, mordendo os lábios depois dos beijos de Josie em seu pescoço. – Não? Não reparou no cabelo, não? – Não. – Nem nos seios? Aposto como olhou. Apesar de que ela não os valoriza muito. – Valoriza sim, foi só hoje que apareceu com uma blusa mais comportada por causa da reunião. Kirsten recebeu um tapa estalado no ombro e riu a valer. O olhar de Josie mesclava raiva e alegria. Kirsten se virou para beijá-la no rosto, perto do ouvido, no pescoço, no colo. – E o resto? – Ta bom, eu olhei sim. – Kirsten recebeu outro tapa, mas não reclamou, estava ocupada tirando a blusa da namorada. – Ela é bonitinha, né? – É... – Josie apertou os olhos. Kirsten a acariciava na barriga, arranhando sua pele de leve. – Meio estabanada, mas quando está concentrada ela franze o cenho e fica tão sexy, não tem como não babar... – continuou Kirsten, sabendo que Josie estava chegando ao limite de seu ciúme. – Você me paga, Kirsten. – E tem o melhor! Você sabe que ela é minha fã número 1, não sabe? É só eu estalar o dedo e... Josie calou a boca da namorada com um beijo intenso, tirou-lhe a blusa também, deitou sobre ela, insinuou seu corpo, gemeu baixinho no ouvido de Kirsten. Sabia que estava apenas sendo provocada, mas era uma estranha sensação. E por culpa daquele maldito jogo, não conseguia afastar da sua mente a garota com a blusa manchada de café e um sorriso bobo na face.
(até o próximo capítulo)
Voltar para o índice Toda dor deste mundo vai passar escrita por Sara Lecter
“Minha dor é perceber Que apesar de termos feito tudo o que fizemos Ainda somos os mesmos E vivemos como nossos pais”.
Belchior. Na parede da minha memória essa certeza é o quadro que dói bem mais.
Capítulo 45 – Toda dor deste mundo vai passar Amanda respirou profundamente, olhando para suas mãos trêmulas. A recuperação psicológica era infinitamente mais difícil que a fisioterapia. Tamanho colapso poderia lhe ter deixado seqüelas mais graves, mas felizmente ela se sentia fisicamente perfeita. O problema era que morria de medo de ser fraca mais uma vez. Barbara, Richard, Derek, Debra e Enrico se revezavam para nunca deixá-la sozinha, mas tiveram de cogitar contratar uma enfermeira, porque todos eles eram pessoas bastante ocupadas. A opção de procurar uma clínica partiu da própria Amanda, ao que foi apoiada por todos. No dia em que fez as malas, três semanas depois de sair do hospital, chorou tanto ao se despedir dos amigos que parecia uma caça indo ao abatedouro. Tinha medo. Mas de qualquer maneira, estava em um táxi, rumo ao melhor centro de tratamento para dependentes químicos da região de Nova Iorque. Um dos melhores do país. Já não sabia se aquela tremedeira toda era abstinência mesmo ou era uma nova mania. Amanda já não sabia de nada. Começou a traçar planos. Ainda não sabia quanto tempo ficaria lá, e só conhecia o lugar de uma rápida entrevista. Pensou nas regras. Sem celular, sem internet, horários muito rígidos. Barganhou poder levar um violão e previu que seria este o seu único companheiro. Ela não sabia o quanto estava certa... Com a atenção toda voltada para Amanda, Richard e Debra acabaram se afastando de Kirsten. Ela não reclamou, embora eles a conhecessem o suficiente para saber que estava ofendida. A maneira que ela encontrou de “se vingar” foi ocultar seu novo projeto. Seus amigos nada sabiam sobre Washington, sobre o Senador, sobre as reuniões. Julgavam que ela andava mentindo sobre estar ocupada para não encontrar Amanda. Em certo aspecto estavam corretos. Kirsten temia que sua ex-mulher tivesse uma recaída se elas se encontrassem. Não queria abusar da sorte. Ainda lembrava da dor aguda, da angústia interminável na sala de espera do hospital, sem saber se Amanda sobreviveria ou não. Havia, em última análise, Josie. Atenciosa, carinhosa, protetora. Ela cuidava tão bem do apartamento que Kirsten às vezes se pegava admirada. Como não estava trabalhando, Josie ia a galerias, museus, fazia compras, estava sempre
procurando alguma coisa, e aquele interesse, aquela sede de viver contagiavam Kirsten. Lembrava muito a Josie que ela interpretara. Mas as comparações não iam muito longe. Depois de conhecê-la melhor, Kirsten tivera a exata noção do que era realidade e do que era ficção na obra de Susan Frears. A Josie da “vida real” era realmente maravilhosa, mas não era a mesma pessoa que Kirsten interpretara.
333 Amanda já não sabia mais em que posição sentar. Um a um foram saindo todos os que a acompanhavam. Alguns conhecia de rápidas conversas na cozinha ou nos corredores, mas a maioria ela preferia ignorar completamente. Sua rotina na clínica era bastante solitária, como estava sendo o domingo reservado para visitas. Ela olhou para a porta mais uma vez, não conseguia acreditar. Nem mesmo uma ligação? Nem Barbara, nem Richard, nem Debra... nenhum amigo tinha lembrado de vir vê-la.
333 Enrico atendeu o telefone e passou para a noiva, que dormia ao seu lado, informando que era Richard do outro lado da linha. Debra acordou, curiosa, pigarreou, apanhou o telefone e disse: – Richie? – Debby, onde você está? – Eu... er... você sabe, depois do almoço e tal... – ela riu. – Safadinha... – ele riu também. – Mas, bem, você era minha última esperança. – acrescentou derrotado. – Que houve, Richie? – Não sei se um plano maligno ou um enorme mal entendido. Duas clientes marcaram com meu secretário às pressas e eu tive de ir atender. Cheguei na casa da primeira e vi que era engano. Liguei para a segunda e descobri que também havia algo errado. – Está dizendo que alguém marcou por elas? – Sim, tentando me deter, me atrasar, sei lá. Sabe que dia é hoje, não sabe? Liguei para Barbara, ela disse que havia um recado do seu noivo na secretária dela. – Enrico? Impossível.
– Com isso, ela marcou outra coisa, achando que vocês dois iriam, e agora não pode mais. – Alguém armou um plano para que ninguém fosse ver a Amanda... – constatou Debra, assustada. – Mas quem faria isso? – Eu não sei. E não queria ter de recorrer a isso, mas... – Ligou para a Kiki. – Sim. Mas ela não atendeu. Deixei recado com a garota.. a... Cindy. Ela disse que Kirsten estava ocupada e não quis especificar, quase perdi a compostura com ela. Deixei um recado na casa dela, Debby, mas você sabe, a Jo está em Nova Iorque. – Céus, Richie, a Amanda vai ficar derrubada. Ainda da tempo? Vamos? – Sem chances... – lamentou ele.
333 Os funcionários não escondiam suas expressões de pena ao informar Amanda que o horário havia acabado e que não havia mais ninguém para chegar. Ela prendeu a respiração por algum tempo, depois tentou sorrir e voltou ao seu quarto. Não queria chorar porque estava justamente aprendendo a ser forte, mas quando ouviu as conversas dos corredores, todos os outros internos se despedindo das pessoas que amavam, tinha de apertar os olhos para impedir que as lágrimas rolassem por sua face atônita e inconformada. Tudo ficou em silêncio, o sol ameaçava baixar no horizonte e ela ouviu uma fraca batida na porta. – Entre. Viu primeiro um rosto cansado que foi animado por seu sorriso espontâneo, incontido, indescritivelmente surpreso. “M... mãe? Anos depois do último contato, Amanda não conseguia conceber a idéia de chamá-la de outra maneira. Sua surpresa foi ainda maior quando seu pai e seu irmão passaram pela porta, tímidos mas sorridentes. – Oi, Amanda. Sentaram-se ali pelo quarto. Amanda não sabia o que fazer, se controlava seu coração acelerado ou se corria para os braços deles. Também não sabia o que eles esperavam. O último contato fora intenso e traumático demais para ser esquecido,
embora aquele reencontro pudesse ser uma prova de que toda a dor do mundo pode ser superada. O início da conversa foi tenso, mas ninguém esperava outra coisa. Amanda logo descobriu que não precisaria atualizar sua família, eles estavam sabendo de tudo. – Não tínhamos idéia de que era tão grave, que você tinha vindo para um lugar assim. – disse o Sr. Roberts. – A minha carreira com atriz está acabada. Preciso de paz para recomeçar. – Você ficou famosa, irmãzinha. – disse Aaron, com um riso tímido. – E você, foi para a faculdade? – Tentei, mas não era para mim... – Seu irmão tatua drogados em um estúdio perto da nossa casa. – disse a Sra. Roberts, que só então se deu conta do que dizia. – Olhe, Amanda, não é fácil para ninguém. Ela resolveu relevar. – É isso que você gosta de fazer, Aaron? – É sim. – Então, parabéns! E... aquela namorada que você tinha...? – Não deu certo. Mas estou com outra pessoa. “Outra pessoa”. Estranha expressão. O pai de Amanda pareceu ler os seus olhos. – Uma mulher, graças a Deus. Amanda resolveu rir. Não queria discutir. – Moramos no mesmo lugar? – Sim. – disse sua mãe. – E... você pode voltar pra lá, se quiser. Quando puder sair daqui e tudo mais. – Quero fazer o tratamento até o fim. Estou limpa desde o acidente e assim pretendo permanecer. – É, mas e quando não for mais vigiada?
– Só podem estar brincando! Esta clínica é o lugar mais fácil de conseguir drogas que eu já vi. Traficantes de internam para vender aqui dentro e alguns funcionários, para ser sincera a maioria deles, ganha alguma coisa por fora para fazer vista grossa. É tudo uma mentira. É preciso ser mais forte aqui do que lá fora. – Então por que ficar? – Isolamento. – É, você se tornou uma pessoa pública. Precisava ver a cara dos meus amigos quando você apareceu na noite do Oscar! – Aaron sorriu orgulhoso. Amanda encarou a janela. O sol estava se pondo devagar e aquele fato lembrado por seu irmão lhe parecia naquele momento mais distante até do que a vida que dividira com aquelas três pessoas. – Bem, agora vocês já sabem que eu estraguei tudo. Despediram-se depois de uma hora de conversa. Amanda finalmente os abraçou, com força, e não queria mais largar... nenhum deles. Fechou a porta. Respirou fundo. Tentou parar de tremer, mas passou pela porta de novo, apressada. Sua família não estava mais no corredor. Amanda andou até a ala administrativa, quase correndo, mas só os pôde ver pela janela de vidro grosso. Estava escurecendo, mas seus olhos não poderiam lhe enganar: eram quatro pessoas caminhando até o carro, uma delas não participara da conversa. Amanda piscou seus olhos como se quisesse afastar o que poderia ser uma miragem, e como ela continuava lá quando os abriu de novo, começou a bater na janela desesperadamente. Os funcionários a detiveram, estavam acostumados àquilo, os internos não lidavam bem com a despedida dos parentes, sabendo que teriam de voltar para o completo isolamento do mundo exterior. Amanda tentou resistir, bateu no vidro com força, mas ninguém a ouviu do lado de fora, ninguém olhou para trás. “ EU NUNCA VOU DEIXAR VOCÊ!!!
(até o próximo capítulo)
Voltar para o índice Transtornada escrita por Sara Lecter
“Put on your break lights
We're in the city of wonder Ain't gonna play nice Watch out, you might just go under Better think twice Your train of thought will be altered So if you must falter be wise
Your mind is in disturbia”. Disturbia. Rihanna.
Capítulo 46 – Transtornada Três horas antes da visita à clínica, em um velho apartamento do Soho. – Senhor e senhora Roberts? Eles assentiram. Kirsten passava sempre por aquele tipo de situação constrangedora, nunca tinha certeza se havia sido reconhecida ou se precisava se apresentar; e não sabia como faria isso. – Entre. – disse o homem, polidamente. A sala era aconchegante e muito bem arrumada. Difícil de acreditar que Amanda havia crescido ali. – Bem, eu me chamo Kirsten Howard. – ela aguardou, olhou para a mulher e depois acrescentou. – Mas acho que já sabem disso. – Fique à vontade. – indicou a Sra. Roberts. – Quer alguma coisa? Água, café...? – Um café seria ótimo. – Kirsten sorriu. Kirsten não sabia o que dizer. Não sabia como começar. Estava aliviada por ter sido recebida, mas apavorada por constatar que não esperava por aquilo e nem tinha se preparado para tal. Mas tinha de seguir em frente. “Lamento não ter avisado, mas a ocasião pedia... – Sabemos que você e a nossa filha eram... hum... amigas.
– Casadas. – disse Kirsten, em um tom seguro que ao mesmo tempo não parecia desrespeitoso. – Amanda foi minha mulher e eu, dela. – Não pela lei. – disse a Sra. Roberts. – Tem razão. – Kirsten sorriu amigavelmente. – Vim por um assunto que lhes diz respeito e gostaria de ir direto ao ponto. – Lemos que ela andou tendo problemas com bebida. Kirsten baixou os olhos. O tom do Sr. Roberts era tão neutro que ela passou a temer o resto da conversa. Mas não desistiu. – Foi bem mais grave do que isso. Consegui esconder da imprensa. – Você? – Um amigo aqui e outro ali, muitos me devem favores, ou a minha família. O fato é que Amanda estava viciada em drogas. Começou depois que nos separamos, acabou com a carreira dela e foi mais longe do que isso. Foi uma questão de meses... rápido demais para que qualquer um pudesse contê-la. – Mas... mas ela está bem? – perguntou sua mãe, preocupada. Kirsten fez suspense de propósito. – Três dias em coma. Aguardou a reação deles. Sabia que estavam pensando que essa era a situação atual e não se preocupou. Tinha uma idéia na cabeça, e tinha de dar certo. – Céus, a minha filhinha... – Overdose. – acrescentou Kirsten. – A... a Amanda... – Uísque e cocaína, foi tirada fora de si de uma boate. – Pare... – pediu a mão dela, sem conter as lágrimas. – Você veio nos dizer que ela... que ela... Kirsten nem piscou. – Há quanto tempo não falam com a sua filha? O pai de Amanda foi quem respondeu, depois de algum tempo.
– Ela... ela resolveu sair de casa, queria porque queria ser atriz. – ele fez um gesto de desagrado. – Uma bobagem dessas, e ela dava tudo por isso. Você também é, não? – Atriz? Sim. É uma profissão regulamentada nos dias de hoje, temos contratos, direitos e deveres, todas essas coisas. É algo muito admirado também. – Mas é... – ele freou suas palavras. – ...você tem de entender, para pessoas como nós... – Foram vê-la no teatro, algum dia? Ela começou cedo, aqui perto. – Mas era fora do horário da escola, não era para ela continuar nisso, era um passa-tempo. – Eu fui. – confessou sua mãe, sob o olhar admirado do marido. – Eu fui uma vez, ela não sabe... Kirsten sorriu para ela. – Mandy ficaria feliz em ouvir isso. Então? – Era bonito... – disse, timidamente. – Mas era tão confuso. Muita gente, muito barulho. – É, isso assusta mesmo. – Kirsten sorveu seu café e o elogiou. – Às vezes os filhos tomam rumos em suas vidas que os pais não compreendem, mas Amanda estava fazendo o que gostava, o que a fazia feliz. – Você não pode saber disso até ter os seus próprios... – disse o pai de Amanda. Uma sombra dominou o olhar de Kirsten, mas ela continuou. – Amanda queria tanto ter filhos... ela insistia e eu fugia do assunto, eu dizia que não conseguia imaginar como poderia um dia explicar isso para eles, terem duas mães e nenhum pai. – ela só se deu conta de que estava se abrindo profundamente na metade da frase. – Mas a verdade é que eu tinha medo. Medo das outras pessoas e não de mim, do que eles diriam, do que os jornais poderiam comentar se de repente eu aparecesse grávida, ou passeando com um bebê por Nova Iorque. Ficaríamos expostas. Os pais de Amanda não souberam o que dizer. Tinham uma estrela de Hollywood na sua sala, mas ela parecia apenas uma garota. Só que era a mulher com quem a filha deles tinha vivido depois de deixá-los. Kirsten era a prova da vida de Amanda fora daquele apartamento, a prova de que era atriz, famosa, gay. Coisas que eles não entendiam. E essa era a verdadeira questão, Kirsten tinha adivinhado isso. Eles não desaprovavam Amanda por completo, apenas não a entendiam. E isso era infinitamente mais fácil de superar. “Vocês não podem fazer idéia da filha maravilhosa que criaram.
– E o que aconteceu com ela? – a voz de sua mãe demonstrava súplica. – Gostariam de saber? Estão prontos para isso? Estão prontos, depois de tanto tempo sem se importar? – Nós nos importamos, só que... – Não pode haver meio-termo e sabem disso. Eu posso ir embora agora, e vocês podem, de fato, daqui para frente, simplesmente não se importar. Só que eu acho que pensaram nela todo esse tempo, tenho certeza que ainda a querem. Que fariam qualquer coisa... – Céus, ela está viva?? Kirsten se levantou, depois de pousar o pires sobre o móvel ao lado do sofá. Foi andando devagar até a porta. Tremia, mas não deixava que percebessem. – Eu prometi à Amanda que faria um mundo novo para ela. E ele começa por vocês. Ela me disse que tem um irmão, ele está? O pai de Amanda o chamou com um berro, e quando Kirsten viu o homem magro deixando seu quarto, com uma expressão assustada e curiosa, que não conseguia esconder que tinha ouvido toda a conversa, achou que seus joelhos se dobrariam naquele mesmo instante. Ele tinha todos os traços de Amanda. – Oi... Kirsten Howard . Ela sorriu, mas não se aproximou. Continuou próxima da porta, sob o olhar dos Roberts. – Amanda escapou. Ficou com algumas seqüelas, mas a fisioterapia resolveu tudo. – um suspiro triplo de alívio interrompeu a frase de Kirsten. – Hoje é o dia de visitas, ela está em uma clínica, livrando-se da dependência. Estamos atrasados, então, se puderem me acompanhar... estou de carro.
