Resenha
GARAPON, Antoine. Bem julgar: Ensaio sobre o ritual do Judiciário. Trad. de Pedro Felipe Henriques. Lisboa: Instituto Piaget, 1997
Capítulo 1 – o espaço judiciário
Nesse capítulo o autor examina aspectos inerentes ao componente espacial do rito judiciário. O processo é, inicialmente e antes da perspectiva substantiva relacionadas aos seus elementos – – direito, juízes, foro de justiça, um ritual que contempla gestos, palavras, fórmulas, discursos, locais (e os ritos da justiça são considerados tenazes). O primeiro gesto da justiça consiste na delimitação do lugar (p. 25), e isso ocorre em todas as sociedades. Garapon procede a uma genealogia do templo de justiça, indicando indicando que que a sua construção construção passa passa por várias várias fases na na França, França, desde a era da justiça sem edifícios até a época atual (p. 26), e expressa várias simbologias (que se sobrepõem), desde a força da natureza/cosmologia (um poço ou uma árvore e o uso de muita madeira, cornucópias, cachos de frutas, molhos de espigas) até a expressão de uma virtude e de uma instituição autônomas em que ocorre um processo de abstração crescente tal qual o próprio processo (a imagem da mulher com olhos vendados) – em – em que a justiça se emancipa de sues “tut “tutores” anteriores -, passando pela influência da igreja (símbolos religiosos à frente do juiz, imagem de Cristo às costas), que deixavam clara a limitação e os riscos dos julgadores exercendo a função divina de julgar, e que Deus fará o julgamento julgamento final (p. 27 – 27 – 32). 32). Além do aspecto do capital simbólico, simbólico, o espaço judiciário judiciário apresenta outros elementos: é um espaço separado, um “mundo temporário no centro do mundo habitual” (p. 34); é um espaço fechado, com portas fechadas – sempre num nível acima do da rua, com escadas majestosas - e estátuas de guardiões, guardiões, acentuando a separação entre ele e o “espaço profano da cidade” (p. 35); é um espaço dividido, em que as salas são cheias de barreiras e espaços delimitados para os advogados, as pessoas da justiça, o juiz, as testemunhas, o acusado (p. 37-38).
Além disso, o gabinete do magistrado e o espaço de deliberações – local secreto onde decisões de vida ou morte, com porta fechadas e uma chaminé para queimar os boletins (substituída depois por trituradores de papel) (p. 38-29); é um espaço simétrico, em relação a um eixo, o Presidente ou a barra (seção curva onde se presta juramento e se é interrogado), de forma a demarcar o vazio e a distância (o espaço do Presidente, equidistante das partes, representando o lugar da lei, inacessível e neutro) (p. 39-40); é um lugar sagrado, cuja hierarquização, com a elevação do gabinete dos juízes, remete à busca de um contato com Deus (as tábuas da Lei são uma figura constante nos palácios de justiça) (p. 40-42); Garapon trata do jogo de correspondências, a partir dos significados do símbolo na experiência do sujeito, não racional, e que adquire maior eficácia na transmissão da imagem do que o discurso (por ser intraduzível na linguagem, e a sua lógica se fundar na equivalência e não no sentido), tornando-a ao mesmo tempo fascinante e enganosa (p. 42-43). São as seguintes as correspondências: - representação da natureza; - simbolização da ordem – essa noção, que remete tanto à regra organizadora como ao mundo organizado, permite definir a natureza do problema (ordem), a resposta que é dada pela sociedade (o rito), o fim almejado (a harmonia), os instrumentos utiizados (a lei) e os meios materiais empregados (sede, fundamento). Ao entrar no espaço judiciário, há a “sala dos passos perdidos”, que é uma sala vasta, imponente, com um teto alto e normalmente obscuro, num sentido misterioso, representa o percurso iniciático, que induz a uma certa submissão à instituição da justiça ao atenuar a “personali dade exterior do cidadão anônimo que acaba de vir da rua (p. 47-49).
Capítulo 2 – o tempo judiciário
O tempo no tribunal é um tempo dominado, em que prossegue o rito com a imposição das diversas etapas (som de início que significa silêncio, e sinal para que todos levantem, as três pancadas cujo objetivo é a purificação do tempo
vindouro, a ordem de entrada segue uma lógica) (p. 53-56). Os tempos são todos demarcados conforme os passos processuais (início da sessão, suspensão do julgamento, final da audiência). Também se reflete a separação dos tempos na separação dos períodos judiciários (que em tempos passados era solenemente marcada, como por exemplo a audiência solene assinalando a reabertura dos trabalhos judiciários) (p. 56-58). O processo é irreversível, precisa terminar após iniciado, portanto trata-se de um tempo unido, único e contínuo (p. 58-61).
Capítulo 3 – a toga judiciária
A toga dos magistrados é o mais antigo uso civil ainda em vigor, ao menos para os juízes do palácio, nas audiências. Regulamentada no início do século I, vinculada ao costume, a toga permite identificar e qualificar a pessoa que a usa, possuindo formas bem precisas e hierarquizadas, e representa o seu caráter sumptuário, envolvendo o corpo de maneira majestosa e salientando sua origem aristocrática. Garapon lembra de O Processo, de Kafka, em que a justiça é representada sob a forma da deusa da caça por um pintor; mas o animal deixa de ser juiz e passa a ser presa da justiça, o que remete ao signficado da pele de animal associada à crueldade. Os detalhes e as respectivas simbologias são detalhamente descritos pelo autor (p. 73 – 80). Acerca da origem da toga, Garapon informa que se confunde com o próprio surgimento da profissão judiciária, com um sentido de procurar igualar em dignidade a nobreza guerreira. Eram os “cavaleiros da lei”.
