A REPR ESEN TA Ç Ã O EST É T IC A E H E R M E N Ê U T IC A DO M U N D O H ISTÓ R IC O
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A A R T E COM O P R IM E IR A REPR ESEN TA Ç Ã O DO
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M U N D O H U M A N O H ISTÓ R IC O EM SUA IN D IV ID U A ÇÃ O
O mundo humano histórico que, por meio da individuação enigmática, se esten de como uma árvore em ramos isolados sobre o fundo de uniformidades é o objeto central das artes representativas, especialmente da escultura, da pintura e da poesia narrativa e dramática. Apenas na periferia dessas artes representativas situam-se as imitações artísticas do reino animal e da paisagem, nas quais a experiência da vida psíquica individual é projetada a partir da vitalidade do artista para dentro de níveis mais baixos. Em toda parte, atendo-se a uma grande lei histórica, a arte representa tiva prepara o caminho para o estudo científico deste mundo. Mas o que essas artes dizem do mundo humano histórico, e de sua individuação dentro dele, conserva o seu valor autônomo, mesmo após toda a investigação científica dessa área. Nenhu ma mente científica poderá jamais esgotar, e nenhum progresso da ciência poderá jamais alcançar, o que o artista tem a dizer sobre o conteúdo da vida. A arte é o órgão da compreensão da vida. Para a apreensão das relações que surgem, dessa maneira, entre a experiência de vida, a arte e o saber é possível estabelecer, portanto, numa primeira proposição, uma relação abrangente. Nós mesmos podemos constatar o fato de que a apreensão da realidade da vida é condicionada pela relação indissolúvel entre a experiência de vida, a arte e o pensamento científico, ao contrário do conhecimento da natureza, que consiste justamente na abstração da aparência sensorial da experiência vulgar. Em cada nível de nossa vida mental, possuímos conhecimento sobre a realidade da vida humana e a individuação que nela se realiza no contexto da experiência viva das obras de arte e da produção científica. 297
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É óbvio que a arte é fruto da experiência de vida, em que encontra o seu mate rial. Ela pinta o céu e o inferno, deuses e fantasmas somente naquelas cores que estão contidas na realidade da vida. A arte apenas intensifica os elementos encontrados nessa realidade. Mas a nossa própria experiência de vida também não pode ser dis sociada das influências da arte sobre nós. Todos possuiríamos apenas uma pequena parte de nossa compreensão atual da condição humana se não estivéssemos acostu mados a enxergar, por meio do olhar do poeta, Hamlets e Margaridas, Ricardos e Cordélias, Marqueses de Posa e Filipes1 nas pessoas que nos rodeiam. E assim como, claramente, a arte tem sua base na experiência de vida, da mesma forma a ciência. Por fim, tanto a experiência de vida quanto a ciência dependem, até certo ponto, da capacidade artística e dos recursos da arte. E só por meio deles que o historiador, o sociólogo e o pensador político conseguem visualizar pessoas e situações. Por isso, os pontos altos da história são quase sempre condicionados por apogeus da poesia. Em muitos casos, os grandes historiadores deram os seus primeiros passos na área da literatura, e muitas vezes foram os grandes escritores que deram um impulso for te à arte histórica. E, para fechar o círculo dessas relações, é necessário observar, ante a teoria de uma arte espontânea que ganhou adeptos no século passado [XVIII] e que hoje em dia é novamente propagada, que todo grande artista representativo, e especialmente todo escritor, esteve intimamente ligado à cultura e às lutas do espí rito de seu tempo. Assim se forma em cada um de nós uma apreensão da realidade da vida, que é fruto da ação conjunta da experiência de vida, da arte representativa e do pensa mento científico que nos influenciam de todas as formas. O mundo humano, do qual nos apoderamos por meio da experiência de vida, é potencializado, em nossa cons ciência, pela arte, pela história e pelas ciências abstratas. A vida de cada um de nós, em suas relações mais profundas, só consegue respirar, crescer e tomar forma nessa atmosfera de artes plásticas, representação, literatura, história e pensamento científi co. Por essa razão, a própria vida é sempre determinada pela história, sem que disso nos déssemos conta2. Os pintores foram os mestres que nos ensinaram a ler o rosto das pessoas e a interpretar as figuras e os gestos. Os escritores são nossos órgãos
1. Hamlets (Shakespeare), Margaridas (Gretchen, do Fausto, de Goethe), Ricardos (Richard III, de Shakespeare), Cordélias (do King Lear, de Shakespeare), Marquis Posas e Filipes (figuras de Don Carlos, de Schiller) (N.T.). 2. Formulação no esboço: O ser humano é tão completamente histórico que não apenas o seu pensamento, mas a própria vida só respira, cresce e se forma segundo relações profundíssimas nessa atmosfera de literatura, historiografia e reflexão sobre a condição humana. Não o sabemos sem refletir: e, no entanto, a literatura é o órgão de apreensão da natureza, compreensão do ser humano, do modo como vivemos a nossa vida no amor,
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pelos quais entendemos as pessoas, e são eles que influenciam a nossa maneira de viver, a nossa existência no amor, no casamento e com os amigos. Os historiadores fazem-nos compreender o mundo histórico no qual cada um deve intervir, por meio da própria atuação, com algum grau de entendimento. Essa é a realidade. O conteúdo do mundo humano histórico em sua individua ção, nascida com base naquilo que é uniforme e regular, nos é dado de maneira indis sociável na própria vida, na representação artística e na compreensão científica. Toda a diferença entre as ciências do espírito e as ciências exatas e naturais manifesta-se, assim, em suas consequências. Sobre a base desse contexto, em que acabamos de localizar a arte representa tiva, passamos então a considerá-la como o órgão que torna compreensível à huma nidade o mundo humano histórico e sua individuação. Na arte, é que a humanidade se encontra. Sempre está presente nela a ponderação sobre a vida, seja qual for o nível de desenvolvimento e a região em que a humanidade está. A abordagem dessa função da arte representativa apreende apenas um de seus lados. Quanto aos outros aspectos, permitam-me remetê-los a trabalhos anteriores. E esse lado específico que procurarei descrever em algumas proposições que seguem. A arte representativa amplia o âmbito estreito da vivência em que cada um de nós se vê encerrado. Com isso, eleva o nexo da vida - contido na obscura e intensa apercepção que a vida tem - para esfera clara e leve da recriação, mostrando a vida como esta se espelha em potencialidades mais fortes e abrangentes do que as nossas, e ela a distancia do contexto de nosso próprio agir, de modo que alcançamos um es tado de liberdade ante ela (a comparação da arte com o lúdico, em Schiller). Assim, se expande ao infinito o horizonte de nossa existência pelas criações de tantos gran des gênios que se completam mutuamente. Questionou-se a razão de ser da literatu ra histórica. Além de investir forças, de modo especial, nas personagens das lendas e da história - maior objeto de toda a literatura existe a necessidade indelével de ampliar o horizonte de vida, força e existência em todas as direções, inclusive para a linha da existência histórica; esse destaque dado à vida humana mais intrínseca, dentro de uma situação e figura históricas, só pode ser realizado de modo perfeito pela literatura.
no casamento, com os amigos; a historiografia fornece-nos o ponto de vista e as concepções segundo as quais atuamos na sociedade e no Estado em termos religiosos, eclesiais e profissionais. Isso tem a ver com um segundo aspecto. O nexo entre a vida, suas experiências, e o conhecimento permanece muito estreito nessa área. Se isso é verdade, será necessário explicar, a partir desse fato, o nexo da vida psíquica em que se nos revela o mundo do espírito humano.
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Explicaremos esse primeiro grupo de proposições conexas. Para esclarecer esse processo de recriação e compreensão, necessitamos partir da experiência interior, ou seja, da vivência de nossos próprios estados. Nela se apresenta, pouco a pouco, aqui e acolá, um nexo interno de nossos estados, mas de tal maneira que as experiências internas se encaixam. No âmago do processo, a vivência de um estado próprio e a recriação de um estado alheio, ou de uma individualidade alheia, assemelham-se. Em cada momento pleno de nossa vida opera a totalidade de nossas forças psíqui cas. O presente distingue-se inicialmente do passado e do futuro pelo fato de tratarse de um momento pleno da totalidade ?le nossas forças, enquanto o passado e o futuro não passam, inicialmente, de imagens de representação que acolhem outros movimentos apenas de forma indireta. Esse estado vivenciado está ligado ao sujeito de nossa pessoa como um predicado; ele refere-se sempre ao nexo de nossa vida, mesmo que seja de maneira obscura, localizando-se dentro dele. Essas característi cas da vivência retornam na recriação das manifestações da vida de outras pessoas. Provisoriamente podemos interpretar a compreensão de um estado alheio como uma conclusão, por analogia, que, por causa de sua afinidade com processos que vimos ligados a determinados estados interiores, se encaminha de um processo físico exte rior a um estado interior semelhante. Nessas determinações encontra-se apenas uma representação rudimentar e esquemática daquilo que está contido no resultado da recriação. Isso porque essa ideia, em forma de conclusão, dissocia os estados inte riores - tanto aquele em que a conclusão se baseia, quanto o que é completado por esta - do respectivo nexo da vida psíquica, enquanto a recriação só ganha segurança e determinação mais detalhada da relação com esse nexo. Isso pode ser confirmado pelos fatos seguintes. A interpretação de manifestações alheias pode ser muito dife rente, o que está relacionado ao conhecimento do nexo ao qual pertence a respectiva manifestação ou ao tipo de vida psíquica que lhes é atribuída na maior parte dos ca sos, mesmo que seja sem reflexão a esse respeito. E o limite de nosso entendimento localiza-se sempre no ponto em que não podemos mais recriar a partir do nexo. Mas os elementos do processo de recriação não estão interligados apenas por operações lógicas, como, por exemplo, por conclusões baseadas em analogias. Na realidade, a recriação é uma revivência. É um fato misterioso. Podemos tentar explicá-lo, como no caso de um fenômeno arquétipo, por sentirmos estados alheios, até certa profundidade, como os nossos próprios, de modo que podemos sentir alegrar e tristeza com os outros, sobretudo em função do grau de simpatia, amor ou parentesco para com as outras pessoas. A afinidade desse fato com a compreensão recriadora depreende-se de diversas circunstâncias. A própria compreensão depende do grau de simpatia, a ponto de deixarmos simplesmente de entender pessoas que nos são totalmente antipáticas. 300
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Além disso, revela-se claramente a semelhança entre a empatia e a compreensão recriadora quando nos encontramos diante de um palco. Nesse caso, não só ima ginamos e percebemos: nós revivemos os estados psíquicos. Essa participação íntima não nasce, de modo algum, da relação entre nossos próprios interesses e aquilo que se passa no palco. A referência àquilo que poderia acontecer a nós mesmos não é o motivo de nossa comoção psíquica. Na realidade é o contrário. Quando essa relação se estabelece, ela empresta à compreensão recriadora um aditivo mais rudimentar e intenso que interrompe e atrapalha seu ritmo tranquilo. Por isso, quanto mais diretamente nos sentimos tocados pela representação dramática, tanto mais precisamos resguardar a segurança de nossa recriação tranquila e sensível, pelo distanciamento entre a natureza do processo e nossa própria situação. Por essa razão, prestam-se a esse processo, e não apenas em função de sua importância para a tragédia, especialmente heróis lendários, reis e personagens históricas, visto que a proximidade das personagens da comédia não chega a atrapalhar simplesmente pelo fato de a natureza de seu conteúdo excluir a relação com o enorme sofrimento próprio. Acresce ainda que os grandes autores de comédias nos levam a sair da esfera da vida cotidiana por inventarem sempre algo grotesco no caráter de suas personagens. E justamente o detalhe grotesco - tão criticado em algumas figuras de Shakespeare, Rabelais ou Dickens - que enobrece sua arte. Nessas condições, também a explicação ou interpretação científica, como com preensão recriadora semelhante à arte, tem sempre um toque genial, já que adquire um alto grau de perfeição pela afinidade e simpatia. Assim, as obras da antiguidade só voltaram a ser compreendidas, em todo seu esplendor, na época da Renascença, quando condições semelhantes levaram a uma afinidade com as pessoas. Essa relação interior, que possibilita a transposição, cria, dessa maneira, a condição para todas as regras hermenêuticas que só podem inferir as determinações individuais por meio de um processo metódico baseado nesse comportamento vivo em relação aos diversos objetos. Desse mesmo comportamento vivo nascem, em primeiro lugar, também, as complementações daquilo que é transmitido e as eliminações em relação ao que não é autêntico, além de outros fatores racionais c^ue possam participar do processo. Não existe nenhum processo científico que possa deixar de lado essa recriação viva como se fosse um elemento de menor importância. E esse o terreno fértil de onde mesmo as operações mais abstratas precisam extrair sua força. Nesse caso, a compreensão nunca se resume a uma apreensão racional. Em vão se tentará explicar o herói ou o gênio a partir das mais diversas circunstâncias. O seu acesso mais apropriado é o mais subjetivo. Pois a maior possibilidade de apreender a grandeza do herói ou do gênio reside na vivência de seus efeitos sobre nós mesmos e no contínuo condicionamento de nossa própria vitalidade em relação a esses personagens. O Lutero de Ranke, o 301
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Winkelmann de Goethe, o Péricles de Tucídides, todos eles nasceram dessa relação com a força vital de um herói. Na arte imitativa, a natureza da recriação de figuras e estados alheios ganha ainda traços especiais que a separam das experiências da própria vida. Desses, resu midos na proposição supra, somente um necessita de explicação mais detalhada. O mundo representado por um artista - as pessoas, situações e destinos - é recortado por uma espécie de moldura do contexto de nossa própria existência. As inter-relações em que nossa existência está inserida nãõ alcançam essa esfera poética. As ondas que carregam nosso próprio barco não molham os pés dessas pessoas. Em contra partida, também não chega até nós o menor efeito da rede de ações e influências que constituem o mundo delas. Trata-se de um processo que tem um nexo em si mesmo, mas que não guarda nenhuma relação causal com nossa vida. Por isso, a atividade do autor e de seu espectador pode ser comparada a um jogo, conforme a afirmação correta de Schiller. Seriedade e trabalho é tudo o que fazemos no contexto de nossa vida prática. Mas aquilo que é jogo, separado desse contexto, obedece apenas à lei de transformar a estrutura de nossa vida psíquica em diversão, e liberta nossa alma que frequentemente se consome na submissão ao duro nexo finalista da vida. Todavia, a arte representativa fornece mais do que apenas recriações da vida humana. O ver e o representar por meio de tipos constituem o artifício de que ela se serve para fornecer, no real, a regra do acontecer. A arte representativa inclui, portanto, uma orientação para o ato de ver. Esse conhecimento também foi prepa rado pela apresentação anterior. Nela, vimos outras peculiaridades da apreensão de estados histórico-psíquicos que são condicionados pelo valor autônomo da pessoa e pela indissociabilidade entre o real e as determinações de valor e normas. Desse pressuposto resulta a importância do típico na literatura. Na visão típica também há um encontro entre a apreensão artística e a científica. E a forma em que a obra de arte, especialmente a literatura, possui a repetição das diferenças, graduações e afi nidades do mundo humano histórico. Estou observando um patinador no gelo ou uma dançarina. A adequação dos movimentos está inseparavelmente ligada, para mim, à apreensão dos mesmos. Eu ligo essas figuras às imagens afins da memória sob o ponto de vista de sua correspondência e perfeição. Só com esforço e prática consigo separar as representações de coisas das representações de valores. Dessa maneira, surge para cada parcela das manifestações da vida humana um tipo de execução que lhe é apropriado. Tal tipo define a norma que se situa entre os desvios para ambos os lados. Uma manifestação típica da vida representa, portanto, toda uma classe de manifestações. Esse é o sentido mais estreito em que usamos o conceito de típico. Mas, realçando ou reforçando, por assim dizer, as linhas dos traços de determinado tipo, que exprimem a regularidade de todo o grupo, poderei chamar de típico também 302
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aquilo que se destaca nessas linhas. O conceito de tipo passa a designar, dessa forma, aqueles elementos comuns destacados. Todavia, ainda assim, conserva a sua representatividade. É nesse sentido que o termo é usado originalmente em um contexto técnico pelo médico Célio (provavelmente no século II d. C.) quando fala em tipos de malária, referindo-se à sua evolução típica. É nesse sentido que Shakespeare descreve os tipos de paixão. Partindo de sua visão genial, os quatro temperamentos são tipos de disposições de ânimo condicionados fisicamente. Podemos afirmar, portanto, que a apreensão do elemento humano em uma consciência desenvolvida foi e tinha de ser sempre típica. Por isso, não se trata do resultado do desenvolvimento da arte e sim de uma propriedade da representação artística que lhe advém da experiência de vida. Vamos resumir: a arte procura exprimir o que é a vida. Toda a individuação do mundo humano histórico é compreendida primeiramente na literatura, muito an tes de buscar seu conhecimento nas ciências. O recurso usado para representar as uniformidades, a repetição de diferenças, as graduações e afinidades é a visão típica. Se os conceitos - em cujo ordenamento a classificação científica procura registrar essa individuação - designam substâncias, como plantas e animais, ou definições predicativas, como doenças ou crimes ou paixões, e se eles se referem também a relações predicativas que encontramos, por exemplo, em condições de vida e em destinos, também a percepção típica da arte representativa abrange, da mesma ma neira, os elementos típicos das pessoas, condições e destinos, uma vez que precisa resolver o mesmo problema. Assim, a literatura fica em condições de condensar e analisar experiências, de modo que seja capaz de satisfazer um homem experiente. Ela transmite a compreensão ao leitor ou ouvinte. Nossa capacidade limitada de recriação teria muita dificuldade em penetrar os recantos e enigmas do particular, caso as linhas do contexto vivo não tivessem sido realçadas ou reforçadas pela re presentação típica. Podemos dizer, enfim, que a maneira pela qual a ciência procura representar por meio de procedimentos de comparação, subdivisão e classificação toda a indivi duação da realidade da vida encontra sua correspondência no procedimento da mais elevada arte representativa que se vale das relações entre certo número de pessoas para representar, por assim dizer, toda a realidade da vida. Dessa maneira, por meio das relações de certo número de pessoas, vemos representadas, na Escola de Ate nas e na Disputa de Rafael, multidões de representantes da respectiva cultura. No Sonho de uma Noite de Verão3 estão representadas em relações típicas as ilusões e os equívocos do amor em forma de uma brincadeira, que diverte a consciência so-
3. Drama de Shakespeare (N.T.).
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berana justamente porque toca no sentido mais profundo da conservação da vida. A vida embaralha os caminhos das personagens; mas, por mais naturalista que o ar tista seja, sua grandeza sempre saberá destacar as relações essenciais entre elas. A maneira pela qual o artista cria um ambiente e todo um mundo em que suas figuras se movem e se relacionam é a expressão mais profunda de seu estado psíquico e do consequente ponto de vista que define sua concepção da realidade da vida na respec tiva obra. Essa maneira de criar atmosfera e conteúdo vivo de uma grande obra tem origem no comportamento primário e vital do artista ante a vida do mundo exterior. Nele se forma a distribuição dos valores, quase diria a divisão da vitalidade entre as figuras e os processos. Por esse motivo, deve-se procurar nele, também, a razão mais profunda das formas históricas da representação artística; as diferenças de técnica são apenas uma consequência disso. Essa distribuição da vitalidade interior entre as figuras e processos, e a con sequente articulação da obra, ou seja, a distribuição dos valores que atribui a cada elemento a sua importância, contém em si personagens, enredos e destinos. Desta forma, cada obra é um mundo à parte. A individuação realiza-se na obra a partir do centro interno desta. Entretanto, como a série de obras de um grande autor passa por uma evolução, registra-se uma afinidade interior entre os indivíduos que nelas se apresentam. Eles formam uma família. É um determinado círculo de pessoas típicas que constitui essa família e, como criaturas da fantasia do mesmo autor, revelam se melhança familiar. Cada figura herdou uma partícula do sangue do autor, tendo sido formada e realizada de acordo com um modo determinado. Nem o maior dos escri tores é capaz de fugir dessa subjetividade. O desejo de Ranke de apagar o próprio eu para ver como as coisas aconteceram é de uma impossibilidade ainda maior para o escritor do que para o historiador4. O típico das personagens e de seus relacionamentos é, portanto, necessariamente uma consequência de sua relação com a subjetividade do autor e de sua função dentro do conjunto de cada obra. Essa é a razão da afinidade familiar entre essas persona gens e de sua relação quase que sistemática dentro de um todo que é fruto da subje tividade do autor. Vejamos um caso específico. Os pintores mais antigos buscavam juntar os traços definitivos da fisionomia em um momento ideal, que fosse o mais típico e característico para eles. Seria bom se uma nova escola fixasse a impressão momentânea para aumentar assim a impressão da vida. Ela submeteria a pessoa à
4. Nessa passagem muito citada, Ranke afirma: “Gostaria etc.”. Essa é a expressão da aspiração de Goethe por objetividade etc. Mais profundo seria dizer: entendemos na medida em que damos a nosso mundo interior um caráter universal; à medida que as forças históricas da vida atuam em nós, somos capazes de entender a história.
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casualidade do momento. E mesmo dessa maneira se realizaria uma apreensão do conteúdo de impressões de um determinado momento sob influência do psíquico ad quirido; exatamente dessa apercepção nasceria a integração dos traços, a partir de um ponto central de impressão, o qual condiciona as omissões e as ênfases: surgiria, assim, uma imagem instantânea do objeto, influenciada pela percepção do pintor, e qualquer tentativa de ver sem aperceber, dissolvendo, por assim dizer, a imagem dos sentidos nas cores de uma palheta, estará vedada ao fracasso. Levando adiante esse raciocínio, é possível afirmar que o ponto de impressão é condicionado pela relação entre uma vitalidade qualquer e a do próprio pintor, de modo que ele se sinta inte riormente tocado em seu nexo vital por um elemento atuante numa outra natureza; a partir desse ponto vital, os traços que nele convergem são compreensíveis. E dessa maneira que se forma um tipo. O original era um indivíduo; todo retrato autêntico é um tipo e, com muito mais razão, cada uma das figuras de uma pintura coletiva. A literatura também não pode copiar simplesmente o que está acontecendo. Se um dra maturgo quiser copiar um diálogo autêntico, com todas as casualidades, incorreções, expressões ridículas e redundâncias que eventualmente o acompanham, acabará en tediando os leitores. Que distância separará esse dramaturgo do efeito produzido por um texto genial de elevada intensidade, que aumenta e simplifica simultaneamente o casual, o impulsivo, o espanto no meio da conversa que encontramos em nós mesmos! Mas mesmo essa tentativa de copiar estará sempre condicionada pela subjetividade daquele que ouve, lembra, recria, já que todos esses processos são influenciados pelo nexo dos conceitos e imagens adquiridos. A distribuição de vitalidade entre figuras e processos faz com que cada personagem que aparece em um drama ou narrativa receba uma função determinada dentro do todo, certa delimitação em relação aos outros e um pouco do sangue de seu criador. Assim a personagem terá sempre um elemento típico e fará parte da família do autor e de seu tempo. Conclui-se, portanto, que a representação da individuação é sempre subjetiva, condicionada por elementos pessoais, nacionais e históricos. Quero mencionar aqui apenas as diferenças de processo histórico que se destacam na representação da in dividuação, e mesmo estas se restringirão ao âmbito mais estreito da literatura eu ropeia. As grandes épocas da história da literatura da Europa são, ao mesmo tempo, períodos de uma apreensão literária da individuação da natureza humana em geral.
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G O E T H E E A FA N TA SIA PO ÉTIC A
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A qual entre as imortais é devido o prêmio maior? De bem com todas, não duvido em entregá-lo, àquela filha singular de Júpiter, eternamente vivaz e sempre renovada, a sua filha predileta, à Fantasia. Goethe
A fantasia do poeta, sua relação com o conteúdo da realidade vivida e da tra dição, com aquilo que poetas anteriores a ele criaram, as figuras básicas singulares dessa fantasia criadora e das obras poéticas que nascem dessa relação: este é o cen tro de toda e qualquer história da literatura. Em nenhum poeta alemão mais recente fica mais nítida essa posição central da fantasia no âmbito da criação literária quanto em Goethe, e, para ser entendido, nenhum outro exige tanto quanto este a apreensão da essência da fantasia. Isso se deve à posição peculiar de Goethe no contexto da literatura europeia. No começo deste volume elogiei o movimento da literatura europeia, que foi marcado pelo surgimento da ciência moderna. Quando Goethe nasceu, sua duração já
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se estendera por um século e meio. Foi sob sua influência que ele cresceu, e a soma de seus efeitos continuou viva nele. Então, o Iluminismo alemão o envolveu. Quando Goethe começou a escrever, Lessing encontrava-se no auge de sua atividade. Assim, ele assimilou também a orientação mais intrínseca desse movimento, orientação esta que se viu determinada por toda nossa história: o mergulho do homem para dentro de si mesmo e do ideal de sua essência genérica. Mas sua missão histórica haveria de ser essa: firmemente arraigado nas grandes conquistas do Iluminismo, ele haveria de inaugurar uma nova era da criação literária. E assim, esse novo momento teve início na Alemanha. Inseparáveis, Goethe e o romantismo contribuíram, em toda parte, para a libertação da fantasia poética, de modo que essa pudesse deixar para trás o domínio da razão abstrata e do bom gosto isolado das forças vitais. Quem não conhece os preparativos desenvolvidos em diversos países, a teoria da genialidade criada pelos ingleses, Rousseau, Hamann, Herder, o movimento do Sturm und Drang (tempestade e ímpeto)? Foi a essas tendências que Goethe deu continuidade. Mas a nova poética foi obra sua. E a luta de sua fantasia poética com o Iluminismo, e até mesmo com o espírito da ciência daquela época, é um espetáculo que não tem paralelo na história da literatura. Depois de tantas e tão variadas tentativas importantes de entender Goethe, tal vez caiba também a mim algum direito de tentar, partindo de enunciados de caráter genérico, aprofundar-me primeiramente na força e na peculiaridade da fantasia poética de Goethe, para tecer depois, a partir das perspectivas conquistadas, considerações sobre a obra de sua vida. O trabalho científico, as reflexões filosóficas e as atividades administrativas ocuparam grande espaço na obra de sua vida. Eles não serviram apenas para preencher os intervalos longos de sua criação literária, antes se revelaram indispensáveis nesse confronto com a vida e com o mundo de que precisava para cumprir sua missão. Só a superação científica do Iluminismo era capaz de abrir caminho para seu mundo poético. Sua energia, que se expandia para todos os lados, tinha seu centro em sua fan tasia. Ele próprio o afirmou em diversas oportunidades, e da maneira mais explícita, depois de ter chegado a uma consciência clara sobre si mesmo, em consequência de sua estada na Itália e do contato com Schiller. Em 1788, ele resume a quintessência de sua experiência pessoal em Roma nas seguintes palavras: “Nessa solidão de um ano e meio encontrei-me a mim mesmo. Mas, como quê? - Como artista.” E no pe ríodo das atividades comuns com Schiller acabou formulando aquela caracterização memorável de si mesmo que diz: “O impulso sempre ativo de criação poética, que se propaga continuamente para dentro e para fora, constitui o centro e a base de sua existência. Uma vez apreendido esse impulso, todas as demais contradições aparentes 308
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se dissolvem. Como se trata de um impulso incansável, é necessário que ele se dirija para fora, pois, do contrário, ficaria sem matéria e se devoraria a si próprio.” É da tendência de sua energia criativa de querer projetar-se para fora que essa autoanálise deduz a propensão de dedicar-se às belas artes, à vida ativa e às ciências. Na época em que estava totalmente seguro de ter encontrado sua verdadeira vocação, estas lhe pareceram “tendências equivocadas”. O espectador objetivo preferirá confessar, com Schiller, que elas formaram a base ampla para um tipo totalmente novo de obra poética que está ligada, de modo indissolúvel, à formação da personalidade. Dessa maneira, o lugar de Goethe não se encontra entre os grandes naturalistas, filósofos ou estadistas, seu lugar verdadeiro está ao lado de Esquilo, de Dante e de Shakespeare.
A Vida A criação poética é representação e expressão da vida. Ela exprime a vivência e representa a realidade externa da vida. Procuro despertar na memória de meus leitores os traços da vida. Na vida, meu próprio eu me é dado dentro de seu ambiente, com a sensação de existir, com um comportamento e um posicionamento em relação a pessoas e coisas que me rodeiam; elas me oprimem ou me trazem energia e alegria de viver, me desafiam com suas exigências e ocupam um espaço em minha existência. Dessa maneira, cada coisa e cada pessoa recebem uma força e colorido próprio a partir de minhas relações com a vida. A finitude da existência, limitada por nascimento e morte e restrita pela pressão da realidade, desperta em mim a nostalgia de algo que dure, que não mude, que esteja a salvo da pressão das coisas, e as estrelas, às quais elevo meus olhos, se transformam em símbolo de um mundo eterno, intangível. Em tudo que me rodeia volto a vivenciar aquilo que eu mesmo experimentei. Ao cair da noite dirijo meu olhar sobre a cidade calma que se estende a meus pés. As luzes que se acendem em suas casas, uma após outra, são para mim a expressão de uma existência protegida e tranquila. Esse conteúdo de vida em meu próprio ser, em meus estados, nas pessoas e nas coisas em volta de mim, forma o valor da vida dos indivíduos, ao contrário daqueles valores que lhes são próprios em função de seus efeitos. E é somente isso que a criação poética revela num primeiro momento. Seu objeto não é a realidade, como ela se apresenta a um espírito cognitivo, e sim a constituição de mim mesmo e das coisas que está presente nas relações da vida. Dessa forma se explica o que um poema lírico ou um conto nos fazem ver - e o que, para eles, não existe. No entanto, os valores vitais estão relacionados entre si, e essa relação fundamenta-se no nexo da própria vida; são eles que dão significado às pessoas, às coisas, a situações e acontecimentos. O poeta dirige, portanto, sua atenção àquilo que tem significado. 309
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E quando a lembrança, a experiência da vida e seus pensamentos elevam esse nexo de vida, valor e significado para o nível do típico, quando o evento se transforma em portador e símbolo de algo universal e quando objetivos e bens viram ideais, exprimese, nesse conteúdo universal da criação literária, não um conhecimento da realidade e sim a experiência mais viva do nexo de nossas relações existenciais dentro do sentido da vida. Fora dessa experiência não existe a ideia de uma obra poética nem de um valor estético a ser realizado pela criação poética. Essa é a relação fundamental entre vida e criação poética, da qual depende *
qualquer forma histórica concreta de literatura. A característica primeira e decisiva da criação literária de Goethe é o fato de ela brotar de uma extraordinária energia da vivência. Desse modo, ele surge, em meio à criação literária do Iluminismo, como um elemento totalmente estranho, a ponto de nem mesmo Lessing saber dar-lhe o devido valor. Seus estados de espírito reformulam toda realidade; suas paixões elevam o significado e a forma de situações e coisas ao fora do comum, e seu impulso criativo incansável transforma, em forma e configu ração, tudo o que se encontra a seu redor. Nesse ponto, sua vida e sua literatura não se distinguem; suas cartas revelam essas características da mesma maneira que suas poesias. Essa é a diferença que se impõe a todo aquele que compara, por exemplo, suas cartas com as de Schiller. Nesse ponto, a obra literária de Goethe já se separa completamente da literatura do Iluminismo. Na vida encontram-se as forças que passam a atuar na fantasia.
