RESENHA
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. C ader nos Pagu, 5, 1995, 7-41.
Aléxya Cristal Brandão Lima
Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Psicóloga graduada pela Universidade Federal de Roraima (UFRR). Em “Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”, Donna Haraway (1995), discute a questão da objetividade
na
ciência. A autora retrata como, em uma tentativa de refutar a objetividade inalcançável descorporificada e tecnocientífica proposta por filósofos-homens-brancos, as cientistas feministas têm alternado entre dois polos de argumentação: o do construcionismo social e o empiricismo feminista (que converge com os recursos r ecursos marxistas em sua produção). Fundamentada no construcionismo social, Haraway estrutura uma argumentação que retrata o caráter retórico da ciência, e como a ideia de uma objetividade que não reconhece a subjetividade faz parte de um discurso científico que desvia a atenção das pesquisas de suas próprias práticas, e direciona o olhar científico para temas que interessam à ideologia dominante. Nesse contexto, em meio ao debate científico/retórico, o conhecimento reconhecido é aquele que convence no campo de poder acadêmico, de modo que a forma acaba sendo privilegiada em relação ao conteúdo e pesquisadores acabam sendo atacados e descreditados em função do discurso em evidência. Assim, o pensamento construcionista fornece munição em termos de crítica à objetividade. No entanto, Haraway destaca os aspectos controversos desta argumentação, entendendo que o problema em ater-se à ela é que a perspectiva da ciência como dependente do poder de retórica resulta em uma espécie de redução dos saberes científicos às batalhas acadêmicas, o que cria um desgaste e uma espécie de desilusão com a prática científica. Nas palavras da autora, corre-se o risco de desistir desta, “afinal, trata-se apenas de textos, vamos devolvê- los aos rapazes” (p. 13). Nesse sentido, o empiricismo feminista enquanto outro polo de argumentação, argumentação, vem como uma tentativa de manter a sanidade diante das batalhas acadêmicas. Para Haraway, as feministas têm que ir além do construcionismo, trabalhando por um projeto de ciência sucessora, que privilegie o ético-político ao epistemológico. Assim, o marxismo auxilia na instrumentalização desta perspectiva ao insistir na corporeidade, 1
destacar a necessidade de politizar as teorias e ser contra-hegemônico, sem necessariamente negar os positivismos, os rigores autocríticos necessários às práticas científicas. Inspirada em Sandra Harding, a autora descreve esse projeto de ciência feminista como o desejo de “um mundo que possa ser p arcialmente compartilhado e amistoso em relação a projetos terrestres de liberdade finita, abundância material adequada, sofrimento reduzido e felicidade limitada” que pode ser alcançado por meio da “insistência pós -
moderna na diferença irredutível e na mu ltiplicidade radical dos conhecimentos locais” (p. 16). Em outras palavras, mais do que afirmar o caráter construído dos significados e dos corpos, é preciso insistir na construção destes com possibilidades de futuro. Assim, Haraway propõe como alternativa à objetividade descorporificada, uma outra objetividade, parcial e feminista compreendida como “saberes localizados”. A autora utiliza a metáfora da visão para explicar sua proposta, afirmando que a ciência hegemônica faz uso do “truque de Deus” para se realizar, ou seja, afirma ver de tudo,
analisar tudo, mas nunca se autonomeia, se localiza, se descreve, porque acredita que sua posição é dada e naturalmente superior. A tecnologia, nesse contexto, é instrumento para aumentar o poder de visão, dando a impressão de descoporificar, de alienar, no entanto, o oposto é verdadeiro, pois quanto mais especifica a visão, mais fica claro que alguém está direcionando o instrumento, mais o poder de quem decide para onde olhar se faz presente. Em outras palavras, sempre há um corpo responsável pelas práticas visuais. Partindo desta lógica, o feminismo compreende que a única objetividade possível é a que parte de uma localização limitada e um conhecimento localizado, de modo que seja possível ao(à) pesquisador(a) se tornar responsável pelo que aprende a ver. Postulada a necessidade de localização do saber, Haraway se debruça sobre a questão do “de onde ver”. Ela fala da questão de ver a partir da perspectiva dos
subjulgados, alertando para os perigos de romantizar suas visões, quando, de fato, são públicos acostumados às negações, adaptações e interpretações dos conhecimentos. Ao mesmo tempo, a autora reitera a necessidade de o pesquisador se posicionar, uma vez que se a totalização da visão (que vê de cima e crê ser a única perspectiva) não é desejada, a relativização desta (que crê tratar de modo igualitário todas as perspectivas, sem se posicionar) tampouco o é. Haraway se mostra desinteressada em uma ciência apolítica que não se posiciona. A autora se apropria do marxismo enquanto instrumento e clama por uma ciência 2
responsável, deixando claro que é “não é qualquer perspectiva parcial que serve; devemos ser hostis aos relativismos e holismos fáceis, feitos d e adição e subsunção das partes” (p. 24). A ciência que ela cobra deve privilegiar perspectivas que prometam conhecimentos alternativos e carregados de potencial para “a construção de mundos menos organizados por eixos de dominação ” (p. 24), ou seja, perspectivas politicamente implicadas com a contestação de práticas de exploração e com a elaboração novas práticas solidárias. É preciso observar que a proposta de Haraway, inspirada em Harding, trata do nascimento de uma prática híbrida de objetividade que une a esperança em um conhecimento revolucionário à autocrítica científica rigorosa e constante e, por isso
mesmo, o posicionamento político cobrado não é o de identificar-se com o objeto, declarando ser do grupo subjulgado estudado. Para a autora, uma epistemologia feminista privilegia a divisão ao ser, sendo a divisão entendida como a heterogeneidade de marcadores de identidade que se entrecruzam no sujeito, se construindo e se contrapondo em um movimento inacabado, mas que oferece múltiplos pontos de vista, sempre parciais, de modo que é possível compreender o outro, mas não sê-lo por completo. Nas palavras da autora, “não há maneira de "estar" simultaneamente em todas, ou inteiramente em uma, das posições privilegiadas (subjugadas) estruturadas por gênero, raça, nação e classe”. Esse objeto buscado, perfeito como exemplo e representação, que
está em todas as posições subjugadas, é, para a autora, um fetiche. Antes disso, os sujeitos são alinhavados de maneiras complexas e paradoxais e são as diferenças entre as subjetividades que cunham localizações diferentes, permitindo a conexão parcial e o distanciamento apaixonado entre pesquisador e sujeito de pesquisa. Haraway defende a necessidade de posicionamento, no sentido de atribuir significado às batalhas acadêmicas. Se as lutas forem vazias, de fato, o jogo no campo de saber científico perde a razão de ser e, por isso, a autora afirma a importância da política e da ética na guia dessas batalhas, principalmente porque tais batalhas são políticas antes de tudo. Não se faz pesquisa sem alinhar-se a algum campo ideológico e, mesmo que se intente a omissão e relativização, há alguns questionamentos que norteiam as pesquisas científicas: [...] Como ver? De onde ver? Quais os limites da visão? Ver para quê? Ver com quem? Quem deve ter mais do que um ponto de vista? Nos olhos de quem se joga areia? Quem usa viseiras? Quem interpreta o campo visual? Qual outro poder sensorial desejamos cultivar, além da visão? [...] (HARAWAY, 1995, p. 28).