Interessante a
distinção entre a toga vermelha dos magistrados superiores, cuja origem é real, da toga negra dos restantes, de origem clerical (o negro, como ausência de cores, simboliza a abnegação, a privação e a castidade).
A toga tem origem na
“realização da sagração, o que atenua a oposição entre a origem real e a origem clerical”. O traje real e o religioso, por sua vez, possuem origem romana (p. 80 82). Por fim, Garapon aduz que o traje judiciário cobre um duplo corpo: o do juiz que o veste e o corpo invisível do social, sendo uma forma de purificação a partir da participação ativa no ritual, protegendo os que o usam de qualquer
contaminação com os outros, incluindo o acusado e o acusador. Nesse caso, é o hábito que faz o juiz, o advogado e o procurador, e a toga confere ao ator a legitimidade para exercerem seus papéis, marcando a superioridade da insttiuição sobre o homem, e marcando a função e, mais ainda, a ordem social que investiu de poder essa pessoa (p. 84-88).
Capítulo 10 – a encenação do conflito
Garapon associa os ritos judiciários a uma expressão de poder, no caso, permeado pelo Estado de Direito, o que contrapõe a suposição de que o ritual tornaria o processo impermeável à dominação social.
No entanto, sustenta o
autor que esse argumento deve ser melhor analisado (p. 229/230). Há duas vertentes na origem da justiça democrática: a passagem da heteronomia para a autonomia – simbólica -, como já visto, e a “dissociação progressiva da justiça face ao poder político”. Este passa a deter a legitimidade antes inerente ao poder religioso ou cosmológico (p. 230), o que ocorre de forma lenta no Ocidente, passando pela dicotomia “lei da natureza/lei do homem”e depois “razão/sociedade” (p. 231). A justiça, assim, começa a ocupar espaços na comunidade política, em questões relacionadas à pessoa humana (exemplo: aborto), e surge o paradoxo da necessidade de reconhecimento de determinados grupos sociais, exsurgindo a noção de direitos positivos (reinvindicação das minorias) para além da garantia das liberdades individuais. Nesse sentido, a constitucionalização e a juridicização da moral “corre o risco de crispar ainda mais os conflitos morais de uma sociedade” , pela tendência de desqualificação das partes contrárias (p. 233). Garapon sustenta que O estádio final da privatização das crenças e da libertação de qualquer tradição é a desfiliação total do sujeito democrático (p. 234).
Garapon trata do “novo palco da democracia”, o palco da justiça e do direito, no qual ocorre a encenação das relações sociais como espaço do poder que se torna referência para a sociedade (p. 234-235). A soberania se desloca para uma regra, não mais uma pessoa (processo de desincorporação da democracia). Esta
regra provê a racionalização do conflito, e é imparcial por natureza. Além disso, esse novo palco é descentralizado, não concentrado mas sim distribuído em instâncias, colegiados, ordem de jurisdição) (p. 236/237). Assim, “a socied ade democrática já não se reconhece no corpo do rei ou na unidade da nação, mas sim no espetáculo da sua divisão sublimada oferecido pelo palco judiciário” , e a justiça se caracteriza pela conflito – suscitado pela democracia - e pela dialética, não mais pela harmonia da ordem (p. 238). Garapon critica ainda o processo estalinista, que denomina de “grande espetáculo”, em que ocorre a perversão do sistema jurídico, juntamente com o nazismo e o comunismo, e processo político manipula o simbólico. Torna-se uma “encenação sinistra” (p. 238 -240). O autor ainda trata do conservadorismo da ambição totalitária (p. 243), da recusa da divisão (p. 244), do estado-providência ao estado penal (p. 246), da segurança (p. 247), da superveniência da suspeição do poder (p. 249), da revalorização do estatuto da vítima e desvalorização do estatuto do soberano (p. 251).
Capítulo 11 – Justiça sem palco?
O dispositivo ritual trata de dois sistemas de valores: a sociedade (a ordem e a coesão) e o indivíduo (o crime e o caos). Algumas características do processo judicial, examinadas por Garapon, são o impasse da justiça informal, onde e quando se toma decisão, o juízo da realidade ante o juízo de valor, o empobrecimento dos símbolos e a debilitação do direito e a razão da representação.
Capítulo 12 – a deslocalização do palco judiciário para os
media
Alé da justiça informal, o aparecimento dos meios de comunicação foi outra característica difícil de controlar. Aqui trata da impossibilidade de um mundo sem simbologia, da deslocalização do espaço, a desagregação do tempo, a desqualificação dos atores, a despolitização do sujeito, a desintegração da violência, o fantasma da transparência total, a transparência dos media, a virtude incomparável do processo, a ilusão da democracia direta, A crítica contra a
deslocalização da justiça para os media reside no argumento de que, embora com o pretexto de buscar mais proximidade com a verdade, acaba por ameaçar o próprio fundamento da associação política.
Análise Crítica
O ato de julgar e o processo judiciário possui muitos significados e remete a muitas representações, permeada por processos históricos, sociais e políticos, que se somam ao longo das etapas da humanidade. O que parece ser uma ordenação do tempo e do espaço está cheio de contradições e possui aspectos não só de legitimação da justiça e do direito como de manifestações de poder e de hierarquização dos atores participantes do processo. A percepção mais ampla de todo o processo, identificando a linguagem simbólica, utilizando meios de análise fundamentados nas ciências sociais e na antropologia, provoca reflexões importantes e remete à necessidade de humanizar esse espaço judiciário e torná-lo, talvez, mais próximo, com menos barreiras para o “mundo habitual”. Os juízes possuem um papel de protagonistas e monopolizadores do processo, e cabe questionar se o abandono da majestade do ritual e dos espaços judiciários, que hoje fundamentam, em parte, o poder e a legitimidade desses atores, não poderá trazer consequências de descrédito da instituição.