333 Kirsten tentou não fazer barulho com as chaves, mas foi inevitável. Deu alguns passos até a sala de estar e se atirou no sofá, cobrindo rosto com as mãos. Sentiu um cheiro desagradável e quase vomitou. Havia fumado. Estava fumando dois ou três cigarros por dia havia mais de um mês, mas ninguém sabia. O cigarro a deixava mais calma, mas o fato de estar fumando a tirava do sério. Mostrava o quanto era fraca. Sempre adormecia sob a promessa de que não faria novamente, mas os aeroportos, os cafés, todos os seus problemas... havia ocasiões em que o primeiro cigarro marcava o único ponto alto de um dia inteiro de preocupações. Josie se aproximou sem ser notada. Sorria quando deixou que Kirsten a visse. Um sorriso que a loira não conseguia devolver.
– Oi... – disse, envergonhada. – Meu bem... Josie se abaixou e começou a tirar as botas de Kirsten, com destreza e cuidado. Tirou também as meias, e Kirsten não conseguia reagir. – Jo... por que „ta fazendo isso? – Você odeia essas botas, mas fica linda nelas... Ainda sorrindo, ela se sentou ao lado da namorada e começou a lhe tirar o cinto, depois o casaco, e massageou de leve os ombros de Kirsten. – Josie, eu preciso me explicar, eu – não precisa não. – É domingo, eu sumi a tarde toda e boa parte da noite. – Confio em você. – Josie sorriu, beijando a face de Kirsten. – E não quero nenhuma explicação que você não queira me dar. Kirsten suspirou cansada. Que assim fosse... – E você, o que fez? – Li. Nossa, perdi a noção do tempo mergulhada no livro. É muito bom. – Vou poder ler um trecho? – Todos que você quiser, comprei de presente, mas cheguei em casa e você não estava, a curiosidade me matou, abri o pacote. Ruborizada. Josie estava com o rosto vermelho porque abrira o pacote. E Kirsten nem conseguia imaginar como começaria aquela conversa. Como tentaria começar de novo aquela conversa. – Você não tem jeito... Kirsten se levantou e foi apressada até o quarto. Tirou o resto da roupa à caminho do banheiro, ligou a ducha e mergulhou embaixo dela, afastando de si todas as coisas que a faziam sufocar. Encostou a testa no vidro do box e fechou os olhos, procurando também não ouvir qualquer som. A água quente batia com força em suas costas e em pouco tempo o cômodo inteiro estava tomado de vapor.
Aaron segurava a sua mão. Um ato estranho, que ela achou muito bem vindo, apesar de sua vergonha por estar derramando lágrimas. O pai de Amanda assumira a direção e a mãe dela estava ao seu lado, ambos na frente. – Como ela está? – Parece animada com o tratamento. E disse que passa o tempo todo tocando violão e compondo. – explicou o irmão dela. – Bom. – Por que não entrou com a gente? Vocês não se falam mais?
Sentiu duas mãos lhe apertando nas costas. Abriu os olhos imediatamente e tentou dizer alguma coisa, mas Josie pousara o queixo em seu ombro. – Shhh. As mãos de Josie apanharam o sabonete e percorreram todo o corpo de Kirsten, que voltara a fechar os olhos e não se virara. – Jo, temos de conversar... Ela murmurou uma resposta próxima de sim, mas não parou com o que fazia. Beijou a nuca de Kirsten, envolveu o corpo dela com suas mãos, com calma fez com que ela se virasse, e a abraçou mais uma vez. – Eu sei. Eu lamento por ontem à noite. E lamento por anteontem à noite... pelos últimos dias. Desculpa, Kirsten. Desculpa mesmo, você tem toda a razão e eu não quero estragar tudo por isso. Haviam tido uma pequena discussão na noite anterior, cujo inconveniente assunto era sexo. Em verdade era praticamente impossível discutir com uma pessoa como Josie Duschamps, que tinha um dom incrível para resolver tudo com conversas. Kirsten tinha uma personalidade parecida, mas parecia ter perdido essa parte de si. Tinha explosões gratuitas. Fazia cobranças exageradas. E no fundo sabia muito bem que só precisava de um motivo para deixar de ser fraca e atrasar a sua decisão... e como a perfeita Josie não lhe dava esse motivo, ela tentava fabricar. Aquele círculo vicioso maldito a estava matando. Não era justo com ninguém. – Não é culpa sua. Você estava certa. – Em qual parte? – Josie perguntou com os lábios próximos do seu ouvido e Kirsten sentiu seu corpo arrepiar, mesmo com a água quase fervendo. – Sobre eu esperar de você a mesma relação que tinha com a minha ex.
– Eu entendo, Kirsten, demora para esquecer. Não se preocupe mais com isso. – as mãos de Josie começaram a agir com mais ousadia e Kirsten teve de morder os lábios. – A culpa é toda minha, não sei onde eu estava com a cabeça de não dar atenção total a uma mulher como você... Kirsten se viu jogada de costas contra a parede e não reagiu. Os lábios de Josie cobriram os seus. Não era isso que tinha pedido? Não havia perdido duas horas da noite anterior dizendo que achava que deveriam transar mais? Quem ela estava querendo enganar? Deixou que Josie a pressionasse, não se incomodou com a parede gelada às suas costas, não se incomodou com nada, nem com os beijos da namorada em seu pescoço, seu colo, seus seios, nem com a água quente que caía sobre as duas. Josie começou a acariciá-la e Kirsten mal sentiu quando foi penetrada, apenas deixou que seus joelhos se dobrassem um pouco, deixou seu corpo reagir da maneira que quisesse. Apertou os olhos, gemeu alto quando Josie continuou, quando tomou sua perna direita e a segurou na altura de sua cintura, empregando mais força, passando a ser mais rápida. Josie não parava de beijar a pele de Kirsten e já não sabia se ela estava tão quente por causa da temperatura dentro do box ou porque estava fora de controle. Não conseguia acreditar que Kirsten tivera um orgasmo tão rápido, elas mal haviam começado. Mas não restavam dúvidas. Josie procurou os lábios da namorada, beijou-os com candura, deixou Kirsten relaxar, esperou a respiração dela se acalmar, beijou seu rosto, indecisa, medrosa. Então Kirsten devolveu os beijos. Urgentemente. Josie sorriu, não esperava outra coisa. Kirsten a empurrou contra o vidro, percorreu toda a sua pele com os lábios e a língua, nada dizia, apenas se deixava levar. Ajoelhou-se diante da namorada, beijou suas coxas, afastou suas pernas, arranhou suas nádegas, aproximou-se devagar, fechou os olhos, deixou que os instintos lhe guiassem, não precisava pensar, sabia fazer aquilo muito bem, e sabia que Josie gostava. Só isso importava. Josie tinha de gostar, e por isso ela deu o melhor de si. E quando acabou, as pernas trêmulas de Josie não agüentaram suportar seu corpo e ele foi escorregando, com as costas apoiadas no vidro. Kirsten puxou-a contra si e ficaram as duas sentadas, abraçadas, em completo silêncio, olhando a água cair do chuveiro sem atingi-las diretamente. – Vamos pra cama? – sussurrou Josie, depois de muito tempo. – Você mal aproveitou... – Vai na frente, meu bem. Vou terminar meu banho. Josie obedeceu, fechou a porta do banheiro e Kirsten começou a socar a parede sucessivas vezes. Socava tão forte que tinha medo de estar derrubando o prédio. Olhou para um frasco de shampoo, óleos, e... giletes descartáveis. Josie se depilava com eles. Kirsten quebrou a parte plástica contra a parede, ficou olhando a lâmina pequenina. Olhou seu braço... a pele estava tão clara, ouviu seu coração acelerado... fechou os olhos, não queria ver... não queria sentir...
Havia um jornal em suas mãos. Kirsten se levantou e foi até o outro lado da mesa, preparada às quatro da tarde para o café da manhã. Amanda e ela não vestiam nada além de seus robes e suas faces denunciavam que haviam dormido até tarde. – Algo digno de nota? – perguntou Amanda, ao ver Kirsten se sentar sobre o seu colo e envolver seu pescoço com ambos os braços. – Fizeram uma lista... – Hum? – Sessão de fofocas, você deve ter passado batida, pra ler política... – Obviamente. Você me conhece. Mas... lista de quê? – Partidos cobiçados da cidade. Há uma tal de... Amanda Roberts... – Hmm. Que dizem dela? – “Nova sensação da Broadway, às vésperas de completar 22 anos, voz encantadora, acumula muitos admiradores, homens e mulheres... – Ah é...? – Uhum. Disseram que está disponível, sabe? – Kirsten a beijou perto do ouvido, deixando Amanda ouvir sua respiração calma. – Mas eu acho que ela não está, não. – Amanda acariciou as costas da esposa. – Que pena, porque eu estava pensando se... se... – Kirsten beijou-a outras vezes, enquanto falava, notando que a pele de Amanda começava a ficar arrepiada. – ...se? – Não sei, não posso pensar essas coisas, se ela não está disponível. Amanda a prendeu próxima do seu rosto e lhe roubou um beijo nos lábios. – Esse tipo de coisas? – perguntou, maliciosa, brincando com o laço que mantinha o robe de Kirsten preso. – Pois é. Uma pena ela não estar solteira. – Kirsten fez menção de se levantar do colo dela. – Vou ter que pensar nisso com outra pessoa.
Amanda a puxou de volta e não permitiu que dissesse qualquer outra coisa. Kirsten riu internamente, Amanda estava fazendo exatamente o que ela queria que fizesse, buscando seus lábios, prendendo seu corpo, obrigando-a a se entregar . – Kirs... Não conseguiu responder. Amanda lhe ganhava em uma fração de segundo, então colou seus lábios nos dela e não pensou em mais nada. O café ficou esquecido, o jornal também, e elas só pararam de se beijar quase meia hora depois, trocando olhares e carícias que se pareciam com as de duas garotinhas apaixonadas após o primeiro beijo.
Não podia fazer aquilo. Largou a lâmina, com sorte Josie não perceberia o pequeno corte, de pouco mais de um milímetro, que sangrava como se fosse um buraco feito à bala. A água quente da ducha não ajudava a estancar o sangue, que se misturava às lágrimas da loira, que cobria seu rosto com as mãos. Fraca, fraca, fraca, fraca. Deveria ter entrado.
(até o próximo capítulo)
Voltar para o índice Uma única causa escrita por Sara Lecter Notas do Autor: perdão pela demora e pelo sumiço, explico por MSN
“Eu tenho um sonho profundamente enraizado no sonho americano”. Esta é a frase inicial do discurso de Martin Luther King Jr. no Monumento a Lincoln, em Washington, no ano de 1963, que foi o grande marco da luta pelos direitos dos negros nos EUA. As palavras deste líder – assassinado cruelmente mais tarde – fizeram com que grande parte da população que ainda se considerava “inferior” por causa da cor da pele passasse a lutar por melhores condições de vida. A década de 1960 nos EUA foi marcada por três grandes movimentos semelhantes: o dos negros, o das mulheres e o dos pacifistas, e todos eles lograram êxitos tão grandes que hoje parece absurdo dizer que negros não podiam freqüentar bibliotecas, lanchonetes e parques públicos, que mulheres não podiam votar... Se você leu até aqui, gostaria que sonhasse comigo e que fizesse alguma coisa, porque eu sei que um dia nossos filhos e sobrinhos vão ficar com
a cara no chão quando disserem pra eles como era ser “gay” em 2009, e talvez eles nem acreditem que a gente teve de passar por tudo isso. Só depende de nós...
Capítulo 47 – Uma única causa O aeroporto estava quase vazio. Kirsten não tinha bagagem além de sua bolsa e saiu rapidamente. Josie a convencera a obter a autorização de motorista e embora tivesse um carro há alguns meses, Kirsten raramente o usava. Tomou um táxi e chegou em casa cansada. As luzes estavam quase todas apagadas e a mesa estava posta. Ouviu risos. Tentou habituar seus olhos claros à escuridão e então discerniu duas figuras: Josie e Cindy. – Oi. – disse, de maneira geral. – Meu bem! Chegou mais cedo... – Troquei o vôo. – disse ela, largando sua bolsa sobre o sofá e se aproximando da mesa. – Oi Kirsten. – disse Cindy. – Já jantou? – Estou sem fome. Depois de uma rápida passada na cozinha, onde olhou para a geladeira e voltou, Kirsten passou mais uma vez pelas duas na sala e foi até o quarto. As risadas haviam cessado e ela não pôde deixar de notar esse detalhe. Cerrou os punhos, olhou-se no espelho e apertou os olhos. Que estava sentindo? Ciúmes? Kirsten Howard era capaz de sentir ciúmes de alguém? Cindy ficou para a reunião que marcara com Kirsten para a hora que ela chegasse. Como havia se adiantado, Josie acabou convidando a assistente da namorada para jantar, mas Kirsten chegara mais cedo e tudo ficara confuso. Pareceu mais do que realmente era, depois do olhar da loira, que não deixava qualquer dúvida sobre os que estava pensando. – As coisas estão acontecendo muito rápido, você não acha? Kirsten sorriu ao ver que Josie a esperava no quarto. Estava exausta depois de alguns telefonemas e recusara o jantar para que pudesse dormir mais cedo. – Eu não sei se já é possível avaliar. – Pelo amor de Deus, Kirsten, eu vi mais casais gays essa semana do que no resto da minha vida. – Eles sempre existiram. – Eu sei, mas eram invisíveis. O plano é perfeito, meu bem.
– É tão simples, Jo. As pessoas não olham para dois homens de mãos dadas com nojo ou raiva, não a grande maioria, mas com total surpresa. É tão inesperado... Você mesma não está aí, toda boba? Serão semanas difíceis, talvez meses... e o efeito completo só será notado no tempo de uma geração, mas um dia todos crescerão sabendo o que é um homossexual e podendo ter uma postura sobre isso que venha de reflexão e não de reprodução de um discurso mal informado e preconceituoso. Josie queria rir, mas sabia que era um assunto sério. Sabia pela expressão da namorada, e embora aquilo não a atraísse, ela fingia uma face de interesse porque Kirsten tinha seus acessos intelectuais e gostava de ser ouvida. – Você sabe o que eu penso sobre isso, não sabe? – ela se levantou e abraçou a namorada, mas Kirsten manteve o tom sério. – Sim, e felizmente tenho conseguido convencer a maioria de que esse é um comportamento covarde. – Você se escondeu a vida inteira. – É verdade, Jo, e eu paguei muito caro por isso! Kirsten se arrependeu imediatamente de suas palavras e quebrou o contato visual. Josie prendia a respiração e buscava dentro de si alguma calma. – Considera um castigo ter perdido Amanda Roberts, não é? – Não sei do que você está falando. – Eu vejo a cara que você faz, Kirsten, as suas reações. Você tenta começar essas discussões comigo e sabe que eu não estou nem um pouco interessada no assunto. Chame-me de covarde, eu não me importo, estou me lixando para direitos, para esse projeto, para a causa gay, para orgulho, para tudo! Desde que eu possa viver com a mulher que eu amo, por mim tudo bem. – Infelizmente, Josie, muita gente pensa como você. – É perda de tempo e de energia lutar pelos outros, pois você já tem o que quer, meu bem. O que está faltando, hum? Já vivemos juntas, podemos sair juntas, podemos nos beijar onde e quando quisermos, você é Kirsten Howard, oras. Kirsten atirou o jornal do dia sobre o colo de Josie. – Página quarenta e dois. – informou. – Infelizmente esse garoto morto por skinheads não era “Kirsten Howard”. – Isso nunca vai deixar de acontecer. – disse Josie, sem demonstrar qualquer emoção com a notícia. Encararam-se. Josie ainda não conhecia aquele estranho brilho nos olhos de Kirsten e por isso não o identificou.
– Eu posso fazer isso parar, diminuir, posso tornar mais que um crime comum e conseguir uma punição exemplar para os culpados. Posso distribuir informação e pregar tolerância, e não preciso de comícios para isso, posso fazê-lo através do meu próprio comportamento. Talvez esse mundo hétero nunca entenda a homossexualidade, Josie, mas eu posso fazer com que aceite. – Não acha que está se sentindo poderosa demais? – Não sou melhor do que qualquer outro gay ou lésbica. Cada um guarda em si esse poder, é uma questão de exercê-lo. E vai ser mais rápido se o número de covardes como você não crescer por causa desses crimes. – ela apontou para o jornal. – Não adianta, eu não vou mudar de opinião. Kirsten mordeu os lábios, a discussão a exaltara. Apertou os olhos... quem era aquela pessoa? De onde havia surgido tanta coragem? E os seus argumentos? Como nunca em sua vida, Kirsten entendeu que as marcas que Amanda Roberts havia deixado em si eram muito mais profundas do que se imaginava. E elas estavam apenas começando a aparecer. Desistiu de se trocar, apanhou sua bolsa e saiu. Josie sabia que a namorada ficaria trancada na biblioteca, provavelmente até o sol nascer. Só não sabia que a única coisa que a ocupava era fumar, olhando pela janela.