Fantasia Poética 1
A fantasia se nos apresenta como um milagre, como um fenômeno totalmente diferente dos afazeres cotidianos das pessoas, mesmo sendo apenas uma organização mais poderosa de certas pessoas que se baseia na força rara de determinados processos elementares. A partir destes, a vida espiritual se vai constituindo, segundo suas leis gerais, numa figura diferenciada do comum. A peculiaridade do poeta manifesta-se a partir do momento em que a percepção se serve de sensações simultâneas para construir figuras no espaço, ou se vale da sequência destas para criar ritmos, melodias e sons. São sobretudo suas relações de vida, seus estados de espírito e suas paixões que atuam, com força primordial, sobre a formação de sua percepção.
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Por essa razão, as imagens da memória produzem, em indivíduos diferentes, um grau totalmente diverso de clareza e de força, de evidência e de plasticidade, apesar da igualdade de condições. Uma série de formas totalmente diferentes de reprodução estendem-se nas representações mentais, que mais parecem sombras sem cor nem som, até às figuras das coisas que podem ser projetadas no campo de visão, mesmo que os olhos estejam fechados. Ao dom da poesia descritiva está ligada a capacidade extraordinária de dar visualidade e evidência clara às representações reproduzidas ou livremente formadas, ou de conservar-lhes esses aspectos. Como o pensamento do poeta trabalha com figuras, necessita, durante todo o processo de composição, da evidência dos sentidos e do movimento de imagens nítidas para que lhe sirvam de base. Ao mesmo tempo, exige uma grande quantidade de impressões e a totalidade das imagens da memória: por isso mesmo, os poetas costumam ser grandes narradores. Qual é, então, a relação entre a experiência acumulada e a fantasia livre e cria dora, entre a reprodução de figuras, situações e destinos e sua criação? A associação, que chama de volta à representação os elementos dados dentro de uma determinada composição, e a força da imaginação, que produz novas composições a partir dos ele mentos dados, parecem separadas entre si por uma nítida linha divisória. Analisando a relação concreta que existe entre esses dois grandes fatos psíquicos, é importante aplicar o método descritivo, deixando de lado qualquer intervenção de hipóteses explicativas. Somente dessa maneira, o historiador da criação poética pode ganhar a confiança necessária para recorrer às descobertas mais sutis da psicologia, em vez de servir-se das ideias mais grosseiras da vida comum para elaborar sua concepção da literatura. No processo psíquico apreensível para nós, a mesma representação não retorna a certa consciência, nem ocorre de forma idêntica numa segunda consciência. Assim, como a nova primavera não devolve à minha visão as folhas antigas das árvores, tam bém as representações de um dia que passou já não são ressuscitadas no dia de hoje, nem mesmo de forma mais obscura e vaga. - Se, permanecendo na mesma posição, fecharmos os olhos que apreenderam um objeto dentro de si, de modo que a represen tação que assimilou a percepção possua ainda sua máxima força e evidência, estará, mesmo assim, representada nessa imagem da memória apenas um parte daqueles elementos que estiveram presentes no processo de percepção. E, mesmo nesse caso, em que se realiza apenas uma lembrança inanimada e morta, é inegável a tentativa de reprodução associada ao esforço vivo de chamar de volta a imagem inteira. - No entanto, quando procuramos recordar a percepção completa, depois de outras imagens já se terem infiltrado entre a percepção e a representação, a representação lembrada reconstitui-se a partir de um determinado ponto de vista interno. Como material de construção, ela usa apenas aqueles elementos da situação, sobreviventes, de fato, da 311
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percepção, que correspondem às condições atuais, e estas conferem à imagem seu enfoque emocional, pela relação existente com o estado de espírito atual, seja em função da semelhança ou do contraste. Em momentos de desassossego doloroso, a imagem de um estado de espírito tranquilo, no passado, mesmo que desprovido de alegria, pode surgir em nossa mente como uma ilha de bem-aventurança, cheia de uma paz ensolarada. Não é raro que se afigure até uma representação totalmente fal sa. - Mas, geralmente, não procuramos recordar impressões isoladas, cuja lembrança se refira, como uma imagem instantânea, a um determinado ato de percepção, e sim representações ou composições destas que, cada uma em si, retratem o objeto em todas as situações registradas por nós; nesse caso, a construção de uma determinada representação afasta-se ainda mais da reprodução morta, aproximando-se cada vez mais da elaboração de uma reprodução artística. - Em poucas palavras: assim como não existe força de imaginação que não se baseie na memória, da mesma forma, também não há memória que já não contenha em si um lado da força de imagina ção. Recordação é, ao mesmo tempo, metamorfose. Essa constatação torna visível o nexo que existe entre os processos mais elementares da vida psíquica e as maiores produções de nossa capacidade criativa. Ela permite lançar um olhar sobre as origens dessa vida espiritual diversificada, individual e única em cada ponto, cuja expressão mais feliz são as criações imortais da fantasia artística. A própria reprodução já é um processo de formação. Desse modo, a organização do poeta, nessa direção, já pode ser constatada na força de processos tão simples quanto a percepção, a memória e a reprodução, que fazem com que as mais variadas imagens, caracteres, destinos e situações se movam dentro da consciência. No próprio ato de lembrar, descobrimos uma faceta que mos tra seu parentesco com a força da imaginação. A metamorfose perpassa toda a vida de imagens em nossa alma. Isso se patenteia também nos fenômenos estranhos das fantasmagorias. Quem já não se deleitou com aqueles fenômenos singelos que se apre sentam à mente na hora de adormecer, quando estamos de olhos fechados? No sentido da visão em repouso, mas estimulável, os estímulos orgânicos internos passam a surgir em forma de raios e névoas flutuantes, formando-os e desenvolvendo-os, sem participação alguma da intenção, já que estamos absortos na contemplação mais pura e tranquila de imagens de fantasia, coloridas e intensas, que se transformam continuamente. A transformação das imagens e dos nexos imagéticos que ocorre na lembrança constitui, no entanto, apenas o caso mais simples - e, por isso mesmo, mais instru tivo - dos processos de formação que são característicos da fantasia. Aumentando, diminuindo, ordenando, generalizando, criando tipos, formando e transformando, ora inconsciente ora arbitrariamente - é assim que esses processos produzem inúmeras formas visuais novas. Certos traços das imagens são eliminados, outros potencia 312
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lizados, e as visões são complementadas pelo acervo das lembranças. A mesma transformação em algo novo, que ultrapassa aquilo que está contido na vivência e na percepção, ou pode ser inferido dele, realiza-se também nos nexos das imagens da imaginação. Forma-se um pensar em imagens. Nele, a fantasia alcança uma nova liberdade. Tentamos repensar o passado. Prefiguramos possibilidades de futuro. Inven tamos acontecimentos livres, aprofundando-nos neles. Sentimo-nos dentro do mundo inanimado, sublimando-o em forma de processos animados inauditos. E tudo isso aca ba intensificando-se ainda mais quando essa espontaneidade reinante é encaminhada, por meio da intenção consciente, a uma finalidade. As forças que provocam essa série de processos formativos têm sua origem nas profundezas da mente que, de múltiplas maneiras, é movida pela vida a sentir prazer, desgosto, ânimo, paixão ou ambição. Em tudo isso está atuando uma forte propensão que, a começar pelos processos inferiores da vida psíquica, impele para a criação poética as índoles organizadas para esse fim. Ela age com força máxima na criança, no homem simples, nas pessoas afetivas e sonhadoras, nos artistas. Ela distingue-se, portanto, da fantasia regulada de uma mente política, de um inventor, de um pesquisador, em que o autocontrole faz com que os processos de formação se atenham aos ditames da realidade. 2
Como é que surge, então, nessa propensão da fantasia que leva à criação poética, a fantasia poética propriamente dita, e quais são as suas características? Vimos que a fantasia se encontra entremeada na totalidade do nexo psíquico. Qualquer comunicação que acontece na vida cotidiana transforma, inadvertidamen te, os fatos vivenciados. Desejos, temores e sonhos futuros ultrapassam a realidade. Toda ação é determinada pela imagem de algo que ainda não existe. Os ideais da vida precedem o ser humano e até a humanidade, levando-os ao encontro de objeti vos mais elevados. Os grandes momentos da vida - nascimento, amor e morte - são transfigurados por costumes que revestem as realidades e remetem para além delas. Inicialmente, distingo dessa fantasia a atividade de fantasia que constrói um segundo mundo que difere daquele de nosso agir. A força imaginativa manifesta-se, por exemplo, nos produtos do sonho, que é o mais antigo dos poetas. Essa força cria na própria vida, arbitrariamente, um segundo mundo por meio do qual o ser humano procura livrar-se dos vínculos da realidade. Isso acontece, por exemplo, no jogo e no folguedo, mas sobretudo quando a intensificação festiva da existência produz um mundo separado da vida diária que se exprime em mascaradas, fantasias e desfiles. A época cavalheiresca e a cultura cortesã da renascença mostram de que forma a criação de um mundo poético completamente separado da vida já se prepara na própria vida. 313
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Da mesma maneira, é construído um mundo diferente da realidade experimentada nos produtos da fantasia religiosa. No contato com as forças invisíveis, formam-se as ideias de seres divinos. Estes aparecem envolvidos na vida, em seu sofrimento e em suas atividades. No mito e na crença em deuses, essa força da imaginação religiosa está ligada, inicialmente, a um anseio da vida. Com o desenvolvimento da cultura, ela distancia-se, aos poucos, dos nexos finalistas, dando a esse segundo mundo uma significação independente, conforme podemos constatar em Homero, nos autores da tragédia grega, em Dante e Wolfram von Eschenbach. Desse modo, é só com a cria ção literária que o mundo religioso sobrenatural acaba se separando completamente da vinculação que está presente nas necessidades da vida e nas relações finalistas. Só a partir desse ponto apreendemos a natureza da fantasia poética. Tudo o que foi dito até agora se refere apenas às suas condições gerais. Ela é a expressão máxima dos processos psíquicos em que se forma o mundo poético. As bases desses processos são sempre vivências e o fundamento de compreensão criado por elas. Os nexos com a vida dominam a fantasia literária e encontram nela sua expressão, além de influenciarem a própria formação das percepções no escritor. Eles elaboram constantemente a cor e a forma do mundo em que o escritor vive. Esse é o ponto a partir do qual começa a desvendar-se o nexo que existe, no escritor, entre a vivência e a fantasia. O mundo literário existe antes que o escritor se dê conta da concepção de uma obra a partir de um evento qualquer e antes de ele lançar no papel a sua primeira linha. A maneira por meio da qual o mundo poético é criado, a partir desses processos psíquicos, formando uma obra literária singular, recebe suas leis do posicionamento em relação à realidade da vida, que difere completamente do vínculo dos elementos da experiência com o nexo do conhecimento. O escritor vive na riqueza das vivências do mundo humano, que ele encontra tanto dentro de si próprio quanto fora si, e esses fatos não são, para ele, nem dados de que ele se serve para satisfazer seu próprio sistema de necessidades, nem que lhe sirvam de base para elaborar generalizações. O olhar do escritor pousa tranquilamente sobre eles; eles têm significado para ele e estimulam seus sentimentos, ora de uma maneira suave ora com toda intensidade, independentemente da distância que esses fatos tenham em relação aos seus próprios interesses ou de quanto tempo tenha transcorrido. Eles são parte de seu próprio eu. Todas as forças do ser humano ajudam a tecer o tapete multicor da literatura descritiva, tanto como suas figuras. O ânimo é a base de vida de toda obra poética. Mas esta é simultaneamente permeada pelo pensamento. Afinal, no ser humano de senvolvido há poucas ideias que não carreguem em seu bojo elementos gerais, e não existe indivíduo no mundo humano que, pela influência das condições sociais e de comportamentos psicológicos, não seja representativo sob diversos pontos de vista, nem há destino que não seja um caso singular de um tipo mais geral de circunstâncias 314
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de vida. Pela influência da reflexão, essas imagens de seres humanos e de destinos são tratadas de maneira tal que, mesmo representando uma situação singular de fatos, estão repletas da generalidade que representam. Para tanto, não se fazem necessárias, em absoluto, observações de caráter geral espelhadas pela obra literária; a função desta consiste, sobretudo, em livrar o receptor, momentaneamente, do encanto do afeto, da excitação e da empatia arrebatadora, levando-o a um estado de espírito mais contemplativo. Finalmente, toda obra literária revela a marca da vontade da qual brotou. Schiller procurou mostrar em toda beleza o reflexo do elemento moral; de Goethe, por sua vez, temos a máxima que diz: “É ao caráter pessoal do escritor que se deve sua importância junto ao público, e não às artes de seu talento.” A forma da vontade que agiu na produção da obra de arte manifesta-se na condução do enredo. A relação entre a fantasia e suas figuras assemelha-se, dentro de certos limites, à relação com pessoas reais. Assim, Dickens conviveu com suas personagens como se fossem iguais a ele, sofrendo com elas quando a catástrofe se aproximava, temendo com elas o momento da ruína. Balzac falava das personagens de sua Comédia Hu mana como se elas estivessem vivas; ele as analisava, repreendia, elogiava, como se fizessem parte, com ele, da mesma boa sociedade. Discutia longamente a iniciativa que deviam tomar na situação em que se encontravam. Até que ponto Goethe se viu envolvido durante o processo criativo pelos afetos trágicos de sua obra literária, po demos depreender de uma observação dirigida a Schiller, em que afirma não saber se teria condições de escrever uma verdadeira tragédia. Esse empreendimento o encheria de pavor, pois estava convencido de que a mera tentativa o poderia aniquilar. Vemos, portanto, que o escritor difere muito mais das demais classes de seres humanos do que se costuma supor. Diante de uma visão filistina, que se baseia no pressuposto de que o ofício de escrever é exercido por simples homens medianos, deveremos acostumar-nos a compreender o impulso interior e o modo externo de agir dessas mentes demoníacas a partir de sua organização e não a da medida medíocre do homem comum. Na perspectiva desse prodigioso impulso criador totalmente es pontâneo, devemos entender também a vida e a obra de Goethe.
A Fantasia Poética de G oethe A fantasia de Goethe é o exemplo clássico do conjunto de elementos descrito nas linhas anteriores, em que as criações literárias, com sua força interior, brotam dos processos elementares. Na conversação e nas criações literárias do jovem, tudo está imbuído do mais forte sentimento de vida e cada estado se vê expresso com energia unilateral; afloram imagens que o sensualizam como que em símbolos. Tudo 315
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o que Goethe falou ou escreveu naquele tempo estava repleto dos germes das criações literárias que estavam tomando forma, a caminho da luz. Desse poder de exprimir estados surge, então, seu dom incomparável de fantasia na esfera da palavra. A língua é o material do escritor. Mas ela é também mais do que isso, já que a beleza sensível da criação poética, expressa no ritmo, na rima e na melodia da linguagem, gera um reino próprio dos efeitos mais elevados que são inseparáveis daquilo que as palavras significam. Quem seria capaz de ter consciência plena do sentido das palavras quando pronuncia, por exemplo, o poema de Goethe “À Lua” ! Só leve e misteriosamente seus significados são evocados. É nisso que con siste a fantasia da linguagem do poeta: concentrando toda a sua atenção, ele elabora e forma constantemente esses efeitos, assim como o pintor trabalha suas linhas e cores. Como um soberano, Goethe domina esse reino da linguagem. Isso se deve ao fato de haver nele, em toda parte e de imediato, uma ligação íntima entre a vivência e o impulso de expressá-la. Quando jovem, ele passava frequentemente, no meio de uma conversação, da prosa para a recitação de seus versos. Em suas caminhadas, ele deve ter cantarolado, naquele tempo, “estranhos hinos e ditirambos”, em que sua agitação interna se manifestava em forma de sons. Brotava-lhe de seu interior a arte das grandes estruturas rítmicas livres, com seu fluxo natural e sua vivacidade. Nunca uma tal vontade de poder sobre a vida encontrou sua expressão em ritmos dessa natureza! Em sua juventude, ele rompeu com toda linguagem tradicional. Baseado em Klopstock, criou um novo estilo poético, valendo-se do dialeto de sua terra natal. Aproveitou a energia viva dos verbos. Causou efeito, formando palavras inauditas. Acrescentou novos prefixos aos verbos, juntou o substantivo à partícula e o verbo a seu objeto, potencializou a energia sensual do verbo eliminando a partícula. Ele passa a juntar substantivos para formar novas configurações mais amplas, enfatiza a força expressiva pela repetição de palavras significativas. Para retratar a agitação interna, recorre à pergunta, à resposta, à exclamação. Todo estado interior se exprime numa melodia própria da linguagem. Depois, nos primeiros anos em Weimar, diminui pouco a pouco o uso do dialeto familiar. Recorre menos a expressões rudes, faz um retrato mais completo daquilo que lhe vai pela alma; valendo-se de novos recursos, como, por exemplo, do uso mais frequente de adjetivos expressivos, eleva o concreto a uma visualização tranquila. No solo, no qual Lutero lançou outrora as bases de nossa língua escrita com sua tradução da Bíblia, vai surgindo, na cooperação com Schiller, a forma clássica de nossa língua culta. Sobre essa base se constrói, então, um grande estilo. Nesse desempenho revela-se a fantasia única da linguagem de Goethe. Seu poder é tão soberano que toda nossa literatura posterior é dominada por ele, e sua linguagem poética consegue despertar no leitor, ainda hoje, todo e qualquer estado de espírito. 316
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Essa fantasia de linguagem, desenvolvida por Goethe no impulso e pelo dom de dar expressão às vivências, está ligada a uma assombrosa força de imaginação, na ampla esfera da aparência das coisas, de modo que a beleza imaginativa do mundo dos objetos se estende sobre os estados movimentados da alma. A seguinte passagem, retirada das Contribuições à Morfologia, lança luz espe cial sobre os fundamentos naturais desse talento de criação na esfera do visual: “Fe chando os olhos e imaginando, de cabeça baixa, uma flor no centro do órgão da visão, eu tinha o dom de ver essa flor em contínua mudança, abrindo-se e desdobrando-se em novas flores coloridas e até em folhas verdes. Não se tratava de flores naturais e sim de flores fantásticas que conservavam, no entanto, a regularidade de rosetas esculpidas. Era impossível fixar a criação na medida em que ia brotando, mas mesmo assim durava o tempo que eu quisesse, sem diminuir nem aumentar de intensidade. Era capaz de provocar o mesmo fenômeno enquanto contemplava os ornamentos de uma vidraça pintada: esta também se transformava continuamente a partir do centro para a periferia, bem à maneira dos caleidoscópios inventados recentemente.” Eu mesmo fiz a experiência em que o observador, sob condições favoráveis, antes de adormecer, consegue ver, no campo escuro da visão, névoas coloridas se formando e se transformando em figuras. Mas, em Goethe, essas criações revelam a extrema leveza e a beleza de uma imaginação espontânea. Nas Afinidades Eletivas, totalmente impregnadas da descrição de nossa condicionalidade fisiológica, até mesmo nas mais elevadas manifestações de nossa vida sentimental, ele transfere esse dom, de forma alterada, para a figura de Otília, que lhe é tão cara. Essa descrição lembra, aliás, uma experiência contada por Cardano1. Num estado entre o sono e a vigília, Otília vê num cômodo, mergulhado numa luz suave, a presença de Eduardo que, na realidade, a essa altura, se encontra na guerra. O poder exercido pelas criações da fantasia sobre o próprio poeta encontra uma expressão de profundo conhecimento em várias passagens do Tasso: “Em vão tento reprimir esse impulso que se alterna dia e noite em meu peito” etc. Depois, em outra cena, quando descreve para Leonora o caminho futuro do exilado para Nápoles: “Irei disfarçado, vestindo a roupa indigente do peregrino ou do pastor de ovelhas” etc. Participamos da comoção de Leonora, que o interrompe como que para desfazer o encantamento medonho que o envolve nessa imagem da fantasia. Mas foi em Pandora que Goethe deu a forma poética mais abrangente e forte de toda essa sensação. Partindo dessas experiências, Goethe generalizou nos seguintes termos a visão da natureza do poeta: “Assim compreende-se melhor o que significa dizer que os
1. Girolamo Cardano (1501-1576), médico e matemático italiano (N.T.).
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poetas e todos os demais artistas devem ter nascido como tais, pois é a força pro dutiva interior que precisa gerar espontaneamente, sem o esforço da intenção ou da vontade, aquelas imagens, aqueles ídolos retidos no órgão, na lembrança e na imagi nação. Estes precisam desenvolver-se, crescer, expandir-se e contrair-se, para que de fantasmas fugazes eles se transformem realmente em imagens atuais.” Ao chanceler Müller ele contou: “Quanto à minha capacidade de apreensão sensorial, sou do tipo de pessoa que guarda na memória, com extrema nitidez, todas as silhuetas e figuras, sentindo-me, porém, vivamente afetado por deformações e defeitos.” “Sem essa acuidade e impressionabilidade jamais seria capaz de criar minhas figuras tão vivas e individualizadas. Essa nitidez e precisão de apreensão levou-me a nutrir, durante muito tempo, a ilusão de que tinha vocação e talento para o desenho e a pintura.” No mesmo sentido, Goethe resume, em suas máximas, o objetivo da poesia, nas seguin tes palavras: “O poeta depende da representação. Esta atinge seu ponto culminante quando compete com a realidade, ou seja, quando o espírito torna suas descrições tão vivas que parecem atuais para qualquer pessoa.” Como esses dois tipos de fantasia poética cooperam em Goethe com máxima intensidade, surge uma universalidade de talento poético que não tem igual nos tempos modernos. Ele mesmo chegou a descrever o poder e a peculiaridade desse talento no relato que fez de seus últimos anos em Frankfurt: “Havia já alguns anos que meu talento produtivo não me abandonava em momento algum; aquilo que eu observava acordado durante o dia transformou-se, com frequência, em sonhos regulares durante a noite, e quando abria os olhos aparecia-me um todo novo e esquisito ou a parte de algo que já existia.” Esse dom natural agia nele tanto na solidão quanto em meio à sociedade. Naquela época, ele expressou a consciência altiva dessa força criadora em seu poema Prometeu. Ele precisava ver esse dom “totalmente como natureza”. Ele manifestava-se “espontaneamente e até contra a vontade.” As vezes, o dom per manecia inativo durante um longo período, em que não conseguia produzir nada, por mais que quisesse. Outras vezes, a pena tinha dificuldade de acompanhar “sua criação sonambular.” Até mesmo obras de maior volume, que tinha carregado consi go durante longo tempo, surgiram, então, como que por força de uma inspiração: o Werther foi redigido em quatro semanas, de maneira “bastante inconsciente” e como que orientado por um sonho, sem que antes tivesse colocado no papel um esquema da obra ou o tratamento a ser dado a uma parte. E quase não tinha o que corrigir. Foi dessa maneira que surgiu sua obra de arte mais perfeita e uniforme antes de Hermann e Doroteia. Em tudo isso, vemo-nos confrontados com as características da fantasia poética. Em sua força máxima, é uma criatividade espontânea e regular que brota da plenitude das forças psíquicas, totalmente separada da vida comum e de seus fins.
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Essa peculiaridade de sua obra juvenil conserva-se até a velhice, se bem que modificada pela serenidade, pela circunspeção e pela diminuição do poder da fantasia. A longos períodos de preparação seguem-se fases da mais intensa criação. A pilha de lenha, juntada e acumulada aos poucos, “começa, finalmente, a arder”, escreve em 1795, enquanto está trabalhando no Wilhelm Meister. Especialmente no castelo de Jena, gosta de formar em torno de si um ambiente de solidão, para poder conservar, dessa maneira, o estado de espírito poético e o nexo interior do trabalho criativo. No entanto, mesmo assim, só a vontade não basta para chegar a um feliz êxito - a parte melhor lhe vem sempre de modo espontâneo. Dessa maneira, suas criações desenvolvem-se no decorrer de períodos prolongados. “Certos temas e lendas, ele mentos tradicionais antiquíssimos chegaram a marcar tão profundamente minha alma que consegui mantê-los vivos e ativos dentro de mim. Parecia-me o bem mais belo poder rever com frequência essas imagens valiosas em minha imaginação. Apesar de transformarem-se continuamente, não se alteravam na essência, amadurecendo para uma forma mais pura e com uma representação mais clara.” Em outros poetas, como, por exemplo, em Schiller, a gênese de toda e qualquer obra descritiva se dá às custas de um imenso trabalho consciente. Essa força impulsora da vontade talvez se transmita também à ação, emprestando-lhe aquele movimento intenso que admira mos nas obras dramáticas de Schiller. Mas, em Goethe, essas características não se encontram nem mesmo nas suas representações mais elevadas. Além disso, durante o trabalho, Goethe não dispensava de todo o julgamento dos amigos acerca da obra começada. Na continuação de Wilhelm Meister e do Fausto, ele recebeu sugestões decisivas, sobretudo da parte de Schiller. Houve casos em que certas avaliações o fizeram desistir do projeto de alguma obra. Como outros grandes narradores, era capaz de comover-se e ficar profundamente abalado pela simples conscientização de algum produto de sua fantasia. Considerando detalhadamente uma determinada situação de Wilhelm Meister, “começou, por fim, a chorar amargamente.” Ao ler em voz alta um trecho recém-concluído de Hermann e Doroteia, aconteceu-lhe o mesmo; enxugando as lágrimas comentou: “E assim que nos consumimos em nossas próprias brasas”. A visão mais perfeita do poder e da peculiaridade dessa fantasia só se descor tina quando verificamos a maneira pela qual Goethe soube estender seus efeitos a cada uma das partes do organismo. A influência dela impregnou sua vida, sua visão do mundo, seus ideais. A fantasia governava o jovem em meio às forças mais ricas e ainda desordenadas. Nos anos do vigor vibrante da juventude, ela potencializava suas alegrias e dores ao infinito. Envolvia para ele toda a realidade com o véu da beleza, concedendo-lhe o dom de encantar e de arrebatar tanto os homens quanto as mulheres. E, assim, ora idealizando o presente, ora aumentando até o insuportável os aspetos penosos próprios de cada existência e atraindo-os com imagens novas para 319
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lonjuras ilimitadas, tornava mais intensas a inquietude e a insatisfação da juventude, bem como a consciência genial em seu interior - tanto que chegou a brincar com o suicídio e a revelar certa volubilidade nas relações de amizade e de amor, no traba lho, e nos objetivos de vida; até o elemento demoníaco do supra-humano encontra sua expressão no primeiro Fausto. Naquela época, Jacobi teve a impressão de estar diante de um possesso a quem se permitiria, só excepcionalmente, agir de modo espontâneo. Em sua criação literária, a fantasia concedia-lhe esporadicamente mo mentos de libertação do desassossego da vida, elevando essa mesma vida ao mundo da aparência. Proferindo aquilo que o comovia, aliviava sua alma. Exteriorizando-as, ele dissociava-se das circunstâncias de sua própria vida. Assim, elas tornavam-se alheias, passando a pertencer ao reino da imaginação poética, em que, separadas da condicionalidade de sua própria pessoa, podiam desenvolver-se em todo seu alcance. Foi também a fantasia que o ajudou a superar a si mesmo, para encaminhar-se ao ideal maduro da idade adulta. Esse ideal consistia justamente na elevação da totalidade da vida ao sentido máximo que nela pode ser encontrado. Ao contrário de regras morais abstratas, a apreensão desse sentido e sua realização estavam ligadas às imagens da fantasia sobre o passado, o futuro e o possível, uma vez que a vida, dentro dessas imagens, forma a base de toda imagem ideal que se tem do próprio eu. Finalmente, pela fantasia poética, Goethe teve acesso ao mistério da natureza e da arte. Assim como a contemplação desinteressada da natureza revelava uma afinidade com a cria ção artística, da mesma forma se fez conhecer a ele também o objeto dessa criação, a natureza, na experiência do poder da fantasia que atuava nele de forma criativa. A natureza revelou-se a ele como uma força que age segundo leis e fins, encontrando sua expressão na metamorfose, na potencialização, na estrutura de formas típicas e na harmonia do conjunto. Por isso, a arte só podia ser, para ele, a manifestação máxima do agir da natureza.