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Tais perguntas servem para lembrar que nem sempre as pesquisas e as revoluções científicas serviram à liberdade humana e que não atoa se faz o apelo ao posicionamento ético-político. Nesse sentido, a ciência que se intenta deve privilegiar etnofilosofias, heteroglossia, desconstrução, posicionamento oposicional, explicações em rede e conhecimentos locais ao mesmo tempo em que dialoga com a necessidade de construir traduções em uma linguagem comum e com as teorias sistêmicas em voga. Porque o posicionamento cobrado não é fixo e dicotômico, mas afinado às ressonâncias. O feminismo privilegia a vulnerabilidade na ciência, no sentido de resistir à simplificação e a fixidez dos fatos, admitindo-se gaguejar, explicar parcialmente, interpretar, sem perder o criticismo, o engajamento político em prol heterogeneidade e da responsabilidade pelo que se vê e se traduz. Intenta-se uma ciência que una visões e vozes limitadas, posicionadas em diferentes lugares, em prol da caracterização dos saberes dos subjugados, formando a junção de visões parciais e de vozes vacilantes numa posição coletiva de sujeito corporificado, limitado, contraditório e paradoxal. Após tratar da objetividade corporificada, Haraway acrescenta uma outra reflexão importante acerca das ideologias na ciência, dessa vez, não sobre o olhar dos(as) pesquisadores(as), mas sobre o objeto pesquisado. A autora questiona a visão de um mundo inerte e passivo, descoberto e apropriado nas pesquisas e usado como instrumento para a construção de projetos de sociedade que interessam ao poder vigente. Haraway faz uso de um conceito de Zoe Sofoulis para nomear tal processo como "recuperacionismo": “o renascimento do Homem através da homogeneização de todo o corpo do mundo como
recursos para seus projetos perversos ” (p.36), em uma lógica essencialmente colonialista e capitalista de apropriação e negação do outro enquanto agente. Uma visão diferente acerca dos objetos de pesquisa se faz necessária a quem pretende trabalhar em uma perspectiva feminista de objetividade corporificada, de modo que estes sejam vistos enquanto atores e agentes, e não instrumentalizado e encerrado na interpretação do pesquisador, em seu poder. E, embora não seja fácil, mas mais crível pensar nessa reformulação nas ciências humanas e sociais, Haraway estende e afirma a importância de que ela ocorra em outros campos da ciência, de modo que todos os objetos do mundo tenham o status de agente/ator. Afinal: [...] O mundo nem fala por si mesmo, nem desaparece em favor de um senhor decodificador. Os códigos do mundo não jazem inertes, apenas à espera de serem lidos. O mundo não é matéria-prima para humanização; todos os ataques ao humanismo, outro ramo do discurso sobre "a morte do sujeito", deixaram isto muito claro. De certa maneira crítica, isso é grosseiramente apontado pela
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categoria incerta do social ou de agência: o mundo encontrado nos projetos de conhecimento é uma entidade ativa (HARAWAY, 1995, p. 37).
A proposta de Haraway é descolonizadora em muitos níveis. Admite um mundo vivo, com senso de humor, que não pode ser descoberto e muito menos comandado, mas apenas visto, com auxílio de tecnologias ou não, de posições diferentes. Só o que se pode fazer é localizar-se e responsabilizar-se pelos diálogos que cada visão permite. A autora cita como corpo biológico e o poema têm sido abordados dentro dessa nova perspectiva de agente, de não passividade e não poder ser apreendido e ao mesmo tempo estar aberto à novas e constantes revisões. Haraway faz apostas na responsabilidade ético-política para que se aprenda admitir-se olhar parcialmente, assumindo as limitações diante dos objetos do mundo que não se deixam controlar e colonizar. A proposta de saberes localizados pretende estimular conversas sobre diferentes significados e modos de fazer que contribuam para a construção de um mundo pautado em liberdade. E embora as críticas à ciência dominante se façam presentes no texto, principalmente no que tange ao convite à autocrítica, o que embasa a escrita da autora é a esperança em uma ciência com responsabilidade política.
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