333 Depois da visita dos pais, o tratamento de Amanda andou mais depressa. No domingo seguinte Barbara Evans a deu um motivo realmente substancial para sair. Queria Amanda de volta a sua Companhia, prometeu mover mundos e fundos para que o acidente fosse esquecido e para que Amanda voltasse com tudo para o topo. Ainda que considerasse seriamente a possibilidade de abandonar a carreira que ela julgava acabada, Amanda não poderia negar que a promessa de um lugar de destaque na Broadway para a sua volta era tentadora. Os médicos a avaliaram muito bem. Com aquelas notícias e as visitas de Richard, Debra e de sua família, Amanda recuperou não apenas a saúde física, mas a vontade de viver. Com seu completo desaparecimento do showbiz, Kirsten Howard não era mais notícia e assim Amanda julgou que a melhor maneira de esquecer sua exmulher era fingir que ela não existia, nunca perguntando dela para os amigos. Obviamente havia momentos em que o plano não dava certo, mas Amanda vinha obtendo sucesso ao traduzir toda aquela carga dramática em letras e melodias, imaginando arranjos. Com tempo de sobra para trabalhar nisso, tinha uma pasta cheia de canções quando deixou a clínica, quatro meses depois de internar a si mesma.
O mundo que ela encontrou do lado de fora chegou a lhe assustar nos primeiros dias. – Gente, o que é isso? – perguntou ela a Richard e Derek, que lhe acompanhavam no almoço. – Ainda não temos idéia. – respondeu o modelo. – Mas agora as coisas estão mais tranqüilas, no primeiro mês foi quase uma guerra. – Uma guerra entre héteros e gays. – completou Richard. – Temos tomado certas liberdades, é uma coisa que não sei como começou, mas todos estão fazendo. Não nos escondemos mais, é por isso que você notou a mudança. Já viu os jornais? Aquela lista com nomes de estabelecimentos comerciais é atualizada todos os dias, cada nome que consta ali é de um lugar onde alguém sofreu preconceito. A idéia é que as pessoas boicotem essas lojas e restaurantes. E tem dado super certo! – Mas infelizmente assim como nós fomos à luta, o outro lado também foi. – disse Derek. – Extremistas, religiosos, skinheads, homofóbicos em geral. O ódio está mais evidente, mas não vamos desistir. – Se apenas os gays aderirem aos boicotes não vai dar certo por muito tempo. – argumentou Amanda, tentando absorver a situação. – Aliás, teremos o efeito contrário, criaremos guetos! Restaurantes para gays e restaurantes para héteros, coisas assim. Richard sorriu. – Que saudade de discutir com você, lindinha! – ele a afagou no rosto. – Saudade das suas idéias, que bom que está melhor! Amanda sorriu sem graça. Gostava que elogiassem sua capacidade de argumentar. – O grande truque – Derek se ocupou de explicar – é que essa lista não se limita à homofobia. Algumas das grifes mais badaladas estão na mira do movimento, porque atenderam muito mal certas clientes acima do peso. Negros estão no negócio, também denunciam; latinos, imigrantes... qualquer pessoa que tenha se sentido vítima de preconceito, desde que consiga provar, pode denunciar um estabelecimento para a lista. – E agora a América está repensando seriamente o seu conceito de “minoria”, imagino. – disse Amanda, com um sorriso feliz. – Eu acho que ninguém tinha noção de quanta gente sofre preconceito por alguma coisa, todos os dias. – disse Richard. – E o melhor é que essa lista não especifica o tipo de preconceito, impedindo os guetos que você falou. A Igreja não tem podido se manifestar, porque não tem como atacar os gays sem ferir os outros. Os únicos que realmente fazem alguma coisa são os grupos de direita, que são absolutamente contra qualquer tipo de variação, seja de sexo, sexualidade, cor da pele ou naturalidade.
– E acabaram ficando isolados. – informou Derek. – Todo mundo tem um negro, um latino, um imigrante, um portador de necessidade especial, um judeu ou um gay na família. Um gordinho que seja... Ninguém escapa. – Eu não consigo acreditar... – disse Amanda, quase sem voz. – Mas de onde partiu isso? Qual o alcance? – O país inteiro, mas Nova Iorque é o epicentro. Bem que eu gostaria de saber quem começou, mas deve ter sido em Washington. – disse Richard. – E sei que tem muita gente com dinheiro por trás disso, porque a lista é publicada com destaque todos os dias, em todos os jornais. Também estão fazendo publicidade negativa com esses lugares na televisão. Derek tomou a mão da amiga entre as suas. – Acredite, amiga. É real. Está acontecendo a nossa volta, está acontecendo conosco! Amanda se recostou na cadeira e sentiu uma corrente elétrica percorrer seu corpo. Usar os grupos de direitos humanos organizados, impor liberdades através do comportamento e não de discursos e colocar praticamente todos do mesmo lado, fazendo-os ver que lutam pela mesma causa eram idéias que ela sempre teve. Essa de usar a comunicação de massa para propagar o movimento também lhe soava familiar e ela nunca tinha deixado de acreditar que surtiriam efeito. Ela só não tinha imaginado que algum dia alguém teria força, coragem e poder suficientes para colocar em prática.
(até o próximo capítulo)
Voltar para o índice Namoros escrita por Sara Lecter
“Só falta te querer Te ganhar e te perder Falta eu acordar Ser gente grande pra poder chorar
Me da um beijo, então
Aperta a minha mão Tolice é viver a vida assim Sem aventura”. O Último Romântico (e se é loucura então, melhor não ter razão, né?)
Capítulo 48 – Namoros Almoçar com Richard e Derek se tornou um hábito para Amanda. Normalmente eles discutiam o movimento, comentavam a nova lista do dia ou falavam do que haviam feito ultimamente. Amanda ainda tentava se acostumar com aquele mundo novo, e ele a agradava muito. Ela falava sobre as mudanças com um entusiasmo contagiante e fazia de tudo para descobrir como poderia ajudar de maneira mais efetiva. Havia, entretanto, no fundo dos seus olhos, um brilho triste. Tudo o que ela sonhara um dia estava acontecendo e ela não tinha com quem comemorar. Olhou para Richard e Derek, tão íntimos, tão cúmplices, tão felizes andando de mãos dadas até o caixa para pagar a conta... tão puros se chamando de “amor” sem qualquer receio. Estavam morando juntos e confiavam na aprovação de uma lei que lhes permitisse casar nos mesmos termos que heterossexuais. Quem sabe um dia poderiam adotar uma criança, os dois juntos, embora nenhum deles tivesse comentado qualquer desejo nesse sentido. Amanda já não duvidava de nada, apenas da própria felicidade. – Você voltou cedo de Los Angeles. Ela demorou a entender que o comentário de Derek exigia uma resposta. Limpou a garganta e tentou sorrir. – Estava tudo certo até eu chegar lá. Alguma coisa mudou durante a minha viagem. – Como assim? – quis saber Richard. – Talvez eu já esperasse por isso, Barbara me alertou. Eu não sou completamente desconhecida e as manchas negras na minha carreira parecem assustar qualquer gravadora. – “Manchas negras”, lindinha, francamente. Que bobagem... – Não é o que eles pensam. – E agora? – Barbara quer que eu volte para a Companhia Evans.
– Teatro? Não tínhamos concordado que seu verdadeiro sonho era a música? – Preciso jogar com as cartas que tenho. – disse ela, tristemente. – Eu discordo. – interveio Derek. – Além de ser o seu sonho, você é uma cantora espetacular. Deveria investir nisso. – Foi o que eu fiz, Derek. Barbara tinha contatos em duas gravadoras e nenhuma delas me aceitou. Sem um atravessador vai ser mais difícil ainda... e não sei se faria bem para mim ouvir mais um não assim tão cedo. Richard afagou o ombro da amiga e sorriu para ela. – Que bom que está se cuidando, lindinha. – Eu tenho pensado no plano da Barbara. Se eu voltar ao topo no teatro, limpo meu nome. Depois disso posso pensar no que fazer com calma. Esperei tantos anos para cantar, não é mesmo? Posso aguardar mais alguns. – Hmm, Barbara, Barbara, Barbara... – comentou Derek. – Vocês têm andado bastante juntas, não? Amanda virou o rosto, ligeiramente envergonhada, mas depois sorriu. – Mandy, sua safadinha! E escondendo o jogo da gente! – disse Richard, alegremente. – Vamos, conte tudo tudo tudo! Estou louca pra ouvir... Ela riu. Richard e seus ataques de bichisse pensou ela. – Como é mesmo aquilo que dizem? A gente tem que gostar de quem gosta de nós? – Bem que eu vi que ela estava sempre preocupada... foi correndo para o hospital quando... – Derek podou a própria frase, todos sabiam do que estava falando. – E ia sempre te visitar na clínica. – Uhum. – Acho que eu só não notei logo porque achei que ela não fosse. – emendou o modelo. – Ah não, eu não. – disse Richard, com a voz estridente. – Eu sempre soube, não adianta, nenhuma sapata escapa do meu gaydar. Os três riram, mas Amanda ainda estava um pouco envergonhada. – E então? – É isso.
– Como “é isso”, lindinha? Nós queremos detalhes sórdidos! Por favor, não esconda na-da! Amanda balançou a cabeça. – Não tem nenhum detalhe sórdido. Estamos indo devagar. Eu ainda estou em tratamento, lembra? Não posso me envolver demais agora. – Ah não, só falta você dizer que vai passar um ano criando uma planta, depois dois anos cuidando de um cachorro para só então ir pra cama com uma mulher. – Na verdade foi isso que me indicaram na clínica. Richard interrompeu o movimento de colocar uma goma na boca para comentar, displicentemente: – Como se eu fosse acreditar que Amanda “pegadora” Roberts vai ficar tanto tempo dormindo sozinha. Ela ficou ruborizada mais uma vez. Contou que até ali havia trocado apenas alguns beijos com Barbara e que a empresária entendia perfeitamente a situação e estava sendo paciente. Amanda se despediu dos amigos e foi para a Companhia encontrar a namorada. Ainda na rua, quase chegando no salão de Richard, ele e o namorado continuaram a conversa: – Aposto como não tem nada a ver com o tratamento. – disse Derek. – Acha que ela já esqueceu a Kirsten? Richard deixou escapar todo o ar que tinha nos pulmões antes de responder. – Tenho certeza que não. – Então por que não disse a ela? Você é o confidente da Kiki, sabe que ela ainda pensa na Amanda. – Amor, eu pensei em dizer. Pensei mesmo. Mas a Amanda parecia feliz, não parecia? Ela nunca mais perguntou da Kiki, por que eu tocaria no assunto? – É, talvez você tenha razão. – Derek suspirou derrotado. – Amanda merece uma chance de recomeçar. Derek olhou para Richard com admiração. Acariciou seu rosto e se inclinou para um beijo singelo depois do qual ambos sorriram. Era impossível não ficar pensando nas pessoas que passavam ao seu lado, pela calçada, ou nos ocupantes dos carros na rua. Eles sempre riam de algumas reações e diziam coisas do tipo “achei que aquela mulher fosse engolir a dentadura quando te ouviu me chamando de meu amor ”. Não se escondiam mais. Só que isso não significava que haviam perdido o medo, fosse
de um comentário maldoso, de uma nova pichação na parede do salão ou de algo mais grave.
333 – Você e a Cindy andam de segredinhos ou é impressão minha? – reclamou Josie, durante o jantar. Cindy Sparrow acabara de sair e a face de Kirsten ao deixar a biblioteca entregava que o assunto discutido era desagradável. – “Segredinhos” não. – Lá vem você distorcer o que eu falo, de novo. – Você falou “segredinhos” sim. – Mas não nesse tom. Kirsten bufou de raiva. – A minha questão é essa, Jo: você está com ciúmes de mim ou dela? – Não seja ridícula. – Ah, esqueci, o seu flerte com ela foi passageiro. – Eu não flertei com ninguém. – defendeu-se a francesa. – Foi isso que ela disse? – Cindy é distraída demais para perceber que você estava dando em cima dela. – É isso? Vamos brigar de novo? – Você começou. Foi a vez de Josie bufar de raiva. – Só queria saber do que estavam falando, você não parece bem. Foi uma maneira amena de tocar no assunto. – Muito amena mesmo. Vou encurtar essa conversa para você saber o que realmente me chateou: como foi a última viagem a Seattle? Josie se ocupou com a taça de vinho para ganhar tempo. – Foi... foi... olha, Kirsten, eu tenho de te contar uma coisa-
Kirsten ergueu a mão esquerda, com o semblante sério. Josie entendeu que deveria parar de falar. – você foi a Los Angeles, foi isso que aconteceu. Posso chutar o endereço exato? Hum... a casa da Susan? Josie mordeu os lábios. – Eu ia te contar. Não aconteceu nada demais, Kirsten. – Se não aconteceu nada demais, por que mentiu pra mim? Engraçado, você me atormenta com um ciúme ridículo de tudo e de todos. Francamente, ter insinuado alguma coisa entre eu e o meu advogado foi definitivamente o fim da picada, Josie. E enquanto desconfia de mim o tempo inteiro, você passa o final de semana com a sua ex! – Meu bem, eu não posso acreditar que você colocou a sua assistente para me espionar, agora. Quem é a ciumenta aqui? Kirsten mediu as palavras: – A notícia que Cindy veio me dar não tinha nada a ver com você, se quer saber. Eu só aproveitei a deixa, como você disse, p ara “tocar no assunto de maneira amena”, já que eu sabia que você tinha estado com a Susan porque notei que você voltou diferente. – “Diferente”? As mãos de Kirsten passaram a tremer. Não queria colocar aquilo em palavras, porque tornaria tudo verdade na sua consciência. Josie era uma namorada perfeita e ela se julgava especial por merecê-la, e ver que essa mulher estava começando a lhe escapar lhe deixava em pânico. Lembrou das palavras da própria Josie quando Amanda ainda estava em coma: “por favor, não me deixe, eu não iria suportar”. – Josie, pelo menos me ofereça alguma ilusão. Eu vou supondo as coisas, chutando, e você cai em todas! Achei que só tivessem se visto e esperava ouvir de você “não foi o final de semana todo” ou algo do tipo. E você confirma tudo. Tudo! – É que você fala como se tivesse certeza... – Josie estava confusa. – Parece que você sabe tudo. – Você não é nem capaz de me enganar, só pra não me fazer sofrer. Ao ver que a namorada estava chorando, Josie deixou o seu lugar e a abraçou com força, beijando o topo da cabeça de Kirsten. – Kirsten, “sofrer”? Eu achei que você não gostasse de mim, que só não tinha coragem de terminar tudo por pena de mim.
– Eu nunca ficaria com alguém por pena. – Eu sempre contei os dias para você me deixar e voltar para Amanda Roberts. Kirsten soluçou. – Se sabe o quanto é forte a minha história com ela, deveria dar mais valor ao fato de eu continuar com você. Porque pelo menos para mim significa muito. – Meu bem... – Josie quase não conseguia acreditar na declaração que ouvira. – Eu estou sem palavras. – Quando tudo desaba, Jo, quando eu me sinto um lixo, é você quem está do meu lado, cuidando de tudo, sendo perfeita. Como você pôde acreditar que eu nunca notei? Como você pôde duvidar do quanto eu preciso de você? Eu simplesmente já não sei mais viver sem nós. E fico me perguntando por que você espera que eu adormeça todas as noites para dizer que me ama, mas não tem coragem de falar isso olhando nos meus olhos... e me nega o direito de dizer “eu também”. Josie caiu de joelhos e Kirsten emoldurou o seu rosto com as mãos. Tudo seria diferente a partir de então.
(até o próximo capítulo)
Notas Finais: bom, pelo visto o capítulo anterior lhes deixou pensativas... espero que nesse tenham achado que a história voltou a andar. um abraço, Sara. Voltar para o índice A Vaca escrita por Sara Lecter Notas do Autor: Anuncio aos leitores que terminei de escrever Mar, Areia & Cinzas, embora haja espaço para modificações, o que significa que vocês podem continuar sugerindo coisas, fazendo teorias. Ainda tenho cinco capítulos para postar (incluindo o epílogo) e espero que continuem acompanhando, agora nessa reta final. É um pouco cedo, mas queria agradecer todos que comentaram e deram idéias, ou que me infernizaram no MSN, porque eu adoro isso o/. Quanto às gurias que estão lendo e não comentam *Sara olha feio* nunca se esqueçam que cada vez que vocês fazem isso, um autor morre. Eu ando muito bem, felizmente, até já comecei outra fic, mas vocês devem estar acabando com alguém do site, sei lá, a idéia não é essa, é trocar experiências.
“Acho que de repente fiquei espantada por estar exatamente aqui, entre todas essas pessoas. (...) Raul estava deitado no chão da cozinha. Ele sempre me lembrava um lago. Quieto feito um lago, o branco da roupa destacado contra os ladrilhos escuros. Olhava para o teto como se não houvesse teto. (...) Todos correm perigo, disse. Para tranqüilizá-lo, sentei a seu lado. Tremíamos. (...) De alguma forma eu queria dizer que tudo aquilo importava pouco. (...) Queria dizer a Raul que pensasse no tempo que fatalmente passaria, como sempre passa. O que hoje é drama, sempre, amanhã estará quieto na memória...” Caio Fernando Abreu. O Triângulo das Águas. [“Dodecaedro” III. Marília]
Capítulo 49 – A vaca Richard olhava para dentro da geladeira aberta quando sentiu um abraço pela cintura. – Hmmm. – Só vim roubar um beijo do cara mais lindo do mundo. – disse Derek, divertido. – Vai beijar o espelho, amor? – Bobo. – Derek lhe deu um tapinha nas nádegas e se afastou. – Quer ajuda? – Uhum. Pode levar as taças pra mim? – Tudo o que você quiser, meu senhor... – Derek encenou uma reverência exagerada. – Que que você tem hoje, hein? Viu um passarinho na janela? – brincou. Derek se aproximou do namorado e o prendeu entre o seu corpo e a geladeira que ele acabara de fechar. Tocou-o por cima da calça jeans e mordeu seu pescoço carinhosamente. – O único “passarinho” que eu vi hoje foi esse aqui... – ele olhou para baixo por meio segundo. – E ele me deixou bem feliz, na verdade. Richard deu um tapa de leve na mão boba do namorado e beijou-o com amor. Ouviram um pigarro vindo da porta que levava a sala de jantar e esconderam seus rostos envergonhados um no ombro do outro. – Não queria atrapalhar. – disse Amanda, rindo. – Achei que precisassem de ajuda, mas... – Precisamos é dos dois cozinheiros. – disse Richard.