Vivência e C riação L iterária Todas as características gerais da arte poética se depreendem da relação en tre a vida, a fantasia e a forma dada à obra. Toda obra poética torna presente um acontecimento singular. Pelas palavras interligadas, ela oferece a mera aparência de um fato real. Por esse motivo, precisa valer-se de todos os recursos da linguagem, para produzir impressão e ilusão. E é justamente no uso artístico da linguagem que reside um primeiro valor estético de suma importância para a obra. Sua intenção não é ser expressão ou representação da vida. Isolando seu objeto do contexto da vida real, ela dá-lhe uma totalidade em si mesmo. Encontrando-se, portanto, nesse 320
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mundo ilusório, fora das contingências de sua existência concreta, o receptor pode sentir-se perfeitamente livre. Ele tem a sensação de que sua existência aumenta. O ser humano, limitado pelas circunstâncias da vida, sente uma grande satisfação em vivenciar os anseios e as possibilidades da vida que ele próprio não pode realizar. A obra literária abre-lhe os olhos para um mundo mais elevado e mais forte. Revivendo-a, todo seu ser se sente envolvido num processo de operações psíquicas que lhe é adequado, desde a alegria produzida pelo som, pelo ritmo e pela plasticidade sensorial, até o entendimento mais profundo dos acontecimentos em sua relação com toda a amplitude da vida. Pois cada obra poética genuína destaca, no aspecto da vida descrita por ela, certa característica da vida que antes não era vista por esse ângulo. Revelando a relação causal entre processos e ações, ela permite reviver os valores que um acontecimento e suas partes adquirem no conjunto da vida. Dessa maneira, o acontecimento ganha importância. Não há grande literatura naturalista que não torne manifestos esses traços significativos da vida, por mais maçantes e bizarros que sejam como expressões de uma natureza cega. E a habilidade dos maiores autores que sabe apresentar o acontecimento de forma que brilhem nele o nexo da própria vida e seu sentido. Dessa forma, a obra poética ajuda-nos a entender a vida. Com os olhos do grande poeta atentamos no valor e no nexo das coisas humanas. Vemos, portanto, que os subterrâneos da criação literária são impregnados de experiências pessoais, do entendimento de estados de espírito alheios, da ampliação e do aprofundamento da experiência por meio das ideias. O ponto de partida da cria ção literária é sempre a experiência da vida, seja como vivência pessoal, seja como entendimento de outras pessoas do presente ou do passado e dos acontecimentos que os uniram. Cada uma das inúmeras circunstâncias da vida, pelas quais o autor passa, pode ser chamada de vivência em sentido psicológico, mas só aqueles momentos de sua existência que lhe patenteiam um traço da vida adquirem uma relação mais profunda com sua obra. Seja o que for que o autor venha a receber do mundo das ideias - e foi grande a influência delas sobre Dante, Shakespeare e Schiller - , todas as ideias religiosas, metafísicas e históricas não passam de produtos de grandes vivên cias do passado ou de representações destas, e elas só lhe ajudam a perceber aspetos novos da vida quando o fazem entender suas próprias experiências. O idealismo da liberdade que Schiller foi buscar em Kant lhe serviu apenas para esclarecer a grande vivência interior em que, no conflito com o mundo, seu nobre caráter teve certeza de sua dignidade e soberania. Como deve ser grande a variedade de modificações da experiência poética que resulta desse processo! Exteriorizando na visibilidade dramática o mundo religioso interior, os autores das tragédias gregas criaram uma expressão de vivências pro fundas que era, ao mesmo tempo, representação de uma poderosa realidade externa. 321
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Isso que deve ter provocado um efeito incomparável. Ainda o experimentamos, de certa maneira, nas encenações da Paixão de Oberammergau e nos oratórios. Em seu entendimento, Shakespeare entrega-se completamente a um processo dado pelo mundo externo; colocando nele sua própria vida, faz surgir seres humanos tão diver sificados quanto aqueles criados pela natureza e tão profundos quanto pode alcançar a vivência. Goethe exprime em si próprio a vivência pessoal e o trabalho criativo, e nessa relação entre a vivência e sua expressão se manifesta aquele aspecto da vida psíquica que sempre se furta à observação, todo seu transcurso e toda sua profundi dade. No conjunto de sua obra, o vínculo entre a vivência pessoal e sua expressão está entrelaçado, em diversos graus, com a relação entre os dados externos e seu entendimento. Pois, na experiência pessoal é dada, além de um estado psíquico, a concretude do mundo ambiente que está em relação como ele. No ato de entender e reproduzir é apreendida a vida psíquica alheia, mas esta só está presente por força da vida própria levada para dentro daquela. O que varia nas diversas modificações da experiência poética é a intensidade e a interligação desses momentos. Sobre essas bases desenvolve-se o dom visionário do poeta, que nos transmite ensinamentos sobre nós mesmos e sobre o mundo, sobre as últimas profundezas atingíveis da na tureza humana e a riqueza de individualidades. Dessa maneira surgem as inúmeras formas desse talento visionário. O produto literário toma forma quando, sobre essa base, um acontecimento adquire significação. Assim como distinguimos e estudamos num corpo natural sua composição química, seu peso, seu estado térmico, assim diferenciamos na obra li terária de representação - ou seja, no poema épico, na romança ou balada, no drama ou no romance - o assunto, a disposição poética, o motivo, a fábula, os caracteres e os recursos de interpretação. O mais importante desses conceitos é o motivo, porque nele se exprime a experiência do autor em sua significação. Nele, também, a expe riência é ligada à fábula, aos caracteres e à forma literária. E ele que concentra em si a força criadora que determina a forma da obra. Partindo da experiência da vida, desenvolvem-se, num crescimento orgânico, os diversos momentos que podemos distinguir na criação literária; cada um deles realiza um trabalho no conjunto da obra. Por esse motivo, cada obra literária é uma criatura viva sui generis. O maior entendimento de um autor seria alcançado se conseguíssemos mostrar a súmula das condições, dentro e fora dele, sob as quais se forma a modificação da vivência, do entendimento e da experiência que determina sua criação, e compreender o nexo que, a partir dela, concretiza o motivo, a fábula, os caracteres e os recursos de apresentação. Tentando descrever a relação entre vida, experiência, fantasia e obras literárias em Goethe, fico novamente impressionado, sobretudo pela maravilhosa união e har monia dessa existência. Nela, dificilmente se encontram enigmas e dissonâncias. A 322
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vida é um crescimento regido por uma lei interna, e quão simples é essa lei, quão regular e constante a sua ação! Partindo de sua visão em relação à energia formadora da natureza, Goethe cria, em consonância com esta, a vida, que é o objeto de sua obra, e, atendo-se às leis intrínsecas encontradas na natureza, ele dá forma a seu mundo poético e a si próprio - ambos unidos por um nexo inseparável. As condições para o surgimento desse fenômeno extraordinário localizavam-se na história do espírito alemão. Esta encaminhou-se, desde Lutero e Leibniz, na direção de uma harmonia interna entre religião, ciência e literatura, baseada no aprofundamen to do espírito em si mesmo e na sua formação a partir dessa profundidade. Formouse, dessa maneira, aquela força histórica universal, cujos efeitos uniformes, partindo da Alemanha, começaram a expandir-se no século XVIII por toda a Europa. Todas as criações da época de Goethe estão repletas dessa energia. Ao extrair o elemento humano universal das profundezas inconscientes de nossa existência, Goethe estava ligado à filosofia transcendental de Kant, Fichte e Hegel e à música instrumental de Beethoven. No ideal da formação do ser humano, segundo a lei intrínseca de seu ser, sentiu-se em consonância com esses mesmos filósofos, como também com Schiller, Humboldt e Schleiermacher. Do fundamento dessa nova cultura originou-se o mundo poético criado por Goethe, Schiller e Jean Paul que, depois, haveria de encontrar seus continuadores em Novalis e Hölderlin. Todo desenvolvimento espiritual da Europa ficou submetido, então, à influên cia da nova força histórica universal. A partir dessa posição, Goethe resolveu o maior desafio histórico, que consiste em entender a vida a partir dela mesma, para representá-la em sua significação e beleza. Em Goethe, o dom literário nada mais é do que a manifestação máxima de uma força criadora que já atuava em sua pró pria vida. Viver, formar e escrever ganham nele um novo nexo, cujo fundamento se localiza nos estudos científicos. Desse nexo nascem a verdade, a naturalidade pura, a visão límpida, a interpretação imparcial de nossa existência que haveriam de transformar-se em modelos para todos os pensadores, poetas e escritores que o sucederam. Para visualizar a essência dessa criação poética em termos de parentesco e antagonismo, valho-me de um procedimento comparativo. Hoje, Shakespeare e Goethe são vistos lado a lado como as duas maiores forças da literatura universal moderna. E são justamente eles que representam, conforme vimos, as modifica ções especialmente significativas da experiência poética e, consequentemente, da descrição do ser humano. Os dois grandes visionários germânicos, que lançaram os olhares mais profundos na face insondável da vida, completam-se, tendo a seu lado outros caracteres afins.
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Shakespeare As cartas de Dickens e as informações sobre sua vida permitem-nos lançar um olhar sobre a oficina do escritor. Ele aparece-nos como um gênio que, durante a vida inteira, se dedica à experiência real e à observação exata e espontânea daquilo que áreas de conhecimento sempre novas lhe oferecem. Tantas são as ocupações e situa ções de vida que ele percorre como aprendiz, escrevente, repórter no parlamento e nas ruas, são tantos os fatos que ele consegue submeter à sua observação, estudando a fundo, além da boa sociedade, também as prisões e os hospícios da maior parte dos países da Europa, que a ele não se compara a vida de nenhum poeta alemão. A isso deve acrescentar-se, ainda, seu arrojo, os incríveis erros de sua índole febril, sua indiferença em relação a uma formação mais acurada da própria personalidade ou a uma atividade intelectual mais elevada. Tudo isso constitui o lado externo de uma vida cheia de felicidade e sofrimento. Em consonância com as figuras formadas a partir desse cabedal de experiência: entrega-se totalmente àquilo que registrou fora de si próprio. Debruçando-nos, assim, sobre as informações precisas da obra literária desse contemporâneo de Stuart Mill, incide também, a partir desses conhecimentos, uma luz sobre a vida e a criação interior, aparentemente inconcebível, de um contemporâneo de Lorde Bacon. Shakespeare parece envolto numa escuridão impenetrável. O único material realmente autêntico, localizado após esforços ingentes, restringe-se a certo número de documentos encontrados em registros eclesiásticos e jurídicos, além de algumas passagens polêmicas tiradas de autores contemporâneos. Parece que sua pessoa não atraiu, de modo especial, a atenção daqueles com os quais compartilhou a época. Recomenda-se, também, muita cautela àqueles que, baseando-se em seus dramas, tentam tirar conclusões a respeito de seu modo de pensar, de suas convicções religio sas e filosóficas, além de seu caráter. Os próprios sonetos são um mistério, uma vez que não podemos nos atrever a interpretá-los ao pé da letra, tendo em vista a imensa paradoxalidade dos sentimentos expressos neles. Em contrapartida, não podemos de sistir de supor, hesitantes, que exista neles um fundo de sensibilidade extremamente subjetiva e personalíssima. Partimos de alguns fatos indubitáveis sobre sua organização que se depreendem das próprias obras. Shakespeare revela um grande número de imagens meticulosas e totalmente positivas de percepção que supera de longe a soma de imagens precisas oferecidas por qualquer outro autor. Devemos supor nele a existência de uma energia de percepção e de memória não alcançada, inclusive por aquilo que nos contam Goethe e Dickens. Ele domina magnificamente até os conceitos das coisas. M. Müller 324
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chegou a contar um total de quinze mil termos usados por Shakespeare, o que cor responde ao dobro do número usado por Milton. Cientistas competentes verificaram que seu conhecimento de plantas e animais é assombrosamente preciso e abrangente. Quando fala de falcões e de falcoaria, ele o faz como alguém que dedicou a vida inteira ao mundo da caça, tanto assim que certas passagens só foram plenamente en tendidas depois de explicadas pela análise de peritos. Ele refere-se a cães como se, à maneira de Walter Scott, tivesse sempre tido a seus pés alguns animais de estimação. Numa época em que os médicos ainda cultivavam ideias cheias de superstições a respeito de dementes, Shakespeare revela-se um observador tão profundo de estados psíquicos doentios que excelentes alienistas de nossa época passaram a estudar seus personagens como se estudam fatos da própria natureza. Seu conhecimento de casos e atos jurídicos é tão bom que excelentes juristas ingleses só conseguiram explicá-lo pela pressuposição de que ele tenha recebido formação nessa ciência como aprendiz de um advogado. O alcance e a profundidade de suas descrições de caráter beiram o limite extremo da capacidade literária. Um determinado efeito supõe como causa não apenas uma altíssima energia de percepção e de memória. Antes devemos imaginar o gênio que produz esse efeito como alguém que se dedica totalmente aos fatos, verificando e observando-os. Esque cendo-se de seu próprio eu, o transforma naquilo que apreende. Espontaneamente me vem à lembrança as palavras de Ranke, que aspira à dissolução do próprio eu para poder ver as coisas como foram2. Ele não vivia em si mesmo, mas nas coisas que, estando fora dele, exerciam ação sobre ele. Era todo um grande olhar mental. Não sentia a necessidade de construir em si um nexo de convicções enérgicas ou de formar um eu próprio de poder imponente. Ele, que nos é descrito como uma pessoa graciosa como Rafael, era capaz de perseguir toda natureza e paixão humanas até as últimas consequências e mais secretos esconderijos. Com isso, sua maneira de representar é sempre aquela que coloca o ser humano na perspectiva do observador, que vê a vida do lado de fora, com perfis físicos precisos, mas, nos movimentos da vontade, suas últimas razões de agir aparecem por vêzes impenetráveis. A essa visão correspondem as notícias que temos de sua vida. O pulso acele rado, quase febril, de seus protagonistas bate também nele mesmo, como em Marlowe e Ben Jonson. Com dezoito anos já o encontramos casado, e um ano depois já precisa cuidar de sua própria família (nascido em 1564, casou-se em 1582, sua filha Susanne nasceu em 26 de maio de 1583, os filhos Hamnet e Judith em 1585). Entre 1585 e 1587 aparece em Londres, onde se estabelece nos primeiros anos da terceira
2. Leopold von Ranke, Englische Geschichte, vol. 2 (N.T.).
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década de sua vida. Em 1592 já tinha adquirido fama e prosperidade com a idade de apenas 28 anos, de modo que Greene pode chamá-lo, num panfleto daquela época, de “an absolute Johannes Factotum and in his own conceit, the only Shake-scene in a country”3. Em 1598, já é tão conhecido que seu nome aparece na página de rosto de seus dramas. Ao mesmo tempo já está preparando sua retirada para Stratford. Em 1602, com 38 anos, já vive como um senhor rural em Stratford, apesar de con tinuar suas atividades em Londres. NcJis anos quarenta de sua vida, encontramo-lo em Stratford (a partir dos documentos disponíveis ainda não é possível determinar a data precisa), morando numa casa senhorial, cercada de parques, e descansando da agitação de uma vida dinâmica. Terminada a carreira, morre em 23 de abril de 1616, em Stratford, com 53 anos de idade, logo depois de ter festejado as núpcias de sua filha mais nova. Nos dois aspetos que, como se costuma dizer, decidem uma vida, ou seja, no casamento e na profissão, parece ter havido decisões rápidas e impulsivas, seguidas de dificuldades e decepções. Seus anos de maturidade parecem repletos de uma sen sação nada agradável da vida, enfrentada, no entanto, com atitudes claras e decididas. Estranhamente, o nexo dos procedimentos de sua vida não deve ser procurado apenas em sua produção literária, mas também na vontade de elevar-se, juntamente com sua família, a um status de próspera aristocracia rural. Como Dickens, Shakespeare aprendeu a conhecer a vida e as pessoas não como um espectador loquaz e passivo e sim participando, seja das mais animadas comédias seja das tragédias. Sua índole robusta preferia errar a não tomar atitude nenhuma, da mesma maneira que Cervantes, o único escritor comparável a Shakespeare no conhecimento da vida, passa a vida irrequieto, ora como secretário de um legado papal ou como soldado nas mais diversas campanhas militares, ora como escravo acorrentado ou como escritor. Foram justamente as experiências alegres de uma juventude movimentada, às voltas com as realidades, que forneceram a esses poetas o material principal de seu horizonte de vida. Dessa forma, também Esquilo e Sófocles adquiriram seu entendimento do mundo na vida ativa de cidadão e soldado; só Eurípides acabou vivendo como literato em sua biblioteca. Ainda podemos acompanhar os fatos de sua carreira que o fizeram adquirir aquela imensa experiência do mundo que se manifesta em seus dramas. Quantas vezes suas criações literárias remetem à paisagem de Stratford em que passou a infância, com suas colinas suaves, com o verde intenso de seus prados e com seus arbustos e pomares, entre os quais se escondiam os vilarejos ao longo do curso sinuoso do Avon.
3. Robert Greene, contemporâneo de Shakespeare, escrito em 1592 (N.T.).
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É essa a paisagem que serve de pano de fundo para o Sonho de uma noite de verão e o Conto do inverno. A literatura e as festas populares, a alegre Inglaterra antiga, lançam seu brilho sobre essa terra. A introdução à Megera domada e muitos elementos das Alegres comadres devem lembrar pessoas e cenas de seus dias de infância e juventude. Em suas caminhadas deve ter ouvido antigas canções e lendas populares. Naqueles anos, gravaram-se em sua jovem alma aberta todas as impressões de um mundo cheio de plantas e animais, entre os quais se movimentava alegremente esse filho de um fazendeiro que era, certamente, também um caçador apaixonado (quem não se lem bra das histórias de suas caçadas nos domínios proibidos de um nobre vizinho?). Foi certamente, também, esse o ambiente que inspirou as inúmeras brincadeiras à custa dos pequenos e limitados camponeses e burgueses que encontramos em seus dramas. No entanto, essa vida risonha também conheceu os ecos do grande passado sangrento de seu país. De Stratford partia a estrada romântica que levava por oito milhas ao castelo de Warwick onde, no pátio do castelo, vagavam, à luz do dia, por entre as torres maciças ou debaixo dos monumentos funerários, as sombras do passado, entre as quais a figura do grande patrono de reis. Algumas milhas adiante ficava Kenilworth que, naquela época, pertencia a Leicester, em cujo serviço trabalhava um parente de Shakespeare. Os comentaristas gostam de imaginar que o menino de 11 anos assistia às grandes festas que o favorito da rainha aí mandava preparar para sua soberana. Mas seja como for, ainda em Stratford, o menino deve ter tido cedo contato com os reflexos da vida presentes na literatura. Nessa cidade cheia de vida, cujas despesas por conta de champanha, clarete e moscatel não eram nada desprezíveis, aconteceram, nos anos de infância e adolescência de Shakespeare, nada menos que 24 visitas de companhias de atores. Tanto Goethe quanto Dickens contam que as figuras literárias se misturaram desde a mais tenra infância com a vida real. “Como é estranho”, lem bra Dickens, “que encontrasse consolo para minhas pequenas mágoas ligando-as a minhas personagens favoritas. Durante uma semana inteira foi Tom Jones (um Tom Jones infantil, uma figura inofensiva); creio que passei um mês inteiro incorporando, sem interrupção, a minha ideia de Rodrigo Random. Na minha imaginação, todos os celeiros da vizinhança, todas as pedras da igreja e cada pedacinho do cemitério guardavam certa relação com os livros, representando algum dos lugares tornados famosos por meio deles.” Melhor do que qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo, essas lembranças exprimem como deve ter sido forte, na juventude de Shakespeare, a influência das figuras saídas das lendas e do palco, bem como das figuras do pas sado que começaram a mover-se diante dele no ambiente histórico de Warwickshire. Há razões consistentes para supor que conheceu cedo, ainda em Stratford, as confusões da vida, e as dificuldades comerciais do pai logo lhe devem ter ensinado as agruras da realidade. Tudo isso haveria de repetir-se mais tarde na vida de Dickens. 327
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Jovem ainda, já travara contato com as experiências do amor e do casamento. Depois foi para Londres. Ele, que em sua juventude nunca olhara para trás, preferindo o ato duvidoso à observação passiva (que diferença em relação à personalidade ponderada e consciente do jovem Goethe que, apesar de toda entrega aparente, sempre soube dominar-se completamente!) e que talvez tenha chegado a Londres com uma série de manuscritos em sua mochila, acabou optando por um projeto de vida baseado na posição de dramaturgo e ator. A companhia do Teatro Globo, à qual se juntou, manti nha uma ligação bastante próxima com a casa real, tendo recebido, durante o reinado do rei James, a patente de “The King’s Players”. Seus sonetos pintam de maneira comovente a nova sombra que esse passo lançou sobre sua vida. O que o atraiu fica claro quando se recorda da paixão que Goethe e Dickens nutriam pelo teatro, ou quando se pensa em Molière e Sófocles. O gênio do ator e do autor verdadeiramente criativo, sobretudo quando possui as inclinações de um Shakespeare, baseia-se no mesmo talento de fantasia que consiste em transformar-se em figuras diversas, a ponto de a palavra do dramaturgo só se transformar em realidade plena pela atuação do ator. Quanto Shakespeare aprendeu com essa profissão! Ao lado dos conhecimen tos ligados ao palco parece ter desenvolvido, como aliás Molière, a capacidade de transformar-se nos mais diversos caracteres, alcançando, nessa área, uma virtuosidade perfeita. Percebe-se no ator que ele é sempre outro, pensando e sentindo ora esse ora aquele papel. O que já havia de inato na natureza de Shakespeare, no sentido de formar um conjunto de indivíduos que enxergam o mundo e a vida das mais variadas maneiras, sentindo-se muitos em um, devia reforçar a posição do ator dentro dele. Essa situação única, que o punha em contato tanto com os círculos mais elevados quanto com os elementos vadios da cidade de Londres daquela época, ofereceu-lhe uma oportunidade única para observar a alternância das contingências da vida humana e os mais diversos caracteres. Sua posição de autor teatral o fez empunhar a pena para lançar no papel as observações que fazia. Em suas conversas com Eckermann, Goethe lamenta, a certa altura, ter ficado em desvantagem em relação ao material fornecido pela própria vida, quando com parado a um Walter Scott. Em seu Wilhelm Meister tivera de valer-se de aristocratas rurais e de atores para dar vida ao romance. Quanto mais refletia sobre a natureza do trabalho literário, mais se ressentia das condições adversas em que trabalhava. Shakespeare escrevia bafejado por uma incrível sorte histórica. O que ele tinha lido em Plutarco sobre Roma, o que o cercava em forma de ruínas do passado da Inglaterra e da era elisabetana, com seus caracteres violentos, com a condução dramática dos negócios de Estado e suas cenas finais sangrentas, tudo isso tomava forma diante do olhar do gênio concentrado no essencial, como uma ordem formada por naturezas heróicas ativas e catástrofes violentas. E tudo isso acontecia praticamente nas ruas, 328
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pelas quais a rainha cavalgava para o Tower, ou no Tâmisa, pelo qual deslizava seu barco real. Shakespeare via todos que faziam a história da época diante de seus olhos, no palco. As cores vivas da vida que se desenvolvera durante a Idade Média, o ele mento pessoal e visível em cada destino e, concentrado nele, o olhar treinado pelos humanistas, naturalistas e políticos: eis a posição de Shakespeare. A tudo isso se une o pouco que sabemos de sua formação. Entre os especialistas em Shakespeare, já se foi o tempo em que se costumava ver nele um gênio natural. Em contrapartida, fica difícil imaginar qual teria sido a sua formação. Quando Ben Jonson lhe atribui um conhecimento rudimentar de latim e limitado de grego, não devemos esquecer que essa afirmação parte de um rival que se vangloria de sua for mação clássica. Ele contentava-se em sentir o hálito da Antiguidade em suas línguas e nas nuances linguísticas de sua literatura, mas lia Plutarco (seu preferido entre todos os autores antigos) e Ovídio em traduções, não se distinguindo nesse ponto muito de Schiller. Certamente leu o Gargantua, de Rabelais, mas parece que já existia na época uma tradução inglesa desse romance. Da mesma maneira, leu Montaigne na tradução de Florio, com o qual estava relacionado. E possível que tenha usado textos italianos no original. Todavia, com certeza, Shakespeare não nutria interesse científico no sentido estrito do termo, nem sentia a necessidade de desenvolver uma imagem coerente dos fenômenos da natureza. Por acaso, temos o direito de submeter cada autor a um interrogatório a respeito de suas convicções sobre a divindade, o futuro da humanidade ou outras questões metafísicas cruciais? A essência do gênio são penetração e concentração. Shakespeare, que via o mundo com os olhos de todos os tipos de ser humano, foi extremamente livre em sua maneira de aprofundar-se nos modos de pensar e nos caracteres de todo tipo. Acredito que lhe teria parecido um cárcere limitá-lo a uma única atitude mental. E verdade que ele se interessava, também, pelas sutilezas da dialética do pensamento, mas só para aplicá-la ao traço intelectual de seus caracteres, como material intelectual do jogo dos afetos, ou como possibilidades a serem exploradas. Apesar de aflorarem nos sonetos e dramas uma ou outra doutrina metafísica, não sabemos até que ponto podem ser consideradas como convicções permanentes. A filosofia com H qual mais se identifica é aquela sabedoria de vida dos romanos, que nos consola e nos ensina a suportar os golpes do destino a filosofia dos humanistas e de Montaigne. A consciência de que a vida é aparência e sonho, por vezes, o eleva acima do caráter trágico que ela possui, uma atitude que também é recorrente na literatura de sua época. Existe outro ponto em que se pode supor uma relação importante entre o gran de autor e a literatura de sua época. A direção já é indicada pela descoberta de seu interesse vivo por Montaigne, realmente decisivo para sua concepção da história. O ponto em questão se refere à análise dos caracteres humanos e dos afetos. Alguém 329
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acredita que as elaborações dos afetos principais que se encontram em seus grandes dramas tenham sido apenas um presente de sua genialidade natural? Seu anseio e seu trabalho de dissecação racional se voltam, sobretudo, para aqueles fatos que o circundavam e entre os quais ele vivia mentalmente, baseado na penetração exclusiva de seu gênio: a natureza do ser humano, a diversidade de seus caracteres e modos de pensar, de seus afetos e dos destinos engendrados por eles. Com certeza, ele se viu influenciado pela nova literatura que o rodeava e que pretendia ensinar a arte de enxergar as mais sutis implicações da estrutura psíquica do ser humano. O poder ilimitado dos príncipes e a vida da corte incitavam à observação dos seres humanos. Era muito importante prestar atenção a esses detalhes para poder sobreviver com dignidade nas cortes. Tudo era pessoal e dependia da arte de decifrar os outros, de apresentar-se a si mesmo de acordo com o próprio interesse. Inúmeras publicações iam ao encontro dessa preocupação. Investigavam-se a fisionomia, a figura, os gestos, para descobrir neles os sinais característicos da índole e dos estados de ânimo. As paixões humanas eram descritas e dissecadas. Por inúmeros canais, essas reflexões sobre a vida chegavam a qualquer um, e Shakespeare privava continuamente do contato com pessoas familiarizadas com e determinadas por essa literatura. Assim se entende sua capacidade de tornar a estrutura dos indivíduos tão transparente que se tem a impressão de ver circular o sangue por suas veias. Além disso, sua reflexão gira constantemente em torno dos grandes nexos entre caráter, paixão e destino da vida humana. Decisivas para seu pensamento são as ideias do humanismo, criado a partir da literatura romana e associado ao núcleo das ideias do protestantismo. Suas experiências pessoais conferem a essas ideias uma nova profundidade. Os dramas de Shakespeare espelham a própria vida. Eles não nos confortam, mas nos ensinam sobre a existência humana, mais do que qualquer outro produto da literatura europeia. Quando desenvolve num material o motivo de sua criação, atém-se, via de regra, ao elemento estranho, aparentemente contraditório, da tradição. Dessa maneira, o material conserva o cheiro da terra da realidade. Ele o interpreta. Consegue imprimirlhe interioridade. Suas personagens guardam frequentemente um quê inexplicável. O espectador deve vê-las da maneira que ele vê as pessoas na vida real: lançando um olhar de fora para dentro. Em parte alguma de sua obra se verifica um movimento em direção a um ideal de homens ou condições futuros. Ele aceita o mundo social que o cerca como uma ordem natural imutável, vivendo em perfeita harmonia com o mundo aristocráticomonárquico da Inglaterra de então. E nesse mundo que se originam os problemas de vida de seus dramas. Seus caracteres são cópias aumentadas daquilo que ele encontrou na vida concreta, aumentadas no aspecto do sentimento de valores que estava presente nessa sociedade. Sem qualquer resquício de crítica, e até com certa satisfação, lança 330