– Eu acho que eles estão ocupados com a mesma coisa que nós... – comentou Derek, sufocando o riso. – Que terror! – disse Richard, estridente. – Um casal hétero maculando o meu lar! Vou lá agora mesmo jogar um balde de água fria naqueles dois. Àquela altura Amanda já estava às gargalhadas e Barbara se juntara a ela, atraída pela conversa animada. Debra e Enrico apareceram em seguida, vindos do quarto de hóspedes e imediatamente se ocupando com as panelas, evitando responder qualquer coisa. – É, o amor está no ar nessa casa... – comentou Barbara, abraçando Amanda por trás e pousando o queixo em seu ombro. – Vocês podem falar o quanto quiserem, mas duvido que alguém aqui esteja mais apaixonado do que eu. – disse Richard, olhando para Derek. – Eu não só duvido, – respondeu o modelo. – como me candidato ao posto. A campainha tocou e Derek beijou Richard na bochecha antes de passar por Amanda e Barbara para atender a porta. – Kiki!!! Oi Josie. Entrem! As duas trocaram um olhar cúmplice. – É um jantar ou uma festa? Acho que batemos no endereço errado. – Nada disso. – Derek apanhou Kirsten pela mão e a puxou para dentro do apartamento. Josie os seguiu. – Querem alguma coisa? O jantar vai demorar porque de nada adianta ter dois cheffs nesse clubinho, se eles largam as panelas para se pegar pelos cantos! – EU OUVI ISSO, RAPAZ! – Enrico gritou da cozinha. – Mais respeito, foi em cima da cama, se quer saber. Caíram na gargalhada de novo. Debra ficou na cozinha enquanto os outros foram se acomodar, espalhados pelos sofás e cadeiras da casa. Kirsten evitou o quanto pôde, mas chegou um momento em que foi impossível não encontrar os olhos de Amanda. Ela se adiantou, trazendo Barbara pela mão. Cumprimentou Josie com a mesma animação que tinha antes da chegada delas e apresentou sua nova namorada. Barbara e Josie se cumprimentaram com um aceno, depois disso Josie cumprimentou Richard e Enrico de longe e procurou os olhos de Kirsten, mas não os encontrou. Amanda foi a próxima a falar: – Bem, Barbara e Kirsten, vocês já se conhecem. – Como vai? – disse a produtora, simpática.
Kirsten não moveu um músculo. O olhar que dirigia à Barbara era gelado e a sala imediatamente ficou em suspense. O silêncio foi tão constrangedor que Debra apareceu, espiando pela porta da cozinha. “Esper o que bem... – completou Barbara, constrangida. Mais uma vez Kirsten não disse palavra. E continuava com aquele olhar. Não se importou com o que poderiam pensar dele. Não se importou que Richard tivesse demorado para arranjar uma desculpa e mudar de assunto porque aquilo já estava ficando catastrófico. Todos se sentaram. Kirsten apanhou a mão de Josie entre as suas e, sabendo muito bem o que ela estava supondo, sussurrou ao seu ouvido enquanto os outros estavam ocupados: – Não é por ela estar com Amanda. Explico em casa, confie em mim. Josie sorriu e apertou a mão de Kirsten. Se a namorada lhe pedira para confiar, confiaria. Mas isso não diminuía a sua curiosidade, muito pelo contrário, apenas a aguçava. Richard, Derek, Enrico, Debra e principalmente Amanda não estavam em diferente situação. Kirsten era esperta o suficiente para não fazer uma cena daquelas na frente da namorada, não se o seu comportamento fosse mero ciúme. Em última análise, a única que sabia perfeitamente bem porque Kirsten não a cumprimentara era a própria Barbara. Viu nos olhos dela que Kirsten sabia. Ao contrário da indiferença com a qual a loira sempre a tratara, naquele jantar Kirsten demonstrava outra coisa. Já não era mais apenas desconfiança... Debra e Enrico finalmente serviram seu prato novo, que estavam testando com os amigos, e entre garrafas de vinho e diálogos animados, a noite se revelava cada vez mais agradável. Richard e Derek se ocuparam de organizar a louça na cozinha antes de servir a sobremesa e Josie se ofereceu para ajudá-los, num truque bem intencionado para se aproximar dos amigos de sua namorada, com quem ainda não tinha muita intimidade. – E o Vittorio, como anda? – perguntou Amanda, para Kirsten. – Nos vemos muito pouco, eu mando o roteiro pela internet, só passo em Los Angeles duas vezes por mês. – Achei que estivesse gostando do projeto. – comentou Debra, sentada no colo do noivo. – Eu fico um pouco longe das filmagens, na verdade. – Não tem vontade de voltar a atuar? – perguntou Enrico. – Prometi que Mar, Areia e Cinzas seria meu último filme. – Uma pena uma Oscarizada abandonar a carreira tão cedo. Uma atriz de tanto talento... – Poupe-me do seu cinismo, Evans.
Todos prenderam a respiração. Kirsten cuspira as palavras com tamanha raiva que ninguém soube como reagir. Estava claro que ela não engolia Barbara, todos ali sabiam disso desde a tensão na sala de espera do hospital, quando Amanda estava em coma, mas ver uma pessoa notória pelo auto-controle agir daquela maneira denotava que a rixa era bem mais grave do que imaginavam. – Desculpe... foi só... só um comentário, não cinismo. Kirsten a encarou demoradamente. Analisava todas as suas reações. Era capaz de controlar o que quisesse e começou a farejar medo em Barbara Evans. Deixara claro para ela que estava sabendo, era uma questão de lhe aterrorizar, mantendo o suspense sobre quando e como faria a verdade chegar aos ouvidos de Amanda. Kirsten saboreou cada segundo daquilo. Queria mesmo torturá-la. E Barbara merecia. – Kirsten, você está bem? – Amanda julgou que era a pessoa mais indicada para dizer alguma coisa. – Ótima, na verdade. – ela sorriu para a ex-mulher. Enrico mudou de assunto e logo Derek, Richard e Josie voltaram da cozinha. “Vamos? – sussurrou Kirsten ao ouvido da namorada. – Já? Mas... Então Josie se deu conta de que chamara a atenção de todos. – Não, Kiki, ainda nem servimos a sobremesa... – argumentou Derek. – Eu sei, desculpa, querido. – ela encarou os amigos com expressão de pesar. – Richie, Debby, Enrico, estava tudo maravilhoso, e para que continue assim, eu prefiro não estragar a noite de vocês. Barbara se levantou. – Olha, se o problema sou eu, tudo bem, eu vou embora. Vocês são amigos há mais tempo, eu não me importo, eu – que bom que percebeu sua posição de penetra! – Kiki!? – Richard estava em choque. – Kirsten, você está sendo infantil. – disse Amanda. – Tudo bem, eu já estou indo. – disse Barbara. – Não, você fica. – Amanda a segurou pelo braço, embora encarasse Kirsten intensamente.
– Meninas, que isso? – Enrico tentou amenizar a situação. Josie pousou as duas mãos sobre os ombros de Kirsten, pelas costas, e a afagou. – Meu bem, procure se acalmar. Hum? Kirsten avaliou a situação. Estava estragando o jantar de todo mundo, mas simplesmente não conseguia mais guardar aquilo para si. Mais uma vez a voz de Josie foi a sua própria consciência apaziguadora. Balançou a cabeça de maneira arrependida. – Desculpem... – ela tomou Josie pela mão e rumou para a cozinha. – Já voltamos. Elas estavam a dois passos do outro cômodo e os outros já haviam voltado a se sentar quando Barbara se fez ouvir mais uma vez. E essa foi a primeira oportunidade em que os amigos de Kirsten acharam que ela poderia ter alguma razão. – Vai ser duro explicar pra ela esse ataque de ciúmes da Amanda, não vai? Amanda quase engoliu a própria língua. Seu pescoço estalou quando encarou a namorada, incrédula com a forma descarada com a qual ela recomeçou a discussão. Até ali estava achando que Barbara só tinha por objetivo evitar atritos, e a estava admirando por se virar tão bem naquela situação delicada. Esquentada como era Amanda, se fosse provocada por Kirsten daquela maneira a noite toda, ela certamente já teria partido para a ignorância. Kirsten se virou com os olhos vermelhos de ódio. Seus dentes cerrados e sua respiração alterada deixaram todos com medo do que estava por vir. Josie não a conseguiu segurar a tempo e ela deu alguns passos decididos na direção de Barbara. – Tenho por princípios não bater em senhoras, mas quem sabe te dê a honra de abrir uma exceção. – Bater? – Debra arregalou os olhos. Conhecia Kirsten desde o jardim de infância e nunca a tinha visto assim. – Kirsten? O rosto da loira estava a alguns centímetros do de Barbara quando Amanda a puxou pelo braço. – Kirs... você está fora de si? – Ela sabotou você, Amanda! Vem fazendo isso há mais de um ano! Barbara deixou seu rosto demonstrar uma expressão clássica de que não sabia do que ela estava falando. – Do que está falando? – quis saber Derek.
– As manchetes, as fotos, tudo! Foi ela quem mandou para os jornais... – Kirsten respirou fundo e tentou recuperar um tom de voz aceitável para terminar a frase. – quando nos separamos. – encarou Amanda por dois segundos. Dois segundos de suspense antecederam uma risada histérica da produtora. – Desculpe, mas... isso é um absurdo. – É... – Kirsten acenou afirmativamente, encarando sua inimiga. – Nisso concordamos. Invadir dessa maneira a vida de uma atriz da sua Companhia é realmente um absurdo, Evans. Você não tinha o direito de arriscar a vida da Amanda só para se promover. – Já chega, Kirsten. – pediu Amanda, confusa. – Isso não é nem metade da história. – disse a loira, ainda com raiva. – Evans usou escândalos com o seu nome para ganhar dinheiro... fez isso deliberadamente, Amanda. Ela me colocou contra você! – Não interessa, Kirsten, você está louca, fora de si. – respondeu Amanda. – Eu? Amanda, você não tem idéia de tudo que ela fez, ela – eu sei muito bem o que eu fiz, Kirsten, e ninguém me obrigou a dormir com a Gail. Se você quer encontrar culpados pela nossa separação, acho bom começar a se olhar no espelho. Foi como se Amanda tivesse lhe cravado uma faca no peito. Kirsten cambaleou. Atônitos, os outros apenas assistiam. Josie era a mais alheia, até então a versão que conhecia era a de que Amanda simplesmente deixara a esposa. Não tinha idéia de que havia uma traição no meio daquilo, com provas fotográficas. – Você não entende, Amanda, não é só isso. Ela sabia que você estava mal e não fez nada. Ela te usou, te induziu a ir para o fundo do poço para posar de “salvadora da pátria” agora. Ela só queria o seu nome nas manchetes, para salvar a própria Companhia da falência! Ela roubou coisas suas, e não estou falando apenas das fotos que ela mandou para os jornais, mas do colar que você usava!! – São acusações graves, Kirsten, se não quiser me obrigar a procurar os meus direitos legais, eu acho bom que as prove, ou que pare. – defendeu-se Barbara, cuja mão estava detida em envolver os dedos de Amanda, que lhe apoiava. – É, Kiki, você passou da conta. – disse Debra. Kirsten tomou fôlego e fechou os olhos vagarosamente. – Eu não acredito que vocês vão defender essa vaca e ficar contra mim.
– Meu bem... – Josie tentou acalmá-la, mesmo que estivesse transtornada com tudo aquilo. – Provas? Eu posso conseguir provas sim, inclusive da sua sabotagem com as gravadoras eEla não conseguiu terminar de falar. Richard a tomara pelo braço, abrira a porta do apartamento e a arrastara para o corredor. Fora tudo tão rápido que lhe pareceu menos de um segundo. – Kirsten Hérmia Krenddler Howard, agora CHEGA! Kirsten enterrou o rosto nas próprias mãos, com as costas apoiadas na parede do corredor. Notou que Richard fechara a porta novamente e os separara dos outros. “Lindinha...? – Desculpa, desculpa, desculpa... Richard a confortou em um abraço apertado. Não se apressou, mas quando achou que sua melhor amiga estava mais calma, sussurrou em seu ouvido: – „tá falando sério? – Uhum. – Isso não era maneira de contar. Na frente da Josie e... – Eu sei, mas eu não sabia mais o que fazer, a Amanda „ta indo pra cama com ela, agora. Eu não poderia ficar calada, eu... Ele emoldurou o rosto de Kirsten entre as suas mãos e esperou pacientemente até que ela abrisse os olhos. – Se você diz que tem certeza, nada mais importa. Eu estou do seu lado para tudo, Kiki. Vamos desmascarar essa vaca, mas agora você precisa se acalmar. E precisa ser absolutamente sincera comigo, lindinha. – ele respirou fundo. – Isto tudo não é só pra ter a Mandy de volta? Kirsten respondeu apenas movendo a cabeça e voltou a abraçar o amigo com força. Quase o sufocou, tentando também sufocar as próprias lágrimas. – Mas a Josie – – shhh! A Kiki que cresceu do meu lado sempre sabe o que fazer. Seu problema não é dúvida, é medo. – ele a sacudiu pelos ombros. – Coragem, amiga. Disfarçaram alguma coisa e voltaram para o interior do apartamento. Amanda e Barbara esperavam na cozinha, Kirsten se desculpou com os outros,
despediu-se e levou Josie pela mão, novamente para o corredor. Richard se aproximou mais uma vez, abraçou Kirsten e afagou sua nuca. – Obrigada. – ela disse. – Pelo quê? – ele se aproximou para apenas sussurrar a última parte. – Não importa o que aconteça, eu estarei sempre com você. – Eu te amo tanto, Richie. Se você fosse só um pouquinho mais mulher , poderíamos nos casar. Ele negou com uma expressão séria e fez uma confidência que Josie ouviu: – Derek vai me pedir em casamento essa noite, eu vi as alianças nas coisas dele, mas ele não sabe que eu sei. – ele riu timidamente. – Você sabe, uma coisa é ser veado, outra é ser bígamo. Sou uma bicha conservadora. – Nhai... Parabéns! – ela se atirou nos braços dele, mas depois se conteve, para não chamar a atenção de Derek, que poderia estar próximo da porta, do lado de dentro. – Que bonitinho... – Mas você é a minha alma gêmea. – ele trocou um último olhar com Kirsten, antes de ela se virar e partir. Kirsten sabia o que o olhar queria dizer. Ficou pensando nisso, aguardando o elevador, e querendo desesperadamente voltar e contar ao amigo que era ela a pessoa por trás do movimento, das listas, de tudo o que estava acontecendo. Mas já havia abusado demais da paciência de Josie. Insistir seria lhe faltar com respeito.
(até o próximo capítulo)
Notas Finais: peço perdão pelos palavrões. xD Voltar para o índice Perto Demais escrita por Sara Lecter Notas do Autor: juro que é coincidência que a música da epígrafe seja a trilha de um filme com o mesmo título do capítulo. Só percebi agora, postatando. Agradeço aos comentários novos, e vejo que valeu a pena o puxão de orelha. Bom capítulo pra vocês e... desculpa. Desculpa mesmo (vocês vão entender)
“And so it's Just like you said it would be Life goes easy on me Most of the time And so it's The shorter story No love, no glory No hero in her sky I can't take my eyes of you”. The Blower‟s Daughter. Damien Rice
Capítulo 50 – Perto demais Depois de deixarem o jantar que acabara muito mal, Kirsten e Josie foram para casa com uma estranha angústia lhes atormentando. – E aquilo que me disse na semana passada, Kirsten? – Josie quebrou o silêncio dentro do carro. – Jo... – ela balançou a cabeça debilmente, sabia o que estava por vir. – Eu não duvido que tenha se apaixonado por mim. – estranhamente, Josie sorriu. – O que foi que nos uniu, afinal? Foi mesmo amor? Eu não sei... mas foi muito bom, Kirsten. – Desculpa... eu tentei, eu juro que eu tentei, eu... – Esse tempo que passamos juntas me fez pensar em muitas coisas. Você estava certa, um dia, quando disse que a verdade dos momentos de promessas é uma coisa que não pode ser apagada. Mon Dieu, está tão na cara que você pertence à Amanda e nem mesmo todo o meu amor e dedicação poderiam mudar isso. O mundo inteiro torce por vocês e agora eu me incluo nesse grupo. – Jos – por favor, deixe-me terminar.
– Uhum. – O amor de vocês me fez repensar a minha vida. Sinto se escondi isso de você. Susan e eu terminamos por motivos estúpidos e tão menores do que tudo o que vivemos... simplesmente perdemos o contato e eu achei que tinha acabado para sempre. Eu achei que um amor de verdade poderia ter fim, mas não pode. Não adianta lutar contra. Kirsten baixou os olhos. A história de amor de Susan e Josie era a mais linda que ela já tinha visto, mesmo que soubesse que o final do romance que adaptara era fictício. O que importava era tudo que as tinha levado até ali. – E o que ela pensa disso? – perguntou. – Não sei. Francamente, eu não sei. Eu morro de medo de ela não estar pensando em nada disso, tremo ao pensar que posso perdê-la de novo, sem termos voltado, de qualquer forma. Mas eu preciso tentar, não é? Senão eu nunca vou saber. – É. Josie voltou ao silêncio e Kirsten também não disse mais nada. Quando voltaram ao apartamento, dormiram abraçadas, lembrando dos bons momentos juntas. Kirsten também contou toda a história de como descobrira as armações de Barbara Evans e Josie ficou chocada. Na verdade, quem tinha descoberto era Cindy Sparrow, a maldita Stalker. Kirsten levou Josie ao aeroporto na manhã seguinte e elas se despediram com um beijo nos lábios. O último. E provavelmente o mais sincero de todos. Kirsten não contou a ninguém, precisava passar por aquilo sozinha, pois aprendera através de um grande erro. Depois de se separar de Amanda, fugira de todas as maneiras daquele intervalo, daquele “retiro”, daquela licença que cada um deve tomar para se reestruturar após o fim de um relacionamento. Ainda que fosse um acordo mútuo, ainda que Josie tivesse conseguido ser perfeita até o final, facilitando as coisas para ela, Kirsten sabia que uma parte de si sofria. Mais um “casamento” que não dera certo. Apesar de nunca terem se considerado casadas, ela e Josie haviam dividido um lar por quase dez meses e aquilo significava muito. Aquilo era um segundo fracasso. Entretanto, passados alguns dias, ela começou a ver tudo de maneira diferente. Havia um lado bom, afinal de contas, e ela levaria consigo, para sempre, as boas lembranças com a “francesinha” e todo o cuidado dela para tirá -la da depressão. Josie estivera ao seu lado no pior momento da vida de Kirsten e isso tempo algum, acontecimento algum poderia mudar.
333 Kirsten não entendeu nada quando Enrico ligou, muito transtornado, fazendo um pedido estranho que fez seu sangue ficar gelado. Que diabos era aquilo? A loira andava ocupada com o projeto do Senador e tinha voltado de Washington havia duas horas. A
“guerra” tinha ficado acirrada. Com o sucesso do plano, conforme todos previram, o troco dos grupos de direita só tinha aumentado, mas nunca havia passado pela cabeça de Kirsten que esse ódio poderia ir tão longe. E poderia chegar tão perto dela. Perto demais. Entrou no apartamento de Richie sem bater e antes que pudesse discernir qualquer coisa, Debra se atirou em seus braços, soluçante, cambaleante, um verdadeiro trapo humano. – Debby? Mas... Ergueu o olhar e viu Amanda escorada em uma parede, totalmente descomposta. Seus olhos estavam vermelhos e o rosto inchado era semelhante ao dos outros. Viu alguns conhecidos, todos de vista, e mal notou quando Enrico tirou Debra de seus braços para confortá-la, porque Kirsten não conseguia fazer aquilo. Não estava entendendo nada. Amanda se aproximou dela devagar, não havia ali nenhum sinal de mágoa pelo último encontro, toda aquela situação constrangedora ou qualquer coisa que pudesse as afastar uma da outra. Era apenas Amanda. A sua Mandy. A sua cúmplice. – Kirs... – ela estava se esforçando muito para falar. – Kirs... me promete que você vai ser forte, tá? Sem saber o motivo, começou a chorar. As lágrimas não paravam de cair e seu peito doía, mas ela ainda não entendia nada. Amanda segurava as suas duas mãos, juntas, e não conseguia olhar pra ela. Parecia mais amedrontada com a possível reação de Kirsten do que com o que deixara todos naquele estado. – Fala... – pediu, fechando os olhos para ouvir. Todos haviam concordado que era Amanda quem tinha de dar a notícia para Kirsten, e ela própria sabia disso, mas simplesmente não conseguia falar. Queria abraçar a loira e levá-la embora, sumir dali, viajar no tempo, o que quer que fosse. A única coisa que não queria era ter de dizer aquelas palavras porque sabia que nada poderia ser mais cruel. Nada. – O Richie... – NÃO! – Ele... uma gangue de neo-nazistas e... – PÁRA! PARA COM ISSO, AMANDA, EU NÃO QUERO OUVIR!!!! – Kirs... Kirs... – ela se jogou nos braços da ex-mulher. – Eu sinto muito, Kirs... – Cala a boca, mentirosa! Me solta! – ela lutou pra se livrar dos braços de Amanda, mas não estava conseguindo. – ME SOLTA!!! É MENTIRA!!! EU SEI QUE É MENTIRA! PAREM COM ESSE TEATRO OU EU VOU FICAR MUITO PUTA.
– Kirsten, calma. A gente não pode fazer mais nada. – disse Enrico. Kirsten se afastou. Estava tonta. Amanda foi novamente na sua direção, mas ela a evitou, praticamente saiu correndo para o outro lado da sala. – É mentira, „ta legal? – sua voz começou a falhar e ela não enxergava mais nada por causa das lágrimas. – Isso tudo é um pesadelo e eu vou acordar agora. Ela apertou os olhos e quando pensou em abri-los de novo, para acordar em sua cama quentinha, longe daquele lugar e daquela tragédia, sentiu que outra pessoa a abraçava, num choro soluçante que ela já tinha ouvido muitas vezes, mas não com aquela intensidade. – Você é a mais forte de nós, Kiki. Ela não ia querer te ver nesse estado. – PÁRA, DEBBY! PÁRA. Isso não „ta acontecendo, nós vamos ficar juntos pra sempre, lembra? A gente jurou isso quando tinha cinco anos, Debby! A gente jurou ficar junto e nunca brigar, e se tudo mais falhasse, nós iríamos as três para um asilo de velhinhos... Nós somos uma família e a mais perfeita de todas. Vamos fazer um cruzeiro de dois anos pela Polinésia e vamos fundar um museu de arte quando fizermos cinqüenta anos. Você lembra? VOCÊ LEMBRA, DEBBY?? Richard, Debra e Kirsten haviam feito aqueles planos na adolescência. – E nós vamos para a Lua quando começarem a oferecer passeios comerciais... – Debra completou, abraçando Kirsten. – E sempre que alguém nos machucar, os outros dois vão estar a postos, e nunca vamos sofrer de verdade porque nunca vamos nos deixar... – Então me diga que é mentira e que ele ainda „ta aqui. – o tom de voz de Kirsten era suplicante. Enrico e Amanda as separaram depois de algum tempo. Também estavam devastados pela dor da morte trágica de seu grande amigo, mas Kirsten e Debra não reagiam mais a qualquer estímulo. Apenas choravam. – Shhh. Kirsten conseguiu voltar a discernir alguma coisa. Estava sobre o sofá, Amanda a envolvia com seus braços e tinha o queixo pousado em seu ombro. Beijava a sua face a todo momento, secava suas lágrimas e sussurrava palavras de consolo ao seu ouvido, embora também chorasse, ainda que um pouco mais controlada. “Calma, meu amor ... a dor vai passar. – NUNCA! Amanda a prendeu em seus braços com mais força, beijou-a de novo, afagou seus ombros, embalou-a vagarosamente.
– Meu amor , vai ficar tudo bem. Eu prometo. – Eu quero ele de volta. Eu quero o Richie aqui. – Shhh... vai passar, meu amor , vai passar... Todas as vezes em que havia sido pega de surpresa ou apunhalada pelo destino, a primeira coisa que acontecia com Kirsten era ficar em choque. Mas a segunda, imediatamente após isso, era começar a pensar. Racional demais como dizia Amanda. No dia em que Richard morreu, pela primeira vez, Kirsten Howard não conseguiu pensar em nada. Derek fora quem providenciara tudo. Enrico e Amanda sabiam que ele estava sofrendo muito e aquilo era mais angustiante porque ele escondia. Ele parecia controlado. E ninguém poderia dizer o que seria daquele pobre rapaz no momento em que se deixasse vencer pela dor, porque até ali ele estava sendo mais forte que qualquer uma das outras pessoas. As duas melhores amigas de Richard voltaram a se abraçar, num canto, no chão, atiradas, às vezes chorando, às vezes simplesmente em silêncio. E depois de alguns intervalos, quando qualquer uma delas lembrava de alguma coisa, choravam de novo aos soluços, e uma cuidava da outra, querendo na verdade cuidar de si. – Eu não estou suportando vê-la nesse estado e não poder fazer nada. – disse Amanda, para Enrico. Amanda deixou que Enrico a abraçasse. Sabia que ele queria dizer o mesmo, mas sobre sua noiva. Ninguém poderia medir a força da amizade daqueles três. – Elas vão perder as forças daqui a pouco. É bom que descansem, amanhã vai ser um longo dia. Ele estava certo. Obrigaram as duas a tomarem calmantes e elas dormiram por toda a madrugada.
(até o próximo capítulo)
Notas Finais: sorry Voltar para o índice
Descanse em Paz escrita por Sara Lecter
“Lembro das tardes que passamos juntos Não é sempre, mas eu sei Que você está bem agora Só que este ano o verão acabou Cedo demais...
É tão estranho Os bons morrem jovens Assim parece ser Quando me lembro de você”. Love in the Afternoon Legião Urbana
Capítulo 51 – Descanse em paz – Ele sempre dizia que a força dele vinha de você... Kirsten acordou na cama de Richard e viu que Derek estava ao seu lado, com o olhar mais perdido que ela já tinha visto. “Então eu acho que se você me deixar ficar aqui, um pouco, eu vou me sentir mais perto... – completou o modelo. Que dia era aquele? De que mês? Qual o ano? – Uhum... Foi tudo o que ela conseguiu responder, pra não chorar de novo. Fez do ombro do amigo um travesseiro e deixou que ele afagasse suas costas, como certamente tinha feito com Richard inúmeras vezes. A força que ele mencionara pareceu voltar pra ela, porque foi Derek quem desabou desta vez, e tudo o que ele tinha na vida era Kirsten. Era a outra metade do homem que ele tinha acabado de perder pra sempre. – Eu vou me vingar, Kiki. Eu vou matar cada um deles com as minhas próprias mãos... – prometeu Derek, entre soluços.
Kirsten olhou para ele. Era apenas um garotinho assustado, jovem, imaturo demais pra ter de suportar tudo aquilo. Kirsten já tinha perdido seus pais e sabia o que era enfrentar a face da morte pela primeira vez. Sabia que nenhuma palavra, que nenhuma pessoa, que nenhum acontecimento e que nem mesmo o tempo poderia consolar Derek. Ele apenas aprenderia a conviver com aquela dor, como ela aprendera, desde os quatro anos. Mas ela sempre estaria por ali... – Foram presos? – Nove. Dois escaparam. – disse Derek, mecanicamente. O primeiro pedido de Kirsten para Cindy naquele dia, por telefone, foi que o Senador fosse imediatamente comunicado. Uma nova lista passaria a circular nos jornais a partir do dia seguinte, com os nomes de Richard e outras vítimas fatais da intolerância. Infelizmente todos sabiam que esta lista também teria de ser atualizada com freqüência. Sua segunda idéia era proibida por lei, mas Cindy garantiu que era possível executá-la clandestinamente pela Internet. Uma lista com o nome de todos os membros conhecidos de gangues e grupos de direita com envolvimento em crimes daquele tipo, acompanhados dos nomes de seus pais. Kirsten queria que seu país soubesse exatamente que tipo de pessoas as famílias americanas estavam criando em seus lares. Ela sabia que apelar para a vergonha era a melhor chance de sucesso que eles tinham. A terceira idéia veio de Amanda, que também parecia dominada pelo desejo de vingança. Aquilo não diminuía a dor, mas distraía o coração. E enquanto o corpo de Richard era sepultado, cada família, de cada um dos assassinos, recebia uma coroa de flores com o nome dele e uma banda de música fora contratada – por Cindy, que coordenava tudo – para tocar a marcha fúnebre na porta de suas casas. Muitos não atendiam, mas seus vizinhos certamente saberiam do que se tratava e a cobertura da imprensa para aquela idéia mórbida, mas genial, mudaria o tom daqueles crimes para sempre. Era hora de acordar, hora de abrir os olhos para aquela violência que havia se tornado banal.
333 Com os funcionários do salão, os amigos e muitos clientes de Richard que resolveram aparecer para uma última homenagem, havia cerca de oitenta pessoas no enterro. A imprensa fora mantida distante pela administração do cemitério e Richard, que era ateu, mas de família Católica, acabou tendo um sepultamento cristão. O gerente e sócio de seu negócio disse algumas palavras, muito emocionado, e os aplausos que se seguiram foram para Richard e não para o seu discurso. Enrico foi com Debra para perto do caixão e a cheff acabou não conseguindo completar as três frases que elaborara como despedida. Kirsten foi até ela e a abraçou, e naquele momento nenhuma pessoa dentre as oitenta, a não ser o padre, conseguiu escapar de derramar ao menos uma lágrima. Amanda se enterrou nos braços de Barbara e se deixou vencer pela emoção. A produtora afagou suas costas, beijou seu rosto, chorou com ela, pois se tornara também amiga de Richard, embora o tivesse achado estranho nos últimos dias.
Mas Amanda logo se separou dela. Conhecia o seu lugar e foi com Derek para onde estavam as garotas, sem poderem ser consoladas por Enrico. Derek seria o último. Até pusera uma calça preta, mas escolhera uma camisa rosa porque aquela era a cor favorita de Richard e assim ele se sentia menos distante. Sabia que a qualquer momento o caixão iria descer a sete palmos e uma lápide fria seria o endereço eterno de seu amor, mas simplesmente não podia aceitar aquela realidade. Há pouco mais de vinte e quatro horas estava acordando ao lado do marido e foi pensando nisso que olhou para a aliança dourada em sua mão esquerda. – Uma semana. – disse ele, limpando a garganta, olhando para a foto sobre o caixão. – Uma semana foi o tempo que nos deram, meu amor, para que fôssemos felizes para sempre. Acontece que antes de formalizar isso eu já era seu, somente seu, eternamente... foi desde o primeiro segundo que eu te vi. As suas amigas estão aqui para não me deixarem mentir, você bancou o difícil... – em meio ao choro ele riu discretamente, com a doce lembrança. – e pra falar a verdade a gente nunca passou mais de duas semanas sem brigar, às vezes por motivos torpes, às vezes por medo. Mas sabe, cara, eu não mudaria uma vírgula da nossa história de amor , eu não mudaria nem as pequenas coisas que eu reclamava em você porque agora é só nelas que eu consigo pensar... e em como eu vou sentir falta dos seus defeitos, Richie, como eu vou sentir falta do seu ciúme e de você se maquiando demais. Eu vou sentir saudade da pipoca e dos filmes, do seu mau-humor no domingo de tarde e eu vou... – ele não conseguiu continuar até que Kirsten o abraçasse, então voltou a falar. – Eu nunca vou esquecer que você me ensinou a ser homem, me ensinou a ser sábio, me ensinou a ser moleque, me ensinou a ser amigo e me ensinou a ser amante. Não fica preocupado, „tá? Eu dou um jeito, eu me cuido agora sem você, porque você também me ensinou a ser mais forte! Derek beijou uma rosa vermelha e pousou-a sobre o caixão. Kirsten recolheu o porta-retratos e o corpo foi descendo lentamente para o túmulo. Kirsten sentiu uma mão apanhar a sua e não precisou olhar para o lado para saber de quem se tratava. Fechou os olhos com força. – Eu sempre me considerei tão cética, Kirs... Mas eu juro que trocaria tudo isso agora pela existência de um paraíso, ou um purgatório, qualquer lugar aonde ele possa nos chamar de “Lindinha” de novo. Talvez um dia... Kirsten respirou fundo duas vezes antes de falar, sem encarar Amanda. – Eu lamento muito que o mundo que estava construindo pra você não tenha mais ele. Eu nunca poderia imaginar... tão cedo... desse jeito. Amanda demorou a responder. “O mundo que estava construindo pra você”. O brilho nos olhos de Kirsten... aquele que só Amanda parecia notar. Tudo fez sentido. Por isso as idéias pareciam tão familiares... eram dela. Eram anos contando à Kirsten como faria se um dia tivesse algum poder. E ela que achava que Kirsten nunca estava prestando atenção... – Você?
O caixão chegou ao fundo do túmulo. Todos baixaram a cabeça e o padre, que não estava nada satisfeito com aquilo, viu uma mão impedir a sua de ser a primeira a jogar terra sobre o corpo de Richard. Kirsten tirou da bolsa um pequeno saquinho com purpurina, dividiu com Debra e elas atenderam, juntas, um dos estranhos pedidos que ele fizera certa vez. Aquela capacidade dele de fazer piada com tudo iria lhes fazer muita falta. O padre foi embora depois daquilo e ninguém fez conta disso. Todos se retiraram lentamente, rumando para a saída. Kirsten tomou a direção contrária e depois de quase duzentos metros, parou diante de um mausoléu. – Cuidem bem dele, por mim. – pediu. Amanda, que lhe seguira, a abraçou pelas costas. Leu rapidamente as palavras forjadas em prata sobre o mármore negro: “Ken e Hérmia Howard, pais adorados de Kirsten e também do pequeno Chase, que a violência dos homens impediu de vir ao mundo. Descansam em paz celestial como escolheram partilhar a vida: juntos para sempre”. – Seu irmão se chamaria Chase? – Uhum. – Ah, Kirs... eu daria qualquer coisa pra sofrer no seu lugar. Kirsten negou, movendo a cabeça. – Faça melhor. Me faça feliz. Antes que Amanda pudesse pensar no que tinha acabado de ouvir, notou a presença de Barbara e se afastou da ex imediatamente. Kirsten, entretanto, segurou o seu braço, na altura do cotovelo. – Preciso ir. – argumentou Amanda, sem jeito. – Estou indo embora, Mandy. – O quê? Embora? Como assim? – As listas dos boicotes... Algumas cidades da América Latina aderiram, e pela internet elas já existem em Londres e Paris. Ainda há muito trabalho a ser feito. – Kirsten, você nem gosta de política. – Mas eu gosto de você. Não disseram adeus. Não precisava. Kirsten foi deixando o braço de Amanda escorregar, prendendo levemente o seu casaco, as mãos se tocaram, se despediram por elas, gentilmente, lentamente, até que a última ponta, do ultimo dedo, o último milímetro de pele deixasse a outra escapar. Kirsten deu até logo aos pais e foi
arrumar as malas. Cindy cuidaria de tudo em Nova Iorque e Derek viajaria com ela. Debra seria consolada por Enrico e não podia deixar o trabalho. E enquanto isso, debaixo da terra, Richard descansava em paz.