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seu olhar sobre o contraste entre os felizes e dominantes, que não tomam conhecimento dos outros seres humanos, e a aristocracia presunçosa, os ridículos eruditos, aventureiros e embusteiros. E sobre esse contraste que ele constrói a ação e o mundo duplos de seus dramas. É verdade que Hamlet se refere, com grande amargura, à arrogância daqueles que, seguros de sua posição e de seu cargo, olham com desdém para os infelizes, pela lentidão da justiça e pelo desprezo à pobreza. Os sonetos nos revelam que o próprio Shakespeare sofreu com a pressão dessa sociedade aristocrática, tendo em vista sua posição incerta de ator na condição de favorito desse mundo cortês, sem possuir, no entanto, um lugar determinado e as honras da ordem estabelecida. No entanto, ele aceita tudo isso como um destino decorrente dessa ordem da sociedade, da qual de pende, simultaneamente, toda a força e beleza da vida que ele mostra em seus dramas. E essa ordem aristocrática das coisas que determina o sentimento de vida dos seres humanos em Shakespeare. Seus heróis trágicos vivem convencidos de seu poder, e as figuras distintas e risonhas de suas comédias brincam com a vida com a certeza de que esta miséria nunca atingirá a ponta de seus pés. Todas essas personagens pos suem o mais elevado e irascível conceito de si mesmos, respeitando apenas aqueles que levam a mesma vida nobre. É também dessa ordem aristocrática que vem o brilho externo que reveste essas personagens e seus ambientes e sem o qual o efeito dos dramas seria inimaginável. O castelo imponente e sombrio dos Macbeth, cheio de armas; as ruas de Verona margeadas pelos palácios da nobreza que se hostiliza; o cas telo solene do rei da Dinamarca, em cujas salas se misturam misteriosamente o júbilo das festas e o cheiro da morte; as armaduras que retinem, a pompa dos reis, as vestes solenes dos príncipes da igreja: tudo isso eleva suas personagens e os acontecimentos. Seria impossível imaginar a história dos crimes do rei danês, Claudius, de Macbeth, ou de Ricardo III nos aposentos de um castelo atual, e seria maçante transferi-los para os becos das grandes cidades, onde eles ocorrem nos dias de hoje, quando até os atos e destinos dos reis respiram um ar abafado, composto, condicionado por mil circunstâncias decorrentes das necessidades de nossa vida. A hierarquia da sociedade aristocrática daqueles dias continha, para ele, os mais diversos efeitos artísticos de grande impacto. Eu gostaria de destacar apenas um deles. Enquanto a música da ópera dá ao compositor a possibilidade de fazer com que as personagens exprimam simultaneamente, em forma de música, suas peculia ridades, reunindo, ao mesmo tempo, a diversidade de estados de ânimo e caracteres numa unidade de vida e na riqueza da existência de um único momento, esse efeito é negado ao autor dramático. No entanto, o elemento musical de sua criação não nasce apenas da musicalidade interna, irradiada por suas figuras líricas, mas também do efeito global do todo, produzido pela memória do espectador. A medida que o 331
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drama avança, manifestam-se, um após o outro, os contrastes no sentimento de vida e na singularidade das pessoas. Na memória do espectador, essa diversidade de disso nâncias e harmonias é coordenada, de modo que as sequências de sons se misturam, criando uma sensação de riqueza e de variedade múltipla da vida. Dispondo de uma diversidade tão grande de matizes e de contrastes tão fortes dentro de sua sociedade, Shakespeare foi capaz de produzir, com especial ênfase, precisamente esse efeito. Finalmente, impõe-se uma relação entre a tendência geral do espírito inglês e o caráter da obra literária de Shakespeare, relação esta que se furta, no entanto, a qualquer definição ou justificativa mais {frecisa. O empirismo e a correspondente inclinação indutiva desenvolveram-se na Inglaterra com a mesma consistência com que essa nação se lançou à tarefa de elaborar sua Constituição. Desde os tempos de Bacon, nem Platão nem Aristóteles exercem alguma influência impositiva sobre as tendências do pensamento desse país; com uma despreocupação incomparável e are jada, tanto o observador simples quanto o pesquisador metódico, quando se dedicam ao estudo dos fatos naturais e sociais que os cercam, praticam a percepção. Mesmo que predominassem entre os filósofos e teólogos outras tendências, determinando a vida das ideias de círculos mais amplos - como, por exemplo, aconteceu na época de Shakespeare em que o platonismo detinha a maior influência - nada conseguiu alterar a inclinação empírica do espírito inglês. A essa corresponde, certamente, a maneira de ver o mundo que se manifesta na obra literária de um Shakespeare, Bem Jonson, Smollet, Fielding, Richardson, Dickens, Thackeray e Walter Scott. Tendências literárias opostas - que se encontram, sobretudo sob influência alemã, em Byron, Shelley e Coleridge - nunca corresponderam ao espírito inglês, fato pelo qual nunca conseguiram tampouco exercer uma influência decisiva e duradoura. Resumindo todos os traços da criação literária de Shakespeare, vemos que estes iluminam, pelo contraste, a orientação básica da obra literária de Goethe. De pois de ter destacado, na introdução, a posição de ambos no contexto da literatura europeia, acrescenta-se, neste ponto, como complemento, a diferença que acabamos de esmiuçar. Shakespeare viveu principalmente em função da experiência do mundo, estendendo todas as forças de seu espírito ao encontro daquilo que acontecia a seu redor, no mundo e na vida. O dom mais próprio de Goethe consistiu em externar os estados do próprio ânimo, o mundo das ideias e os ideais presentes nele. O primeiro concentrou-se, com todos os sentidos e forças, no cultivo, no desfrute e na elabora ção de todo tipo de vida e de caracteres de todas as classes. O segundo não parou de olhar para dentro de si mesmo, e aquilo que o mundo lhe ensina, ele o quer usar, em última análise, para elevar e aprofundar seu próprio eu. Para um, o maior desafio de sua vida consiste em produzir figuras externas a si mesmo; para o outro, a última meta se baseia em fazer da própria vida e da própria personalidade uma obra de arte. 332
GOETHE E A FANTASIA POÉTICA
R ousseau Na Europa moderna, foi Jean Jacques Rousseau o primeiro a criar, com sua Nova Heloísa, uma obra de arte que atuou vitoriosamente no caminho do desenvol vimento de figuras que brotam da riqueza de sua própria vivência interior e de seu pensar, sem dispor, no entanto, de um talento fora do comum ou de um hábito de percepção ou observação de outras pessoas e condições. A vida desafortunada desse homem poderoso é marcada pela incapacidade de compreender qualquer pessoa em sua verdadeira essência. Nas circunstâncias complicadas da Paris daqueles anos, que transbordava de naturezas problemáticas e de um conhecimento humano sofisticado, essa limitação configurou-se como uma terrível desgraça. Os seres humanos eram, para ele, aquilo que seu ânimo ardoroso lhe simulava. Assim vivia totalmente intro vertido. Por essa razão, é muito importante para o estudo da fantasia acompanhar a história de formação de seu grande romance. Suas confissões e suas cartas nos dão essa possibilidade. Tinha 44 anos quando se mudou, em 9 de abril de 1756, para a ermida do parque de La Chevrette. Mais tarde ele diria: “Foi só nesse dia que comecei a viver.” Ali, na tranquilidade completa da alma, rodeado pelo encanto da natureza e da solidão, sentiu como sua fantasia criava, com pujança irresistível, suas figuras, mesmo contra seus princípios e sua vontade, já que escrever romances contrariava profundamente suas próprias convicções. O processo fundamental baseou-se em transformar em figuras consistentes e palpáveis as névoas difusas de seus sonhos - com suas ideias de felicidade, de situações e figuras que estavam de acordo com seus sentimentos venturosos e sua paixão profunda. E um processo que se faz presente na obra de todos os grandes escritores; Miranda e Hermione, como corporificações de sonhos e desejos, não fogem a essa regra. A diferença é que, em Rousseau, esse processo é dominante, a ponto de prevalecer no romance inteiro, desde os primeiros rascunhos. Sua fantasia já se manifestava dessa maneira em sua juventude. No quarto livro das Confissões, ele conta que, em meio à natureza, se sentia a qualquer momento inspi rado para essas criações oníricas: “Meu dSmínio estende-se livremente sobre toda a natureza, meu coração, correndo de um objeto a outro, reúne imagens maravilhosas a seu redor e fica extasiado com sensações deliciosas. Quando me entrego, então, ao prazer interior de exprimi-las em pensamentos, consigo imprimir-lhes o vigor do pincel, o frescor das cores e a força da expressão. Dizem que tudo isso pode ser en contrado em minhas obras, mesmo que tenham sido escritas já no declínio de meus anos.” O período de vida em que ele, então, se encontrava conferiu a esses sonhos um poder descomunal. “Via-me no declínio da vida, assaltado por uma enfermidade dolorosa, achando que estava me aproximando do fim, sem ter me deleitado plena333
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mente com nenhuma das alegrias a que aspira meu coração, sem que as sensações vivas depositadas nesse coração se tivessem expandido, sem ter saboreado ou pelo menos experimentado jamais aquela doçura inebriante que enchia minha alma, mas que, sem objeto, permaneceu comprimida, podendo manifestar-se apenas em meus suspiros.” “Morrer sem ter vivido” - uma ideia de dor comovente. Nesse estado de espírito, ele encheu, com suas fantasias, a natureza solitária e encantadora que o cercava, as árvores majestosas, as ervas e as ericáceas vermelhas uma cena como que criada para a realização de todos seus sonhos de felicidade. “Eu a preenchia de seres de meu agrado, criava a meu gosto uma idade dourada, recordando experiências do início da vida, ligadas a doces lembranças, e colorindo com cores vivas as imagens de felicidade pelas quais ainda podia sentir saudades.” Era isso; imagens dos dias de sua juventude forneciam-lhe o material para suas fantasias, projetando uma pintura que incluía toda a felicidade que podia desejar ainda. Ele explica, também, como acontecia isso: “Imaginava o amor e a amizade, os dois ideais de meu coração, nas imagens mais encantadoras e as enfeitava com todos os encantos do belo gênero que eu sempre venerara. Preferia pensar em duas amigas como amigos, porque quando estas se encontram a si mesmas costumam ser muito mais amáveis. - Povoava essa pintura de figuras que, apesar de não serem perfeitas, eram, no entanto, de meu agra do. A uma delas dei um amante, para o qual a outra se comporta como uma amiga carinhosa e até mais do que isso. Não admitia cenas de ciúme ou rixas, porque acho difícil imaginar qualquer sensação desagradável. Encantado com meus modelos gentis, eu identificava-me com o amante e amigo delas até onde fosse possível. Só que fiz dele um jovem amável, cheio de todas as virtudes e imperfeições que eu sabia serem minhas próprias.” Transportou a cena para o lago de Genebra, ligado havia muito tempo a seus sonhos de felicidade: “Quando o desejo ardente de uma vida doce e feliz, que foge de mim, mas para a qual me sinto nascido, incendeia a minha imaginação, escolhe como cenário sempre a região ao redor de Lausanne, o lago de Leman, essas paisagens encantadoras.” Como as sombras de Homero, suas figuras bebiam a vida “de algumas lembranças da juventude.” Outros traços vieram dos romances de Richardson, nos quais todas as almas carinhosas da época viviam como que numa realidade enobre cida. Finalmente foi a contribuição de um material histórico que completou essas imagens - a história de Abelardo e Heloísa, que outrora tivera lugar nessa Paris e suas redondezas. Começou, então, a lançar no papel cartas dispersas, sem sequência e sem nexo. “Quando me pus a interligá-las, surgiam dificuldades enormes. Não pa rece crível, mas é verdade: as duas primeiras partes foram, quase que por completo, escritas dessa maneira, sem um plano pensado e definido, antes que pudesse prever a tentação de fazer disso tudo uma obra ordenada.” 334
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No inverno de 1756/1757, quando a estação o confinou dentro de casa, começou a colocar as páginas em ordem, para transformá-las numa espécie de romance. Foi quando entrou em sua vida a Condessa d ’Houdetot, a realização de seus sonhos e encarnação daquela sombra que ele chamara de Julie. Assim começou, na primavera do ano de 1757, a segunda época da concretização de seu romance, que haveria de durar até sua conclusão e publicação. Essa época já não se reveste do mesmo interes se para nós, ainda mais tendo em vista que já não é possível identificar os detalhes da reformulação pela qual passou a sua obra. A mudança principal, depois dessa experiência nova ou da maneira como a elaborou em sua fantasia com sua falta de conhecimento do mundo, consiste na substituição de sua relação com o antigo ideal de moça pela relação com uma mulher casada. Parece também ter havido, em várias personagens, um desdobramento daquilo que ele encontrou de heterogêneo dentro de si, um processo que ficará muito nítido depois em Goethe. Na época heróica alemã, já encontramos duas obras que trazem o mesmo ca ráter de criação literária pessoal. Estudando a poesia narrativa românica, a partir da qual se desenvolveu nossa epopeia cavalheiresca, adquirimos uma compreensão mais profunda em relação a esta. Mesmo que nos falte ainda o consenso sobre as fontes de nossos autores épicos cavalheirescos mais geniais, Wolfram von Eschenbach4 e Gottfried von Strassburg5, ficou, pelo menos, constatado que é possível destrinchar, com um alto grau de probabilidade, o procedimento criativo de ambos. A subjetividade perpassa todo o poema de Gottfried. Nas palavras maravilhosas que usa para festejar os autores épicos da cavalaria (exceto o maior deles) e seus autores líricos, ele celebra, à maneira de Goethe, a literatura que renova em todos a juventude, a coragem e a alegria de viver: era esse o ideal da literatura, ao contrá rio do relato feroz e obscuro de Wolfram. Ele não tinha familiaridade com o ideal cavalheiresco; tem-se a impressão de que se serviu dessa matéria porque via nele o recipiente de seu interior iluminado e até de estados e experiências pessoais. Em duas passagens do Tristão, encontro indícios referentes à maneira pela qual o próprio autor experimentou o prazer e o sofrimento do amor: no início e no famoso hino que descreve a vida amorosa na mais profunda solidão da natureza. Qualquer outra in terpretação contrária pareceria, nesse contexto, um jogo de provocação do autor com seus leitores. Uma sensação segura do desfrute pleno, uma inclinação nítida para o aproveitamento sagaz, e até matreiro, da vida, o desprezo pelo caráter das mulheres e a entrega deliciosa a seus encantos, tudo isso empresta a sua obra o feitio da novela
4. Wolfram von Eschenbach (cerca de 1170-1220), autor da epopeia “Parsifal” (N.T.). 5. Gottfried von Strassburg (por volta de 1200), autor de “Tristão e Isolda” (N.T.).
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romântica: “Enquanto a vida lhe sorrir, deve ele viver no meio dos vivos.” A essas características, Gottfried une uma grande profundidade psicológica e uma descrição de estados do coração que denotam uma rica experiência. Justamente o sentimento básico da obra, que já se anuncia na introdução e que está presente durante todo o texto, ou seja, o de que até o sofrimento do amor é felicidade, é autenticamente germânico. Essa relação dá ao poema um ar de mistério e individualismo. Partindo desse misto sentimento fundamental da vida, o todo é elaborado numa ação simples e transparente. Como a obra de Rousseat, baseia-se aqui também totalmente no interesse pelo casal de amantes e seus destinos. Atração lúdica, o prazer do gracejo arguto, uma filosofia de vida muito tolerante, ódio mal disfarçado contra o poder da igreja e sua interferência na ordem jurídica, zombaria mal disfarçada dos ideais do cavalheirismo - servindo de preparação para as obras de Cervantes e Ariosto - , tanto mais incisivo quanto mais associado a uma percepção superior da vida, manifestada de maneira lúdica, gosto especial pelo lado do direito de toda situação e pelas for mulações de uma espécie de dialética jurídica: todos esses traços, associados a uma soberania subjetiva do sentimento e da personalidade, se destacam na epopeia. A capacidade poética muito superior de Wolfram manifesta-se em suas obras de maneira muito mais diversificada. Mais nitidamente do que em Gottfried, reconhece mos nele a personalidade altiva, viril e poderosa do cavaleiro, apenas remediado em seu castelo tranquilo na Francônia, que não se curva diante dos príncipes e que quer ser amado por sua dama não apenas por causa de suas canções, mas por seu cavalhei rismo corajoso e combativo, assemelhando-se nisso a seus protagonistas. A própria introdução ao Parsifal anuncia que o leitor será confrontado com um ideal que é o da mais bela vida cavalheiresca que arde na alma solitária do indivíduo esquecido pela sorte. E esse ideal é descrito em sua evolução que deve ser vista, em certo grau, como o reflexo das lutas internas daquele que criou essa obra. Sua epopeia já contém em si o romance de formação, e, com a mesma arte do Wilhelm Meister, são colocados ao lado do protagonista caracteres contrastantes e complementares. Essa unidade de vida, que Wolfram descreve desde o torpor juvenil, passando por dúvidas e aventuras aleatórias até chegar à entrega consciente e varonil à mais alta vocação do cavaleiro a serviço de Deus, não tem comparação em toda a literatura medieval que conhecemos. E impossível imaginá-la sem uma experiência pessoal profunda e uma vivência refletida. Assim, nossos dois grandes autores épicos intro duzem no material romântico pré-existente sua experiência pessoal e uma visão de vida autônoma e coerente. Voltemo-nos agora a Goethe.
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Goethe 1
A natureza cobriu Goethe com toda a abundância de seus dons, com beleza, vitalidade e genialidade criativa. Seu desenvolvimento ocorreu numa época em que a vida econômica, a segurança jurídica da vida civil e a liberdade religiosa experi mentavam uma fase de progresso contínuo. As amarras da vida familiar e da divisão social, herdadas do primeiro período do protestantismo, começavam a dissolver-se. Os indivíduos ganhavam mais espaço para se movimentarem e sua vida sentimental tentava seguir novos rumos. Essa libertação da personalidade era ainda reforçada pela influência dos escritores franceses e ingleses. Foi nesse ambiente que surgiu nossa literatura. Seus ideais eram os da existência pessoal: amor, amizade, humanidade, concebidos de acordo com a mentalidade alemã, o apego pela terra natal, o gosto pela natureza. A primavera desse movimento literário envolveu Goethe. Ele próprio herdou, da índole de seu povo, desenvolvida pelos francos estabelecidos no curso superior do Reno e às margens do Meno, em cidades livres e nos domínios mais sua ves de senhores eclesiásticos, o dom de sentir a própria individualidade com mais prazer, de aceitar de bom grado a dos outros e de aproveitar o momento presente. A posição de sua família entre os patrícios da velha cidade imperial lhe conferiu autoestima, segurança e a possibilidade de movimentar-se livremente. Uma educação nada autoritária, fora das restrições e da disciplina da escola, permitiu-lhe o desen volvimento livre de suas forças mentais, de sua fantasia, mas também da tendência de abandonar-se completamente a seus estados de espírito. O primeiro impulso de uma pessoa desse feitio era lançar-se na corrente da vida, experimentá-la a fundo e expressar essa vivência. Sua sensibilidade única o tornava capaz de experimentar uma felicidade infinita, mas também um sofrimento sem limites. Durante a juventude se via, por vezes, totalmente dominado pelas paixões. E conhecida a cena em que ele, ainda menino, ficou a tal ponto comovido com o destino de Margarida que, preso em casa, se lançou ao chão para regar o assoalho com suas lágrimas e, recusando-se a deixar o quarto, se entregou completameftte às fantasias sobre o sofrimento da pobre menina, a ponto de ficar ele próprio gravemente enfermo. Em Leipzig, tomado pela enfermidade, chegou a abandonar seu quarto para assistir à amada no teatro; lá mes mo o acometeu uma febre tão intensa que “pensei que ia morrer naquele instante.” As atitudes apaixonadas dessa época acabaram provocando uma pneumonia. Mesmo assim escreve alguns dias depois dessa cena, no auge de sua paixão amorosa, a um confidente: “Digo-lhe o que sinto, o que me passa pela cabeça - e, se estiver no fim, peço a Deus que não ma dê.” Mesmo movido por uma paixão extrema, ele se 337
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dá conta de que não se satisfaz com uma relação de vida individual; na verdade, ele aspira a uma vivência em plenitude e liberdade. Uma empatia quase feminina com qualquer tipo de existência e a fantasia que a intensifica em sua imaginação fazem com que ele se sinta envolvido por qualquer situação de vida. Em todas, ele compre ende toda a felicidade que as acompanha e seu valor para a elevação da existência. Aproximando-se de toda natureza que lhe é afim, ele a idealiza e aumenta seu próprio sentimento existencial, percorrendo essa relação para descobrir toda sua importância e beleza. Mesmo assim, nenhuma consegue segurá-lo. Todo amor vem acompanhado da consciência secreta de que não pode transformar-se em prisão. Em toda amizade surge diabolicamente o sentimento de superioridade. Depois, quando chega a hora da separação, acompanhada do sentimento de culpa, participa dolorosamente da dor alheia em sua fantasia. Essa força e essa alegria de experimentar a fundo as situações da vida são tão fortes nele que nem sente a necessidade de uma liberdade de espírito que esteja além ou acima delas. Esse é o traço de seu ser que o liga à natureza, atuante como esta, ora para o bem, ora para o mal. Ele não quer nada além dela. Totalmente entregue à paixão, mas também totalmente racional em relação à consciência daquilo de que necessita, influenciando as circunstâncias e dominando as pessoas - é assim que ele desenvolve dentro de si todo tipo de força, menos aquela força moral abstrata que se opõe, combativa, às circunstâncias e ao mundo. E assim que se explica sua admiração pura pela grandeza moral de Schiller. Ela é tão pura porque ele próprio não sente necessidade dessa força moral. Da mesma maneira explica-se a admiração do artista Schiller por esse homem que é todo natureza e age como a própria natureza. Aqueles que se aproximaram dele em sua juventude tiveram a impressão de lidar com algo imprevisível, demoníaco. Ele acabou determinando seu destino e in fluenciando sua vida. Essa experiência não ficou restrita às mulheres, ela se estendeu também a Kestner6, quando Goethe resolveu publicar repentinamente seu Werther, a Wieland7, quando se divulgou a peça escandalosa Deuses, Heróis e Wieland, le vantando a nova geração contra ele; mais tarde haveria de acontecer o mesmo com Lavater8 e, bem mais tarde, com Herder, que se corroeu na sinistra casa paroquial atrás da igreja em Weimar, opondo-se ao espírito dominante. No entanto, ele próprio sofreu profundamente com a vida e consigo mesmo. A poderosa estrutura poética exigia fortes comoções. Como estas faziam parte regular dos recursos de sua economia psicológica, nem chegaram a roubar-lhe o sono. Mas a mesma estrutura o tornava
6. Johann Christian Kestner (1741-1800), amigo de Goethe na época em que este escreveu o romance “Werther” (N.T.). 7. Christoph Martin Wieland (1733-1813), poeta alemão (N.T.). 8. Johann Kaspar Lavater (1741-1801), teólogo suíço, autor de “Physiognomische Fragmente” (N.T.).
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também extremamente suscetível de sofrimentos. Não era um simples jogo de fantasia quando o jovem Goethe andava nutrindo intenções de suicídio. Em certos períodos, sentia-se impelido por uma tremenda inquietude. “As pessoas andam dizendo que a praga lançada contra Caim pesa sobre mim.” São, portanto, dois estados de espírito fundamentais que perpassam os anos de sua juventude e suas primeiras obras. Ele não conseguiu firmar-se em nenhum lugar e em nenhuma relação. Continuamente experimentava a irrupção do demônio em seu interior, que procura a vida como tal, não esta ou aquela parte dela. “É no momento da união feliz que as almas criadas uma para a outra mais se estranham.” Por isso surge constantemente aquela outra disposição de ânimo que procura um lugar secreto em que possa encontrar a paz, porque quer esquecer as exigências infindas envolvidas numa relação estreita. Nesses momentos, sente saudade de uma existência limitada, de um polo de tranquilidade e segurança em sua existência. É o traço metafísico de seu espírito que, primeiro, se manifestou em forma de religiosidade e, depois, no estudo científico da natureza e na filosofia. A satisfação plena desse anelo só haveria de vir com a entrega ao todo e uno que aquieta a sofreguidão do querer inerente à existência individual. Qualquer situação de vida devia parecer estreita a uma natureza desse tipo. Inicialmente, a casa paterna lhe parecia um peso, em seguida a sociedade cheia de regras de Leipzig. Tentando livrar-se, no círculo da geração jovem, dessa pressão pelo ideal ousado de uma humanidade nova e forte, o autor do super-homem atraiu a si as almas da juventude, e isso tomou ainda mais constrangedora a estreiteza pessoal de sua existência. O ambiente paralisante e limitador da cidade imperial ultrapassada e a insatisfação com a posição de advogado desocupado na casa paterna tornaram-se insuportáveis. Somente em Weimar ele encontrou uma esfera de atividade que cor respondia a seu anseio pela largueza, assumindo a posição de amigo, conselheiro e ministro do duque, trabalhando na administração do território e participando da po lítica da coalizão de príncipes, que se referia às relações entre o ducado e os demais estados alemães, além de inserir-se no contexto maior da ordem europeia. Apenas nesse momento pôde dispor daquela liberdade de movimentos nobre e independente que, naquela época, só competia ao mundo da corte, no bom e mau sentido. Em suas próprias terras, adquiriu o sentimento de integração com a natureza e experimentou, pela primeira vez, um amor que enchia sua alma de quietude. Durante longo período, suas cartas transmitem um sentimento de felicidade pura e plena. Todavia, com o passar do tempo, a limitação se fez sentir novamente. Das esperanças de uma grande atuação, poucas se tinham transformado em realidade. Seus trabalhos literários ficaram relegados a um segundo plano. O líder da nova geração literária viu-se desbancado por Schiller. Sua fama quase já fazia parte do passado. Voltou, então, a ampliar no vamente sua área de atuação, de influência e de satisfação. As atividades na Itália, 339
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a aliança com Schiller, um novo período criativo dão a sua existência em Weimar a verdadeira penetração mais ampla. A partir dessa pequena capital provincial, passa a dominar a literatura de sua nação e, trabalhando sem cessar, tem a satisfação de ver sua influência estender-se à literatura universal. Entretanto, em seu âmago, a relação de Goethe com a vida continua inaltera da - por mais que sua vida se amplie e a passagem para uma existência mais ativa provoque mudanças e desencadeie acontecimentos. Durante os primeiros dez anos de sua atividade pública em Weimar, o esforço de resolver a vida, de aproveitar todos os meios para formar seu próprio eu, permanece sempre no centro de sua existência. Em nenhum outro período de sua existência mostra tanta sensibilidade para com as emoções em seu interior, nem tanto anseio pela elevação de seu ser, conforme provam suas cartas para a senhora von Stein. Agindo, ele desenvolve sua natureza e aprende a conhecê-la melhor. Ele aproveita a nova riqueza de imagens da vida que lhe é oferecida, sobretudo em suas viagens pelas cortes. Observa as situações internas produzidas pelas novas circunstâncias. Mas todas essas vivências só ganham seu va lor último e máximo na medida em que reflete sobre elas e as compartilha com essa mulher experiente e sábia que preenche toda sua alma. O mesmo fenômeno se dá na Itália, onde cada objeto é apreendido por ele com sentimento de prazer ao intuí-lo com consciência do proveito que este lhe traz. Também nesse momento, a formação do próprio eu e a expressão de seu ser na criação literária continuam ocupando o centro de sua existência. Para ele, tudo aquilo que existe nesse país é colocado a serviço dessas duas metas. Em seu autorretrato, resumiu toda sua existência como inalterada a partir do fim do século. O exercício e o desfrute das artes plásticas, atividades ad ministrativas e estudos científicos continuaram ocupando um espaço amplo em sua vida. Mas ele os praticava num contexto maior, orientado para a formação universal, dedicando-se precipuamente à literatura como sua verdadeira vocação e explorando todos os meios desse ofício. A luta consigo mesmo terminara. Vivia consciente de sua personalidade e seguro de seu valor, entregando-se a experiências amplas da vida, das quais desfrutava com satisfação, em contato com os grandes homens de todos os tempos e em relação atemporal de sua existência pessoal, plenamente desenvolvida, com as forças eternas. 2
Desse tipo de comportamento surgiu rapidamente a reflexão constante sobre a vida. Não se tratava da curiosidade de um espectador. Com sua ilimitada sensibilidade tinha de aprender a ordenar sua vida, a mantê-la num estado mais tranquilo, tanto nos momentos de felicidade plena e de importância, quanto em suas limitações e 340
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seus sofrimentos. Dessa maneira formava-se na base de sua existência um elemento de reflexão que se aprofundava e se ampliava cada vez mais. Vemos em suas cartas como ela se eleva de sua vida. Sobretudo as cartas dirigidas à senhora von Stein são únicas no sentido de mostrarem como um ser humano se apercebe de si mesmo, dos outros, do mundo e do destino. Cada parcela do mundo que ele vê lhe comunica algo sobre a força e o sentido da vida. Todo ser humano que se destaca é, para ele, a expressão da natureza humana numa determinada personificação. Toda experiência se torna um ensinamento sobre um traço da própria vida. Com uma sensibilidade sem par, ele sente a relação com a natureza na troca das estações, na claridade da manhã e no crepúsculo da tarde. Ele é atento aos movimentos nas profundezas secretas de sua alma e, a partir deles, entende a existência humana e seu desenvolvimento. Tem sempre presente certas relações de cunho muito geral, que perpassam nossa existência, como, por exemplo, a relação entre o movimento incansável e a calma e a estabilidade, entre a força e o arbítrio da individualidade e o todo que a determina, entre o imutável dentro de nós e o desenvolvimento, entre a originalidade da pessoa e as influências externas. E, finalmente, aquela relação que, de maneira mais profunda e geral, determina a sensação de nossa existência: a da vida dirigida à morte, pois a limitação de nossa existência pela morte é decisiva para nosso entendimento e nossa avaliação da vida. É característico para a obra de Goethe que essa relação - cuja tragicidade paira como uma sombra sobre toda a existência nas obras de Sófocles, de Dante e de Shakespeare - seja, por ele, como que empurrada para a linha do horizonte de suas considerações sobre a vida. - Toda a reflexão sobre a vida brota constantemente dela própria, abrangendo, por isso, ao mesmo tempo, o nexo vivido e o valor de todo estado, de toda personalidade e de toda situação, isto é, seu significado. Trata-se de uma interpretação da existência a partir dela mesma, independentemente de qualquer religião e metafísica. Esse elemento de reflexão sobre a vida é o solo de onde nasce a literatura. O inesgotáveZ apelo exercido por sua obra, especialmente pelo romance Wilhelm Meister, pelas Afinidades Eletivas e as memórias Poesia e Verdade, deve-se a essa sabedoria de vida e a arte de viver que a permeiam. Personalidade, o ambiente e sua formação estão no centro das considerações de Goethe sobre a vida. Sua visão das coisas humanas depende sempre de sua própria experiência de vida. Perscrutando, a partir dela, o passado histórico, teve a impressão de que a vida foi sempre a mesma em todos os tempos. Em toda a parte, ele reencontrou as mesmas modificações da natureza humana, as mesmas mudanças estranhas no desenvolvi mento dos caracteres, os mesmos estados de ânimo que ele próprio experimentara. Desse modo, toda figura e toda vivência do passado tinham para ele algum significado por força de algo que coincidia com sua própria experiência. No Judeu Eterno, Cristo retorna para este nosso mundo; quando o viu pela primeira vez, este lhe parecia 341
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“cheio de confusão maravilhosa” e “cheio do espírito da ordem”. Desejoso de livrarse dele, retira-se, para depois ficar novamente enredado por ele; agora, voltando, parece-lhe que “jaz ainda totalmente imerso no mesmo caldo, como naquela hora em que, em plena luz do dia, o Espírito das Trevas, senhor do mundo velho, lho havia apresentado brilhando à luz do sol.” Goethe sente-se atraído por Prometeu, Maomé e Fausto, e o conteúdo psíquico dessas figuras representa, para ele, uma variante atemporal da natureza humana. O teatro de bonecos político-moralistas e os fragmentos afins não são para ele representações do presente, mas do agir humano imutável. Quem não se lembraria do comentário de Fausto em relação à observação de seu aprendiz sobre a alegria “de penetrar no espírito das épocas”? “Meu Caro, as épocas passadas são para nós como um livro fechado a sete selos. O que vocês chamam de espírito da época é, na verdade, seu próprio espírito, no qual as épocas se espelham.” As peças Goetz von Berlichingen e Egrnont nos permitem lançar um olhar mais profundo sobre o pensamento histórico de Goethe. Ambas representam as circunstâncias históricas em seus detalhes. Elas nos mostram um quadro muito vivo da realidade do passado. No entanto, nos protagonistas encontramos a vivência do próprio Goethe, e as circunstâncias históricas que agem sobre eles estão descritas segundo o estado de espírito de um observador que reconhece, com satisfação, tam bém nos tempos idos, a ação humana de sempre. É justamente esse o aspecto que nunca deixa de fascinar no Goetz: as aventuras registradas pelo velho da mão de ferro passam diante do espectador sob forma de imagens populares concretas, introduzidas com aquele sentimento de energia e vitalidade alemã transbordante que as criou, e por isso não necessitam de um conhecimento objetivo de seu nexo em si ou com as forças históricas a seu redor. Egmont foi escrito na maturidade do pensamento histórico; cenas como o diálogo entre Guilherme de Orange e o protagonista, entre a regente e Maquiavel devem ser as mais profundas manifestações de cunho histórico de Goethe, elas são como que um extrato de suas experiências da vida na corte e a serviço do Estado. Mas o próprio herói é uma personalidade humana livremente formada e, por essa razão, não plausível em seu contexto histórico - ele é no fundo a-histórico. Em volta dele, pouco se percebe do poder das ideias libertárias protestantes e civis que tiveram influência efetiva durante a revolução holandesa. A grande vida histórica não se faz presente nessa peça. Foi Schiller que, em seus dramas, conseguiu captar sempre o momento histórico universal, criando assim o novo drama histórico. Analisemos, então, os trabalhos históricos de Goethe. Neles, ele deixou para trás o método pragmático, porque chegou ao entendimento mais profundo de que apenas a totalidade das forças psíquicas é capaz de apreender o objeto histórico. Por essa razão resolve aproximar-se dele como um artista. Mas a história como ciência tem mais um lado: o objeto histórico só pode ser entendido a partir do todo do qual faz
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parte. Suas relações causais e seu significado exigem que o historiador tenha sempre presente o nexo histórico universal. Por isso, precisa distanciar-se de seu objeto, considerando-o um mundo em si, em relação ao qual procura assumir uma atitude imparcial. Só assim poderá vislumbrar os movimentos que percorrem todas as partes da história. Ao contrário desse distanciamento do observador em relação ao mundo histórico, Goethe conserva a relação natural do ser humano com o objeto histórico, projetando neste toda sua experiência de vida e transformando-o, dessa maneira, num objeto do presente. Ele nutre admiração e se deixa instruir. E, como a personalidade ocupa o lugar central de sua visão da vida, ele a procura principalmente no passado. Se há uma área em que é possível comprovar o progresso do espírito, é a do conhe cimento da natureza, mas a história da teoria das cores constata em seu percurso, segundo Goethe, apenas “altos e baixos, avanços e retrocessos, em linha reta ou em espiral.” Ele observa de maneira genial a relação mutável entre o ser humano e os objetos da natureza, o poder pessoal na formulação das teorias, mas ele não enxerga a necessidade que determina os graus do progresso do conhecimento da natureza. A mesma atitude se verifica nas descrições históricas, em que ele não se interessa pelo contexto mais amplo em que uma nova ordem das coisas influencia os fatos, embora esta não lhe possa ficar inteiramente desconhecida. Novamente, ele vai ao encalço das mesmas formas, situações de vida e sentimentos que ele consegue identificar nas situações bélicas e civis que o rodeiam. Nem a Revolução Francesa provoca nele uma grande alegria pela libertação da humanidade, nem o domínio napoleônico lhe causa uma dor profunda e permanente por ter levado à derrocada de tudo aquilo que existia como força política na Alemanha. Em compensação, um espírito como esse tem de possuir uma capacidade imensa para a descrição biográfica. Poesia e Verdade é um marco na história da reflexão biográfica do ser humano sobre si mesmo e sobre sua relação com o mundo. Em síntese, a visão histórica é, para Goethe, no fundo, a continuação de suas reflexões sobre a vida em direção ao passado, em que ele capta as formas duradouras da humanidade e de suas circunstâncias, o que equivale, em última análise, a uma interpretação universal da própria vida. A apreensão das formas recorrentes da existência individual e de seu desenvolvimento dominava sua alma a tal ponto que a humanidade e seu progresso, o Estado como valor intrínseco e seu poder pareciam ser para ele meras abstrações e fantasmas. 5
É dessa camada de pensamentos que emanam as criações literárias de Goethe. Sua base é a vida e sua interpretação, seu centro é a personalidade. Dessa maneira estabelece-se a relação entre vivência e ficção, que se mostrará decisiva para a obra de Goethe. 343
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O mundo humano existe, para o escritor, como existência que ele experimenta dentro de si mesmo e que ele procura entender à medida que se defronta com ela do lado de fora. No entendimento, a visão de vidente do verdadeiro escritor se amplia para o infinito. Isso porque, ao entender, ele transfere toda a sua experiência interior para a outra existência, mas, ao mesmo tempo, a profundeza alheia e insondável de outra grande existência, ou de um destino intenso, o faz ultrapassar os limites de seu próprio ser. Ele entende e dá forma a algo que ele nunca poderia experimentar pessoalmente. E assim que as figuras de Coriolano, de César, de Antônio adquirem, na fantasia de Shakespeare, um grau de realidade coerente e inteligível que nenhum historiador seria capaz de alcançar. Também Goethe possuía esse dom em grande medida, conforme comprovam seu Goetz von Berlichingen e seu Duque de Orange. Ligada a esse dom encontrava-se sua capacidade genial de apresentar as façanhas do mundo, desde as joviais brincadeiras dramáticas de sua juventude, até a segunda parte do Fausto, ou de descrever um segmento da existência com suas figuras e circunstân cias típicas, como o fez, por exemplo, em Hermann e Doroteia e na Filha Natural. Todavia, o fato de sua representação estar repleta de um sentimento abrangente da vida, que provém do fundo de sua alma, continua sendo uma das características de sua criação, sobretudo dos contos. Ora ele se manifesta em forma de ironia superior, ora acompanha, como em Wilhelm Meister, o curso dos acontecimentos como a melodia da própria vida. Mas toda essa força que lhe é própria só se manifesta, mesmo em sua plenitude, quando a lenda, a história ou um fato atual se transformam em reci piente e símbolo de sua experiência pessoal. Em Werther, Prometeu, Fausto, Tasso, Ifigênia, o material lhe oferece a possibilidade de intensificar a própria experiência. Outro recurso que também aumenta o efeito provocado por figuras como Fausto e Mefisto é a confrontação irônico-prazerosa destas com a agitação do mundo. Mas o conteúdo profundo e novo que ele, por meio delas, comunicou ao mundo continua jorrando diretamente de sua própria vivência, de onde passa a percorrer as veias de Werther, de Fausto, de Tasso e de muitas outras figuras. Não se trata, em absoluto, da observação dos processos interiores e de sua representação. Tudo o que aprendemos pela observação de nós mesmos é confinado em limites estreitos, e até a reflexão cien tífica sobre a vida psíquica ganha muito menos com esse método do que se costuma supor. Pois, quando dirigimos nossa atenção para nossos próprios estados internos, estes geralmente desaparecem. O procedimento do autor que manifesta a própria vi vência é totalmente diferente. Ele se baseia no nexo estrutural entre a vivência e sua expressão. Nesse ponto, o que é vivenciado se transfere completamente para dentro da expressão. Nenhuma reflexão autoconsciente separa as profundezas da vivência de sua representação em palavras. Toda a modulação da vida psíquica, as passagens suaves dentro dela, a continuidade do processo, tudo isso se torna acessível ao entendimento por meio da expressão. É nesse fato que se baseia o significado visionário do poeta 344
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lírico em seu sentido mais amplo. Fundamenta-se também na mesma relação entre vivência e expressão o fato de que a música instrumental abre as profundezas da alma não registradas por nenhuma observação. E um dom próprio de Goethe exprimir sua vivência particular em toda sua plenitude. Sua fantasia linguística, de que falamos anteriormente, deu-lhe os meios para tanto. Manifestando na poesia, no drama e na narrativa de forma exaustiva sua vida psíquica incomparavelmente rica e movimen tada, criou uma literatura da alma que nos ensinou a compreender de maneira mais profunda, pura e verdadeira tudo o que é humano. Esse é outro traço da importância singular de nosso maior escritor, quando é visto no contexto da literatura europeia e comparado com seus principais escritores, ou mesmo quando estudamos os efeitos que provocou. Ele é o maior poeta de todos os tempos, seu Fausto nasceu desse lirismo, e todas suas criações épicas e dramáticas mais importantes estão repletas do som e do ritmo de sua vida psíquica. Como é abrangente a vivência pessoal que esse espírito universal nos deu a conhecer! Desde o início, ele viveu com plena consciência de si mesmo. Nunca se perdeu tão completamente em um objeto a ponto de que não pudesse sentir a si próprio e sua relação com ele. Qualquer pedaço de papel de sua juventude dá uma imagem de seu estado, mostrando-o com sua força fervilhante em alguma situação. Da mesma ma neira, suas poesias juvenis são a expressão natural e desinibida de seu sentimento de existência daquele determinado momento. Quando o encontramos, mais tarde, em sua viagem à Itália ou debruçado sobre seus estudos científicos ou históricos, percebemos que ele os apresenta normalmente, de maneira que podemos participar de sua relação com eles e sentir a energia alegre com que se entrega à existência objetiva das coisas. As condições históricas fizeram com que se empenhasse em desenvolver sua personalidade ao máximo. Toda a literatura daquela época estava direcionada para a intensificação de nossa existência. Já faziam parte do passado as disputas teológicas pelas quais Lessing tivera de conquistar seu ideal de vida. A nova geração rompeu as barreiras que ainda tinham limitado a concepção da vida e do mundo desse grande homem. Companheiros do jovem Goethe, liderados por Herder, levavam uma vida livre do peso das tradições. A determinação para desenvolver todas suas forças em atividades e prazer sustentava-os. O indivíduo queria em si próprio, sem barreiras, experimentar, pensar e gozar a vida coin suas alegrias e sofrimentos. O que distinguia, porém, sua criação literária pessoal da de seus companheiros, como da de Lenz9 ou Klinger10 por exemplo, elevando-a acima destas, foi a insaciabi
9. Jakob M. Lenz (1751-1792) (N.T.). 10. Friedrich M. Klinger (1751-1831) (N.T.).
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lidade de sua busca pela realização de sua existência e de tudo o que era humano em sua pessoa e em sua vida; o anseio de assimilar pela observação, pelo entendimento e pela vivência tudo o que o cercava em forma de forças espirituais, homens impor tantes e grandes movimentos. Com a rapidez mental que lhe era própria, ele captava nos livros o que lhe convinha, deixando o resto de lado. Juntamente com Voltaire, foi o homem mais universal do século XVIII. Todavia, enquanto a universalidade de Voltaire consistia na aplicação do raciocínio a todos os objetos e tarefas, a de Goethe era fruto do entendimento, revivenciando tudo que é humano. Assim como todo entendimento se baseia na vivência, da mesma maneira crescia nele a expansão da própria existência. Uma afirmação dele diz que a estrutura moral e literária de sua vida tinha por base o fato de ele ter procurado encontrar, em cada manifestação espiritual, seu elemento original, divino e indestrutível. Seu entendimento partia da relação que estabelecia entre o que era estranho e o que fazia parte de sua própria vida, e, assim, o que tinha entendido se transformava em momento de seu próprio desenvolvimento. Tão rico era seu ser e tão forte era sua necessidade interior de conferir amplidão sem limites a sua existência, e objetividade a seus conhecimentos, que integrou, inclusive, em sua vivência, os movimentos científicos e filosóficos de sua época - o poder libertador do Iluminismo e da crítica bíblica, o sentimento re ligioso do círculo formado em torno de Zinzendorf11, de Jung-Stilling12 e Lavater, a antiguidade grega de Winckelmann, a renovação de Spinoza, a nova concepção dos povos de Herder. Inclui, também, a teoria da espontaneidade do espírito humano, de Kant - com sua recomendação de reflexão sobre si mesmo, sua separação entre cognoscível e o incognoscível, seu entendimento da relação entre natureza orgânica e a criação do artista -, e, finalmente, as novas descobertas da história natural, além do conceito da educação estética do ser humano para a vida ativa, de Schiller. Era como um rio que se tornava cada vez mais largo e forte à medida que recebia novos afluentes. Nesse espírito, o conhecimento de si mesmo e o conhecimento do mundo formavam uma coisa só. Por isso, a única grandeza de sua criação literária pessoal está no fato de estar nela intimamente unido o que há de mais pessoal com tudo o que, partindo de movimentos gerais, se transformara em elemento de seu ser. Justa mente pelo fato de os maiores fenômenos espirituais terem se transformado, dentro dele, em vivência, estes puderam ser integrados a seu próprio destino, movendo-o e abalando-o. Somente assim tornou-se possível a maior criação literária depois de Shakespeare: Fausto.
11. Grupo de pietistas reunido em tomo de Nikolaus Graf von Zinzendorf (1700-1760) (N.T.). 12. Jung-Stilling, ou seja, Johann Heinrich Jung (1740-1817) (N.T.)
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Considerando a vivência pessoal nessa acepção abrangente, não pode haver dúvida de que ela deve ser vista como o fundamento das criações literárias de Goethe. Sua autobiografia expressa isso claramente. Encontramos nela o poeta colocado diante de uma ordem social em que havia lugar somente para os destinos sentimentais e as paixões particulares. A miséria dessa ordem social é discretamente sugerida. Simultaneamente, vemos surgir nas mentes jovens a convicção de que a verdadeira literatura precisava de uma matéria importante, que pudesse ser tratada de maneira naturalista. “Mas, para encontrá-la [essa matéria], eu me vi obrigado a procurar tudo dentro de mim mesmo. Quando precisava de uma base, de um sentimento ou de uma reflexão autênticos para minhas criações literárias, tinha de buscá-los em meu próprio peito.” “Assim teve início aquela orientação da qual não consegui desviar-me mais em toda a minha vida: transformar em imagem ou poesia aquilo que me alegrava, me atormentava ou, ao contrário, me ocupava, para chegar, assim, a certo entendimento comigo mesmo, seja no sentido de corrigir meus conceitos das coisas exteriores, seja para apaziguar meu próprio interior. Ninguém precisou mais desse dom do que eu, que me sentia lançado de um extremo a outro por minha natureza. Por isso, tudo o que se tornou público a meu respeito nada mais é do que fragmentos de uma grande confissão.” Essa direção é reforçada mais tarde, conforme se pode ler no nono livro [de Poesia e Verdade], pela psicologia empírica, em voga nesse período, e pela obra de Wieland. Ambas recomendavam “penetração nos espaços ocultos do coração humano” e “o conhecimento das paixões que em parte sentíamos e em parte intuíamos em nosso peito, outrora recriminadas, devíamos considerá-las agora como apreciáveis e dignas.” Eis uma passagem de importância máxima! Ela mostra a profundidade com que o próprio Goethe, lançando um olhar sobre sua vida passada, sentiu o poder da situação histórica que o impeliu para a criação de uma literatura pessoal. No entanto, é necessário fazer um reparo. Quem seria capaz de explicar como se ajustam com a situação geral o talento pessoal, o temperamento próprio das pessoas da região dos rios Meno e Reno e o isolamento da cidade pátria em relação às lutas de poder daquela época? Basta ver Schiller, que*se decidiu pela outra vertente daquela época: as lutas de poder entre os grandes Estados e, ligada a estas, a vontade impetuosa de organizar a sociedade de uma maneira mais livre, ou seja, o mundo da ação. Com que ovações entusiásticas eram recebidas as obras de Schiller! O caminho de Goethe era calmo, pois adentrava profundezas últimas, as mesmas em que se encontravam, naquela época, nossa música e filosofia. Essa orientação poética fundamental das obras de Goethe passa, então, por mudanças dignas de nota. Até a conclusão de Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, em 1796, todas suas obras poéticas têm como origem suas vivências pessoais. Ele já fala a esse respeito enquanto está trabalhando nelas, e mais claro ainda é seu 347
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testemunho em retrospectivas feitas em anos posteriores. O processo criativo é o mes mo na maior e mais importante parte dessas obras. Um estado emocional é vivenciado intensamente, acompanhado de toda a situação externa e de tudo aquilo que o cerca em forma de ideias, estados e figuras. E, enquanto um determinado acontecimento externo, apropriado a ser o recipiente dessas experiências do coração, se confronta com o escritor estremecido em seu interior, forma-se, nessa fusão, o embrião de uma obra literária que já carrega em si todos os traços característicos, o ambiente total e as linhas do todo. Por essa razão pôde afirmar que cada obra era, para ele, um ato de confissão, um modo de libertar-se interiormente dos estados de ânimo que pesavam sobre ele. Dessa maneira, todas as criações desse tipo são o próprio Goethe em meio a suas figuras, semelhante àquela visão que ele tem de si mesmo, de maneira misteriosa, na poesia Ilmenau, em que se vê confrontado consigo próprio e dirige a si a palavra. Os temas são hauridos de sua própria existência. Em suas cartas e em suas poesias, encontra-se um estado de ânimo que se desvanece com a situação que o gerou. Nas obras mais extensas, trata da vida, nas mais diversas formas, que costuma reportarse a uma personagem que recebeu sua vitalidade do sangue que jorra do coração do próprio autor. Essa relação entre o trabalho literário de Goethe e a vida passa por uma transformação gradual, sobretudo a partir do momento em que começa a dominar, a partir de Weimar e juntamente com Schiller, a literatura alemã. A essa altura, sua vida passou a ser mais tranquila. A plenitude e força das vivências estão diminuindo e a soma das experiências objetivas teve um aumento extraordinário. Os ideais do futuro são substituídos pela síntese dos resultados do passado. Os estudos na natureza fazem aumentar a objetividade de seu entendimento. Por mais profundamente que as circunstâncias individuais continuem influenciando sua produção literária, esta se baseia agora na soma das vivências, no estado de espírito diante do mundo que delas resultou. Essa sabedoria de vida, que caracteriza a atitude do ânimo maduro diante da vida, anima e espiritualiza as grandes obras épicas da segunda metade da vida de Goethe. A força acumulada e duradoura em sua alma é o sujeito de sua poesia lírica didática, e é também ela que faz do Fausto, Parte II, uma imagem do próprio mundo. 4
No entanto, a partir de agora, a vivência, a experiência e o ideal de vida distan ciam-se do Goethe anterior, consolidando-se numa visão do mundo - e esta necessita de uma fundamentação científica. O próprio fato de nossa literatura ter-se desenvol vido numa época voltada para as ciências leva a essa necessidade. Lessing, Schiller e os românticos deram à sua visão de mundo uma fundamentação científica. Essa necessidade deve ter sido sentida por Goethe, que possuía a fantasia mais poderosa 348
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dos tempos modernos! Na medida em que sua imaginação via o mundo poeticamente, ele entrou em conflito com a ciência ao seu redor. Fez-se necessário, então, defender sua essência, e isso só poderia acontecer de forma universalmente válida por meio de uma visão de mundo baseada nas ciências. Deparamo-nos, dessa maneira, com um novo aspecto das circunstâncias que exerceram influência sobre a obra de Goethe. Entre as literaturas da Europa, em meio a um poderoso movimento espiritual que agitava todas as nações culturais, a nossa foi a última a desenvolver-se. A ciên cia moderna, constituída no século XVII, lançou no século XVIII as bases para a libertação do homem do peso da tradição religiosa, para atingir o conhecimento das relações causais entre a natureza e o domínio sobre ela, o entendimento do nexo mais profundo dentro do mundo histórico-espiritual e as teorias capazes de orientar a trans formação da sociedade. Dessa forma, a ciência fez o ser humano atingir a maioridade. As classes instruídas ansiavam, com entusiasmo, pelo aumento da força individual da personalidade e por sua libertação das barreiras herdadas da antiga ordem monárquicoaristocrática. Foi sob a influência desse movimento que surgiu nossa grande literatura nacional. Por isso, seu caráter acabou sendo bem diferente daquele da literatura na cional anterior dos outros povos modernos, que produziu a era europeia da fantasia, avançando pelos primórdios da era científica adentro. Quando nossa literatura teve início, a concepção da realidade já se baseava na razão, e a linguagem era definida por uma prosa orientada nas ciências. Lenta e penosamente, nossa literatura precisou criar seus meios de representação artística. Em Lessing, conseguiu pôr em prática uma nova arte dramática de ação completa, de cunho fortemente realista; em Klopstock encontrou sua energia poética e a força de expressão que abala a alma até as últimas profundezas, e em Wieland conquistou, finalmente, a graça, o fluxo épico suave e a linguagem própria para expressar leves mudanças na superfície da vida. Nesse seu avançar custoso, nossa literatura conseguiu obter uma vantagem sobre a da Itália, da Inglaterra e da França dos séculos XVI e XVII: sua grandeza de conteúdo. Ela tinha sido precedida por um imenso trabalho científico e filosófico, tanto assim que estava intimamente ligada ao trabalho espiritual de Winckelmann, Lessing, Mõser, Herder e Kant. Esses homens criaram umasnova concepção do mundo espiritual. E, na época de Goethe, esses estudos receberam fundamentação em contato com as descobertas astronômicas, geológicas e biológicas que, desde Buffon, inseriram o ser humano dentro do nexo da evolução do universo; na Alemanha, foi Herder que, partindo de Kant, e ao mesmo tempo em oposição total a ale, trabalhou entre nós nessa direção. A tudo isso Goethe se mostrou extremamente receptivo, assimilando tudo o que houvesse de afinidade com sua própria maneira de ser. Ele intensificava e unia tudo aquilo de que ele se apropriava. E assim teve a felicidade de poder acompanhar ativamente, durante uma vida longa, o desenvolvimento do espírito alemão em suas 349
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manifestações literárias, filosóficas e científicas mais elevadas, reunindo em si os diversos momentos desse desenvolvimento, como conseguiram fazê-lo antes dele Sófocles, Michelangelo e Sebastian Bach, em suas áreas mais restritas. O modo de reunir esses momentos era determinado por sua própria maneira de assimilação. Ao lado de uma capacidade ilimitada de absorção, seu procedimento mental era totalmente simples e penetrante. O centro de suas forças psíquicas era for mado pela intuição, pela fantasia e pela aptidão poética. A base de seu procedimento consistia sempre e em toda parte na percepção, vivência e compreensão da realidade. Predomina nesse procedimento um processo intuitivo que avança da relação do todo às partes. Nas ciências, essa atitude manifesta-se como um pensamento objetivo e, na literatura, como potencialização da realidade segundo a lei que lhe é inerente. Desde o início, mostrou-se pouco inclinado e disposto a fazer uma separação entre as coisas vivas e as teorias que explicam aspectos parciais da vida, nem gostava das intermi náveis argumentações dos filósofos e da forma como racionalizavam o pensamento. Assim, vivia sempre na união das coisas e na relação estrutural das partes com o todo. A natureza era, para ele, um conjunto vivo que transmitia força necessária para lhe dar forma, pois assim a vivenciava como fantasia criadora dentro de si próprio. Desde a juventude foi assim, mas com o tempo transformou-se em consciência me tódica e em forma científica. Da mesma maneira que seu pensamento objetivo e seu comportamento artístico estavam intimamente ligados entre si, enxergava, em toda parte e das mais diversas maneiras, que Deus, a natureza, os seres humanos e sua recriação do mundo de Deus constituíam um sistema vital. Inicialmente, essa intuição estava como que envolvida num sentimento obscuro, místico, panteísta, que só veio a aclarar-se no decorrer de seus estudos filosóficos e científicos. Por volta de seus vinte anos, tendo retornado doente de Leipzig, sentiu-se atraído por um grupo religioso formado em torno de Zinzendorf. Esse contato o fez aprofundar-se nas ideias de Paracelso13, de Helmont14, dos hereges da história da igreja, de Arnold15, deparandose com um sistema gnóstico de evolução do universo. Nessa época, simpatizava-se com a intuição de uma força vital universal que jorra e se desenvolve com impulso de desdobrar-se em diversidade. Mais tarde, em Strassburgo, foi se distanciando, passo a passo, da forma religiosa dessa visão, em que tinha encontrado a vitalidade universal e a paz para sua mente irrequieta, para deparar-se, então, com as figuras de Prometeu, Maomé, Werther e do primeiro Fausto, sob diversos estados de ânimo, com a mesma visão de uma força viva e universalmente atuante que combinava com
13. Paracelso, ou seja, Philippus von Hohenheim (7-1541), médico e filósofo suíço (N.T.). 14. Jan B. van Helmont (1577-1644), médico e químico neerlandês (N.T.). 15. Gottfried Arnold (1666-1714), teólogo e historiador da igreja alemão (N.T.).
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sua fantasia observadora e que só recebeu de fora, entre outros de Spinoza, o reforço de uma nitidez maior. Desde criança, esse gênio da fantasia via o mundo de forma poética. Nas pedras, na água que cai, nas plantas, ele sentia a vida que se exprime em todo movimento e toda forma. Antes que lançasse no papel seu primeiro verso, já estava cercado por um mundo poético. E este mundo foi crescendo na medida em que o jovem enchia montes de papel com seus versos. Que encantamento de animação da natureza, de sua própria visão dela, da percepção da energia que se expande no mundo encontramos nas canções de sua estada em Leipzig! Saindo, então, do âmbito da fase literária de esclarecimento, deu-se conta da vida que é uma só em todo universo. Com essa mudança, desapareceram o ambiente pastoril e os deuses da obra projetada que, até aquele momento, tinham habitado sua visão poética da natureza. Em seu lugar, começou a destacar-se com nitidez o nexo puro e total da natureza, alterando-se sempre de acordo com sua mente ágil e ativa, mas permanecendo sempre o mesmo. A influência mais profunda sobre a visão goethiana de mundo veio, porém, de sua concepção poética do mundo humano. Essa concepção era natural e necessária para uma mente que se baseava na interpretação imparcial da vida por ela mesma. E, sobretudo, a essa forma de interpretação que se deve seu efeito duradouro pelos tempos afora. Quem lança um olhar retrospectivo sobre sua vida enxerga, em seus eventos principais, incentivos ou obstáculos para o desenvolvimento de sua força, de sua alegria de viver, do valor de sua maneira de ser. Assim, ele compreende a importância de cada momento da vida pregressa. E a visão natural do curso da pró pria vida. E esta visão é a base da representação poética da vida. Ninguém, além de Goethe, a realizou de maneira mais pura, sem a ingerência de princípios metafísicos ou religiosos a respeito dos valores da vida. Toda personalidade se afigurava a ele como a realização de um valor próprio por meio do nexo causal. Shaftesbury e Herder o confirmam nessa sua visão. Como vivesse totalmente nela, esta exerceu um efeito inconsciente e involuntário sobre sua vivência da natureza, manifestando-se em toda experiência de seu nexo. Por essa razão, a natureza era, para ele, a realização de uma força e significação inerente dentro de um nexo causal. Nela age e se realiza um sentido. “O âmago da natureza não está, por acaso, no coração dos homens?” Dessa forma, ele sentiu-se atraído pelo panteísmo desde a juventude. Werther, Prometeu e Fausto proclamam “a vida interior ardente e sagrada da natureza.” Seu ensaio Die Natur (A Natureza), de 1782, seja como for que ele tenha surgido, exprime a visão do mundo que liga Goethe a Shaftesbury e Herder. A natureza é animada por uma força divina que lhe é inerente. Ela é única e igual em toda parte e atua como a artista mais perfeita, fazendo uso de uma técnica que lhe é própria. E a fórmula do novo panteísmo é essa: “Ela dissociou-se para deleitar-se consigo própria. Conti nuamente, faz surgir novos seres capazes de desfrutá-la, porque é insaciável em seu 351
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desejo de comunicar-se.” O mesmo ponto de vista é expresso nas reflexões anotadas durante a leitura sobre o grande pensador Spinoza, no inverno de 1784-1785. Ser, força e perfeição são a mesma coisa. É a filosofia da afirmação do mundo que, em oposição ao desprezo do mundo que predominava na Idade Média, foi fundada por Giordano Bruno e formulada em conceitos precisos por Spinoza. Entretanto, Goethe não necessitava do raciocínio abstrato desses pensadores; sua atitude ante a natureza era intuitivo-reflexiva. Para ele, o pensamento só podia ser válido na medida em que se baseia na percepção. Dessa maneira, era necessário, para ele, distinguir entre aquilo que podia ser investigado e o que não podia; essa distinção acontece no ensaio sobre Spinoza. Para Goethe, a própria força infinita é inacessível à capacidade de compreensão do espírito humano, em razão de suas limitações. Dirigia suas investigações, então, exclusivamente às manifestações observáveis. Desde seus tempos de estudante, sua fantasia, orientada pela visão, focalizan do o que era visível, “nascida para ver e dedicada à visão”, o levara às pesquisas científicas que lhe permitiram lançar seu olhar sobre a tecnologia da natureza, cujo conceito fora fixado por sua visão do mundo. Essa tecnologia atua nas leis de for mação da constância, da intensificação e da polaridade. Ela produz formas típicas da natureza e as faz desenvolverem-se. Foi da presença constante desses princípios naturais em sua mente que nasceram suas famosas descobertas biológicas. Ele cons tatou, naturalmente, que as formas da natureza surgem, num processo contínuo, da força divina que está no mundo. Todavia, seu interesse verdadeiro se prendia àquilo que pode ser observado, às formas típicas em que a natureza desdobra seu conteúdo e às leis segundo as quais as formas típicas se realizam. Nesse sentido, ele avançou pelo caminho do pensamento objetivo até chegar à compreensão da significação do universo, que se manifesta nas formas estruturais da vida. Por isso não existe, segundo ele, nem interior nem exterior da natureza, não há separação entre o que acontece e o sentido daquilo que acontece, nenhuma disjunção entre natureza e espírito: o todo uno - “um mar cujo fluxo gera formas potencializadas”. A partir dessa concepção da natureza, ele pôde reconhecer a essência das artes plásticas, em uma visão futuramente aprofundada por Schelling. Nelas, a fantasia conduz o elemento típico das formas da natureza à representação pura, dando continuidade à criação inconsciente da natureza na esfera da consciência. Essa visão permite-lhe, da mesma maneira, encontrar a solução para o mistério da possibilidade de um tipo de conhecimento que, naquela época, provocava debates sem fim entre os filósofos. A natureza, uma totalidade que se realiza em partes, é uma coisa só, com atividades de um modo de pensamento que procede da relação do todo com suas partes. Até onde alcança essa relação, o pensamento confunde-se com seu objeto. 352
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Se o pensamento intuitivo de Goethe, totalmente fundamentado no sentimento da unidade do universo, se revelou extremamente fecundo e inventivo na ciência or gânica, não teve o mesmo sucesso em relação às ciências naturais exatas que lhe eram completamente estranhas e inacessíveis. Nessas ciências, o intelecto analisa o con teúdo intuitivo dos fenômenos e constrói objetos que não são encontrados diretamente na experiência. Foi o destino histórico de Goethe que fez com que ele desprezasse e combatesse as ciências naturais mecanicistas, sem que pudesse impedir, no entanto, seu progresso irrefreável. Em consequência disso, a física de sua Teoria das Cores ficou insustentável, enquanto a parte fisiológica acabou servindo de fundamento para a óptica fisiológica de Johannes Müller. O próprio Goethe, esse gênio visual, deliciou-se em seus experimentos ópticos com os fenômenos da luz e da cor, comunicando-se com esse elemento mais puro da vida terrena da mesma maneira que os fiéis entram em contato com seres divinos. E assim conservou inabaláveis a legitimidade da intuição e a beleza poética do mundo ante as abstrações incolores da ciência. Para Goethe, é impossível separar da natureza o mundo do espírito e a ação do homem dentro dele, uma vez que formam o centro da organização humana. Nesse mundo, a intuição sensível já não pode servir-lhe de orientação. Por essa razão, nem procurou valer-se das tentativas de seus contemporâneos para compreender o sistema do mundo histórico-social, nem da psicologia pragmática, do sistema de Hegel ou da nova ciência histórica. Preferiu expor-se à atuação dos homens e das coisas sobre si mesmo e, agindo, aprendeu a conhecer-se a si próprio e o mundo. A objetividade de sua visão baseou-se tão somente na pureza, isenção e universalidade com que procedeu. E assim que a diversidade das personalidades individualmente dispostas tornou-se visível para ele. Por meio delas concretizam-se as formas naturais da exis tência humana - os sexos, as idades, as peculiaridades de cada tipo, as formas de desenvolvimento e declínio. Da mesma maneira, a sociedade subdivide-se em classes sociais, profissões e funções políticas, espalhando-se nas mais diversas condições de vida. Em toda parte, ele constata coisas imutáveis, necessárias. Destacam-se grandes relações em que se baseia o nexo do mundo histórico-social. A natureza nos predispôs à riqueza e à harmonização das forças, cada uma das quais, inclusive os instintos, tem seu próprio valor. Em cada indivíduo, %las estão dispostas de forma própria. “Siga a lei pela qual é determinado; você precisa ser como você é, não pode fugir de você mesmo.” Agindo com consistência incansável a partir dessa base, o ser humano con segue dar forma à sua personalidade, que é o maior valor próprio do mundo. “O povo, o servo, o vencedor, todos admitem a todo o momento: a maior felicidade dos filhos desta terra está na personalidade.” E toda ordem social tem a missão de incentivar as personalidades a uma atividade livre que seja adequada ao bem geral. Dessa maneira, o socialismo, dentro dos limites de classe, conforme proposição de Wilhelm Meister 353
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em suas viagens, encontra nas associações livres um meio adequado para estabelecer um nexo estável em meio à mobilidade constante da vida profissional moderna. Mas, nesse jogo de forças, é a partir de seu interior que o ser humano alcança a segurança e a tranquilidade em meio à ação, quando se entrega ao nexo universal em que se integra também seu agir. Resumindo, podemos dizer que a missão do ser humano é agir com alegria e consistência, de acordo com essa intuição do significado da vida. Mas até mesmo essas vagas alusões a um sistema mostram-se demasiadamen te abstratas, duras e vazias para poderem revelar a sabedoria de vida de Goethe. E qualquer tentativa, no sentido de fixar em conceitos ou até num sistema essa visão de vida dos espíritos leves e flutuantes, tira-lhes o brilho e a luz, de modo que restam somente tristes sombras. Nesse ponto, a teoria não pode ser separada do processo a partir do qual nasceu, nem os ensinamentos de vida podem estar separados daquele que os profere, nas relações da vida, a multiplicidade de significados, da mesma maneira com que se viu confrontada a alma de Goethe, infinitamente variada e ma tizada como a própria vida - eis seu poder visionário, sua sabedoria. Ela transcende moralidade e atitude estética, porque a moral abstrai da totalidade de tarefas da vida uma meta ou regra, cuja realização constitui valor para nós. E a atitude estética já pressupõe, ela própria, a compreensão do significado da vida. Essa sabedoria é uma arte de viver, e ao mesmo tempo é mais do que isso. Ela é o ponto de partida de uma força indescritível, que leva a um agir resoluto, a uma visão positiva da existência na terra, a um entendimento da vida por si mesma. Esses ensinamentos, ele os adquire tanto junto aos túmulos de Mignon e Otília quanto à luz plena do dia. A esfera do sondável caminha para o insondável, porque não há nada de fixo e desconectado nessa mente. O ser humano coloca sua missão de vida numa relação com a intuição das questões últimas que lhe agregam a realização de sua tarefa. Essa é a origem da religião e de todo tipo de fé ou crença em realidades últimas. Uma linha muito clara separa, dessa fé que ultrapassa qualquer experiência, a interpretação da vida e a definição da missão do ser humano. Essa fé é subjetiva e relativa em sua origem e em seu valor. Ela muda com o decorrer da idade, e até pode variar ao mes mo tempo e na mesma pessoa, dependendo da religião da alma em que se manifesta. Como artista, Goethe considerava-se um panteísta, como naturalista era um politeís ta, e como ser moral ele tendia a uma fé num Deus pessoal. Mas, uma vez que nos transformamos “em místicos na velhice”, ele acaba por adotar e ficar confortável com artigos de fé que, de acordo com sua expectativa otimista de que nossas necessidades e o estado do mundo podem ser harmonizados, afirmam a orientação vinda do alto para a vida humana, enteléquias mentais e a imortalidade da incansável atividade de vida. Atualmente, Goethe significa para nós esse entendimento da vida a partir dela própria e sua alegre afirmação. Da mesma forma que ele procura descobrir o sentido e 354
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a significação da vida dentro dela própria, ele procede também em relação ao mundo. Qualquer acontecimento ou fato é visto na relação com o todo harmonioso. Sua poe sia concilia-nos com o mundo e o transfigura. Nos diálogos que foram preservados, deparamo-nos com uma fé inabalável e feliz no mundo como um sistema valioso e significativo, associada a uma satisfação e um humor de patriarca, que lembram, por vezes, as conversas de Lutero à mesa. Partindo desse centro de sua visão do mundo, ele estende-se para todos os lados. Quanto mais velho fica, mais intensamente se manifesta nele a necessidade de subordinar mais e mais fatos a esse todo que está vivo à sua fren te. Essa capacidade imensa de visualização parecia ter vindo ao mundo para submeter cada fato à sua observação, e sua morte nada mais é do que o cessar, por ordem da natureza, de uma operação que em princípio poderia ter prosseguido indefinidamente. Seu olhar é sempre puro, sincero e límpido. Outra vez, quanta diferença em relação a Voltaire, o maior soberano sobre o espírito europeu do século XVIII, antes de Goethe! Esse ser maravilhoso que num dia se apoderou de Newton para entender a natureza, que no outro momento se lançou ao estudo de Bolingbroke para revolucionar a história, que parece olhar para todos os lados para descobrir e utilizar todo e qualquer movimento em seu redor - um Proteu, que é sempre outro, nunca ele próprio, porque sabe esconder inteligentemente aquilo que ele é atrás de algo que é mais do que ele próprio, que tem uma visão mais penetrante, que pensa com mais nobreza e distinção que ele próprio; o Voltaire que dialogou consigo mesmo é outro quando se dirige a seu público europeu. Com Goethe é o contrário: em tudo o que ele inventou e pensou encontramos sempre o mesmo olhar puro e insondável. Em seus pensamentos mais recônditos é o mesmo que nos fala em Ifigênia. Seu pensamento sobre a vida que nasce da experiência, sua ciência e sua literatura não destoam daquilo que ensinam. Em meio às circunstâncias simples que o cercavam ainda era possível desenvolver sua personalidade em todas as direções e apreender a existência de forma natural e serena. 5
Esse nexo de um pensamento eficaz apoiado na experiência é a base da obra literária de Goethe. E ele que determina o surgimento de seus temas políticos, a ela boração de suas fábulas, seus caracteres e sua forma interna, e é nesse nexo que se fundamenta também o desdobramento de sua poesia. Era necessário que a orientação constante de sua fantasia consistisse em elevar a realidade vivida ao reino da poesia. Nos anos de sua juventude, suas conversas esta vam repletas de imagens e parábolas; ele dramatizava “o que acontecia de importante na vida.” Essa visualização permanente de suas vivências foi apenas reforçada pelo uso de símbolos universais ou por sua inserção em processos históricos de seu tempo. 355
FILOSOFIA E EDUCAÇÃO: TEXTOS SELECIONADOS
Surgiram assim, da fusão dos fatos de sua vida pessoal com os grandes movimentos a seu redor, as figuras extremamente produtivas de Prometeu, Fausto, Werther, Wilhelm Meister, Ifigênia e Tasso. Foi esse fator que determinou a forma interna de sua obra literária. A matéria-prima dos acontecimentos, dura e rude em si, é completamente refundida e purgada no processo formativo da fantasia, que só deixa sobrar o que é necessário à expressão pura e simples da vivência e de seu significado. As meras facticidades são consumidas pela fábula e as éasualidades desaparecem na composição dos caracteres. Surge, então, diante de nós a simples personificação de um psiquismo significativo. Das profundezas da temporalidade, sua literatura traz à luz um mundo novo de processos psíquicos, a começar pela nova atitude de desafio titânico até à nova empatia fervorosa com a natureza. Goethe é o primeiro autor moderno que não descreve os fenômenos terríveis das paixões e sim o ser humano como um todo, em sua relação com as forças eternas a seu redor e em seu sofrimento oculto com a vida e com as pessoas. Nesse ponto, todos os autores mais recentes são seus discí pulos. Sua fantasia peculiar e poderosa passa, então, a dar a homens e coisas uma visibilidade que não se confunde com uma realidade inconveniente: uma existência nitidamente definida num mundo ideal distante. Sua genialidade linguística singular, que tem suas raízes na força ingênua da linguagem expressiva de sua Francônia natal e que foi lapidada pelo exercício constante, pela literatura da época - com sua valorização da estética - e pela redescoberta das grandes obras poéticas do passado, forneceu-lhe os meios para a representação de todos os matizes dos afetos da alma. A esse aspecto juntou-se uma vantagem perfeitamente peculiar, ou seja, o exercício contínuo e diversificado das artes plásticas e o contato mais íntimo com suas obras. Desde cedo, envidou esforços no sentido de “perceber com exatidão o exterior dos objetos.” “O órgão que mais me fez apreender o mundo foi a vista.” Viveu entre pin tores e, ainda criança, já “via um quadro em qualquer lugar que olhasse.” A pintura mais antiga o inspirou a ver as cenas da vida de forma pitoresca - no sentido de uma transformação do mundo exterior segundo as leis das artes plásticas para produzir os efeitos que lhe são próprios. Seu maior antecessor foi, nesse sentido, Cervantes que deve ter sido influenciado pela grande pintura tanto na Itália quanto em sua terra natal. Essa faculdade inata e cultivada eleva todo o mundo exterior ao nível da beleza, a começar pela cena do jardim do primeiro Fausto até Hermann e Doroteia e à transfiguração de Fausto. E também o elemento psíquico se vê alçado à altura do belo. Como ele se interessa por tudo que tem vida e como mostra uma profunda compreensão e tolerância em relação a tudo que é humano, aparece em todos os seres seu valor intrínseco e, ao mesmo tempo, sua limitação própria. Um último toque de beleza recebe esse mundo interior e exterior pela arte da apresentação, da estruturação e do estilo. Esta dá a cada obra a forma que lhe é adequada, que pode ser totalmente 356
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nova, como se pode ver no Fausto, no Wilhelm Meister e em Hermann e Doroteia. Nela, como, aliás, em seu próprio ser, fundem-se a permanência no estado singular e o progresso do todo. A natureza dessa fantasia une-se à norma e ao modelo de Lessing para transformar o objeto em movimento e a rigidez em vitalidade interior, de modo que novas circunstâncias façam também parecer novos os personagens. Isso faz com que a unidade da vida psíquica não se manifeste em qualidades fixas e sim numa lei intrínseca, que estabelece a ligação entre os momentos da vida, formando, por assim dizer, a melodia de sua existência. Goethe é o escritor da beleza, assim como Rafael é seu pintor e Mozart seu compositor. Seu desenvolvimento literário é comparável ao crescimento das plantas. Tirando do solo o que lhe é homogêneo, ele o assimila segundo as leis de seu ser, e as esta ções da vida passam por ele. As criações de sua primeira juventude ainda se moviam, despreocupadas, nas formas em voga naquela época. Mas a matéria para sua peça pastoril Os Cúmplices, e para as canções leves e lúdicas de sua estada em Leipzig, já fazia parte de suas experiências de vida, e em todos esses gêneros já superava seus antecessores alemães. Desse primeiro período, destaca-se, em seguida, o segundo que se estende desde Strassburgo até os primeiros anos em Weimar. Nessa fase, Goethe deu sua forma máxima aos vagos anseios da nova geração por grandeza. Deixando para trás os reis e os vassalos de Shakespeare, elegeu como seu objeto o homem genial que se deu conta de sua importância no decorrer do século XVIII: Prometeu, o artista criador; Maomé, o gênio religioso; Fausto, com sua busca sem limites por conhecimento, poder e prazer; Werther, em que a força máxima da vida emocional se consome solitária no contraste com a realidade. Esse novo mundo literário encontrou sua expressão num estilo próprio que destacava os momentos mais significativos da vida e os ligava entre si. Quem seria capaz de dizer quais as possibilidades de desenvolvimento que se encontravam nessa natureza superabundante? Depois de ter optado por residir em Weimar, aos poucos começou a tomar forma um novo período de sua criação literária. Seu início foi marcado pela grande experiência de vida que caracterizou sua passagem para a atividade de homem maduro, com sua vontade de abranger tudo e ultrapassar os limites que as circunstâncias impõem. Essa atividade provoca mudanças constantes dos estados de ânimo e uma sensação de insuficiência. Dessa maneira, toma forma, a partir dos enganos do impulso da vida, a experiência humana mais profunda, que ensina ser a liberdade interior e permanente da alma exclusivamente fruto de um agir persistente, puro e consequente, dentro de limites que o indivíduo se impõe conscientemente a si próprio. Como Goethe se deu conta disso de uma maneira mais intensa, consciente e incondicional do que qualquer outra pessoa de sua época, seu olhar se abriu para a história da alma com seu desenrolar discreto e interior. Já não se tratava da história da alma, limitada pelo cristianismo, 357
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de um Lavater, nem da história rasa, influenciada pelo espírito francês da época, de um Wieland. Nascida da experiência pura da vida, ela possuía um caráter típico. Seria o objeto de seu conto poético “Os mistérios”. Nele, a religiosidade de Lessing e Herder chega à última perfeição, com a ideia de que toda fé positiva é apenas um símbolo da vivência interior, e a mesma vivência que constitui o centro do “Nathan”, de Lessing, realiza-se aqui em Humanus, o santo e sábio. Toda energia im pulsiona para frente e para os lados, Querendo viver e atuar aqui e acolá,
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Enquanto o curso do m undo nos inibe e cerceia, Arrastando-nos em suas turbulências. As voltas com torm entas internas e lutas externas, O espírito escuta um a sentença dificílima: Do poder que prende todos os seres Livra-se o hom em que se vence a si mesmo.
A mesma experiência encontra sua expressão em Ifigênia, essa representante da alma pura que, pelo domínio de si mesma, adquire força salvadora. Sua ação respira firmeza, pureza, indulgência, amor, tranquilidade. Nela, o esforço genérico ganha limites. Para essa ação contínua e consequente, Goethe passa a transferir progressi vamente o valor da vida em seus anos de homem maduro. Foi esse o efeito de suas atividades em administração, da filosofia de Kant e Fichte e, sobretudo, de Schiller e da grandeza de sua vida que fez da literatura sua ação, já que a miséria política o im pediu de exercer outra atividade. Acresce ainda que a ameaça lançada pela revolução contra tudo o que estava estabelecido indicou também o mundo da ação ao poeta da alma, do amor e da beleza. Dessa maneira, como Schiller, Goethe também identificou em todo prazer, em todo saber, em toda interioridade, apenas a preparação para a ação em prol do todo, e, dessa maneira, instituiu um modelo para o desenvolvimento de nossa nação. Agora sim, com a entrada no mundo da ação, podia dar o último remate a Fausto e Wilhelm Meister. Nesse último, Goethe apresenta uma história de desenvolvimento que percorre exatamente essas fases típicas. O projeto do Fausto, por sua vez, exigiu uma ênfase menor no aspecto da abnegação, pois são outras as fases típicas dessa existência, que nem mesmo na morte chega à consciência de suas limitações. Em contrapartida, realça-se mais que em qualquer outra obra a ação em prol do todo como valor máximo da vida. As duas obras descrevem a vida como um processo que, no decorrer de uma série de etapas, realiza um ideal. Como não destacam um lado específico da vida ou um período determinado, pretendem abranger o ser humano em sua totalidade. Esta é uma tarefa sem fim, que nunca será realizada por completo. Juntando elementos 358
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extremamente pessoais às relações mais elevadas de nossa existência, opondo às profundezas da alma a agitação do mundo com suas diversões toscas, mas tam bém com suas maduras reflexões irônicas, Goethe conseguiu nessas obras elevar a literatura europeia a um novo patamar, pois a ela acrescentou novos recursos de expressão. As duas obras passaram a exercer uma influência fortíssima sobre a nação e, no caso específico do Fausto, sobre a literatura universal. Em sua autobiografia, Goethe empreendeu novamente a descrição de um processo evolutivo, tanto a partir das predisposições, que ele só patenteou em suas manifestações visíveis, quanto das influências exercidas pelo mundo. Fausto e Wilhelm Meister o acompanharam durante toda sua vida, e mesmo assim permanecerem inacabados como a própria vida. O artista dentro de Goethe precisava de materiais limitados para realizar neles a beleza perfeita. A vivência de Goethe foi tão universal e sua mente tão ágil que ele conseguiu, mais que qualquer artista antes dele, transformar em mundos próprios, dentro de sua importância isola da, os estados de espírito de sua vida e aspectos da realidade psíquica que parecem excluir-se mutuamente - o prazer do amor vulgar e a plenitude da beleza das elegias romanas, as profundezas da alma de Pandora e da trilogia da paixão e o idílio do Divã Ocidental-Oriental. Seria impossível destacar outros períodos de sua evolução literária. À medida que avançava, sobrevinham constantemente uma série de outros processos determi nantes, cada um deles numa outra época. Os estudos das leis de formação do mundo orgânico ensejaram uma simplificação da representação literária do mundo. Além disso, surgiram formas literárias próprias, como, por exemplo, seus poemas didáti cos. À proporção que descobria essas leis de formação e suas formas permanentes na vida humana, começaram a destacar-se, na confusão colorida das manifestações, tipos básicos de seres humanos, de suas circunstâncias e da sociedade. Acompanhan do esse processo, aumentou o poder da arte grega, com suas tipificações, sobre seu espírito. Essas eram as condições prévias de uma literatura objetiva, que transfigura a verdade da vida em arte. Foi Goethe* o primeiro a elevar conscientemente a litera tura à condição de órgão de uma concepção objetiva do mundo. Seu espírito estava tão depurado pela longa dedicação aos estudos da natureza e tão unido à ação desta que, em Hermann e Doroteia, conseguiu apresentar espontaneamente suas regularidades, como transparecem nas figuras e nos destinos que são, ao mesmo tempo, tão singulares e individuais. A literatura objetiva que em Homero, na opinião dos contemporâneos, tinha sido um dom da natureza, foi elaborada por Goethe com base na apreensão científica da realidade, que o capacitara a perceber as coisas em estado puro, espontaneamente, sem esforço reflexivo. Antes dele, Leonardo e Dürer tinham aspirado ao mesmo ideal no campo deles, tendo se tornado, por isso mesmo, os 359
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modelos de toda e qualquer representação superior futura da figura humana. Com o fenômeno tremendo da Revolução Francesa aproximando-se da vida alemã, Goethe valeu-se do mesmo formato tipificante para apresentar numa grande trilogia, da qual só a primeira parte - A Filha Natural - foi concluída, a divisão da sociedade francesa na forma de pessoas representativas, mostrando inclusive os motivos que haveriam de levar essa sociedade à ruína. Em sua mente predomina mais e mais a observação. Uma magia curiosa nos invade quando reparamos nas Afinidades Eletivas de que modo a exposição quase teórica do problema do casamento vem acompanhada de uma profunda participação afetiva, representada na ordem simétrica e na situação ponderada de caracteres típicos, o que resulta num efeito como que musical. Partindo da descrição típica, ele perde-se progressivamente na descrição simbólica, porque o momento e sua energia afetiva desaparecem, para o ancião, no contexto de longas recordações. A própria vida quer ser expressa, mas isso só é possível na forma da representação simbólica. Na sua poesia lírica, o momento está como que saturado de passados. A plenitude que o invade exige a expressão efusiva. Com uma intensidade crescente, ele entrega-se à contemplação serena, para a qual a literatura universal, que ele acompanha com contemplação serena, lhe fornece novas formas de expressão no Divã Ocidental-Oriental. Sua atividade literária termina com uma última mani festação de sua sabedoria de vida em forma de poemas e máximas filosóficos, que trazem a marca do estilo nobre da velhice, resume misteriosamente as dissonâncias e as harmonias da vida e nos faz ver as coisas de uma maneira mais intensa, mais séria, mais solene - assim como se mostram as montanhas no início da noite. E assim ele conclui para a posteridade, num último esforço comovente de ancião, os inacabáveis: Fausto e Wilhelm Meister. 6
O solo fértil da criação literária de Goethe é sua poesia. Ao lado da música é a poesia lírica, essa forma de expressão da interioridade, o campo que mais afinidade tem com o povo alemão. Quanta diversidade de recursos sintáticos que ajudam a ex pressar o sentir, o desejar e o querer, e quanta riqueza de palavras para as matizes da vida sentimental possui nossa língua! Essa interioridade e sua expressão linguística desenvolveram-se paulatinamente, manifestando-se, sobretudo, na poesia lírica. Nos alemães dos séculos XVI e XVII, prevalecem as vinculações decorrentes da ordem baseada na divindade. A religiosidade protestante reduz essas vinculações à pro fundeza uniforme da consciência. E dela que nasce o caráter contido e concentrado das personalidades de destaque dessa época. A cultura científica e secular do século XVII reveste-o, depois, de uma nova solidez. E é assim que ele se manifesta em Paul 360
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Gerhardt16, Gryphius17 e Flemingls. É verdade que as vicissitudes da vida trazem à tona os diversos aspectos de seu ser, mas o homem que assim se expressa guarda firmemente a mesma grandeza religiosa, metafísica e moral. Aos poucos, a vinculação desfaz-se e nossa poesia lírica começa a percorrer as formas e os estilos da época do Iluminismo, de Klopstock e da primavera lírica dos anos seguintes. Em meio a essas transformações deu-se o desenvolvimento de Goethe. Somente em Goethe se desfaz completamente esse elemento fixo, compacto, indissolúvel a que aqueles se sentiam moral e religiosamente amarrados. Como razão e como religiosidade queria ser alegre, mas ao mesmo tempo teme entregar-se à alegria, constituindo um vínculo imaturo entre a tradição e uma nova liberdade. Na alma de Goethe encontramos uma energia musical que responde, a cada impressão causada pelo mundo, com uma nova figura de som. Sua vida psíquica é tão afinada, tão ligeira, tão ágil e excitável que parece exprimir a relação com o mundo em toda sua amplitude e objetividade. Cada uma de suas poesias tem sua própria alma, que criou para si o corpo vaporoso da forma, que aparece apenas nessa oportunidade e depois desaparece. Ele exprime da maneira mais simples e abrangente as leis dos movimentos da alma. Cada uma das fases da vida se expressa numa língua própria, num ritmo especial do movimento psíquico. Pela primeira vez, as circunstâncias típicas da vida parecem ter sido percebidas em todo seu valor. Apesar de cada poesia comunicar somente aquelas características da natureza que são vivenciadas num determinado estado da alma, tem-se a impressão de que nunca antes um ser humano viveu numa afinidade tão íntima com a natureza. Esse lirismo perpassa toda a obra de Goethe. Principalmente as pessoas representadas por ele parecem como que redimidas da rigidez que até esse momento marcava a representação dos seres humanos na literatura alemã. A partir de Goethe eles vivem numa nova liberdade e mobilidade interna. O que há de fixo neles se deve à lei de desenvolvimento, que se encontra em cada existência individual como regra de um processo. Tudo o que é substancial se dissolve na melodia da vida. A partir desse ponto é preciso entender a arte da representação do ser humano de Goethe. Em primeiro lugar, é necessário descobrir o que um autor assimila da vida como material para a formação de seus caracteres. Já faz algum tempo que história da literatura desenvolveu procedimentos refinadíssimos para alcançar esse objetivo. Todavia, esse método tem também seus limites, que nem sempre foram devidamente respeitados. A vida de um indivíduo é tão curiosamente entrelaçada com o destino
16. Paul Gerhardt (1607-1676), poeta alemão, autor de hinos protestantes (N.T.). 17. Andreas Gryphius (1616-1664), poeta destacado da época do barroco alemão (N.T.). 18. Paul Fleming (1609-1640), poeta da época do barroco alemão (N.T.).
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de muitos outros que com ele se confrontam de repente, com força e plasticidade, para depois se perderem novamente no tumulto do mundo, ou que com ele entram em contato fugaz - talvez apenas em forma de uma observação feita por um sujeito indiferente ou de uma notícia num jornal abarrotado de fatos, em que as vivências se confundem com tudo aquilo que se viu, ouviu ou leu - , de modo que parece im possível estabelecer um nexo seguro entre os dados da vida do autor e as criações de sua fantasia, uma vez que o ar está cheio de germes de motivos e caracteres e fábulas. Pode ser que Meüsto, Margarida ou o motivo das Afinidades Eletivas tenham despontado na mente de Goethe apenas em momentos episódicos de seu cotidiano, significando praticamente nada para o curso de sua própria vida, mas eles tinham aquela força específica que desencadeou sua fantasia e atividade silenciosa e criativa. Outra tarefa consiste em indicar os momentos da experiência da vida que de terminam o processo de criação de personagens a partir do material fornecido pela própria vida. Goethe hauriu de seu íntimo, de suas dores e lutas, os motivos de suas obras. A luta, que é a mola tanto da obra literária quanto da própria vida, nasce, no caso dele, no interior mesmo do ser humano, e, desde a reviravolta que sua vida to mou em Leipzig, é característico para ele que a solução dessa luta também se dê, em praticamente todos os casos, no interior do ser humano. O olhar profundo do amor, que penetra no nexo da natureza em que o homem se vê colocado com seu destino, dá, segundo Goethe, a cada um a possibilidade de se conciliar com a vida, e quando aparenta ser tão cego que não consegue aproveitá-la, ela está presente, ao menos, no ânimo do escritor. É esse o elemento tirteico de sua obra, do qual Goethe gostava de gabar-se ante os “poetas de enfermaria”. Nesse ponto, é possível entender também os limites da literatura de Goethe, sem os quais ela não possuiria seu poder maravilhoso. Alguns enaltecem e invejam Goethe como favorito da sorte, outros citam uma afirmação conhecida dele, em que diz ter estado absolutamente feliz apenas em uns poucos dias de sua vida. É criticado, também, por aqueles que afirmam que falta a suas obras o coração para o verdadeiro sofrimento; da mesma forma por outros que afirmam que ele se apresenta como aquele que sente as dores de todos. Goethe descreveu as lutas que ele vivenciou profundamente, conforme demonstram tanto suas cartas quanto suas obras de ficção, mas quando afirma, em certa passagem, que deixará Ifigênia falar como se nenhum meeiro em Apolda19 passasse fome, tem-se a impressão de que ele resguardava sua criação das dores mais prementes da natureza, que têm sua origem na luta elementar pela existência, pelo poder e no confronto das vontades no seio da sociedade. Ele
19. Pequena cidade nas proximidades de Weimar (N.T.).
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viveu e descreveu as lutas que nascem do interior do ser humano e que são travadas e concluídas nesse interior. Ele não podia escrever de outra forma, como ele mesmo admitiu: ele nunca escreveu nada que não tivesse vivido. As peculiaridades de seu método literário prendem-se a esse fato. Shakespeare constrói uma personagem e suas ações a partir dos motivos e afetos que a dominam, enquanto Goethe justapõe elementos vivos. E que a fantasia tem seus limites, mesmo nos maiores autores. O risco do procedimento de um é a artificialidade que poderia ser comparada a um preparado químico ou a uma máquina; o do outra é a incoerên cia. As figuras do primeiro carecem das formas arredondadas da vida; muitas vezes parecem constituídas somente de músculos, ossos e ligamentos. As do outro mostram a delicada verdade da vida, mas, entre seus estados interiores e as ações necessárias ao prosseguimento da obra, falta frequentemente um elo plausível, mesmo que não seja aquela discrepância insuportável entre os sentimentos e as ações, que caracteriza as figuras de Rousseau. Werther, Prometeu, Maomé, Fausto são compostos dessa maneira, mesmo em sua forma externa. O que prevalece são os momentos líricos no sentido mais amplo. Falta-lhes uma condução coerente da ação, mas em compensação revelam uma vida interior de força impressionista. Fausto é o auge dessa forma de arte. Nas anotações rápidas de Goethe, em suas poesias líricas, revela-se sua capacidade maravilhosa de exprimir, com delicadeza extrema, estados de ânimo diante de seu verdadeiro pano de fundo e de visualizá-los em imagens. Mas no Fausto, ele representa aquilo que o sensibiliza no grande tropo de uma ação que permite manifestar as vivências mais profundas num belo visual. Ele apresenta todos esses aspectos de modo límpido e puro, como a própria natureza. Jamais alguém foi mais verdadeiro. Visto nessa forma de autorrepresentação, Goethe veio a ser o ideal de sua época, e Fausto é o símbolo abrangente em que ele deixou transparecer toda sua vida. Em Tasso e Ifigênia, ele criou uma forma totalmente nova do drama psíquico, que já vinha preparada em Os Irmãos e em Esteia. E a alma que age sobre a alma, enquanto os acontecimentos externos são apenas revestimentos e envoltórios. O processo interior é descrito em uma continuidade quase ininterrupta, de modo que podemos acompanhá-lo quase passo a passo. Ele desenrola-se entre poucas pessoas, num tempo reduzido e sem grande mudança de lugar. Despreza-se qualquer brilho teatral, qualquer dramaticidade externa, para que o interesse possa concentrar-se todo na vida interior. Dessa forma, as criações literárias de Goethe remetem-nos invariavelmente ao grande homem que, por meio delas, se dirige a nós. Cada uma de suas obras alude à personalidade que está presente em todas. Ele ensina-nos a abrir-nos às pessoas e às coisas, para que estas possam atuar sobre nós de maneira pura, isenta e independen temente da relação com o nosso ser, a entender a vida em sua plenitude e harmonia 363
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a partir dela mesma, a deleitar-nos com seu valor e a enfrentar o destino e as perdas com um agir disposto e consequente. Sua força de superação, de esquecimento e de renovação comunica-se não apenas por meio de seus escritos, mas por tudo o que sabemos de sua vida. Por isso, toda tentativa de entender as obras literárias de Goethe a partir de palavras pesadas usadas por ele em suas cartas e esforços biográficos, resultará na desqualificação da vida, da natureza e do desenvolvimento como meios que ajudem a entender sua obra. Porque aquilo que o homem pretendeu com o tra balho de sua vida acaba sendo o mesmo que, nele, nos atrai, cativando nossa atenção depois que ele se foi.
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O N A SC IM E N T O DA H E R M E N Ê U T IC A (1900)
Em tratado anterior1 falei sobre a representação da individuação no mundo hu mano, conforme ela é realizada pela arte e, sobretudo, pela literatura. Defrontamonos agora com a questão do conhecimento científico do indivíduo e, em suma, das grandes formas da existência humana singular. Esse conhecimento é possível? Quais os meios de que dispomos para alcançá-lo? Trata-se de uma pergunta da maior importância. Nossa ação pressupõe, em toda parte, a compreensão de outras pessoas. Uma grande parte da felicidade huma na procede da empatia com estados de ânimo de outros. Toda a ciência filológica e histórica baseia-se no pressuposto de que esse reentendimento do singular possa ser elevado ao nível de objetividade. A consciência histórica desenvolvida sobre essa base dá ao ser humano a possibilidade de ter presente dentro de si todo o passado da humanidade: por além das barreiras de sua própria época, ele lança seu olhar para as culturas do passado, absorvendo a força delas e deleitando-se com sua magia, o que lhe proporciona um aumento de felicidade. Mesmo que as ciências sistemáticas do espírito infiram dessa apreensão, do singular, condições gerais regulares e nexos abrangentes, os processos de entendimento e interpretação continuam ainda básicos. Por essa razão, essas disciplinas, tanto quanto a história, dependem para sua cer teza metódica, da possibilidade de esse entendimento do singular poder alcançar a condição de validade universal. Dessa maneira, no primeiro momento em que nos
1. Cf. o ensaio “A Arte como Primeira Representação do Mundo Humano Histórico em sua Individuação”, nesta segunda parte, pp. 297-305 (N.T.).
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V, 317
FILOSOFIA E EDUCAÇÃO: TEXTOS SELECIONADOS
ocupamos com as ciências do espírito, deparamo-nos com um problema que lhes é peculiar, distinguindo-as de todo conhecimento da natureza. É verdade que as ciências do espírito têm uma grande vantagem em relação ao conhecimento da natureza: seu objeto, em vez de ser um fenômeno que se apresenta aos sentidos, ou seja, um mero reflexo da realidade dentro de uma consciência, é a própria realidade interior imediata em forma de um nexo vivenciado a partir desse interior. Entretanto, da mesma maneira pela qual se apresenta essa experiência inte rior da realidade, nascem grandes dificuldades para sua apreensão objetiva. No en tanto, não é sobre isso trataremos aqui. É verdade, também, que a experiência interna pela qual me dou conta de meus próprios estados nunca é capaz de trazer à minha consciência minha própria individualidade. Somente quando comparo a mim mesmo com outros faço a experiência do elemento individual dentro de mim. Exclusivamente dessa forma tomo consciência, em minha própria existência, daquilo que é diferente de mim. Goethe tem toda razão quando afirma que essa, que é a mais importante de nossas experiências, é extremamente difícil para nós, tanto que nosso discernimen to a respeito do grau, da natureza e dos limites de nossas forças permanece sempre muito imperfeito. No entanto, num primeiro momento, a existência de outras pesso as só nos é dada a conhecer em fatos sensíveis, em gestos, sons e atos que vêm de fora. Tão somente por um processo de recriação daquilo que entra em nossos senti dos em forma de sinais completamos essa experiência interior. Precisamos transferir tudo - matéria, estrutura, os traços mais individuais dessa complementação - a partir de nosso próprio sentido de vida. Mas como pode uma consciência individualmente formada conduzir uma individualidade alheia e totalmente diferente, por meio dessa recriação, a um conhecimento objetivo? Que tipo de ação é essa aparentemente tão diferente dos outros processos de conhecimento? Chamamos de compreensão o processo pelo qual conhecemos um elemento in terior a partir de um complexo de sinais sensoriais exteriores. É essa a maneira usual de falar. Uma terminologia psicológica precisa, da qual tanto necessitamos, só pode formar-se na medida em que cada expressão, cuidadosamente definida e delimitada claramente em sua utilidade, passa a ser aplicada regularmente por todos os autores. Compreensão da natureza - interpretatio naturae - é uma expressão figurativa. Mas quando chamamos de compreensão a apreensão de nossos próprios estados, usamos esse termo também em sentido impróprio. Afirmando que não compreendo como pude agir dessa ou daquela maneira, ou que não tenho mais uma compreensão a res peito de mim mesmo, não estou querendo dizer, com isso, que uma manifestação de meu ser se defronta comigo, como algo estranho a mim e que, como tal, não consigo interpretá-la. Pode ocorrer, também, o caso de eu encontrar-me num estado que é encarado por mim como se me fosse estranho. Chamamos, portanto, de compreensão 366
O NASCIMENTO DA HERMENÊUTICA
aquele processo em que reconhecemos, por trás dos sinais dados aos nossos sentidos, a realidade psicológica que neles se expressa. Essa compreensão vai desde a apreensão do balbuciar infantil até Hamlet ou a Crítica da Razão Pura. É sempre o mesmo espírito humano que se dirige a nós em forma de pedras, mármore, sons musicais, gestos, palavras e letras, atos, ordens cien tíficas e constituições, precisando de interpretação. Esse processo de compreensão deve ter, em toda parte, as mesmas características, desde que seja determinado por condições e meios epistemológicos comuns. Dentro dessas características básicas, ele é o mesmo. Se eu quiser entender Leonardo, dar-se-á uma interpretação conjunta de atos, pinturas e obras escritas, sempre dentro de um processo uniforme e homogêneo. Existem diversos graus de compreensão. Eles são determinados, inicialmente, pelo interesse. Se o interesse estiver reduzido, haverá também um entendimento re duzido. Diversas vezes assistimos, com impaciência, a um debate, do qual guarda mos apenas um único item que tem importância prática para nós, sem manifestar um interesse maior pela vida interior do palestrante. Em outros casos, porém, prestamos atenção em qualquer expressão facial e em cada palavra, tentando penetrar no inte rior do orador. Todavia, mesmo a atenção mais intensa, só é capaz de transformar-se num procedimento técnico adequado, em que é possível alcançar um grau controlável de objetividade, somente no ponto em que a objetivação da vida foi fixada de modo que seja possível voltar a ela sempre que quisermos. A esse tipo de entendimento técnico de objetivações fixas e relativamente permanentes da vida chamamos de in terpretação. Nesse sentido, existe também uma arte da interpretação cujos objetos são esculturas ou pinturas. Além disso, Friedrich August Wolf2 já exigira, também, uma hermenêutica e crítica arqueológica. Welcker3 defendeu essa ideia, e Preller4chegou a torná-la realidade. Mas o próprio Preller realça que a interpretação de obras mudas depende sempre de uma explicação tirada da literatura. A importância imensurável da literatura para nosso entendimento da vida es piritual e da história reside exatamente no fato de que a vida interior encontra so mente na linguagem sua expressão completa, exaustiva e objetiva. Por isso, a arte de entender tem seu centro na exegese ou interpretação daquilo que foi preservado da existência humana pela tradição escrita. A interpretação dessas remanescências e o procedimento crítico que a acom panha foram o ponto de partida da filologia. Esta é, essencialmente, a arte e a vir tuosidade pessoal no trato daquilo que foi preservado pela escrita, e é só no âmbito dessa arte e de seus resultados que prospera qualquer outra interpretação de obras
2. Friedrich August Wolf (1759-1824), filólogo alemão e especialista em Homero (N.T.). 3. Karl Theodor Welcker (1790-1869), político e jurista alemão (N.T.). 4. Ludwig Preller (1809-1861), filólogo e historiador alemão (N.T.).
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memoráveis ou de atos transmitidos pela história. Podemos estar enganados quanto aos motivos que levaram as pessoas a agir em determinados momentos da história, e os próprios protagonistas podem difundir uma luz enganosa sobre seus atos, mas a obra de um grande escritor ou descobridor, de um gênio religioso ou de um filósofo autêntico só pode ser a expressão genuína de sua vida psíquica. Na sociedade huma na cheia de mentira, uma obra dessa natureza é sempre verdadeira e, ao contrário de qualquer outra expressão fixada em sinais, ela presta-se a uma interpretação completa e objetiva, além de lançar sua luz sobre outros monumentos artísticos de uma época e sobre os atos históricos de seus contemporâneos. Essa arte da interpretação desenvolveu-se aos poucos, devagar e regularmente, assim como a investigação da natureza pelo experimento. Ela formou-se e conserva-se na virtuosidade genial do filólogo. E, como é natural, ela é transmitida a outros prin cipalmente no contato pessoal com os grandes virtuoses da interpretação ou com suas obras. Ao mesmo tempo, toda arte procede segundo regras. Estas ensinam a superar dificuldades e transmitem os resultados da técnica pessoal. Dessa forma, cedo começou a tomar corpo, a partir da arte da interpretação, a descrição de suas regras. A discussão dessas regras e a luta entre diversas tendências sobre os rumos a dar à interpretação de obras vitais, além da necessidade de fundamentar essas regras, acabaram forman do a ciência hermenêutica, ou seja, a doutrina e arte de interpretar a tradição escrita. Confirmando a possibilidade de uma interpretação de validade universal a par tir da análise do entendimento, a hermenêutica avança, finalmente, para a solução daquele problema de ordem geral com que iniciamos essas considerações. A análise da experiência interior une-se a do entendimento, e juntas fornecem às ciências do espírito a prova da possibilidade e dos limites de um conhecimento de validade uni versal, desde que essas disciplinas estejam condicionadas pela maneira por meio da qual os fatos psicológicos nos são dados originalmente. Gostaria, então, de demonstrar essa evolução regular à luz da história da her menêutica. De que forma a virtuosidade filológica se desenvolveu a partir da neces sidade de um entendimento profundo e de validade universal, e como daí nasceram as regras, e a subordinação delas a um fim, definido pela situação da ciência numa determinada época, até que fosse encontrado, finalmente, na análise da compreensão, o ponto de partida seguro para a fixação de regras.
/ A interpretação técnica (hermeneía) dos poetas desenvolveu-se na Grécia, a partir da necessidade da prática de ensinar. No período do Iluminismo grego, prati368
O NASCIMENTO DA HERMENÊUTICA
cava-se, em toda parte em que era falada a língua grega, um passatempo predileto de interpretação e crítica de Homero e de outros poetas. Essa base tornou-se mais sólida a partir do momento em que a interpretação entrou em contato com a arte da retórica por meio dos sofistas e das escolas retóricas. Nela estava presente a teo ria mais geral da composição literária, aplicada à eloquência. Aristóteles, o grande classificador e dissecador do mundo orgânico, dos estados políticos e dos produtos literários, ensinou, em sua Retórica, como dividir o todo literário em suas partes, distinguindo suas formas estilísticas e identificando os efeitos do ritmo, do período e da metáfora. A Rhetorica ad Alexandrum expressa essa definição fundamental de elementos retoricamente efetivos, como por exemplo, o entimema, a sentença, a iro nia, a metáfora e a antítese, de maneira mais simples ainda. Depois, a Poética de Aristóteles tomou expressamente como seu objeto a forma interna e externa da poe sia, além de seus elementos efetivos. Estes são derivados do objetivo substantivo ou final da poesia e de suas variedades. Um segundo passo importante foi dado com a filologia alexandrina, pela arte da interpretação e sua codificação em forma de regras. O legado literário da Grécia foi reunido em bibliotecas, produziram-se resenhas dos textos e um sistema rebusca do de sinais registrava o resultado desse trabalho crítico. Foram eliminados os textos não autênticos para que, depois, pudessem ser elaborados catálogos reais de todo o acervo. Assim, surgiu a filologia como a arte de verificação textual, baseada num conhecimento linguístico apurado, elevada crítica e classificação valorativa. Ela foi uma das últimas e mais peculiares criações do espírito grego que, a partir de Ho mero, desenvolvera, como uma de suas forças motrizes mais marcantes, o prazer do discurso humano. Foram também os grandes filólogos alexandrinos que começaram a ter consciência das regras inerentes a sua prática intuitiva. Aristarco5 já aplicava conscientemente o princípio de fazer primeiro um levantamento rigoroso e abrangente do uso da linguagem em Homero para, depois, basear nesse fundamento a explicação e qualificação do texto. Com plena consciência metodológica, Hiparco6 assentou a interpretação objetiva sobre as bases da investigação histórico-literária, estabelecendo primeiro as fontes dos Fenômenos cfe Arato7 para interpretar, em seguida, o poema com base nessas fontes. Foram descobertos poemas inautênticos entre os tradicionais de Hesíodo, das epopeias de Homero eliminou-se inúmeros versos, foram declarados de origem mais recente o último canto da Ilíada e, com maior unanimidade ainda,
5. Aristarco (cerca de 217-145 a.C.), fundador de uma escola de filologia em Alexandria (N.T.). 6. Hiparco (cerca de 160 a.C.), astrônomo grego, escreveu um comentário sobre a obra de Arato (N.T.). 7. Arato (cerca de 270 a.C.), autor grego de poesias astronômicas (N.T.).
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uma parte do penúltimo e todo o último canto da Odisseia; todas essas descobertas foram possíveis pelo uso hábil do princípio da analogia, que serviu para estabelecer uma espécie de cânon dos usos da linguagem, do âmbito das ideias, da congruência interna e do valor estético de um poema, descartando tudo o que a ele se opunha. Em Zenódoto8 e Aristarco, a aplicação de um determinado cânon, em matéria de es tética e moral, deriva claramente da seguinte fundamentação de suas antíteses: “dià tò aprepés”, isto é, “quid heroum vel deorum gravitatem minus dicere videbatur”. Além disso, Aristarco invocava também a autoridade de Aristóteles. A consciência metodológica do procedimento correto na interpretação foi ainda reforçada, na escola alexandrina, pela oposição à filologia de Pergamum. Essa oposi ção de tendências hermenêuticas haveria de assumir importância histórica universal, pois reapareceu dentro de um novo contexto na teologia cristã, além de dar origem a duas grandes visões históricas sobre poetas e escritores. Crates de Maio9 trouxe da escola estóica para a filologia pergamênica o prin cípio da interpretação alegórica. O poder duradouro desse método de interpretação devia-se, inicialmente, ao fato de ele neutralizar a contradição entre documentos de origem religiosa e uma concepção mais abstrata e pura do mundo. Dessa forma, o método mostrou-se necessário igualmente aos intérpretes dos Vedas, de Homero, da Bíblia e do Alcorão, uma arte tão indispensável quanto inútil. Todavia, ao mesmo tempo, esse método baseava-se numa visão profunda da produtividade poética e reli giosa. Homero é um vidente, e a contradição entre suas intuições profundas e imagens grosseiramente sensuais só pode ser explicada tomando-se estas últimas como meros recursos poéticos de representação. Como essa relação fosse vista como disfarce pro posital do sentido espiritual em forma de imagens, surgiu a interpretação alegórica.
2 Caso não esteja enganado, essa contradição volta a aparecer, em outras cir cunstâncias, na luta entre as escolas teológicas de Alexandria e de Antioquia. Seu fundamento comum foi a convicção de que existe um nexo intrínseco entre profecia e realização, ligando o Antigo ao Novo Testamento. E até necessário que esse nexo exista, uma vez que o Novo Testamento faz uso de profecias e modelos do Antigo. Como a Igreja cristã endossou esse pressuposto, ficou em situação complicada, dian 8. Zenódoto (cerca de 325-260 a.C.), filólogo grego, organizou a primeira edição crítica das epopéias homéricas (N.T.). 9. Crates de Maio (cerca de 200 a.C.), fundador da escola de gramática de Pérgamo (N.T.).
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te de seus adversários, no que se refere à interpretação de suas Sagradas Escrituras. Ante os judeus, ela precisou recorrer à interpretação alegórica, para levar a teologia do Logos para dentro do Antigo Testamento. Mas diante dos gnósticos, foi neces sário rejeitar a aplicação muito ampla do método alegórico. Seguindo as pegadas de Fílon10, Justino11 e Irineu12 tentaram estabelecer regras para a delimitação e uti lização do método alegórico. Envolvido na mesma disputa com judeus e gnósticos, Tertuliano13 retoma, depois, o procedimento de Justino e Irineu, mas desenvolve, em contrapartida, regras fecundas para melhorar a arte da interpretação, sem, no entan to, manter-se sempre fiel a elas. Na Igreja do Oriente surgiu uma versão do princí pio oposto. A escola de Antioquia explicava os textos exclusivamente com base em regras histórico-gramaticais. Nessa linha, Teodoro de Antioquia via no Cântico dos Cânticos nada mais do que um hino de núpcias. O livro de Jó não passava, para ele, de uma versão poética de uma tradição histórica. Ele rejeitou os títulos dos salmos e refutou a relação direta com Cristo de boa parte das profecias messiânicas. Para ele, os textos não tinham um sentido duplo; o que existia era apenas um nexo superior entre os eventos. Fílon, Clemente14 e Orígenes15, pelo contrário, faziam, nos próprios textos, uma distinção entre o sentido espiritual e o real. No processo que conduz da arte da interpretação à hermenêutica, esta sim consciente de seu caráter científico, chega-se, então, nessa luta, ao passo decisivo da elaboração das primeiras teorias hermenêuticas das quais temos conhecimento. Fílon já falava de kanónes e de nómoi tes allegorías aplicadas no Antigo Testamen to, e o conhecimento dos mesmos seria necessário para sua interpretação correta. Baseando-se nessa afirmação, Orígenes, no quarto livro de sua obra Perl arkhõn, e Agostinho, no terceiro livro de da obra De doctrina christiana, desenvolveram uma teoria hermenêutica apresentada de forma coerente. A esta se opuseram dois escri tos hermenêuticos da escola de Antioquia, ambos infelizmente hoje perdidos. Um é de Diodoro16 e traz o título Tís diaforá theorías kai allegorías, o outro é a obra de Teodoro De allegoria et historia contra Originem.
10. 11. 12. 13. 14. 15. 16.
Fílon (20 a.C. - 40 d.C.), filósofo judaico-grego (N.T.). Justino (2o século d.C.), padre da Igreja (N.T.). Santo Irineu (2o século d.C.), adversário dos gnósticos (N.T.). Tertuliano (2o a 3° século d.C.), inicialmente estóico, depois cristão (N.T.). Clemente de Alexandria (2o século d.C.), mestre de Orígenes (N.T.). Orígenes (cerca de 185-254), teólogo cristão da escola de Alexandria (N.T.). Diodoro de Antioquia (4o século d.C.) (N.T.).
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3 Com a chegada da Renascença, a interpretação e o estabelecimento de suas regras entraram num novo estágio. A língua, as condições de vida e a nacionalidade separavam o homem daquele período da Antiguidade clássica e cristã. Ao contrário da situação na Roma antiga, era necessário, agora, transportar-se para uma outra vida espiritual por meio de estudos gramaticais, materiais e históricos. Em muitos casos, essa nova filologia, polimatia e crítica só dispunha de notícias de segunda mão e remanescências fragmentárias para trabalhar. Assim, ela viu-se obrigada, de uma nova maneira, a ser criativa e construtiva. Por essa razão, a filologia, a hermenêutica e a crítica alcançaram um novo patamar. Dispomos de uma extensa literatura her menêutica elaborada no decorrer dos quatro séculos que se seguiram. Ela divide-se em duas correntes: as obras clássicas e os escritos da Bíblia eram as duas grandes forças das quais as pessoas procuravam apropriar-se. O estabelecimento de regras no campo filológico de estudos clássicos era conhecido pelo termo ars critica. Essas obras, entre as quais se destacam as de Scioppius17, Clericus e a obra inacabada de Valesius18, apresentam, em sua primeira parte, uma doutrina da arte hermenêutica. Há também muitos ensaios e prefácios que tratavam de interpretatione. Entretanto a constituição definitiva da hermenêutica como ciência se deve à interpretação bíblica. O primeiro e, talvez, o mais profundo desses escritos foi a Clavis, de Flacius (1567). Pela primeira vez, a parte essencial das regras de interpretação estabelecidas, até então, passou a ser integrada num edifício doutrinário que se apoiava no pos tulado de que, procedendo segundo a técnica dessas regras, deveria ser possível al cançar um entendimento universalmente válido. Foram as lutas do século XVI que fizeram Flacius entender ser esse o aspecto fundamental que rege, de fato, a herme nêutica. Eram duas as frentes em que precisava lutar. Tanto os Anabatistas quanto o catolicismo pós-Reforma defendiam a obscuridade da Sagrada Escritura. Opondo-se a essa visão, Flacius aprendeu, sobretudo com a exegese de Calvino, que havia um movimento constante de interpretação para esses princípios. Para o luterano de então, afigurava-se como tarefa mais urgente a refutação da doutrina católica da tradição, que sofrera uma reformulação justamente nessa época. Na disputa contra o princí pio protestante da Escritura, o direito da tradição de determinar a interpretação da Escritura só podia basear-se na argumentação de que não era possível inferir uma interpretação suficiente e universalmente válida das próprias escrituras bíblicas. O concílio de Trento, que se realizou de 1545 a 1563, tratou dessas questões a partir de
17. Gaspar Scioppius (1576-1649) (N.T.). 18. Henri Valesius (1603-1676) (N.T.).
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sua quarta sessão. A primeira publicação autêntica de seus decretos foi lançada em 1564. O representante mais arguto entre os defensores do catolicismo tridentino foi Belarmino19 que, algum tempo depois da publicação da obra de Flacius, combateu, num escrito polêmico de 1581, a inteligibilidade da Bíblia, procurando demonstrar, dessa forma, a necessidade de a tradição complementá-la. No contexto dessa polê mica, Flacius pôs todo seu empenho na comprovação hermenêutica da possibilidade de uma interpretação universalmente aceita. Dedicado à solução dessa tarefa, deu-se conta de recursos e regras que nunca antes tinham sido formulados pela hermenêutica. Quando o intérprete se depara com dificuldades num certo texto, dispõe de um recurso excelente para resolvê-las: o contexto que é dado na religiosidade cristã viva. Traduzindo esse texto de seu modo dogmático para nossa maneira de pensar, o valor hermenêutico da experiência religiosa passa a ser apenas um caso particular de um princípio mais geral, de acordo com o qual todo processo interpretativo contém a referência a um contexto verdadeiro como fator. Ao lado desse princípio religioso de interpretação existem também princípios racionais, sendo a interpretação gramatical o mais imediato. Além disso, Flacius foi o primeiro a compreender a importância do princípio psicológico ou técnico da interpretação, que afirma ser necessário in terpretar uma passagem singular segundo a intenção e a composição da obra em sua completude. E foi ele também o primeiro a usar metodicamente os conhecimentos da retórica sobre a coerência intrínseca do trabalho literário, sua composição e seus elementos em proveito da interpretação técnica. Antes, a reformulação da retórica aristotélica por Melanchthon já tinha preparado esse caminho. O próprio Flacius tem consciência de que foi ele o primeiro a utilizar metodicamente, para a interpretação inequívoca de algumas passagens, esse recurso que se vale do contexto, do objeti vo, da proporção e da congruência das partes isoladas. O valor hermenêutico desse recurso é visto sob o aspeto geral de uma metodologia: “O entendimento de partes isoladas de um todo é sempre fruto de sua relação com esse todo e com suas outras partes.” Ele persegue essa forma intrínseca de uma obra até no estilo e nos diversos elementos efetivos, tracejando, por exemplo, os contornos de uma caracterização sutil dos estilos de Paulo e de João. Trata-se de um grande progresso, mesmo que tenha ficado restrito aos limites da concepção retórica, pois tanto para Melanchthon quanto para Flacius os escritos são elaborados segundo regras e, de acordo com essas regras, devem ser entendidos. O escrito funciona à maneira de um autômato lógico revestido de estilo, imagens e figuras retóricas.
19. São Roberto Belarmino (1542-1621), teólogo católico (N.T.).
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FILOSOFIA E EDUCAÇÃO: TEXTOS SELECIONADOS
Os defeitos formais dessa obra foram superados depois na Hermenêutica de Baumgarten, em que ganhou destaque, ao mesmo tempo, um segundo movimen to hermenêutico-religioso. Com a publicação das Nachrichten von merkwürdigen Büchern (Halle, 1752-1757), de Baumgarten, começaram a tomar lugar na consci ência alemã, além dos intérpretes dos Países Baixos, os livre-pensadores ingleses e comentaristas que examinavam o Antigo Testamento à luz da etnologia. Semler e Michaelis foram influenciados por Baumgarten e sua obra. Michaelis foi, aliás, o primeiro a aplicar na interpretação do Antigo Testamento uma concepção histórica uniforme de linguagem, história, natureza e direito. Semler, o precursor do grande Christian Bauer, quebrou a unidade do cânone do Novo Testamento, estabelecendo a tarefa clara de compreender cada escrito singularmente dentro de suas características locais. Depois reuniu esses escritos numa nova unidade que encontra sua expressão na concepção histórica viva das disputas iniciais entre o cristianismo judaico e os cristãos de uma ordem mais livre. Na sua propedêutica à hermenêutica teológica, Semler foi igualmente decisivo ao conceber a hermenêutica como um conjunto de dois elementos básicos: interpretação baseada no uso linguístico e nas circunstâncias históricas. Uma vez estabelecida a liberdade de interpretação em relação ao dogma, estava fundada a Escola Histórico-Gramatical. O espírito sutil e cauteloso de Ernesti criou, então, com sua Institutio Interpretis o texto clássico dessa nova hermenêutica. Sua leitura inspirou ainda Schleiermacher a desenvolver sua própria hermenêutica. Mas todos esses ganhos se deram dentro de limites bem definidos. Nas mãos desses exegetas, a composição e o conteúdo intelectual de todos os escritos de uma época encontraram solução nas mesmas bases de ideias temporal e localmente condiciona das. Segundo essa concepção pragmática da história, a natureza humana de caráter religioso e moral homogêneo é limitada apenas externamente pelas circunstâncias locais e temporais. Ela é a-histórica. Até esse ponto, as hermenêuticas clássica e bíblica desenvolveram-se separada mente. Mas não deveriam ser compreendidas como aplicações de uma nterpretação mais geral? Maier, o discípulo de Wolf, resolveu dar esse passo quando tentou insti tuir uma arte geral da exegese (1757). Seu conceito dessa ciência era o mais amplo possível: ela objetiva desenvolver as regras que devem ser obedecidas em qualquer interpretação de sinais. Mas seu livro só revela, mais uma vez, que não é possível criar novas ciências a partir de critérios arquitetônicos e simétricos. Seu produto são apenas janelas cegas através das quais não se pode ver. Uma hermenêutica eficaz só poderia sair de uma mente em que a virtuosidade da interpretação filológica se unis se a uma genuína capacidade para o pensamento filosófico. Schleiermacher reuniu em si esses requisitos.
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0 NASCIMENTO DA HERMENÊUTICA
4 As condições que possibilitaram seu trabalho foram as seguintes: a interpreta ção de obras de arte por Winckelmann, a empatia congenial de Herder com a alma de épocas e povos, e a nova perspectiva estética da filologia de Heyne, de Friedrich August Wolf e de seus discípulos, entre os quais se encontrava Heindorf, intima mente ligado a Schleiermacher com seus estudos platônicos. Todos esses aspectos se confluíram em Schleiermacher com o método da filosofia transcendental alemã que, recuando para além do conteúdo dado na consciência, se depara com uma ca pacidade criadora que atua de modo unificado e sem ter consciência de si mesma e produz dentro de nós toda a forma do mundo. Da união desses dois elementos surgiu a arte da interpretação que lhe era própria, assim como a fundamentação definitiva de uma hermenêutica científica. A hermenêutica formava, até esse momento, no máximo, um edifício de regras cujas partes, ou seja, as regras individuais, foram mantidas juntas pela finalidade comum de uma interpretação de validade universal. Ela havia separado as funções que cooperam nesse processo, chamando-as individualmente de interpretação gra matical, histórica, retórico-estética e objetiva. Apoiada na virtuosidade filológica de muitos séculos, a hermenêutica trouxe à consciência as regras segundo as quais essas funções devem operar. Questionando a razão de ser das próprias regras, Schleier macher deu mais um passo rumo à análise do entendimento, isto é, na direção do conhecimento da própria ação final. Desse conhecimento ele deduziu a possibilidade de uma interpretação universalmente válida de seus recursos, limites e regras. No entanto, ele conseguiu analisar o entendimento como recriação e reconstrução ape nas em sua relação viva com o processo da própria produção literária. Na intuição viva do processo criativo, que faz surgir uma obra literária intensa, ele reconheceu a condição necessária para o conhecimento daquele outro processo que revela, nos si nais gráficos, o conjunto da obra e, na obra, a intenção e a mentalidade de seu autor. Para resolver esse problema, era necessária uma nova visão histórico-psicológica. Acompanhamos a relação*em questão a partir da ligação que existia entre a interpretação grega e a retórica como teoria de regras para um determinado tipo de produção literária. Todavia a apreensão dos dois processos havia sido formulada em termos lógico-retóricos. As categorias usadas eram sempre aquelas mesmas: a do fazer, das conexões lógicas e da origem lógica. Finalmente, o produto lógico era, então, adornado com estilo, figura e imagem. Nesse ponto entram em uso conceitos completamente novos para entender um produto literário. Entra em ação uma capa cidade uniforme e criativa que assimila e elabora as primeiras inspirações para uma obra, antes mesmo de ter noção de sua atuação e formação. Nela, receber e formar 375
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espontaneamente são dois aspectos inseparáveis. A individualidade manifesta-se, nessa altura, com todo detalhe e em cada palavra. Sua manifestação maior é a forma exterior e interior da obra literária. Vem, então, ao encontro dessa obra a necessidade insaciável de completar a própria individualidade por meio da contemplação de outras individualidades. Por essa razão, entender e interpretar são atividades constantemen te presentes na própria vida, alcançando sua realização na interpretação técnica de obras literárias vitais e de sua conexão no sspírito de seu criador. Essa foi a forma que essa visão assumiu na mente de Schleiermacher. Entretanto, havia mais uma condição a ser preenchida para que pudesse acon tecer esse grande lance da hermenêutica geral: foi necessário que o próprio Schleier macher e seus companheiros transformassem as novas visões histórico-psicológicas em arte filológica da interpretação. Com Schiller, Wilhelm von Humboldt e os irmãos Schlegel a cultura alemã dirigiu sua atenção da produção literária para um reentendimento do mundo histórico. Era um movimento poderoso que já havia influenciado Bõckh, Dissen, Welcker, Hegel, Ranke e Savigny. Friedrich Schlegel tornou-se men tor de Schleiermacher na arte filológica. Os conceitos que orientavam Schlegel em seus trabalhos brilhantes sobre a poesia grega, sobre Goethe e Boccaccio, foram os da forma interior da obra, da história de desenvolvimento do escritor e da literatura como um todo autoarticulado. Entremeado com os resultados individuais de uma arte filológica reconstrutora havia, para ele, o plano de uma ciência da crítica, de uma ars critica, que deveria basear-se na teoria da capacidade literária produtiva. Esse plano aproxima-se bastante da hermenêutica e da crítica de Schleiermacher. De Schlegel partiu, da mesma forma, o plano de traduzir Platão. Foi uma ma neira de aperfeiçoar a técnica da nova interpretação que fora aplicada inicialmente por Bõckh e Dissen em Píndaro. Era necessário entender Platão como um artista filosófico. O objetivo da interpretação é a unidade entre o caráter do filosofar pla tônico e a forma artística das obras de Platão. Filosofia é, ainda, a que procede da vida, inserida na conversação, e sua exposição literária é apenas um meio de fixá-la na memória. Em vista disso é necessário que seja diálogo, um diálogo de forma tão artística que obrigue a reprodução própria do encadeamento vivo dos pensamentos. A unidade rígida do pensamento platônico exige, ao mesmo tempo, que cada diálogo dê continuidade a algo que lhe é anterior, que prepare o momento que lhe é posterior e que continue desenvolvendo as linhas das diversas partes da filosofia. Acompanhando as relações dos vários diálogos entre si, descobre-se um nexo entre as obras princi pais, nexo este que desvenda a intenção mais íntima de Platão. A compreensão desse nexo elaborado com arte é, segundo Schleiermacher, um pré-requisito para entender realmente Platão. Comparado com esse efeito, o estabelecimento da sequência cro nológica das obras é bem menos importante, apesar de coincidir, em muitos casos, 376
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com o próprio nexo. Em sua famosa resenha, Bõrkh pôde afirmar que foi só a partir dessa obra-prima que a ciência filológica teve realmente acesso a Platão. A essa virtuosidade filológica juntou-se, na mente de Schleiermacher, pela pri meira vez, uma capacidade filosófica genial, aperfeiçoada pela prática da filosofia transcendental, que foi justamente a primeira a oferecer recursos suficientes para a formulação geral e para a solução do problema hermenêutico. Dessa maneira, come çou a surgir a ciência geral e a doutrina técnica da interpretação. A leitura da lnstitutio Interpretis, de Ernesti, levou Schleiermacher a redigir seu primeiro esboço de uma hermenêutica, no outono de 1804, pois pretendia abrir, com ela, seu curso de preleções exegéticas em Halle. Essa primeira hermenêutica che gou até nós em forma pouco eficiente. Sua grande repercussão deveu-se, sobretudo, a Bõckh, um estudante de Schleiermacher que frequentara suas aulas em Halle. Este a expôs num belo trecho de suas preleções sobre a enciclopédia filosófica. Passo, então, a destacar, da hermenêutica de Schleiermacher, os pontos que parecem ser cruciais para seu subsequente desenvolvimento. Toda e qualquer interpretação de obras escritas é apenas uma arte de desen volver o processo de compreender, que se estende pela vida afora, aplicando-se a qualquer tipo de discurso e escrita. Dessa maneira, a análise da compreensão é a base para o estabelecimento de regras da interpretação. Mas ela só pode ser reali zada em combinação com a análise da produção de obras literárias. A definição das regras que determinam os meios e os limites da interpretação depende da relação entre compreensão e produção. A possibilidade de uma interpretação universalmente válida pode ser inferida da natureza da compreensão. Nesse ato, a individualidade do intérprete e a do autor não se confrontam como duas realidades incomparáveis: ambas formaram-se sobre a base da natureza humana geral, e esta possibilita a comunhão dos seres humanos entre si pela fala e seu entendimento. Nesse ponto, as expressões de Schleiermacher, registradas em estilo de fórmula, prestam-se a esclarecimentos psicológicos ulterio res. Todas as diferenças individuais são condicionadas, em última análise, não pela diversidade qualitativa das pessoas ejsim apenas por diferenças de grau em seus pro cessos psíquicos. Ao transferir, numa espécie de experimento, sua própria vitalidade para dentro de um ambiente histórico, o intérprete tem a possibilidade de realçar e reforçar momentaneamente certos processos psíquicos ao mesmo tempo em que re lega outros a um segundo plano, conseguindo, dessa maneira, recriar dentro de si uma imitação da vida do outro. Ao focalizar o aspecto lógico desse processo, identifica-se um nexo a partir de relativamente poucos elementos singulares, sempre com o auxílio dos conhecimentos gramaticais, lógicos e históricos existentes. Valendo-nos de nossa terminologia lógi377
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FILOSOFIA E EDUCAÇÃO: TEXTOS SELECIONADOS
ca, podemos dizer que esse aspecto lógico do entendimento é fruto da cooperação da indução, da aplicação de verdades gerais ao caso específico e de um procedimento comparativo. A tarefa mais imediata seria constatar as formas especiais que as men cionadas operações lógicas e suas conexões assumem no caso concreto. Nesse ponto, vem à tona uma dificuldade central de toda arte da interpretação. Partindo de palavras singulares e de suas conexões, pretende-se compreender a obra em sua totalidade, quando, na realidade, o entendimento completo de cada elemento já pressupõe o do todo. Esse círculo repete^se na relação entre cada obra singular e a maneira de pensar e o desenvolvimento do próprio autor. Esse mesmo círculo retorna na relação de determinada obra singular com seu gênero literário. A melhor solução prática para essa dificuldade foi encontrada por Schleiermacher em sua introdução à República de Platão. Disponho também de outros exemplos desse procedimento nas notas de suas preleções sobre exegese. [Com leves pinceladas, deu, inicialmente, uma visão geral da estrutura de suas preleções, sondando cautelosamente todo o alcan ce do contexto e destacando as dificuldades; em todas as passagens que permitiam um reconhecimento da composição, ele intercalava momentos de reflexão. Só então iniciava a interpretação propriamente dita.] Teoricamente falando, deparamo-nos aí com os limites de qualquer interpretação, que realiza sua tarefa apenas até um certo ponto, pois todo entendimento permanece sempre parcial, não podendo jamais ser completo. Individuum est ineffabile. Schleiermacher reprova a decomposição do processo interpretativo segundo a gramática, a história, a estética e o conteúdo, conforme era praticada até então. Essas distinções mostram apenas que, no início da interpretação, deve existir um conhe cimento gramatical, histórico, estético e de conteúdo, para que esse conhecimento possa intervir em cada ato da interpretação. Mas o próprio processo de interpretação só pode ser desmembrado em dois aspectos, que estão presentes no conhecimento de uma criação espiritual por meio de sinais linguísticos: a interpretação gramatical, que avança no texto de conexão em conexão até chegar aos nexos supremos no todo da obra, e a interpretação psicológica, que parte da transposição para dentro do proces so criativo, avançando de lá para a forma exterior e interior da obra e desta à apre ensão da unidade da obra na maneira de pensar e no desenvolvimento de seu autor. Chega-se, então, ao ponto a partir do qual Schleiermacher desenvolve magis tralmente as regras da arte da interpretação. O fundamento básico é sua teoria da forma exterior e interior, e especialmente profundos são os alicerces de uma teoria geral da produção literária que incluiria o órganon da história da literatura. O objetivo último do processo hermenêutico consiste em compreender melhor o autor do que ele próprio se compreendeu - uma afirmação que é a consequência lógica da teoria da criação inconsciente. 378
O NASCIMENTO DA HERMENÊUTICA
5 Podemos dizer, de forma conclusiva, que só em relação a documentos escritos a compreensão se torna interpretação que alcança nível de validade universal. Mesmo que a hermenêutica possa tornar a interpretação filológica consciente de seus modos de proceder e de sua justificação, F. A. Wolf teria razão em não avaliar tão positiva mente a utilidade prática dessa disciplina, em comparação com seu próprio exercício vivo. No entanto, além do benefício prático para o trabalho da própria interpretação, quer me parecer que existe uma segunda função, e essa deve ser sua principal tare fa: opor-se à intervenção constante do arbítrio romântico e da subjetividade cética no campo da história, estabelecendo as bases teóricas para a validade universal da interpretação em que se baseia toda a certeza do conhecimento histórico. Uma vez aceita no conjunto formado pela teoria do conhecimento, da lógica e da metodologia das ciências do espírito, essa teoria da interpretação torna-se importante elo entre a filosofia e as ciências históricas e elemento essencial da fundamentação das ciências do espírito. %
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A pêndices m anuscritos 332
Entender faz parte do conceito mais geral de conhecer, visto em seu sentido mais amplo, ou seja, como esforço para chegar a um saber de validade universal. (Enunciado 1) Denominamos entender o processo pelo qual, partindo de ma nifestações sensoriais da vida; psíquica, esta alcança o conhecimento. (Enunciado 2) Por diversas que sejam as manifestações da vida psíquica apreensíveis pelos sentidos, o seu entendimento deve apresentar características comuns, re sultantes das condições específicas desse modo de conhecimento. (Enunciado 3) Denominamos interpretação ou exegese o entendimento de objetivações da vida textualmente fixadas. A interpretação é uma obra da habilidade pessoal; sua prática mais perfeita é condicionada pela genialidade do intérprete. Ela consiste na afinidade, intensificada pela familiaridade com a vida do autor e pelo estudo constante. É o caso de Winckelmann no tratamento de Platão, o Platão de Schleiermacher etc. É nesse princípio que se baseia o elemento divinatório da interpretação. 379
FILOSOFIA E EDUCAÇÃO: TEXTOS SELECIONADOS
Em vista da dificuldade e da importância mencionadas, a interpretação é obje to de um esforço imenso do gênero humano. Toda a filologia e a história trabalham inicialmente para etc. Não é fácil ter consciência da grande quantidade de trabalho erudito aplicada nesse intuito. A força dessa compreensão aumenta no gênero hu mano no mesmo ritmo paulatino, regular, lento e difícil em que cresce a força de conhecer e dominar a natureza. No entanto, justamente por ser a genialidade tão rara e por ser necessário que a interpretação seja exercitada e aprendida também por pessoas menos talentosas, * e preciso: (Enunciado 4a) que a arte dos intérpretes geniais seja fixada em regras, como aquelas que fazem parte de sua metodologia ou também como esses próprios intér pretes as tornaram conscientes. Isso porque toda arte humana se aperfeiçoa e se ele va pela prática, quando consegue transmitir, de alguma forma, o resultado da vida do artista para os sucessores. Os meios para tornar a compreensão uma arte surgem apenas quando a língua fornece uma base sólida e quando existem grandes criações de valor permanente, que provocam disputas em consequência de interpretações di vergentes. Nesses casos, é necessário tentar resolver a controvérsia entre os mestres geniais da interpretação por meio de regras universalmente válidas. O maior estímulo para a própria habilidade de interpretação é, certamente, o contato com o intérprete genial ou sua obra. Entretanto, a brevidade da vida exige que o caminho seja encur tado pela fixação dos métodos encontrados e das regras aplicadas em sua prática. Denominamos de hermenêutica essa teoria da arte de compreender objetivações da vida fixadas por escrito (Enunciado 4b). Dessa maneira é possível definir a essência da hermenêutica e justificar, em cer ta medida, sua prática. Se ela, nem assim, parece despertar o grau de interesse que os representantes dessa arte desejariam, parece-me que o motivo está na não-assimilação de problemas que nascem da situação científica atual e que tem tudo para agregarlhe um elevado grau de interesse. Essa ciência (hermenêutica) teve uma sorte estra nha. Ela só consegue destacar-se em épocas de grandes transformações históricas, que fazem com que a compreensão dos fenômenos históricos singulares se torne um assunto urgente da ciência. Isso aconteceu pela primeira vez quando a interpretação das Sagradas Escrituras do cristianismo virou questão vital para o protestantismo. Depois, no contexto do desenvolvimento da consciência histórica em nosso século, ela foi reavivada durante algum tempo por Schleiermacher e Bõckh; eu mesmo ain da me lembro da época em que a Enciclopédia de Bõckh, toda ela envolvida com esses problemas, era vista como acesso necessário ao santuário da filologia. Se, nos dias de hoje, um Fr. Aug. Wolf já se manifestou de forma depreciativa sobre o valor da hermenêutica para a filologia, e se essa ciência, desde então, encontrou, de fato, 380
0 NASCIMENTO DA HERMENÊUTICA
raros promotores e representantes, deve-se atribuir esse fato ao esgotamento de sua forma. Mas o problema que a impulsionou voltou a surgir atualmente, todavia de uma forma nova e mais abrangente. (Enunciado 5) A compreensão, nesse sentido mais amplo, é o procedimento fundamental a ser aplicado a todas as demais operações das ciências do espírito. ... Assim como nas ciências da natureza, todo conhecimento das leis só é possível em razão de elementos passíveis de serem medidos e contados nas experiências e de re gras nelas presentes. Da mesma maneira, nas ciências do espírito toda proposição abstrata só é justificável por sua relação com a vitalidade psíquica, que é dada na vivência e na compreensão. Sendo a compreensão fundamental para as ciências do espírito, (enunciado 6) a análise do entendimento sob os aspectos da teoria do conhecimento, da lógica e da metodologia pode ser considerada uma das principais tarefas necessárias à fun damentação das ciências do espírito. A importância dessa tarefa, porém, só se mani festa plenamente quando se tem consciência das dificuldades que a natureza da com preensão nos reserva em relação ao exercício de uma ciência universalmente válida. Todos nós estamos, por assim dizer, encerrados em nossa consciência indivi dual. Sendo particular, ela comunica sua subjetividade a tudo que apreendemos. O sofista Górgias já expressou esse problema nos seguintes termos: mesmo que houvesse um saber, aquele que sabe não o poderia comunicar a outros. Para ele, esse problema determina o fim do pensamento. Mas é necessário resolvê-lo. A possibilidade de apreender o que o outro é, constitui um dos mais profundos problemas da teoria do conhecimento. Como é possível que um indivíduo transforme uma objetivação individual da vida do outro, oferecida pelos sentidos, em nível de entendimento objetivo universalmente válido? A condição da qual depende essa possibilidade está no fato de que não pode ocorrer nada numa objetivação individual da vida do outro que não esteja presente também na vitalidade daquele que compreende. As mesmas funções e os mesmos componentes estão presentes em todas as individualidades, sendo que as aptidões, nos diferentes seres humanos, se distinguem tão somente por seu grau de intensidade. E o mesmo mundo exterior que se reflete nas imagens de sua mente. Por essa razão, deve existir na vida humana uma capacidade. [Processos de] conectar, intensificar, diminuir etc. Transposição é transformação. Segunda aporia. Do particular o todo, do todo - novamente o particular. Mais que isso, o todo de uma obra exige movimento em direção à individualidade (do au tor) e à literatura, com a qual mantém relação. Só o procedimento comparativo faz com que eu entenda, enfim, cada obra singular e até cada frase particular mais pro fundamente do que antes. Dessa forma, a compreensão provém do todo, ao mesmo tempo em que o todo deriva do particular. 381
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FILOSOFIA E EDUCAÇÃO: TEXTOS SELECIONADOS
Terceira aporia. Até mesmo cada estado psíquico singular é entendido por nós a partir dos estímulos que o provocaram. Entendo o ódio a partir da intervenção per niciosa numa vida. Sem essa relação, eu nem seria capaz de imaginar paixões. Por isso, o ambiente social é indispensável para a compreensão. Em suas últimas conse quências, o entendimento já não se distingue da explicação, se é que esta é possível nessa área. E a explicação, por sua vez, pressupõe a consumação da compreensão. Em todas essas questões fica claro que o problema da teoria do conhecimento é o mesmo em toda parte: [isto é, derivar] sabçr universalmente válido da experiên cia. Só que este se manifesta, aqui, sob as condições especiais da natureza das ex periências nas ciências do espírito, ou seja: a estrutura como nexo é o elemento vivo, conhecido, na vida psíquica do qual provém o particular. Por essa razão, no primeiro momento em que nos ocupamos com as ciências do espírito, a análise do entendimento constitui o problema epistemológico fundamental. Partindo desse problema da teoria do conhecimento, e tendo a solução deste como seu objetivo último, a hermenêutica estabelece um contato estreito com as grandes questões da ciência atual, que se referem à constituição e à legitimidade das ciências do espírito. Os problemas e princípios da hermenêutica constituem atualidade viva. A solução da questão da teoria do conhecimento leva ao problema lógico da hermenêutica. E natural que este também seja o mesmo em toda parte. São obviamente (con trariando o que Wundt diz a meu respeito) as mesmas operações lógicas elementares que ocorrem nas ciências do espírito e nas da natureza: indução, análise, construção, comparação. Mas, nesse caso, interessa saber qual a forma especial que elas assu mem no âmbito da experiência das ciências do espírito. A indução, cujos dados são os processos sensoriais, realiza-se, aqui, como em toda parte, sobre a base de um saber a partir de um nexo. Nas ciências físico-químicas, esse nexo é constituído pelo conhecimento matemático das condições quantitativas; nas ciências biológicas é a utilidade prática para a vida; nas ciências do espírito é a estrutura da vitalidade psí quica. Não se trata, portanto, de uma base que seja uma mera abstração lógica e sim de um nexo real que é dado pela vida. Mas esse nexo é individual, ou seja, subjetivo. Esse fato determina a tarefa e a forma dessa indução. Suas operações lógicas ganham uma forma ulterior pela natureza da expressão verbal. No campo linguístico mais de finido, a teoria dessa indução é especificada pela teoria da linguagem: a gramática. A natureza especial da determinação do nexo [linguístico] conhecido (pela gramática), repousa na base de significados relativamente indeterminados (variáveis) de palavras e de elementos formais sintáticos. Essa indução busca o entendimento daquilo que é singular (nexo) e é suplementado pelo método comparativo, que define o singular e torna sua apreensão mais objetiva pelas relações com outros todos singulares. 382
O NASCIMENTO DA HERMENÊUTICA
Elaboração do conceito da forma interior. Mas é necessário penetrar [tam bém] a realidade: a vitalidade que fica escondida sob a forma interior da obra particular e das relações sistemáticas entre as obras. Ela não é sempre a mesma nas diversas ramificações da produtividade. No poeta é a capacidade criadora, no filósofo é o nexo entre a visão da vida e do mundo, nos grandes homens práticos é o seu posicionamento funcional e finalista em relação à realidade, nos religiosos (Paulo, Lutero) etc. Com isso, a filologia estabelece um nexo com a forma mais elevada da com preensão da história. Interpretação e narração histórica são apenas dois lados do aprofundamento entusiasta. Tarefa infinita. Dessa forma, a análise da convergência dos processos comuns a todo conhe cimento, e de sua especificação sob as condições dos procedimentos, comunica seus resultados em termos de teoria do método. Seu objeto é a elaboração histórica do método e sua especificação nas diversas áreas da hermenêutica. Uma tarefa específi ca, como exemplo, é a interpretação dos poetas. Partindo da regra: entender melhor sobre o que o autor entendeu de si é capaz de resolver o problema da ideia numa criação literária. Ela existe (não como pensamento abstrato, mas) no sentido de um nexo inconsciente que é ativo na organização da obra, sendo entendido a partir de sua forma interior. O poeta não precisa dela e jamais terá plena consciência dela. Mas o intérprete a destaca, e isso talvez seja o maior triunfo da hermenêutica. Em razão disso, a atribuição atual de regras, que é o único procedimento que leva à validade universal, precisa ser complementado pela descrição dos métodos criativos de intér pretes geniais nos mais diversos campos. É aí que reside sua força inspiradora. Isso deve ser feito com todos os métodos das ciências do espírito. A própria sequência é (1) o método da genialidade criativa; (2) as regras abstratas existentes e baseadas nele são subjetivamente condicionadas; (3) a dedução de um conjunto de regras vá lido universalmente a partir de fundamento epistemológico. Finalmente, os métodos hermenêuticos formam um nexo com a crítica literária, filológica e histórica, e tudo isso leva à explicação dos fenômenos singulares. Não há limites fixos entre a interpretação, apenas diferenças de grau, pois a compreensão é uma tarefa infinita. Nas disciplinas, porém, o limite está no fato de a psicologia e as ciências sistemáticas passarem a ser utilizadas como sistemas abstratos. Segundo o princípio da inseparabilidade entre apreensão e avaliação, a crítica literária está necessariamente ligada ou é imanente ao processo hermenêutico. Não há compreensão sem sentimento de valor - mas este só é confirmado objetivamente e de maneira universalmente válida pela comparação. Para tanto, é preciso definir o que é normativo, por exemplo, no gênero drama. A crítica filológica parte dessa norma. A adequação é constatada no todo, e as partes que não lhe correspondem são 383
FILOSOFIA E EDUCAÇÃO; TEXTOS SELECIONADOS
eliminadas. Lachmann, o Horácio de Ribbeck etc. Ou uma é norma tirada de outras obras e as obras são excluídas; a crítica de Shakespeare, de Platão. Por essa razão, a crítica (filológica) pressupõe a literária, porque sua motiva ção nasce precisamente do choque com aquilo que não é inteligível e não tem valor, e a crítica (literária), sendo o lado estético da crítica filológica, usa esta como sua auxiliar. A crítica histórica é apenas um ramo da crítica, e assim como a crítica es tética ela tem seu próprio ponto de partida. Mas o desenvolvimento perpassa todas elas, transformando-as em história da literatura, estética etc. - ou, em outro caso, em historiografia. II
Bõckh afirma, com toda razão, que filologia significa “conhecer aquilo que foi produzido pelo espírito humano” (Enciclopédia 10). Quando ele acrescenta, parado xalmente, que isso envolve “o conhecimento do conhecido”, deve-se ao pressuposto errado de que o conhecido e o produzido sejam a mesma coisa. Na realidade, há uma cooperação de todas as forças mentais no processo produtivo, de modo que um poema ou uma carta de Paulo contém mais do que apenas conhecimento. Em seu sentido mais amplo, a filologia nada mais é do que o nexo das atividades pelas quais o elemento histórico é levado ao entendimento. Assim, ela passa a ser o nexo orientado para o conhecimento do singular. A economia estatal dos atenienses é também uma realidade particular, mesmo que se apresente como um sistema que possa ser explicado em termos de relações universais. As dificuldades inerentes a esses conceitos podem ser resolvidas levando-se em consideração a trajetória do desenvolvimento da filologia e da história como disciplinas. Deve haver unanimidade no reconhecimento de que existe diferença substan cial entre o singular, como algo valioso em si, e o conhecimento do nexo geral siste mático das ciências do espírito. Que há necessidade de estabelecerem-se regras para essa delimitação é bastante claro. Visto que é óbvio (contra Wundt) que existe uma reciprocidade, tanto que a filologia também precisa de um conhecimento sistemático especializado da política etc. A filologia estabeleceu-se como o conhecimento daquilo que está contido nas obras literárias. Com a inclusão dos monumentos, seu objeto passou a ser aquilo que Schleiermacher chamou de atividade simbólica. A história, por sua vez, começou com atividades políticas, guerras..., constituições. Mas essa diferenciação, de acor do com seu conteúdo, ficou ultrapassada quando a filologia, como disciplina prática, passou também a incluir em seu domínio documentos oficiais antigos. Em contra partida, desenvolveu-se a diferença entre atividades metódicas e narrativa histórica. 384
O NASCIMENTO DA HERMENÊUTICA
Mas essa diferença também acabou ultrapassada pela disciplina prática, na medida em que ela incorporou a literatura antiga e a história da arte. A relação entre filo logia e história envolve a necessidade de estabelecer seus limites. Isso só é possível quando se deixa de lado o interesse prático das disciplinas, o que se encontra melhor ilustrado por Hermann Usener. Já que devemos conceber todo o processo de vir a conhecer o que é o singular como um nexo, surge então a questão em relação à possibilidade de distinção entre o compreender e o explicar. Essa diferenciação é impossível, uma vez que constata ções gerais participam de todo entendimento em forma de conhecimento prático, não diferenciado, por meio de um processo análogo à dedução, e isso não só em relação a constatações psicológicas, mas também etc. Trata-se, portanto, de uma sequência gradativa. Quando as constatações são aplicadas consciente e metodicamente, com o objetivo de trazer o que é singular ao nível do conhecimento geral, é válido usar a expressão explicação para esse tipo de conhecimento. Mesmo assim, seu uso só se justifica na medida em que temos consciência de que isso não deve implicar a disso lução completa do singular no geral. Isso nos permite resolver a controvérsia em torno da questão: se a fundamen tação universal da compreensão é provida pela reflexão sobre as experiências psíqui cas ou pela ciência da psicologia. Quando a técnica do conhecimento daquilo que é singular culmina em explicação, então a ciência da psicologia é justamente tão ba silar quanto as demais ciências do espírito sistemáticas. Já demonstrei essa relação no caso da história. III
A relação da técnica com os procedimentos da própria interpretação é, nesse caso, a mesma encontrada na lógica ou na estética. Pela técnica explica o procedi mento expresso em fórmulas, e estas são derivadas do sistema finalístico em que é criado o procedimento. Por meio dessa técnica é reforçada a energia do movimento espiritual que nele se exgfime, já que a arte da técnica eleva o procedimento ao ní vel da virtuosidade consciente, desenvolvendo as consequências possibilitadas pela fórmula. Dando a conhecer suas razões de ser, ela aumenta a certeza com que o pro cedimento é executado. Existe outro efeito que é mais fundamental. Para conhecê-lo, é necessário que nos movamos para além dos diversos sistemas hermenêuticos particulares, com vis tas a alcançar seu contexto histórico. Toda técnica é limitada por um procedimento que é válido para um determinado período, cuja fórmula ela desenvolve. Uma vez que o pensamento histórico torna-se suficientemente maduro, desponta a tarefa para 385
FILOSOFIA E EDUCAÇÃO: TEXTOS SELECIONADOS
hermenêutica e crítica, para estética e retórica, ética e política de finalmente comple tar, por meio de uma fundamentação histórica nova, a antiga fundamentação dessas disciplinas a partir de seu nexo finalista. A consciência histórica precisa erguer-se acima do procedimento de uma época isolada. E ela é capaz disso, desde que reúna em si todas as orientações anteriores dentro do nexo finalista da interpretação e da crítica, da poesia e da eloquência, ponderando-as e delimitando-as, esclarecendo seu valor em função da relação com esse próprio nexo finalista e determinando os limites pelos quais faz justiça ao potencial humano. Assim a consciência histórica finalmen te compreende todas essas tendências históricas dentro de um nexo finalista, como uma série de possibilidades contidas nele. No entanto, para esse trabalho histórico, é sumamente importante que ela possa contar, como uma espécie de abreviaturas das tendências históricas, com as fórmulas da técnica. Por essa razão, encontra-se, na reflexão sobre o procedimento - pelo qual um nexo finalista consiga resolver as ta refas contidas nele -, uma dialética interna que faz com que essa reflexão, passando por tendências historicamente limitadas e pelas fórmulas que correspondem a essas tendências, progrida rumo a uma universalidade que está sempre e em todo lugar li gada ao pensamento histórico. Como em todas as situações, o pensamento histórico torna-se, ele próprio, criativo, elevando a ação do ser humano na sociedade acima dos limites do momento e do lugar. Essa é a perspectiva sob a qual o estudo da história da arte hermenêutica está ligado ao estudo do procedimento interpretativo, estando ambos relacionados à tarefa sistemática da hermenêutica.
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