(até o próximo capítulo)
Voltar para o índice A razão correta escrita por Sara Lecter
“Dear Mr. President, Come take a walk with me. Let's pretend we're just two people and You're not better than me. I'd like to ask you some questions if we can speak honestly.
What do you feel when you see all the homeless on the street? Who do you pray for at night before you go to sleep? What do you feel when you look in the mirror? Are you proud?
How do you sleep while the rest of us cry? How do you dream when a mother has no chance to say goodbye?
How do you walk with your head held high? Can you even look me in the eye And tell me why?
What kind of father would take his own daughter's rights away? And what kind of father might hate his own daughter if she were gay? I can only imagine what the first lady has to say You've come a long way from whiskey and cocaine”. Trecho de “Dear Mr. President”. Pink
Capítulo 52 – A razão correta Sua primeira conclusão, instintiva, foi que Amanda estava linda. Terrivelmente linda. Às vezes ele temia por ela, porque sabia que muito freqüentemente as garotas que chamam atenção na adolescência se tornam mulheres comuns. Ela continuava sendo especial. Seus passos na direção dela foram lentos e muito inseguros. Amanda, pelo contrário, sorria e parecia tão dona de si que ele se sentiu um menino diante dela. – Fred! Ele a tomou nos braços e por dois ou três segundos foi como se nunca tivessem se separado. – Oi, Amanda. Ela sorriu abertamente. Vagava seus olhos pelos detalhes do seu rosto, mas procurava por si mesma, pela porção de si que ficara com ele, no passado. Com o primeiro namorado, com a primeira pessoa a quem se entregara, com aquele com quem um dia havia feito planos e mais planos. – Então? Como andam as coisas? – Eu encontrei o Aaron na rua, esses dias. – explicou Fred. – E ele me disse que você e os seus pais... – Ah, nos vemos duas ou três vezes por mês, mas eu já não tenho idade para ficar na barra da saia da mamãe. – ela comentou. – Que bom que você pôde vir.
– Eu é que agradeço o convite, Fred. Há quanto tempo não nos vemos? Seis anos? Sete? Andaram juntos pelo parque que Fred escolhera para o encontro. Conversaram amenidades por algum tempo, até se sentarem em um banco debaixo de uma árvore com copa vasta que lhe fazia sombra àquela hora do dia. – Bem, Amanda – ele suspirou cansado. – , na verdade eu te chamei para uma conversa chata. – Fale. – Eu nunca esqueci tudo pelo que a gente passou. Você, Gail e eu. Naquele instante Amanda pensou em Richard novamente. Era assim, desde que ele morrera, qualquer coisa que remetesse a ele vagamente lhe obrigava a conter as lágrimas. Ela pensou em Richard, Debra e Kirsten, naquele trio que ela vira pela primeira vez em um bar, quando bebia com Tina. Fred, Gail e ela eram um trio parecido, e embora os três ainda estivessem vivos, haviam se separado bruscamente. Fred continuou: “A gente era tão amigo, mesmo você e eu, que também namorávamos... Quer dizer, depois você a Gail, mas enfim... e a gente se sacaneou demais. Você enganou nós dois, depois eu me afastei das duas porque estava magoado, eu disse todas aquelas coisas e... só que isso tem que parar um dia, sabe? – ele balançou a cabeça. – Mesmo que não sejamos mais amigos, nenhum de nós, Amanda, não é motivo para nos puxarmos o tapete para sempre. – Do que você está falando, Fred? – ela o afagou no rosto. – Da Gail... Amanda mordeu os lábios e quebrou o contato visual. Não perdoara a si mesma, ainda. – Você soube que ela – ela me procurou. Eu sei de tudo. E eu sei também de algumas coisas que você não sabe. – Como assim? – A Gail veio me dizer que nós dois estávamos vingados. Uma frase horrível, Amanda, eu nunca pensei em vingança. Eu a recebi porque você sabe, acabei de dizer pra ti o quanto a nossa amizade foi sempre importante e será sempre importante pra mim. – Uhum.
– Gail voltou pra Nova Iorque e acabou resolvendo se vingar de você. Uma outra pessoa foi quem deu a idéia, eu não sei se isso tira a culpa dela, mas... O fato é que ela voltou para a sua vida por acaso, não sabia que iam trabalhar juntas de novo, mas depois, premeditadamente, ela fez de tudo para te envolver em um escândalo. Eu já tinha lido nos jornais, sobre a sua separação, sobre ter se tornado pública a sua opção – Orientação, Fred. – Isso. – ele riu. – Caramba, você casou com a Kirsten Howard!! Amanda riu também. – Deve ser o ponto alto do meu currículo, todo mundo menciona isso. – Era isso que eu tinha pra te contar, Amanda. Eu sei que já faz tempo, que agora não deve adiantar nada, mas julguei que você deveria saber. – Isso não tira a minha culpa, Fred. Por mais que fosse uma armadilha, eu não poderia ter cedido. – ela suspirou longamente. – Mas obrigada por contar. – E a música? Ela abanou a cabeça. – Não deu certo com as gravadoras. – Uma pena, eu acho que você canta muito bem. Gravadoras. A palavra ficou martelando na cabeça de Amanda. Qual era mesmo a acusação absurda de Kirsten? Que Barbara a impedia de decolar como cantora para que ela continuasse na Companhia de teatro? Não poderia ser... Barbara era sua melhor amiga e agora era também sua namorada. Barbara estava ao lado do seu leito quando Amanda acordou do coma. Barbara era sua confidente quando Amanda sentia que seu casamento com Kirsten estava acabando, Barbara sabia de tudo... E ela contara para Barbara que trocara Gail por Kirsten, porque confiava nela... “Uma outra pessoa deu a idéia”.
333 A música era mais baixa no ambiente do bar, mas o mezanino permitia que Derek e Kirsten vissem a pista de dança, abaixo deles. Bebiam alguma coisa e já estavam ligeiramente altos, haviam acabado de se sentar, suados, depois de quatro ou cinco músicas agitadíssimas. A iluminação mal permitia que discernissem o rosto um do outro. – Ah, meu sonho era um cara que dançasse assim. – ela riu. – Pode me convidar mais vezes, eu adoro!
Ela notou que ele desviava os olhos em curtos intervalos. Sabia o que estava fazendo. – Ele ainda „ta olhando pra você? – Uhum. – E o que você faz aqui parado? Derek hesitou. Kirsten respeitou seu silêncio, sabia o que ele estava pensando. – Não sei se estou pronto, ainda. Kirsten tomou a mão dele. – Ninguém está falando de se apaixonar, tolinho. Uns beijinhos na boca vão te fazer bem. Se a melhor amiga de Richard estava dizendo aquilo para ele, Derek julgou que não havia nada de errado. Estava mesmo precisando se distrair, tocar a sua vida para frente. Aquele dia fora realmente especial. Kirsten o levara para conhecer as principais atrações de Paris e ele entendeu finalmente a fama da cidade-luz. Subiram na Torre Eiffel e ele começara a cantar La Vie en Rose para ela, e antes que Kirsten pudesse protestar, tirou-a para dançar. Outros casais os imitaram e ele teve de cantar mais alto, e mais desafinadamente. Naqueles raros momentos eles conseguiam esquecer de toda a dor. – E você? – perguntou ele, já em pé, alinhando a roupa. – Eu me viro. – Kirsten piscou o olho e sorveu mais um gole. Derek sumiu na escuridão da boate e Kirsten apanhou seu celular. Ficou olhando para o aparelho por algum tempo, sem se mover. A noite estava apenas começando em Nova Iorque e ela tinha ligado para Debra antes de sair. Cindy fora instruída para não ligar a não ser em caso de emergência, porque o objetivo de Kirsten era tornar aquela viagem inesquecível para Derek e isso incluía se afastar um pouco do trabalho. O que será que você está fazendo agora? Nenhuma resposta. A única maneira de saber era ligar, e Kirsten tinha se prometido que não faria mais isso. E aquela fora provavelmente a decisão mais difícil da sua vida.
333
Em Washington, no Salão Oval da Casa Branca um distinto Senador conversava com o Presidente e seus assessores. – Essa situação está saindo do controle. – disse o homem mais poderoso do mundo. – Posso garantir que não vamos parar agora. – Tantas mortes não foram suficientes? Vivemos uma guerra dentro de nossa própria casa! – ele bateu na mesa. – Ninguém lamenta mais do que nós. São os nossos filhos que estão morrendo por aí, a socos e pauladas. – Pelo amor de Deus, este é um país Cristão! – Achei que fosse a Terra da Liberdade. – devolveu o Senador, sem medo. – Eu não posso admitir o que está me pedindo. É completamente fora de propósito. Não tem precedentes! Você faz idéia de como toda boa família americana vai reagir a isso? – Se me permite, Senhor Presidente, defina uma “boa família americana”. – Você está indo longe demais. Uma boa família é uma família com moral Cristã! E Deus não admite uma coisa dessas! O Senador apelou para uma nova ousadia. – Quem lhe colocou nessa cadeira não foi Deus, mas o seu povo, Senhor Presidente. E se abrir os seus olhos vai ver o que ele quer agora. E vai ver que é um caminho sem volta. – Um absurdo! – Se eu fosse você, Senhor Presidente, pensaria seriamente, porque se hesitar demais vai ser atropelado pelos fatos. Se agir agora, entretanto, pode ser um líder. Tudo depende de como você vai querer entrar para a História: como um herói ou como um fraco? O Senador foi tirado da sala e proibido de agendar novas audiências. Não se importou. Tinha conseguido dizer o que queria. E sentia, sem que ninguém precisasse lhe dizer, que aquilo daria certo. Lembrou do dia em que redigiu o primeiro esboço do projeto. Lembrou de ter procurado Kirsten Howard durante as filmagens e de ter perdido as esperanças muitas vezes. Ninguém conseguia entender porque ele lutava por aquilo se era heterossexual, se não tinha nenhum gay na família, pelo menos ao que tinha conhecimento. Ele simplesmente sabia que estava fazendo a coisa certa, e nesses casos, o difícil mesmo é ficar parado. Rapidamente ele se virou e olhou para o prédio
imponente que acabara de deixar. Não negava sua própria ambição. Quem sabe um dia não seria aquela a sua casa? Num mundo melhor, talvez.
Nota da Autora: segue a tradução da música Dear Mr. President
“Querido Sr. Presidente Querido Sr. Presidente Venha dar uma volta comigo Vamos fingir que somos apenas duas pessoas e Você não é melhor do que eu Eu gostaria de fazer-lhe algumas perguntas se pudermos conversar honestamente O que você sente quando vê tantos sem-tetos nas ruas? Por quem você reza a noite antes de dormir? O que você sente quando olha no espelho? Você está orgulhoso? Como você dorme enquanto o resto de nós chora? Como você sonha quando uma mãe não tem a chance de dizer adeus? Como você anda com a sua cabeça erguida? Você pode pelo menos me olhar nos olhos E me dizer por quê? Querido Sr. Presidente Você era um garoto sozinho? Você é um garoto sozinho? Como você pode dizer Que nenhuma criança é deixada para trás Nós não somos bobos e não somos cegos Eles estão todos sentados em suas celas Enquanto você abre o caminho para o inferno Que tipo de pai tiraria os direitos da própria filha? E que tipo de pai poderia odiar a própria filha se ela fosse gay? Eu posso só imaginar o que a Primeira-dama tem a dizer Você veio de um longo caminho de uísque e cocaína Como você dorme enquanto o resto de nós chora? Como você sonha quando uma mãe não tem a chance de dizer adeus? Como você anda com a cabeça erguida? Você pode pelo menos me olhar nos olhos?
Deixe-me te dizer sobre trabalho duro: Salário minimo com um bebê a caminho Deixe-me te dizer sobre trabalho duro: Reconstruir sua casa depois que as bombas a levaram embora Deixe-me te dizer sobre trabalho duro: Construir uma cama com caixas de papelão Deixe-me te dizer sobre trabalho duro Trabalho duro Trabalho duro Você não sabe nada sobre trabalho duro Trabalho duro Trabalho duro Oh Como você dorme a noite? Como você anda com a cabeça erguida? Querido Sr. Presidente Você nunca daria uma volta comigo... Daria?
(até o próximo capítulo) Voltar para o índice A última dança escrita por Sara Lecter Notas do Autor: Chega ao final mais uma fic Yuri no Nyah! Penso que deveria haver espaço nesse site para grupos de discussão. Alguém apoia? Acho que existem muitos temas sobre os quais só falamos em comentários ou conversas de MSN, e essas coisas não deveriam se perder assim tão facilmente. Por fim, a música tema deste capítulo pode ser acessada em http://www.youtube.com/watch?v=H_ngPpu4IkE aviso que não é um clipe, apenas áudio. Talvez vocês conheçam a canção pelo Nazareth ou bandas que gravaram versões aleatórias, mas idealizei o capítulo pensando na voz e no arranjo de Damien Rice, ok? Obrigada a todos que acompanharam...
“Queria que tu guardasse pelo menos uma parte do que eu disse, nem que seja saber que se o mundo acabasse hoje era a tua mão que eu queria estar segurando”. Minha psicóloga disse um dia que a diferença entre nós era que ela não sabia escrever. E eu dizia que estava errada. A frase mais bonita que encontrei para encerrar essa história é dela. Viu? O amor faz milagres (risos) então nunca deixe de acreditar. Eu vou aplaudir de longe quando vocês se reencontrarem.
Capítulo 53 – A última dança
A sala de Oliver Townsend ainda era exatamente a mesma. Os mesmos quadros, os detalhes, o chapéu pendurado no cabide próximo da porta. A Amanda ainda não conseguia se sentir à vontade quando ele lhe convidava para sentar na poltrona diante da sua mesa. Ficava sempre em pé, como estava ali novamente, nervosa, ansiosa, esperando... E até mesmo Tina também estava ali, com suas pernas nuas, seus saltos muito altos e seus decotes vertiginosos. – E então? – seus olhos muito escuros mal poderiam esperar que a professora de música respondesse. – Ambos foram muito atenciosos comigo. – disse Tina, sorrindo, guardando o telefone. Amanda sabia que ela tinha muitos contatos no mundo da música, descobrira isso no dia em que a conheceu. Um dia em que descobriu muitas outras coisas também. – Tem certeza que não quer se sentar? – ofereceu Oliver, mais uma vez, tragando seu charuto e observando as duas mulheres a sua frente. – Não, obrigada. Eu realmente preciso agradecer vocês dois mais uma vez, por me receberem depois que... depois de tudo o que eu fiz. – Nunca guardamos qualquer mágoa, Amanda. – Tina respondeu pelos dois. – E então, o que eles disseram, Tina? – quis saber o empresário, que também estava curioso. Tina suspirou longamente. Não era uma notícia fácil de dar. – Suas desconfianças estavam corretas. Eles adoraram seus demos, mas não te contrataram por causa de alguns telefonemas. Você sabe como isso funciona, alguém com influência aqui e ali, trocas de favores... Claro que não me deram nomes, mas certamente foi alguém que os conhece e – ela fez uma pequena pausa porque sabia que Amanda estava com o coração partido – que teria alguma vantagem no caso de você não estourar como cantora. Finalmente Amanda se sentou, mas foi porque suas pernas fraquejaram diante da notícia, e de tudo o que ela significava. Naquela sala ela se tornara mulher, começara sua carreira, aprendera a enfrentar uma pessoa poderosa e a abrir mão de alguns interesses em troca do seu amor. Aquele lugar deveria ser místico, ela pensou. Não conseguiu se despedir direito, mas estava feliz por saber que Tina e Oliver estavam bem, e continuavam ótimos amigos. Amanda já estava saindo quando reconheceu um rosto que andava aparecendo nos jornais. Era a mais jovem estrela da Companhia. Olhando para trás, Amanda viu o olhar de Tina sobre ela e ainda que muito chocada com a notícia anterior, teve de sufocar o riso. “O ciclo da vida se completa”, pensou. Deixou a Townsend como fizera outras tantas vezes, pela porta da frente. Ali fora muito feliz, mas não tinha intenção de voltar. Caminhou pela Broadway
naquela tarde, apenas observando o movimento, o seu pulso de vida. O coração da vida cultural de Nova Iorque. O seu próprio coração... Sentiu-se livre como nunca antes, e pela primeira vez era dona do próprio destino.
333 Susan e Josie caminhavam sobre o deck da praia. O sol se punha em Newport Beach e ambas protegiam seus olhos com óculos escuros. As mãos, largadas ao lado dos corpos, com os braços estendidos, haviam se roçado duas ou três vezes, e Josie ficara tão ocupada tentando parecer controlada que não percebia que a mesma espécie de corrente elétrica arrepiava a pele de Susan. – Então você voltou para Los Angeles... – É. Sempre gostei daqui. – a francesa sorriu. – E... a Kirsten? – Ocupadíssima em Washington... eu acho. Susan parou de caminhar, mas imediatamente se deu conta do que fazia e disfarçou, voltando a andar. – Não estão mais juntas? Josie mordeu os lábios e encarou o mar. – Sabe, Sue... eu vivi muitas coisas boas ao lado dela, é uma pessoa especial, mas certamente o melhor em tudo isso que aconteceu foi que por causa dela eu voltei a falar com você. Fechando os olhos vagarosamente, Susan julgou que seus ouvidos lhe pregavam uma peça. Não conseguiu responder. O que diria? Ficou saboreando aquela sensação de notar seu coração acelerado. – Eu fiquei feliz quando você me procurou. Foi como... sei lá, foram tantos anos de silêncio e em dois minutos eu já me sentia completamente à vontade do seu lado. Parece mágica. Eu sinto como se pudéssemos passar um século brigadas, mas quando você voltasse, ia ser tudo igual, de novo. Josie lhe apanhou a mão e elas se sentaram na areia. O sol estava mais fraco e tiraram seus óculos. – Você se sente bem, comigo aqui? – Eu sinto tudo, e não sinto nada... – Susan encarou as ondas, calmas, e a lua começando a brilhar, ainda que tímida. – Eu sinto paz.
– Não gravaram o filme aqui, gravaram? – Não, não conseguiram isolar a praia, foi a três quilômetros daqui. – Você acompanhou tudo? – Uhum. – Eu tinha tanta raiva do seu livro, Sue. – confessou Josie. – Porque ele estava sempre ali me lembrando de tudo o que fomos... só que você não estava mais comigo... você me matou dentro de você. – Isso não é verdade. – E depois viramos um filme! Você não faz idéia do que eu senti, quando vi. – Josie, eu não matei você dentro de mim. Isso seria impossível. – Por quê? – Porque tem coisas que você não pode apagar. Você pode até fingir para si mesma que elas estão adormecidas, esquecidas em um canto escuro do seu coração, mas basta um pequeno sinal e elas voltam, como toda a força que tinham antes, ou talvez... cada vez mais fortes. Inclinaram-se e seus rostos ficaram um diante do outro, unidos pelas testas coladas. Susan acariciou a face de Josie com candura e notou que uma lágrima teimosa não fora detida. Estava lembrando do primeiro beijo, meio no susto, meio apavorado... e o medo que teve de que Josie não desse importância para aquilo. Mas não. Fora o primeiro beijo dela. Tanto tempo depois, Susan tinha exata noção do que significava na vida de Josie Duschamps: tudo. Vem me fazer feliz porque eu te amo Você deságua em mim e eu Oceano Esqueço que amar É quase uma dor – Só... sei... – cantou Josie, baixinho, retribuindo a carícia de Susan. – viver... se... for... por... você! A promessa era verdadeira.
333
Apesar de ter evitado aquilo por um ano, o nome de Kirsten finalmente foi ligado ao movimento que varria o país. Mesmo que tivesse compromissos em Nova Iorque, ela apenas passava pela cidade, e no máximo jantava com Debra e Enrico antes de partir novamente. Aquilo lembrava a ela o começo de sua carreira com atriz, as filmagens ao redor do mundo, a falta de um lar, as noites em hotéis e os dias de trabalho intenso. As listas continuavam sendo atualizadas e o efeito que ela pretendia já se podia notar. A de boicotes diminuía aos poucos, porque os empresários estavam tomando medidas urgentes para que seus estabelecimentos fossem tirados dali. Os boicotes geralmente causavam sérios prejuízos e o bolso era a região mais sensível da maioria deles, muito embora alguns tenham sido tocados também no coração. Com o país em guerra interna, tornou-se inevitável que as autoridades começassem a agir. Kirsten chorou diante do espelho, no banheiro de sua suíte, quando se preparava para sair. Estava anoitecendo e no dia seguinte seria aprovada uma nova lei de direitos civis. Por vezes ela tinha duvidado que aquele dia chegaria. Duvidara que seria ainda no seu tempo. Queria que você estivesse aqui, Richie... disse baixinho, secando as lágrimas. A festa organizada pelo Senador em Washington chamava a atenção de longe. A segurança era pesada porque todos temiam uma retaliação de extremistas e Kirsten viu pela janela do carro oficial que a fora apanhar que havia um grande grupo de religiosos fazendo muito barulho do lado de fora. – Engulam essa, papa hóstias! Kirsten foi obrigada a rir do motorista. Ele parecia tão feliz, nem parecia estar trabalhando fora do seu turno. Era negro. Alguns diriam que a nova lei beneficiaria pessoas como aqueles dois dentro do carro. Kirsten acreditava, com razão, que a lei beneficiava todos. “Vai ser uma grande noite, não, senhorita? – disse ele, ao estacionar. – Hoje é o dia mais importante da minha vida. – respondeu Kirsten, deixando o carro após se despedir dele. Ela olhou para os rostos que se viraram com a sua chegada. A festa seria grande, havia dois salões espaçosos, um deles com o buffet, um terraço e um amplo jardim iluminado e decorado com as cores da bandeira estadunidense. Neste jardim, próximo da entrada dos salões, havia sido instalado um palanque. Kirsten se perdeu no meio daquilo, eram tantos que ela queria cumprimentar, outros tantos querendo trocar duas ou três palavras com ela... garçons oferecendo alguma coisa o tempo inteiro. A cobertura jornalística era exclusiva de uma única corporação e esse direito fora leiloado de antemão. O dinheiro financiaria a manutenção das listas, porque ninguém duvidava que elas continuariam sendo necessárias mesmo depois da lei. Com um discurso aplaudidíssimo, o Senador anunciou a grande notícia e fogos de artifício cortaram a noite da Capital. Estendendo a mão, o Senador conduziu Kirsten e ela achou que suas pernas dormentes e suas mãos que não paravam de tremer a impediriam de falar. E ela que nunca gostou de política...
Então aconteceu. Ela mexia as duas páginas impressas, deixadas ali para que ela se apoiasse, embora tivesse memorizado o discurso, e percebeu que não podia falar. Não tinha voz. Logo ela, tão desenvolta. Estava completamente travada. Começou a suar frio e não conseguia desviar os olhos. Entre as centenas de pessoas naquela festa, bem diante dela, segurando uma taça de espumante, estava Amanda Roberts. O silêncio que reinava foi interrompido por algum burburinho. Kirsten sabia que estava sendo ridícula. Olhou para o lado, um grande telão mostrava a transmissão oficial, e ela viu a si mesma completamente em pânico diante de todos. Respirou fundo, fechou os olhos, apertou as folhas impressas entre os seus dedos. Abriu os olhos novamente. Viu Amanda de novo. Ela não parecia preocupada, estava querendo dizer alguma coisa. Estava ansiosa... estava sorrindo e dizendo à Kirsten que deveria seguir em frente. Tudo se parecia com algo que ela já tinha vivido, talvez a noite do Oscar, mas ao mesmo tempo ela se sentia completamente diferente. Ainda que todos esperassem por ela, por suas palavras, por seu brilho, Kirsten sabia que não conseguiria fazer aquilo de novo. “Não decepcione ninguém” lhe dissera Jerry, daquela vez. Seu discurso fora enviado para a imprensa, e por isso a maioria percebeu, logo, que ela estava dizendo outra coisa. “Por que você não se permite errar uma vez, nem que seja tentando fazer a coisa certa?” – Me chamem de covarde. – disse, expirando longamente, olhando por cima dos ouvintes, até o fundo do jardim. – Me chamem de egoísta. Me chamem de aproveitadora ou de interesseira, eu realmente não me importo. Todos aqui lutaram por alguma coisa, alguns desde o começo, outros só depois que ficou claro que venceríamos. E nós vencemos a primeira batalha, mas não a guerra. E por fim, juntos, conseguimos que todos ganhassem alguma coisa, e a principal delas é o orgulho de ser quem é. Aprendi muitas lições nessa longa caminhada, conheci tanta gente, fiz grandes amigos. – ela olhou para Cindy rapidamente. – Mas não posso mentir para vocês, eu não sou perfeita. Eu acho maravilhoso que essa lei mude as nossas vidas, mas não estava pensando nisso quando comecei. Hoje, aqui, eu tenho a exata dimensão de que uma causa comum é alimentada por milhões de diferentes motivos e o meu, o meu único motivo para continuar nisso foi construir um mundo novo, um lugar onde você possa ser minha, Amanda. Silêncio. Kirsten não agradeceu os ouvintes. O telão não mostrou sua saída do palanque, após apertar a mão do Senador, e sim a figura de Amanda, ainda segurando a taça, atônita, mas sorrindo. Foram tantos flashes ao mesmo tempo que ela quase se sentiu de volta ao Red Carpet. E quase cega, não viu para onde Kirsten fora. Havia mais dois discursos e Amanda achou que seria falta de educação sair dali e não prestar atenção, principalmente agora que sabia que todos estavam de olho nela. – Esse discurso foi mais uma das suas surpresas? Quase uma hora depois Amanda conseguira encontrar sua ex-mulher de novo, pela primeira vez mais ou menos a sós.
– Oi, Amanda. Eu nem sabia que você estaria aqui. Cindy pigarreou cenicamente e depois trocou um sorriso cúmplice com Amanda. As duas estavam de conchavo. Kirsten deixou seu rosto denotar algum desagrado, mas Cindy sabia que não era sério. – Tô sobrando, tô sobrando, eu sei... tchauzinho! Kirsten riu e viu sua assistente se afastar e logo trombar em um garçom, fazendo-o derrubar a bandeja. Céus, como é estabanada, pensou. Então voltou a encarar Amanda. – Barbara não veio com você? – “Barbara”? Eu acho que eu não lembro de nenhuma Barbara... Amanda a puxou pela mão, entre os convidados, e levou Kirsten até o coreto no centro do jardim. Kirsten não estava entendendo nada, mas teve alguma idéia do que poderia acontecer quando viu que a sonoplastia ambiente era mais alta ali, e alguém resolvera tocar uma música triste em uma noite de festa. Love hurts, Love scars, Love wounds' and most Any heart not tough or strong enough To take a lot of pain, take a lot of pain Love is like a cloud, it holds a lot of rain Love hurts, Ooo-oo Love hurts Kirsten sentiu as mãos de Amanda puxando a sua cintura com delicadeza. Entregou-se ao momento, fechando os olhos e ouvindo a melodia. Eram as únicas ali que estavam dançando, mas Amanda não se importou. Contava a letra baixinho, no ouvido de Kirsten, e sabia que a sua voz nunca estivera tão bela, tão doce, tão apaixonada. I'm young, I know, But even so I know a thing or two - I learned from you I really learned a lot, really learned a lot Love is like a flame It burns you when it's hot Love hurts, Ooo-oo Love hurts Amanda tomou seu rosto com cuidado e esperou que abrisse os olhos. Continuou cantando, como se as únicas coisas que existissem no mundo fossem os orbes verde esmeralda de Kirsten. A loira passou a cantar com ela, ainda que naquele momento as duas duvidassem com todas as suas forças das palavras que estavam proferindo. Se o amor fosse apenas uma mentira, seus corações não estariam batendo tão forte... não no mesmo ritmo.
Some fools think of happiness, blissfulness, togetherness Some fools fool themselves, I guess They're not foolin' me I know it isn't true I know it isn't true Love is just a lie made to make you blue Love hurts, Ooo-oo Love hurts Os passos eram lentos e os dois corpos estavam perfeitamente colados um no outro. Kirsten abraçou Amanda e repousou em seu ombro, ainda ouvindo, ainda sentindo, e julgando que o coreto havia desaparecido e elas estavam flutuando em algum lugar aonde não existia mais nada nem ninguém.
E por alguma razão, um dia, vocês vão se perder... você, Kiki, vai encontrar outra pessoa e achar que pode parar de procurar, mas não vai dar certo, não por muito tempo. E aí, no dia mais importante da sua vida, quem estará diante de você será a sua garota, a de antes, a de sempre... e você vai ficar sem voz e tudo parecerá claro. Vão tocar Love Hurts e vocês terão uma última dança. Depois de velha, você vai se perguntar o que fazia antes de conhecê-la e não vai lembrar de nada.
A voz de Richard nunca lhe parecera tão clara na memória. Kirsten tinha dezoito anos quando ele dissera aquilo. Não permitiu que as lágrimas estragassem aquele momento. De algum jeito, de uma maneira desconhecida, ela sabia que seu melhor amigo estava ali. Amanda acariciou seu rosto. Parou de cantar sussurradamente, mas continuou conduzindo Kirsten, e não ligou quando percebeu que estavam todos olhando. Não era um mundo novo? Kirsten não tinha mudado um país inteiro só para que pudessem ficar juntas? I know it isn't true I know it isn't true Love is just a lie made to make you blue Love hurts, Ooo-oo Love hurts Ooo-oo, Love hurts Ooo-oo Inclinou-se sem qualquer pressa. Tomar os lábios de Kirsten era como voltar para casa, e não importava o que tivesse acontecido, seria sempre bom. Seria sempre a melhor das sensações. Os braços de Kirsten envolveram seu pescoço e Amanda aprofundou o beijo, sem parar de dançar. A canção era triste, mas ela só conseguia sentir o contrário. Felicidade. Não notaram quando a música parou, não notaram os flashes, as câmeras. A reconciliação estaria em todos os jornais da semana seguinte, mas e daí? Nenhuma delas tinha mais nada a esconder, principalmente uma da outra. – Você é a minha vida, Kirs... – E eu nunca vou deixar você!
O braço de Cindy já estava doendo, ela mantinha o celular no alto e filmara tudo. Transmitia a festa em tempo real através do seu blog, e nunca tivera dúvidas de que aquilo iria acontecer. Respeitosamente encerrou a transmissão, desligou a câmera e digitou um rápido post, que seria, enfim, o mais importante da história daquele site. “Ninguém pode imaginar o meu orgulho de ter estado por perto nos últimos tempos e, acreditem, não estou triste por chegar ao fim. Gail foi embora, Barbara está sendo processada e Josie se deu bem na Califórnia. Amanda e Kirsten voltaram, como puderam ver... Missão cumprida! Adeus, Cindy”.
(até o epílogo)
Notas Finais: agora só o epílogo. Beijos ... Voltar para o índice Epílogo escrita por Sara Lecter Notas do Autor: Não tenho palavras para agradecer o carinho e o cuidado de todos os seus comentários.
“Honey you are a rock Upon which i stand And i come here to talk I hope you understand The green eyes Yeah the spotlight Shines upon you How could Anybody Deny you? I came here with a load And it feels so much lighter Now i've met you And honey you should know That i could never go on
Without you Green eyes Green Eyes. Coldplay.
Epílogo Isadora não conseguia acreditar no que estava vendo. Tinha dezoito anos e aquela era a primeira vez nos últimos cinco que pisava em um Shopping Center. Aos treze anos saía de carro de uma festa com uma amiga e os pais dela. Todos morreram. Isadora acordara do coma profundo sem entender nada, o mundo havia mudado, e para ela o acidente fora no dia anterior. – Vocês viram isso? – ela perguntou. Seus pais e seu irmão estavam com ela na praça de alimentação. – Que foi, filha? Isadora apontou com o dedo. Ainda estava com os olhos arregalados. – Aqueles dois homens estavam se beijando! – ela aguardou e como ninguém disse nada, acrescentou: – Mãe, na boca! O pai dela fingiu que estava ocupado com seu hambúrguer e a mãe não sabia exatamente o que dizer. Então coube a William, seu irmão mais velho, explicar a situação. – Isso é normal agora, Isa. Quer dizer, sempre foi normal. Só que agora você vai ver mais. – Ahn!? – Muitas coisas aconteceram enquanto você estava dormindo. E eu posso te dizer com toda a certeza que você acordou em um mundo melhor. Ela ficou olhando os dois homens se afastarem. Não achava errado. Nunca tinha visto e pensava que sentiria nojo se visse um dia, mas não sentiu. Só não estava preparada. A conversa entre a família continuou, mas Isadora ficou mais calada que o comum. Terminaram o lanche e saíram juntos em direção às escadas rolantes. Isadora esbarrou em uma mulher, sem querer, e ergueu os olhos para se desculpar, mesmo que a outra já tivesse feito isso, de maneira simpática. – Meu Deus! Kirsten Howard! – Oi? – disse. – Meu Deus! Me dá um autógrafo? Eu sou muito sua fã!
Kirsten ficou sem palavras. A jovem a sua frente estava de boca aberta, mas ela própria talvez também estivesse. Ninguém lhe pedia um autógrafo há muito tempo. Os pais da garota entenderam a confusão no olhar de Kirsten e se adiantaram em explicar: – Desculpe, nossa filha ficou cinco anos em coma, só acordou agora. – Lamento. – disse Kirsten, encarando Isadora, sem saber realmente o que dizer. – E fico feliz que tenha se recuperado. Começou a pensar no que estava fazendo cinco anos atrás e percebeu porque a menina estava daquele jeito. Naquela época Kirsten jamais teria conseguido andar livremente pelo Shopping, ainda que tivesse crescido a três quadras daquele lugar. A jovem tinha uma bolsa e alcançou uma agenda e uma caneta. Kirsten sorriu, perguntou seu nome, assinou e os deixou para trás. Isadora ficou segurando a agenda contra o peito, incrédula. Quando já estavam no térreo e seu pai pagava o ticket do estacionamento, ela olhou para a página, abismada. “Kirsten Howard Roberts”. – Não era ela... – disse tristemente. – O nome dela era Krenddler Howard, eu sei, eu lia muito a respeito, queria ser como ela. William riu baixo e sua irmã o encarou curioso. – Sabe aquela cantora que eu estava ouvindo ontem e que você gostou muito? – Uhum. – Elas são casadas. Por isso ela é Roberts agora. – C... c... casadas? Assim, uma com a outra? Isso pode? William balançou a cabeça, rindo de novo. Isadora tinha tanto o que aprender... E ele agradeceu por ter passado por tudo aquilo acordado. Ficou arrependido de ter Kirsten Howard na sua frente e não ter falado nada. Tinha muito o que dizer, mas serviria um mero obrigado. No meio de toda a febre do movimento, três anos antes, ele contara aos pais que era gay. Isadora ainda não sabia. Ele suspirou, olhando a irmã pelo canto dos olhos. Aquele seria um bom dia para contar pra ela. Então sorriu e deixou o Shopping.
333 Kirsten ainda pensava na garota do coma quando se sentou. Não estava exatamente atrasada, mas fora a última a chegar. As fritas de Debra já haviam chegado e Derek e Amanda esperavam por seus pedidos. Kirsten beijou a esposa no rosto, demoradamente, acariciando sua face com a ponta do nariz ao mesmo tempo que tomava sua mão por
baixo da mesa, e perguntou se chegara no meio de algum assunto. Amanda e Derek riram. – Adivinha quem está brigando de novo? – perguntou Derek. – Eu não briguei com ninguém. – disse Debra, de cara fechada. Enrico estava entretido com o pequeno Ricky. Amanda e Kirsten adoravam ter o cheff por perto porque tinham uma pequena folga com o filho. O italiano realmente adorava o bebê, mas fazia aquilo também para convencer Debra de que deveriam “perpetuar a espécie” logo. – Diga pra sua madrinha que você quer um amiguinho ou amiguinha ainda esse ano, diga! – pedia Enrico, erguendo Ricky no ar e sorrindo para o menino. – Mas nem morta! – insistiu Debra. – Eu já disse, daqui a uns quatro anos a gente se fala, amor. – Mas por quê? – Não é você que vai ficar horrorosa e barriguda, viu? – Hei, também não é assim, Debby. – disse Amanda. – Logo depois você volta ao normal. – Amanda, nem todo mundo é como você. Só conseguiu voltar à forma porque não come carne! Ah, só de pensar em fazer dieta... – Debra continuou reclamando. – Acho que nem em quatro anos eu vou ter coragem. – Bem, trabalhando em uma cozinha o dia inteiro deve ser difícil. – comentou Derek. – Impossível ! – Debby... – pediu Kirsten, trocando um olhar cúmplice com ela. A loira era a única que sabia o verdadeiro motivo do encontro. – Pára com isso... As duas riram. Mas Debra estava se divertindo com o suspense. – Perdemos alguma coisa? – quis saber Amanda. – Nada. – disse Debra. – Conheço esse seu “nada”. „ta escondendo alguma coisa. – acusou Derek. Enrico estava tão distraído em limpar o rosto de Ricky, que estava lambuzado, que demorou a processar a frase de sua esposa, dita em seguida:
– „tá, eu tava brincando. Eu tô grávida. É isso. – ela imediatamente escondeu o rosto entre as mãos e se inclinou em direção à mesa, envergonhada. – Ahhh, eu não acredito! – exclamou Amanda. – Que perfeito! Parabéns! – ela estendeu as mãos e bagunçou o cabelo da amiga. – “Parabéns”? – Enrico voltou à conversa. – Que houve? – „tá vendo!? – Debra desferiu um violento tapa no braço do marido. – Não queria tanto? Agora eu conto e você nem – mais um tapa – presta – outro tapa – atenção! – o último tapa foi realmente forte. – Conta o quê, meu Deus? – ele tentava fugir dos tapas e ao mesmo tempo transmitir Ricky para o colo de Derek. – Hei, calma, vai machucar o garoto! – É, jeito pra pai você leva. – comentou Derek, que como Kirsten e Amanda, estava rindo a valer. – Eu tô grávida, seu traste inútil, insensível, chato, surdo... Debra continuou elencando desaforos, mas parou depois de algum tempo. Enrico não estava respirando. Olhava para Kirsten, depois para Amanda, depois olhou pra cima e para baixo, abria e fechava a boca debilmente. “Amor? – Debra se preocupou. – Desculpa, eu nem bati tão forte assim, eu... – É sério? – Uhum... – ela disse, sem abrir a boca, com uma expressão de encanto pela reação dele. Enrico não cabia em si de tanta felicidade. Levantou-se imediatamente, rodopiou com Debra no colo e não satisfeito de ter chamado atenção de todo mundo, gritou pra quem quisesse ouvir que seria “pai”. Alguns aplaudiram, uns poucos gritaram parabéns e outros fingiram que aquilo não estava acontecendo. Os pedidos chegaram. Amanda fizera o de Kirsten porque conhecia todos os seus gostos. Ricky foi parar na cadeira de bebê, mas a comemoração também o agitara e ele deu muito trabalho. Richard Howard Roberts tinha todos os traços da família de Amanda, mas os olhos eram verdes como os de Kirsten. Geneticamente ele era fruto de um óvulo de Kirsten com um gameta de Aaron, o irmão de Amanda, e a cantora fora quem o gerara em seu ventre por nove meses. Aquela foi a maneira que elas encontraram para que o filho fosse das duas. De uma forma ou de outra, Aaron só se sentia mesmo tio do bebê, fizera aquilo por amor à irmã e não se arrependia. Oferecera-se, inclusive, para fazer de novo, se elas quisessem, mas Kirsten e Amanda estavam achando Ricky suficiente, até ali.
Depois do lanche, Amanda fora ao fraldário trocar o filho e Derek distraiu Enrico em uma conversa sobre baseball. Kirsten e Debra se encararam. A cheff pediu um sorvete expresso e as duas olharam ao mesmo tempo para um dos bancos, próximo da parede. Era como se estivessem vendo Richard atravessar o Shopping de novo, gritando “Lindinhaaa” e trazendo a primeira revista de Kirsten. Debra derrubara o sorvete no colo, daquela vez. Elas tiveram a nítida impressão de que aquilo tinha acabado de acontecer. Mas não... tudo muda, tudo passa.
FIM
Notas Finais: termina aqui minha singela homenagem à fic de Samantha D'Ávila. Beijos o/ Voltar para o índice Post Scriptum 1 escrita por Sara Lecter Notas do Autor: um presentinho para alguém especial de aniversário hoje ^^
Mar, Areia e Cinzas Post Scriptum Um
A idéia de escrever algo baseado na história de ficção Mar, Areia e Cinzas povoou minha mente nesses meses todos desde a publicação do Epílogo no Nyah! Fanfiction, site que atualmente abriga os meus trabalhos na área da prosa. Entretanto, para além da gratidão que tenho com as dezenas de pessoas que acompanharam o projeto, este singelo trecho não passa da homenagem mais sincera que poderia oferecer a uma pessoa que fez esta humilde autora voltar a ver graça na vida. Assim como as personagens que criamos, das histórias nas quais nos envolvemos e sobre as quais acabamos despendendo horas de discussões no MSN, nossas próprias existências têm altos e baixos, mocinhos e vilões, dependendo da ocasião. Temos épocas de marasmos, às vezes um clímax, mas o tempo todo – repito, como as personagens! – nossos corações estão por aí, perdidos, procurando por alguém que preencha o nosso vazio. Se todos já viveram uma decepção, mesmo aqueles que tiveram a sorte de se reerguer depois de pouco tempo, todos também têm uma bela história de amor para contar, seja ela de uma noite apenas, ou uma vida inteira. Eu conto aqui a história de Kirsten e Amanda, que tiveram um final feliz juntas, mas poderia estar contando anedotas de minha própria existência, meus infortúnios e minhas sortes. Ou talvez seja exatamente isso que todos nós, escritores das
horas vagas, fazemos: só sabe contar uma boa história quem já ousou sonhar alto com a própria vida, quem apostou e aposta tudo em nome de uma palavra simples de quatro letras. Amor. Não estou aqui decretando minha aposentadoria, nem da ficção e muito menos do amor. Depois de um final feliz vem sempre um novo começo, um começo melhor . E é neste ponto que eu me encontro agora. É neste ponto que tudo passa a fazer sentido, o sorriso fácil, o coração acelerado, a paixão, a saudade. É neste ponto que eu sinto, finalmente, que tudo tudo tudo valeu a pena, e que eu reaprendi a chorar de alegria sem esquecer do valor de cada lágrima de dor. E sem mais delongas, eis um trecho que temporalmente se situa entre o capítulo 53 (o último) e o epílogo de Mar, Areia e Cinzas, antes do pequeno Ricky, portanto. Eu o dedico exclusivamente a garota que me viciou em Your Winter, a música que ouvi repetidamente para escrever este capítulo, pessoa que eu chamo, com todo o afeto do meu coração, de meu amor . A coisa que eu mais gosto de fazer no mundo é escrever e o que mais gostei de criar até hoje foi MAC, é por essa razão que lhe dedico este post scriptum, uma pequena parte de mim para quem me fez perceber que tudo pode ser maior...
“Old picture on the shelf It's been there for a while Frozen image of ourselves We were acting like a child Innocent in a trance A dance that lasted for a while
You read my eyes just like a diary Oh remember, please remember Well I'm not a beggar, but once more If I hurt you then I hate myself I don‟t want to hate myself, don‟t want to hurt you Why do you choose that pain if only you knew H ow much I love you.”
Your Winter. Sister Hazel.
O travesseiro desabou da cama, seguido das cobertas. Kirsten pregou os olhos recém abertos no teto branco de um quarto que não era o seu, aguardando que seu corpo parasse de suar. Sua face trazia uma expressão de felicidade que nem mesmo a exaustão poderia atenuar. Espreguiçou-se demoradamente e voltou-se para o centro da cama, onde Amanda ainda jazia de olhos fechados e sorriso tão amplo quanto o seu. Haviam trocado poucas palavras depois do despertar, apenas o suficiente para insinuar que ambas haviam acordado com o mesmo desejo, ao qual se entregaram imediatamente. – Bom dia... – disse Kirsten, acariciando levemente a face de Amanda. A resposta foi um sorriso envergonhado em meio ao qual a morena abriu os olhos, retribuindo a carícia que recebera. – Bom dia. Você dormiu bem, Kirs? – Uhum. Maravilhosamente bem. E você? – Muito bem também. Deve ser esse colchão. – disse Amanda, divertida. – Entendo. Acho que você gostou muito dele, pois não saiu da cama nos últimos dois dias. – observou Kirsten, contendo o riso. – Dois dias? Já amanheceu de novo? Kirsten apenas apontou para a janela e Amanda cobriu o rosto com o único travesseiro que restara sobre a cama. – Posso pedir o nosso café? – Você deve estar morrendo de fome. – Sinceramente? Não. – Eu também não. Trocaram um olhar cúmplice. Os suprimentos do mini-bar haviam sido suficientes e ambas não tinham deixado o quarto nem por um segundo desde que entraram nele, juntas, após a festa organizada pelo Senador. O olhar se manteve por mais tempo do que ambas poderiam ter planejado e como acontecera durante todo o tempo daquela reclusão, sentiram concomitantemente uma necessidade de colar seus lábios que não poderia ser ignorada. Kirsten acomodou-se sobre o corpo de Amanda e intensificou o beijo seguindo os anseios de seu próprio corpo e sabendo que a julgar pela respiração alterada de Amanda, era correspondida. Estavam completamente nuas e apenas as cobertas as envolveram eventualmente, naquele período, além da toalha que dividiram após um banho na noite
anterior, que foi um dos raros acontecimentos que se desenrolara fora da cama, embora nem por isso tenham deixado de fazer amor. Amanda gostava de banheiras e Kirsten gostava de como ela se comportava dentro de uma, quando estavam juntas. – A bateria ainda não acabou? – perguntou Kirsten, admirada, ao ter de interromper o beijo que já se estendia por ouvir o seu telefone celular chamando. – Eu carreguei ontem. – admitiu Amanda. – Não estou pra ninguém. – disse Kirsten, voltando a investir sobre o corpo da outra. Amanda riu e conteve a loira, embora para isso tivesse de travar uma luta contra os próprios desejos. – Tinha mais de vinte chamadas da Debra ontem. Deve ser ela de novo. – explicou. Contrariada, Kirsten esticou o braço e apanhou o aparelho de sobre o móvel ao lado da cama. – Kirsten. – disse. – Kiki, sua maluca, por que não me atende mais? – Oi Debby. Aconteceu alguma coisa? – Eu é que pergunto! Quer dizer... – Kirsten ouviu um riso debochado do outro lado da linha e foi obrigada a acompanhá-lo. – eu acho que sei direitinho o que aconteceu. E aí? É fofoca de jornal ou... – Depende de qual fofoca você está falando. – despistou Kirsten. – Pare de consumir meus nervos, Kiki! A Amanda! Vocês voltaram??? Kirsten mordeu os lábios. Por um efêmero instante lembrou de cada detalhe da festa, da dança, de Amanda cantando ao seu ouvido e de como depois daquilo elas simplesmente não haviam se desgrudado. Mas “volta” era uma palavra forte, e nenhuma das duas havia conversado sobre o aspecto prático de estarem fazendo amor de novo, após um ano de dura separação. “ Kiki??? – Am... Eu posso ligar mais tarde? – Como assim? Detida em pensar em algo que acalmasse sua melhor amiga, Kirsten só percebeu que o aparelho fora tirado de sua mão quando ouviu a voz divertida de Amanda falando com Debra.
– Oi Debby, é a Amanda. Tudo bem? A Kirs tá meio pateta porque... bom... a gente tava... – Ahhhh, que susto! – Debra riu. – Achei que fosse algo mais grave. Me liguem mais tarde, então, quero saber de cada detalhe. – Pode deixar. – sorriu Amanda. – Desliga de uma vez, eu não quero atrapalhar nada! Amanda se despediu às gargalhadas e encarou Kirsten, que se sentara na cama com as costas apoiadas na cabeceira e um semblante sério. – Amor? Que houve? – Nada. Com a ponta dos dedos, Amanda acariciou a face de Kirsten, depois beijou-a singelamente e se sentou ao seu lado, na mesma posição. – Você está feliz, Kirsten? – Muito. – ela ficou em silêncio por algum tempo até se dar conta de que deveria continuar a conversa. – E você? – Mais do que jamais você poderá imaginar. Kirsten sorriu sem graça e Amanda lhe roubou um beijo. “Eu te amo, Kirsten. E eu vou te amar até o fim dos meus dias. – Mandy... – Hum? – Você acha que... queAmanda calou-a com gesto ameno. Sabia o que sua ex-mulher iria dizer e preferiu que aquilo não fosse acordado em palavras, mas em gestos. E Kirsten, cuja necessidade de sempre falar, de verbalizar, de tornar palpável o que sentia, se viu obrigada a ficar em silêncio e com isso aprendeu, finalmente, que Amanda a entendia apenas com o olhar.
333 Amanda e Kirsten estavam apressadas quando apanharam sua bagagem no aeroporto, assim que puseram seus pés em Nova Iorque de novo. Na fila do desembarque,
avistaram de longe os rostos sorridentes de Debra, Enrico e Derek, este último de folga na sua recentemente agitada carreira de modelo. – Que doce eles terem vindo. – comentou Amanda, apanhando a mão livre de Kirsten entre seus dedos. – São os melhores amigos do mundo. Por um instante as duas lembraram de Richard, mas preferiram não comentar nada. Aquele momento era especial demais para ser quebrado por tristes lamentações. Contudo, os flashes nenhuma delas conseguiu ignorar. Pelo menos eram poucos os jornalistas que as esperavam e que registraram os abraços afetuosos entre o grupo de amigos. Em meio às dezenas de perguntas sobre o romance, a volta, sobre os novos direitos civis, Amanda se lembrou de algo que tinha simplesmente apagado da memória naqueles dias. – Tenho um show em Los Angeles amanhã a noite e esqueci completamente! Jerry deve estar desesperado. – Jerry? – admirou-se Kirsten, ao saber que Amanda o contratara como empresário. – Você se importa? – Só achei que você não gostasse dele. – Ele é um empresário perfeito e era exatamente por isso que me incomodava quando trabalhava para você. Kirsten sorriu. Ainda não mencionara nada, mas estava ciente de que Amanda Roberts era o nome mais comentado da música desde o primeiro segundo de sua primeira apresentação em público. Ela retribuiu o sorriso, e como Debra, Enrico e Derek se ocupavam de um assunto aleatório, curvou-se até os lábios de Kirsten. Embora não tivessem obtido qualquer resposta falada, os jornalistas que ali estavam cessaram com as perguntas. De mãos dadas, Amanda e Kirsten deixaram o aeroporto ao lado dos amigos.
333 Kirsten corrigia algumas folhas impressas que continham duas cenas do novo episódio de O Vale, sentada sobre a poltrona da sala, cerca de dois meses depois de Amanda e ela voltarem a habitar o sobrado em Upper East Side. Foi exatamente ela, sua esposa, que desceu as escadas intempestivamente, quebrando a concentração da loira. – Não posso acreditar no que estes cretinos escrevem! – ela apontou para o jornal que trazia nas mãos. – Já viu isso, Kirs? É a segunda vez na mesma semana que insinuam que tive algo com uma fã. Eu??? Como se... – Amanda andava de um lado
para o outro, em frente ao sofá ocupado por Kirsten. – Não agüento mais ter de sair na rua disfarçada por causa desses malditos fotógrafos, esses... Como ela fez silêncio, Kirsten a interpelou: – “Esses”? – Você não ouviu nada do que eu disse, não é? – Ouvi sim. – Não parece. Que está fazendo? – Olhando. – “Olhando”? – estranhou Amanda. – Amanda, você é uma mulher deslumbrante, qualquer ser humano com a razão em ordem encontra dificuldades em tirar os olhos de você. A morena se viu completamente sem graça. “Que foi? – Seu tom franco às vezes me assusta. – Não é um tom, eu realmente sou franca. – ela sorriu. – Sei que amantes do mundo todo adoram dizer “você é a mulher mais linda do mundo”, mas eu sou a única que pode dizer isso sem estar mentindo. – disse Kirsten, puxando Amanda para que se sentasse ao seu lado e prendendo-a em um abraço apertado. – Odeio você quando fala sério e me desarma. – disse Amanda. – Eu sei. – Sabe? – ela se virou admirada. – De que outra forma você poderia ser completamente apaixonada por mim? Amanda pensou naquilo por alguns instantes e puxou Kirsten para que as duas se deitassem, abraçadas, sobre o sofá. – Então você me odeia, Kirsten? Kirsten mordeu os lábios e acariciou o topo da cabeça da esposa. Amanda a tinha colocado em uma situação delicada. Por fim suspirou e respondeu pausadamente: