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CULTURA E SOCIABILIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA
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FESTA CULTURA & SOCIABILIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA VOLUME I
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P linio M artins Filho
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P linio M artins F ilho (Presidente) Jo sé M indlin L aura de M ello e Souza M urillo M arx O sw ald o Paulo Forattini
D ireto ra E d ito ria l D ireto ra C om ercial D ireto r A d m in istra tiv o E d ito r-a ssisten te
Imprensa Oficial i D ire to r-P residente D ireto r Vice-P residen te D ireto r In d u stria l D ireto r F inanceiro e A d m in istra tiv o C o o rd en a d o r E d ito ria l
S ilv an a Biral E liana U rabayashi R enato C albucci João B andeira
IM P R E N S A O F IC IA L D O E S T A D O
Sérgio K obayashi Luiz C arlos Frigerio C arlos N icolaew sky R ichard V ainberg C arlos T aufik H addad
ISTVÁN JANCSÓ I RI S K A N T O R ORGANIZADORKS
FESTA CULTURA & SOCIABILIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA
VOLUME
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I
Imprensa Oficial í
Copyright O 2001 by István Jancsó e íris Kantor (orgs.)
Dados Internacionais de C atalogação 11a Publicação (C1P) (C âm ara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Festa : C ultura & Sociabilidade na Am érica Portuguesa, volum e I / István Ja n c só , íris K an to r (orgs.). - São P aulo : H ucitec : E ditora da U niversidade de São P aulo : Fapesp : Im prensa O ficial, 2001 - (Coleção E stante USP - Brasil 500 A nos; v. 3). Vários autores. ISBN: 8 5 -3 14-0620-X (Edusp) 85-271-0555-1 (Hucitec) 85-271-0556-X (Hucitec) 1. Brasil - H istória - 1500-2000 2. Brasil - Usos e cos tumes 3. C ultura - Brasil 4. Festas - Brasil - H istória I. Jancsó, István. II. K antor, íris. III. Série.
01-1898
CDD-981 índices para catálogo sistemático:
1. América Portuguesa : Festas : H istória 2. Brasil : Festas : H istória
981
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3. Festas : Am érica Portuguesa : H istória
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Direitos reservados à Edusp - E ditora da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano G ualberto, Travessa J, 374 6° andar - Ed. da Antiga Reitoria - Cidade Universitária 05508-900 - São Paulo - SP - Brasil Fax (O xxll) 3818-4151 Tel. (O xxll) 3 8 1 8 -4 0 08/3818-4150 w w w .usp.br/edusp - e-mail: edusp@ edu.usp.br Impresso no Brasil
2001
Foi feito o depósito legal
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Rua da M ooca, 1921 - M ooca Paulo - SP - C E P 03103-902 P a b x : ( O x x l l ) 6099-9800 S A C 0800-123401 E-mail: editorial@ im prensaoficial.com . w w w .im prensaoficial.com .br/livraria São
SUMÁRIO
Falando de festas I
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A FESTA NA EN C R U ZILH A D A DAS TEM PO R A LID A D ES Despedidas triunfais — celebração da morte e cultos de memória no século XVIII A
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Teatro em música no Brasil monárquico L
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Veneza, África, Babel: leituras republicanas, tradições coloniais e imagens do carnaval carioca M
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FESTA BARROCA E CULTURA PO LÍTIC A N O A N T IG O REG IM E Etiqueta e cerimônias públicas na esfera da Igreja (séculos XVII-XVIII) José
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Entradas solenes: rituais comunitários e festas políticas, Portugal e Brasil, séculos XVI e XVII P
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S UMÁRIO
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Entre festas e motins: afirmação do poder régio bragantino na América portuguesa (1690-1763) R
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Uma embaixada africana na América portuguesa S
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Entradas episcopais na capitania de Minas Gerais (1743 e 1748): a transgressão formalizada I
127
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F e sta s barrocas e vida co tid ian a em M inas G erais L a u r a d e M e i. lo e S o u z a
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A D OCE PERSUASÃO FESTIVA: EVANGELIZAÇÃO E RESISTÊN C IA Festa e inquisição: os mouriscos na cristandade portuguesa dos quinhentos R
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Da festa tupinam bá ao sabá tropical: a catequese pelo avesso R
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História, mito e identidade nas festas de reis negros no Brasil — séculos XVIII e XIX M
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A propósito de cavalhadas M
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SUBVERSÕES E INVERSÕES DA O RDEM FESTIVA A revolta é uma festa: relações entre protestos e festas na América portuguesa L
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A serração da velha: charivari, morte e festa no mundo luso-brasileiro M
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O enterro satírico de um governador: festa e protesto político nas Minas setecentistas A
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Da festa à sedição. Sociabilidades, etnia e controle social na América portuguesa (1776-1814) L u iz G e r a l d o S i l v a
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Batuque negro: repressão e permissão na Bahia oitocentista
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SUMÁRIO
IX
SO LID A R IED A D ES FESTIVAS E VIDA CONFRARIAL Festas e rituais de inversão hierárquica nas irmandades negras de Minas colonial M
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Transitoriedade da vida, eternidade da morte: ritos fúnebres de forros e livres nas Minas setecentistas J
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A redenção dos pardos: a festa de São Gonçalo Garcia no Recife, em 1745 R
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VIDA M ATERIAL E CULTURA FESTIVA Folguedos, feiras e feriados: aspectos socioeconômicos das festas no mundo dos engenhos V
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449
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Bebida alcoólica e sociedade colonial
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JULITA SCARANO
Os gastos do senado da câmara de Vila Rica com festas: destaque para Corpus Christi (1720-1750) C
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Celebrando a alforria: amuletos e práticas culturais entre as mulheres negras e mestiças do Brasil E
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Unidade e diversidade através da festa de Corpus Christi B
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FESTAS NA C O R TE PORTUGUESA L itu rg ia real: e n tre a p erm a n ê n c ia e o efêm ero I a r a L is C a r v a l h o S o u z a
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O fim da festa. Música, gosto e sociedade no tempo de D. João VI
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O Tejuco faz a festa. Festejo cívico no arraial do Tejuco em 1815 C
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VISÕES D li VIAJANTES EUROPEUS: EXOTISMO E BARBÁRIE Viajantes em meio ao império das festas
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Viajantes vêem as festas oitocentistas K
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A FESTA DOCUM ENTADA: ASPECTOS H ISTO RIO G RÁ FICO S A escrita da festa: os panfletos das jornadas filipinas a Lisboa de 1581 e 1619
639
A na P aula T orres M egiani
Revisitando São Luís do Paraitinga. Continuidades e rupturas
657
Jaime de A l m e id a
Histórias da “música popular brasileira”: uma análise da produção sobre o período colonial
683
M ari ha A breu
A FESTA COM O REPRESENTAÇÃO Palavras em movimento: as diversas imagens quinhentistas e a univ ersalidade da revelação
705
G u i l h e r m e A m a r a l L uz
Sermões: o modelo sacramental A lcir P écora A categoria "representação" nas festas coloniais dos séculos XVII e XVIII
717
735
JoAo A dolfo H ansen
Abuso e bom uso: discurso normativo e eventos festivos nas Cartas Chilenas J o ac 11 P e r e ir a F u r ta d o Expectativa e metamorfose: saudades da Idade de Ouro na América portuguesa
759
775
S ércho A l c i d e s
A MEMÓRIA GESTUAL E SONORA DA VIDA FESTIVA O USO DAS FONTES Música das festas: a memória perdida J osé R amos T inhorão
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S U M A RIO
A d an ça na fe sta colonial M
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A Procissão do Enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América portuguesa P
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A outra festa negra P
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A flauta de mutuiú: registro, memória e recriação musical de festas
no Brasil nos séculos XVI e XVII A na
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FESTAS SINGULARES O festejo dos santos a bordo das embarcações portuguesas dos séculos XVI e XVII: sociabilização ou controle social? F
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Catolicismo devocional, festa e sociabilidade: o culto da Virgem de Nazaré no Pará colonial G
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Cavalhadas na América portuguesa: morfologia da festa José A
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O Divino e a “Festa do Martírio” B
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A PR O PÓ SITO DA FESTA Festa, trabalho e cotidiano N
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Ideologia, colonização, sociabilidade: algumas considerações metodológicas M
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FESTA CULTURA & SOCIABILIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA VOLUM E I
FALANDO DE FESTAS “N o sábado seguinte a cidade revestira desusado aspecto. D e toda parte correra uma chusm a de povo que ia assistir à festa anual do Espírito Santo. Vão rareando os lugares em que de todo se não apagou o gosto dessas festas clássicas, resto de outras eras, que os escritores do século futuro hão de estudar com curiosidade, para pintar aos seus contem porâneos um Brasil que eles já não hão de conhecer.”
Machado de Assis"
C o m o m u i t o d o q u e É de interesse vindo da academia, a trajetória deste livro teve início em sala de aula. Foi durante um curso de graduação em História na Universidade de São Paulo, que duas estudantes revelaram inte resse em prosseguir na análise do documento proposto para exercício em classe: a Relação das Faustíssimas Festas, Que Celebrou a Camera da Vil/a de N. Senhora da Purificação, e Santo Amaro da Comarca da Bahia Pelos Augustissimos Desposorios da Sereníssima Senhora D. M aria Princeza do B razil com o Sereníssi mo Senhor D. Pedro Infante de Portugal, Dedicada ao Senhor Sebastião Borges de Barros As atividades extraclasse que então tiveram início (estávamos em outubro de 1998) resultaram, um ano depois, no Seminário Internacional “Festa: Cul tura e Sociabilidade na América Portuguesa”, e, passado outro ano, nos dois volumes que trazem boa parte do que foi então apresentado. A idéia original do Seminário trazia em si a perspectiva de um balanço do “estado da arte”, matriz de onde o que veio a seguir retirou seu caráter de amostra (ainda que incompleta) do que de relevante se está fazendo em ter mos de investigação no Brasil — com o precioso contraponto da contribuição de estudiosos portugueses. Retrato de um momento, o conteúdo deste livro
Em “A parasita azul”, in: Contos/urna antologia (introdução e notas de John Gledson), vol. 1. São Paulo: Com panhia das Letras, 1998, p. 193. 1 D e autoria de Francisco Calmon, publicado em Lisboa na Oficina de Miguel Manescal da Costa, no ano de 1762.
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IST VÁN JANCSÓ
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situa-se tanto em linha de continuidade com distintas tradições presentes na historiografia brasileira sobre festas, quanto contrapõe-se a estas na busca de novas possibilidades interpretativas. Quanto a isso, um lançar de olhos sobre a lenta evolução das grandes linhas que conformam uma tradição de estudos sobre os fenômenos festivos que precedem a recente renovação aqui docu mentada pode ter alguma utilidade. Em andam ento cronológico, podemos identificar um primeiro grupo de trabalhos, produzidos a partir do último quartel do século XIX, obras de memorialistas, viajantes, literatos e juristas, buscando nas manifestações lúdicas os fundamentos ontológicos, étnicos e raciais da nacionalidade brasileira.2 N aquele momento, o interesse dos intelectuais pelas culturas populares pa gava tributo às teorias racialistas em voga na passagem do século, apesar de, ou até por conta disso, identificarem na mestiçagem em larga escala o traço mais marcante da sociedade brasileira.3 Ao encontro dessa perspectiva natu ralista e organicista dos fenômenos culturais, podemos alinhar as incursões dos historiadores que lhes seguiram no interesse pela descrição de cenas da vida cotidiana brasileira de antanho, descrições já então calçadas em docu mentação manuscrita inédita, a exemplo de Vieira Fazenda, Basílio de Maga lhães, Moreira de Azevedo, Affonso E. Taunay, Wanderlei Pinho, M anuel Quirino, Ernâni da Silva Bruno, entre muitos outros.4
2 Para uma interpretação do pensam ento social brasileiro na passagem do século ver as se guintes obras: Antonio Cândido de Mello e Souza. Silvio Romero: teoria, crítica e história literária. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978; Roberto Ventura. O estilo tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1991; Carlos G uilherm e Mota. A ideologia na cultura brasileira. São Paulo: Ática, 1978; Renato Ortiz. Cultura popular, românticos efolcloristas. São Paulo: Olho d ’Água, 1992; Flora Sussekind. O Brasil não é longe daqui. São Paulo: Com panhia das Letras, 1990; Lilia M. Schwarcz. O espetáculo das raças. São Paulo: Com panhia das Letras, 1993; Claudia Neiva Matos. “Poesia popular c literatura nacional: os inícios da pesquisa folclórica no Brasil e a contribuição de Silvio Romero”, in: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 28, Rio de Janeiro, 1999; M artha Abreu. “Mello Morais Filho: festas, tradições populares e identidade nacional”, in: Sidncy Chaloub & Leonardo Perei ra. A história contada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 3 Sílvio Romero. Folclore brasileiro (incluindo “Cantos populares do Brasil”, de 1883, e “Con tos populares do Brasil” de 1885, com o prefácio e notas de Luís da Câmara Cascudo). Rio de Janeiro: José Olvmpio, 1954, 3 v.; Mello Moraes Filho. Festas e tradições populares no Brasil. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp, 1979; Tristão de Alencar Araripe Jr. Obra crítica. Rio de Janeiro: MEC-Casa de Rui Barbosa, 1963, 5 v.; José Veríssimo. Estudos sobre a poesia popidar no Brasil, 1888, ou a História da literatura brasileira. Brasília: UNB, 1991 (l.“ ed. 1901); Luís Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938, além de O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis. Rio de Janeiro: Conquista, 1956; Nina Rodrigues. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio dc Janeiro: Civilização Brasileira, 1935. 4 José Vieira Fazenda. “Antiqualhas c memórias do Rio dc Janeiro”, in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 86, Rio dc Janeiro, volume 140, 1919; Basílio de Magalhães. O folclore no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1939; Afonso d ’E. Taunay. “F esti vidades setecentistas”, in: Revista do Arquivo M unicipal de São Paulo, XV, São Paulo, 1935; M anuel Querino. Costumes africanos no Brasil. 2.” ed. Recife: Massangana, 1988; Wanderley
FALANDO
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FESTAS
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A partir da década de trinta, sob o impacto do movimento modernista e impulso da institucionalização do ensino de ciências sociais no país, configu rou-se um segundo momento. Ainda que não seja recomendável opor o mo dernismo à em ergente produção universitária que, à sua maneira, nele se integrava,5 é neste âmbito que se dá a atribuição de renovada importância aos estudos sobre as manifestações festivas já nas primeiras gerações de cien tistas sociais, dentre os quais Antonio Cândido, Maria Isaura Pereira de Q uei roz, Florestan Fernandes, Lavínia Costa Raymond, Oneida Alvarenga, Alceu Maynard Araújo, Mário Wagner Vieira da Cunha, Otávio da Costa Eduardo e outros autores, cujos estudos distinguem-se dos trabalhos precedentes sob diversos aspectos.6 A rotinização do contato com a produção sociológica e antropológica européia e norte-americana pode ser observada nas diferentes formas pelas quais as teorias e técnicas de investigação foram incorporadas, e a partir das quais se procurou dar um tratamento menos folclórico e mais sociológico aos dados coletados nas pesquisas de campo.7 As preocupações dos cientistas sociais centraram-se no impacto sobre as culturas tradicionais dos processos de urbanização acelerada, no papel da mestiçagem, no sincre-
Pinho. Salões e damas do Segundo Reinado. 4.“ ed. São Paulo: Livraria Martins, 1970; Ernâni da Silva Bruno. História e tradições da cidade de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1984 ( l.a ed. 1954), 3 v. 5 Q uanto a isso vide, de Ricardo Benzaquen Araújo, tanto Guerra e paz. Casa grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994, quanto Totalitarismo e revolução. O integralismo de Plínio Salgado. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 1988. Sobre o diálo go entre gerações vide, de Dain Borges, “T h e recognition of afro-brazilian symbols and ideas, 1890-1940”, in: Luso-Brazilian Review, 32(2), 1991. 6 Antonio Cândido de Mello Souza. “Opiniões e classes em T ie tê”, in: Sociologia, São Paulo, Escola de Sociologia e Política de São Paulo, IX (2), 1947 e Parceiros do rio Bonito. Rio de Janeiro: Liv. José Olympio Ed., 1964; Maria Isaura Pereira Queiroz. Sociologia e folclore: a dança de S. Gonçalo num município bahiano. Bahia: Livraria Progresso Editora, 1958, e “D an ça de São Gonçalo, fator de homogeneização social numa comunidade do interior da Bahia”, in: Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 6, junho 1958. D e Florestan Fernandes. “Mário de Andrade e o folclore brasileiro”, in: Revista do Arquivo Municipal, D epartam ento dc Cultura, São Paulo, CVI, 1946; “Folclore e mudança social na cidade de São Paulo, São Paulo”, in: Anhembi, 1961 (1.* ed. 1942); “Congadas e batuques em Sorocaba”, in: Sociolo gia, São Paulo, 5(3); “Sociologia e folclore”, in: Revista do Arquivo M unicipal, São Paulo, 1949, v. 122. De Lavínia Costa Raymond. Algumas danças populares no Estado de São Paulo. São Paulo: FFLCH/USP, 1954. De Oneida Alvarenga. “Comentários a alguns cantos c danças do Brasil”, in: Revista do Arquivo Público M unicipal, 1941, v. LXXI. D e Alceu M. Araújo. Folclore nacional. São Paulo: Melhoramentos, 1968, 3 v.; de Mario Wagner Vieira da Cunha. “Festas dc Bom Jesus dc Pirapora”, in: Revista do Arquivo Público, São Paulo, v. XLI e Festivais and social rhythm in the ligth offuncionalist theories. Chicago, 1944; de Otávio da Costa Eduardo. “Aspectos do folclore de uma com unidade rural”, in: Revista do Arquivo M unicipal, São Paulo, v. CXLIV, 1951. 7 Antonio Cândido de Mello e Souza. “Informação sobre a Sociologia em São Paulo”, in: Ensaios paulistas. São Paulo: Anhembi, 1958; Sérgio Miceli (org.). História das ciências so ciais no Brasil. São Paulo: Vértice, 1989; Mariza Corrêa. “Traficantes do excêntrico: os antro pólogos no Brasil dos anos 30 aos anos 60”, in: Revista Brasileira de Ciênáas Sociais, 6, 1988.
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IST VÁN
JANCSÓ
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IRIS
KANTOR
tismo religioso, nos processos de aculturação e integração dos imigrantes es trangeiros à cultura local.8 Em relação à visão do período colonial, tais estu dos tenderam a conceber o passado colonial como “heranças” 0 11 “persistên cias” não superadas no processo de modernização da sociedade brasileira após a revolução de 1930, com esta “herança colonial” explicando a persistência de certos códigos arcaicos presentes nas formas de sociabilidade marcadas na sua origem pelo escravismo. Em paralelo com o avanço da produção universitária, uma geração de estu diosos capitaneada por Mário de Andrade,9 Luís da Câmara Cascudo, Artur Ramos e Edison Carneiro, renovava a pesquisa folclórica, estabelecendo no vos paradigmas para o estudo das manifestações populares brasileiras.10 Fa miliarizada com a produção etnológica européia e americana, a nova safra de folcloristas distanciava-se da perspectiva pitoresca e do costumbrismo oitocentista. Em São Paulo, as pesquisas folclóricas foram divulgadas através da Revista do Arquivo Público Municipal de São Paulo, editada pelo Departam ento de Cultura por iniciativa de Mário de Andrade. No plano nacional, tanto a revista do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, quanto Cultura e Política promoveram a publicação dos estudos folclóricos que contavam com boa acolhida no âmbito do projeto varguista de nacionalização da cultura bra sileira.11 Essa alavancagem oficial propiciou a formação de extensa rede na cional de associações de folclore e etnografia,12 que paradoxalmente resultou
8 Sylvia Garcia. Sociologia como ciência: liberalismo e radicalismo no período deformação de Florestan Fernandes (1941-1953). Doutoramento em Sociologia. São Paulo: USP, 1997; Fernanda Massi. Diálogos brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide. Doutoram ento em Antropologia. São Paulo: USP, 1998. 9 Mário de Andrade. A arte religiosa no Brasil. São Paulo: Experim ento, 1993; Danças dram á ticas. Belo Horizonte: Itatiaia-IN L, 1982; Luiz da Câmara Cascudo. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988; Arthur Ramos. Cultura negra no Brasil. São Paulo: Nacional, 1942; Edison Carneiro. Negros bantus: notas de etnografta religiosa e defolclore. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937. 10 Mário de Andrade. “Folclore”, in: M anual bibiliográftco de estudos brasileiros-, Marcos Silva. “Câmara Cascudo e a erudição popular”, in: Projeto História, São Paulo: PUC, 11, 1999; Luís Rodolfo da Paixão Vilhena. Projeto e missão — 0 movimento folclórico brasileiro 19471964. Rio de Janeiro: FGV-Funarte, 1997 e “Os intelectuais regionais: os estudos do fol clore e o campo das ciências sociais nos anos 50”, in: Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32, Rio de Janeiro, 1996. 11 Angela dc Castro Gomes. História ehistoriadores. Rio de Janeiro: Fundação G etúlio Vargas, 1996; Maria C lem entina Pereira da Cunha. “Folcloristas e historiadores no Brasil: pontos para um debate”, in: Projeto História, São Paulo, PUC, 16, 1998. Para o período im ediata m ente anterior à “era Vargas” e com especial atenção para o papel dc M onteiro Lobato, vide, de Tania Regina de Luca. A Revista do Brasil — Um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Edunesp, 1999. 12 Sociedade de Etnografia/SP, Instituto Brasileiro de Folclore/RJ, Sociedade Brasileira dc Folclore no Rio Grande do N orte e Piauí; Primeiro Congresso Afro-Brasileiro cm Salvador em 1938.
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ser importante na eoibição da repressão policial às manifestações religiosas populares, numa conjuntura de violenta pressão sobre os cultos afro-brasileiros levada a cabo pelo governo de Getúlio Vargas. A produção do movimento folclórico e etnográfico das décadas trinta e quarenta não se confundiu com a produção acadêmica do mesmo período, ainda que se deva assinalar o diálogo entre folcloristas e cientistas sociais naquele momento. Colaborações mútuas e influências recíprocas entre os dois campos estimularam o debate e apontaram para a necessidade de estu dos mais monográfícos e menos generalistas. Artur Ramos, Roger Bastide, Donald Pierson e Gilberto Freire levaram os estudos sobre folclore para den tro das universidades já nos inícios dos anos quarenta.13 No que toca aos estudos históricos, vale sublinhar a presença marcante da historiografia francesa entre nós. Em França, historiadores de diferentes áreas dedicaram-se à análise de rituais públicos no Antigo Regime na senda de Marc Bloch, sendo de destacar o estudo de Bernard G uenée sobre as en tradas régias, e a seminal coletânea de trabalhos editada por Jean Jacquot, demonstrando o interesse pela teatralidade barroca e suas dimensões políti cas.14 Foi a partir dos anos setenta, entretanto, que os fenômenos festivos passaram a configurar um campo específico de interesse da nouvelle histoire que, apesar de abrigar diferentes vertentes teóricas, pautou o retorno à his toria “acontecim ental” ao preconizar uma abordagem antropológica dos fenômenos coletivos e da politização da vida cotidiana.15 E videntem ente nada disso deveu-se ao acaso, como lembra Michel Vovelle ao observar que a “redescoberta” da festa pela historiografia francesa
15 Roger Bastide. Ar Américas negras: as civilizações africanas no novo mundo. São Paulo: D ifu são Européia do Livro, 1974; As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpretações de civilização. 3.“ ed. São Paulo: Pioneira, 1989. Donald Pierson. Brancos e pretos na Bahia. São Paulo: Nacional, 1945; Candomblé da Bahia. Curitiba: Guaíra, 1942; Estudos de ecologia humana: leituras de sociologia e antropologia. São Paulo: M artins, 1970. Gilberto Freyre. Sobrados e mocambos. 3.a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961. Vide, também , Mário de Andrade. “Folclore”, in: M anual bibliográfico de estudos brasileiros (orga nizado por Rubens Borba de Morais & William Berrien). Brasília: Senado Federal, 1998. Arthur Ramos. Estudos de folk-lore — definição e limites: teorias e interpretação (prefácio de Roger Bastide). Rio de Janeiro: Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, s.d., e j4j culturas negras no novo mundo. 2.a ed. São Paulo: Nacional, 1946. 14 Marc Bloch. Os reis taumaturgos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, em especial o capítulo “A realeza maravilhosa e sagrada”. Bernard G uenée & F. Lehoux. Les entrées roya/es françaises de 1328 à 1515. Paris, 1969, e a coletânea editada por Jean Jacquot (org.). Lesfêtes de la Renaissance, 3 v. Paris: CNRS, 1975. 15 Michel Vovelle.Lesmétamorphosesdelafêteen Provence. Paris: Aubier-Flamarion, 1976;Mona Ozouf. Lafêterevolutionnaire(1789-1799). Paris: Gallimard, 1976; Y.-M. Bercé. Fêteetrévolte. Paris: H achette, 1976; Em anuel Le Roy Laduri e. Le Carnaval de Romans. Paris: Gallimard, 1979; M aurice Agulhon. “La révolte de 48, un carnaval éphém ère”, in: Autrement, 7. Paris: Seuil, 1976; Jacques Le Goff & Jean-C. Schm itt (org.). Le charivari: actes de Ia table ronde. Paris: EH ESS/CN RS, Mouton Éditeur, 1978.
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contemporânea se insere numa série de mutações da consciência política de correntes dos movimentos de maio de 68.16 Essa preocupação está presente na postura dos autores da coleção História da Vida Privada,17 com sua adesão à perspectiva de tornar crucial a politização das práticas cotidianas por motivo de reconhecerem na emergência de novas formas de sociabilidade privadas e públicas a expressão de processos históricos subjacentes à formação do m un do moderno pré-burguês. A historiografia anglo-saxã também apresentou o interesse crescente pelos estudos dos rituais e fenômenos de sociabilidade coletiva a partir dos anos setenta,18 reforçando entre nós a tendência aponta da, e valorizando a antropologia política e a teoria crítica da literatura como inspiradoras de modelos interpretativos e de novas formas de narrar o aconte cimento festivo. Ao apontarem-se as linhas dominantes que levaram à valorização da festa como objeto de estudo historiográfico nas décadas recentes, seja no Brasil ou no estrangeiro, nunca é demais lembrar o peso da difusão do pensam ento de Mikhail Bakhtin sobre as formas de carnavalização próprias da culturas popu lares, e as oposições entre as linguagens oficiais e espontâneas utilizadas nas praças, feiras e festas públicas para as quais apontou.19 E ao seu lado, cabe apontar, também, para o impacto da sociologia histórica de Norbert Elias, das análises da teologia política tardo-medieval de Ernest Kantorowicz, da com preensão performativa dos dramas sociais de Victor Turner, e da interpreta ção crítica da sintaxe social barroca na perspectiva dc José Maravall, referên cias teóricas am plamente presentes na historiografia brasileira contem porâ nea sobre as sociabilidades cortesãs e a cultura barroca em particular.20 No Brasil, a partir dos anos setenta, toma corpo um terceiro conjunto de estudos sobre as festas brasileiras nos âmbitos da sociologia, da antropologia, da literatura e da crítica de arte, e que tiveram forte impacto no campo histo riográfico, inspirando a nova história cultural brasileira a partir de meados dos
16 M ichel Vovelle. Ideologias e mentalidades. São Paulo, 1987, p. 246. 17 Coleção dirigida por George Duby & Philippe Aries. Aqui nos referimos ao volume 3, organizado por Ariès & Roger Chartier. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 (l.a edição francesa de 1986). 18 Edward Thom pson. “Rough Music” in: Customs in Common. Londres: Penguin, 1991; Roy Strong. Arte e poder: fiestas dei Renacimiento. Madri: Alianza Forma, 1984; N atalie Davis. “T h e reasons of misrule”, in: Past and Present, 50, 1971, e “Rites of Violence” in: Society and culture in early modem France. Stanford, 1975. De Peter Burkc. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 19 Mikhail Bakhtin. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: H ucitec-Edunb, 1970. 20 N orbert Elias. A sociedade de corte. Lisboa: Estampa, 1987; Ernest Kantorowicz. I.os dos cuerpos dei rey: un estúdio de teologia política medieval. Madri: Alianza Universidad, 1985; VictorTurncr. Theforestofsymbols. Nova York: Cornell Univcrsity Press, 1967; José Maravall. A cultura do barroco. São Paulo: Edusp, 1999.
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anos oitenta.21 É nesse âmbito que ganha importância a obra de Affonso Ávi la, crítico de arte e historiador da cultura que já durante os anos sessenta procurava tratar as festividades públicas mineiras como fatos sociais totais.22 A festa barroca, no entender de Ávila, representa um fato civilizacional, uma form a mentis que se expressa através de uma cultura lúdica, sensorial e persuasória,23 com o que pôs em evidência a complexidade sociopolítica do fe nômeno festivo, momento de reiteração da ordem política metropolitana, mas também promotor de novas possibilidades de, por exemplo, integração dos mulatos na sociedade mineradora. Identificando a festa barroca com o carna val contemporâneo, ele apontou para a persistência de certas formas estéti cas, chegando a anunciar, por meio da aproximação meta-histórica entre a festa barroca e o carnaval contemporâneo, novas possibilidades para a com preensão das conexões entre a identidade nacional e a festa.24 A edição crítica de fontes documentais então encetada permitiu a renova ção das abordagens e ampliou as possibilidades de reconstituição histórica dos múltiplos aspectos da vida festiva, com o que gerações de estudiosos tornaram-se devedores de José Aderaldo Castello e sua equipe pela publica ção, na década dos setenta, dos textos do movimento academicista no Bra sil,25 como também o são de Curt Lange por seu extraordinário levantam en to da vida musical em Minas Gerais, fundamental para o estabelecimento de novo patamar de qualidade para as pesquisas de historiadores e musicólogos nas últimas décadas.26 C om a construção destes novos instrumentos de pes quisa, já se torna visível maior sofisticação das abordagens e a confrontação crítica de diferentes tipos de documentação, envolvendo não só a literatura de viagens, memórias, romances, panegíricos, fontes judiciárias e criminais,
21 Roberto da Matta. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1979; Carlos Rodrigues Brandão. O divino, o santo e a senhora. Rio de Janeiro: Funarte, 1978; Marlyse Meyer. Caminhos do imaginário no Brasil. São Paulo, 1993; Maria Lucia M ontes. “Entre o Arcaico e o Pós-Moderno: heranças barrocas e a cultura da festa na construção da identida de brasileira” in: Sexta Feira, Departam ento de Antropologia da USP, v. 2, 1998; Olga V. Simpson. “Espaço urbano e folguedo carnavalesco no Brasil”, in -.Cadernos CERU, 1 5 ,1981; Maria Isaura Pereira de Queiroz. Carnaval brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1992. 22 Laura de Mello e Souza. “Aspectos da Historiografia da Cultura sobre o Brasil Colonial”, in: Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto-U niversidade São Francis co, 1998, p. 30-1. 23 Affonso Ávila. Resíduos seiscentistas em Minas. 2 v. Belo Horizonte: Centro de Estudos M i neiros, 1967, e O lúdico e as projeções do barroco. São Paulo: Perspectiva, 1971. 24 Maria Lucia Montes. Op. cit. 25 José Aderaldo Castello (comp.). O movimento academicista no B rasil (1641-1822). 14 v. São Paulo: Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1969-78. 26 C urt Lange. História da música nas irmandades de Vila Rica. v. 1 e 5. Ouro Preto: Conselho Estadual de Cultura dc Minas Gerais, s.d.; e “Danças coletivas públicas no período colo nial brasileiro e as danças das corporações de ofícios em Minas Gerais”, in: Barroco, 1, Belo Horizonte, 1969.
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além de documentos cartoriais, recenseamentos e fontes camerárias e ecle siásticas, relação que, percebe-se, está longe de ser completa,27 e à qual cabe acrescentar o crescente recurso à documentação iconográfica, aos objetos de cultura material e aos registros da memória oral e gestual. Não surpreende, portanto, que a relação dos estudos que buscam avaliar o lugar das festas e ritos da vida coletiva na formação da sociedade colonial e pós-colonial tenha ganho em escala e diversidade,28 sendo de notar que essa tendência vem sendo enriquecida pela historiografia da vida privada no Bra sil que, recentem ente, tem chamado atenção para a importância do estudo das sociabilidades festivas num cotidiano marcado pela itinerância geográfi ca, dispersão espacial, instabilidade econômica e fluidez da sedimentação social.2<) Quanto a isso, é sempre oportuna a lembrança da poderosa intuição de Alejo Carpentier sugerindo que, se os livros de cavalaria foram escritos na Europa, eles, certamente, foram vividos na América. Aqui, as festividades religiosas procuraram teatralizar o processo de conquista da América, transfi gurando simbolicamente a violência dos contatos em processos de tradução e interação cultural entre o Velho e o Novo Mundo, constituindo-se em portas
27 Lembramos aqui linhas dc pesquisa desenvolvidas rccentcm ente pelos historiadores da Universidade Federal Flum inense, da Unicamp e da Unesp de Franca: Rachel Soihet. “A subversão pelo riso: da Bcllc Époque ao Tem po dc Vargas”; os trabalhos dc Angela dc Castro Gomes, Maria C lem entina P. da Cunha e Marta Abreu apresentados no Congresso Nacional da Anpuh em Belo Horizonte, publicados na revista Projeto H istória, São Paulo, PUC, 16, 1998, p. 147-77; o projeto integrado de pesquisa sobre cultura popular desenvol vido no âmbito da pós-graduação cm História na Unicamp; os trabalhos do grupo de estu dos sobre festas promovidos pela pós-graduação da Unesp (Franca). 2S Jaime de Almeida. Foliões. Tese de doutoram ento em História. São Paulo: USP, 1987; João José Reis. A morte é uma festa. São Paulo: Com panhia das Letras, 1991; José Luiz Dutra Toledo. Simbo/ogia e luxo no Triunfo Eucarístico — Vila Rica 1733. Dissertação de mestrado. Franca: Unesp. 1988; Maria Euridice dc Barros Ribeiro. Os símbolos do poder. Brasília: UNB, 1995; Marina Mello e Souza. Parati: A cidade e as festas. Rio de Janeiro: Editora UFRJTcm po Brasileiro, 1994; Mary Del Priore. Festas e utopias no B rasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994; Martha Abreu. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro-São Paulo: Nova Fronteira-Fapesp, 1999; Luiz Geraldo Silva. A fa in a , a festa e o rito: Gentes do m ar e escravidão no B rasil. T ese de doutoram ento em História. São Paulo: USP, 1996; Iris Kantor. Pacto festivo em M inas Colo nial. Dissertação de mestrado em História. São Paulo: USP; Carla Chamon. Festejos imperiais (1815/1845). Dissertação de mestrado em História. Belo Horizonte: U FM G, 1996; Iara Lis Carvalho Souza. A patria coroada: B rasil como corpo político autônomo 1780-1831. São Paulo: Edunesp, 1999; José Artur Teixeira Gonçalves. Cavalhadas: das lutas medievais às festas no Brasil colonial. Dissertação dc mestrado cm História. Assis: Unesp, 1998; C lcbcr Cristiano Prodanov. Culturaesociedademineradora:Potosí 1569-1670. Tese de doutorado em História. São Paulo: USP, 1998; Rodrigo Bentes Monteiro. O rei no espelho. Tcsc dc doutoram ento cm História. São Paulo: USP, 1999. 29 Fernando Novais. “Condições da privacidade na colônia” in: Cotidiano e vida privada na América portuguesa, p. 28-30.
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de acesso às estratégias de resistência e contrafação dos envolvidos diante do avassalador peso dos modelos europeus. O que durante séculos foi uma constante, ganhou nova m agnitude na América portuguesa quando a descoberta do ouro em Minas representou um novo momento do processo colonizador, correspondendo à plenitude do re gime de festividades barrocas nos principais centros urbanos de então. Da teatralização da Conquista passava-se à exaltação da Vitória, tão bem expres sa nas alegorias dos Triunfos Cristãos comemorados nas festas de Corpus Christi em todo o império português.30 Se a festa barroca permitia essa universalização da missão catequética portuguesa, ela também emulou o enraizamento das estruturas de poder local na América. Assim, pode-se dizer que no nível local os senados da câmara, os bispados e ordens religiosas, as irmandades e santas casas de misericórdia impeliam os moradores aos constrangimentos da vida festiva. Inseridas na lógica da cultura política do Antigo Regime, as pessoas recebiam, davam e retribuíam nas ocasiões festivas, pondo em circulação solidariedades, mercadorias, os costumes e as regras que orientavam a vida so cial. Seja no financiamento das armações efêmeras, da iluminação pública, dos fogos de artifício e divertimentos públicos, ou mesmo, mediante a práti ca da etiqueta ou a exibição da pompa, a festa barroca luso-americana procu rava impor uma ordenação formal a um mundo aparentem ente instável. De fato, a provisoriedade que caracteriza as formas de existência em colônia en contra poderoso contraponto na aparente fixidez dos modelos societários que buscam enquadrar a colonização americana numa lógica européia. Como é sabido, a colonização constituiu-se em em preendim ento de sucesso multissecular, dotado de enorme capacidade de adequação de meios a objetivos. Hoje percebe-se com crescente nitidez que essa adaptabilidade resultou em complexas formas de sociabilidade expressando tanto os limites da eficácia dos paradigmas metropolitanos, quanto revelando a necessidade de recurso àqueles paradigmas, recurso insubstituível para conferir consistência aos fun damentos ideológicos da colonização. Esse problema, que é parte constitu tiva de toda indagação historiográfica que contempla a formação na nação brasileira, encontra na interseção da cultura e das práticas festivas (necessa riamente codificadas) promissor terreno para seu melhor entendim ento. E algo sem elhante se constata relativamente ao período que se abre com a transferência da Corte bragantina para o Rio de Janeiro, quando muda a na tureza da tensão entre paradigmas e práticas efetivas em contextos de socia bilidade do que fora a América portuguesa tornada, na soma possível das partes daquela, o Brasil feito Estado soberano, com seus naturais pensando-
30 Adalgisa Arantes Campos. “O Triunfo Eucarístico: hierarquias e universalidade”, in: Bar roco, 15, Ouro Preto, 1989.
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se nacionais dele. Esse desenhar-se de uma ruptura está por toda parte, in clusive no mundo dos cerimoniais, como se percebe na europeização das solenidades justaposta à agora americanização da imagem do monarca e da ordem política constitucional. A instituição oficial de novos calendários festi vos após a independência tornou-se parte de uma estratégia de recriação da unidade política vis-à-vis as tensões regionais e sociais. Ancoradas muitas vezes nos padrões tradicionais do Antigo Regime, as novas sociabilidades tornamse indicadoras da emergência de novas identidades sim ultaneam ente políti cas, religiosas, sociais e étnicas, configurando parte importante do processo de construção e legitimação tanto do regime imperial brasileiro, quanto da dinastia reinante. Tudo isso está apontado no caleidoscópio que é esta Festa: Cultura e Socia bilidade na América Portuguesa, balanço (incompleto) e, assim o desejamos, útil plataforma para novas aventuras do espírito. eSsfes -Vrjf’?
Esta apresentação não seria completa sem referência àqueles que torna ram possíveis a feitura deste livro e do Seminário que esteve na sua origem. D esde o início das ações de planejamento contamos com o decisivo apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo, ao que somaram-se as colaborações das Pró-Reitorias de Graduação e de Pós-Graduação, da D i retoria da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Chefia do D epartam ento de História, da Diretoria do Museu Paulista, e da “Comissão das Comemorações USP — Brasil 500 Anos” que, além de abrigar o Seminá rio, valorizou a publicação dos seus resultados. Ainda no plano dos apoios institucionais, cabe registrar os da Fundação de Amparo à Pesquisa do Esta do de São Paulo (Fapesp), e do Conselho Nacional de Desenvolvim ento Científico e Tecnológico (CNPq) no tocante à alocação dos recursos necessá rios, bem como a generosa contribuição da Comissão Nacional para as Com e morações dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP), a quem devemos os recursos que possibilitaram efetivar-se a interlocução com os colegas portu gueses. Mas os nossos melhores agradecimentos dirigem-se aos responsáveis pela qualidade substantiva de Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa, àqueles nossos colegas que aceitaram o convite para o debate, e fizeram-no de modo que aliasse o talento posto a serviço deste livro com a generosidade traduzida na destinação dos direitos autorais que porventura resultariam de sua colaboração, para um Fundo destinado a promover, em 2001, um novo Seminário destinado ao trato do enigma nacional brasileiro. E em meio a este espírito de fraternidade acadêmica, ainda cabe destaque a Maurício M ontei ro, Anna Maria Kieffer e aos artistas que responderam pela parte musical do
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Seminário, momentos dos quais oferecemos aos leitores uma amostra no CD que acompanha o livro. E para finalizar esta relação, retornamos ao seu ponto de origem, qual seja, o questionam ento de duas alunas em sala de aula dando início ao processo que acabou numa, à sua maneira, também faustíssima festa. E posto que aqui não há lugar para agradecimentos, cabe dar nome a quem deu vida à trajetó ria então iniciada, pelo que os organizadores dedicam este livro a Carla M es quita Piazzi Bernardi e a Camila Ventura Frésca, as duas estudantes cujo perm anente interesse, curiosidade, alegria, dedicação e disciplina no traba lho transformaram cada etapa da empreitada em privilegiada vivência acadê mica, com o que esta dedicatória torna-se naturalmente extensiva a todos os estudantes de História, os destinatários preferenciais destes volumes. São Paulo, outubro de 2000 Istvá I
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Préstito das Endoenças, c. 1722, nave da igreja da Santa Misericórdia, Salvador, Bahia. Azulejos Portugal e Brasil. Revista Oceanos. Lisboa: Comissão Nacional para as Co memorações dos Descobrimentos Portugueses, n." 36-7, outubro 1998-março 1999, p. 63-4. Foto André Ryoki.
DESPEDIDAS TRIUNFAIS — CELEBRAÇÃO DA MORTE E CULTOS DE MEMÓRIA NO SÉCULO XVIII A
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a e ra da C o n t r a - R e f o r m a , os gestos que conformam o mode lo de encenação ritual da morte estão intimamente relacionados com a orga nização do espaço simbólico de comunicação entre vivos e mortos. Mediado exclusivamente pela Igreja, esse perm anente contato com o mundo sobrena tural atesta o êxito e a popularidade de uma crença tardia1que, sendo subja cente à contratualização do pecado e do perdão, se concentra no destino pós tumo e individual do crente.2 Projetado no espaço imaginário do além, esse destino materializava-se na visão direta e fantástica de um lugar transitório, de expiação e castigo — o purgatório — pelo qual deveriam passar as almas pecadoras que partiam à conquista da paz eterna.
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N um a versão atualizada da narrativa medieval de São Patrício, diz-se que “a esperança de se verem com seu Deus os alenta [os que estão no purgatório] naquelles trabalhos, e tormentos, que são intensos, porque os demonios como não sabem o dia em que hão de sahir delle com a grande inveja que tem de sua felicidade, antes que chegue aquela ditosa hora, se vingão delles, e os atormentão ainda muito mais do que os que estão no inferno”.3N este cárcere 1 Jacques Lc Goff. O nascimento Ho purgatório. Lisboa: Estampa, 1993. 2 Jean D elum eau. Lepéchéet lapeur. La culpabilisation en O ccidentXlIIe-XVIIlê. Paris: Fayard, 1983. 3 F raneiseo Saraiva de Azevedo. Baculo pastoral deflores de exemplos, colhidos de varia e auten
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diabolizado, concebido às avessas da evangélica esperança de redenção cole tiva,4 os mortos emergem individualmente do esquecim ento e, na sua inefá vel condição de entes de memória, passam a povoar o imaginário quotidiano dos fiéis. São surpreendidos à distância, recordados pela sua conduta viciosa e, presos à terra, pela incessante troca de favores que recebem dos vivos, dãose a ver, por vezes, de forma bizarra: “quando olhava para elles” — acrescen ta o autor do Báculo Pastoral — “via algus que tinha tratado no mundo, e conversado, e a outros conhecido de vista; porque o primeiro que encontrey foy o Padre da Companhia de Jesus que me confessou em Roma, do qual soube, que aquelle mesmo dia morrera e estava purgando seus peccados [...] Alli vi tambem hua sobrinha minha, que quando eu parti da minha terra ain da não estava morta e que ali estava por se ter deixado levar por alguas vaidades nas galas, e enfeites de seu corpo, e rosto”.5 A abundante literatura consagrada ao purgatório e o catálogo de sugestões visuais que organizam e conferem uma dimensão concreta ao terceiro lugar do além integram-se num modelo de piedade prolixo, dilacerante e aberto a mecanismos de compensação diversificados. Os teólogos e os canonistas da Contra-Reforma — em especial, o Cardeal Caetano, Francisco Suárez e Belarmino — insistem na idéia de que a fonte da liberdade do crente reside na esperança da salvação eterna. Mas, à parci mônia escatológica dos reformadores protestantes, contrapõem que só as obras de caridade alimentam a fé e previnem o perdão divino.6 Alicerçado no pri mado da caridade, o purgatório vincula-se também à concepção escolástica do mundo. N ele se conjugam à maneira de imperfeita metáfora do universo, os quatro elem entos da física aristotélica: o “fogo, por ser esse o elem ento conhecido mais activo e voraz [...] o ar, com pavorosos encontros de vento, com furiosos raios, com malignas pestes e contágios, [...] a água, alterando-se em fatais e horrendas inundações e tormentas [...] e a terra, abrindo-se em bocas e engolindo em seus estreitos seios aos miseráveis pacientes”. N este espaço circunscrito e desprovido de luz, “aonde não se vê mais que uma funesta escuridão”, habitavam “espantosas feras [...], inumeráveis aranhas, cobras, sapos e escorpiões” que atormentavam e dilaceravam as almas que tudo isto sofriam “sem poder afugentá-los nem soltar-se”.7 As fantasias alucinantes que a partir daqui se desenrolam entre o visível e o invisível, mostram que neste mundo como no outro a m utabilidade se ins
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tica historia espiritual sobre a doutrina Christãa... agora novamente acrescentado nesta decima impressão com a historia do Purgatorio de São Patrício. Lisboa Occidental, 1719, p. 393-4. Piero Camporesi. Lenferetlefantasm ede /'hostie. Unethéologiebaroque. Paris: H achettc, 1987. Francisco Saraiva de Azevedo. Op. cit., p. 393-4. Jean Delum eau. Le catholicisme entre Luther et Voltaire. Paris: PUF, 1971. José Boneta. Gritos das almas no purgatório e meios para os aplacar. Lisboa: Joam Antunes, 1711, p. 27-8.
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tala. Do último instante até ao juízo final tudo podia acontecer. O suspensee o terror invadiam a aparente tranqüilidade do reino dos mortos. A única manei ra de minimizar a incerteza do desfecho de cada trajetória individual consis tia na imposição do mérito próprio, forjado na penitência, e no reforço das garantias que abreviam as penas e encurtam a espera. Por isso, a ação intercessória e o recurso a sufrágios e missas passam a funcionar como moeda de troca nas transações correntes que se efetuam a pretexto dos que expiam as suas culpas no além. A tendência para a acumulação sem limite destes meios eficazes de mitigação do sofrimento físico e psicológico dos que enfrenta vam, antes e depois da morte, um purgatório cada vez mais infernalizado contribuía para acentuar a consciência da irredutibilidade da duração. Porém, no plano simbólico, o purgatório permanece como lugar de frontei ra, isto é, existe e justifica-se como quadro mental espacial adequado a uma situação de passagem.8 Mas não era apenas nesta acepção que o purgatório servia de marco de continuidade entre a terra e o céu. A crença na eficácia das penas purgatórias, ao impor a dilatação no tem po das preces e sufrágios por alma dos defuntos, gerava a necessidade de presentificação dos mortos na com unidade dos vivos, a qual, reativada por mecanismos religiosos de solida riedade, fazia alastrar o sentido de co-responsabilização dos fiéis em face do destino dos seus mortos. Assim, e num duplo movimento, evocativo e reparador, o tempo da salva ção tendia a ser assimilado ao tempo do mundo. Dito de outro modo, a prévia aquisição, por prazo indeterminado, ou como rezam os documentos, “enquanto o mundo durar”, de missas e outro tipo de sufrágios era apresentada, simulta neam ente, como garantia de vida eterna e como fonte de comemoração da morte. E se é certo que a duração do processo intercessório criava a ilusão de uma real interferência do tempo dos homens no tempo de Deus, já que os intercessores terrenos tinham a consciência de que participavam efetivamente do resgate, a prazo incerto, de almas com rosto, corpo e memória, os meios e a finalidade de tal investimento não deixavam de ter como horizonte a elisão do tempo, ou seja, a eternidade. Para além disso, o recurso à liturgia, como meio de intercessão, ao associar o sacrifício de Cristo à comemoração do defunto, erigia-se em memória da memória, conferindo à comemoração simul taneam ente o sentido de recordação e de celebração do futuro. Sólida em si mesma, esta arquitetura de símbolos, ritos e práticas esti mulava a vulgarização de modelos de comportamento social ajustados às exi gências de expansão dos serviços religiosos, cada vez mais procurados, e refletia-se, também, numa contínua torrente de obras de caridade e de mise ricórdia, conforme documentam os arquivos das instituições eclesiásticas e de assistência. 8 Jacques L e Goff. Op. cit-, p. 272-6.
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REDENTORAS
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Tentando dar suporte concreto à questão das liturgias redentoras requeridas pela crença do purgatório, destacando, em particular, os mecanismos de in corporação dos mortos na comunidade dos vivos e as estratégias de perpe tuação da memória relacionadas com a comemoração fúnebre, gostaríamos, por enquanto, de centrar a atenção no movimento dc fundação de capelas c aniversários registado na cidade de Lisboa ao longo do século XVIII. N a esteira da tradição dos necrológios da Idade M édia,9 tam bém as obras piedosas e os cultos de intercessão posteriores, que vinculavam um benfeitor a um instituto religioso, visavam propagar a ilusão de uma memória comum do além erigida a partir de um restrito número de genealogias purificadas, ou em vias de purificação Estas, normalmente apresentadas como autênticos m onum entos de esperança, eram, por isso mesmo, inseparáveis das marcas piedosas deixadas pelos respectivos fundadores. E se é certo que através de tais coleções imperfeitas de vontades avulsas ou familiares, construídas a pen sar na imortalidade terrena e celestial, sobressaem estratégias precisas de patrimonialização e de usufruto de avultados conjuntos de bens, importa ir um pouco mais longe avançando na análise das modalidades e dos elos so ciais que alimentam a transmissão dessas memórias. Apreciando o processo de constituição de fundações perpétuas na cidade de Lisboa, logo se percebe que a solidez de certas fortunas tanto quanto a expectativa de reconhecimento póstumo dos respectivos detentores condi cionam a visibilidade dos sinais exemplares que aqueles pretendem gravar, para sempre, na memória dos vivos. Do conjunto de testadores que, no século XVIII, deixam fundações per pétuas e/ou esperam usufruir de vínculos que já adm inistram destaca-se um núcleo restrito, essencialm ente constituído por notáveis, de extração nobiliárquica e burguesa, que amplificam a sua honra, poder e devoção in vestindo na panteonização dos seus restos mortais e carregando com missas e outros sufrágios os locais que, para o efeito, adquirem ou herdam no in te rior das igrejas. N este caso, a fundação era assegurada pela afetação de bens de raiz, ou pela incorporação de novas dotações vinculares às capelas já exis tentes. Inalienável e indivisível, o patrimônio material e simbólico de tais institutos — vulgarm ente designados capelas mas que muitas vezes não passavam de morgados encapelados — ajustava-se a um duplo imperativo: resgatar memórias e conservar bens no seio de certas famílias. N eles, como notava Alexandre Herculano, “os dois domínios estão incorporados num 9 José Mattoso. “O culto dos mortos no fim do século X I”, in: José Mattoso (dir.). O reino dos mortos na idade Média. Lisboa: João Sá da Costa, 1996, p. 75-85.
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só, mas esse domínio não está actuahnente cm parte nenhum a. Ficou, diga mos assim, chum bado na campa dc um túmulo: o túm ulo retém -no até ao fim das gerações. C) morto desm entiu o direito dos vivos [...]. O fundador de um vínculo nSo fez mais <|ue em pilhar os corpos dos indivíduos tirados das diversas gerações para sobre eles assentar o trono da sua vaidade. D e cretou-se homem grande: teve pena que o futuro esquecesse personagem tão im portante’’.10 Mas este é apenas um lado da questão, porque o aprisionamento litúrgico do tem po que subjaz às estratégias memorialísticas e salvíficas destes homens e m ulheres é igualm ente revelador de um elevado sentido prático acerca da natureza distributiva e acumulativa das fundações que erigem. Com elas distinguiam -se na morte, beneficiando, em simultâneo, capelães e adm inistradores (pie ficavam com o encargo, respectivam ente, de as pro ver e manter. E mesmo quando a ilusão da perpetuidade das obrigações religiosas impostas se apoiava apenas em dádivas substanciais ou na aliena ção de quotas de frutos ou rendim entos à fábrica da igreja, convento, hospi tal ou confraria que procedia à aceitação, para todo o sempre, de missas e ofícios de sufrágio, os ganhos simbólicos e espirituais que os benfeitores julgavam alcançar continuavam a superar o valor quantitativo das ofertas e transferências previstas. O procedim ento das gentes da cidade com poder econômico e magro prestígio que mandam sim plesm ente celebrar missas ou ofícios diários em determ inada igreja ou convento ilustra exem plarm en te esta outra opção. Desprovidos de um lugar memória preciso, tam bém eles confiam na força dos seus recursos econômicos para escaparem ao ano nim ato e ao esquecim ento. Idêntico propósito conformava ainda o averbamento, em sede testam entãria, das chamadas fundações insignificantes, normalmente confundidas eram os aniversários, por serem coleções de missas dispersas no calendário, confi nadas em regra a datas precisas, de alcance evocativo, e impostas, fireqüemiemente, sem indicação de local para a sua realização. Tal como as anceriomes. tam bém estas aparecem subordinadas à cláusula de validade sem teramo cor to, sendo porém suportadas por menores quantitativos. N a prática, as restrições e limitações inerentes aos modos de instituição de fundações perpétuas, que sumariamente enunciei, permitiam que todos os grupos sociais acedessem a este tipo de investimento memorialísrico, desde que, é claro, reunissem meios econômicos para a manutenção e provimento das obrigações contraídas. Assim, e ao contrário do que parece ter acontecido em períodos mais recuados," a época pós-tridentina vem consagrar não a ba-
10 Alexandre I lereulano. Opúsculos II. Organização, introdução c notas de Jorge Custódio & José M anuel Garcia. Lisboa: Presença, 1983, p. 34. " M anuela Santos Silva. “Contribuição para o estudo das oligarquias urbanas medievais: a
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nalização das fundaçõespro animae, mas sim a sua abertura a todos os grupos sociais. Em Lisboa, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, muitas capelas funerá rias passam a albergar almas de prestígio sem equivalente estatuto social. É isso que se observa nos testamentos registados oficialmente nos anos de 17001701. Nestes encontramos 51 pedidos de missas perpétuas, quatorze dos quais subscritos por gente de baixa condição: artífices, lojistas, lavradores e oficiais menores.12 Os dados fornecidos para os anos seguintes confirmam que os grupos sociais inferiores continuam a deter cerca de um quarto de todas as fundações instituídas, em particular de aniversários.'1 Para além disso, entre o núcleo de testadores que elegem a alma por universal herdeira e que, desse modo, mais facilmente acedem à fundação de capelas, aniversários e memó rias de missas, avultam ricos mercadores, contratadores e proprietários de ofícios de segunda categoria na administração central e local. O interclassismo instaurado a este nível é, portanto, indiscutível, como de resto também deixam perceber os impedimentos e restrições impostos pela lei pombalina de 9 de setembro de 1769 à conservação das chamadas “cape las insignificantes”, indevidam ente “principiadas por famílias do terceiro es tado”, segundo as palavras do legislador.14 Em face do que ficou exposto, deve portanto admitir-se que o polimorfismo social suscitado por uma prática inicialmente reservada à elite demonstra que as aspirações espirituais e morais das camadas mais baixas da população não se dissociam radicalmente, pelo menos no plano da crença, das que os grupos dominantes exprimem. Mas, se a riqueza e a abundância de meios permitiram que certos indivíduos tivessem tirado o melhor partido possível dos recursos disponibilizados pela Igreja em matéria de salvação, foi talvez a força sugestiva 0 11 mesmo o poder dc atração exercido pela idéia do purgató rio o fator que mais contribuiu para uniformizar a planificação a prazo da imortalidade por parte de tão diferentes agentes sociais. Com isso queremos significar que, na época de ouro da pastoral do purgatório, as memórias ima
instituição dc capelas funerárias cm Óbidos na Baixa Idade M edia”, in: A cidade. Jornadas inter e p/uridisciplinares, vol. II. Coord. Maria José Ferro Tavares. Lisboa: Universidade Aberta, 1993, p. 113-27; Angela Beirante. “As «heranças de almas» na diocese de Évora no início do século XVI”. Congresso dc História no IV Centenário do Seminário dc Évora. Évora, 1993, Actas, vol. I, IST-SME, 1994, p. 105-17 e Ivo Carneiro de Sousa. “Legados pios do convento de S. Francisco do Porto. As fundações dc missas nos séculos XV e XVI” . Sep. do Boletim de Arquivo D istrital do Porto, I I , 1982. 12 Ana Cristina Araújo. A morte em Lisboa. Atitudes e representações 1700-1830. Lisboa: Editorial Notícias, 1997, p. 410. 13 Ibidem , p. 409. 14 Collecção das leys, decretos e alvarás que comprehende 0feliz reinado de E l Rei Fidelissimo D. José I Nosso Senhor, desde 0 anno de 1766 a té 0 de 1770, t. 3. Lisboa: Miguel Rodrigues, 1770.
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ginadas do além aprisionam e confiscam o sentido de celebração individual ou familiar da glória póstuma. A
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Mas vale a pena precisar que, apesar de ser considerável o número de testadores interessados em aprisionar a mutabilidade do tempo à eternidade vir tual dos seus investimentos de alma, o fluxo de tais solicitações vai decaindo ao longo da primeira m etade do século XVIII. Inicialmente, 12,9% de testadores de Lisboa instituem capelas e aniversários. Nos anos trinta essa por centagem recua para os 10,4% e nas vésperas da legislação pombalina situase já nos nove por cento.15 Parece portanto evidente que, na cidade e seu termo, o im pedim ento de constituição de fundações perpétuas de caráter piedoso surge no decurso de um período de progressiva retração. Em termos globais, o descenso destas obras piedosas é compensado pela subida de mis sas avulsas, o que poderá querer dizer que os testadores, conscientes da des valorização econômica das aplicações a longo prazo, preferem concentrar os seus encargos pios em um limite de tempo mais razoável. Por outro lado, ao abdicarem de uma estratégia intercessora que deixa de desafiar o tempo es vaziam a piedade pessoal de um suporte memorialístico preciso, talvez por que o intimismo confessional que então parece despontar contraria a tendên cia para a emulação das vaidades da alma, mas também porque outros meios, tais como a genealogia familiar, o elogio público e a narrativa histórica passam a cobrir, de forma mais ampla, o espaço reservado à imortalização dos pode rosos.16 A juntar às razões expostas, há ainda um outro complexo conjunto de ques tões que ajudam a explicar o malogro da enfática celebração de tantos mortos memoráveis em Lisboa. Em primeiro lugar, o abandono do modelo que associa a imortalidade ter rena à eternização no além é acelerado pela degradação dos vínculos memorialísticos estabelecidos entre fundadores e administradores e/ou entre instituidores e oficiantes. Ao cabo de duas ou três gerações, a intensidade da recordação e, conseqüentem ente, a atenção prestada à trajetória dos ausen tes têm tendência a diminuir. Logo, a visão que deles subsiste acaba integra da na multidão de almas que continuam ente povoa o purgatório. Associados a este aspecto, estão também os problemas suscitados pela de terioração dos patrimônios. A fração de bens impartidos destinados a ser con
15 Ana Cristina Araújo. Op. cit., p. 409-11. 16 Ana Cristina Araújo. “Morte, memória e piedade barroca”. Sep. da Revista de História das Ideias, 11\ 129-73, 1989.
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sumidos em louvor de Deus e em prol da salvação do fundador e demais patronos nem sempre permanece intacta ou com um nível de rendim ento ajustado ao cum primento dos encargos pios originários. Já não falando das dificuldades de ordem legal, a incongruência deste tipo de fundação radica no desajustamento que se instaura entre a im utabilidade do fim em vista e a precariedade ou vulnerabilidade do suporte material aceite para o efeito. E nem mesmo a aplicação de bens de raiz conseguia impedir, em muitos casos, a falta de pagamento das rendas, a sua desvalorização, a renúncia do destina tário ou a sua anulação, por manifesta incapacidade de cum prim ento dos en cargos pios pelas autoridades eclesiásticas. Todos estes aspectos são mencionados pelo cardeal patriarca dc Lisboa, D. Tomás de Almeida, na visita ad litnina da diocese de 1726.17 Depois de lastimar o estado das igrejas e conventos que se achavam sobrecarregados de missas, acrescenta que este fardo pesadíssimo resultava de não se poderem cobrar os encargos resultantes de tais obrigações, devido ao generalizado incum prim ento de herdeiros e administradores e, sobretudo, por ser insufi ciente a dotação primitiva das respectivas fundações. Feito o diagnóstico, o prelado suplica ao papa breves de redução e de com ponenda a favor das ins tituições que tivessem missas ou ofícios em excesso, resultantes de funda ções antigas e modernas. Na prática, reclamava uma anistia, ou melhor, um indulto plenário para as missas acumuladas, mal pagas e já sem celebração. Este procedimento, largamente adotado anos depois, atesta, por um lado, a situação de falência contabilística de muitas igrejas e conventos e, por outro lado, põe em relevo a incapacidade de prebendados e capelães satisfazerem celebrações consignadas e institucionalmente aceites. Observando de perto o problema, tudo indica que as igrejas e conventos da cidade de Lisboa, em particular, foram ao longo do tempo desbaratando as suas coleções de “almas de prestígio” por má gestão. Em concreto, por distrato ou permuta de foros, por alienação ou em préstimo de juros e até por transações indevidas sobre os bens deixados pelos defuntos. As notícias de tais desmandos são tão abundantes que evidenciam total e generalizada falta de controle da contabilidade dos mortos. A título de exemplo, vale a pena mencionar a explícita acusação lançada, em 1802, no inventário que acompa nha o auto de redução do convento da Santíssima Trindade, e que é formula da nestes termos pelo principal da ordem: “N a prezente relação não me conformo com a tabela da sacristia sobre o numero das capellas. Nas prim ei ras duas porque não pode descobrir os foros comprados no Alvito para seus fundadores, nas ultimas quatro porque os padres daquelle tem po gastarão o dinheiro que receberão dos instituidores [...] tão bem me persuado” — con
17 Archivio Scgrcto Vaticano. Sacri conciUii congregationes, 457, fl. 139.
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tinua o prelado — “que não obstante consumirem os padres antigos o dinhei ro que receberão dos instituidores das ultimas quatro capelas se devem re putar actuaes existentes os seus rendimentos porque os mesmos padres substabelecerão os referidos rendim entos em juros reaes livres que possuia o convento”.18 Com muito mais naturalidade e sem qualquer escrúpulo, o be neficiado que elabora a relação das 53 capelas instituídas no convento do Santíssimo Sacramento dos eremitas de S. Paulo, na esperança de alcançar reduções substanciais dos seus encargos, declara que aquele instituto religio so havia consumido, de 1784 a 1802, em proveito próprio e em pagamento de dívidas, sete contos, quatrocentos e trinta e um mil-réis, subtraídos às aplica ções piedosas dos instituidores de fundações perpétuas.19 A par das situações descritas, é preciso ter em conta que a acumulação de serviços religiosos exigia maior número de oficiantes, logo um crescimento estável do clero. Ora, em Lisboa isso não acontece. Como verificamos noutro trabalho, o recrutamento do clero abranda em meados do século e decresce, notoriamente, a partir da década de 80.20 Daí que nos “autos de redução de capelas e outros encargos pios” instruídos, nos finais de Setecentos, pelos provinciais dos agostinhos regrantes, dos carmelitas e dos trinitários e rem eti dos à Junta do Exame do Estado Actual, e Melhoramento Temporal das Ordens Regulares a queixa de falta de padres, indiscriminadamente apontada como um dos motivos de incumprimento, surja como principal atenuante das re clamações que os conventos fazem para verem diminuídos os montantes de missas e ofícios constantes dos róis de capelas. De forma lapidar, tal situação era assim descrita: “O convento não pode sustentar o número de sacerdotes necessário para dizer todas as missas” — ou ainda: — “O convento [acha-se] gravadíssimo com muitas capellas de missas, as quaes não podem ser satisfei tas pela grande falta de religiosos”.21 E, muito embora a concessão de breves de redução remonte ao século XVI, não temos dúvidas que é justam ente na centúria de Setecentos, altura em que mais se vulgarizam, que eles se transformam numa autêntica arma de dois gumes para a Igreja. Remedeiam a contabilidade das igrejas, casas conventuais e confrarias mas desacreditam a prática e o discurso eclesiásticos.
18 A N TT. Ministério dos Negócios Eclesiásticos e Justiça, Maço 288, Autos de Redução das obri gações de capellas dc missas e dos mais encargos pios do Convento da Santíssima Trindade de Lisboa, 1800, f. 2v. 19 A N TT. Ministério dos Negócios Eclesiásticos e Justiça, Maço 288, Autos de Redução das obri gações de capellas de missas e dos mais encargos pios do Mosteiro do Santíssimo Sacra m ento de Lisboa, 1806, f. 9. 20 Ana Cristina Araújo. A morte em Lisboa..., op. cit., p. 122-7. 21 A N TT. Ministério dos Negócios Eclesiásticos e Justiça, Maço 288, Autos de Redução das obri gações de capellas de missas e dos mais encargos pios do Convento de Nossa Senhora do Carmo de Lisboa, 1804, f. 2.
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A dimensão que o fenômeno adquiriu pode ser documentada, de relance, a partir de três situações concretas. O Convento de N. Senhora da Graça de Lisboa, que em 1797 tinha nada mais nada menos do que 340 capelas insti tuídas, beneficiou, entre 1718 e 1815, de cinco breves de redução e componenda. Com os indultos que consegue obter de Roma, elimina 45 capelas de missas e reduz a menos de um terço os serviços religiosos anexos às restan tes.22 O Convento do Carmo, que de três em três anos gastava grandes somas em pedidos de componenda para Roma, conforme alega o provincial da or dem na representação, datada de 1804, que dirige a.Junta do Exame do Estado Actual, e Melhoramento Temporal das Ordens Regulares, vê-se progressivamente desobrigado de largos milhares de missas anuais respeitantes às 267 funda ções piedosas que nele se achavam instituídas.2-’ Por fim, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que, nos alvores do século XVIII, dispunha de 57 capelães para satisfação diária dos serviços religiosos decorrentes das capelas e aniversários que nela existiam, congregava com o mesmo objetivo, em 1782, apenas 24 capelães.24 Os livros de sacristia posteriores a 1755 acusam uma volatilização rápida de receitas e obrigações que, de certo, implicaram a liqui dação ou suspensão, por iniciativa da própria Misercórdia, de um considerá vel número de capelas de missas.25 Mais tarde, a 19 de julho de 1775, a Santa Casa recebe uma indulgência pelos legados não cumpridos e um breve que reduz para vinte as cento e quarenta capelas que ainda restavam na casa.26 Como se vê, com o andar dos anos, a lembrança de muitos instituidores foi, lenta ou abruptam ente, caindo no esquecimento, processo que, no plano escatológico, tinha como corolário lógico a conversão do purgatório numa es pécie de vala comum de almas. A juntar aos procedimentos habituais de incumprim ento e à multiplicida de de atropelos que, de uma forma mais ou menos constante, desvirtuavam as disposições piedosas dos testadores, o saneamento em massa dos negócios das almas do purgatório acabaria por ser definitivamente acelerado pelas leis desamortizadoras e secularizadoras da segunda metade do século XVIII. Neste sentido, destacam-se os diplomas de 25 de junho de 1766,4 de julho de 1768,
22 A N TT. Ministério dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, Maço 288, Autos dc Redução das obrigações de capellas de missas e dos mais encargos pios do Convento de Nossa Senhora da Graça dc Lisboa, 1815, f. 2-14. 23 A N T T Ministério dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, Maço 288, Autos dc Redução das obrigações de capellas de missas e dos mais encargos pios do Convento de Nossa Senhora do Carmo de Lisboa, 1804, f. 1-29. 24 AHSCM L. Pautas dos capelães — 1780-1799. 25 AHSCM L. Livro da Sacristia — Missas de Testadores, ano dc 1759. Veja-sc especialm ente a relação dos testadores com capelas suspensas, cujo número se eleva a mais dc uma ce n te na, f. 152ss. 2,1 Joaquim dos Santos Abranches. Fontes do Direito Ecclesiastico Português I. Sum m a do Bulário Portuguez. Coimbra: França Amado, 1895, p. 212.
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9 de setem bro de 1769 e 3 de agosto de 177027 que, entre outros aspectos, reduzem e impõem a desvinculação dos bens onerados com encargos pios, limitam e im pedem a criação de novas capelas, e prevêem a extinção auto mática e a devolução à Coroa de capelas com rendimento inferior a 200.000 réis (no caso da região da Estremadura). Por força destas medidas, cerca de vinte mil vínculos são extintos em todo o país — como documentam os livros da chancelaria de D. José I28— , a Igreja vê definitivamente cerceada a possi bilidade de fazer crescer o seu patrimônio à custa das dádivas piedosas dos fiéis, e o purgatório, que se instalara no horizonte escatológico dos crentes, começa lentam ente a ser despovoado. Com este processo, o Estado apenas acelerava, se bem que de forma com pulsiva, o movimento, há muito iniciado, de diluição da memória dos crentes, cujo monopólio simbólico a Igreja desbaratara, não por inobservância dos pre ceitos doutrinários que inspiravam a idéia do purgatório, mas pela usura cres cente das transações que foi realizando a pretexto do além. As portas da “eter nidade” fechavam-se assim mais depressa do que se abriam, por incúria dos vivos que decretavam, na prática, “uma segunda morte para milhares de in divíduos cuja identidade, contra ventos e marés, tinha perdurado através dos séculos” .29 FASTOS ORAÇÕES
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ELOQÜÊNCIA: E ELOGIOS
PÓSTUMOS
No rasto de vidas exemplares, bafejadas pela fortuna, pelo prestígio, ou sim plesm ente ilustradas pela fé, a pedagogia da morte-espetáculo refletia, sem ambigüidade, a capacidade de submissão das almas e o poder de transgressão dos homens. Na veneração dos ausentes, a exaltação da dignidade e da honra reforçava a necessidade de dominação dos vivos que se reclamavam herdei ros da celebração comemorativa e reparadora da memória dos seus antepas sados, tanto quanto o consenso gerado pelo cânone piedoso contribuía para tornar verdadeiram ente interclassista o panteão invisível da Igreja católica. Segundo este modelo, a celebração escatológica da memória era caucionada pelo arrebatamento litúrgico da despedida fúnebre e, nos casos em que os critérios de distinção social o justificassem, o espaço reservado à apologética individual confundia-se com a própria ideação da eternidade.
27 Rui M anuel de Figueiredo Marcos. “A legislação pombalina. Alguns aspectos fundam en tais”. Sep. do vol. XXXIII do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1990. No essencial, e apesar das anulações pontuais e dos avanços e recuos observados na aplicação destas leis, pode dizer-se que a reforma dos institutos vinculares prossegue no reinado de D. Maria I. 28 A N TT. Chancelaria de D. José l (Próprios) — Extinção de Capelas, livros 148-156. 29 Laurinda Abreu. Memórias da alma e do corpo. A Misericórdia de Setúbal na Modernidade. Viseu: Palimage Editores, 1999, p. 227-8.
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Ora, em face das incongruências geradas por este arrastado sistema ceri monial e simbólico de celebração — confiscado pela Igreja, desbaratado pelo clero e desacreditado pela sociedade civil — uma nova filosofia de com emo ração dos mortos desponta na transição do século XVIII para o século XIX. E porque a sociedade dos vivos não só se revê como se organiza em função do destino que confere aos seus mortos, não surpreende que, neste período de transição, a reinvenção das liturgias fúnebres e comemorativas aponte para uma redistribuição global dos critérios da distinção social, para a criação de novos espaços de encerramento dos mortos — os cemitérios públicos — e para a utilização de diferentes dispositivos imaginários dc controle da recor dação. A função evocativa dos mortos muda radicalmente de sentido. Dito de outro modo, os vulgares discursos, elogios fúnebres e epicédios pronuncia dos em academias, senados, assembléias de notáveis adquirem uma outra carga social, ideológica e simbólica. Para melhor documentar esta mudança recorremos a alguns elogios e rela tos de vida respeitantes a figuras impressivamente ligadas ao Brasil colonial. A primeira série de orações e biografias funcionam como unção de vidas exem plares, condensam uma mensagem de cunho edificante e enquadram -se no modelo tradicional que temos vindo a analisar. Produzida no seio da Academia Real da História, a Oração Fúnebre do 2.° Marquês das Minas, D. Antônio Luís de Meneses, recitada pelo 4.° Conde da Ericeira, em 1726M é, na sua lapidar retórica linhagista e triunfalista, mais um endereço a ter em conta no “Panteão Geral da Aristocracia Portuguesa”,31 que a Academia ajudou a firmar no plano discursivo e simbólico. O hom e nageado, membro do Conselho da Guerra e do Conselho de Estado, havia desem penhado de 1684 a 1687 o cargo de governador e capitão-general do Brasil. Contudo, é na qualidade de áulico da corte e de herói militar da Guer ra da Sucessão de Espanha que as suas virtudes e atributos de nascimento são acreditados e submetidos à admiração dos vindouros. No “Templo da M emória” e sob a metáfora da redenção de cativos, isto é, com o expresso propósito de dar voz aos mausoléus da fama dos “heroes ecclesiasticos e se culares que desde muitos annos, e muitos séculos estão em muda tyrannia nas masmoras do esquecim ento” — como refere um dos mais influentes membros da Academia32 — a exortação do Marquês de Minas funciona um prolongamento necessário do túmulo e do epitáfio num tem po em que o
30 'Iranscrita por D. Antônio Caetano dc Sousa. Provas Ha História Genealógica Ha Casa Real Portuguesa, t. VI. 2.a ed. dc M. Lopes de Almeida & César Pegado. Coimbra: Atlântida, 1954, p. 382ss. 31 Coimbra Martins. “Academias”, in: Dicionário He História He Portugal. Dir. por Joel Serrão. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1975. 32 BGUC, ms. 502, f. 192-193v.
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Teatro e a História concorrem, de mãos dadas, para o triunfo da mundividência barroca da morte.33 No caso do General Gomes Freire de Andrade, governador e capitão-general do Maranhão e Grão-Pará, no início do século XVIII, o cenário dos seus mais ilustres feitos é deslocado para o Brasil. Na biografia deste governador, redigida por Fr. Domingos Gomes Teixeira e publicada, em Lisboa, entre 1724 e 1727,34 merecem relevo as provas de sua antiga nobreza, as façanhas militares que obra durante as guerras da Restauração, a sua fervorosa pieda de, diretam ente instigada por Frei Antônio das Chagas, a “reforma dos costu m es” e o seu férulo mando na vasta província brasileira que governa.35 Nesta narrativa de adulação servil ao regime absolutista e ao sistema colonial, o interlocutor ausente cristaliza um figurino espiritual, social e político pleno de atualidade. Para melhor assinalar a sensibilidade tanatológica subjacente ao retrato biográfico, acrescente-se que o funeral do governador “igualou aos grandes na solenidade [...] e não se esquecendo El Rei na morte do que honrou na vida, [...] mandou offerecer a Deos repetidas Missas por sua alma”,36 cumulando, assim, os sufrágios que o próprio instituíra para sempre em seu benefício. Concebido segundo os preceitos da eloqüência sagrada, o elogio fúnebre do primeiro bispo do Grão-Pará, D. Frei Bartolomeu do Pilar” sintetiza o investim ento necrófilo de uma época que cobre “com agradecidos testem u nhos” os “despojos do virtuoso prelado” para desengano dos que ignoram a lição do túm ulo.38 A função laudatória da oração fúnebre é portanto sobrepu jada pela humilhação da vaidade humana que se diz e se nega ao mesmo tempo. Idêntico estilo e sensibilidade inspiram o Sumário da Vida, Si Morte da Se nhora Dona Leonor Josefa de Vilhena, redigido por Sebastião da Rocha Pita, e publicado em 1721.39 A dama em apreço jamais havia estado no Brasil, no
33 Ana Cristina Araújo. “Morte, memória e piedade barroca...”, op. cit., p. 133-42. 34 Fr. Domingos de Teixeira. Vida Gomes Freyre de Andrade, General de Artelharia do Reyno do Algarve Governador, e Capitão General do Maranhão, Pará, e Rio das Amazonas no Estado do Brasil, Offerecida às memórias de Jacinto Freyre de Andrada, Prymeira Parte. Lisboa Occidental: N a Officina da Musica, 1724; Segunda Parte. Lisboa: Off. A. Pedrozo Galram, 1727. 35 Aqui notabiliza-se, segundo as palavras do seu biógrafo, pela guerra sem tréguas que move aos índios tupias, pelos privilégios que concede aos padres jesuítas e pela repressão organi zada que institui em toda a província. Cf. op. cit., 2.a parte, p. 283s. 36 Fr. Domingos de Teixeira. Op. cit., 2.a parte, p. 488. 37 Filipe José da Gama. Elogio do lllustrissimo Senhor D. Fr. Bartholomeu do Pilar, prymeiro Bispo do Grão Pará, do Conselho de sua Magestade, e Religioso quefoy da Ordem de Nossa Senhora do Carmo da Província de Portugal, que em 24 de Fevereyro de 1734 recitou na Academia Portugueza, e L atina... Lisboa Occidental: Offic. de Miguel Rodrigues, 1734. 38 Ibidem , p. 2. 39 Sebastião da Rocha Pita. Summario da vida, & morte da Exce/lentissima Senhora, a Senhora Dona Leonor Josepha de Villhena, e das Exéquias que na cidade da Bahia consagrou às suas
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entanto, na qualidade de consorte dc D. Rodrigo da Costa, antigo governador e capitão-geral do Estado do Brasil, teve direito a exéquias de vistosa pompa, na cidade da Bahia, nesse mesmo ano. Simulando a presença do cadáver, um im ponente cenotáfio guarnecido com mais de trezentas velas e tochas arden tes foi erguido na igreja da Santa Casa da Misericórdia. Como o próprio rela tor dos acontecimentos assegura, pretendia-se com esta celebração de apara to, participada pelas mais altas dignidades eclesiásticas e civis do Estado da Bahia, que “as imagens da memória se reformem pelos espectáculos da vista, & o assombro estimule a imaginação”.40 Manifestação póstuma de vaidade e prestígio, as exéquias da piedosa m u lher do governador dão azo à encenação de rígidos códigos de etiqueta, per m item a exibição das normas protocolares da distinção social e contribuem para vulgarizar a idéia de iniqüidade da vida terrena. Por isso, se diz que “não vive mais quem mais dura senão quem melhor obra”, sendo a medida da felicidade dada “não pelos anos senão pelos triunfos”41 em honra de Deus. A retórica do obséquio fúnebre, de acento fatalista, decalca da sociedade o retrato estereotipado do ser digno de eterna memória — virtuoso, nobre, de sangue limpo, caritativo e despojado. Estes traços repetem -se até à exaustão num gênero de literatura perfeitam ente entediante para nós hoje, mas bas tante cultivado e apreciado nos séculos XVI, XVII e ainda na primeira m eta de do século XVIII, como acabamos de ver. O declínio, ou melhor, a reconversão que se opera, a partir das últimas décadas de Setecentos, neste tipo de oração reflete, por um lado a crítica dos filósofos das Luzes e, por outro, as transformações em curso na estrutura da sociedade. No entendim ento dos “maítres à penser” do século, a oração fú nebre tornara-se obsoleta e perigosa porque premiava o nascimento e não o talento e porque instituía uma exemplaridade desajustada às reais condições e expectativas da existência humana. O horizonte secularizado da cultura iluminista contribui, deste modo, para acentuar o descrédito suscitado pela prática secular de fundações perpétuas, em franca recessão, e esvaziar de sentido os hinos à imortalidade transcendente implícitos a essa estratégia de glorificação póstuma. O nefando costume de atribuir honras e atributos vãos a sujeitos indignos de estima social é denunciado por Voltaire, Marmontel, D ’Alembert, Con-
memorias a Senhora D. Leonor Josepha de Menezes, esposa de Gonçalo Ravasco Cavalcanty & Albuquerque, Fidalgo da Casa de S. Magestade, Commendador da Ordem de Christo, A/rayde m òr da Cidade de Cabo Frio, Secretário do Estado, & Guena do Brasil, Offcrccido á Excellcntissima Senhora, A Senhora D. Maria Francisca Bonifaeia de Vilhena, Filha d e..., Com posto por..., Fidalgo da Casa de S. Magestade, Cavaleiro Professo da Ordem de Christo, Coronel de Regim ento da Corte do Brasil. Lisboa Occidental: Off. A. Pedrozo Galram, 1721. 40 Ibidem , p. 14. 41 Ibidem , p. 6.
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dorcet e outros.42 Os ecos desta posição patenteiam-se nas iniciativas levadas a cabo pela geração dos fundadores da Academia das Ciências de Lisboa e têm boa aceitação entre os alunos que freqüentam a Universidade de Coim bra, a partir dos anos 70. No seio desta elite cultivada avultam as críticas averbadas por Francisco de Melo Franco na sua Medicina Teológica à fanfar ronice de antiquadas virtudes geradoras de incrédula suspeita.43 Sintomati cam ente, tam bém os manuais de civilidade e boas maneiras que então se publicam ajudam a configurar, noutros termos, o aplauso público devido aos grandes homens. Na Escola de Política ou Tratado Prático da Civilidade Portu guesa, traduzido e adaptado da obra de Blancard por João da Porta Siqueira, o grande homem aparece já equiparado ao Sábio “que não procura as dignidades [e que] não chega a ellas senão quando he chamado pella auctoridade e conduzido pellos talentos”.44 A filosofia que dita a entronização do sábio é a mesma ou está próxima da que põe na base do edifício social o cidadão, con siderado, acima de todos, o justo merecedor da boa estima da Nação, porque “contribue o mais que póde para a felicidade do publico, e só se serve dos seus talentos, em utilidade daqueles com quem vive”.45 Estas idéias difundidas em toda a Europa depois da publicação áoDiscours sur les Differénces des Grands Hommes et des Hommes IIlustres (1739) do Abbé de Saint-Pierre e do Eloge des Académiciens de D ’Alembert (1752) impõem a laicização do elogio fúnebre, instauram uma espécie de “democracia imaginá ria” entre os homens de talento e reconduzem a ação e a memória destes para o lugar secular e profano das academias literárias e científicas. Libertados do escândalo da morte, os grandes homens, os novos apóstolos da Humanidade, perduram assim pelo seu exemplo na memória dos seus pares, sendo por eles transformados em guardiões do futuro. A idéia de posteridade e a noção de justiça enformam doravante o elogio póstumo, conferindo-lhe uma dimensão cívica e institucional totalm ente ignorada no passado. E se a sapientia do ora dor dita a (re)distribuição do mérito, “a turbulência viril, gloriosamente posta em cena pela oração fúnebre”,4'’ não deixa de pôr em evidência as qualidades mais domésticas do agraciado: bom marido, bom pai de família e amante da causa publica. 42 Jean-Claudc Bonnet. “Les morts illustres. Oraison funèbre, éloge académique, nécrologie”, in: Pierre Nora (dir.). Les lieux de mémoire, II La Nation. Paris: Gallimard, 1986, p. 216ss. 43 Francisco dc Mello Franco. Medicina theologica, ou supplica humilde, feita a todos os senhores confessores, e directores, sobre o modo de proceder com os seus penitentes. Lisboa: Offíc. dc Anto nio R. Galhardo, 1794. 44 D. João dc N. Sr.a da Porta Siqueira. Escola de po/itica ou tractado pratico da civilidade portugueza. Porto: Offic. dc Antonio Alvarez Ribeiro, 1791, p. 251. 45 Elementos da civilidade, e da decencia, para instrução da mocidade de ambos os sexos, traduzido do franccz cm vulgar, 2.“ edição correcta c augmentada. Lisboa: Typ. Rollandiana, 1801, p. 280. 4f’ Jcan-Claude Bonnet. Op. cit., p. 222.
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Todas estas idéias ressaltam no elogio do célebre naturalista brasileiro, Ale xandre Rodrigues Ferreira, proferido por M anuei José Maria da Costa e Sá, em sessão especial da Real Academia das Ciências de Lisboa, no ano de 1816.47 Concebido em estilo simples e direto, o elogio assinala os mais significativos momentos da biografia do autor da Viagem Filosófica da Amazônia. N esta di gressão pela vida e obra de um dos mais proeminentes sócios da academia, o orador justifica desta forma lapidar o seu intento: “A memória d ’hum homem de letras, benem erita por si, não pede mais do que as contemplações devidas ao m erecim ento”.48 Mas, o preito ao talento é também motivo para a homenagem ao homem e ao cidadão. Encarnando as virtudes cívicas de um regime ainda por despon tar, o liberal, Rodrigues Ferreira “não vê as leis dirigidas pelos homens mas sim os homens governados pelas leis” .49 Vítima de um governo despótico que lhe cerceia o merecido prêmio pelo seu incansável labor, o misantropo conquista, lentam ente, o lugar do naturalista. No fim de uma existência de votada às mais nobres causas da Humanidade, a Ciência e a Liberdade, o seu exemplo autoriza o grito dos filósofos que, à semelhança de Rousseau, “se constituem em ásperos declamadores da perversidade que os apodrenta” .50 O acento polêmico desta peça de oratória, sim ultaneam ente política e cívica, culmina numa exortação digna de um verdadeiro apóstolo dos novos tempos: “Bom cidadão e zeloso vassalo [...] o amor da justiça e da verdade que o retiravão da Sociedade, o chamavão outra vez a ella quando cumpre advogar causa tão sagrada” — conclui o orador. Por isso, o Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira “era para o Universo, quando o Universo já não existia para ele”,51 isto é, a sua memória, monumentalizada pela recordação, passava a ser guia e farol das gerações vindouras. Este esforço de sacralização da memória que nega o privilégio do nasci m ento e silencia os apelos da transcendência em favor do mérito, do talento e da razão abre caminho a todas as liturgias comemorativas do século XIX — políticas, históricas e cívicas.52 □ □□
47 História e Memórias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, t. V, parte II. Lisboa: Typ. da Academia, 1818, p. LVI-LXXX. 48 Ibidem , p. LVI. 49 Ibidem , p. LXXVI. 50 Ibidem , p. LXXVI. 51 Ibidem , p. LXXIX-LXXX. 52 Fernando Catroga. O céu da memória. Cemitério romântico e culto cívico dos mortos em Portugal (1756-1911). Coimbra: Livraria Minerva Editora, 1999.
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A n a C r i s t i n a A r a ú j o é professora-auxiliar da Faculdade de Letras da Uni versidade de Coimbra e investigadora do Centro de História da Sociedade e da Cul tura da mesma Universidade. E autora de A morte em Lisboa 1700-1830 (1997), coautora do 5.” vol. da História de Portugal (dir. José Matto-so) (1993). Tem publicado vários trabalhos no âmbito da História da Cultura e das Mentalidades.
R l i s u m o . Começamos por analisar os gestos e os motivos simbólicos que confor mam o modelo de encenação ritual da Morte na Contra-Reforma, destacando, em particular, os mecanismos de incorporação dos mortos na comunidade dos vivos, as estratégias de perpetuação cultural da memória e os estilos de ostentação cerimonial das exéquias. O espaço reservado à apologética individual — realçado pelo epicédio, pela biografia de cunho edificante e pela própria ideação de eternidade — será subli nhado por alguns estudos dc caso. Em finais do século XVIII, o sistema de comemo ração dos mortos se altera. A necessidade de redistribuição dos critérios de seleção social condiciona o aparecimento de novos dispositivos imaginários de controle de recordação.
Festas do casamento de D. João e D. Carlota Joaquina em Madri. Muzi (a., d., 1785). Óleo sobre papel, 37 x 54 cm. D. João VI e seu tempo. Lisboa: Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1999, p. 175. Lisboa, Coleção Maria Keil Amaral. Foto André Ryoki.
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1. Os p r i m e i r o s A N O S de reinado de D. José I foram fundamentais para a implementação de uma atividade operística em Portugal e no Brasil. Em Lisboa, a construção do monumental teatro de Opera do Tejo e a contra tação de profissionais de primeira linha, como o compositor Davide Perez, o cenógrafo Giovanni Cario Bibiena e o sopranista Caffarelli, respondeu a um modelo cultural iluminista, oposto ao modelo teocrático, característico do rei nado anterior. Giovanni Cario Bibiena pertencia a uma família de cenógrafos que revolucionara o teatro musical, adotando, no lugar da perspectiva central renascentista, uma visão bifocal. Resultava daí uma multiplicação de pontos de vista e, portanto, a abolição do eixo visual preferencial, que no teatro bar roco ligava o camarote central do príncipe ao fundo do palco. A democratiza ção da disposição cênica no palco corresponde, nos teatros europeus mais avançados, uma distribuição mais articulada do público: abaixo e acima da segunda fileira de camarotes, reservada à aristocracia, se dispõem a burguesia abastada e a pequena nobreza, os funcionários e os profissionais liberais, se gundo uma hierarquia decrescente, até a quinta ou sexta fileira. A posição do camarote dentro de uma mesma fila também é significativa, indicando divi sões políticas ou ideológicas: durante a famosa querelle des bouffons, que tu multuou a cena lírica francesa em meados do século XVIII, os partidos em lutas se dividiram entre os progressistas filo-italianos, que sentavam na ala esquerda, do lado do camarote da rainha {coin de la reine), e os defensores da ópera francesa, conservadores, que sentavam na ala direita, do lado do rei {coin du roi) — disposição que antecipa a divisão entre direta e esquerda do
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futuro parlamento revolucionário. Outras distinções hierárquicas diferencia vam o publico por gêneros (ópera séria, semi-séria, cômica, farsa) e por tem porada (desde a mais prestigiosa, de dezembro ao carnaval, até as menos im portantes, de quaresma e de verão). Essa complexa rede de convenções, em que cada indivíduo é classificado pelo tipo de espetáculo a quem assiste e pela posição que ocupa durante a representação, m antém sob controle os equilíbrios sociais no único espaço, além da Igreja, em que setores heterogê neos da população se reúnem periodicamente. A mobilidade social de uma cidade européia dos séculos XVIII-XIX pode ser medida pela lista de assi nantes de seus teatros; a estabilidade de sua situação política, pela tranqüili dade ou turbulência de suas temporadas líricas. A reforma pombalina do teatro lírico não se apóia numa realidade social tão estratificada, mas responde a uma exigência análoga: estabelecer uma litur gia civil alternativa à Igreja, confirmar a aliança entre monarquia esclarecida, classe intelectual e burguesia emergente, mediar e administrar os contrastes sociais. Projeto arrojado na forma, mas bastante tímido na substância, porque não abre mão de um centralismo autocrático, sob o qual as inovações se man têm apenas no plano simbólico. E significativo que o teatro do Tejo, destruí do pelo terremoto de 1755, não tenha sido reconstruído. Na falta de um lugar adequado, a ópera volta a ser apresentada no teatro do Paço, segundo um calendário atrelado aos aniversários e às comemorações da família real.1 A Corte, no entanto, continua contratando artistas inovadores, na maioria pro cedentes de Viena: o compositor Jommelli, os coreógrafos De Rossi e Guglielmi, alunos de Noverre, mais tarde a grande soprano Catalani. O teatro heróico que Noverre e Jommelli defendiam era precursor da re forma de Gluck e do neoclassicismo revolucionário. Em Portugal, carece da contrapartida de uma sociedade organizada ao redor de uma nova hierarquia de valores. M antém, em compensação, sua coloração vagamente progressis ta, contra o conservadorismo da Igreja e da aristocracia feudal. E é disso, e de nada mais, que a Corte e Pombal precisam. Sendo apenas um substituto da liturgia espetacular da Igreja barroca, e não um hábito social realm ente novo, o teatro lírico de José I acaba se assemelhando às práticas que substitui: M au rício Dottori já salientou como a decoração dourada do teatro do Tejo — cujo brilho, segundo viajantes da época, distraía o público da ação do palco — fosse emblemática da vontade régia de absorver, no Teatro, as funções da
1 V. Rui Vieira N ery & Paulo Ferreira de Castro. História da música. Col. Sínteses da cultura portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1991, p. 98-106; Manoel Carlos Brito. Opera in Portugal in Eighteenth Century. Cambridge: Cambridge University Press, 1989; Mário Vieira de Carvalho. Pensar émorrer, ou O teatro de São Carlos. Lisboa: Im prensa Nacional, 1993; cf. os ensaios sobre teatro e censura teatral em PombalRevisitado, Comunicações ao Colóquio Internacional do 2.° Centenário da morte do Marquês de Pombal. Lisboa: Estampa, 1983.
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Igreja barroca, como espaço privilegiado de representação.2Talvez essa mes ma observação possa ser estendida ao gosto tipicam ente português para os conjuntos vocais no teatro, que provavelmente deriva das convenções da música eclesiástica.-’ 2. Transportada para a colônia, a concepção teatral pombalina acentua ain da mais seu caráter contraditório. Não consegue cortar de vez o cordão umbi lical que a liga à religião, ao teatro jesuíta, aos mistérios processionais. Viajan tes do século XIX falam ainda de teatros anexos às igrejas, e administrados por sacerdotes. Nessas condições, as fórmulas iluministas e burguesas da cena ' lírica de fim do século XVIII se tornam, no Brasil, litúrgicas e alegóricas, mantendo, mesmo em época iluminista e neoclássica, uma coloração franca m ente barroca. N em por isso o teatro de ópera brasileiro deve ser visto como simples incrustação superficial, produzida por uma elite estranha e destinada a desaparecer sem deixar rastros, ao passo que a formação de uma música autenticam ente nacional se daria no paradigma música religiosa colonial/mo dinha imperial/nacionalismo republicano.4 Ao contrário, a veiculação de fór mulas e conteúdos progressistas em moldes formais e sociais de cunho con vencional 0 11 até arcaico me parece uma característica recorrente na prática musical erudita (e não apenas erudita) brasileira. Nesse sentido, a música para a cena lírica brasileira, pela mistura de elementos modernos (europeus), e arcaicos (autóctones), longe de ser um fenômeno periférico, torna-se, a meu ver, exemplar. A construção de teatros e o incentivo a representações líricas, durante o terceiro quartel do século XVIII, tiveram a função de substituir as práticas jesuítas por novas formas de socialização. A casa da ópera anexada à igreja," freqüentem ente uma simples “ramada”, é substituída pelo teatro encostado
2 The Church Music ofD avide Perez and Niccolò Jommelli, with Special Emphasis on Their Funeral Music. Tese de doutorado para o Departamento de Música da Universidade de Gales, Cardiff, 1997, inédita, p. 83. 3 Em 1771, Jommelli escreve ao superintendente do teatro de corte português, Pedro Josc da Silva Botelho: “Todos esses benditos Coros, Duos, Trios, Quartetos e Fina/i: é verdade que no palco deverão render um ótimo efeito; mas me custam penas e trabalhos incrívcis". Cit. em Dottori. Op. cit., p. 85. 4 Esta, de fato, é a tese defendida por Mário de Andrade (“Evolução social da música no Brasil”, (org.), em Música do Brasil. Curitiba: Guaíra, 1941; tam bém em Aspectos da Música Brasileira. São Paulo: Martins, 1965) e nunca contradita, na substância, pelos pesquisado res posteriores. O princípio que a norteia é a busca de elem entos objetivos autóctones: um ritmo, um modo — em outras palavras, de um vocabulário nacional. O teatro de ópera no Brasil age, por assim dizer, no plano da sintaxe sbcial, da disposição simbólica de universos culturais diferentes dentro de um mesmo discurso, e por isso fica fora desse tipo de pes quisa. , 5 “Casa da ópera” era um termo genérico que indicava toda construção destinada a repre sentações teatrais, c não apenas os teatros líricos.
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ao palácio do governo, da mesma forma em que às procissões e às festas litúrgicas se contrapõem agora os desfiles de celebração política e os bailes mundanos promovidos pelos governadores. Casas da ópera importantes são inauguradas na Bahia (1760), em Vila Rica (1769) e em Belém (1775); prati camente, toda cidade brasileira de certo porte passa a possuir um edifício teatral. Um alvará de 17 de julho de 1771 aponta explicitamente para a fun ção política dos teatros. E recomendado “o estabelecim ento dos teatros pú blicos bem regulados, pois deles resulta a todas as nações grande esplendor e utilidade, visto serem a escola, onde povos aprendem as máximas sãs da po lítica, da moral, do amor de pátria, do valor, do zelo e da fidelidade com que devem servir aos soberanos, e por isso não só são permitidos, mas necessá rios”/’ O teatro (bem regulado, isto é, sob o estreito controle do bispo ou do governador do Estado) exerce função predom inantem ente civil e formativa. No entanto, a própria rigidez dessa visão dificulta a criação de um público teatral assíduo e realmente interessado. Em Belém, por exemplo, em obe diência ao alvará citado acima, se encom enda um teatro ao arquiteto bolo nhês Antonio Giuseppe Landi. Comenta porém Alexandre Rodrigues Fer reira, em seu Diário da Viagem Filosófica: “Raras vezes se abre o teatro que fez erigir a um lado do Palácio o Sr. João Pereira Caldas, porque não tem cômicos pagos para esse fim; e os que nele representam algumas vezes são curiosos, que dedicam esses obséquios aos senhores Generais”.7 Ainda por volta de 1810, John Mawe assiste a representações teatrais em Vila Rica, e anota: “O teatro e suas decorações eram lindos e os atores passáveis; se recebessem aplausos do público, ficariam sem dúvida mais satisfeitos. Sempre estiveram na dependência do governador e são tão constrangidos, que só podem repre sentar as peças que o seu capricho lhes indicar como convenientes”.* Mais ou menos no mesmo período, John Luccock informa, em suas Notas Sobre o Rio de Janeiro, que o público carioca “por tal forma já progredira, que, embora sem grande confiança, ousava aplaudir, ao apreciar; mas não se fiava bastante em si mesmo para se atrever a exprimir o seu desagrado”.9 3. No Brasil colonial, o melodrama sério (incluindo a representação alegó rica e pastoral) é manifestação teatral destinada com maior regularidade à celebração política e civil. Todos as encenações que levantei até agora (uma dezena, mais ou menos, mas é provável que seja apenas a ponta de um ice
h Cit. cm J. Galante de Sousa. O teatro no Brasil. Rio de Janeiro: M inistério da Educação c Cultura, 1960, vol. I, p. 109. O mesmo alvará retira a marca de infâmia para os atores: “Os atores não têm infâmia por isso, por ser a arte por si indiferente”. 7 V. Salles. A música e o tempo no Grão-Pará, p. 93. s John Mawe. Viagem ao interior do Brasil (\H\Z). Rio: Valverde, 1944, p. 251. Galante de Sousa. Op. cit., vol. I, p. 147.
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berg) são relativas a ocasiões civis: chegada de novos governantes (incluindo bispos), aniversários ou outros eventos relativos à família real ou a personali dades importantes da colônia.10 Em nenhum caso, as encenações de ópera séria são organizadas por ordens conventuais e missionárias. A comédia e o entrem ez, ao contrário, assim como o drama em prosa, podiam celebrar indi ferentem ente ocasiões religiosas ou profanas, e são freqüentes as representa ções dentro dos próprios conventos. Não há, por outro lado, nenhum registro de óperas compostas no Brasil no século XVIII. Sem dúvida, a pesquisa a este respeito encontra graves dificul dades, porque as fontes indicam apenas o título da ópera, às vezes o autor do libreto, nunca o autor da música. A ópera séria desse período utiliza um re pertório bastante limitado de libretos, que são musicados repetidas vezes por diferentes compositores. Cotejando, porém, a lista das óperas encenadas no Brasil com as produzidas pelos compositores ligados à Corte de Lisboa, se encontra uma correspondência perfeita: todas as representações brasileiras são precedidas por uma encenação com o mesmo título na metrópole. Isso não significa que a música executada em Portugal fosse a mesma tocada no Brasil. Parece-me aliás bastante improvável que o Alessandro Nelle Indie de Perez, por exemplo, escrito para os recursos técnicos do grande sopranista Caffarelli em 1755, ou o Ezio in Roma de Jommelli, que utiliza uma orques tração já pré-clássica, pudessem ser encenados em Cuiabá ou Belém sem cortes ou adaptações. Devemos imaginar um amplo leque de possibilidades, todas corriqueiras no século XVIII: a composição de uma nova partitura a partir do libreto importado da Corte, a colagem de diversos autores, a inser ção de árias originais, a encenação mista de canto e prosa, o rearranjo, etc. A questão não pode ser resolvida se as partituras não forem encontradas, e a sobrevivência delas, depois de dois séculos de esquecimento, é uma possi bilidade bastante remota.11 Quanto aos textos, o libretos escolhidos são na maioria de Metastasio, e a escolha não é casual: Alessandro Nelle Indie exalta
10 Em 1760, na Bahia, em ocasião do casamento do Infante D. Pedro, são encenados Alessandro Nelle Indie, Artaserse e Didone Abbandonata, libretos de Metastasio, provavelmente na ver são de David Perez. A encenação de duas óperas, sem indicação do título, é registrada cm Cuiabá em 1769, para a recepção do novo governador, Luís Pinto de Sousa Coutinho. Ezio in Roma, ainda de Metastasio, foi encenado cm Rccife em 1788, em Cuiabá em 1790 c em Belém em 1793, sempre cm ocasiões cerimoniais. Uma Zaira, tragédia de Voltairc, teria sido representada cm versão lírica no Rio em 1778 e cm Cuiabá em 1790, segundo Francis Curt Lange (v. Nota 11). É duvidosa a encenação de uma Ifigênia, talvez de Jommelli, em São João dcl-Rci, cm 1786. 11 No ensaio “A música em Vila Rica”, in: Revista M usical Chilena, Santiago, 1967-68, Francis C urt Lange afirma ter encontrado a partitura incompleta de uma Zara, baseada na Zaira de Voltaire, que seria de autor brasileiro. Em nenhum dos textos publicados nos anos seguin tes, porém, o autor voltou ao assunto. A partitura também não consta do acervo de Curt Lange doado recentem ente ao Museu da Inconfidência Mineira.
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um rei colonizador; Ezio in Roma trata da fidelidade à monarquia, até em situações adversas. A produção dos literatos locais, por outro lado, parece concentrar-se nas breves cenas alegóricas que precediam as representações líri cas e que certam ente exigiam, pelo menos em parte, música original. E com elas que uma nova classe de intelectuais, independente da Igreja, se põe simbolicamente sob a proteção do governo civil, em contraste com a tradição dos dramas religiosos produzidos nos colégios jesuítas. Mas é nelas também que a velha tradição espetacular consegue sobreviver após a extinção da Com panhia de Jesus, infiltrando-se nas novas formas teatrais. É quase simbólico que a primeira obra musical brasileira de que se tenha data certa, o Recitativo e Aria de anônimo baiano (1759) tenha sido composta para saudar o Desembargador José de Mascarenhas, que chegava ao Brasil com a principal tarefa de liquidar a ordem dos jesuítas. N esse caso, não há — nem poderia ter, dadas as circunstâncias — influência do teatro religioso: a peça é uma típica licenza, ou seja, uma saudação cantada por um solista com acompanhamento orquestral, antes de uma festa, uma cerimônia ou uma re presentação de maior porte. Feita ressalva pela evidente diferença de talento e domínio técnico, pode ser útil compará-la às licetize que Mozart criança es creveu por encomenda do arcebispo de Salzsburgo: uma em particular, Orche ilD over... TantieCotantiSono, K 36, é bastante parecida com a peça brasilei ra, tanto no texto, quanto na estrutura musical.12 Entre os poetas de renome, Cláudio Manuel da Costa foi provavelmente o mais ativo em campo musical. Muitos poemas seus são destinados à encena ção com música, o mais importante sendo 0 Parnaso Obsequioso de 1768, can tada alegórica dedicada ao governador de Minas, Conde de Valadares. As Cantadas III-VIII na coleção de suas obras com pletas1-’ compõem um drama pastoral em várias cenas sobre o mito de Acis e Galatéia. As duas primeiras cantadas, ao contrário, são de conteúdo religioso: 0 Pastor Divino e La SS. Vergine. As duas peças, no entanto, possuem caráter arcádico marcado — so bretudo a primeira, que é provavelmente uma cantata natalina. Nela, ninfas e pastores, a convite de personagens alegóricas (a Fé e a Esperança), descem os montes para adorar o nascimento do Pastor Divino. A tradicional adoração dos pastores — a pastorinha — é substituída aqui pelas convenções do drama pastoral. E evidente a intenção de criar uma prática religiosa compatível com as convicções e os gostos de uma classe dirigente mais culta e iluminista, mesmo a preço da incongruência evidente das ninfas adorando o presépio.14 12 Para uma análise do Recitativo eÁ ria, v. Régis Duprat. “Bahia musical”, in: Garimpo M usi cal, São Paulo: Novas Metas, 1985, p. 21-52. 13 Em AAVV. A poesia dos inconfidentes. Rio dc Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p. 296-304. 14 Cláudio Manuel da Costa foi também um dos promotores da construção da Casa da Ópera de Vila Rica, tjuando secretário do governo do Conde dc Valadares. Alguns autores, citados por Affonso Ávila em Sob o Signo de Calderón. O Teatro na Formação C ultural de M inas
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A atividade do teatro musical em Minas, em geral, foi caracterizada por clara tendência iluminista e arcádica.15 Essa tendência se reflete, a meu ver, tam bém na música religiosa, que em Minas foi mais rápida a se libertar dos traços barrocos e a assumir feições francamente pré-clássicas. 4. Em outras regiões, a persistência das formas barrocas foi mais acentua da. A primeira grande investida das reformas pombalinas foi no Grão-Pará (e no Mato Grosso, dependente deste por causa do trânsito fluvial). A criação de uma companhia de comércio na região, a transferência da capital da província de São Luís do Maranhão para Belém, a luta contra os jesuítas e o peso da presença indígena — tudo isso conferia à área importância estratégica, justi ficando o luxo e a abundância das manifestações espetaculares que nela eram promovidas. Vincente Salles reproduziu, em seu volume sobre a música pa raense,16 um exemplo bastante interessante dessas representações alegóri cas. A ocasião é o nascimento da Princesa Maria Teresa, filha de D. João VI, em 1793. Em Belém se representam duas óperas sérias (Ezio in Roma e Zeno bia), uma comédia (/I Beata Fingida) e uma cena arcádica (Aódia) a ser repre sentada antes das óperas. A sucessão das peças segue a distribuição clássica em tragédia, comédia e drama satiresco, que o teatro lírico barroco transfor ma em ópera séria, cômica e pastoral. Ezio e Zenobia são dois libretos metastasianos. As partituras de Jommelli {Ezio, 1771) e Perez (Zenobia, 1751) po dem ter sido as bases da encenação paraense, mas não deve ser descartada a contribuição de compositores locais. Não encontrei nenhum dado quanto à comédia. Da Aódia, ao contrário, conhecemos o autor (José Eugênio de Aragão e Lima, substituto da cadeira de Filosofia da cidade de Pará) e temos o libreto completo, impresso em Lisboa em 1794.17 O texto, que alterna canto e recitação em versos, não tem nenhum valor literário, mas chama a atenção pela maneira como adapta o repertório arcádico à realidade local: três personagens alegóricas — a ninfa Pará (protetora da (Belo Horizonte: Conselho de Extensão da UFM G, 1973) atestam a representação, nessa casa, de um oratório São Bernardo, do mesmo poeta. Não é possível confirmar esse dado. 15 Além de M anuel da Costa, Alvarenga Peixoto também parece ter-se interessado pelo tea tro lírico: escreveu uma ópera, Enéias no Lácio, que teria sido encenada no Rio de Janeiro (cf. Poesia dos Inconfidentes, Nova Aguilar, p. 924). A peça se perdeu. É possível que se tratasse apenas da tradução do texto dc Metastasio, do qual M anuel da Costa também traduziu dois dramas: Artaserse e Demoofonte in Tracia. 16 A música e o tempo no Grão-Pará. Belém: Conselho Estadual de Cultura do Pará, 1980, vol. I. 17 Um trecho deste libreto, em que se anuncia o programa dos festejos, dá outras indicações sobre estas representações, às quais deve se acrescentar, ao que parece, um balé: Darem de hum são prazer festivas mostras,/De fiéis rendimentos misturadas. /Huns logo em rica Scena representem/Altos sucessos, dignos de cot/iunio./Outros em tom mais baixo, mas faceto,/Mostrem acções domésticas, ensinem/Os signaes da virtude, efingimento./Estes affinem aureos instrumentos,/toquem sonora tuba, e dem acordes/Aos que danção, calor, e o tempo marquem/Para os passos, e saltos regulados,10 canto de alegria aos ares suba/Com vivas dos que aplaudem...
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cidade), o gênio tutelar do Estado e o rio Gojará — esperam a chegada de um outro gênio, mensageiro da corte, que trará a notícia do nascimento da prin cesa e os retratos da família real. Cada personagem é acompanhada por um coro: ninfas para a protetora da cidade, índios para o gênio do Estado, de novo ninfas para o rio Gojará. As cenas são um bosque contíguo, à cidade e as salas de um rico palácio. O gênio do Estado, com seu séquito de índios, aparece primeiro, carregando um cetro bifurcado, para simbolizar a confluência dos rios Negro e Solimões. A ninfa protetora da cidade traz na mão um globo, símbolo de poder político. Gojará é o mais exótico: veste uma grinalda e um cinto de limos, é coberto de conchas e segura na mão um grande búzio retor cido. Depois de uma troca de elogios e felicitações, a cena se transfere para o interior do palácio, onde o mensageiro lusitano anuncia a chegada dos retra tos de D. João, da Princesa Carlota e da recém-nascida Maria. Novas mani festações de júbilo, e finalmente os retratos são expostos sobre um pedestal, alternados com estátuas que representam a monarquia e as virtudes lusas (amor ao soberano, obediência e valor guerreiro). O primeiro elem ento a chamar a atenção nesse texto é, sem dúvida, a in clusão dos índios num papel que, numa composição arcádica tradicional, se ria dos pastores. Mas a cena inteira é montada sobre um modelo religioso, que garante a mediação entre mitologia e realidade histórica. Nas práticas devocionais era comum a exposição de imagens sacras, a serem saudadas por coros de índios, divididos entre meninos e meninas. Paulo Augusto Castagna18 recolheu farta documentação sobre a participação dos índios nas cerimô nias religiosas, seja como cantores, seja como instrumentistas, nos séculos XVI e XVII. Ainda em meados do século XVIII, segundo o Padre João Da niel (Tesouro Descoberto do Rio Amazonas), o canto por coros divididos era prática comum nos aldeamentos jesuítas, onde não faltavam também “os retábulos bem -feitos” e “as imagens de vultos cortinados”, ou seja, cobertas por corti nas que eram retiradas no decorrer da liturgia, para permitir a adoração.iy Ao
18 P. A. Castagna. Fontes bibliográficos para a pesquisa da prática musical no B rasil nos séculos X V I e XVII. Dissertação de mestrado. São Paulo: Escola dc Comunicações e Artes/USP, 1991, inédito. 19 João Daniel, que foi deportado com os jesuítas c morreu na prisão, descreve cm detalhe as cerimônias religiosas: “A praxe ordinária, é assim: pela manhã mandar tocar o sino a doutri na a que sendo sendo domingo, ou dia santo acode todo o povo, acabada a doutrina lhes fazem alguma prática doutrinai, depois da qual celebram missa, a que assistem os ncófitos com boa ordem; os pequenos separados dos adultos no cruzeiro da igreja, os meninos todos para uma banda, as meninas para outra; no corpo da igreja a gente feminina, cm último lugar os adultos. Ao levantar a Deos principiam os meninos em alguma canção devota, que cantam a dous coros e as continuam até o fim da missa, a qual acabada entoam o «Salve Senhora», c outras canções té o missionário se expedir” (cit. cm Salles. Op. cit., p. 71). A instrução musical dos índios não parece ser apenas prática jesuíta. Em Barcelos, por exemplo, existia um Recolhimento Secular das índias raparigas, dirigido pelo capitão, pintor c m ú
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escrever sua Aódia, portanto, Aragão e Lima transfere para uma cerimônia civil o hábito religioso da adoração de imagens. O diferencial simbólico entre as duas práticas era dado pelo tom do texto, de um humanismo rebuscado já no título (.Aódia significa ode em grego arcaico), e possivelmente pela música. 5. N a época de João VI e no começo do reinado de Pedro I, a presença de Marcos Portugal e dos castrados italianos confere à vida musical da Corte caráter bastante europeizado. Nem por isso o gosto pela encenação barroca desaparece: Luccock, que esteve no Brasil entre 1808 e 1818, descreve uma representação teatral em que, após a morte da heroína por decapitação, o pano se levanta pela última vez apenas para mostrar “o corpo decapitado da dama, sentado direito numa poltrona, com o sangue borbulhando do seu pes coço e correndo pelo seu vestido abaixo”20 — imagem que certam ente não destoaria das do teatro jesuíta alemão recolhidas por Walter Benjamin. A crise do teatro lírico determinada pelo fim do reinado de Pedro I, e que perdura durante toda a Regência, não apenas favoreceu o surgimento de um teatro nacional em prosa, como estimulou também os empresários a procurar lucros em formas mais populares. Conhecemos este repertório quase sempre em negativo, por depoimentos de observadores escandalizados ou por comu nicações policiais. Carl Seidler, um viajante particularmente afetado por pre conceitos raciais, lamenta, em Dez Anos no Brasil, ter sido obrigado a assistir no Rio, por volta de 1830, a um “drama popular mulato”, para não perder a volta à cena de uma dançarina famosa, Ricardina Soares, que ia exibir-se nos intervalos. A “horrível peça crioula”, segundo as palavras do autor, foi inter rompida por um motim republicano. As desordens no teatro são freqüentes nessa época: em 1831 os sentimentos antilusitanos do público provocam três mortos e vários feridos durante a exibição de uma companhia portuguesa, e determ inam o fechamento do S. Pedro de Alcântara. O público que dez anos antes, no testem unho de Mawe e Luccock, mal ousava aplaudir, parece to mar posse do teatro, nesse período, de forma súbita e violenta. Além das desordens políticas, preocupa a desordem moral: em Recife, em 1830, se representa a peça A Mulatinha Pernambucana, e um jornal local pede que o teatro local não atraia o público com promessas de “baianos” e de “ou tras danças imorais”. Sempre em Recife, a polícia proíbe à atriz Joana Januária de Sousa Bittencourt, conhecida como Joana Castiga,-1de dançar lundus
sico Francisco Xavier dc Andrade, onde a índia Custódia, neta do cacique Camandri, toca va um órgão dc tabocas (Alexandre Rodrigues Ferreira. Diário da viagem filosófica, p. II). 20 Notas sobre o Rio de Janeiro e panes meridionais do Brasil, cit. em Galante de Sousa. Op. cit., vol. I, p. 162. 21 Joana Castiga parece ter tido uma longa carreira: já é conhecida em Recife em 1824 e seu nom e ainda consta num elenco cm São Luís, em 1854.
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nos entreatos. A decisão é o início de um longo contencioso com o em presá rio do teatro, que pede permissão para encenar lundus nos intervalos das comédias, ou pelo menos das farsas. Em 1834, o intendente-geral da polícia publica pela primeira vez um regulamento dos teatros. No mesmo ano, a província de Minas Gerais institui a censura na Casa da Opera de Ouro Preto. Em 1836, o ministro da Justiça despacha avisos a juizes de paz pedindo a leitura prévia de peças a serem encenadas, para evitar a representações de “peças pouco convenientes aos fins por que foram instituídos tais estabeleci m entos”.22 O endurecim ento do controle policial e os alertas da imprensa e da classe culta parecem indicar que o projeto iluminista e didático da reforma pombalina está naufragando definitivamente nesta década de 1830. 6. Um equilíbrio entre poder e público, no teatro, será recomposto apenas com o Segundo Império, mediante a recuperação sistemática, e aparente m ente consciente, daquela mistura dc teatro leigo e liturgia religiosa, espetá culo burguês e drama barroco, que na época pombalina tinha sido apenas um compromisso necessário. A exposição ritual de retratos dos monarcas se perpetua no Segundo Im pério, com as mesmas caraterísticas semi-religiosas da época colonial. Em todas as ocasiões em que o imperador dá recepção no Paço (1.° de janeiro, 25 de março, 7 de abril e, no reinado de D. Pedro II, o aniversário deste em 2 de dezembro), nas capitais regionais se expõe sua imagem, para que receba as homenagens da população. Ao lado dele senta o presidente da província, às vezes o bispo. O dia natalício é festejado com esmero particular, e é geral m ente por essa ocasião que se oferece à família real um espetáculo lírico ou uma cantata comemorativa. Os manuscritos de muitas dessas cantatas se en contram hoje na Biblioteca Nacional do Rio. Nada de mais barroco do que o Prólogo Dramático dc Araújo Porto Alegre, com música de Cândido José da Silva, encenado para o aniversário do segun do imperador, ainda menino, em 1837. Assim o resume De Paranhos Antu nes: “O palco representava o fundo da terra, com um círculo de fogo simboli zando o inferno. Satanás e os gênios do Mal tentam arrastar o Brasil para o caminho da perdição por meio de mil tentações. Quando a Pátria está prestes a sucumbir, chega o Anjo da Verdade e a salva O anjo, vale lembrar, foi João Caetano. Uma outra cantata de aniversário, composta no começo da década de 1850, mostra que o esquem a geral da representação não mudou muito desde a épo ca de Maria I. A semelhança com a cena alegórica de 1793 c tanto mais mar
22 In: G alante de Sousa. Op. cit., I, 156. 23 De Paranhos Antunes. O pintor do Romantismo. Rio: Valvcrdc, 1943, p. 94.
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cante por se tratar, nesse caso, de uma obra encomendada no exterior, ao libretista franco-italiano De Lauzières e ao compositor siciliano Giovanni Pacini.24 A peça, um ato único denominado UAlleanza, foi enviada em manuscrito autógrafo do compositor, sem passar, como era de praxe, pela mão de um copista profissional. E bastante difícil de se ler; talvez por isso, não chegou a ser encenada. O libreto, que sem dúvida se baseia em recomendações da diplomacia imperial, insiste no caráter liberal e constitucional do reino de D. Pedro, sublinhando seu papel como garantia de progresso econômico, união interna e independência do exterior. Recorre, para esse fim, a muitas ima gens e fórmulas típicas do Risorgimento italiano (na época, De Lauzières se encontrava exilado em Paris por razões políticas). Apesar das temáticas pro gressistas e de uma dramatização um pouco mais complexa, a substância da encenação permanece a barroca e semi-religiosa de um século antes: três personagens alegóricas, o Brasil, a Liberdade e a Civilização, acompanhadas pelas províncias do Brasil, lutam contra um tirano, personificação do domínio português. Finalm ente há uma tempestade, o tirano é abatido por um raio e entre as nuvens aparece um vestíbulo (De Lauzières escrevera “tem pio”, riscado e substituído por outra mão no libreto) com a estátua do imperador. Agitando uma tocha, a Liberdade canta o hino conclusivo, em que cabem duas estrofes dedicadas à Imperatriz Teresa Cristina e à Princesa Isabel. Como no caso da Aódia, aqui também a diferenciação do teatro litúrgico e popular se dá m ediante detalhes lingüísticos. Ao latim se prefere o grego: o nome da personificação do Brasil, Flumen no libreto original (provavelmente umà re ferência ao Rio de Janeiro), é corrigido para Roos (correnteza em grego); L i bertas se torna Eleutéria\ apenas a civilização {Lucia) mantém seu nome na versão definitiva. A partitura autografa, como disse, é difícil de decifrar. Uma olhada de con junto, porém, me parece suficiente para adivinhar um estilo musical que não se afasta muito do de Niccolò de’ Lapi, ópera oferecida por Pacini ao impera dor em 1857, e tam bém conservada na Biblioteca Nacional. Pacini foi um seguidor e colaborador de Rossini que teve certa influência na produção operística italiana, entre o reinado de Donizetti e a afirmação definitiva de Verdi. Tentou modernizar o estilo de seu mestre mediante a amplificação retórica dos recitativos, interrompidos amiúde por incisos melódicos e ornamenta ções complexas, e a movimentação das árias com figuras de acompanhamen to e contrapontos na orquestra, cadências virtuosísticas na parte vocal. Suas
24 Tentei uma descrição desta peça, bem como da ópera Niccolò de' Lapi, de quem falarei adiante, no artigo “Musica per 1’Imperatore: due partiture di Giovanni Pacini nella Biblio teca Nazionalc di Rio”, in: Quademi, Nuova Serie n.° 5. São Paulo: Istituto Italiano di C ultura, 10/1993, p. 159-75.
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óperas buscam o efeito monumental, desenvolvendo, mas não superando, a estética espetacular da ópera séria neoclássica. O advento do drama românti co verdiano tornará essas partituras obsoletas, embora continuem sendo re presentadas até a década de 1870. No Brasil, Pacini é um autor de grande sucesso. Entre 1845 e 1860, só Verdi, dos compositores em atividade, o ultra passa em número de encenações. Em 1850, sua Regina di Cipro estréia no dia do aniversário do imperador. Em 1851 é condecorado com a Ordem da Rosa. O favor que seu estilo magniloqiiente e oratório encontra no Brasil pode estar ligado ao caráter cerimonial e celebrativo, estritam ente ligado à Corte, que a ópera continua tendo na capital do império, apesar da leve tinta empresarial. Alguns traços do estilo de Carlos Gomes, em particular a expressividade car regada dos recitativos, lembram a escrita de Pacini, embora seja improvável uma influência direta (na época cm que Gomes esteve no Rio, foi represen tada apenas uma ópera de Pacini, M alvina di Scozia).2* Mas o autor de II Guarany estudou com Gioacchino Giannini, que por sua vez se formou em Lucca na época em que Pacini dirigia o conservatório local. Não existe ainda, que eu saiba, nenhum estudo sobre as composições de Giannini, que foi um dos músicos mais influentes do Brasil em meados do século passado, e que é considerado o fundador do canto lírico em língua nacional, com as duas cantatas A Véspera dos Guararapes e Deixai que as Crianças Venham a Ter Comigo. Não é possível, portanto, estabelecer quanto de Pacini, por interm édio de Giannini, passou em Gomes. Sem dúvida. Gomes é um compositor mais enér gico, embora menos técnico, que Pacini, e pertence a outra geração: seu modelo não é mais o brilho de Rossini, mas a dramaticidade de Verdi. Seus recitativos possuem, pois, uma tensão melódica não ornamental, que Pacini desconhecia, e que prepara o verismo. O heroísmo um pouco exibido de cer tas figuras musicais que Gomes criou, embora fique longe do humanismo profundo de Verdi, constitui no entanto o momento em que a oratória lírica do Segundo Império chega mais perto da expressão de uma nacionalidade. 7. Durante o reinado de D. Pedro II, o teatro da ópera é o pendant do parlamento: é o lugar onde o imperador se mostra e é mostrado ao povo, ao vivo e/ou em efígie, mas também onde vê e escuta o povo. Joaquim M anuel de M acedo enxerga na vida teatral carioca uma metáfora da atividade parla m entar quando, no primeiro capítulo de O Moço Loiro (romance, aliás, ampla m ente baseado em modelos operísticos), descreve a briga entre os fas da
25 Em 1879, Antônio Carlos Gomes estreou sua M aria Tudor, baseada no mesmo drama dc Vítor Hugo que Pacini musicara cm 1843. Mas essa c provavelmente uma mera coincidên cia, que não implica nenhum tipo de influência direta. Com trinta c cinco anos de distância entre cias, as duas óperas não têm, nem poderiam ter, nenhum ponto de contato (da ópera de Pacini existe uma gravação dc 1998, pelo selo Opera Rara).
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Candiani e da Delmastro, primeiras divas da lírica brasileira, como se se tra tasse dc uma disputa partidária. Estamos em 1844, ano em que D. Pedro II assume de fato o governo do império; mas ano também em que as tempora das líricas voltam ao antigo esplendor, com a chegada da companhia da Can diani, após anos de dificuldade. E não parece ser mera coincidência. M anuel de Macedo mostra em detalhe a febre operística que afeta os ca riocas na década de 1840. A grande festa no centro do romance é também montada como uma encenação lírica, dividida em três atos/capítulos, incluin do uma ouverture (de Le Domino Noir de Auber), ária, cena cômica e balé. Há porém uma faceta da vida teatral brasileira que não aparece no romance, ao passo que é sublinhada com insistência pelos viajantes estrangeiros. Leia-se por exemplo o comentário do francês Lavollé, citado por Alfredo de Taunay, sobre a mesma temporada de 1844: Norma, o maior sucesso da Candiani, estaria, segundo ele, comprometida pelos coros que, “compostos de mulatos, mostravam-se miseráveis. Dois negrinhos barrigudos, de encarapinhada trun fa, faziam o papel dos filhos da Norma!”.26 A mesma reclamação se encontra no relato de Avé-Lallemant sobre uma representação do Don Giovanni de Mozart na Bahia, em 1859.27 Evidentem ente, as companhias estrangeiras for neciam os solistas, mas coro e orquestra eram recrutadas no local. Nestes, a presença de músicos negros e mulatos deveria ser relevante, embora fosse citada apenas em relatos estrangeiros, e quase sempre com uma coloração de desprezo. 8. Voltemos atrás, às representações do século XVIII: quem executou, em 1793, a alegre sinfonia introdutória prescrita pelo libreto de Aragão e Lima? Por quem eram tocados os metais que acompanharam o balé, segundo o mes mo libreto? A existência de orquestras de escravos é documentada no Pará desde o 1777, quando o Governador João Pereira Caldas, para comemorar a coroação de Maria I, fez desfilar treze escravos negros uniformizados, tocan do timbales, seis trompas, duas rabecas, duas flautas e dois clarins (trompe tes).28 Se as orquestras de escravos são exibidas com orgulho, o músico negro ou mulato tende a ser escondido, quando se trata de um profissional livre. A mestiçagem dos compositores mineiros do século XVIII só foi revelada por docum entos de arquivo. Para explicar a presença de mulatos capazes de can tar ópera italiana, na época da chegada de D. João VI, nasceu o mito do conservatório de Santa Cruz, onde jesuítas formariam músicos escravos, sem considerar que uma ordem expulsa cm 1757 não poderia ter preparado os
26 Rio de Janeiro de antanho. São Paulo: Nacional, 1942, p. 276-7. 27 R. Avc-Lallcmant. Viagem pelo Norte do B rasil no ano de 1859. Rio de Janeiro: M E C /Institu to Nacional do Livro, 1961, p. 47-8. 2S Sallcs. Op. cit., p. 78-9.
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cantores dc 1808, e que, de qualquer forma, os padres não deveriam ter mui ta intimidade com o repertório de Cimarosa e Rossini. Na realidade, existia uma companhia estável no Rio, desde a época do Vice-Rei Luís de Vasconce los (1779-1790), incluindo cantores, dançarinos e cômicos. Por causa do baixo prestígio social da profissão dos atores, sobretudo das mulheres, é muito im provável que esses músicos fossem brancos. Aliás, nas últimas décadas da época colonial, a música parece uma atividade desem penhada quase exclusi vam ente por uma classe de mulatos livres. Até durante a estada de D. João VI, a companhia lírica abrigava, junto com os virtuoses estrangeiros, artistas nacionais que provavelmente eram mulatos (é muito difícil ter certeza abso luta, se não houver ata de batismo): é o caso de João dos Reis, o melhor baixo da época, amigo e copista de Pe. José Maurício, que desem penhou o papel de Júpiter no Augurio di Felicita de Marcos Portugal. Kidder, que, por ser padre protestante, não tinha muita familiaridade com as salas teatrais, regis tra, ainda em fim de década de 1830, uma procissão de Pentecostes “anun ciada por um grupo de negros maltrapilhos que, com seus rudes instrum en tos, servem a igreja durante o dia e o teatro à noite”. Não necessariamente, é certo, o teatro da ópera; talvez os teatros de bonifrates, nos quais se represen tavam cenas da Sagrada Escritura. O próprio Carlos Gomes, cujo pai era mestre-de-capela em Campinas, é classificado como pardo nos docum entos de arquivo,29 embora o compositor, já famoso, preferisse considerar-se descen dente de índios. Nos períodos e nos lugares em que o governo imperial atribui grande im portância ao teatro lírico, a presença negra e mulata é em geral limitada a papéis secundários, ou pelo menos disfarçada, sem apresentar características próprias. Nos momentos de crise, porém, quando os financiamentos oficiais dim inuem e a importação de artistas estrangeiros é difícil, a produção local se sobressai. 9. A efervescência desordenada e rebelde da época da Regência, recondu zida à ordem no período ascendente do Segundo Império, volta a aflorar na década de 1860, quando os subsídios governamentais minguam por causa da guerra do Paraguai. Reencontramos então a mesma polarização entre repre sentações patrióticas, agora predom inantem ente instrumentais, últimas her deiras das cerimônias barrocas (a Etoile du Bre'sil, poema sinfônico de H enri que Alves de M esquita, a batalha sinfônica Bravos de Paiçandu de João Pedro Gomes Jardim, e assim por diante) e a liberalização dos costumes da opereta e do teatro de revista. Dessa vez, a unidade não será reconstituída: com o advento da República, a música nacional se bifurca entre um projeto nacio
29 L. W. Nogueira. “Manoel José Gomes cm Campinas”, in: Arteunesp, V/l: 103-24, 1991.
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nalista culto, liderado inicialmente por Miguez, Nepomuceno e Levy, e uma produção musical popular e médio-burguesa sempre mais autônoma, que chegaria a assumir, na década de 1940, um peso cultural análogo, se não supe rior, ao da música erudita. Sem dúvida, os instrumentos de análise utilizados para o teatro musical monárquico e imperial devem ser renovados ao abordar a fase republicana. Falta a esta um elem ento que, mesmo quando não é explicitamente presen te, norteia todo o período anterior: a exposição do soberano ao povo e do povo ao soberano, um e outro cobertos por roupagens que modificam as raças, as classes e as intenções, e transformam os indivíduos em entidades alegóricas. Contudo, as raízes de grande parte da música sucessiva se encontram nesse período e nessas manifestações, que aparentem ente nada têm de nacional. Para um instrum entista ou cantor pobre, mas livre, dos meados do século XIX, foi muito mais fácil participar de uma encenação do Don Giovanni do que tocar um lundu estilizado num salão. A música teatral parece ter repre sentado, para estes profissionais, a alternativa mais freqüente às atividades das irmandades, que vão perdendo importância. E não devem ser esquecidas as inúmeras formas de apropriação que difundem elementos operísticos para setores da população sempre mais diferenciados e longínquos: as transcrições para banda, por exemplo, que em fim de século se misturam com os maxixes no repertório dos conjuntos do interior. A trajetória de Carlos Gomes é exem plar deste grande arco histórico e, mais uma vez, simbólica: filho de um mes tre de capela mulato, criador de poderosas metáforas em que a sociedade do Império se espelha, incapaz de se adequar às exigências da nova elite repu blicana, acaba morrendo quase esquecido em Belém. Aí, justamente, o proje to pombalino começara. □ □□ L o R e N z o M A M M 1 , italiano, é form ado em M a téria s L iterárias p ela U n iv ersid a d e dos E stu d o s d e F lo re n ç a e d o u to r em F ilosofia p ela U n iv e rsid a d e d e São P au lo (U S P ). R e sid e no Brasil d e s d e 1987. E professo r d e H istó ria da M ú sica no D e p a rta m e n to d e M ú sica da E scola d e C o m u n ica çõ e s e A rtes da U n iv ersid a d e d e São P au lo (E C A /IJS P d e s d e 1989, e crítico d e m úsica e d e arte. E resp o n sáv el pelo L ab o rató rio d e M usicologia do D e p a rta m e n to d e M úsica E C A /U S P e d ire to r do C e n tro U n iv er sitário M aria A n tônia. R E s u M o . As p rim e ira s ev id ên c ias d e e sp e tá c u lo s líricos no Brasil rem o n tam à ú lti m a fase do re in a d o d e João V. F oi, po rém , na ép o ca d e Jo sé I q u e a C o rte p o rtu g u esa p asso u a p ro m o v e r s is te m a tic a m e n te re p re se n ta ç õ e s d e ó p eras e ca n ta tas c o m e m o rativas, e s tim u la n d o a criação d e casas da ó p era em to d o o territó rio da colônia. Tais in iciativas eram p a rte da política p o m b alin a, q u e m irava à criação d c in stitu içõ es c u ltu ra is e d e form as d c socialização leigas, em su b stitu iç ão às p ráticas devo cio n ais je su íta s. N o e n ta n to , tra n sp la n ta d a s n u m a m b ie n te p ro fu n d a m e n te im b u íd o pela
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c u ltu ra religiosa, as form as te atrais e u ro p é ia s se m o d ificaram , d e s c e n d o a c o m p ro m isso com o im aginário p o p u la r e crian d o h íb rid o s, ta n to m ais in te re s s a n te s q u a n to as práticas d evocionais com q u e dialogavam já eram , elas m e sm a s, m istu ra s d e e le m e n to s in d íg e n a s e cristão s. D e ss a ép o c a , so b raram p o u q u ís s im o s d o c u m e n to s m u sica is profanos, m as a an álise dos d o c u m e n to s in d ire to s (d esc riçõ es d e v ia jan tes, libreto s, etc.) p e rm ite reco n stru ir, p elo m e n o s p a rc ialm en te , estra n h o s mélànges d e e le m e n to s e s p e ta c u la re s d ife re n te s, prim eiro s esb o ço s d e form as d c re p re s e n ta ç ã o tip ic a m e n te brasileiras. N o sé cu lo X IX , alg u m as dessas p e c u lia rid a d e s so b rev iv e m , a p e sa r d a c re s c e n te eu ro p e iza çã o da vida m usical. O te a tro e m m ú sica é u m a g ra n d e litu rg ia leiga q u e in te re ssa a d ife re n te s ca m ad as da p o pu lação , da e lite às classes p o p u la re s e a té aos escravos. É u m m eio p o d ero so de agregação social, m as ta m b é m u m lu g a r p riv ile g iad o para o b se rv a r a e m e rg ê n c ia d e novos co m p o rta m e n to s e novas id éias, s o b r e tu d o nos p erío d o s e m q u e o p o d e r p o lítico é e n fra q u e c id o . N a ép o c a do re in a d o d e P e d ro II, u m a m istu ra d e m úsica d e salão, o p erística, d ev o cio n al e folclórica fo rm a o caldo d e o n d e surgirá, no fim do século , a m ú sica p o p u la r brasileira.
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te sobre os sentidos da folia. Bem antes disso, por exemplo, o tema dera ensejo a saborosas provocações, como a desenvolvida por um impagavelmente irônico Machado de Assis contra o edmologista Castro Lopes. Este, ho mem de saber e prestígio no período, defendia uma tese de indiscutível lon gevidade: a desvinculação originária entre o carnaval e o calendário católico, necessária à afirmação de sua imemorialidade 0 11 à remissão de suas origens à Antiguidade clássica. Machado produziu um longo comentário em que o ab surdo foi ressaltado sem piedade: “Discordando dos que vêem no carnaval uma despedida da carne para entrar no peixe e no jejum da quaresma, [...] entende o nosso iluminado patrício que o carnaval é uma imitação das lupercais romanas, e que o seu nome vem daí. Nota logo que as lupercais eram celebradas em 15 de feve reiro, matava-se uma cabra, os sacerdotes untavam a cara com o sangue da vítima, 0 11 atavam uma máscara no rosto e corriam seminus pela cidade. Isto posto, como é que nasceu o nome carnaval? Apresenta duas conjeturas, mas adota somente a segunda [...]. Supõe esta primeira hipótese que a palavra «lupercalia» perdeu as letras 1, p e i, ficando «uercala»; esta, torcida de trás para diante, dá «careval»; finalmente a corrupção popular teria in troduzido um n depois do r, e ter «carneval», que, com 0 andar dos tempos, chegou a «carnaval». Realmente, a marcha seria demasiado longa.”4 Ele não discute a segunda suposição, finalmente adotada pelo erudito etimologista, mas cria habilmente em seu leitor a idéia de que isso era total m ente desnecessário. Trata-se, entretanto, de Machado de Assis: de forma geral, este tipo de associação bem ao agrado dos próprios foliões das socieda des não era questionado, tornando-se um padrão explicativo de longo curso quando se tratava de, nas redações de jornais, produzir anualm ente textos sobre o carnaval. Mesmo para autores que, ao longo deste período, manifes tavam desânimo quanto aos rumos da folia, a idéia de uma festa presa a uma tradição imemorial permanecia intacta. Dir-se-ia que se transformou em uma espécie de mágica capaz de assegurar a sua permanência apesar de eventuais desvios. Valentim Magalhães era um destes pessimistas, na década que se seguiu à proclamação da República. “[...] força é confessar, amigos meus, que o carnaval de agora só tem de legítimo, de verdadeiro, o nome que a tradição lhe legou [...]. Entre nós o carnaval deixou de ser o que era: uma transmissão inconsciente desses
4 Gazeta de Notícias, “A Semana”, 3 de março dc 1895.
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alegres e loucos ritos de outrora, em que as bacantes enrolavam à túmida pele dos seios peles de tigres reais, correndo pelas praças de archote em punho, numa doida invocação a Baco, seguidas do cortejo ululante e sen sual de uns faunos de arribação.”5 A crônica, no entanto, term ina com o próprio autor saindo para a pândega a envergar um dominó roxo, no rastro de uma sedutora espanhola — como a reafirmar a tradição imorredoura e invencível da folia de que se julgavam os exclusivos portadores na cidade. A par da auto-imagem destes letrados foliões (nada menos que sucessores dos faunos “sensuais” perseguidores de bacantes-espanholas), a crônica revela sua decepção com os rumos da República — e, por suposto, de um carnaval que se em penhara tão profun dam ente em construir um novo destino para o país, como os militantes cor tejos da década de 1880 registrados por Agostini deixam perceber: só no carnaval de 1881 ele registra dois carros de crítica intitulados “A Mancha de Jú p iter” com críticas diretas ao imperador e sua atitude em face do regime escravista, vários outros com alusões ao abolicionismo, a reforma eleitoral em debate no parlamento e críticas a outras instituições e práticas do Se gundo Reinado. D ez anos depois, o tom e o conteúdo desta crônica tornamse cada vez mais generalizados espelhando a quebra das expectativas polí ticas, entre literatos nos anos difíceis de Floriano Peixoto — talvez porque, quando o futuro parece incerto, a tradição tenda a tornar-se eficaz tábua de salvação. Mas não é este o foco que mais nos interessa aqui. A questão reside em outra parte: se não se trata efetivam ente de uma “tradição” ve neziana ou de resquícios das lupercais — seja qual for a ordem em que ponham os as sílabas — seriam meras “invenções” de literatos e etimologistas?6 Não exatamente, se entenderm os o termo como sinônimo de “importa ção” ou imposição de novos valores — mais que como o esforço sistemático de renomear e significar práticas costumeiras. E certo que os agentes desta transformação pretendiam a mudança e jamais esconderam suas intenções. O em penho em atualizar os costumes carnavalescos precisava recorrer à An tiguidade para inscrever o país na “boa” cultura ocidental fazendo com que a tradição, neste caso, pudesse aparecer como um complemento necessário à modernidade — e os intelectuais brasileiros lançaram-se na empreitada bem antes dos dilemas republicanos. Na construção desta mão dupla entre mo dernidade e tradição, usaram um arsenal intelectual e artístico tão rico quan-
5 O Paiz, 10 de fevereiro de 1891. (' Para os significados do termo, Eric Hobsbavvm & Terence Ranger. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
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Figura 1. Ângelo Agostini. “Carnaval de 1881”, in: Revista Illustrada, <5(241):4-5 (1881).
o exercício direto da sátira divertia o amplo público que se aglomerava na estreita Rua do Ouvidor para vê-las passar. O lhando com atenção o desenho — me perdoe o leitor se é preciso con tar com o auxílio de uma lupa — podem -se identificar os vários elem entos que faziam parte dos cortejos: bandas marciais contratadas iam à frente (exe cutando árias de óperas populares ou outros temas musicais não especifica m ente carnavalescos), seguidos pelos luxuosos abre-alas, elaborados carros alegóricos que freqüentem ente aludiam às grandes causas políticas do mo m ento e os “de idéias” alusivos ao cotidiano da política imperial ou da vida na Corte, cujo objetivo era zombar dos adversários de várias naturezas. Vi savam tam bém cativar e fazer rir a variada e numerosa platéia que se aglome rava à sua passagem — bem menos passiva do que os foliões dos préstitos gostariam pois, a despeito do interesse que as sociedades despertavam, prati cavam o entrudo à sua passagem, não depunham seus bumbos de zé-pereira, não abandonavam suas fantasias tradicionais como os diabinhos ou os ve-lhos dançarinos com suas cabeçorras. Encarapitados em suas alegorias e críticas cuidadosam ente montadas sobre carroças, jovens acadêmicos, literatos, bo êmios, homens endinheirados e outros segmentos da população masculi na “distinta” pretendiam , m udando o carnaval, m udar tam bém “o povo” e o país em direção à civilização, ao progresso, às luzes — mesmo que sua animada platéia habitual não entendesse ou partilhasse seus propósitos. A disposição de alcançar o futuro e a “democracia”, reafirmada no p u ffe
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em todas as fontes relativas aos carnavais de senhores letrados e liberais, não se sustentava apenas na aparência de uma festa generalizada e igualitária, reverso do mundo desigual da escravidão. Um outro lado igualmente impor tante deste esforço voltava-se explicitamente para o passado — na busca de tradições capazes de enraizar este carnaval na história, recorrendo a origens capazes de torná-lo legítimo e superior conferindo-lhe um potencial regenerador. Tais tradições pretendiam desvincular-se da imagem atrasada, bárbara e inculta atribuída ao próprio país. N aquele momento, as batalhas que se desenvolviam em torno do carnaval lhes pareciam uma luta entre duas cor rentes distintas: de um lado, o que se qualificava como práticas ancestrais africanas ou atribuía-se à rudeza dos costumes portugueses dos tempos colo niais — indesejável tradição; de outro uma herança buscada fora do solo na cional, que recorria a um carnaval mítico de uma linhagem européia mais nobre e cultivada. Para fazê-la valer também para si, esta longínqua “tradi ção” foi interpretada por intelectuais do período à luz de uma chave curiosa: embora “veneziana” ou “parisiense” (como qualificavam seus próprios préstitos), não pertencia exatamente a povo algum e nem a um tempo particular, integrando um repertório atribuído à “civilização” desde tempos muito anti gos. Se o carnaval seria visto depois como algo im anente à nação, capaz de expressar sua identidade profunda, era naquele momento dotado de trans cendência em relação a determinações como lugar e tempo, para adquirir foros de fenômeno próprio da condição humana, atravessando os tempos e cruzando as sociedades. Este tipo de concepção prevaleceu por longo tempo tendo, ainda hoje, seus adeptos. Cristalizando-se na bibliografia especializada, tal perspectiva pode no entanto ser facilmente localizada na crônica carnavalesca coeva da imprensa carioca. Mais de vinte anos depois da bravata da “rapazia” dem o crática, ainda podemos encontrá-la em textos literários e jornalísticos que se desenrolavam em torno desta idéia: “O carnaval era, sem dúvida, uma das liturgias mais antigas da tradição, e tinha origem nobilíssima nas festas dionisíacas dos velhos gregos [...]. O sentim ento desta liturgia prevaleceu na multidão e é hoje uma homena gem religiosa à memória dos antigos deuses que fizeram a humanidade feliz durante tantos séculos.”3 Do mesmo modo que a idéia de um carnaval igualitário e “democrático”, a noção da atemporalidade vinha de longe, enraizando-se fortem ente no deba-
3 Fon-fon, 3 de março de 1917. O trecho faz parte do editorial da revista intitulado “O carna val a sério”.
Angelo Agostini. “Carnaval de 1881”. Revista Ilustrada, ano 4, n." 241 (1881), Foto André Ryoki.
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“Ao Povo. Alas! Abri caminho à forte rapazia que vai passar avante à luz das tradições! Em alas! Dai caminho à sã democracia que vem de novo erguer seus rútilos brasões!”1
Club dos Democráticos anunciava seu préstito para o carnaval de 1881, retratado por Ângelo Agostini na Revista Ilustrada.1 Aquele havia sido um dos mais animados da década que seria encerrada jun tam ente com a monarquia. No desenho reproduzido na página seguinte, po demos identificar os principais elementos de um tipo de carnaval desenvol vido por entidades civis conhecidas como as Grandes Sociedades carnavales cas do Rio de Janeiro, que tomaram os nomes de Club dos Democráticos, Sociedade Tenentes do Diabo e Club dos Fenianos: figuras mitológicas da cultura clássica ou alusivas à “liberdade”, à “república” ou à “democracia” eram figuradas por célebres prostitutas e atrizes do teatro ligeiro, pouco ves tidas e freqüentem ente envergando barretes frígios sobre elaborados carros alegóricos; mas também compunham os préstitos carros “de idéias” nos quais C
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* E ste texto, com ligeiras modificações, é parte do capítulo 4 do livro Ecos da Folia. Uma História Social do Carnaval Carioca de 1880 a 1920 (título provisório), a ser publicado pela Com panhia das Letras. Para sua elaboração contei, nos últimos anos, com bolsa de produ tividade em pesquisa do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). 1 Pttff dos Democráticos para o carnaval de 1881, publicado na Gazeta de Notícias de 1.° de março de 1881. 2 Angelo Agostini. “Carnaval de 1881”, in: Revista IUustrada, <5(241 ):4-5 (1881).
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to variado. Um bom exemplo pode ser visualisado na figura de José de Alen car — ele próprio um dos introdutores dos grandes préstitos carnavalescos com o Congresso das Sumidades Carnavalescas. Enquanto trazia Veneza para o carnaval carioca e reivindicava a civilização da festa segundo suas nobres origens, o escritor empenhava-se em “fundar” uma literatura nacional e em esboçar uma identidade simbólica para o país forjando o mito de origem em O Guarani, publicado exatam ente quando as Sumidades adentravam a folia com suas fantasias européias.7 Para divulgar sua busca de origens e tradições, utilizava-se dos veículos mais modernos do momento: o romance,” a im pren sa diária, a comédia teatral. Além do mais, associava a construção de uma origem nacional ao exercício de cientificidade relacionado à sua condição de membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, guardião de uma m e mória escondida em algum lugar de um passado a ser ainda revelado aos con temporâneos. Assim, se origens greco-romanas (com escalas em Veneza ou em Paris) foram atribuídas a certas práticas carnavalescas das elites políticas e intelec tuais no período, nem por isso se pode julgar que suas formas e manifesta ções expressassem, na prática, novidades no jeito de festejar daquelas terras tropicais. A tradição “veneziana” pode ter sido apropriada ou inventada por jovens intelectuais em busca de sinais de sua própria distinção em relação à plebe na década de 1850. As maneiras de brincar desses seletos foliões do Rio de Janeiro, porém, estavam solidamente fincadas em repertórios herda dos do arsenal festivo lusitano dos tempos coloniais — em todo caso muito mais próximas e familiares àqueles homens encalorados, metidos nas roupas de regimentos de Highlanders em pleno verão carioca.9 Será útil, então, viajar mais longe no tempo para visitar velhas festividades realizadas como celebrações do soberano e seu poder, em busca de seus elos
7 José de Alencar foi, juntam ente com outros importantes literatos do período (como M a nuel Antônio dc Almeida, Laurindo Rabelo e outros) e membros da elite social carioca, um fundador do Congresso das Sum idades Carnavalescas, a inauguradora dos “préstitos venezianos” do carnaval carioca. O próprio Alcncar anunciava a primeira aparição da socie dade antevendo que seus membros iriam “passar a tarde como se passa uma tarde de carnaval na Itália” (Gazeta Mercantil, 14 de janeiro de 1855). No mesmo jornal, ele descreve o préstito e a elegância de seus integrantes, em 25/2/1855. R Cf. Valéria de Marco. \ perda das ilusões. Campinas: Edunicam p, 1993. Ver tam bém Renato Ortiz. Românticos e folcloristas. São Paulo: Olho d ’Água, 1992. 9 Cf. Mello Moraes Filho. Festas e tradições populares no Brasil. São Paulo-Belo Horizonte: Edusp-Itatiaia, 1979, p. 34. Muitas das práticas do dia-a-dia dessas sociedades — que fun cionavam ativam ente durante todo o ano com bibliotecas, conferências, bailes, saraus e outras atividades — como o hábito de esmolar pela manumissão de escravos ou outras obras de “caridade” peregrinando pelas ruas com estandartes da agremiação, estavam an corados nos hábitos de seus pais e avós organizados em irmandades festivo-religiosas. Vide M artha Abreu. O Império do Divino. Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro (18301900). 'le se de doutorado em História. Campinas: Unicamp, 1996.
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com os carnavais que visitamos nestas páginas. Em 1786, por exemplo, o casamento do infante português deu margem a festanças que, como de pra xe, estenderam -se por vários dias. Eram promovidas pelos representantes da monarquia lusitana na colônia ou pelas câmaras municipais, com intensa par ticipação de corporações e segmentos sociais de diferentes naturezas. Publi cações encomiásticas eram produzidas para a memória dessas festas, legando vestígios extrem am ente ricos para esta reflexão — entre as quais uma Rela ção dos Magníficos Carros que sefizeram de arquitetura, perspectiva efogosw que inclui farta documentação iconográfica. Abrir o volume com olhos voltados para o carnaval de um século mais tarde pode nos trazer algumas surpresas. D esde os versos que abrem o livro, dedicados ao vice-rei que promovia a festa, já podemos intuir algumas curiosas semelhanças: “Da grandeza, que vejo conjeturo que as vossas obras tem tal raridade, que se viu na real festividade Dares normas aos mais para o futuro Na portentosa idéia que escolheste com bem clara evidência viu-se o quanto Aos mais festejos todos excedeste;” " Deduzimos, com mais facilidade que o Dr. Castro Lopes, que tais présti tos de tempos longínquos funcionavam segundo cânones ao menos seme lhantes aos que presidiam os desfiles de folgazões rapazes das Sociedades: tam bém lá os carros alegóricos eram expressão de “idéias” — para além da coincidência nas intenções de “dar normas aos mais para o futuro” que, ao que parece, jamais deixou de freqüentar as formas de auto-representação das elites. Tais normas, certam ente revestidas de propósitos de reafirmação das hierarquias sociais, vinham além disso ancoradas em simbologias buscadas na mitologia clássica, executadas com esmero e desenho muito semelhantes aos carros de Tenentes, Democráticos e Fenianos que vamos encontrar nos car navais cariocas das últimas décadas do século XIX e início do XX. Alguns dos magníficos carros dessa festa podem ser trazidos aqui para efeito de com paração.
10 Relação dos Magníficos Cairos que sefizerão de arquitetura, perspetiva efogos: os quais se executa ram p o r ordem do I/ust.mo, e Excel.mo Senhor L uiz de Vasconcelos, Capitão General de M ar e Terra, e Vice-Rei dos Estados do R razil, nasfestividades dos desposórios dos Sereníssimos Senhores Infantes de Portugal. Nesta cidade capital do Rio de Janeiro, em 2 defevereiro de 1786 (Biblioteca Nacional, SOR). 11 Ibidem , p. 6.
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música, vinho, máscaras e brincadeiras. A presença de danças dramáticas de negros e outras formas de homenagem prestadas por segmentos desclassifica dos ou empobrecidos da população figuram como práticas costumeiras nestes rituais que encenam o júbilo dos súditos. Este sentido geral da festa fazia tam bém com que elas fossem olhadas com menos tolerância à medida que se avan çava pelo século XIX. Francisco Calmon testemunhou na Bahia15 da segunda metade do século XVIII, manifestações capazes de ilustrar alguns dos signifi cados dessa presença nas festividades de homenagem à Coroa ou aos Santos da Igreja na América portuguesa. Nessa ocasião, celebrando o casamento da Prin cesa D. Maria (a que mais tarde ficou conhecida como “a Louca” ), numerosos grupos dc congos executavam danças “africanas” à luz do dia. “Mais de oitenta máscaras, com farsas ao seu modo de trajar”, rainha e rei negros, este último trazendo “pendente do cinto um formoso lagarto” executavam as danças das talheiras e dos cucumbis durante vários dias da festa.16 Um século depois, Cristiano Júnior, o fotógrafo, registrou parte de um gru po de cucumbi na Rua da Quitanda, durante um carnaval da década de 1860: rei, rainha e sua corte constituíam ainda um dos “lados” da guerra encenada nas ruas — até pelo menos a última década do século XIX — entre nobres africanos e índios adornados com penas, arcos, flechas, etc. (e não deixa de ser tentador imaginar os motivos pelos quais foram justam ente as figuras “afri canas” que desapareceram no final do século passado para dar lugar aos gru pos compostos exclusivamente pelos “indígenas” que caracterizavam os “te míveis” cordões carnavalescos na virada do século). Voltemos, no entanto, ao início do século XIX, em datas mais próximas à descrição de Calmon. Na Corte a coisa não se passava de outro modo. A im pressão de mistura e promiscuidade das festas públicas no Rio de Janeiro havia desagradado a um severo visitante britânico no início do século XIX, maldisposto com os hábitos da terra e com o que pensava ser uma convivên cia indesejável: “Para que estes esponsais pudessem realizar-se com o devido aparato, tentou-se realizar um destes espetáculos de que tanto gostam os portu gueses. [...]. O gênio do Brasil fez sua aparição, representado por um índio montado, cujo corcel expelia vapor das ventas. A glória de há muito passa-
15 Francisco Calmon. Relação das faustísim as festas ( 1762). Rio de Janeiro: Funarte/IN F, 1982. Para análise inovadora destas festas públicas, vide Silvia Hunold Lara. “Significados cruza dos: um reinado dc Congos na Bahia setecentista”, in: Maria C lem entina P. Cunha (org.). Carnavais e outras f(r)estas. Ensaios de história social. Rio dc Janeiro: Nova Fronteira (no prelo). Em outra perspectiva, ver ainda Mary dei Priore. Festas e utopias no B rasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994. 16 Francisco Calmon. Op. cit., especialm ente p. 23-4, sem elhante ao i|uc encontrarem os mais tarde em uma infinidade de cordões que se multiplicarão pela Corte.
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Figura 4. “Slaves at carnival, Quitanda Street, Rio de Janeiro, Brazil, 1868” , in: Hoffenberg, H. L. Nineteenth-Century South America in Photogmphs. Nova York: D over Publications, 1982, plate 153.
da de Portugal, representou-se por meio de modelos de alguns fortes das índias Orientais [...], enquanto que o poderio do atual soberano foi ilustra do por um ajuntam ento de toda a casta de seres humanos que vivem sob seu cetro: europeus, vestidos de grande gala, asiáticos, em seus trajes cos tumeiros, índios sul-americanos com sua vistosa plumagem e africanos, caracterizados feito macacos, com musgo em vez de cabelo, [...] e procu rando parecer nas maneiras, como no intelecto semelhavam, com seus pro tótipos irracionais. Cada país forneceu seus divertimentos peculiares [...] aptos que se mostravam a servir [...] à diversão de meninos. Mas, aqui, provocaram tamanho interesse em adultos apenas egressos de um semibarbarismo e das profundezas da ignorância, que muitos se admiravam de que não partilhássemos nós outros da admiração deles.” 17
17 John Luccock. Notas sobre o Rio de Janeiro. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiraia-Edusp, 1975, p. 168. A festa descrita é de 1810.
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Figura 3. Foto de Augusto Malta, 1908. Acervo M IS - Rio de Janeiro.
res, na década de 1850, resolveram reverenciar o deus Momo em um préstito carnavalesco no Passeio Público (o mesmo lugar, aliás, em que desfilaram os carros de 1786 e outras ocasiões semelhantes), estas poderiam estar bem mais próximas do que supunham os cultores das tradições venezianas ou defenso res das origens greco-romanas da festa.u E, na verdade, a aprovação rápida e generalizada da nova brincadeira nos dias de entrudo talvez se devesse tam bém ao fato de que trouxessem para as ruas códigos bastante antigos e co nhecidos, associados às formas de celebração das festas públicas do século XVIII e início do XIX. Uma leitura atenta da documentação do início deste último — como a conhecida descrição redigida pelo Padre Perereca sobre as comemorações realizadas em 1810 para celebrar o casamento da Princesa D. Maria Teresa, traz novos elementos para esta reflexão: “Entretanto, rompeu uma numerosa e excelente orquestra e entrou pela Praça do Curro o primeiro carro artificiosamente composto, e ornado com delicadeza; fingia ele ser um monte, sobre o qual estava de pé a América
13 Aliás, processo muito sem elhante era experim entado cm Portugal na segunda m etade do século XIX: “as duas prim eiras cidades do país têm este ano um carnaval [...] chic, commencement de siècle, um carnaval à la Nice" — escrevia um correspondente em Lisboa para a Gazeta de Notícias de 21 dc março dc 1905. Sobre o assunto ver Maria Isaura Pereira de Queiroz. Carnaval brasileiro, o vivido e o mito. São Paulo: Brasiliensc, 1993, p. 34-42.
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com a aljava ao ombro, e arco na mão [...]; discorriam pelo monte vários animais, e pássaros do país, que por entre as ervas, e flores, se apascenta vam. Este belo carro servia para aguar a praça, e por essa razão esguichava água por diferentes repuxos, que saíam por entre as flores, que eram todas artificiais [...].” 14 A descrição prossegue longamente, detalhando um segundo carro repre sentando a “dança dos chinas”, um terceiro que relembrava “antigos portu gueses”, um quarto encenando uma ilha do Pacífico, mais um outro que si mulava um grande escaler repleto de homens fantasiados como marujos que cantavam e dançavam reiterando um discurso alegórico em torno de “idéias” que dará também a tônica do carnaval das Grandes Sociedades. Além do mais, a distância temporal é pequena: pouco mais de quatro décadas separam esta festa do primeiro carnaval “veneziano” realizado na Corte, reforçando a evi dência dos nexos entre as duas ocasiões. As proximidades não terminam por aí. Todos os carros eram intercalados por danças, mascaradas, cavaleiros com mulheres à garupa — e muitos “máscaras avulsos” — permitidos na ocasião festiva e cuja presença servia igualmente para expressar a alegria e o desejo de agradar ao soberano — como explica o autor da “Memória” . Os mascara dos mencionados na festa presenciada pelo Padre Perereca, particularmente, conferem uma marca iniludível de semelhança com brincadeiras posteriores do carnaval. Outros textos podem ainda atestar o quanto esses refinados foliões cario cas do final do século XIX beberam em fonte bem mais próxima e domésti ca. Para além das semelhanças relativas a carros e alegorias que ressalta das descrições, havia o caráter socialmente amplo destas festas públicas, no sen tido de comportar a presença e a manifestação geral: nas festas coloniais a reverência ao soberano podia reduzir todos à condição igual de súditos. Nelas como nos carnavais do final do século XIX ou início do XX — a despeito da distância de tempos e significados — não se inclui a dissolução festiva ou simbólica das diferenças que, ao contrário, eram teatralmente reafirmadas em suas práticas. A reiteração de rígidos lugares sociais certamente era do agrado dos nossos foliões republicanos, e contribuía para mitigar seus secre tos temores diante da desagregação do domínio senhorial e de um futuro pelo qual pugnavam nas hostes de Momo. Se as hierarquias não se “dissolviam” aí era porque o teatro que se represen tava nas ruas mostrava a presença simultânea das várias categorias sociais sepa radas, entretanto, em suas formas e funções sociais, profissionais e étnicas: cada qual em seu lugar, mesmo em atitude claramente carnavalizada e marcada pela
14 Luiz Gonçalves dos Santos (Padre Perereca). Memória para servir à História do Reino do B rasil (1825). Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp, 1981, p. 265.
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Um exemplo era o carro dedicado a Baco, que figurava com destaque nas festividades:
Figura 2. Carro de Baco. Relação rios Magníficos Carros que sefizerão de arquitetura, perspetha efogos: os quais se executaram por ordem do l/ust.mo, e Excel.mo Senhor Luiz de Vasconcelos, Capitão General de Mar e Terra, e Vice-Rei dos Estados do fírazil, nas festividades dos desposúrios dos Sereníssimos Senhores Infantes de Portugal. Nesta cidade capital do Rio deJanei/v, em 2 de fevereiro de I7S6 (Biblioteca Nacional, SOR).
Tinha mais de cinco metros de comprimento por cerca de dois de largura, e mais de oito metros de altura segundo as medidas fornecidas pelo docu m ento.12 Enfeitado com parreiras e cachos de uvas, abrigava sátiros que por tavam “redomas de licores” e vestiam-se com “vestidos justos cor de carne que pareciam nus”. Em seu interior, o carro escondia músicos e homens en carregados de auxiliar os animais a puxar o peso. Como os carros dos carna vais de um século depois, traziam poemas alusivos à “idéia” em desenvolvi mento — o deus Baco, no caso — proclamando o seu amor pelos “tonéis, frascos e botelhas”. Amor reafirmado pelo detalhe final: esporadicamente, do carro jorrava vinho, para gáudio da animada assistência. Um segundo, dedicado a Vulcano, tinha quase as mesmas dimensões do anterior — um pouco mais baixo, apenas. De difícil arquitetura, tinha uma figura quase suspensa no ar — a Fama, em punhando sua trombeta. O carro trazia ainda a figura de Vulcano e alguns ciclopes de carne e osso que traba lhavam em uma forja, batendo nela ao compasso da música executada por
12 As medidas são fornecidas em palmos (cada palmo eqüivale a 22 cm).
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pequena orquestra oculta no interior do carro. Foguetes, rojões e “fogos arti ficiais” encarregavam-se de criar um clima impressionante, reforçado ainda pela serpente que parecia puxar o carro: com asas abertas “vomitava flamas de fogo” e, feita em escamas, era capaz de mover a cabeça para um lado e outro. O último deles — na verdade, o primeiro que desfilou — cumpria outras funções no préstito: era um carro das cavalhadas, dedicado mais às diversões que faziam parte dos festejos desta natureza que à pompa da homenagem. Carregava músicos, executava mutações (como os anteriores) e lançava per fumes “cujos cheiros se espalhavam pelas ruas onde passava o carro”. Havia também, naturalmente, “carros burlescos” — bem menos rebuscados na ar quitetura e destinados a divertir platéia, animando-a a tomar parte nos bailes realizados na Praça de Curros onde quatro diferentes orquestras executavam peças dançantes e se concentrava a maioria das pessoas participantes dos fes tejos, cuja hierarquia social era expressa por signos de natureza semelhante às que encontramos nos carnavais da virada do século XX: o luxo ou a simpli cidade das vestes, o posto de observação — balcões, camarotes ou o meio da praça, estar a pé ou a cavalo, etc. — no interior de uma festa na qual todos os participantes estavam reunidos em um único espaço da cidade. E difícil olhar para a arquitetura e os símbolos contidos nos carros de D e mocráticos, Tenentes e Fenianos e não se interrogar sobre os parentescos destes tipos diferentes de festa. Podemos observar fotografias de carros ale góricos do início do século XX realizadas por Augusto Malta e preservadas no acervo do M useu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Há muitos exem plos, como este de 1908, momento em que as Grandes Sociedades já come çavam a sentir os efeitos de sua inexorável queda mas eram ainda referências centrais do carnaval carioca. Passado um século e mais algumas décadas, ain da Dragões alados, cabeças de leão, figuras alegóricas em profusão, águias — como a que, em 1786, parecia conduzir o carro de Júpiter concebido para a festa pública — caracterizavam o tipo de alegoria que as Grandes Sociedades traziam às ruas para celebrar Momo. O mesmo rebuscamento está sugerido — ainda que sem a riqueza de deta lhes permitida pela fotografia — no desenho de Agostini para o carnaval de 1881: observemos que sereias e ninfas sustentam o fidalgo que leva o estan darte dos fenianos. Ao fundo, pode-se perceber ainda outros exemplos: um N etuno, uma deusa puxada por um misterioso pavão, ou uma biga romana evidenciam que o tipo de referência estava bem próxima da antiga forma de reverenciar a monarquia lusitana no recurso a elementos da cultura clássica e no suporte utilizado: grandes alegorias montadas sobre carroças puxadas por animais, edificadas com materiais leves e vistosos. Assim, não parece despropositado sugerir que, se alguma tradição havia a informar as manifestações carnavalescas com as quais intelectuais e escrito-
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O comentário é extrem am ente sugestivo em várias direções, embora não possamos ter certeza sobre alguns elementos daquilo que ele descreve. Se riam brancos os que se haviam caracterizado para simular outras “raças” ? A compreensão de que os negros do cortejo assemelhavam-se a macacos — na clássica expressão racista que o rancho “O Macaco é O utro”, comandado pela legendária Tia Ciata, ironizou um século mais tarde18 — seria uma decorrên cia do olhar preconceituoso do viajante ou efetivam ente era a forma pela qual a identidade dos súditos africanos do rei era representada? Luccock certa m ente não entendeu boa parte do que via, como os cabelos dos negros prova velm ente pintados de verde — não sabemos por qual razão — que ele iden tifica como “musgo” , associando mais uma vez esses homens ao domínio da natureza. Seja como for, o relato revela claramente a intenção e o hábito de teatralizar “idéias” nas ruas, em homenagem ao poder encarnado no sobera no e como uma reafirmação dele, uma festa em que todos estariam represen tados (ainda que cada macaco devesse permanecer no respectivo galho). Muitos anos mais tarde, no final do século XIX, manifestações de negros paramentados como africanos e índios americanos ainda ocupariam as aten ções de tradicionalistas como Mello Moraes Filho, que em preende uma mi nuciosa descrição do auto representado anualm ente por cucumbis já desvin culados de festas públicas e religiosas na segunda m etade do século XIX,19 mas fortem ente enraizados nos carnavais da Corte em muitos grupos organi zados, como o que Cristiano Júnior retratou nos anos 1860. No mesmo mo m ento em que Mello Moraes Filho registrava o costume que desaparecia — encantado com a “beleza do morto”20 — cronistas e jornalistas manifestavam ira, temor e desprezo pelas tradicionais figuras dos negros vestidos como ín dios (presentes em todas as descrições destes folguedos) que invadiam as ruas da cidade em grupos designados como “cordões”, identificados como uma “tradição” tribal e africana dos carnavais execrada pelos foliões adeptos de Veneza. Podem os continuar rastreando indefinidam ente sem elhanças formais, mantidas ao longo dos séculos XVIII e XIX, que reaparecem no carnaval
1S Ciata, entre outras coisas, era líder de um rancho satírico intitulado “O Macaco c O utro”, sediado cm sua casa na Cidade Nova. Para alem do sugestivo título, depoim entos corrobo ram a intenção clara de zombar da expressão e do sentim ento racista. Um de seus com po nentes, por exemplo, refere-se a uma das aparições públicas do grupo e seu hábito de m urmurar “nós somos gente” antes de em itir o grito dc guerra: “o macaco é outro!”. Cf. Jornal do B rasil de 16/1/1916, apud: Maria Paula Nascimento Araújo. Um mundo ao avesso. Dissertação dc mestrado cm História, Niterói: Universidade Federal Flum inense, 1989. Ver também Jota Efcgê. Figuras e coisas do carnaval carioca. Rio dc Janeiro: Funarte, 1982, p. 212 e passim, e O Globo de 15/1/1974 onde o mesmo autor entrevista Lili, neta de Ciata e ex-porta estandarte do grupo. 19 Mello Moraes Filho. Op. cit., p. 111-5. 2n Cf. Jacques Rcvel. “A beleza do morto”, in: A invenção da sociedade. Lisboa: Difcl, 1989.
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carioca do período. No carnaval de 1881 que Agostini nos descreveu com seu magnífico desenho, por exemplo, os jornais publicavam dezenas de anúncios nos quais “comissões de festejos” de ruas do Rio de Janeiro solicitavam às famílias a colocação de flores, colchas e iluminação nas janelas dos sobrados, enfeitando-as para a passagem das Sociedades,21 e este hábito ainda perdura va no início do século XX na montagem do cenário por onde desfilavam as Sociedades. Ora, as chamadas “luminárias” ou o hábito de enfeitar ruas e sacadas com folhagens e tapetes — práticas repetidam ente mencionadas na crônica carnavalesca dos séculos XIX e XX, para a qual se constituem comis sões por bairros e ruas — eram elementos constantes e centrais das festas públicas presentes em ocasiões festivas coloniais e em datas bem avançadas do século XIX, como mostram as fotos do edifício da alfândega e da Praça do Comércio em 1872, por ocasião dos festejos públicos celebrados na Corte pela chegada de D. Pedro II e sua família ao Rio de Janeiro,22 voltando de uma viagem à Europa. Estávamos então a dezessete anos do final da monar quia, causa pela qual algumas das Grandes Sociedades batiam-se nas ruas enfrentando a violência de policiais ou capoeiras a soldo de lideranças políti cas do regime. Festas públicas que agregam desfile de carros, préstitos mistos com dan ças e música, idéias, alegorias e burla chistosa, versos alusivos ou explicati vos, certam ente não podem deixar de lembrar-nos de carnavais feitos de carros de idéias, música de bandas marciais,/>«$> e alusões em versos distribuídos às vezes do alto dos carros e todos os elementos que compunham o carnaval das Grandes Sociedades na segunda m etade do século passado. Por outro lado, a presença simultânea de diferentes segmentos sociais nas festas ofi ciais e religiosas, com múltiplas formas de expressão e participação, era traço comum à tradição festiva local antes mesmo da Independência ou na primei ra m etade do século XIX.23 Tudo isso sugere uma espécie de permanência, bem ao agrado de folcloristas de velha cepa que tentaram, já no século XX, identificar no carnaval dos préstitos os sinais de uma personalidade cultural própria, capaz de reconciliar os brasileiros com suas origens. Fácil caminho: nos pouparia de vãos esforços para buscar “mediadores” ou outras fórmulas capazes de explicar a identidade nacional e harmonizar passado e presente, fazendo da história do carnaval pouco mais que uma alegre evolução. Cabe refletir, no entanto, sobre a passagem do tempo e aquilo que ela imprime, se não às formas de brincar e festejar, ao menos aos seus significa dos. Por trás da “festa de todos” dos carnavais das Sociedades ou no interior
21 Apenas a título dc exemplo, vide a Gazeta de Notícias de 25 de fevereiro de 1881. 22 Originais na Biblioteca Nacional, seção de Iconografia. 23 Vide, entre tantos exemplos disponíveis c bem conhecidos, M anuel Antônio de Almeida. Memórias de um Sargento de M ilícias (1854).
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das multidões de súditos que reverenciavam a Coroa antes da Independên cia, seguramente havia diferenças de intenção e gesto. Em ambos os casos podem-se perceber múltiplas leituras a respeito do que se passava sob as vistas atentas e com a participação geral. Cabe perguntar, por exemplo, sobre as diferentes possibilidades de atribuição de sentido a coisas como o desfile dos congos na homenagem festiva aos reis portugueses: a presença dc negros e seus rituais significava para alguns o reconhecimento do Império e a exten são do poder do soberano, como sugere Luccock; entretanto como interpre tariam essa presença negros recém-chegados 0 11 crioulos que nas ruas, diante de seus senhores brancos, viam passar reis africanos? As tradições, afinal, como todos os elementos das culturas, são parte dos repertórios gestuais e simbólicos disponibilizados para diferentes sujeitos pelo hábito e pelas linguagens conhecidas. Elas se traduzem a cada momento, ad quirindo significados novos cm diferentes temporalidades, situações, lugares e dependendo de quem as mobilize para expressar seus próprios valores. Assim, formas e alegorias que eram usados para louvar a realeza puderam aparecer ressignificados no contexto da luta contra a escravidão e da crítica feroz à mo narquia. Nesse caso, tais elementos costumeiros foram acrescentados de refe rências simbólicas de outra natureza — atesta-o, por exemplo, o uso recorrente do barrete frígio nas alegorias carnavalescas das Grandes Sociedades do final do século XIX testemunhado pelo traço de Agostini e muitas outras fontes. Por isso, não cabe sugerir uma transposição direta que nos faça substituir a mítica Veneza por algum tipo de herança “autenticam ente brasileira”, para afirmar a tradição local e a identidade nacional como uma explicação mais adequada para o enigma. Fazê-lo nos aproximaria dos folcloristas, infatigá veis etimólogos (à moda do Dr. Castro Lopes) da chamada cultura popular. Como expressou com toda clareza Câmara Cascudo, tal procedimento impõe considerar “Cronos sem Clio”,24 tentando acompanhar o longo fio de uma tradição tão antiga quanto imóvel, onde residiria uma suposta essência dos povos ou nações. Para historiadores, ao contrário, trata-se antes de buscar os sentidos que as formas — ainda que aproximações morfológicas possam cons tituir uma ferramenta sugestiva e útil em determinadas condições.25 Além disso, o olhar que lançamos sobre as questões da cultura procura antes o mo vimento que as permanências, identificando as mudanças, os deslocamentos de significados e os conflitos escondidos atrás da aparência freqüentem ente harmônica da festa. Se o carnaval foi visto assim por atores históricos que, em diferentes momentos, lhe atribuíram sentidos englobantes (uma festa de to dos, por oposição ao domínio senhorial; de poucos — os merecedores da no
24 Luís da Câmara Cascudo. Tradição: ciência do povo. São Paulo: Perspectiva, 1967. 25 Cf. Cario Ginzburg. Mitos, emblemas esinais. M orfologiaehistória. São Paulo: Com panhia das Letras, 1989 — particularm ente “Raízes do paradigma indiciário”.
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bre herança da cultura clássica; da nação em sua síntese mestiça e popular) é possível tam bém percebê-lo em outro registro. Nesses termos, não se trata de ver a mesma coisa quando olhamos as seme lhanças entre carros alegóricos nem de enxergar apenas ancestralidade entre práticas ou gestos vagamente familiares em festas separadas por mais de um século e muitos acontecimentos. Lembremo-nos que as antigas festas públicas dedicavam-se a afirmar o poder da monarquia lusitana; o carnaval “veneziano” do Rio dc Janeiro no século XIX, pelo contrário, dedicado a Momo (deus que só se tornará rei após a República), quis aparecer como uma festa capaz de anunciar um futuro de transformações políticas cruciais no momento em que a proximidade da abolição abria amplo leque de possibilidades. A idéia de tradi ção como linhagem, herança ou permanência, no entanto, servia como uma luva ao mal-estar social dessas elites ou de sua parte ilustrada. Ela ajudava a estabelecer as linhas de continuidade que, ao mesmo tempo, sublinhavam sua superioridade diante da ralé a ser conduzida e domesticada (não apenas no carnaval): não se tratava, para a maior parte de seus intérpretes coevos, de pen sar tradições “brasileiras” compartilhadas por todos, mas de opor as “boas” às “más” no próprio movimento de constituição da nacionalidade. Eis por que Nice, Paris ou Veneza foram escolhidas como paradigmas de sua presença seletiva e diferenciada no interior da folia e a África tomada como o outro lado da moeda: era uma referência não à folia, mas ao futuro do país que lhes despertava tanto esperanças exaltadas quanto temores pessi mistas. Assim, uma outra idéia de tradição — esta situada na confluência do local com o africano — foi empregada também no esforço de estigmatizar, pela ancestralidade comprometedora, certas formas de brincar oriundas de grupos sociais considerados perigosos e inferiores. Até que uma síntese des ses elem entos pudesse ser em preendida — por intelectuais empenhados em fornecer, em novos contextos políticos que não cabe discutir aqui, outras res postas para os enigmas que envolviam o velho tema da nação e sua identi dade — , o carnaval foi (é) um lugar em que conflitos se expressa(ra)m. Ao contrário do que supunham as imagens que buscaram na folia um autêntico símbolo da uníssona alma brasileira, diferentes significados ocultaram-se sob práticas semelhantes cujas origens só interessam a antigos etimologistas meio ridículos. Ruins da cabeça, doentes do pé, diria o sambista que sabe que o carnaval é, sobretudo, um espaço de vida e invenção cultural. Nas ruas ale gres da velha cidade de São Sebastião, Veneza e África encenaram, afinal, um auto que pouca gente entendeu. Não se falava, naquele teatro, uma única língua: na estreita Rua do Ouvidor, como em Babel, muitas línguas eram ouvidas no tenso diálogo das diferenças — enquanto se disputava, a cotove ladas, espaço para brincar. □ □□
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M a r i a C l e m e n t i n a P e r e i r a C u n h a é professora do Departamento de História da Unicanip e diretora do Centro de Pesquisas em História Social da Cultura (Cecult) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, na mesma Universidade. Como resultado de sua pesquisa sobre o carnaval carioca, acaba de concluir um livro a ser lançado brevemente. Publicou ainda diversos artigos e organizou a coletânea Carna vais e outras f(r)estas, a ser publicado pela Editora Nova Fronteira. R e s u m o . Este texto busca evidenciar as semelhanças de algumas formas festivas do período colonial com alegorias e folguedos do carnaval carioca no final do século XIX. Não se pretende, entretanto, estabelecer as “origens” da folia: pelo contrário, o argumento central é o de que tais formas de brincar, ainda que herdadas de um reper tório tradicional, foram ressignificadas ao longo do tempo. Em cada contexto especí fico, a luta em torno de formas e sentidos do carnaval deu margem a uni conflituoso diálogo cultural entre sujeitos socialmente diversos e desiguais que, alegremente, disputavam seu lugar neste teatro das ruas.
L u c a s A n d ra d e. C e rim o n ia l d e E n tra d a d e B ispos. C e rim o n ia le e p isc o p o ru m C le m e n tis p a p e V III e t In n o c e n trix X, 1713. R evista de H istória das Idéias, C o im b ra , v. 15, p. 129. F o to A n d ré Ryoki.
ETIQUETA E CERIMÔNIAS PÚBLICAS NA ESFERA DA IGREJA (SÉCULOS XVII-XVIII) J
Aavaliação
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públicas, nas quais a Igreja ou os seus membros participam como promotores ou simples intervenientes, é de term inante para captar a consciência que quer uma, quer outros — especial m ente os titulares de cargos mais proeminentes na hierarquia eclesiástica — têm das suas funções, lugar social, prestígio e poder. Este postulado inicial faz particularm ente sentido numa altura, séculos XVII-XVIII, na qual a im portância conferida à cerimonialidade e à etiqueta e o fascínio exercido pelo ritual sagrado eram enorm es.1 “A multiplicação de regras detalhadas no ceri monial e a extrema precisão da sua codificação são traços de um fenômeno geral na sociedade européia entre 500 e 600.”2 De fato, como bem mostrou d a s
c e k i m ô n i a s
1 É muito abundante a literatura disponível sobre o sentido semântico e teórico de ritual, cerimonial e etiqueta, expressões utilizadas freqüentem ente de forma muito ambígua e sobreposta. Podem-se colher algumas das mais marcantes interpretações em Arnold Gennep, van. Les rites depassage. Étudesystematique des rifes. Paris: A. & J. Picard, 1981, sobretudo p. 1-18 (a edição original é de 1909); Jack Goody. “Religion and ritual: the definitional problem”, in: The British Journal o f Sociology, A7/: 142-64, 1961; Turner, V. W. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Pctrópolis: Vozes, 1974 (a cd. original inglesa é de 1969); Pierre Bourdieu. “Les rites comme actes d ’institution”, in: Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 43\58-63, 1982; Sergio Bertelli & Giulia Calvi. “Rituale, cerimoniale, etichetta ncllc corte italiane”, in: Sergio Bertelli & Giuliano Crifo. Ritua/e, cerimoniale, etichetta. Milão: Bompiani, 1985, p. 11-2; Duindam, Jeroen. Myths o f Power. Norbert Elias and the E arly Modem European Court. Amsterdam: Amsterdam LTniversity Press, [s.d.], sobretudo p. 99. 2 Cf. Maria A ntonietta Visceglia. “II cerimoniale come linguaggio politico. Su alcuni conflitti di preccdcnza alia corte di Roma tra Cinqueccnto e Seicento”, in: Maria Antonietta Visceglia
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M artine Boiteaux em relação a vários cerimoniais romanos, estes foram mui to codificados a partir do século XV, conheceram larga explosão pelo número e pelo fausto no século XVII, para se tornarem cada vez mais convencionais à m edida que o tempo passava, tanto nas suas práticas, como nas suas repre sentações.3 Em Portugal, Diogo Ramada Curto já sublinhou como, durante o reinado de D. M anuel I, houve um grande trabalho em preendido por cerimonialistas na tentativa de construção de uma “verdadeira simbólica de Es tado”, projeto que utilizou múltiplas linguagens, sustentando ainda como, durante a Restauração, houve uma intensificação do trabalho de organização das cerimônias de corte.4 Esta tendência foi de algum modo confirmada por Luís Ramalhosa Guerreiro quando, reportando-se ao período que decorre entre 1687 e 1753, escreveu: “A presente investigação pretende ocupar-se das representações do poder real elaboradas na época em que o espetáculo político atingiu, em Portugal, a sua expressão mais ostentatória”.5 A impor tância crescente atribuída às cerimônias públicas pode ainda detetar-se pelo crescente movimento de publicação de “regim entos”, “cerimoniais”, “rela ções” ou “memórias” de festas e outras celebrações, particularmente dinâ mico na esfera de cerimônias ligadas à vida eclesiástica e religiosa6 e pela
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& C atherine Brice, (cd.).Cérémonial etrituelà Rom e(XVl-XIXsiècle). Roma: École Française de Rome, 1997, p. 135. M artine Boiteaux. “Parcours rituels romains à 1’époque m odernc”, in: Maria A ntonietta Visceglia & C atherine Brice (ed.). Cérémonial et rituel à Rome (X V I-X IX siècle). Roma: École Française de Rome, 1997, p. 86. Ver Diogo Ramada Curto. A cultura política em Portugal (1518-1642). Comportamentos, ritos e negócios. T ese de doutoram ento em Sociologia histórica apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Lisboa: [s.n.], 1994, p. 2178 e 302. Cf. Luís Ramalhosa Guerreiro. La représentation du pouvoir royalà l'âge baroqueportuguaise (1687-1753). T h èse pour lc doctorat en Histoire presentée à 1’École des H autes E tudes en Sciences Sociales (Paris), [s.l.], [s.n.], 1995, vol. I, p. 6. Para além das muitas relações de exéquias, de entradas, de festas, de sínodos, etc., cujo inventário e estudo sistemático estão ainda por fazer, mas que proliferaram bastante na primeira m etade do século XVIII, foram editadas por esta altura algumas obras fundam en tais do ponto de vista da codificação de muitas cerimônias, umas oriundas de Roma, outras da autoria de cerimonialistas portugueses. Entre estas m erecem destaque: Ceremoniale episcoporum Clementispapae V III et InnocentixX. Romae: Michaelis Angeli e Petri Vincenti, 1713 (a primeira edição é de 1600, mas o texto foi posteriorm ente objeto de vários ajusta mentos), Lucas de Andrade. Acçoens espiscopaes tiradas do Pontificai Romano e cerimonial dos bispos com hum breve compêndio dos poderes e privilégios dos bispos. Lisboa: Joam da Costa, 1671; João Cam peio de Macedo. Thesouro de ceremonias, que contem as da missa so/emne e tudo o mais que pelo discurso do anno se pode offerecer, com advertencias particulares, ordenadas para melhor entendimento das rubricas. Trata também da sagração dos bispos e a matéria dos defuntos. Lisboa: Officina de H enrique Valente de Oliveira, 1657; Raimundo Ferreira de Abreu. Directorio de Cerimônias do Coro, e parochos, muy util, e necessário para todo o sacerdote, que exercitar hum, e outro ministério. Lisboa: Antônio de Sousa da Silva, 1738. Este Raimundo Abreu foi mestre-dc-cerimônia da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e Lucas de Andrade
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proliferação dos cargos de mestre-de-cerimônias, que se podiam encontrar nas dioceses auxiliando os prelados, nos cabidos das sés catedrais, nas colegiadas, nas misericórdias, na Inquisição ou nas congregações religiosas.7 AS
ENTRADAS
Entre o final da Idade Média e os inícios dos tempos modernos o ato sole ne das entradas reais e principescas numa cidade tornou-se uma das cerimô nias mais bem conseguidas de afirmação e publicitação do poder dos seus protagonistas, bem como uma das festas máximas do tempo. De acordo com Bernard Guenée, que as estudou com base na situação observada em França, no século XIII as entradas seriam ainda cerimônias modestas, tendo-se tornado um ato maior no contexto da vida política apenas no transcurso da centúria seguinte, enriquecendo-se, a partir de então, com novos signos do poder. Assim, em 1360, João, o Bom, regressado do seu cati veiro em Inglaterra, usa pela primeira vez a entrada a cavalo sob pálio em Paris, costum e que o neto Carlos VI reiterou várias vezes entre 1389-1390.s Pelos meados do século XV, teria principiado o período glorioso das entradas, que se tornaram mais numerosas e espetaculares, ao mesmo tempo que iam assumindo feições cada vez mais militares, de que a cerimônia da entrega da chave da cidade, como sucedia ancestralmente com as cidades vencidas em relação aos seus conquistadores, é um exemplo. O seu declínio ter-se-ia co meçado a manifestar desde os meados do século XVII, à medida que se afir mava o poder absoluto do rei. Segundo R. E. Giesey, teriam sido abandona dos no reinado de Luís XIV, e a última teria sido a efetuada em Paris, em 1660.9 A partir de então, a imagem do rei passou a ser elaborada no interior da sociedade de corte m ediante um vasto programa de realizações artísticas: bailados, torneios, carrocéis, fogos de artifício e as entradas tornaram-se um
e Cam peio de Macedo, respectivam ente capelão e tesoureiro da capela real, o que de certo modo confirma a capela real como im portante centro codificador de regras de cerimonial e etiqueta como já havia salientado Diogo Ramada Curto. “A capela real: um espaço de conflitos (séculos XVI a X VIII)”, in: Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas, p. 143-53, 1993. 7 D e acordo com Richard Trexler este cargo de mestre-de-cerimônias (magistricaeremoniarium) teria aparecido pela primeira vez na corte papal pelos finais do século XIV, o que de algum modo confirma o papel pioneiro que esta teve na codificação de rituais e cerimônias públi cas; cf. Richard Trexler. The Libro Cerimoniale o f the Florentine Republic by Francesco Fi/arete andAngelo M anfidi. Genebra: Droz, 1978, p. 18. 8 Há notícias anteriores da entrada sob pálio. Em 1327, Afonso IX fê-lo em Sevilha sob pálio de damasco; cf. Ana Maria Alves. As entradas régias portuguesas. Lisboa: Livros Horizonte, [s.d.], p. 20. 9 Cf. R. E. Giesey. Cérémonial et puissance souveraine. France X V I-X V II siècles. Paris: Armand Colin, 1987, p. 76.
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cerimonial moribundo, se bem que haja notícia de algumas praticadas por Luís XV e Luís XVI, já no século XVIII.10 Se o caráter ritual da recepção de um rei 0 11 grande senhor foi estabelecido na alta Idade Média, as suas origens mais remotas remontam à época helenística, à apant/iesis, cujo conteúdo se reforçou na época medieval por meio do modelo da entrada messiânica de Cristo, durante o Domingo de Ramos. Ulteriormente, com a afirmação do humanismo renascentista, originado na Itália, no Quattrocento, elas passaram a seguir o modelo do triunfo romano, principalm ente na forma grandiosa que dele Tito Lívio dá no livro XXX da Historia ab Urbe Condita, com o cortejo real a passar por arcos de triunfo, exu berante decoração dos espaços percorridos, prestação de honras militares, pronunciação de arengas laudatórias, etc." Para Portugal há notícia da realização de entradas desde o reinado de D. Sancho I, no século XII, e a primeira descrição de uma entrada régia conheci da se reporta já ao século XIV (D. Pedro I em Lisboa). Estes atos que tinham então caráter marcadamente militar, cariz que nunca perderam, integravam uma procissão formada pelo clero, um cortejo composto por nobres, cerimô nias essas acompanhadas por danças populares que saíam fora das portas citadinas para receber os monarcas e os acompanhar até ao paço real. A hospitali dade urbana das recepções englobava ainda festejos que se podiam prolongar por mais do que um dia e que, em geral, incluíam danças, lançamento de canas, touros, iluminações noturnas e disponibilização de abundantes gêne ros alimentares e de bebidas. A partir do reinado de Afonso V os rituais com e çaram a complexificar-se, havendo memória de entradas régias sob pálio de damasco. A introdução de elementos do modelo humanista italiano nota-se já no reinado de D. João II e consumou-se plenam ente com D. João III. No entanto, uma nova etapa no sentido da classicização, da magnificência das decorações e da significação política desses atos foi dada pelas entradas de Filipe I em 1581 e a de Filipe II em 1619, ambas em Lisboa. Posteriormente, o ritual não conheceu grandes alterações e apesar de não ter desaparecido ter-se-ia tornado mais esporádico e perdido importância. Em 1687 há ainda relatos de uma magnífica entrada em Lisboa protagonizada pela Rainha M a ria Sofia de Neubourg, em 1708 a entrada em Lisboa da Rainha Maria Ana da Áustria e em 1729 a da Princesa Maria Vitória, constituem talvez as mais pujantes do gênero, apesar de não serem únicas pois, no século XVIII, o
10 Ver François M oureau. “Les entrées royales ou lc plaisir üu prince”, in: Dix-HuitièmeSiècle, 17:195-208, 1985. 11 Esta breve síntese segue de perto as leituras propostas por Bernard G uenée. “En guise de conclusion”, in: Christian D esplat & Paul Mironneau (dir.). Les entrées. G/oire et déclin d'un cérémonial. (Actes du colloque tenu au châtcau de Pau les 10 et 11 Mai 1996.) Biarritz: JD Éditions, 1997, p. 260-2; e Luís Ramalhosa Guerreiro. La représentation d u p o u vo ir..., op. cit., vol. II, p. 66-9.
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monarca D. João V protagonizou algumas como sucedeu em Setúbal e Sesimbra (1711), Santarém (1713) e Tomar (1714).12 As entradas não foram apenas cerimônias de representação e propaganda usadas pelos monarcas em pessoa, ou pelos seus embaixadores, enviados, vice-reis ou até juizes. Elas foram igualmente protagonizadas por represen tantes do poder eclesiástico como o papa, os cardeais, os legados e núncios papais,13 bem como pelos prelados nas suas dioceses, pese o quase total de sinteresse que a historiografia européia tem votado a este importante ato.14 E sobre as entradas episcopais, como exemplo de um cerimonial público da Igreja,15 e privilegiando as ocorridas em dioceses brasileiras, que doravan te centraremos a nossa atenção. A cerimônia da entrada pública do bispo na sua diocese foi um dos ritos de consagração do poder episcopal que maior projeção e prestígio foi ganhando ao longo do século XVII, tendo-se mesmo perpetuado, pela centúria seguin te, como um momento-chave de afirmação do poder episcopal em face de todo o clero local e ainda em relação aos vários corpos de poderes que com ele conviviam nas cidades sedes de bispado (vereação da cidade, governadores ou vice-reis no caso das colônias ultramarinas, juizes seculares, forças milita res, fidalguia). A notícia mais remota que conheço da entrada solene de um prelado numa diocese brasileira foi a protagonizada pelo primeiro bispo de Olinda, D. E stê vão Brioso de Figueiredo, em 28 de maio de 1678. Não significa isto que anteriorm ente os prelados não efetuassem este ato, mas dele não temos atual m ente nenhum a memória descritiva.16 Para o século seguinte há referências
12 Esta sinopse das entradas régias em Portugal baseia-se em Ana Maria Alves. As entradas régias..., op. cit. e Luís Ramalhosa Guerreiro. La représentation du pouvoir..., op. cit., vol. II, p. 68-118. 13 Ver sobre o assunto M artine Boiteaux. Parcours rítuels..., op. cit., p. 69-86. 14 Em texto publicado em 1993, ver José Pedro Paiva. “O cerimonial da entrada dos bispos nas suas dioceses: uma encenação de poder (1741-1757)”, in: Revista de História das Ideias, 15:119-20, 1993, já assinalei como as entradas episcopais não têm sido objeto da atenção que mereciam por parte dos historiadores, como se nota em algumas sínteses mais recen tes, por exemplo, Edward Muir. R itual in Ear/y Modem Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, sobretudo p. 239-46. Muito significativo a este respeito é o fato de, no Congresso realizado em Pau, em 1997, dedicado ao estudo das entradas, apenas uma em doze comunicações ter tido por objeto as entradas episcopais; ver Adrien Blazquez. “L en tré e de l’évêque-seigneur dans sa ville-capitale de Siguenza”, in: Christian Desplat & Paul M ironneau (dir.). Les entrées..., op. cit., p. 187-206. 15 Outras cerimônias que podem ser lidas como cerimônias públicas da Igreja são a recepção do bispo pela vereação da cidade, a tomada de posse de um benefício eclesiástico, a visita pastoral do prelado, a realização de um sínodo ou de um capítulo-geral de uma ordem religiosa, uma procissão, as bênçãos praticadas pelo prelado na sua diocese, festas pela canonização de um santo ou pelo nascimento ou casamento de um príncipe. 16 A exploração de atas dos acórdãos dos cabidos das dioceses bem como das sessões dos
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muito singelas à entrada na diocese do Pará efetuada por D. Frei Bartolomeu do Pilar em 24 de setembro de 1724, à do primeiro bispo de São Paulo, D. Bernardo Rodrigues Nogueira, em 8 de dezembro de 1746, à de D. Frei Bar tolomeu da Cruz, bispo de Mariana, em 24 de novembro de 1748 e à de D. Frei Antônio da Madre de Deus Galrão, também em São Paulo, a 28 de ju nho de 1751.17 As duas relações mais copiosas que se conhecem e que guiarão a análise da morfologia do cerimonial que se segue, reportam-se à entrada do bispo do Rio de Janeiro, D. Frei Antônio do Desterro Malheiro (1/1/1747), e de D. Frei Miguel de Bulhões e Sousa, no Pará (15/2/1749).IK Sublinhe-se desde já a importância dessas relações. De fato entendo que a narração destas cerimô nias (através de memórias, relações, descrições), muito comuns na primeira m etade de Setecentos, e a sua figuração por meio de imagens (gravuras, pin turas, esculturas, tapeçarias, etc. — formas muito raras, de que um excelente exemplo são as doze gravuras de Schorquens que aparecem na relação que Lavanha fez da entrada de Filipe II em Lisboa, no ano de 1619),19 têm por um lado função descritiva, uma vez que dão a conhecer o que se passou ou, melhor dito, um olhar sobre o que se passou, mas tinham sim ultaneam ente função normativa, ou seja, procuravam codificar o modo como certo tipo de atos se deviam desenrolar. Mais, são até prescritivas, no sentido em que pro curavam impor modelos e uma etiqueta de conduta que estava ao serviço de uma estratégia mais ou menos conscientem ente assumida. Estas relações de entradas procuravam ainda descodificar a simbologia de muitas das represen tações que evocavam, tentando dessa forma contribuir para melhor apropria ção dos programas variados que as compunham por parte dos atores e espetadores que nelas participavam, rentabilizando por essa via a compreensão das diferentes estratégias de representação que enunciavam. Não podem, por isso, ser tomadas como um olhar distante, neutro e menos desinteressado.20
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senados municipais, que não tivemos possibilidade de em preender, poderão trazer dados novos a este respeito. Ver Fortunato Almeida. História da Igreja em Portugal. Nova ed., Porto-Lisboa: Civilização, 1967-71, vol. 2, p. 708, 712-3 e 715-6, com a respectiva identificação da fonte. Ver respectivam ente Luís Antonio Rosado Cunha. Relação da entrada quefez o Excelentíssimo e Reverendissimo Senhor D. Fr. Antonio do Desterro Malheyro bispo do Rio de Janeiro, em o p ri meiro dia deste presente anno de 1141 [...]. Rio de Janeiro: Antonio Isidoro da Fonseca, 1747 e Relação da viagem e entrada quefe z o Exce/entissimo e Reverendissimo Senhor D. F r Miguel de Bulhoens e Sousa sagrado bispo de M a laca e terceiro bispo do Grão Pará para esta sua diocese. Lisboa: Manuel Soares, 1749. J. Baptista Lavanha. Viagem da Catholica Real Magestad dei Rey Filipe II Nosso Senhor ao Reyno de Portugal e rellação do solene recebimento que nelle se lhe fez. Madri: T hom as Iunti, 1622. É esta lógica que perm ite perceber com outros olhos, por exemplo, o fato de o anônimo autor da relação da entrada do bispo do Pará, de que adiante falaremos, não se ter esqueci
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A estrutura do ritual adquiriu uma forma acabada com a esplendorosa en trada do arcebispo bracarense D. Rodrigo da Cunha, em junho de 1627.21 Seguindo já as determinações propostas no Cerimoniale Episcoporntn de Cle m ente VIII, ela acabará por constituir um paradigma do tipo de cerimônia que se observará com regularidade a partir de então e, pelo menos, de acordo com os casos conhecidos, até meados do século XVIII. O ritual estruturava-se em seis núcleos fundamentais.22 Em primeiro lu gar, os momentos que precediam a chegada do bispo à cidade e os cuidados tomados para a solene recepção, habitualm ente preparada com a devida an tecedência. Na relação da entrada do prelado do Pará, sete, de um total de oito páginas que compõem o texto, ocupam-se disso mesmo. O anônimo au tor tem o cuidado de narrar todas as adversidades causadas pelos ventos, marés e baixios que se foram encontrando pelo caminho, numa viagem que se ini ciou em Lisboa a 17 de setembro de 1748 e que durou até 9 de fevereiro de 1749. A narrativa celebra ainda a magnífica recepção com que tocando a cida de de São Luís do Maranhão foi recebido pelo seu congênere local, governa dor, nobreza e clero e descreve ainda uma academia que, estando embarca do, o bispo ordenou, no dia 22 de outubro, celebrando o aniversário de D. João V. Na altura o próprio fez uma alocução panegírica das “maravilhas” do monarca e intervieram ainda outros dois familiares da sua comitiva, o secretá rio particular e o eleito para exercer a função de vigário-geral do bispado.23 Em segundo lugar, os atos de recepção do bispo por vários corpos da urbe, ainda fora de portas, nos quais se observam cuidadosos e significativos “jogos de representação”, e ainda a realização de algumas cerimônias de regozijo e boas-vindas.24 Na recepção do bispo do Pará as ordens religiosas fizeram repicar os sinos, o regimento militar disparou salvas de artilharia e a cidade no seu conjunto encheu-se de luminárias que duraram várias noites.25 Quanto mais ilustre era um indivíduo mais perto da cidade recebia o bispo e quanto menor era o seu estatuto individual ou da instituição que representava, maior
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do de referir o louvor no aniversário do monarca que o próprio bispo promoveu em pleno Atlântico, durante a sua viagem marítima entre Lisboa e o Brasil. Ver Relação do recebimento e festas que se fizerão na Augusta cidade de Braga à entrada do Ilustríssimo e Reverendissimo Senhor Dom Rodrigo da Cunha, arcebispo e senhor dela, prim az das Hespanhas. Braga: Fructuoso Lourenço de Basto, 1627. Esta leitura sintetiza a análise detalhada e comparada que sobre este assunto efetuei em José Pedro Paiva. 0 cerimonial da entrada..., op. cit. Ve r Relação da viagem e entrada quefez o Excelentíssimo e Reverendissimo Senhor D. Fr. Migue! de Bulhoens e Sousa, op. cit., p. 1-7. A importância simbólica da porta era tão grande que, como não existiam muralhas em Belém, esse ato foi executado defronte da igreja das Mercês, “onde determ inou a Câmara fossem as portas da cidade”. Ve r Relação da viagem e entrada quefez o Excelentíssimo e Reverendissimo Senhor D. Fr. Miguel de Bulhoens e Sousa, op. cit., p. 7.
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era a distância a que devia ir receber a comitiva. Na entrada do bispo do Rio de Janeiro, essa faceta é expressa em função do horário. Assim, pelas três da tarde o capitão-geral saiu da casa do governador para ir inspecionar as tropas que bordejavam as ruas por onde o prelado devia passar e depois foi ter com ele ao convento de São Bento. O senado da câmara, por sua vez, só saiu para o encontro às 4 da tarde, transportando o seu estandarte, “que por não haver alferes próprio da cidade, elegeu o mesmo senado ao Doutor Inácio José da Mota Leite, cavaleiro da Ordem de Cristo, cidadão c procurador [...] para que o levasse”, e o deão e demais cabido esperaram o bispo à porta da Sé, algum tem po depois.26 O terceiro núcleo da cerimônia dava-se no momento do encontro da nu merosa comitiva que tinha saído fora de portas ao encontro do prelado, com os que a aguardavam à porta da cidade. Aí, em construção efêmera criada especialm ente para o efeito, o bispo beijava a cruz, distribuía bênçãos, m uda va de trajes (os próprios e por vezes os adereços da sua montada, dando-lhe ar mais solene), e havia a possibilidade de o cabido e a vereação da cidade pro ferirem arengas de boas-vindas e júbilo. A quarta etapa, um dos momentos áureos da entrada, consistia no cortejo que percorria o trajeto da porta da cidade até à sé catedral, com o bispo a cavalo, sob pálio, cujas varas eram transportadas pelos membros mais insignes da vereação. Na entrada de D. Frei Antônio do Desterro Malheiro as varas do pálio foram levadas por oito cidadãos da vereação, o caudatário foi o irmão do bispo, o portador do chapéu chamava-se Cristóvão Moniz Barreto de M eneses e o da capa viatória Tomás de Gouveia Coutinho, três persona gens escolhidas pelo bispo para a função.27 No Pará, há o cuidado de destacar que o governador levava a rédea do cavalo em que o prelado se fazia transpor tar, o estribo ia a cargo do provedor-mor da Fazenda Real e a cauda sob o cuidado do capitão-mor da praça.28 O desfile, onde havia uma ordem de pre cedências a respeitar, percorria estratégicos pontos da cidade, onde tudo es tava engalanado, com flores alcatifando o chão e tapeçarias alindando as jane las e varandins,29 enfileirado entre alas de soldados devidam ente dispostos, como sucedeu no Rio e transpondo alguns arcos, belos exemplares de arqui tetura efêmera, especialm ente construídos para o efeito. Os do Rio causaram grande impacto na população e no autor da notícia, que despendeu seis das
26 Ver Luís Antonio Rosado Cunha. Relação da entrada..., p. 10-1 c 17. 27 Ibidem , p. 12. 28 Ver Relação da viagem e entrada quefez o Excelentíssimo e Reverendissimo Senhor D. Fr. Miguel de Bulhoens e Sousa, op. cit., p. 7. 29 No Rio de Janeiro as despesas com o atapetam ento das ruas com flores foram suporta das pela vereação e os gastos com os arcos correram por conta dos homens de negócio, que a isso foram movidos pelo Ouvidor-Geral M anuel Amaro Pena de M esquita Pinto. Ver Luís Antonio Rosado Cunha. Relação da entrada..., p. 9-10.
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vinte páginas da relação a descrevê-los, ajudando por essa via a descodificar e interpretar o que representavam. Nada melhor do que a descrição de um deles para se obter de forma mais viva e direta a impressão que causavam c a função da narrativa: “o sexto arco, de magnifica corpolencia, formando-se na altura de 20 palmos e de largo 40, vendo-se hum ceo ceruleo, que no brilhan te das estrellas, de que se adornava, narravão a gloria deste firmamento e para que tudo fosse ceo, esta scientifica fabrica, não só flores delle se esparsião, mas dous anjos em doces trinados fazião hum engraçado duo, em que felícitavão ao som do toque de Orpheu, os corações de seus arquitetos a Sua Excellencia Reverendissima”.30 Note-se ainda que todos os arcos eram encimados com a insígnia mitral e tarjas com as armas dos Malheiros e Reimões, o que amplia va e melhor afirmava o poder de tão ilustre figura. O mesmo sucedia, mas com as armas próprias, no único arco erigido na entrada do prelado do Pará. A etapa seguinte decorria no interior da sé catedral. Era a mais ritualizada, de cunho mais religioso e privado. Aí, ante a comunidade capitular ordenada m ente disposta, eram encenadas várias representações de grande simbolis mo, compostas pela bênção da Sé e dos capitulares (seguindo a ordem do estatuto e antiguidade de cada um), colocação da mitra na cabeça do prelado, reverências dos capitulares ao bispo, etc., findas as quais este recolhia ao paço episcopal.31 O derradeiro ato desta representação, o mais aguardado pela generalidade da população, consistia no variado corpo de festejos que se desenrolavam após a saída do bispo da catedral. O am biente de festa e grande prodigalidade que os marcava era, em alguns casos, magnífico, como se pode comprovar pela original descrição em verso que se dá do ato da entrada de D. Frei Inácio de Santa Teresa na sua diocese do Algarve, em 1742: “Nas tres noutes seguintes coruscava A cidade com luzes e fulgores, Parecendo, que o Sol iluminava Com a copia dos belloes resplendores: As espheras distantes atroava O fogo artificial de varias cores, E da sorte que agora resplandesce H um luzido farol, Faro parece.”32
30 Cf. Luís Antonio Rosado Cunha. Relação Ha entrada..., p. 16. 31 Nas relações que aqui seguimos é dado muito pouco destaque a esta fase da cerimônia. Uma descrição do ritual-modelo desta fase da cerimônia pode ver-se em Lucas de Andrade. Acçoens espiscopaes..., op. cit., p. 79-82. 32 Cf. Brás da Costa de Mendonça. Prosopopeya métrica, da fam a com Mercúrio. Na jornada e entrada do Ex.mo e R/no. Senhor D. Ignacio de S. Teresa, arcebispo metropolitano quefo i de Goa, prim az do Oriente, governador do Estado da Índia, hoje bispo de Faro e reyno dos a/garves, etc.
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O prelado raramente neles tomava parte ativa, pois nesta altura recolhia-se ao seu paço. Os festejos, que chegavam a durar vários dias (habitualm ente três), podiam ser preenchidos com luminárias, foguetes, danças, touros, si mulações de duelos ou pequenas batalhas, concursos de poesia, representa ções teatrais e banquetes, que seguramente muito contribuíam para a grande adesão popular a esses atos. No Pará, o bispo promoveu num dia um tríduo que decorreu no colégio jesuíta de Santo Alexandre, deu noutro a comunhão a todos os que estavam preparados para uma salutar recepção do sacramento e num terceiro fez uma pregação pública durante a qual distribuiu relíquias pela população.” Como se procurou demonstrar tudo era previamente preparado e decorria de acordo com regras de etiqueta bastante precisas que tinham fundam ento na tradição, nos códigos fixados pelo Cerimonial dos Bispos e que os mestresde-cerimônias estipulavam, estando, por certo, particularmente atentos ao seu cum primento, ainda que fossem passíveis de receber algumas inovações, isto é, não eram cerimônias com pletam ente conservadoras e fechadas.34 Esta atenção prestada à etiqueta é muito evidente na ordem assumida pelas comi tivas que iam receber o bispo fora de portas, na hierarquização dos indivíduos que, em procissão, desfilavam com o prelado pelas ruas da cidade até à cate dral, na criteriosa escolha dos locais onde transcorriam as várias etapas do programa e se faziam paragens (porta da cidade, catedral, paço episcopal e percursos que ligavam estes pontos), nos gestos e palavras que cada um prota gonizava (eram muito significativas as bênçãos e esmolas que o bispo prodi galizava, o segurar as varas do pálio que cobria o prelado, ou o estribo do seu cavalo), nas vestes que endossava (a sua cor, materiais, riqueza) e nos símbo los com que se aparelhava (as mitras, o báculo e o anel do bispo, as varas dos vereadores, as bandeiras dos ofícios, os estandartes das milícias, etc.). Ora a etiqueta observada durante o cerimonial não deve ser vista como ato de ostentação, ou como um aparato frívolo e desprovido de significação so-
Porto: Officina Prototypa Episcopal, 1742, p. 30. Esta original c invulgar relação de forma poética é composta por um total de cem versos. 33 Ver Relação da viagem e entrada quefez o Excelentíssimo e Reverendissimo Senhor D. F r Miguel de Bulhoens e Sousa, op. cit., p. 7-8. 34 A discussão sobre o significado fundador ou ilustrativo dos ritos e das cerimônias não está acabada. Pesem as críticas de uma certa lógica circular ao tipo de idéias que perfilho, feita pelas interpretações sem pre lúcidas de Alain Boureau, considero que um cerimonial tem claram ente uma função fundadora (de instituição, como diria Bourdicu) c que nesse senti do adm ite e é expressão de alguma inovação. Sim ultaneam ente é a figuração de uma reali dade preexistente, que se expressa por meio de um conjunto de práticas conservadoras, perpetuadas pela tradição e que, por isso, têm elevada tendência para a inércia. Sobre isso ver Alain Boureau. “Les cérémonies royales françaises entre perform ance juridique et com pétence liturgique”; \r\-.Annales ESC, 46{6):1254, 1991; Edward Muir. R itu a l..., op. cit, p. 20 e Jeroen Duindam . Myths o f Power..., op. cit., p. 98-100.
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ciai. Norbert Elias mostrou-o primorosamente ao analisar a sociedade de corte, considerando a etiqueta uma forma de “auto-representação” daquela e quando chamou a atenção para o fato de o monarca usar inclusivamente os seus ges tos mais íntimos para reforçar as diferenças de estatuto no interior do espaço cortesão, para confirmar prestígios, conceder favores, ou expressar desagra do, em suma, como gestos políticos.35 Na realidade a etiqueta assumia nesta sociedade uma função simbólica de maior alcance. Como bem sintetizou Roger Chartier, interpretando propostas de Louis Marin, é do crédito acordado (ou recusado) às representações que um poder político ou que um grupo social propõem de si mesmo, que depende a autoridade do primeiro e o prestígio do segundo.36 Daqui resulta que a mais pequena modificação do lugar atri buído a uma pessoa num cerimonial eqüivalia a uma alteração da sua posição social. E os indivíduos e até as instituições participavam e sabiam jogar este jogo, carregado de um simbolismo plurissignificante, de mensagens veladas, de alegorias e de hipérboles, que tanto se surpreendem nas condutas públi cas, como eram tão do agrado dos modelos retóricos da literatura e das demais expressões artísticas que o gosto barroco fazia triunfar. Assim, no contexto destas “encenações” públicas, o tempo em que tudo decorria, os gestos executados, as palavras proferidas, os lugares ocupados por cada indivíduo ou grupo assumiam importante significação. É à luz des tas considerações que se podem avaliar certas particularidades das cerimô nias e da sua narração, ou memória, que são dois dados indissociáveis, bem como os freqüentes conflitos que geravam.37 Assim compreende-se melhor por que é que os autores das descrições das entradas têm o cuidado de no mear quem executa certos gestos, como o segurar uma vara do pálio, a cauda da capa ou o chapéu do bispo, ou quem tinha ido receber o bispo e onde. De fato, isso era um reconhecimento muito importante para quem os levava e constituía a marca de um lugar social para quem via.38
35 N orbert Elias. A sociedade de corte, Lisboa: Estampa, 1987, p. 53-79. 36 Ver Roger Chartier. “Pouvoirs e t limites de Ia représentation. Sur 1’oeuvrc de Louis M arin”, in: Anua/es. Histoire, Sciences Sociales, i?:407-18, 1994, especialm ente p. 413. 37 A questão dos conflitos que ocorriam nas cerimônias públicas e sua importância como reveladora de uma dada configuração social c de auto-representação, foi tratada com recur so a múltiplos exemplos em Joaquim Ramos Carvalho & Josc Pedro Paiva. “Poder e eti queta em cerimônias da Igreja”, in: Joel Serrão & A. H. Oliveira Marques (dir.). Nova história de Portugal, vol. VI, no prelo. 3S Tal como na natureza há uma série de elem entos que constituem marcas que devem ser interpretadas e perm item a formação de agregados, a troca de relações e a delimitação de fronteiras entre os vários agentes que os compõem, como a cor das penas das aves, certas formas, ou chciros de plantas e animais, também no comportamento social dos humanos há uma série de sinais, marcas, que têm função sem elhante (bandeiras, brasões, habitação, vestuário, formas de tratamento, gestos, etc.). Sobre esse fascinante assunto, que merece reflexão mais cuidada e aplicada aos processos históricos, ver John Holland. A ordem oculta: como a adaptação gera a complexidade. Lisboa: Gradiva, 1997, p. 36-38 e Joaquim Ramos de
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As entradas episcopais, para além de observarem estritas regras de etique ta que eram cuidadosamente interpretadas pelos seus intervenientes, como se acaba de mostrar, encerravam uma função comunicativa evidente, isto é, pretendiam transmitir uma determinada mensagem. Não tinham portanto c apenas uma função comemorativa e repetitiva de gestos ancestrais destina dos a reforçar uma certa coesão social, função que decerto tam bém cum priam, nem eram simples rituais de passagem.’9 N este caso concreto, o ritual destina-se a entronizar o poder episcopal e a reactualizar a imagem e poder do bispo em face de todos os outros figurantes que na cerimônia desem pe nham funções de subalternidade em relação a ele. Se se quiser, dito de outro modo, eram importante mecanismo da política de afirmação do poder episco pal. Como já escrevi: “A função do rito seria assim a de dar a conhecer e a reconhecer uma diferença, a superioridade episcopal, e a afirmá-la como uma diferença social conhecida e reconhecida pelo agente investido, neste caso o bispo, e por todos os outros elementos de uma comunidade. Era como se através de um ato de «magia social» (P. Bourdieu), um indivíduo visse consa grada uma condição que já possuía antes da celebração do rito e que forçava os outros a terem determinados comportamentos e o obrigava a ele a proce der igualmente de acordo com certos padrões”.40 Estas cerimônias estavam repletas de elementos que eram passíveis de uma plurissignificação de sentidos, em função dos códigos estéticos, retóri cos e de etiqueta que nelas se produziam e, naturalmente, de acordo com os mecanismos de interpretação dos sujeitos que as absorviam, e eram objeto de apropriação muito variada pelos vários corpos e indivíduos que nelas toma vam parte.41 Como é que tudo era recebido e consumido é o que se pretende indagar, assumindo, como P. Veyne, que não existe a obra de arte sem espec tador.42
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Carvalho. “O social em ergente. Sistemas adaptáveis complexos e interpretação histórica”, artigo a publicar no volume do ano de 1999 da Revista de História das Ideias, no prelo. Esta postura é muito próxima da postulada por Pierre Bourdieu. “Les rites comme actes d ’institution”, in: Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 43:58-63, 1982. A interpretação dos ritos e das cerimônias festivas em geral como meros atos de reforço da coesão social, foi inicialmente proposta por Durkheim e Malinowski, mas não é o único modo de abordar estes atos, como bem mostrou Diogo Ramada Curto. A cultura política..., op. cit., p. 206-07. Cf. José Pedro Paiva. O cerimonial da entrada..., op. cit., p. 137. Sobre o sentido de apropriação ver Roger Chartier. A história cultural entre práticas e repre sentações. Lisboa: Difel, 1988, p. 26-7. Ver Paul Veyne. “C onduites sans croyances et oucvres d ’art sans spectateurs”, in: Diogène, 1988, p. 3-22. Peter Burke no seu estudo sobre o "'marketing político” de Luís XIV, para usar expressão de hoje, preocupa-se com a recepção das várias estratégias que foram usa das para “fabricar” a imagem do rei tendo o cuidado de advertir para a dificuldade que o historiador tem em perserutar este aspecto, intitulando sugestivam ente esse m om ento do seu estudo “rostos no meio da multidão”; ver Peter Burke. A fabricação do rei. A construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 176 (a edição original
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A pluralidade de sentidos constata-se na cerimônia no seu todo, como nas fases que a compunham. Assim, para um artesão ou escravo não seria de grande relevo quem segurava a rédea do cavalo do prelado durante a procissão, ainda que admitisse tratar-se de alguém importante. No entanto, essa posição era decerto invejada por muitos elementos da nobreza, ou dos estratos mais abas tados do terceiro estado e do clero. Do mesmo modo, os “populares” teriam dificuldades em entender as alegorias e até os dizeres que figuravam nos arcos do triunfo que se erigiam, os discursos inflamados de retórica que por vezes se produziam, captando deles apenas a noção de grandeza e poder daqueles a quem eram dedicados. Por seu lado, para a nobreza e “homens de negócio” locais, a distribuição de esmolas que o bispo realizava era um tempo menor da festa, que até talvez os pusesse numa situação de embaraço. Poucos dariam atenção ao fato de o deão da sé, de acordo com o ritual romano, ao dar o hissope ao bispo para ele se aspergir estar vestido de uma certa forma. Mas o bispo, se ele assim não se apresentasse, recusar-se-ia a recebê-lo. Por sua vez, todos os capitulares estariam particularmente atentos à ordem pela qual o bispo os aspergia com água benta, ou à que se observava durante o beija-mão do prelado, quando para os restantes membros presentes isso pouca importância teria. Dê-se apenas um exemplo concreto, admitindo o pendor algo especulati vo que encerra como discurso histórico. O Dr. Luís Antônio Rosado da C u nha, juiz de fora e autor da relação da entrada do bispo do Rio de janeiro, poucos dias após a chegada do prelado e antes da entrada oficial, promoveu e ofereceu ao bispo uma “noite ática” em que se representou uma ópera intitu lada Felinto Exaltado que, como ele próprio não se esqueceu de rememorar, teve “excelente musica e os representantes especiosamente vestidos, que no luzido das pedras com que se guarnecião, mostravam o brilhante deste ato”.43 Ora o bispo do Rio de Janeiro não tem pejo em aceitar a oferta da representa ção da pequena opereta promovida em sua honra, poucos dias após a sua chegada. Seguramente percebeu isso como um gesto de boas-vindas, que conferia maior lustre à sua chegada, até pela magnificência e riqueza do es pectáculo (talvez não lhe dando a ênfase com que o mecenas do próprio ato o narrou na relação que dele teve o cuidado de fazer). Por isso, no âmbito de uma certa noção de negociação, não se importou com o fato de não ser ele o despoletador e ordenador de um ato que se inseria no quadro da sua tomada do poder como prelado, nem com o fato de que, desde então, teria no Dr. Luís Antônio Rosado da Cunha um aliado poderoso, mas igualmente alguém para com quem estava em dívida e que, provavelmente, num futuro mais ou
inglesa é de 1992). Esta avaliação de Burke constata uma das dificuldades com que se debate habitualm ente o historiador, mesmo o que conhece as indagações e sentidos do labor de antropólogos e sociólogos e reconhece a sua pertinência. 43 Cf. Luís Antonio Rosado Cunha. Relação da entrada..., p. 7-8.
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menos próximo, teria de qualquer modo de recompensar. Por outro lado, apro veitou para apreciar, dentro dos seus padrões estéticos, os sons, os movimen tos e os cenários em que tudo se desenrolou e para começar a conhecer algu mas das figuras mais proem inentes da comunidade aonde pela primeira vez chegava. Do ponto de vista do patrocinador do evento, ficava marcada a sua posição de destaque em relação aos seus conterrâneos, que todos tacitamente reconheciam ao participar no ato, para além de ficar colocado em posição cômoda ante o prelado. Não sabemos o que se teria passado com o cabido, mas admite-se que possa ter ficado em situação algo ingrata pois, como auto ridade máxima religiosa até à chegada do prelado, devia ter eventualm ente assumido papel de maior relevância na sua recepção. Mas é tam bém admissí vel que os cônegos tenham aceitado o ato entendendo-o como um bom meio de não mostrar logo à partida elevada dose de sujeição àquele com quem , a partir de então, conviveriam em situação de obediência. A generalidade da população, que tinha acorrido a dar vivas ao prelado quando ele desem bar cou, na expectiva de uma esmola ou de uma bênção salvífica para um infortú nio ou doença, por certo se quedou distante destes jogos e do deleite e maravilhamento dos que presenciaram o ato. Aguardou pelos festejos dos dias seguintes, alguns eventualm ente esperaram à porta do palácio pelas sobras do banquete que foi servido após a opereta, e nos ouvidos e bocas de uns quantos perpassaram rumores mal compreendidos, quiçá deturpados, do que se teria passado intramuros. Por fim deve sublinhar-se que a estrutura da cerimônia verificada no Brasil era em tudo sem elhante ao que se passava no Reino e como estes rituais se apropriavam de códigos e usavam tópicos que eram comuns tanto a entradas régias,44 de seculares ilustres,45 de legados papais,46 fazendo assim todo o sentido concluir com as palavras com que Martine Boiteaux assinalou sem e lhante interpretação, no seu caso reportando-se à entrada papal: “Os elem en tos simbólicos das culturas políticas herdeiras do império romano, cavalgada sob dossel, pavimentação dos caminhos, ordem triunfal, presença das mino rias, iluminações, sons e ruídos, vestuário específico e cores particulares, to dos estes elem entos eram postos em cena”.47
44 Uma boa descrição para o caso português, no século XVIII, pode ver-se em Luís Ramalhosa Guerreiro. La représentation du p ouvoir..., op. cit., vol. II, p. 78-80. 45 Veja-se a interessante e inédita descrição da entrada do governador e capitão-geral do Algarvc em: Relação da entrada pública que deo o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor D. Affonso de Noronha, governador e capitão geral do reino do Algarve, em 7 de Junho de 1750 na cidade de Lagos, capital do dito reino. Lisboa: Officina de Miguel Manescal da Costa, 1751. 46 Veja-se o relato das entradas do Cardeal Alexandrino, nas cidades de Évora e de Lisboa, no ano de 1571, em Diogo Barbosa Machado. Memórias para a história de Portugalque comprehendem o governo dei Rey D. Sebastião. Lisboa: Regia Officina Sylviana, 1747, parte III, cap. I. 47 Cf. M artine Boiteaux. Parcours rituels..., op. cit., p. 50.
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Feita esta decomposição e tentativa de interpretação dos principais sig nificados das entradas solenes dos prelados nas suas dioceses, que podem ser entendidas como um exemplo de cerimônia publica e regulamentada da es fera da ação eclesiástico-clerical,4” pretende-se de seguida questionar se a etiqueta e o cerimonial constituíram códigos e estratégias específicas da vida cortesã e da afirmação política dos monarcas. Nesse contexto, como penso que se mostrou no caso concreto das entradas solenes dos prelados, os gestos e lugares ocupados por cada indivíduo ou grupo numa dada “encenação” pública assumem importante significação político-social, pois correspondem não só ao modo como cada um se auto-representa, à imagem que pretende dar de si e ao reconhecimento que pretende obter da parte de todos os outros que nela estão envolvidos ou que a observam. A historiografia sobre a construção do Estado moderno europeu (séculos XV-XVIII), renovou-se em profundidade nos últimos quarenta anos, em fun ção da importância reconhecida que passou a ser atribuída à ritualidade polí tica. E hoje indiscutível que, ao longo da Época Moderna, os governos que lentam ente foram modelando o que se designa por Estado Moderno, adota ram e inventaram um extrordinário repertório de rituais que funcionaram como linguagem política do Estado, contribuindo, por essa via, para a criação daquilo que se poderia chamar um “estado teatro”, para usar a expressão de Clifford Geertz.49 As cerimônias monárquicas e a vida cortesã (Elias) criado ras de uma elaborada, codificada e aparatosa linguagem foram analisadas en quanto repletas de funções políticas decisivas, enquanto suportes de comu nicação política. O estudo dos rituais e cerimônias políticas, de alguma forma iniciado com a clássica obra de Marc Bloch centrada na análise dos poderes taumatúrgicos dos reis de França,50 intensificou-se a partir do livro de Ernst Kantorowicz," 48 Uso esta expressão para englobar todo o vasto corpo de rituais/cerimônias promovidas pela Igreja ou pelos seus membros, seguindo a proposta de Alain Boureau, no seu caso aplicado à pluralidade de rituais da esfera da ação política dos monarcas, em que propôs a noção de “manifestações públicas e regulamentadas da pessoa real” (“manifestations publiques et réglées de Ia personne royale”), cf. Alain Boureau. Lescérémonies royales..., op. cit., p. 1254. 49 Ver Clifford Geertz. Negara: o Estado teatro no século X IX . Lisboa: Difel, 1992. 50 Ver Marc Bloch. Les rois thaumaturges. Étude sur le caractère sum aturelattribuéà la puissance royale particulièrement en France et en Ang/eterre. Estrasburgo: Librairie Istra, 1924. 51 Ver Ernst H. Kantorowicz. TheKing’s Two Bodies:astudy in medievalpoliticaltheo/ogy. Princeton: Princeton University Press, 1957.
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e posteriormente com os trabalhos de alguns dos seus discípulos. Em França, objeto da atenção cuidada, entre outros, de vários autores americanos discí pulos do pensam ento de Kantorowicz, quatro cerimônias mereceram parti cular atenção: a coroação e sagração,52 o lit de justice™ a entrada régia54 e as exéquias fúnebres.55 Mais recentem ente, em obra sugestivamente intitulada The Fabrication o f Louis XIV, Peter Burke mostrou como houve uma série de rituais e outros meios usados para produzir uma determinada imagem do rei e do seu poder, no tem po daquele que foi provavelmente o monarca que melhor utilizou o cerimonial como meio de linguagem política: tapeçarias, livros, mecenato de academias científicas, gravuras, medalhas, ritualização da vida cortesã, cons trução de palácios (Louvre e Versalhes), entradas, festejos de casamento, a pintura — especialm ente a criada por Charles Lebrun, o fabricante da ima gem do rei como o intitula Peter Burke, tudo foi racionalmente utilizado como veículo de comunicação política.56 Esta postura transbordou para o estudo de uma série de rituais cívicos ur banos de que alguns dos exemplos mais bem conseguidos são os trabalhos de E. Muir, R. Trexler, R. Schneider.57 Em Portugal essa tendência está bem espelhada na obra em que Diogo Ramada Curto reconstitui quatro casos para se interrogar sobre o significado das cerimônias da monarquia: a morte de Filipe I, a viagem a Portugal de Filipe II, a representação de uma peça de Lope de Vega em Madri, no ano de 1624 e a aclamação de D. João IV.58 Igualm ente na dissertação de doutora m ento de Luís Ramalhosa Guerreiro, onde são analisados discursos, figura ções e cerimônias que entre 1687-1753 ajudaram a representar a imagem da monarquia, fazendo-se aí minuciosa análise da aclamação, entradas públicas,
52 Ver Richard A. Jackson. Viveleroi! A history of thefrench coronationfrom Charles Vto CharlesX. Chapei Hill: University of Norrh Carolina Press, 1984 e Jacques Le Goff. “Reims ville du sacre”, in: Pierre Nora (dir.). Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1986, vol. II, p. 89-114. 53 Ver Sarah Hanley. The L it o f the Justice o f the Kings o f France: constitutional ideo/ogy in legend, ritual and discourse. Princeton: Princeton University Press, 1983. 54 Ver Bernard G uenée & F. Lehoux. Les entrées royales françaises, 1328-1515. Paris: 1968 e Lawrence M. Bryant. The King and the City in the Parisian Royal E ntry Ceremony: politics, ritual and a rt in the Renaissance. Genebra: Droz, 1986. 55 Ver Ralph E. Giesey. The Royal Funeral Ceremony in Renaissance France. Genebra: Droz, 1960. 36 Ver P eter Burke. A fabricação do rei..., op. cit., p. 96 para a referência concreta a Charles L ebrun como “fabricante da imagem” do rei (a edição original da obra é de New Havcn: Yale University Press, 1992). 57 Ver Robert A. Schneider. The Cérémonial City: Toulouse observed 1738-1780. Princeton: Princeton University Press, 1995; Richard C. Trexler. Public Life in Renaissance Florence. Nova York: Academic Press, 1990; E. Muir. Civic R itual in Renaissance Venice. Princeton: Princeton University Press, 1981. 58 Ver Diogo Ramada Curto. A cultura política..., op. cit., p. 206ss.
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exéquias, e explorando-se ainda programas educativos dos príncipes, políti cas mecenáticas, retratos, panegíricos, edificações de arquitetura, etc.59 Nos trabalhos de Pedro Cardim sobre os festejos de casamento de Afonso VI e sobretudo no estudo sobre a cerimônia da abertura solene das cortes.60 E ainda na inovadora pesquisa sobre o real convento de Mafra da autoria de Antônio Pim entel.61 Não tratando da monarquia, mas da casa de Bragança, Mafalda Soares da Cunha analisa as estratégias da sua afirmação, em capítulo sugestivamente intitulado: “Codificação e Ritualização. A Exaltação do Po der da Casa”, no qual avalia a etiqueta da Corte e o comportamento no paço e na capela ducal.62 N a generalidade dessa vasta produção, mesmo que isso na maioria das vezes não seja explicitamente dito, é evidente que se tem entendido esta importância atribuída ao ritual político (expresso por múltiplas modalidades, como se mostrou) como uma especificidade do mundo que gravitava em tor no do rei e da Corte. Um dos paradigmas dessa interpretação, que se me afigura algo redutora, é a afirmação de J. Duindam, ao encerrar um capítulo intitulado “Cerimonial e Politesse. A Etiqueta Como um Instrumento de poder?”: “O cerimonial é um produto da tradição da realeza e serviu para proteger o monarca. Ao mesmo tempo estruturou e codificou o contato entre o monarca e o povo [,..]”.63 Mas será que esta utilização foi específica e ex clusiva da linguagem política do rei e teria tido como único centro produtor e consumidor a sociedade de corte? Ela não foi igualmente utilizada pela Igre ja? Pelo papa (como bispo de Roma e chefe máximo da Igreja católica), pelos cardeais, pelos prelados? Ora o que eu verifico (e creio que o caso das entradas aqui reportado é um bom exem plo que facilmente o demonstra) é que o vasto e complexo progra ma de utilização do ritual e da etiqueta como linguagens de afirmação políti ca, se detecta igualmente em muitas outras manifestações que não se confi nam a essa esfera da vida política das monarquais. De fato, o investimento individual e coletivo nas cerimônias públicas, revelado até pela existência de “mestres-de-cerim ônias” nas dioceses, nos cabidos, nas misericórdias, no Tribunal do Santo Ofício, a plurissignificação e importância dos gestos, das
59 Ver Luís Ramalhosa Guerreiro. La représentation du pouvoir..., op. cit. 60 Ver Angela Barreto Xavier; Pedro Cardim & Fernando Bouza Alvarez (ed.). Festas que se fizeram pelo casamento do rei Afonso VI. Lisboa: Quetzal, 1996 e Pedro Cardim. Cortes e cultu ra política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Cosmos, 1998. 61 Ver Antônio Filipe Pim entel. Arquitectura e poder. O real edifício de M afra. Coimbra: Institu to de História de A rte-Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1992. 62 Cf. Mafalda Soares da Cunha. Redes clientelares da Casa de Bragança (1560-1640). Disserta ção de doutoram ento em História Econômica e Social Moderna apresentado à Universida de de Évora. Évora: [s.n.], 1997. 63 Cf. Jeroen Duindam . Myths o f Power..., op. cit., p. 133.
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palavras e dos cenários para esse efeito construídos, a utilização destes atos e da etiqueta como veículos de afirmação de poder e de representação social, a profusão de conflitos que tudo isso gerava, encontram-se tanto no mundo cortesão e régio, como no eclesiástico e episcopal e, provavelmente, por to das as manifestações públicas do tempo, uma vez que elas não têm uma dim ensão exclusivam ente política, mas tam bém de representação social devendo também ser lidas como elem entos de um modelo de sociedade hierarquizada onde a dignidade e a honra se representam por marcas prenhes de significação. O que determinava a precedência num cerimonial e que acabava por con figurar as modalidades de etiqueta nele seguidas era a dignidade. Ora este conceito de dignidade, que podia depender de uma vaga representação que um grupo de pessoas atribuía aos seus múltiplos componentes, do exercício de um poder ou jurisdição, da hereditariedade, das funções que se desem pe nhavam ou de um privilégio que a própria lei estipulava, não se circunscrevia à esfera da ação política. Era um conceito estruturante da própria ordem so cial e que, por conseguinte, se inscrevia por toda a sociedade. N esse sentido, parece forçoso começar a dedicar uma outra atenção ao modo como no âmbito da esfera da Igreja esta ritualização do poder foi utili zada, tanto mais quanto há muitos exemplos de que os bispos, para nos cen trarmos apenas neste setor do clero, tal como os monarcas, também souberam utilizar uma multiforme gama de programas de afirmação do seu estatuto. Dê-se como exemplo a ação do primeiro patriarca de Lisboa, D. Tomás de Almeida (1717-1754). Este prelado utilizou um rico e multifacetado progra ma para maravilhar, persuadir e assim manifestar o seu prestígio e poder. Para além da habitual entrada solene,64 promoveu uma série de outros festejos.65 Entre eles contam-se os ocorridos durante uma visita pastoral que efetuou à vila de Alcobaça em 1721, na qual durante três dias houve serenatas notur nas, cortejos com carros que faziam representações alegóricas, comédias e touros; ou as festas que no ano de 1726 organizou em Lisboa celebrando a canonização de São Luís Gonzaga e Estanislau Koska; ou as festas pela cons trução de novos templos que o próprio mandou edificar — como sucedeu em Óbidos, em 1747, por ocasião da sagração do altar da Igreja do Senhor Jesus da Pedra, templo que desde 1739 se começara a edificar a mando do prelado. N esta última cerimônia, houve magnífica procissão que contou com a pre sença de membros da família real, todo o clero regular e secular, as várias 64 Ver Relação da form a e ordem que se observou na procissão de entrada do patriarca desta cidade D. Tomás de Almeida em 13 de Fevereiro de 1717..., Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Manuscrito n° 50, fl 17-23. 65 Referências colhidas em Fernando Antônio da Costa Barbosa. Elogio histórico. Vida e obra do eminentíssimo e Reverendissimo Cardeal D. Tomás de Almeida. Lisboa: Officina de Miguel Rodrigues, 1754.
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irmandades das paróquias de Óbidos, todos desfilando de acordo com crite riosa ordenação. O prelado soube ainda gerir a sua visibilidade pública junto do rei e da Corte, sobretudo em momentos especiais como o nascimento ou casamento de príncipes e nas celebrações religiosas, que a imprensa perió dica do tempo, como a Gazeta de Lisboa, ia noticiando.66 Mas um dos em pre endim entos maiores do patriarca foi o vasto programa de obras que, sob a direção do arquiteto régio, o italiano Antônio Canevari, ordenou numa pro priedade que a mitra de Lisboa possuía próximo de Lisboa, em Santo Antão do Tojal. Aí, formando uma vistosa praça, foram criados de raiz ou sofreram obras restauradoras de vulto uma igreja, um palácio de habitação com os res pectivos jardins — para o qual se entrava por um portal em forma de arco de triunfo, onde não faltavam as armas do bispo, um aqueduto e um belíssimo palácio/fonte que ainda hoje se pode apreciar.67 Outros canais e códigos de celebração do poder usados pela monarquia foram igualmente manuseados e promovidos pelos prelados. Estão nesse caso a construcção de aparatosos monumentos funerários de que um dos mais belos exemplos é o túmulo de D. M anuel Moura Manuel, bispo de Miranda (16901699), da autoria de Claude Laprade,68 a encomenda de obras de pintura onde se contratava a figuração dos próprios prelados encomendadores entre as cenas sacras pintadas ou as suas armas nas cercaduras das telas,69 a utilização de mag níficos coches, berlindas e liteiras com as armas episcopais que serviam para o transporte,70 a dinamização de academias literárias e o patrocinato e encomen da de livros, só para dar alguns exemplos que não se entendem como exausti vos e que não são sequer o resultado de uma sistemática e acabada pesquisa. Por tudo isso, não parece difícil concluir que a ritualidade política não foi uma linguagem exclusivamente utilizada para serviço do poder da monar quia. Futuros estudos devem aprofundar e verificar esta constatação. □ □□ “ Ver, por exemplo, Gazeta de Lisboa Ocádental, n.° 3, mês de janeiro de 1728, dia 15 de janeiro, p. 23-4. 67 Ver José Fernandes Pereira. /I acção artística do primeiro patriarca de Lisboa. Lisboa: Q uim e ra, 1991, p. 47-65. Na mesma linha desta construção pode ser lido o conjunto de edificações ordenadas pelo arcebispo de Braga, Rodrigo de Moura Teles, no Bom Jesus do Monte, “êm ulo nortenho da grandiosidade de Mafra”; cf. José Fernandes Pereira. “O barroco do século X V III”, in: Paulo Pereira (dir.). História da arte portuguesa. Lisboa: Círculo de Leito res, 1995, vol. III, p. 52 e 68). 68 Ver José Fernandes Pereira. “O barroco do século XVIII..., op. cit., p. 32-4. h'' Ver, por exemplo, a figuração do bispo de Lamego, D. João Camilo Madureira, numa Cir cuncisão da autoria de Vasco Fernandes, atualm ente no M useu de Lamego, in: Dalila Rodrigues. “A pintura no período manuelino”, in: Paulo Pereira (dir.). História da arte portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1995, vol. II, p. 201-02, 231 e 253. 70 Ver a excelente coleção destas viaturas pertencentes a prelados lamacenses atualm ente existentes no M useu de Lamego.
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J o s É P e d r o P a i v a é p ro fesso r auxiliar na F a c u ld a d e d e L e tra s da U n iv e rsid a d e d e C o im b ra e m e m b ro do C e n tro d e H istó ria d a S o c ie d a d e e da C u ltu ra . T e m le cio n a d o ca d eiras d e C u ltu ra P o rtu g u e sa M o d e rn a e d e H istó ria R elig io sa e d a Ig re ja. E n tr e as suas p u b lic aç õ es, d e s ta q u e -s e B ru xa ria e superstição num p a ís sem caça às bruxas: 1600-1774. L isboa: E d ito ria l N o tícias, 1997. R e s u m o . E s te te x to te m dois o b je tiv o s fu n d a m e n ta is. P o r u m lado, visa d e s c re v e r e avaliar u m ce rim o n ial p ú b lic o da Igreja, o caso das e n tra d a s so le n e s dos b isp o s nas suas d io ceses, p riv ile g ian d o e x e m p lo s ocorridos em territó rio do Brasil; p o r o u tro lado, p ro cu ra in d a g ar se a lin g u a g em e as estra té g ias d e te atraliza çã o do p o d er, q u e te ria m tid o na C o rte régia u m esp aço p riv ileg iad o d e criação e afirm ação e cu jo e n fo q u e se te m c e n tra d o q u a se e x c lu siv a m e n te n a ex altação do ce rim o n ia l e d a e tiq u e ta co m o in stru m e n to s d e afirm ação do p o d e r po lítico do rei, não foram d e igual m o d o u sa d as e m ce rim ô n ia s da Igreja.
T o u ro s reais no T e rre iro do P aço, nas festas d e c a sa m e n to d e D . C a ta rin a d e B raganças com C arlos II d e In g la te rra (1661). Â n g ela B arreto X avier, P e d ro C a rd im & F e r n a n d o B ouza Á lvares. F estas que se fize ra m pelo casam ento do rei D . A fonso VI. L isb o a: Q u e tz a l, 1996, p. 75. F o to A n d ré Ryoki.
ENTRADAS SOLENES RITUAIS COMUNITÁRIOS E FESTAS POLÍTICAS, PORTUGAL E BRASIL, SÉCULOS XVI E XVII P
e d r o
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a r d i m
1. T a n t o P o r t u g a l como o mundo colonial brasileiro dos séculos XVI e XVII legaram-nos uma enorme quantidade de vestígios que testemunham, de forma bem eloqüente, a grandiosidade das cerimônias realizadas nessa época. Com base nesses vestígios é fácil ter idéia do grande investimento que era feito nessas festas, tanto material como simbolicamente. Esse grande número de festividades demonstra bem que as autoridades estavam a inte ressar-se pelo impacto de tais eventos na luta política, numa época em que a reputação e a representação simbólica do poderio desempenhavam papel de cada vez maior importância. Sabemos hoje que as diversas casas reais da E u ropa desse período foram muito sensíveis à virtualidade política das cerimô nias, e a de Portugal não foi exceção, tendo investido muitíssimo num dispo sitivo comemorativo tão grandioso quanto possível. E ntre as diversas cerimônias que a Casa Real portuguesa organizou, as entradas solenes merecem, sem dúvida, algum destaque. Como se sabe, a “entrada solene” era a festividade que assinalava a primeira vez que o monar ca se deslocava a uma determinada cidade, e por isso mesmo esperava-se que tal ocasião fosse assinalada por uma recepção condigna, a qual envolvia um reconhecim ento recíproco: da parte da cidade, por meio da festa as autorida des citadinas demonstravam que reconheciam esse monarca, apresentandose dispostas a acolhê-lo e a obedecer-lhe, mediante a fórmula: “Esta Cidade entrega a Vossa M ajestade as chaves de todas as suas portas, dos leais cora ções de todos os moradores, e de suas pessoas e fazendas para todo o serviço
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de Vossa M ajestade”;1da parte da realeza, o fato de comparecer na festa e de aceitar as galas que a cidade organizara era um sinal claro de que reconhecia os direitos da corporação urbana, e de que estava disposta a governar sem jamais perder de vista os foros camarários. Como começamos por assinalar, este tipo de eventos festivos conheceu o apogeu durante os séculos XVI e XVII, envolvendo um número muito consi derável de pessoas, desde o rei e os seus familiares mais próximos, até à po pulação anônima que assistia à festa, passando pelas corporações urbanas, pelos representantes do “estado eclesiástico” e da nobreza, que sempre fa ziam por estar presentes. Além disso, ao contrário das cerimônias que tinham lugar no palácio real — por definição muito mais exclusivas e fechadas à “gente com um” — , as entradas tinham uma clara vocação “pública”, quer dizer, ti nham como objetivo expresso captar a atenção de um grupo de pessoas tão numeroso quanto possível. Todavia, e como adiante veremos, não obstante o seu caráter “público”, as entradas nem por isso deixavam de ser ocasiões extrem am ente codificadas. A maioria dos estudos dedicados ao tema das entradas solenes tem insisti do na sua dimensão propagandística, encarando tais cerimônias como oca siões de demonstração de majestade régia. N esse sentido, consideram que o cerimonial foi utilizado como um instrum ento de propaganda das diversas casas reais, servindo para disseminar, de forma grandiloqüente, um ideário favorável ao poder régio. Não devemos esquecer, contudo, que esta era ape nas uma das faces das entradas solenes, pois, para além da sua dimensão propagandística, constituíam também ocasiões de diálogo, e nesse diálogo muitos dos que a elas acorriam desempenhavam papel ativo. De fato, tirando partido da presença do rei, acompanhado pelos principais membros da fa mília real, dos seus ministros mais próximos e da primeira nobreza, muitos eram os que aproveitavam para transmitir mensagens aos promotores da ce lebração. Em trabalhos anteriorm ente realizados procurei explicitar o significado de algumas das principais cerimônias da monarquia durante os séculos XVI e XVII, nom eadam ente da assembléia de cortes, e em tais estudos optei por privilegiar a dimensão plural da comunicação política que aí tinha lugar.2 Tal opção decorreu da constatação de que, de forma geral, as cerimônias que
1 “Regim ento das entradas dos senhores reis nas cidades ou vilas”, in: E. Freire de Oliveira. Elementos para a história do município de Lisboa, tomo II, 1.’ parte. Lisboa: T. Universal, 1887, p. 453. Acerca do lugar das entradas solenes no conjunto dos eventos cerimoniais realizados no Portugal do século XVII, vide D. Ramada Curto. “Ritos e cerimônias da monarquia em Portugal (séculos XVI a X VIII)”, in: AA.VV. A memória da Nação. Lisboa: Sá da Costa, 1991, p. 201-65. 2 Cf. Pedro Cardim. Cortes e cultura política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Cosmos, 1999.
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tiveram lugar durante o Antigo Regime constituíam situações complexas de troca de mensagens entre os protagonistas da cena política. E as entradas solenes não são nenhum a exceção, bem pelo contrário, até porque eram uma das expressões mais acabadas do mundo das cerimônias áulicas, ocasiões em que era encetada uma comunicação “pluridirecional”, por vezes de forma muito aberta, noutros casos de modo velado e sutil, mas nem por isso menos intenso. Pela enorme quantidade das descrições de entradas que foram então pu blicadas, assim como pela vasta e heterogênea literatura — manuscrita e im pressa — que nos fala do cerimonial montado por ocasião das entradas sole nes, é possível aceder a esta comunicação “pluridirecional”. Assim, ao longo do presente texto procuraremos dar conta do significado político do aparato festivo presente nas entradas régias que foram realizadas nesse período, to mando como objeto de estudo o caso português e, também, mais de passa gem, o do Brasil colonial, ambientes sociais e culturais onde deparamos com a plena consciência tanto do potencial expressivo das cerimônias como da profusão de significados por elas suscitados.3 2. Começamos por afirmar que os séculos XVI e XVII assistiram a um grande aum ento do número de entradas solenes promovidas pela Casa Real lusitana. Nos arquivos portugueses conserva-se volume considerável de fon tes relacionadas com os preparativos para essas festas, e mediante tal docu mentação podemos ter noção do quão complexa era a tarefa do cerimonialista que estava incumbido de organizar a festividade. A esse mestre-de-cerimônias cabia definir, com todo o rigor, o local e o período em que iria ter lugar a festa; para além disso, teria de estabelecer, com o máximo detalhe, o papel desem penhado pelos vários organizadores do dispositivo cerimonial; tinha igualmente de decidir sobre uma série de questões relacionadas com as pre cedências entre os dignitários participantes na festa; e, por último, mas não menos importante, sob a responsabilidade do cerimonialista estava, na medi da do possível, direcionar a recepção das cerimônias, ou seja, controlar a sig nificação — ou significações — que o dispositivo cerimonial suscitava, o efeito que essa solenidade provocava em todos os que acorriam à festa e nela toma vam parte.4 Importa referir que, em Portugal, tal como em outras partes da Europa daquela época, existia uma bem estabelecida escala hierárquica de cerimô nias, a qual era perfeitam ente familiar para a sensibilidade de todos. Em Lis
3 Antonio D om ínguez Ortiz. “Iglesia institucional y religiosidad popular en la Espana barro ca”, in: AA.W. La fiesta, la ceremonia, et rito. Granada, 1987, p. 9-20. 4 Vide, por exemplo, os apontamentos preparativos para uma entrada na cidade de Lisboa, na década de 1680, em Biblioteca Nacional, Lisboa (BNL), Pombalina, cód. 653, f. 357ss.
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boa, as cerimônias mais importantes encontravam-se naturalm ente associa das ao Palácio Real, à residência do monarca, onde tinham lugar os rituais politicamente mais relevantes, como os juramentos régios ou a reunião de cortes — cuja abertura solene decorria na “Sala dos Tudescos”, a principal dependência do Paço da Ribeira. Outras cerimônias não menos marcantes, e tam bém ligadas à monarquia, realizavam-se no exterior da residência régia, bem dentro do espaço urbano. Era esse o caso das entradas solenes de reis ou de rainhas, as quais envolviam diversas zonas urbanas: o recinto situado mes mo em frente ao palácio, chamado “Terreiro do Paço”; algumas das princi pais ruas da cidade, sobretudo a Rua Nova e as artérias onde se localizavam os estabelecim entos dos grandes mercadores lisboetas; e, finalmente, a praça em frente à igreja da Sé. Durante a festividade todos estes espaços eram como que “monopolizados”, só podendo aí ter lugar as cerimônias promovi das pelos cerimonialistas da Casa Real e pelas autoridades urbanas.5 A respeito das entradas solenes, importa desde já mencionar um aspecto importante: a Coroa não era a única entidade política que organizava esse tipo de eventos, bem pelo contrário. Tanto os dignitários eclesiásticos como algumas das principais figuras da nobreza tinham costume de organizar festi vidades semelhantes, pelo que existia, necessariamente, uma certa relação concorrencial entre as cerimônias promovidas por cada um dos poderes em presença.6 Como tal, as entradas solenes ligadas à Coroa procuravam certa m ente superar, em brilho e em magnificência, as solenidades que eram orga nizadas pelas outras entidades então em presença, tanto eclesiásticas7 como nobiliárquicas,8 ou ainda municipais.9 E esta competição fazia-se sentir, so
5 N um a instrução para uma entrada régia a realizar em Lisboa, em meados de Seiscentos, adverte-se que “não se permitirá que nas ruas [...] entre pessoa alguma que não pertença ao cortejo, para que só para elle estérn as ruas despejadas [...]” (BN L, Pombalina, cód. 653 f. 359v.). fl Veja, por exemplo, Relacion de las fiestas, que la Compania de lesv haze en la Ciudadde Lisboa a la Canonizacion de S. Inacio de Loyola su fundador, y de S. Francisco X auier Apostoldei Oriente [...] (Lisboa: Geraldo de Vinha, 1622). Essa concorrência não se limitava à Coroa e aos demais poderes, podendo estender-se às relações diplomáticas. De fato, da entrada do em baixador de Portugal em Paris, em 1644, escreveu-se que tal solenidade “venceo a memória e a estimação da Embaixada do D uque de Pastrana [embaixador de Espanha] em França [...]” — Frei M anuel Homem. Descrição da jornada, e embaixada extraordinária, que fez a França D. Álvaro Pires de Castro, Conde de Monsanto e Marquez de Cascais [... ] (Paris: Joam de la Caille, 1644), p. 5-6. 7 José Pedro Paiva. “O cerimonial da entrada dos bispos nas suas dioceses: uma encenação de poder (1741-1757)”, in: Revista de História das Ideias (Coimbra) 15:117-46, 1993. 8 Antonio Gomes. “Relação da entrada da Senhora D uqueza [de Bragança] em Villa-Viçosa e festas que se lhe fizerão”. Évora, 1603, BNL, cód. 8522, f. 9ss.; cf. com “Torneo em Vila Viçosa por ocasião do casamento de D. Teodósio 2."”, 6 de julho de 1603, BNL, cód. 8570, f. 166. () Eram freqüentes os conflitos entre os representantes do poder camarário e as autoridades eclesiásticas, a pretexto das precedências em cortejos e em procissões; veja-se, por exem-
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bretudo, ao nível da decoração montada para os eventos ligados à monarquia, a qual tinha de ser criteriosamente planeada, pois servia um propósito de ostentação e de riqueza, exibindo um programa alegórico que não podia dei xar de ser especialm ente rico e impressionante, a fim de que fosse capaz de “superar” as demais cerimônias e desse modo contribuir para o fortalecimen to da “reputação” do monarca. A decoração do espaço urbano era, portanto, um aspecto fundamental das entradas solenes. Todos esses eventos decorriam segundo a forma de um cortejo, o qual percorria certas ruas da cidade previamente enfeitadas com uma série de arcos triunfais, sempre profusamente decorados com motivos alusivos ao tema da festa. A ornamentação das ruas da cidade devia obedecer, em princípio, a um programa, de forma a que todo o dispositivo pictórico e cênico fosse consistente com a temática da festa. Era essa, aliás, a principal preocupação do cerimonialista da Casa Real que coordenava os preparativos, instruindo, nesse sentido, os artistas e os homens de letras que eram chama dos a colaborar no arranjo decorativo das ruas. No cortejo que assinalou, em Lisboa, a partida para Inglaterra de D. Cata rina, irmã do Rei D. Afonso VI, um dos cerimonialistas da Casa Real — pos sivelm ente o próprio secretário de Estado Antônio de Sousa de Macedo — ordenou que “hão de estar as ruas armadas o melhor que puder ser, e se há de fazer aviso ao Senado da Câmara para que repartindo em estâncias aos mora dores a parte, que lhes couber, as armem com igualdade, e não com a diferen ça com que se faz nas procissões ordinárias” . Para além disso, esse mesmo mestre-de-cerimônias adverte que as “bocas das ruas” deverão ser decoradas pelos membros da corporação urbana, “para que as ornem com muita parti cularidade ou com arcos triunfaes, ou com colunnas, e trofeos, fontes, e bos ques, como cada hum melhor p u d er...”. Quanto ao Arco da Portagem, junto da igreja da Misericórdia, “se há de ornar com particularidade, e com algum arco ou arcos, e isto se há de encommendar ao Contador-mór, e elle aos officiaes dos contos, e também ao juiz e gente do terreiro, a parte que fica para elle”. E no tocante à ornamentação do Terreiro do Paço, ou seja, a praça si tuada mesmo em frente ao Palácio Real, no meio desse terreiro “se procurará fazer hum arco triunfal com ventagem a todos os mais, que se houuerem de fazer, e este será por conta da Camara”; já do arco junto da “Casa Nova da Rainha nossa Senhora, se encarregará ao Provedor da Alfandega, e elle a seus oficiais, para que o armem, e concertem com toda a perfeição”.10 A mesma hierarquia no aparato dos arcos devia existir nos barcos que sempre enchiam
pio, “Estilos dc procissões no Porto. Vereadores contra o Bispo do Porto”, Biblioteca da Ajuda (BA), cód. 51-V I-ll f. 156, 185, 201, 338, 414. 111 Instrução para a partida de D. Catarina para Inglaterra, abril de 1662. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (A N T T ), Mss. S. Vicente, vol. 20, f. 283.
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o rio Tejo nestas ocasiões festivas, e o labor deste cerimonialista era de tal modo minucioso que chegava ao ponto de definir o que o rei iria proferir em certos momentos do cortejo. Vejamos um exemplo: quando os dignitários da nobreza viessem beijar a mão ao rei, ele deveria recusar esse gesto de defe rência, mas sempre de forma galante, declarando “Não! A Rainha”, ou seja, mandando-os beijar, em primeiro lugar, a mão da rainha, um gesto cuja fina lidade era “fazer cortesia à rainha sua Irmã”.11 Para além da sua minúcia, as instruções que acabamos de apresentar reve lam que a realeza contava com a colaboração das corporações urbanas para a organização das entradas. Com efeito, à câmara municipal cabia organizar — e, em parte, financiar — uma parte do aparato festivo, o que levava a Casa Real a avisar as autoridades locais, por vezes com alguns meses de antece dência, da futura realização desse evento, a fim de que se preparassem devi dam ente para o que iria suceder. Assim, parte das responsabilidades organizativas encontravam-se nas mãos das autoridades urbanas, e este aspecto é importante, pois permitia-lhes ditar algumas das mensagens que iriam ser transmitidas no decorrer do evento. Por outras palavras, certos aspectos do dispositivo festivo escapavam ao controle dos cerimonialistas régios. Mais adiante analisaremos essa questão. Por agora importa recordar que tais cerimônias se inscreviam num calendário comemorativo repetido com uma certa regularidade desde tempos antigos, uma ancestralidade que cons tituía, ela própria, uma das características mais salientes desses eventos. De fato, todo o procedimento inerente à realização das entradas solenes estava definido desde há muito, e trazia implícito um determinado entendim ento do que sempre havia sido o relacionamento entre a realeza e as autoridades urbanas. A entrada, organizada em parte pela cidade e em parte pela Casa Real, transmitia uma certa noção de colaboração e de interdependência entre as diversas entidades políticas presentes na festa, e a antiguidade dessa ceri mônia, por sua vez, recordava que tal interdependência estava em vigor des de há muito, e que não convinha alterá-la. Por outro lado, a regular realização de tais cerimônias significava que os reis de Portugal tinham o costume de demonstrar, por meio desses m om en tos carregados de simbolismo, que continuavam a ter em conta as autorida des urbanas, que continuavam a respeitar as suas liberdades e privilégios, e a contar com elas para manterem em boa ordem aquela parcela do reino. E no caso das entradas realizadas em Lisboa, essa era uma mensagem que se des tinava não só à urbe que recebia solenem ente o monarca, mas tam bém ao conjunto do reino, o qual era de alguma forma representado por essa cidade dita “cabeça do reino”.
11 A N TT, Mss. S. Vicente, vol. 20, f. 286.
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Antiguidade e regularidade constituíam, como se vê, elementos que refor çavam um determinado entendim ento da relação que o rei e as autoridades urbanas deviam manter. O cerimonial das entradas apontava, portanto, para uma espécie de “descentralização” governativa, pois celebrava, de certo modo, o equilíbrio de poderes entre a monarquia e os poderes camarários; e a com ponente ritual das entradas solenes, por sua vez, concorria decisivamente para tornar duradouro esse statu quo. No entanto, a ancestralidade e a regularidade que caracterizava as entra das tinham conferido fixidez a todos os procedimentos, uma fixidez bem manifesta na vasta documentação que era manuseada por aqueles que ti nham responsabilidades na preparação da festa. Os oficiais da Casa Real que organizavam estes eventos — em regra, o mordomo-mor ou o camareiro-mor — possuíam muitas descrições de cerimônias análogas, anteriormente cele bradas tanto em Portugal como em outros pontos da Europa. Entre a docu mentação que preservava notícias sobre essas cortesias destacavam-se os “re gim entos” de cerimônias realizadas no passado, os quais explicitavam os lu gares do cortejo que cada um dos intervenientes devia ocupar. E que no caso de ocorrer alguma fuga à “ordem da cerimônia” — i.e., ao plano previsto e que reproduzia, com poucas adaptações, os gestos desempenhados nos even tos antecedentes — , todas as intenções subjacentes à realização dessa entra da solene poderiam ser inviabilizadas. A expressão “cerimonial devido”, en tão bastante utilizada, dá boa conta do caráter rígido de que estas ocasiões se revestiam, porquanto denotava um conjunto de normas revestido de uma muito substancial relevância política. Na verdade, do ponto de vista das auto ridades urbanas, o respeito por essa maneira ancestral de celebrar uma entrada solene era interpretado como um gesto respeitoso do rei perante a cidade.12 Uma fuga ao guião preestabelecido, pelo contrário, constituía quase sempre motivo de escândalo e de queixas ruidosas, por ser encarada como um atenta do à reputação da cidade que organizava a festa e como um desaforo em relação à identidade jurisdicional da urbe onde essa entrada tinha lugar.13 Muitos dos que tinham tomado parte em várias dessas cerimônias sabiam bem, por conseguinte, o que se passava numa entrada solene, e transporta vam expectativas prévias a respeito dos gestos que iriam ser desem penha dos. Como se pode facilmente imaginar, este aspecto tornava ainda mais im
12 Cf. Fernando Bouza Álvarez. “Introdução: Portugal nas cartas de D. Filipe I às suas filhas e o tem po de um príncipe m oderno”, in: Cartas para duas infantas Meninas. Portu gal na correspondência de D. Filipe I para as suas filhas (1581-1583). Lisboa: D. Quixote, 1999, p. 21-2. 13 Acerca da problemática dos poderes urbanos e sua identidade jurisdicional, no mundo ibérico dos séculos XVI e XVII, veja J. I. Fortea Pérez (org.). Imágenes de !a diversidad. E l mundo urbano en la Corona de Castilla (s. XVl-XVI/f). Santander: Universidad de Cantabria, 1997.
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portante o cum primento do cerimonial, pois, de certo modo, cada participan te estava em posição de ajuizar se o “cerimonial devido” fora respeitado, e, se fosse caso disso, de criticar os organizadores. Um dos aspectos mais complexos da organização de entradas solenes era a gestão das precedências entre os intervenientes. Cada cerimônia obedecia a regras próprias. No caso dos eventos promovidos pela Igreja e dotados de significado predom inantem ente religioso, os clérigos tinham o direito a ocu par um lugar mais destacado do que a nobreza profana. Nas entradas solenes dos reis, contudo, a prioridade pertencia às autoridades e aos dignitários pro fanos, em virtude do caráter secular do evento. No entanto, esta problem áti ca das precedências foi sempre pouco consensual, e, no início do século XVIII, numa “Representação dos Condes contra o alvará que concedeu honras e dignidades aos cônegos da Sé Patriarcal de Lisboa e lhes deu a precedência”, os titulares nobiliárquicos manifestaram descontentam ento com o lugar que lhes tinha sido atribuído nessas cerimônias, por ser atrás dos cônegos. Consi deravam que o Estado secular tinha direito a preceder ao eclesiástico nas cerimônias “temporaes, civis, e politicas em que os eclesiásticos não tem funçoens próprias...”.14 Não é excessivo voltar a insistir que o monarca, ao promover entradas sole nes e ao conceder aos vassalos a possibilidade de tomar parte nestes eventos, estava implicitamente a reconhecer os direitos políticos que lhes assistiam, e assim se percebe por que é que o tema das precedências gerava tantas querelas. É tam bém isso que explica por que é que os organizadores da solenidade — fossem eles os oficiais da Casa Real ou até o próprio rei — não podiam decidir arbitrariamente quem iria estar presente 0 11 em que sítio do cortejo iriam posicionar-se os diversos dignitários. Pelo contrário, sobre eles pesava o imperativo de chamar sempre as mesmas pessoas e de obedecer ao critério de convocatórias anteriores, observando, na medida do possível, a ordem ce rimonial usada no passado. Na eventualidade de tal critério ser desrespeita do, a Casa Real e até o próprio rei poderiam ser acusados de atentarem contra a identidade política dos participantes, uma acusação que era suficiente para invalidar todo o significado da entrada solene. Assim, no Antigo Regime todas estas questões — hoje classificadas de “etiqueta” — possuíam uma espessura política muito significativa, pois re portavam-se, direta ou indiretam ente, aos princípios constitucionais em que assentava o viver comunitário daquela época, e ao modo como os contem po râneos sentiam o laço que os unia ao rei.15
14 Publicado cm E. Brazâo. Relações externas He Portugal. Reinado de D. João V. Porto: Livraria Civilização, 1938, vol. 2, p. 293. 15 D anicla Frigo. 11 Padre d i fatniglia. Governo delta casa e governo civile nella tradizione deli' “Economica" tra Cinque e Seicento. Roma: Bulzoni, 1985, p. 193ss.
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3. Até aqui insistimos, sobretudo, no caráter impositivo dos estilos cerimo niais e nos constrangimentos sentidos pelos organizadores da festa. Porém, esse caráter impositivo não impediu que, em diversas ocasiões, a Casa Real tivesse usado a entrada solene para impressionar os que presenciavam as imagens exi bidas ou que escutavam os discursos que eram solenemente pronunciados. Como sugerimos atrás, a profusão decorativa e a magnificência das entra das solenes dos reis visavam reforçar a reputação do monarca. Como figura mais proem inente do reino, o monarca só poderia entrar de forma grandiosa, e se a sua entrada não se revestisse de toda a solenidade, tal poderia ser muito pouco abonatório para a sua fama e para a sua autoridade. Vejamos um exem plo do que acabamos de referir: em 1640, poucos dias depois da revolta de 1.° de dezembro, o D uque de Bragança deslocou-se a Lisboa, a fim de assumir as rédeas do poder. Todavia, a sua entrada na cidade fez-se num dia em que chovia copiosamente, e foi tão inesperada ou tão discreta, que “muito pouca gente o viu entrar”, e quem o viu chegar não pôde deixar de notar que vinha “grosseiramente vestido”.16 O alheamento em relação à chegada do duque a Lisboa foi tão pronunciado, que os revoltosos sentiram necessidade de pro mover uma série de solenidades para publicitarem a chegada desse novo rei. E assim, nas semanas que se seguiram, a cidade de Lisboa foi palco de diver sas cerimônias, verdadeiros ritos de passagem que visavam sublinhar, de modo simbólico, a subida ao poder de um novo rei. N o que respeita ao conteúdo do programa decorativo, os cerimonialistas da Casa Real procuravam sempre apresentar a imagem de um rei magnificente e poderoso, mas ao mesmo tempo paternal e carinhoso, no qual os vassalos podiam confiar plenam ente.17Tanto num caso como no outro subli nhava-se que o monarca estava apostado em manter o equilíbrio de forças e em respeitar os direitos das diversas partes da comunidade. Além disso, a realeza era invariavelmente apresentada como uma entidade política inspira da pela divindade, uma manobra que visava, sem dúvida, increm entara con fiança e o consenso comunitário em torno do rei. E tal com ponente transcendental era reforçada pelo fato de uma parte do dispositivo alegórico ser confiada aos clérigos. Importa não esquecer que a entrada régia possuía afinidades com outras solenidades semelhantes realiza das pelas entidades eclesiásticas, um aspecto que apenas sublinhava o cará ter providencial que marcava tais eventos. No entanto, existia um outro as
16 A. G. Rocha Madahil. “Cartas da restauração”, scparata dc O Instituto, Coimbra, vol. 96, p. 16, 1940; compare-se com “Diario dc tudo quanto aconteceu na glorioza Aclamação do senhor Rey Dom João Quarto, Feito por Dom Francisco Manoel, e fielm ente copiado do original [...]”, Academia das Ciências de Lisboa (ACL), Mss. Azuis, 131, f. 245ss. 17 Acerca do papel desem penhado pela confiança como fator dc coesão comunitária nas cha madas “sociedades simples”, vide Niklas Luhmann. Vertrauen. EinMechanismusderReduktion sozialer Komp/exitat, 2.a edição alargada. Stuttgart: Enke, 1973.
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pecto que muito contribuía para reforçar o atravessamento entre a festivida de profana e a solenidade religiosa: estas cerimônias decorriam, em parte, no interior de espaços religiosos, como por exemplo a Capela Real — de onde o rei e a sua família saíam para dar início ao cortejo, e onde a comitiva se reco lhia, no final da festa18 —, e, sobretudo, a Sé Catedral, aonde o monarca se deslocava para prestar homenagem às autoridades episcopais da cidade. As entradas solenes envolviam, portanto, uma forte com ponente católica, e os cerimonialistas da Casa Real tudo faziam para se apropriarem dos signos reli giosos, associando-os à realeza. Por outro lado, as entradas solenes, enquanto cortejos, faziam lembrar as procissões, as quais constituíam rituais religiosos por excelência. E o elem en to cristão marcava muitas outras facetas da festividade, como por exemplo a presença dos principais dignitários da Igreja em alguns lugares de maior des taque da festa, e, sobretudo, o fato de o monarca, os demais membros da sua família e o restante cortejo visitarem espaços religiosos. Como vimos, o corte jo incluía sempre uma passagem pela principal igreja da cidade, onde o rei era saudado pelas autoridades episcopais, ocasião sempre aproveitada pelos clérigos para exibirem, orgulhosamente, as suas prerrogativas, e para recorda rem ao monarca que uma das suas principais obrigações era trabalhar para a preservação das liberdades e das prerrogativas da sociedade eclesiástica. O rei, por sua vez, apresentava-se como a melhor personificação dos manda mentos católicos, insinuando-se, até, como o principal representante terreno do senhorio divino. Desse modo, numa solenidade dotada inicialmente de um caráter profano era introduzido um elem ento em inentem ente religioso, o qual concorria para instaurar uma atmosfera quase sacramental. Aliás, para o analista atual acaba por ser difícil dizer, a respeito dessas cerimônias, onde é que acabava a significação profana e começava a parte religiosa, o que estava aliás em perfeita consonância com a estrutura comunitária daquela época, tam bém ela assente em fundamentos católicos.19 Ainda acerca desta interpenetração entre a cerimônia profana e a imagética cristã, durante as entradas solenes era costume exibir numerosas imagens religiosas, sobretudo nos arcos que decoravam as ruas por onde passava o cortejo. Aí surgiam figuras de reis e de rainhas lusitanas associadas a Jesus Cristo, à Virgem Maria e a outras personalidades bíblicas. Desse modo, e à semelhança do que acontecia em outras cerimônias da Casa Real igualmente marcadas por esta interpenetração entre o profano e o religioso — como era o caso dos juramentos régios e das assembléias de cortes — , também as entra das solenes se convertiam, a determinada altura, em verdadeiras liturgias po
18 BNL, Pombalina, cód. 653, f. 358. 19 Cf. Bartolomé Clavero. “Religión y dcrccho. mentalidades y paradigmas”, in: Historia, instituciones, documentos (Scvilha), / / : 1-26, 1985.
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líticas, onde o fundo religioso e o fundo laico se confundiam, uma confusão fomentada pelos promotores dessas festividades, certam ente sabedores do potencial legitimador das imagens cristãs. De resto, a pintura portuguesa deste mesmo período muito cultivou o atravessamento entre referências religiosas e temas profanos, não se coibindo, até, de relacionar a imagética bíblica com a simbologia da monarquia. Ao que tudo indica, esta interpenetração entre a solenidade religiosa e a cerimônia profana era então extrem am ente aprecia da, pois ia ao encontro de uma sensibilidade muito adepta de jogos semânti cos e da concentração de significados. A eficácia do dispositivo simbólico convocado para as entradas solenes era incrementada pelo fato de todo ele se inserir na estrutura de repetição que é própria dos sistemas rituais, envolvendo, como acabamos de ver, a evocação de imagens de denso significado simbólico e alegórico, capazes de provocar um efeito entre os que estavam presentes. Esse efeito era garantido pela recor dação de que as entradas solenes eram rituais praticados, desde há muito, pelos diversos reis de Portugal, e tal ancestralidade constituía mais um sinal inequívoco que confirmava a validade das mensagens periodicamente repe tidas durante esses eventos. E importante não esquecer, por outro lado, que as imagens evocadas no decurso das entradas solenes surgiam em múltiplos registos e suportes. De fato, para além de serem exibidas no momento da festa, elas eram também postas em circulação por meio das descrições que, como vimos, costumavam ser impressas e difundidas por toda a península ibérica. Os autores dessas descrições conferiam sempre um tom hiperbólico ao seu relato, com o intuito não só de reproduzir — sem o diminuir — todo o aparato e a magnificência que caracterizara o evento, mas ainda de reconstruir o efeito provocado pela exibição da majestade régia. Esta é uma das mais salientes características desse vasto e heterogêneo gênero literário que, à falta de melhor expressão, podemos designar por “relações de festas”, composto por centenas de textos — muitas vezes acompanhados por belas ilustrações — que davam conta das galas realizadas por ocasião da entrada solene de um rei ou de uma rainha num a determ inada cidade.20 Vejamos uma passagem de uma descrição de um cortejo régio, realizado em Lisboa na década de 1680, e bem ilustrativa do que acabamos de afirmar. Depois de dezenas de páginas repletas de deta lhes acerca da magnificência do evento, o autor deste escrito refere que “passaria a dilatado volume esta narração abreviada, se nella se poderão com prehender, assi como se puderão admirar, as miudezas innumeraveys,
20 O exemplo mais paradigmático é, sem dúvida, o famoso livro de João Baptista Lavanha. Viagem da Catholica RealMagestade deiRey D. Filipe II. N.S. Ao Reyno de PortugalE rellação do solene recebimento que netle se lhefez [...] (Madri: Thom as Iunti, 1622).
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as perfeiçoens infinitas, as singularidades caprichosas de todos os referidos arcos, a infinita quantidade de estatuas sublimes, a copiosa variedade de pinturas valentes dos Reys de Portugal, e de outros Reinos, de varões insignes da fama, de cidades, e principaes do mundo, as colunnas de varios modos, os pedastaes e chapiteys de differentes feyções, as alturas, as pro porções, as correspondencias da arte, os torcidos, os curvos, os relevados da architectura, os porticos, as grades, as varandas, os floridos, os coloridos, os escudos, os emblemas, os grifos, os enigmas, os dysticos, os quartetos, os sonetos, os epigrammas, tudo por huma e outra banda, por hum e outro lado, por huma e outra face, pellos cantos, pelos remates, pellos frizos. Basta dizer que era raro, agradauel, e estranho tudo, o designio, a fabrica, e o modo; e que as estatuas poderão ser enveja de Fidias, as pinturas injuria de Appelles, as architecturas magoa de Vitruvio, e as Poesias desconfiança de Homero [_].”21 No fundo, por meio das entradas solenes e das imagens eloqüentem ente publicitadas durante e após tais eventos, a Casa Real apresentava a Monar quia como entidade magnificente e sublime, na qual os vassalos podiam con fiar plenam ente, remetendo-os para uma postura de obediência sem que para tal tivesse de recorrer a qualquer espécie de coação, sem que tais imagens fossem sequer sentidas como opressivas, pois eram difundidas mediante re quintado dispositivo persuasivo que era tanto mais eficaz quanto mais dissi mulasse a sua com ponente coerciva.22 4. As entradas solenes estiveram, não raras vezes, ao serviço do projeto político da Monarquia. Porém, elas constituíam, também, acontecimentos de primeira importância para as autoridades urbanas. D esde logo, porque a op ção do rei em visitar a cidade constituía um sinal de preeminência, um sinal de que o monarca considerava essa cidade digna de ser visitada, achava que os seus habitantes mereciam avistá-lo, e que as autoridades citadinas eram dignas de receber garantias régias de que as suas prerrogativas iriam ser pre servadas. Por vezes eram as próprias cidades que tomavam a iniciativa de
21 M anuel Nogueira de Sousa. “Relação dos reais desposarios de D. Pedro 2." de Portugal com a princesa eleitoral D. Maria Sophia Izabel; de sua chegada a Lisboa e da entrada dc SS MM Magestades a Igreja da Sé e das Festas que se lhe fizeram. Lisboa, 25 dc outubro de 1687”, BA, cód. 51-VI-l 1, f. 385v. 22 A propósito desta problemática, Louis Marin fala de uma “cultura política intrinsecam entc marcada pela teatralidade”, na qual o cerimonial era algo de constitutivo da política barroca — Louis Marin. “Pour une théorie baroque de Paction politique”, in: Gabriel N audé. Considérationspolitiquessurles coups d'É tat. Paris: Éditions dc Paris, 1988, p. 20ss.; cf., tam bém , Roger Chartier. “Pouvoirs et limites de la représentation. Sur Poeuvre de Louis M arin”, in: Antia/es H SS (Paris), i?:407-18, mars-avril, 1994.
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convidar o rei a visitá-las, um gesto pleno de significado e que, em regra, era parte de uma estratégia de afirmação política de uma cidade em relação a outras urbes.23 Foi esse o caso de Lisboa, cuja reputação muito beneficiou do fato de ter sido o palco de algumas das mais importantes entradas solenes realizadas em terras lusitanas; e tais entradas, de resto, foram posteriormente publicitadas por intermédio de descrições impressas, muitas delas patrocina das pela própria câmara lisboeta.24 Além disso, a própria capacidade para organizar um evento com estas ca racterísticas era interpretada como sinal da vitalidade política da corporação que governava a cidade. Por outras palavras, a corporação urbana, ao assumir parte da organização da festa, demonstrava que permanecia vigente e que tinha a intenção de continuar à frente dos destinos da cidade. Porém, o dese jo da urbe em receber o monarca pode também ser entendido como manifes tação do seu em penho em preservar suas liberdades e suas prerrogativas, e em m anter seu campo jurisdicional ao abrigo de qualquer intromissão vinda do exterior.25 Se a cidade não fosse capaz de organizar, devidamente, a recep ção ao rei, tal poderia ser interpretado como um sinal de “desordem ” e de incapacidade política. E, por sua vez, se o rei não contasse com as corpora ções urbanas para a realização desses eventos, se o rei entrasse na cidade sem prestar a devida vênia às chefias urbanas, essa opção era provavelmente en carada como gesto prepotente e até “tirânico”, porque significava desrespei to pelos estilos usados desde tempos ancestrais, e, sobretudo, atropelo às prer rogativas jurisdicionais dos corpos citadinos. As autoridades urbanas estavam, portanto, empenhadas em manter esse modus vivendi, e o melhor sinal dessa intenção era a realização de uma ceri mônia que evocava, nos seus diversos momentos, a ordem em que assentava a vida em comunidade, ordem essa que era fundam entalm ente moral. Assim, na entrada solene era transmitida a imagem de uma comunidade composta por uma cabeça e por diversas partes, as quais se relacionavam de maneira harmoniosa, porque cada uma delas era ciente da sua esfera de atuação, desse modo contribuindo, na parte que lhe competia, para a consecução do “bem
23 Acerca da vitalidade política das instituições locais no Portugal do Antigo Regime, veja N uno Gonçalo Monteiro. “Os poderes locais no Antigo Regime”, in: César de Oliveira (org.). História dos municípios e do poder local (dos finais da Idade Média à União Européia). Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p. 29ss. 24 Fernando Bouza Álvarez. “Lisboa sozinha, quase viúva. A cidade e a mudança da Corte no Portugal dos Filipes”, in: Penélope. Fazer e desfazer a história (Lisboa), /J:71-93, 1994; e tam bém Richard Kagan. “Clio and the Crown: writing history in Habsburg Spain”, in: Spain, Europe, a n d the A tlantic World. Essays in honour o f John H. EHiott. Cam bridge: Cam bridge University Press, 1995, p. 73-99. 25 Acerca dos conflitos de jurisdição e do seu efeito estruturante na política ibérica do século XVII, é fundam ental a consulta do livro de Jean-Frédéric Schaub. Portugal no tempo de Olivares. O conflito de jurisdição como exercício da política. Lisboa, no prelo.
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com um” . E o cortejo que tinha lugar nas entradas solenes apenas sublinhava que a comunidade era um todo formado por partes muito diferentes, organi cam ente articuladas e respeitadoras dos direitos de cada uma delas. Eram partes diferentes mas ordenadas de tal modo que constituíam uma totalidade, uma verdadeira comunidade, sendo a manutenção desta ordem, profunda m ente hierárquica e discriminatória, o aspecto que mais contribuía para man ter a operacionalidade política do conjunto.26 Do rei, peça indispensável do sistema corporativo, esperava-se a colaboração nesse programa de “conserva ção”, de manutenção da ordem. Do rei esperava-se, no fundo, uma governação que interviesse o mínimo possível, e que tudo fizesse para evitar a m u dança, pois era esse, afinal, o caminho que todos julgavam ser mais seguro para a concretização do “bem comum”. Assim, nas entradas solenes os vassalos aproveitavam a presença do rei para exteriorizarem estas expectativas. Tais cerimônias eram freqüentem en te retratadas como a materialização do laço que existia entre o senhor e seus vassalos, laço esse regulado e mantido pelos princípios inerentes, antes de mais, ao amor. O amor era, afinal, o que de mais essencial havia na ligação entre o rei e os vassalos, era aquilo que, a um nível profundo, dava sentido à vida em comunidade, já que fora pelo amor que os homens se tinham junta do, e era por meio do amor recíproco que eles alcançariam o fim que a divin dade para eles tinha reservado. A justiça, por sua vez, constituía a principal ferramenta de um governo cujo principal objetivo era manter a ordem, evi tando toda e qualquer “novidade”; e, no caso de ocorrer uma ruptura nessa ordem, se fosse necessário reparar conflitos e reconciliar as partes desavin das, ao rei cabia exercitar a justiça e dar a cada uma dessas partes aquilo a que tinham direito. A semelhança do que sucedia em outras cerimônias desse período, a imagética ligada ao amor e à justiça era extrem am ente recorrente nas pinturas que decoravam as ruas da cidade por onde passava o cortejo. As imagens amorosas estavam presentes em quase todos os momentos desses eventos em que o monarca se cruzava com a população que lhe dava as boas-vindas, e tal insistência no amor possui uma grande relevância política. De fato, no decurso das entradas solenes o rei e os seus vassalos entravam, de uma forma ritual, como que em comunhão, comunicando entre si e lembrando, a cada passo, que o laço que os unia era essencialmente amoroso e moral. Por outro lado, a melhor prova de amor que o rei podia dar, a maneira ideal de o monar ca manifestar o afeto que sentia era mediante a presença, a proximidade — e não a distância — em relação aos seus vassalos, e a entrada constituía, sem
26 Louis Marin. “U ne mise en signification dc Pespace social: manifestation, cortègc, défilé, proccssion (notes sém iotiques)”, in: De la représentation. Paris: G allimard-Le Seuil, 1994, p. 46-61.
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dúvida, uma ocasião muito especial, pois tornava possível avistar o rei, ver o rei, bem próximo, ainda que inacessível ao contato direto. E a visão do ama do, como se sabe, ainda mais contribuía para intensificar a paixão amorosa que sempre devia pautar a relação entre os vassalos e o seu rei, pois só assim se reavivava a confiança entre eles. É precisamente esse o sentido de um comentário às festas com que Lisboa recebeu D. Maria Sofia Isabel de Neuburg, a princesa alemã que veio casar com D. Pedro II, em 1687: “Sempre as auzencias do que se ama produzirão desejos de novas visitas, e com grande ancia desejava a Corte tornar a ver, e com mays espaço, a sua Rainha, na entrada...”27 Aliás, os cerimonialistas ti nham sempre o cuidado de anotar que o coche onde seguia o rei, durante a entrada solene, devia ir “com o Tejadilho descuberto” , a fim de que todos pudessem ver a pessoa régia; para além disso, recomendavam que “o coche de Sua majestade vá com todo o vagar, para que, sem parar, possão ver bem, e notar os arcos, para satisfazer o zello, e Amor dos que os fabricaram...”28 Porque envolvia a presença do rei, tal cerimônia era representada como um evento que ainda mais intensificava a confiança afetuosa entre o monarca e os seus vassalos, pois criava as condições para que pudesse acontecer a comuni cação amorosa entre eles. Convém não esquecer que, para a “gente com um” que assistia às entradas solenes, aquela seria uma das poucas ocasiões em que teriam a oportunidade de avistar o rei, de estar fisicamente próximos do monar ca, mom ento por isso mesmo especialm ente emotivo, tendo em conta toda a aura de magnificência que cada vez mais tendia a envolver a pessoa régia. Todavia, e a par das insistências no amor, no aparato decorativo concebido para as entradas solenes proliferava igualmente o léxico da justiça. Na verda de, nesses arcos abundavam as alusões à justiça, naquele contexto entendida sobretudo como a virtude diretam ente ligada à igualdade que vigorara nos primórdios da vida em comunidade. O “bom governante” era sempre retra tado como o que procedia de acordo com os princípios da justiça, mantendo e preservando as prerrogativas dos diversos corpos, atuando com prudência e lembrando-se sempre dos estilos antigos de governo. A defesa de um gover no centrado na justiça significava que o rei, durante seu reinado, nunca deve ria perder de vista a ordem em que desde sempre assentara a comunidade, dando às partes aquilo a que cada uma tinha direito, e usando a justiça para resolver conflitos e para fazer com que as partes desavindas regressassem à paz original. O rei justo era portanto o que tudo fazia para manter a ordem, e
27 M anuel Nogueira de Sousa. “Relação dos reais desposarios de D. Pedro 2.° de Portugal com a princesa eleitoral D. Maria Sophia Izabel; de sua chegada a Lisboa c da entrada dc SS MM M agestades a Igreja da Sé e das Festas que se lhe fizeram. Lisboa, 25 de outubro dc 1687”, BA, cód. 51 -VI-11 n.° 190. 28 BNL, Pombalina, cód. 653, f. 359v.
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que, para além disso, nunca esquecia que tal ordem fora criada por uma enti dade muito superior a ele: a divindade. Tratava-se, por conseguinte, de um conceito de justiça que continha poderosas ressonâncias religiosas e morais. As imagens do amor e da justiça remetiam, afinal, para os fundamentos constitucionais em que assentava a ordem comunitária daquele tempo, lem brando, também, que tais fundamentos se encontravam estabelecidos num plano transcendental.29 No fundo, o programa decorativo especialm ente con cebido para as entradas solenes punha em cena os que eram os mais funda mentais mitos sociopolíticos daquele período. Porém, não é menos sintomática a insistência na história, na tradição e no caráter ancestral das entradas régias. De fato, no decurso da festa as autorida des urbanas sempre recordavam as entradas anteriorm ente realizadas, lem brando que esse rei deveria seguir o exemplo dos seus antepassados, o que significava que também ele tinha de estar disposto a respeitar o statu quo vigente. Entre a imagética normalmente exibida nessas ocasiões proliferavam as representações com temática histórica, as quais reavivavam a memória dos presentes, tanto do monarca como dos vassalos, recordando que cerimônias análogas tinham sido celebradas ao longo de todo o passado português. Tratase de imagens que transmitiam, sobretudo, um sentido de continuidade, de permanência e de manutenção da ordem. Mas, e ao mesmo tempo, eram imagens que constrangiam o rei na condução do governo, levando-o a com portar-se da mesma maneira que os seus antepassados. E esse constrangi mento era muitas vezes enunciado de forma aberta e bem explícita, em dis cursos proferidos no decorrer do cortejo, normalmente defronte do edifício da câmara, junto das insígnias do poder urbano. Em alguns casos tratava-se de peças oratórias encomendadas a clérigos ou a leigos pertencentes ou iden tificados com os círculos da Coroa. Noutros casos, todavia, não estava ao al cance da Casa Real controlar o conteúdo desses discursos, e como tal aca bavam por conter diversas advertências e exortações para que o monarca respeitasse os compromissos que, desde há séculos, pautavam a relação entre a Monarquia e os corpos sociais.30 Era intenção dos promotores das entradas solenes que a evocação ritual deste conjunto de imagens tivesse o efeito de relem brar a todos os partici pantes — incluindo o rei — os aspectos a que acabamos de fazer referência, e, ao mesmo tempo, amplificar as suas conseqüências. No fundo, a lingua gem simbólica presente nessas cerimônias convocava os diversos elem en 2'J Cf. Pablo Fernández Albaladejo. “Católicos antes que ciudadanos: gestación de una «Po lítica Espanola» a los comienzos dc la Edad M oderna”, in: J. 1. Fortea Pérez (org.). hnágenes de la diversidad. E l mundo urbano en la Corona de Castilla (s. XVI-XVIII). Santander: Universidad de Cantabria, 1997, p. 103ss. 30 Cf. Angela Barreto Xavier; Pedro Cardim & Fernando Bouza Álvarez. Festas que sefizeram pelo casamento do rei D. Afonso VI. Lisboa: Quetzal, 1996, p. 63ss.
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tos do que constituía uma verdadeira constelação de imagens que metafori cam ente representavam a ligação entre o monarca e os diversos corpos do reino. Tais metáforas “ajudavam” a pensar e a representar muitos aspectos da governação, provocando efeitos ficcionais mas tam bém efeitos práticos, acabando por criar consenso e por legitimar certas formas de exercício do poder.31 Da parte da realeza, esperava-se que todo o dispositivo fosse capaz de gerar o consenso entre os presentes, até porque, como assinalamos, a mera participação na solenidade a todos comprometia, como se de um sacramen to se tratasse. Da parte das autoridades urbanas, esperava-se que o monarca fosse sensível às advertências transm itidas pelo programa decorativo da en trada solene. A cerimônia convertia-se assim num mom ento de afirmação dos valores morais que norteavam a vida em comum: a com unidade era como um corpo constituído por diversas partes, as quais se relacionavam entre si m ediante uma determ inada ordem, uma constituição criada pela di vindade, uma constituição natural, logo, indisponível para os homens, por que intrínseca à ordem da criação.32 A dimensão coletiva da entrada solene, por seu turno, lembrava que as com petências governativas, tal como a di vindade as concedera, estavam disseminadas pelas diversas partes do corpo social, sendo precisam ente por isso que o poder devia ser partilhado, de vendo o rei escutar sem pre os seus vassalos, dem onstrando assim o seu amor por eles e pela obra de Deus. Por fim, a entrada solene era tam bém a ocasião em que o rei se dava a ver e se aproximava dos seus vassalos, a melhor prova que podia ser dada do amor que por eles sentia. Mas, e ao mesmo tem po, o modo majestático como tudo isto era apresentado não dei xava de sugerir certas intenções autoritárias, da monarquia. Estamos a lidar, portanto, com uma comunicação política encetada por meio de imagens, tanto pictóricas como verbais. Imagens criteriosam ente escolhidas, imagens com potencial transformador, convocadas por cerimonialistas que pretendiam mover, que desejavam afetar em ocionalm ente os destinatários dessas imagens, e tais destinatários eram não só os vassalos, mas tam bém a realeza. M uitos dos cerimonialistas que dirigiam os prepara tivos para as entradas solenes dominavam cabalm ente a arte de manipular certos signos verbais, auditivos e visuais, sabendo que, m ediante essa ma nipulação, seriam capazes de produzir, de dar forma e de organizar expe riências e efeitos coletivos de caráter físico e mental, convertendo a cerimô
31 Vide Walter Euchner; Franccsca Rigotti & PierangeloSchiera (orgs.). 11poteredelleimmagini. La m etaforapolítica in prospettiva storica. Bolonha-Berlim: II M ulino-D uncker & Humblot, 1993. 32 Cf. Antonio Hespanha. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal — séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994, p. 295ss.
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nia numa experiência im pressionante e forte, em virtude da tensão em o cional despoletada por um espetáculo que recorria a meios e suportes va riados para transmitir essa mensagem festiva: antes de mais, as imagens pictóricas; mas a visão de um tão grande número de pessoas especialm ente reunidas para a festa, algumas delas dançando folias ao som de música, d e via ser, tam bém , im pressionante; o mesmo se poderia dizer do arrebatador repicar dos sinos de todas as igrejas da cidade, bem como das salvas de artilharia, tanto dos navios que sem pre fundeavam ao largo da urbe, como das fortalezas da cidade, e ainda a fuzilaria dos soldados que se encontra vam formados defronte do palácio real; por fim, o estrondo sonoro e visual dos fogos de artifício, verdadeiro clímax dessa encenação cuidadosam ente planeada pelos mestres-de-cerim ônias.33 A evocação periódica destas imagens revestidas de importância transcen dental para a vida em conjunto contribuía, sem dúvida, para reafirmar a vali dade dos valores morais que norteavam a interação comunitária. Permitia, também, renovar esses valores mediante um ato de comunhão, um ato em que se juntavam todos os que tinham responsabilidades no governo da comu nidade, e que, por um momento, se reviam ordenados segundo uma hierarqui zação rigorosa e deliberadam ente discriminatória. A entrada solene concor ria, afinal, para dar continuidade a esse ordenam ento comunitário e político, e para afirmar que esse ordenam ento não devia ser questionado.34 Aliás, o sucesso conhecido pelas entradas na segunda m etade do século XVI e duran te todo o século XVII só é explicável se tivermos em conta que estamos p e rante uma comunidade que tinha nos laços morais o seu principal fator de coesão, e que rejubilava perante a dramatização dos seus mitos coletivos,35 deleitando-se com a magnificência da encenação, com a dimensão espetacularlspecular (Louis Marin) intrínseca a essas solenidades. Esta profusão de imagens ambicionava captar a atenção de todos os participantes, desviando o seu olhar de outros modos alternativos de representar e de conceber a vida comunitária, a sua ordem e o seu governo. Nesse sentido, a dramatização que tinha lugar nas entradas solenes possuía significado claramente conservador, pois procurava impor uma determinada visão da comunidade, excluindo a possibilidade da virtual existência de outras, diferentes da que era proposta. Pela solenidade e pela opulência de que se revestiam, as entradas solenes apresentavam a sua mensagem como uma espécie de verdade autodemonstrada que não precisava sequer de se justificar, sendo suficiente a sua enun33 Veja BNL, Pombalina, cód. 653, f. 360. 34 Steven Lukes. “Political ritual and social integration”, in: Essays in Social Theory. Londres: M ethuen, 1977, p. 63ss. 35 John J. Macaloon. “Introduction: cultural performances, culture theory” in: J. J. Macaloon (org.). Rite, Drama, Festival, Spectacle. Rehearsals Toward a Theory o f C ultural Performance. Filadélfia: ISHI, 1994, p. 6ss.
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ciação.16 Era uma dramatização de tal modo poderosa que se revelava capaz de desviar a atenção de outras formas alternativas de ordenar e de governar a com unidade, ao apresentar uma série de metáforas apologéticas da ordem vigente, qualificando-a como a mais justa e a mais favorável ao “bem co m um ” do reino. Por fim, mediante as imagens sublinhava-se que essa ordem era a mais conforme aos desígnios da divindade — um argumento poderoso que esvaziava a validade (teórica) de outras formas de conceber a comunida de e a sua governação. Em suma, m ediante as entradas solenes a realeza e os vassalos reconhe ciam o statu quo vigente. Ao aceitarem participar na entrada solene, o rei e os seus familiares mais próximos, de um lado, e os representantes das corpora ções urbanas, por outro, ficavam como que comprometidos a observar as pro messas aí efetuadas. A participação no evento comportava a aceitação de uma determ inada ordem política, envolvia como que um compromisso moral e pré-jurídico que constrangia as partes presentes. Por meio da festa, a corpo ração urbana demonstrava reconhecer o rei como “cabeça do reino”, comprom etendo-se a obedecer fiel e lealmente ao seu comando. Da parte do monarca, havia a promessa de guardar as liberdades e os privilégios da câma ra municipal que, por meio da festa, o obsequiava. Ao monarca, para além disso, pedia-se que tudo fizesse, durante seu reinado, para preservar essa situação de compromisso moral com o reino, pois só assim poderia existir confiança e coesão entre as diversas partes da comunidade. Enquanto o rei cumprisse esses desígnios, as autoridades urbanas permaneceriam leais ao rei, trabalhando no sentido de m anterem em boa ordem a cidade e o seu termo. Porém, no dia em que o monarca violasse esse compromisso, a elite urbana poderia deixar de estar obrigada à obediência ao rei. No fundo, por meio da entrada solene as diversas partes da comunidade afirmavam o seu acordo com o statu quo vigente, demonstrando satisfação com o modo como o viver comunitário se processava desde tempos imemo riais. E, a par deste sentim ento de júbilo, nas entradas solenes está presente, também, o desejo de que a ordem corporativa da comunidade continuasse viva e de boa saúde. Era uma ordem que, em vez de resultar de um contrato fundador entre os homens, remontava ao arbítrio da divindade; além disso, era uma ordem fundada no amor, e como tal nada melhor do que promessas ritualizadas para a afirmação de que esse laço essencialmente amoroso entre o rei e a comunidade continuava vigente. Nessa comunidade onde as partes se encontravam ligadas por um compromisso moral, a promessa feita no de curso do ritual festivo era sem dúvida a forma mais adequada de manifestar a fidelidade a esses princípios fundadores, os quais não estavam registados em 36 Vejam-se as considerações de Paul Veyne a respeito deste ponto, em “Propagande expression roi, image idole Oracle”, in: UHomme, 114, XXX(2):7-26, 1990.
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nenhum ordenam ento escrito nem em nenhum contrato social, mas sim no coração dos homens.37 5. Até este ponto fizemos apenas referência a dois aspectos da complexa comunicação que tinha lugar durante as entradas solenes: de um lado, a Casa Real, que encarava as entradas como uma boa ocasião para publicitar a majes tade régia e para fomentar uma certa pacificação comunitária; do outro, a corporação urbana, a qual tirava partido da presença do monarca para repre sentar as suas expectativas e as suas reivindicações. No entanto, insistir ape nas nesses tópicos seria redutor, pois não tomaríamos em consideração outras importantes dimensões dessas cerimônias. No início deste texto sugerimos que um dos aspectos mais interessantes das entradas solenes é, precisamente, o diálogo que era encetado entre as diversas entidades que se cruzavam ao longo do cortejo. Vimos que a própria estrutura da entrada solene favorecia esses momentos de diálogo, e que a comunicação política, em semelhantes eventos, não era monopólio da Casa Real, bem pelo contrário, pois muitos dos que participavam nas entradas sa biam tirar partido de tais eventos, logrando expressar os seus pontos de vista por meio da linguagem cerimonial. Assim, as entradas solenes, à semelhança do que acontecia com outras co memorações promovidas pela Casa Real, não eram imunes a aproveitam en tos vários, antes de mais porque constituíam excelente ocasião para que os diversos intervenientes manifestassem publicam ente sua posição diante de qualquer aspecto da situação política do reino. Uma situação política marcada pela pulverização do poder, pela coexistência de diversos pólos de poder em concorrência, por múltiplas corporações dotadas de jurisdições próprias, mas tam bém por facções que competiam entre si de forma muitas vezes im piedo sa. Como não podia deixar de ser, sem elhante am biente de pulverização do poder político tinha de refletir-se nestas cerimônias, antes de mais nada no nível da ordem de precedências. Com efeito, nos preparativos para a entrada solene os cerimonialistas da Casa Real procuravam estabelecer, com todo o cuidado, a questão do acompanhamento do rei, pois era importantíssimo de finir quem tinha direito a estar mais próximo do monarca. Importa sublinhar que o tema da maior ou menor proximidade da pessoa régia não tinha apenas que ver com uma questão de honra ou de reputação. Ele estava diretam ente relacionado com um aspecto crucial do sistema político da época: a definição do grupo dirigente. As entradas solenes em que o monarca participava eram quase sempre pretexto para reflexões acerca da ordem hierárquica em que assentava a vida 37 Paolo Prodi. IIsacramento deipotere. IIgiuramentopolítico nelta storia costituzionaledell'Occidente. Bolonha: II Mulino, 1992.
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em comum. Em regra, quanto mais transcendente era o motivo que estava por detrás das entradas solenes, mais intensa acabava por ser a reflexão acer ca de tal hierarquia e da ordem de precedências dela decorrente, seguramen te por se tratar de um dos principais momentos em que os protagonistas do processo político se apresentavam “em espetáculo” — a expressão pertence a Pierre Bourdieu. Todo o investimento nas entradas solenes relacionava-se, assim, com o fato de estas cerimônias serem dotadas de um certo caráter “organizador” das relações comunitárias. “Organizador”, porque, como vi mos atrás, a imagética aí exibida obedecia a uma certa ordem, devia represen tar uma com unidade ordenada segundo certos princípios, punha a manifesto as razões e as crenças que mantinham unido aquele conjunto de pessoas.-’8 E para além de se tratar de uma cerimônia que falava das relações comunitárias e do seu significado, a entrada solene, por assentar numa estrutura de cortejo, desem penhava papel im portante no que respeita à taxinomia social, pois o posicionamento no cortejo refletia as diferenças de estatuto que vigoravam no seio dessa sociedade corporativa. Este era um aspecto verdadeiramente fundam ental para a sensibilidade coetânea, e a melhor prova disso é que nes ses eventos os participantes sempre se preocupavam muitíssimo com o lugar que iriam ocupar, medindo, com todo o rigor possível, a que distância iram estar em relação à pessoa do rei. Essa distância era, na verdade, crucial, pois tornava visível a posição de cada um nessa hierarquia estatutária, e casos hou ve em que alguns dignitários chegaram ao ponto de se recusarem a estar presentes na cerimônia, por acharem que o lugar que lhes tinha sido atribuí do não era condigno com o seu estatuto social. Ainda a respeito da ordem e das posições no cortejo, importa não esquecer que a ressonância desses eventos era disseminada pelas descrições impressas que sem pre surgiam após cada festividade, nas quais qualquer leitor podia encontrar uma descrição completa e detalhada do que ocorrera, bem como dos lugares e das posições assumidas pelos intervenientes. Este aspecto, como se pode calcular, tornava ainda mais dramática a luta por aparecer numa posi ção condigna. As descrições impressas das entradas solenes de um rei ou de uma rainha revestiam-se, assim, de grande importância, sobretudo para os titulares eclesiásticos e da nobreza, porquanto serviam de indicador e de refe rência para aferir o posicionamento de cada dignitário na escala hierárquica comunitária. Tais descrições eram tam bém muito importantes para os mestres-de-cerimônias, pois, quando estes se debatiam com alguma dúvida relati va a precedências, costumavam consultar a relação impressa de uma das en tradas solenes anteriorm ente celebradas, a fim de esclarecerem essa dúvida. Porque fixavam uma determinada ordem de precedências, as instruções 38 Edward Muir. R itual in Early Modem Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p. 5ss.
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relativas aos que seguiam próximo do rei envolviam, necessariamente, uma série de inclusões e de exclusões.39 No lugar de maior destaque, junto do monarca, encontravam-se, sempre, os oficiais maiores da Casa Real, bem como as principais figuras da nobreza do reino. E esta aparição “pública” do rei rodeado pela aristocracia de linhagem era muito significativa, pois constituía sinal claro de que o monarca continuava a privilegiar a principal nobreza — profana, mas também eclesiástica — para os principais cargos da república e também para as mais avultadas mercês.40 Excluído ficava, por conseguinte, um grupo enorme de vassalos, onde se incluíam, desde logo, os endinheira dos, os mercadores e os financeiros, os quais, não obstante o seu poderio monetário — e, até, o seu protagonismo no financiamento da Coroa — , aca bavam por não estar representados no grupo que seguia mais próximo da família real. Para o escrutínio público, tal exclusão da “gente da mercancia” demonstrava que o rei não contava com este tipo de homens para o seu servi ço de confiança, e significava, para além disso, que o monarca, no tocante ao recrutamento dos seus servidores, continuava a privilegiar o critério do nasci mento — nobre — em detrim ento da ascensão social por via do dinheiro. Significava, no fundo, que o rei privilegiava o critério da antiguidade em de trim ento da promoção social recente, até porque “em matéria de precedên cias”, afirmava o D uque de Aveiro na década de 1640, entre “as Dignidades qualificadas preponderão as mais antigas [,..].”41 É que, para a sensibilidade da época, a antiguidade significava confiança, segurança e lealdade sólida, ao passo que a ascensão recente, por meio do dinheiro, era sinônimo de fortuna, de incerteza e de instabilidade moral. O grupo dos juristas, os chamados “letrados”, eram objeto do mesmo tipo de exclusão. É certo que eles estão presentes em certos momentos das entra das régias, mas é muito significativo que o rei nunca se faça acompanhar, nos lugares mais próximos da sua pessoa, de juristas, mas sim, e em vez deles, de grandes figuras da nobreza. Tal opção constituía mais um sinal claro de que o grupo socioprofissional dos “letrados”, apesar de controlar muitos setores da administração da Coroa, continuava a ter de se subordinar à aristocracia e aos seus valores. No entanto, e apesar de tudo o que acabou de ser referido, os organizado res da cerimônia possuíam uma certa margem para levar a cabo pequenas alterações ao programa cerimonial, por exemplo mediante a seleção, entre os
39 N orbert Elias & John L. Scotson. The Established and the Outsiders. Londres: Sagc, 1994. 40 Cf. o im portante trabalho de N uno Gonçalo Monteiro acerca desta temática: “O «ethos» da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança. Algumas notas sobre a Casa e o Serviço ao Rei”, in: Revista de História das Ideias (Coimbra), 7^:383-402, 1997. 41 Representação do D uque de Aveiro a D. João IV (post. 1640), Biblioteca Geral da Univer sidade de Coimbra (BGUC), cód. 584, f. 143.
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membros da nobreza, dos que iriam surgir em posição de destaque e de maior dignidade, 0 11 seja, mais próximo do rei. Esta era a forma de publicitarem, ante o olhar dos “representantes” dos diversos corpos do reino, a situação de predomínio de um qualquer dignitário clerical ou da aristocracia, já que as posições assumidas pelos diversos participantes refletiam a concorrência en tre as várias facções nobiliárquicas, no momento em que tinha lugar a cele bração. Em alguns casos podia ser o próprio rei a tomar a iniciativa de operar pequenas mas significativas fugas ao guião preestabelecido da entrada sole ne, e uma deferência especial feita pelo monarca a um dignitário, por exem plo, era suficiente para desencadear um mundo de reações e de interpreta ções desencontradas. Efetivam ente, o modo como o rei costumava tratar os dignitários refletia “a mayoria, grandeza, e excellençia da pessoa”, tornando manifesta “a superioridade, que tem a outras Esta afirmação surge num parecer sobre cortesias de meados do século XVII, 0 qual explica, também, que era isso que fazia com que o rei “descubra a cabeça aos filhos dos Duques, o que não fas aos Condes porque a estes poem soo a mão no chapeo [,..]”.42 Podia ainda acontecer que a ordem cerimonial que era previamente anun ciada não fosse do agrado de alguns dos convocados, e tal costumava levar alguns dignitários a não participarem na solenidade. Como vimos, para esses dignitários era preferível faltar à chamada do que ocupar “publicam ente” uma posição que consideravam indigna do seu status. Para uma sensibilidade nobiliárquica tão vincada como a seiscentista, que tanto valor concedia a ques tões de honra e de privilégio, era intolerável participar em tal solenidade ocu pando um posto que não se considerava digno da sua posição. Além disso, não podemos esquecer que a insatisfação com o lugar que tinha sido atribuí do não era sentida apenas individualmente, podendo ser encarada como po tencial ameaça para o conjunto da ordem constitucional. Isso mesmo recorda o D uque de Aveiro, no decurso de uma amarga disputa de precedências com os demais duques, durante a segunda metade de Seiscentos. Nessa ocasião 0 D uque de Aveiro declarou ao rei que 0 desrespeito pela sua dignidade seria uma “diform idade”, e que, a acontecer, seria uma “monstruozidade turbatica da ordem estabeleçida, tanto em a Monarchia ecclesiastica como em a secu lar [,..]” .43 Não é de excluir, portanto, que uma parte dos intervenientes não se conformasse com o lugar ou “papel” que lhe tinha sido atribuído, e, nessas circunstâncias, os rituais, em vez de desem penharem função integradora e pacificadora, podiam provocar, pelo contrário, a radicalização de conflitos ou de tensões até aí apenas latentes.
42 “Precedências entre os duques e os condes”, meados do século XVII, BNL, Pombalina, cód. 734, f. 124v. 43 Representação do D uque de Aveiro a D. João IV (post. 1640), Biblioteca Geral da Univer sidade dc Coimbra, cód. 584, f. 143.
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Por acréscimo, referimos atrás que o dispositivo alegórico evocado nas en tradas punha em cena uma visão da comunidade obviamente mais favorável ao grupo socialmente dominante, ou seja, a elite nobiliárquica e eclesiástica, a qual via reproduzida, desse modo, um ordenam ento que lhe assegurava, de forma exclusiva, um lugar proem inente junto do monarca. Perante isso, os grupos que, como vimos, não tinham acesso aos principais lugares de gover no poderiam mostrar-se avessos a participarem numa cerimônia que subli nhava uma situação que lhes era francamente desfavorável. Se tal aconteces se, o poder “pacificador” da entrada solene acabava também por se dissipar. Outra das formas de manifestar o desacordo com a cerimônia era a paródia. Na segunda m etade do século XVII Antônio Serrão de Crasto — figura des tacada da lisboeta Academia dos Singulares, poeta e autor de uma descrição da entrada da Rainha D. Maria Francisca de Sabóia em Lisboa (1666) — re digiu uma descrição satírica da entrada solene, em Coimbra, do reitor da universidade. Nessa sátira o brasão da câmara de Coimbra surgia com pleta m ente adulterado, os professores e os colegiais desfilavam no cortejo sem obedecerem a nenhum a ordem, as divisas e as mensagens trocadas não faziam nenhum sentido, e, por fim, os vários emblemas e epigramas apresentavam uma significação jocosa, tudo isso com a finalidade de ridicularizar o evento. Como resultado desse temerário gesto, e também porque era cristão-novo, Serrão de Crasto acabou por cair em desgraça, sendo até preso, corria o ano de 1672, sinal de que a paródia a uma entrada solene, numa época que tanto valor concedia a esses eventos, podia ser encarada como um gesto subversivo para os fundamentos em que assentava a vida comunitária.44 Tomar parte na cerimônia, por outro lado, não significava o acordo com a mensagem que era aí transmitida. Como tal, em ocasiões de dissensão políti ca as várias sensibilidades em presença como que se insinuavam por dentro da comemoração régia, e, socorrendo-se da abundância decorativa e da polissemia da linguagem alegórica que era normalmente mobilizada para esses eventos, conseguiam introduzir imagens — verbais e pictóricas — eivadas de reivindicações, de advertências ou até de ameaças. Como se vê, tocamos aqui num aspecto que nos lembra algo que começamos por referir no início desta apresentação: estas cerimônias constituíam um espaço comunicacional ex trem am ente complexo, uma vez que a possibilidade de comunicar, a possibi lidade de ter voz durante as entradas solenes não era exclusiva dos promoto res do evento. Na verdade, os participantes conseguiam quase sempre emitir mensagens, muitas delas de caráter um tanto ambíguo, porque impregnadas quer por saudações e por declarações de fidelidade, quer por avisos, por ad vertências e até por reivindicações.
44 Antônio Serrão de Crasto. Os ratos da inquisição. Ed. por Camilo Castelo Branco. Porto: E. Chardron, 1883, p. 57.
ENTRADAS
SOLENES
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Assim, boa parte das entradas solenes realizadas no Portugal de Seiscentos constituíram grandiosas “trocas de recados” pluridirecionais e essencialmen te alegóricas, durante as quais muitos aproveitavam para enviar mensagens ao rei. Contudo, a comunicação não se ficava por aí, pois muitas dessas m en sagens podiam ter como destinatário um qualquer membro da Casa Real; noutros casos, era uma facção do grupo dirigente que constituía o alvo dessas “advertências”. 7'odavia, tal comunicação podia ainda assumir sentido mais horizontal, se um dignitário que se afirmara politicamente usasse a festa para publicitar a sua posição proeminente, ante o olhar dos demais protagonistas do processo político. Em 1619, escrevia uma testem unha da entrada solene de D. Filipe II em Lisboa, numa carta a um amigo, que “não posso passar em esquecim ento a soberba e M agestade com que o famozo Marquez de Vila Real deu assombro aos castelhanos, porque nunqua passeava na rua, ou fazia vizita com menos de 14 lacaios todos homens apessoados, calças e libré ne gras ao cortezam, espadas, e guarnições douradas [...], concluindo que o dito Marquês de Vila Real rivalizou até com o próprio monarca, pois nem El Rei saía com a magestade que elle [,..]”.45 Noutros casos, ainda, as diversas parcialidades aristocráticas digladiavamse entre si, envolvendo-se em verdadeiras batalhas alegóricas, nas quais as armas utilizadas eram emblemas ou imagens de significado engenhoso e ve lado, esforçando-se por declarar a sua supremacia de modo tão eloqüente quanto possível. Nesses combates alegóricos participavam ativamente as di versas academias que então existiam em Lisboa, às quais pertenciam, aliás, muitas das principais figuras da aristocracia e da elite eclesiástica daqueles anos.46 Os círculos acadêmicos eram desse modo mobilizados pelas diversas facções cortesãs, produzindo programas alegóricos que louvavam as virtudes de cada um dos chefes dessas parcialidades. Como se pode facilmente constatar, também no nível do cerimonial con cebido para as entradas solenes é notória uma situação de interdependência entre o rei e os diversos corpos que então compunham o reino: o rei necessitava da presença dos corpos do reino, para que essas festas fossem participadas, e para que o seu potencial legitimador se concretizasse, até porque sem a comparência dos representantes dos diversos grupos sociais, essas solenidades dei xavam pura e simplesmente de ter razão para existir. Os representantes do reino, por seu turno, utilizavam os recursos da monarquia para se afirmarem politicamente, e as festas em honra do rei não escapavam a esse aproveita 45 BNL, cód. 589, f. 60. 4,1 Cf. Sebastião da Fonseca Paiva. Applausos Festivos, E So/emnes Trivmphos com que os Heroes Portuguezes celebrarão ofeliz Casamento dos Dous Monarchas D. Affonso VI e D. M aria Francisca Isabel de Saboya Reys Felicíssimos de Portugal [...] (Lisboa: Antonio Craesbeeck de Mello, 1667); cf. Angela Barreto Xavier & Pedro Cardim. “Reddit quod Recipit. Imagens das festas de casamento de Afonso VI”, in: Festas que sefizeram [...], cit., 1996, p. 29ss.
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mento, bem pelo contrário, pois no decurso das entradas solenes acabavam quase sempre por surgir imagens e gestos verdadeiramente reivindicativos. 6. Os europeus levaram para a colônia brasileira a sua linguagem cerimo nial, uma linguagem necessariamente muito diferente da que fora desen volvida pelas populações autóctones. E à semelhança do que sucedera em outros territórios não europeus, tal situação gerou não só problemas de com u nicação mas também bastantes conflitos, os quais culminaram na repressão de formas cerimoniais autóctones e na imposição de uma série de festas oriun das da tradição cerimonial européia.47 No que respeita ao gênero de evento que aqui nos interessa, importa refe rir que a introdução da cerimônia da entrada solene na América do Sul aca bou por ser paralela à imposição do modelo comunitário europeu, ou seja, à imposição de um conceito de comunidade totalm ente estranho ao mundo sul-americano.48 Na verdade, um dos aspectos mais marcantes da colonização portuguesa em terras brasileiras foi o estabelecimento de uma estrutura co munitária fortem ente hierarquizada e discriminatória, com laços de submis são claramente definidos e com diferenças estatutárias muito acentuadas. Para além de ter ditado a exclusão de boa parte da população nativa e africana, esse modelo comunitário instaurou um sistema político que relegava as auto ridades brasileiras para uma posição de subordinação em relação à metrópole, e as entradas solenes que assinalavam a chegada do representante da Casa Real de Lisboa refletiam, necessariamente, essa subordinação. De uma for ma alegórica, tais cerimônias declaravam às entidades governativas brasilei ras que lhes estava vedado o acesso a níveis superiores de jurisdição e de comando, e que o seu papel era, e deveria continuar a ser, de subalternização em relação à metrópole.49 Por fim, o ritual apresentava o domínio de Portugal sobre o Brasil como algo de natural e inscrito nos planos da divindade, contri buindo, dessa forma, para tornar duradoura essa situação. Por outro lado, nas entradas realizadas em terras brasileiras é possível des cortinar a mesma dialética entre poderes concorrentes: de um lado, a Corte
47 Cf. com Inga C lendinnen. “«Fierce and unnatural cruelty»: Cortés and the conquest of Mexico”, in: Representations, 33:65-100, 1991; cf. tam bém James W. Fernandez. “Fang representations under acculturation”, in: P. Curtin. (org.). Africa and the West: Intellectual responses to European cu/ture. Madison, 1972, p. 43ss. 48 Stuart B. Schwartz. Sugar Plantations in the Formation o f Brazi/ian Society. Bahia, 1550-1835. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p. 243ss.; vide, também, dc Ronaldo Vainfas. Trópico dos pecados. Moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 32ss. 49 Este estatuto politicamente subalterno do Brasil tem um paralelo no que Laura de Mello e Souza designou de “infernalização da colônia”, em Laura de Mello e Souza. O diabo e a terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no B rasil colonial. São Paulo: Com pa nhia das Letras, 1986.
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de Lisboa, como centro político, e do outro as entidades políticas que opera vam num conjunto de territórios que se encontravam sob a alçada do rei de Portugal. Assim, a entrada solene assinalava a chegada do representante de um poder exterior, detentor de uma jurisdição preem inente sobre as auto ridades locais, as quais eram detentoras de um certo poder jurisdicional e, sobretudo, de um poder muito efetivo sobre essas vastas terras. Como não podia deixar de ser, tal situação gerava o mesmo tipo de diálogo e de concor rência entre os diversos poderes em presença. Da parte do enviado da Corte, a entrada visava apresentar essa figura que falava em nome do rei de Portu gal, e reivindicar, para ela, uma posição cimeira no am biente colonial brasilei ro. Para as entidades políticas autóctones — como era o caso das câmaras municipais das principais cidades, do oficialato autóctone, dos comerciantes, dos “senhores de engenho” e dos clérigos locais —, as entradas constituíam boa oportunidade para apresentarem as suas pretensões políticas e para ma nifestarem as suas reivindicações, a saber: o seu em penho em preservarem, incólume, o seu espaço de intervenção e, eventualm ente, em incrementa rem a sua autonomia em relação a Lisboa.50 Com efeito, no decurso desses eventos as entidades políticas brasileiras tinham a oportunidade de declarar — por vezes sutilm ente, noutros casos de forma bem aberta — que estavam cada vez menos dispostas a ver as suas competências cerceadas por uma au toridade exterior e estranha aos arranjos políticos locais. Como se pode constatar, e à semelhança do que sucedia em Lisboa, as cerimônias realizadas nesses territórios austrais proporcionavam aos diversos poderes em presença a oportunidade de manifestar as suas expectativas e, até, de contestar a situação de subalternidade política em que se encontra vam. E o fato de o monarca português, durante os séculos XVI e XVII, jamais ter visitado a colônia sul-americana, constitui um sinal claro de que a Corte de Lisboa encarava tais territórios como entidades políticas desprovidas de direitos, ou pelo menos detentoras de uma dignidade política diminuta, ao ponto de o rei nunca ter sentido necessidade de se deslocar até essas para gens para declarar a sua vontade em respeitar os direitos brasileiros. Ao longo deste texto referimos que a opção régia por visitar apenas algumas cidades, e por nunca se ter deslocado a outras, tinha implicações políticas muito sérias. Com efeito, a visita régia era encarada como um gesto de reconhecimento do rei, de que nessa cidade e na região onde ela estava instalada existiam entida des que desem penhavam funções governativas, e que tinham, por isso, o direito a serem respeitadas. Ao decidir não visitar nenhum a cidade brasileira,
50 João Adolfo Hansen. A sátira e o engenho. Gregário de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Com panhia das Letras, 1984, p. 115ss.; vide também Rodrigo Bentes Monteiro. 0 rei no espelho. A monarquia portuguesa e a colonização da América, 1640-1720. T ese dc doutoram ento. São Paulo: Universidade de São Paulo, “Entre Festas e M otins”, p. 248ss.
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pelo contrário, o monarca relegava esse território para um plano secundário. Tal gesto tornava manifesto que o rei não sentia necessidade de ver as cida des do Brasil, significava que a realeza achava que esse território era indigno de ser visto, e considerava que as suas autoridades urbanas não eram sufi cientem ente preem inentes para terem o privilégio de avistar e de saudar o monarca. Dessa forma simbólica, recusava-se aos vassalos brasileiros a opor tunidade de comunicarem com o seu rei em terras austrais, e reiterava-se o seu papel secundário no processo político da metrópole. No mundo do Antigo Regime, por conseguinte, a presença do rei numa cidade tinha o condão de acelerar a dinâmica política e de incrementar o potencial político das corporações urbanas. “A ausência” — pelo contrário — “causa olvido”, dizia-se então.51 No fundo, a ausência do rei era como que a expressão simbólica da subalternização a que as autoridades portuguesas ti nham votado os territórios brasileiros, uma subalternização política, como vi mos, mas também econômica, comercial, financeira e até, de certo modo, intelectual.52 E não deixa de ser significativo que a única viagem que um rei de Portugal realizou ao Brasil acabasse por acontecer na véspera da definitiva separação política entre esses dois povos. □ □□ P e d r o C a r d i m (L isb o a, 1967), professo r d e H istó ria C u ltu ra l e P o lític a (sé c u los XV a X V III) do D e p a rta m e n to d e H istó ria da U n iv e rsid a d e N o v a d e L isb o a. T e m p u b lic a d o vários artigos e livros acerca da cu ltu ra p o lítica no P o rtu g a l dos sécu lo s X V I e X V II, e n tre ele s o livro Festas que se F izeram Pelo Casamento do R ei D . A fonso VI (L isb o a: Q u e tz a l, 1996), em co-autoria com F e rn a n d o B ouza & A n g ela X avier. R E s u m o . E s te te x to in c id e so b re as im plicaçõ es políticas das e n tra d a s rég ias rea li zadas em P o rtu g a l e no Brasil colonial d u ra n te a ép o c a m o d e rn a . O p rim e iro a sp e c to co n sid erad o é o p ap e l d e s e m p e n h a d o p elo m e stre -d e -c e rim ô n ia s. D e se g u id a, a n a li sam os a im a g ética e x ib id a d u ra n te tais e v e n to s festivos, e d e d ic a m o s a te n ç ã o e s p e cial às m e táfo ras do am or, da religião e da ju stiça. U m dos asp ec to s m ais su b lin h a d o s é o fato d e o ritual da e n tra d a so le n e - e as p ro m essas feitas n essa ocasião festiv a — se re v e stire m d e e n o rm e im p o rtân cia, n u m a ép o c a em q u e os laços m ais fu n d a m e n tais e n tre o rei e os vassalos eram e s s e n c ia lm e n te m orais e p ré-ju ríd ico s. C o m o tal, d e d ica m o s u m a esp ec ial aten ç ão ao c o n trib u to d esses ritu ais para a re p ro d u ç ã o dos laços co m u n itá rio s, e, para além d e sse asp ecto , analisam o s ta m b é m a articu lação e n tre as e n tra d a s so le n e s e a id e n tifica çã o do g ru p o d o m in a n te . N o final, são lan çad as alg u m as h ip ó te se s in te rp re ta tiv a s re sp e ita n te s às e n tra d a s so le n es q u e os re p r e s e n ta n te s da C asa R eal p o rtu g u e sa realizaram em cid a d e s do Brasil colonial.
51 “Carta que se mandou a um amigo acerca das festas de Filipe I I ...”, BNL, cód. 589 f. 60v. 52 Stuart B. Schwartz. “T h e formation of a colonial identity in Brazil”, in: N. Canny & A. Pagden (orgs.). Colonial Identity in the Atlantic World, 1500-1800. Princeton: Princeton University Press, 1989, p. 32ss.
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ENTRE FESTAS E MOTINS: AFIRMAÇÃO DO PODER RÉGIO BRAGANTINO NA AMÉRICA PORTUGUESA (1690-1763)1 Ro d r i g o B e n t e s M o n t e i r o
GUERRA
E REVOLTA
N o A n t i g o R e g i m e , a ausência de um rei provocava repercussões no cenário político mundial. Ao iniciar-se o século XVIII, terminava na Espanha o reinado do último Habsburgo, Carlos II, que representava a ruína do pode rio desse reino. Ainda o rei moribundo, as potências estrangeiras apressavamse em organizar a partilha da outrora mais poderosa monarquia do mundo. O testam ento de Carlos II legava ao neto de Luís XIV, Filipe, o Duque d ’Anjou, todos os domínios da coroa espanhola. No entanto, para as “potências maríti mas” — Inglaterra e Províncias Unidas — reconhecer Filipe d ’Anjou como rei significava ratificar a hegemonia francesa no continente, beneficiando-a com o império castelhano. Propunham então a candidatura do arquiduque Carlos Habsburgo de Áustria. Com a morte do rei infeliz, estava montado o quadro para a Guerra de Sucessão da Espatiha (1701-1713).2
1 O texto e uma adaptação do último capítulo dc minha tese dc doutorado, O Rei no Espelho A Monarquia Portuguesa e a Colonização da América (1640-1720), apresentada ao D epartamen to dc História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH /U SP), São Paulo, 1998, p. 248-99, sob orientação da professora Laura de Mello e Souza. Algumas das discussões aqui referidas são mais bem fundamentadas em capítulos precedentes da tese. 2 A promoção do Arquiduque Carlos Habsburgo à herdeiro do Sacro Império em 1711 desa gradou às demais potências. Firmava-sc assim pelos tratados de Utrecht em 1713 e 1714 um novo equilíbrio. A dinastia Bourbon era reconhecida na Espanha, mas Filipe V renun ciava a qualquer direito à França. E a Inglaterra, reconhecendo Filipe Bourbon no trono, conseguia vantagens no império espanhol, sendo a grande vitoriosa do confronto. Fernando
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R O D R I G O BRNTKS M O N T E I R O
Portugal via-se em situação crítica. Por um lado, a “aliança inglesa” tinha raízes no casamento de Filipa de Lencastre com D. João I, confirmada em 1661 na união de Catarina da Bragança com Carlos II Stuart, momentos em que a independência portuguesa se encontrava ameaçada pela Espanha; a busca de proteção política acompanhada da concessão de favores comerciais ou de territórios ultramarinos. Conseguia-se assim preservar a autonomia, e a melhor parte — a partir do século XVII — de seus domínios no além-mar: o “Brasil”. Mas o “partido francês” era forte na Corte, após os casamentos dc D. Maria Francisca de Sabóia com D. Afonso VI e com D. Pedro. O governo de D. Pedro II hesitava, terminando por ceder à aliança inglesa, preservando assim os territórios no Ultramar das investidas inglesas ou holandesas. O tra tado de aliança negociado por John M ethuen em maio de 1703 acertava as cooperações militares. Em dezembro, seria firmado pelo mesmo negociante o tratado comercial, símbolo da dependência lusa para com a Inglaterra. A adesão de Portugal à guerra implicou um grande dispêndio de forças, com reflexos no Reino e nas conquistas ultramarinas. Nas cidades de Lisboa (1709-1710), Abrantes (1708) e Viseu (1710) ocorreram motins. O peso da guerra, somado à desorganização das finanças do Estado, provocava atraso do pagamento aos fornecedores do exército e soldados, que muitas vezes pro moviam insubordinações. A população se queixava do alojamento forçado das tropas, problemas de abastecimento e transportes.3 Na América portu guesa, além das invasões francesas no Rio de Janeiro em 1710 e 1711, o pe ríodo foi pródigo em conflitos sociais. Nos chamados “motins do M aneta”, em Salvador, 1711, a passagem do cargo de governador-geral favoreceu o tu multo, quando negociantes manifestaram-se contra a taxação sobre os escra vos da Costa da Mina e de Angola, e a população gritava pelo aum ento do preço do sal. Em outubro, os revoltosos destruíram as casas de três comer ciantes. O novo governador Pedro de Vasconcelos voltava atrás no aum ento dos tributos, concedendo perdão aos rebeldes. Mas outro motim se repetiria, pretextando a formação de uma esquadra que socorresse o Rio de Janeiro ocupado por Duguay-Trouin. Com a partida dos franceses o movimento per deu o sentido, e Pedro de Vasconcelos puniu os envolvidos no segundo mo tim com o degredo dos três chefes para a África.4
Novais. Portugale B rasil na crise do Antigo Sistema Colonial. São Paulo: H ucitec, 1983, p. 1756. Cf. tam bém Damião Peres. História de Portugal. Barcelos: Portucalense, 1984, v. VI, p. 134-78. 3 Luís Ferrand de Almeida. “Motins populares no tem po dc D. João V”, in: Revista de Histó ria das Ideias. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1984, v. 6, p. 321-43, c “Os motins de Abrantes e Viseu (1708 e 1710)”, in: Revista Portuguesa de História. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1985, t. XXII, p. 137-48. 4 Laura dc Mello e Souza. M otins, revoltas e revoluções na América portuguesa — séculos XVIIXVIII. São Paulo, 1995 (texto cedido à Unesco, mimeo), p. 27-31.
E N T R E FESTAS E M O T I N S
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A punição severa era reveladora de como os governantes tentavam “acer tar a mão” no castigo ou na concessão do perdão, nem sempre em consonân cia com o Reino.5 A busca da “medida” no lidar com as sublevações aparece ria também na Guerra dos Mascates em Pernambuco, largamente influenciada pela Guerra de Sucessão. Mas é sobre outro espaço social na América portu guesa que concentramos nossas atenções no momento. A descoberta de ouro pelos sertanistas de São Paulo no final do século XVII possibilitaria o surgi mento de uma nova região no interior, o sonho do reino europeu na época mercantilista. Mas até que este espaço fosse “regido” pela Coroa, vários mo mentos sociais seriam nele vividos. A formação da região das minas pode ser caracterizada pela aventura, pelos conflitos e rebeliões. Tempo de aventura. Além dos paulistas, as minas atraíram uma quantidade enorme de pessoas. Do sertão do rio São Francisco vinham negociantes de gado, da Bahia, comer ciantes de escravos. Mas vinham sobretudo novos mineradores em potencial, de outras regiões e do próprio Portugal, para concorrerem com os paulistas nas minas e na administração. O conflito que se anunciava reproduzia o aconte cido em Pernambuco, pelo antagonismo existente entre pioneiros paulistas e comerciantes forasteiros. Em abril de 1700, a câmara de São Paulo enviara a D. Pedro II um memo rial solicitando que só fossem concedidas datas de terras nas minas aos morado res das vilas de São Paulo e suas vizinhas, “os descobridores e conquistadores das ditas minas, a custa e gasto de sua fazenda sem dispêndio da fazenda real” . A linguagem era idêntica à utilizada pela câmara de Olinda no conflito com os mascates do Recife. Mas a pretensão paulistana era impossível de ser atendida. Em pouco tempo, os forasteiros já eram maioria.6 Entre eles, ia-se destacando Pascoal da Silva Guimarães, ex-caixeiro no Rio que se tornara comerciante nas Minas, aliado de outros, como M anuel N unes Viana, comer ciante de gado e mercadorias. Esses homens destacavam-se pelos recursos de que dispunham, utilizados especialmente nas técnicas de mineração. T
e m p o
d e
c o n f l i t o s
Vários teriam sido os fatores que haviam contribuído para a guerra, como o antagonismo entre N unes Viana e Manuel Borba Gato, ou a arrematação do contrato dos cortes de carne para as Minas em 1707. A partir de um duelo
5 Para o Conselho Ultramarino, o governador devia ter castigado com o enforcamento no primeiro motim, c não no segundo. Mandava-se assim um novo governador, c a Coroa mais uma vez capitulava diante da rebelião, ordenando que se transportasse livrem ente o sal. Ibidem . 6 Odilon Nogueira de Mattos. “A Guerra dos Emboabas”, in: Sérgio Buarque de Holanda (org.). História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel, 1985, v. 1, p. 297-8.
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RODRIGO
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entre membros das duas facções, a briga se generalizou, e N unes Viana foi aclamado governador das Minas pelos forasteiros. O governador do Rio de Janeiro, D. Fernando de Lencastre, dirigia-se para Congonhas a encontrar-se com N unes Viana em busca de acordo, sem sucesso. N unes Viana já nomea va autoridades controlando a administração local, enquanto o sucessor no governo da capitania, Antônio de Albuquerque Coelho, dirigia-se para a re gião em agosto de 1709, a fim de obter a submissão do potentado, que se retirava para as suas fazendas do São Francisco. Os paulistas, no entanto, estavam decididos à vingança, e o conflito ainda se prolongaria por oito dias, sem ter a vitória definida. Como na Guerra dos Mascates, este movimento apresentava um apego dos potentados locais à escolha de autoridades administrativas afinadas com os interesses regionais, em contraposição ao governo da Coroa. Podemos obser var ainda a construção de uma tradição — a do bandeirismo paulista — como justificativa para o pleito de determinadas condições de governo, como em Pernambuco. A resposta da Coroa diante do movimento seria definida pela anistia concedida aos participantes, excetuando-se os cabeças M anuel N u nes Viana e Bento do Amaral Coutinho, exilados das Minas. Mas na carta de D. João V a Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, em agosto de 1709, o rei recomendava agir com prudência: “[...] que sempre será mais seguro o recorrer aos meios brandos e suaves para se em endarem e moderarem estes movimentos entre uns e outros vassalos do que dos rigorosos de que podem nascer algumas perturbações, que não tenham depois fácil composição”.7 Segundo Evaldo Cabral de Mello, o Conselho Ultramarino teria sido mais enérgico em Pernambuco do que nas Minas, não somente pela dificuldade de acesso às Minas quando comparadas a Olinda ou a Recife, mas pelo fato de na Guerra dos Etuboabas não ter ocorrido sedição contra a autoridade da Coroa.8 Com efeito, o ocorrido em Pernambuco teria sido mais grave no sentido do desafio à autoridade régia. Mas as diferentes “respostas” da Coroa aos dois movimentos devem levar em conta as variações regionais e suas relações com o poder soberano. N a sedição da nobreza pernambucana, a moral da história consistiu no perdão régio, acompanhado da bipartição do núcleo urbano entre Olinda e Recife. Nas Minas também perdoou-se o conflito, e as instruções da Coroa recomendavam a brandura, reconhecendo de modo insuficiente os paulistas como os seus primeiros povoadores. Mas a criação da capitania de São Paulo e Minas do Ouro, a elevação da vila de São Paulo a cidade, e nota-
7 “Carta dc D. João V a Antônio dc A lbuquerque Coelho de Carvalho sobre a Guerra dos Em boabas”, 22/8/1709, Documentos interessantes para a história e costumes de São Pauto (DIHCSP), v. 47. São Paulo: Tipografia Aurora, p. 62-5. 8 Evaldo Cabral dc Mello. A fronda dos mazombos. São Paulo: Com panhia das Letras, 1995, p. 317.
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dam cnte a intensa ação urbanizadora nas Minas iniciada por Albuquerque Coelho após o conflito, comprovavam a importância dessa região em forma ção para o domínio português, e de maneira alguma podem ser associadas a falta de energia.9 Estas medidas já estavam previstas na carta que designava o governador para a nova capitania. De acordo com Mello e Souza, este docu mento reflete a relação entre o estabelecimento da justiça, da administração e a fundação das cidades, retratando ainda o “sistema de prêmio e recompensa” utilizado pelo Estado no seu trabalho de consolidação do poder.10 Pela criação de um sistema de clientela entre colonos e autoridades, a Coroa cooptava os de espírito aventureiro para a sua ordem, impondo o poder régio no seu topo, à medida que Albuquerque Coelho contemporizava com os revoltosos. TEMPO
DE
URBANIZAÇÃO
O novo governador da capitania fundava Vila do Ribeirão de Nossa Senho ra do Carmo, Vila Rica de Albuquerque e Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará em 1711. Seu sucessor D. Brás Baltasar da Silveira seria o responsável por São João del-Rei em 1713, Vila Nova da Rainha e Vila do Príncipe em 1714 e Nossa Senhora da Piedade do Pitangui em 1715. Por sua vez, o Conde de Assumar fundaria São José del-Rei em 1718." As idéias de Sérgio Buarque de Holanda encontraram no traçado irregular das ruas das cidades mineradoras a tradução para a sua lógica da colonização portuguesa na América. A silhueta urbana enlaçada com a linha da paisagem aparentava um certo “desleixo” que expressava o interesse mercantil, em contraposição à obsessão pela ordem característica da colonização castelhana.12 Mas a ação do semeador português nas ruas e casas tortas das vilas não significava apenas a fragilidade de um poder na América. O traçado tortuoso seria revelador de outra estratégia, percebida no jogo das relações sociais entre a Coroa e seus súditos coloniais: acomodação de situações, contemporizações, perdão. Es tratégias utilizadas como elementos de afirmação da autoridade régia, cooptando potentados locais. Tal como a cidade lusitana colonial, por entre mon tanhas e vales.
’ “Carta Régia criando a Capitania de S. Paulo e Minas do Ouro e nomeando governador da mesma a Antônio dc A lbuquerque Coelho de Carvalho”, 9/11/1709, DIHCSP, v. 47, p. 65 c ss, c “Carta dc Antônio dc A lbuquerque Coelho dc Carvalho a D. João V sobre o requeri mento da Câmara dc S. Paulo para que fossem restituídas aos paulistas as terras das minas de que haviam sido expulsos pelos Em boabas”, 26/4/1712, ibidem, p. 80-2. 10 Mello e Souza. Desclassificados do ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 103. 11 Diogo de Vasconcelos. História antiga de M inas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, v. 2, p. 97-101. n Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986, p.61-100.
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RODRIGO BENTES MON TE IRO
TEMPO
DE
REBELIÕES
Tratava-se de im plem entar um sistema eficaz de tributação do ouro. O novo governador D. Pedro de Almeida Portugal, Conde de Assumar, chegava no final de 1717 e já trazia instruções para encaminhar a cobrança do quinto real mediante a criação de casas de fundição. A nova lei era decretada em fevereiro de 1719, o conde anunciando que as várias fundições seriam abertas em julho do ano seguinte.13 Então, no mês de junho, em Vila Rica grupos de homens mascarados começaram a depredar residências, gritando que o go vernador não abrisse as casas de fundição, violência repetida por vários dias. Os desordeiros dirigiram-se a Ribeirão do Carmo, entregando ao conde uma lista de reivindicações, das quais as principais eram a desistência das fundi ções e a concessão de um perdão régio ao movimento. Enquanto parecia con cordar com os pedidos, o conde-governador informava-se acerca dos envolvi dos no levante. Eram eles vários potentados, entre os quais Pascoal da Silva Guimarães e M anuel N unes Viana. Algumas semanas depois o conde prendia os chefes da rebelião, ocupando Ouro Preto com 1.500 homens, ao que parece ateando fogo no morro em que Pascoal da Silva minerava e mandando executar sem julgam ento formal o tropeiro Filipe dos Santos, apaniguado de Pascoal da Silva, ambos portugue ses. Essas duas últimas ações são bastante controvertidas historicamente, so bretudo a forma de suplício do tropeiro, pois a personagem de Filipe dos Santos viria a ser heroicizada, considerada precursora de outro mito nacional, o Tiradentes, como mártires na luta pela independência do Brasil.14 A destruição total por incêndio do morro do Ouro Podre de Pascoal da Silva em noite de vento (ele teria sido levado preso para Lisboa, de onde moveria processo contra o conde), bem como o esquartejam ento do corpo de Filipe dos Santos por quatro cavalos bravios (ele foi enforcado, talvez depois esquartejado, mas não dessa forma), são provavelmente idéias sem funda mento visando caracterizar o despotismo do conde e o clima aterrorizador vivido pelas Minas durante o seu governo. Mas as invenções historiográficas acerca do levante de 1720 podem ter no presente valor de símbolo. Pois pre tendiam denunciar uma situação de tirania pela execução sem julgam ento — o que de fato aconteceu — caricaturando dessa forma o abuso de poder nas ações ferozes do Conde de Assumar. Desse modo as alterações do evento de
13 Charles Boxer. A idade de ouro do Brasil. São Paulo: Nacional, 1969, p. 211-3. 14 Mello e Souza (org.). “Estudo crítico”, in: Discurso histórico epolítico sobre a sublevação que nas M inas houve no ano de 1720. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994, p. 13-25. Cf. também Feu de Carvalho. Ementário de história mineira — Filipe dos Santos Freire na sedição de Vila Rica em 1720. Belo Horizonte: Edições Históricas, s.d., e Diogo de Vasconcelos, op. cit.
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1720, ocorridas no século XIX, definiam para os rebeldes as punições — mesmo que consideradas injustas — próprias dos crimes de lesa-majestade no Antigo Regime, na contramão dos argumentos que enalteciam os revolto sos como líderes nacionais: fogo e suplício, destruição do corpo do acusado, espetáculo ritual.15 Ao que parece, o acontecido em 1720 foi um motim antifiscal. Mas muito tem po antes das deturpações do Instituto Histórico, o “tom ” sedicioso — até mesmo republicano e de crime de lesa-majestade — já era atribuído ao movi m ento de 1720, no próprio discurso produzido pelo Conde de Assumar junta m ente com dois padres jesuítas, como justificativa para seus atos nas Minas diante da Coroa portuguesa. Não há necessidade de enveredarmos pelo ca minho da discussão sobre a autoria do Discurso Histórico e Político Sobre a Sublevação que nas Minas Houve no Ano de 1720, questão já esclarecida por Laura de Mello e Souza. Destacamos apenas um aspecto, referente às relações dos vassalos ultramarinos com seu soberano. Para o Conde de Assumar, diferen tem ente do que havia sido até então a prática da monarquia portuguesa, a tônica da definição do poder do Rei nesta nova conquista ultramarina seria definida pelo castigo, não mais pelo perdão, castigo caracterizado pela quei ma do morro de Pascoal da Silva e pela execução de Filipe dos Santos. A segunda parte do documento legitima a punição imposta pelo conde em razão de os revoltosos planejarem a expulsão do governador e de outros fun cionários régios, além da fundação de uma república, argumentos falaciosos. A violência constante e os vários motins nas Minas foram atribuídos à falta de castigos impostos pelo rei. Inicia-se então no texto uma relação entre a apli cação do castigo e o “crédito de Sua M ajestade”, uma vez que deve ser papel do príncipe punir a rebelião.16 Definiam-se assim as relações perigosas entre o rei, os vassalos das Minas e os potentados locais, pela ausência de “reputação” do soberano na região. Reputação que segundo Botero — como citado no documento — incidiria no “reputado” (o rei) como uma ação passiva, ativa na parte dos reputantes (os vassalos) composta de temor e de amor pelo príncipe. No Discurso..., discor dava-se em parte desses argumentos, ao defender-se que tanto os soberanos quanto os súditos concorriam para a reputação dos primeiros, e que na busca
15 O esquartejam ento do corpo pela força de quatro cavalos foi aplicado nos casos dos assassi nos dos reis dc França, H enrique III c H enrique IV, em 1589 e em 1610. Em Portugal, não temos informações sobre penas tão brutais antes das reformas pombalinas e a conseqüente ampliação da legislação referente ao crime de lesa-majestade — estendida então aos minis tros do rei — , que culminaria no espetáculo dc execução dos Távoras em 1759, acusados dc tramar contra a vida de D. José I. Cf. Robert M uchembled. Le temps dessupp/ices. Paris: Armand Colin, 1992, e Pierrc Chevallicr. Les régtcides. Paris: Fayard, 1989. Cf. também K cnneth Maxwell. Marquês de Pombal, paradoxo do iluminismo, op. cit., p. 69-117. 16 Discurso..., op. cit., p. 146.
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de sua fama o príncipe deveria podar o que fosse “supérfluo e indigno” nos seus vassalos: os atrevimentos, as desobediências, as rebeldias. Enfatizava-se desse modo, o recurso ao temor — mais do que ao amor — para a construção da reputação principesca, pois: “[...] não há de estranhar que ignorem os mineiros que há rei que domine este país, onde nunca foi visto o seu raio [...] que com a espada na bainha não é possível sujeitar ao mundo, que só se pode governar com a torrente do sangue humano, concluindo que o príncipe que quiser reinar estabele ça, autorize e faça que à custa do sangue dos vassalos se guardem as suas leis [...] porque se não punir as maldades, não é príncipe em realidade, é uma representação e sombra de príncipe. Pois é certo que o decoro real nem se vincula ao cetro, nem se anexa à Coroa, avulta sim nos golpes do m ontante, no estrondo das artilharias, no tropel dos cavalos, e na multidão dos infantes, porque só onde se lhe tem em as forças é despótica a Sobe rania.” '7 Essa passagem alude à metáfora do sol como manifestação do poder régio, aspecto característico do reinado de D. João V. Contudo, o sol insinuado no Discurso... seria agressivo como um raio, similar a uma espada, e não propria m ente esplendoroso. O brilho régio sugerido no texto seria definido pela for ça das tropas militares, comparado ao despotismo, trecho em que percebe mos que o conde identificava-se com um perfil de monarquia que só surgiria em Portugal no reinado de D. José I. Se o soberano era comparado ao sol, os vassalos eram “como a flor gigante” que devia seguir seus movimentos.18 Contudo, por esta época o brilho do reinado de D. João V já começava a se manifestar, não propriamente da maneira advogada no Discurso... UM
SOL
DOURADO
No senso comum, o reinado de D. João V tornou-se famoso por suas ex centricidades. Rui Bebiano, em D. João V Poder e Espetáculo, realizaria um cotejam ento da historiografia portuguesa sobre esse soberano, tentando si tuar a personalidade régia como inserida num contexto mais amplo.19 Desse modo, se na primeira metade do século XIX encontramos trabalhos portu gueses comprometidos com o respeito à ordem monárquica, na segunda m e tade deste século ocorria uma depreciação deste rei, em consonância ao cres cimento do liberalismo político, associando a imagem joanina ao desperdício
17 Ibidem , p. 148. 18 Ibidem , p. 149 e 151. 19 Rui Bebiano. D. João V:poder e espetáculo. Aveiro: Livraria Estante, 1987.
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das riquezas das Minas.20 Já no quarto decênio do século XX, o recuo do liberalismo em favorecimento de um ideal autoritário e enaltecedor dos valo res nacionais encontraria na obra organizada por Damião Peres sua mais di fundida expressão. Associava-se, assim, o prestígio do rei e de sua corte à reputação da nação portuguesa no estrangeiro.21 N um tempo mais recente, há coleções de história portuguesa nas quais ainda apareceria a velha tendên cia de julgamento em relação a este rei.22 Mas, na tentativa de fugir das caricaturas, Bebiano recorreria a uma conhe cida clave interpretativa — a do barroco — que se por um lado seria capaz de ensejar um raciocínio adequado para o contexto, comportaria o risco de levar à generalização de situações ocorridas em diferentes espaços e momentos. Desse modo os reinados de Filipe IV e Filipe V de Espanha, Luís XIV de França, e a Corte de Roma após o Concilio de Trento teriam apenas pontos comuns com D. João V.2-’ Para uma percepção mais afinada da realeza joanina, devemos considerar os dois enfoques aqui apresentados: a personalidade pública do monarca, e o seu meio cultural e político. Vamos analisar esse meio, recortando a situação específica da monarquia de Portugal e de parte de seu império ultramarino. Deixaremos de lado muitos aspectos relevantes para a compreensão deste período, para que não se perca o fio condutor do trabalho, definido pela busca da compreensão do comportamento da realeza portuguesa diante de seus vassalos americanos, bem como da imagem projetada por ela nestas provín cias do Ultramar.24 Retornemos ao tempo da aclamação de D. João V, janeiro de 1707, quando o novo rei tinha dezessete anos de idade. A aclamação aconteceria sobre uma
20 Essa tendência foi tipificada por Oliveira Martins: “Foi com eles que D. João V, c todo o Reino, puderam entregar-se ao entusiasmo desvairado dessa ópera ao divino, em que des perdiçaram os tesouros americanos. [...] c D. João V, enfatuado, corrompeu, e gastou, per vertendo-se tam bém a si e dilapidando toda a riqueza da Nação. Tal foi o rei” . Oliveira Martins. História de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1988, p. 150. 21 O reinado dc D. João V cra entendido como uma “necessidade instante, uma afirmação de força, de poderio, sem o qual o Estado apareceria apagado, desprezível”. Angelo Ribeiro. “D. João V” , Damião Peres. Op. cit., p. 181-2. 22 Oliveira M arques afirma que esse reinado “[...] ficou famoso pela tendência do monarca em copiar Luís XIV e a corte francesa. O ouro do Brasil deu ao soberano e à maioria dos nobres a possibilidade de ostentarem opulência como nunca anteriorm ente. [...]. Como cm tantas cortes do século XVIII, a depravação moral ocupou lugar preponderante. O Rei — c com ele muitos nobres — gerou diversos filhos em freiras de diversos conventos, muitos dos quais se converteram em centro de prazer”. Oliveira Marques. História de Por tugal. Lisboa: Palas, 1985, v. II, p. 351. 23 Bebiano. Op. cit., p. 43-55. C f também José Antônio Maravall. La cultura dei barroco. Bar celona: Ariel, 1986. 24 D e acordo com as idéias de N orbert Elias. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, v. 2.
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ricamente decorada galeria de madeira construída no Terreiro do Paço, onde se colocavam as tropas. Muitos nobres também assistiam das janelas e dos balcões. Tapeçarias em homenagem a N uno Alvares Pereira, Nossa Senhora e São João conferiam uma impressão acolhedora ao interior do am biente feito como teatro.25 Seguiam-se então os elogios ao rei, discursos vários, dos quais destacamos as palavras do desembargador M anuel Lopes de Oliveira: “Dia também dos em que o Sol lá dessas altas esferas começa a voltar para este nosso hemisfério seu rosto e seus benéficos raios. E assim El-Rei nosso Se nhor, esplendíssimo Sol Oriente da nossa Lusitânia voltando para estes seus vassalos os raios da sua beneficência, queira aceitar os nossos obsequiosos rendim entos”.26 Embora essa aclamação conservasse elementos rituais da tradição monár quica portuguesa, ao menos uma novidade — além do maior luxo — tinha surgido. Os infantes D. Antônio, D. Manuel, ainda crianças e portanto deso brigados de prestar juram ento de fidelidade, foram no entanto constrangidos a fazê-lo, como o infante D. Francisco, irmão seguinte em idade ao novo rei. Tal disposição aludia ao fato de que, num tempo anterior, o próprio pai do novo rei usurpara o trono do irmão D. Afonso VI, ato este respaldado por pressão “popular”, e confirmado nas Cortes de 1668,1674,1677, 1679 e 1697, quando se legitimava finalmente a sucessão no futuro D. João V. Tratava-se assim, de fortalecer os instrumentos simbólicos de afirmação do poder, para que se evitassem situações análogas.27 Data justam ente dessa época o projeto de sagração do monarca, pondo em prática a antiga bula de Eugênio IV concedida ao Rei D. Duarte e sucessores. O núncio de Lisboa informava a Roma que o coroamento seria para bem cedo, e que o rei seria ungido, pois existiam nos arquivos régios documentos papais acordando este privilégio. Planejava-se, assim, uma situação de igualdade com França e Inglaterra. Contudo, Clemente XI em 1720 não concederia o direito de unção sobre a cabeça, limitando-se a acordar privilégios já concedidos aos 25 Auto do levantamento, e juram ento, que os grandes, títulos seculares, eclesiásticos, e mais pessoas, que se acharam presentes, fizeram ao muito alto e muito poderoso senhor E l-R ei D. João V Nosso Senhor... 11111101. Lisboa: Oficina dc Valentim da Costa Deslandes, 1707; Barbosa M acha do (org.). Autos de Cortes, e levantamentos ao trono dos sereníssimos príncipes, e reis de Portugal. s.n.t., t. II, p. 293-308. 26 Ibidem , p. 19. A comparação de D. João V com o sol já tinha aparecido no seu próprio “espelho”, escrito por Sebastião Pacheco Varela. Número vocal, exemplar, católico, epolítico, proposto no maior entre os santos o glorioso S. João Batista;para imitação do maior entre os príncipes o sereníssimo D. João V... Lisboa: Oficina dc Manoel Lopes Ferreira, 1702, p. 97-98. Esta metáfora não seria desenvolvida cm Portugal como cm França. Cf. o artigo — exagerado, em nosso ponto de vista — de Rui Bebiano. “D. João V, Rei-Sol”, in: Revista de História das Ideias. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade dc Coimbra, 1986, v. 8, p. 111-21. 27 Evocava-se neste aspecto ainda o ocorrido em 1385, quando os três estados nas Cortes preferiram a eleição do M estre dc Avis — D. João I — aos seus irmãos, não obstante sua menor legitimidade.
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reis de Portugal, permitindo que o patriarca de Lisboa presidisse a sagração. Frustrado em seus projetos, D. João V abstinha-se de realizar uma cerimônia na qual apareceria em plano inferior às outras cortes européias.28 O casamento de D. João V com D. Maria Ana de Áustria em 1708, irmã do Arquiduque Carlos, então pretendente ao trono espanhol, selava a opção por tuguesa na Guerra de Sucessão da Espanha, marcado por cerimônias esplendo rosas em Portugal e na Áustria desde o tempo de sua negociação, ainda com D. Pedro II. As festas de recepção em Lisboa foram preparadas durante um ano e meio, e duraram três dias, com o Terreiro do Paço ardendo em fogos de artifício.29 Seguiram-se as festas realizadas em Utrecht pela comemoração dos nascimentos dos príncipes D. Pedro (logo falecido) em 1713 e D. José em 1714, por intermédio da representação do Conde de Tarouca, embaixa dor português.30 Pouco depois, D. João V enviava o Conde de Ribeira Gran de como embaixador a Paris. Sua entrada pública seria outro momento de espetáculo grandiloqüente da monarquia lusitana, com moedas de ouro e prata com a efígie de D. João V sendo atiradas à população.-’1
28 O relato mais antigo da entronização dos reis de Portugal é de Rui de Pina (1440-1522), na aclamação de D. D uarte (1433-1438). A. Brásio concluía que D. D uarte se teria desinteres sado por qualquer cerimônia faustosa após o fracasso dc sua armada cm Tânger, em 1437. Uma cópia do cerimonial da sagração foi obtida em Londres na regência do infante D. Pedro (1438-1446), mas o interesse por este ritual só ressurgiria com D. João V. José Mattoso considerou A. Brásio dependente demais dos docum entos em sua versão de que a Coroa portuguesa não se interessava pela sagração. Cf. Bula que a instância de Eduardo Rei de Portugal lhe concedeu o Papa Eugênio 4 ° no ano de 1436 para ser ungido, e os mais reis de Portugal. Biblioteca Nacional, Lisboa (BNL). Reservados, 10, 1, 27; Antônio Brásio. “O problem a da sagração dos monarcas portugueses”, in: Anais da Academia Portuguesa de His tória, 1989, n.° 83, p. 34-43; e José Mattoso. “A coroação dos primeiros reis de Portugal”, in: A memória da Nação. Lisboa: Sá da Costa, p. 187-200. Ramalhosa Guerreiro observaria que docum entos da época da ascensão de D. João V empregavam “coroação” como sinônimo de “levantam ento” e de “aclamação”. O uso do termo seria abusivo, pois o ritual não in cluía a imposição da coroa, consagrada a Nossa Senhora da Conceição por D. João IV em 1646. Luís M anuel Ramalhosa Guerreiro. La représentation du pouvoir royalà l'âge baroque portugais (1687-1753). T h èse pour le doctorat en histoire sous la direction du Professeur Bernard Vincent. Paris: École des H autes Etudes en Sciences Sociales, 1995, v. 2, p. 9-65. 29 Relação dos artifícios dofogo, que sefazem no Terreiro do Paço, em obséquio dosfelicíssimos desposórios dos senhores D. João V e de D. M ariana de Áustria. Lisboa: Oficina de M anoel e José Lopes Ferreira, 1708. 30 Nicolas Chevallier. Relation desfêtes queson excellence Monseigneur le Comte de Tarouca a données au sujetdes naissances des deuxprinces de Portugal [...]. Utrecht: Chevallier, 1714; e Cópia de uma carta, que se escreveu de Utrecht a Lisboa, na qual [... ] os excelentíssimos senhores Conde de Tarouca & D. Luís da Cunha, plenipote/iciãrios del-Rei de Portugal no Congresso de Utrecht, cele braram o Augusto nascimento do Sereníssimo Príncipe do B rasil... Lisboa: Oficina dc Joseph Lopes Ferreira, 1713. 31 Inácio Barbosa Machado. Notícia da entrada pública quefe z na corte de Paris em 18 de agosto de 1715 o excelentíssimo senhor D. Luís M anuel da Câmara Conde da Ribeira Grande. Lisboa: Oficina de Joseph Lopes Ferreira, 1716. Ainda constituiriam eventos significativos para a demonstração do poder joanino no exterior, a embaixada enviada à China para o fortaleci
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Manifestações mais grandiosas aconteceriam em Roma, na campanha pro tagonizada pelo rei português para a criação do patriarcado de Lisboa. C ontu do o fator decisivo para a aceitação da vontade do rei português pela Santa Sé seria a participação das tropas lusas no M editerrâneo contra o avanço dos turcos no Peloponeso. D. João V enviava a pedido do papa uma esquadra de onze navios que se juntaria à armada veneziana, derrotando os turcos em Matapan, junho de 1716. A bula criando o patriarcado de Lisboa seria expe dida no mesmo ano, com nova enviatura de embaixada do soberano portu guês a Roma, para agradecer a bênção. Em 1717 o primeiro patriarca lisboeta, membro da alta nobreza portuguesa, fazia sua entrada pública na capital do Reino, cerimônia esta de duplo significado, religioso e político.'2 Todas essas representações eram muito superiores em elaboração e dispêndios de riquezas aos casamentos de D. Catarina de Bragança em 1661, D. Afon so VI em 1666 e D. Pedro II em 1687, quando a corte de Lisboa ainda era marcada por certa austeridade, envolvida em conflitos internos e externos que limitavam sua exposição. Uma relativa paz e uma demonstração mais enfática da Corte já tinham sido conseguidas no reinado de D. Pedro II, mas ao que parece a personalidade taciturna do monarca era relacionada a um outro m un do, passado, e a guerra pelo trono da Espanha iria de novo alterar esta marcha. No tem po de D. João V, especificamente no último episódio mencionado — o da elevação do patriarcado — nota-se uma intenção da realeza portugue sa de se aproximar da pompa eclesiástica, fazendo-a muito diferente neste aspecto da realeza secular de Luís XIV. Esta intenção seria manifesta no seu em penho organizador da procissão de Corpus Christi, repleta de elem entos pagãos. D. João V transformaria substancialmente este ritual, convertendo-o num paradigma da associação dos poderes divino, eclesiástico e monárquico, cujo marco inicial seria dado pelo grande desfile em Lisboa realizado em junho de 1719.” A associação de poderes monárquico e religioso seria comprovada em ou tros eventos, notadam ente na construção do gigantesco palácio-convento de Mafra, obra iniciada em 1717 de forma solene, como resposta a uma promes sa feita pelo rei para o nascimento de um herdeiro — mais uma vez a junção
m ento de Macau em 1727, c a entrada do Marques dc Abrantes cm Madri em 1727, cm função do duplo casamento de príncipes espanhóis c portugueses, por meio da troca dc princesas na fronteira do rio Caia em 1729. 32 Antônio Caetano de Sousa. História genealógica da Casa Real Portuguesa. Lisboa: Oficina Silviana da Academia Real, 1741, tomo VIII, p. 122-6. C ontudo som ente em 1738 o barrete dc cardcal seria entregue ao patriarca dc Lisboa. Bebiano. Op. cit., p. 121-36. 33 Inácio Barbosa Machado. História crftico-cronológica da instituição da festa, procissão, e ofício do Corpo Santíssimo de Cristo no Venerável Sacramento da Eucaristia. Lisboa: Oficina Patriar cal de Francisco Luiz Ameno, 1759 (provavelmente manuscrita cm 1719), apud Bebiano. Op. cit., p. 122-9. M ovimento similar cm relação à monarquia francesa c às festas populares é tratado por Yves-Marie Bercé. Fête et révolte. Paris: Fayard, 1990.
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das duas esferas — atendida pelo nascimento da princesa D. Maria Bárbara. Os trabalhos seriam concluídos somente em 1730, constituindo a cerimônia outro estrondoso espetáculo régio e eclesiástico.34 M uito mais do que a caricatura de um reinado, os casos amorosos com freiras mantidos pelo rei e seus conseqüentes filhos bastardos (“híbridos” por assim dizer, das duas esferas) poderiam funcionar hoje como expressivos símbolos de uma vontade política, concretizada no corpo do rei, por meio de sua virilidade.35 Por trás do desejo de se instituir a sagração de D. João V, ou da aproximação crescente dos rituais monárquicos com os litúrgicos, do rei com a Igreja, havia a intenção de conferir mais sacralidade à realeza brigantina. Aspecto inusitado para a monarquia portuguesa, especialm ente no que se referia a um nível formal, institucionalizado e hierárquico, à semelhança dos casos francês e inglês. E não mais relacionado a um sentido popular, repleto de histórias maravilhosas, mais referentes a indivíduos do que a uma linha gem régia, como tinham sido os episódios do Milagre de Ourique, da rainha Santa Isabel, do Infante Santo, da princesa Joana ou do sebastianismo, surgi dos nas duas primeiras dinastias lusitanas.36 A vontade de sacralizar o poder régio português seria levada ao limite nos episódios concernentes à concessão pelo papa do título de Fidelíssimo aos reis lusos, quando por meio de uma pressão diplomática do secretário de Estado Diogo de M endonça Corte Real em 1733, instruía-se o representante da cor te lisboeta em Roma a valer-se dos exemplos análogos: Cristianíssimo para os reis franceses e Católico para os monarcas espanhóis. Segundo os documentos portugueses, esses seriam epítetos mencionados por pontífices passados em ocasiões fortuitas, utilizados como tradição pelos soberanos seguintes, no que foram acompanhados por Roma. Justificava-se assim o pleito da monarquia lusa, que lhe foi atribuído de “moto próprio” em 1748.37
34 Bebiano. Op. cit., p. 133-6. 35 Ao estabelecer curiosas analogias entre as vidas, as representações artísticas e os corpos dos monarcas na Europa moderna, Sérgio Bertelli abriria caminho para este tipo de ilação. Sergio Bertelli. 11 corpo dei re. Florença: Ponte Alie Grazie, 1995. 36 Sobre a esposa de D. Dinis, cf. Diogo Afonso. Vida e milagres da gloriosa Rainha Santa Isabel... Coimbra: João de Bezerra, 1560; Vasco M. Castelo-Branco. Discurso sobre a vida e morte de Santa Isabel... Lisboa: Manoel Lira, 1596; e D. Isabel de Aragão, a Rainha Santa. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1993, 2 vols. (ed. fac-similada). Sobre a princesa Joana, irmã de D. João II, cf. Nicolau Dias. Vida da Sereníssima Princesa Joana... Lisboa: Antônio Alvarez, 1594; Lucas de Andrade. “Breve relação do que sucedeu depois da morte da Sereníssima Senhora Dona Joana, infanta dc Portugal” . Lisboa: Antônio Alvarez, 1654; e Barbosa Machado (org.). Notícias das últimas ações e exéquias de reis, rainhas e príncipes de Portugal, s.n.t.., 1.1. Sobre o infante D. Fernando, filho dc D. João I c morto em T ânger em 1437, cf. o artigo de Paulo Drum mond Braga. “O mito do Infante Santo”, in: Ler história. Lisboa: Salamandra, 1994, p. 3-10. 37 Diogo Corte Real escrevia que D. João V rejeitava o título de Propagador da fé, por ser comprido e não se adaptar com “M ajestade”. Sobre os títulos de soberanos, detinha-se no
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ROD RIG O BENTES MON TE IRO
A
FESTA
DA
HISTÓRIA
Nas memórias que escreveu ao longo de sua vida como homem da Corte entre os reinados de D. Pedro II e de D. João V, o Conde de Povolide deixa transparecer uma mudança de mentalidade. Nos primeiros capítulos, ocupase em contar as intrigas da Corte envolvendo os irmãos D. Afonso e D. Pedro, que disputavam o trono com suas respectivas facções, como se estivesse a contar a história do próprio Portugal, os acontecimentos da Corte misturados a outros de dimensão internacional, mormente a guerra com a Espanha. A corte como microcosmo político do país, o trono frágil como causa — ou refle xo — da situação política internacional, sintoma da vulnerabilidade do Rei no.38 Contudo, ao terminar a Guerra de Sucessão da Espati/ia, a estabilidade política portuguesa era favorecida pelo afluxo de riquezas minerais oriundas da região americana. Tais fatores compunham um quadro no qual o já idoso conde adquiria um respeito pela figura do soberano, isentando-a dos conflitos entre cortesãos, ao mesmo tempo que aumentavam as descrições do fausto da monarquia m ediante os rituais.39 Parecia então que o rei Bragança tomava consciência do seu poder, e dava conta dele para seus súditos. Essa tomada de consciência vinculava a personalidade pública de D. João V à prática do Estado, quando dizia: — “M eu avô deveu e temeu, meu pai deveu, eu não temo nem devo” , em analogia com Luís XIV. Pois diferentem ente de D. João IV, D. Afonso VI e D. Pedro II, D. João V não convocaria cortes em nenhum mo mento de seu longo reinado (1707-1750), num expressivo sinal de supremacia do poder régio. Mas não somente. A frase atribuída ao monarca português era reveladora da sua consciência histórica de fortalecimento do poder régio dos Braganças. E essa disciplina, tão incentivada nos espelhos de príncipes, iria motivar a fundação da Academia Real de História em dezembro de 1720. Nobres letrados da Corte encarregavam-se de enviar questionários aos arcebispados e bispados, cartórios eclesiásticos, cabidos, câmaras municipais e
caso franccs, quando a antonomásia dc Carlos Magno tornara-se tradição, c no espanhol, quando Fernando de Aragão e Isabel de Castela foram chamados de Católicos pelo papa. Propunha então o de Fideltssimo, que, apesar de já utilizado pelos reis de Navarra, caíra cm desuso pelo esfacelam ento desta monarquia. Cf. Cartas de 6/8/1733 e de 11/8/1733. Lis boa: Biblioteca do Palácio Nacional d ’Ajuda (BPNA), códice 54-XIII-8-295 c n.” 296. Cf. tam bém José Ferreira Borges de Castro (org.). Coleção dos tratados, convenções, contratos e atos públicos celebrados entre a Coroa de Portugal e as mais potências desde 1640 até o presente. Lisboa: Im prensa Nacional, 1856-1858, t. 2, p. 328-35. Agradecemos ao professor José Pedro Paiva pela indicação. 38 Memórias de Tristão da Cunha de Ataídc, primeiro Conde de Povolide. Portugal, I.isboa e a Corte nos reinados de D. Pedro II e D. João V. Lisboa: Chaves Ferreira — Coleção Fundação Cidade de Lisboa, 1990. 39 Ibidem.
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provedorias de todo o Reino, a fim de se obter informações para a escrita de “uma completa história de Portugal, eclesiástica e secular” sob o patrocínio do rei.40 A Coroa portuguesa apropriava-se de sua própria história, para re contá-la no sentido do enaltecimento do poder régio, em associação com a história eclesiástica lusitana. Não há como explicar melhor os destinos ainda tão pouco esclarecidos desta instituição.41 Mas dela surgiriam obras como a História Genealógica da Casa Real Portuguesa, de Antônio Caetano de Sousa, concretização desses ideais. D iferentem ente dos espelhos de príncipes, a pro posta da obra, como de toda a Academia Real de História, não estava em dizer mais o que o rei “devia ser”, mas em afirmar o que os soberanos de fato “foram” no passado, ou “eram” no presente, devolvendo para os súditos a imagem régia acabada, como nos espetáculos rituais.42 Eram destacados assim o “santo” D. Afonso Henriques, o “valoroso” D. João I, e D. João II, como Príncipe Perfeito. Em D. M anuel observava-se a sua “fortuna”, em D. João III a sua “m ajestade”. Em caso de falhas dos sobera nos, a culpa era atribuída aos “maus conselheiros” ou validos, como nos rei nados de D. Sancho II, D. Sebastião e D. Afonso VI. O governo filipino era ignorado na obra. D. João IV era “mártir” por ter aceito a Coroa contrariando sua vontade particular. Dedicava-se então o autor à legitimação da Casa de Bragança, prim eiram ente pela genealogia, atrelando-a ao primeiro rei de Por tugal.43 Mas tam bém pela magnificência — dado especialmente interessan te para o reinado de D. João V — sobre as “excelências, e glórias da Serenís sima Casa de Bragança”. A mesma interpretação era realizada ao observar-se a figura do infante D. Pedro, futuro D. Pedro II: “[...] com aspecto tão ma jestoso, que a sua pessoa, vista entre outras, não podia entrar em dúvida que era Real, pela majestade da presença”.44 Desse modo associava-se a aparên
40 M anuel Teles da Silva, Marquês de Alegrete. História da Academia Real da História Portu guesa. Lisboa: Oficina de José Antônio da Silva, 1727; e Maria José Mexia Bigotte Chorão (org.). “Notícias da Conferência, que a Academia Real da História Portuguesa fez em 5 de janeiro de 1721”, in: Revista de História Econômica e Social. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1987, n.° 21, p. 123. 41 Em 1721 foi publicado um volum e com docum entos e memórias da Academia. Em 1727 M anuel Teles da Silva, publicaria o primeiro volume da obra H istória da Academia Real da H istória Portuguesa, op. cit., que não foi seguido de outros. Em 1736, surgia o tomo 16." da coleção de docum entos e memórias. A Academia teria entrado em decadência a partir de 1755, sobrevivendo de maneira honorífica até 1794. “Subsídios para a história da Academia Real da História Portuguesa”, in: Anais da Academia Portuguesa de H istória, II série, p. 43-68. 42 Caetano de Sousa. Op. cit. Cf. também Isabel Maria H. F. da Mota. “A imagem do rei na história genealógica da casa real portuguesa”, in: Revista de História das Ideias. Cultura Po lítica e Alenta/idades. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1989, v. 11, p. 103-11. 4;! Caetano de Sousa. Op. cit., t. VI, cap. XX. 44 Ibidem , t. VII, p. 372-3.
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cia à essência, tônica do reinado de D. João V, descrito como “o mais feliz Im pério” a ser garantido pela atual casa reinante.45 Assim como o Conde de Povolide, Antônio Caetano de Sousa e o bibliófilo Diogo Barbosa Machado,46 o conselheiro Antônio Rodrigues da Costa e o Conde de Assumar foram membros da Academia. Essas duas personalidades singulares já tinham revelado muitos pontos comuns em suas idéias sobre a manifestação do poder régio na América portuguesa, seja no próprio Reino, pelos pareceres do Conselho Ultramarino diante da sedição dos senhores de Olinda, seja nas Minas, na defesa do castigo aplicado em 1720. Contudo, na Academia o conselheiro e o conde indicariam uma outra face de suas relações com o poder soberano, na confecção de peças laudatórias e comemorativas.47 Curiosamente, essas obras seriam produzidas quando outra forma de ex pressão do poder português se afirmava no mundo ultramarino, maneira esta que não era a apregoada por Rodrigues da Costa e Assumar durante o enfrentam ento de suas “rebeliões”. Embora a rigidez da administração régia no Reino e no ultramar americano fosse aum entando até o ápice na época pombalina, o reinado de D. João V pode ser tipificado como de festas e de repre sentações. Festividades como casamentos, entradas e embaixadas no Reino e no estrangeiro, mas também festividades no mundo americano, onde se faz gritante o aum ento numérico e o requinte das solenidades em louvor à mo narquia neste período.48 Afinal, a lógica que valeria para o Reino mostrava a sua procedência também para as conquistas. Diante dos am bientes tum ul tuados no velho ou no Novo Mundo, era preciso reagir com a criação de uma atmosfera de envolvimento, na qual os súditos fossem contagiados pelo bri
45 Ibidem , t. VIII, p. 2. 46 Diogo Barbosa Machado (1682-1772), abade dc Sevcr, entre várias obras ligadas à Acade mia, ficou conhecido por trabalhos monumentais como a Biblioteca L usitana..., op. cit., uma compilação em quatro tomos de autores portugueses e suas obras dedicada a D. João V. Sua coleção de opúsculos raros do império português organizados cm mais de sessenta volu mes foi doada a D. José I após o terrem oto de 1755. Em 1807-1808, este acervo seria transferido para o Brasil, disponível na Biblioteca Nacional — Rio dc Janeiro. Ramiz Galvão. “Diogo Barbosa Machado”, in: Anais da Biblioteca Nacional , Rio de Janeiro (ABN-RJ), 1972, v. 92, t. 1, p. 11-44. 47 Rodrigues da Costa tam bém seria um dos membros fundadores d i Academia. M anoel Teles da Silva. “Elogio de Antônio Rodrigues da Costa [...] na Academia Real dc História Portu guesa”. Lisboa Ocidental: Oficina de José Antônio da Silva, 1732; Barbosa Machado (org.). Elogios fúnebres de varões portugueses, s.n.t., t. I., p. 114-9. Q uanto a Assumar, “Panegírico para se recitar no dia 22 de outubro de 1736, cm que se celebraram os anos de El-Rci Nosso Senhor”; Barbosa Machado (org.). Aplausos oratórios epoéticos ao complemento dos anos dos Sereníssimos Reis, Rainhas, e Príncipes de Portugal, s.n.t., t. II, p. 37-46. 4S D c simples portarias para se dar cera para as luminárias, ou cartas solicitando o envio dos donativos para casamentos reais, passa-se no período joanino a festividades mais elabora das nas cidades coloniais. Cf. a título de exemplo vários docum entos da série D IH C SP, op. cit., especialm ente volumes 5, 9, 32, 33, 67 e 68 para os reinados de D. Afonso VI e D. Pedro II, c volumes 34, 39, 42, 53, 54 c 65, para D. João V.
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lho dos raios de seu soberano, não somente pelo temor, mas sobretudo pelo amor. Afetos bem expressos nas comemorações da aclamação joanina, nos casamentos, nascimentos de príncipes e até mesmo na morte do monarca português, que teriam lugar sobretudo na Bahia, sede do governo-geral, a partir da primeira m etade do século XVIII.49 Rodrigues da Costa redigira em 1707 um parecer solicitado pelo novo rei, aprovando a descrição de Sebastião da Rocha Pita sobre as exéquias de D. Pedro II na Bahia. Em suas palavras podemos perceber nitidam ente este aspecto, agora enfatizado, de expressão do poder régio no Ultramar, pois: “[...] nas verdadeiras manifestações de sentimento que aqueles vassalos deram naquele fatal golpe, se veja com evidência que a fidelidade portuguesa, e o amor com que esta fidelíssima nação ama aos seus príncipes, é tão constante, e apartado que seja, é poderoso a diminuir-lhe o ardor do seu afeto, e a gran deza da sua veneração; antes parece que quanto os portugueses mais se afas tam da sua origem e do berço em que nasceram, tanto maior é o obséquio que tributam à M ajestade, imitando nesta parte a natureza dos rios, que quanto mais se apartam de suas fontes, tanto maior tributo, e veneração rendem ao Oceano donde receberam o ser”.50 Pelo raciocínio empregado com relação ao castigo dos motins, desenvolvi do por Assumar, a distância entre a conquista ultramarina e o Reino dificulta va a manifestação do poder régio e a aplicação da pena, favorecendo as rebe liões nos domínios longínquos. Mas, no que tocava às festividades, o sentido da idéia exposta por Rodrigues da Costa era contrário. Elas possibilitariam maior enaltecim ento do soberano inacessível, que por isso seria mais ideali zado. As idéias de Antônio Rodrigues da Costa também eram contrárias ao texto do Padre Antônio Vieira, trabalhado por Laura de Mello e Souza.3' O
49 Cf. Memória da aclamação Ho Sereníssimo Rei D. João V na CiHaHe Ha Bahia. Bahia, 4/6/1707; João de Brito. Poema festivo, breve recompilação Has solenesfestas, que obsequiosa a Bahia tribu tou em aplauso Has semprefaustas, régias boHas Hos sereníssimos Príncipes Ho B rasil, e Has Astúrias com as ínclitas princesas He Portugal, e Castela, HirigiHas pelo Excelentíssimo Vice-Rei Heste EstaHo... Lisboa: Oficina de Música, 1729, p. 193-215; Castro, Álvaro Pereira de. “Obsequiosa dem onstração, com que as quatro partes do m undo festejaram o feliz nascim ento do Sereníssimo Príncipe D. Pedro augusto filho dos [...] reis D. João V e D. M ariana...”. Lisboa: O ficina de M iguel M anescal, 1713; Barbosa M achado (org.). Genetlíacos Hos Sereníssimos Reis, Rainhas e Príncipes He Portugal, s.n.t, t. III, p. 30-5; c João Borges dc Barros. “Relação panegírica das honras funerais que as memórias do [...] Senhor [...] D. João V consagrou a cidade da Bahia corte da Amcrica Portuguesa...”. Lisboa: Régia Oficina Silviana, 1753; Barbosa Machado (org.). Notícias Has últimas ações e exéquias He Reis, Rainhas, e Prínci pes He Portugal, s.n.t., t. III. p. 4-24. 50 Cf. o parcccr do conselheiro Antônio Rodrigues da Costa na página inicial em Sebastião da Rocha Pita. Breve compêndio e narração Ho fúnebre espetáculo, que a insigne ciHaHe Ha Bahia cabeça Ha América portuguesa, se viu na morte He E l-R ei D. PeHro II... Lisboa: Oficina de Valcntim da Costa Deslandes, 1709. 51 “A sombra, quando o sol está no zenite, é muito pequenina, c toda sc vos m ete debaixo
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RODRIGO
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Padre Antônio Vieira e o Conselheiro Antônio Rodrigues da Costa estavam situados em momentos diversos do exercício do poder monárquico portu guês na América. O primeiro, quando imperava a fragilidade — lembremos das propostas do jesuíta de entregar Pernambuco aos holandeses. O segundo, vislumbrando uma outra possibilidade de manifestação deste poder: como se a Corte portuguesa, pelas festas coloniais, desem penhasse papel sem elhante ao realizado anteriorm ente na aurora dos Tempos Modernos, quando ainda era itinerante e se deslocava pelo Reino, afirmando o seu poder perante os vassalos, que a viam assim pela primeira vez.'’2 Essa maior adoração da monarquia na América portuguesa coincidia com o momento em que ela assumia para si a sua função colonizadora, por meio do maior controle administrativo, 0 11 do reforço das representações simbólicas. O rei português e a sua corte deixavam de ser “escondidos” no Reino, estenden do então os braços aos súditos de regiões distantes, fazendo-se amados tam bém por esses vassalos ultramarinos, à medida que se mostravam para eles. Liberto dos conflitos internos e externos que dificultavam sua maior expres são, o rei da dinastia Bragança tomava enfim consciência de sua condição, pas sando a exercer seu poder progressivamente com mais firmeza, e demonstran do-o de forma espetacular para seus vassalos, até mesmo os de além-mar.53 As demonstrações mais enfáticas da Corte portuguesa no Reino e no es trangeiro eram possibilitadas pelas riquezas minerais advindas da América. Nos relatos das representações, eram freqüentes as referências ao ouro e aos diamantes do Brasil como suportes para a magnificência das festas. Nas m e mórias do Conde de Povolide, a narrativa das festividades públicas era entrecortada pelo tempo da chegada das frotas do Rio de Janeiro, raciocínio
dos pés; mas quando o sol está no oriente ou no ocaso, essa mesma sombra se estende tão im ensam ente, que mal cabe dentro dos horizontes. Assim, nem mais nem menos os que pretendem e alcançam os governos ultramarinos. Lá onde o sol está no zênite, não só se m etem estas sombras debaixo dos pés do príncipe, senão tam bém dos seus ministros. Mas quando chegam àquelas índias, onde nasce o sol, ou a estas, onde sc põe, crescem tanto as mesmas sombras, que excedem muito a medida dos mesmos reis de que são imagens.” Padre Antônio Vieira, apud Mello e Souza. Desclassificados..., op. cit., p. 91. 52 Ana Maria Alves. Aí entradas régias portuguesas. Lisboa: Livros Horizonte, s.d. Tam bém lembramos do “tour de France” na menoridade de Carlos IX trabalhado tanto por Emmanuel L e Roy Ladurie quanto por Yves-Marie Bercé como significativo para a manifestação do poder régio dos Valois perante a França de meados do século XVI. L e Roy Ladurie. 0 Estado monárquico. São Paulo: Com panhia das Letras, 1994, p. 109-202; e Yves Bercé. L eroi caché. Paris: Fayard, 1990, p. 378-415. 53 A designação de “colônias”, percebida na correspondência ultramarina a partir de meados do século XVIII, não estaria som ente relacionada à “tomada de consciência dos colonos de sua condição”. Afirma-se aqui que também os colonizadores, capitaneados pelo rei, ti nham tomado consciência de sua condição num tem po anterior recente, durante a primeira m etade dos setecentos. Ilmar Rohloff de Mattos. “A moeda colonial”, in\0tem posaquarem a. São Paulo: Hucitec, 1987, p. 18-33; e Carlos G uilherm e Mota. Idéia de revolução no Brasil (1789-1801). Petrópolis: Vozes, 1979.
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expressivo que associava a região preciosa à riqueza demonstrada pelo reino português.54 A América, como espelho do Rei, refletia o seu brilho. As repre sentações simbólicas passariam a desempenhar um papel especial como ele mentos organizadores da sociedade nas Minas durante o reinado joanino. De início, festividades religiosas e ao mesmo tempo profanas, caracterizadas pelo congraçamento dos seus grupos sociais e a atenuação dos conflitos, manifesta ções da euforia pelas riquezas conseguidas na região, cantada como “a pérola preciosa do Brasil” .55 Nessas festividades, a sociedade colonial era represen tada hierarquicamente de forma teatral, enxergando-se a si mesma e dandose a ver de maneira extraordinária.56 D e maneira gradual, os poderes colonizadores evidenciavam-se nesses eventos, nas Minas ou no seu principal porto, a cidade do Rio de Janeiro. A começar pelos eclesiásticos. Ao lado dos párocos e dos bispos, objetivavam-se progressivamente as autoridades governamentais, representantes na Améri ca do poder monárquico. A associação entre liturgia e realeza iria mais uma vez manifestar-se, tendo como ponto culminante as exéquias de D. João V em São João del-Rei. Pela celebração litúrgica, na região, da morte do sobera no, consolidava-se enfim o poder monárquico português nas Minas.37 A morte de D. João V marcaria o início de uma nova fase de manifestação da realeza lusitana, caracterizada pela maior atuação do Estado na América portuguesa durante o reinado de D. José I. A presença mais opressiva do Estado expressava-se por medidas administrativas, como a instalação de ou tro tribunal da Relação em 1750 no Rio de Janeiro — mais próximo das Mi
54 Memórias do Conde de Povolide, op. cit. 55 Simão Ferreira Machado. “Triunfo eucarístico, exemplar da cristandade lusitana” . Lisboa Ocidental: Oficina de Música, 1734; Affonso Ávila (org.). Resíduos seiscentistas em M inas — textos do século do ouro. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1967, v. 1, p. 131-283. 56 Evento similar à criação do bispado de Mariana em 1748 tinha acontecido no Rio de Janei ro um ano antes, na entrada do novo bispo D. Fr. Antônio do Desterro, contando com a participação de Gomes Freire de Andrada, Conde de Bobadela, nesta época governador do Rio e tam bém das Minas, o que bem expressava a relação estreita entre a cidade porto e a região mineradora. Francisco Ribeiro da Silva. “Áureo trono episcopal, colocado nas minas do ouro” . Lisboa: Oficina de Miguel Manescal da Costa, 1749; Affonso Ávila (org.). Op. cit., v. 2, p. 335-592; e Luís Antônio Rosado da Cunha. “Relação da entrada que fez o excelentíssimo e reverendíssimo senhor D. Fr. Antônio do Desterro Malheiro, bispo do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro: Segunda Oficina de Antônio Isidoro da Fonseca, 1747; Barbosa Machado (org.). Elogios oratórios epoéticos dos cardeais, arcebispos, bispos eprelados portugueses, s.n.t., t. II (1739-1768), p. 196-206. Cf. também Mello e Souza. “O falso fausto”, in: Desclassificados..., op. cit., p. 19-49; e Affonso Ávila. O lúdico e as projeções do mundo batroco. São Paulo: Perspectiva, 1980. 57 M anoel Joseph Corrêa e Alvarenga. Monumento do agradecimento, tributo da veneração, obelisco funeral do obséquio, relação fie l das reais exéquias [...] do fdelíssim o e augustíssimo rei o senhor D. João V [...] oferecida ao muito alto epoderoso rei D. JoséI, nosso senhor. Lisboa: Oficina de Francisco da Silva, 1751.
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nas — ou pela transferência da capital, de Salvador para o Rio em 1763 — nova sede oficial do “vice-reinado” — status a dar conta da submissão e da importância adquirida pelo mundo ultramarino americano para a Coroa, tudo isto acontecendo em meio à decadência da produção aurífera. Mas o Estado enfim absolutista também manifestava-se pelo incremento das representa ções em louvor à monarquia, quando as festas por natalícios, casamentos e mortes dos príncipes portugueses adquiriam enfim sua expressão máxima.58 Em conclusivo, pode-se afirmar que as festas na América portuguesa afir mavam-se como um reforço do poder monárquico brigantino, tanto quanto os motins tinham sido entendidos no sentido inverso, como desafio a este mesmo poder. O processo histórico que passou do tempo dos motins ao tem po das festas coincidia com a maior conscientização da realeza portuguesa, no referente à sua função colonizadora no Ultramar americano. O despotismo do Marquês de Pombal por D. José I exorcizaria o fantasma da tirania, aspecto tão combatido pelos primeiros reis brigantinos, para com os outros e neles mesmos. Essa tomada de consciência do poder régio português manifestavase também no Ultramar americano, onde o rei afirmava-se enfim como o maior de todos os colonizadores. As festas “coloniais” — na plenitude da acepção do termo — surgiam assim como o contraponto que evitava o perigo dos motins, nas relações do poder régio lusitano com os seus leais vassalos de além-mar. □ □□ R o d r i g o B e n t e s M o n t e i r o , mestre e doutor em História Social pela Fa culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), é professor de História do Brasil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e do Colégio Teresiano Cap/PUC-Rio).
R e s u M o . A Guerra de Sucessão da Espanha favoreceria o surgimento de rebeliões na América portuguesa, onde se assistia à formação da região das Minas. Se as revoltas mineiras não podiam ser definidas como antimonárquicas, uma delas foi interpretada
58 “Epanáfora festiva ou relação sumária das festas com que na cidade do Rio de Janeiro, capital do Brasil, se celebrou o feliz nascimento do sereníssimo Príncipe da Beira, nosso senhor”. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1763; e “Relação dos obsequiosos festejos que se fizeram na cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, pela plausível notícia do nasci m ento do sereníssimo senhor Príncipe da Beira, o senhor D. José, no ano de 1762...”. Lisboa: O ficina Patriarcal de Francisco L uiz Ameno, 1763; Barbosa M achado (org.). Genetlíacos dos Sereníssimos Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal, s.n.t., t. V (1761-1767). Cf. tam bém Rodrigo Bentes Monteiro. 0 teatro da colonização - a cidade do Rio de Janeiro no tempo do Conde de Bobadella (1733-1763). Dissertação de mestrado apresentada ao D eparta m ento de História da FFLCH-USP, São Paulo, 1993, e o artigo que publicamos com o mesmo título; Maria H elena Carvalho dos Santos (org.). A festa. Lisboa: Sociedade Portu guesa de Estudos do Século XVIII, Universitária Editora, 1992, v. I, p. 297-327.
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co m o tal, por p e rso n a g e m ligada à m o n a rq u ia p o rtu g u esa . O d iscu rso do C o n d e d e A ssu m a r é o te s te m u n h o d e c o n c ep ç õ es acerca do p o d e r real, e d e su as relaçõ es com a região m in e rad o ra. D essa m e sm a região surgiria o m e tal p recio so q u e aju d aria na re p re se n ta ç ã o da realeza e sp le n d o ro sa d e D . João V no R ein o , nas re p re se n ta ç õ e s d ip lo m á tic a s e nas c o n q u ista s ultram arin as am erican as, m arco das tran sfo rm açõ es da d in a stia d e B ragança. U m a m a n ifestação m ais en fá tica da C o rte em P o rtu g al, no e s tra n g e iro e nas regiões coloniais c o n trib u iria para o fo rta le c im e n to da im a g em do rei b rig a n tin o , v isan d o ao se u re c o n h e c im e n to e à o b e d iê n c ia dos vassalos. N e s s e s e n ti d o in se re -se a fu n d aç ão da Academ ia R ea l de H istória no an o d e 1720, para re c o n stru ir a m e m ó ria e os feito s da m o n a rq u ia lusa. D essa form a, o te m p o das festas s u c e d e o te m p o dos m o tin s nas cid ad e s coloniais, processo c o n c o m ita n te ao c re sc im e n to do a p a re lh o re p ressiv o do E sta d o no rein a d o d e D . Jo sé I.
Johann Moritz Rugendas. A calunga dos maracatus. Foto André Ryoki.
UMA EMBAIXADA AFRICANA NA AMÉRICA PORTUGUESA1 S
i lvi a
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ara
R e l a t i v a m e n t e c o m u n s no cenário político do Antigo Regime, as embaixadas eram enviadas em diversas ocasiões: para negociar a paz ou a guerra, discutir e acordar casamentos, tratados comerciais ou limites territo riais entre dois ou mais soberanos. A pompa costumava revestir tais circuns tâncias, já que se tratava de confirmar diante de todos não apenas a certeza da investidura dos emissários mas, sobretudo, de ostentar o poder do monarca aí representado. Eram também, com certa freqüência, momentos em que di versos interesses se cruzavam, alguns tomando lugar ao lado (ou acima) dos interesses reais. O ritual do cortejo público que acompanhava as conversa ções mais reservadas, bem como as próprias questões que estavam em jogo, podiam contribuir para isso. Há inúmeras embaixadas na história portuguesa da época moderna. Pouco conhecidas, entretanto, são as protagonizadas por africanos e que também fizeram parte da história do império colonial português. Logo depois da con quista do Congo, Dom M anuel pensou em organizar uma embaixada para que representantes congueses fossem até o Papa Júlio II declarar espetacu larm ente a conversão do rei ao cristianismo. As intenções reais prendiam-se claramente ao fortalecimento dos interesses portugueses na expansão ultra marina m ediante negociações com Roma. Muitas polêmicas cercam o episó dio, que afinal acabou se realizando somente em 1514, sem a participação dos congueses. Em lugar deles, foi apresentada ao papa uma declaração de fé
1 Este texto contém resultados parciais de uma pesquisa mais longa, financiada pelo CN Pq.
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SILVIA
HUNOLD
LARA
cristã assinada por Afonso I (o mani do Congo), levada por uma vistosa comi tiva portuguesa.2 Com efeito, esta embaixada não pode ser caracterizada propriamente como africana, especialmente por suas intenções iniciais. Talvez tenha sido, no en tanto, a primeira vez que algum potentado africano tenha entrado em contato com esta forma de exposição pública de poder. Apesar da ausência conguesa no cortejo de 1514, sua importância simbólica no universo negro colonial foi enor me, em especial para as danças e reinados de congos que ocorriam em festas públicas dinásticas na América portuguesa3 ou para as coroações de reis e rai nhas congos nas irmandades negras em diversos pontos do Império.4 Houve porém embaixadas africanas, no sentido pleno da expressão, tal como a relata da por Barléus em 1643, quando enviados do rei congo foram a Pernambuco negociar com Maurício de Nassau, que os recebeu com todas as honras.5 Examino aqui uma destas embaixadas, enviada em 1750 pelo Daomé à Bahia, discutindo tanto os acontecimentos ocorridos em Salvador quanto um dos principais documentos que sobre ela se tem notícia, a Relaçavi da Etnbayxada que mandou o poderoso Rey do Angome Kiay Chiri Broncotn, Senhor dos dilatadissimos Sertoens de Guiné, enviou ao IIlustríssimo e Excellentissi/no Senhor D. Luiz Peregrino de Ataide, Conde de Atouguia, Senhor das vilas de Atouguia, Peniche, Cernate, Monforte, Vilhaens, Lomba e Paço da Ilha Dezerta; Comendador das Comendas de Santa M aria de Adaufe; e Vila Velha de Rodam, na Ordem de Christo, Do Conselho de Suam Majestade, Governador e Capitão General quefoy do Reyno do Algarve, e actualmente vice-rei do Estado do Brasil, pedindo a amizade e a alliança do muito Alto e muito Poderoso Senhor Rey de Portugal Nosso Senhor, escrita por José Freire Monterroyo Mascarenhas.6
2 Cf. Frei Antonio Brásio. “Embaixada do Congo a Roma em 1514?”, in: Stvdia, 5
UMA
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AFRICANA
NA
AMÉRICA
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Ocupado pelos portugueses desde o início do século XVI, o litoral da África ocidental — correspondendo atualmente ao Togo e ao Daomé — ficou conhe cido ao longo dos séculos do tráfico de escravos pelo nome genérico de “Costa da Mina”, provavelmente em função do castelo de São Jorge da Mina — forta leza fundada em 1482 pelos portugueses.7 Sua importância cresceu muito ao longo do século XVII, quando os comerciantes baianos aí negociavam escravos e tabaco “de terceira e ínfima qualidade”, em particular nos portos de Grande Popo, Ajudá, Jaquim e Apá. A partir de 1637, a presença da Companhia Holan desa das índias Ocidentais na Costa do Ouro tornou a presença portuguesa bastante precária em toda a região, mas ajudou de certo modo a consolidar os laços afro-baianos, que entravam em choque com interesses dos negociantes portugueses e, muitas vezes, da política reinol. Ao longo das primeiras décadas do XVIII, iniciativas importantes como a edificação de um forte em Ajudá e a criação de uma companhia de comércio relacionam-se diretamente às dificul dades operacionais e às flutuações políticas que envolviam o tráfico luso-baiano na Costa da Mina, agravadas com a regulamentação da capacidade dos na vios e dos turnos nas viagens entre Salvador e os portos da região.8 Os contínuos conflitos entre os diversos reinos litorâneos, especialmente Ardra, Oió e Ajudá, sempre constituíram uma ameaça ao comércio europeu e, ao mesmo tempo, não impediram que os diversos governantes lançassem mão das rivalidades européias para fazer frente às pressões de seus vizinhos. Em 1658, por exemplo, o rei de Ardra chegou a enviar uma embaixada à Espanha, pretendendo relações mais estreitas entre os dois reinos; com o fracasso desta tentativa, voltou-se então para a França. O btendo sucesso, uma feitoria francesa se estabeleceu na região a partir de 1671.9No início do XVIII, foi em território cedido pelos ardras que os portugueses construíram a forta leza de Ajudá. A expansão do reino do Daomé, porém, alcançou os ardras e a fortaleza de Ajudá em 1727; aliando-se então ao reino de Jaquim, os portu gueses construíram nova fortaleza, na tentativa de reorganizar o tráfico com a Costa da Mina. Em 1732 o forte de São João de Jaquim foi tomado pelos daomeanos; assim como no caso de Ajudá, as feitorias continuaram portugue sas mas os “negócios” passaram a ser tratados com o rei do Daomé, num equilíbrio político sempre precário. E no contexto da expansão daomeana e das
7 Isso significa dizer que, na Bahia, eram chamados “negros minas” os escravos vindos desta região e não os que procediam da Costa do Ouro, onde se localizava efetivam ente o forte da Mina. Cf. Verger. Op. cit., p. 19-20 e Maria Inês Cortes de Oliveira. “Q uem eram os negros da Guiné? A origem dos africanos na Bahia”, in: Afro-Asia, 19/20:37-73, 1997. s A obra de Verger (op. cit.) ainda é a publicação mais detalhada sobre os aspectos lusobaianos do tráfico de escravos na África ocidental. Para uma visão geral do tráfico nessa região, vide Robin Law. The S/ave Coast o f West Africa, 1550-1750. Oxford: Clarendon Press, 1991. 9 Verger. Op. cit., p. 126-7.
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complexas relações entre Portugal, a Bahia e os reinos da Costa da Mina que, entre 1750 e 1811, quatro embaixadas foram enviadas aos portugueses pelo rei do Daomé, duas pelo rei de Onim (atual Lagos) e uma pelo rei de Ardra (atual Porto Novo). E a primeira delas que constitui o objeto central deste texto. O embaixador do Daomé chegou à Bahia em 29 de setem bro de 1750 e aí permaneceu até 21 de abril de 1751. Ele e sua comitiva ficaram hospedados no Colégio dos Jesuítas durante todo o tempo, e a primeira audiência com o vice-rei do Estado do Brasil ocorreu apenas em 22 de outubro. Notícias sobre os mensageiros africanos haviam sido enviadas previamente pelo diretor da fortaleza de Ajudá ao vice-rei e o interesse na negociação entre a Bahia e o Daomé tendo em vista a continuidade do tráfico era patente. Segundo a Relaçarn de Monterroyo Mascarenhas,10 o rei do Daomé, tendo em mira os interesses dos comerciantes portugueses dos dois lados do Atlân tico e “desejando fazer um tratado de amizade e comércio” com o soberano português, resolvera enviar uma embaixada à Bahia. Escolheu “um dos vassa los da sua maior confiança” e o embarcou, com dois alcatys, um intérprete, grande comitiva e presentes, em um navio pertencente a um morador da Bahia que se achava ancorado na costa africana. Chegando ao porto baiano e avisado o vice-rei, o navio foi logo saudado pela artilharia das Fortalezas e seus ilustres passageiros levados ao Colégio da Companhia de Jesus onde ficaram na mesma sala destinada aos vice-reis da índia quando passavam pela Bahia. D esde o desembarque, a comitiva africana chamava a atenção de todos: “O embaixador é uma bem-feita e nobre figura; trazia vestido um roupão semelhante à toga de um desembargador com uma capa de veludo cor de nácar, turbante com seu penacho metido em um cafetão de ouro guarnecido de boas pedras. Os dois gentis-homens são moços bem-feitos e bem figura dos, vestiam ao uso do seu país, traziam quantidade de criados e quatro rapa rigas de idade de dez anos nuas ao modo da sua terra, mas bem parecidas, as quais chamam mobandas, comitiva de que usam por grandeza.” O Conde de Atouguia, imaginando aproveitar os festejos do aniversário de Dom João V para causar maior impacto na comitiva africana, resolveu conce der a primeira audiência somente no 22 de outubro, ocasião de júbilo e glória em todo o império português." N este dia, logo de madrugada os regimentos da infantaria desfilaram, “todos vestidos de gala”. No palácio, o vice-rei, sob 1(1 Para economia da exposição, o relato que se segue está baseado inteiram ente na Relaçam, deixando-se de mencionar as páginas específicas para cada citação. Há disparidades entre as informações fornecidas pelo texto de M onterroyo Mascarenhas e a correspondência do vice-rei — que serão abordadas mais adiante. " Não haviam chegado à Bahia as notícias do falecimento do rei e, segundo a Relaçam, “toda a Corte da Bahia preparava custosas galas para mostrar, nos excessos de sua despesa, o em penho do seu obséquio”.
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um luxuoso dossel, estava acompanhado pelo senado da câmara e toda a no breza da Bahia. Logo depois das 10 horas, saiu a embaixada, atravessando os festejos destinados a homenagear o rei português. Novamente, o grupo afri cano causou grande impacto: “Estava o embaixador vestido com um saial de tela carmesim, todo guar necido de rendas de ouro crespas, com uma espécie de saia como de mu lher, sem cós, a que eles dão o nome de mayala, também do mesmo estofo, todo guarnecido de franjas de seda, um cendal curto com borlas pendentes e uma capa com uma grande cauda, como roupa real, de tela furta-cores, forrada de cetim branco e com listas de cores diferentes, turbante magnífi co e precioso e os borzeguins dourados. Os dois fidalgos vestiam pela mes ma moda, mas com diferença nas cores e nos estofos. Meteram-se nas ca deiras [enviadas pelo vice-rei] e os seguiu a pé a sua comitiva por entre quantidade de plebe, e chegando à esquina da Casa da Moeda se apearam das cadeiras e continuaram o caminho a pé para o Palácio com os seus criados e as quatro raparigas vestidas ao uso do seu país com lenços envol tos nas cabeças, mas sem camisas.” Chegando à sala das audiências, fizeram-se os cumprimentos: “Entrou o embaixador na sala com grande confiança, fazendo cortesias para uma e outra parte, observando uma gravidade sem afetação, até che gar ao lugar que o conde vice-rei ocupava; e não distinguindo a sua pessoa entre a magnificência que divisava em todos, perguntou pelo seu intérpre te qual era, e logo, sem perder a soberania do seu aspecto, o cortejou pri meiro à portuguesa com três cortesias, feitas com muito ar e im ediatamen te, ao modo do seu país, prostrando-se por terra com os braços estendidos e as mãos uma sobre outra, e trincando os dedos, como castanhetas, ceri mônia com que em Daomé costumam venerar aos seus reis, indicandolhes deste modo o gosto com que lhes fazem esta prostração.” Depois disso, a Relaçam reproduz a fala dos embaixadores, descrevendo a cerimônia da audiência e termina rapidamente, não sem antes afirmar a es perança de “notícias mais amplas do Estado deste rei [do Daomé] e do co mércio que nele se pode fazer, para satisfazermos o desejo dos curiosos da História e da Geografia”. As relações pertencem a um gênero literário bastante difundido nos séculos XVII e XVIII, obedecendo a critérios retóricos e regras de representação característicos. Escritos para comemorar casamentos e nascimentos de mem bros da família real, aclamação de reis ou rainhas, e ainda outros atos de ostentação do poder e da glória do soberano, como as “entradas” e as “embai xadas”, estes relatos constituíam a culminância de um procedimento lau-
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datório iniciado com os preparativos das solenidades em preendidos pelas câmaras das vilas e cidades. Como na própria festa, a escrita repunha a hierar quia do poder monárquico operando com figuras de linguagem e convenções bastante rígidas que ainda permaneciam fortes no século XVIII português. De modo diferente, no entanto, a Relaçam produzida por Monterroyo Mascarenhas não está centrada na descrição do luxo português 0 11 colonial. Ao longo de suas poucas páginas, 0 relato ressalta o exotismo orgulhoso dos afri canos e chega mesmo a salientar os desacertos das autoridades luso-baianas. Faz questão de mencionar, por exemplo, que o embaixador recusou-se a se guir o conselho dos jesuítas e manteve a guarda oferecida pelo conde vice-rei para a portaria do Colégio a fim de não prejudicar o “respeito de seu sobera no”. Do mesmo modo, conta que o embaixador e os dois gentis-homens não aceitaram a “cadeira portátil” do vice-rei, oferecida para visitar a cidade en quanto esperavam pela audiência, deixando os passeios para depois deste acontecimento. O representante do Daomé também dispensou os trajes à portuguesa, especialm ente confeccionados para ele com “a mais rica tela, o mais excelente veludo e os melhores damascos e brilhantes que se puderam achar na cidade”, alegando preferir o vestuário “ao uso de seu país para re presentar o rei de quem era ministro”. A contraposição entre o modo português e a maneira do Daomé, explicita da em diversos momentos do texto, chega ao auge na descrição da cerimônia da audiência. O vice-rei ofereceu ao embaixador um assento, que logo foi recusado, sob alegação de que “assim se não dava na sua corte aos embaixa dores, cujo recado é sempre breve”. Por intermédio dos intérpretes o vice-rei passou então a ouvir o embaixador que, depois de vários circunlóquios, entregou-lhe uma carta de seu monarca e ofereceu-lhe dois caixões e quatro negrinhas, como presentes para o vice-rei e para o rei de Portugal. A audiên cia aparece, portanto, como uma cerimônia na qual o embaixador deu o tom, conduziu a conversa, recusando-se a adotar qualquer costume local e com portando-se de modo que evidenciasse sua diferença e marcasse a soberania de que estava investido. Quase nada a respeito dos trajes, da fala 0 11 das ati tudes do vice-rei; sobre a festa em homenagem a Dom João V, só o que foi visto pela comitiva africana ao atravessar a praça e uma menção rápida à no breza da Bahia, “com vestidos ricos e de bom gosto, tudo galhardia, tudo pom pa”. Há aqui uma tensão importante, entre a pragmática do gênero e a narrativa realizada por Monterroyo Mascarenhas, que se torna mais contundente quando o texto é confrontado com a correspondência oficial sobre o assunto. As cartas trocadas entre o vice-rei, o monarca português e seus conselheiros confir mam os acontecimentos narrados pela Relaçam, sem entretanto mencionar a numerosa comitiva e sim o envio de apenas dois mensageiros que ficaram hospedados na Bahia a expensas do Erário Régio (despesas imputadas à con
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signação da feitoria de Ajudá).12 O conteúdo da carta destinada ao monarca português permaneceu secreto e a caixa, que continha panos da Costa, foi enviada para o Reino juntam ente com três das quatro crianças, já que uma ficara cega. A diferença fundamental, entretanto, é que o vice-rei, nesta do cumentação, aparece bem menos amável e solícito para com os emissários africanos. Em carta dirigida ao soberano, Atouguia confirma ter recebido os embaixadores no dia do aniversário real mas conta ter respondido ao embaixa dor que, como o Daomé violara a boa fé portuguesa, ele não podia reconhecer seus ministros nem receber mensagens de sua parte. Além disso, declara que “A recepção que lhes tinha feito não era mais que uma simples demons tração de hospitalidade que Sua Majestade tem o hábito de oferecer aos estrangeiros que algum acidente ou necessidade comercial fazem vir às suas portas.” 13 Depois de tais desaforos, teria dado seu recado político. Se o Daomé que ria o comércio com Portugal, continuava o vice-rei em sua missiva, devia “mandar colocar a fortaleza de Ajudá no estado em que ela estava antes que seu exército a invadisse, e restituir aos particulares os escravos e mercadorias levadas, porque sem o cumprimento destas condições, é impossível consen tir em qualquer comércio com ele”. Mesmo assim, informava ele, mandara preparar uma roupa “de acordo com o costume de seu país” e a mandara entregar aos mensageiros no momento do embarque para o Daomé.14 Meses depois, uma carta do secretário de Estado confirmava a chegada a Lisboa dos panos da Costa e das três meninas, que haviam sido enviadas para servir no quarto da rainha. E aproveitava para transmitir ao vice-rei a recomendação real de que o conde devia “manter a melhor harmonia possível com o Dao mé, para a conservação da fortaleza de Ajudá e de lá fazer o comércio dos escravos para a manutenção deste Estado do Brasil”.15 A correspondência para Lisboa mostra um vice-rei bem mais seguro e cheio de autoridade, distante do entrevisto nas linhas da Relaçam. Em vez de um potentado cujos presentes e ofertas haviam sido sistem aticam ente recusados, temos aqui um intransigente funcionário real a defender os direi tos da nação portuguesa sobre seus domínios. Uma prepotência exagerada, a julgar pela reprim enda transm itida pelo secretário de Estado: nada de bazófias e sim di-plomacia e ponderação diante da necessidade de manter
12 Carta do Conde de Atouguia a Sua Majestade de 29 de junho de 1751. Apud: Verger. Op. cit., p. 258 e 263. 13 Ibidem , p. 263. 14 Ibidem . 15 Carta de 21 de outubro de 1751. Apud: Verger. Op. cit., p. 263.
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abertos os caminhos do tráfico de escravos. Longe de qualquer respeito ou curiosidade pelos costumes gentílicos, as cartas de Atouguia revelam inte resses de Estado e relações comerciais — ainda que interpretados de modo diverso pela Corte portuguesa.16 A mesma variação pode ser constatada quanto aos significados da escolha da data para realizar a primeira audiência aos embaixadores. Mais que uma “simples demonstração de hospitalidade”, o calendário fixado pelo vice-rei trazia implícita uma economia política dos rituais que não deixa de ser reveladora. Cerimônia de recepção a estrangeiros ilustres e festa pública dinástica se cruzavam a fim de promover duplas leituras: as tropas marcharam em ho menagem ao rei, mas diante do colégio onde estava hospedado o embaixa dor, e ambos foram saudados pelos mesmos canhões e pela artilharia.17 Asso ciada à festa dinástica, a recepção aos embaixadores africanos revestia-se de maior honra e circunstância. Por outro lado, a comitiva que passava engalanada pelas ruas onde também desfilavam tropas cm trajes dc gala, ao som de foguetes e salvas de artilharia, tornava-se parte integrante dos festejos — além de testem unha importante de uma ocasião em que se reverenciava o poder da Coroa portuguesa. Monterroyo Mascarenhas, porém, aproveitou a iniciativa de associar os dois acontecimentos para marcar a falta de jeito de Atouguia. Mesmo sendo comum a demora de quase três meses na transmis são de notícias através do Atlântico, o autor da Relaçam fez questão de salien tar que, enquanto “toda a Corte da Bahia preparava custosas galas”, Lisboa lamentava “a falta da vida do nosso Augusto rei dom João V, de gloriosa m e mória”. O atraso das notícias aparece, assim, em seu texto, como mais um elem ento de caracterização (política) da figura do vice-rei. Atividade diplomática rotineira, comemoração dinástica destinada a reafir mar os vínculos entre o monarca e seus vassalos ou demonstração de força e poderio da soberania portuguesa, os sentidos das festas ocorridas na Bahia não foram necessariamente unívocos. Até mesmo a importância de cada um desses eventos variou conforme a fonte de informações. A correspondência entre o vice-rei e Lisboa menciona a coincidência das datas mas não dá maior importância ao fato. Monterroyo Mascarenhas atribui a Atouguia a intenção
16 Não deixa de ser interessante observar que os trajes oferecidos pelo vice-rei ao em baixa dor sejam descritos na Relaçam como sendo “à portuguesa” c não à moda do Daomé, como mencionado na correspondência oficial. 17 A iniciativa não parece ser extraordinária no período, já que em 1796 o vice-rei esperou a procissão do Corpo de Deus, quando a tropa desfilava defronte ao palácio, para reccbcr os embaixadores enviados pelo rei de Ajudá em primeira audiência. Assim como em 1751, os emissários africanos foram acolhidos no Convento dos Franciscanos c vestidos por conta da Fazenda Real. Vide Ciado Ribeiro de Lcssa. Crônica de uma embaixada luso-brasileira a Costa d'África em fin s do século XVIII, incluindo o texto da viagem de Á frica no Reino de Daomé escrita pelo Pe. Vicente Ferreira Pires no ano de 1800 e até o presente inédita. São Paulo: Nacional, 1957.
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oportunista de inserir o cortejo dos embaixadores na festa real para “aum en tar com ato tão notável a solenidades daquele dia”. Seu relato, porém, deixa a festa dinástica em segundo plano, preferindo evidenciar o luxo e o orgulho dos embaixadores africanos, invertendo o sentido das pretensões do vice-rei. O cruzamento dos textos revela que as práticas festivas e os relatos sobre elas podiam ter usos políticos diversos e indica também que os protagonistas po diam variar conforme as intenções dos autores e promotores, ou dos olhares que os presenciavam. Para além de embaixadores e autoridades régias, há ainda outros persona gens nesta arena: os negociantes da Bahia, por exemplo, interessados na con tinuidade do tráfico com a Costa da Mina e dispostos a aproveitar todas as oportunidades para defender seus interesses. E preciso não esquecer que a Relaçam indica claramente que o navio que os transportou do Daomé a Salva dor pertencia a um baiano. A volta foi feita no mesmo navio em que o novo diretor da fortaleza de Ajudá, Luís Coelho de Brito, embarcava para a Costa da M ina.18 O relato de Mascarenhas, centrado nos embaixadores, traz boas pistas. Evidentem ente seu texto não foi escrito para deleite da Corte do Dao mé, mas sim — é o mais provável — para ser lido por letrados lisboetas e lusobaianos. Além de “curiosos da História e da Geografia”, alguns destes leitores bem poderiam apreciar as ironias veladas contra Atouguia. Partilhando códi gos que ordenavam narrativas como a Relaçam de Mascarenhas, estes leitores podiam facilmente decifrar o conteúdo político que impregnava o relato dos eventos extraordinários ocorridos na capital do Estado do Brasil. José Freire M onterroyo M ascarenhas era bastante conhecido em Portu gal.19 D epois de estudar H um anidades, Filosofia e Matemática, passara dez anos viajando pela Europa para com pletar sua formação, pertencendo a to das as academias de seu tempo. Capitão de cavalaria, participou da Guerra da Sucessão espanhola entre 1704 e 1710. A longa lista de suas obras iniciase em 1696 e é constituída essencialm ente por narrativas de feitos m ilita res, análises de tratados entre nações e proclamações relativas à política européia, 24 volumes de genealogias de famílias portuguesas, relatos de notícias extraordinárias e outros tantos escritos pios sobre traslados de os sos, canonização de santos, milagres,20 bem como textos sobre a índia,21 o
ls Verger. Op. cit., p. 189. 19 As informações a seguir foram colhidas cm Silva, Innocencio Francisco da. Diccionario Bibliographico Portuguez. Lisboa: Imprensa Nacional, 1860, vol. 4, p. 343-53 e da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Lisboa: Editorial Enciclopédia, 1945, vol. 12, p. 244-5 e vol. 17, p. 760-1. 20 Como no caso da Relação de um form idável e horrendo monstro silvestre quefo i visto e morto nas vizinhanças de Jerusalém: traduzido fielmente de uma que se imprimiu em Palenno com o retrato verdadeiro do dito bicho. Lisboa, 1726. 21 Vide, por exemplo, a Relação dos progressos das armas portuguesas no Estado da índia. Lisboa,
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Brasil22 e várias peças literárias referentes a festas dinásticas, embaixadas, etc.2‘, Mais que tudo, no entanto, Mascarenhas ficou conhecido por ter p u blicado a Gazeta de Lisboa, desde 1715 até sua morte em 1760. Periódico de caráter semi-oficial que trazia notícias diversas e licenças régias, a Gazeta seguia o exemplo dos Mercúrios e Gazetas da segunda m etade do século XVII que durante certo tem po divulgavam notícias sobre guerras e eventos da política européia. A atividade lhe rendeu (posteriorm ente, é claro) o tí tulo de “fundador” do jornalismo em Portugal. A Relaçam sobre a embaixada do Daomé foi escrita logo depois da publica ção da Notícia da execrada conspiração form ada pelos turcos contra o grão-mestre e cavalleiros da ínclita religião m ilitar de São João de M alta (Lisboa, 1750) e antes de O Parnaso transferido de Grécia a Goa: assembléia das Musas, serenata de Apollo; applausos poéticos da feliz viagem do Illmo. e Ex/no. Sr. Marquês de Távora (Lisboa, 1752). Combinando harmoniosamente com o conjunto da produção literária do autor, traz todos os elementos que compõem sua obra: textos ela borados de acordo com as regras acadêmicas do bem escrever, para leituras de políticos e letrados preocupados com os destinos do império e a política européia. O extraordinário e o exótico, neste contexto, constituem tópicas bem marcadas, que pertenciam a um modo de escrever e fazer política carac terístico do Antigo Regime. Dom Luís Pedro Peregrino de Carvalho de M eneses e Ataíde, décimo conde de Atouguia e sexto vice-rei do Estado do Brasil tam bém não era um homem desconhecido. Governara o Algarve antes de ser nomeado para a Bahia, notícia aliás publicada pela Gazeta de Lisboa em 6 de agosto de 1748.24 Um de seus ancestrais, Dom Luís de Ataíde, terceiro a ostentar o título, fora vice-rei da índia por duas vezes ao longo da segunda m etade do século XVI, obtendo grande destaque pelos êxitos de seu governo. Outro, Dom Jerônimo de Ataí de, fora governador do Estado do Brasil, entre 1654 e 1657, chegando a en volver-se em conflitos com a Companhia Geral de Comércio e comerciantes lisboetas a respeito do estanco de alguns gêneros.25 E, ainda que o futuro
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pouco pese sobre o passado, não é demais mencionar que seu filho, casado com uma filha dos Távoras, seria queimado em 1759, juntam ente com outros membros da nobreza portuguesa culpados pelo atentado contra o Dom José I.26 N obre de estirpe, bem relacionado e diretam ente envolvido na política imperial portuguesa, Atouguia não fez mais que expor sua auto-imagem nas cartas que escreveu ao rei. Contrariamente, Monterroyo Mascarenhas, ao optar por descrever todos os títulos do conde no próprio título de sua obra, talvez possa ter pretendido inverter o sentido de tão nobre linhagem, ao contrastála com os eventos da Bahia. A insistência de Monterroyo Mascarenhas em salientar o orgulho africano em contraste com os desacertos de Atouguia, diante da distinção social des tes dois homens, reforça a idéia de que esta Relaçam constituiu peça impor tante no jogo político entre as forças que regeram as relações entre a Bahia, Lisboa e o Daomé ao longo do século XVIII. Certam ente o texto não foi escrito com base em um testem unho pessoal e direto do autor. Embora apre sente dados gerais sobre o reino do Daomé, o autor comete vários deslizes na sua localização geográfica e notadamente ao nomear Kiay Chiri Broncom e não Tegbesu como rei desses domínios africanos.27 É evidente, entretanto, que as regras da escrita em relatos como este não estão pautadas por critérios de verdade mas de verossimilhança: mais que testem unhos de fatos e even tos, oferecem notícias sobre outras práticas, situadas além da matéria de que tratam. Longe da intenção de satisfazer qualquer curiosidade genuína com informações precisas, as descrições de acontecimentos extraordinários e cos tum es diferentes servem a exercícios de habilidade retórica e jogos hierár quicos entre fidalgos e gentis-homens. São peças políticas, no sentido forte (e ancien régime) da palavra. E preciso não esquecer, entretanto, que não apenas os grandes do reino participam de festas e cerimônias com estas, feitas para homenagear o sobe rano. O interesse popular, o burburinho e a corrida do povo para “ver a novi dade” aparecem mencionados na Relaçam e certamente não foram exclusivos desta ocasião. O luxo do embaixador é descrito em pormenores, com desta
vide Afonso Eduardo Martins Z uquete (coord.). Nobreza de Portugal e do Brasil. Lisboa: Editora Enciclopédia, 1960, vol. II, p. 331-7 e Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 3, p. 616-77. 26 Foi, portanto, o último titular do condado, já que o brasão dos Atouguia foi picado e raspa do e o título deixou de existir em virtude das penas infamantes então impostas aos réus. 27 Os deslizes vão todos bem assinalados por Vcrger. Op. cit., p. 258. O reinado de Tegbesu iniciou-se com um período dc grande instabilidade política e militar e, ao longo dos anos 40, recorreu a administradores provinciais e “oficiais” para afirmar-se politicamente. Tal vez Kiay Chiri Broncom possa ser um destes potentados locais, mas não há evidência algu ma sobre isso. Sobre o tema, vide Law, Robin. “Ideologies of royal povver: the reconstruction of political authority on the «Slave Coast», 1680-1750”, in: Africa, 57(3):322-3, 1987 e, do mesmo autor, The Slave Coast o f West Africa, 1550-1750, p. 334-40.
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que para o vestuário, composição do séquito e atitudes de generosidade como na distribuição de moedas aos carregadores da cadeirinha em que foi trans portado. Mais que um relato isento, a narrativa pretende associar a pompa ao impacto causado por ela na população. Assim, logo no desembarque, diante da “grande novidade, nunca vista no Brasil, começou a concorrer gente de toda a parte” . O vice-rei queria aproveitar a ocasião do festejo do aniversário real para fazer ver aos embaixadores, pela magnificência da festa, a grandeza do monarca português e a grande “veneração” de seus vassalos. O embaixa dor e seu séquito, entretanto, parecem ter ofuscado o espetáculo: vestidos com sedas e franjas de ouro, com turbantes e capas, ele e seus dois acompa nhantes foram seguidos por “quantidade de plebe”. Certam ente esta não foi a única vez em que comitivas negras saíram às ruas da Bahia vestidas com trajes vistosos e foram seguidas por toda a gente. Algumas festas públicas comemorativas de eventos dinásticos incluíam dan ças executadas por negros ricamente vestidos. Na vila de Nossa Senhora da Purificação e Santo Amaro, em 1760, o casamento da princesa do Brasil (fu tura rainha Dona Maria I de Portugal) com seu tio contou com uma em bai xada e dança de congos, que saiu às ruas por vários dias. Eis a descrição de uma delas: “Vinha o rei preciosissimamente vestido de uma rica bordadura de cor dões de ouro matizada de luzidas peças de diamantes. Trazia pendente do cinto um formoso lagarto formado dos mesmos cordões, com tal artifício que parecia natural: na cabeça, coroa de ouro, na mão direita, cetro e na esquerda, o chapéu guarnecido de plumas e dobrões, que o faziam ao m es mo tem po rico e vistoso; nos braços e pernas, manilhas de ouro batido; nos sapatos, bordaduras de cordões e matizes de luzidos diamantes. A capa, que lhe descia pelos ombros, era de veludo carmesim agaloada de ouro e forrada de tela branca com agradáveis florões. Pelo ornato do rei se pode m edir o da rainha, que em nada era inferior. Depois de tomarem ambos o assento destinado, lhe fizeram sala os sobas e mais máscaras da sua guarda, saindo depois a dançar as Talheiras e Quicumbis, ao som dos instrum entos próprios do seu uso e rito.”28 Tais exibições, festivas ou rituais, quando feitas diante de uma população que era, na maior parte, negra,29 podiam ganhar sentidos bem diferentes dos
28 Francisco Calmon. Relação dasfaustíssimasfestas 11762], Rio de Janeiro: M EC/SEC/Funarte, 1982, p. 24. 29 Um censo de 1775 contou, para a cidade do Salvador, 35.253 habitantes, dos quais 36% eram brancos, 22,4% negros e mulatos livres c 41,7% negros e mulatos escravos. Vide João J. Reis. Rebelião escrava no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 14-15. Stuart B. Schwartz
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examinados até agora, talvez até mesmo opostos a eles. A passagem de ho mens negros ricamente adornados e recebidos com pompa pelas autoridades locais podia ser desestabilizadora. E o que indica uma carta do governador da Bahia dirigida ao rei, em 1765, a respeito de uns “ilhéus” congregados numa confraria do Espírito Santo. Andavam eles “vestidos de foliões com tambor e pandeiros pelas ruas de Salvador, acompanhados de alguns mulatos que en tre si admitiam para as cantigas e facécias de palavras e obras e um fazendo a farsa de Imperador”. Ainda que a ocasião fosse de folia, como o cortejo era seguido por “muitos mulatos e pretos” que reverenciavam outro soberano que não o de Portugal, o governador mandou que eles se fizessem acompa nhar “só dos brancos, irmãos da Confraria”. Ponderava ele que “em Lisboa, ainda a ínfima plebe se compunha de homens brancos, cria dos entre o temor e o respeito das leis e da cristandade, o que não sucedia na Bahia, onde a ínfima plebe era de mulatos insolentes e presumidos e de pretos brutos, sem consideração alguma, por isso que daqueles folguedos nada se podia esperar mais que mortes entre uns e outros.”30 Os temores do governador da Bahia revelam, pelo avesso, a dimensão do impacto que aqueles daomeanos vestidos de vermelho podem ter causado na plebe de Salvador, grande parte dela composta pelos chamados “negros minas” .31 Ainda que não haja fontes disponíveis que dêem acesso a tais per cepções, elem entos contidos na Relaçam podem nos dar algumas pistas — e tam bém levantar mais questões. Nesse texto, a tensão entre os modos portu gueses e africanos chega ao auge no relato do ritual celebrado pelos embaixa dores enquanto esperavam pela primeira audiência. “No meio tem po desta demora lhes dava o seu calendário uma festa que eles e os seus celebraram, segundo o rito gentílico que professam. Mataram muitas aves e untando-se com o sangue delas, fizeram banque tes de iguarias ao seu modo e, porque não usam de vinho nem de outras bebidas fortes, brindaram à saúde de seu monarca e da felicidade do seu
afirma que, na Bahia, “em princípios do século XIX, os cativos eram cerca de um terço dos 500.000 habitantes da capitania, atingindo até 70% nas regiões dos engenhos”. Segredos internos. São Paulo: Com panhia das Letras, 1988, p. 280. 30 “Ofício do governo interino para o Conde de Oeiras, no qual informa dos excessos pratica dos por um grupo de ilhéus que se haviam reunido sob a designação de Irmandade do Espírito Santo [...]”. Eduardo de Castro c Almeida. “Inventário dos docum entos relativos ao Brasil existentes no Archivo da Marinha e Ultramar de Lisboa”, in: Anais da Biblioteca Nacional, 32:96-8, 1914. 31 Especialm ente nagôs, nome que o tráfico usou para denom inar os povos de língua ioruba, e jejes. Cf. Oliveira. Op. cit., passim.
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governo com café e com chocolate que o conde vice-rei lhes mandava to das as manhãs.” A brevidade da descrição, em meio à narrativa dos acontecimentos diplo máticos, bem como a ausência de quaisquer comentários, revela a opacidade do episódio para o autor da Relaçam. C ertam ente o tom polido que reconhece rito e governo diversos, modos e usos diferentes não pode ser generalizado para outros contatos políticos, diplomáticos ou culturais entre baianos e afri canos. Apesar da menção deslocada ao interdito muçulmano de ingerir bebi das alcoólicas, não deixa de haver algo de etnográfico no texto de Monterroyo Mascarenhas. O respeito aos “modos” e “usos” de outro “país” aparecem nas narrativas de viajantes e ordenam muitas vezes o registro iconográfico dos costumes (como vestuário e práticas cotidianas).32 Aqui, estas linhas podem bem docum entar a realização, em terras baianas, dos famosos costumes, “fes tas de aniversário celebradas em honra de todos os ancestrais e dedicadas especialm ente ao último rei” que envolviam cortejos régios e militares, com bates simulados, cantos, sacrifícios de animais e homens, com grande afluxo de gente, muito luxo e até construções temporárias.33 Do mesmo modo, a distribuição de “vinte moedas de ouro aos negros da cadeirinha do vice-rei em que tinha ido”, feita pelo embaixador ao final da visita ao Palácio, pode ser associada aos rituais de distribuição de presentes que solidificavam os laços entre os governantes e seus súditos no Daomé.34 E possível que, no relato de Monterroyo Mascarenhas, a alteridade tenha sido instrum entaliza da politicamente contra Atouguia. Aos olhos da turba de pele escura que acorreu para ver os muitos espetáculos daquele dia, porém, os significados destes rituais religiosos, militares e políticos podem não ter passado desper cebidos. A “alteridade”, neste caso, pode ter-se transformado em reconheci mento, identidade. A festa pelo aniversário do soberano português, associada à recepção oferecida aos embaixadores, pode bem ter sido entendida como parte integrante de celebrações dedicadas aos ancestrais, uma comemoração “branca” em homenagem ao soberano de um reino que ficava do outro lado do Atlântico, de onde vinha a maior parte dos que assistiam aos cortejos e evoluções da guarda.
32 U artde voyager utilem ent(Amsterdãin: J. Louis de Lorne, 1698) oferece interessante quadro de recomendações ao viajante que pretende entrar em contato com m undos diferentes do seu. A questão é tratada de modo analítico com muito cuidado por Mary Louise Pratt. Im perial Eyes. Travei writing and transculturation. Londres: Routledge, 1992. Cf. também Bcrnard Smith. “Art in the service of Science and travei”, in: The Pacific— In the wake o f the Cook voyages. N ew Haven: Yale Univ. Press, 1992, p. 1-49. ^ 33 C atherine Coquery-Vidrovitch. “La fete des coutumes au Dahomey: historique et essai d ’interprétation”, in: Annales, I9{4-6), 1964; a citação vem da p. 703. 34 Law. “Ideologies of royal power”, p. 333-6.
UMA
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A presença da escravidão e as tensões derivadas do cruzamento entre desi gualdades sociais e diferenças culturais provavelmente cegavam os amedron tados olhares brancos e senhoriais para os sentidos negros de tais eventos. Quase à revelia da pena de Mascarenhas, a Relaçatn registra uma presença africana em terras da América portuguesa bem diferente da provocada pela diáspora do tráfico e da escravização. E aqui, novamente, estamos diante de im portantes elem entos do jogo político que regia as relações entre a Bahia e o Daomé ao longo do século XVIII. Teria Monterroyo Mascarenhas descon fiado do potencial político destas diferenças? □ □□ H u n o l d L a r a é professora do Departamento de História da Univer sidade Estadual de Campinas (Unicamp), autora de Cam pos de Violência. Senhores e E scravos na C a pitania do R io de Janeiro, 1 75 0-1808 (Paz e Terra, 1988) e organizadora de Ordenações F ilip in a s, livro V (Companhia das Letras, 1999). S i l v i a
R E s u M o . As embaixadas enviadas por reis africanos à Bahia e a Lisboa na Segunda metade do século XVIII e início do XIX relacionam-se às vicissitudes do comércio de escravos entre o Brasil e a Costa Ocidental da África. Analisando a embaixada do rei do Daomé enviada à Bahia em 1750 e a forma como foi registrada, discuto como alguns dos procedimentos e rituais que reativavam o domínio português em áreas coloniais podiam ser instrumentalizados por diferentes sujeitos, e como seus signifi cados podiam se transformar quando realizados diante de uma população que era, em sua maior parte, negra.
Lucas Andrade. Cerimonial de Entrada de Bispos. Cerimoniale episcoporum Clementis pape VIII et Innocentrix X, 1713. Revista de História das Idéias, v. 15. Foto André Ryoki.
ENTRADAS EPISCOPAIS NA CAPITANIA DE MINAS GERAIS (1743 E 1748): A TRANSGRESSÃO FORMALIZADA I
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KANTOR
com preender a cultura política do Antigo Re gime deve ter-se em conta sensibilidades e linguagens cotidianas cujos signi ficados imediatos estão perdidos para nós. Este artigo contrapõe e aproxima diferentes formas de manipulação do cerimonial episcopal ocorridos na capi tania de Minas Gerais em meados do século XVIII. Vale lembrar, diferente m ente do restante da América portuguesa, o fato de que a vigência do Padroado Régio na Capitania mineira caracterizou-se, por um lado, pela proibi ção de atuação e de instalação das ordens religiosas regulares e, por outro, pela proliferação das ordens terceiras leigas, eretas, em alguns casos, antes mesmo do estabelecim ento dos poderes municipais na região aurífera.1 O desenvolvimento de um “catolicismo leigo”, praticado pelas irmandades mi neiras e a ausência das missões e ordens regulares possibilitou uma politização mais intensa dos interesses clericais, levando, muitas vezes, a confrontos diretos com as autoridades metropolitanas, mas também consagrando alian ças mais estáveis. Em uma capitania de colonização recente, como é o caso das Minas Gerais na primeira m etade dos setecentos, a pratica da etiqueta nas cerimônias e festas públicas suscitava a ilusão de ordenamento, de sedimentação social, numa sociedade em que as distâncias intra-estamentais ainda eram tênues e estavam por ser fixadas. Assim, os diferentes rituais da vida pública ajuda
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1 Caio César Boschi. Os leigos e o poder. São Paulo: Ática, 1986; José Ferreira Carrato. Igreja, iluminismo e escolas mineiras coloniais. São Paulo: Nacional, Col. Brasiliana n.° 334, 1968.
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vam a formalizar os poderes instituídos, transformando-se num recurso de enraizamento da ordem jurídica metropolitana naquele meio socialmente diversificado. Os rituais e as etiquetas expandiam a fronteira civilizatória da colonização luso-americana, seu aprendizado garantia aos colonos uma dada inserção na órbita imperial portuguesa. A seguir, apresento um enquadram ento geral das tensões provocadas pela migração de liturgias da esfera eclesiástica à esfera monárquica no início da era moderna, a partir do qual retomo a experiência portuguesa e suas proje ções no mundo ultramarino, utilizando dois episódios que envolveram o uso e a manipulação dos códigos cerimoniais episcopais. AS DO
DISPUTAS PODER
LITÚRGICAS
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EUROPA
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A reelaboração das cerimônias e rituais públicos orientados para a constru ção de uma nova metafísica do corpo político do monarca foi um fenômeno próprio da transição moderna. As festas de recepção da realeza medieval, por exemplo, estavam associadas à concessão de certos privilégios dados às câ maras municipais em troca do direito de pousada e coleta de impostos em gêneros pelas cortes itinerantes.2 O processo de centralização do poder mo nárquico e a sedentarização das cortes européias no século XVII levaram à superação definitiva do modelo de vassalagem praticado nas entradas públi cas da realeza medieval, consagrando um novo modelo de representação da soberania régia. Na época moderna, articulação simbólica entre o corpo político do rei e o corpo político do reino fez convergir tradições festivas de diferentes matri zes.3 Assiste-se nas cidades-estado italianas e flamengas à retom ada dos Triunfos Romanos, dentro do espírito renascentista. Nas monarquias ibéricas, estimuladas pelos acordos do Padroado Régio, a retomada dos Triunfos ad quiriu conotação marcadamente cristã, embora seja curioso notar que tanto a procissão de Corpus Christi, como as entradas régias (Joyeuses Entrées) te nham partido da reciclagem renascentista dos Triunfos Romanos a partir do século XIV.4
2 Rita Costa Gomes. A corte dos reis de Portugal no fin a l da Idade Média. Lisboa: Difcl, 1995; Jacques Revcl. A invenção da sociedade. Lisboa: Difel, 1990, p. 102-12; Ana Maria Alves. Entradas régias portuguesas. Lisboa: Horizonte, 1986, p. 20. 3 Affonso Avilla. Resíduos seiscentistas em M inas — textos do século do ouro e asprojeções do mundo barroco. 2 v. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1967; Rui Bebiano. D. João V: poder e espetáculo. Aveiro: Livraria E stante Editora, 1987; José L uiz D utra de Toledo. Simbologia e luxo no Triunfo Eucarístico — Villa Rica — 1733. Tese de mestrado. Franca: U nesp, 1990. 4 Jacob Burckhardt. A cultura do Renascimento na Itália. Brasília. Brasília: EdU nB, 1991,
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Entre as linhas de força que marcam a nova conformação das festividades públicas na Europa moderna, convém destacar a multissecular disputa de insígnias e ritos entre os monarcas europeus e a Santa Sé. As tensões no cam po litúrgico podem ser atribuídas ao fato de que a confirmação da sacralidade da realeza, sua legitimidade e legalidade, dependia do apoio papal. Fato que obrigava os monarcas católicos à definição das competências litúrgicas e dos limites entre os poderes eclesiásticos e civis. As querelas sobre o significado e monopólio dos ritos e liturgias tiveram ressonância social e política, e criaram possibilidades de indeterminação dos significados oficialmente instituídos, propiciando aos súditos o exercício de uma certa permissividade simbólica que fez convergir práticas formais e informais de poder durante as festivida des públicas. O uso do pálio nas solenidades de recepção aos reis, levado à cabeça do soberano, exemplifica o processo de transferência de um ritual usado em honra ao Santíssimo Sacramento na procissão de Corpus Christi para o domínio secular. As reformas tomistas, empreendidas na baixa Idade Média, transfor maram o conceito de corpo místico da Igreja em corpo místico de Cristo, abrindo margem para secularização do conceito. A metáfora do matrimônio entre o rei e o reino era no fundo uma versão secularizada do noivado entre a autoridade episcopal e a Igreja. Assim, observa-se que o Estado monárquico procurou estabelecer um modelo paralelo ao da Igreja. Kantorowicz, com en tando a migração simbólica e metafórica operada entre os dirigentes espiritu ais e seculares no final da Idade Média, escreveu: “o sacerdotium adquiriu uma aparência imperial e o regnum um toque clerical”.5 Porém tais homologias tinham tam bém os seus limites, pois, segundo Marc Bloch, a assimilação da realeza ao sacerdócio não podia e nem deveria realizar-se plenamente. Ao longo de toda a época moderna, a paridade entre os rituais de sagração foi fonte de tensões, levando à edição de numerosas bulas papais e decretos reais, em que se procuravam diferenciar energicamente as respectivas li turgias.6
p. 254; Bernard G uenée & F. Lehoux. Les entrées royales françaises de 1328 à 1515. Paris, 1969; Jaime de Almeida escreveu; “no século XV, as Entradas Régias buscaram seu m ode lo na procissão de Corpus Christi e nos triunfos romanos”; ver o artigo “Todas as festas, a festa?”, in: Tania N. Swain. História plural. Brasília: EdUnB, 1993, p. 164. 5 Trata-se da formulação da teoria do corpus republicae mysticum, elaborada originalmente por Vicente Beauvais no século XII. Ernest Kantorowicz. Los dos cueipos dei rei. Madri: Alianza Universidad, 1985, p. 188 e 194. Bloch cita a bula de Inocencio III que constitui o mais autorizado sumário da doutrina ortodoxa da unção. As modalidades dos dois ritos, o episcopal e o régio, são aí energica m ente diferenciadas. Marc Bloch. Os reis taumaturgos. São Paulo: Com panhia das Letras, p. 156.
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Em Portugal, a partir do reinado de D. Afonso V, já se registra o uso do pálio nas cerimônias de entradas régias. O regimento das Entradas Régias, editado durante o governo de D. Manuel (1502), determ inou que o pálio deveria ser oferecido pelo rei a uma instituição religiosa. Com a oferta do pálio, o rei desinvestia-se temporariamente dos gestos episcopais e lembrava os deveres de reciprocidade conferidos pelo Padroado Régio. Essas m udan ças exprimem a nova dinâmica de relacionamento entre os poderes locais, eclesiásticos e régios.7 Segundo José Mattoso, a intensidade das lutas entre reis e os bispos teria provocado fenômenos de distanciamento mais nítidos entre as liturgias ecle siástica e monárquica em Portugal. As práticas litúrgicas dos primeiros reis portugueses são alvo de um antigo e renovado debate historiográfico sobre a sacralidade (ou não) da realeza lusitana no que se refere ao uso das cerimô nias de coroamento e de unção. O historiador chama atenção para o fato de que, com a instituição do Padroado Régio, a prática da unção podia ser inter pretada como ato de submissão da realeza ao poder eclesiástico.* Em 1611, durante o domínio ibérico, Filipe II emitiu carta régia proibindo que os bispos entrassem a cavalo sob o pálio em suas respectivas dioceses.9 A medida esteve em consonância com outras restrições impostas aos religiosos nos domínio ultramarinos, tais como o im pedim ento que vice-reis e governa dores das índias dessem aldeias e terras da Coroa às ordens religiosas ou pessoas eclesiásticas por mercê ou qualquer outro título.10 D esde sempre, os direitos sobre a tributação dos rendimentos das ordens religiosas constituiu um ponto nevrálgico nas relações diplomáticas entre as coroas ibéricas e a Santa Sé.11 A criação da Congregação da Propaganda Fide (1622) pôs em xe
7 Eduardo Freire de Oliveira. Elementos para a história do município de Lisboa, v. 1. Lisboa: Tip. Universal, p. 82 e 180-2. Cf. Ana Maria Alves. Entradas Régias, p. 30. 8 José M attoso. “A coroação dos primeiros reis de Portugal”, in: Ramada C urto & Francis co B ethencourt (orgs.). A memória da nação. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1991, p. 187; Rita Costa Gomes. A corte dos reis de Portugal nofinal da Idade Média. Lisboa: Difel, 1995, p. 298-303. 9 Cara régia de 8 de janeiro de 1611 endereçada à câmara de Coimbra. Cf. Livro 2 da Correa, Branquinho de Carvalho (org.), Biblioteca Municipal, 1958, p. 231. 10 Fortunato de Almeida. História da Igreja em Portugal, 8 v. Coimbra: Imprensa Acadêmica, 1917-1924, v. 2 e 3 da edição de 1968, p. 82. 11 Refiro-me às freqüentes celeumas em torno dos coletores apostólicos que provocaram rom pimentos temporários com a Santa Sé entre 1636-1639. Luis Reis Torgal. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração, cap. II: “Os problemas da legitimação papal sobre a provi são dos bispados”. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981; Antonio Manoel
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que os direitos de exclusividade do Padroado nas missões ultramarinas asiáti cas. A equiparação dos decretos régios aos breves pontifícios era questionada pela cúpula romana. O rei, por sua vez, também temia que o uso do cavalo e do pálio nas entradas públicas dos bispos atingisse a mística da realeza. Em que pese a proibição régia naquele momento, o costume dos bispos de entra rem a cavalo sob o pálio se generalizou na península ibérica, conforme têm demonstrado os trabalhos de José Pedro Paiva.12 Nos distantes territórios de conquista, tornava-se estratégico garantir as honras prelatícias, pois a colonização dependia em grande medida do braço eclesiásti co e, por isso mesmo, impunha uma série de adaptações às atividades dos bis pos no Ultramar. Entre elas, por exemplo: conceder a indulgência plenária três vezes ao ano, transferir a data das festas de Corpus Christi em caso de chuvas, abolir a mácula de infâmia de pessoas eclesiásticas, delegar aos sacerdotes o poder de crismar, de benzer os paramentos e utensílios usados na missa (com exceção do cálice e da pátena), de utilizar durante cinco anos os santos óleos, ou de erigir igrejas, capelas ou cemitérios na ausência de um prelado13. Em princípio, as entradas públicas e posse nas dioceses deveriam receber os cuida dos máximos das autoridades e da população local. Os bispos tinham privilégios de precedência sobre as autoridade temporais; a eles era concedido o direito de cortesias militares, e estavam equiparados aos Cavaleiros da Ordem de Cristo.14 Em 1600, o Papa Clem ente VIII editou o Cerimonial dos Bispos que, em tese, deveria ser adotado em todo o orbe cristão. Uma versão portuguesa do cerimonial dos bispos foi publicada somente em 1671,15 logo após o estabele cimento dos acordos de paz com a Espanha. Como é sabido, a ascensão da dinastia de Bragança (1640) não recebeu o apoio do papado, que tendeu aos interesses da Espanha naquela circunstância. Urbano VIII (1623-1644) recusou-se a aceitar um embaixador português em Roma, negando-se, também, a confirmar os bispos nomeados por D. João IV. A querela em torno das bulas
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Hespanha. As vésperas de Leviatã, cap. “Privilégios corporativos: o clero, a nobreza e outros estados privilegiados”. Coimbra: Almedina, 1994. Ver trabalho de José Pedro Paiva sobre as entradas episcopais: “O cerimonial da entrada dos bispos em suas dioceses (1741-1757)”, in: Revista de História das Ideias, 15:120, 1993. Fortunato de Almeida. História da Igreja em Portugal, vol. II. Coimbra: Im prensa Acadêmi ca, 1968, p. 255-6; Cândido M endes de Almeida. Direito civile eclesiástico brasileiro antigo e moderno esuas relações com o direito canônico, tomo I. Rio dc Janeiro: Garnier, 1866, p. 1025; Arlindo Rubert. Igreja no Brasil, vol. II. Rio Grande do Sul: Pallotti, 1988, p. 254-5. Alvará de 30 de junho de 1588; carta régia de 8 de janeiro de 1611; lei de 29 de janeiro de 1739, carta régia 29 dc janeiro de 1742, carta régia de 27 dc fevereiro de 1743. José Carlos dc Macedo Soares. Fontes da história da Igreja católica no Brasil. São Paulo, 1954, p. 6. Refiro-me à publicação de Lucas Andrade. Acçoens espiscopaes tiradas do Pontificial Romano e cerimonial dos bispos com hum breve compêndio dos poderes e privilégios dos bispos. Joam da Costa, 1671; José Pedro Paiva comparou as entradas episcopais com o modelo descrito no manual de Lucas Andrade.
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de sagração dos bispos estrem eceu por quase cinqüenta anos as relações en tre a coroa portuguesa e a tiara papal. Em 1649, havia apenas três bispos confirmados em todo o império português. D. João IV regulamentou o fun cionamento dos tribunais eclesiásticos em seu reinado, procurando resolver o problema da intervenção dos juizes apostólicos nos tribunais do reino, e evi tar o excesso de conflitos entre o direito civil e o canônico. Mas foi somente após os acordos de paz firmados entre Espanha e Portugal que os problemas quanto ao provimento dos bispados foram sanados e o rei português nova m ente reconhecido pela Santa Sé.16 As tensões diplomáticas com a Santa Sé só seriam definitivam ente equa cionadas no governo de D. João V, nos anos de 1728 a 1732; a partir de então a Coroa instituiu um período depax litúrgica. No que toca ao uso do pálio, D. João V determinou que os reis usariam o pálio de seda, com brocados de ouro, ao passo que os bispos obtiveram permissão de entrar sob um tradicional pálio feito de lã.17 A política de aumento das competências episcopais tam bém convinha aos reis, mas exigia uma materialização simbólica que diferen ciasse as liturgias monárquicas e eclesiásticas.18 De toda forma, deve ter-se em linha de conta que a colonização ultramari na criou novas situações de enfrentam ento entre as esferas de poder m etro politano e eclesiástico; pois era exatamente nos territórios de conquista que a manutenção dos dois gládios unidos se tornava imprescindível e exigia en caminhamentos políticos estratégicos, mediações que ampliassem a força po lítica das camadas dirigentes locais (clérigos e seculares) tendo em vista a necessidade de controlar as populações escravas e forras, assim como as rebeldias fiscais e o contrabando. Passo, agora, à reconstituição parcial de dois episódios que se relacionam diretam ente com a prática dos rituais cm situação colonial. Dois eventos que exemplificam as tensões entre as esferas de poder temporal e espiritual na capitania de Minas Gerais na conjuntura de apogeu da extração aurífera em meados do século XVIII. A partir da comparação entre o episódio do “roubo dos badalos” (1743) e das festas de inauguração do bispado de Mariana (1748) procura-se observar os diferentes usos e sentidos que os rituais de deferência às autoridades adquiriram na sociedade colonial. Contrapostos, os dois episó dios revelam uma incorporação e um domínio pleno da linguagem ritualística que permitia aos colonos e clérigos lançar mão de inúmeras estratégias de apropriação simbólica.
16 Fortunato de Almeida. Op. cit., p. 335-42. 17 Frei Basilio Rower. Dicionário litúrgico. Rio de Janeiro: Vozes, 1947, p. 164. ls íris Kantor. Pacto festivo em M inas colonial. Dissertação de mestrado. D epartam ento de H is tória, FFLCH /U SP, 1996.
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Nos dois eventos, estiveram em jogo as tensões entre as esferas da ouvido ria e o bispado no tocante à tributação das irmandades e direitos de jurisdição penal. Chama atenção o fato de que o mesmo grupo envolvido no “roubo dos badalos” em 1743, estivesse em penhado na promoção das festividades de posse do primeiro bispo de Mariana em 1748. A participação do clero local e dos colonos nos dois episódios constituiu, ao meu modo de ver, uma reação à fixação da rede episcopal e a tentativa de garantir uma margem de autonomia à atuação do corpo clerical na região. A DOS
LINGUAGEM BADALOS
EM
DOS
SINOS:
RlBEIRÂO
O ROUBO DO
CARMO
Em 1743, D. João da Cruz, bispo do Rio de Janeiro, realizou sua segunda visita pastoral ao território da capitania de Minas que estava sob sua custodia. Esta não era sua primeira visita, dois anos antes ele tinha passado pela região inspecionando as igrejas, capelas e irmandades. Em suas visitas, D. João da Cruz costumava autuar as contas das irmandades, restringindo o número de festas realizadas, proibindo a utilização de fogos de artifícios, procissões no turnas ou toda e qualquer festividade realizada fora da Igreja. Além de todos esses constrangimentos, obrigou os padres e coagiu os leigos a lançarem fora suas concubinas. Na noite de 21 de junho de 1743, quando o bispo fazia sua retirada pública da vila de Ribeirão do Carmo (futura cidade de Mariana, sede do bispado mineiro) indo em direção à freguesia dos Camargos, os repiques dos sinos não foram ouvidos e os sineiros deram falta de todos os badalos dos quatro sinos da matriz e da capela de São Gonçalo. Diante do escandaloso silêncio do sinos, alguns moradores teriam se apressado em utilizar martelos de ferro para se despedirem com a devida dignidade do prelado, segundo o relato do bispo ao rei.19Im ediatam ente, o bispo mandou tirar devassa para averiguar os culpados e o processo começou a tramitar no Conselho Ultramarino. Segundo D. João da Cruz, entre os envolvidos constavam o ouvidor, o in tendente, a nata graúda da vila e alguns clérigos. Na sua correspondência ao rei, acusava o Ouvidor Caetano Furtado de M endonça e o Intendente D o mingos Pinheiro de terem encabeçado a transgressão do ritual. A rejeição ao bispo, segundo ele, teria sido originada a propósito da remoção do vigário da vara Padre Francisco Pinheiro da Afonseca para outra freguesia. O padre era formado em cânones em Coimbra e exercia funções de provisor do bispado desde 1736. O referido sacerdote tinha sido destituído dos seus cargos e sus penso pelo bispo, atitude que atraiu a ira de sua influente clientela na vila. 19 Correspondência do bispo João da Cruz (co. cx 31), reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa
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D. João da Cruz relata que o dito vigário tinha armado seus sequazes, indo contra o vigário encomendado da matriz, Padre João Pereira Ribeiro, por ele não ter consentido em promover as obras na capela-mor. Com o apoio dos moradores, cobertura do ouvidor e do intendente, o vigário teria enviado uma petição ao rei. A devassa do bispo foi prontam ente contestada pelo Ouvidor Caetano Furtado de Mendonça. Este último, alegava que o bispo tinha usurpado po deres ao mandar prender os leigos, e que o dito episódio estava fora da alçada eclesiástica. Em earta ao secretário de Estado, o ouvidor denunciava os maus modos estam entais do prelado — este teria mandado “m eter em ferros e em troncos os presos como se usava fazer aos escravos”.20 O bispo por sua vez denunciava outras picardias do ouvidor: “Estando já em visita na freguesia do Camargos me resolvi só então a entender com tais homens, e mandei tirar devassa de tão excessiva escan dalosa injúria e logo o ouvidor e os tais parciais começaram a publicar que eu não podia tirar devassa de comissão nem ser o caso de menos [í/r] grave injúria, fazendo conduzir para isto livros de direito publicam ente pelas ruas da vila e palestras uns em casa de outros querendo assim desvanecer o seguim ento da devassa mas como viam que sempre se tirava e temiam serem manifestos e compreendidos ameaçaram com seu poder de valentia m etendo tal horror às testem unhas pasquins escritos de promessas de pan cadas pelos lugares públicos e subornando particularmente as pessoas que tinha a certeza deles serem os culpados de sorte que nenhum se atrevesse a falar nem depor contra eles.”21 O episódio deu lugar a um conflito de competências demasiadamente fre qüente. O bispo mandou prender o tal vigário da vara na cadeia da vila. o ouvidor mandou soltar, o vigário fugiu e se refugiou em easa de seus aliados. O bispo acusou o juiz de fora e o capitão-mor da vila de se negarem a dar auxílio quando ele resolveu transferir os culpados da cadeia de Ribeirão do Carmo para o aljube do Rio de Janeiro. Os presos resistiram e tiveram a pro teção das justiças seculares e das ordenanças: “[ . . . ] dc repente sc achou o terreiro cheio de gente armada com motim para impedir que as justiças eclesiásticas não levassem os presos"."
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E N T R A D A S E P I S C O P A I S NA C A P I T A N I A D E M I N A S G E R A I S
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D iante da conflagração geral, o rei determinou que o juiz de fora abrisse uma nova devassa. Nessa altura, o juiz fora teria recebido uma carta anônima revelando que os badalos roubados tinham sido escondidos num córrego pró ximo à catedral. A segunda devassa apurou a inocência dos acusados pela justiça episcopal e indiciou os autores da descortesia pública: o Padre Fran cisco da Costa e Oliveira e o Padre Antônio Sarmento. Apesar disso, depois de encerrado episódio, tanto o ouvidor como o bispo tiveram destino im pre visto. O ouvidor foi preso e remetido para a prisão do Limoeiro em Lisboa e o bispo renunciou ao seu cargo no bispado do Rio de Janeiro em 1745. Em ambos os casos, devem ter contado, certamente, outros tipos de desavenças que inviabilizaram o exercício das respectivas autoridades. A
MEMÓRIA
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LOCAL
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NOS
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PANEGÍRICOS: p i s c o p a l
Um primeiro elem ento de conexão entre os dois eventos relaciona-se com o fato de que alguns dos principais acusados da conspiração silenciosa estiveram envolvidos com a organização das festividades de recepção e posse do primeiro bispo na Sé de Mariana. Foram os mesmo homens que finan ciaram a montagem dos carros alegóricos, estiveram presentes, em posições de distinção durante o cortejo triunfal, acompanharam a procissão que saiu da capela de São Gonçalo, segurando as varas do pálio episcopal e tudo o m ais... Não cabe aqui reconstituir em detalhe as circunstâncias de publicação do panegírico das festividades denominado Aureo Trono Episcopal, editado em Lisboa no ano de 1749, sob auspícios do Padre Francisco Ribeiro da Silva.23 Para os leitores do panegírico, chama atenção o rigorismo excessivo com que os moradores e o clero local conduziram as cerimônias de investidura do novo bispo. Ao compararmos o panegírico episcopal mineiro com outros similares no mesmo período, salta aos olhos a necessidade de afirmação dos grupos locais diante da Coroa e do bispo recém-empossado. Considerando que os panegíricos não devem ser tomados como retratos “fiéis”, uma vez que exa geraram certos aspectos da realidade e negligenciam outros, pode-se inferir que este gênero de documentação escrita era produzida pelo colonato letrado para circular no âmbito da Corte lisboeta, constituindo um instrum ento de representação coletiva.2,4 A memória da colonização construída nos panegíri
23 Affonso Av i11a. Resíduos seiscentistas em Minas — textos do século do ouro e asprojeções do mundo barroco, 2 v. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1967. 24 Diogo Rarnuda Curto. “A memória da nação”, in: F Bethencourt & Diogo Curto (orgs.). Lisboa: 3d da Costa Editora, 1991, p. 254; Angel Rama. j4 cidade das letras, trad. Em irSader. .São Paulo: Brasiliensc, 1985, p. 44.
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IRIS KANTOR
cos, fossem eles festivos, fúnebres ou episcopais constituía um dos recursos de afirmação das alianças entre os colonos e a Coroa. O que interessa ressaltar aqui é o fato de que, nas festas de recepção do primeiro bispo em Mariana, o clero mineiro esteve em penhado em seguir com o máximo rigor todas prescrições ditadas pelos manuais episcopais vi gentes na época. São raríssimos os panegíricos episcopais portugueses em que se descrevem as seis etapas completas de uma cerimônia de investi dura.25 Qual teria sido a transgressão nesse último caso, uma vez que se seguiu com todo rigor os manuais episcopais? No caso, a transgressão não reside na prática do cerimonial em si mesmo, mas na forma como os colonos e o clero local registraram as festividades, pois, por debaixo do brilho da festa, sabe-se que não foi menor a resistência que estes ofereceram ao exercício da autori dade do novo bispo desde os primeiros momentos de sua gestão.26 O próprio editor do panegírico e financiador do evento, o Padre Francisco Ribeiro da Silva — chegou a ser expulso do cabido diocesano dois anos após a posse. E não deixou por menos, processou o bispo pelo não-pagamento das despesas com a instalação e acomodação da comitiva do bispo. Um processo que cor reu todas as instâncias dos tribunais seculares durante dezessete anos. D esde os primeiros momentos o bispo encontrou dificuldade de toda or dem, cabido rebelde, confronto freqüente com os vereadores dos senados da câmara de Mariana e disputas acérrimas com a ouvidoria. A instalação do novo bispado na região obrigava ao reequacionamento das forças políticas, ferindo interesses largamente enraizados do clero local, acostumado à relati va autonomia em pleno auge da exploração aurífera. Em 1749, o Ouvidor Caetano da Costa Matoso mandava verificar as contas do bispado e denun ciava o bispo de cobrar taxas em demasia e de exceder-se nos gastos suntuários. Ouvidor e bispo disputaram palmo a palmo o direito de cobrança dos
25 Para informações mais precisas vejam-se os trabalhos de José Pedro Paiva. Op. cit. Etapas definidas pelos manuais episcopais: 1. relato da viagem de chegada e preparativos de re cepção; 2. cerimônia de recepção dos bispos à porta da cidade; 3. paramentaçâo solene, beijo da cruz, boas-vindas dos vereadores, procissão solene até a catedral; 4. ritual na igreja; 5. cerimonial de entrada no paço episcopal; 6. festejos públicos. 26 Diogo de Vasconcellos. Op. cit.; Geraldo Chizoti. 0 cabido de Mariana (1747-1820). T ese de mestrado. Franca: Departam ento de História, Unesp, 1984; Luiz Carlos Villalta. A torpeza
diversificada dos vícios: celibato, concubinato e casamento no mundo dos letrados de Minas Gerais (1748-1801). Dissertação de mestrado. São Paulo: D epartam ento de História: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1944; Raimundo Trindade. Arquidiocese de Mariana, 3 v. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1953; do mesmo autor: Archidiocese de Mariana, 3 v. São Paulo: Officina do Liceu Sagrado Coração de Jesus, 1928; Lana Lage da Gama Lima. A confissão pelo avesso: o crime de solicitação no Brasil coloni al. Tese de doutorado. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1990.
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tributos das irmandades leigas. Essa disputa também foi longe e o ouvidor acabaria sendo removido do seu posto, por esse e por outros motivos.27 A
MANIPULAÇÃO EM
SITUAÇÃO
DAS
ETIQUETAS
COLONIAL
A politização das liturgias só podia fazer sentido num contexto em que a linguagem essencialmente jurídica dos ritos era coletivamente apreendida e compartilhada por diferentes grupos na escala social.28 Tanto a transgressão das regras de etiqueta quanto o exercício extremo da norma permitiam a publicização e a politização dos conflitos. Colonos, clérigos e até mesmo os membros das confrarias negras estavam familiarizados com as regras de pre cedência em ocasiões públicas.29 Sérgio Buarque Holanda e Laura de Mello e Souza interpretaram o “des crédito dos formalismos” na sociedade mineira como uma das muitas expres sões resultantes da convivência ambígua entre os critérios da meritocracia e os códigos estamentais.',° Convém sublinhar que a diversidade interna das populações recém-chegadas à capitania das Minas, assim como a relativa mobilidade social ascendente e descendente, tornavam as cerimônias e ri tuais públicos um meio de legitimação simbólica da ordem política colonial. Conforme notou Adalgisa Arantes Campos, ao chamar atenção para o cará ter normativo das práticas festivas barrocas,31 as quais tendiam à naturaliza ção da ordem hierárquica do mundo social, pode-se dizer que as etiquetas serviram de instrumentos importantes para a fixação das hierarquias sociais. N o m undo ultramarino, o uso de tais códigos tinha significação ainda mais ampla do que no Reino. Tanto o caso do roubo dos badalos, como o requinte dos rituais de posse do
11 Marco Magalhães de Aguiar. Vila Rica dos confrades: soáabilidade confraria! entre negros e mulatos no século XVIII. T ese de mestrado: São Paulo: D epartam ento de História da Facul dade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1993; Luciano R. Figueiredo (estudo critico). Códicedo Ouvidor Caetano da Costa Matoso. Coleção Mineiriana. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2000. 28 Alan Corbin. Les cloches de la terre. Albin Michel, 1994. 29 Fritz Teixeira de Salles. Associações religiosas no ciclo do ouro. Belo Horizonte: Universidade de Minas Gerais, 1963. 30 Laura de Mello e Souza. Desclassificados do ouro. 2 “ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986 e o “Os ricos, os pobres e a revolta nas Minas do século XVIII: 1707-1789”, in: Análise & Conjuntu ra, 4(2/3), mai.-dez. Belo Horizonte, 1989; Marco Antonio Silveira. O universo do indistinto: Estado e sociedade nas Minas setecentistas (1735-1808). Tese de mestrado. São Paulo: Facul dade de Filosofia, Letras c Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1994. 31 Adalgisa Arantes Campos. “O Triunfo Eucarístico: hierarquias e universalidade”, in: Bar roco, 75:461-70, Belo Horizonte, 1989; A terceira devoção do setecentos mineiro: o culto a São Miguele Almas. Tese de doutorado. São Paulo: Departam ento de História da Faculdade de Filosofia, Letras c Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1994.
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I RIS K A N T O R
primeiro bispo, descritos no panegírico Aureo Throno Episcopal, tinham sua dimensão transgressora, ainda que fossem também um atestado concreto do enraizamento da ordem política metropolitana na América. O domínio pleno desses códigos de sociabilidade permitia aos diferentes grupos sociais uma visibilidade importante, tornando as disputas e a concorrência pelas prece dências momentos de grande efervescência política. Além disso, a reprodu ção das instituições políticas metropolitanas e a incorporação de uma deter minada cultura política no meio escravista revelavam situações novas aos colonato português. Portanto, pode-se dizer que a reprodução da ordem polí tica metropolitana na colônia também dependeu do aprendizado das formas de sociabilidade pública. Os ritos e as etiquetas eram uma forma de reconhe cimento dos elos que ligavam o colonato ao orbe cristão e aos quadrantes do Império Português, gestos e procedimentos que uniam o Novo M undo ao Velho, formas e sinais universalizantes, transmitidos pela língua, pela reli gião, pelas instituições administrativas, pela concessão de títulos, cargos, sesmarias, mas, também, pela incorporação (e manipulação) das códigos de soci abilidade pública praticado nas festividades. □ □ □ I R i s K a n t o r é mestra e doutoranda da Universidade de São Paulo e professora da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Publicou “Aparência e visibilidade social nas cerimônias públicas setecentistas em Minas Colonial”, in: Pós-História. Assis: Unesp, 1998, p. 163-74 e “Um visitador na periferia do império português”, in: Varia. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2000. R F. s u M o . O artigo analisa algumas disputas em torno da práticas litúrgicas de con sagração de autoridades régias e eclesiásticas na Europa moderna. Contrastando dois episódios que ilustram formas diferentes de apropriação dos rituais episcopais na capitania de Minas Gerais em meados do século XVIII, procura-se compreender a importância dos rituais públicos no processo de enraizamento da ordem política me tropolitana na América lusitana.
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Frontispício da Exposição Fúnebre Symbolica das Exéquias, que a memorável Morte da Sereníssima Senhora D. Maria Francisca Dorothéa, Infanta de Portugal [. . .] Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Foto An dré Ryoki.
FESTAS BARROCAS E VIDA COTIDIANA EM MINAS GERAIS L
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M i n a s G e r a i s apresenta uma série de peculiari dades no contexto da história da América portuguesa. Até 1694, fora um ter ritório vagamente conhecido como parte dos “sertões” da vila de São Paulo, esta sim uma região de colonização antiga e de população já bem sedim enta da no final do século XVII. Havia sido percorrida por paulistas em busca de prata e de índios, e na década de 70 foi novamente freqüentada por habitan tes de São Paulo empenhados na descoberta de esmeraldas. Foram estes, comandados por Fernão Dias Pais, que estabeleceram um sistema de roças de mantimentos e, assim, tornaram possíveis outras entradas, posteriores. Não se descobriram esmeraldas, mas entre 1694 e 1698 achou-se ouro de aluvião em vários pontos da região central do atual estado de Minas Gerais, onde hoje se situam as cidades de Ouro Preto, Mariana e Sabará, nas cabeceiras do rio Doce. A descoberta do ouro em Minas deslocou o eixo econômico do império português no Atlântico sul. Pernam buco e Bahia, as antigas regiões açucareiras, começaram a ver os escravos que chegavam para trabalhar nas plan tações de cana serem deslocados para as Minas, onde alcançavam melhor preço. Hom ens livres, brancos ou mestiços, tam bém abandonavam os por tos litorâneos e partiam para as Minas em busca de riqueza fácil. Do outro lado do Atlântico, de Portugal, a movimentação de pessoas atingiu propor ções até então nunca vistas, e as autoridades m etropolitanas tentaram , por c a p i t a n i a
d e
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L AUR A DK M H L L O
F. S O U Z A
meio de medidas restritivas, dificultar o deslocamento populacional para a América.1 Entre 1711 e 1715, criaram-se as primeiras vilas em território mineiro. Já então os fiéis tinham erigido capelas para os santos de sua devoção, e muitas vilas se originaram desses locais de culto. D esde os primeiros tempos, Nossa Senhora do Rosário foi o primeiro entre os oragos, seguida, em ordem de importância, pelo Santíssimo Sacramento, São Miguel e Almas do Purgató rio, Nossa Senhora das Mercês, Nossa Senhora da Conceição, São Francisco de Assis, Santana, Senhor dos Passos, Santo Antônio, São Gonçalo e São Gonçalo Garcia. Rosário, Mercês e São Gonçalo eram devoções especialm ente populares entre os negros, e o destaque que desde cedo obtiveram indica a presença das populações de origem africana no processo de ocupação de Minas.2 Em 1745 criou-se o primeiro bispado da região, com sede em Mariana. D esde 1721, contudo, têm-se registros de visitas pastorais realizadas em M i nas por determinação do bispado do Rio de Janeiro, ao qual a região se achava subordinada do ponto de vista eclesiástico, pois, no que diz respeito à adm i nistração, constituía uma capitania independente desde 1720, quando foi desmem brada da capitania de São Paulo. O que no litoral ou em velhos centros como São Paulo de Piratininga se processara ao longo de dois séculos — o devassamento, a ocupação, a sedi mentação das gentes, o surgimento dos núcleos urbanos, das câmaras, da jus tiça real — não tomaria, nas Minas, mais do que algumas décadas. A socieda de que aí se formou teve as características das suas congêneres originadas em frentes pioneiras e em regiões fronteiriças ocupadas do dia para a noite: ten sa, violenta, arrivista, movediça ou, como têm preferido mais recentem ente os estudiosos, aluvional.3 Carente de tradições e de memória, teve de inventá-las à sua maneira. N um primeiro momento, as normas e as regras foram deixadas de lado, e, assim, homens de cor ou mestiços puderam integrar ins tituições que, em princípio, impunham restrições racistas ao seu ingresso, como as câmaras, as irmandades de homens ricos e as santas casas de mise ricórdia. N um segundo momento, contudo, foi preciso recorrer a mecanis mos que reforçassem as hierarquias e a estima social. Nesse sentido, se os
1 Cf. Laura de Mello e Souza & Maria Fernanda Baptista Bicalho. 1680-1720 — o império deste mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 2 Caio Cesar Boschi. Os leigos e o poder. São Paulo: Ática, 1986, Anexo 3, p. 187. 3 Marco Antonio Silveira. O universo do indistinto. São Paulo: Hucitec, 1997. Do mesmo au tor, Fama pública — poder e costume nas Minas setecentistas. Tese de doutorado. São Paulo: D epartam ento de História, FFLCH-USP, 2000. Para uma discussão ainda insuperada da sociedade mineira, Sérgio Buarque dc Holanda. “M etais e pedras preciosas”, in: História geral da civilização brasileira, vol. 2, São Paulo, 1960, p. 259-310.
FESTAS BA RR OCA S E VIDA C O T I D I A N A EM M IN AS G E R A IS
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primeiros anos pareciam indicar uma sociedade aberta à promoção social e ao talento individual, à maneira das sociedades de classes, os anos subseqüentes retomaram princípios próprios à sociedade de estados, característica do m un do de Antigo Regime. Nessa fase, foram comuns os conflitos envolvendo questões de precedência em cerimônias públicas ou questões de jurisdição entre magistrados e administradores. Textos literários, como as Cartas Chile nas — escritas provavelmente por Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Ma nuel da Costa no meado da década de 80 do século XVIII — , criticavam o “descrédito do formalismo” expresso no abandono das cabeleiras, no hábito das mulheres de cruzarem as pernas em público, na tendência dos homens de saírem à rua sem florete na cinta ou, ainda, das autoridades de permitirem que peças musicais européias fossem “estropiadas por bocas de mulatos”. As festas que aqui se examinam tiveram papel importante no processo de estruturação dessa sociedade e de consolidação dos instrumentos do mando, mostrando como as representações e os símbolos oferecem novas perspecti vas de leitura dos processos sociais e políticos. Situadas entre o ápice da pro dução aurífera e o momento de franca decadência, diferem no caráter mas se aproximam no sentido: umas mostraram-se alegres e exaltatórias, ligadas à prática religiosa e à instituição eclesiástica; outras, lutuosas e tristes, cele brando a memória de príncipes e monarcas mortos. São elas a festa do Triun fo Eucarístico (1733), a do Áureo Trono Episcopal (1748), ambas em Vila Rica, as exéquias de D. João V em São João del-Rei (1750-1751), as exéquias de D. João V novam ente em Vila Rica (1751), as exéquias da infanta Dona Maria Francisca Dorotéia em Paracatu (1771 ).4 O objetivo desta reflexão não é, evidentem ente, analisá-las em profundi dade, nem sequer discutir a teorização complexa e fecunda que tem sido veiculada na bibliografia específica sobre o tema, pois este não é o espaço para tal.5 Um estudo acurado das festas obrigaria ainda a buscar outras fontes
4 As festas do Triunfo Eucarístico e do Áureo Trono Episcopal foram por mim estudadas em Desclassificados do ouro — a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982. A análise que esboço aqui no tocante a essas duas festas é ligeiramente distinta da realizada anos atrás. 5 À guisa de exemplo: N atalie Z. Davis. Culturas do povo — sociedade e cultura no início da França moderna. Trad. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990; Robert Isherwood. Farce and Fantasy — popular entertainment in eighteenth-century Paris. Oxford University Press, 1986; Roger Chartier. A história cultural, entre práticas e representações. Trad. Lisboa: Difel, 1990; Roy Strong. I.es fêtes de Ia Renaissance (1450-1650). A rt etpouvoir. Paris: Solin, 1990; Mona Ozouf. La fête révolutionnaire— 1789-1799. Paris: Gallimard, 1986; Mary dei Priore. Festas e utopias no B rasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994; Ana Maria Alves. Ar entradas régias portuguesas. Lisboa: Horizonte, s.d.; Yves-Marie Bercé. Fête et révolte. Des mentalités populaires duXVIesiècleauXVlIIesiècle. Paris: H achette [1994]; Robert M uchem blcd. Culturepopulaire etcu/ture des élites dans la France modeme (XVe-XVIIIesiècle). Paris: Flammarion, 1978; Robert Mandrou. De la culturepopulaire aux 1 7e et 18e siècles — La Bibliothèque Bleue de Troyes. Paris:
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além dos textos literários aqui utilizados: fontes mais secas c “objetivas” — se é que as há —, como, por exemplo, posturas municipais e documentação referente a despesas das câmaras/’ Contudo, acredito ser possível, com base no repertório documental que se escolheu, levantar algumas questões gerais referentes ao papel que essas festas desempenharam na sociedade mineira do século XVIII. F
e s t a s
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a p o g e u
m i n e r a d o r
Em 24 de maio de 1733, houve em Vila Rica uma festividade religiosa que retirou o Santíssimo Sacramento da igreja do Rosário, onde estava proviso riamente, e o conduziu para a igreja do Pilar, matriz da paróquia de Ouro Preto. D urante vários dias, o acontecimento foi antecedido de preparativos e luminárias — naquela sociedade, festas sempre se faziam anunciar. Havia que enfeitar as janelas com colchas de seda e damasco, dispor arcos ao longo das ruas, providenciar flores para serem atiradas quando da passagem da pro cissão. As riquíssimas roupas dos participantes, os cavalos ajaezados, as figu ras alegóricas — os planetas, as ninfas, os deuses da Antiguidade clássica — , tudo reluzia nos enfeites de ouro e prata, tudo faiscava em pedras preciosas, traduzindo a euforia da sociedade mineradora, opulenta, desigual e arrivista. Simão Ferreira Machado relata a festa num texto ímpar, o Triunfo Eucarístico, no dizer de um de seus mais importantes estudiosos, “o primeiro docum ento impresso de interesse literário a reportar-se às manifestações de um estilo de vida barroco na sociedade mineradora do século XVIII” .7 Em 28 de novembro de 1748 celebrou-se a chegada em Minas Gerais de seu primeiro bispo, que fora escolhido três anos antes e que demorara mais de um ano para percorrer o trajeto entre o Maranhão, onde se achava, e a cidade de Mariana, onde passaria a residir. O clima já era outro, e as autorida des tentaram evitar as festividades, tem endo que fossem ocasionar gastos excessivos numa conjuntura onde o ouro escasseava cada vez mais. Apesar disso, houve procissão e luxo, danças e folguedos de rua, sem falar num inte ressante certame literário do qual chegaram até nós vários poemas que, escri
Stock, 1964; P eter Burke. Popular Culturein Modem Europe. Londres: Tem ple Smith, 1968; M ikhail Bakhtin. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento — o contexto de François Rabelais. Trad. São Paulo: Hucitec, 1978. 6 Cf. íris Kantor. Pactofestivo em Minas colonial— a entrada triunfal do primeiro bispo na Sé de Mariana. Dissertação de mestrado. São Paulo: D epartam ento de História, FFLCH -USP, 1996. 7 Afonso Ávila. “Triunfo Eucarístico: uma festa barroca”, in: O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 113. Para o texto do Triunfo, ver Afonso Ávila. Resíduos seiscentistas em Minas — textos do século do ouro e asprojeções do mundo barroco. 2 vols. Belo Horizonte, 1967, vol. 1.
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tos por autores diferentes, laudavam a figura do prelado, D. Frei M anuel da Cruz. Refiro-me ao Aureo Trono Episcopal, academia de circunstância que, diferentem ente de outras do período colonial, não fora concebida para durar mais do que o tempo da festa.8 Os textos que compõem a obra são de tipo diverso: poemas de vária autoria, cartazes, um relato anônimo da chegada do bispo e da solenidade de sua posse, que é o que se trabalhará aqui. Muitos dos elementos da festa do Triunfo Eucarístico encontram-se pre sentes na recepção ao bispo: as casas enfeitadas com colchas, o chão coberto com flores e areia colorida, os bailados pela rua, a boa música. Os ritos da etiqueta, contudo, encontram-se, nesta, muito mais marcados.9 O clero de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Maranhão faz-se representar na festa por algumas de suas personagens mais destacadas. O poder secular das Minas tam bém se faz presente. Lá está o ouvidor da comarca a carregar a cauda da veste episcopal; lá estão o provedor da fazenda real e o intendente real da fazenda a segurar cada um dos estribos do cavalo que D. Frei M anuel da Cruz deve montar; lá estão os vereadores da câmara a sustentar o pálio em baixo do qual, uma vez montado, o bispo cavalgou pela cidade. No m undo do Antigo Regime, a sociedade e a religião não constituíam instâncias separadas. Uma festa de cunho religioso podia ao mesmo tempo exaltar o Santíssimo Sacramento, o novo bispado e, por meio deles, o monar ca cristão que a tudo presidia assim como os seus vassalos obedientes e pie dosos, de quem se esperava tanto o zelo da coisa pública quanto a observân cia da fé. Se as duas festas expressam a religiosidade da população mineira, bem barroca e quase sempre exacerbada, elas celebram também o apogeu da mineração e tentam estancar os males advindos da sua decadência. A nobreza da terra sai à rua, ao lado de mulatinhos que fingem de índios ou de negros que tocam instrum entos musicais. Brancos, índios e negros são frutos da colonização, e esta é fruto da expansão marítima realizada pela monarquia portuguesa, que por meio de seus homens penetrou “ásperos e amplíssimos sertões, descobrindo e conduzindo sempre ao grêmio da Igreja novas e dife rentes nações de bárbara gentilidade”.10 Os centros urbanos plantados no interior garantiam a continuidade do pro cesso, e na festividade do Triunfo Eucarístico a personagem principal era o Ouro Preto, “bairro onde está situada a matriz e novo templo, a que se enca minhava a trasladação e solenidade”.11 Acompanhada de pajem, a figura do
8 Para o texto do Aureo Trono, ver Afonso Ávila. Resíduos seiscentistas em Minas — textos do século do ouro e as projeções do mundo barroco, 2 vols. Belo Horizonte, 1967, vol. 2. 9 Para uma excelente análise desse aspecto, ver íris Kantor, op. cit. 10 Simão Ferreira Machado. “Prévia alocutória”, in: Afonso Ávila. Resíduos seiscentistas em Mi nas, vol. 1, p. 8. 11 Simão Ferreira Machado. “Triunfo Eucarístico”, in: Afonso Ávila. Resíduos seiscentistas em Minas, vol. 1, p. 56.
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Ouro Preto vestia roupas de ouro e trazia à cabeça um turbante “tão rico que não se via nele mais que ouro e diamantes, rematado em um precioso cocar de várias plumas” . No peito, trazia bordadas as armas reais, “encimadas por umas letras que diziam: Viva o Ouro Preto”. Na mão direita, levava “uma salva, dentro dela um morrozinho coberto de folhetas de ouro e diamantes, que significava o Ouro Preto” .12 As irmandades, que na festa de 1733 saíram em desfile pelas ruas — tanto as de brancos ricos, como a do Santíssimo Sacramento, quanto a de pardos e negros, como a da capela de São José ou a do Rosário dos Pretos — celebra vam a harmonia com que viviam os povos nos conglomerados urbanos e o zelo com que cuidavam das coisas religiosas — harmonia e zelo que contras tam com o que se lê em outros testem unhos da época, mais atentos às ten sões e à conflitualidade.13 “Vivendo tão apartados da comunicação dos povos, e no meio mais recôndito do sertão”, insiste o texto do Triunfo Eucarístico, os moradores de Ouro Preto se empregavam “com tanto desvelo e com inimi tável generosidade em festejar a Divina M ajestade Sacram entada, para maior exaltação da Fé e veneração dos católicos”.14No relato sobre a trasladação do Santíssimo, omite-se, dessa forma, a precariedade da instituição ecle siástica nas Minas, onde os membros do clero descuidavam dos serviços reli giosos e eram capazes de andar pelos matos com trabucos atravessados às costas.15 A ênfase ritual dada à recepção do bispo em 1748 e o certame literário re tratam, por sua vez, uma sociedade onde normas e limites já se encontravam mais bem estabelecidos e que, talvez por isso mesmo, precisavam ser reafir mados publicamente, sobretudo quando se anunciava uma crise econômica. C
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d i s t a n t e
Assim como as festividades em razão de nascimentos ou casamentos, as exéquias de reis ou infantes eram momentos de celebração da monarquia: “o
12 Ibidem , p. 60. 13 Para a revolta de Vila Rica, ocorrida em 1720 e indício dessa situação de conflitualidade perm anente, ver Discurso histórico político sobre a sublevação de 1720 em Vila Rica. Edição crítica, estabelecim ento do texto e notas de Laura de Mello e Souza. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994. Para uma releitura dos motins ocorridos no sertão do São Francisco entre a festa do Áureo Trono e a do Triunfo Eucarístico — mais precisam ente, em 1736— , ver Carla Maria Junho Anastasia. Vassalos rebeldes — violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998; ver ainda Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial na América portuguesa — Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, 1640-1761. Tese de doutorado. São Paulo: D eparta mento de História, FFLCH-USP, 1996. 14 Ibidem , p. 125. 15 Ver, a respeito, o meu Desclassificados do ouro, cap. “Os protagonistas da miséria” .
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rei morreu, viva o rei”, dizia o refrão corrente em monarquias de Antigo Re gime, como a da França, lembrando que o Estado transcendia a pessoa do governante.16 Na situação colonial, tais momentos tinham caráter peculiar: além da celebração e da homenagem, havia a invocação de uma figura dis tante, no caso o soberano que, dessa forma, era trazido para perto dos seus vassalos.17 a
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VAI-SE
O
REI,
FICA
O
REINO
As exéquias de D. João V, o rei do fausto barroco, sob cujo reinado se des cobriram as Minas, realizaram-se em diversas vilas coloniais. As mineiras não fugiram à regra, como foi o caso de São João del-Rei entre os últimos dias de 1750 e o início de 1751. Primeiro, quebraram-se os escudos de Portugal nas praças principais. Depois, a câmara mandou celebrar exéquias na igreja ma triz, onde o vigário proferiu uma primeira oração fúnebre. Por fim, após ses senta dias de preparação, realizou-se uma cerimônia de maior vulto, com nova oração do vigário, Matias Antônio Salgado. Todos os detalhes das “barroquíssimas exéquias”, como qualificou Afonso Ávila — pioneiro dos estudos sobre barroco em Minas — tinham o objetivo de exaltar a monarquia e suscitar sentimentos de luto e pesar entre os vassa los, suprimindo em escala simbólica a distância física que os separava do so berano morto. Construiu-se um obelisco funerário à guisa de mausoléu do rei morto, ornando-o de mármores e alabastros “fingidos”, festões e folhagens de ouro e prata, cortinados e fumos em veludo negro e pano roxo. A coroa e o cetro real encimavam o monumento, e na sua base octogonal havia profusão de em blemas e inscrições, como os que retratavam a nau da morte “surgindo dos abismos do Oceano [...] e subindo ao seguro porto do C éu”: “Da tum ba para o Céu, a onda ergueu o barco Que, há pouco, pareceu afundar-se nas ondas. Da tum ba para o céu o vento mau da sorte Leva o rei, e seu barco alcança já o porto.” Por toda a extensão da igreja do Pilar, onde se celebrou a cerimônia, viam-se esqueletos pintados ou esculpidos, uns cobertos por mantos de ca valeiros da O rdem de Cristo, outros portando coroas na mão, em sinal de m ajestade. O sombrio e o macabro contrastavam com o esplendor da músi
16 Sobre o significado das exéquias reais como simbolismo da política, ver Raplh Giesey. Le roi ne rneurt jamais — les obsèques royales dans la France de la Renaissance. Trad. Paris: Flammarion, 1987. 17 Cf. Rodrigo N unes Bentes Monteiro. O rei em crise. Tese de doutoramento. São Paulo: FFLCH -USP, 1999.
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ca, muito bem executada, e das luminárias, com as quais se gastaram mais de quinze arrobas de cera. E o sermão do vigário lembrava que o rei era “defunto para a nossa saudade, vivo e imortal na nossa memória” , cabendo pois que os vassalos oferecessem os extremos de sua dor diante da sombra fúnebre de seu trono.18 Nas praças, nas ruas ou até mesmo na igreja matriz, penduravam-se dís ticos em tarjas ou cartazes, lembrando a efem eridade da vida e a fatuidade da glória terrena: “A vida humana? E vento, flor, fábula, feno, hálito, cinza, sopro, poeira & sombra. N ada”. O destino do rei afetava o destino dos vas salos: “Quem chora, Lísia? O rei. Que pranto é este? Amargo. Ai de nós! Ai do reino! Ai de Minas Gerais!” O mausoléu, “fúnebre máquina”, encobria a real grandeza e expressava a igualdade de todos ante a morte, “que não distingue a humildade da nobreza, o rei ou o vassalo, o rico ou o pobre” . Mas se a celebração da morte real irmanava súdito e soberano por um mo m ento fugaz, cabia logo lembrar que a morte do rei não afetava a essência do mando: “não choramos um rei desaparecido, mas o vemos restituído ao céu. O Augustíssimo Rei D. João V Não perdeu seu Poder, nem a Coroa. Agora reina Mais soberanam ente ainda sobre nós, Pois reina no céu. Conserva ainda sua coroa, Pois a lança diante do trono de D eus.” 19 Dias depois, em 7 de janeiro de 1751, realizou-se em Vila Rica o funeral de D. João V, na mesma igreja do Pilar onde, cerca de duas décadas antes, celebrara-se o Triunfo Eucarístico. A descrição que chegou até nós é bastante detalhada, permitindo visualizar o frontispício da igreja adornado de “panos negros dispostos com certos nós e festins, feitos com admirável artifício entre claro e escuro”, e encimado por “duas mortes com asas, sustentando nas mãos um relógio de areia, também com asas, verdadeira demonstração da volabilidade da vida humana, cujo fim é a morte”. E a narrativa prossegue: “No meio do frontispício, debaixo de um majestoso pavilhão de veludo negro, se via um meio corpo, ou bastão de mármore, verdadeiro retrato do
ls Afonso Ávila. “As barroquíssimas exéquias de D. João V”, in: O lúdico e as projeções do mundo barroco, p. 187-96. 19 Todas as citações em “Nas Reaes Exéquias de D. João V”, in: Afonso Ávila, op. cit., p. 279-82.
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sereníssimo rei D. João o quinto, em cujos lados se viam, também de már more, duas estátuas com asas e clarins na boca, em ação de tocá-los, que representavam a fama como publicando a um e outro pólo do mundo as glórias do mesmo sereníssimo rei defunto.”20 Com pletando o todo, onde dísticos latinos exaltavam o reinado de D. João V — senhor da Europa, Africa, Ásia e América —, pendia sobre a porta uma grande tarja com as armas reais de Portugal. A utilização simbólica das ima gens políticas é tão clara e eficaz que dispensa comentários. No interior do templo, tarjas e pinturas em branco e preto lembravam a figura do rei e sua morte, e uma profusão de emblemas e de símbolos tematizavam os feitos reais e a efem eridade da vida: o tempo, em figura de ho mem, a correr com uma foice na mão direita e uma am pulheta na esquerda; aves-fênix que renasciam das cinzas; caveiras prateadas, com asas ou coroas; esqueletos pintados em perspectiva, de madeira, em tamanho natural, bran cos, “cobertos de fumo preto”, de pé, sentados, trazendo foices na mão — havia-os para todos os gostos. O mausoléu foi encomendado ao escultor e entalhador Francisco Xavier de Brito, um dos mais importantes do século XVIII luso-brasileiro: mausoléu “fingido”, pois não abrigava o corpo real, como “fingidos” eram a lápide, os mármores, as esculturas de meninos a prantear o rei morto. As manifestações estéticas da época eram pródigas em ilusões de ótica, e o barroco era uma cultura da representação. As honras funerárias duraram das 9 horas da manhã às 5 da tarde, “mais admiráveis pelo pranto que pela grandeza”, finaliza o documento: “pois sen do um o sepulcro, foram muitos os altares que nos peitos fabricou a mágoa, em que melhor se repetiram sempre os sacrifícios da saudade, sem que se possam consumir no fogo delas as memórias, que serão eternas por glorio sas”.21 A exéquia, portanto, multiplicava a dor pela perda do soberano, inscre vendo o luto na comunidade dos vassalos. B)
PAI
DE
FAMÍLIA,
PAI
DOS
VASSALOS
As exéquias de Dona Maria Francisca Dorotéia, filha de D. José I e desa parecida aos 32 anos de idade, pertencem à categoria das exéquias reais mas trazem traços específicos: não se chorava o monarca, mas uma de suas filhas.
20 “Breve descrição ou fúnebre narração do suntuoso funeral e triste espetáculo que em Vila Rica do Ouro Preto, cabeça de todas as das Minas, celebrou o senado dela à gloriosa m e mória do sereníssimo Rei D. João o quinto, sendo assistentes a ele o ouvidor-geral e o Senado da mesma no dia 7 de janeiro de 1751”. Biblioteca Nacional de Lisboa, fls. 9. 21 Ibidem , fls. 26.
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Cerimônias em homenagem à infanta devem ter ocorrido em várias vilas mi neiras, mas só se conhece o registro das que tiveram lugar em 21 e 22 de novembro de 1771 no arraial do Paracatu, no centro de uma zona de minera ção ainda recente, pois seus descobertos auríferos datavam de cerca de trinta anos.22 As armas de Portugal estiveram naqueles dias presentes na capela de San ta Ana, coberta, como era de praxe em tais ocasiões, de panos pretos; decora da com caveiras, emblemas e dotada de mausoléu. Porém, diferentem ente do acontecido nas exéquias anteriores, foi antes o caráter paternal do sobera no que, no caso, importou ressaltar: “Que maior glória no mundo, que a de um monarca, que não conhece superior na terra, escolhido e conservado por Deus, de quem recebe todo o poder e jurisdição para o bom regime e governo do seu povo!” , diz o texto que descreve as exéquias. Contudo, tal glória é ilusão, como o é tam bém a pretensa liberdade real: “que maior cativeiro, ainda que nobre e gloriosa es cravidão, que a de um monarca!” O rei é pai tanto no espaço da política quan to no da sua família, e o público, no caso, não se distingue do privado: “De que tudo resulta ser o monarca no amor pai, no zelo tutor, e pastor na vigilân cia... Da hora em que cinge a coroa e em punha o cetro, deixa de ser rei e principia a ser pai, a majestade com que, entre tantas glórias, ocupa o trono, é o maior incentivo ao cuidadoso desvelo com que deve conservar em paz e justiça aos seus vassalos, sendo, à imitação de Deus, um para todos e nada para si ..." O pai da infanta é o pai de todos: sua dor pode e deve ser publicam ente exposta, pois filhos do rei são também os súditos das possessões distantes. A infanta é rebento que se foi cedo demais, e as várias flores expostas numa salva simbolizam o frescor e a efem eridade da vida que a Morte ceifou. A “Exposição F únebre” das exéquias foi escrita pelo Padre João de Sousa Tavares, e discrepa das demais por descrever tanto a construção dos mecanis mos — “as máquinas” — utilizados na cerimônia, como os demais preparati vos e, por fim, a distribuição das pessoas no interior da nave, atentando para as hierarquias sociais. A “platéia alcatifada” se estendia desde o pé do arco
22 A primeira referência às exéquias de Paracatu foi feita por Antonio Cândido em Formação da literatura brasileira — momentos decisivos. 4.‘ ed. São Paulo: Livraria M artins Editora, s.d., vol. 1, cap. II, “Literatura Congregada”, p. 84. 23 “Exposição fúnebre das exéquias que à memorável morte da Sereníssima Senhora Dona Maria Francisca Dorotéia, infanta de Portugal, fez oficiar no arraial do Paracatu o limo. E Exmo. Sr. Conde de Valadares Governador e Capitão-Gencral da Capitania de Minas G e rais — Dedicada ao mesmo sr. por M anuel Lopes Saraiva, furriel de dragões e com andante dos mesmos no dito arraial. Seu autor o Reverendo João de Sousa Tavares, graduado cm Leis pela Universidade de Coimbra” — Coleção Lamego, Arquivo do Instituto de E stu dos Brasileiros, USP, fls. 28.
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cruzeiro até “as grades que servem de divisão ao corpo da igreja, e assinalam o lugar até a porta para assento do congresso m ulheril”. Havia cadeiras de espaldar para as pessoas mais nobres e distintas, “segundo as preferências das suas graduações, com outros assentos separados para as dignidades ecle siásticas, e mais clero”.24 Mais de trinta clérigos oficiaram a cerimônia, presidida pelo pároco Antô nio M endes de Santiago. Houve música e cantoria, “tão lastimosa que enter neciam os corações”. Os milicianos dos regimentos locais de cavalaria e in fantaria assistiram à exéquia com seus oficiais, todos fardados e trazendo “os distintivos do sentim ento em fumo negro”.25 Mas se o texto da exéquia de Paracatu tem um tom mais realista, atento à organização social, é ainda a cultura do barroco que o enforma. O mundo, diznos o padre-autor, é “um universal teatro adornado e revestido das tapeçarias da lisonja, em que se representam diversificadas tragédias pelos mortais, re presentando cada um deles o seu papel enquanto lhes dura a vida e não che ga a m orte” . “Tudo quanto a farsa representa é sombra, tudo quanto se vê é fumo, e tudo quanto se logra é nada. A imaginação o pinta, a lisonja o figura, o engano a confirma, e a realidade o detesta. E flor, que com a morte se murcha, vidro, que com um sopro se quebra, sonho que em acordando se não acha, sombra que na ausência do sol desaparece.” Comparado ao texto do Áureo Trono, ao do Triunfo Eucarístico, ao das Barroquíssimas Exéquias ou ao das pompas fúnebres de Vila Rica, o escrito de Paracatu é mais claro, mais direto e despojado, sugerindo descompasso entre forma e conteúdo. N enhum , contudo, o supera no endosso expresso da cul tura barroca: “Finalm ente, tudo é figura do que podia ser, e uma pintada imagem do que na realidade não é”.26 Na capela de Santa Ana, quatro esqueletos “descansavam sobre os capi téis de cima, e outros tantos nos pedestais de baixo”. Os quatro de cima, pairando sobre as cabeças dos fiéis, insultavam a condição humana, coroan do-se “com raros troféus da morte, pisando diademas, arrastando púrpuras e despedaçando cetros” . Cada um trazia um escudo com dísticos, como que dialogando entre si de forma teatral, oprimindo e ameaçando os fiéis: “Se pintada te horrorizo, Q ue fará quando for certa?
24 “Exposição fú n eb re...”, fls. 30. 25 Ibidem . 26 Ibidem , fls. 27.
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Olha, que te aviso: alerta, E que hás de morrer te aviso.”27 Nada há de sem elhante entre esses e os versos complicados, quase sempre em latim, que chegaram até nós por meio das descrições das festas barrocas de 1733, 1748 ou 1751. As provocações macabras não deixam, contudo, de apresentar certo tom lúdico e até mesmo zombeteiro: “Que és vivo, e que hás de morrer, É certo, e ninguém o ignora Mas quando há de ser a hora, Não o podereis saber.”28 Em 1771, pouco mais de uma década antes de estourarem os conflitos sociais traduzidos no episódio da Inconfidência, o barroco em Minas não era residual, mas parte constitutiva da vida cotidiana da capitania.29 Forma viva, era estrutura capaz de conferir sentido e articular as relações sociais. C
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As festas religiosas de 1733 e 1748 celebram a sociedade mineira no seu momento de apogeu, periodizando-o e apontando para o início da derrocada aurífera. Quando a crise prenunciava tempos de tensão social mais intensa, a festa celebrava o congraçamento e a harmonia, pondo na rua, ombro a ombro, os diversos segmentos sociais. Por outro lado, indissociando o social e o reli gioso, a festa sugeria que aquela era a ordem não apenas por vontade dos homens, mas também por desígnio divino. As exéquias, por sua vez, celebram a monarquia no momento em que a figura real se vê m om entaneam ente suprimida. N um mundo ordenado se gundo os privilégios, a celebração da morte lembrava que o destino dos ho mens era comum para reis e vassalos, o que não significava que estes fossem iguais. O texto do Padre João de Sousa Tavares lembra que a Infanta deixara este m undo “sem que a desigualdade do seu régio nascimento a distinguisse para a morte do comum da humana natureza, a quem sem diferença de pes soas sabe igualmente ferir o universal impulso do seu braço”.30
27 “Exposição fú n eb re...”, fls. 9. 28 Ibidem . 29 Discuto aqui a idéia do barroco residual cara a Afonso Ávila nos trabalhos acima citados, e endosso, nos traços gerais, a tese central de Maravall. A cultura do barroco. Trad. São Paulo: Edusp, 1999. 30 Ibidem , fls. 3.
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Se rei e vassalos têm de se sujeitar a Deus e aceitar o destino, a morte do rei — e a dos seus — trá-lo para mais perto dos vassalos — seja pela dimensão humana comum a uns e outros, seja pela vivência do luto na comunidade, que neutraliza, por meio do ritual doloroso, a distância física do monarca por tuguês, senhor dc um vasto império separado por oceanos. Rituais complexos, as festas honraram a majestade divina e a humana, as instituições religiosas e as seculares, ambas imprescindíveis à continuidade do mando nos sertões da América portuguesa. Mas as festas barrocas, fossem de júbilo, fossem de luto, tornaram-se mais freqüentes no momento em que a sociedade mineira se hierarquizou de forma mais rígida, tornando menos provável o ingresso de homens mestiços no senado da câmara ou nas Irmandades de elite. Numa região de fronteira aberta, as festas barrocas ritualizaram as diferenças e, ao mesmo tempo, desempenharam papel central na neu tralização mom entânea de conflitos e de clivagens sociais, produzindo, bem ao gosto do barroco, a ilusão de que a realidade dura era um sonho bom. □ □□
aura de M e l l o e S o u z a é professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e autora, entre outros, de 0 diabo e a Terra de Santa Ci~uz. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; Inferno Atlântico. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; Desclassifica dos do ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1982. Organizou também a História da vida privada no Brasil, vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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R e s u M o . As vilas mineiras e a única cidade da capitania, Mariana, foram cenário de algumas festas que, graças a descrições detalhadas feitas na ocasião, podem ser hoje lidas pelo historiador sob várias perspectivas. O Aureo Trono Episcopal (1733), o Triunfo Eucarístico (1748), as exéquias de D. João V (1750-51) e as exéquias da infan ta Maria Francisca Dorotéia (1771) são aqui lidas como elementos constitutivos dos processos de hierarquia social e de dominação política, reforçando o poder real na América portuguesa.
Músico sentado tocando um instrum ento de sopro (surnay?). Pormenor de um pai nel do período fatímida, séculos XI-XII. Adalberto Alves. Arabesco da música árabe da música portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, p. 50. Foto André Ryoki.
FESTA E INQUISIÇÃO: OS MOURISCOS NA CRISTANDADE PORTUGUESA DOS QUINHENTOS R
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E v a s t í s s i m a a documentação depositada no Arquivo Nacional da Tor re do Tombo sobre os mouriscos na sociedade portuguesa do Antigo Regime. A bem da verdade, o problema do islamismo ultrapassou os mouriscos, abran gendo mesmo cristãos velhos que, por azares da fortuna, abraçaram o Islão, a exemplo dos renegados ou elches, estudados no livro definitivo de Bartolomé & Lucile Bennassar, Les Chrétiens d ’Allah As fontes inquisitoriais portuguesas, incluindo os dados relativos ao ativo Tribunal de Goa, não deixam dúvidas a respeito de quão importante foi o medo português e católico diante do que se chamava a “maldita seita de Mafoma”, medo consideravelm ente aum entado pelo perigo do avanço otomano sobre o mundo ibérico no século XVI.2 Portanto, medo português e católico, e também medo entre os mouriscos do reino, já que a perseguição do Santo Ofício se fez cada vez mais presente no século XVI. Antônio Vaz, um mourisco dos Açores, tentava aplacar o te mor que a inquisição provocava na comunidade e ensinava a todos uma reza em aravia: “Haia Arapena Hoaraboco” que queria dizer “Deus fez a nos e a vos e nõ chegues vos a nos nem nos a vos e que dizendo isto nõ ouvesem
1 Bartolomé Bennassar & Lulice Bennassar. Les chrétiens c/’A/lah: 1’histoire extraordinaire des renégats, XVI-XVII siècles. Paris: Perrin, 1989. 1 Ver sobre a expansão otomana na Europa os trabalhos de Robert M antran. Uempireottoman du X V I au X V III sièc/es. Londres: Variorum Reprints, 1948 e Histoire de /'empire ottoman. Paris: Fayard, 1989.
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medo a imquisyçam”.3 Entretanto, muitos mouriscos apesar de crerem nas rezas islâmicas, lembravam-se de sua terra e algumas vezes em prantos, dese javam como a mourisca Briatis Fernandes “de ser pasarynho pera se poder tornar pera laa” .4 Entre os séculos XVI e XVIII, foram 1.952 os réus processados, conforme as listas dos autos-da-fé inquisitoriais, por crimes de heresia e apostasia islâmica, a maior parte dos quais, exatamente 1.076, egressos do Tribunal de Goa — pro cessos que infelizmente se perderam. Coligi, no entanto, 876 processos relati vos ao crime de islamismo nos tribunais de Lisboa, Évora e Coimbra, dos quais 360 se referem, especificamente, à população de mouriscos.5 Dentre os mou riscos, predominavam os homens, 224, cerca de 62% no caso, embora não fos sem poucas as mulheres: 136 ou 38% do total. No que toca à condição social, 168 eram forros, 159 escravos e 33 livres. Não resta dúvida de que o alvo prefe rencial do Santo Ofício em matéria islâmica eram os escravos ou ex-escravos de origem muçulmana — o que não significa dizer que o problema religioso era simples pretexto para perseguições de outra motivação. De todo modo, há inúmeras informações comprobatórias de que os m ou riscos atuavam predom inantem ente nos ofícios ou serviços urbanos, fossem como cativos, fossem como alforriados. A guisa de exemplo, mencionaria vá rios mouriscos a trabalhar na estrebaria dei rei ou no terreiro do trigo, a carre gar sacos de grãos. Boa parte deles “ganhava a vida na ribeira”, ou ganhava “a vida à mariola”, para usar expressões da época.6 Outros viviam como “açacais”, isto é, como aguadeiros, e havia ainda os almocreves a conduzir bestas pelas ruas da cidade. Quanto às mulheres, encontrei muitas salgando peixe ou arrumando sardinhas na Ribeira, regateiras a comprar e vender pescado, hortaliças, frutas para revender alhures, sem falar nas lavadeiras, que do ofí cio não preciso tratar. Enorme quantidade de mouriscos ou mouriscas viviam a trabalhar nos serviços domésticos, cuidando das casas, atuando como cria das, pajens, a seguir e acompanhar seus senhores nas lides da vida urbana sobretudo lisboeta ou eborense.7 Não é, contudo, o objeto de nossa comunicação a sociologia histórica das
3 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (A N TT ), Inquisição de Lisboa, proc. 10857. 4 A N TT, Inquisição de Lisboa, proc. 565. 5 A N TT. Listas dos Autos da Fé das Inquisições de Lisboa, Coimbra, Évora e Goa do Conselho Geral do Santo Ofício: livros 225, 369, 433, 434, 435, 436 e 504. Ver também as Listas dos Autos da Fé da Inquisição de Lisboa', livros 1,6, 7,8, 9, lO e \ \ \ d a Inquisição de Coimbra', livros 4 e 5; da Inquisição de É vora: livros 2, 3, 4 c 5. 6 Segundo Antônio de Moraes Silva no seu Diccionario da Lingua Portugueza, vol. II. Rio de Janeiro: Litteraria Flum inense, 1891, p. 317, a expressão “marióla”, era em pregada no século XVI para designar o “homem de ganhar”, que se alugava para carregar, ou seja, moço de fretes ou carregador. 7 ANTT. Ver os processos inquisitoriais relativos aos mouriscos na base de dados informatizada sobre a inquisição portuguesa.
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com unidades mouriscas, nem tampouco o ritmo ou estilo da perseguição inquisitorial contra os mouriscos no Portugal antigo, e sim, as festas mouriscas ocorridas no reino e associadas pela inquisição ao crime de heresia e apostasia no contexto das resistências culturais islâmicas. Interessa-me, antes de tudo, investigar a identidade cultural do mourisco e, para tanto, faz-se necessário, malgréa inquisição, explicitar o que os inquisidores entendiam por mouriscos. O term o mourisco, originariamente espanhol, formado pela junção do subs tantivo “mouro” com o sufixo latino “iscus”, veio a designar “o que procede ou tem procedência do mouro”, entendendo-se mouro, em seu sentido reli gioso, como sinônimo de muçulmano.8Começou a ser utilizado na docum en tação espanhola desde princípios do século XVI, referindo-se aos “cristãosnovos de mouros”, ou seja, aos muçulmanos obrigados a se converterem à santa fé católica. Entretanto, com o avanço da Mouriscologia, como área cien tífica, esta terminologia, para os historiadores modernos, passou a designar os muçulmanos de origem hispânica, obrigados a se batizarem e a serem cris tãos na sociedade espanhola dos séculos XVI e XVII. E o que nos demonstra M íkel de Epalza, em seu Los Moriscos antesy después de la Expulsión.9 Podemos então inferir que os inquisidores portugueses importaram a ter minologia espanhola, mas alargaram as fronteiras da nacionalidade e reconsi deraram a questão da obrigatoriedade do batismo em relação ao conceito es panhol de mourisco, imprimindo-lhe cunho mais religioso do que étnico. Entenderam que mouriscos não eram somente os muçulmanos de origem portuguesa, mas todos os muçulmanos alforriados e livres no reino, obrigados a se batizarem e a serem cristãos na sociedade portuguesa a partir do século XVI — além dos escravos muçulmanos batizados, aos quais, por sinal, não se im punha a obrigatoriedade do batismo.10 A questão da não-obrigatoriedade do batismo para os escravos mouros es taria ligada, provavelmente, ao interesse dos senhores cristãos na valorização do escravo, considerado mercadoria. A se manter o escravo mouro, o senhor cristão poderia vendê-lo não somente para outros cristãos, mas para os “alfaqueques de mouros” — e isto por preço maior. Vale lembrar, a propósito, que os “alfaqueques” se encarregavam de resgatar os escravos mouros cativos dos cristãos e que, para tanto, era condição fundamental que o escravo mouro não fosse ainda batizado.11 Por outro lado, do ponto de vista dos mouros ainda não
8 Álvaro Galmcs de Fuentes. Los moriscos. Madri: Instituto Egípcio de Estúdios Islâmicos, 1993, p. 22-3. 9 M íkel de Epalza. Los moriscos antesy después de la expulsión. Madri: Mapfre, 1994, p. 16. 10 ANTT. Ver os processos inquisitoriais relativos aos mouriscos na base de dados informatizada sobre a inquisição portuguesa. 11 A N TT. Ver os processos inquisitoriais relativos aos mouriscos na base de dados informatizada sobre a inquisição portuguesa, especialm ente os processos 708, 12383 e 3191 da Inquisição dc Lisboa. Ver tam bém Antônio de Moraes Silva, vol. I, op. cit., p. 131.
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batizados, retardar o batismo significava manter elevada possibilidade de se rem resgatados pelos referidos alfaqueques. D e todo modo, apesar das conveniências escravistas da época, cabe recor dar a pressão da Igreja e da Coroa portuguesa sobre os cativos mouros e seus senhores, a fim de que os escravos infiéis ingressassem, por meio do batismo, no reino de Cristo. Reino de Cristo à parte, a documentação do Santo Ofício português é muito rica para se mostrar as festas mouriscas, religiosas ou não, se é que se pode falar em festas profanas numa comunidade cuja formação social era baseada, fundam entalm ente, nas revelações de Alá, o Alcorão, na vida do seu profeta Maomé, a Sira, e no conjunto das tradições do Islão, a Suna. As principais festas religiosas mouriscas no Portugal quinhentista eram as celebrações do “helideceguer” ou “helguydceguer” e do “helidequybir” ou “leyquebir”.12 A festa de “helideceguer” ou “festa pequena” era a comemo ração do término do jejum do Ramadã, período no qual os mouriscos não comiam ao longo do dia, senão à noite, com a primeira estrela, em memória da revelação do Alcorão ocorrida no mês denominado Ramadã. Segundo João Drago, mourisco cativo de Pedro Álvares Cabral, esse jejum islâmico deveria ser feito “huã vez no ano aly por o tempo das vindimas pouco mays ou m e nos” por um espaço de “xxx dias cotando pollas luas”.13 Mais acertadam ente sobre a periodicidade anual desta prática e baseado no calendário lunar m u çulmano que não lhe era estranho, o mourisco forro Francisco Lopes afirma va que o jejum islâmico de trinta dias era “muvyvel e amda cõ a lua e cada ano caye em seu m es”.14 N esta festa celebrada pelo fim do Ramadã, os mouriscos reuniam-se em grupos espalhados por diversas casas na cidades de Lisboa, Évora, Elvas e Tavira e nas vilas de Setúbal, Olivença, Santarém e Lagos para comerem “alfitete” e “cuscuz”.15 O alfitete, do árabe “al-fitat”, era uma massa doce, composta de farinha, açúcar, ovos e vinho e sobre a qual se punha galinha ou o carneiro e o cuscuz, também do árabe “coscus”, era uma massa de farinha, reduzida a grãosinhos, que se comia cozida ao vapor da água quen te.16 Na maior parte das vezes, o cuscuz era comido acompanhado de carne de carneiro, acabando por ser vulgarmente definido como sendo “carne de car
12 ANTT. Veros processos inquisitoriais relativos aos mouriscos na base de dados informatizada sobre a inquisição portuguesa, especialm ente os processos 12720, 7560, 6787, 2263, 9670, 6405 e 12690 da Inquisição de Lisboa. 13 A N TT , Inquisição de Lisboa, proc. 9520. 14 A N TT , Inquisição de Lisboa, proc. 2263. 15 ANTT. Ver os processos inquisitoriais relativos aos mouriscos na base de dados informatizada sobre a inquisição portuguesa, especialm ente os processos 7560, 6787, 9670, 12690 e 6440b da Inquisição de Lisboa. 16 Antônio de Moraes Silva, vol. I, op. cit., p. 132 e 578.
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neiro com farinha”.17 Antes de comerem, os mouriscos diziam “Bismila Harramão Harracm” que quer dizer “Em nome de Deus, piadoso, misserycordioso” 18 e ao acabarem de comer recitavam outra oração que começava por “Handarula Belaharam” que significava “Graças a Deus, alevãtando as mãos juntas e abryndo as palmas oulhando pera o ceo” .19 A outra festa denominada de “helidequybir” ou “festa gramde”, nominada de forma pejorativa pelos inquisidores como “paschoa do carneyro”,20 ce lebrava o fim da peregrinação à cidade santa de Meca, local da “Casa de Alá” — a Caaba — quando os muçulmanos em memória do “sacrifício de Abraão” degolavam carneiros. A realização desta festa pelos mouriscos me levou a perceber a importân cia da “estrebaria dei Rey” para a comunidade mourisca do reino, especial m ente de Lisboa. Há vários indícios de ter sido a estrebaria uma espécie de criptomesquita, liderada por um autêntico caciz. Refiro-me a Duarte Fer nandes, mourisco forro criado do Rei D. João III — o mesmo, aliás, que ins taurou o Santo Ofício em Portugal.-1 Vale lembrar que, em sua maioria, os mouriscos portugueses eram oriun dos do norte da África e praticantes de um islamismo segundo os princípios da escola maliquita, profundam ente marcada pela influência do sufismo e pela orientação do caciz, que era uma espécie de “sacerdote” que dirigia o culto islâmico entre a população de mouros nômades dos campos denom ina da de “alarves” por ser, segundo os mouriscos, um “gramde letrado” e co nhecedor da lei corânica.22 D uarte Fernandes era chamado pelos mouriscos, em árabe, de Cide Abdela, ou seja “senhor servo de D eus”, enunciado revelador da excelente reputa ção de que desfrutava entre seus companheiros de fé.2J Por outro lado, como criado do rei, tam bém gozava de certa confiança da casa real, pois “quãodo vinham cartas dafrica” servia como tradutor oficial de D. João III e Catarina de Castela.24 Era o caciz Duarte Fernandes quem informava aos mouriscos acerca do calendário muçulmano, especialm ente quando vinha o Ramadã, tem po em que deveriam todos jejuar, para depois celebrarem a festa de “helideceguer” e o fim da peregrinação m equense para realizarem a festa do “helidequybir”.25 Na criptomesquita da estrebaria real se ajuntavam muitos 17 18 19 211 21 22
A N TT , Inquisição de Lisboa, proc. 6405. A N TT, Inquisição de Lisboa, procs. 9670 e 12690. A N TT, Inquisição de Lisboa, procs. 12626, 3186 e 6787. A N TT, Inquisição de Lisboa, procs. 12863 e 7560. A N TT, Inquisição dc Lisboa, procs. 6405 c 10867. A N T T , Inquisição de Lisboa, procs. 10864, 10837, 10857 e 2263. Ver também Antonio de Moraes Silva, vol. I, op. cit., p. 121 e 376. 23 A N TT, Inquisição de Lisboa, procs. 2263 c 6405. 24 A N TT, Inquisição de Lisboa, proc. 10867. 25 A N T T , Inquisição de Lisboa, proc. 2263.
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mouriscos, matavam “carneiros, cabras e bodes” aos sábados e assim em ou tros dias ao costume dos mouros, mas especialm ente para a festa do “helidequybir” .26 Para esta festa era o próprio Duarte Fernandes que sacrificava os carnei ros, virando o focinho dos animais para a “Alquibra que he pera omde nasçe o sol” que indicava a localização da cidade santa de Meca e antes de degolá-los “dezya Bizmila”.27 A carne era distribuída para os mouriscos e também dada para os pobres da cidade de Lisboa em honra de Alá.28 Da mesma maneira como procediam na comemoração da “festa pequena”, os mouriscos dividiam-se em grupos pelas casas das cidade, comiam a carne de carneiro com “cuscuz” e rezavam as “orações de mouro”.29 Em outras partes do reino, a celebração da festa do “helidequybir” também ocorria, mas eram os próprios mouriscos que individualmente sacrificavam os animais. N a vila de Setúbal, à guisa de exemplo, Jorge Lopes, mourisco forro casado com Isabel de Castro, confessava aos inquisidores que “cadano quãodo matava carneyro... dezya bizmila... e am tes... lhe metya na boca huum pouco de trigo ou cevada e sal e despois que estava huum pouco asy remoemdo o degolava”.30 Inseridos nos festejos religiosos mouriscos encontramos as festas celebra das para os “santos do Islão”. Para a realização destas festas foi fundamental a existência da confraria dos mouriscos da igreja de São João da Praça em Lisboa. A confraria dos mouriscos da igreja de São João da Praça é, a meu ver, de importância máxima para se perceber a organicidade da com unidade criptoislâmica em Portugal. Era local de reunião dominical de mouriscos, em Lisboa, possivelm ente erigida por um certo Antônio Alberto, mourisco taverneiro, e João de Sá, mourisco que vivia em Pedras Negras. Antônio Al berto chegou a adm itir para os inquisidores que havia gastado de seus re cursos mais de quatro mil réis para as festas do santo bem -aventurado, ofertando-lhe uma gorra, charamelas e fogaça a cada ano.31 As charamelas, vale dizer, eram instrum entos musicais de sopro, feito de certas madeiras fortes com buracos, possivelm ente de origem árabe, os quais se usavam, sobretu do na península ibérica, nas procissões e música religiosa, a reforçar os can tos. Fogaças, por sua vez, eram com um ente bolos ou presentes que, em festas populares, se ofereciam à igreja nas festas dos santos, vendendo-se-
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A N TT, Inquisição dc Lisboa, procs. 6405 e 10867. A N TT, Inquisição de Lisboa, proc. 6405. A N TT , Inquisição de Lisboa, proc. 10867. ANTT. Ver os processos inquisitoriais relativos aos mouriscos na base dc dados informatizada sobre a Inquisição de Lisboa. 30 A N TT , Inquisição de Lisboa, proc. 6471. 31 A N TT , Inquisição de Lisboa, procs. 10837 e 10864.
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as depois em leilão público a modo de angariar recursos para as atividades de culto.’2 Na confraria da igreja de São João da Praça vários mouriscos atuavam, nela se reuniam, e ofertavam presentes, o que nos sugere ser ela, no mínimo, um refúgio da minoria étnica mourisca, quando não um núcleo criptoislâmico. Portanto, no dia 24 de junho, dia de São João, as festas mouriseas em hom e nagem ao santo da confraria eram autorizadas pela igreja e neste dia os mou riscos reviviam suas crenças tradicionais. Acobertados pelo calendário litúrgico do catolicismo, os mouriscos festejavam os santos islâmicos, notadamente Cide Belabes Citim, santo protetor de Marrakesh, além de outros santos, como Cide Alie, Cide Bahe M emede, Cide Hamar, Cide Abdelcadar Algilily, Cide M aham et Bident, Cide Molete Hesant, Cide Beduma e Cide Belapacea.33 Especialm ente no dia 24 de junho, os mouriscos bailavam e cantavam livremente, e creio sem nenhum a dúvida que, na verdade, muitos realmente apostasiavam. E ainda digno de nota a organização de uma festa no dia 24 de junho pelas mouriseas, tendo em conta o papel da mulher nesta sociedade de tipo patriar cal. Esta festa era organizada por Antônia Rodrigues que “fazia cadanõ huum pouco de cuzcuz pera dar a mouras que nã fosem bautizadas pera amor de M afam ede”. Após comerem do cuscuz uma moura fazia “as orações em aravia” as quais “todas respondiam amem e esfregavã os rostos cõ as palmas das mãos” . Logo a seguir, ao som dos adufes, bailavam e cantavam cantigas cujas letras nomeavam as “mysquytas de sua terra” e traziam “M afamede diante dos seus olhos e do seu coração”.34 Outras festas da cristandade também eram aproveitadas pelos mouriscos para os seus festejos. Era o caso das “Janeyras”, folguedo popular com canti gas e músicas cantadas ao som de instrumentos musicais que se davam no primeiro dia do ano e dos “Reys”, espécie de representação ou folgança po pular, com que se festejavam os Santos Reis ou Reis Magos.35 Os mouriscos forros, mais especificam ente o “conjunto de música mourisca” formado por Nicolau da Costa, que “tangia huã frauta de cana”, Antônio de Faria, que “tangia huã buzina”, uma espécie de trombeta de corno, e Bernaldo do Cou to, que tocava um adufe, pandeiro quadrado com guizos, saíam pelas ruas de Lisboa a cantar e bailar “cãtigas de mouros de cavalaryas”.36 Entretanto, dian te das casas de mouriscos acabavam cantando e bailando cantigas em louvor de M afamede e de outros “mouros santos” e, quando lhes davam dinheiro, 32 Antônio de Moraes Silva, vol. I, op. cit., p. 451 e vol. II, p. 45. 33 ANTT. Veros processos inquisitoriais relativos aos mouriscos na base de dados informatizada sobre a Inquisição de Lisboa, especialm ente os processos 6728, 7692, 3184 e 2467. 34 A N T T , Inquisição de Lisboa, procs. 7692, 6728 e 3184. 35 Antônio de Moraes Silva, vol. II, op. cit., p. 218. 36 A N TT , Inquisição de Lisboa, procs. 5254, 10831, 264 e 5153.
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“elles todos abaixavão a cabeça e beijavão o chão e dezyão delles seja por amor de Cyde Belabez Citin”, que era um santo do Islão.37 N estes festejos, o “conjunto musical” contava com a participação de ou tros mouriscos que andavam na “cõpanhya e cantavã e baylavã” pelas ruas da cidade.38Antônio Coelho, “amulatado, homem de meia idade, cativo de Luís de Faria”, Diogo da Silveira que levava “huã camdea acesa na mão, grande de corpo, sardo e todo ruyvo” que fora de Antônio da Silveira e agora era forro e “servidor de fidalgos e outros homens por soldada”, o alcatifeiro Álvaro de Carvalho, Diogo Fernandes que andava na “ribeyra a palha”, Cosme Gonçal ves, mourisco jalofo que vivia em São Roque com três mouriscas, “Dõ Pedro que fogio pera terra de mouros” e Francisco de Almeida que o Rei D. João III mandara para a África.39 Possivelmente, as “Janeyras” e os “Reys” acaba vam por acobertar as comemorações do “Muharran” — folguedos populares islâmicos pelo primeiro dia do ano — e se transformavam em verdadeiras “festas mouriscas” pelas ruas da Lisboa quinhentista.40 O “casamento mourisco” era outra solenidade digna de ser festejada, como no caso do matrimônio contraído pela filha de Antônio de Abreu, moço de estribeira do rei, com um filho de Duarte Fernandes, o já referido “caciz” na comunidade mourisca de Lisboa. Lê-se na documentação que, “na dita voda, o dito Duarte Fernandes degolou huum carneiro, estamdo presem te Antônio de Abreu e sua m olher... ao modo dos mouros, damdolhe prymeiro de comer ao carneiro trigo e huum pouco de sal e lhe botarão um golpe de agoa pela boca pera lhe hyr pera baixo ho trigo e o sal”. Na mesma ocasião, “Duarte Fernandes disse a oraçam de Bismila/Ho Hala/Quibar e depois degolou o carneiro... e tomou o sangue em huuã vasilha e o mãdou em terrar”. O infor mante do inquisidor, mourisco que bem parecia conhecer os ritos islâmicos, acrescentou que a carne preparada daquele modo era conhecida em “arabigo por Halel”, quer dizer, carne sem pecado. E forneceu ainda detalhes precio sos sobre a degola do animal, dizendo que o caciz Duarte Fernandes tomou carneiro por um cabo e Antônio de Abreu, pai da noiva, tomou-o por outro cabo, tudo para que o animal não bolisse, pois se o fizesse, bolindo de um lado para outro, se cria que a carne era má, e não sagrada. Ato contínuo, antes de degolá-lo, o caciz pôs o rosto do carneiro para Alquibela, “que he pera omde nasçe o sol”, direção da cidade santa de Meca.41 Um outro processo informa, a propósito da cerimônia descrita, que os mou ros costumavam fazê-la sempre em suas bodas e que nenhum mouro poderia 37 38 39 40
A N TT , Inquisição de Lisboa, proc. 264. A N TT , Inquisição de Lisboa, proc. 5254. A N TT , Inquisição de Lisboa, procs. 5254, 264, 5153, 4118, 4184 e 10831. Sobre a festa do Muharran, ver: Paul Balta.L’Islam danslem onde. Paris: Le M onde Éditions, 1990 e Anne-Marie Delcambre. ElIslam. Madri: Talasa Ediciones, 1993. 41 A N NT, Inquisição de Lisboa, proc. 10867.
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dormir com sua mulher enquanto não fizesse a dita cerimônia chamada “Halel” e ter os noivos comido daquela carne.42 N este caso que tenho narrado, o caciz Duarte Fernandes ainda fez uma cerimônia ao costume dos mouros para a “fartança dos festejos” . Tomou uma boleima, bolo grande e grosseiro, e lhe pôs em cima um pouco de sal, depositando-a em seguida num alguidar vazio e enchendo de cuscuz, e ali fez ora ções de mouros, nomeando Mohamed — que no processo aparece grafado como Mafamede. Terminada a cerimônia, os convidados serviram-se de “cus cuz, alfitetes e boleymas”, sem esquecer do prato principal, o “Misilal”, com posto por “meo carneiro cozido” disposto em alguidares.43 A seguir, relatou o denunciante aos inquisidores o seguinte: que “poserão a noyva em huum estrado estamdo presem te Antonio dabreu seu pay e sua mãy e todos os mouriscos despois de acabarem de comer fizerão festa com tamgeres como costumão os mouros e baylarão e cada huum dava a noyva huuã oferta como podia e que Nicolao da Costa mourisco este he o que tan gia com huuã frauta e Pedro de Farya e Bernaldo mouriscos que estes dous apregoavão e diziam viva a ley de M afamede quãodo os mouriscos e mouriscas andavão bailãdo diãte da noyva e oferecyão o dinheiro e que quãodo elles nomeavão M afamede que então se alevãtavão os mouriscos e oferecyão o dinheyro”.44 E significativo acrescentar que o pai da noiva, Antônio de Abreu, dissera que folgava em fazer este “casamento ao costume dos mouros” porque assim fizera seu pai lá em sua terra, em outra voda outrora celebrada.45 Percebe-se, nisso, não apenas a sobrevivência de um costume religioso, mas a consciência de se preservar tradições ancestrais, ainda que clandestinamente. Entretanto, é de se ressaltar que nem sempre as festas de vodas mouriseas no Portugal antigo, chegavam ao seu final da mesma forma harmoniosa como haviam começado. Caso conhecido na comunidade mourisca portuguesa era a festa de casamento que ocorrera na casa de Jerônimo Correia, índio mouris co que residia na Rua do Espírito Santo em Évora. Nesta festa, “se armou amtre os mouriscos que ahy foram huum arroido” tal, ou seja, uma briga es trondosa com clamores e gritos, na qual a própria dona da casa, a mourisca Isabel Correia, acabou levando “huã cotilada plõ rosto”.46 O batismo islâmico também era alvo de comemoração entre os mouriscos: “huã festa de comer, tamger, camtar e baylar”.47 Maria Nunes, mourisca forra da cidade de Elvas, confessava ao inquisidor o batismo “ao modo e maneira 42 43 44 45 46 47
A N TT , A N TT , A N TT , A N TT , A N TT, A N TT ,
Inquisição Inquisição Inquisição Inquisição Inquisição Inquisição
de de de de de de
Lisboa, proc. 6405. Lisboa, procs. 5254 e 6405. Lisboa, proc. 5254. Lisboa, proc. 10867. Évora, procs. 8582 e 6847. Évora, proc. 5179.
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dos mouros” de sua filha Joana, realizado de comum acordo com o seu mari do, o mourisco João da Silva “dahy a tres ou quatro dias depois de a baptizar e de ser xpã”.48 Reuniu em sua casa na Rua da Olivença os seus amigos mou riscos e ofereceu um “cuzcuz feito ao costume dos mouros e comerão no chão sobre huã manta e huuns mantes em cima, os homens a sua parte e as molheres a outra... e ao primçipio do comer os homens diserão pomdo as palmas das maãos pera çima abertas Bizmilaa e depois de comer diserão Alamdurulaa”.49 Comido o cuscuz, os mouriscos ajuntaram-se para pôr o nome mouro à filha de Maria Nunes. Lançaram então “soortes ao modo dos mouros” to mando “tres palhas ou paaos e punhão a cada huum delles seu nome de mou ra... e depois vinha huum que estivera escomdido e não sabia ho nome das palhas tomava huã delas qual queria e o nome que aquela palha tinha ese punhão a criança”.50 Iniciavam-se os tangeres e os mouriscos cantando e bai lando saudavam não mais “Joana”, mas sim “Aziza” em nome de Alá e do seu mensageiro Mafoma, isto é, Maomé.51 Alguns dos encontros cotidianos dos mouriscos pelas tavernas de Lisboa, muitas das quais de propriedade mourisca, também acabavam por se trans formar em verdadeiras festarolas de improviso.52 Antes de comerem e beberem o vinho os mouriscos diziam “Bismila Harramão Harraem” e ao term ina rem “Handarula Belaharam”. O encontro dos mouriscos prosseguia, regado a “canadas de vinho”, que continuavam a beber enquanto conversavam, ao passo que outros, às vezes, encetavam um “jogo de cartas”. Costumes habi tuais dos mouriscos lisboetas, quiçá assimilados da cultura portuguesa, mas que contrariavam os princípios corânicos.5-' Mas, logo um deles começava a cantar “cãtigas de mouro” e seguidam en te, todos os mouriscos, as palmas ou batendo nas mesas, passavam a acompa nhá-lo no seu canto em “aravia”. A cantoria mourisca espalhava-se pela taverna em músicas de “velhacaryas, de guerras... de cavalaria, de vitoryas e de bargamtaryas... e de outras chacorryces”, mas não faltavam as cantigas em louvor a M afamede e aos demais santos do Islão.54
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A N TT , Inquisição dc Évora, procs. 5179 e 4648. A N TT , Inquisição dc Évora, procs. 5179 e 10769. A N TT, Inquisição de Évora, proc. 7917. A N TT, Inquisição de Évora, proc. 5179. ANTT. Ver os processos inquisitoriais relativos aos mouriscos na base de dados informatizada sobre a Inquisição de Lisboa, especialm ente os procs. 260, 5254, 6424, 7695,10817, 10837, 10867, 11646, 12626, 12720 c 12869. 53 ANTT. Veros processos inquisitoriais relativos aos mouriscos na base de dados informatizada sobre a Inquisição dc Lisboa, principalm ente os procs. 12869,12626, 12863, 10867 e 12995. Ver tam bém o Alcorão, vol. I. 2.‘ cd. Lisboa: Publicações Europa-América, 1989, p. 47, cap. II, vers. 219 e p. 109, cap. V, vers. 90 e 91. 54 A N TT, Inquisição de Lisboa, procs. 10867, 12626 e 4118.
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Em certas ocasiões, estes encontros habituais não tinham desfecho normal e terminavam “às porradas”, pois os mouriscos já embebidos pelo vinho “pelejavã huums cõ os outros... e quebravã os piches e a lousa em que comyão”.55 É importante ainda falar das reuniões organizadas pelos mouriscos do rei no, as quais eram nominadas pelos inquisidores de “cõvytes mouriscos” . Tra tavam-se de reuniões feitas entre amigos e parentes para “jãtar ou çear”, para dar boas-vindas aos “mouros de pazes” exilados em Lisboa, que se reconhe ciam, em Africa e em suas terras, vassalos do rei de Portugal 0 11 para dançar a “Zam bra” na Rua da Tinturaria em Lisboa, na casa de Catarina de Eça e Álvaro Carvalho, alcatifeiros da Rainha Catarina de Castela.56 Estes convites para jantar ou cear, como também os que homenageavam os “exilados políticos mouros” — casos do rei de Beles e do seu alcaide Moley M afamede, do alcaide do Xarife Doride e de outros alcaides de Fez como Hiça e Bagaluch — acabavam sempre em festejos, entremeados, em alguns momentos, pelas lágrimas dos mouriscos com saudades da sua terra e de seus familiares.57 Reunia o já citado “conjunto de música mourisca” e quase sem pre contava com a presença do mourisco João de Sousa, que havia vindo com o alcaide mouro Cide Nacere e depois de batizado contava com os préstimos de D. João III. Este mourisco encantava com suas cantigas a comunidade mourisca de Lisboa. As suas músicas mouras não só falavam “de cavalaryas de amores e de damas e de como fora tomada Granada” mas eram na concep ção dos mouriscos verdadeiras “cãtigas de maravilha” sobre Alá, M afamede e a terra de mouros.58 Quando cantava dizia em “aravia” que “M afamede era como os seus olhos e como 0 seu coração e que por o mundo nõ avia outro se nã elle” que “se M afamede não fora profeta santo nunca Deos dera tãta terra como lhe d eu ... muito boa e farta onde amdavão os ãjos e terra por onde Deos andara” que “era profeta santo que todos os peixes e aves do ceo lhe falavão e cryam nelle” que “era santo e que estava nos ceos” que era muito doce... que era muito boom” e que “era sua vida” .59 Os mouriscos a tudo respondiam, repetindo ou louvando “Haia” e seu profeta Maomé e de vez em quando alguns levantavam e movendo suas ca pas ensaiavam bailados.60
55 A N T T , Inquisição de Lisboa, proc. 12626. 56 A N T T Ver os processos inquisitoriais relativos aos mouriscos na base de dados informatizada sobre a Inquisição de Lisboa, especialm ente os processos 3184, 10867, 12626, 6466, 4118, 3568, 1606, 9955 e 9681. Ver também, na mesma base de dados, os processos inquisitoriais relativos aos mouriscos da Inquisição de Évora, especialm ente os processos 9385, 9177, 9823, 7472, 9288 e 2827. 57 A N TT , Inquisição de Lisboa, procs. 10867, 6466, 10817 e 1104. 58 A N TT , Inquisição de Lisboa, proc. 12626. 59 A N TT , Inquisição de Lisboa, procs. 12626, 9681, 4118, 6466 e 9236. 60 A N TT , Inquisição de Lisboa, proc. 10867.
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Enfim as zambras, palavra derivada do árabe zamra, espécie de dança e música mouriseas, cujos bailes eram acompanhados por flautas chamadas xabebas e outros instrumentos de sopro que tinham certas semelhanças com as doçainas.61 Delas dá notícia a documentação sobre os alcatifeiros da rainha, moradores na Rua da Tinturaria, conforme já mencionei. Na denúncia de uma tal Genoveva Rodrigues, vizinha de Catarina de Eça, percebe-se que as zambras eram festas praticadas no norte da África e depois recriadas pelos mouriscos da península ibérica. Duravam vários dias, por vezes incluíam ce lebrações de matrimônio, mas seu motivo principal, ao que tudo indica, era a comemoração de vitórias sobre os cristãos, aprisionamento ou mesmo morte dos inimigos de Alá. Nestas festas, os mouriscos tangiam, cantavam e bai lavam; comiam e bebiam à farta e, nas palavras da depoente, parecia que as casas viriam abaixo tamanho era o estrondo que produzia a festança mou risca.62 Em África, segundo a denunciante, vários episódios favoráveis aos muçul manos, fossem guerras, fossem “cavalgadas”, ensejavam as tais zambras, e nas terras ibéricas, os mouriscos buscavam reproduzir os mesmos festejos em circunstâncias análogas.63 Está-se diante, neste caso, de uma festa que não só reeditava tradições islâmicas do norte da África, como hostilizava simbolica m ente a cristandade. E nesse contexto é possível supor que as zambras feste javam em terras cristãs o êxito de uma “Jihad” , 0 11 seja, a vitória na guerra santa contra os infiéis. Estamos perto de concluir, frisando, antes de tudo, a riqueza da docum en tação inquisitorial para o resgate, em perspectiva etno-histórica da cultura mourisca no Portugal quinhentista, centrada, no caso, na multiplicidade de festas que a comunidade étnico-religiosa celebrava em terras cristãs. Festas privadas, algumas, nos casos de ritos de passagem de membros da com unida de mourisca, a exemplo dos matrimônios e batismos que mencionei. Festas públicas, outras, realizadas conforme o calendário católico, autorizadas pela Igreja, porém eivadas de costumes e crenças islâmicas. Festas clandestinas, em terceiro lugar, como as da estrebaria dei rei, onde pulsava, entre comilanças e orações, os preceitos, 0 calendário e as convicções religiosas da fé islâmica. Se este frenesi criptoislâmico chegou ao Brasil, não sabemos, exceto pelo que escreveu João Reis, já para 0 século XIX, no contexto específico da re volta dos malês na Bahia.64 No mais, nos estudos de Câmara Cascudo — ba seados entre outras fontes nos relatos dos cronistas ou viajantes, em sua
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Antônio dc Moraes Silva, vol. I, op. cit., p. 705. A N TT , Inquisição de Lisboa, procs. 4118, 3568 c 167. A N TT, Inquisição de Lisboa, proc. 167. JoãoJosé Reis. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos ma/és. São Paulo: Brasiliense, 1986.
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maior parte europeus, que também pelo século XIX desceram a linha abaixo do Equador — encontramos traços mouriscos presentes no folclore brasilei ro, supostam ente trazidos pelos portugueses, sobretudo nos livros Mouros, Franceses e Judeus c Mouros e Judeus na Tradição Popular do B rasil65 Há documentos, no entanto, que insinuam ter sido a transmissão da cul tura mourisca no Brasil mais complexa do que normalmente se supõe. D o cum entos da inquisição aludem a mouriscos ou renegados que tiveram pas sagem pela América portuguesa.66 E não deixa de surpreender uma carta enviada pela Coroa, no tempo de D. João V, ao governador e capitão-geral da capitania de São Paulo, mandando que fossem recambiados ao reino um gru po de mouros que ali tinham chegado num grupo de negros cativos, sob a alegação de que seus “maos costumes” se alastrassem pela capitania.67 Se as festas mouriscas chegaram ou não a se difundir nas capitanias do Brasil pelos próprios seguidores secretos de Maomé é algo que não podemos assegurar. Mas não resta duvida de que é uma possibilidade aberta à investi gação. □ □□
R o g é r i o d e O l i v e i r a R i b a s é professor-adjunto do Departam ento de História da Universidade Federal Fluminense; sua tese de doutoramento sobre o islamismo na inquisição portuguesa nos séculos XVI e XVII encontra-se em fase de preparação. E ntre seus artigos publicados, citam-se “Tates-Corongos: insurreição e resistência negra no início da modernização do Estado escravista brasileiro”, in: Bul-
letin de la Société Suisse des Américanistes: Cultures Margmales et Modemisation en AmériqueLatine. Genebra: Académie Suisse des Sciences Humaines et Sociales/Université de Zurich, 1995-1996, n.° 59-60 e “O inimigo no espelho: os filhos de Mafoma nos escritos do cisterciense Francisco Machado (1542)”, in: Actas do Congresso Interna cional Vasco da Gatna: Homens, Vagens e Culturas. Lisboa: Comissão Nacional Para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000. R E s U M o . A Inquisição portuguesa, criada em 1536, datava o início do medo coleti vo que iria instalar-se entre os cristãos-novos e mouriscos do Portugal quinhentista. A perseguição do Santo Ofício, embora tendo como alvo preferencial os cristãos-novos,
65 Luís da Câmara Cascudo. Mouros ejudeus na tradição popular do Brasil. Recife: Secretaria dc Educação e C ultura/D epartam ento de Cultura, 1978 e Mouros, franceses e judeus. São Paulo: Perspectiva, 1984. Ver tam bém os seguintes trabalhos: Antologia do folclore brasileiro: séculos XVI-XVII-XV!II — os cronistas coloniais — os viajantes estrangeiros. 4.a ed. São Paulo: Martins, 1971 e o Dicionário do folclore brasileiro. 5.“ ed. São Paulo: M elhoramentos, 1980. “ A N T E Ver os processos inquisitoriais relativos aos mouriscos e renegados na base dc da dos informatizada sobre a inquisição portuguesa, especialm ente os processos 7692, 8425 e 5840 da Inquisição de Lisboa. 67 A N TT, Papéis do Brasil, códice 6, ms. 698.
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não descuidou em momento nenhum da comunidade mourisca, acusada de praticar o crime de heresia e apostasia islâmica. Considerando essas questões e baseado nos processos inquisitoriais instaurados contra essa minoria étnico-religiosa, o trabalho pretende mostrar as festas mouriscas ocorridas no reino de Portugal e inseridas no crime de heresia e apostasia no contexto das resistências culturais islâmicas na cristandade portuguesa. Outrossim, busca-se questionar a transmissão da cultura mou risca no Brasil colonial, como supostamente trazida pelos descobridores portugueses.
Caraíbas protagonizam a dança da terra sem mal, sacudindo seus maracás e fumando tabaco. Ilustração de Theodor de Bry para História de uma viagem, de Jean de Léry, século XVI. Ronaldo Vainfas. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colo nial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 39. Foto André Ryoki.
DA FESTA TUPINAMBA AO SABA TROPICAL: A CATEQUESE PELO AVESSO R
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na história da festa sempre foram muito modes tas. E verdade que me deparei com as festas dos africanos da colônia, os ba tuques de que se queixavam os jesuítas então empenhados em cristianizá-los e fazê-los escravos mais comportados.1 Deparei-me com os mesmos batu ques e outras folganças populares que irritavam os agentes da Contra-Reforma no Ultramar, por serem as ocasiões prediletas para as tentações de moníacas, sobretudo as lascivas.2 Deparei-me ainda com as danças indígenas ao estudar a Santidade rebelde na Bahia quinhentista, cheguei mesmo a com pará-las com os bailes indígenas no Peru do mesmo século, o Taqui Ongoy, e os chamei então de “bailes dos espíritos”, pois eram os ancestrais da comuni dade que bailavam então nos corpos em transe.3 Mas a festa nunca foi meu cenário principal de investigação e não sei se estou de acordo com vários historiadores da festa, a exemplo de Vovelle, para quem a festa é um campo maravilhoso de observação para o historiador por que filtra metaforicamente todas as tensões de uma dada sociedade.4 Exage M
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1 Ronaldo Vainfas. Ideologia e escravidão: os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986. 2 Ronaldo Vainfas. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no B rasi! colonial (1989). 2.“ ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. 3 “O baile dos espíritos — danças indígenas, resistência cultural e ocidentalização no m undo colonial ibérico”, in: Santos, M. H. Carvalho (org.). A festa, vol. 1. Lisboa: Sociedade Portu guesa do Século XVIII/Universitária Editora, 1992, p. 243-55. 4 M ichel Vovelle. “O retrocesso pela historia na redescoberta da festa”, in: Ideologias ementalidades. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 240-54.
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ro do historiador francês, o que não significa desmerecer a festa como proble ma valioso para a pesquisa histórica. De todo modo, me foi sugerido que abordasse a Santidade neste colóquio, pois nela a festa, o baile indígena, jogava um papel fundamental. Assim, a Santidade baiana, movimento religioso que foi, ao mesmo tempo, o principal desafio posto pelos indígenas à colonização portuguesa no século XVI, pode rá se prestar a uma reflexão sobre o lugar da festa na história. Segui esta trilha, elegi a festa da Santidade e as representações dessa festa como campo de observação, e talvez possa cumprir a tarefa que me foi con fiada. Porque se é verdade que a história da Santidade está mais para tragédia que para festa, ela sem dúvida começou numa festa. Terminou em tragédia, mas começou em festa. Refiro-me não a uma festa em particular, mas a um tipo de festa, a um baile tupinam bá que não se confundia com as cauinagens ou com as cerimô nias antropofágicas dos índios. Refiro-me sim a uma festa em que os índios se comunicavam com seus mortos, os ancestrais de sua mitologia heróica e de les ouviam as excelências de um tempo e lugar míticos, sendo instados a buscá-los para a renovação do grupo. O primeiro europeu a descrever esta festa foi M anuel da Nóbrega, em 1549, e o fez meio assustado e confuso, pois a cerimônia que presenciou con trariava sua opinião de que os índios não tinham fé nenhum a e eram como tabula rasa, papel branco onde se poderia escrever à vontade. De todo modo, Nóbrega forneceu boa descrição de alguns aspectos desta festa. Mencionou que, de tempos em tempos, vinham uns velhos índios — a que chamou feiticeiros — de mui longes terras, recebidos com grande regozi jo nas aldeias, alojados em maloca especial, para pregar numa grande cerimô nia. Apresentava-se então o dito “feiticeiro” segurando uma cabaça mágica, a que os índios chamavam maracá, ornada com plumas, olhos, cabelos, nariz, e punha-se a falar com ela até entrar em transe. Os índios o rodeavam, bailando em passos ritmados uma melodia triste e monótona (como depois contaria Jean de Léry), e de súbito já não era ele, “feiticeiro”, quem falava, mas o espírito do ancestral abrigado na cabaça de poderes mágicos. Pregava então o dito feiticeiro ou, por meio dele, o ancestral morto, para que os índios não mais trabalhassem, que os alimentos nasceriam da terra por si mesmos e as flechas caçariam sozinhas no mato. Que as velhas se tornariam moças, que haveriam de matar e comer seus inimigos, que os grandes guer reiros se tornariam imortais — e tudo isso dizia em verdadeiro frenesi que contagiava a aldeia inteira, sobretudo as mulheres, contou Nóbrega, que as viu endemoniadas, contorcendo-se no chão e escumando pela boca. Nóbrega chamou a esta festa de Santidade — frisando obviamente que se tratava de santidade falsa, de transe simulado ou diabólico —, mas o fato é que o nome Santidade se vulgarizou, entre os colonizadores do século XVI, mesmo entre
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os jesuítas (que o inventaram), para aludir à cerimônia indígena ora descrita. Diversos outros jesuítas do primeiro século descreveram a mesma festa, Anchieta, Pêro Correa, Fem ão Cardim, acrescentando outros detalhes au sentes da carta de Nóbrega. André T h ev et a mencionou na sua Cosmografia, o mesmo ocorrendo com Hans Staden e Jean de Léry, para citar apenas os observadores do século XVI. Observadores de distinta nacionalidade, forma ção intelectual, experiência. Uns a descreveram de fora, como Nóbrega, pro tegido e preparado para dar o bote da catequese na Bahia. Outros a descreve ram por dentro, como Hans Staden, que escapou por um triz de ser devorado pelos tupinambás e vivenciou a cerimônia da Santidade quando foi deles cati vo no Rio de Janeiro. E houve os que a descreveram literalmente na fronteira entre as duas culturas, como no caso de Jean de Léry que, curiosíssimo, abriu com as mãos uma fenda nas palhas da maloca onde os índios “faziam santida d e” e observou tudo sem ser molestado, desafiando as advertências dos in térpretes normandos de que aquilo era coisa perigosa de se ver. D e todo modo, a festa da santidade tradicional dos tupinambás foi observa da por muitos em vários pontos da terra brasílica no primeiro século: nordes te, capitanias do sul, Piratininga, São Vicente. E é caso de acrescentar um aspecto que faltou à descrição de Nóbrega, mas aparece em quase todas as narrativas posteriores. O uso do fumo, do tabaco ou petim, como tempero da festa, sorvido primeiro pelo grande pajé que pregava para os índios e neles baforava a fumaça; sorvido depois pelos demais, as descrições variam. Tabaco forte e fumado até a embriaguez, como prelúdio do frenesi geral que tomava conta da aldeia. Era o fumo ingrediente tão essencial na cerimônia que houve quem dissesse, em documentos do fim do século, que o fumo e a santidade eram sinônimos ou que o fumo era o verdadeiro Deus daquela religião. Foi aliás por isso que os portugueses deram ao tabaco o nome de “erva santa”, e não porque viriam a apreciá-lo depois, como sugeriu Antonil no seu livro de 1711. A festa observada por Nóbrega e seus contemporâneos integra o quadro de efervescência religiosa que Maria Isaura Pereira de Queiroz'' viu ocorrer em toda a costa brasílica no meado do século XVI, tempo em que a coloniza ção portuguesa começava a mostrar sua verdadeira face, misturando escravi dão, catequese e epidemias que ceifavam a vida de milhares de índios em proporções gigantescas. Se de fato as pregações cresceram nessa época ou se só então começaram a ser registradas é assunto complicado que não vou abor dar aqui. Mas é certo que as observações do meado do século puderam flagrar a festa indígena num momento em que elas mais se aproximavam da tradição pré-colonial. Nóbrega a descreveu em momento anterior ao início sistemáti 5 M. Isaura P. de Queiroz. O messianismo no B rasile no mundo (1966). 2.“ ed. São Paulo: AlfaÔmcga, 1977.
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co da missionação e houve quem a descrevesse em aldeias totalm ente imu nes à dominação portuguesa. E não resta dúvida de que era esta festa ou cerimônia, chamada de Santi dade, que estava na raiz das migrações características da cultura tupinam bá ou nas guerras delas resultantes, não raro no próprio seio das nações de fala tupi. Festas presididas pelos grandes pajés, pajés-açu, 0 11 ainda, caraíbas, de onde resultava 0 nome tu p icararaimonhaga, que mestre Capistrano de Abreu traduziu como “santidade dos índios”, já evidentem ente inspirado nos rela tos quinhentistas. Festas que, por analogia, podem ser relacionadas à célebre busca da Terra sem Males, como fez M étraux,6 comparando as crenças tupis com as dos guaranis nesse ponto. Seja como for, esta era uma festa ou cerimô nia vital para os tupinambás, inspiradora dos movimentos migratórios que teriam levado estes grupos para o litoral pouco tempo antes de que aí chegas sem os portugueses. Inspiradora das guerras e prelúdio da antropofagia, que dava lugar a outra festa tão bem estudada por Florestan Fernandes. Inspira dora, quem sabe, desta desestabilização necessária da com unidade, como sugere Pierre Clastres7 e H élène Clastres,8convencidos de que os tupis-guaranis configuravam uma sociedade “contra o Estado”, e não apenas sem o Estado. Expressão da religiosidade tupinambá, cerimônia de contato com os mor tos, ritualização da mitologia heróica, prelúdio de movimentos de migração e guerra, a festa da “santidade” foi se modificando em algum mom ento dos anos 1560-1570. Foi assumindo um caráter novo, a história penetrando no mito — que me desculpem alguns etnólogos — e dirigindo sua fúria belige rante contra os portugueses. Impossível precisar quando e onde isto ocorreu, embora os primeiros sinais de mudança se possam entrever na Bahia da déca da de 1560. Se eu estiver certo, há razões para tanto, pois a varíola se tornou verdadeiro flagelo para os índios exatam ente nesta época, conforme salien tou Alexander Marchant, em livro clássico,9 e a Bahia foi cenário privilegiado nesta história de terror. De todo modo, se não se pode saber com certeza onde e quando a Santidade indígena mudou seu discurso, pode-se saber o porquê. Sem dúvida a mudança tem que ver com o avanço da colonização, do cativeiro de índios para lavouras e engenhos; com o início da catequese, da organização dos aldeamentos missionários que, a bem da verdade, foram au tênticos viveiros para a disseminação da bexiga, quando não ante-sala da es cravidão, apesar dos jesuítas.
6 Alfred Métraux. A religião dos tupinambás (1928). 2.a ed. São Paulo: Nacional, 1979. 7 Pierre Clastres. A sociedade contra 0 Estado (1974). 4 “ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. 8 H élène Clastres. Terra sem mal. São Paulo: Brasiliense, 1978. 9 Alexander Marchant. Do escambo à escravidão (1940). 2.a ed. São Paulo: Nacional, 1980.
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A grande mudança parece ter ocorrido não na morfologia da festa, ao me nos nos primeiros sinais de mudança, que continuava à base da embriaguez fumageira, da dança ritmada, da melodia monótona, do transe coletivo, tudo protagonizado pelo caraíba da ocasião. A grande mudança ocorreu na mensa gem veiculada pelos pajés ou pelos heróis mortos que neles encarnavam. Pois se continuavam a dizer, em transe, que na Santidade as velhas voltariam a ser moças, se insistiam em que ali ninguém precisaria plantar, colher ou caçar, se insistiam em pregar a guerra contra os inimigos, passaram também a dizer que, com o triunfo im inente da Santidade, não haveria mais padres, nem cativeiro de índios. Os portugueses seriam todos mortos ou se tornariam escravos dos mesmos índios que então cativavam. Mudança radical de m en sagem, que misturava os ingredientes da mitologia heróica com as evidências da história e transformava a festa indígena em prelúdio de fugas e rebeliões. O radicalismo da mudança talvez resida menos na profissão de fé antiescravista (se me permitem o exagero e apesar de ser esta uma mudança forte), do que no seu oposto, isto é, na admissão da escravidão como meta a ser alcança da com o triunfo da Santidade. Escravidão dos brancos, é verdade, mas ainda assim escravidão. Talvez resida nisto, repito, a evidência mais eloqüente da colonização do mito: a transformação da suposta e imaginária Terra sem M a les num paraíso escravocrata, onde os índios seriam senhores e os portugue ses escravos — ou mortos, porque, para os índios, escravidão e morte eram quase sinônimos. O mito parecia colonizado, apesar da festa intacta. Mas o mito tornar-se-ia rebelde, a fomentar fugas, revoltas, assaltos a engenhos e missões. E o que se vê em detalhe na mais poderosa das santidades indígenas do século XVI, a Santidade de Jaguaripe.10 Santidade baiana dos anos 1580: último suspiro da resistência tupinam bá no primeiro século. Incendiou o engenho do Conde de Linhares, destruiu o aldeamento inaciano de Santo Antônio, pôs em pâni co os colonos, os padres, o governo. Não é caso de esmiuçar aqui o história desta Santidade que, apesar de sua rebeldia, acabou atraída para o litoral, abrigou-se nas terras de importante senhor do recôncavo, e motivaria fugas em toda a capitania até ser finalmente destruída por ordens do vacilante Governador Manuel Teles Barreto, em 1585. O que interessa é mostrar que, nesta Santidade, a própria morfologia da festa mudou e adquiriu contornos em inentem ente católicos. Basta dizer que, ao lado do frenesi fumageiro, dos bailes tradicionais, da melodia triste e monó tona, os índios rezavam com rosários, erigiram uma enorme cruz de madeira à porta de sua igreja, faziam um batismo às avessas, mudando os nomes que
10 Ronaldo Vainfas. A heresia dos índios: cato/icismo e rebeldia no B rasil colonial. São Paulo: Com panhia das Letras, 1995.
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lhes haviam dado por meio de ritos similares aos da Igreja, santos óleos, água benta. Entre os nomes dados ao alto clero desta Santidade, pontificavam ver dadeiros santos, São Luís, São Paulo, São Pedro, um tal Santíssimo, um outro Santinho, sem falar de certa índia que ostentava o título de Santa Maria Mãe de Deus, mulher que chegou a presidir o culto na fase derradeira do movi mento. A mescla católico-tupinambá desta Santidade parecia não ter conhecido, de fato, nenhum limite. O caraíba-mor do movimento dizia ser Tamandaré, ancestral dos tupinambás, ao mesmo tempo que apregoava ser o verdadeiro papa da Igreja. E o que dizer do ídolo chamado Tupanasu} Era ídolo de pedra, personifica do com nariz, olhos, boca e cabelos, réplica ampliada e sólida das cabaças mágicas da festa tradicional. Em torno de Tupanasu, na igreja da Santidade, os índios bailavam, cantavam e fumavam a erva santa, de sorte que ele, o ídolo, protagonizava o espetáculo, a cerimônia. Mas Tupã, além de ser (ou por ser) o herói-trovão da mitologia tupinambá, era o nome usado pelos jesuí tas para designar o D eus cristão, o deus da catequese que os índios haviam conhecido nos aldeamentos inacianos. Tupã para o índios era um herói, um homem-deus. Tupanasu, com este sufixo de grandeza na língua geral, era o “deus grande”, o deus da cristandade. O ídolo indígena exprimia, assim, tan to o lendário tradicional dos índios como a catequese inaciana, virada pelo avesso na Santidade. Esta face católica da Santidade de Jaguaripe — que de tanto exacerbada me levou a falar em catolicismo tupinambá na morfologia do movimento — foi tecida ao mesmo tempo por jesuítas e índios aldeados — e o alto clero da seita era composto por trânsfugas das missões. A festa católico-tupinambá foi tecida na tradução do catolicismo para a língua dita geral; tecida no recurso às imagens e mitos indígenas para expri mir a doutrina cristã e as hierarquias da Igreja. A festa tradicional índígena se convertera, porém, em festa rebelde e, paradoxalmente, em festa católica à moda tupinambá. Para demonstrar esta parceria inaciano-tupinambá na metamorfose da fes ta e das crenças indígenas, elegeria, entre inúmeros episódios, uma ocasião em que os jesuítas adentraram uma aldeia e desafiaram o pajé-açu que lá estava a pregar. Disseram então os padres, entre outras coisas, que os índios não deviam acreditar naquele feiticeiro, que era um falso pajé-açu, pois o verdadeiro pajé-açú era o bispo da Bahia. Pois bem, se os jesuítas se perm i tiam dizer que o verdadeiro pajé-açu era o bispo, porque o pajé-açu, como o caraíba da Santidade, não poderia alegar que era ele o verdadeiro papa? N es ta luta pelo monopólio da santidade, o território de desacertos e incertezas seria de todo incontrolável e imprevisível. Destruída a Santidade de Jaguaripe em 1585, apareceu a visitação do San
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to Ofício na Bahia, em 1591, responsável pela profusão de documentos, pro cessos com centenas de fólios que sobre ela há. Tam bém não me vou ocupar desta fase da festa, que a rigor já tinha terminado em tragédia, incendiada a igreja dos índios pela tropa do Governador Teles Barreto. Insistirei aqui na representação da festa indígena pelos depoentes da visitação, gente que fre qüentou a igreja, inclusive colonos, porém empenhados em evidenciar seu distanciam ento em relação às cerimônias a que haviam aderido. E verdade que muitos produziram narrativas verossímeis, fornecendo fontes preciosas para a reconstrução etno-histórica que tentei fazer na pesquisa. Mas várias, inúmeras testem unhas, algumas que por sinal jamais tinham comparecido à cerimônia, disseram que a festa dos índios eram como um pagode, outros a qualificaram como cerimônia de mesquita, outros como festa diábólica, abusão, heresia. Foi na mesa da visitação ou no teatro da inquisição que a festa indígena, meio rebelde na motivação, meio católica na morfologia, virou he resia, isto é, heterodoxia, escolha consciente de doutrina oposta à da Igreja de Roma. O melhor exemplo deste deconcerto e reconstrução da memória reside na descrição do ídolo, que já nos serviu atrás para outra reflexão. Muitos disse ram que o ídolo tinha cara de gato, outros que era um monstro; houve os que o disseram parecido com figura nem humana, nem animal, e houve quem o visse como quimera, monstro fabuloso com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de dragão, coisa impossível, só imaginada... Quanto ao material de que era feito, alguns diziam ser de madeira, outros de pedra, outros não sabiam de quê. Posso assegurar, no entanto, que o ídolo era apenas uma estatátua de pedra-mármore, ampliação do maracá, media um côvado de altura ou 66 centímetros, e era adornado como se humano fosse, e ainda vestia uns paninhos que lhe foram ofertados pelo senhor escra vocrata que abrigou a Santidade em seus domínios. Posso assegurar tudo isso baseado em documentos do chefe expedicionário enviado pelo governador para incendiar a maloca-igreja dos índios, o qual confiscou os objetos de cul to, descreveu e mediu o ídolo Tupanasu. Um ídolo de pedra medindo 66 centímetros de altura protagonizava a festa da Santidade. Mas o que fez o visitador do Santo Ofício ao proferir sentenças contra os que se haviam envolvido com heresia? Embora soubesse o que era o ídolo e do que era feito, tanto quanto eu sei hoje, Heitor Furtado de M en donça mandou escrever que, na heresia dos índios, havia uma profusão de ídolos, uns de pau, outros de pedra, alguns com cara de gato, outros humanos, vários meio humanos, meio animalescos, todos monstruosos. Coitado do his toriador que só tivesse acesso às sentenças do preclaro visitador: seria enga nado, como a maioria dos que ouviram as sentenças do Santo Ofício, e pensa ria que a modesta igreja dos índios era uma casa de pagodes, um templo maior da idolatria brasílica...
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Mas nosso visitador, se errou de propósito ao descrever o ídolo, acertou no hibridismo dele, na matéria culturalm ente compósita em que se havia trans formado a festa indígena, rebelde porém cristianizada. Heitor Furtado errou num ponto, para enganar e assustar, e acertou noutro, sem querer, e deu exem plo de outra parceria na representação da festa: a parceria entre inquisição e colonos, parceria então em penhada em fazer da Santidade uma heresia dia bólica. E mais diabólica apareceria esta Santidade baiana na Europa, mencionada pelo jesuíta italiano Giovanni Botero, no seu Re/aziotii Utriversali, de 1596, e pelo jesuíta Pierre du Jarric, no seu Histoire des Choses plus Mémorables, de 1608. Ambos diriam que era festa diabólica na qual todos espumavam pela boca, bebiam fumos alucinógenos, matavam crianças e contrafaziam ritos cris tãos. Na pena dos jesuítas Botero e Du Jarric, a Santidade viraria quase um sabá tropical, exemplo de como o demônio agia nas terras descobertas pelos portugueses. Curiosamente, ambos omitiram nosso ídolo Tupanasu, que o visitador do Santo Ofício havia multiplicado por mil, preferindo frisar a pre sença do diabo em abstrato. Inventaram isso, sem nunca terem sequer de sembarcado na América portuguesa? Não. Sim plesm ente traduziram do latim para o italiano e o francês, respec tivamente, a Carta Anua dos jesuítas de 1585, ano em que se pôs fogo à San tidade, ano em que o provincialato da Companhia de Jesus competia a José de Anchieta. Anchieta, que bem sabia que a Santidade de Jaguaripe possuía um ídolo, assim como Heitor Furtado sabia que o tal ídolo era um só, e de pedra. Anchieta escondeu o ídolo na Anua, preferindo pintar a Santidade antes com cores diabólicas, mais à moda da demonologia européia, do que com as cores da gentilidade originária que bem conhecia. Afinal havia codifi cado a língua geral, e nela havia composto autos em louvor à Virgem na língua dos índios. Fora também mestre de latim no colégio de São Vicente, de modo que sabia verter línguas e culturas para todos os gostos. Vou concluir sem esquecer da festa, nosso assunto principal. Mas sobre qual festa devo concluir? A Santidade, ou as santidades no plural, foram, concretam ente, festas indígenas tradicionais dos tupinambás embora celebriza das com nome cristão. Passaram depois a ser festas rebeldes, tiveram seus mitos colonizados pela história, e quanto mais rebeldes ficavam, mais católi cas se tornavam, a ponto de os índios orarem com rosários, obedecerem a um papa indígena, a uma Santa Maria tupinambá e, no limite, adorarem um ídolo cujo nome era o Deus cristão ensinado pelos jesuítas. Uma vez destruída, pois a Santidade era festa perigosa para os interesses da colonização, a da Santidade foi registrada, esquadrinhada, esquartejada, mas felizm ente documentada pelo inquisidor-antropólogo dos Q uinhentos. Virou então heresia, sem excluir as gentilidades da índia, como os pagodes, ou crença de infiéis, como sugere a mesquita que alguns lhe atribuíram. Ter-
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minou, então, entre a profusão de ídolos e a ausência total deles, descrita como sabá tropical por jesuítas de Itália e de França, tradutores do jesuíta canarino, apóstolo do Brasil. Eis a festa indígena no concreto, se possível, e no mundo das representa ções, com certeza. De todo modo, é uma festa reconstruída por meio de mui tas mentiras, enganos e desenganos, cuja decifração é, 11 a verdade, quase impossível. □ □□ R o n a l d o V a i n f a s é doutor pela Universidade de São Paulo (1988), professortitular de História M oderna na Universidade Federal Flum inense (1994) e autor de A Heresia dos índios (São Paulo: Companhia das Letras, 1995, reedição 1999).
R li s u M o . N este artigo, o autor estuda a Santidade indígena como festa e, ao m es mo tempo, como fenômeno de resistência ao colonialismo.
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Cavaleiro correndo canas. Manoel Carlos de Andrade. Luz da liberal e nobre arte da cavallaria. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1790, estampa 90, p. 422. Biblioteca Guita/José Mindlin. Foto Lucia Mindlin Loeb.
A PROPÓSITO DE CAVALHADAS* M
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A a f e t u o s a t e i m o s i a dos organizadores deste seminário venceu minha resistência em aceitar o convite para estar hoje deste lado da mesa. O cupei-m e muito rapidamente do tema das cavalhadas num muito livre en saio de 1973,' e devo dizer que diante dos numerosos estudos e pesquisas sobre as festas coloniais que vêm sendo empreendidos pela jovem historio grafia brasileira de que suscitaram a necessidade deste encontro, trago, pois, de volta, um pouco requentados, alguns pontos de meu livrinho, increm enta dos por algumas reflexões nascidas de rápidas novas leituras e releituras de três relações de festas, com pitadas dos sempre novos Fernão Cardim, Teófilo Braga, sem esquecer, obviamente, as Cartas Chilenas. Começo fazendo al gumas observações sobre três relações de festas. As duas primeiras são rela ções que comemoram o casamento dos príncipes reais em 1760: uma em Santo Amaro da Purificação, e narrada por Francisco Calmon, da Academia dos Renascidos na Relação das Faustíssimas F e s ta s e a outra, realizada na
1 Publicado em livro som ente em 1995 pela Universidade Federal do Rio G rande do Norte. 2 Relação rias faustíssim as festas que celebrou a Câmera da Vila de Nossa Senhora da Purificação e Santo Amaro, da Comarca da Bahia pelos augustíssimos desposórios da Sereníssima Senhora Dona M aria, Princesa do Brasil, com o Sereníssimo Senhor Dom Pedro, Infante de Portugal, dedicada ao Senhor Sebastião Borges de Barros, Cavaleiro professo da Ordem de Cristo, capitão-mor das orde nanças da mesma vila, fa m ilia r do Santo Ofício, deputado atual da Mesa da Inspecção e acadêmi co da Academia Brasílica dos Renascidos, por Francisco Calmon, fidalgo da casa de Sua Majesta de e acadêmico da mesma Academia. Lisboa, na oficina de Miguel Manescal da Costa, impressor do Santo Ofício. Ano 1762.
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cidade de Salvador. ■ ’ A essas relações, cruzo uma terceira, que narra as festas em homenagem a São Gonçalo Garcia, organizada pela igreja dos Pardos da Senhora do Livramento em Pernambuco no ano de 1745.4 Mas é preciso insistir na riqueza de informações que trazem esses textos e as perguntas que suscitam. Entre tantos exemplos: oferecem subsídios para a história dos instrumentos musicais em uso no Brasil, para uma história do vestuário digamos cênico, graças às minuciosas descrições das vestimentas e ornamentos de aparato. O que é “vestir-se à trágica?” Identificar e analisar todas as comédias e óperas elencadas (se é que já não foi feito) seria alargar o panorama do teatro no Brasil. E se cada grupo dançante das corporações de ofício tem liberdade de esco lher sua dança, para cuja execução segue o guia que encabeça cada grupo, não teria existido a figura do grande ordenador do espetáculo total, um com p etente encenador? Qual a contribuição do negro? “Nacionais de G uiné” tiravam os carros. Dois dias de festejos da Bahia eram consagrados aos pretos. Já em Santo Amaro, no mesmo ano, o acadêmico renascido Francisco Calmon e, vinte anos antes, o relator da festa para São Gonçalo Garcia falam em qutcumbi. Eram danças negras? E a riqueza de seu trajar espanta até o autor da relação. Tanto luxo “em sujeitos tão mal herdados”.5 Quem pagava essas roupas? Por quê? Seguem-se, pois, a propósito da cavalhada, uma ou outra observação suge rida pelas relações de festas em que esta se encontra obrigatoriamente inclu ída, precedendo o enfoque dado à cavalhada dramática de que me ocuparei mais detalhadamente. Cavalhadas: divertimentos eqüestres, praticados pela aristocracia portu guesa, eram uma ocasião de exibir não só destreza como ostentação de rique za pelas vestimentas e ajaezamento dos cavalos. Um “sonoro júbilo de cla rim, trombetas e trompas”, pontuavam as “carreiras”, suas evoluções, as es caramuças. “Se atiram redondas alcancias, curtas canas de que destro inimigo
3 Narração panegírico-histórica dasfestividades com que a Cidade da Bahia solenizou osfelicíssimos desposórios da Princesa Nossa Senhora com o Sereníssimo Senhor Infante Dom Pedro, oferecida a E l-R ei Nosso Senhorp o r seu autor o Reverendo Padre M anuel de Cerqueira Torres, Bahiense, etc., 1760. 4 Súm ula triunfal da nova e grande celebridade do glorioso e invicto m ártir São Gonçalo Garcia. Dedicada, e oferecida ao Senhor Capitão José Rabelo de Vasconcelos, p o r seu autor Sotério da Silva Ribeiro: com uma coleção de váriosfolguedos, e danças, Oração Panegírica, que recitou o Doutíssimo, e Reverendissimo Padre Frei Antônio de Santa M aria Jaboatão, Religioso Capucho da Província de São Antônio do Brasil, na Igreja dos Pardos da Senhora do Livramento, em Pernambuco no prim eiro de maio do ano de 1745. Lisboa. N a oficina de Pedro Ferreira, Im pressor da Augustíssima Rainha nossa Senhora. Ano de M .D .C C .L III 5 “Sumula triunfal”, in: José Aderaldo Castcllo. 0 Movimento Academicista no Brasil, vol. III tomo 2, p. 37.
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se defende com fazê-las no ar em dous pedaços”,6 se arremessam quartinhas, “dentro das quais estavam flores e passarinhos, que quebradas pelas lanças dos cavaleiros serviam de admirável recreio aos olhos”.7 “Ao fogo das pistolas se desfazem nos postes as cabeças”,” cortam-se carneiros. Coroando os exer cícios, a corrida à argolinha, de ouro, ou prata, pendurada no centro de uma fita presa nas extremidades em dois postes enfeitados. Oferecia-se a argoli nha ou às autoridades ou à dama de seus sonhos. As cavalhadas são desde cedo corridas no Brasil pelos grandes da terra. “Esses aristocratas de Pernambuco [no primeiro século] guardaram ain da as tradições típicas do tempo de D. Duarte, o Rei Cavaleiro, que havia composto o Livro de ensinança do bem cavalgar toda sela. E de vê-los então no seu amor pelas touradas, pelas corridas, pelas cavalhadas.” Um gosto compartilhado pela fidalguia paulista: “[...] Pedro Lara, da família dos Lara, que tem, ao que parece, no seu tempo, os primados nesses exercícios da arte da picaria. D ele nos fala Taques, como sendo, pelas suas habilidades de cavaleiro, o mais gabado dos mancebos entre as damas e o mais invejado entre os homens.”9 Em 1564, na Bahia, no Jubileu do Espírito Santo, “alguns senhores, para regozijarem mais a festa, depois de comer correram a argolinha na aldeia”.10 Fernão Cardim registra uma festa de família de “aristocratas de Pernambuco”: “[...] Casando uma moça honrada com um vianês, que são os principais da terra, os parentes e amigos se vestiram uns de veludo carmesim, outros de verde, e outros de damasco e outras sedas de várias cores, e os guiões e selas dos cavalos eram das mesmas sedas que iam vestidos. Aquele dia correram touros, jogaram canas, pato, argolinha...” 11 Célebre corrida de argolinha foi a realizada no Recife sob domínio holan dês, promovida pelo Conde João Maurício de Nassau em homenagem à acla
6 Cartas Chilenas, carta VI. 7 “Narração panegírico-histórica”, in: José Aderaldo Castello. O Movimento Academicista no B rasil, vol. III tomo 3, p. 218. 8 Cartas Chilenas, carta VI. 9 J. F. Oliveira Viana. Populações meridionais do B rasil São Paulo: Nacional, p. 9 e 12. 10 T h éo Brandão. “As cavalhadas de Alagoas”, in: Revista Brasileira de Folclore, i(Il):4 , maioagosto, 1962. 11 Fernão Cardim. Tratados da tetra egente do B rasil Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp, 1980, p. 164.
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mação do Rei D. João IV de Portugal, descrita por Frei M anuel Callado no seu O Va/eroso Lucideno, e citado por Câmara Cascudo em seu Dicionário de Folclore. As cavalhadas constituíam, com as touradas, as comédias e óperas, uma parte obrigatória das grandes festas de igreja 0 11 comemorativas de grandes eventos da métropole, nascimentos, batismos, casamentos, aclamações, de príncipes e reis, a que a colônia não se podia furtar, custeadas compulsoriam ente pelo senado, as câmaras e/ou outros grandes personagens ou institui ções. Uma obrigação que com o tempo foi tornando-se muito pesada, a julgar pela sexta Carta Chilena. Mas que também podia ser considerada um privilé gio disputado, como se depreende das festividades da Cidade da Bahia, em 1760. O chanceler governador “mais liberal que Alexandre não perdoou a gastos, antes com larguíssima mão concorreu para essa real suntuosidade” . Uma liberalidade que se estendeu a “oferecer, dias dezenove e vinte no Pa lácio, onde também se executaram serenatas e um egrégio sarau com másca ras e riquíssimas e estupendíssimas farsas, banquetes esplêndidos por sua magnificência e deliciosíssimos manjares”.12 Em resposta a essa liberalidade do chanceler governador, “Não podia faltar a este devido obséquio 0 nobre Tribunal da Inspeção, devia com todo o corpo do comércio aplaudir estas reais festas. Por isso reservou-se para lhes dar fim talvez porque a sua função sendo a última, tanto nela se havia de em penhar que por isso mesmo mereceria os aplau sos de primeira. [...]. Com três dias de touros quis aplaudir os régios desposórios. Era difícil empenho, tanto pela arriscada condução dos touros das incultas brenhas do sertão quando por imaginar-se não se poderia des cobrir destros toureiros que os pudessem tourear. Mas nada foi bastante para deixar de sair com o seu projeto ainda que à custa de grande diligên cia e grosso cabeda [j/c]. Mandou logo em o terreiro de Jesus fazer um espaçoso curro, e porque queria para si a glória que a função fosse feita toda a sua custa, requereu ao Senado mandasse demolir todos os arquibancos que se tinham feito no terreiro, obrigando-se a ter prontos os assentos para todos os que quisessem assistir.” 13 A arrogância esbanjadora do “corpo do comércio” pode ser lida como com petição de classe, a afirmação “plebéia” do dinheiro da gente do comércio perante aquela parte dos festejos que, como a cavalaria, era outro momento de afirmação e ostentação dos grandes da terra. Haja vista a imponência dos
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Narração panegtrico-histórica”, in: José Adcraldo Castello. O Movimento Academicista no Brasil, vol. III tomo 3, p. 206-7. 13 Ibidem , p. 219.
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carros triunfais que abriram a tourada, minuciosamente descritos, seguidos de contradanças, recitativos, “dois triunfantes carros, dos quais certam ente sem hipérbole se pode afirmar que para sua suntuosa fábrica se empenharam os últimos esforços da opulência” .14 A mesma magnificência na entrada do toureador, ricamente trajado, a cavalo, acompanhado de cinco capinhas com vestes deslum brantes e variadas, e de “vaqueiros trajados à mourisca e os homens dos forcados vestidos de encarnado”. Vinte anos depois, Critilo nos mostraria uma tourada em franco processo de decadência, já entregue ao pessoal a pé, pouco habilidosos capinhas, toureando “bois e vacas” enquanto “os caretas lhe dão mil apupadas” . Uma tra dição burlesca que vai continuar no Brasil.15 Cavalhadas, comédias, óperas e touros completavam os cortejos dançantes das corporações de ofícios, os car ros triunfais, a procissão solene e seus andores ricamente enfeitados, perso nagens suntuosam ente trajados, alegorias mitológicas, cartazes com poemas alusivos ao acontecimento, conjuntos musicais com os mais diversos instru mentos e gêneros que compunham aqueles grandes festejos oficiais que, se estendendo dias a fio pelas ruas ornamentadas onde as luminárias transfor mavam a noite em dia, se apresentavam como um espetáculo total, de “com plexa coreografia”.16 Uma coreografia que deveria reproduzir a hierarquia e se desenvolver se gundo um modelo imposto pela metrópole, “a lei própria/que aos festejos reais prescreve a norma”.17 Tem-se uma idéia deste modelo, entre tantos exemplos possíveis, ao se ler a introdução do panegírico das mesmas festas da Bahia, onde “admirava-se a Bahia de si mesma, e não podia crer no pre sente tem po poder ostentar tanta magnificência, mas a fidelidade aos seus príncipes lhe deu asas para em preender maiores impossíveis” .18 “DISPOSIÇÃO DAS FESTAS “Tanto que o Ilustre Chanceler Governador comunicou esta felicíssima notícia ao Senado da Câmara, logo este por um pregoeiro a fez publicar a todo o povo, ordenou também, que nos três dias, que principiaram em 23
14 Ibidem , p. 220. 15 Assim como no curro, além dos toureadorcs, havia os capinhas e mascarados que divertiam o povo; assim, tam bém na cavalhada, além dos dois bandos, havia os mesmos mascarados que andavam a pé divertindo o povo. Ver, a propósito da popularização da tourada no século XVIII, recente artigo de Evaldo Cabral de Mello publicado na Folha de S.Paulo, 25 julho, 1999; Francisco dc Paula Ferreira de Rezende. Minhas recordações. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1944, p. 134. 16 Affonso Ávila. O teatro em M inas Gerais: séculos X V III eX IX . Ouro Preto: Prefeitura M unici pal, 1978, p. 3. 17 Cartas Chilenas, carta V. 18 “Narração panegírico-histórica”, in: José Aderaldo Castello. O Movimento Academicista no Brasil, vol. III, tomo 3, p. 199.
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de setembro, todos iluminassem as suas janelas com vistosas e brilhantes luminárias, impondo graves penas aos que transgredissem esta ordem. “Convocou o Senado da Câmara aos oficiais de todos os ofícios, e a cada um lhe encarregou seu dia particular, para que com a dança que quisesse, fosse à praça, onde não só desempenharia a eleição, que dele se fez, mas tam bém mostraria cada um a sua fidelidade nos obséquios que tributasse. Determ inou pelo mesmo Senado representasse óperas na praça, fazer cavalarias no terreiro de Jesus, e no mesmo haver ataque de fogo pelos militares; e se traçaram muitas coisas conducentes a um geral contenta mento; como foram touros, fogo, e outeiro, como em próprio lugar refe rirei. “O Reverendo Cabido tomou à sua conta fazer uma festa em tudo sole ne, e uma procissão que fosse justam ente um triunfo, em que desem pe nhasse a mesma grandeza. [...] determinaram fazer uma festa, que o seu magnífico aparato e solene pompa fosse um non plus ultra da devoção, da opulência, e do agrado. “Assim se dispuseram todas as coisas necessárias para a presente ação, que se bem foram ordenadas umas pelo Reverendo Cabido, e outras pelo Senado da Câmara, dirigidas porém todas pelo Chanceler Governador que mais liberal, que Alexandre, não perdoou a gastos, antes com larguíssima mão concorreu para esta real suntuosidade, como adiante veremos. Herói verdadeiram ente grande, de quem se pode gloriar Sua M ajestade Fidelíssima em ser rei de tal vassalo.”19 As festas de 1745 para São Gonçalo Garcia em Pernambuco seguiram o mesmo modelo, com a mesma intenção de magnificência, apesar de todos os percalços que se adivinham, apesar da origem dos promotores da festa, os Homens Pardos, de tão “sequiosa devoção”, apesar das “passadas e univer sais vexações em que viviam soçobrados”.20 O texto empoladíssimo, e por vezes de difícil compreensão, não esconde, atrás da descrição muito pormenorizada da magnificência da festa, com seus ditos, não ditos e alusões, os dissentimentos, “ódios dos moradores”, desa venças, “um não pequeno escândalo” que envolveram os sofridos Homens Pardos querendo homenagear o santo “de sua mesma cor, e accidente”. A indicação do nome de doadores, diferentes para cada uma das figuras do cortejo, ou então reunidos alguns para uma alegoria de maior envergadura deixa tam bém suspeitar dificuldades em custear a festa.
19 Ibidem , p. 197-8. 20 “Sumula triunfal”, op. cit., p. 13.
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E, no entanto, apesar de todos esses percalços, os festejos do Livramento seguiram à risca o modelo canônico: procissão solene, andores belíssimos, alegorias, carros triunfais, danças das corporações, figuras “vestidas à trági ca”, “à francesa”, “à mourisca”, ornamentos, jóias, tecidos suntuosos, varia dos instrum entos musicais, tudo descrito com meticulosa minúcia. Os Homens Pardos não haveriam portanto de dispensar as aristocráticas cavalhadas, que foram custeadas pela Irmandade da Senhora de Guadalupe, e se desenvolveram durante dois dias no pátio da Igreja do Livramento e “não no Palácio dos Governadores do País”. Cavalhada esta descrita com minúcia de detalhes e informações, cuja análise permitiria ampliar o conheci m ento do desenrolar da competição eqüestre. Também previstas as canôni cas comédias que se levariam no palácio do general governador, mas não pu deram “sair à luz”, porque o “inimigo da paz e da concórdia não permitiu que se concluíssem estas maravilhosas festas com sossego”. Tão maravilhosas, que o relator se espanta diante da “superioridade” desses “excessos”, vindos de “sujeitos tão mal herdados; pois estes, sendo, não só baixos por acidente, como pobres por nascimento”.21 E fica da leitura dessa relação um turbilhão de imagens delirantes, florões, sedas e veludos rutilantes, azuis, carmesins, ouros, crinas trançadas com fitas de cores e de ouro ornando cavalos ruços “cobertos de mantas de tafetá verde-m ar”, fragatas enfeitadas e magníficos andores, “plumagens brancas e pretas sobre laços de fita azul, homens pretos vestidos à trágica cobertos por dourados capacetes com plumas, cocares brancos rematados de fitas e bolotas de ouro”, sons, ritmos, um turbilhão que leva ao inevitável anacronismo da associação com os desfiles carnavalescos de hoje. Deve-se dizer porém que, embora o modelo vindo da metrópole seja impositivo e reforçador das hierarquias, ele rem ete a antigas práticas e gostos. Tanto em Portugal e Espanha, como posteriormente na colônia, ele vinha de encontro a um gosto notório pela dança, sem grandes fronteiras entre as ca madas sociais que a ela se entregavam. Como dizia Antônio José Saraiva, na origem em Portugal, “qualitativamente não havia diferença entre a cultura do fidalgo e a cultura do vilão”.22 Um gosto pela dança e uma mistura alegre de dançantes de todas as ori gens que vinham de longe: “D. Pedro I, o Justiceiro”, diz Fernão Lopes citado por Teófilo Braga,23 “era muy querençoso e em dansas e festas [...].” “Vinha el-rei em batees D ’almada para Lisboa, e saiam-no a receber os cidadãos e todollos dos mes-
21 Ibidem , p. 37. 22 Antônio J. Saraiva. A cultura em Portugal: teoria e história. Lisboa: Bertrand, 1983. 23 Teófilo Braga. 0 povo português nos seus costumes, crenças e tradições, vol. 1. Lisboa: Dom Quixote, 1985, p. 291-2.
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teres, com dansas e trabalhos, segundo entonces husavom, e el saia dos batees e metiasse na dansa com eles, e assi hia atta o paço” . Danças nas ruas também animaram casamentos reais ou a tomada de armas de cavaleiros. Tal era a paixão do povo pela dança, diz ainda Teófilo Braga, que se baixou um alvará a 28 de agosto de 1559 proibindo “que na cidade de Lisboa e uma légua de redor d ’ella se não faça ajuntamento de escravos, nem bailos, nem tangeres seus, de dia nem de noite, em dia de festa nem pela semana, sob pena de serem presos, e dos que tangerem ou bailarem, pagarem cada um mil reaes para quem os pren d er...”.24 “As festas religiosas tornaram-se o prin cipal pretexto das danças... No culto era a dança peculiar da liturgia tradicio nal popular” .25 Em Fernão Cardim26 encontram-se repetidas referências à associação dan ças/procissão reproduzida pelos evangelizadores, cuja reconhecida habilida de incentivou “danças e outras invenções”, “procissão solene pela aldeia com danças dos índios a seu modo e à portuguesa”. As cerimônias term inando em geral com a conversão e casamentos de centenas de homens e mulheres índi os. E é em Fernão Cardim que encontraremos a primeira notícia da “dança mui graciosa” de meninos índios “todos em penados”, a dança que vamos encontrar em vários dos festejos oficiais do século XVIII. Mas não eram só os índios que gostavam de dançar, tam bém “alguns mancebos honrados festejaram o dia [da Virgem], dançando na procissão”.27 E n quanto “a cidade e os estudantes” homenageiam as onze mil virgens “em procissão solene, com flautas, boa música de vozes e danças” e organizam a procissão das onze mil virgens.28 E nesta que se encontra a nau processional que vamos reencontrar cm muito festejos. Outra festa importada de Portugal, muito apreciada pelo conjunto da po pulação: a comemoração dançada, a 10 de janeiro, de São Gonçalo de Amarante, o santo casamenteiro e violeiro. O francês Le Gentil de la Barbinais assistiu em 1718, na Bahia, a essa festa, “onde compareceu o vice-rei Marquês de Angreja, tomando parte na dança furiosa dentro da igreja, com guitarras e gritarias de frades, mulheres, fidalgos, escravos num saracoteio delirante. Num final, os bailarinos toma ram a imagem do santo, retirando-o do altar e dançaram com ela, substituin do-se os devotos na santa emulação coreográfica”.29
24 Ibidem , p. 293-4. 25 Ibidem . 26 Fernão Cardim. Tratados da teira e gente do Brasil. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp, 1980, p. 148. 27 Ibidem , p. 166. 2S Ibidem , p. 143. 29 Luís da Câmara Cascudo. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: M E C /IN L 1954 p. 294.
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Danças processionais, festa de S. Gonçalo foram o alvo da ira moralizadora do Peregrino da América, que denuncia as “grandes devassidões” (principal m ente na cidade da Bahia) “de danças, músicas, e farsas tão desonestas, [...] procissões que se fazem pelas ruas públicas, indo encaretados, provocando muita lascívia...” . “Por isso o Conde de Sabugosa, estando governando a ci dade da Bahia, por ver umas festas que se costumavam fazer pelas ruas públi cas em dia de São Gonçalo, de homens brancos, mulheres e meninos, e ne gros com violas, pandeiros e adufes, com vivas e revivas São Gonçalinho, trazendo o santo pelos ares, que mais pareciam abusos, e superstições, que louvores ao santo, as mandou prohibir por um bando, ao som de caixas milita res com graves penas contra aqueles que se achassem em semelhantes festas tão desordenadas”. E o Peregrino pontifica: “Suposto dizem muitos que são necessários todos esses divertimentos para fazerem mais aprazíveis as festas dos santos, sou de mui diverso parecer; os santos para serem louvados e feste jados pelos seus devotos e mais povo cristão, não é necessário que se use de sem elhantes farças profanas... Basta que se repiquem os sinos e se toquem instrum entos aprazíveis e se cantem vésperas e no dia dos santos haja missa cantada... cantando salmos e vilhancicos ao divino...” .30 Como se vê, o modelo canônico dos festejos oficiais não tem a severida de do Peregrino da América. Não só a festa barroca cívico-comemorativa, pela sua própria natureza integradora de todo o corpo social, incorpora no seu desenrolar todas as manifestações festivas, tanto as das classes popula res, na pessoa das diferentes corporações de ofícios, quanto as de seus mais altos dignitários civis ou religiosos, como ainda, na verdade, abre frestas à liberdade de outras “invenções” . Deixa espaço tanto para as danças tradici onais “à portuguesa”, “à moda da terra”, ou à moda etíope”, aos instrum en tos tradicionais portugueses como a charamela, quanto ao “gentílico instru m ento chamado vulgarm ente marimbas” ou à “suavíssima consonância de flautistas” . Ou ainda a novidade incorporada à aristocrática cavalhada: fazêla preceder pelos costumeiros “ternos de charamela” , mas tam bém pelas “graciosas danças de Calhafastos, (?) Columis e Q uicum bis”, uma “dança da terra” .31 D onde essas relações, ao mesmo tempo que permitem acompanhar o gran de modelo barroco português das comemorações festivas oficiais, ele mesmo composto por várias modalidades de práticas, também apresentarem elem en tos que virão a fazer parte do folclore brasileiro já suficientem ente elaborados no século XVIII, para poderem ser introduzidos na festa barroca. Talvez já estariam estas formas incluídas nos festejos da Bahia de 1760,
30 N uno M arques Pereira. Compêndio narrativo do peregrino da América, vol. II. Rio dc Janeiro: Academia Brasileira, 1939, p. 114 l.a ed. 1728. 31 “Súm ula triunfal”, op. cit., p. 43.
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sem merecer do autor do panegírico a mesma ênfase descritiva com que brin dou o conjunto do cortejo. Assim quando aos ferreiros faltou o tempo “para a dança que idearam”: “Esta falta supriram os discretos e divertidos máscaras, que com vários gêne ros de figuras fizeram tão jocundas representações que geralm ente alegraram a todos. Ao som de harmoniosos instrumentos dançaram algumas danças co muns [grifo eu] com toalhas e modas da terra...” .32 Faltam também maiores detalhes para o que sucedeu nos dias seguintes e que talvez tivesse que ver com as danças negras a que se refere a relação de Francisco Calmon: “os dias treze e quatorze foram pelo Senado determ ina dos aos pretos. Estes em ambas as tardes foram à praça com muitas diverti díssimas danças”.33 A relação dos festejos de Santo Amaro da Purificação é considerada, diz Oneida Alvarenga, o primeiro documento conhecido sobre alguns costumes folclóricos e foi muito utilizado como tal por muitos renomados folcloristas. Apresenta, diz ela, o que seria a mais antiga notícia sobre o Reinado dos Congos, apresentado num conjunto suficientem ente estruturado que denota re petida prática anterior.34 O texto de Francisco Calmon é muito mais sóbrio na linguagem e muito mais econômico nas descrições do que a relação da Bahia, sem no entanto deixar de transmitir com cinematográfica precisão o luxo, a magnificência, a sonoridade das Festas de Santo Amaro. Não falta a descrição dos três dias em que se produziu “magnifica cavalaria”. Diga-se aliás que eram famosas as cavalhadas de Santo Amaro da Purificação, ocorridas no dia da padroeira, a 2 de fevereiro. É de se notar o grande espaço dado na relação ao conjunto do Reinado dos Congos, proporcional, aliás, ao número de vezes que apareceu no cortejo e à importância dada pelas autoridades ao rei e à rainha do Congo. Sem dúvida um aspecto controlador, mas que denota respeito pela organização dos ho mens pretos, dentro de uma festa que permite a alegria da dança para o m e lhor reforço da hierarquia. Digno de nota é também o prazer dos espectado res nas três vezes em que se exibiram: “No dia vinte e um, saiu terceira vez a público o Reinado dos Congos, excitando sempre nos que o viam a ânsia insaciável de gozar muitas vezes da sua alegre vista”. “O dia quatorze [de dezembro] foi singularmente plausível pela dança dos Congos, que apresen
12 N ote-se que essas intervenções mascaradas «jocundas» são comuns nas nossas m anifesta ções folclóricas c se encontram desde cedo incorporadas às cavalhadas (ver Marlysc Meyer. De Carlos Magno e outras histórias, p. 25-7). 33 “Narração panegírico-históriea”, op. cit, p. 202-03. 34 Ver nota de Oneida Alvarenga, à página 13, referente ao dia 22/12/1760, in: Francisco Calmon. Relação das faustíssim as festas. Introdução e notas de Oneyda Alvarenga. Rio de Janeiro: M E C /SE C /Funarte-Instituto Nacional do Folclore, 1982.
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taram os Ourives cm forma de em baixada... o Embaixador do Rei de Congo, magnificamente ornado de seda azul...”, montado a cavalo, que “correspon dia ao demais ornato... e se fazia admirar pelo ajustado da marcha, com ao som de muitos instrum entos... anunciou ao Senado, que a vinda do Rei esta va destinada para o dia dezeseis...”. “Na tarde do dia dezesseis saiu o Reina do dos Congos “que se compunha de mais de oitenta máscaras, com farsa [fantasias] ao seu modo de trajar, riquíssimas pelo muito ouro e diamantes de que se ornavam, sobressaindo a todos o Rei e a Rainha.” Estes, “recebidos pelo capitão-mor, juiz e demais cameristas que se achavam em assentos com petentes aos seus ofícios e pessoas. Para o Rei e a Rainha se havia destinado lugar sobre um estrado de três degraus, cobertos de preciosos panos, com duas cadeiras de veludo carmesim franjadas de ouro... Lhe fizeram sala os Sobas e mais máscaras da sua guarda, saindo depois a dançar as Talheiras e Quicumbis, ao som dos instrumentos próprios do seu uso e rito. Seguiu-se a dança dos meninos índios com arco e frecha” ... e um “ataque... que fizeram os da guarda do Rei com seus alfanjes, contra um troço de índios que saíram de emboscada, vestidos de penas e armados de arco e frecha, com tal ardor de ambas as nações, que com muita naturalidade representaram, ao seu modo, uma viva imagem da guerra” .35 Talheiras, ou taieiras, são um cortejo de mulheres vestidas de branco, que cantam e dançam e formam o séquito de Nossa Senhora do Rosário. Talvez se inspirassem delas as negras que até hoje, em Cachoeiro na Bahia, formam a irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte que, trajando de branco, há mais de duzentos anos dançam para a Virgem cada dia 14 de agosto. Estes quicumbis, que incluem negros vestidos de índios e combates entre índios e negros seriam os antepassados dos quicumbis baianos descritos por Manuel Quirino?36 E já se pode entrever o que seria hoje a congada deam bulante pela cidade: “no dia dezoito saiu, segunda vez, o Reinado dos Congos, com todo o seu estado discorrendo pelas ruas da vila e não foi para os moradores pouco plausivel [digno de aplausos] este divertimento por verem a grandeza, aparato e tratam ento dos Sobas que o acompanhavam [...]. Precediam as danças das Talheiras, Quicumbis, meninos índios e o ataque da gente da sua guarda com os índios da emboscada; e não obstante ser já repetição da primeira vista, não deixou de causar aos espectadores grande gosto e recreação”.57 Mais interessante ainda, porque refletindo a condição dos destinatários e em preendedores dos festejos, os homens pardos, a “coleção de vários folgue dos e danças” que marcaram a solenidade da entronação de São Gonçalo
35 Francisco Calmon. Relação das faustíssim asfestas, op. cit., p. 24. 3'’ M anuel Qucrino. Rahia de outrora. Salvador: Progresso, 1955, p. 69-72. 37 Francisco Calmon. Relação das faustíssim as festas, op. cit., p. 23-4.
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Garcia, “também pardo”, na igreja dos Pardos da Senhora do Livramento realizados em Pernambuco para os quais foram convidadas “todas as confra rias e Irmandades desta Capitania”. Quinze anos antes das festas de Santo Amaro já se encontram menciona dos os quicumbis: “8 nacionais de Guiné, vestidos de branco, trajando saiotes de renda, nos braços fitas encarnadas, que lhes pendiam das mangas em rega ço tiravam “a nau ou fragata em que ia a Senhora do Livramento, data dos Irmãos Capitão Antônio Rodrigues, José da Conceição, Francisco Xavier e João Soares Leonel”. Nomes que não parecem aristocratas e testem unham dos esforços conjugados para levar a efeito uma festa digna dos mesmos aris tocratas. Quem não reconhecerá nesse traje os figurinos tão familiares das congadas de hoje, e a nau ou fragata não anunciariam modesto barquinho puxado pelos brincantes da chegança? Seguindo a nau, a “célebre e plausível dança chamada Quicumbiz. De 13 figuras... constava esta jocosa peripacessia: vestiam todos de veludo negro, posto se diversificavam nos saiotes; porque uns os tinham de seda, outros de boreado, outros de galacé, todos agaloados de ouro e prata”. Tão magníficas roupas causam o espanto do narrador: “não parece de espantar excessos tão pela superioridade, sobejos em sujeitos tão mal herdados; pois estes, sendo, não só baixos por acidente, como pobres por nascimento, senão [o que mais é] sujeitos de liberdade.. .”.38 Outros saiotes, outras rendas vestiam os “caudatários” que iguais em número, em idade e em cor acompanhavam os dançarinos do Quicumbiz. E sua dança, associando São Gonçalo Garcia com São Gonçalo de Amarante, infringia as antigas proibições, pelo jeito pouco respeitadas: “A som de violas e pandeiros, cantando, e dançando, ao modo Etiópico, louvores entoavam ao Santo Gonçalo, que certam ente era este um dos espectadores mais célebres, e sonoros, que continha todo este festival tri unfo; muito maior graça recebia por um gentílico instrum ento chamado vulgarmente marimbas, que capitaneando tangia com notável acerto, um desmarcado negro ornado, e vestido de saiotes de renda, tendo enlaçado todo o corpo de cordões de ouro, e corais, a que para o desta nação é a entidade, que criou a natureza de mais valor.”39 Voltando ao meu tema-pretexto, lembro o destaque dado por Critilo na sex ta Carta Chilena à cavalhada, contrastando com o escárnio com que trata a festa compulsoriamente exigida, de uma população empobrecida, para comemorar os desposórios do infante D. João com D. Carlota Joaquina que começaram a
',8 Ibidem , p. 37. w “Súmula triunfal”, in: José Adcraldo Castello. O Movimento Academicista no fírtisil, vol. III, tomo 2, p. 38.
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13 de maio de 1778, obrigada, e apesar das dificuldades, a desenvolver o padrão consagrado: festa de igreja, com aparato militar, três dias de cavalhadas, três de touros e três de ópera pública, sem falar nas luminárias e fogos de praxe. D ebret tam bém descreveu com todos os detalhes a cavalhada de argolinha e as touradas programadas para os festejos da Corte por ocasião da aclamação de D. João VI, rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, em fevereiro de 1818. Festejos para cuja decoração ele próprio contribuiu. Mas é interes sante notar a dificuldade que foi organizar o tradicional evento que acabou efetuando-se só em 15 de outubro, no circo armado no campo de Sant’Ana: “Os preparativos das cavalhadas foram naturalmente demorados, pois era necessário mandar os convites a certo número de pessoas que, habitando pro víncias do interior concordaram vir figurar à sua própria custa e contribuíram de bom grado para os prazeres da Corte. Era preciso ainda tempo para man dar buscar touros selvagens que só podiam ser encontrados na província de Curitiba”.40 N ote-se que os toureiros eram espanhóis. Mas a cavalhada podia não se resumir ao jogo de habilidades eqüestres. Desenvolvendo a parte das escaramuças e batalhas fingidas (de que há forte exemplo nos festejos da Bahia de 1760 e ainda presentes na sexta Carta Chilena) e situando-as numa temática tradicional ibérica e de ampla circula ção na América Latina, acrescentou-se às argolinhas e outras provas de habi lidade, a cavalhada dramática. Uma representação eqüestre do antigo tema carolíngio resumido na fórmula cristãos e mouros, representação essa que pa rece ter sido uma reelaboração brasileira.41 Assim, a mesma aclamação de D. João foi comemorada em Minas, no Tejuco (Diamantina), e comportou uma cavalhada dramática presenciada e des crita pelo viajante von Martius. “Já desde nossa chegada a Tejuco se haviam tomado disposições para solenizar a coroação do rei com festejos patrióticos, que haviam sido ao mesmo tem po organizados em todo o Brasil. O patriotismo de Ferreira da Câmara, que compreendia a grandeza e dignidade do acontecimento, pelo qual o Brasil, pela primeira vez, recebia a sagração da independência, inci tou-o a dar a essas festas toda a pompa e esplendor significativo. Tivemos com isso ocasião de admirar o tato perfeito e o fino sentimentalismo do sertanejo brasileiro. Começaram as cerimônias com um espetáculo em te atro, para esse fim erguido com tablado na praça do Mercado, para onde o
4n J.-B. Dcbrct. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, tomo II, vol. III. São Paulo: MartinsEdusp, 1972, p. 66-9. 41 T h eo Brandão. Cavalhadas de Magoas. Rio dc Janeiro: M EC/Funarte, 1978 [Cadernos de Folclore, 24], p. 4-12.
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povo e os atores se dirigiram em préstito festivo... Não menos interessan te espetáculo foram as Cavalgadas. Cavaleiros trajando veludo vermelho e azul, bordado a ouro, armados de lanças, figuraram combates entre M ou ros e Cristãos, e, nesses desafios, faziam lembrar a bela época cavalheires ca da Europa. Antes de começar esse combate simulado, cruzaram-se Cris tãos e Mouros; depois, separaram-se em duas filas e correram uns para os outros, atacando-se ora com lanças, ora com espadas e pistolas. No seguin te carroussel da argolinha, conseguiram com grande agilidade, uns após outros, enfiar o anel em rápida correria desde o camarote do Intendente até ao fim da pista fronteira, onde ele estava pendurado. Se o herói era bem sucedido, retirando a argolinha com a lança, ele escolhia na assistên cia uma dama, mandava-lhe um pajem negro pedir licença para lhe ofere cer o troféu, entregava-o e, triunfante, ao som da fanfarra corria ao encon tro dos cavaleiros... Esses divertidos espetáculos encerraram-se com corri das em filas, formando meandros, volteios e círculos, nos quais os atores se mostraram exímios cavaleiros e todos se dispersaram, depois das lutas, tro cando entre si manifestações de amizade, como bons cristãos...” O mesmo viajante descreve uma festa de “Mouros e Cristãos em 1819 em Ilhéus, de caráter mais popular, envolvendo embora toda a população da ci dade: “[...] tive oportunidade de ver a maior parte da população reunida numa festa nacional... Rapazes, vestidos como Mouros e cavaleiros Cristãos, acom panhados de música barulhenta, passaram a cavalo pelas ruas, até uma espa çosa praça, onde estava plantada uma árvore, guarnecida com as armas portu guesas... Combate violento travou-se entre as duas hostes... Ambos os parti dos, porém, segundo os costumes verdadeiramente romanescos, olvidaram em breve a inimizade, num banquete ruidoso, seguindo-se baile...”42 Pohl assiste também a uma cavalhada de Mouros e Cristãos em 1817: “Na parte de cima da praça estavam os cavaleiros vestidos com o unifor me português... Então começou o jogo propriamente dito que representa va um combate entre mouros e portugueses. O espetáculo foi aberto por uma embaixada que oferecia a paz aos Mouros. A oferta foi recusada e principiou o combate. Os Mouros foram vencidos e convertidos. O comba te foi executado com admirável habilidade. As evoluções, os lançamentos, [...] a esgrim a... despertaram sincera admiração. A conclusão foi um tor neio executado com admirável habilidade...”43
42 Von Martius. “Viagens pelo Brasil”, in: Câmara Cascudo. Antologia do folclore brasileiro, vol. I. São Paulo: Martins, 1965, p. 94-95, 98. 4-’ Johann Em anuel Pohl. Viagens no interior do B rasil nos anos de 1811 a 1821, vol. II. Tradução da edição dc Viena, 1837. Rio dc Janeiro: IN L , 1951, p. 240-2.
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A luta entre cavaleiros cristãos, de azul, e mouros, de encarnado, seguia, em geral, o seguinte esquema: muitas vezes, no centro da praça, erguia-se um castelo. Começava o jogo com artimanhas, fintas ciladas, despacho de estafetas, espiões de cá e de lá, escaramuças, troca de embaixadores. Declarava-se finalmente a batalha. Os cristãos começavam perdendo, mas logo reerguiam os ânimos, e o combate prosseguia encarniçado: espadas se cruzando, tiros de pólvora seca, em meio a terrível algazarra vinda tanto dos guerreiros como dos espectadores, embora o desenlace fosse conhecido de antemão: eternos vencedores, os cristãos. Os filhos de Mafoma rendiam-se aos defensores da verdadeira fé, e realizava-se então o batismo do Rei dos Mouros. O chefe cristão tocava-lhe o ombro com a espada — reminiscência cavalheresca medieval — e estava efetuado o batismo. Havia então o cortejo da reconciliação, cristãos de sempre e recém-conversos desfilando juntos, dando volta à praça, onde pipocavam foguetes. Saint-Hilaire tam bém menciona algumas apresentações que foi vendo pe los arraiais por onde passava. Descreve a festa de Nossa Senhora da Abadia em Goiás, onde encontramos os cristãos e mouros personificados nas figuras consagradas: “[...] assistiu a um torneio que representa quase sempre alguma história do velho romance de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, que é ainda muito apreciado pelos brasileiros do interior.”44 Saint-Hilaire já aponta para o que seria um deslocamento de classe da tra dicional cavalhada, ainda que a mistura do registro do burlesco e do “sério” já estivesse contido na festa barroca com os entremezes que permeavam a or denação canônica: “crioulos mascarados igualmente a cavalo vinham fazer pândega”.45 Uma tradição que se mantém até hoje nas cavalhadas de São Luís ou de Pirenópolis, onde a seriedade do jogo eqüestre desenvolvidos por cavaleiros de classe alta contrasta com o grotesco dos mascarados. De modo geral, à m edida que a cavalhada continuou a ser praticada fora do contexto dos grandes festejos cívicos, mas associada a festas de igreja, se popularizando com o tempo, os “cristãos e mouros” indiferenciados das embaixadas mais nobres foram encarnando-se nos heróis e vilões consagra dos. Carlos Magno, Roldão Oliveiros, contra Almirante Balão e Ferrabraz. “[...] guapa cavalhada! Como empinava bem o baio de estima de Roldão,
44 A. de Saint-H illaire. Viagem às nascentes do Rio S. Francisco epela província de Goiás. Tra dução de Ciado Ribeiro de Lessa. São Paulo: Nacional, 1937, p. 199. Coleção Brasiliana, vol. 68. 45 A. dc Saint-Hillaire. Viagem às nascentes do rio S. Francisco e pela província de Goiás, op. cit.
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dizendo atrevidam ente a embaixada de Carlos Magno ao Rei dos In fiéis...” Mas Carlos Magno e seus doze pares lutando para converter na marra os filhos de Mafoma não se encontram só nas cavalhadas. Tam bém vão a pé nem por isso menos valentes. O esquema cristãos-mouros: luta do bom contra o mau resumido na luta do fiel contra o infiel, e conversão congraçadora marcam praticam ente todos os folguedos brasileiros, da nobre cavalhada à pobre chegança. E a lembrança dos Pares de França simbolizados pela lendária batalha de Oliveiros e Ferrabrás, lindam ente contada em versos no começo do século XX pelo poeta po pular Leandro Gomes de Barros está até hoje no imaginário brasileiro.46 Ainda que não sobrem vestígios de traços de cristãos e mouros, perm ane ce, no entanto, imutável, o esquema de luta, como já observava Mário de Andrade: “[...] é curioso verificar... que mesmo nos bailados tradicionais mais em pobrecidos, [...] nos Caiapós, nos M oçambiques etc. em que todos os bai larinos trazem a mesma indumentária e figuram o mesmo partido, a horas tantas, quase sempre, uns se voltam contra os outros e mimam coreograficam ente o com bate.”47 A recorrência da luta, a conversão à força e derrota moura sempre, o congraçamento final, o conjunto Carlos Magno e seus Pares parecem compor uma mesma grande forma, sobre cuja teimosa permanência há que se inter rogar. Por que persistiu e persiste, tão afastados no tempo e no espaço de suas matrizes originárias uma figura e um combate que a história e a lenda confi guraram na Europa, mas que não responde a nenhum a realidade histórica 0 11 mítica no Ultramar? Porque o mito também cá funciona? A explicação — ou sua tentativa — estaria menos na memória de um qualquer arquétipo ou de uma improvável arremetida de “mouros na costa”, do que na memória difusa do que foi a história da ocupação e construção deste continente, deste país, que foi — e é — uma brutal e sempre renovada história de dominação e violência. Na medida que a figura do imperador — já assim interpretada nos tarôs — rem ete à noção de ordem, e seu símbolo, o orbe, supõe uma única, universal, Carlos Magno, ajudado na execução da ordem pelos seus fiéis paladinos, sim bolizaria a ordem unitária que se pretendeu implantar a ferro e a fogo no Novo Mundo: uma fé, uma lei, um rei.
4'’ Ver “Tem Mouro na Costa ou Carlos Magno «Reis» do Congo”, in: Marlyse Mcyer. Cami nhos do imaginário no Brasil. São Paulo: Edusp, 1993, p. 147-59. 47 Mário de Andrade. Danças dramáticas no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1959, p. 70.
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E essa estrutura recorrente de luta que, nem que seja em filigrana, per meia qualquer folguedo brasileiro tradicional (inspira até a fanfarronice cos tum eira dos cantadores), não poderia ser lida como a comemoração ritual do acontecimento primordial que marcou os primeiros tempos da Colônia? Aquele que se pode chamar a Guerra Santa da Conversão. O rolo compressor e unificador do Cristianismo atinge o Novo M undo no momento em que, na Euro pa, após séculos de luta, a Santa Madre Igreja leva a melhor sobre o islamismo e tam bém sobre o paganismo que teimava, no campo sobretudo, em so breviver. Novo inimigo à vista, no entanto, a Reforma e o nefando luteranismo. A implantação cristã n o N o \ o Mundo, exacerbada pelo renovado espírito de Cruzada que anima a Contra-Rcíurma e desencadeia a Inquisição, conti nua a legitimar a violência da luta Anti-Fiel, que haverá de se fazer a ferro e a fogo: “As portas abertas nessa Capitania para a conversão dos gentios, se Deus Nosso Senhor quiser nos dar matéria de pô-los sob o jugo, porque para essa sorte de gente, não há melhor predicação do que a da espada e do harpão de ferro.”48 Quem fala não é um qualquer brincante de um qualquer brinquedo de Cristãos e Mouros, nem figura num capítulo da História do Imperador Carlos Magno e os Doze Pares de França. Quem fala é o suave apóstolo José de Anchieta. A dominação unificadora da Igreja se acrescentavam os numerosos “sobregovernos”: grandes chefes, chefetes, parentela, compadrio, Coroa, Império, República, proprietários, patrões, coronéis, Carlos Magnos coronéis dos coro néis, todos tecem inexorável enredar de obrigações e contra-obrigações que regem as relações de homem a homem, de homem a instituição, de homem a coisa, em se tratando de escravo ou peão. De tal maneira que, parece que presa nesse enredado laço, a gente formada dentro e pelo sistema geral de exploração, não soube, nem mesmo em plano lúdico, conceber uma forma de relação que não fosse fundada sobre a luta e a violência, sancionadas pela inevitabilidade de um desfecho imposto e aceito como normal. Assim, privilégio na origem da classe alta, a cavalhada não se restringiu às argolinhas e irmanou-se às pobres chegadas ou congadas numa relação medi ada pela luta “cristão-mouro” . O jogo eqüestre reforça a pertenência de clas se e reafirma pela derrota do mouro a eterna vitória da ordem sobre os que vão a pé. Estes, por sua vez, interiorizam essa ordem pela aceitação do jogo imutável. “M estre não é pra ganhar sempre?”, me respondeu o chefe cristão 48 José dc Anchicta “Carta a Laynez de 16 de abril de 1563”, in: Serafim Leite. Cartas dos primeiros jesuítas, vol. III, p. 554.
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de uma humilde chegança do baixo São Francisco, como eu o interrogasse, espantada pela derrota dos mouros, visivelmente mais “valentes” . O que o mestre não contestava. Dito de outro modo por um “vivente das Alagoas” retratado por Graciliano Ramos: “apanhar do governo não é defeito”. Há, evidentem ente, o aspecto compensatório implicado no esquem a repressor repensado como jogo: os humildes que nele brincam, 0 11 a quem se destina o brinquedo, se metamorfoseiam em paladinos e heróis, cujos altos feitos assu mem, qualquer que seja o partido, azul 0 11 encarnado, uma vez que não há maior vergonha em ser vencido, já que, no triunfo final da conversão, todo m undo vira igual, todo mundo é vencedor. Não é que não haja no folguedo espaço aberto à rebeldia — logo reprimida, ao fim e ao cabo. N em que, hoje, às vezes, o próprio modo e contexto em que se efetua o velho brinquedo não possa significar tentativa de novo discurso. Mas a tônica é, mais do que a submissão, a harmonização final, a festa do consenso. Não será como que uma metáfora de certa vocação nacional? Mas voltando à pergunta inicial. A vigência do modelo-padrão, a continua ção no Ultramar dos símbolos supremos da vitória do Cristianismo encarna dos nos grandes defensores da fé que foram Carlos Magno e seus Pares, não me parece tão espantosa assim. Estes símbolos podem, aqui também, funcionar de certo modo como mito de origem, que as festas pontuais do calendário católico popular ritual rememoram pela comemoração anual. O caráter repe titivo e conservador, concreto e eficaz das manifestações folclóricas suscita das por e estreitam ente associadas à Santa Madre (que as dispensa quando lhe apraz, ou seja, quando já não mais delas necessita, mas isto já é outra história), esse caráter repetitivo foi uma das garantias da consolidação e legi timação da ideologia unificadora assentada na violência e na acomodação. Um consenso que se vai instalando sob o troar da braveza atrevida da guer ra de palavras: “Arretira turco atrivido Que eu num guento disaforo E de medo eu não corro Si eu bater a minha espada Ti faço voá o miolo.”49 □ □□ a r l v s k M k y e r é doutora em literatura francesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo (FFLC H /U SP) e profes
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49 Texto de congada recolhido por Alceu Maynard dc Araújo. Folclore nacional. Congada dc Piracaia, fala de Oliveiros.
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sora do Instituto de Artes da Unicamp (aposentada). Dá cursos de pós-graduação de cultura popular, literatura brasileira, literatura comparada na FFLCH-USP. Entre os livros publicados: Pireneus, Caiçaras... 2.a ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 1992. Sur presas do Amor, a Convenção no Teatro deMarivaux. São Paulo: Edusp, 1993. Caminhos do Imaginário no Brasil. São Paulo: Edusp 1993. Maria Padilha e Toda a Sua Quadri lha. .. São Paulo: Duas Cidades, 1993. Folhetim: Uma História. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. As Mil Faces de um Herói-Canalha. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1998. R F. s u m o . Nota-se que no Brasil a cavalhada se compõe geralmente de duas partes: o jogo eqüestre propriamente dito, com as argolinhas, e uma embaixada que remete ao esquem a cristão mouro. Nota-se também que esse esquema, mais do que uma temática, é uma estrutura de luta entre dois princípios maniqueístas, no qual o que encarna o bom vence sempre. E o bom se confunde com a ordem. Esta estrutura é recorrente em praticam ente todos os folguedos brasileiros, da cavalhada à congada, passando pela chegança e outros. Procura-se interpretar os significados dessa recorrência de luta que pode ou não per sonificar-se no conjunto Carlos Magno e seus pares contra o Almirante Balão, o Tur co, e seus sequazes.
Rei e Rainha negros de Reis. Carlos Julião. Riscos iluminados defigurinhas de branços e negros de uzos do Rio de Janeiro e Serro Frio. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1900, prancha XXXVIII. Biblioteca Guita/José Mindlin. Foto Lucia Mindlin Locb.
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por comunidades de africanos e seus descenden tes foi costume am plam ente disseminado na América portugesa. Existiu nas organizações de trabalho, geralmente organizadas por grupos que se identifi cavam como pertencentes a uma mesma etnia, e nas quais se elegiam e fes tejavam reis e capitães. Estes mesmos títulos eram atribuídos aos cabeças de levantes de escravos, muitas vezes tramados e raramente concretizados, sendo reis, capitães e embaixadores identificados como idealizadores e articuladores dessas rebeliões por testem unhas ouvidas nos processos. Nos quilombos também havia reis que governavam as comunidades rebeldes, con forme atestam os documentos produzidos pela administração colonial, em penhada na repressão aos quilombolas. Mas onde os reis negros assumiram maior visibilidade foi nas festas em homenagem a seus santos padroeiros, promovidas pelas irmandades, nas quais saíam em cortejos pelas ruas das cidades, presidindo uma série de atos rituais e danças. Escolher reis ou capitães foi uma das formas encontradas pelos africanos escravizados para recriarem uma organização comunitária. Traficados por vá rias rotas que ligavam o interior do continente à costa, africanos de diferentes etnias, separados de suas sociedades de origem, se misturavam nos entrepos tos comerciais, até formarem o lote a ser embarcado num negreiro, rumo ao desconhecido, talvez o pior pedaço de todo o processo de escravização — terrível rito de passagem de um m undo a outro. Nesse processo, inserido no e l e i ç ã o
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quadro do sistema escravista colonial, tiveram de descobrir outras identida des e construir novas instituições. Nos entrepostos e navios, foram criados novos laços, sendo tão forte a soli dariedade desenvolvida entre os que atravessaram juntos o Atlântico, que os companheiros de viagem se atribuíram um nome cheio de significados: “malungo” .1A essa primeira relação, criada a partir da escravização e da diáspora, somaram-se outras, resultantes de diferentes processos por meio dos quais os africanos e seus descendentes foram integrando-se ao Novo M undo e aju dando a compor a sociedade que se formava. Ao lado das novas relações, construídas nos percursos das caravanas pela África, na travessia do Atlântico, na chegada na América portuguesa e na ocupação de um dado lugar no sistema produtivo colonial, os colonizadores atribuíram aos africanos uma identidade definida pelo porto de em barque e pelas regiões nas quais haviam sido adquiridos. Ao serem nomeadas pelo co lonizador, as diferentes etnias foram identificadas por caracteres gerais e mais evidentes, comuns a diversos grupos embarcados no mesmo porto. Assim, a partir de similitudes culturais, dos mercados em que foram comprados e do lugar de procedência do navio negreiro em que foram transportados, os afri canos foram agrupados em determinadas “nações”. Designação freqüente m ente incorporada aos nomes recebidos com o batismo, as nações congo, angola, benguela, caçanje, cabinda, para ficar somente nas mais conhecidas da África centro-ocidental, que é a região que nos interessa, são atribuições do colonizador, incorporadas pelo africano e adequadas ao processo por que passavam, de construção de novas comunidades, fundadas em bases diversas das existentes em suas terras de origem. Os reis, capitães e governadores negros dos quais nos fala a documentação esparsa conhecida, eram eleitos, no século XVIII, por com unidades negras que eram identificadas e se indentificavam como de determinadas nações. Alguns exemplos são encontrados na correspondência do Conde de Assumar, que em 1719 denunciou uma tentativa de levante de escravos na região do rio das Mortes, à frente do qual havia um rei angola e um rei mina; em paten te provincial do governador do Recife, de 1791, que se refere à eleição de um “governador dos pretos ardas” entre os marcadores das caixas de açúcar; em diversos registros da administração colonial, ligados à repressão de quilom bos, freq ü en tem en te chefiados por reis.2 Mas foram nas irm andades de
1 Im portante trabalho sobre esse assunto é o tlc Robert Slenes. “«Malungu, ngoma vem!» África coberta e descoberta no Brasil”, in: Revista USP, /2:dez.-jan.-fev., 1991-1992. 2 Para a correspondência do Conde de Assumar ver Waldemar de Almeida Barbosa. Negros e quilombos em M inas Gerais. Belo Horizonte, 1972, p. 58; para os reis eleitos nos cantos de trabalho de Recife ver René Ribeiro. Cultos afro-brasileiros do Recife. Recife: M E C -Instituto Joaquim N abuco de Pesquisas Sociais, Série Estudos e Pesquisas 7, 1978 (1.” edição de 1952), p. 32; para os reis nos quilombos ver, entre muitos outros, Carlos Magno Guimarães.
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“homens pretos” que os reis de nação tiveram uma história mais longa e complexa. O compromisso de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo, confirmado em 1778,3 estabelecia que angolas e crioulos deviam divi dir os cargos da mesa administrativa, e especifiava que o rei deveria ser ango la. Mello Moraes Filho nos dá notícia do termo de coroação de um rei e uma rainha de nação cabundá, na Irmandade do Santo Rei Baltasar, em 1811.4 O costume dos negros de elegerem reis em suas irmandades, coroá-los em mis sa na igreja, acompanhá-los em cortejos por determinados circuitos da comu nidade, fazer com qúe presidissem danças apresentadas em lugares públicos, tudo em homenagem ao santo padroreiro da irmandade, que ainda era feste jado com música e banquetes, é reconstruído por Mello Moraes Filho, con forme devia acontecer no Rio de Janeiro, em meados do século XVIII. Com base em documentos da igreja de Nossa Senhora da Lampadosa que depois se perderam, o autor fez minuciosa descrição da festa de coroação de um rei negro, tendo sido escolhido no ano de 1748, “para rei da nação rebolo”, um escravo pessoal do vice-rei. Para conseguir os meios materiais para realizar a festa, o rei negro e sua corte, acompanhados de músicos e dançadores, tira vam esmolas “por meio de danças e brinquedos”. No dia de reis, quando a irmandade festejava o “santo rei Baltasar”, o capelão coroava os reis na missa e lavrava no livro da irmandade o termo de eleição do rei, da rainha e dos demais cargos. Sempre acompanhados de suas cortes, esses reis festejavam pelas ruas da cidade, com músicas e danças de marcada origem africana. Q uando as irmandades de “homens pretos” escolhiam reis, estes eram os responsáveis pela realização das festas dos seus oragos, e, se há notícias de que no século XVIII, no Rio de Janeiro, eles se identificavam com nações diversas, em Minas Gerais, eram sempre reis do Congo os eleitos.'’ E foi pelo nome de congada, que as danças realizadas por ocasião dos festejos em torno dos reis e dos santos padroeiros ficou conhecida a partir do século XIX. Olhando com vagar para o processo de constituição dessa festa, amplamente “Mineração, quilombos e Palmares — Minas Gerais no século X V III”, in: Liberdade p or um fio . História dos qui/ombolas no Brasil. São Paulo, Com panhia das Letras, 1996. 3 “Compromisso da Irm andade de Nossa Senhora do Rosário dos Hom ens Pretos — 1778”. Arquivo M etropolitano Dom D uarte Leopoldo e Silva — São Paulo. Catálogo Geral dos Livros — Manuscrito 1-3-8. Transcrito na íntegra em “Estudo comparativo dos Livros de Compromissos das Irmandades do Rosário de Salvador e dc São Paulo”, Marcos Antonio de Almeida, mimeo. 4 M ello Moraes Filho. Festas e tradições populares do Brasil. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia. Editores, 1946, p. 381-6. 5 Para o Rio de Janeiro, além de Mello Moraes Filho, ver Mariza de Carvalho Soares. Iden tidade étnica, religiosidade e escravidão. Tese de doutoramento. Niterói: D epartam ento de História, UFF, Niterói, 1997. Para Minas Gerais ver Julita Scarano. Devoção e escravidão. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século X V III. 2.“ ed. São Paulo: Nacional, 1978.
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disseminada pelo país, percebemos que as comunidades negras que se agrupa vam e elegiam reis a partir de identidades baseadas em características culturais e históricas dos povos que as compunham, e em determinações do tráfico de escravos — ambos fatores agregados ao conceito de “nação” — pouco a pouco se despiram de suas particularidades, passando todos os reis a serem identifi cados como rei do Congo, desaparecendo os reis de outras nações. As festas de coroação de reis Congo6 foram um costume construído no contexto da colonização portuguesa do Novo Mundo, pelas comunidades afri canas centro-ocidentais, área que englobava vários reinos envolvidos com o tráfico de escravos, como por exemplo, Loango, Cabinda, Congo, Ndongo, Matamba, Caçanje e Renguela. Reagrupados a partir dos desígnios do tráfi co, grupos bantos construíram novos laços sociais e criaram novas formas cul turais a partir das possibilidades dadas pela sociedade colonial e da bagagem cultural trazida por cada pessoa. O espaço das devoções religiosas, tradicional na sociedade lusitana e que ganhou grande importância na América portu guesa, foi prontam ente ocupado, principalmente por africanos que já tinham tido contato com o catolicismo, seja em suas tribos natais, seja nos percursos que os levaram aos portos de embarque, ou ainda nos batismos coletivos, obrigatórios para todos os africanos embarcados no porto de Luanda, o mais importante da Africa centro-ocidental. Ao incorporar o cristianismo como importante elem ento constituinte da nova identidade, os africanos de origem banta foram pouco a pouco minimi zando as suas diferenças internas e destacando o que havia de comum entre eles, ao mesmo tempo que se integravam à sociedade colonial escravista. N esse processo, o rei Congo teve o papel de aglutinador das com unidades negras, rem etendo à terra natal ao mesmo tempo que esta era despida de suas particularidades concretas, passando a ser sentida como um lugar mítico do qual vieram todos os africanos escravizados. A
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Tendo-se convertido ao catolicismo, os africanos e seus descendentes, ao ingressarem nas irmandades de “homens pretos”, buscavam consolidar laços
6 Adoto aqui o term o “rei Congo”, sem a preposição “do” e inicial maiúscula, por enten d er que o título rem ete a uma identidade mítica, estando associado a noções c sentim entos que ultrapassam em muito as especificidades do reino do Congo como existiu historica mente. Nos estudos de folclore e nas descrições de viajantes o rei da festa é quase sem pre chamado de “rei do Congo”, forma que não adotei por entender que o título não rem etia ao reino africano como existiu historicamente, mas a uma idéia de africanidade construída no Novo Mundo. A supressão da preposição, no meu entender, torna o título menos espe cífico c mais generalizante, como cra a identidade para cuja construção ele serviu.
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de solidariedade, garantir a assistência aos necessitados, o enterro dos mor tos, o alcance da paz além da vida, mas também adorar e festejar seus santos de devoção. Considerando a história da missionação na África centro-ocidental, devia ser comum o aprisionamento de pessoas com alguma familiaridade com os ritos, símbolos e os preceitos da religião católica. Foi nessa região do conti nente africano que o catolicismo teve maior penetração, tendo sido aí intro duzido no final do século XV, quando parte da elite reinante no Congo se converteu à nova religião, trazida pelos portugueses. Percebido pelos chefes congoleses como uma religião mais eficaz que a sua, o catolicismo ensinado pelos missionários foi traduzido para noções culturais bantas, largamente uti lizado pelas linhagens reinantes para o fortalecimento de seu poder e difun dido pelo reino por catequistas nativas que retransmitiram os ensinamentos dos missionários, certam ente acrescentando suas contribuições particulares, como era de praxe nas religiões da África centro-ocidental. O grande impulso da disseminação do cristianismo pelo reino do Congo se deu sob o reinado de D. Afonso I, de 1507 a 1542, filho do primeiro rei congolês cristão, D. João, convertido em 1491 e que logo retornou à sua religião tradicional, desprezando os ensinamentos portugueses. Ao contrário de seu pai, D. Afonso, que conquistou o trono lutando contra um irmão seu que não havia aceitado o catolicismo, tornou-se fervoroso aprendiz dos ensinamentos da Igreja e disseminador da fé cristã, que muitas vezes defendeu na ponta da lança. Sua vasta correspondência com D. M anuel I e com D. João III é das principais fontes para a reconstrução da história da relação entre os dois rei nos no século XVI. Convivendo com a religião tradicional, o cristianismo teve significativa penetração no reino do Congo, notadam ente entre as linhagens governantes. John T hornton chama de “cristianismo africano” às religiões que se forma ram por missionação em preendida por Portugal, Espanha e Roma, havendo uma incorporação à moda banta de alguns ritos, símbolos e explicações cató licas. Dessa forma, os novos ensinamentos foram integrados às antigas tradi ções.7 Era próprio das religiões da África centro-ocidental a fácil adoção de elem entos trazidos de outras religiões e a freqüente irrupção de movimentos religiosos que modificavam as tradições existentes sem reformá-las em sua estrutura. Tendo como objetivo maior o alcance de um estado ideal de ventu ra, no qual a natureza seria próspera, as mulheres férteis e as comunidades harmônicas, os homens aceitavam com facilidade novos meios de vencer a desventura, especialm ente quando a sua presença se fazia pesar em razao das adversidades do momento. Incorporado a essa lógica, o cristianismo foi inte 7 John T hornton. África and Africans in theM akingofthe Atlantic World, 1400-1860. Canibridge: Cam bridge University Press, 1992.
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grado às religiões tradicionais como mais um movimento a trazer novas possi bilidades de uma relação harmoniosa com as divindades e conseqüentem en te uma vida melhor para as pessoas.8 Considerado pelos portugueses, e também por Roma, como um reino cris tão dos séculos XVI ao XVIII, no século XIX os traços cristãos do Congo estavam cada vez mais diluídos nas religiões tradicionais. Mas, apesar da fra ca presença do catolicismo entre a população, os reis congoleses ainda eram coroados pelos sacerdotes católicos, mesmo que esperando anos até que apa recesse algum padre para executar o ritual. Não tendo mais a unidade política e a proeminência regional de outros tempos, o reino do Congo continuou sendo percebido pelos seus habitantes como uma entidade una, a despeito da autonomia que tinham as diferentes províncias. Tal unidade era expressa da sobretudo pelo lugar que o rei ocupava, pelo simbolismo nele investido, pois, mesmo com poderes políticos bastante limitados, permanecia como o m antenedor do local sagrado onde D. Afonso I tinha sido enterrado, local de um culto aos ancestrais e aos primórdios do catolicismo no Congo.9 Ao se converterem ao catolicismo e ingressarem em irmandades, no pro cesso de construção de novas identidades, os africanos e seus descendentes recriaram miticamente aspectos de sua história e desenvolveram rituais que reafirmavam algumas características da comunidade envolvida. A coroação de rei Congo no âmbito da celebração festiva do santo padroeiro, na qual o grupo representava danças que dramatizavam episódios da sua história, re metia a um passado africano, resgatado pela vivência do catolicismo. Pelos relatos de alguns viajantes que registraram certos ritos integrados às festas em homenagem a santos padroeiros de irmandades negras, em muitos lugares do Brasil, a cada ano eram eleitos reis, rainhas e uma corte, que de sempenhavam certos papéis na realização das festas, por eles promovidas e nas quais desfilavam em cortejos. Estes cortejos acompanhavam o rei e a rainha, que eram coroados na igreja pelo padre, e eram compostos não só pelo rei, rainha e dignitários diversos, como de grupos de dançadores e tocadores, que cantavam versos e representavam coreografias. Parte im portante da se qüência de atos rituais que compunham as festas de rei Congo no século XIX eram as danças nas quais eram representadas embaixadas entre reinos dis tantes e o Congo, quase sempre envolvendo guerras intensam ente represen tadas, após as quais os adversários do rei Congo eram vencidos pelo seu exér cito e adotavam a sua religião: o catolicismo. 8 A respeito dos movimentos religiosos da África ccntro-ocidental ver Willy de Craemer, Jan Vansina & R enée C. Fox. “Religious M ovements in Central África: a Theoretical Study”, in: Comparative Studies in Society andH istory, /<¥(4):outubro, 1976. 9 A esse respeito ver Susan Hcrlin Broadhead. “Bcyond Decline: the Kingdom o f thc Kongo in th e E ighteenth and N ineteenth C cnturies”, in: The International Journal o f African Histórica! Studies, 12(4), 1979.
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Por serem realizadas no interior das irmandades de negros, integradas à religião católica e por difundirem uma história de conversão, essas danças dramáticas, como foram chamadas por Mário de Andrade, não sofreram uma repressão tão intensa quanto a dirigida a outras manifestações, como por exem plo aos ritos religiosos de origem marcadamente africana, como os calundus, antepassados dos candomblés. Parcialmente aceitas pela sociedade e pela administração colonial, não deixaram por isso de expressar valores marcada m ente africanos, expressos no costume de se eleger um rei, festejado com danças e música, e na memória transmitida pelos versos e revivida pelos ritos.10 O que é interessante destacar nas danças dramáticas que ficaram conheci das como congadas e nas festas de rei Congo em sua totalidade, é que foram formas culturais criadas pelas comunidades negras na sociedade escravista, que ao mesmo tem po que adotaram padrões institucionais lusitanos e valores católicos, reforçaram os laços com a Africa natal. Essa confluência de signifi cados aparentem ente antagônicos pode ser perfeitam ente entendida se con siderarmos a história do reino do Congo e de Angola, lugares que receberam forte influência da ação dos missionários católicos, assim como a história do comércio de escravos entre os diversos povos da África centro-ocidental e os europeus. Foi nas regiões que receberam maiores contingentes de africanos pertencentes ao macrogrupo cultural banto, habitantes da África centro-oci dental, que se desenvolveu o costume de se elegerem reis, rainhas e sua corte, no contexto das festas do santo padroeiro. E esses mesmos grupos, que uma vez no Novo M undo adotaram rapidamente um catolicismo mesclado de elem entos religiosos africanos, já tinham tido um contato anterior com os ensinam entos da Igreja, por meio dos missionários ou dos catequistas que pregavam na região do Congo e de Angola. Com as festas de reis congo, os ritos que as compunham, os mitos que veiculavam e os símbolos que exibiam, as comunidades negras construíram e consolidaram uma identidade formada a partir da escravização e da integra ção à sociedade colonial e na qual elementos de origem portuguesa, como o catolicismo e as irmandades religiosas, foram recheados de simbolismos e significados que uniam os africanos e seus descendentes a seus ancestrais e a suas terras natais. Considerando a história da conversão da corte congolesa ao catolicismo e o trabalho dos missionários desenvolvido na região do Congo e de Angola, é possível entender como a cristianização foi elem ento incorpora do à formação de uma identidade que, mesmo ao adotar elementos vindos da cultura lusitana, reforçava os laços que uniam as comunidades negras à África.
10 Mário de Andrade. “Os congos”, in: Danças dramáticas do Brasil. Belo Horizonte-Brasília: Itatiaia-Instituto Nacional do Livro, 1982, p. 26, chama de danças dramáticas a bailados populares compostos de “peças fixas, de seriação predeterm inada e lógica”, isto é, com enredos estabelecidos pela tradição e reproduzidos a cada apresentação.
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As festas de reis negros foram frequentem ente vistas, por administradores coloniais e por estudiosos, como momentos de liberação das tensões acum u ladas ao longo do cotidiano de cativeiro e por isso importantes, já que perm i tiam, uma vez encerradas, que a ordem fosse retomada com mais tranqüili dade. Alguns estudiosos também apontaram para a inversão temporária de hierarquias, com negros assumindo cargos reais e ganhando uma autoridade e autonomia que eram negadas a eles nos outros dias do ano. João José Reis, por exemplo, diz que essas festas “representavam sobretudo uma fuga da vida diária por meio de rituais de inversão simbólica da ordem social, espécie de protocarnaval negro”.11 Mas se, como as festas em geral, as festas de reis negros permitiam um intervalo na rotina, retomada com mais vigor após o seu término, para os grupos que as realizavam elas também eram momento de reforço de identi dades e laços de solidariedade. Com a escolha de determinadas pessoas para ocuparem os cargos de destaque e responsabilidade na realização das diver sas atividades festivas, eram reafirmadas hierarquias internas ao grupo e tam bém reforçados os canais de comunicação entre este e a sociedade senhorial. Os reis e rainhas tinham sua autoridade plenam ente exposta durante os ri tuais festivos, mas também eram respeitados pela com unidade ao longo do ano e podiam servir de intermediários entre esta e outras esferas da socieda de colonial. Em vários documentos fica claro que as autoridades adm inistra tivas esperavam que os reis eleitos mantivessem a ordem no interior da co m unidade que eles representavam, assim como agissem como apaziguadores de conflitos entre senhores e escravos quando fosse necessário. Paralelam ente às funções sociais atribuídas aos reis, eles eram símbolos importantes na construção de uma identidade da com unidade negra no Bra sil, que, ao mesmo tem po que afirmava seu catolicismo, estreitava laços com um passado que unia a todos e que remetia à África natal. O rei Congo repre sentava uma africanidade comum a todos, independentem ente das origens étnicas particulares de cada um. Tal processo ficou mais evidente a partir do século XIX, quando os reis de nação cederam lugar ao rei Congo e as m e mórias particulares foram agrupadas numa memória comum que unia os gru pos bantos. E ntre os viajantes que descreveram festas de rei congo se destacam Koster (1814), Spix & M artius (1818), Pohl (1818), Castelneau (1843), Burmcister (1851), Burton (1868), entre outros que a elas se referiram sem tantos " João José Reis .A morte é umafesta. Ritosfúnebres e revolta popular no Brasil do século X IX . São Paulo: Com panhia das Letras, 1991, p. 66.
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d e ta lh e s q u a n to e s te s .12 T odos d escrev eram um a co rte ric a m e n te param entada, com rei e rainha portando coroas; cortejos que percorriam as ruas da cidade por entre músicas e danças que os observadores considera vam primitivas e grotescas; coroação do casal real pelo padre, na igreja; ban quetes e apresentações de porta em porta ou nas praças, nas quais o portu guês e línguas africanas se misturavam em versos que narravam episódios diversos, freqüentem ente ligados à história africana, ou a situações vividas pela com unidade negra que festejava seu santo padroeiro e, mais freqüen tem ente, Nossa Senhora do Rosário. O ponto alto da festa era a apresenta ção de danças dramáticas, que variavam de lugar para lugar, mas se com pu nham quase sem pre de embaixadas enviadas de reinos distantes e lutas entre o exército estrangeiro e o do rei Congo. Pohl assim descreveu a dança que presenciou em Traíras, Goiás, em 1818, por ocasião da festa de Santa Ifigênia: “Ao terminar a dança, levantou-se o monarca negro e ordenou em voz alta que se começasse, com cantos de danças, a festa de Santa Ifigênia. N este mom ento surgiu um negro que representava o papel de general, e gritou, com muita ênfase e com olhar feroz, que observara a distância um estrangeiro suspeito, ao que o imperador ordenou que marchassem contra o inimigo e o enfrentassem, e para tanto pedia a proteção de Santa Ifigênia nesse combate. Então, com o cetro, concedeu a sua bênção ao general ajoelhado à sua frente. Este desembainhou a espada e, com gestos belico sos, passou por entre os negros presentes. Foi aí que chegou o anunciado forasteiro. Todos os negros se precipitaram sobre ele e ameaçaram matálo. Entrem entes, ele ajoelha-se diante do trono e pede audiência. Tran qüilo, declara ser o embaixador de um reino longínquo, e que aqui não viera com más intenções ou para excitar rebeliões e hostilidades; mas que o senhor seu rei soubera que neste país se celebrava a festa de Santa Ifigê nia e por isso o enviara para participar da solenidade. O pedido é deferido. São iniciados os cantos e danças; o imperador, com o cetro, concede a bên ção ao vassalo ajoelhado; Santa Ifigênia é invocada várias vezes e, ao ecoar dos cantos e das músicas, por entre danças e as mesmas solenidades da entrada, efetua-se a saída. Chegando à casa, os dignitários ainda festejam o
12 Hcnry Kostcr. Viagens ao Nordeste do Brasil. São Paulo: Nacional, 1942; J. B. von Spix & G. F. P. von Martius. Viagem pelo Brasil. Rio de Janeiro: Im prensa Nacional, 1938; Johann Em anuel Pohl. Viagens no interior do Brasil. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Editora da Universidade dc São Paulo, 1976; Francis de Castelneau. Expedições às regiões centrais da América do Sul. São Paulo: Nacional, 1949; Hermann Burmeister. Viagem ao B rasil através das províncias do Rio de Janeiro e M inas Gerais. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Editora da Universidade de São Paulo, 1980; Richard Burton. Viagens aos planaltos do Brasil. São Paulo: Nacional, 1949.
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dia com um banquete em que as principais personagens passam a ser o feijão e a aguardente de cana.” u O rei Congo que presidia os em bates guerreiros representados nas danças dramáticas nas quais católicos e pagãos se enfrentavam, pode ser diretam en te associado a D. Afonso I, rei congolês que lutou pela difusão do cristianis mo e fundou uma dinastia de reis cristãos que governaram o Congo até o século XX.14 Im buído do espírito missionário dos portugueses, D. Afonso I tornou a difusão da fé católica a marca do seu reinado, reaparecendo como figura ritual nas festas negras brasileiras, nas quais também tinha a função de difundir e consolidar a fé cristã, que unia a comunidade em torno de si. Na dança dramática, o rei africano era o agente da difusão do cristianismo, o que afirmava uma identidade que, mesmo católica, remetia às raízes culturais dos negros que participavam da festa. Dessa forma, o rei Congo encarnava o mito que explicava a origem da comunidade negra católica, mito este que havia sido historicamente construído pela ação de D. Afonso I. A história da conversão da elite congolesa ao catolicismo no século XVI e das relações comerciais entre os reinos da África centro-ocidental e os merca dores e administradores europeus, principalmente em torno do tráfico de escravos e que perdurou do século XVI ao XIX, foi integrada à experiência dos africanos escravizados e que se organizaram em irmandades religiosas. Adotando formas associativas lusitanas e o catolicismo, que vinha de mãos dadas com a escravização, os africanos e seus descendentes criaram novas identidades, ritos e explicações míticas que davam sentido à sua existência e uma personalidade própria à sua comunidade. Ao elegerem seus reis e feste jarem seus santos de devoção com danças e cantos que remetiam a seu passa do em território africano, a comunidade negra afirmava sua especificidade no interior da sociedade escravista. F E S T A
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Afirmando-se como propagadores do cristianismo e evocando para tal um passado anterior à escravização, os africanos e seus descendentes definiam para si um espaço simbólico na sociedade colonial, no qual eram agentes de sua própria história. Apesar de terem criado a festa, os ritos e os mitos a ela relacio nados, no contexto da sociedade colonial, associavam o cristianismo ao mundo dos ancestrais e a um passado anterior à escravização. No momento da festa, a comunidade negra se afirmava como portadora de cultura e história próprias,
13 Johann Em anuel Pohl. Viagens no interior do Brasil, p. 204-05. 14 Mario de Andrade. “Os congos”, in: Danças dramáticas do Brasil, e José Ramos Tinhorão. Os negros em Portugal. Lisboa: Caminho, 1988, tam bém já fizeram esta relação.
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mesmo tendo adotado formas portuguesas para expressar valores africanos. Mas, como aos olhos dos senhores e administradores coloniais, ao festejarem Nossa Senhora do Rosário e outros santos, mesmo que com danças de origem africa na, os negros estavam praticando o cristianismo, — o que justificava a sua es cravização e confirmava a sua integração à sociedade colonial —, essas festas foram aceitas, assim como muitas outras ligadas a uma religiosidade popular, para as quais confluíam grande variedade de elementos culturais. Se na época colonial a Igreja aceitou as danças marcadamente africanas e deu seu aval à coroação de reis de nação e rei Congo, as restrições a essas festi vidades aumentaram desde o começo do século XIX, quando a Igreja católica se em penhou em controlar a religiosidade popular e o Estado imperial buscou afastar-se do passado colonial.15 Por outro lado, a partir de meados do século XIX, outras possibilidades foram abertas por novas formas de organização e resistência das comunidades negras, ampliando um espaço antes ocupado pela coroação de reis. Importantes na construção de novas identidades, quando o enraizamento dos estrangeiros no Novo M undo se consolidou e outras formas de integração foram estabelecidas, em muitos lugares as festas de reis negros deixaram de ser espaços privilegiados de estruturação interna das comunidades negras e de regulamentação das relações destas com a sociedade abrangente. As coroações de reis de nação, ao se transformarem em coroações de rei congo, acompanharam um processo de superação das diferenças étnicas e cons trução de uma identidade mais uniforme no âmago da sociedade escravista. Freqüentes no século XVIII, deixaram, no século XIX, de ser espaço de ex pressão de etnias particulares, passando a expressar comunidades unificadas sob a bandeira de uma africanidade associada ao Reino do Congo. No final do século XIX e começo do XX, quando entraram em vigor novas relações sociais de produção e dominação, muitas vezes as congadas passaram a expressar a identidade de um grupo definido pela sua condição social, de pobres, havendo crescente participação de pessoas mestiças e brancas nas festas, sendo os car gos de rei e rainha sempre reservados aos negros. Dotadas de grande capacida de adaptativa, as coroações de rei Congo, mesmo menos disseminadas que em épocas passadas, acontecem ainda hoje em muitos lugares do Brasil e são prova da complexidade que rege os processos culturais, nos quais novos significados são constantemente incorporados a formas tradicionais. □ □□
15 Em 1817 o intendente da Polícia do Rio de Janeiro, Paulo Fernandes Viana, proibiu que as irmandades pedissem esmolas com tambores porque tal prática provocava “grande ajunta m ento de negros, e dele resultavam desordens, e bebedeiras, apesar das rondas que ha viam”. “Representação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São B enedito.. Biblioteca Nacional, Sessão de Manuscritos, II — 34, 28, 25.
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M a r i n a d e M e l l o e S o u z a é doutora em história da cultura pela Univer sidade Federal Flum inense e autora de Parati. A cidade e as festas, sua dissertação de mestrado. Tendo sempre trabalhado com temas relacionados à cultura popular, dedi ca-se em especial ao estudo das festas e da arte popular, estando atualm ente envolvi da em projetos de apoio a com unidades artesanais de baixa renda.
R e s u m o . Africanos de diferentes etnias traficados para a América portuguesa en contraram formas de se reorganizar depois da diáspora, sendo a escolha de reis uma delas. Em quilombos, planos de revoltas, cantos de trabalho e irmandades, existiram reis negros que congregavam a comunidade em torno de si. Mas foi nas irmandades que os reinados negros tiveram vida mais longa, integrando uma festa na qual identi dades eram recriadas por meio de ritos e mitos. Aceitas pela sociedade senhorial, as festas de reis negros cm homenagem aos santos padroeiros eram ocasião de reforçar laços com a terra natal, uma Africa mítica, já penetrada pelo cristianismo a partir da conversão da elite reinante por ocasião dos primeiros contatos com o Reino do C on go, no final do século XV.
Johann Moritz Rugendas. Festa de Nossa Senhora do Rosário, padroeira dos negros. Litografia colorida à mão, 35,5 x 51,3 cm. Coleção particular. Fundação Bienal de São Paulo. Nelson Aguilar (organizador). Mostra do Redescobrimento: negro de corpo e alma. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos, Artes Visuais, 2000, p. 240-01. Foto André Ryoki.
A REVOLTA É UMA FESTA: RELAÇÕES ENTRE PROTESTOS E FESTAS NA AMÉRICA PORTUGUESA L
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1. cotidiano dos súditos portugueses moradores na América é percorrer um universo de ocasiões de celebração em que se festejava a vida em todas as suas horas: o nascimento, o encontro da solida riedade sob o compadrio, o trabalho, o afeto e o desejo, a passagem final. Comemorava-se ademais a fé nas divindades de onde quer que elas viessem, o amor ao soberano distante e seus fastos. Fenôm eno difuso mas que comparecia com trem enda assiduidade naque les dias constituíram as ocasiões de resistências e protestos que promoveram esses mesmos moradores convertidos à condição de colonos. Resistências que, longe de estarem limitadas a expedientes individuais ou coletivos de simples recusa, traduziam esforços de negociação que confrontavam senhores da ri queza na América e seus soberanos ibéricos. Tratar de aproximar festas e revoltas significa de modo análogo rediscutir em certos termos a natureza política dos protestos.1O procedimento de apro ximação envolve maiores perdas para os protestos que para as festas, uma vez que hoje é mais consensual a aceitação de um conteúdo crítico das cerimô nias festivas que admitir limitações ao conteúdo de contestação profunda nas revoltas.
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1 A inspiração para o presente estudo se deve a Yves-Marie Bercé.Fête et revolte. Des mentalités populaires duX V Ie. a uX V IIle. siècle. Paris: H achette, 1994.
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Estudos inaugurados no fim da década de 1950, malgrado divergências e polêmicas, têm varrido a perspectiva de desordem e irracionalidade que en quadrava as rebeliões e motins nos tempos modernos. Afinal, Hobsbawm, Thom pson e Rudé há muito já advertiam que se deveria desconfiar da fúria assassina e desordenada das multidões.2 No Brasil, apesar da franca aceitação desses novos paradigmas e da revisão em preendida do mito do nativismo, as revoltas coloniais são ainda mal conhecidas, prejudicadas pela timidez das pesquisas documentais.3 Evaldo Cabral de Mello e sua Fronda pernam buca na é nobre exceção em meio a poucas investigações que conseguem alcançar o núcleo central destas manifestações.4 Decorre dessa fragilidade, que se poderia estender para Portugal, a dificuldade de apreender aspectos da ritualística e da cultura política dos motins na América portuguesa, e faz pare cer inglória a proposta de comparar tais dimensões às festas públicas que pelas mesmas terras tiveram lugar, desafio a que nos propomos aqui. Revoltas, a despeito de uma apreensão de caráter mais espetacular e vio lento que se poderia querer vislumbrar, eram mecanismos de negociação; bem verdade que dentre todas as formas de negociação coletiva aquela com maiores riscos para seus partícipes. Sua recorrência, forma de organização e rituais revelam agudo controle (interno) dos limites de sua prática política, além de pragmatismo e senso de oportunidade fundados na condição colo nial. Tratava-se de cumprir certos passos que conduzissem ao estado de re volta em que, desde então, as negociações não podiam mais ser proteladas, sob o risco grave do descontrole político generalizado. Decisivo na elabora ção desse recurso eram os ritos que a coletividade praticava, ritos muitos de les que se repetiam a partir da experiência política do reino em diferentes partes do império. Eram movimentos carregados de teatralidade que cum priam a função de demonstrar, claro, insatisfação, mas, sobretudo, um apa rente estado de desordem.5
- George Rudé. A multidão na história. Estudo dos movimentos populares na França e na Ingla terra 1730-1848. Rio de Janeiro: Campus, 1991; E. R Thom pson. La economia “moral” de la m ultitud en Ia Inglaterra dei siglo XVIII, in: Tradición, revuelta y conciencia de clase — estúdios sobre la crisis de la sociedadpreindustrial Barcelona: Grijalbo, 1989, p. 62-134; Eric J. Hobsbawm. Rebeldes prim itivos: estudo sobre asform as arcaicas dos movimentos sociais nos sécu los X IX e X X . Rio de Janeiro: Zahar, 1970. Ver ainda D om inique Julia. A “violência” das multidões: é possível elucidar o desumano?, in: Jean Boutier & D om inique Julia. Passados recompostos. Campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: Editora da U FR J/Editora FGV, 1998, p. 217-32 e excelente síntese em Marco A. Pamplona. A historiografia do protesto popular e das revoltas urbanas. Vol. 3. Rio de Janeiro: PUC, 1991. ’ Rogério F. Silva. Colônia e nativismo: a história como “biografia da nação"'. São Paulo: Hucitcc, 1996. * A fronda dos mazombos — nobre contra mascates: Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Com pa nhia das Letras, 1995. R. D. Benford & S. A. Hunt. “Dramaturgy and social movements: the social construction and communication of power”, in: SociologicalInquiry, 62:36-55,1992 c Louis A. Zurcher &
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2. A combinação entre as ocasiões de festas e protestos na América portugue sa deve levar em consideração, em primeiro lugar, o calendário. Motivados pelo oportunismo diante da programação das festas religiosas, a eclosão de protestos sociais coletivos escolheu a comemoração de dias santos como data preferencial para marcar o encaminhamento das insatisfações. Das muitas rebeliões que se assistem no Brasil, tomaremos aqui como modelo de reflexão as associadas à contestação antifiscal, das mais freqüen tes e que ocorreram em regiões tão distintas como Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais/’ Nelas a coincidência das datas em que o fervor religioso pôde ser combinado à inquietação política dos súditos ultramarinos exige algum apuro. Percorrendo a cronologia destes movimentos, atingimos na segunda m etade do século XVII, precisamente no final do ano de 1660, o amotinam ento dos moradores da cidade do Rio de Janeiro e freguesias nos entornos da baía da Guanabara contra o Governador Salvador Correia de Sá e Benevides que coincide com a realização de festas religiosas. A madrugada escolhi da pelos fazendeiros do recôncavo fluminense para dar continuidade aos pro testos iniciados por meio de cartas e petições remetidas da localidade de São Gonçalo deriva da elevada concentração de devotos que acorria à cidade do Rio de Janeiro à espera dos festejos religiosos de 8 de novembro. Não escapa ria a Baltasar da Silva Lisboa o dia escolhido para a revolta, quando o povo “se congregara em um dia santo consagrado aos exercícios da piedade e religião”. Não foi isso que fizeram. Durante as primeiras horas de tum ulto a turba bate às portas dos moradores convocando-os, a “seguirem a sua voz [...]”, e dispa ram a tocar o sino da câmara. D estituem de seu cargo o governador interino que estava no lugar de Salvador Correia reafirmando encontrarem-se “ma goados, queixosos e oprimidos das vexações, tiranias, tributos, fintas, pedidos, destruições de fazendas, que lhes havia feito o Governador Salvador Correia de Sá e Benavides”. D esde então viver-se-ia no estado de amotinamento. Com “o dito Povo junto, e unido em um corpo, e uma voz [...]” preparam um requerim ento encaminhado pelos procuradores do povo então nomeados para prisão de partidários de Salvador de Sá e destituição do governador e verea dores. Tempos depois, longe dali, marcando uma fase especialm ente tensa do David A. Snow. “Collcctivc bchavior: social m ovem ents”, in: M. Rosenberg & R. H. Turner (eds.). Social Psycho/ogy, Sociological Perspectives. Nova York: Basil Books, 1981, p. 44782. h As passagens adiante referentes às rebeliões foram tomadas em prestadas de minha tese de doutorado: Revoltas, fisca/idade e identidade colonial na América portuguesa (1640-1761). São Paulo: Universidade de São Paulo. 1996.
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controle político sobre Minas Gerais, os líderes da revolta de 1720 em Vila Rica empregam igualmente as conveniências oferecidas pelo calendário fes tivo. Já nos preparativos da rebelião, Pascoal da Silva Guimarães se aproveita da ocasião das festas do natalício da Condessa do Assumar para sondar os ânimos para o motim conseguindo acertá-lo para 28 de junho, véspera da festa de São Pedro. Na data homens mascarados descem o morro do Ouro Podre, atacam e roubam a casa do odiado Ouvidor Martinho Vieira destruin do os papéis judiciais. A partir daí uma onda de tumultos varreria Vila Rica e Ribeirão do Carmo até a negociação final com o governador, cercado em seu palácio. O calendário festivo traria outras ocasiões de desconforto para as autorida des metropolitanas nas inquietas vilas mineiras. No sertão, nas bordas do rio São Francisco, as festas em devoção de Santana combinam com a explosão dos furores sertanejos que tomam conta da região no ano de 1736. Após a sagrada missa em devoção da “Senhora Santana”, “se entrerrom peu uns gran des gritos de viva o povo e morram os traidores [...] isto com gritos e bulha tão grande que metia pavor”. As aproximações entre a religião e cultura política dos rebeldes sertanejos parece que na ocasião se limitou ao calendário. Os amotinados em corpo de quase uma centena de homens armados seqüestram após a missa o potenta do local Domingos do Prado de Oliveira que, socorrido pelo capelão, iria ten tar livrá-lo das mãos dos rebeldes empregando a própria imagem de Santana, seguido de um religioso carmelita que portava a imagem de nosso senhor crucificado. Na reação da turba-multa ameaçadora, com flagrante sinais de heresia, “responderam [...] como bárbaros [ordenando] que fossem pôr as imagens nos seus altares e senão que junto com eles os haviam de varrer” . 3. Mas as aproximações entre festas e rebeliões não se esgotam nas datas do calendário. A identificação de certo padrão nestes protestos sociais permite que se perceba a recorrência de alguns ritos que se aproximam dos que tive ram lugar nos momentos das comemorações festivas públicas, religiosas ou não. O movimento de protesto na América portuguesa, esquecidos de uma vez o nativismo e a natureza furiosa das multidões, deve ser tomado como rituais políticos plenos de historicidade. Bem mais comedidas que as imagens da multidão em fúria faziam supor, as revoltas constituíam recursos políticos exercidos com certa freqüência e naturalidade voltados para se alcançar de mandas de grupos mais amplos sempre que os canais de negociação habituais houvessem fracassado. Mobilizar o povo dos campos e das vilas, cumprir rituais de aparente des
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controle, atacar autoridades mais diretamente identificadas com o desconfor to comunitário assinalavam algumas dessas passagens que se repetiam em todos os cantos, no reino e em suas conquistas. No âmbito local, o apelo à participação popular de amplo espectro, sem o qual o cenário não estaria com pleto, era alcançado pela incorporação de demandas que tinham forte apelo popular, como a suspensão das cobranças tributárias violentas, a redução de preços dos gêneros básicos, a melhoria da oferta de produtos básicos, o fim da gravação dos povos para despesas com militares, a coerção aos odiados contratadores. O mom ento inicial de uma revolta era sempre marcado pela realização de grandes assembléias que ocorriam em local associado à motivação do protes to, podendo ser o paço, a câmara, a igreja, o palácio do governador. Dessa grande reunião evoluir-se-ia para um movimento de dispersão em que o grupo original iria dividir tarefas, como entabular negociações com os magistrados locais, esvedrar residências e atacar prédios, constranger autoridades, con quistar novos adeptos pela vila, preparar a defesa militar, ocupar ou neutrali zar postos de controle administrativo. Se há dispersão do grupo, a lufa-lufa dos brados e gritos, o bimbalhar dos sinos que se espraia pelas vilas propor cionaria aos amotinados a certeza do processo em andam ento a que todos se entregavam. N esse momento o controle da comunidade escapava por com pleto das mãos dos delegados reais. Espaço preferencial das emoções coletivas, foi nas vilas — algumas delas cidades — que quase sempre teve lugar o cumprimento das práticas rituais amotinadoras. Aí uma população que tradicionalmente não dependia da vida nesse meio se reunia em dias de protesto. Constituiu o lugar por excelência capaz de tornar realidade uma das exigências básicas dos protestos: a mobili zação popular, que constituiu recurso imprescindível da prática amotinadora a fim de garantir poder de pressão às suas exigências. A mobilização geral era o fundam ento que assegurava a am plitude social das demandas aos olhos das autoridades e servia não apenas para demarcar diante dos administradores a subtração da autoridade de sua soberania, mas como poder ameaçador nos instantes mais decisivos de negociação. Tanto assim que novas assembléias com o concurso coletivo seriam necessárias ao longo das revoltas, sobretudo quando se tratava de apresentar as reivindicações às autoridades da vila, defi nir rearranjos de lideranças ou decidir alternativas diante de rumores. Para além de reunir nas ocasiões festivas uma grande população flutuante que habitava as regiões vizinhas do termo, as vilas coloniais concentravam os símbolos do poder com os quais se cumpria negociar. Embora quase sempre tímidos povoados, era aí que estavam estabelecidas as autoridades, habita vam os funcionários reais, estavam instalados os instrumentos de negociação legal e se concentravam os alvos a serem atacados. A constituição do motim como vimos exigia a reunião de variadas camadas
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sociais, compostas pelos grupos habituais da sociedade colonial, soldados, agricultores, oficiais mecânicos, padres, comerciantes, acrescidas de contin gentes que apresentavam pequenas variações entre regiões em função do colorido local: chatins em Salvador, faiscadores em Minas Gerais, mestiços no sertão. Instaurava-se uma autêntica “promiscuidade estam ental” a que José Antonio Maravall certa vez se referiu para a festa barroca.7 O mesmo sentim ento que reunia grupos variados em torno das festas se repetia nas revoltas: o compromisso da defesa do bem comum. Festas e revoltas são movimentos que adensam a reunião da coletividade; poucos momentos em que era legítima a convocação do corpo dos súditos para as manifestações de rua. Se a festa estava amparada no sentim ento coletivo da fé no corpo de D eus ou ainda no júbilo ao soberano com demonstrações engenhosas de sua grandeza protetora, como “arma política”, a revolta ancorava-se na legitimi dade do apelo desesperado à proteção real. Como uma festa às avessas, re compunha simbolicamente a mesma distância que o Ultramar impôs a reis e súditos. Em ambas o corpo social se unia, reforçavam-se as hierarquias sociais de comunidades coloniais e, por isso, marcadas pela dupla maldição de viverem constantem ente sob peso da sensação de negligência diante do soberano afas tado e de integrarem uma sociedade pautada pela fluidez. Acentuava-se en tão o sentim ento de grupo de setores sociais dispersos. A cidade por isso se revelou o lugar do encontro marcado de grupos que se espalhavam por recôn cavos, fazendas, currais, roças, minas e praias mar afora, ocupados em toda a sorte de ofícios, desiguais nos níveis de riqueza, e de pobreza, concorrendo em distintas condições sociais por melhores ganhos no mercado colonial. Tam bém um momento de sociabilidade, o aglutinamento no protesto reafirmava um sentim ento de pertencim ento e de coesão, m om entaneam ente se sus pendendo as diferenças e oposições. Sob o cenário urbano, o estado de rebelião exigia gestos à altura, executa dos pela multidão que assumira o controle da república: vozes, sinos, tropel, toda a sorte de agressões, desafios e inversões hierárquicas, destruições de bens seguiam após a mobilização original. Expressões recorrentes nas narra tivas redigidas pelos homens do poder referiam-se aos que estavam “Tocan do o sino, articulando vozes” e — como então diziam — “demais ações de amotinador”. Estas seriam compreendidas por uma multiplicidade de gestos concertados pela coletividade.8 A overture das alterações coloniais envolveu inevitavelmente atitudes gran
7 José Antonio Maravall. A cultura do barroco. São Paulo: Edusp, 1995.
8 J- Bremmer & R. Hcrman, (ed.). A Cultural History of Gesture. Ithaca: Corncll University Press; R. M uchem bled. “Pour une histoire des gestes (XVe.-XVIIIe. siècle), in: Revue
d'Histoire Modeme et Contemporaine, 34\87-101, 1987.
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diosas e desafiadoras. D esde que assegurada a mobilização e fundamentadas as razões para se assumir o maior dos riscos políticos sob o governo das monar quias absolutas, os inconfidentes não se preservavam de em preender gestos ostensivos. Tomavam de assalto câmaras, quando então depunham vereado res e demais camaristas, interrompiam expedientes administrativos, dispara vam seu sino, e, eventualm ente, apupavam autoridades e ministros que aí estivessem. Palavras ofensivas e empurrões dirigidos aos homens bons, à nobreza da terra e aos representantes reais quebravam precedências e hie rarquias que costum eiram ente equilibravam as distâncias sociais. Alguns funcionários chegaram a ser deportados, outros perseguidos se refugiam nas casas conventais ou tinham sua residência invadida. A investida ganhava cunho ainda mais dramático quando se brandiam ar mas que circulavam entre o povo furioso e as espadas eram desembainhadas ameaçadoramente contra os poderes locais. O emprego do “concurso de ar mas” de “espada nua” como os registros denunciam foram gestos de caráter simbólico, a reforçar compromisso com a resistência militar em direção às conquistas do movimento; funcionava de modo complementar aos gritos, sinos, tropel que demarcavam o rompimento da subordinação aos poderes locais, mas que ganhavam especial relevo quando do outro lado estavam governado res e vice-reis investidos no posto de capitães-generais, alguns até mesmo com experiência de combate. Espaços do poder régio e do governo secular eram maculados por ataques, cercos, invasões que, entre outros motivos, buscavam neutralizar possíveis contra-reações. Ocasiões houve em que homens embuçados se organizavam em máquina de gentes para socar as portas dos moradores indecisos, e até refratários, para adensar a mobilização geral. Não raro eram encarregados de com eter violências contra autoridades escolhidas para servirem de bodes ex piatórios da insatisfação comum, destruir propriedades e eventualm ente — para nossa infelicidade — papéis. Se o anonimato garantia espaço de ação, o uso das máscaras adicionava algumas penas à ficha de crimes desses homens, uma vez que as máscaras eram duram ente proscritas no mundo luso-brasileiro, até mesmo nas festividades. O som do sino, sob o controle da turba, tocan do de modo incessante, e o alarido do povo criavam a sonoplastia daquele novo tem po coletivo. Para sublinhar sua publicidade gestos precisavam ser claramente sonorizados por gritos e clamores em uníssono. Tudo então con corria para configurar situação de desordem e descontrole. Alguma destruição tinha lugar nessas ocasiões. Bens das câmaras foram eventualm ente apropriados e com alguma freqüência residências de poten tados locais saqueadas, armazéns de contratadores destruídos e os gêneros desperdiçados. Mais eventualm ente incêndios queimavam propriedades e produtos e m ediante leilões públicos redistribuíam secos e molhados outrora açambarcados.
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Compondo com esses ritos, as práticas políticas e demais ações recorrentes nesses motins podem também servir a uma outra leitura da natureza desses protestos, revelando outra face menos evidente. Se o ato de rebelião propiciava situações de desordem, as formas de con trole no seio dos grupos amotinados c as negociações conduzidas revelam um caráter ordenador no movimento. Entre as suas primeiras medidas estava a escolha dos representantes comunitários, eleitos pelo grupo a fim de preen cher as posições nas estruturas de poder local recriadas no instante da revolta. As lideranças que emergem nesse momento são quase sempre egressas de setores bem posicionados da sociedade local, geralmente atingidos em seus interesses pela política colonial. O papel dessas lideranças é fundamental para delinear o encaminhamento político que a revolta iria desenvolver; afi nal ativam mecanismos de mobilização social baseados nas hierarquias e dependências da sociedade colonial escravista, cujo controle im pede a emergência de demandas populares 0 11 qualquer forma de desregramento social. Assim, o lugar social das lideranças, a despeito da aparência de descon trole, denunciava o caráter ordenado e contido do movimento. Sob esse prisma compreendia-se até a participação de escravos, agregados e homens pobres mobilizados por seus senhores para antecipar o estado de insurreição e alimen tar momentos de fúria aparente nos cercos, invasões, passeatas e mascaradas. As práticas políticas de negociação reafirmavam ainda mais essa tendência da ordem dentro da desordem. Em certa passagem que se repetia a cada movi mento de protesto os gritos ouvidos pelas ruas cessavam e o alvoroço era calado com a chegada de advogados 0 11 procuradores do povo que se dirigiam às auto ridades atacadas até ali. Tomava o lugar das vozes furiosas os tratamentos ceri moniosos, a linguagem dos bancos universitários. A sociabilidade das ruas é alternada pela sociabilidade letrada em que capítulos com as reivindicações eram apresentados por advogados aos representantes do soberano constran gidos. A instauração desse momento bem caracterizou os limites e peculiari dades das rebeliões no Antigo Regime. Na presença de advogados ou sob a chancela de cartórios as assinaturas das autoridades assentiam a todas as reivin dicações, e mesmo concediam o perdão generalizado. A reificar esse modelo, a que Antônio Manuel Hespanha chamou de “jurisdicista”, estariam as relações estabelecidas entre súditos na condição de rebeldes e o soberano.9 Tal com ponente, se projetado no plano da ritualística empregada nos le vantamentos, acaba por se configurar nos brados de “viva el-rei de Portugal nosso senhor [...]” , os amotinados de pé, desembainhando espadas, à frente ou dentro das câmaras municipais 0 11 cartórios, com gritos coletivos em uma só voz (“a voz de todos geralm ente”), repetida duas ou três vezes, que inau 9 A. M. Hespanha. “Revoltas e revoluções: a resistência das elites provinciais”, in: Análise Social, aS(120):81-103, 1993.
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gurou muitos destes movimentos. As proclamações de amor, lealdade e fide lidade percorriam os gestos, a palavra e a escrita durante os tumultos, simbo lizando o ponto-limite que a condição de colonos alcançou quando apenas restou o recurso à revolta, pelo e para o rei. Cerimoniosos revoltosos. Mobilizavam-se as consciências coletivas em redor da imagem do roi tromp é , comum em diversas revoltas da época moderna, especialm ente agravado nas condições coloniais em virtude da distância e da morosidade da máquina administrativa metropolitana que ampliava a sensação de injustiça e desam paro da parte dos súditos ultramarinos. E, ainda que os brados de “viva el-rei” pudessem ser substituídos no de correr de alguns dos protestos por “viva o povo, morte aos traidores!”, ao contrário de representar possíveis reveses no seu encaminhamento político, reafirmava as peculiaridades do exercício político de então. Tratam-se de vozes que correspondem quase sempre a etapas distintas do andam ento das rebe liões. A primeira, como já vimos, sublinhando a afeição ao trono reál e rei terando a condição de súditos achacados por algum funcionário traidor da vontade do rei; a segunda assinalando a mesma intenção de tocar as sensibi lidades coletivas para, no entanto, preparar a resistência diante de rumores de reação e contra-revolta. Constituem também discurso da política barroca em que recursos cênicos dessa natureza valiam espaço de negociação na luta política. Sob o com ponente cênico fundamental nas rebeliões a recorrência das mesmas práticas rituais em diferentes épocas e regiões da América portu guesa provoca a sensação de que todos os envolvidos conheciam muito bem o papel a desem penhar naquelas circunstâncias, desde a liderança com al gum posicionamento social, ao governador que sofria constrangimentos, até os escravos e agregados que formavam a turba. Se a aparência desses movimentos sociais mediante suas práticas rituais cum pria a função de demonstrar um estado de descontrole, encenação imprescin dível para uma sociedade de Antigo Regime que dialogava intensamente com a liturgia na vida cotidiana, ela não deve ser isolada da gravidade política que a iniciativa representava. Ademais, da mesma forma que ocorria com estes ges tos, desembainhar espadas não assumia desdobramentos de maiores ameaças: poucos foram mortos ou sofreram violências físicas, assim como poucos foram os conflitos no contexto das rebeliões, não se assistiu a resistências armadas à repressão que se articulou. A contabilidade dos punidos pelo crime de rebelião, apesar da hipnose com os despojos de Filipe dos Santos, Bequimão, Agostinho Barbalho, Tiradentes e os alfaiates baianos, foi proporcionalmente comedida. Mesmo assim, esta afirmação não esvazia o conteúdo político da prática da rebelião que, por sua vez não deve esgotar o “teor violento da vida”.10 Mas ln Johan Huizinga. O declínio da Idade Média. Trad. Augusto Abclaira. São Paulo: Verbo-Edusp, 1978.
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apenas pode situá-lo na cultura política do Antigo Regime em que se exigia certa teatralidade. Igualmente não elimina, como é evidente, a espontaneida de de certos protestos, a violência ou o descontrole furioso de outros que tive ram lugar na América portuguesa. Havia riscos políticos, estando ali sujeitos à prisão, perda de títulos, encerramento de carreiras, castigos, morte por execu ção sumária, degredo. Contudo, alguns cálculos se prestavam para proteger os colonos de maior distinção desses riscos, como a distância metropolitana, as relações de poder internas e o assédio estrangeiro sobre as riquezas que limita vam fortemente a sanha repressiva que se esperava, traduzido na dissimulação tantas vezes recomendada pelo Conselho Ultramarino. 4. Chega a ser chocante uma eventual comparação entre o Áureo Trono Epis copal em Minas Gerais e outra procissão episcopal que percorre em Salvador em 1711 tentando aplacar a fúria da revolta conhecida como o M otim do Maneta. Antes que o protesto fizesse mais estragos, o arcebispo da Bahia, D. Sebastião Monteiro da Vide, seria mobilizado e, com seu poder reforçado por todos os cônegos e beneficiados da Sé e alguns membros das irmandades, dirige uma procissão conduzindo os símbolos sagrados do corpo e sangue de D eus no pão e no vinho da Eucaristia, convidando a todos à quietação. A iniciativa dessa ação de graça tem sucesso: “prostraram-se todas aquelas cria turas ao seu Criador, e embainhando as espadas o adoraram e acompanharam à matriz”. Mas o lenitivo foi passageiro. Após o ritual religioso, retornam ao ritual da revolta, partindo novamente para a praça e exigindo o fim do tributo e a redução do preço do sal. Na Bahia o juiz do povo negocia com o governador pressionado-o a sus pender os impostos, manter o preço do sal e perdoar desde já os implicados no levante. A pacificação conta ainda com outros negociadores: os provinciais da Companhia de Jesus, os beneditinos, o prior do convento do Carmo, o guardião de São Francisco e o bispo. Aconselhado por D. Lourenço de Alma da (ex-governador, que ainda se encontrava na cidade) aceita todas as exi gências assinando portaria e um perdão generalizado. Acuado e desguarneci do das forças militares, concede o perdão geral no mesmo dia, condição para encerrar o motim, “extorquido com a violência das armas e furor do povo [...]” e em ite ordens ao provedor suspendendo os novos impostos. Só assim, às seis horas da tarde, o sino finalmente silencia e a população se dispersa. Os tributos e o contrato do sal ficariam suspensos por alguns anos. Se M onteiro da Vide e Dom Frei M anuel da Cruz conheciam uma ex pressão de poder equilibrada e, cada qual ao seu modo, eram artífices da reforma tridentina na América, dividindo dificuldades, um com a lassidão e vícios dos baianos, outro com a indisciplina e rebeldia dos mineiros, as se
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melhanças quanto às aparências se encerram por aí. As noites de lum iná rias, o fausto dos carros alegóricos que iluminam Vila Rica na chegada do novo bispo não se comparam à simplicidade da cerimônia que fora organi zada na Bahia. Pudera! Se os moradores de Vila Rica seus vizinhos p u d e ram preparar-se ao longo de ansiosos meses, o bispo baiano e seus auxiliares não contaram com mais que poucas horas para armar estandarte e convocar devotos. M onteiro da Vide até que foi diligente na preparação de sua pro cissão diante do quadro que se lhe apresentava. D esde cedo naquele dia a cidade estava em com pleto desassossego com a rebelião contra os impostos e o elevado preço do sal. A câmara havia sido invadida, seu sino desde então não deixava de tocar, casas dos principais da vila foram destruídas e os ar mazéns saqueados. O momento da procissão na tentativa de pacificação durante o motim do M aneta expressa em seu conteúdo imediato o papel da Igreja na colônia sob o padroado, encarregada de controlar as rebeldias e a inquietação coletiva. D e monstrado ficava que o sucesso da colonização dependia mais uma vez do bra ço eclesiástico, aqui com especial referência à sua função de controle social. O que se impõe contudo no episódio é a percepção de que a revolta ultrapassa em certos momentos os esforços de controle num complexo jogo de negociação. Afinal após a procissão aos amotinados retomam suas demandas ao governador, fazendo crer que distinguem muito bem os dois termos da vida: o secular e o temporal. Separando nas suas práticas políticas Igreja e Estado. Relações entre protestos e elementos das festas religiosas tendem assim a estabelecer novas marcas de diferenciação, sobretudo quando empregadas como se buscava in terromper o ritual do protesto por meio de cerimônias religiosas. 5. Até onde as rebeliões podem ter tomado de empréstimos ritos das festas é questão de difícil solução. Características tipicam ente barrocas como a hiper trofia do cênico e a estruturação dos cerimoniais encontram-se divididas en tre festas e rebeliões a ponto de os rituais e concepção cênica das últimas se aproximarem das festas públicas, ainda que certa estética barroca — primado do visual, do sensorial, do persuasório — apareça combinada com o sentido jurisdicionalista e pragmatismo político. Identicam ente, como demonstrou íris Kantor para as festas em Minas," tam bém as revoltas podem ser caracterizadas como processos que se benefi ciaram da transferência e adaptação das tradições portuguesas. Ambos cons tituem ainda rituais políticos de aproximação social também, ultrapassando o 11 íris Kantor. Pactofestivo ém M inas colonial: a entrada triunfal do primeiro bispo na Sé de Mariana. Dissertação de mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1996.
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“espaço tradicional de discurso do poder” (Afonso Ávila) e organizando cm seu lugar um espaço de discurso de identidade cultural. Se nas festas, “trégua indecisa”, recitavam-se poemas e encômios, portavam-se estandartes e os mascarados celebravam bailes, nas revoltas, “trégua compulsiva”, liam-se manifestos, espalhavam-se pasquins e os mascarados esmurravam portas. Se o tempo de duração das festas estava de certo modo prescrito, o tem po das revoltas fugia a cálculos preexistentes, sustentando-se em um misto de pragmatismo político, capacidade de negociação e fôlego em manter aceso o “concurso das gentes” . Não nos parece contudo que apenas a cultura do barroco tenha em presta do significados semelhantes entre as festas e os protestos. A despeito de as práticas dos rituais das revoltas derivarem de um território comum às festas — a cultura barroca com seus expedientes cênicos, etc. —, elas estabelece ram trocas decorrentes das peculiaridades das formas de lutas políticas na América portuguesa. A presença e a atuação de padres na vida política de então não representou aspecto desprezível à discussão. E de enorme relevância considerar seu pa pel na organização e incentivo às resistências na América portuguesa. Não raro clérigos pregaram do púlpito o enfrentam ento do poder real nas capita nias, integraram os grupos de protestos pelas ruas. Como então não conside rar plausível que, fruto dessas relações, o ordenam ento dos rituais que em pregavam os motins não reproduzissem passagens das celebrações festivas? Em meio à diversidade social que se vive na América, à fluidez dos grupos sociais, à multiplicidade de tradições, o poder da Igreja, a unidade de seu discurso, o significado da instituição e de suas ordens na cultura colonial, a ação inquisitorial que reforçava sobremaneira seu exclusivismo como instân cia asseguradora e transmissora de cultura, reafirmam sua capacidade de or denar a cultura popular. Porém o espaço de atuação dos clérigos, cujas for mas de transgressão não têm escapado à recente historiografia, iria pesar de maneira decisiva nos instantes de resistência e rebelião. Advém dessa pre sença a possibilidade de se pensar a ocorrência de empréstimos entre a ritualística das festas religiosas e a prática política do motim. O poder de contesta ção política que assumiu o trabalho espiritual no Brasil criou o caminho pelo qual os rituais das festas religiosas migraram para a prática da rebelião. Em muitas ocasiões eram os padres que ordenavam o discurso dos amotinados, chegando a redigir pasquins de protesto e paródias do pai-nosso e da avemaria, a convocar protestos durante as missas, a elaborar a justificativa para movimentos de resistências às ordens reais como em Minas Gerais na resis tência ao pagamento quinto nos primeiros tem pos.12
12 Boschi, Caio. “«Como os filhos dc Israel no deserto»? (ou: a expulsão dc eclesiásticos cm
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Trocas culturais, empréstimos que unem o drama da opressão fiscal e a celebração da fé ou do amor ao soberano. Sentimentos trocados que no Brasil se confundiria nas dificuldades cotidianas do “viver em colônia” .
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As sensibilidades coletivas e suas formas ritualizadas desenham fronteiras muito pouco definidas, entre a comédia e o teatro, entre a festa e as encena ções, entre as procissões e a revolta. As distinções mais demarcadas entre elas são construções modernas. Por meio das encenações festivas públicas convertia-se o índio, disciplinava-se o vassalo, pacificavam-se os escravos, firmavam-se precedências. Múltiplos usos tomados sob a perspectiva utilitarista, secularizada, moderna, iluminista, julgamento decerto próximo de certo ana cronismo. Porém, de maneira indiscutível, tratava-se do mesmo e único re curso da ritualização e linguagem com que se falavam com os sentimentos coletivos. E, como tal, conhecem efeitos polissêmicos. O mesmo espetáculo que serve às instituições serve aos insatisfeitos com elas. O mesmo altar que catequiza é destruído por selvagens atormentados, o mesmo sino que comu nica se cala ao ter seus badalos roubados e atirados na lama, a mesma roupa que diverte serve de mortalha para os que ousam crer em alternativas ao poder absoluto dos reis. Nas revoltas se os mesmos ritos festivos são cumpridos, eles o são de ma neira invertida: em vez de ruas limpas, o chão das vilas é arrasado por produ tos esparramados, casas opulentas que deveriam ser caiadas são esvedradas e desfiguradas, as luminárias em devoção são substituídas pelo ódio das labare das que destroem papéis e produtos, as janelas e portas que deveriam estar ornamentadas recebem a dureza das pedras atiradas pela multidão furiosa que as transforma em gretas que vêem passar os requintados móveis atirados na rua, quando os melhores fatos são saqueados pela fúria retributiva.B Na América portuguesa, laboratório distante da política barroca, as revol tas oferecem um campo privilegiado de observação em que no fundo muitas das práticas de ação coletiva estavam referenciadas na dimensão cultural que conhecia o exercício político de então. Amotinados e soberanos dispunham das armas da política barroca, os primeiros sob a condição colonial esgrimindo ameaças de rompimento com a soberania lusa e o recurso à vassalagem de outro soberano, os segundos recomendando dissimulação, procedimento le
Minas Gerais na l.a m etade do século XVIII)”, in: Varia Historia (Códice Costa Matoso, núm ero especial), n." 21, 1999, p. 119-41 13 Sobre a cultura da retribuição nos protestos, ver especialm ente W. Beik. Urban Protest in Seventeenth-Century France. The Cu/ture o f Retribution. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
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gítimo e parte fundamental do complexo de normas que concorria para a garantia da estabilidade e defesa da ordem, conforme asseverou Rosário Villari.14 Se a cultura do Antigo Regime, em sua com ponente barroca, explicava o emprego dessas formas de encenação, o sistema de cooptação e solidariedades verticais de uma sociedade colonial escravista domesticou possíveis ten dências de transformação social. Combinado a isso a figura onipresente do rei diluía a carga de conflito efetivo uma vez que nivelava a partir do centro da Coroa os grupos que se opunham, fossem os direitos dos funcionários ataca dos que cumpriam ordens reais, fossem os súditos leais que viviam sob opres são dos prepostos de um rei a quem suas súplicas não chegavam. □ □□ u c i a n o R a p o s o d e A l m e i d a F i g u e i r e d o é professor adjunto do D epartam ento de História da Universidade Federal Flum inense; mestre e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo; ex-coordenador da Seção de Pesquisas do Arquivo Nacional; autor dos livros 0 Avesso da Memória: Cotidiano e Trabalho da Mulher no Século XVIII (Edunb-José Olympio, 1993) e Barrocas Famílias: Vida Familiar em Minas Gerais no Século XVIII (Hucitec, 1997). Editor de documentos históricos, entre eles a obra A Revolução da América, de Abade Raynal (Arquivo N a cional, 1993); Marcas de Escravos — Listas de Escravos Emancipados Vindos a Bordo de Navios Negreiros (1839-1841) (Arquivo Nacional, 1990) e o Códice Costa Matoso (F un dação João Pinheiro, 1999). Atualm ente vem dedicando-se ao estudo das rebeliões na América portuguesa e a comparações com a América inglesa.
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R l i s u m o . Fênom enos vizinhos, as ocasiões de júbilo coletivo e os m om entos de protesto estabeleceram na história do O cidente trocas significativas. Eventos marca dos fortem ente pela tradição, em diversas ocasiões viveu-se no Brasil colonial a pas sagem da festa à revolta — assim como da revolta à festa — , quando se adensava o sentim ento de coletividade, impunha-se certa ritualística na mobilização da vida ur bana e estabeleciam-se solidariedades sociais. Dessa forma pode-se com preender que festas religiosas se tenham transformado em momentos de conflagração política, e os rituais elaborados por multidões encolerizadas nas vilas, cidades e arraiais da América portuguesa repitam as mesmas passagens e gestos da festa: a imposição de um novo tem po coletivo, a abundância e a redistribuição de gêneros, manifestações gestuais, hierarquização e calendário. Ao discutirmos os empréstimos e trocas cultu rais de episódios inquietantes nos quais as revoltas se apropriam da linguagem das festas, demarcando empréstimos no campo da ritualística e do ritmo, estaremos am pliando as perspectivas de reflexão de práticas políticas centrais no universo cultural da América portuguesa.
14 Rosário Villari. Elogio delia dissim ulazione— Ia lotta polifica nel Seiceuto. 2.“ed. Roma: Editori Laterza, 1993.
DEZENGANO D O S
RAPAZES, O U S U C C E S S O S D A SERRAçaõ da Velha deíle p rcze nte anno de 1786.
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Frontispício da obra Dezengano dos rapazes, ou sucessos da Serração da Velha, desdeprezente atino de 1786. Lisboa: Officina Domingos Gonsalves, 1786. Foto André Ryoki.
A SERRAÇÃO DA VELHA: CHARIVARI, MORTE E FESTA NO MUNDO LUSO-BRASILEIRO M
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“Aos vinte e dois de março Dia que vem na folhinha Por sinal que é quarta-feira Sem pre cai este tal dia Dia grande dos rapazes Festa neles m uito antiga Com que as decrépitas velhas São por eles perseguidas.” D ezengano dos Rapazes ou successos da serração da Velha deste presente anno de 1786
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FESTA
E A HISTÓRIA
DA
VELH A ...”
A festa está na moda. Se por um lado, os historiadores encontram aí a vanta gem de um público mais receptivo às suas pesquisas, encontram também uma complexa teia de idéias que tornam a interpretação objetiva da festa mais difícil. Um desses historiadores já disse que a maior parte das pesquisas sobre o Antigo Regime confronta-se, regularmente, com duas correntes ideo lógicas.2 A primeira delas apóia-se em uma crítica, na maior parte das vezes,
1 Agradeço ao Conselho Nacional dc Pesquisa (CN Pq) a bolsa de apoio à pesquisa integrada que vem possibilitando esta e outras pesquisas na área da cultura e mentalidades no m un do ibero-americano. Ofereço esse artigo à Maria Lúcia M ontes, mestra e querida amiga. 2 Refiro-me à Nicole Pellegrin, de cuja introdução ao livro Les bacheteries — organisations et fêtes de ta jeitnesse dans le Centre-OuestXVe-XVlllesièdes. Poitiers: Mémoires de la Société des Antiquaires dc 1’O uest, 1982, em prestarei, a seguir, algumas idéias.
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pertinente, sobre as “sociedades industriais avançadas”, buscando, no passa do, nas chamadas sociedades “pré-industriais” o paradigma para uma futura comunidade. A segunda corrente, inspirada da maior parte de trabalhos uni versitários — ou não — , vê na festa um momento privilegiado no qual se poderia ultrapassar ou abolir a ordem burguesa triunfante, a repressão ao de sejo individual e a aspiração popular à subversão social. ’ Em sociedades como a nossa em que se exige uma renúncia cada vez maior ao hedonismo, a festa seria um parêntese necessário e compensador no esmagador e silencioso pro cesso de apagamento do eu. Bem diz Josiane Duranteau que “graças à festa, cada um sente que está entre todos e ao mesmo tempo, reconstituindo e recolhendo-se em sua identidade ameaçada pela vida séria, quotidiana e re grada do mundo social”.4 Jean Duvignaud, por sua vez, crê no aspecto sub versivo da festa. Festa que, em seu entender, configura a reação mais profun da da consciência popular oprimida, à qual é recusado um lugar legítimo na sociedade. A festa significa, portanto, para o autor, a irrupção das trevas no mundo luminoso da lei e da ordem.1 Os estudos históricos não vêm demonstrando, contudo, que o dia seguinte das festas é o de uma nova ordem social. Em geral, as classes sociais domi nantes utilizam os transbordamentos da festa como remédio preventivo con tra os males da rebelião e deste papel, instituições como o Estado moderno, a burguesia e a Igreja estão cientes. E o que se vê, na maior parte das vezes, não são apenas explosões de espontaneidade e transgressão. Mas nas festas de nítido caráter popular,6 ao menos no âmbito dos atores, percebe-se, mais, uma vontade consciente, uma organização minuciosa, uma extrema codifica ção e ritualização de discursos, gestos e seqüências rituais.7 Vamos falar de uma festividade com essas características. Trata-se da “Ser ração da Velha”. O espaço dessa pesquisa sobre a “Serração” é Portugal entre 1752 — data do primeiro documento que encontrei referido a ela — a 1806, data do último docum ento sobre o tema. Os documentos são folhetos de cor del, gênero em pleno florescimento no século XVIII luso.”
3 Penso aqui em autores como J. Duvignaud. Fêtes et civilisations (1973), Yves-Maric Bercé. Fêtes et revoltes: des mentalités populaires du XVIe au X V Ille siècle (1976), Michel Vovcllc. Les métamorphoses de la fête en Provence 1750-1820 (1976), Jean D elum eau. La morte des pays de Cocagne (1976) c mesmo o meu Festas e utopias no B rasil colonial (1994). 4 Josiane D uranteau. “Fctes subversives”, in: Éducation, 15/10/93, p. 18-20. 5 Jean Duvignaud. Op. cit., p. 8. h As questões relativas ao “popular”, cm Portugal foram pioneiram ente tratadas por intelec tuais como Consiglieri Pcdroso, Adolfo Coelho, Teófilo Braga, Carolina Michaêlis e José L eite de Vasconcelos cujo projeto dc edição em torno da Revista Lusitana mostra os esfor ços para o estudo do “povo” e das tradições populares e nacionais, hoje carinhosam ente revistas por Diogo Ramada Curto. 7 Ver, por exemplo, o meu Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1992. 8 O primeiro folheto foi achado na biblioteca da Fundação G ulbenkian de Paris c intitula-se
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Mas o que é, exatamente a “Serração da Velha” ? A cerimônia caricata de serrar a velha realizava-se durante a Quaresma. Os dias, explica Câmara Cas cudo,9 variavam, vindo até o sábado de Aleluia: “Um grupo de foliões serrava uma tábua, aos gritos estridentes e prantos intermináveis, fingindo serrar uma velha que, representada ou não por algum dos vadios da banda, lamentava-se num berreiro ensurdecedor: «Serra a velha! Serra a velha!» E a velha gritan do, gritando. Vezes ocorria essa comédia diante da residência de pessoas ido sas e o grupo era repelido a baldes d ’água e mesmo tiros de espingarda ou pistola. Noutras ocasiões mediante convênio prévio, a súcia recebia bolos e bebidas, para a refeição ao amanhecer, porque a serração era durante a noite, para tornar mais sinistro o espetáculo. Vez por outra a Serração da Velha era feita fora da Quaresma e com intenção política, demonstração de desagrado, à porta de um chefe decaído ou derrotado nas eleições. Na década de 18601870, a Serração da Velha foi desaparecendo depois de ter chegado ao Brasil, vinda de Portugal, no século XVIII”. Um resquício deste tipo de comemora ção encontra-se no código de posturas da Vila Imperial de Papari, hoje Nísia Floresta, de 1897, em que se proibia o “brinquedo do cerramento de Velhos” com multa de 5$000 réis ao infrator. Luís E dm undo10 descreveu fotograficamente uma serração da velha na capital da Colônia. Com muitos versos e em meio a um “berreiro indômito e infernal”, celebravam-na em época típica para o folguedo: “Serre-se a velha Força no serrote Serre-se a velha Dentro do pipote.” Os conjuntos pitorescos de foliões — segundo o mesmo Luís Edm undo — sempre variavam na sua apresentação, luxuosa ou modesta, de acordo com
“Testamento He uma vellia que se acha na cidade de Lisboa de idade de m il e setecentos e cinqüenta e dois anos, cerrado porM onsieurdeLos Tiempos”. Sou muito grata às bibliotecárias dessa F u n dação que me permitiram a cópia integral do documento. Os três outros encontram-se publicados por Mário Cesariny em Horta da literatura de cordel. Lisboa: Assírio c Alvim, 1983. Para a compreensão do papel c circulação de folhetos de cordel em Portugal é obri gatória a leitura de “Littérratures de large circulation au Portugal (XVIe-XVIIIe siecles)”, artigo de Diogo Ramada Curto publicado cm outra obra de leitura basilar: Colportage et lecturepopulaire — Imprimes de large circulation en Europe XVIe-XIXe siècles, sob a direção de Rogcr Chartier & Hans-Jiirgen Lüsebrink. Paris: Maison des Sciences de 1’ Hommc 1996. 9 Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp, 1988, Verbete “Serração da Velha”, p. 709. 10 O autor tem um capítulo inteiro sobre o tem a em O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis, edição do Instituto Histórico c Geográfico Brasileiro, 1932, p. 199-206.
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as posses de seus organizadores. Serrava-se a velha faustosamcnte dentro de casacas de chamalote e luvas de manopla, sob pálios de belbute ou de damas co, ao som de filarmônicas de truz, como modestam ente se serrava ainda, na indum entária esfarrapada dos pobrezinhos com dois ou três instrum entos apenas como música, substituindo o andor e pálios por um simples estrado onde se punha solenem ente o pipo que figurava o aljube, onde a velha se escondia." O boêmio Johann Em manuel Pohl, membro da missão científica que acompanhou a princesa Leopoldina ao Rio de Janeiro, em 1817, regis trou a “farsa” ao passar dois anos mais tarde por Goiás: “A brincadeira” — explica o viajante — “é organizada pelos soldados. Para a zombaria é escolhida entre as moradoras da cidade, uma mulher já idosa mas ainda coquete. Faz-se uma figura recheada de palha, tão parecida quan to possível com a mulher em apreço com trajes iguais ao que ela costuma usar, de modo a ser reconhecida imediatamente. N um a das mãos põe-se-lhe um rosário, e na outra uma serra, para indicar que o jejum quaresmal é corta do ao meio. Então a figura é posta numa padiola e, acompanhada pelos solda dos com sabres desembainhados e archotes, é conduzida por quatro negros através da cidade por entre jubilosa gritaria dos negros e das crianças. Um grotesco mascarado abre o cortejo e durante as paradas lê o testam ento da velha, composto com grande exagero, em que são vituperadas as suas vaidades da maneira mais inconveniente. Toda a tropilha aplaude furiosamente. Finalm ente chegando o cortejo à residência da própria, a figura é serrada em duas e queimada, o que sempre termina em pancadaria.” 12 A “Serração da Velha” deve ter sido tão freqüente no m undo rural brasilei ro, que um dos personagens de José Lins do Rego em Fogo M orto,u Marta, bizarra solteirona, aguarda com horror o som terrível e acusatório do panelaço sob sua janela! Mas quem é a Velha? Certam ente, uma representação da morte. Uma das várias que, na época da Quaresma, percorriam as ruas. As vezes, a Velha aba lava em punhando uma foice e revidando a pancadaria dos rapazes que a per seguiam cantando “Oh Morte! Oh piela, tira a chicha da panela!”.14 Outras, acompanhava a procissão das Cinzas. A Velha personificava a Quaresma e Gil Vicente, em seu Triunfo de Inverno, representou o inverno como a Velha per seguida pelo Maio moço, o verão. Teófilo Braga15reproduziu o excerto de um Almanaque de lembranças para 1855 no qual a velha é identificada como Maria
" Op. cit., p. 201. 12 Apud Luís da Câmara Cascudo. Antologia do folclore brasileiro. São Paulo: Martins, s.d., p. 98. 13 Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. 14 Apud Teófilo Braga. O povo português nos seus costumes, crenças e tradições. Lisboa: Publica ções D. Quixote, 1986, volume II, p. 193. 15 Ibidem .
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Quaresma ou a morte. N esta celebração, destacava-se o barulho ensurdece dor que fazia parte integrante do ritual: “Reúne-se pela manhã toda a rapa ziada munida de chocas, chocalhos e campainhas e percorre as ruas em pro cura da velhice. Celebra-se [a serração] à luz dos archotes com música e alga zarras, fingindo-se serrar através do corpo de uma velha metido em cortiço, a chamada Maria Quaresma”. Outra característica do ritual é seu teor crítico. Um docum ento datado de 1860, também publicado por Braga, não deixa dúvidas quanto a esse aspecto do folguedo: “Antes da com petente barrica — onde escondia-se a Velha — e na frente vinha a respectiva serra, fato no qual alguns reacionários da terra viram uma frisante paródia à cruz dos préstitos religiosos. Formavam alas perto de 150 indivíduos apropriadamente desfigurados e munidos de lanças. No fim de tudo, vinham, em burros como em andores floridos, primeiro a velha destina da ao suplício e depois o respectivo consorte lavado em lágrimas de dor. Não querem os expor aqui o que os mesmos reacionários diriam sobre esse assun to. Finalm ente fechava o séquito o tribunal de justiça, composto de juiz, car rascos e escrivão que lia de vez em quando a sentença que na praça fizeram cumprir o seu destino.” 16 Exorcismo da morte, contando até mesmo com a presença de “autorida des” e o luxo das representações públicas, a serração fazia parte das festas cíclicas que envolviam o ciclo do Carnaval e da Quaresma: Entrudo, Congadas, Reisado, Cacumbis, Domingo de Ramos, Quinta-Feira de Trevas ou de Cinzas, Sábado de Aleluia, etc. “ O
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O Portugal, pano de fundo, para as “serrações” de que vamos tratar, é o da segunda m etade do século XVIII. Em linhas gerais, a política externa traçada durante o governo do Marques de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, apenas perseguia as metas traçadas pela diplomacia lusa desde a Restauração em 1640, com a exceção de algumas tímidas tentativas de uma atitude mais livre de pressões internacionais.17Com a queda do valido de D. José, a decla rada política pró-britânica oscilava entre a fidelidade à Coroa inglesa e a pre tensão portuguesa de conservar a neutralidade à custa de acordos ambíguos, ora oficiais, ora secretos. Em 1792, o abandono do poder por D. Maria I agra vou a situação pois sucedeu-lhe como regente, o Príncipe D. João que deu
16 Ibidem . 17 Pombal recusou, por exemplo, a proposta de Charles Crompton, enviado de Jorge II, para negociar um novo tratado de comércio que daria à Inglaterra o privilégio de negociar escra vos no Brasil.
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início a uma dúbia e ineficaz neutralidade. As tensões entre Inglaterra e França aumentaram levando a avanços e recuos para o frágil Portugal: apoio à esqua dra inglesa em Alexandria, entendim ento difícil com Napoleão Bonaparte, imposição, por esse, do cancelamento da aliança luso-britânica, ultimato do imperador francês seguido de tropas espanholas na fronteira portuguesa, in denização paga em 1803 para evitar a invasão francesa em solo pátrio e, em 1806, expulsão da família real para o Brasil. A conjuntura econômica18 era marcada, por sua vez, por características d e terminantes. Por não produzir o suficiente para o consumo interno, Portugal dependia, desde há muito, dos mercados ingleses, holandeses e franceses. Sem se preocupar com as exigências do futuro, a expansão do comércio marí timo colonial não correspondeu a um projeto econômico que privilegiasse o domínio das artes mecânicas ou da agricultura. Pombal tentou afastar a rica nobreza mercantil do comércio colonial, oferecendo-o a grupos burgueses. Mas não era fácil superar a secular crise que se abatera sobre a metrópole. As várias falências que se verificaram desde 1764 não foram compensadas pelas medidas tomadas a partir de 1770, a fim de evitar a importação de artigos de luxo. No reinado de D. Maria I, o comércio interno sofreu um rude golpe ao começarem a afluir produtos de origem britânica a preços muito baixos. A revolução maquinofatureira inglesa arruinou definitivam ente a indústria lusa aos fins do século XVIII. Vitorino Magalhães G odinho19 acrescenta que nos dez últimos anos do Dezoito e primeiros dez, do Dezenove, os produtos agrí colas aumentaram brutalm ente de preço e, por sua vez, Míriam Halpern P e reira esclarece, ainda, que os benefícios da exportação colonial em torno do algodão era quase integralm ente efetuado por comerciantes ingleses, em bar cos ingleses tendo os seus lucros canalizados para os cofres dos banqueiros ingleses. Os personagens da “Serração da Velha” (camponeses, jornaleiros, donos de pequenas oficinas, transportadores de gêneros, vendedores ambulantes, rendeiros, artesãos, tendeiros, criados domésticos, pescadores, mendigos, vadios, etc.) parte integrante do conjunto mais vasto da população e conse qüentem ente mais diversificado pelas profissões que executavam, sofriam diretam ente os efeitos desta situação. A crescente, mas tímida, urbanização do país, promovida depois do terremoto que destruiu Lisboa em 1755, soma da às dificuldades de enriquecim ento e a escassez de ligações inter-regionais produziu uma onda de mendicância e pobreza nos centros mais “ricos” . Como se verifica em vários testem unhos de época, a proliferação da miséria era '* Em prestarei, aqui, considerações tecidas por Teresa Bernardino cm Sociedade e atitudes mentais em Portugal (1777-1810). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1982, p. 31 c passim. 19 Ver seus A estrutura da antiga sociedade portuguesa. 3.“ cd., Lisboa, 1977 c Prix et monnaies au Portugal (1750-1850). Paris, 1955.
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alimentada pelos próprios poderes públicos. Beckford, em visita à Lisboa em 1787, escrevia: “De todos os bairros da cidade vinham chegando bandos de mendigos para tomarem o seu lugar às portas do palácio, e esperarem a saída da rainha; porque sua M ajestade é mãe indulgentíssima destes im prudentes filhos da ociosidade e raras vezes sai na sua carruagem sem lhes distribuir consideráveis esmolas”.20 O sentimento religioso era uma constante, e o período que enfocamos nesse ensaio encontra-se longe do combate levado a cabo, em outros países euro peus, contra toda e qualquer crença que se distanciasse da Razão. Teresa Bernardino21 explica que em Portugal as superstições mantinham-se arraigadas aos dogmas religiosos e estes não as repudiavam, pois eram a condição das de voções, das dádivas e dos ofícios que abrilhantavam a instituição religiosa. Se gundo ela, a temida difusão das idéias ateístas, o gosto do luxo e dos prazeres sensuais, a fuga à moral tradicional não reduziam, antes estimulavam as autori dades eclesiásticas a pretenderem salvaguardar as tradições pias e devotas. Mes mo a poesia satírica proliferava, insistindo na degradação dos bons costumes e endossando o processo de pietização da sociedade. O caráter da exagerada sen sibilidade religiosa lusa era sublinhado por inúmeros observadores e viajantes que então percorriam o país. Todos são, todavia, unânimes em qualificar a exterioridade da religiosidade portuguesa; o culto era mais uma atitude exterior do que o cumprimento de preceitos como afirmava Châtelet no seu Voyage en Portugal de 1793. Ruders, em seus relatos escritos entre 1797 e 1802, sublinha va as conversas, acenos, risos e barulhos diversos que caracterizavam as festas religiosas. Quanto à celebração da Quaresma, época da Serração da Velha, é Jean-Baptiste Carrére quem a descreve em 1792: “Na Quaresma realizam-se oito procissões, uma em quarta-feira de Cin zas, seguida de outras as sextas-feiras. A de quarta-feira de Cinzas é a mais concorrida, decerto por ser a primeira. Participam nelas homens de todas as classes envergando compridas opas brancas, vermelhas, cinzentas, roxas e azuis, com murças das mesmas cores, em punhando bordões em forma de círios, nos quais se vão apoiando. As imagens de diversos santos, varia m ente vestidos, representam alguns passos das suas vidas e são conduzi das em andores. A espaços, figuram no préstito grupos de músicos vocais e instrumentais. Os frades fecham estas procissões dando a impressão de se ocuparem menos do ato religioso a que presidem do que do prazer de verem e serem vistos, olhos fitos nas janelas, mirando, com qualquer coisa de ávido, as mulheres que as enchem. As procissões assemelham-se todas e quem tenha visto uma pode dispensar-se de ver as outras. Um capuchi 20 A cortc dc D. Maria I, Correspondência dc Bcckford (1787), p. 162. 21 Op. cit., p. 103 c passim.
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nho francês, assistindo a uma destas procissões, perguntou-me, um dia: «Quem assiste à procissão está rezando?» — «Não», respondi, — «Nem tampouco os que vão nela», me replicou. E, com efeito, as procissões são atos religiosos sem orações.” Na quarta-feira da quarta semana da Quaresma, quatro semanas depois da procissão presenciada por Carrére, tinha lugar a Serração da Velha. Uma série de folhetos de cordel dão o tom da brincadeira que fechava o ciclo de peni tência e recolhimento da Quaresma. Vejamos alguns títulos: “Relação curiosa da fugida que fez uma velha para o deserto, com temor de ser serrada na presente quaresma de 1785”; “Novo Testamento que fez Maria Quaresma a Bexiga, natural e moradora de Belém e que vai este ano de 1755 a sarra”; “D isputa entre duas velhas Isabel Fernandes e Catarina Lopes dando uma à outra a notícia de que havia ir a sarrar”. “Sarrar”, para definir “serrar” , existe em Portugal desde 1326 segundo o Elucidário das palavras, termos efrases, de Frei Joaquim de Santa Rosa a de Viterbo22. Os documentos por nós encontra dos fazem parte do repertório de descrições do dito folguedo. “
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Um folheto anônimo datado de 1752 e impresso na Catalunha por Fran cisco Guevarz sublinha o aspecto cômico-jocoso do ritual em torno da morte da Quaresma. Traz no frontispício, além do título, a gravura de um vaso de flores.23 Os folhetos deviam circular durante a realização do folguedo e tra ziam impressos os diálogos encenados pelo figurante vestido de Velha ou por quem emprestava sua voz à boneca em tamanho natural que a representava. Intitulado “testam ento”, descreve em rimas alternadas ou emparelhadas, as ultimas vontades da Velha. Tal como os testamentos da época, o da Velha exprime os vínculos com o Além e o grupo social em que está inserida — ou melhor, do qual é o duplo. Invocando a presença do filho “Feliciano”, seu “herdeiro” e “testam enteiro”, ela roga que suas disposições sejam cum pri das para que “com contentam ento, Vá minha alma a bom lugar” . A primeira parte dos versos referem-se exclusivamente ao ritual da morte. A Velha pede “um enterro grave, com bastante cera do Algarve, bastante frades e capados, não lhe esquecendo os gatos pingados...” . Na sua condição de membro das classes subalternas pede “a Pedro Rodrigues por esmola, me m ande em pres
22 A primeira edição é de 1792. A consultada foi fac-similada cm Porto/Lisboa, Livraria Civi lização, p. 548. 23 “T estam ento de huma Velha que se acha na cidade de Lisboa de idade de mil e setecentos e cincoenta e dous annos cerrada por M onsieur de los Ticm pos à vista de toda a célebre matotage, Catalumna en Ia Im prent de Francisco Guevarz”.
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tar uma paviola, pois não acho nesta terra nenhum patife, que me em preste uma tum ba ou esquife”. Os pobres eram geralmente transportados para os cemitérios em tabuleiros de madeira ou redes, sendo enterrados nos lugares menos nobres como, por exemplo, os pátios externos das igrejas. Seu interior e as proximidades dos altares cabiam aos poderosos. Com ironia, a Velha pede, ainda, para ser enterrada por “quatro gatos pingados” ao som de “campainha, cortiço e serra”, instrumentos responsáveis pela algazarra e barulho infernal que acompanhavam o ritual da serração. Sua agonia devia ser retardada pelo cortiço que lhe servia de corpo, “cortiço [esse] duro como aço, para se ter de vida mais um pedaço” e pelo serrote feito de manteiga “pois serra de mantei ga e cortiço de aço, não me chega tão depressa ao cachaço”. A introdução relaciona-se com a obsessiva presença da morte na psicologia social do século XVIII.24 A incerteza relativa ao futuro era acentuada nos ser mões dominicais e festivos, nos livros de piedade e nos catecismos sempre preocupados com o medo do demônio, a consciência do pecado e o terror do inferno. As missas cantadas com responsos, visando assegurar o bem da alma após a morte, eram substituídas, durante a serração, pela algazarra das sinetas. As preocupações com o destino do corpo, que, nos testam entos tradicio nais, levavam o moribundo a precisar o local da sepultura eram trocadas pela presença satírica da padiola. Os acertos financeiros, sempre mencionados nos testamentos, perm item à Velha nomear seus colegas de infortúnio e pobreza. Ao “sardinheiro”, por exemplo, deixa a campainha da festa “para atrair clien tes” quando for vender seu peixe. Ao “M anuel Inácio, o barbeiro, cento e cinqüenta em dinheiro”; ao sapateiro deixa uma esmola “para comprar uma meia sola”. Ao “tendeiro”, “um bispote [um urinol] e um fogareiro”; Ao serrador, “um enxergão e um cobertor”; Ao “vizinho tanoeiro, um lençol velho e um travesseiro”; A Maria dos Passos que dê ao escrivão doze abraços”. Os artesãos, gente certam ente envolvida com a organização dos festejos da ser ração, desfilam no texto. São fragateiros, sapateiros, peixeiros, contratadores de laranjas, engomadeiras, mendigos coxos e manetas, taberneiros, confeitei ros, alfaiates, mestres-escolas, espadeiros, etc. que nos dão idéia do conjunto mais vasto da população. Nele, os artífices eram o grupo com maior coesão, nascendo daí, provavelmente, a organização da festa. Eles são nominalm ente citados e muito provavelmente conhecidos na comunidade pela realização do animado folguedo: João Duarte, Pedro Rodrigues, Maria Faleiga, M anuel Antunes, Miguel da Costa Moreira, Domingos Dias, Sebastião Pereira, Fran
24 Sobre a morte no Antigo Regime ver Philippe Ariès. 0 homem diante da morte. Rio de Janei ro: Francisco Alves, 1982, Michel Vovelle. La mort et 1’Occident de 1300 à nos jours. Paris: Gallimard, 1983. Para o Brasil ver o m eu capítulo “Ritos da Vida Privada”, in: História da vida privada no B rasil — cotidiano e vida privada na América portuguesa. Laura de Mello e Souza (org). Direção Fernando A. Novais. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
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cisco Salazar, M anuel de Almeida, Maria Marques, Luís Junqueira, entre outros. O inventário de bens distribuído pela Velha é riquíssimo, permitindo ao historiador conhecer os detalhes da vida material deste grupo social: canu dos de pós de cheiro, cabeleiras de rabicho, alguidares, paus de leme para uma embarcação, peles de carneiro, bezerros, “um cação e uma raia, fazendoa de molho de alho muito bem ”, “uma carapuça e um chapéu”, tabuleiros c peneiras velhas, tabaco, um jogo do taco, bexigas velhas, “trastes”, tam bore tes, cadeiras, pevides de uma cabaça, toucador, espelho e pente, “fergideiras e púcaras”, fusos e rocas. Há, também, demonstrações de simpatia como as “quatro arrochadas no espinhaço” de um “barbeiro madraço”; ou de antipa tia, como a endereçada a José N unes da Gama: “se lhe dê uma dúzia de a açoites na cama”, declara a furiosa Velha! Há, também, recomendações aos membros do grupo: “Que Maria Francisca Carregada, que se endireite e não ande acorcovada”. Como qualquer testam ento tradicional, o da Velha term i na por expressar sua sinceridade, afirma “que está em seu juízo e em seu sentido”, subscrevendo e assinando o dito texto. Um segundo docum ento situa-nos, ainda melhor, em relação aos festejos da serração. Impresso em Lisboa, de autor anônimo, portando a marca da licença da Real Mesa do Desembargo do Paço, instrum ento de censura cria do em 1768 por Pombal,25 o folheto traz, ainda, uma belíssima gravura.2'1Esta volta a repetir o título mas com equívoco ortográfico. No frontispício de uma fachada, lê-se “saracão da Velha”. De duas janelas, casais vestidos com ele gância, os homens portando tricórnio, observam a cena que se desenrola na parte inferior. Suas mulheres descarregam baldes ou penicos (“cuias”, como quer Câmara Cascudo) de água sobre quatro outros personagens, evidente m ente muito jovens. O primeiro está munido de uma escada, o segundo sus tenta um enorme serrote, o terceiro empurra a figura da Velha esculpida em cortiça. O quarto deixa-nos na dúvida se se trata de uma autoridade (um mi liciano), ou se de alguém fantasiado com um instrum ento na mão direita. O prólogo não deixa dúvidas. A serração é pura diversão: são “estrondos da grande galhofada” , “são enganos da corja dos patetas, caindo em lograções por vários modos, para chacota e riso de todos nós, divertim ento alegre e muito preciso, para toda a pessoa de juízo”. O objetivo do autor é uma descrição das diferen tes etapas da festa, descrição cujo clímax está bem metaforizado na gravura mencionada. O folguedo começava por um brado de “alerta” que era lançado por jovens
25 A Real Mesa Censória do Desembargo do Faço põe em segundo plano as censuras do Ordinário e da Inquisição, tão ativas até então. Ver a esse respeito o capítulo “A criação da Real Mesa Censória” por Laureano Carreira, em seu 0 teatro e a censura em Portugal. Lis boa: Im prensa Nacional-Casa da Moeda, 1980, p. 52 e passim. 2(’ “Serração da Velha, Lisboa, na Nova Impressão dc M. J. dc Barros” .
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estudantes, “calouros que se nutrem de petas e agouros” . Assim, “carregados de bancos e escadas” que mais tarde serviriam para assistir, confortavelmen te, à leitura do testam ento da Velha, percorriam as ruas numa “turba fatal” ou numa “corja marotal”. Seu divertimento consistia em enganar pessoas sim ples como “a tosca cozinheira, que vem de sua aldeia de lampeira”, obrigada a confessar, depois de uma bateria de “mil assuntos para o riso”, “que lhe pesa muito pouco a sua bola” . As próximas vítimas foram as “criadas lambisqueiras” . Dizendo-se “cabeleireiros”, os estudantes “a murros penteiam-lhes o cabelo, deixando-as “esgadelhadas” e “enganadas” . Ostentando, à guisa de bandeiras, vassouras “encharcadas das imundícies da rua”, os jovens iam des pertando o “povo do letargo; a todos os brejeiros convocando”. O chamado era logo correspondido, pois “das lojas garotos aprendizes” carregando “al mofarizes, tachos, bacias e chocalhos, chuços, lanças, pincéis, canas e ma lhos”, ou seja, instrumentos de trabalho, com os quais fazem grande alarido, enchiam as ruas. O autor adverte, sisudo: “A gente d ’outra classe, e recolhida, não deve andar envolta nesta lida”. Ou ainda: “Não deve um pai levar a filha honesta, pois a vai sujeitar a muito perigo”. Para finalizar a introdução e antes de dar a palavra à Velha, o autor se diz “aflito de aturar, a turba de rapazes a gritar, com vozes de pipias desmarcadas, entre mil ameaços de pedradas” . A balbúrdia e as violências chegavam ao ponto máximo. Era chegado o mo m ento do testam ento da Velha. Dizia essa: “Dobre já o papel, pegue na pena Em nome e proteção da benta hora Fazer meu testamento, quero agora Por me der este ato mui preciso Em quanto claro tenho o meu juízo.” Vemos repetir-se todo o rito que cercava o momento da morte. Para seu testamenteiro, nomeia “o tempo, gastador do mundo inteiro”. A ele pede que o seu enterro se faça com ostentação, mas “de graça” . Insiste, também, para que não a enterrem “de nenhum modo” se não quando estiver morta de todo, que não quero — admoesta — estar na cova, metida meia dentro, meia fora”. Não deseja um enterro “à carreira” e quer ser “amortalhada” “na mes ma nudez em que foi criada”. D iferentem ente da Velha do folheto anterior, essa diz não ter o que m ate rialmente testar, mas deixa ao público e aos leitores, uma série de conselhos. Os conselhos, por sua vez, refletem o am biente de extrema religiosidade que mencionamos acima e os deslizes com umente cometidos por falsos devotos. “Ao libertino Pai que se desvela De ouvir cantar ao filho, a mirontela
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E não o leva à missa ou à doutrina Lhe deixo a este um mês de disciplina E a toda aquela louca e bacharela Que na Igreja está dando à taramela Na tarde do Sermão fazendo-se alvo Para dar atenção algum papalvo Sendo escândalo d ’alguns e de outros, riso Lá falaremos no dia do Juízo [...] Aquele que costuma em casa sua Enquanto as procissões andam na rua Trocar a devoção e o sentimento Em galhofas e festas de indecência.” A seguir, a Velha distribuía justiça e avisos morais. “Deixo a todos que contam muitas petas, trezentos bofetões de cem gavetas”; “A todo o gabanista e farsoleiro, lhe deixo uma mordaça um ano inteiro”; “A todo o gastador que é glutão, lhe deixo uma trem enda indigestão”; “A minha terça deixo toda inteira, a todo que morrer na quarta-feira”, etc. Assumindo-se como Quaresma, a Velha encerra: “N inguém chore por mim, não tenham pena, pois lhe fica a Quaresma mais pequena” ! O terceiro documento, intitulado “Desengano dos rapazes ou sucessos da serração da Velha deste presente anos de 1786”27 traz, como o anterior, uma bela gravura no frontispício do folheto. Nela a Velha, vestida à romana e ins talada numa bela carruagem cujas rodas trazem os signos do zodíaco (touro e aquário), é puxada por uma espaventosa fênix. “E t pour cau se...” pois como informa a seguir, “sendo Fênix de si própria, porque renasce da cinza, passa sim, mas não acaba, tantas mais vezes renasce, quanto mais da morte avisa”. O texto, sempre em versos, é bem mais simples e traz, de início, informações sobre a relação entre o impresso e o leitor. Buscando interlocução direta (“Meu amigo leitor, Leitor querido”), o prólogo, aqui, jocosamente chamado de “paralogo”, solicita um gesto de boa vontade do leitor: “Esta obra jocosa aqui te entrego, usa da compaixão com o pobre cego, gaba-lhe este papel, diz que é bom, inda que não lhe aches tom nem som”. Os folhetos, amarrados por um barbante ou cordel à crina de mulas eram vendidos por cegos, graças à espe cial licença dada por D. João V que os reuniu na Confraria de Jesus dos H o mens Cegos.28 O preço do “papel”, nome que se dava em Portugal aos folhe tos de cordel: “mil vinténs” ou “vintém ”. O texto informa ainda a data da
27 Impresso em Lisboa, na oficina de Domingos Gonçalves, ano de 1786 com licença da Real Mesa Censória. 28 O já mencionado artigo dc Diogo Curto ramada dem onstra as tensões c conflitos entre os cegos vendedores, editores e livreiros na venda dos folhetos dc cordcl. Op. cit., p. 299-329.
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festa, (“vinte e dois de março”) uma quarta feira fixa no calendário festivo (“sempre cai esse tal dia”). A festa é descrita como um “ajuntam ento de galegos e rapazes” que lá “pelas sete horas, quando já anoitecia” agarravam a Velha “cheios de imensa alegria, tomaram-na entre dentes, entraram a que rer parti-la” . A “santa velhinha” reagia dando bons conselhos enquanto os jovens gritavam, “serre-se a velha” e conduziam-na para a “Praça da Ale gria”. O folguedo, incluía, como se vê nesse texto, a participação de “mo ças... grandes e pequeninas” e de “basbaques” armados de paus a fim de “virar tripas e ver da Velha o bucho” . A presença de campainhas e chocalhos era uma constante. A serração terminava pontualmente: “Acabou de dividirse, quando as doze se cumpria, da meia noite da noite, de que enche a quarta na quinta” . No início do século XIX, mais exatamente em 1806, o folheto sobre a ser ração já tinha autoria. O “Aviso a pastronos e pastranas, caloiras e caloiros pela história da serração da Velha, Quaresma clemente, neta de Carnaval Leitão e Bisavó da Páscoa Cordeira” foi escrito por Francisco Mariano do Advento — um nome provavelmente fictício, pois o Advento segue-se à Páscoa, — e é impresso na Impressão Régia. A ênfase na descrição é muito forte. Ficamos, assim, sabendo que, ao cair do sol, “vadios correndo em vários magotes, à luz d ’acesos archotes, davam gritos e assobios aos engodados pichotes” . Ao som de chocalhos, essa “gente solta” invadia as ruas na “costumada revolta” . Al guns carregavam escadas, outros bancos e outros ainda cadeiras para melhor assistir ao folguedo. A presença de “galegos”, como animadores do evento é marcante. Incentivados por patroas e amos, as empregadas domésticas e os “aprendizes e caixeiros”, “aprendizes sapateiros”, “lacaios e cocheiros” juntavam-se ao rebuliço da festa “onde se tornam meninos” . O ponto de encon tro da serração era o “cais do Carvão”, possível lugar numa geografia imaginá ria da cidade. A festa tinha regras: “As casadas com decência, o seu lugar tomarão; as solteiras em mais guarda, por modéstia ficarão, as viúvas por mais fracas, dá-se-lhes assento no chão; os galegos nos chouriços, as nádegas pou sarão, ficando bem aprumados, com suas cangas na mão. Os sabujos dos rapa zes, nas escadas treparão, para que todos desfrutem, todo o primor da fun ção”. A instalação do povo, seguia-se a predicação da Velha. Um rapaz vestido de Velha, “entre muita choradeira” e a voz trêmula cumpria o ritual de dar bons conselhos. Os temas, como já foi dito, eram de ordem moral e referiamse às práticas religiosas. Vale a pena repeti-los: “Tam bém muito me assanhava E com bastantes razões, Ver no tem po dos Sermões Crianças quase de baba Em destras namorações
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Chegando o seu pundonor A coisa tão arrojada Que uma prédica acabada Criticam o pregador Sem do sermão ouvir nada Que direis das procissões que renovam sentimentos Vendo mancebos aos centos Nas janelas e sotões Com os olhos e pensamentos E das senhoras, mulheres Cobertas d ’alvos arminhos De mil cabeças vazias Que para ser como elas se embonecam nestes dias, etc.” Ao final da preleção, e “dado certo sinal”, jovens de ambos os sexos em bo lavam-se, trocando empurrões, pontapés e tapas. Os mais violentos acabam na prisão do Limoeiro, enquanto as jovens — lusitanas Cinderelas — queixam-se de sapatos perdidos e chinelas rotas. No último documento, o aspecto moralista volta a adensar-se. O discurso da Velha incide, mais uma vez, sobre a exterioridade dos comportamentos religiosos. Encarnada na Quaresma bate-se, como aliás o faziam, na mesma época, as autoridades religiosas, contra a degradação dos costumes. Talvez o medo da morte já estivesse mais domesticado pois abandonam-se as preleções sobre o enterro e o destino do corpo. Algumas reflexões se impõem no cotejo dos documentos. A primeira delas diz respeito a função social mesma da festa e o tempo ritual do ano. Sabemos que o Carnaval, ou Entrudo, como era mais conhecido era uma das mais po pulares festas dos tempos modernos. Ele culminava na semana da quartafeira “gorda” ou de Cinzas. Aí, os jovens e celibatários multiplicavam seus folguedos, danças e cantorias, sob o olhar benevolente dos mais velhos, que muitas vezes a eles vinham reunir-se. O mundo, como tantos já disseram, ficava, então de “ponta cabeça”, pois os jovens tinham consentim ento tácito para se entregar a todo o tipo de excesso: mascaradas, canções satíricas, em briaguez e à serração da Velha. A Igreja tentara controlar e depois policiar tais comportamentos, sobretudo a partir do século XVII.29 Em vão. Tais práticas estavam profundam ente enraizadas entre as populações para as quais elas representavam uma forma de equilíbrio cultural c emocional. A luta contra a
29 Ver sobre a questão o livro de Ronaldo Vainfas, 0 trópico dos pecados. Rio de Janeiro: Campus, 1989, especialm ente a Parte 1, “Os dois mundos na encruzilhada do pecado” .
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Velha, embora travada em solo luso, remete ao célebre quadro pintado em Flandres, por Brueghel, o velho, intitulado Combat de Carnaval et de Carême (1559). M ontado num carrinho de rolimãs, a Velha Quaresma vem de en contro ao gordo Carnaval, ele mesmo enfiado num tonel, como se ambos participassem de um torneio medieval. A direita do quadro encontram-se as múltiplas atividades do tempo carnavalesco e à esquerda, as companheiras do tempo quaresmal: penitências, esmolas, mortificações, preces e o jejum que interditava aos fiéis a ingestão de carne e ovos. Em Portugal, contudo, as conseqüências diferem das apresentados na tela de Brueghel. Se no restante da Europa o gordo Carnaval é tantas vezes sacri ficado e queimado em praça pública, a Velha é, aí, maltratada e derrotada. Sua representação está associada à fome, mas tam bém e sobretudo à morte. Esta, talvez, seja uma das especificidade do país à beira-mar plantado, onde a morte era uma companhia familiar e impressionante para homens e m ulhe res do século XVIII. O sofrimento era onipresente: a Inquisição ainda ativa, os horrores dos autos-de-fé, as guerras contra a Espanha e França, as crises frumentais ao sul do país, as viagens marítimas sem volta, a pobreza e a misé ria, o atraso da medicina lusa. Não é à toa que as práticas mágicas como forma de resistência ao sofrimento foram tão utilizadas em Portugal, com visível recrudescimento da perseguição a curandeiros e feiticeiras no reino de D. João V.30 A Igreja, por sua vez, alimentava o fatalismo. Um livro como Senti mentos Afetuosos da Alma Para com Deus, publicado em Lisboa em 1787, entre via a morte “como a única finalidade da vida”. A sua chegada era mesmo desejada com ardor: “O morte! Vinde não vos demoreis”. A pressa de sair deste m undo — lugar de privações e misérias — era justificada pela esperan ça na aquisição dos verdadeiros bens do paraíso onde se gozava a plena felici dade eternam ente. O divino escutava e via o que cada ser humano fazia, e sua vingança era inclemente. Só grandes padecimentos poderiam apaziguarlhe a ira. As dores, perdas e horrores individuais explicavam o sofrimento Divino e vice-versa.31 N esse contexto, reação de jovens estudantes e traba lhadores contra a presença acachapante da morte e à sensibilidade religiosa excessiva é uma das razões mesmas da festa. Outra reflexão diz respeito ao crescente conteúdo moralizador nos conse lhos deixados pela Velha. A ênfase no combate aos “maus procedidos” relacio na-se diretamente com a passagem do período pombalino para a “Viradeira” de D. Maria, cujo palácio era — no entender de Oliveira Martins — “um con vento”, sendo a rainha considerada a maior beata que a educação jesuítica pôde inventar. Sem contar a fúria do intendente de polícia Pina Manique, especialis
30 Ver de Laura de Mello e Souza. Inferno Atlântico — demonologia e colonização. São Paulo: Com panhia das Letras, 1993. 31 Em presto aqui algumas idéias à Teresa Bernardino. Op. cit., p. 127.
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ta em condenar verbalmente os prisioneiros sem processo e instrumento feroz de uma política reacionária levada a cabo no período. O repressão aos maus costumes certamente influenciava o teor dos “bons” conselhos da Velha. “
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Em obra publicada por dois especialistas da história da cultura — Jacques Le Goff e Jean-Claude Schm itf!- — o charivari aparece como um fenômeno estrutural europeu no qual se entrecruzam questões relativas à sociedade, à festa, ao poder. Ao longo dos séculos, da Inglaterra à Romênia, da Espanha à Sardenha ou à França, da Itália à Alemanha, o charivari traduziu o ressenti mento das comunidades contra alguém, ou contra alguma coisa.” Nesta enor me carta geográfica da Europa, varrida e analisada pelos maiores estudiosos da cultura popular,’4 é como se Portugal não existisse. Não existindo, aí, con seqüentem ente, charivari. Esta modesta pesquisa comprova o contrário. A serração da Velha possui alguns dos elementos fundamentais que caracteri zam o charivari no mundo europeu. A começar pelo corte social na topologia dos organizadores e seus atores históricos: os jovens estudantes e artesãos. Trata-se, portanto, de um fenômeno de grupo social, ao qual a burguesia pode assistir ou acompanhar — caso, aliás, de dois documentos apresentados cm que há referências à “gente doutra classe” e à filhas de boa família... A obra em questão, da qual participam mais de sessenta historiadores e antropólogos, esclarece, contudo, que não existe definição canônica para o charivari, sendo este um fenômeno que varia segundo sua forma, sua função e história numa dada sociedade. Se formos analisar os aspectos formais da documentação portuguesa, per cebemos que uma das características estruturais que essa partilha com o cha rivari europeu é o simbolismo do barulho. Barulho que, como vimos acima, é feito com campainhas, sinetas, e instrumentos de trabalho como bacias, ta chos, malhos, chocalhos, misturados a assobios e gargalhadas culminando em “estrondos” ! Barulho ou “rough music” — como o denom ina Edward P. Thom psonvs — presente em outras manifestações do charivari europeu. N es tas, o barulho feito com o mesmo tipo de utensílios artesanais e domésticos
32 Le charivari. Paris: M outon La Hayc, 1981. 33 Vale lembrar que Claude Lcvi-Strauss em Mythologiques I Le cru et le cuit. Paris: Plon, 1964 traz um artigo interessante sobre a questão. Trata-se de “Charivari et bruit rituel”, p. 2924, no qual o autor compara as práticas repressivas cm torno dos casamentos fora da norma com as práticas em torno dos eclipses lunares. 34 Refiro-me a nomes como o dc Júlio Caro Baroja, Marc Auge, Cario Guinzburg, François Lebrun, Marc Soriano, E. P. Thom pson, Richard C. Trexlcr entre tantos outros. 35 Ver seu primeiro artigo “Rough Music: Ic charivari anglais”, in: Antiales E .S.C ., 27(2):282312, 1972, e o mais atualizado in: J. Le Goff & J.-C. Schmitt. Op. cit., p. 273-83.
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indicava a desaprovação contra casamentos desiguais ou relações invertidas na comunidade. Mas não são apenas estes os alvos, ou melhor, objetos do charivari. Na Occitânia francesa, o charivari tinha por alvo as pessoas idosas (“los vielhs” )v>e intitulava-se “Lo martelet” em função do barulho de marte lo ou ato de martelar a porta da casa dos detestados idosos a quem se queria atingir. Se na serração da Velha e o instrumento utilizado que determ ina o título do folguedo, no caso do “m artelet” encontra-se o mesmo procedim en to. Na Espanha, estudada por Júlio Caro Baroja,37 vê-se a repetição do fenô meno, agora com o nome de “cencerrada” graças à utilização de panelas, ta chos e chocalhos como em Portugal. Embora o charivari espanhol não fosse dirigido à Quaresma e sim aos noivos de idades muito diferentes, o hábito de vestir marionetes de palha que representassem o casal se mantinha. Tais m anequins, como a Velha, eram despedaçados e, depois, enterrados. Cario Guinzburg,-18 por sua vez, lembra que no tropel ensurdecedor da “mesnie H ellequin”, segundo ele, o fundo mítico da fase mais antiga do charivari, são precisamente os artesãos que fazem barulho com seus instrumentos: serra lheiros, pedreiros e, segundo o texto do século XIII por ele analisado, “ceterarumque mechanicarum artium sectatores”. A voz humana era empregada em coro com o barulho, de forma modulada, ora potente, ora violenta, em todas as manifestações estudadas. A produção de uma desarmonia sonora e gestual, seguidas de minucioso ritual na serração e morte da Velha, resolviam provisoriamente a questão que “perturbaria” a ordem social. Outra característica estrutural e formal do charivari é a ação e participação de jovens. Coube a Natalie Zemon Davis sublinhar o papel dos jovens em rituais de resistência ao longo da Idade M oderna” e sobretudo a função das festas em sua socialização. É complexo definir o que seja um jovem no pe ríodo moderno português, mas tomemos como base os grupos de aprendizes púberes, estudantes e celibatários até a idade de casamento. Estudos recen tes comprovam que a idade média de acesso ao casamento não era baixa e girava em torno de 26,7 anos em Lisboa40 o que dava aos grupos que organi
3<1 Ver o artigo de C athcrine Robert & Michel Valière. “Lo martelet, un charivari occitan à Lespignan”, in: J. Le Goff & J.-C. Schmitt. Op. cit., p. 56-63. 37 Ver o artigo de Júlio Caro Baroja. “L e charivari en Espagnc”, in: J. L e Goff & J.-C. Schmitt. Op. cit., p. 75-96. 38 Ver seu artigo “Charivari, associations juvéniles, chasse sauvage”, in: J. L e Goff & J.-C. Schm itt. Op. cit., p. 131-40. 30 Ver o seu já clássico Les cultures du peuple — rituels, savoirs et resistences nu 16e siècle. Paris: Aubier, 1979, especialm ente o quarto capítulo dedicado às associações festivas c inversões carnavalescas intitulado “La règlc a 1’envers”, p. 160 e passim. 411 Para maiores detalhes, ver José Vicente Serrão. “O quadro humano”, in: História de Portu gal, volume “O Antigo Regime”, coordenação de Antônio M anuel Hespanha, p. 49 e Robert Rowland. “Sistemas familiares e padrões demográficos em Portugal; questões para uma investigação comparada”, in: Ler História, J: 13-32, 1984.
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zavam a serração um perfil complexo. Esses grupos incentivavam a organiza ção de jovens por quarteirão ou por atividades profissionais, agregando, igual mente, os filhos de pobres que trabalhavam desde cedo para garantir a pró pria sobrevivência. Durante a serração, esses grupos afirmavam sua breve autonomia em relação aos adultos e aos patrões (“patronos e patronas”, como os denom ina um dos documentos) dando vazão ao riso e à irracionalidade à custa dos mais velhos representado na Velha. A excessiva licença não signifi ca, contudo, uma rebelião, mas a afirmação das diferenças de idade no viver cotidiano, um encorajamento à ordem natural das coisas. E melhor, significa, ainda uma explicitação das diversas e complexas responsabilidades da vida comunitária na forma de um rito de passagem que os integra à com unidade urbana. Poderíamos, ainda, acrescentar que, como nas “abadias de juventu de” italianas e francesas, estudadas por Davis, a tônica dos “bons conselhos” aí dados é uma constante. E quanto ao fundo, ou à função simbólica da Serração da Velha? Q uem é ela? Câmara Cascudo explica que tradicionalmente a Velha é uma entidade maléfica ou grotesca, intervindo nas estórias para a função malévola de per turbar a felicidade ou dificultar a conquista legítima de alguma coisa. Como permanência, nas tradições européias, misteriosa e cheia de poder, ela sim boliza a morte, as trevas, a fome.41 E de se com preender que numa celebra ção de jovens ela venha a incentivar a destruição e posterior regeneração do imaginário sobre a própria morte, tão presente no Portugal moderno. Com o crescimento urbano, o aum ento de violência e da miséria e das dificuldades de sobrevivência, os jovens purificavam seu grupo pela violência da festa, pelos barulhos e gritaria e pelos ritos aí cuidadosamente representados: julga mento, testam ento e morte da Velha. Num a batalha simbólica contra a morte eles celebravam o fim do inverno (em fevereiro, no hemisfério norte), o final da Quaresma e o aniquilamento da esterilidade, homenageando a chegada do verão e da fecundidade. A inversão carnavalesca àostatus da poderosa morte, personificada, na festa, numa frágil Velha serrada, era uma maneira de pensar as noções mesmas de passagem do tempo nesta sociedade. E lamentável que não tenha obtido maiores detalhes sobre a serração da Velha. Detalhes que pudessem ter sido escrupulosam ente anotados e pos tos, em seu contexto, a fim de me permitir uma reconstituição mais completa da vida quotidiana da comunidade (suas relações profissionais, as tensões socioeconômicas, por exemplo) a fim de melhor decifrar seu vocabulário sim bólico ou de lê-los como um texto que refletisse a vida social e doméstica dos lisboetas do século XVIII e início do XIX, capturando o que de fato incomo dava: a fome, a pobreza e o medo da morte. Dentro de muitos limites pro
41 Op. cit., verbete “Velha”, p. 786.
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curei, aqui, tão simplesmente, apresentar as informações que obtive e igual mente, algumas interpretações que não pretendem ir além de um honesto e prudente ensaio. Mas, depois deste esforço, penso que posso clamar em tom festivo o que os nossos colegas europeus ainda ignoram sobre o mundo lusobrasileiro: “Habemus Charivari!” □ □□ M a R Y D E L P R i o R K é professora de História do Brasil no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, autora e coordenadora de quinze livros, entre os quais Festas e Utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1993. R e s u m o . O s estudos históricos vêm demonstrando que o dia seguinte das festas não é o de uma nova ordem social. Em geral, as classes sociais dominantes utilizam os transbordamentos da festa como remédio preventivo contra os males da rebelião, e deste papel, instituições como o Estado moderno, a burguesia e a Igreja estão cien tes. Mas nas festas de nítido caráter popular, ao menos no nível dos atores, percebese, mais, uma vontade consciente, uma organização minuciosa, uma extrema codifi cação e ritualização de discursos, gestos e seqüências rituais. Vamos falar de uma festividade com essas características. Trata-se da “Serração da Velha”. O espaço des sa pesquisa é Portugal entre 1752 e 1806. A cerimônia caricata de serrar a velha realizava-se durante a Quaresma vindo até o sábado de Aleluia: “Um grupo de foliões serrava uma tábua, aos gritos estridentes e prantos intermináveis, fingindo serrar uma velha que, representada, ou não por algum dos vadios da banda, lamentava-se num berreiro. A Velha é uma entidade maléfica ou grotesca, intervindo nas estórias para a função malévola de perturbar a felicidade ou dificultar a conquista legítima de algu ma coisa. Como permanência, nas tradições européias, misteriosa e cheia de poder, ela simboliza a morte, as trevas, a fome.
Imagem sem título. Praça Tiradentes, Ouro Preto. Original manuscrito do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, ca. 1785-1790. Nestor Goulart Reis (com a colaboração de Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno & Paulo Júlio Valendn Bruna. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo-Imprensa Oficial do Estado-Fapesp, 2000 (Uspiana — Brasil 500 Anos), p. 216. Foto André Ryoki.
O ENTERRO SATÍRICO DE UM GOVERNADOR: FESTA E PROTESTO POLÍTICO NAS MINAS SETECENTISTAS A
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nada sabemos a respeito das festas de caráter político não oficial que integravam o cotidiano das Minas na primeira m etade do sé culo XVIII. Se para as festas oficiais, organizadas pelo poder local, como o Triunfo Eucarístico e as Exéquias reais,1 existem vários estudos, ancorados num a documentação farta e acessível, raras são as fontes que versam sobre a festa popular, de cunho não oficial, realizada nas fímbrias da estrutura ad ministrativa, dificultando — senão inviabilizando — uma análise mais siste mática dos modos mediante os quais a sociedade mineira lançou mão dos festejos e ritos festivos para expressar suas concepções e valores políticos. Alguns autores têm abordado as revoltas mineiras a partir de uma estrutu ra ritualística, buscando revelar os padrões de ação que legitimam e justifi cam a ação popular. Carla Anastasia, por exemplo, inspirada pelos estudos de Natalie Z. Davis, Charles Tilly, George Rudé, entre outros, argumenta que os levantes ocorriam segundo princípios de organização muito claros e defini dos, tributários de uma tradição festiva e carnavalèsca presente na cultura popular do Antigo Regime. Em vez da irracionalidade intempestiva e desor denada, ela constata que a rebelião revela uma ritualística peculiar, ordenada e estruturada em torno de valores políticos consensuais. Assim, “o padrão dos q u a s e
1 Sobre o assunto, ver Afonso Ávila. Resíduos seiscentistas em Minas: textos cio século de ouro e as projeções do mundo barroco. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1967; e Laura de Mello Souza. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século X V III. 2.J ed. Rio dc Janei ro: Graal, 1986.
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motins das Minas nas primeiras décadas dos Setecentos não foi muito dife rente do padrão geral do comportamento da multidão durante os food riots e tax rebbelions europeus. Tam bém nas áreas mineradoras, homens encapuzados, ao som de tambores, destruíam as propriedades de suas vítimas e os documentos oficiais que simbolizavam sua sujeição; queimavam seus inimi gos políticos em efígie, matando-os simbolicamente. Assim, explicitava-se uma das importantes características do comportamento da multidão pré-industrial — a preservação, no mais das vezes, da vida humana, restringindo-se os levantes à destruição da propriedade” .2 Todos estes elementos estão presentes, por exemplo, na Revolta de Vila Rica, ocorrida em 1720, como reação à instalação das casas de fundição sob o governo do Conde de Assumar. Mesclando elementos carnavalescos, como a máscara e a paródia, os revoltosos transformam a revolta numa festa popular: o toque de sinos, as correrias, a simulação da aplicação da justiça, a galhofa, a violência, a exploração do espaço urbano como arena de confronto, perten cem a um território comum tanto ao motim quanto à festa.’ Derivadas da festa, os funerais simbólicos, com o enterro, o testam ento e a missa para a alma do defunto, constituem um gênero ainda inexplorado, a despeito da extensa historiografia existente sobre o tema para a Europa mo derna. Tal lacuna talvez justifique uma abordagem centrada em uma única fonte — procedimento arriscado mas que pode fornecer subsídios para análi se futura que, incorporando novos materiais, se pretenda mais sistemática. O docum ento que sustenta a presente investigação é a carta escrita pelo Capitão-Mor Nicolau Carvalho de Azevedo, em setembro de 1732, na qual informa ao ex-Governador D. Lourenço de Almeida a circulação de papéis jocosos e satíricos em Vila Rica, logo depois de sua partida.4 E um longo papel, de mais de vinte folhas, em que o autor descreve, muito superficial mente, o teor destas sátiras e a realização do enterro simbólico de D. L ouren ço. É com base nestas parcas e fragmentárias linhas que tentarei em preender uma reflexão sobre a natureza e o significado destes eventos, tentando arti culá-los com o imaginário político das Minas setecentistas. E preciso obser var que o docum ento não reproduz ipsis litteris o conteúdo dos papéis satíri cos, limitando-se tão-somente a fazer uma referência genérica a eles.
2 Carla Anastasia. Vassalos rebeldes: violência nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998, p. 41. 3 A melhor fonte para o estudo da revolta de 1720 do ponto de vista da ritualística continua a ser o Discurso histórico e político sobre a subtevação que nas Minas houve no ano de / 720. Estudo crítico, estabelecim ento do texto e notas por Laura de Mello c Souza. Belo Hori zonte: Fundação João Pinheiro, 1994. 4 Biblioteca Nacional de Lisboa. Coleção Pombalina, “Trcslado de uma carta que o capitãomor Nicolau Carvalho de Azevedo mandou do Rio de Janeiro a D. Lourenço de A lm eida.. códice 672, fs. 145ss.
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O docum ento relata que, após a partida do governador, promoveu-se o enterro simbólico de D. Lourenço, seguido por uma missa celebrada em fa vor de sua alma e a circulação de um diálogo em forma de testamento. Tanto o funeral quanto o ofício religioso teriam acontecido no Campo de Santa Quitéria, sob a organização de um Pedro da Costa Guimarães, velho desafeto do falso defunto. Para além disso, passaram a circular papéis satíricos em forma de carta, e as pessoas reuniram-se nas praças para relembrar os episó dios mais escabrosos do governo de D. Lourenço. Esta é, em linhas gerais, a descrição feita pelo Capitão-Mor Nicolau Carvalho de Azevedo. O tema central das sátiras é o enterro do governador: segundo o capitão, chegou-se mesmo a correr um “papel injurioso fazendo nele uma procissão de enterro a D. Lourenço em que metiam várias pessoas principais para o assistirem” . Na tradição carnavalesca européia, o funeral contava com um boneco feito de palha, vestido com roupas que caracterizavam o pretenso morto, usando, muitas vezes, uma máscara para reforçar a identificação. Teria a versão mineira também um manequim de palha? É impossível saber; de qualquer modo sabemos que se tratava de uma paródia alegre e festiva, com os elem entos típicos do funeral, como a procissão e a presença de indivíduos de projeção social. Aliás, este aspecto — a participação de “pessoas princi pais” — reaparecerá mais adiante, quando tratarmos do público a que se des tinava a festa. Enterrado simbolicamente o governador, supunha-se que sua alma estava a arder no fogo do inferno, em castigo dos pecados cometidos. Mau governa dor, D. Lourenço também aparece aqui como mau cristão, a quem as preces e orações pouco podem fazer, tamanha a extensão de suas iniqtiidades. Daí a comicidade da missa — na qual, certamente, havia alusões ao procedimento condenável do falso falecido. Prática comum na Europa moderna, o enterro simbólico incrustava-se numa tradição institucionalizada e ritualizada que, proveniente de uma matriz por tuguesa, disseminou e floresceu nas Minas ao longo do século XVIII. Apesar disso, como observa Yves-Marie Bercé, as festas não são intemporais nem isoladas, e seus gestos não são inseparáveis de seu meio e de sua época.'1 Reatualizadas no contexto mineiro, o enterro tinha por objetivo sepultar de finitivam ente um passado que se considerava terrível e doloroso, marcado pelas atrocidades de um governador venal e tirânico. Cum pre observar, a esse respeito, que D. Lourenço foi um governador particularmente impopular, tendo sido alvo de freqüentes e severas críticas e denúncias ao Conselho Ultramarino. Foram doze anos em que representações e petições, versando
5 Yves-Marie Bercé. Fête et révolte: des menta/ités populaires dtt XVIe. (tu XVIHe. sièc/e. Paris: H achette, 1994, p. 55.
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na maioria das vezes sobre corrupção e venalidade, subiram até D. João V, a exigir devassa e correção. As cartas podiam tanto com plementar um festejo quanto circular avulsas. No primeiro caso, havia a necessidade de descrever o enterro e garantir sua publicidade através de papéis, multiplicando sua ressonância na com unida de, e reproduzindo-se indefinidam ente no tempo, uma vez que continuavam a circular muito depois do funeral. Ademais, havia ainda o prestígio da pala vra escrita: como observa Bercé, “o texto impresso, objeto raro, garantia de verdade, dava uma força extraordinária às velhas farsas do Carnaval que es capavam para fora do circuito popular dos participantes para se lançar de as salto a um público letrado, ao mesmo tempo mais estreito e mais vasto” /’ Outras modalidades de sátira referidas no docum ento em questão consis tem na “carta latina, tirada de vários salmos, em que lhe cantam o saltério” . Retomando um velho topos da cultura popular, recorria-se à matéria religiosa, que, entrem eada de referências ao profano, transformava-se em peça cômica, na mesma chave de inversão que vimos no enterro simbólico. Havia ainda a carta de alforria, que teria sido passada pelo governador quando este saíra das Minas, libertando a população da escravidão. A carta de alfinetes devia-se ao teor picante de suas acusações; a carta de excomunhão “por conter coisas indignas de serem obradas por homem católico”; a carta de marear, onde se descreviam todos os rumos por onde o governador furtara; a carta de jogar, porque se for às mãos de Sua Majestade, D. Lourenço seria castigado; a carta precatória, “por estar pedindo a Deus justiça das insolências que nesta terra fez”; a carta executória, por onde o soberano pode mandar a D. Lourenço fazer execução na vida e na fazenda; a carta de tocar, “por levar as atenções a todos, e tocar em coisas muito pesadas”; carta sustatória, porque a todos dei xa suspensos; a carta de editos, “por onde os moradores destas Minas intenta rão citar ao governador para haverem as perdas e danos que lhes causou” . Derivadas da cultura popular européia, as cartas pertenciam à literatura paródica, cuja principal característica residia na versão irreverente e cômica da chamada ideologia oficial — para usar a expressão de Bakthin.7 Se a tradição medieval consagrou a paródia dos elementos do culto e do dogma religioso, na versão mineira temos a recorrência dos elementos ligados à burocracia administrativa, numa espécie de contrafação cômica de seu universo sério e formal. Em ambas, a paródia define-se como inversão irônica de um discurso de estilo alto. Este gênero satírico pertencia a uma vertente letrada e erudita, não só porque privilegiava a forma escrita mas também porque exigia, na sua elabo
6 Bercc. Op. cit., p. 66. 7 M. Bakhtin./l cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo-Brasília: Hucitcc-UnB, 1987, p. 12.
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ração, um tipo de conhecimento muito específico, como o era o modelo imita do pelas cartas — sustatória, executória, requisitória, etc. Isso, evidentem ente, não impedia o acesso dos não letrados a elas: mais que lidas individualmente, as cartas destinavam-se à leitura pública e em voz alta, na qual intervinham uma série de elem entos que escapam ao registro, como as variações de ento nação, a diferenciação da ênfase, a mímica, entre outros.8 A este respeito, Darnton observa que tais recursos enriqueciam e inscreviam novos sentidos que iam muito além do texto escrito, modificando profundam ente a sua for ma original. Ademais, numa sociedade em que a palavra escrita alcançava foros de ver dade, em que toda a máquina administrativa funcionava com editos, bandos, alvarás, cartas régias — principalmente no universo ultramarino, na depen dência das resoluções vindas de Lisboa — , estes panfletos extraíam a sua comicidade do fato de parodiarem um gênero grave e austero, cuja produção e circulação constituíam monopólio das autoridades administrativas. Era, em suma, uma versão cômica, irreverente e paródica do universo da palavra es crita, oficial e sagrada. Confeccionadas por letrados, as cartas satíricas logo ganhavam as ruas e praças e toda a população participava nelas como co-protagonista, renovando e inovando seus significados a partir da difusão oral. E importante observar que os autores destes papéis não se ocultavam no anonimato: produzidos por uma minoria letrada e desafeta do governador, tinham por objetivo proceder à vingança individual, e esta somente podia concretizar-se à medida que os detratores pudessem se identificar. Isso nos obriga a indagar acerca da reação das autoridades locais a esses festejos, nitidam ente políticos. Teriam sido to lerados ou reprimidos? Não há indicação precisa no documento, mas tudo sugere que aconteciam em locais públicos sem sofrerem nenhum tipo de intervenção repressiva. Um episódio corrobora essa hipótese: o visitador M anuel Freire Batalha chegou a transformar o púlpito na arena de luta contra o ex-governador, e, nos seus sermões, brandiu violentam ente contra seus abusos. Segundo o capitão-mor, “o doutor Batalha, não obstante o querer V.Ex.a agora no fim granjear-se com ele, não cessa de lhe fazer nos seus sermões continuada guerra, formando no púlpito como em campo raso, as lenhas de seus bem adequados conceitos, tremulando o estandarte do seu entendim ento e tocando a degolar vícios, leva o crédito de V.Ex.a a escala, dando fogo, como a inimigo declarado”. Ora, se o próprio clérigo se sentia à vontade para aludir a D. Lourenço como Princípe das Trevas, em pleno púlpito e diante das “pes soas principais”, o resto da população, sem as exigências do decoro público, poderia então dar livre expressão as suas críticas. Na verdade, as fontes pare " Robert Darnton. O grande massacre (te gatos: e outros episódios da história culturalfrancesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
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cem indicar que o período im ediatamente após a partida do antigo governa dor corresponderia a um tempo forte, em que a indignação e a condenação podiam vir à tona, depois de tanto tem po reprimidas. Instaurava-se uma épo ca de relativa liberdade e de grande irreverência, numa espécie de liberação transitória e necessária para mais longo período dc silêncio e submissão. O tem po das sátiras e das festas funcionava como um momento privilegiado de liberação inofensiva de velhos rancores e ódios, tendo, por isso mesmo, um efeito catártico, de modo que encerrasse um ciclo e assinalasse um novo re começo.9 E significativo que no mesmo sermão em que o visitador Batalha estigmatiza D. Lourenço como o Príncipe das Trevas, ele tenha aclamado o Conde das Galveias como o Príncipe da Luz. Ao mesmo tem po que encerra vam um período adverso e negativo, o enterro simbólico, a rememoração co letiva e o riso satírico — operando como ritual catártico, de extravasamento e liberação — renovavam as esperanças, e voltavam-se as atenções para a nova época. Cumprindo também função pedagógica, a festa exprimia ao governa dor recém-chegado os valores e os códigos políticos partilhados pela popula ção, indicando-lhe, em negativo, os limites a que estaria sujeito a partir de então. Se de um lado, execra-se o mal que parte, por outro, consagra-se o bem que chega. Mesmo o docum ento que se analisa aqui constitui um gênero diretam ente derivado das cartas satíricas: a carta do Capitão-Mor Nicolau Carvalho de Azevedo alterna o tom grave e austero das denúncias minuciosamente relata das com a jocosidade e o burlesco típicos da sátira. Cito alguns trechos para demonstrar tal afirmação: “André Gonçalves Xavier que algum dia foi de chave dourada ou chave mestra por abrir a V.Ex.a todos os escaninhos de seu peito, revelando-lhe os arcanos mais recônditos de seus negócios ilícitos, hoje se acha por portas desvalido, pedindo esmolas de valimento. O Capitão-Mor Domingos da Rosa Ferreira, que, algum tem po para V.Ex.3 era boa pedreira e na fé que lhe guardava rocha firme, hoje se acha mui quebrada de seus brios [...]. Antônio da Silva Porto, escrivão da ouvidoria que nunca foi ouvido, se não depois que entrou no ofício deixando o de sapateiro trocando a fivela pela pena, quando apenas sabia dar dous pontos, hoje quer m eter tudo em um chinelo, mas entendo que do couro lhe sairão as correias.” Nessas passagens, o elem ento tipicam ente carnavalesco — o m undo às avessas ou a inversão da ordem — é evidente. É bem possível que neles ecoe a linguagem empregada nas sátiras, especialm ente o princípio de comicidade, dado pelo uso de trocadilhos e pela idéia dc inversão, traduzida na 9 Segundo Bakhtin, a festa popular “apontava para um futuro incom pleto”, op. cit., p. 9.
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idéia de que aqueles que, no governo de D. Lourenço, encontravam-se numa posição privilegiada — visto serem seus validos e protegidos — , viviam então em situação lastimável e precária, ilustrando a ação inexorável da roda da fortuna. O tom galhofeiro e cômico não dilui, porém, a acidez dos ataques, que tende a crescer ao longo do documento, até se impor definitivamente, num registro que já não é mais o da sátira. Yves-Marie Bercé destaca que uma prática comum no carnaval da Europa moderna consistia na escolha de um inimigo comum, a quem deveria infligirse a humilhação de um processo e depois o simulacro de um suplício.10 Do mesmo modo que Judas, o personagem mais desprezado e odiado nestes fes tejos, podia-se escolher um indivíduo ligado ao contexto histórico da época, procedendo ao julgamento e à execução de um manequim ou boneco de palha. Dessa forma, o enterro simbólico pode ser interpretado como um evento derivado das festas carnavalescas, reatualizado à luz das injunções políticas do presente — e não mais de um passado mítico ou sagrado. O teor das sátiras traça um retrato cruel e perverso de D. Lourenço: mau católico, déspota, tirano, ladrão, insolente, venal. O topos recorrente em todas elas é, sem dúvida, a venalidade e a corrupção: acusam-no de extorquir gran des somas dos vassalos, condenando-os à miséria. Esta informação aponta para um traço importante do imaginário político da época: os limites da tole rância tornam-se ainda mais estreitos quando se referem à espoliação econô mica, mais do que à arbitrariedade política. O mau governador é o que, numa expressão então corrente, “m ete a unha no bem alheio”, pois o que se espera de um funcionário da Coroa é que ele respeite a fazenda dos súditos. O que todas essas cartas satíricas parecem indicar é a existência de um consenso sobre os limites da atuação dos governadores: expõem, em negati vo, um conjunto de princípios que, neste imaginário político, deveria pautar a conduta dos indivíduos, enfatizando precisamente a venalidade e a extor são como defeitos intoleráveis. Nesse sentido, a sátira funciona tanto como uma condenação quanto como a expressão pública e festiva do que se en ten de por bom governo. Assim, D. Lourenço emerge desses papéis como o para digma do mau governador, venal e corrupto, contra o qual a população ex pressa os seus valores e princípios políticos. Por outro lado, é interessante notar que um governador tão despótico e tão impopular quanto D. Lourenço não tenha logrado deslocar a ira do povo con tra a figura do rei. Ao contrário, uma das sátiras — a carta de jogar — afirmava que se Sua M ajestade tivesse conhecimento dos abusos do governador, este seria severam ente castigado. Não só a imagem do rei permanece intocada como também o próprio cargo de governador continua a inspirar respeito e obediência. Como a sátira barroca produzida na Bahia, brilhantem ente anali 10 Bcrcc. Op. cit., p. 48.
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sada por João Adolfo Hansen, “não é oposição aos poderes constituídos, ain da que ataque violentam ente membros particulares desses poderes, muito menos transgressão liberadora de interditos morais e sexuais”." Longe de pôr em causa o controle político e a dominação metropolitana, os festejos que comemoraram a partida de D. Lourenço tinham por objetivo restaurar o bom governo e restabelecer a ordem provisoriamente rompida pelo comportamente iníquo de um mau governador. Tratava-se de afirmar, de forma pública e coletiva, o que então se entendia por bom governo e o que a população espe rava de seus governadores. Dessa perspectiva, é legítimo abordar o episódio como mais um mecanismo de controle político, destinado a apontar as falhas e as faltas do poder, para que, uma vez corrigidas e sanadas, pudessem garan tir a continuidade e a legitimidade deste. Como argumenta João Adolfo H an sen, a sátira política nada mais propõe do que a correção dos vícios políticos, em nome de um ideal comum. Ademais, ele se inscreve à perfeição na inter pretação proposta por Antônio Manuel Hespanha a respeito das revoltas e dos motins do Antigo Regime: “o seu projeto era a em enda do «mau gover no», normalmente diagnosticado apenas ao nível mais imediato dos respon sáveis políticos locais, pois o rei continua a ser a sede da justiça, embora, eventualm ente, vítima da ignorância das situações locais ou dos enganos dos maus conselheiros”.12 Carla Anastasia, em seu estudo sobre as revoltas mi neiras da primeira metade do século XVIII, chega à mesma conclusão: “o soberano, figura mítica e incorpórea, é preservado”, sendo uma das preocu pações dos rebelados evidenciar a obediência ao rei, como no caso do motim de São Romão, no qual os participantes gritavam “Viva D. João Quinto, e morram os traidores e régulos à Coroa”.13 Enterrado o boneco de D. Lourenço, sua alma lançada ao inferno, rem e morados os casos mais escabrosos de seu governo, tudo voltava à velha ordem cotidiana. Como um fantasma que deve ser exorcizado, sua imagem fazia então parte do passado, e todas as atenções se voltavam, esperançosas, para o Conde das Galveias. Pouco vezes a sociedade mineira terá sido mais obe diente e disciplinada... □ □□ d r i a n a R o m e i r o é mestra e doutora pela Universidade Estadual de Campi nas (Unicamp). No mestrado, investigou as relações entre cultura popular e cultura
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11 João Adolfo Hansen. A sátira e o engenho: Gregário de Matos e a Bahia do século X V II. São Paulo: Com panhia das Letras, 1989, p. 29. 12 Antônio M anuel Hespanha. “A resistência aos poderes”, in: José Mattoso. História de Por tugal: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, 1993, p. 452. 13 Anastasia. Op. cit., p. 75.
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erudita no período colonial; no doutorado, pesquisou as correntes milenaristas no Brasil setecentista, cujo resultado, Um Visionário na Corte de D. João, acha-se no prelo. Atualmente coordena uma pesquisa sobre o imaginário político em Minas Gerais, na primeira metade do século XVIII. E professora-adjunta do Departamento de Histó ria da Universidade Federal de Minas Gerais. R E s u M o . Esta comunicação investiga os festejos que tiveram lugar em Vila Rica no ano de 1732, por ocasião da partida do Governador D. Lourenço de Almeida. Sátiras escritas em forma de carta denunciavam os abusos e a opressão que teriam caracterizado a atuação dele ao longo de quase doze anos. Seus desafetos promove ram-lhe enterro simbólico no Campo de Santa Quitéria, enquanto outros celebravam uma missa paródica pela sua alma — que, julgava-se, ardia no inferno. Nas ruas e praças, a população reunia-se para relatar os casos mais escandalosos, denunciando a corrupção e a venalidade que se havia infiltrado na máquina administrativa. Ao mes mo tempo, saudava-se o novo governador, o Conde das Galveias, como o restaurador da ordem e da paz, a quem caberia reconciliar o poder metropolitano e a sofrida e espoliada população mineira. De que maneira estas festividades, enraizadas numa tradição popular européia, podem ser lidas como fonte para o estudo do imaginário político das Minas setecentistas?
Batalha dos Guararapes. Detalhe de painel, atribuído a João de Deus Sepúlveda (ati vo em Pernambuco na segunda metade do século XVIII) foi encomendado pelo go vernador da capitania, José César de Meneses (1774-1787), em 1781. Disposto no forro do coro da igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Milagres, no Recife, podese observar nele batalhões negros envolvidos na batalha. Por certo, trata-se de mais uma fonte importante da representação mental da restauração pernambucana, a qual incluía decisivamente a presença das camadas de cor, livres e escravos, da capitania de Pernambuco. Arte no Brasil. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, c. 1979, 2 v., p. 76-7. Foto André Ryoki.
DA FESTA A SEDIÇAO. SOCIABILIDADES, ETNIA E CONTROLE SOCIAL NA AMÉRICA PORTUGUESA (1776-1814)* Luiz
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1 E n t r e a s e g u n d a m etade do século XVIII e inícios do século XIX, a América portuguesa presenciou mudanças consideráveis no que diz respeito às modalidades de controle social exercidas pelas autoridades coloniais sobre homens livres de cor e escravos. Estas transformações se inscrevem não ape nas nas linhas mais amplas das crises do Antigo Regime e do Antigo Sistema Colonial; elas apontam, igualmente, para processos de longo prazo internos à dinâmica histórica da América portuguesa. Ao mesmo tempo, a configuração destas novas modalidades de controle social emergiu não apenas como decor rência de necessidades estratégicas de uma elite luso-brasileira cada vez mais imbuída de valores do reformismo ilustrado (Novais, 1983 e 1984); ela tam bém se apresentou como resultado da percepção de cativos de homens livres de cor do que então se passava no mundo e no universo colonial. Aspectos como a Revolução Francesa (Mattoso, 1969), a Revolução Haitiana (Mott, 1982; Freyre, 1961 e Gomes, 1998) e a abolição da escravatura em Portugal (Novais & Falcon, 1971), por um lado, e a emergência, na América portugue
* Versões diferentes deste artigo foram apresentadas nos eventos “II Jornada Setecentista” (Departam ento de História/Cedop/Universidade Federal do Paraná, julho de 1999) e “Festa, C ultura e Sociabilidade Festiva na América Portuguesa” (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, setem bro de 1999). O autor agradece os comentários e sugestões dos presentes a ambos os eventos.
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sa, de projetos políticos consubstanciados na Inconfidência Mineira (Maxwell, 1977), na Insurreição Pernambucana (Mota, 1972 e Leite, 1987), no ensaio de sedição de 1798 (Jancsó, 1995 e Mota, 1979) e nas revoltas baianas de escravos e da plebe livre (Reis, 1987 e Verger, 1987), por outro, causaram um impacto profundo na visão de mundo de autoridades coloniais e camadas populares. Contudo, aspectos internos à dinâmica histórica da América portuguesa e padrões culturais de longo prazo tiveram, igualmente, peso considerável na explicação das mudanças nas modalidades de controle social ocorridas entre fins do século XVIII e inícios do século seguinte. Assim sendo, cabe também examinar tais mudanças com base nas formas tradicionais de controle social sobre as camadas populares existentes no mundo colonial (Schwartz, 1988 e Lara, 1988), e em correlação com as manifestações religiosas e festivas de caráter católico levadas a efeito por estas (Melo, 1948-1949; Reis, 1991 eN ishida, 1998), com as instituições ibéricas, africanas c coloniais subjacentes a tais manifestações (Arboleda, 1962; Brásio, 1969; Mello, 1983-1985 e Silva, 1996a) e, sobretudo, com o crescimento significativo de vigorosa camada de homens de cor livres (Klein, 1969, 1978 e 1987). Estes aspectos, inscritos numa pers pectiva de longo prazo, acenam para uma nova configuração do m undo social em questão; o crescimento paulatino da camada constituída pelos homens de cor livres, por exemplo, implicará a constante preocupação das autoridades coloniais com estes “homens sem senhor”, isto é, indivíduos não submetidos às pressões do cativeiro e às suas formas senhoriais de controle social. Levando-se em conta o caso da capitania de Pernambuco, ver-se-á, nesse sentido, que ela possuía no século XVIII vários corpos paramilitares forma dos por cativos e pessoas de cor livres. A constituição desses corpos obedecia a determinações passadas por intermédio do Regimento dos Governadores da Capitania, de 1670, e de outros textos legais da primeira m etade do século XVIII, mas as divisões do mundo social (Durkheim, 1996) que eles evoca vam sintonizavam-se tanto com a estrutura da sociedade colonial como com dadas instituições ibéricas e africanas. Como se verá adiante, esses corpos possuíam “governadores” e ampla hierarquia inferior subordinada a estes, que incluía secretários de Estado, generais, tenentes-generais, marechais, brigadeiros, coronéis, coronéis-conselheiros e outras patentes; acima dos go vernadores, nesta hierarquia, havia apenas um “rei do Congo” residente na própria capitania, o qual, segundo um documento, deveria respeitar, reco nhecer, honrar, estimar e conferir a “posse e juram ento de estilo” ' ao gover nador de cada corpo paramilitar. Ao mesmo tempo, estes corpos paramilitares 1 Cf. “O Preto Domingos da Fonseca, Governador dos Pretos Camaroeiros dessa Vila c sen term o”. Arquivo Público Estadual Jordão Emcrcnciano (doravante A PEJE). Série P aten tes Provinciais. Cód. 07, f. 114v.-l 15, 5/12/1792.
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apontavam para critérios de divisão do mundo social baseados precipuamente cm aspectos étnicos e profissionais. Assim, havia tanto governadores de “nações” africanas como governadores de corporações profissionais, ou de ofícios, cujas cartas patentes eram passadas pelos governadores da capitania de Pernambuco. Por fim, cabe indicar que estas hierarquias de pessoas co muns possuíam vínculos profundos tanto com o mundo católico, mediante suas relações com irmandades e confrarias, como possibilitavam a realização regular, a cada três anos, de festas de posse de governadores e de suas hierar quias inferiores. Na verdade, se, por um lado, tais corpos étnicos e profissionais eram impor tantes instrumentos de controle social do ponto de vista das autoridades coloniais, por outro lado, do ponto de vista do negro livre e do cativo, eles se apresentavam como importantes instituições propiciadoras de identidades e coesão grupai, sejam estas de caráter étnico (Poutignat & Streiff-Fenart, 1998), sejam de caráter profissional. As sociabilidades aí estabelecidas pela simples reiteração dos valores grupais e as festas, motivadas pela necessidade de promover eleições e posses dos governadores e de suas hierarquias inferiores, constituíam ele mentos de grande significação para os cativos e para os homens sem senhor existentes sobretudo no mundo urbano da vila do Recife e cidade de Olinda.
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Assim sendo, tanto os “homens sem senhor” como os cativos encontravam no reduzido espaço urbano da cidade de Olinda e da vila do Recife formas de trabalho e de identidades étnicas que lhes permitiam construir laços e esta belecer redes que implicavam formas de sociabilidades internas ao universo das camadas populares de então. Uma das mais flagrantes provas da presença significativa dessa camada social no meio urbano é o grande número de cor pos étnicos e profissionais existente na segunda metade do século XVIII. D entre estes destacam-se as corporações profissionais dos “Pretos Ganhado res da Praça do Recife”, dos “Pretos Carvoeiros do Recife e Olinda”, dos “Pescadores da Vila do Recife”, dos “Pescadores do Alto da Cidade de Olin da”, das “Pretas Boceteiras e Comerciantes do Recife”, das “Pombeiras da Repartição de Fora das Portas” (do Recife), dos “Canoeiros da Repartição de O linda”, dos “Canoeiros do Recife”, dos “Pretos Marcadores de Caixas de Açúcar e Sacas de Algodão”, dos “Capineiros da Praça da Polé, Cinco Pontas, Rua da Praia, Quatro Cantos, Boa Vista e Cidade de Olinda” e dos “Pretos Camaroeiros desta Vila [do Recife] e seu term o” .2
2 Cf. “Feliciano Gomes dos Santos, Governador dos Pretos Ganhadores”. APEJE. Série P atentes Provinciais. Cód. 3, f. 158, 14/11/1778; “O Preto Antônio Duarte, Governador dos Carvoeiros do Recife e de O linda”. APEJE. Série Patentes Provinciais. Cód. 07, f. 51,
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Entre os corpos paramilitares de matrizes étnicas, designados pela catego ria nativa de “nação”, sublinhe-se a existência da “Nação dos Ardas do Botão da Costa de M ina”, da “Nação Dagome”, da “Nação da Costa Suvaru” e a da nação dos “Pretos Ardas da Costa da M ina”.-’ Paradoxalmente, todas as e t nias indicadas são provenientes da costa da Guiné, quando a maior parte do tráfico de escravos para a capitania de Pernambuco se dirigiu desde 1760 para a África Central; os ardas (ou ardras ou aladas) viviam, entre os séculos XVII e XVIII, numa ampla região com preendida entre os rio Mono e o porto de Lagos, ou entre os jejes (eves) e os popos ao norte e os iorubas ao sul. A nação Dagome (d’Agome ou Adangme) vivia mais ao norte, entre o rio Volta e o rio São João, dividindo sua região com os aquins e os fantis, e fazendo fronteira de sua área, a qual era cortada pelo rio Volta, ao sul, com os jejes (eves). Por fim, os suvarus (savanus) habitavam a região do reino de Daomé, próxima à extensa área dos ardas (Verger, 1988; Boxer, 1981; Ribeiro, 1948-1949 e Davidson 1981). Estas hierarquias étnicas existentes nas três últimas décadas do século XVIII enquadravam um número significativo de pessoas provenien tes da Costa da Mina, as quais desembarcaram no Recife sobretudo entre 1742 e 1760. N estes dezoito anos, foram desembarcados 16.488 escravos des sa região. Entre 1761 e 1779, esta região foi responsável pelo desem barque de apenas 5.601 cativos no porto do Recife (Ribeiro Jr., 1976:130-1). Se os escravos da África Central eram maioria na capitania em questão, por que
1791 (mês c dia ilegíveis); “G erm ano Soares, G overnador dos Pescadores da Vila do R e cife”. A PEJE. Série P atentes Provinciais. Cód. 3, f. 92, 20/2/1778; “Bcrnarda E ugênia dc Sousa, G overnadora das Pretas Boceteiras c C om erciantes” . A PEJE. Série P atentes Pro vinciais. Cód. 6, f. 75 v., 30/6/1788; “A Preta Josefa Lajes, Governadora das Pom beiras da Repartição de Fora das Portas”. A PEJE. Série P atentes Provinciais. Cód. 11. f. 279279v., 12/11/1802; “O Preto João M anuel Salvador, Governador dos Canoeiros da Repar tição de O linda” . APEJE. Série P atentes Provinciais. Cód. 6, f. 102v., 4/11/1788; “João G om es da Silveira, G overnador dos Pescadores do Alto da C idade de O linda” . A PEJE. Série P atentes Provinciais. Cód. 6, f. 74-74v., 16/6/1788; “O Preto M anuel N unes da Costa, Governador dos Pretos Marcadores de Caixas de Açúcar”. A PEJE. Série P atentes Provinciais. Cód. 2, f. 198, 13/9/1776; “José N unes dc Santo Antônio, G overnador dos Canoeiros” [do Recife]. A PEJE. Série P atentes Provinciais. Cód. 9, f. 136-136v., 4/12/ 1797; “O Preto Domingos da Fonseca, Governador dos Pretos Camaroeiros desta Vila e seu term o” . A PEJE. Série P atentes Provinciais. Cód. 7, f. 114v.-l 15, 5/12/1792; Livro dc Registro das Missas do Ofício dos Capineiros da Praça da Polé, Cinco Pontas, Rua da Praia, Q uatro Cantos, Boa Vista c C idade de O linda (1757-1826). Apud: Mello, 19831985, Vol. X: DX. 3 Cf. “O Preto Narciso Correia dc Castro, Governador da Nação dos Ardas do Botão da Costa da M ina” . APEJE. Série Patentes Provinciais. Cód. 7, f. 10, 10/5/1795; “Simião da Rocha, G overnador da Nação Dagom e”. APEJE. Série Patentes Provinciais. Cód. 2, f. 114v.-115, 23/2/1776; “O Preto Bernardo Pereira, Governador da Costa Suvaru” . APEJE. Série Pa tentes Provinciais. Cód. 2, f. 129, 1779 (dia c mês ilegíveis); “Ventura de Sousa Garcês, Governador dos Pretos Ardas da Costa da M ina”. APEJE. Série Patentes Provinciais. Cód. 2, f. 133v„ 14/7/1776.
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todos os governadores de nações desse período eram vinculados a etnias da África ocidental? Essa é uma questão a ser investigada. Para além das sociabilidades e das formas identitárias evocadas por tais instituições, as corporações aqui examinadas cumpriam o importante papel de instrum ento de controle social sobre a camada de homens livres de cor e escravos. Todas as cartas patentes passadas aos governadores desses corpos paramilitares eram rigorosas no sentido de incitar a submissão dos membros das corporações urbanas e das comunidades étnicas ao governo da capitania e às “ordens relativas ao Real Serviço”.4 Segundo a carta patente passada ao “preto” João da Assunção, governador dos pescadores da vila do Recife, pelo governador da capitania de Pernambuco, José César de M eneses (1774-1787), em 22 de setem bro de 1784, cabia ao primeiro “evitar entre eles [pescadores] desordens, fazendo-os conter em boa harmonia, e prontos para as operações do Real Serviço, quando a ocasião o permitir; e por esperar deles que inteira m ente cumpram com sua obrigação e muito com dever e boa confiança que da sua pessoa faço”.5 Esta carta expressa tanto o caráter paramilitar desses corpos, uma vez que cabia a eles a defesa da América portuguesa “quando a ocasião o perm itir”, como o papel de instrumento de controle social em que eles se constituíam: evitar desordens entre seus subordinados, “fazendo-os conter em boa harmonia” era a obrigação primeira dos “governadores” de corporações urbanas. Nada de diferente era ordenado aos governadores das nações africanas. Nesse sentido, o mesmo José César de M eneses, em 1776, recomendava ao “preto” Bernardo Pereira, governador da Nação da Costa Suvaru, “muito o sossego e vigilância que deve ter o governo de seus súditos, digo dos seus subordinados, a quem também ordeno que lhe obedeçam e cumpram suas ordens relativas ao Real Serviço, digo ao Bem Público assim como devem e são obrigados.”6 E nessa linha que se pode observar entre algumas corporações a freqüente destituição de governadores de seus cargos por praticarem atos descritos como “desordens” . Em fevereiro de 1778, por exemplo, o “pardo” Germano Soa res foi feito governador dos pescadores da vila do Recife pelo fato de que “M anuel dos Santos que atualmente exercia o dito posto era incapaz em cum prir com suas obrigações a que era obrigado pelas contínuas desordens que andava fazendo”.7 Por sua vez, em setembro de 1784, um outro “governa
4 Cf. “Agostinho Ferreira Cardoso, Governador dos Pescadores da Ilha de Itamaracá”. APEJE. Série Patentes Provinciais. Cód. 8, f. lv., 22/10/1794. 5 Cf. “O Preto João da Assunção, Governador dos Pescadores”. APEJE. Série Patentes Pro vinciais. Cód. 5, f. 6-6v., 22/9/1784. 6 Cf. “O Preto Bernardo Pereira, Governador da Costa Suvaru”. APEJE. Série Patentes Provinciais. Cód. 2, f. 129, 1779 (dia e mês ilegíveis). 7 Cf. “Germano Soares, Governador dos Pescadores da Vila do R ecife”. APEJE. Série Pa ten tes Provinciais. Cód. 3, f. 92, 20/2/1778.
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dor” da corporação dos pescadores da vila dos Recife, Tomás Francisco, havia sido substituído “pelas desordens praticadas [...]”.” Numa corporação próxi ma à dos pescadores — a dos “pretos camaroeiros” — tam bém se verificou caso semelhante: em dezembro de 1792, o “preto” Domingos da Fonseca tornou-se seu governador por “não dever continuar no exercício dele o atual José Pereira de Azevedo pelas desordens que tem praticado entre seus sú ditos” .9 Cabe considerar agora, à luz de alguns exemplos, como funcionava esta importante instituição. Em primeiro lugar, enquadrando cativos e, sobretu do, a camada social constituída pelos homens de cor livres, observa-se que praticamente todos os “governadores” dessas corporações eram descritos como “pretos” ou “pardos” e, ocasionalmente, “forros” . Domingos Ferreira Ribei ro, por exemplo, feito governador dos Pretos Ganhadores da Praça do Recife em 26 de outubro de 1777, era um negro “forro”;10 este era igualmente o caso de Josefa Lajes, governadora das pombeiras da Repartição de Fora das Portas do Recife em novembro de 1802," e de Germano Soares, feito governador dos pescadores da vila do Recife em fevereiro de 1778.12 Não se encontra na docum entação nenhum a referência a governadores cativos; estes ou são designados apenas como “forros”, em alguns casos, ou, quase sempre, co mo “preto” ou “pardo” . O enquadram ento de caráter racial era tão rigoroso, ademais, que corporações inteiras recebiam a denominação de “pretos” , supondo-se que todos os seus membros fossem homens de cor, tais como nos exemplos das corporações dos carvoeiros, dos ganhadores, das boceteiras e comerciantes, dos marcadores de caixas de açúcar e sacas de algodão e dos camaroeiros. Em segundo lugar, tal como os reis de Benin antes de 1400, os reis mossis e iorubas, da região da Guiné, e os reis do Congo, na África Central, após o século XVII (Davidson, 1981 e Brásio, 1969), os governadores de com uni dades étnicas e de corporações eram, normalmente, eleitos por seus pares. Curiosamente, o mandato durava três anos e este era igualmente, em geral, o tem po de governo dos governadores das capitanias da América portuguesa.
8 Cf. “Tomás Francisco, Governador dos Pescadores da Vila do R ecife” e “O Preto João da Assunção, Governador dos Pescadores” . APEJE. Serie Patentes Provinciais. Cód. 3, f. 166, 19/12/1778 c Cód. 5, f. 6-6v., 22/9/1784, respectivam ente. 9 Cf. “O Preto D om ingos da Fonseca, Governador dos Pretos Camaroeiros desta Vila c seu term o”. APEJE. Série Patentes Provinciais. Cód. 7, f. 114v.-l 15, 5/12/1792. 10 Cf. “D om ingos Ferreira Ribeiro, Governador dos Pretos Ganhadores desta Praça”. APEJE. Série Patentes Provinciais. Cód. 3, f. 49, 26/10/1777. 11 Cf. “A Preta Josefa Lajes, Governadora das Pombeiras da Repartição de Fora das Portas”. APEJE. Serie Patentes Provinciais. Cód. 11, f. 279-279v., 12/11/1802. 12 Cf. “Germano Soares, Governador dos Pescadores da Vila do R ecife”. APEJE. Série Pa tentes Provinciais. Cód. 3, fl. 92, 20/2/1778.
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O “preto” M anuel N unes da Costa, por exemplo, foi nomeado governador dos pretos marcadores de caixas de açúcar e sacas de algodão em 13 de se tembro de 1776 em decorrência do fato de ter sido “eleito pelos pretos Mar cadores das Caixas desta Praça [do Recife] para Governador dos mesmos” .13 Era igualmente o caso do “preto” João de Melo, feito governador dos canoeiros da vila do Recife em 13 de março de 1799. Este enviou requerim ento ao governo da capitania informando “se achar eleito em mais votos para ocupar o Posto” m encionado.14 Por sua vez, o “preto forro” José Dias, cuja carta patente foi passada a 16 de junho de 1788, havia-se tornado governador dos pretos ganhadores em decorrência de ter sido “eleito pelos mesmos a mais votos”.15 Nas cartas patentes passadas a estes homens e mulheres que trabalhavam no limitado universo urbano da capitania de Pernambuco ao longo da segun da m etade do século XVIII e primeiros anos do século seguinte observa-se que as hierarquias que lhe eram subjacentes tinham papel funcional e dinâ mico. Antes de se tornarem governadores ou governadoras de suas respecti vas corporações ou comunidades étnicas, estes indivíduos já tinham passado por cargos inferiores das hierarquias que agora encabeçavam. A “preta forra” Josefa Lajes, por exemplo, estava, em novembro de 1802, “servindo o posto de coronel das pombeiras da Repartição de Fora das Portas” quando foi feita “governadora” da mesma corporação.16 Feliciano Gomes dos Santos, por sua vez, foi eleito governador dos pretos ganhadores da praça do Recife por volta de novembro de 1778 por “haver exercido com boa satisfação o posto de Coronel Conselheiro dos mesmos”. Nada de diferente ocorria aos governa dores das comunidades étnicas. O “preto” Ventura Garcês, por exemplo, an tes de tornar-se governador de sua “nação” — a dos ardas da Costa da Mina — , em julho de 1776, havia sido, e “com procedimento”, tenente-coronel da mesma nação.17 O caso mais notório de ascensão no interior destas hierar quias de homens de cor é o do liberto Ventura de Sousa Barbosa, membro da corporação dos capineiros da praça da Polé, Cinco Pontas, Rua da Praia, Qua tro Cantos, Boa Vista e cidade de Olinda, cujo santo de devoção era São Be nedito, conhecido protetor dos homens contra os perigos representados pelas
13 Cf. “O Preto M anuel N u n es da Costa, Governador dos Pretos Marcadores dc Caixas de Açúcar”. APEJE. Serie Patentes Provinciais. Cód. 3, f. 198, 13/9/1776. 14 Cf. “O Preto João dc M elo no Posto dc Governador dos Canoeiros”. APEJE. Série Paten tes Provinciais. Cód. 9a, f. 13v.-14, 13/3/1799. 15 Cf. “O Preto José Dias, Governador dos Pretos Ganhadores”. APEJE. Série Patentes Pro vinciais. Cód. 5, f. 72, 18/1/1788. 16 Cf. “A Preta Josefa Lajes, Governadora das Pombeiras da Repartição dc Fora das Portas”. APEJE. Série Patentes Provinciais. Cód. 11, f. 279-279v., 12/11/1802. 17 Cf. “Ventura de Sousa Garccs, Governador dos Pretos Ardas da Costa da Mina”. APEJE. Série Patentes Provinciais. Cód. 2, f. 133v., 14/7/1776.
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cobras. Com efeito, o modo de vida dos capineiros consistia em cortar, bene ficiar e vender capim de porta em porta. E nada mais comum que encontrar cobras em capinzais. Em 1768, Ventura Barbosa fora eleito capitão da cor poração dos capineiros; em 1770, este se torna mestre-de-cam po dela; fi nalmente, em 1773, Ventura Barbosa ascende ao cargo máximo de sua cor poração — o de “governador”. Em 1802, ele transcende a sua corporação, ocupando o cargo mais destacado em meio a tais formas populares de sociabi lidade: o de rei do Congo da Praça do Recife (Mello, 1983-1985, vol. X). Por fim, constitui tarefa importante examinar a natureza de tais institui ções, bem como as festas e rituais que se realizavam em função delas. Ade mais, faz-se mister discutir os vínculos que tais instituições possuíam com o universo da religião católica existente na América portuguesa, o qual era am plam ente marcado pela presença de instituições leigas — irmandades, con frarias e ordens terceiras (Boschi, 1986) — que apontavam para importantes categorias de divisão social (Durkheim, 1996) — tais como as noções nativas de “corporação” e “nação” e as categorias analíticas de gênero e raça (Nishida, 1998). Como foi observado, as relações entre as corporações profissionais e as com unidades étnicas, ou nações, e a instituição do rei do Congo eram por diversas vezes reiteradas nas cartas patentes. Cabia ao rei do Congo, como tam bém já foi observado, respeitar, reconhecer, honrar, estimar e conferir a “posse e juram ento de estilo” a cada governador de corporação ou nação; cabia, igualmente, a ele nomear alguns governadores, como foi o caso do “pre to” José N unes de Santo Antônio, feito governador dos canoeiros da vila do Recife em dezembro de 1797 em decorrência do fato de “ser nomeado em primeiro lugar pelo rei do Congo”.18 Inversamente, ser um rei entre os ne gros do mundo urbano do Recife e de Olinda desse período era uma possibi lidade que acenava a quaisquer governadores de corporações ou nações. O caso de Ventura de Sousa Barbosa, eleito rei do Congo em 1802 após ter sido governador da corporação dos capineiros, como se viu, é bastante ilustrativo nesse sentido. Ora, sabe-se que era no interior das irmandades de Nossa Senhora do Ro sário que os reis e rainhas negros eram eleitos, aspecto que evidencia as rela ções dessas instituições com o universo do sagrado. Exem plo dessa afirmação é que em Olinda, em 10 de setembro de 1666, Urbain Souchou de Rennefort observou que “Após irem à missa, cerca de quatrocentos homens e cem mulheres, elegeram um rei e uma rainha, e marcharam pelas ruas cantando, dançan-
ls Cf. “José N u n es de Santo Antônio, Governador dos Canoeiros” [do Recife], APEJE. Série Patentes Provinciais. Cód. 9, f. 136-136v., 4/12/1797.
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do e recitando os versos que fizeram, acompanhados de oboés, trombetas tambores bascos. “Estavam vestidos com as roupas de seus senhores e senhoras, com cor rentes de outro e brincos de ouro e pérola, alguns mascarados. Todas as diversões desta cerimônia lhes custaram cem escudos. O rei e seus oficiais não fizeram nada em toda essa semana, além de andarem solenem ente, com a espada e a adaga ao seu lado” (apud: Castagna, vol. 3:484-5, 1991). Rennefort referia-se à eleição e festa de posse do rei de uma irmandade na cidade de Olinda, a qual, portanto, existia, com ou sem igreja, antes de 1666. Provavelmente, a primeira irmandade de invocação Nossa Senhora do Rosá rio no Recife foi criada, sem capela, no interior da igreja de São Frei Pedro Gonçalves, no atual bairro do Recife, no emblemático ano de 1654 — o ano da restauração pernambucana (Costa, vol. 4:395, 1983). Entre 1662 e 1667, erguia-se a igreja da irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Vila do Recife. Contudo, a documentação mais antiga referente a esta irman dade é de 1674. N o Recife, as eleições e festas de posse eram realizadas anualmente, in cluíam vários reis, rainhas e juizes de etnias diversas — também da “com uni dade imaginária”, derivada de “rótulos coloniais” (Schwartz, 1996:378) dos crioulos — e consumiam gastos que aumentavam ano após ano. Entre os anos de 1674 e 1676, por exemplo, foram gastos com a festa de eleição e posse vinte e sete mil e quarenta réis no primeiro ano (1674-1675) e cento e vinte mil-réis no segundo (1675-1676). Em 1674 foram eleitos os escravos Antônio Carvalho, rei dos angolas, e Antônio Ramires, rei dos crioulos. Fo ram ainda eleitos o escravo Pascoal de Abreu, na função de juiz dos angolas, e o escravo Domingos Correia, como juiz dos crioulos. Sugerindo que questões de gênero são também pertinentes ao estudo do mundo das irmandades, como sublinhou Nishida (1998) para o caso das irmandades baianas, rainhas e juí zas negras apareciam por último nas listas dos eleitos. Assim, tam bém em 1674, foi feita rainha dos angolas a escrava Ângela Ribeira, e das crioulas. Luzia Dias, bem como também elegeram-se juízas das crioulas e das angolas, as escravas Joana Leitoa e Brígida Roiz, respectivam ente.19 Curiosamente, entre os séculos XVII e XVIII, a denominação do rei dos negros da Irman dade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Vila do Recife sofre uma mudança: de “rei dos angolas” esta transforma-se em “rei do Congo”. E pro vável que esta mudança decorra de razões africanas, de transformações polí
19 Cf. “M anuscritos da Igreja dc N ossa Senhora do Rosário dos Hom ens Pretos do Recife", in: Silva, Leonardo D . (org.). Alguns documentos para a história da escravidão. Recife: Massangana, 1988, p. 126-9.
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ticas ocorridas na África central — região da qual, aliás, era proveniente a maior parte dos cativos da capitania de Pernambuco. E, de fato, os vínculos entre essas corporações urbanas e comunidades étni cas e o universo do catolicismo colonial eram intensos. A corporação dos capineiros, por exemplo, possuía um livro de registro de missas exclusivo na Irman dade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Vila do Recife entre 1757 e 1826 (Mello, 1983-1985, vol. X). Do mesmo modo, algumas corporações exis tentes no século XVIII possuíam confraria, às vezes com capela própria. Este era o caso da corporação dos canoeiros, cuja importância para a Vila do Recife foi muitas vezes ressaltada em face da dependência do transporte fluvial no período de abertura dos novos bairros (Mello, 1978; Silva, 1996a e 1996b). A capela, embora não passasse de um “Oratório com emblema da Redenção que existe na rua do antigo porto das canoas colocado debaixo de um telheiro”,20 não deixa de testemunhar a relação profunda entre essas instituições e o uni verso da religião católica. Ademais, é bastante provável que governadores de corporações e nações e seus subordinados fossem, concomitantemente, m em bros de irmandades maiores, fundadas em critérios raciais ou étnicos — aspec to constitutivo do habitus dos indivíduos coloniais (Elias, 1993b). Em suma, no interior do catolicismo barroco existente na América portuguesa não havia ne nhum impedimento ou interdição ao fato de segmentos das camadas popula res constituídas por negros livres e escravos inserirem suas instituições — como as corporações e nações africanas — no universo religioso prevalecente. As fontes ibéricas, africanas e coloniais da instituição dos reis e rainhas negros contêm muitos dos elementos que, mais tarde, estarão presentes à sua efetivação na América portuguesa. A intimidade entre as visões de mundo dos povos subjugados e o catolicismo desde aí encontra-se presente. No mundo ibérico, as primeiras referências a esta instituição são do século XV: o rey do Congo do caso português (Saunders, 1994) e o mayoral do caso espanhol (Arboleda, 1962). Em 1475, os reis católicos de Espanha, Fernando e Isabel, fizeram de seu porteiro de câmara, um negro chamado Juan de Valladolid, “Mayoral e Juez de todos los Negros e loros libres o captivos que están e son captivos e Horros en la muy noble e muy leal ciudad de Sevilla e en todo su arzobispado, e que no puedan facer ni fagan los dichos Negros y Negras y Loros y Loras ningunas fiestas ni juzgados dentre ellos, salvo ante vos el dicho Juan de Valladolid Negro N uestro juez e Mayoral de los dichos N e gros” (Arboleda, 1962:4-5). As fontes africanas dessa instituição fazem convergir aspectos do catolicis mo com práticas rituais tradicionais, como a eleição do rei. No caso do Reino do Congo no século XVII, o sucessor do rei era escolhido entre seus filhos,
211 Cf. APEJE. Série Câmaras Municipais. Cód. 31, f. 97-97v., 25/11/1850.
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sem considerações por critérios etários ou de legitimidade; por vezes, julgava-se que o mais capaz era o irmão do rei, preterindo-se todos os seus filhos. Os eleitores eram o Mani-Efunda, chefe religioso e principal eleitor, o ManiBata e o Sonho, estes chefes civis do reino. Esta eleição não se realizava sem um altar, no qual tomava assento um bispo ou, na falta deste, o vigário-geral do Congo (Brásio, 1969). Os aspectos presentes tanto nas instituições m edie vais ibéricas como nas estruturas rituais africanas — fazendo convergir certos africanismos e certas concepções católicas — concorreram para a configura ção da instituição colonial antes examinada, na qual se faziam presentes não apenas “reis do Congo” locais, mas também governadores de corporações e de com unidades étnicas cujos membros eram oriundos da Africa ocidental. Finalm ente, constitui um fato que a guerra de restauração pernambucana entre 1645 e 1654 fez emergir uma importante representação mental refe rente ao que Evaldo Cabral de Mello (1997:195-239) denominou de “pan teão restaurador”. N este constava, conforme escritos dos séculos XVII ao XIX, numa tetraquia, um reinol, João Fernandes Vieira, um mazombo, Vidal de Negreiros, um índio, Filipe Camarão, e um negro, H enrique Dias. Temse sublinhado na historiografia pernambucana a força mobilizadora dessa re presentação no que tange aos eventos encabeçados pelas elites locais nos anos de 1710, 1817 e 1824, por exemplo (Mello, 1975, 1995 e 1997); pouco se tem examinado, em contrapartida, como a população negra da capitania tam bém se imbuiu dessa representação mental da restauração pernambucana para fazer valer certas prerrogativas políticas. N esse sentido, na segunda metade do século XVIII, por volta de abril de 1782, o então governador da capitania, José César de M eneses, queixava-se dos muitos pretendentes aos postos nos corpos dos Henriques e de Antônio Filipe Camarão que se diziam “seus herdeiros e sucessores, e nada é mais falso do que isto”. Segundo o governador, “D. Antônio era índio, e sua famí lia se acha na serra de Ibiapaba, condecorada e com honra”. Por sua vez, alertava José César de M eneses, “H enrique Dias nem um filho deixou, onde se conservasse o seu nome, ao mesmo tempo, que qualquer Negro, que daqui vai para essa Corte re querer, vai logo dizendo que é neto de H enrique Dias, como fizeram 2 capitães, que aqui andam, os quais ambos escaparam ao Cativeiro, e como de presente estão fazendo nessa Corte dois sargentos Mores Pardos destes Terços, que ambos há poucos anos foram cativos, e hoje requerem as hon ras, e soidos de sargentos-mores, sem merecimento ou utilidade.”-1
21 Cf. C ódices de registro de cartas do governador de Pernambuco, José César dc M eneses. Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (doravante AIHGB). Livro Quarto (1781-1783), D L 864.2, f. 75v.-76v„ 13/4/1782.
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No início do século XIX, Henry Koster sublinhava, e com razão, as possi bilidades de que “a conduta heróica de Camarão e H enrique Dias, um indí gena e outro negro, chefes da famosa e impressionante campanha entre os Pernambucanos e os Holandeses, e as honrarias subseqüentes oferecidas pela Coroa de Portugal a ambos, tenham exaltado o caráter da humilhada espécie humana a que pertenciam ” (Koster, 1942[1817]:475). Efetivam ente, dois terços do total do exército restaurador de 1645-1654 foram recrutados na própria capitania de Pernambuco (Mello, 1975), e isto significava, em boa medida, escravos africanos em combate. Em janeiro de 1646, por exemplo, ao início da guerra de restauração, H enrique Dias coman dou um batalhão de soldados negros com a ajuda do capitão dos pretos minas, Antônio Mina. Este participou da batalha, conforme um relato contem po râneo, “com seus soldados, os mais dos quais haviam sido escravos do gover nador João Fernandes Vieira, e lhes havia dado alforria, porque o ajudaram com muito esforço na batalha do monte das Tabocas” (apud: Mello, 1988:38). O fato de H enrique Dias, particularmente, ter sido feito, “governador dos crioulos, negros e mulatos... e de todo o Brasil”, mediante carta patente es crita na Bahia e passada pelo Conde da Torre em 1639, a qual depois, em 1658, foi confirmada em Lisboa pela Rainha Regente D. Catarina, estabele ceu certas prerrogativas para a criação não apenas dos corpos militares dos H enriques em toda a América portuguesa, mas, também, para as hierarquias pa-ramilitares de corporações urbanas e nações africanas existentes na vila do Recife e cidade de Olinda na segunda metade do século XVIII. Essas instituições eram de suma importância para os negros livres e cati vos da América portuguesa e particularmente da capitania de Pernambuco. As festas religiosas, as procissões e as sociabilidades aí estabelecidas, como já foi observado, constituíam, por um lado, elem entos fundamentais para a re criação de identidades coletivas, nas quais certos africanismos e certas con cepções decorrentes do Ocidente cristão, ambas transformadas, encontravam um am biente novo. Por outro lado, tais manifestações festeiras e religiosas serviam de suportes para criação, pelas autoridades coloniais, de importantes instrum entos de controle social. Por outras palavras, as festas, particularmen te, eram não apenas palco de danças “acompanhados de oboés, trombetas, tambores bascos”, como descreveu Rennefort no século XVII, ou de “toques de instrumento, zabumba, clarinetes e fogos de ar”,22 como as observou C ae tano Pinto de Miranda M ontenegro em inícios do século XIX. Elas também constituíam uma “razão de Estado”, como disse um governador colonial em fins do século XVIII.
Cf. Carta ao Doutor Desembargador Ouvidor-Geral da Comarca de Olinda sobre a licença que pediram o Juiz e Irmãos dc Nossa Senhora do Rosário” . APEJE. Série Ofícios do Governo. Cód. 14, f. 159-159v„ 16/12/1815.
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3. Até hoje atentou-se com mais ou menos rigor para os efeitos das idéias e das práticas da ilustração portuguesa quanto à formação de alianças políticas envolvendo grupos de aquém e além-mar (Lyra, 1994 e Maxwell, 1973 e 1977), no tocante à formulação de políticas econômicas (Novais, 1983 e 1984 e Falcon, 1982), 0 11 do ponto de vista da introdução de práticas educacionais e da produção de conhecimentos (Maxwell, 1996 e Novais, 1984). Ademais, estudaram-se aspectos referentes ao significado das concepções políticas e filosóficas presentes à peculiar Ilustração ibérica (Boxer, 1981) e, recente m ente, viu-se como o governo pombalino, particularmente, atuou como m e cenas, financiando a produção de obras literárias (Teixeira, 1999). Pouco se observou, por outro lado, 0 quanto esta forma de pensamento criou baliza mentos importantes para redefinir as modalidades de controle social sobre os cativos e sobre a cada vez mais numerosa camada social formada pelos ho mens de cor livres na América portuguesa.23 Nesse sentido, é sabido que a Ilustração portuguesa procurou harmonizar as inovações provenientes do pen samento das Luzes com a tradição e o atraso cultural que caracterizavam Por tugal ao longo do Antigo Regime (Novais, 1994 e Boxer, 1981). Ao mesmo tempo, esta tentativa de harmonizar tradição com inovação visando a defesa do absolutismo monárquico possuía acentuado caráter religioso, pois se, por um lado, procurou-se editar livros até então considerados nocivos à religião católica — como as obras de M ontesquieu, Locke e Voltaire — , reformar 0 ensino superior, laicizando-o, ou mesmo aprofundar o regalismo, isto é, a dou trina que defendia a supremacia do Estado sobre a Igreja, os pensadores e governantes ilustrados portugueses, desde Pombal, não queriam, por outro lado, “ver o catolicismo derrubado”, como sublinhou K enneth Maxwell (1996:102). Após meados do século XVIII, não obstante a expulsão dos je suítas do império e a extinção paulatina dos autos-de-fé, tratava-se, antes, de purificar a religião católica — sobretudo a levada a efeito nos trópicos —, e de remover os obstáculos que impediam sua subordinação às razões de Estado, e não de destituir sua importância. Em Portugal, ações e pensamentos das autoridades ilustradas da segunda m etade do século XVIII tendiam a considerar o excesso de exteriorismo ca tólico aí praticado nocivo à “indústria do Povo” e um estímulo à “dissolu ção”. Em carta de maio de 1777, o próprio Marquês do Pombal sugeriu que “o grande número de dias Santos e Procissões em Portugal é uma manifesta taxa sobre a indústria do Povo, e tende mais depressa a depravar, que a corri
23 É verdade que Maria Odila L eite da Silva Dias acenou para este campo de análise já há duas décadas (Dias, 1984).
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gir sua moral”. Os padres seculares, ainda conforme o primeiro-ministro, “são a peste do Estado, não servindo para algum bom propósito; mas antes pelo contrário tendendo a fazer o Povo ocioso, e a introduzir todas as castas de vícios, e dissolução” (Boschi, 1986:38). Em carta de 7 de março de 1794, o então ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos, M artinho de Melo e Castro, temia pela preservação da ordem na América portuguesa em decor rência do grande número de instituições leigas aí existente: “E muito para recear que todo o Brasil se acha inundado de semelhantes Associações debai xo do título de Confrarias, e Irmandades, sem que se saiba o número delas, nem os indivíduos de que cada uma compõem [...]. E sendo bem conheci dos os danos que têm resultado aos Estados Soberanos de muitas das ditas Associações eretas ao princípio debaixo do título de piedade, e devoção, e convertido depois em Conventículos sediciosos, e origem de muitos e muito funestos acontecim entos” (Boschi, 1986:28). E, com efeito, estes parâmetros “ilustrados” referentes à religião e ao con trole social sobre as camadas populares não demoraram a deitar raízes na Amé rica portuguesa. Constitui admirável exemplo dessa assertiva o fato de que, no segundo semestre de 1779, durante uma manifestação religiosa e festiva leva da a efeito por negros livres na vila do Recife, alguns frades capuchinhos recém-chegados da Itália e dois padres seculares “se lançaram pelas casas onde moravam os Negros que guardavam os instrumentos das danças e os entraram a quebrar”. Nessa ocasião, “os negros se quiseram levantar, e foi preciso um dos ditos frades tirar um Santo Cristo e dizer-lhes que aquele Senhor é que mandava; isto fez logo aquietar os Pretos”. O então governador da capitania de Pernambuco, José César de Meneses, mostrou-se indignado com o procedi mento dos frades; para ele, sua “obrigação e emprego deve ser de instruir-nos, não só nos pontos da Fé, senão na Humildade e na mansidão cristã” e não “que os Missionários usem da força em lugar da persuasão”. Mais ainda, o governa dor da capitania tinha claro para si que os negros “nada conservam nas tais danças de seus ritos gentílicos, como falsamente se representou”; com efeito, caso tais danças e manifestações religiosas não fossem católicas, autoridades políticas e religiosas já as teriam proibido anteriormente: “não é verossímil que estando aqui um Bispo, tantos párocos, e Prelados, como tantos Antecessores meus, nenhum deles achasse razão para se proibirem as tais danças”. Indo mais além, o governador sublinhava a natureza política da permissão: “antes se fe cha os olhos a isso por uma razão de Estado; porque uns homens constituídos em um Cativeiro pesado desesperariam, se não tivessem no Domingo aquele divertimento, se lançariam a distúrbios mais sensíveis”.24
24 Cf: “Carta de José César de M eneses ao Arcebispo de L accdem ônia” . C ódice dc registro de cartas do governador de Pernambuco, José Ccsar dc M eneses (1779-1781). AIHGB, Livro Terceiro, D L 864. 1-2, f. 101v.-102, 22/3/1780.
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O governador da capitania falava pela boca da tradição. Mas esta, fundada nos mecanismos de controle social antes indicados em nome de uma “razão de Estado”, se achava em seu ocaso. Por um lado, as autoridades religiosas, e sobretudo os frades capuchinhos recém-chegados à capitania, o denunciaram ao “Santo Tribunal” mediante uma “Representação caluniosa e falsa”, se gundo José César de Meneses. Defendendo-se desta, o governador argumen tou que tinha “o coração inteiram ente católico para proteger qualquer pessoa eclesiástica, e muito mais aqueles que promulgam a Palavra de D eus”.25 Tal argumento, contudo, não era suficiente para deter o avanço notório de uma certa ortodoxia católica no mundo religioso da América portuguesa em fins do século XVIII. Por outro lado, novas razões de Estado se impunham, uma vez que a Ilustração portuguesa preconizava naquele momento maior pureza dos rituais católicos, como já foi observado. Desse modo, José César de M eneses recebeu carta de Martinho de Melo e Castro, do Ministério da Marinha e Domínios Ultramarinos, datada de 4 de julho de 1780, segundo a qual se devia distinguir entre duas danças dos ne gros, umas “pouco inocentes, ainda que não [...] dignas de total reprovação”, e outras que “se devem inteiram ente reprovar, como supersticiosas e gentílicas” . As primeiras, informava o ministro, “ainda que possam ser toleradas, com o fim de evitar com este menor mal outros males maiores, deve Vossa Senhoria contudo usar de todos os meios suaves que sua prudência lhe suge rir para ir desterrando pouco a pouco um divertimento tão contrário aos bons costum es”.26 Assim sendo, as práticas animistas e fetichistas levadas a efeito sobretudo por africanos recém-chegados e seus descendentes — nunca tole radas ao longo de todo o período colonial27 e que constituíam um desvio mes mo no interior da população de cor — deveriam ser suprimidas radicalmente; já as manifestações festivas, coloridas e cheias de sons do catolicismo dos negros deveriam ser “suavem ente” erradicadas, em nome dos “bons cos tum es”. A resposta de José César de M eneses a Martinho de Melo e Castro, em carta de 3 de outubro de 1780, é exemplar em dar cumprimento, como fiel
25 Ibidem. 26 Cf. “Carta de Martinho d e M elo e Castro a José César de M en eses” . C ódice de registro de cartas oficiais recebidas pelo governador de Pernambuco, José César de M eneses, e exp e didos pelo M inistério da Marinha e N egócios Ultramarinos (1778-1785). AIHGB, D L 864. 3, f. 22, 4/7/1780. 27 Cf. “Sobre as muitas mortes dos seus escravos originadas pelos feiticeiros”. Arquivo H istó rico Ultramarino (Lisboa). Cód. 276, f. 74, 6/11/1642 (microfilme da Divisão de Pesquisa Histórica da Universidade Federal de Pernambuco); “Relação dos pretos que declarou o que vossa mercê remeteu preso por feiticeiro”. APEJE. Série Ofícios do Governo. Cód. 01 (1769-1773), f. 225, 18/8/1772; “Carta ao D outor D esem bargador Ouvidor-G eral e Corregedor desta Comarca sobre os que se acham fazendo artes mágicas como abaixo se declara”. APEJE. Série Ofícios do Governo. Cód. 14 (1811-1814), f. 58-58v„ 27/11/1811.
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vassalo, às ordens então recebidas: “e daqui por diante”, escreveu ele, “darei todas as providências que achar mais conducentes para ir desterrando pouco a pouco este divertim ento tão contrário aos bons costum es”.28 Traduzida não apenas em idéias, mas também em ações, tal determinação pode ser obser vada em outros documentos contendo ordens internas à capitania de Per nambuco. Em carta de 19 de janeiro de 1781, José César dc M eneses revela nitidam ente que, em matéria de impor restrições às manifestações lúdicas e religiosas dos negros da capitania, havia aprendido rigorosamente a lição en viada do reino. Cerca de um ano após ter sido denunciado ao Tribunal do Santo Ofício, escreveu ao capitão-mor de Goiana, Gregório José da Silva, “que os batuques dos pretos não deixam de ser nocivos; ordeno a Vossa M ercê que pouco a pouco os faça extinguir para cessarem [...] desordens que destes resultam ”.29 Desse modo, em breve tempo, José César de M eneses passava de perseguido a perseguidor, de reprimido a repressor. 4. A obra de cerceamento ao mundo das representações religiosas negras, bem como a destruição das identidades e das sociabilidades étnicas e profis sionais dos homens de cor foi completada pouco mais tarde, ao longo do go verno de Caetano Pinto de Miranda M ontenegro (1804-1817). Este, profun dam ente imbuído dos valores ilustrados, tinha claro para si que em “um país de escravos e de poucas luzes”, como escreveu em novembro de 1811,30 fazia-se prem ente evitar os “ajuntamentos de pretos”, as festas religiosas noturnas, com seus fogos de artifício e outros recursos cênicos, bem como devia-se term inantem ente destruir as corporações profissionais e as com uni dades étnicas africanas da vila do Recife e cidade de Olinda. Uma de suas primeiras medidas, ao início de seu governo, consistiu precisamente no desbaratamento das hierarquias dos homens de cor antes descritas. As cartas pa tentes destinadas àquela camada da população deixaram de ser emitidas após 1804, e as que haviam sido distribuídas anteriorm ente foram recolhidas. Se gundo o governador, os “pretos do Recife e de Olinda”, por intermédio de seus “Reis e Governadores”, nomeavam “Secretários de Estado, Generais,
28 Cf. “Carta de José César de M eneses a Martinho dc M elo c Castro”. C ódice de registro dc cartas do governador de Pernambuco, José César de M eneses (1779-1781). A IHG B, Livro Terceiro, D L 864. 1-2, f. 144, 3/10/1780. 29 Cf. “Carta do governador da Capitania José César dc M eneses para o Capitão-Mor dc Goiana, Gregório José da Silva” . APEJE. Série Ofícios do Governo. Cód. 03 (1780-1783), f. 47v.-48, 19/1/1781. 30 Cf. “Carta ao Doutor Desembargador Ouvidor-Gcral c Corregedor desta Comarca sobre os que se acham fazendo artes mágicas com o abaixo se declara” . APEJE. Série Ofícios do Governo. Cód. 14 (1811-1814), f. 58-58v„ 27/11/1811.
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Tenentes-Generais, Marechais, Brigadeiros-Marechais, Brigadeiros, Coronéis e todos os mais postos militares: pois tudo isso havia em Pernambuco: os tratamentos de M ajestade, Excelência e Senhoria vogavam entre eles: tal era o desaforo a que os deixaram chegar”. Mais ainda, Caetano Pinto de Miranda M ontenegro não apenas recolheu as cartas patentes dos governadores de cor porações profissionais e nações africanas, mas, igualmente, procurou fazê-los esquecer de suas antigas instituições mediante ameaças e repreensões: “T en do recolhido muitas dessas negras patentes, muitas vezes eu tenho repreen dido e ameaçado; mas somente desde o ano passado [1814] vejo os pretos mais submissos, depois que eles viram tão bem as prontas medidas que to mávamos no caso de meditarem alguma desordem” . Concluía o governador ilustrado: “Cumpre, pois, desenganá-los de todo, e arrancar pela raiz os sobreditos abusos: cum pre acostumá-los por algum tem po a maior sujeição possível” .31 As idéias religiosas de Caetano Pinto de Miranda M ontenegro não dista vam dos argumentos antes examinados expostos por Pombal e por Martinho de Melo e Castro. Segundo o governador, antes de conceder licenças para festas religiosas dos negros, devia-se “conseguir que os habitantes de Olinda não misturassem nas suas festas cousas profanas com divinas” e que “o culto se praticasse com a maior pureza e santidade, cuidando-se mais em gravar nos corações os princípios da verdadeira moral do que em distraí-los com aparatos profanos, com os quais e com algumas práticas minuciosas, muitas vezes o povo ignorante julga ter cumprido os deveres da Religião” . Se antes as festas católicas eram toleradas por uma razão de Estado, agora elas passa vam a ser cerceadas pela mesma razão. O temor do governador pelos “ajunta m entos” era aspecto central de justificação de sua prática. Estes, tal como nos exemplos da Bahia e das Antilhas Francesas, freqüentem ente então evo cados, poderiam propiciar a eclosão de revoltas e distúrbios violentos, os quais deveriam não apenas ser temidos, mas meticulosamente evitados. Conforme escreveu Caetano Pinto em dezembro de 1815, “nem foi à minha m ente que se embaraçasse e mandasse castigar um pequeno número de escravos que nos Domingos e dias Santos estivesse brincando em qualquer canto de Olin da. Pequenos ajuntamentos de dia não podem ser de conseqüência: grandes ajuntamentos, e com mais razão os noturnos, devem acautelar-se: e não po dendo afirmar-se raias e limites em cousas vagas e incertas, só um juízo pro videncial combinando as circunstâncias pode regular isto com acerto” .32 A resposta dos negros do Recife e de Olinda a este estado de sítio festivo foi dada por volta de março de 1814. No dia 27 daquele mês e ano “derra
31 Cf. “Carta ao Dr. Ouvidor-Geral da Comarca dc Olinda cm resposta a um ofício”. APEJE. Série Ofícios do Governo. Cód. 14, f. 160-161v., 24/12/1815.
32 Ibidem.
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mou-se um rumor geral por esta Vila [do Recife] de que os pretos se levanta riam no dia 29, Domingo do Espírito Santo”. Nesta circunstância, o governa dor da capitania, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, agiu com a rapidez costumeira: “e tendo eu dado todas as providências necessárias para tranqüi lizar os ânimos assustados, e para conter em respeito os pretos, tive o gosto de ver desvanecidos os receios que haviam, observando-se naquele dia, e nos dois seguintes, o maior sossego e tranqüilidade em todos os bairros desta extensa povoação”.33 Aparentemente, tratou-se de um simples “levante” , no dizer das fontes coevas, o qual foi rapidamente abafado; o seu significado, porém, rem ete às linhas mais amplas com base nas quais se procurou levar a efeito esta análise. Grosso modo, pode-se sugerir que a tentativa de levante atribuída a dezessete homens e uma mulher em abril de 1814 era uma decor rência direta das ações levadas a efeito pelo Governador José César de M ene ses em fins do século XVIII e, sobretudo, por Caetano Pinto de Miranda M ontenegro já nos primeiros anos do século seguinte. O sentido da tentativa de levante era claro: procurava-se restaurar as hierarquias étnicas e profissio nais antes existentes e de retomar os rituais, as festas e sociabilidades que elas ensejavam. Em suma, tratava-se de um movimento voltado menos para a construção de uma nova sociedade no futuro e mais para a restauração de formas sociais do passado. Em primeiro lugar, as lideranças do movimento e suas motivações são su gestivas nesta direção. A mais destacada delas foi, sem dúvida, o “preto forro” Domingos do Carmo, “denominado Rey dos Congos, e de todas as nações do G entio da G uiné” — o qual representava, portanto, escravos, libertos e ne gros livres oriundos de todos os pontos do tráfico para o Brasil. Como num efeito retardado, Domingos do Carmo ainda pensava nos termos da hierar quia que o governo da capitania tinha tentado extinguir anos antes, uma vez que, com ele, foi encontrado um requerim ento “feito ao Governo, em que representava algumas desordens de outros capatazes, e que no caso de não se dar providência haveria um levante”.34 Contudo, foi o escravo de nação benguela, João Maranhão, morador no bairro de Afogados, o principal suspeito de ser “um dos cabeças do motim”. Este, por sua vez, era “Capitão-Mor dos Capineiros, e por dizerem solicitava também a outros pretos para o mesmo fim da referida Povoação dos Afogados”. Usando de sua patente de capitãomor dos capineiros, João Maranhão tentava, provavelmente, mobilizar outros
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Cf. “Carta ao Senhor Desembargador Ouvidor-Geral c Corregedor desta Comarca sobre os Pretos que se queriam levantar”. APEJE. Série Ofícios do Governo. Cód. 15, f. 21-21v., 1.76/1814. 34 Cf. “Relação dos Pretos que têm sido presos cm conseqüência das vozes c rumor geral que se derramou na Vila [do Recife] no dia 27 do m ês próximo passado de que eles meditavam fazer um levante no D om ingo 29, Dia do Espírito Santo”. APEJE. Série Ofícios do Gover no. Cód. 15, f. 21v.-24v„ 1.76/1814.
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colegas de corporação residentes em Afogados, concitando-os a participar do levante. Um outro preso nesta circunstância foi o “preto forro” Joaquim Bar bosa. Embora a razão pela qual tenha sido preso decorra apenas do fato de “ser suspeita a sua conduta”, Joaquim também ocupava uma função naquelas hierarquias de homens comuns: era “Capataz dos Ganhadores”.-'5 Em segundo lugar, os documentos e falas deixadas pelos acusados reve lam seu envolvimento com as hierarquias antes existentes entre as camadas populares, bem como expõem as redes de sociabilidades que lhe permeavam o interior. O “preto forro” João N unes Barbosa, por exemplo, foi preso por que “figurava em primeiro lugar em um requerimento em que ele com ou tros meninos pediam licença para fazerem um brinco pelas ruas no dia do Espírito Santo” .36 O escravo João, de nação caçanje, também morador na povoação dos Afogados, foi “preso por ir dizendo pela Rua do Motocolombó no dia 28 de março que os pretos se levantariam, e que ele havia de dar tam bém a sua pancadinha”. A preta forra Mariana, que vivia de vender frutas, era a única mulher arrolada entre os acusados de participação na tentativa de levante; ela tinha sido vista conversando com outras vendedeiras “dizendolhes que os brancos eram maus, e por que não deitava fora a pólvora e chum bo que tinha em casa Fulano”. As sociabilidades cimentadas por sentimentos étnicos ou de ofício ainda existiam intensam ente entre esses homens. O es cravo açougueiro M anuel e o negro forro Francisco Bento foram presos no Beco de João Francisco, no bairro da Boa Vista, “em uma casa em que poucos entravam de dia e de noite em maior número” . Os escravos João, Antônio e Joaquim foram presos na mesma circunstância porque o primeiro, tendo en trado “no dia 28 [de março] em uma casa defronte dos Martírios onde se ajuntam os da sua Nação mandando-se examinar a dita casa foram achados os outros dois” .37 Os recursos materiais, armas e munições encontrados em poder dos acusa dos sugerem que estes não estavam brincando, bem como que a capacidade de mobilização de recursos desses homens e mulheres era alta. Na mesma casa em que o escravo M anuel e o negro liberto Francisco Bento foram pre
35 Ibidem . Os ocupantes do cargo de capataz de corporações urbanas também recebiam cartas patentes e, igualm ente, eram hom ens de cor. Ver, por exem plo, “O Preto Paulo Silvestre H enrique no cargo de Capataz dos Marcadores das Caixas de Açúcar e Sacas de Algodão” . APEJE. Série Patentes Provinciais. Cód. 8, f. 193-193v., 7/11/1796. Suas funções eram igualm ente honoríficas: conforme esta mesma carta patente, “não haverá soldo algum, mas perceberá os prós c percalços que direitam ente pertencem na mesma forma que seus antecessores” . 36 Cf. “Relação dos Pretos que têm sido presos em conseqüência das vozes e rumor geral que se derramou na Vila [do Recife] no dia 27 do mês próximo passado de que eles meditavam fazer um levante no D om ingo 29, Dia do Espírito Santo”. 37 Ibidem .
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sos “foram achados duas facas, dois chuços e uma fouce, além de muitos quiris”. O escravo Francisco, do Tenente-Coronel João de Oliveira Paim, pro curou obter munição de uma forma ingênua: “Foi preso porque poucos dias antes pretendeu muito encarecidamente, e em particular, comprar um barril de pólvora ao Negociante Domingos Rodrigues Passos, o qual não lhe a ven deu e lhe disse que a fosse buscar em outra parte” . Já o “preto forro” Joaquim da Cunha tinha consigo, no ato de sua prisão, uma espingarda, dois feixos, dois chuços, duas verrumas grandes, um formão e um “pouco de pólvora”. Teoricamente, o “preto forro” Estanislau Dias era o tesoureiro do levante. Em sua casa, na Rua do M undo Novo, a qual ele dividia com um outro forro chamado Domingos, foi encontrada uma caixa de madeira com dois contos, trezentos e setenta e dois mil-réis em dinheiro de ouro, cento e sessenta e quatro e sessenta réis em dinheiro de prata e dez mil seiscentos e trinta réis em dinheiro de cobre. Além disso, foram encontrados duas peças e meia de paninho, um pedaço de cordão de ouro, um par de brincos, um par de botões e um anel, todos de ouro, bem como três colheres de prata.-18 A despeito do fato de constituir um movimento sufocado desde o seu nas cedouro, a tentativa de levante de 1814 revela aspectos extrem am ente im portantes. Em primeiro lugar, ela sugere que as hierarquias étnicas e de ofí cios que existiam entre os cativos e os negros livres da vila do Recife e cidade de Olinda ainda estavam vivas, e que, apesar do projeto político de extinção delas, os cantos, as casas de reunião e o sentim ento de pertença a um grupo étnico ou profissional ainda constituíam fortes referências identitárias entre as camadas populares. Acresce-se a isso o fato de que a composição social dos acusados era rigorosamente bipartida: metade dela era escrava, e m etade li vre. Isto sugere que formas verticais de divisão do mundo social — mediante noções como as de etnia, raça 0 11 ofício — poderiam ser tão 0 11 mais im portan tes como as divisões horizontais, baseadas na escravidão ou na liberdade — ou, em uma palavra, na classe. Em segundo lugar, as motivações para realizar um levante, com todos os riscos que tal prática envolvia, bem como a mobilização de pessoas, de corpo rações inteiras, e de recursos materiais, como armas, dinheiro e objetos de valor de modo que levasse a efeito tal objetivo, parecem apontar para a im portância extrema que tinham para esses indivíduos suas corporações e suas comunidades étnicas, com suas hierarquias, suas distinções e honrarias. Na verdade, as divisões sociais entre as camadas populares, suas formas de dis tinção e classificação, eram parte de um mundo que, até fins do século XVIII, era representado m entalm ente de uma forma mais 0 11 menos coerente, mais 0 11 menos articulada. Mesmo reiterando as relações vigentes de poder, reite
38 Ibidem.
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rando a supremacia do governo da capitania e, em última análise, do Antigo Regime, essas corporações e comunidades étnicas constituíam, ao mesmo tempo, um espaço para a festa, para a efetivação das sociabilidades existentes no m undo das camadas populares e para recriação de identidades coletivas que envolviam negros livres e escravos. A crise de tais instituições sintoniza va-se com a crise de um mundo social cujas balizas se situavam não apenas nas relações entre a metrópole e a colônia, mas também no confronto entre as identidades étnicas, profissionais e raciais que deram vida à América por tuguesa. REFERÊNCIAS
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L u i z G e r a l d o S i i . v a é p ro fe sso r-a d ju n to do D e p a rta m e n to d e H istó ria d a U n iv e rsid a d e F e d e ra l do P aran á (U F P R ), p ro fesso r p a rtic ip a n te do P ro g ram a d e P ósG ra d u aç ão em A ntro p o lo g ia Social da U F P R e p e s q u isa d o r do C o n s e lh o N ac io n al d e P e sq u is a (C N P q .) P rin c ip a is publicações: Os Pescadores na História do Brasil. P e tró polis: Vozes, 1988; Caiçaras e Jangadeiros: Cultura Marítima e Modernização no Brasil. São P aulo: C e n tro d e C u ltu ra s M arítim as da U n iv e rsid a d e d e São P au lo , 1993; Guer ra dos Mascates. São P aulo: A tica, 1995; e 0 Brasil dos Holandeses. São P au lo : A tual, 1997.
R k s u m o . O p re s e n te trab a lh o e x a m in a form as d e so c iab ilid ad e s e x is te n te s e n tre co rp o raçõ es profissionais e c o m u n id a d e s étn ica s n a c a p ita n ia d e P e rn a m b u c o e n tre 1776 e 1814. E ssas in clu íam ta n to h o m e n s livres d e cor com o escravos, e tin h a m o d u p lo p a p e l d e in s tru m e n to d e co n tro le social e d e in stitu iç ão re iterad o ra das id e n ti d a d e s é tn ic a s africanas e d e ofício. A nalisa ain d a a in tro d u ç ão , p o r in sp iração d a Ilu s tração p o rtu g u e sa , d e novos in stru m e n to s d e co n tro le social, os q u ais im p licaram a ex tin ç ã o d essas in stitu iç õ e s e d e suas h ie ra rq u ias e em vários c e rc e a m e n to s às p rá ti cas religiosas e festiv as levadas a e fe ito pelas cam ad as p o p u la re s. A in tro d u ç ã o dessas novas m o d a lid a d e s d e co n tro le social te v e , com o u m d e se u s p rin cip ais resu ltad o s, u m a te n ta tiv a d e le v a n te d e te c ta d a p elo go v ern o da ca p ita n ia d e P e rn a m b u c o em m arço d e 1814.
N eg ro s. Jo h a n N ie u h o f. Voyages and Traveis into Brazil, andEast Indies Containingan Exact Descripyion of die Dutch Brazil, and Divers Ports of the East Indies. L o n d re s: A consham an d Jo h n C hu rch ill, 1703. B iblioteca N acional, Rio d e Janeiro. P au lo H e rk e n h o ff (organizador); te x to s d e Jo sé A n to n io G o n salv es d e M ello . . . [e t al.]. O Brasile os holandeses. R io d e Jan eiro : S e x ta n te A rtes, 1999, p. 134. F o to A n d ré Ryoki.
BATUQUE NEGRO: REPRESSÃO E PERMISSÃO NA BAHIA OITOCENTISTA* J
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O s c e r c a d e q u a t r o milhões de africanos importados para o Brasil como escravos não trouxeram consigo apenas trabalho para produzir riqueza, trouxeram valores religiosos, morais e estéticos para produzir cultura espiri tual. Já é lugar-comum, aliás, falar da contribuição do africano para inúmeros aspectos da cultura brasileira. O presente texto é sobre batuque, mas não pretende identificar origens africanas de ritmos e formas musicais e sim dis cutir relações de poder numa sociedade escravista, tendo como centro de disputa a festa de matriz africana. Os negros estiveram envolvidos em quase todo tipo de festa na Colônia e no Império. Mesmo nas festas privadas “de branco” eles figuravam no míni mo como serviçais e em alguns casos até como músicos. Das celebrações públicas, fossem cívicas ou religiosas, eles com freqüência participaram, segregados ou misturados com gente de outros setores sociais e raciais. Além disso, quando faziam suas próprias festas, elas não eram sempre as mesmas. Algumas tiveram mais, outras menos densidade propriamente africana. As das irmandades negras, por exemplo, podiam conter, sucessivamente, procis são religiosa católica tambores, danças e cantos africanos. Mas havia também as festas que procuravam reproduzir mais fielm ente a experiência que os
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E ste texto é parte de uma pesquisa mais ampla apoiada pelo C N Pq. Embora contenha novidades, é tam bém resumo de trabalho mais longo intitulado “Tambores e temores: a festa negra na Bahia na primeira m etade do século X IX ”, in Maria Clem entina Cunha (org.), Carnavais e outras f(r)estas (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000). Para o texto aqui publicado, me beneficiei dos comentários de ístvan Jancsó, a quem agradeço.
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escravos haviam trazido de suas terras em África. O chamado batuque era desse tipo de festa.1 Um outro ângulo de se observar a festa negra seria considerar o índice de africanidade de seus participantes. Havia festas exclusivamente de africanos natos, o que amiúde aprendemos dos autores dos documentos que as noti ciam. O que estes raramente noticiam é de que africano se trata, qual sua origem específica na África, o que distingue, na festa, o africano nagô do angola, por exemplo. A troca de experiência festiva entre os africanos, que certam ente ocorreu a rodo, pode ser no máximo entrevista, ou vista sem seus detalhes. Outro elem ento diferenciador de interesse: festa de africano escra vo 0 11 de africano liberto? Dc africano novo ou ladino? E o que dizer da mistura de africanos de várias origens, novos e ladinos, escravos e libertos? A mistura leva a mudança. O problema é saber a direção da mudança. Quando incluí mos na folia o negro nascido no Brasil, o chamado crioulo, escravo ou livre, o detalhe continua perdido, mas a imaginação faz supor que estamos diante de um processo maior de transformação cultural, de transculturação se preferi rem. Mesmo de festas mais densam ente africanas, mesmo as de caráter reli gioso, como calundus e candomblés, os brancos e mestiços livres de alémmar e da terra podiam participar, durante longo tempo apenas como observa dores curiosos, para mais tarde se incorporarem, lentam ente, sem no entanto ameaçar a hegemonia negra já firmada. Apesar da mudança, a festa foi refe rência básica de identidade étnica e também escrava, desde que se entenda que identidade não é um ponto fixo da experiência de um grupo, como não é do indivíduo. Identidade também muda e é múltipla. O que perm anece é seu sentido de alteridade e freqüentem ente de oposição conflituosa. Daí por que toda festa negra, embora umas mais que outras, constituíram um meio de expressão da resistência escrava e negra, e portanto motivo de preocupa ção branca. Os diversos sentidos e as várias formas da festa no mundo da escravidão freqüentem ente confundiam os responsáveis por seu controle. Senhores, auto ridades políticas, policiais e esclesiásticas com freqüência discordavam no que fazer diante dela. Por um lado, podiam encará-la como ensaio para a revolta, prejuízo à produtividade escravista, costume bárbaro e assim algo — 0 11 intei ramente — pagão. Por outro, podiam vê-la como elemento pacificador das tensões do escravismo, distração saudável da faina escravista, até como direito adquirido do escravo, sempre que estas festas não passassem de folguedos ho nestos e inocentes, conforme definiu o jesuíta Antonil no início do século XVIII.2 1 A dificuldade em definir o campo semântico do termo batuque é discutido por M artha Abreu, O Império Ho Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio He Janeiro, 1830-1900, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, pp.287-294. 2 André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil, Belo Hori/.onte, Itatiaia/São Paulo, EDUSP, 1982, p. 92.
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N este trabalho, vou procurar sugerir o sentido que a festa negra, em parti cular o batuque, podia ter para seus participantes, mas, sobretudo em virtude das restrições das fontes, interpretar a atitude que tinham senhores, autori dades e outros homens de mando e opinião diante dela ou do que eles pensa vam ser ela. Por isso escolhi as manifestações festivas que eram mais densa m ente africanas ou, sobretudo, vistas como tal pelos poderes constituídos da época. Pretendo discutir em particular o que continuou e o que se manteve, ao longo da primeira m etade dos Oitocentos, na atitude dos brancos — ou de quem se supunha assim — diante do batuque, aqui tomado como uma ex pressão contemporânea para significar, sem muita precisão, a música percussiva negra em geral, quase sempre acompanhada de dança. Para esta discussão eu destaquei três fontes: um relatório policial a respei to de uma festa africana em 1808, no recôncavo baiano; uma série de reporta gens de um jornal sobre batuques em Salvador, entre 1838 e 1841; um debate na Assembléia Provincial da Bahia sobre batuque, em 1855. eS&fc Em dezembro de 1808 aconteceu uma festa africana nas ruas de Santo Amaro, uma das vilas mais populosas do recôncavo baiano, a região dos enge nhos de açúcar. Corriam anos de prosperidade nos campos de cana, o que significava mais escravos importados, que então chegavam à Bahia numa média de oito mil anualmente. Em 1815 a população escrava do recôncavo talvez alcançasse noventa mil alm as.3 Era fim de semana das oitavas do Natal de 1808, e os escravos de engenho se reuniram em festa aos da vila de Santo Amaro, concentrando-se em dife rentes locais, de acordo com os principais grupos étnicos ou nações a que per tenciam: angolas, jejes, nagôs e hauçás, os dois últimos formando um só ran cho de festeiros. No trabalho do engenho, provavelmente essas várias nações não tinham como praticar este tipo de separação. Nas senzalas, talvez os se nhores permitissem que se alojassem segundo a origem, talvez. Na festa exer ciam a liberdade de afirmar suas diferenças.4 3 Os 90.000 escravos do Recôncavo em 1815 é uma estimativa de B. J. Barrickman, “T h e Slave Economy of N ineteenth-C entury Bahia: Export Agriculture and Local M arkets in the Recôncavo, 1780-1860”, PhD, University of Illinois, 1991, p. 352. 4 Capitão José Roiz dc Gomes para o Capitão-mor Francisco Pires de Carvalho e Albuquerque, 20.01.1809, APEBa (Arquivo Público do Estado da Bahia), Capitães-mores. Santo Amaro, 1807-1822, maço 417-1. Na transcrição dos documentos, que se encontra em anexo, eu atualizei a grafia, exceto dc nomes próprios, e mantive a pontuação original. Já fiz uma análise anterior desse docum ento em João José Reis, “Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tem po da escravidão”, Tempo, vol. 2, nO 3 (1997), pp. 7-10 e em “Tambores e tremores: a festa negra na Bahia na primeira m etade do século XIX”, in Maria C lem entina C unha (org.), Carnavaiseoutrasf(r)estas (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000).
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Na festa a divisão étnica era clara, embora não completa. Hauçás e nagôs, por exemplo, associaram-se para formar o grupo “mais luzido”, segundo o Capitão-de-Milícias José Gomes, autor do docum ento que informa sobre o episódio. E dizia por que esse grupo brilhava: “[...] vestidos em meio corpo, com um grande atabaque, e alguns adereçados com algumas peças de ouro, [...] continuaram com suas danças não só de dia mas ainda grande parte da noite, banquetearam -se em uma casa vizinha [...] que se achava vazia, na mesma rua [...] e aí houve muito que beber, a custa dos mesmos pretos.”5 A vila se tornara espaço de liberdade; a festa havia sustado durante algu mas horas o tem po da escravidão. O Capitão Gomes não gostou disso. Fare jou perigo naquela energia física toda perdida para o trabalho, exibida em corpos negros, dançantes, seminus e, a valorizá-los, adereçados a ouro. N u dez e dança que sugeriam sensualidade exacerbada, ponto sempre inquietante no homem escravo, que vivia num am biente carente de mulheres afri canas. Destacou o capitão a presença do grande atabaque, sinal de que já vira outros, menores e menos ameaçadores porém. Considerava-os “malditos ins trum entos”, instrum entos dos infernos quis dizer. E como se definisse um bom sabá, não deixou de apontar a fartura de comida e bebida, observando terem sido pagas pelos próprios africanos, o que sugere escravos com acesso a roças de subsistência e feiras locais, a negros de ganho da vila e talvez libertos africanos, a exibirem todos uma espécie de autonomia relativa no mundo da escravidão.6 E não bastando festejar sob a luz do dia, nagôs e hauçás invadi ram dançando a noite, hora de escravo dormir para acordar na manhã seguin te bem disposto para o trabalho. A noite era ademais hora de circulação livre dos demônios, e de escravos que conspirassem contra a ordem. Quantas am e aças transitaram pela cabeça do capitão! Mas nem todo branco parecia espantado como ele. G ente livre do lugar fora às ruas apreciar a função africana: “muito povo de toda a qualidade, e sexo”, escreveu o capitão reprovando a gente. Os próprios senhores daqueles escravos haviam permitido sua saída dos engenhos, talvez alguns estivessem entre seus espectadores. Houve também o beneplácito de autoridades, entre elas vereadores e juizes, “que governam a república capeando estas insolên
5 Capitão José Roiz de Gomes para o Capitâo-mor Francisco Pires de Carvalho e Albuquerque, 20.01.1809 6 O sistema de ganho permitia ao encravo embolsar parte do que conseguia auferir com seu trabalho. Não se deve excluir a possibilidade de que mesmo escravos de engenho conse guissem dinheiro com a venda, nas feiras locais, de excedentes de suas roças. Sobre estas, ver B. J. Barickman, ‘“A Bit of Land Which T h ey Call Roça': Slave Provision G rounds in the Bahian Recôncavo, 1780-1860”, Hispanic American Histórica/Review, 74: 4 (1994).
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cias com o título de brinquedo”, censurou o miliciano, “e até é consentido pelos próprios senhores nos seus engenhos e fazendas à exceção de um pe queno núm ero”.7 O que era brinquedo para senhores, vereadores e juizes, era insolência escrava para o capitão. Poder militar, de um lado, poderes polí tico e senhorial, do outro, estavam divididos sobre como governar os escravos de Santo Amaro. Bom para estes, que, apesar de divididos em nações, agora podiam aproveitar a divisão dos poderosos. Deduz-se desse depoim ento que o direito à festa vinha sendo ampliado pelos escravos entre a maioria dos senhores e autoridades políticas locais. Essa visão se confirma em outra pas sagem do documento, onde se lê que cenas daquele tipo representavam “de sordem [...] não nova nesta vila”. Para a maior parte dos brancos, parecia, esta suposta desordem representava a verdadeira expressão da ordem, no sentido de que escravo que se diverte não subverte. Retornarei a este ponto. Por enquanto vou falar de outro santamarense apoquentado. Trata-se do padre da vila, Inácio dos Santos. Durante a tarde ele se apre sentou a nagôs e hauçás com vontade de suspender suas danças. Não se m en ciona que tivesse feito o mesmo em relação a angolas e jejes, escravos prova velm ente mais disciplinados aos olhos do padre, ou tão mais ardilosos que enganavam até Deus. Quanto a nagôs e hauçás, menos sutis, o padre “se endereçou a eles com zelo apostólico” . Podemos imaginá-lo tentando catequisar em meio a uma celebração com jeito de gentílica. Falara em vão, se gundo Capitão Gomes, “[...] pois os ditos pretos o não atenderam respondendo-lhe com palavras menos decentes, e [...] afinal lhe disseram que seus senhores tinham toda a semana para se divertirem, e que eles tinham nela um só dia, e que se retirasse, aliás levaria o que lhe dessem, e assim se retirou o dito padre apelando para D eus.”8 D eus não parece ter percebido a gravidade da situação, pois não acudiu seu missionário. Indecência, falta de decoro, nudez, dança, enfim cultura sub versiva de baixo calão e baixo-ventre, mas também atitudes e palavras bem definidas, aqueceram o episódio de luta de classes escrava em Santo Amaro. O com portamento dos escravos evidenciava antagonismo diante dos senho res. Vimos antes que o capitão representou a estes como permissivos, colabo radores, quase aliados de seus escravos em festa. Agora que podemos entre ouvir a palavra destes, eis que emerge uma crítica cortante à exploração es cravista e aos privilégios senhoriais. Em lugar de concessão senhorial, na fala
7 Capitão José Roiz dc Gomes para o Capitão-mor Francisco Pires de Carvalho c Albuquerque, 20.01.1809. 8 Ibdem .
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escrava a liberdade à festa se apresenta como direito, e tal princípio seria lançado, temperado com indecência, sobre um representante da religião ofi cial, quer dizer, da religião senhorial. Acrescente-se que o Padre Inácio talvez enfrentasse escravos muçulmanos. Bem, muçulmanos mas nem tanto. Os hauçás pelo menos vinham de ter ras ocupadas por Alá, embora não só por Alá. Eles deram na Bahia como es cravos por terem sido vítimas de conflitos na África, entre estes a jih a d ini ciada em 1804 em país hauçá pelo Xeque Usuman Dan Fodio, jih a d que prosseguia no ano em que aconteceram os episódios aqui narrados. A guerra santa teve por objetivo doutrinário, entre outros, com bater práticas pagãs que segundo Dan Fodio vinham contaminando a alma dos muçulmanos. Estes escravos de Santo Amaro devem ter sido adversários do xeque na África. Ele afinal escrevera contra batuques semelhantes aos da Bahia: “M inha opinião é que um tambor deva ser tocado apenas para objetivos legítimos, como convo car uma reunião, avisar quando um exército parte, bate os campos 0 11 retorna para casa, e coisas assim”. E continuava afirmando ser term inantem ente proi bido ao muçulmano “tocar instrumentos para se divertir e cantar” .'' O Xeque Dan Fodio parecia com o Padre Inácio. Como os hauçás se aliaram aos nagôs para batucar, e estes eram predom inantem ente “pagãos”, Santo Amaro podia estar servindo de palco para maior afastamento dos primeiros da versão orto doxa do Islã, representada pelo xeque. De ambos os lados do oceano, as festas africanas dividiam quem tinha poder para reprimi-las, que todavia muitas vezes não tinha a determinação de um Padre Inácio ou um Xeque Dan Fodio. Para ilustrá-lo, introduzo agora em cena Francisco Pires de Carvalho e Albuquerque, membro da poderosa Casa da Torre e capitão-mor de Santo Amaro, a quem o sim plesm ente Capi tão Gomes dirigira seu relatório. No dia seguinte à leitura deste, o capitãomor escreveria ao capitão-general e governador da Bahia, o Conde da Ponte. Este considerava que a manutenção da ordem dependia da submissão abso luta dos escravos, o que não combinava com manifestações de autonomia cultural africana. Dono de muitas propriedades em Portugal e na Bahia, e tam bém de engenhos, ele próprio possuía mais de cinco centenas de escra vos.10 Portanto, além de defender interesses da metrópole, defendia inte resses privados da maneira que lhe parecia mais eficaz. Ao contrário dos senhores do recôncavo, considerava que batuques e danças africanos repre sentavam ensaios para revoltas escravas, o que perturbava seu sono mais do que o bater dos atabaques. 9
'U thm án Ibn Fíidi (Usuman dan Fodio), Bayán Al-H ijra 'Ala 'L -’Ibad (The Exposition ofthe Obligation ofErnigra/ion upon the Servants ofG od), editcd and translatcd by F. H. El Masri, Khartoum, Khartoum University Press; N ew York, Oxford University Press, 1978, p. 90. 10 Anais do Arquivo Público da Bahia, vol. 28 (1945). Agradeço a ístvan Jancsó a indicação desta fonte.
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Em sua comunicação ao condc, o capitão-mor até o tranqüilizou: informou que o “ajuntam ento de pretos descidos dos engenhos” não tivera outro fim senão promover “os seus folguedos”, embora nem sempre fosse assim. D e sordens realm ente aconteciam, às vezes. E solicitou instruções definitivas sobre como agir." Conhecedor do estilo duro de seu superior, o capitão-mor poderia ter agido duram ente contra os escravos, mas como estes festejavam com licença de seus senhores preferiu buscar apoio político do governador. D e fato, o Conde da Ponte respondeu ordenando que “semelhantes ajunta mentos de escravos devam ser evitados”, os recalcitrantes punidos com ca deia e seus senhores advertidos.12 Eram os métodos do Conde da Ponte. Não se pense que ele estava sozi nho nisso. Apesar de vacilante, o capitão-mor não desgostava da idéia de en durecer o governo dos escravos. N um nível hierárquico mais baixo, já vimos como pensava o Gomes, o capitão-de-milícias. Todos pareciam ter ouvido os conselhos do português Luís dos Santos Vilhena, civilizado professor de gre go, que cinco anos antes havia lavrado as seguintes reflexões sobre a incivili zada Salvador em que vivia: “[...] não parece ser muito acerto em política, o tolerar que pelas ruas, e terreiros da cidade façam multidões de negros de um, e outro sexo, os seus batuques bárbaros a toque de muitos, e horrorosos atabaques, dançando desonestam ente, e cantando canções gentílicas, falando línguas diversas, e isso com alaridos tão horrendos, e dissonantes que causam medo, e estra nheza, ainda aos mais afoitos, na ponderação de conseqüências que dali podem provir, atendendo ao já referido número de escravos que há na Bahia, corporação temível, e digna de bastante atenção, a não intervir a rivalidade que há entre os crioulos, e os que não são; assim como entre as diversas nações de que se compõe a escravatura vinda das costas da África.” 13 Tudo muito parecido com o que acontecia em Santo Amaro. Vilhena pros seguia dizendo que caberia manter os escravos em estado de total subordina ção, não apenas aos senhores, mas aos brancos em geral. Pois o que se via na Bahia era escravos, sobretudo aqueles cujos senhores figuravam entre os bran cos mais importantes da colônia, a tratarem os brancos ordinários como se fossem seus inferiores. Foi exatam ente a situação que o Conde da Ponte entendeu ter encontrado quando chegou à Bahia no final de 1805. Há diversos ofícios dele nesse senti-
11 Capitão-m or Francisco Pires de Carvalho e A lbuquerque para o governador conde da Pon te, 21.01.1809, APF.Ba, Capitães-mores. Santo Amaro, 1807-1822, maço 417-1. 12 Ibdem . Despacho do conde da Ponte, 27.01.1809. 13 Luís dos Santos Vilhena, A Bahia no século X V III, Salvador, Itapuã, 1969, vol. 1, p. 134.
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do. Ele reagiu segundo a receita de Vilhena, como se tivessem conversado sobre o assunto. Em abril de 1807 já escrevia à Corte sobre seu sucesso no combate a diversos focos de resistência africana nos arredores de Salvador, onde prendera muitos negros que, segundo ele, “[...] com uma liberdade absoluta, danças, vestuários caprichosos, rem é dios fingidos, bênçãos e orações fanáticas, folgavam, comiam e regalavam com a mais escandalosa ofensa de todos os direitos, leis, ordens c pública quietação.” 14 Fora os aspectos religiosos, também aqui tudo muito parecido com o que apuramos sobre o Natal de Santo Amaro. Um Natal que o conde não queria que se repetisse. Para alívio dos escravos da Bahia, ele morreria em 1809, aos 35 anos, talvez vítima de “remédios fingidos, bênçãos e orações fanáticas” bem administrados por africanos. No entanto, vivera o suficiente para que os senhores baianos se acostumassem com seu estilo repressor de lidar com os escravos. Foi o que percebeu seu sucessor, o Conde dos Arcos. Ao contrário do ou tro, este conde era um governante mais sensível politicamente. Eu até diria que era moralmente melhor que Ponte. Ele achava que os escravos eram mal alimentados, excessivamente castigados, obrigados a longas e extenuantes jornadas de trabalho. A um juiz de fora de Cachoeira, ele ensinou em carta de 1813 que “o meio mais seguro e eficaz de evitarem as desordens causadas pelos pretos escravos é sem hesitação o permitir-se-lhes o entretenim ento de suas danças, nos Domingos, e dias Santos”.15 Era, aliás, o que vinham fazen do os senhores de Santo Amaro antes do endurecim ento imposto de cima pelo governo anterior. Arcos pensava haver várias vantagens em flexibilizar a escravidão baiana, tendo como seu argumento principal o assunto que nos interessa: a festa africana. Segundo o conde, ela contribuiria para desoprimir o espírito do escravo, fazê-lo esquecer por algumas horas sua vida miserável, e além disso promover a divisão étnica, uma vez que, livre para festejar, cada nação o faria separadamente, sem grandes frentes subversivas, como ocorrera na Santo Amaro de 1808. Dividir para dominar — nada de novo, e há até mesmo algo de Vilhena em Arcos, já que o professor de grego tam bém apos tava na divisão étnica como fator de segurança. A diferença estava no m éto do. Vilhena não parecia acreditar que a repressão aos batuques diminuísse a divisão étnica, ao contrário de Arcos.
14 Conde da Ponte para o visconde dc Anadia, 7.4.1807, Anais fia Biblioteca Nacional Ho Rio He Janeiro, 37 (1918), pp. 450-451. 15 Conde dos Arcos para o Juiz de Fora dc Cachoeira, 22.5.1813, APEBa, Cartas Ho Governo, 168, fl. 246.
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Por suas posições muito claras sobre o assunto, os condes da Ponte e dos Arcos representaram dois modelos bem definidos, verdadeiros paradigmas, de governo dos escravos, o modelo duro e o flexível de controlá-los. A festa esteve no âmago desses paradigmas, isto é, permiti-la e reprimi-la passaram a significar métodos diferentes de administrar a paz nas senzalas.16 Dessa for ma, a festa esteve também no centro da resistência escrava. Ela não só serviu realm ente como ante-sala da rebelião, como acreditava o Conde da Ponte, mas tam bém podia provocar a revolta se reprimida, como previa o Conde dos Arcos. Ou seja, nem a repressão nem a tolerância ao batuque seriam garantia de paz na senzala. Os mesmos escravos hauçás e nagôs que em 1808 agitaram festivam ente Santo Amaro com suas danças e atabaques em 1808, agitariam socialmente a Bahia ao longo dos próximos trinta anos. Começaram em 1807, quando o Conde da Ponte descobriu uma elaborada conspiração, que entre tanto conseguiu sufocar a tempo. Mas daí em diante, nagôs e hauçás, separa dos ou combinados, agitariam Salvador e o recôncavo com mais de vinte cons pirações e levantes, muitos dos quais acompanhados de atabaques. ■ssfa. Após a Independência parece ter havido um esforço grande dos governos locais para controlar melhor a população escrava, por meio de leis provinciais e sobretudo posturas municipais, entre as quais se incluíam as que proibiam term inantem ente batuques e lundus de negros “em qualquer hora e lugar” .17 As medidas refletiam temores com a rebeldia escrava e com a disseminação de costumes africanos. Não era para menos. Os escravos continuavam che gando aos milhares nas décadas que sucederam à Independência, mesmo após a proibição do tráfico em 1831. Para a Bahia, pelo menos 170.200 foram importados, entre 1820 e 1850, a maioria ilegalmente.18 Em 1835, os escravos constituíam mais de quarenta por cento dos cerca de 65.000 habitantes de 111 D iscuto estilos de controle escravo dos condes da Ponte e dos Arcos, no contexto das revoltas escravas baianas, em João Reis, “Recôncavo rebelde: revoltas escravas nos enge nhos baianos”, Afro-Asia, 15 (1992), pp. 102-107 e “Quilombos e revoltas escravas no Bra sil” , Revista USP, nD 28 (1989), p. 24.0 papel do conde da Ponte na repressão a um quilombo no sul da Bahia é detalhado em João Reis, “Escravos e coiteiros no quilombo do Oitizeiro: Bahia, 1806”, in João Reis e Flávio Gomes (orgs.), Liberdade po r um fio : história dos quilombos no B rasil (São Paulo, Companhia das Letras, 1996), pp. 332-362. 17 Ver diversos exemplos em Repertório defontes sobre a escravidão existentes no Arquivo Munici p a l de Salvador: as posturas (1631-1889), Salvador, Fundação Gregório de M attos/Prefeitu ra Municipal do Salvador, 1988, passim; Legislação da Bahia sobre o negro: 1835-1888, Salva dor, Fundação Cultural do Estado da Bahia/Diretoria de Bibliotecas Públicas, 1996, pp. 125 e segs. David Eltis, “T h e N ineteenth-C entury Transatlantic Slave Trade: An Annual Tim e Series of Imports into the Américas Broken Down bv Region", HispanicAmerican Histórica!Review, vol. 67, n0 1 (1987), p. 136.
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Salvador. Aproximadamente sessenta por cento deles haviam nascido na África, os quais, somados aos africanos libertos, chegavam a 37 por cento da popula ção da cidade. Acrescente-se que os africanos de nação nagô vieram a consti tuir, em meados do século, mais de dois terços desses africanos. Com isso as antigas divisões étnicas foram paulatinamente fenecendo para dar lugar a uma espécie de hegemonia nagô, hegemonia numérica que se traduziu cul turalmente. A festa agora não era mais motivo de divisão dos africanos. Tal vez por isso tivesse se tornado mais vigorosa, o que acontecia, porém, no mesmo momento em que a elite branca buscava erradicar a cultura africana das ruas de Salvador, para “civilizar” a cidade. E isso acontecia num período abalado pela rebeldia escrava, sendo a de 1835, a dos malês, a mais famosa.19 O levante dos malês, em janeiro de 1835, aconteceu num final de semana do ciclo de festas do Bonfim. A data coincidiu com a celebração muçulmana que encerrava o Ramadã. Festa e revolta deram as mãos. Logo após o levan te, num momento de grande tensão na província, as festas públicas, que faci litavam a reunião de negros, tornaram-se motivo de alarme. O medo coletivo colaborava para a circulação dc rumores, nem sempre fundamentados. No início de fevereiro espalhou-se a notícia de que cativos de vários engenhos em Itaparica e Cachoeira planejavam um levante para o domingo de carna val. A festa dos pescadores em Salvador, que acontecia no dois de fevereiro, foi proibida.20 Em 1835, qualquer batuque era confundido com atentado contra a escra vidão. N aqueles dias, um juiz de paz de Cachoeira recebeu denúncia de movimentação escrava no Iguape, coração da cultura canavieira no municí pio. Uma investigação revelou que acontecera apenas, num dos engenhos, “o divertim ento de tabaque dos pretos, divertim ento que dizem costuma ali haver nos dias de sábado”.21 O senhor deste engenho seguia os princípios dos
19 João José Reis, Rebelião escrava no Brasil, São Paulo, Brasiliensc, 1986, pp. 15-20, passim. Em “A greve negra de 1857 na Bahia”, Revista USP, 18 (1993), p. 28, calculo que 77% dos escravos de ganho em Salvador em meados da década dc 1850 seriam de origem iorubá/ nagô. 20 João J. Reis, Slave rebellion in B razil, Baltimore, Johns H opkins University Press, pp. 189190. Cito a edição cm inglês de Rebelião escrava por haver a ela acrescentado estes e outros dados ausentes da edição brasileira. 21 Juiz de Paz do 10 Distrito de Cachoeira para o Presidente da Província, 9.2.1835 APEBa, Juizes. Cachoeira, 1834-1831, maço 2272. O temor de que os rebeldes malês inspirassem revoltas fora da Bahia levou a um aum ento do controle escravo cm outras partes do país, sobretudo no Rio. Ver Reis, Slave Rebellion, pp. 29-30; Flavio dos Santos Gomes, Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro - século X IX , Rio dc Janeiro, Arquivo Nacional, 1995, p. 259; Abreu, O Império do Divino, pp. 198-201 e passim; Carlos Eugênio L. Soares, “A capoeira escrava no Rio dc Janeiro — 1808-1850”, T ese dc Doutorado, UN1CAMP, 1998, pp. 89 e segs, 92, 102, 277, 295 e segs etc. O medo dc revolta, o clima dc insegurança diante de possíveis sedições populares, tem or que ajuda a alim entar rumores de levantes, tudo faz parte tam bém de outros cenários bem diversos da
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senhores santamarenses acusados de displicentes pelo capitão-de-milícias, em 1808. Da mesma maneira que, de acordo com o costume, ele havia per mitido seus escravos de batucarem, muitos brancos e mestiços desejaram que a vida retornasse à normalidade em 1835. Encararam a revolta nagô como mais um levante sufocado, sem elhante a muitos anteriores. Mas outra parte da população livre cedeu ao medo. Parte da imprensa baiana refletiu e fortaleceu esse medo, promovendo a idéia do caráter sempre revolucionário da festa negra. O jornal Correio Mer cantil cv\m\)úu bem este papel. Em 1838, por exemplo, divulgou longo artigo a respeito de um “estrepidoso batuque” nos arredores de Salvador, que teria levado “o susto e o terror a imensas famílias daquelas circunvizinhanças” .22O jornal decerto recebera denúncias de moradores, cujo sono teria sido invadi do pelo som de tambores que sugeriam imagens de africanos se preparando para um levante. Prosseguia informando que já denunciara fatos sem elhan tes, no mesmo sítio, e agora acrescentava que lá tam bém se reuniam negros aquilombados. Batuque, quilombo, revolta eram assim associados. Esta últim a “folgança” , no entanto, não reunira apenas africanos. O pró prio jornal haveria de informar sobre a presença de “gente de diversas qua lidades” . Essa m istura social, embora não tão assustadora quanto a rebelião africana, sobressaltava os que pregavam a eliminação do batuque como par te do plano de civilizar, à moda européia, a província baiana. Pois parecia que os africanos é que estavam ganhando os baianos para sua própria civi lização. No mês seguinte, o Correio voltaria a denunciar que no mesmo local e em outros subúrbios da cidade acontecera grande “folgança africana”, além de “pequenos batuques”, para comemorar a retirada de Salvador do batalhão n.° 7 de Pernambuco. Esta força militar fora trazida para combater os rebeldes da Sabinada, que haviam ocupado a cidade no início de novembro de 1837, de onde seriam desalojados em março de 1838, depois de sangrentos conflitos. O movimento teve o apoio de diversos setores da população negra, incluídos escravos.23 A ocupação militar que se seguiu certam ente tornou a vida dos
Bahia escravocrata. \ ’cr Jean D elum eau, História do medo no Ocidente, São Paulo, Com pa nhia das Letras, 1989, caps. 4 e 5. Tam bcm transcultural é o fenômeno da convergência entre festa e revolta. Confiram-se dois clássicos: Yves-Marie Bercé, Fête et réuoIte: d es mentalités populaires du XVe au X V IIIe siécles, Paris, H achette, 1976 e Em m anuel Le Roy Ladurie, Le Carnaval de Romans: de la Chande/eur au mercredi des Cendres, 1579-1580, Paris, Gallimard, 1979. 22 Correio Mercantil, 4.7.1838 (da coleção da BNRJ). 23 Estes assuntos são tratados por Paulo César Souza, A Sabinada: a revolta separatista da Bahia, 183 7, São Paulo, Brasiliense, 1987. O viajante George Gardner, Traveis in the Interior o fB ra zil..., 1836-1841, Londres, Reeve Brothers, 1846, p. 78, escreveu que a Sabinada estourou pouco depois de ele passar por Salvador e foi liderada por alguns brancos, “mas apoiada pela maioria da população negra”.
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negros mais difícil, daí o júbilo pela evacuação. Segundo o jornal, “Nessa noite, como para mostrar o peso de que ficaram aliviados os «malês», todos cantaram, ou antes uivaram em ranchos”.24 Com a animalização dos africanos — feras que uivam — , o jornal aumentava a experiência de medo do leitor. E as feras eram malês. Na semana seguinte, O Correio retornaria a batuques e malês.25 O assunto, todavia, só seria reintroduzido com força total em 1841, por ocasião dos feste jos pela coroação de D. Pedro II. Uma vez mais um incidente relativamente banal teria “levado o susto aos pacíficos habitantes desta cidade” . Parece que a prisão de um escravo africano com escritos árabes provocou uma onda de boatos de que os malês estariam tentando uma segunda edição do levante de 1835.2<>O periódico guiou os olhos e ouvidos de seus leitores para sua inter pretação dos batuques: “[...] cenas terríveis que toda esta cidade contempla nos domingos e dias santos, muito principalmente as que tiveram lugar durante os 8 dias de festejos da coroação; falemos claro: à vista dos tumultuosos e numerosos batuques de africanos que por aí encontra a cada dia o pacífico habitante, e que, horrorizado, fazem-no apressar o passo a ganhar a casa; quem não justificaria, até certo ponto, esse terror súbito que se apodera de uma po pulação inteira [...] quando aliás ainda tem presente a audácia com que em 1835 foram surpreendidos os quartéis... etc. etc. etc.?”27 Os “etc. etc. etc.” pertencem ao documento original e convidavam os lei tores a ocuparem seus pensamentos com as memórias de 1835. E claro que o espaço mental já era pequeno para isso, pois o jornal asseverava que toda a população — da qual evidentem ente excluía escravos e africanos em geral — já se encontrava devidam ente aterrorizada pelos batuques. N este ano de 1841 o Correio aproveitaria para defender com maior em pe nho a civilização na província. Alegando ser veículo de uma opinião generali zada entre os que assistiram às celebrações da coroação de Pedro II na Bahia, o periodista sugeriu que os negros haviam roubado a cena. Escreveu: “m ulti
24 Correio M ercantil, 2.8.1838. O Correio parccc ter sido o único jornal da época a se preocupar tão detidam ente com batuques e malês. 25 Correio Mercantil, 7.8.1838. lh Realm ente os malês deixaram uma impressão duradoura dc medo entre os baianos. Seu principal símbolo, os papéis árabes, continuavam a assustá-los cm meados do século. Se gundo o vice-consul inglês James Wcthcrell, os “Brasileiros, como todo outro povo igno rante, ficam muito assustados com tudo que não podem en ten d er”. Já o inglês, que se achava superior aos brasileiros, possuía escravos que ele sabia muçulmanos, um dos quais o presenteara com um caderno de orações islâmicas. James Wetherell, Stray Notes frorn Bahia, Liverpool, Webb & H unt, 1860, p. 138. 27 Correio Mercantil, 30.9.1841.
plicados batuques [...] cm todas as praças e lugares públicos, de dia, e às vezes até alta noite, feriam as vistas e as pobres orelhas dos que se dispu nham a gozar belas festas”. E imaginou o que pensaria um turista oitocentista diante dessas músicas e danças: “um estrangeiro que naquela ocasião che gasse a esta cidade, julgar-se-ia, àquela vista, em uma povoação africana, tão numerosos e atroadores eram os tais batuques!”. Se o autor dessas palavras fosse leitor da literatura de viajantes saberia que, com ou sem batuques, eles realm ente consideravam Salvador uma espécie de povoação africana. Vários deles se surpreenderam com a maciça presença negra na população da cida de, e escreveram que seus navios pareciam haver perdido o rumo e tocado a Costa d ’Africa.28 Para mudar essa impressão, devia o Correio saber, Salvador teria de esconder, expulsar ou exterminar seus negros, despovoando radical m ente suas ruas, mas ao mesmo tempo tirando as mãos e os pés que faziamna funcionar. Com trinta e sete por cento de seus habitantes nascidos na Africa, com quase outros quarenta por cento inteira ou parcialmente descen dentes de africanos, a cidade era sobretudo africana. Mas a batalha do jornal não era demográfica ou econômica, era cultural. O fato — o fato jornalístico pelo menos — era que os africanos teriam hegemonizado culturalm ente a celebração de 1841, e isso constituía um pés simo precedente e um grave sintoma. Na ocasião, os baianos brancos que se dirigiram à estrada do Noviciado, para assistirem a um dentre os vários espe táculos pirotécnicos apresentados, se “encheram de terror” com o barulho dos quase quinhentos negros que desfrutavam aquele pedaço da festa. Havia o terror produzido pela perpectiva de nova revolta negra, e havia o medo da africanização cultural da província. A apropriação negra do espaço daquelas festas indicava vitória dos africanos numa batalha da guerra simbólica. Mas a política de símbolos não distraía a atenção do jornal de conseqüências políti cas mais graves, e ele concluiria sua cobertura do episódio voltando a advertir sobre “[...] os maus resultados que provêm desses estrepidosos e tumultuários ajuntamentos, aonde o fanatismo brutal desta seita [malê], exaltado pela cachaça concebe idéias de extermínio e canibalismo que por mais de uma vez, desgraçadamente tem levado a efeito.”29 Fanáticos, exterminadores, canibais, além de batuqueiros e cachaceiros — eis o perfil dos malês do Correio. Eles pareciam mais aqueles escravos, pro vavelm ente também malês, do agora distante episódio de Santo Amaro, em
28 Ver M oema Parente Augel, Visitantes estrangeiros na Bahia oitoce/itista, São Paulo, Cultrix/ IN L , 1980, pp. 201-207. 29 Correio Mercantil, 30.09.1841.
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1808. Mas os malês de 35, de acordo com depoimentos da época, pareciam estar afinados com um Islã mais austero, mesmo que não chegassem aos ex tremos recomendados pelo Xeque Dan Fódio. Há notícia de que promoviam banquetes, não batuques. Há notícia de que bateram tabor em 1835, mas para fazer a guerra, não a festa. A não ser que se entenda, e não seria erro fazê-lo, que a revolta fora um tipo de festa para os malês.30 Matérias como as veiculadas pelo Correio ajudaram a construir uma ima gem do batuque que, embora plausível, em grande medida não existiu. O discurso desse jornal, no entanto, trabalhou materiais simbólicos c ideológi cos, e aconteceu num contexto, que facilitavam a aceitação de suas diatribes. Os africanos realmente haviam provado, em 1835 e outras ocasiões anterio res, que eles podiam fazer da festa revolta. A excitação coletiva de seus batu ques, não raro aureolados de mistério, parecia, para muitos, sempre, um aviso de que estivessem aquecendo o espírito para voltar a atacar. Mas os atabaques na maioria das vezes batiam para anunciar um outro ti po de rebelião, diferente do ataque frontal e violento à sociedade escravista baiana. Eles comunicavam que os africanos e seus descendentes não se dei xariam escravizar mentalm ente. Para tal, não seria preciso terem sempre em m ente um adversário branco pronto para conquistar suas almas, tendo já es cravizado seus corpos. Os próprios corpos, aliás, se libertavam no espaço de suas festas, fossem no Natal de 1808 ou na Coroação de 1841. Os africanos celebravam a vida como sabiam fazê-lo, e nesses momentos se libertavam do branco e suas maneiras de ser. Mas esta África aqui refeita e festejada, que não se submetia culturalm ente, não era, para muitos, menos ameaçadora do que a que se rebelava socialmente. Para gente que pensava como os que escreviam o Correio Mercantil, a festa africana representava uma ameaça ao projeto de uma Bahia civilizada ao modo europeu, além de ameaçar uma Bahia escravista bastante real. «*&. N a década de cinqüenta os baianos civilizados combateriam duram ente os bárbaros atabaques nas ruas da cidade. Com o final definitivo do tráfico tran satlântico em 1850, eles tiveram suas esperanças redobradas de que agora os batuques seriam afinal vencidos. Estes aconteciam especialm ente durante comemorações religiosas, festas públicas do calendário anual da cidade, pare cidas com as organizadas extraordinariamente para celebrar a coroação de Pedro II. A festa do Bonfim se destacava entre as preferidas pela população,
Reis, Rebelião escrava, pp. 110-135. Toda religião tem centro e periferia. Q uando falo em malês morigerados, estou falando dos malês pertencentes ao centro do Islã cm 1835.
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em especial pelos negros, entre eles os africanos. N aturalm ente o Bonfim tornou-se alvo preferencial dos civilizados. Em 1855, por exemplo, foram aí reprimidas danças no largo da igreja e apreendidos nada menos que vinte atabaques.31 Um ano depois, o inglês James Wetherell fez esta anotação, pre conceituosa mas informativa, em seu diário de verão da Bahia: “As festas nesta igreja eram antes cenas do mais selvagem deboche. Mais de 20.000 negros se reuniam e se espalhavam pelo morro sobre o qual está situada a igreja: centenas dançavam enquanto milhares olhavam, e estas orgias continuavam incessantemente. Os dançarinos foram proibi dos em público há alguns anos, mas multidões imensas, vestidas no máxi mo da moda negra, vão lá durante os três domingos de janeiro em que a festa tem lugar. As danças acontecem nas casas, e mesmo do lado de fora, apesar da proibição, e todo tipo de divertimentos em barracas, que são levantadas em volta ou perto da igreja.”32 Ainda bem que esse inglês estava por perto para registrar esse importante mom ento da festa negra. Em meados do século, o cerco parecia estar aper tando e ela resistindo bravamente. O cerco apertava talvez porque os batu ques estivessem ganhando terreno, reprimidos aqui para ressurgirem acolá, tam bém porta adentro, sob novas formas e modas, como revela Wetherell. Além disso os brancos continuavam divididos sobre se, como, onde e até o quê deviam reprimir ou permitir. A discussão sobre o tema chegou à Assem bléia Provincial baiana em agosto de 1855. O debate seria surpreendente porque girava em torno do direito ao batu que, algo que parecia resolvido pela negativa há muito tempo, ao menos no plano legal. A oportunidade seria dada por uma postura regulando a matéria, enviada para exame pela câmara de Maragojipe, cidade do recôncavo. Era de lei que as posturas de todas as cidades e vilas da província devessem ser aprovadas pela assembléia, antes de entrarem em vigor definitivam ente.33 A postura proibia “batuques e vozerias” em “casas públicas”. Estamos aqui diante de uma modalidade diferente de lazer: salões onde se dançavam batu que em Maragojipe, e provavelmente outras cidades do recôncavo, além de Salvador. No caso de Salvador, Wetherell acaba de informar sobre as casas que abrigavam batuques durante os — e provavelmente além dos — festejos do Bonfim.34
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Jornal da Bahia, 17.3.1855, p. 2, 19.03.1855, p. 1. W etherell, Stray Notes, p. 122. Jornal da Bahia, 17.03.1855 e 19.03.1855. Um postura da vila de X ique-Xique proibia precisam ente “batuques e vozerias” nas resi dências, sob pena de 2400 réis ou oito dias de prisão. Ver Repertório de fontes, p. 63.
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A discussão de 1855 incluiu animado debate sobre o significado de batu que. O D eputado Antônio Luís Afonso de Carvalho era a favor da postura. Não podia haver homem mais da ordem que ele. R ecentem ente nomeado delegado do primeiro distrito da capital, era aliado do governo provincial, naquele ano ocupado pelo conservador João Maurício Wanderley, ex-chefe de polícia na Bahia e futuro Barão de Cotejipe.35 A pergunta de um colega liberal sobre se batuque era “vozeria”, Afonso respondeu ser isso e muito mais: a reunião de pessoas para danças “as mais bárbaras e imorais, com vozes descompassadas e atroadoras [...] a mais completa bacanal”; era tam bém foco de bebedeira, de brigas, de crimes. Batuques não eram “inocentes brinque dos”. Aqui baixara o espírito daquele capitão-de-milícias santamarense, que cinqüenta anos antes também vira grande “insolência” africana onde verea dores, juizes e senhores só viam inocente “brinquedo”. Agora em 1855, o D eputado Afonso elogiava um subdelegado que reprimira no Bonfim “um grande número de pretos africanos [...] [que] publicam ente se entregavam a danças imorais, no meio da mais incômoda algazarra”. Observem a ênfase sobre a imoralidade dos requebros dos batuqueiros, outra linha de continui dade nos argumentos dos durões desde o início do século, mas agora uma preocupação mais bem explicitada, mais saliente. Um outro deputado da situação, José Pires de Carvalho e Albuquerque, da mesma vetusta linhagem familiar daquele capitão-mor de Santo Amaro em 1808, ajudou o D eputado Afonso a completar o quadro com uma im portante preocupação de escravista: “Os que concorrem aos batuques são pela mor parte, escravos, que fogem para aquele fim das casas de seus senhores, e deixam de lhes prestar serviços”. Eis um ângulo que não encontramos expli citado na campanha do Correio Mercantil contra os batuques, e apenas insi nuado nos documentos referentes ao Natal de 1808 em Santo Amaro. O jor nal, relembramos, investia contra o “barbarismo” dos batuques — tal como estes deputados — e alertava sobre seu papel de estimular revoltas escravas — tema que os deputados não abordariam. Explica-se: o Correio publicou suas teses entre o final dos anos trinta e início dos quarenta, quando fantas mas malês ainda assombravam a província. Em 1855, quando a assembléia discutiu o batuque, se completavam vinte anos sem nenhum levante escravo significativo. O problema agora era reprimir costumes africanos, considera dos bárbaros e imorais numa província que se queria civilizada, e também evitar que eles prejudicassem os negócios da escravidão. A preocupação aqui é com a resistência homeopática da fuga, da vadiagem e do indecoro, não com a resistência cirúrgica da insurreição violenta. A estratégia dos deputados mais tolerantes foi defender a liberdade da festa privada. Um desses deputados, o mais eloqüente nesse debate, era o médico e jornalista liberal João José Barbosa de Oliveira, pai dc Rui Barbosa, residente na mesma freguesia da Sé onde seu colega Afonso atuava como
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delegado.-16 Barbosa não defenderia o batuque desordeiro descrito por Afon so, nem os escravos fujões, vadios e batuqueiros de José Pires. Apenas rezou a cartilha liberal, sustentando que seria despotismo intolerável legislar sobre o que se passava na vida privada, no recolhimento da casa. Ele preferiu igno rar o argumento adversário de que a postura se referia a “casas públicas” . “As câmaras”, argumentou ele, “não podem entrar nas casas alheias”. Quanto ao batuque, nivelou-o a qualquer outro tipo de dança ou música, a primeira con sistindo “na cadência de seus passos mais ou menos concertados” , a segunda “o som dos instrum entos e vozes, que se podem altear ou não” . “E uma cantoria estrepitosa”, espantou-se José Pires. O pai de Rui não se intimidou, levantando surpreendente tese da cantoria “em voz submissa”, de instru mentos “brandam ente” tocados, que definia o “batuque sem vozeria”. Batu que era uma coisa, barulho outra. Em seguida passou à dança. Quem podia proibir alguém de dançar como quisesse em sua casa, “a portas fechadas”. Não havia que reprimir-se a dança porque não se podia penetrar o coração humano e ordenar: “extinga-se esta fonte de paixão” . As conseqüências da paixão, sim, podiam ser reprimidas, desde quando, tal como o barulho da música, ofendessem ou incomodassem a terceiros. Seria assim necessário conciliar “liberdade civil e direito social”, explicou Barbosa. A ele repugnava que no Brasil devesse haver tutela estatal sobre os negros, ao passo que os brancos desfrutariam das benesses do libera lismo. Chegou a acusar os conservadores de comunistas, por supostamente quererem “reduzir todos os indivíduos ao estado de pupilos [...] acabar com o direito natural, [...] estabelecer o comunismo e entregar ao Estado a tutela de todas as ações individuais” .37 O deputado não preconizava liberdade absoluta para o exercício do batu que, mas não era contra o batuque em si. Para ele os regulamentos policiais, o próprio código criminal, já bastavam para controlar os excessos que a postu ra supostam ente punia. No final venceu essa linha de argumentação, levando à rejeição da postura, apesar de um aparte, favorável a ela, do arcebispo-primaz do Brasil, o D eputado D. Romualdo Seixas, aliado de Barbosa em outros tempos, ou pelo menos em outras coisas.38
35 Sobre ser Affonso delegado, ver Camillo de Lelis Masson (org.), Alm anak adm inistrativo, mercantil, e industrial da Bahia para o ano de 1855, Bahia, Typ. de Camillo lelis Masson, 1854, pp. 77, 331-332. 16 Ibdem , pp. 85, 239. Agradeço a Lizir Arcanjo Alves a gentileza dc por à minha disposição suas anotações sobre a vida de João Barbosa. Médicos como Barbosa c advogados como Affonso tinham profissões típicas do legislativo provincial. Ver Katia M. dc Queirós Mattoso, Bahia, século X IX: uma província no Império, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992, p. 265. 17 Doze anos antes, Barbosa deixaria outro vestígio de sua antipatia pelas idéias socialistas num discurso de elogio ao arcebispo D. Romualdo Seixas: O Musaico, 2: 12 (Junho, 1846), pp. 181-184.
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Políticos como João José Barbosa faziam parte de uma linhagem ideológica que na Bahia vinha de longe, mas se revestindo de estratégias c argumentos diferentes, e se adaptando a novas situações. Nos documentos aqui analisados, os adeptos dessa corrente, na época das revoltas escravas, sustentavam que os batuques serviam para evitá-las; na época da calmaria escrava, eles chegariam ao extremo de defender o batuque como um direito civil. Enquanto isso, os adeptos da intolerância misturaram uma preocupação com a ordem, que acre ditavam ameaçada pelo batuque, à repulsa moral e religiosa, mas mudando a ênfase entre o início do século e os anos seguintes ao levante de 1835 — neste último período o combate à festa africana seria caracterizado como luta entre a civilização pacífica dos brancos contra a barbárie rebelde dos malês. No final do período aqui analisado, meados do século, o ataque à barbárie moral continuaria figurando no discurso da intolerância, mas desapareceria a atenção com a revol ta negra, substituída pela preocupação com a resistência cotidiana — sobretu do a fuga temporária e a vadiagem — favorecida e mesmo provocada pela festa. A sombra das dúvidas dos que mandavam, a festa negra continuaria civili zando africanamente a Bahia. Na segunda metade do século, ela ampliaria seu raio de ação e sedução, se abrindo ainda mais para participações extra-africanas em gente e símbolos. Mas para muitos, tanto do lado negro como do lado bran co, ou para os que flutuavam no meio, nunca deixaria de ter a marca indelével da africanidade. E essa marca certamente não era representada pela “voz sub missa” e pelos instrumentos “brandam ente” tocados sugeridos pelo Deputado Barbosa. Os africanos civilizaram a seu modo a Bahia, com barulho. A resistên cia escrava, feita com freqüencia na surdina, neste caso não era muda. A O
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Ainda que em outro officio asseverei a V.Exa. não haverem escravos disperços dos Engenhos, o que assim hé, como chegou a minha notícia ter havido hum ajuntamen to de pretos descidos dos Engenhos para dentro da Villa onde fizerão os seos Bailes, passei a mandar informar-me, e me consta o que declara a parte junta do Capitão comandante, e suposto que parece não teve outro fim mais, que os seos folguedos, com tudo, em outras occasiões tem feito os escravos nestes ajuntamentos algumas dezordens, e estes conventículos podem ser de má onsequência, e V. Exa. determi nará a este respeito, o que for servido. Deus Guarde V. Exa. por séculos como he mister. Engenho da Passagem, e Casa de V. Exa. 21 de janeiro de 1809. Francisco Pires de Carvalho e Albuquerque Capitão-mor
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A vista da sua participação de 21 do corrente fique V. Mercê na inteligência de que semelhantes ajuntamentos de escravos devam ser evitados, e o faça assim saber aos Senhores que lhes constar pertencião os ditos Escravos, que devem ser recolhidos às cadeias desta Vila logo que reencidão em taes distúrbios, ou que saião das Fazendas a que pertencem sem serem [para] legitimo serviço de seus senhores. Deus Guarde Bahia 27 [de janeiro de 1809]
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Illustrissimo Senhor Capitão Pella informação que me dá o Alferes Commandante da 2a Companhia de nosso Terço, José Francisco da Silva, em conseqüência de ordens que V. Sa. lhe deo pesso almente para everiguar o procedimento de hum ajuntamento de escravos, que houve nesta Villa, pelas oitavas do preterito Natal, descerão dos Engenhos do districto des ta Villa varios escravos de todas as naçoens, e unindo-se em três corporaçoens com muitos desta Villa, segundo a sua nação, formarão três diferentes ranxos, de ataba ques, e fizerão os seos custumados brinquedos, ou danças, a saber, os geges, no sítio do Sergimirim, os Angolas, por detrás da Capella do Rozario, e os nagôs e Uçás, na rua de detrás, junto ao Alambique que tem de renda, Thomé Correa de Mattos, sendo este ranxo o mais luzido, vestidos em meio corpo, com hum grande atabaque, e al guns adereçados com algumas peças de ouro, e continuarão com as suas danças não só de dia mas ainda grande parte da noite, banqueteando-se em húa caza vizinha a dita situação, que se axava vazia, na mesma rua de detrás, e ahi ouve muito que beber, a custa dos mesmos pretos [rasurado] do dito brinquedo, e forão espectadores, muito povo de toda a qualidade, e sexo, e sem que afinal ouvesse tumulto, ou dezordem se retirarão cada hum ao seo domicilio, a tempo que os dous preditos ranxos, ou adjuntos de geges, e Angolas se tinhão retirado com a noite, e se não sabe que estes se banqueteassem, ou fizessem couza notável. Hé certo que estando a corporação dos nagôs, e Uçás no maior calor da sua dança na tarde de hum dos referidos dias, se endereçou a elles com zello Apostolico a Revdo. Pe. Ignacio dos Santos, para impedir a dita dança, cuja diligência foi inútil, pois os ditos pretos o não atenderão respondendo-lhes com palavras menos decentes, e que afinal lhe disserão que seos senhores tinhão toda a semana para se divertirem e que elles tinhão nella hum só dia, e que se retirasse, aliás levaria o que lhe dessem, e assim se retirou o dito Pe. apelando para Deos, dizem que o autor desta resposta era escravo do Capitão-mor João Pedro [Fiúza Barreto], cujo nome se não pode averi guar. Esta dezordem Senhor não he nova nesta Vila, pois de ordinário em semelhantes dias e tempos, custumão ajuntar-se estes indivíduos para nela formarem danças, com aquele malditos instrumentos a uzo de sua terra, e he tal a desgraça que assim o praticão a vista e face dos Magistrados, que governão a republica capiando estas inso-
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JOÃO
JOSÉ
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lencias com o título de brinquedo, e athé he consentido pelos próprios senhores nos seos Engenhos, e fazendas, a excepção de hú pequeno número, como V. Sa. não ignora, no que preciza pronta providência a qual dará V. Sa. como lhe parecer acer tado. Deos guarde a V. Sa. muitos annos. Vila de Nossa Senhora da Purificação e Santo Amaro, 20 de janeiro de 1809. José Roiz de Gomes Capitão □ □□ o ã o J osé R f. i s é professor do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia. E autor de Rebelião E scra va no B rasil: a H istó ria do L eva n te dos M alês (1835). São Paulo: Brasiliense, 1986 e de A M orte E U m a F esta: R ito s F únebres e R evo lta P o p u la r no B ra sil no Século X I X . São Paulo: Companhia das Letras, 1991, entre outros estudos de história social.
J
R e s u m o . Discute os batuques de negros buscando perceber transformações e continuidades quanto ao perfil dos participantes e atitudes de senhores e autoridades políticas e policiais diante da festa negra, na Bahia, entre o final do século XVIII e meados do século XIX.
Oricongo. Le viel orphée africain. J.-B. Debret. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Aquarelas e desenhos que não foram reproduzidos na edição Firmin Didot, 1834. Paris: Castro Maya Editor, 1954, prancha 30. Biblioteca do Instituto de Estudos Bra sileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Foto André Ryoki.
FESTAS E RITUAIS DE INVERSÃO HIERÁRQUICA NAS IRMANDADES NEGRAS DE MINAS COLONIAL1 M
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c o m p l e i ç ã o d a sociabilidade confrarial está diretam ente relaciona da com as atividades mobilizadoras dos confrades. Entre estas, as festas assu miram importância capital nas confrarias negras. Estavam intim am ente asso ciadas com suas perspectivas de sobrevivência econômica e conferiam-lhes elem entos de distinção na vida associativa colonial. Nesse sentido, apareci am como com ponentes definidores de sua auto-imagem, portanto, da sua identidade cultural. A abordagem comparativa da concentração dos itens de despesa permite uma primeira aproximação do dimensionamento das atividades lúdicas nas associações. Tomamos como referência duas irmandades negras, uma urba na, o Rosário do Alto da Cruz de Vila Rica, e outra rural, o Rosário de Santo Antônio de Itatiaia. Acrescentamos os registros da confraria do Santíssimo Sacramento de Vila Rica, agremiação composta de brancos, com objetivo de contrastar o comportamento de instituições negras e brancas com relação à definição das prioridades de gastos. Os gráficos, a seguir, sintetizam os resul tados alcançados:
1 Agradeço à Fapesp a concessão de auxílio financeiro para realização desta pesquisa. Este texto baseia-se cm minha tese de doutorado, Negras M inas Gerais: Uma História da Diáspora Africana no B rasil Colonial. São Paulo: USP, 1999.
Gráfico 1. Concentração dc despesas no Rosário do Alto da Cruz
1732-1739
1740-1749
1750-1759
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□ n. id. □ outros ^ obras □ capelão □ culto □ festas
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1760-1769
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Gráfico 2. Concentração dc despesas no Rosário dde Itatiaia 100 %
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1731
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1794
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G ráfico 3. C oncentração d e d esp esas do Santíssim o Sacram ento d e Vila Rica
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□ n. id. □ outros □ obras ■ capelão □ culto □ festas
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DE AGUI AR
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RITUAIS
DE
INVERSÃO
H I E R Á R Q U LC A
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Estes gráficos permitem algumas conclusões:2 I — Parece notável a harmonia e regularidade nas opções de gastos das confrarias negras, sejam elas rurais ou urbanas, multiétnicas ou de etnia criou la. As diferenças existentes podem ser explicadas por um mesmo padrão de comportamento: a correlação entre as despesas com festas e as realizadas nas obras da capela e na sustentação material do culto. Em geral, as confrarias gastavam entre vinte e quarenta por cento de seus rendimentos nas festas. Todavia, o valor poderia decrescer ou aumentar em razão direta dos compro missos de reforma e construção dos templos. Estes em preendim entos prova ram ser significativos para a caixa das confrarias e eram vistos como elementos galvanizadores da vontade da coletividade. N estes momentos, aceitavam-se transferências de valores normalmente gastos nos festejos para saldar com promissos contraídos. Esta correlação explica também o comportamento das confrarias de arraiais abrigadas em templos alheios, como demonstra seu exem plo mais extremo, o Rosário de Santo Antônio de Itatiaia. Depois de equipada com os elementos básicos de uma irmandade de tipo paroquial, a associação poderia depositar seus rendimentos quase exclusiva m ente nas festas, quando não era chamada a contribuir para reformas das matrizes ou capelas curadas. O Rosário de Itatiaia não teve capela própria durante todo o século XVIII e apresentou taxas muito baixas de gastos com obras ou com a manutenção do serviço religioso, porém chegou a despender mais de oitenta por cento dos rendimentos com festas. Em 23 de julho de 1797, decidiu construir ermida em um desaterro que já se encontrava pronto. D eterm inou-se em mesa o depósito das contribuições no cofre “para se ir pagando as despesas que se fizerem com a fatura da capela”, esforço refletido na súbita inversão das tendências de despesa da confraria (Gráfico 2).3 O Rosário do Alto da Cruz constituía excelente exemplo deste movimento re lacionai dos registros de despesas. II — Nas confrarias negras, os gastos com missas pela alma dos irmãos defuntos eram pouco expressivos, menos de dez por cento do total da receita. Em alguns casos, não chegavam a cinco por cento. Observa-se ligeira eleva
2 Fontes: os dados sobre o Santíssimo Sacramento de Vila Rica foram extraídos de Aguiar, Marcos M. dc. Vila Rica dos confrades: a sociabilidade confraria!entre negros e mulatos no século X V III. Dissertação dc mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1993, tabelas p. 328-330; Livro de Receita e D espesa da Irmandade de N. S. do Rosário do Alto da Cruz (1726-1798), Arquivo da Paróquia de Antônio Dias (APAD); Livro de Receita e Despesa da Irm andade de N. S. do Rosário de Itatiaia (1792-1833), M 30; Livro de Eleições, Recei ta c D espesa da Irm andade de N. S. do Rosário de Itatiaia (1730-1791), M 23; Arquivo Eclesiástico da Curia de Mariana (AECM). 3 Livro de Receita e Despesa, Eleições, Recibos e termos da Mesa da Irmandade de N. S. do Rosário de Itatiaia (1773-1831), M 29; termo de construção da capela, f. 40-40v, e termo sobre obras, f. 41. Em 1800, a capela é visitada pelo bispo (despesa, f. 25v); AECM.
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ção de despesas desse tipo na segunda m etade do século. O Rosário do Alto da Cruz, do qual dispomos de dados mais representativos, não gastava quase nada com esse item na primeira m etade do século. Este era um diferencial claro com as irmandades brancas, como a do Santíssimo Sacramento, a qual despendia de trinta a quarenta por cento da sua receita com sufrágios de irmãos mortos. III — A construção e reforma dos templos era um dos principais objetivos das confrarias negras. Duravam décadas e consumiam muito esforço finan ceiro. O Rosário do Alto da Cruz gastou uma média próxima de quarenta por cento de suas receitas durante quase quarenta anos, uma verdadeira epopéia em preendedora. Junto com os itens de sustentação material do culto, pode ria com prom eter mais da metade dos rendimentos das irmandades m antene doras de capelas próprias. Este foi fator de peso para a conservação de várias devoções sob administração de uma mesma confraria, arranjo muito comum nas que dispunham de templos próprios, porém mais raro nas associações paroquiais. No arraial de Gouveia, freguesia de Vila do Príncipe, por exem plo, os “pretos” do Rosário juntaram-se às “pardas irmãs” de N. S. da C on ceição e aos “pretos” de São Benedito para construir capela com invocação de N. S. do Rosário, onde cada devoção instalaria o seu altar com as respecti vas imagens.4 A conjugação de esforços era meio consistente para superação das carências materiais existentes e poderia envolver várias instituições de estrutura administrativa autônoma em padrão comum ao das matrizes. IV — Nas confrarias rurais, como os Rosários de Casa Branca e de Cacho eira do Campo, a sustentação de capelão provou ser uma das despesas mais pesadas, chegando a consumir algo em torno de quarenta por cento da recei ta. Nas confrarias urbanas de menor rendimento, como as duas M ercês de Vila Rica e São José, alcançava somas respeitáveis de quase vinte por cento. Nas agremiações economicamente mais sólidas, como os Rosários do Caquende e do Alto da Cruz, ambos de Vila Rica, consumia em torno de dez por cento dos rendimentos, nos momentos de pico de gastos com esse item. Ape sar da diminuição do valor da capelania,5 no decorrer do século XVIII, o de créscimo da receita foi mais corrosivo e comprometeu, em determinadas con
4 O provedor dc capelas e resíduos passou provisão provisória dc dois anos com obrigação de os confrades solicitarem provisão dc ereção da capcia. A sua petição foi acolhida favoravel m ente, no Conselho Ultramarino, por despacho de 24 de janeiro de 1787, o qual resultou na provisão régia dc ereção da capcia de 26 dc fevereiro dc 1787. A petição encontra-se cm caixa 137, AHU, e a provisão régia cm Chancelaria dc D. Maria I, L. 81, f. 65-65v, Arquivo Nacional da Torre do lom bo (A N TT). Como sempre, as licenças para ereção eram passa das com a condição de “ser [a capela] decente e o patrimônio seguro” . 5 Para o valor da porção dos capelães, ver Aguiar, Marcos M. de. “Capelães e vida associativa na Capitania dc Minas Gerais”, in: Varia Historia, 77:80-105, 1997; Campos, Adalgisa A. A terceira devoção: o culto a São Miguel e Almas. T ese de doutorado. São Paulo: USP, 1994, p. 304.
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DE
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frarias, como o Rosário de Itatiaia, a conservação da função em momentos específicos.6 A obrigação de missas pela alma dos irmãos defuntos, com preendida como atividade caritativa, constituía traço estrutural da vida associativa, e não dei xava de ser estipulada em nenhum a das irmandades de obrigação como com promisso a ser cobrado. As confrarias negras de Minas, na segunda m etade do século, continuaram a definir o gesto de demanda de missas com base em suas conveniências econômicas e da compatibilidade que viesse a ter com as prioridades definidas: os festejos da devoção e a manutenção do templo. Isso não significa que os sufrágios não aparecessem como um dos grandes atrati vos dessas confrarias, sobretudo para conjunto específico de confrades, os forros. A questão não pode ser adequadam ente avaliada sem se saber a extensão do atendim ento das cláusulas espirituais definidas nos estatutos: até que ponto as confrarias as cumpriam? Os compromissos apressavam-se a definir restri ções para o cum primento das cláusulas. Várias irmandades o condicionavam à satisfação dos anuais e entradas dos confrades, mas admitiam circunstâncias atenuantes. Os irmãos que não tivessem contribuído por impossibilidade material poderiam ser sufragados e os que, tendo condições para pagar não o faziam, não gozariam das missas pela alma.7 Em outras associações menos caritativas, prevalecia a racionalidade administrativa e os insolventes eram
6 Para os dados sobre as confrarias mencionadas, ver Aguiar, Marcos M. de. Op. cit., 1999, p. 286-324. Para uma avaliação da evolução dos rendim entos de algumas irmandades negras e mulatas durante o século XVIII, ver gráficos anexos. 7 Compromisso da Irm andade de N. S. das Mercês dos Pretos Crioulos da Vila de São João del-Rei (1805), cap. 11, Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I, L. 45, f. 60v-65; Compromisso da Irm andade de N. S. do Rosário dos Pretos do Arraial de N. S. da C oncei ção da Barra (1797), cap. 12, Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I, L. 45, f. 55-59; Compromisso da Irmandade de N. S. da Conceição dos pardos e pardas de Itabira do Cam po (1767); o cap. 20 excluía os irmãos eleitos insolventes do sufrágio e do acom panham en to da confraria, Chancelaria da O rdem de Cristo, Antiga, L. 283, f. 23-29; Compromisso da Irm andade de N. S. do Rosário do Inficionado (1767), cap. 13, Chancelaria da Ordem de Cristo, Antiga, L. 283, f. 135-138v; Compromisso da Irmandade de N. S. da Boa M orte dos H om ens Pardos de Antônio Dias, Vila Rica (final do século XVIII), cap. 2, M inistério do Reino, L. 528 C; Compromisso da Irmandade do Senhor S. Benedito de Sumidouro (1735); o cap. 2 previa ainda expulsão dos escravos insolventes por mais de dois anos e definia sanções para os forros; o cap. 12 introduzia modificações, pois admitia abatim ento do valor da dívida nos sufrágios e determinava uma missa, pelo menos, para todos; Chancelaria da O rdem de Cristo, D. Maria I, L. 15, f. 48-55, A N TT. Compromisso da Irmandade de N. S. do Rosário dos Hom ens Pretos da Vila de Campanha da Princesa (1800), cod. 1534; o cap. 12 excluía os insolventes tam bém do acompanhamento; Compromisso da Irmandade de N. S. do Rosário dos Pretos do Arraial do Rio Manso (1794), cod. 1818, cap. 9; Compromis so da Irm andade de N. S. da Boa M orte dos Pardos de São João del-Rci (1786), cod. 1675; o cap. 14 excluía tam bém do acompanhamento e sepultura; Compromisso da Irmandade de N. S. do Rosário da Lagoa Dourada (1793), cod. 1286; o cap. 14 excluía os que tivessem culpa na sua “pobreza e ruína”, Arquivo Histórico Ultramarino (AHU).
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excluídos do benefício, independentem ente dos motivos da falta de paga mento.8 Muitas irmandades eram acusadas de não-satisfação das cláusulas espiri tuais contidas nos compromissos. A confraria dc N. S. da Conceição dos par dos de Itabira do Campo recomendava muita atenção com o cum primento dos sufrágios e admitia: “A experiência tem mostrado o grande descuido que há nesta matéria de tanta importância em todas as irmandades, faltando-se aos irmãos defuntos com os sufrágios que lhes são devidos, de que resulta grande encargo de consciência aos oficiais a cujo cargo está o mandar fazer os ditos sufrágios” .9 A manutenção de registros defasados, a desorganização ad ministrativa e o desinteresse eram citados pelos visitadores eclesiásticos e provedores de capelas como causa do não-cumprimcnto dos sufrágios pela alma dos irmãos falecidos das confrarias negras. Constrangida pelo provedor de capelas e resíduos a dar contas das missas pela alma dos irmãos falecidos, a irmandade de N. S. Rosário de Cachoeira do Campo reconhecia, em 1757, não tê-los sufragado por não dispor de venci mentos “seguros e certos mais do que tão-somente o que se tira em o dia da festa” . O provedor não aceitou as alegações da irmandade e passou a pressioná-la para cumprir as cláusulas do compromisso. Ordenou a elaboração de lista anual dos irmãos sufragados para controle do cum primento de suas or dens. A confraria adotou práticas comuns em situações deste tipo: desconsi derou a recomendação até que o provedor a renovou de forma mais enérgica. Sem saída, impossibilitados de compatibilizar as despesas dos sufrágios com as dos festejos em face de rendimentos insuficientes, os confrades foram obri gados a cancelar as festas três vezes para atender às determinações do prove dor. Em uma dessas ocasiões, em 1765, os juizes, rei, rainha e oficiais retroagiram e assumiram os festejos. Os irmãos improvisaram formas de contornar as pressões do funcionário da Coroa. Em 1759, alguns confrades optaram por contribuir com pagamento de despesas da festa, e não com valores m onetá rios, como normalmente se fazia. O rei e a rainha contrataram a música para dois dias, e a juíza por devoção, Maria da Silva, ofertou o sermão de N. S. do
8 Compromisso da Irmandade de N. S. do Rosário dos pretos da Capela de S. Antônio do Calambau (1782), o cap. 4 autorizava os sufrágios se o valor das contribuições do confrade excedesse a despesa das missas; Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I, L. 12, f. 108114v; Compromisso da Irmandade dc N. S. do Rosário dos Pretos dc Ribeirão do Carmo (Mariana, 1727), cap. 14, M inistério do Reino, L. 528 D; Compromisso da Irm andade de N. S. das Mercês e Redenção dos Cativos do Sumidouro (1783); o cap. 7 tam bém previa exclusão do acompanhamento e sepultura; Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I, L. 15, f. 195-199v, A N TT. Para os compromissos baianos, ver Reis, João J. A morte éuma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Com panhia das Letras, 1991, p. 206-07. 9 Compromisso da Irmandade de N. S. da Conceição dos pardos e pardas de Itabira do C am po (1767), cap. 4; Chancelaria da Ordem de Cristo, Antiga, L. 283, f. 23-29, ANTT.
FESTAS
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Rosário. Assim, os oficiais concordaram em com plementar o restante das des pesas. Passado algum tempo, em 1766, a irmandade retomou os festejos com a “solenidade possível” . D e 1762 até 1788, registrou lista de irmãos sufraga dos, porém não se arriscou a comprometer sua sobrevivência cancelando os festejos.10 Nas confrarias de pequenos arraiais, a questão do cum primento dos sufrá gios pela alma dos irmãos adquiria tons dramáticos, pois a pressão de visitadores e provedores de capelas poderia pôr em risco a sobrevivência da insti tuição. Em 1737, o visitador Francisco Pinheiro da Fonseca recriminava o Rosário de Santo Antônio de Itatiaia por nunca ter feito o oitavário dos de funtos, como estava previsto no compromisso da associação. O vigário não o cobrara por não conhecer, até então, os estatutos da confraria. Para satisfação dos ofícios atrasados, Fonseca impôs que as festas fossem feitas apenas com missa cantada de cantochão, sem música ou sermão. Os irmãos continuaram a não fazer o oitavário, e outro visitador. Cônego Antônio Pereira da Cunha, notando o “miserável estado da confraria” e percebendo não haver condições para cumprir as sugestões de seu antecessor, observou estar a cerimônia con dicionada à existência de recursos. Como não os havia, limitou-se a recom en dar ações mais enérgicas de cobrança das esmolas por meio de expedição de monitórios. D. M anuel da Cruz voltava à questão, em 1753, e cobrava não apenas o oitavário, mas tam bém os sufrágios pela alma dos irmãos. O descaso com a últim a obrigação irritou os visitadores. Em 1761, o Cônego José dos Santos determ inou ao vigário não consentir a realização das festas sem os irmãos apresentarem certidões de missas dos irmãos sufragados. As certidões deveriam ser mostradas antes das festas, "pois tem mostrado a experiência que, nesta irmandade, se não se faz festa, não contribuem os irmãos com suas esmolas". O cônego Francisco Ribeiro da Silva, em 1764. fez levantam ento com ple to do problem a e determ inou mudanças no calendário festivo da confraria. Anotou o descuido do registro dos termos de entrada dos irmãos, os quais, “por essa razão, se esquecem de lhes fazerem o seu funeral, e nem o Reve rendo Pároco tem por onde os obrigue a que cumpram esta obrigação” . Este
" Para a questão, ver Livro dc Recctta c Despesa d i Irmandade de S. do Rosário de Cachoeira do Campo <1725-1773H. AA 25, oude se encontram os provimentos do provedor Francisco An«ek» Leitão, o primeiro a insistir na questão, em 20 de outubro de 1756. O “especial cuidado” espetado da confraria eommas missas pela alma. secundo Leitão, provi nha da consideração de que ~
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descuido refletia-se na incerteza dos confrades a quem se deveria sufragar: “Tem havido descuido muito antigo em satisfazer por cada irmão o sufrágio que manda o seu compromisso, e da mesma sorte fazer a cobrança de cada um para suprir esta despesa, donde resulta não se poder averiguar, com certe za física, os irmãos que serviram e concorreram com esmolas que se lhe deva satisfazer todo o sufrágio, donde resulta estar a irmandade sempre na mesma dúvida” . Converteu os sufrágios supostam ente atrasados em trinta missas e determ inou a observância da cláusula espiritual, mesmo para os irmãos insol ventes por motivos de impossibilidade material. Para fazer frente às despe sas, reduziu o valor da capelania e fundiu os dois dias de festa da confraria, dedicados a São Benedito e N. S. do Rosário, em um só dia, o da mãe de Deus. No mesmo ano, em mesa geral, a confraria acolheu estas determinações e resolveu fazer uma só festa, em 10 de agosto, com “missa cantada com sua música de curiosos e, de tarde, terço pela rua” . D esde então, a festa passou a ser única, situação que não se modificou com a agregação da devoção de San ta Ifigênia, a partir de 1785. Os oficiais desta irmandade não foram muito zelosos no registro das contas e provocaram a ira dos provedores, que, por esse motivo, viam-se impossibilitados de acompanhar suas atividades. A con fraria continuou, apesar das intervenções, com gastos muito expressivos em festas e quase inexistentes em sufrágios pela alma dos irmãos." Nas associa ções de Vila Rica, observou-se política sistemática de restrição do benefício de missas pela alma dos mortos. Visitadores e provedores de capelas não fo ram, contudo, tão ativos na censura do descuido com a obrigação, e as irman dades parecem tê-la cumprido, ao contrário das suas congêneres brancas. Os confrades negros não deixaram de cogitar, entretanto, a exclusão do benefí cio para privilegiar outras despesas.12 Os rendim entos das confrarias negras estavam associados, na maior parte, às festas e à construção do templo e manutenção do serviço religioso. D esta camos o movimento relacionai entre esses dois itens de despesa, mas deve-se observar a dependência estrutural das irmandades com relação a seus feste jos.13 Normalmente, as eleições e festas realizavam-se em dias ou semanas subseqüentes, quando não ocorriam no mesmo dia. Essas ocasiões coinci diam com os atos de entrega de esmolas e pagamento de anuais e de entradas dos irmãos, enquanto durante o ano se faziam as coletas regulares de esmolas da bacia e da caixinha, além do recebimento de rendim entos avulsos, como
11 Para os provimentos de visitadores e termos da mesa, ver Livro de Receita c Despesa, Eleições c Termos da Mesa da Irmandade de N. S. do Rosário de Itatiaia (1730-1791), M 23, f. 26-82 e 118v-137, AECM. 12 Aguiar, Marcos M. de. Op. cit. (1993), p. 253-8. 13 Para o que se segue, ver Aguiar, Marcos M. de. Op. cit. (1993), p. 175-95 e p. 202-25.
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acompanhamento de enterros, aluguéis de casas e recebim ento de legados. Eram, portanto, os momentos fortes de contribuição econômica das irmanda des, e os irmãos conheciam muito bem os riscos da ausência de festejos para a sobrevivência da devoção. Por isso, os compromissos, prevendo desloca mento dos gastos das festas para reformas do templo, manutenção do altar ou “despesas precisas”, solenizavam a ausência do festejo com missa rezada e reunião de irmãos e registravam termo de explicação do ocorrido.14 Preca viam-se do desaparecimento dos confrades, pois, como reconhecia um visitador eclesiástico anteriorm ente citado, sem festas não havia esmolas. A relação entre festas e sustentação material das confrarias estava fundada na própria natureza das contribuições. Visitadores eclesiásticos e provedores de capelas sempre insistiam na adequação precisa dos gastos à natureza das contribuições. As glosas contra o fausto e ostentação das festas, além de refle tirem as orientações tridentinas de extirpação de excessos heterodoxos, par tiam deste princípio.15 A orientação, também observada em vários estatutos das associações, era relacionar entradas e anuais com as missas pela alma dos irmãos — reflexo do compromisso da devoção confrarial com a atenuação das
14 Ver, entre outros, Compromisso da Irmandade de N. S. do Rosário dos Pretos do arraial de Santa Rita (1763); os irmãos de mesa poderiam fazer festa ou torná-la mais solene, nos anos que se decidir converter seus gastos para as obras da capela, com seus próprios recursos; cap. 14; Chancelaria da O rdem de Cristo, D. Maria I, L. 14, f. 83v-90v; Compromisso da Irm andade de N . S. do Rosário dos Homens Pretos do Inficionado (1767); o cap. 17 adver tia sobre a possibilidade de não haver festa para paramentar a capela. N esses casos, a con fraria não seria obrigada a fazê-la, salvo se os irmãos quisessem contribuir com esmolas fora das taxadas nos estatutos; Chancelaria da O rdem de Cristo, Antiga, L. 283, f. 135-138v; Compromisso da Irm andade de N . S. das Mercês da Vila de São José (1769); cap. 12 deter minava sem pre se fazer festa, “não havendo inconveniente de obras ou outra despesa precisa”; Chancelaria da O rdem de Cristo, Antiga, L. 297, f. 380v-386; Compromisso da Irm andade do Senhor São Benedito do Sumidouro (1755), cap. 14, Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I, L. 15, f. 48-55; Compromisso da Irmandade de N . S. da Conceição dos pardos e pardas de Itabira do Campo (1767); o cap. 10 penalizava os oficiais antigos com o pagam ento renovado de suas esmolas em caso de não ocorrerem eleição e festa, pois “findo o ano, sucede não se fazer nova eleição de que resulta perder-se a devoção, zelo e fervor com que se aum entam as Irmandades, transferindo-se as festas para outros dias ou anos”; Chancelaria da O rdem de Cristo. Antiga, L. 283, f. 23-29, A N TT. 15 Aguiar, Marcos M. de. Op. cit., 1993. p. 208-14; ver, ainda, Aguiar, Marcos M. de. “Estado e Igreja na capitania de M inas Gerais: notas sobre m ecanism os de controle da vida associativa”, a sair em Varia Historia. O visitador Antônio de Pina recomendava ao Rosário de Cachoeira do Campo, em 1723, que observasse o destino para o qual as contribuições eram feitas: as esmolas da caixinha eram próprias à manutenção do altar e do culto; os anuais e entradas eram para os sufrágios, mesmo a porção do capelão; a festa ficava a cargo dos irmãos de mesa: “E como costumam ter tam bém Juízas e mordomas. Rei e Rainha, poderão fazer a festa sem desflaldo [í/V] do rendim ento, atendendo mais ao serviço de D eus do que as suas galhofas”. As contribuições, segundo o visitador, não poderiam ser desviadas do seu fim: Compromisso da Irmandade de N . S do Rosário de Cachoeira do Campo (1713), f. 7-8, AA 23, AECM.
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penas do purgatório — e as esmolas dos oficiais, da mesa e dos juizes com os gastos das festas.16 A rigidez nunca foi a norma na observância deste princí pio. Nos casos de cancelamento das festas, contudo, a falta de justificativas convincentes poderia ocasionar reveses no balanço financeiro das institui ções. Parece não ter havido preocupação cm relacionar o valor de entradas e anuais com o número de missas pela alma. A determinação do número de missas provinha de outras considerações. Devemos avaliar a importância quan titativa de cada item na composição da receita das confrarias para podermos apreender a importância das festas na sua sobrevivência material. Os gráfi cos, a seguir, sintetizam os dados de três confrarias negras e de uma branca.1'
16 Compromisso da Irmandade de N. S. do Rosário dos homens pretos de N. S. da Conceição do Mato D entro (1767); a festa seria feita com as esmolas da mesa, c, se os oficiais e mesários quisessem fazê-la com gastos maiores do que os estipulados, deveriam reparti-los entre si, sem com prom eter outros rendim entos; cap. 11; Chancelaria da Ordem de Cristo, Antiga, L. 297, f. 76-80v; Estatutos dos Confrades de N. S. das Merccs da Redenção dos Cativos de Sabará (1778); a festa seria feita com esmola geral retirada antes dela e com as mesadas da mesa, “e não se poderá fazer função profana com o ouro pertencente à confraria”; cap. 18; Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I, L. 4, f. 25v-40v; Compromisso da Irm an dade de N. S. do Rosário dos Pretos dc Pitangui (1766); os juizes, rei e rainha pagariam a m etade das festas, c outra m etade seria atribuição dos mordomos e mordomas; as missas seriam pagas pelas entradas e anuais; cap. 3; Chancelaria da Ordem de Cristo, Antiga, L. 291, f. 100-104. O Rosário de Paracatu previa deslocamento dos fins das contribuições, havendo necessidade; Compromisso da Irmandade dc N. S. do Rosário que fazem os Pre tos livres das Minas dc Paracatu (1772), cap. 22; Chancelaria da O rdem de Cristo, D. Maria I, L. 12, f. 71-77; Compromisso da Irmandade dc N . S. do Rosário de Morro G rande (1785); as esmolas da bacia destinavam-se à capela dc missas; a festa ficaria a cargo da mesa e era estabelecida uma esmola entre os que estivessem servindo a cada ano para uma obra ou ornato; caps. 11, 12 e 13; Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I, L. 16, f. 167v-170v; Compromisso da Irmandade dc N. S. do Rosário dos Pretos de Congonhas do Sabará (1773); entradas e anuais destinavam-se para as missas, mas poderiam ser com plem entados; cap. 10; Chancelaria da Ordem de Cristo, Antiga, L. 296, f. 2-5; Compromisso da Irm andade dc N. S. do Rosário de Raposos (1773); a festa seria feita pela mesa, oficiais e esmolas especí ficas, mas esses deveriam satisfazer tam bém a capcia de missas; as esmolas da bacia e da caixinha seriam em pregadas na manutenção do altar, podendo ajudar na capela de missas; as missas pela alma seriam pagas pelos anuais e entradas, mas poderiam ser com plem entadas do ouro “mais pronto”; caps. 9 e 10; Chancelaria da Ordem de Cristo, Antiga, L. 296, f. 59; Compromisso da Irm andade de Santo Elesbão do Arraial do Onça (1767), cap. 12; C han celaria da O rdem de Cristo, Antiga, L. 291, f. 160v-164; A N TT; Compromisso dos Irmãos Pretos de N. S. do Rosário de Curral del-Rei (1807); determ inava valor das contribuições de juizes, escrivão, tesoureiro e irmãos de mesa para a festa; as missas deveriam ser pagas dos anuais e entradas, mas admitia complementação; caps. 8 c 10; cod. 1537, AHU. 17 Fontes: Livro de Receita e Despesa da Irmandade dc N. S. do Rosário de Cachoeira do Campo (1725-1773), AA 23; Livro de Receita c Despesa da Irm andade dc N. S. do Rosário de Cachoeira do Campo (1774-1839), AA 24; Livro dc Rcccita c Despesa da Irm andade dc N. S. do Rosário dc Itatiaia (1792-1833), M 30. Para os dados dc Vila Rica, ver Aguiar, Marcos M. de. Op. cit., 1993, tabelas p. 324-27, onde constam dados sobre outras associa ções.
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gj oficiais e mesários □ juizes
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□ outros
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□ anuais e entradas □ legados
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■ oficiais c mcsários H juizes g bacias, caixas e particulares □ anuais c entradas □ legados E] aluguéis de casas
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□ acom panham ento de enterros
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Gráfico 6. C om posição da receita no Rosário de Itatiaia
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□ legados □ alugueis dc ca sas
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@ outros □ oficiais e mesários ■ acom panham ento de enterros □ bacias, caixas e particulares □ anuais e entradas □ legados
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□ aluguéis de casas
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Estes dados demonstram a preponderância absoluta da contribuição dos juizes na composição da receita das irmandades negras, mais evidente na segunda m etade do século. Nas associações de maior rendim ento, como o Rosário do Alto da Cruz, a tendência era significativa e esteve presente du rante todo o século. As esmolas dos juizes faziam o diferencial de receita entre as irmandades mais ricas e as mais pobres. Em todas as associações, nas últimas décadas dos Setecentos, os juizes foram responsáveis pela maior par te da receita. No entanto, nas confrarias dos arraiais, na primeira m etade do século, outros itens tiveram expressão individual maior. No Rosário de Ca choeira do Campo, anuais e entradas representavam entre vinte e quarenta por cento da receita, e esmolas particulares, da bacia e da caixinha perfaziam entre doze e quarenta por cento. A maior representatividade das esmolas dos juizes, na segunda m etade do século, procedia da generalização da categoria dos juizes de devoção, ou seja, os que de moto próprio, independentem ente de eleição, contribuíam para cumprir uma promessa ou sim plesm ente para satisfazer ou exteriorizar uma identificação de caráter religioso. A natureza espontânea das contribuições dos confrades fortalecia conexões internas da com unidade negra, pois estava fundada no prestígio e integração que possi bilitavam aos irmãos dedicarem-se à atividade de recolhimento de esmolas, ao contrário das irmandades brancas, nas quais as contribuições obrigatórias — esmolas dos oficiais, entradas e anuais — preponderavam. A predominância da contribuição dos juizes na receita das irmandades perm itiu-lhes exercer controles informais de condução das atividades confrariais. O desvio do objeto da contribuição era motivo suficiente, quando não justificado, para intervenção por meio da negação em oferecer as esmolas. Nas confrarias dos arraiais, como vimos, esta atitude condicionou a existência da vida confrarial ao respeito à manutenção de seus aspectos lúdicos, não obstante as pressões de visitadores e provedores de capelas cujas ações estavam ancoradas em cláusulas dos estatutos. Estes controles informais cruza vam os lugares institucionais de direção e administração da vida confrarial, criando estruturas paralelas de poder as quais contrabalançavam as tendên cias centralizadoras da organização administrativa. Os mecanismos informais eram ativados constantem ente. Esta estrutura paralela de poder era o locus privilegiado de ação das mulheres em associações que as excluía da admi nistração formal.18 Boa parte das contribuições financeiras procedia delas,
lfi Para exem plos de exclusão de mulheres da administração das confrarias, ver Compromisso da Irm andade de N. S. do Rosário do Arraial de Santa Luzia (1766); o cap. 1 excluía as juízas de presenciar e votar nas reuniões da mesa; Chancelaria da Ordem de Cristo, Antiga, L. 290, f. 226-229; A N TT. Compromisso da Irmandade de N. S. do Rosário dos Pretos do Arraial do Rio Manso (1794); as irmãs de mesa não teriam direito a voto nas reuniões da mesa, cap. 4; cod. 1818; AHU. As mulheres geralm ente não participavam das reuniões de mesa, e são raras as ocasiões em que suas assinaturas ou cruzes aparecem nas atas. Para
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que ofereciam sua ofertas na forma de esmolas de juízas (ver Gráficos 4, 5 e 6). As despesas de festas constantes na contabilidade das confrarias diziam res peito ao seu núcleo formal: armação da capela, música (entre os itens, tambores e charamelas), cera, clérigos, rosários, artifícios cenográficos e foguetes. Mes mo as despesas referentes ao séquito do reisado, como vestidos, ornamentos e jóias, quase não apareciam. Os compromissos declaravam cobrir apenas as des pesas de festas referentes a este núcleo formal, geralmente representado pelos itens sermão, missa cantada, música e exposição do Santíssimo Sacramento. Estas constatações não servem para comprovar o sucesso da reforma na purifi cação dos atos festivos confrariais. Temos vários testemunhos de viajantes a respeito da intensidade dos festejos associados às confrarias negras, assim como queixas de eclesiásticos sobre o mesmo motivo. Do bispo carioca Fr. D. João da Cruz ao protesto dos párocos contra as confrarias e às inventivas do bispo D. Frei de Cipriano de São José contra as cerimônias de Bom Jesus de Matozinhos, a tônica era centrada nos excessos dos festejos.19 Na Representação dos Párocos de Minas, dirigida ao Conselho Ultramarino no final do século XVIII, afirmava-se: “As festividades das ordens Terceiras e das Irmandades (à exce ção do Santo Sacrifício, que nelas se celebra) nada mais têm que possa ser agradável ao Altíssimo; consistem todas em fogos, representações e músicas profanas, bodos e deboches, de que resultam escândalos e desordens repreen síveis, contrárias e diametralmente opostas ao espírito da Igreja e ao culto santo devoto e sincero que se deve dedicar a Deus; e, por estes ponderáveis motivos, se convence de temerário, oposto à disciplina e hierarquia eclesiástica, destru tivo do espírito da verdadeira devoção e prejudicial aos católicos costumes o atual sistema e corrupção das indicadas corporações”.20 alguns exemplos, ver Compromisso da Irmandade dc N. S. do Rosário dos Pretos do arraial de Santa Rita (1763); aprovação do compromisso; Chancelaria da O rdem de Cristo, D. Maria I, L. 14, f. 83v-90v, A N TT. Compromisso da Irm andade dc N. S. do Rosário dos H om ens pretos de Campanha da Princesa (1800); a juíza seria consultada sobre as festas; cap. 4; cod. 1534; AHU. Livro dc Receita c Despesa da Irm andade de N. S. do Rosário dc Casa Branca (1739-1805), L; a Rainha Joana, escrava do Capitão Bernardo de Almeida, excepcionalm ente assina o termo de aprovação de contas de 1745, f. 16v; Livro de Receita e D espesa, Eleições, Recibos e Termos da Mesa da Irm andade de N. S. do Rosário dc Itatiaia (1773-1831), M 23; na aprovação das contas de 1785, assinam as juízas e irmãs dc mesa (f. 17-20); no term o de festas de 5 dc janeiro dc 1794, assinam duas juízas e uma irmã de mesa (f. 38); no termo de 12 dc abril de 1795, assinam duas juízas (f. 39); no term o de construção da capela, assina uma irmã (f. 40-40v), AECM. 19 Para outros exemplos de despesas de confrarias glosadas, relato dc viajantes c declarações do bispo D. Fr. João da Cruz, ver Aguiar, Marcos M. dc. Op. cit., 1993, p. 202-25; para as declarações do bispo D. Cipriano dc São José sobre as cerim ônias dc Bom Jesus dc Matosinhos, ver Carrato, José Ferreira. Igreja, iluminismo e escolas mineiras coloniais. São Paulo: Nacional, 1968, p. 36-41. 20 Consulta do Conselho Ultramarino de 20 de março de 1794 sobre a Representação dos Párocos de Minas, caixa 139, AHU.
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A defasagem entre estes testemunhos e a pobreza dos registros de despesa sobre festas pode ter duas explicações. Em primeiro lugar, as associações recor riam a subterfúgios para não declarar com detalhamento certos gastos ou embuti-los em outros itens. A estratégia foi combatida sobretudo pelos provedo res, que se mostravam cada vez mais exigentes com a apresentação minuciosa das despesas realizadas e de seus recibos. Em segundo lugar, é mais provável o deslocamento destes gastos para uma zona de penumbra, onde os aparatos fiscalizadores não alcançavam.21 Os compromissos alertavam para esse aspecto da organização dos festejos confrariais. Alguns refletiam a perspectiva da refor ma pastoral, ao comentar uma situação que se imaginava incontornável. Em 1783, a irmandade de N. S. das Mercês do Sumidouro advertia: “Bem entendi do que as despesas que muitos costumam fazer em mastros, danças, óperas, banquetes e semelhantes serão à custa daqueles que as fizerem”.22 Declaravase que as despesas extraordinárias realizadas com as festas não seriam arcadas com recursos da associação, i.e, com o produto das estipulações mínimas das esmolas de juizes, mesários e oficiais.23 No mesmo sentido, a irmandade de N. S. das Mercês de S. Gonçalo, na freguesia de Santa Bárbara, estabelecia que “em função profana nunca se gastará ouro da arquiconfraria”. Em tom moralizador, o rosário do arraial do Rio Manso asseverava: “Nesta festividade se evi tarão todos os folguedos e ações reprovadas pela Santa Igreja, permitindo-se só aquelas cerimônias e ritos que os Prelados e Ministros de Deus não reprova rem ”.24 Advertência inútil e incomum, se não existisse forte tendência dos costumes em sentido contrário. Este estilo de contribuição informal pode ter sustentado um amplo espectro de atividades incorporadas na vida confrarial, muitas vezes sem manter correspondência direta com os objetivos da devoção. A notável plasticidade do ritual confrarial poderia ser explicada, em parte, por esse fundamento.
21 Aguiar, Marcos M. de. “Estado e Igreja na capitania de Minas Gerais: notas sobre mecanis mos de controle da vida associativa”, cit., 1999. 22 Compromisso da Irm andade de Nossa Senhora das Mercês e Redenção dos Cativos do Sumidouro (1783), cap. 13, Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I, L. 15, f. 195-199v, ANTT. 23 Compromisso da Irm andade de N. Senhora do Rosário dos Pretos do Arraial de Santa Rita (1763); se os mesários quisessem fa/.er a festa mais solene ou mais extensa, seria por conta deles “sem que do fundo da Irmandade se haja de concorrer com coisa alguma”; cap. 14, Chancelaria da O rdem de Cristo, D. Maria I, L. 14, f. 83v-90v, A N TT. Compromisso da Irm andade de N. S. do Rosário dos Pretos do Arraial do Pinheiro (final do scculo XVIII); querendo algum irmão fazer a festa “com maior asseio, será esta feita à custa do que assim requerer e nunca da Irmandade, pois lhe será glosado todo o excesso”; cap. 2, cod. 1530, AHU. 24 Compromisso da Irm andade de N. S. do Rosário dos Pretos do Arraial do Rio Manso (1794), cap. 17, cod. 1818, AHU; Estatutos dos Confrades de N. S. das Mercês da Redenção dos Cativos do Arraial de S. Gonçalo do Rio Abaixo (1783), cap. 15; Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I, L. 14, f. 78-83v, ANTT.
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2. Os conflitos em torno da jurisdição paroquial nos festejos confrariais ccntravam-se em seu núcleo formal.25 Tratavam da participação dos vigários em funções solenes, rituais muito valorizados nas festividades de Nossa Senhora e dos santos patronos. Esta contenda, nas confrarias negras, refletiu-se em grande parte na questão das missas cantadas. Este movimento intensificouse na segunda metade do século XVIII, quando os atritos com a autoridade paroquial alcançaram seu auge. Insinuava a concepção, desenvolvida no âm bito da sociabilidade confrarial, da secularização do espaço sagrado e da autogestão e autonomia do culto religioso. M antinha relação direta com a valori zação das atividades lúdicas — comentada na parte acima — em confronto com os vetores da reforma pastoral. Devemos atentar para as formas e a cronologia da difusão do conflito na capitania.26 Em Minas, adquiriu visibilidade e repercussão por meio das con frarias negras de Vila Rica, Rosário do Alto da Cruz e Mercês dos Perdões, as quais, a partir de 1788, passaram a oficiar missas cantadas, novenas e ladai nhas pelos seus capelães. No entanto, a precedência na contestação da juris dição paroquial sobre atos solenes foi estabelecida pelas prestigiadas ordens terceiras brancas de São Francisco e do Carmo. No momento da sua institui ção, as ordens terceiras solicitavam a extensão de privilégios, benefícios e isenções de suas congêneres e que normalmente constavam — ou pareciam constar de acordo com uma lfcitura peculiar das concessões — dos breves de ereção e agregação submetidos a beneplácito régio. Incluíam, entre os privi légios concedidos, o desem penho pelos seus comissários de funções solenes que normalmente compreendiam oficiar missas cantadas, novenas e ladai nhas e acompanhar procissões. Em 1784, chamado a dar parecer sobre pedido de ereção de capela da ordem terceira de São Francisco de Paula de Vila Rica, o bispo D. Domingos
25 Para uma tipologia dos conflitos confrariais durante o período colonial, ver Salles, Fritz T. Associações religiosas no ciclo do ouro. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1963, cap. 4; Mulvey, Patricia. The Black Lay Brotherhoods o f Colonial B razil. T ese de doutorado. City College of N ew York, 1976, p. 163-96 c p. 208-34; Russell-Wood, A. J. R. The Black Man in Slavery and Freedon in Colonial B razil. Nova York: St. M artin’s Press, 1982, p. 1547; do mesmo autor, Fidalgos efilantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Edunb, 1981, p. 153-84; Aguiar, Marcos Magalhães de. Op. cit., 1993; p. 266-306; do mesmo autor, “Tensões e conflitos entre párocos c irmandades na capitania de Minas Gerais”, in: Textos de História, Revista da Pós-Graduação em História da UnB, 5(2):41-100, 1997; Chaon, Sérgio. Aos pés do altar e do trono: as irmandades e o poder régio no Brasil, 18081822. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 1996, p. 190-247. 26 Para o que se segue c fontes não explicitadas, ver Aguiar, Marcos M. de. “Tensões c confli tos entre párocos e irmandades na capitania de Minas Gerais”, cit.
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da Encarnação Pontevel sintetizava as aspirações dos terceiros: “As Ordens Terceiras por estas terras quase que pretendem semelhantes isenções à dos Regulares de quem receberam a comissão e instituto. Em nada querem estar sujeitas aos Párocos. Não os admitem nas suas capelas em função alguma do seu ofício. Os seus Comissários são os únicos que usam de estola, cantam as missas nas festas, presidem e levam o Santíssimo nas procissões, acompa nham os Irmãos defuntos à sepultura e lhe fazem as encomendações e ofí cios. Q uerem que as sepulturas nas suas capelas sejam só para seus irmãos. E livres de todo o em olum ento das Fábricas das matrizes, que não tem outra coisa de que subsistam. Querem a seu arbítrio expor o Santíssimo, colocar imagens nos altares, e sair nas procissões públicas as vezes que lhes parecer e [...] serem isentos de dar contas em um e outro juízo, secular e eclesiástico” . Desde 1759, a ordem terceira de São Francisco de Vila Rica movimentavase com objetivo de restringir a jurisdição paroquial no interior da sua capela ainda em construção. Assim, solicitava à Coroa a extensão dos privilégios con cedidos a ordens e igrejas sob proteção régia para oficiar atos públicos e particu lares sem intervenção dos vigários. Com seu pedido negado, articulou um com plicado estratagema que contou com a participação dos oficiais mais graduados da Coroa, até mesmo a do governador da capitania, e conseguiu oficiar missa cantada em 1771, durante a inauguração do templo. A partir deste momento, a questão evoluiu para uma contenda judicial com o pároco. As ordens terceiras mulatas seguiram o movimento. As arquiconfrarias do Cordão de São Francisco de Mariana (1779), de Caeté (1782), de Sabará (1806) e a ordem terceira de São Francisco de Paula de Vila Rica (1805) também previam o desempenho de funções solenes pelos seus capelães comissários e contestavam os direitos pa roquiais nos mesmos termos dos terceiros brancos. As diferenças ficavam por conta das peculiaridades rituais de cada associação.27 O Rosário do Alto da Cruz e a Mercês de Baixo estavam cientes destes precedentes quando iniciaram o conflito contra o seu vigário. A Igreja não tinha dúvidas a respeito. Nos seguintes termos, Bernardo José da Encarna ção, pároco da freguesia de Antônio Dias, em Vila Rica, protestava contra os irmãos da Mercês de Baixo por terem oficiado uma missa cantada em 10 de agosto de 1788: “Foram eles os primeiros que seguiram a revolta das ordens terceiras e espoliaram ao Reverendo Embargante seu Pároco de presidir e oficiar as suas funções solenes” (grifo meu). No protesto geral dos párocos
27 Referências sobre as arquiconfrarias de Mariana e de Sabará e sobre a ordem terceira de São Francisco de Paula encontram-se em Ibidem; para São Francisco de Paula, ver tam bém Estatutos da Ordem Terceira de São Francisco de Paula dos Homens Pardos de Vila Rica (1803), caps. 1 ,9 ,1 0 ,1 3 ,14e25, APP; para a arquiconfraria de Caeté, ver Compromis so da Confraria do Cordão do Patriarca São Francisco de Vila Nova da Rainha de Caeté (1782), caps. 3, 17, 18 e 22; Chancelaria da O rdem dc Cristo, D. Maria I, L. 12, f. 21v-30v, ANTT.
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contra a usurpação de direitos paroquiais patrocinada pelas confrarias, do fi nal do século, os fatos de Vila Rica seriam rememorados com destaque e considerados como paradigmáticos da contestação geral das irmandades mi neiras. Outras associações (rosário do arraial do Pinheiro, São José e N. S. da Boa Morte, ambas de Vila Rica), nas suas demandas contra a jurisdição paro quial, referiam as vitórias judiciais das confrarias negras dc Ouro Preto como precedentes que autorizavam e conferiam validade às suas solicitações. As decisões dos tribunais palatinos a respeito da causa foram citadas pela Mesa da Consciência e Ordens, no século XIX, como jurisprudência estabelecida na avaliação de questões similares. A importância da causa de Vila Rica deve ser avaliada em função da visibi lidade e do impacto adquiridos, nem tanto pela precedência em si. Na condi ção de sede política e administrativa da capitania, os acontecimentos aí ocor ridos tinham maior repercussão, sobretudo quando envolviam julgam ento de questões cujo árbitro era a Coroa. Se a sede da capitania mostrava tendência a ser epicentro dos movimentos mineiros de contestação, existia uma dinâ mica interna a cada comarca e a cada bispado que deslocava os pontos de referência para as cabeças das circunscrições administrativas e eclesiásticas. Nas atitudes contestatórias, as confrarias das vilas sempre anteciparam as dos arraiais de suas respectivas comarcas. Algumas vezes, o precedente de refe rência para demanda de causas polêmicas era oferecido pela sede da comar ca. Em 1797, o Rosário de N. S. da Conceição da Barra atribuía ao seu capelão o desem penho de funções solenes “Como por Real Aprovação está celebran do o Reverendo Capelão da Igreja do Rosário dos pretos sita na Vila de São João del-R ei”.28 A distinção entre devoções urbanas e rurais informava a di nâmica de difusão do conflito. Por outro lado, o fato de pertencer à jurisdição do bispado de Pernambuco pode explicar a antecipação do Rosário de Para catu às demais irmandades negras da capitania. Em 1772, contestava os direi tos paroquiais referindo argumentos legais utilizados mais tarde por suas con gêneres.29
28 Compromisso da Irm andade de N. S. do Rosário dos Pretos dos Arraial de N. S. da C oncei ção da Barra (1797), cap. 14; este capítulo remetia ao capítulo 11, no qual os atos eclesiásti cos eram detalhados; Chancelaria da O rdem de Cristo, D. Maria I, L. 45, f. 55-59v, A N TT. 29 Compromisso da Irmandade dc N. S. do Rosário dos Pretos das Minas de Paracatu (1772); no capítulo 6 determinava: “Será o [capelão] celebrante da Missa solene da festa principal, ou seja, com Diáconos, ou media, sem que o Pároco da Freguesia se introm eta a legislar a solenidade. E quando a Irmandade eleger o mesmo Pároco para ser o celebrante, cm tal caso sem pre será um dos Diáconos o capelão. E dc nenhum modo poderá o Pároco arrogar a si ou mandar celebrar por outro Sacerdote, e perceber a m etade da esmola, porque alem de o não poder licitamente fazer, não pertence aos Direitos Paroquiais a celebração das Missas cantadas nas Igrejas das confrarias, por assim o ter decidido a Sagrada Congregação dos Ritos no D ecreto de 12 de janeiro de 1704”. Este decreto seria lem brado várias vezes na argüição legal das confrarias dc Ouro Preto. A Mesa da Consciência c O rdens, na apro
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A dinâmica e a cronologia de difusão do conflito indica a existência de uma rede de contatos baseados na sociabilidade confrarial, a qual conferia iden tidade de presença no panorama associativo da capitania. As confrarias pa roquiais estiveram ausentes dos conflitos mais intensos com a autoridade paroquial, os quais se restringiram às associações mantenedoras de capelas próprias. Os párocos mineiros estavam cientes dos focos de tensão. N a repre sentação contra as irmandades e ordens terceiras enviada à Coroa, em 1794, poupavam as do Santíssimo Sacramento, de São Miguel e Almas e dos oragos das matrizes. Concediam atenção especial às associações negras e mulatas, que, segundo eles, “vendo as isenções que arrogam as Ordens Terceiras, e o fausto e pompa com que edifícaram as suas capelas e faziam as suas festivida des, deixaram as matrizes em que se estabeleceram e passaram a edifícar ermidas ou capelas próprias em as quais se julgaram independentes, fazendo celebrar por seus Capelães as solenidades que lhes parece, missas cantadas, novenas, e procissões sem reconhecerem, nestes atos, os seus Párocos”. A narrativa, neste ponto, é em parte fantasiosa e sacrifica fatos para confe rir força ao argumento. Parte dos rosários de Minas construiu suas igrejas muito antes do estabelecim ento das ordens terceiras e estava entre as con frarias de ereção mais antigas da capitania. A disputa acerca dos direitos pa roquiais não ocorria em todas as freguesias uniform em ente. Se algumas desem penhavam papel de difusoras, outras nem sequer se manifestavam.30 Todavia, o testem unho confirmava a associação, observada nas confrarias ne gras e mulatas, entre conservação de templo próprio e contestação da jurisdi ção paroquial. Localizava a disputa no final do século XVIII, momento defi nitivo na regulação das relações de autoridade e poder entre as associações negras e os vigários. vação do compromisso, em 22 de maio de 1783, censurou, entre outros itens, a diminuição dos direitos paroquiais neste capítulo; Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I, L. 12, f. 71-77. 30 Além das associações anteriorm ente citadas que disputavam as funções solenes, deve-se acrescentar: Compromisso da Irmandade de N. S. das Mercês dos Pretos crioulos de São João del-Rei (1805), cap. 10, Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I, L. 45, f. 60v-65 (a provisão de confirmação, emanada da Mesa da Consciência em 1806, não censurou a atribuição de funções solenes ao capelão). A versão anterior do compromisso, de 1751, nada comentava sobre a questão; ver Chancelaria da Ordem de Cristo, Antiga, L. 283, f. 153v-158, A N TT . Compromisso da Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens pretos de Campa nha da Princesa (1800), caps. 11 e 14. Cod. 1534; Compromisso da Irm andade de N. S. da Boa M orte dos Homens Pardos de São João del-Rei (1786); o capítulo 10 trata apenas da isenção de provisões eclesiásticas para a exposição do Santíssimo Sacramento nas solenida des e para as novenas, matinas e procissões. Não trata da atribuição de funções solenes ao capelão, e o capítulo 13 com enta “avultadas quantias” pagas à fábrica da matriz por ocasião das festividades; cod. 1675; AHU. Sérgio Chaon acrescenta as seguintes associações que sustentavam as mesmas dem andas junto à Mesa da Consciência, no início do século XIX: Arquiconfraria de São Francisco e N. S. das Mercês, ambas do arraial do Tejuco, N. S. do Livram ento de São Caetano e N. S. do Rosário de Curvelo; op. cit., p. 196, p. 206 e p. 220.
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Para os vigários, as irmandades e ordens terceiras, congregando a maior parte dos moradores das paróquias, constituíam um “cisma” em cada fregue sia. Suas ações poderiam servir de incentivos para as demais, introduzindo elem entos de discórdia e de desordem nas relações entre párocos e fregue ses. N esse sentido, constituíam sérias ameaças à conservação do poder régio e da tranqüilidade pública. Os vigários brandiam os argumentos da união da cruz e da espada, visando ao fortalecimento da autoridade paroquial em d e trim ento dos poderes comunitários: “A deserção e o desprezo que (as confra rias e ordens terceiras) fazem da matriz têm feito infrutuosa a obrigação que por direito divino têm os Párocos de ensinar e explicar aos povos, com a dou trina cristã, a fidelidade que devem ao seu Rei e Senhor natural, a obediência às suas Leis, o respeito aos seus magistrados, de que resulta tam bém nos povos a obrigação de os ouvirem e respeitarem, e de persuadirem seriam ente das suas pastorais instruções; porque, de outro modo, pregando sem ouvin tes, é lançar trigo às pedras”. A autoridade paroquial, impossibilitada de desem penhar a função de esteio do poder real, era corroída pelas irmandades, responsabilizadas pelo esvazia mento das matrizes. Expressão da submissão aos poderes locais e, portanto, ameaças à fidelidade ao rei, os comissários e capelães eram figurados como usurpadores, religiosa, material e politicamente, da função paroquial. Segundo parecer do procurador da Coroa, os capelães incutiam idéias de “indepen dências, isenções e dos privilégios” nas associações, pois eram motivados por interesses próprios — relativa isenção da autoridade paroquial e episcopal e conveniências materiais — e inclinados a cativar a simpatia dos confrades. O fator de dependência explicaria a opção das irmandades e ordens terceiras por capelães e comissários, pois os párocos “não dependem de seus caprichos” . Na visão dos párocos, da elipse da autoridade paroquial ao estrem ecim en to da ordem havia apenas um passo. Mobilizavam o secular medo branco da revolta coletiva negra, presente em todo o Setecentos mineiro, ao destacar influxos de ânimos de orgulho e arrogância entre os irmãos negros que se guiam os passos dos terceiros brancos. Associado à lembrança dos eventos de insubmissão e desordem, este elem ento retórico era mobilizado para produ zir a representação das reuniões das entidades como “conventículos”, ex pressão de múltiplas implicações. Para estes clérigos, as irmandades da capi tania de Minas “têm sido seminários da discórdia, de soltura, de intrepidez e de relaxação, pervertendo, com estes vícios, os ânimos de seus habitantes que tanto se têm dado a conhecer inquietos e revoltosos”. Pervertiam a ed u cação dos povos com a desobediência pública a superiores eclesiásticos e se culares e com o “espírito de discórdia e de tumulto, e de partido com a profa nidade e vangloria temporal”. A desordem confrarial correspondia à inquie tação pública de temíveis conseqüências, mais ponderáveis se considerados os impactos destes exemplos nas gerações futuras.
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O protesto dos párocos sensibilizou o secretário de Estado Martinho de Melo e Castro. Em 1794, repreendeu duram ente o Conselho Ultramarino por não ter apreciado devidam ente o teor da representação e considerá-la com indiferença. Para merecer sua atenção, a disputa havia adquirido status de questão de Estado. A partir dessa advertência, o Conselho pediu pareceres de governadores e ex-governadores da capitania e tratou longamente da querela em consulta. A Coroa, contudo, estava longe de chegar a consenso a respeito de uma concepção uníssona e clara da jurisdição paroquial nas funções solenes. A legislação secular e a eclesiástica não ajudavam a defini-la com precisão. As referências da legislação romana, bem mais extensas a este respeito do que as constituições eclesiásticas portuguesas e colonial, eram contraditórias e fo ram apropriadas por ambos partidos. A tendência, contudo, consistia na per missão aos capelães do exercício das funções solenes quando as constituições dos bispados não diziam o contrário.31 As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, porém, não detalhavam o âmbito dos direitos paroquiais em atos solenes. Os magistrados, a Igreja e os advogados das irmandades reconhe ciam a inexistência de legislação específica sobre a questão. A definição pre cisa e clara dos direitos paroquiais deveria ser estabelecida por meio da ação dos tribunais palatinos. Estamos testem unhando uma definição “a qu en te” da jurisprudência pelos tribunais da coroa, sob forte pressão das irmandades sobre tema que até então estivera regulado pelo costume. A questão era de licada em Minas, porque não se podia invocar a regra do uso por posse im e morial em virtude da colonização recente.32 N este contexto, a ação dos tribu nais da coroa, tal como se pode verificar na questão da presidência das elei ções nas irmandades, caracterizou-se por desencontros e contradições. Não conseguimos identificar, neste momento, linha de atuação coesa e homogê nea dos magistrados a respeito de uma definição uníssona de direitos paro quiais que permitisse algum reforço ou tomada de posição a favor da hierar quia eclesiástica.
31 Para um resumo com entado desta legislação, ver Monteiro, Con. Antonio Xavier de Souza, Código das Confrarias: resumo do Direito Ecclesiastico, Civil, administrativo e crim inal relativo a estas associações. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1870, p. 58-67. O autor conclui seu com entário da legislação eclesiástica atinente ao ponto com a seguinte afirmação: “Se as constituições synodaes o não prohibirem expressam ente ou se não derem este direito ao Parocho exclusivamente, pode o capellão da Confraria sem dependencia do Parocho can tar Missa solem ne nas sobredictas festividades”, p. 65. 32 N a doutrina jurídica, a prescrição imemorial como prova de título parece considerar a uni dade século como critério de referência, apesar de certa margem de indeterminação; ver Hespanha, A. M. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal, séc. XVII. Lisboa: Livraria Almedina, 1994, p. 390-4. Várias vezes, as confrarias recorriam ao argu m ento da colonização recente como meio de invalidar a noção de direito consuetudinário sustentada pela Igreja.
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As confrarias exploraram as imprecisões legais e a sobreposição de jurisdi ção e desencontros dos tribunais régios para assegurar a exclusão dos párocos das funções solenes. Apropriaram-se ardilosamente das instituições coloniais m ediante a manipulação de recursos jurídicos para assegurar maiores espaços de autonomia e autogestão da vida e do espaço religioso.u Souberam inserir as suas demandas na crítica contra os excessos na cobrança dc em olum entos eclesiásticos, a qual havia sido objeto de requerimentos e protestos das câma ras, de particulares e de oficiais da Coroa em Minas. Traduziam a defesa que a Igreja fazia dos direitos paroquiais em ambição material dos eclesiásticos, espoliação dos miseráveis para satisfação da auri sacra fames (tratava-se de confrarias de pobres escravos e forros...) e falta de caridade e de compromis so com a missão sacerdotal. A Mercês de Baixo de Vila Rica argumentava contra o seu vigário: “Nós estamos em outros [séculos] mais iluminados; já hoje as atrevidas imposturas, os incessantes e repetidos clamores dos povos deste continente fizeram conhe cer pela raiz qual seja a ambição dos Párocos e que a demasiada renda que tinham das conhecenças ou desobrigas era ocasião de viverem piores que os seculares, sem temor de Deus nem das Justiças de Sua Majestade, devendo eles com a sua vida ilibada dar documentos e bom exemplos aos seus fregue ses” . A confraria invertia os termos das relações entre párocos e fregueses, re provando “a presente época em que se vê unicamente reinar e grassar o ódio, a ambição e a vaidade nos que têm a seu cargo a administração das Igrejas, entesourando o sangue dos pobres e forjando de ouro ídolos que idolatram, nos quais se não encontram a mínima caridade com os pobres”.34 Os administrado res da caridade buscavam legitimar-se indicando corretivos para a função paro quial de amplo consenso na comunidade. A crítica da ambição material dos párocos apropriava-se dos argumentos dos protestos das câmaras mineiras, os quais culminaram na retumbante questão das conhecenças. Mobilizava figuras de discurso que sabia serem bem acolhidas nos tribunais da Coroa. Estes conflitos párocos/irmandades resultaram em relações marcadas por contexto de circularidade cultural entre irmandades negras e brancas, por um lado, e irmandades negras e oficiais brancos e letrados, por outro. O primeiro
33 Para um estudo dc caso acerca da apropriação como manipulação de recursos institucionais por setores dominados em contexto colonial, ver Albcrro, Solangc. “Juan dc Morga y Gcrtrudes de Escobar: esclavos rebeldes”, in: Sweet, David & Nash, Gary (org.).l.uchopartasupervivencia en la América colonial. Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 198-214; da mesma autora, “La sexualidad manipulada cn Nueva Espana: modalidades de recupcración y dc adaptación frente a los Tribunales Eclesiásticos”, in: Fam i/iay sexualidad en Nueva Espana. Memória dei Primer Simposio dc Historia dc las Mentalidades: “Familia, matrimonio y sexualidad en N ueva Espana”. Fondo de Cultura Econômica, 1982, p. 238-25. 34 Instrum ento de Agravo da Irmandade dc N. S. das Mcrcês dos Perdões contra o Vigário Bernardo José da Encarnação (1791-1793), cod. 176, auto 2407, 1." ofício, Arquivo Históri co do M useu da Independência, Casa do Pilar (ACP).
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circuito foi suficientem ente demonstrado. Com relação ao segundo, as ques tões econômicas envolvidas na crítica da ambição material dos eclesiásticos reforçavam vias de comunicação, ao mesmo tempo estreitas e tortuosas, en tre irmandades, câmaras e letrados, envolvendo oficiais brancos de confrarias negras que eram também membros das irmandades e ordens terceiras bran cas mais influentes e, por isso mesmo, formadores de opinião nas Câmaras.35 A Representação dos Párocos de Minas mencionava a formação de um “partido inseparável” — mineiros, roceiros e pessoas que ocupavam cargos civis, todos irmãos das ordens terceiras — voltado para a contestação dos di reitos e jurisdição paroquiais. As irmandades negras contavam com o apoio de “pessoas poderosas” (“protetores” ) e também dos escrivães e oficiais dos auditórios, favoráveis a elas por serem “senhores” e/ou “apaniguados” dos confrades negros. Em Vila Rica, atestamos a presença de vários oficiais bran cos de irmandades negras que possuíam formação jurídica, ou, pelo menos, estavam aptos a fornecer conselhos especializados. Os letrados contratados como advogados das associações também desempenhavam o papel de inter mediários culturais neste circuito. Escreviam os arrazoados de defesa e avan çavam concepções convergentes com os interesses dos confrades, as quais eram discutidas em reuniões de mesa, quase sempre muito concorridas nes tas circunstâncias. A familiaridade das instituições com o funcionamento dos mecanismos jurídicos estava fortem ente ancorada. A apropriação não se restringia à manipulação, mas ensejava formas positi vas de práticas e atitudes entre os confrades. A contraface da crítica à ambi ção material dos párocos consistia em argumentos mais propositivos sobre a gestão do espaço sagrado e da vida religiosa. Devem-se destacar as bases econômicas da contenda. Parte importante da receita das confrarias era com prometida nas festas, e montante significativo destinava-se aos párocos e seus ajudantes. As despesas variavam em função dos dias de festa e da sofisticação das missas cantadas (número de acólitos e ajudantes, sermão e música). A equipe mobilizada nos festejos incluía o vigário, um ou dois acólitos e o sa cristão. O porcentual de receita em penhado variava em função do vigor eco nômico da associação. O Rosário do C aquende de Vila Rica comprometia, no 35 Em Portugal e seu império ultramarino, como vários historiadores têm observado, câmaras, regim entos militares e confrarias constituíam as principais estruturas de sociabilidade das elites locais. Em Minas, dada a pouca expressão das Misericórdias, as ordens terceiras de sem penharam essa função. Ver, entre outros, Boxer, Charles. Portuguese Society in the Tropics: The M unicipal Councils o f Goa, Macao, Bahia and Luanda. M adison: T h e University of Wisconsin Press, 1965; 0 império colonialportuguês. Lisboa: Ed. 70,1977, p. 263-82; RussellWood, A. J. R. Op. cit., p. 89-110; Um mundo em movimento. Os portugueses na Africa, Asia e América (1415-1808). Lisboa: Difel, 1998, p. 13; Sá, Isabel dos Guimarães. Quando o rico se fa z pobre: misericórdias, caridade e poder no império português, 1500-1800. Lisboa: Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 15, p. 61, p. 71, p. 95, p. 100-01 e p. 127-8.
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final do século XVIII, entre três e cinco por cento da sua receita com paga mentos ao vigário e ajudantes pelo desem penho da função. A irmandade de São José de Vila Rica, no mesmo período, comprometia entre sete e nove por cento e, em ano excepcional, despendeu 14,5%. A Mercês dc Cima, também de Vila Rica, gastava aproximadamente cinco por cento da sua receita com o item. Nas contendas com os párocos, os confrades citavam estimativas deta lhadas dos rendim entos paroquiais de forma que legitimasse suas dem andas de dispensa de pagamento de direitos paroquiais. A dimensão econômica, contudo, não constituía o centro da polêmica. O conflito, de natureza aparentem ente econômica, repunha em questão as rela ções de autoridade e poder entre párocos e fregueses. Não basta assinalar a presença e circulação de idéias a respeito da gestão do espaço sagrado e da vida religiosa, mas é necessário analisar as “práticas de apropriação”, ou seja, os “modos de uso”. É imperativo tomar as formas de “consumo” cultural como procedimentos de “fabricação” que deslocam, distorcem e desviam o sentido original das práticas em função de referência estranhas de onde sur giram.36 As atitudes de contestação da jurisdição paroquial deslocavam-se de
■ ,f’ C erteau, M ichel dc. A invenção do cotidiano: artes defazer. Petrópolis: Vozes, 1994; sobretu do p. 38-42 e p. 78-106. Roger Chartier propõe uma história cultural centrada nos conceitos — aqui adotados — de práticas, representações e apropriação. História cultural: entre prá ti cas e representações. Lisboa-Rio dc Janeiro: Difcl-Bertrand, 1990, p. 19-31 e p. 136-7. Ao chamar atenção para a historicidade das categorias dc pensam ento do historiador das idéias ou das mentalidades, Chartier apóia-se em M. dc Certeau: “Restituir essa historicidade exige em primeiro lugar que o “consumo” cultural ou intelectual seja ele próprio tomado como uma produção, que evidentem ente não fabrica nenhum objeto, mas constitui repre sentações que nunca são idênticas às que o produtor, o autor ou o artista investiram na sua obra” , p. 59. Aproximações mais explícitas dc Chartier com Certeau, embora da perspecti va mais restrita da história das práticas de leitura, encontram-se cm A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos X V I e XVIII. Brasília: Edunb, 1994, p. 11-33. M. Sahlins, ao tratar das práticas dc apropriação dc artefatos culturais em situações de contato intercultural, aproxima-se desta atitude teórica ao desenvolver a noção dc “reavaliação funcional dc categorias”; Ilhas de história. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. A. Biersack assinala parentescos teóricos sem elhantes ao indicado; “Saber local, história local: G eertz e além ”, in: H unt, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 97-130. Para um estudo dc caso que recorre ao conceito de apropriação em análise dc situação colonial, ver Cahil, David. “Popular religion and appropriation: the exam ple of Corpus Christi in E ighteenth-C entury Cuzco”, in: Latin American Research Review, 3 I(2):67-l 10, 1996. Cahil critica a tendência, cm Chartier, de valorização dos vetores de dominação (a “repressão vitoriosa” da religião popular) na análise dos processos de intercâm bio cultural. O autor reforça a visão nas relações entre cultura popular c cultura das elites (definições a priori discutíveis) como via dc mão dupla: “It will considcr «appropriation» as a doublecdgcd phenom enon: while rulcrs and othcrs elites sought to control popular religion for their own ends (to draw its venom, one might say), still othcrs rccognizcd that a throng assem blcd ostensibly for religious ends provided an ideal setting for subverting, even overturning the colonial order itself. Such subversive instincts existed among ali strata of colonial society, a circumstance that at oncc calls into question the distinction bctw ccn «elite» and «popular» in the study of colonial religious lifc”; para outra perspectiva con-
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seu significado original para serem reformuladas pelas irmandades negras na concepção de atitudes de autogestão e autodeterminação da vida religiosa. Quando as confrarias contestavam os direitos paroquiais, buscavam inver ter a organização da hierarquia paroquial. De pastor com ampla jurisdição sobre os negócios da irmandade, o pároco passava a eclesiástico, cuja interfe rência seria condicionada à decisão dos irmãos expressa por meio de um qua se contrato de prestação de serviços. D este ponto de vista, a sua posição em nada se diferenciaria da dos capelães. Ainda que a questão econômica esti mulasse o conflito, fica clara a busca, pelas irmandades, do enquadram ento da intervenção paroquial em padrão próximo ao das relações com seus cape lães, acentuando sua situação empregatícia: simples prestadores de serviços, cuja presença só seria justificada quando convidados a participar das ativida des devocionais ou cumprissem as obrigações do ofício. Na base destas atitu des, estava a concepção da igreja como casa própria da irmandade onde os eclesiásticos só desempenhavam funções religiosas, se convidados por aque les responsáveis pela sustentação material do culto. Esta expressão profun dam ente leiga de autogestão e autodeterminação do espaço e práticas reli giosos era constantem ente reafirmada pelas confrarias negras e mulatas, sempre inquietas em abandonar as matrizes e construir templos próprios. Alcançou força de expressão legal na distinção, cuja compreensão era polê mica nas causas judiciais, entre funções eclesiásticas e funções paroquiais. A repercussão destes conflitos nas relações párocos/fregueses produzia efei tos multiplicadores, seja para afastar os párocos da função de pastoreio de suas ovelhas, seja para inversão prática e simbólica das hierarquias sociais. No ano de 1789, a divulgação das sentenças da Junta de Justiça da capitania so bre recursos jurídicos impetrados pelo Rosário do Alto da Cruz e da Mercês de Baixo que excluíam os párocos do exercício das funções solenes provocou grande excitação em Vila Rica. M uito “arrogantes, soberbas e descomedidas”, segundo a Representação dos Párocos de Minas, as irmandades negras constituíam-se de “indivíduos destituídos por sua condição de figurarem ou terem autoridade alguma; se consideram em uma grande figura quando se alistam na sua Irmandade, muito mais entrando no governo dela por oficiais da mesa; e vendo por este modo em estado de poderem dispor, deliberar, pretender isenções e contestar a Jurisdição dos Párocos e do Prelado, aqueles espíritos naturalm ente descomedidos e arrojados perdem o respeito a toda a hierarquia e rompem nos maiores excessos, como têm feito repetidas vezes, e o fizeram em Vila Rica, as duas Irmandades dos pretos e crioulos, que con
vergente, ver Platt, Tristan. “T h e Andean soldiers of Christ. Confraterniry organization, the mass of the sun and regcneration warfare in Rural Potosi (18th-20th centuries)”, in -.Journal de la Société des Américanistes, LXXIII: 139-91, 1987. Platt com preende as relações entre cristianização e religião autóctone como “positive achievement in intercultural religiosity”.
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seguindo provimento em um recurso contra seu Pároco, puseram luminárias, repicaram sinos e com bombas e foguetes do ar correram tum ultuosam ente de cruz alçada, fazendo algazarras por toda a freguesia”.37 A participação dos negros na vida confrarial, normalmente concebida como expressão da sua inserção na civilização cristã, era vista como seu contrário. Dava margem à expansão dos sentimentos naturais de contestação, orgulho e arrojo, opostos à estabilidade e conservação da ordem pública. Os recursos simbólicos próprios da expressão ritual confrarial — fogos de artifício, lumi nárias, sinos, manifestações de rua em corpo de irmandade, música, muito barulho e “algazarra” — eram empregados para expressar conflitos de natu reza hierárquica em uma espécie de carnavalização das relações sociais.'8 Não som ente expressavam tensões sociais, mas constituíam rituais de inversão hierárquica cujos efeitos nas relações cotidianas de dominação eram corrosi vos.39 Irrompiam na conformação de padrão de conduta de negros e mulatos desafiador do statu quo. N este ponto, as diferenças entre as práticas de oposição à jurisdição paro quial das irmandades negras com relação às brancas tornam-se evidentes. As irmandades brancas evitavam associar exclusão da autoridade paroquial e in versão de hierarquias sociais por motivos um tanto óbvios. Não eram afeitas a manifestações públicas de irreverência anti-hierárquica, pois constituíam um dos principais sustentáculos das formas estam entais de expressão hierárquica da sociedade. A observação detalhada do cerimonial mantinha correspondên cias com a conservação das estruturas de poder. A etiqueta e as formas corre latas de conduta pública admitiam apenas contestação controlada pelos seus centros difusores e criadores. Ainda assim, no sentido da acomodação e refor ço das diferenças sociais.40 Os conflitos da ordem terceira de São Francisco contra os pardos da arquiconfraria do Cordão de São Francisco, em Vila Rica,
37 Os confrades enfrentavam a autoridade paroquial em grande estilo. A primeira missa can tada que os irmãos da Mercês de Baixo de Vila Rica desem penharam por seu capelão, em 1788, foi descrita pelo pároco Bernardo José da Encarnação nos seguintes termos: foi “pre cedido e turbado na estação paroquial que fazia aos seus fregueses na matriz, com uma estrondosa missa que ao som de instrumentos, repiques, fogos do ar, fizeram cantar naque la capela os crioulos Irmãos das Mercês pelo seu capelão; este procedim ento sem vênia nem atenção alguma com o suplicante (o vigário), que pouco antes estivera confessando com o seu Coadjutor os mesmos Irmãos crioulos naquela capela”. 38 Para utilização de recursos simbólicos confrariais como ritualização de conflitos sociais ver, Ramos, Donald. “O quilombo e o sistema escravista em Minas Gerais do século X V III”, in: Reis, João J. & Gomes, F. S. (orgs.). Liberdade p o r um fw : história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Com panhia das Letras, 1996, p. 168-9. O autor recorre ao mesmo docum ento acima citado; ver ainda, Aguiar, Marcos M. de. Op. cit., 1993, p. 289-96. 39 Davis, N atalie Z. “As mulheres por cima”, in: Culturas do povo: soáedade e cultura no início da França moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 107-29. 40 Elias, N orbert. A sociedade da Corte. Lisboa: Estampa, 1987; O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
F KST AS
K
RITUAIS
DE
INVERSÃO
HIERÁRQUICA
391
acerca do monopólio de exercício de determinados rituais e do uso do traje e símbolos da ordem expressavam o apego das associações brancas ao controle e à observância estrita dos cerimoniais públicos. No século XIX, as disputas em torno do desem penho de funções solenes nas confrarias foram resolvidas favoravelmente aos párocos. Cicatrizes aber tas dos conflitos persistiram na primeira metade do século e regularmente voltava-se à questão.41 A ação das confrarias potencializou conflitos que im puseram claros obstáculos à efetivação da reforma pastoral. A natureza e a gravidade de acusações mútuas presentes nas causas judiciais e nas queixas enviadas à Coroa demonstram as dificuldades de relacionamento entre o pá roco e suas ovelhas organizadas em irmandades. Essas relações parecem com portar com ponentes de tensão que, em última instância, teriam o significado de garantir às instituições uma margem para autogestão do espaço sagrado e da vida religiosa. As reformas religiosas do século XIX favoreceram a autori dade paroquial em detrim ento da vida associativa. Um dos seus principais eixos de atuação dizia respeito ao reforço da autoridade paroquial nas capelas das confrarias e centralização da vida religiosa nas matrizes.42 A Igreja procu rava atingir um dos suportes da autonomia das confrarias e, ao mesmo tempo, subm eter seus capelães a controle mais efetivo.
As confrarias ofereceram as estruturas de sociabilidade mais perenes para as populações negras da diáspora. A sua diversidade de campos de atuação, de objetivos e de práticas assentava-se em um aspecto comum: o hábito asso ciativo. A vida associativa estabeleceu quadros de ação coletiva que trespas savam as divisões étnicas e sociais dos negros, desem penhando o papel de “instituições transversais”.43 Criou canais de protesto e de diálogo com ór gãos da Coroa, estabeleceu frentes de causas mobilizadoras da comunidade negra e familiarizou os escravos e libertos com o funcionamento das institui ções. Dem onstrou as possibilidades abertas para manipulação das estruturas de poder. As ficcionais continuidade e compactação dos procedimentos dos aparatos de dominação esbarraram nas táticas dos confrades que subvertiam e deslocavam seus modos de realização. “Inteligência em dédalos” a operar com a ocasião, criando representações — a partir de práticas determinadas pela memória — não convergentes com o sentido definido pelas estruturas
41 Chaon, Sérgio. Op. cit., p. 190-226. 42 M attoso, Katia M. dc Queirós. Bahia, século XIX. Rio dc Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 402-10. 43 Para a apropriação em análise de contexto colonial do conceito desenvolvido por Joseph Miller de cross-cutting institutions, ver Aguiar, Marcos M. de. Op. cit., 1999, p. 265.
392
MARCOS
MAGALHÃES
DK
AGUIAR
de reprodução do poder. Jogo no qual a astúcia de tirar proveito próprio da conjuntura aparece como elem ento decisivo dos modos de operação das ir mandades negras.44 A vida confrarial introduziu espaço privilegiado de intercâmbio cultural que atravessava as relações de dominação constituídas nos lugares tradicio nais e situava os confrades em posição privilegiada de negociação. Veiculou formas de discurso radical, conformou práticas dc autonomia e autogestão da vida religiosa e desenvolveu rituais de inversão hierárquica, os quais repuse ram em questão os termos das relações sociais de dominação. A apropriação das estruturas de sociabilidade no contexto de uma sociedade escravista esta beleceu a diferença decisiva com a vida associativa na metrópole. Os objeti vos, as práticas e as relações intra e interinstitucionais refletiam e agenciavam os modos de vida da comunidade negra. Nesse sentido, pode-se falar de uma ação propositiva e positiva das irmandades negras e mulatas no Brasil colônia. ANEXO Gráfico 8. Rcceita das irmandades negras de Vila Rica
" M c r c c s ü c C im a "S ã o Jo s é “ R osário d o A lto d a C ru z ’ M c rc c s d o s P e rd õ e s ’* R o sário d o C a q u c n d c
44 M. de Certeau assinala: “Mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outros caracterizam a atividade sutil, tenaz, resistente, de grupos que, por não ter um próprio, devem desembaraçar-se dc uma rede de forças e dc representações estabelecidas” — Op. cit., p. 79. Para os conceitos de tática e estratégia, ver p. 46-8, p. 92 e p. 97-106. As ações dos confrades negros nos seus vários planos dc realização ajustam-sc perfeitam ente às propriedades do conceito de tática.
FESTAS
K
RITUAIS
DE
INVERSÃO
HIERÁRQUICA
393
Gráfico 9. Rcccita dos Rosários
R o sário A lto d a C ru z R o sário d o C a q u c n d c R o sário d c C a c h o e ira R osário d c Ita tia ia R osário d c G lau ra
□ □□
arcos M a g a l h ã e s d e A g u i a r realizou estudos de pós-graduação na Universidade de São Paulo, onde, em 1999, defendeu tese de doutorado intitulada Negras Minas Gerais: Uma História da Diáspora Africana no Brasil Colonial. Tem apre sentado trabalhos em congressos no Brasil e no exterior e publicou vários artigos relacionados com a história dos africanos e de seus descendentes no Brasil colônia. Atualmente, leciona no Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB).
M
R e s u m o . Este texto objetiva compreender a função social da festa como mecanis mo de inversão hierárquica no contexto da sociabilidade confrarial negra do Brasil colonial. As considerações centram-se em Minas, durante o século XVIII. A primeira parte situa o fenômeno festivo no interior das atividades confrariais e desenvolve certos aspectos a respeito da sua manifestação ritual. A segunda parte aborda os con flitos de jurisdição voltados para a definição da intervenção paroquial nos momentos festivos das irmandades negras. Esses conflitos resultaram em relações marcadas por contexto de circularidade cultural entre irmandades negras e brancas, por um lado, e irmandades negras e oficiais brancos e letrados, por outro. Da mesma forma, aponta vam para a função social positiva das confrarias na conformação identitária das popu lações negras da diáspora.
Tábua votiva de Minas Gerais do século XVIII. Óleo sobre madeira. Senhor Bom Jesus: Milagre que fez o Snr. Bom Jesus a Tiadozia da Costa que estando gravemente enferma com huma doença perigosa apegousce com fé viva com o S°S logo ledeparou saude livre da moléstia 1798. Mareia de Moura Castro. Ex-votos mineiros: tábuas votivas no ciclo do ouro. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1994, p. 48. Foto André Ryoki.
TRANSITORIEDADE DA VIDA, ETERNIDADE DA MORTE: RITOS FÚNEBRES DE FORROS E LIVRES NAS MINAS SETECENTISTAS J
ú n i a
F
e r r e i r a
E S P E L H O
A
E
F
u r t a d o
R E F L E X O
procurava organizar-se de forma hie rárquica e excludente. Porém, no Reino e na distante América portuguesa, a realidade estava muito longe dos modelos rígidos que deveriam ser seguidos. O viver em colônias não deveria constituir-se em experiência totalm ente nova e radicalm ente estranha. Herdeiros dos laços e dos costumes metropolitanos, era necessário que os colonos partilhassem dos mesmos valores, mesmo em meio à exótica natureza, exuberante e rica, mas também im penetrável e as sustadora, como acentuaram os primeiros cronistas da época. A diversidade de raças, com hábitos e costumes diferentes dos da metrópole, e a escravidão, criavam novo cenário além-mar. A sociedade colonial fluida, que se movi m entava com mais facilidade, misturava brancos, índios e negros, incorpora va novas culturas, e criava uma sociedade que, se, por um lado, tinha Portugal como referência, por outro, era diferente. Todos os aspectos da vida cotidiana eram momentos ímpares de afirmação e reprodução da estratifícação social, em que hierarquia e ordem eram acen tuadas, expressas por meio da pompa, que garantia aos indivíduos seu lugar determinado, e do luxo, que era a maneira de tornar visível esta ordenação.1 As cerimônias públicas eram ocasiões especiais, nas quais a sociedade se s o c i e d a d e
s e t e c e n t i s t a
1 Adalgisa Arantes Campos. “Irmandades mineiras e missas”, in: Varia Historia, 75:19-27, mar. 1996. Belo Horizonte: UFM G, p. 19.
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JÚNIA
FERREIRA
FURTADO
dobrava sobre si mesma, como espelho e reflexo, pois serviam para sua insti tuição e a expressavam. Eis a razão por que, desde o nascimento até a morte, todos os momentos da vida privada e pública de um indivíduo eram cercados de um ritual que servia para rememorar e introjetar o lugar social e a função de cada um. A hora da morte era o último momento para que esses aspectos fossem exteriorizados. Cercada de ritos, permitia o perdão dos pecadores, a salvação da alma e, ao mesmo tempo, preservava e reafirmava as hierarquias sociais estabelecidas na vida.2 Os ritos fúnebres refletiam os mesmos paradoxos com que se defrontava a sociedade da época: criados para retratar uma sociedade estratiflcada e estáti ca, quase imóvel, revelavam também sua fluidez e sua heterogeneidade. Ou seja, por mais que pretendesse ser rígida, a sociedade mudava e com ela suas instituições, incorporando novos atores sociais. Porém, uma vez alçados a posição hierarquicamente superior, agiam de forma conservadora, procura vam identificar-se com o novo segmento no qual se inseriam e reproduziam os valores dominantes. Tal foi, por exemplo, o caso das mulheres forras e comerciantes que examinaremos a seguir. As primeiras procuravam esquecer seu passado escravista, ao passo que os últimos buscavam apagar o estigma de mecânicos e cristãos-novos que os identificava. Tanto em vida, quanto na morte, reuniram os elem entos que conferissem nobreza e os inserissem no mundo branco, português e livre. Este estudo pretende analisar os ritos fúnebres de comerciantes e m ulhe res forras nas Minas setecentistas, procurando aproximações e peculiarida des. Foram estudados os testamentos de vinte e quatro mulheres forras que viveram no Tejuco e quarenta e oito comerciantes de diversas localidades da capitania.-’ O número restrito de testamentos de negras forras se deveu à exigüidade das fontes. Analisados extensivam ente todos os registros de óbitos encontrados no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diam antina e os fundos da Biblioteca Antônio Torres e Fórum do Serro, foram levantados o pequeno número de vinte e quatro testamentos. É preciso salientar que são em número proporcional ao conjunto de testamentos encontrados para a po pulação livre, que são também pouco numerosos. Os testam entos de comer ciantes foram retirados do conjunto de duzentos e doze negociantes que se estabeleceram nas Minas na primeira m etade do século XVIII que foram fontes da pesquisa Homens de Negócio4 e se referem aos que deixaram infor
2 João José Reis. A morte é uma festa, ritosfúnebres e revolta popular no B rasil do século XIX. São Paulo: Com panhia das Letras, 1991; Adalgisa Arantes Campos. Pompa, escatologia eartes na cultura colonial mineira. Tese de doutoramento. São Paulo: D epartam ento de História/USP, 1994. 3 A lista com pleta encontra-se no final do texto. 4 Júnia F. Furtado. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas M inas setecentistas. São Paulo: H ucitec, 1999, p. 24.
TRANSI TORIEDADE
DA
VIDA,
ETERNIDADE
DA
M O R T F.
399
mações sobre ritos fúnebres e participação em irmandades. Apesar de núm e ro reduzido, outros indicativos como origem, cor, estado civil, tipo de negó cio, que seguiam os padrões apresentados para o conjunto, demonstraram que eles podem ser representativos para se analisar os comportamentos des sa camada perante a morte. Em segundo lugar, é preciso clarear por que da escolha de negras forras tejucanas e comerciantes. Este trabalho visou ampliar a compreensão da in serção de Chica da Silva na sociedade mineira e para isso estendeu o estudo para outras mulheres forras que habitaram o arraial do Tejuco no mesmo pe ríodo.5 As forras carregavam um triplo estigma: da cor, do gênero feminino e da condição de ex-escravas, por isso um estudo comparativo deveria tomar como grupo de análise o seu oposto: o homem branco, português e livre. Os comerciantes na grande maioria apresentavam este perfil, mas, como nos demais grupos ocupacionais, não de modo absoluto. Por outro lado, os comer ciantes se aproximavam do grupo das forras por também carregarem estig mas sociais, pelo fato de serem associados aos cristãos-novos e mecânicos. Quadro 1. Perfil étnico das m ulheres forras e comerciantes M ulheres forras Perfil étnico
Com erciantes
N úm ero
Porccntual
N úm ero
Porcentual
Branco N egro Pardo/Cabra Sem informação
0 18 6 0
0 75,0 25,0 0
44 2 0 2
91,6 4,2 0 4,2
Total
24
100,0
48
100,0
Fonte: T estam entos listados no final.
Comecemos analisando o perfil étnico das mulheres forras e comerciantes que deixaram testam entos nas Minas, durante o período estudado. Obvia m ente, as mulheres forras eram de cor mas, ao contrário do que se poderia pensar, havia a predominância de negras, notadamente africanas (62,5%), em detrim ento das crioulas6 e das pardas ou mulatas nascidas no Brasil. A alforria esteve, portanto, acessível tanto às negras quanto às mulatas, não tendo a mestiçagem contribuído significativamente para torná-la mais fácil. O perfil étnico dos comerciantes era exatam ente o oposto, saliente-se que não se tra tava do conjunto da classe mercantil da época, pois o pequeno comércio de morros era dominado pelos negros e mulatos, especialm ente mulheres. Tra tava-se da porção de comerciantes que deixou testamentos e portanto identi
5 Júnia F. Furtado. Chica da Silva: o avesso do mito. Belo Horizonte: Fundação Carlos Chagas. Dotação Ford, 1999 (Relatório final de pesquisa. Mimeo.). h Crioulas: negras, fdhas de africanos nascidas no Brasil. A terminologia utilizada neste arti go foi a da docum entação consultada onde parda aparece como sinônimo de mulata.
400
JÚNIA
V
E R R E IR A
KURTADO
ficava-se com os estratos mais altos da sociedade. Entre eles, predominavam os brancos portugueses (79,1%) e nascidos no Brasil (14,5%), os mulatos eram inexistentes, e somente duas comerciantes eram mulheres. Rosa Correia, afri cana, e Antônia N unes dos Anjos, preta, nascida na Bahia, que comerciava escravos, eram ambas forras e moradoras em Sabará.7 Os comerciantes que deixaram testam entos eram brancos e na maioria portugueses, dedicados ao comércio atacadista e varejista, geralmente pos suindo estabelecimentos fixos. Esta parcela se enriquecia com o comércio e procurava ter acesso aos símbolos de dignificação social e reconhecimento numa sociedade escravista que, portanto, desprezava o trabalho, que era seu modo de viver. Por isso, procuravam os meios de se notabilizar, já que estes homens oscilavam entre o reconhecimento do novo papel social que ocupa vam e a total exclusão, identificados genericamente como cristãos-novos e mecânicos. As fronteiras que demarcavam os dois mundos eram muito tê nues e, por isso, os homens de negócio esforçavam-se por acumular, em vida, os símbolos de prestígio propiciados pelo enriquecim ento pessoal. A inserção nas irmandades e a garantia de enterro com pompa e luxo deveriam eternizar na morte o lugar de destaque que almejaram e alcançaram em vida. As mulheres forras eram mais estigmatizadas: nasceram escravas, eram mulheres e de cor. Sua inserção na sociedade era por isso mais difícil, mas nas Minas as condições do povoamento favoreceram-lhe a ascensão, já que a po pulação era predom inantem ente masculina e as mulheres brancas quase ine xistentes. Coabitando com homens brancos ou vivendo livrem ente nas ruas de pequenos serviços, essas mulheres conseguiram em grande número libertar-se, e buscaram ocupar um novo papel social, apagando o passado escravis ta que as desclassificava perante a sociedade branca. Para isso, acumulavam patrimônio, compravam escravos, viviam da mineração, da agricultura e pe cuária, de rendas e procuravam deixar para sua prole melhores condições de vida, distanciando-se aos poucos da memória do cativeiro. Maria da Encarnação,s natural da Costa da Mina, foi trazida escrava para a Bahia, onde foi batizada. Foi vendida no Serro do Frio para Pedro M endes, mas amasiou-se com Domingos Alves Maciel, que, a tendo em seu poder, comprou-a por cento e cinco oitavas de ouro e a libertou. Declarou que nunca se casara nem tivera herdeiros, deixando sua alma por herdeira, garantindo os ritos necessários ao perdão de seus pecados e elevação de sua alma. A casa em que morava possuía até mesmo oratório particular, luxo encontrado em pou quíssimas casas do arraial. Além desta, possuía outras três casas alugadas, que
7 Sabará. M useu do Ouro. Casa Borba Gato. (MO.CBG). T estam ento L 6 5 (ll), f. 7 v -ll. MO.CBG. Testam ento 17(13), f. 15v-18. " Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese dc Diamantina. (AEAD). Livro dc Óbitos 1753-1770. Caixa 350, f. 34-35.
TR ANS I T O R I KD A D E
DA
VIDA,
ETERNIDADE
DA
MORTE
401
lhe proporcionavam boa renda mensal. As últimas deixou à Ordem da Terra Santa da qual era irmã. Esta Irmandade tinha como objetivo libertar os luga res santos das mãos dos infiéis, e fazer parte desta agremiação era importante mecanismo de exteriorização da boa situação social do irmão. Declarou pos suir seis escravos, e as mulheres garantiam renda à proprietária lavando roupa no arraial. A historiografia mineira tendeu a salientar a desclassificação a que estavam submetidas estas mulheres, muito freqüentem ente entregando-se à pros tituição, ao pequeno comércio de tabuleiro. Tal ênfase ocorreu sobretudo em virtude da natureza das fontes escolhidas, notadamente as devassas eclesiás ticas e as ordens das autoridades metropolitanas.9 No entanto, apesar de o universo da desclassificação ter sido realidade para parte, ainda que majoritá ria, destas mulheres, não o era para o seu total. Ao incorporar os testamentos como fonte documental descortinam-se um sem-número de possibilidades, como o acúmulo de pecúlio e o acesso ao universo cultural e econômico da elite branca, do qual Chica da Silva foi o exemplo mais conhecido.10 No caso do Tejuco, note-se que o conjunto das negras forras que deixaram testam entos tendeu a imitar o restante da população livre em vários aspectos, até mesmo nas formas de sobrevivência e acumulação. O sistema de contra tos, que vigorou de 1739 a 1771, e o posterior monopólio real da extração dos diamantes, que sobreviveu à Independência, impediram que a população tivesse livre acesso às lavras diamantíferas, aí excluindo as de natureza pura m ente auríferas. A sociedade encontrou formas lucrativas de sobreviver a essa peculiaridade, tratou de alugar seus escravos aos que exploravam as la vras, tendo sido esta atividade rendosa e estável, chegando a gerar juros da ordem de dezesseis por cento ao ano. Torna-se difícil caracterizar as ativida des a que se dedicavam estas mulheres, mas percebe-se que viviam basica m ente do trabalho de seus escravos, sejam empregados em pequenos servi ços, na mineração ou na agricultura, como era costume na região. TRANSITORIEDADE
DA
VIDA
Nas Minas, a proibição da instalação das Ordens Primeiras fez que flores cessem as Irmandades leigas, por meio das quais os homens expressavam sua religiosidade. As Irmandades ou Ordens Terceiras foram responsáveis por todas as questões religiosas, como a construção dos templos, organização das missas e procissões, difusão do culto aos santos e organização dos ritos fúne
9 Luciano Figueiredo. O avesso Ha memória. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993. 10 Eduardo França Paiva. Escravos e libertos nas Minas Gerais Ho século XVIII. São Paulo: Anna Blume, 1995. Para a Bahia do século XIX ver Kátia Q. Mattoso. fíahia, século XIX, uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
402
JÚN1A
FERREIRA
FURTADO
bres. Pertencer a uma delas era, pois, essencial para a organização e identifi cação dos homens nos núcleos urbanos que se iam constituindo. Elas não eram exclusivas dos brancos, mas reuniam tam bém negros e mulatos e, en tão, eram reflexos das estratificações raciais e sociais locais. As Irmandades serviam para o reconhecimento dos lugares sociais de cada um no seio da comunidade, e eram locais para exercício de uma série de direitos, como o de ser enterrado, uma vez que as tumbas, localizadas dentro das igrejas, pertenciam e eram administradas por elas. Entre os direitos ofe recidos aos irmãos, estava a garantia de uma série de sufrágios na hora da morte, como a celebração de missas, os gastos com o enterro, o direito de ser enterrado com o hábito da ordem, ritos de passagem que deviam assegurar a salvação da alma do irmão. Indispensáveis, elas procuravam sobretaxar os que se tornavam irmãos apenas na hora da morte. Por não pertencer a nenhu ma irmandade no arraial do Tejuco, onde residia, a negra forra Josefa Dias teve de determ inar que seus testamenteiros definissem as condições em que seria enterrada.11 Foi, provavelmente, o que aconteceu tam bém com o co merciante Rafael Monteiro Heires, que instruiu que fosse sepultado “com o hábito mais pronto que houver” .12 Entre as vinte e quatro mulheres forras estudadas, apenas Josefa Dias não pertencia a nenhuma irmandade (4,1%). Foi enterrada na igreja do Rosário do arraial do Tejuco, com missa de corpo presente e esmola de um quarto de vela para os sacerdotes que acompanharam os serviços.13 Ao contrário do que se poderia pensar, entre os comerciantes foi muito mais freqüente a ausência nos testamentos de qualquer referência à irmandade filiada. Doze deles, represen tando vinte e cinco por cento, não pertenciam a nenhum a delas e, em geral, eram homens, brancos, de origem portuguesa, o que não pode sercompreendido como sintoma de desclassificação social, como se percebe pelos Quadros 2 e 3. Tam bém se poderia pensar que o menor número de filiação às irmandades entre os comerciantes seria sintoma da itinerância a que muitos estavam su jeitos, porém, apenas M anuel Madureira Pinto era viandante do Caminho Velho, comerciando para as Minas sobretudo cavalos.14 A maioria era como o Capitão José Tavares Pereira, português, que tinha loja de secos em Roça G rande;15 ou o Alferes José Teixeira de Macedo, morador do Papagaio, que tinha uma sociedade para comerciar bois e pediu que fosse enterrado na igre ja de Santo Antônio, “acompanhado das Confrarias que houver”.16
" AEAD. Livro de Óbitos do Tejuco. 1793-1811. Caixa 521, f. 76v-79. 12 MO.CBG. Testam ento. L2(6), f. 70v-76v. 13 AEAD. Livro de óbitos do Tejuco. Caixa 521, f. 76v-79. 14 MO.CBG. L2(6). f. 80v-83. 15 MO.CBG. Testam ento L12(9). 16 MO.CBG. L8(16), f. 113v-129v.
T R A N S I T O R I E D A D E
DA
VIDA,
E T E R N I D A D E
DA
403
M O R T E
Quadro 2. G ênero e cor dos comerciantes sem registro de filiação à Irm andade G ênero e cor
Núm ero
H om ens e brancos M ulher e negra
11 1
Total
12
Porccntual 91,7 8,3 100
Fonte: T estam entos de comerciantes listados no final. Quadro 3. Origem e tipo do negócio dos comerciantes sem registro de filiação à Irm andade Origem
N úm ero
Portugal Brasil Africa
10 1 1
Total
12
Porccntual 83,4 8,3 8,3 100
T ipo do negócio Loja Estoques sem especificação Volante Total
N úm ero 6 5 1 12
Porcentual 50,0 41,7 8,3 100
Fonte: T estam entos dc comerciantes listados no final.
N esse sentido, percebe-se que a situação social desfavorável a que as m u lheres forras estavam submetidas levou-as a se esforçarem mais a procurar em vida fazer parte das instituições que garantiam reconhecimento e partici pação na sociedade local. Ao contrário, os comerciantes, brancos, livres, em geral portugueses, não tinham tanta necessidade de afirmação. Na hora da morte, as mulheres forras não se furtavam de relacionar minuciosamente, em seus testamentos, as irmandades às quais eram afiliadas, que lhes protegera em vida e assim garantiam os ritos a que tinham direito. Francisca da Silva de Oliveira, a famosa Chica da Silva, morreu no Tejuco em fevereiro de 1796 e, dem onstrando o lugar social que alcançara, foi enterrada no corpo da igreja de São Francisco de Assis, cuja irmandade era reservada e congregava a elite branca local.17 Teve ofício de corpo presente, com a presença de todos os sacerdotes do arraial e seu corpo foi acompanhado à sepultura por todas as irmandades de que era irmã.18 N este ano, somente na igreja das Mercês, fo ram rezadas quarenta missas por sua alma, seguindo suas disposições testam entárias.19 Como as irm andades procuravam ser rígidas em relação à qualidade e condição dos irmãos, analisar as que aceitavam as negras forras e os comer ciantes como filiados, perm ite perceber a inserção desses homens e m ulhe res na sociedade local. Apreende-se pelo Quadro 4, que os comerciantes transitaram mais facilmente pelas irmandades de brancos do que as m ulhe res forras. No entanto, quando se leva em consideração a etnia dom inante entre os integrantes de cada um desses grupos, outras considerações po dem ser feitas. Os comerciantes eram majoritariamente brancos e portu gueses (Quadro 1), portanto sua inserção nas irmandades que congregavam
17 AEAD. Livro de óbitos de São Francisco. Caixa 350, f. 55. 18 AEAD. Livro de óbitos do Tejuco. Caixa 521, f. 73v. 15 AEAD. Livro de Missas para falecidos da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês. Caixa 520.
J Ú N 1A
404
F K R R K IRA
FURTAI! O
estes elem entos era natural. Sua maior preocupação era filiar-se a uma ir m andade im portante que imprimisse distinção social, pois precisavam apa gar o fato de que o comércio era um ofício e, portanto, a maioria vivia dc seu próprio trabalho. Quadro 4. Perfil ctnico das irmandades das m ulheres forras e comerciantes M ulheres forras Irm andade
N úm ero
D e brancos D c negros Dc pardos
19 18 12
Total
49*
C om erciantes
Porccntual 38,8 36,7 24,5 100
N úm ero 57 5 0 62*
Porccntual 91,9 8,1 0 100
* O total é superior ao núm ero de 24 e 48 testadores, porque vários participavam de mais de um a irman dade. Fonte: T estam entos listados no final.
Entre as Irmandades de brancos, as que faziam maiores exigências para ingresso e impunham contribuições altíssimas, selecionavam melhor os ir mãos e mantinham nível elevado entre seus associados e, com esta atitude, se distinguiam na comunidade. A Irmandade do Santíssimo de Mariana, por exemplo, excluía os “judeus, mulatos e hereges”.20 A das Almas de Vila Rica exigia que “os irmãos que se houverem de aceitar nessa Irm andade serão conhecidos como cristãos-velhos de limpo sangue, sem rumor em contrá rio”.21 No entanto, M anuel Gomes de Carvalho, homem de negócio em Vila Rica, apesar de preso pela Inquisição em 1734 como cristão-novo, pertencia à Irm andade do Santíssimo.22Tam bém contrariando os estatutos, Frutuoso dos Santos, vendedor de panelas em Vila Rica, era irmão de N. S. das Almas, sinal de que ali ingressara buscando distinção.23 As forras tiveram participação em Irmandades tanto de brancos, quanto de mulatos e negros. Apesar da cor, conseguiram inserir-se em irmandades das quais, por princípio, estariam excluídas. Olhando por esta perspectiva, o nú mero muito próximo, entre elas, de entradas em associações que reuniam brancos, negros e mulatos, demonstrou não sua menor possibilidade de se inserissem favoravelmente na sociedade, mas as possibilidades de mobilida de que lhe estavam abertas. Número significativo de filiações, representan do 36,7% do total, era à Irmandade do Rosário, que reunia os negros do Tejuco, distribuídas ao longo de todo o período. Mas também cinco comerciantes
20 Fritz Teixeira Salles. Associações religiosas no riclo do ouro. Belo Horizonte: UFMG, 1963, p. 43. 21 Ibidem , p. 38. 22 Anita Novinsky. Inquisição. Inventários de bens conquistados a cristãos-novos. Rio de Janeiro: Im prensa Nacional, 1976, p. 188. 23 Ouro Preto. M useu da Inconfidência. Arquivo Histórico da Casa do Pilar. (M I.AHCP). Cód. 43. Auto 507.
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apareceram filiados à Irmandade do Rosário. Cristóvão Fernandes da Silva, que emprestava dinheiro a juros em Caeté, devia à Irmandade de Nossa Se nhora dos Pretos de Santa Bárbara.24 Entre as testadoras foi mais comum a participação em Irmandades brancas até a década de 60. Nesse período, concentram-se onze filiações do conjunto de dezenove, sendo seis à Irmandade das Almas, uma ao Santíssimo e quatro à Terra Santa. Por esses dados, percebe-se que, ao contrário do que tenderíamos a pensar, foi mais fácil penetrar nas irmandades brancas nos anos logo poste riores ao início do povoamento da região, o que se intensificou a partir dos anos 30. Isso era o reflexo da conformação da sociedade mineira durante os Setecentos. Inicialmente, apesar de a sociedade ser menos estratificada, era marcada pela maior fluidez e indistinção entre brancos e mulatos. Isso acontecia porque o número de brancos era muito pequeno, o que dificultou até mesmo o preen chimento dos cargos das câmaras, que deviam ser exclusivos dos homens bran cos. Jacinta da Siqueira, Josefa da Costa, Bernardina Maria da Conceição, Chica da Silva e Antônia de Oliveira Silva, todas pardas, eram irmãs das Almas, sendo as duas últimas também filiadas à Irmandade da Terra Santa.25 N a primeira m etade do Setecentos, as Irmandades do Santíssimo eram as mais importantes nas Minas, pois congregavam como irmãos a elite branca e proprietária. Eram também comuns, as da Nossa Senhora da Conceição, pa droeira do Reino, a do Senhor Bom Jesus do Matosinhos, cultuada no norte de Portugal e a das Almas. Dezesseis comerciantes (25,8%) faziam parte das Confrarias do Santíssimo e buscavam dessa forma inserir-se na elite colonial. Matias Castro Porto, o mais rico comerciante de Sabará, legou-lhe uma esmo la para fazer o seu sacrário na igreja matriz de Roça Grande, onde deveria ser sepultado, por ser seu irmão.26 Francisco Roiz de Brito, negociante em Itaubira, pediu que fosse enterrado na igreja matriz de N. S. da Boa Viagem, “em uma das sepulturas da Irmandade do Santíssimo Sacramento”, da qual era sócio, sendo seu “corpo amortalhado em o hábito de São Francisco [...] e se dará a esmola costum ada”.27 O comerciante Lourenço Pires de Carvalho pe diu para ser enterrado na igreja matriz, sinal de que era irmão dessa Confra ria.28 N o Tejuco, Dona Francisca da Silva de Oliveira, como era sempre trata da, como sinal de sua distinção, era irmã do Santíssimo Sacramento.29 Entrou tam bém nas Irmandades da Terra Santa,30 contribuindo até um ano antes de
24 M O.CBG. Testam ento. L4(09), f. 24-34. 25 Fórum do Serro. Livro de Registros de Testam entos de 1751, f. 33v-38v. c AEAD. Caixa 350, f. 32v; 34-35; 38v-40. 2fl M O.CBG. Inventário e Testam ento. Caixa 2. Avulsos. 27 MI.AHCP. Cód. 47. Auto 576. 28 M I.AHCR Cód. 93. Auto 1140. 29 AEAD. Livro da Fabriqueira da Capela de Santo Antônio. Caixa 509, f. 3. 30 AEAD. Livros dos Irmãos da Terra Santa no Tejuco. Caixa 509, f. 119.
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sua morte; das Mercês;31 de Nossa Senhora Rosário; de São Francisco de As sis32 Almas e Nossa Senhora do Carmo da Vila do Príncipe. Tanto entre os comerciantes quanto entre as forras, era comum a filiação a várias confrarias, o que denotava importância e conferia distinção. Entre os comerciantes, generalizaram-se as filiações às Almas (dezessete), Santíssimo (dezesseis), Nossa Senhora do Carmo (oito), Rosário (cinco) e São Francisco (quatro). Entre as forras foram dominantes Rosário (dezoito), Mercês (nove), Alma (sete) e Terra Santa (cinco). Isabel Gomes Pereira, parda, filiara-se no Tejuco às Irmandades das Almas, Amparo e Terra Santa.33 M anuel Gomes de Carvalho, comerciante em Vila Rica, afirmou em seu testam ento que devia perto de cem oitavas de ouro às Irmandades do Santíssimo, Almas, Passos e São Sebastião, dessa vila.34 A sociedade da segunda metade dos Setecentos foi caracterizada pela maior estratificação, resultante da generalização das relações consensuais entre bran cos, mulatos e negros e do maior acesso às alforrias. Por isso mesmo, tendeu a se organizar de forma mais hierárquica e menos fluida, demarcando melhor as diferenciações de cor estatus entre a camada de libertos. Houve, conseqüente mente, maior preocupação da elite branca e livre de se distinguir da camada de mulatos e libertos que proliferava nos arraiais. Esta tensão resultou na criação das Irmandades de São Francisco e Nossa Senhora do Carmo, que pretendiam ser restritas aos estratos mais altos. Como exemplo, Francisco Roiz de Brito era irmão terceiro de São Francisco e do Santíssimo Sacramento.35 Mesmo com os estatutos discricionários, tam bém as forras, apesar do es tigma da cor, conseguiram entrar nessas duas irmandades. Em 1815, a negra Ana da Encarnação Amorim era irmã do Rosário, Mercês e São Francisco de Assis, revelando o trânsito social que a condição de forra lhe abria. Inês de Santa Luzia, mulata, filha natural de uma branca chamada Maria da Concei ção, pertencia à pretensa seleta Irmandade do Carmo do Tejuco. As autorida des que registraram a abertura de seu inventário trataram-na por Dona, sinal de que não era uma qualquer no arraial e, certamente, a cor de sua mãe faci litara sua aceitação. Por outro lado, com o aumento do número de mulatos proliferaram as irman dades que os congregavam, como as da Mercês, associada à libertação dos ca tivos, e de São Francisco do Cordão. No Tejuco, isso resultou na construção da igreja do Amparo (1756) e Mercês (1772). Efetivam ente, enquanto entre os comerciantes não houve filiações a irmandades de mulatos, a partir de
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AEAD. Irm andade de Nossa Senhora das Mercês. Caixa 520, f. 20. AEAD. Livros dc Óbitos. Ordem 3.J de São Francisco. Caixa 350, f. 55. AEAD. Caixa 350, f. 84v-85v. Anita Novinsky. Op. cit., p. 188. MI.AHCP. Cód. 47. Auto 576.
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1766, começaram a aparecer entre as mulheres forras filiação a estas duas. No entanto, das dez testadoras que afirmaram pertencer a elas, oito eram negras, sendo sete africanas e uma brasileira. Somente duas eram efetivam ente mes tiças: Rita Pais Gouveia36 e Gertrudes Angélica da Glória.37 Pode perceber-se que, na prática, os estatutos excludentes das irmandades nem sempre valiam, pois na sociedade em contínua transformação das Minas, outros sinais exte riores de riqueza e importância relaxavam e invertiam sua rigidez hierárquica. Um dos mecanismos de exteriorizar esta transformação do status pelas forras, fossem negras, fossem mulatas, era participar de irmandades que congregas sem majoritariamente outros segmentos sociais. Rita Vieira de Matos, negra mina, deixou de esmola para a imagem do Divino Espírito Santo da capela do Amparo seis oitavas de ouro e era também irmã das Mercês e do Rosário.3* Vários comerciantes pertenciam a mais de uma confraria e alguns eram irmãos também na Bahia ou Rio de Janeiro. João Freire de Macedo era filiado à Confraria de São Francisco, Santos Passos e Santíssimo, todas na Bahia.39 Cristóval Fernandes da Silva, que emprestava a juros, era confrade de Nossa Senhora do Carmo na Bahia; irmão do Santíssimo Sacramento em Caeté; de Santo Antônio em Santa Bárbara; dos Lugares Santos, do Rosário dos Pretos e do Rosário dos Brancos.40 O mesmo aconteceu com muitas mulheres forras, como Antônia de Oliveira Silva, parda, que era irmã das Almas e da Terra Santa no Tejuco e, na Bahia, de onde era natural, pertencia às do Carmo e de São Francisco, as quais deixou esmolas para a celebração de duzentas missas em intenção de sua alma nos conventos destas ordens na cidade de Salvador.41 Ocupar cargos administrativos nas mesas diretoras das confrarias dem ons trava importância social e, mesmo quando entre iguais, demonstrava ascen dência no seio da comunidade. Chica da Silva foi juíza na Irmandade das M ercês.42 A comerciante em Tapanhoacanga, Maria de Freitas, foi juíza da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Milho Verde, para a qual de via.43 Agostinho Rodrigues, que emprestava dinheiro em Sabará, pertencia à Irm andade das Almas, tendo mesmo servido na mesa.44 Maria Martins Castanheira, por duas vezes, foi juíza da mesa do Rosário, sinal de prestígio e dis tinção entre os irmãos.45
36 37 3R 39 40 41 42 43 44 45
AEAD. Caixa 521, f. 35-35v. AEAD. Caixa 521, f. 70-70v. Diam antina. Biblioteca Antônio Torres (BAT). 1." ofício. Maço 65. MO.CBG. Testam ento. L l( l) , f. 118v-124. MO.CBG. Testam ento. L4(9), f. 24-34. AEAD. Caixa 350, f. 162v-163. AEAD. Entrada de Juizes e Juízas Irmandade Nossa Senhora das Mercês. Caixa 510, p. 20. MO.CBG. Testam ento. L3(8), f. 94v-101v. MO.CBG. Testamento. L7(13), f. 39-43. AEAD. Caixa 521, f. 387v-388.
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A salvação da alma era preocupação central que impelia os católicos a se esforçarem para reunir, em vida, as condições necessárias para alcançá-la e, segundo a Igreja católica, esta era a recompensa aos bons cristãos, por suas caridades e boas obras. Os comerciantes e mulheres forras demonstraram em seus testam entos que procuravam, como pessoas de sua época, garantir en trada no paraíso. Em seus testamentos, buscavam cumprir todos os passos necessários para garantir a ascensão de suas almas. João Pereira Montalvão determ inou que se descontasse “da minha fazenda os sufrágios pela minha alma”.46 Ao se filiar às irmandades esperava-se ter direito a todos os sufrágios costu mados entre os irmãos, como arcar com os gastos com o enterro, ser acompa nhado por sacerdotes e pelos outros associados, celebração de missas, ser en terrado com o hábito da ordem e a concessão de esmolas e velas, entre outros. Francisco Roiz de Brito, irmão terceiro de São Francisco e do Santíssimo Sacramento determinou, em seu testamento, que se “farão todos os sufrágios que costumam fazer pelos mais irmãos”.47 O mesmo determ inou o Capitão Antônio de Matos Pereira, boticário em Mariana, “que desejava ver em seu enterro todas as confrarias de que é irmão”.48 Agostinho Rodrigues, que em prestava dinheiro em Sabará, pertencia à Irmandade das Almas, tendo mes mo servido na mesa, determinou que todos os sufrágios de sua morte deve riam ser realizados “como é uso e costume dessa Irm andade” .49 Cristóval Fernandes da Silva, após conceder várias esmolas ao convento do Carmo da Bahia pediu para que se fizessem “todos aqueles sufrágios que os religiosos costumam fazer, ficando minha alma gozando todos os sufrágios e indulgên cias como se fosse religioso da mesma religião”.50 D urante o século XVIII, era permitido que um terço dos bens (a terça) fosse disposto como cada um aprouvesse, até mesmo nomeando a própria alma por herdeira. Isto significava que os bens vinculados dessa forma teriam de ser utilizados para pagar os sufrágios necessários ao perdão da alma, condi ção para alcançar o paraíso, sendo o principal mecanismo a realização de mis sas e a caridade. Quatro mulheres forras e cinco comerciantes instituíram a alma por herdeira e duas destinaram a terça à Irmandade da Terra Santa. A incidência maior entre as negras forras se explicou em parte pelo alto número
46 47 48 49 so
M O.CBG. Testam ento. L2(6), f. lll-120v. MI.AHCP. Cód. 47. Auto 576. Mariana. Arquivo da Casa Setecentista. (ACS). Cód. 71. Auto 1511. MO.CBG. Testam ento. L7(13), f. 39-43. MO.CBG. Testam ento. L4(9), f. 24-34.
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de dezesseis testadoras sem descendentes diretos, representando 66,6%. Antônia de Oliveira Silva, parda sem filhos, nascida em Salvador na Bahia, determ inou que sua mãe ainda viva fosse sua herdeira, reservando a terça para sua alma.51 Esta seria gasta de vários modos: deveriam ser celebradas quantas missas de corpo presente fossem possíveis, além de outras duzentas nos conventos do Carmo e São Francisco da Bahia, de trinta pelas almas do purgatório, a mesma quantidade pelas almas dos pais já falecidos e uma para um pobre defunto. Os testadores iniciavam encaminhando suas almas a Deus, Jesus Cristo e Santíssima Trindade e, para tanto, invocavam a intermediação de Nossa Se nhora, de vários santos, especialm ente os de seus nomes ou de suas devo ções, da corte celestial e de anjos da guarda, a quem deixavam várias missas para serem rezadas. Foram comuns entre os comerciantes as invocações a São Francisco, à Corte Celestial, à Nossa Senhora de Nazaré e ao Arcanjo São Miguel, que protegia as almas do purgatório. As mulheres forras professaram mais freqüentem ente devoção a Nossa Senhora do Rosário e da Conceição, mas tam bém a Santo Antônio, Senhor do Bonfim, Santa Rita e Santa Teresa. Eram invocados por todos, os anjos da guarda e o santo de seu nome. Antônia de Oliveira Silva, parda, deixou um frasco de azeite e uma oitava de ouro para o Senhor do Bonfim, uma toalha de bretanha com renda para Santa Rita, vinte e quatro mil-réis para Nossa Senhora do Terço e determinou que fos sem rezadas dez missas de valor de uma pataca aos santos de sua maior de voção.52 As devoções estavam expressas na cultura material e, muitas vezes, forma vam parte do pecúlio das mulheres forras, por estarem materializadas em objetos de prata e ouro, que podiam ser vendidos ou penhorados quando necessário. Josefa da Costa da Visitação, Bernardina Maria da Conceição, Joa na de Carvalho tinham imagens de Nossa Senhora da Conceição, lavradas em ouro e penduradas em correntes, e a primeira tinha também um M enino Jesus, do mesmo metal. Maria de Azevedo possuía uma imagem da mesma santa, mas diferente das demais na forma de “uma lâmina de vidro” .53 Os oratórios eram freqüentes, e alguns podiam ser simples, quase sem valor material, como o de Rita Vieira de Matos que também abrigava uma Nossa Senhora da Conceição e um crucifixo de latão.54 Também podiam ser suntuosos, como as de Jacinta da Siqueira que possuía vários deles, com va riadas e caras imagens: o primeiro era fechado, pintado e ostentava uma ima gem de Cristo, outro com Nossa Senhora das Mercês, um terceiro com uma
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AEAD. Caixa 350,f. 162v-163. Ibidem . BAT. Maço 58. 1,° ofício. BAT. Maço 65. 1.° ofício.
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Santana com resplendor de ouro, o quarto trazia Nossa Senhora com uma coroa de ouro e o último tinha a imagem de Santo Antônio com resplendor de prata.55 Significativa parte do espólio era gasta na celebração de missas, fossem elas de corpo presente, fossem em memória de suas almas 0 11 de entes queri dos, pois se creditava a elas grande poder de remissão de culpas. A crença no purgatório criava um rito forçado de passagem para a elevação da alma. Era costume tam bém celebrar missas pelas almas do purgatório e por escravos, para as quais tam bém deixavam esmolas às igrejas onde seriam rezadas ou a instituições como as Irmandades. Inácio Dias Cardoso, comerciante, orde nou que se rezassem duzentas missas dc esmola em Ouro Branco; quinhen tas no Rio de Janeiro, celebradas no convento de Santo Antônio e de N. S. do Carmo, sendo cem nos meses subseqüentes e no mesmo dia de sua morte; mais cem pela alma de sua mãe e cem pelos seus escravos. Pagou também por uma “lâmpada de alumiar 0 Santíssimo Sacramento de sua freguesia” .56 João Gonçalves Batista pediu que se celebrassem duzentas missas pelas al mas dos escravos que morreram em seu poder.57 Jacinto Colares^8 separou um por cento de seus bens para que rezassem missas para as almas do fogo do purgatório; cento e sessenta missas em favor de sua alma; quatrocentas mis sas pela do pai; quatrocentas pela da mãe e cem pela alma dos avós. Em geral, os comerciantes determinaram maior número de missas do que as forras, seu pecúlio era também muito maior. Entre elas, Teresa Feliz dispôs que dez missas fossem celebradas na matriz do Serro e vinte no arraial do Tejuco, divididas entre as igrejas do Carmo, Mercês, São Francisco, Bonfim e Ampa ro, nesta última em altar privilegiado.59 Os preços das missas em Minas eram relativamente altos, o que determ i nou que João Monteiro Baião, que possuía loja de fazenda em Santa Luzia, advertisse seus testamenteiros que “sendo meu falecimento nas Minas me digam vinte missas pela minha alma, com a brevidade possível, e sendo em povoado serão quarenta” .60 Outros sufrágios serviam para notabilizar a situação do morto, como o lugar da sepultura na igreja, ou o direito de ser carregado pelos irmãos e pelo prove dor, ou ainda o número de capelães para o ofício de corpo presente. O mesmo João Monteiro Baião pediu que sua “sepultura podendo ser, será junto da porta principal da igreja, da parte de dentro”,61 apesar de essa posição não ser
55 * 57 5,1 ” “ 61
Fórum do Serro. Livro dc Registros dc Testam entos dc 1751, f. 33v-38v. MI.AHCP. Cód. 63. Auto 761. MI.AHCP. Cód. 67. Auto 802. MO.CBG. Testam ento. L7(13), f. 13-18. AEAD. Caixa 521, f. 48-49. M O.CBG. '1 estam ento. I >3(8), f. 102-107. Ibidem .
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muito nobre. Os escravos costumavam ser enterrados no adro e os que paga vam ou eram juizes de irmandades tinham privilégio de serem enterrados nos altares. As mulheres forras e os comerciantes foram enterrados no corpo da igreja, nas tumbas de suas irmandades, como Chica da Silva e mesmo Matias Castro Porto, grande homem de negócio em Sabará onde possuía seis lojas diversas. Já M anuel Pereira Castro pediu que fosse enterrado na matriz de Nossa Senhora da mesma vila, mas que, depois de um ano, fossem “deposi tados meus restos no convento dos capuchos no Rio de Janeiro”.62 Todos os enterros de mulheres forras foram realizados com pompa, isto é, servindo de sinais exteriores de dignificação. Maria Vaz da Conceição63 exi giu que sua missa de corpo presente fosse rezada por oito sacerdotes, Gertrudes Angélica da Glória64 pediu que fossem seis os celebrantes e Inês Fernan des N eves65 que fossem dez as missas de corpo presente. Bernardina Maria da Conceição66 fez-se acompanhar de todos os sacerdotes que estivessem no arraial por ocasião de sua morte. Já Maria Martins Castanheira67 pediu que seu corpo fosse acompanhado de seu reverendo pároco, dois capelães das irmandades das Mercês e Rosário de que era irmã e mais um sacerdote, pos teriorm ente dez missas seriam rezadas por sua alma com a presença de todos os capelães do arraial. Teresa Feliz reservou dois vinténs para cada pobre que acompanhasse seu corpo à sepultura e pediu que seu velório fosse realizado em casa.68 A mortalha era outro símbolo social exterior. Tanto comerciantes quanto m ulheres forras tiveram preferência pelas mortalhas de São Francisco e Nos sa Senhora do Carmo. As mortalhas eram caras e os que não se encontravam preparados para este gasto tinham de se contentar com um lençol. Agosti nho Rodrigues pediu que fosse amortalhado num hábito de Nossa Senhora do Carmo, de que era irmão, mas, não havendo, poderia ser de São Francis co ou Santo Antônio.69 Já João Veloso de Carvalho, proprietário de loja de fazenda, precavido, pediu que fosse “amortalhado no hábito de Nossa do Carmo, que em meu poder tenho”.70 Vicente Leal da Silva, boticário em Vila Rica, recom endou que seu corpo fosse amortalhado com o hábito de São Francisco e enterrado na igreja matriz de Antônio Dias, em Vila Rica, com missa de corpo presente e mais cinqüenta missas encom endando-lhe a
62 M O.CBG. Testam ento. L 5 (ll), f. 104v-113. 63 AEAD. Caixa 521, f. 49v-50. M AEAD. Caixa 521, f. 70-70v. 65 BAT. 1." ofício. Maço 26. 66 AEAD. Caixa 350, f. 38v-40. 67 AEAD. Caixa 521, f. 387v-388. “ AEAD. Caixa 521, f. 48-49. 69 MO.CBG. Testam ento. L7(13), f. 39-43. 70 MO.CBG. Testam ento. L4(9), f. 88v-97.
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alma. Afirmou que era membro da Irm andade do Santíssimo Sacramento, de Nossa Senhora da Conceição, de São Gonçalo das Almas e de Santo Antônio e então seu corpo deveria ser acompanhado pelos irmãos, pelo pro vedor e juizes ordinários.71 Com exceção de Maria Vaz da Conceição,72 que pediu que seu corpo fosse amortalhado num hábito de lã, e Isabel da Silva,73 cujo corpo foi enrolado num lençol, todas as demais foram enterradas vestindo o hábito de São Fran cisco ou N. S. do Carmo, com predominância para o primeiro. A negra Maria Martins Castanheira74 determinou que se lhe enrolasse na cintura o cordão de São Francisco das Chagas, santo protetor dos pardos. Mas também o Alferes José Teixeira de Macedo, que comerciava gado, pediu que fosse enterra do na Igreja de Santo Antônio, amortalhado em um lençol e acompanhado das irmandades que aí estivessem.7:1 Os comerciantes também procuraram determinar que a pompa cercasse seus últimos momentos. Porém, encontraram dificuldades os que se deslocavam freqüentemente pelos caminhos, em negócios. Por isso, os testamentos de viandantes revelavam a inquietação de não estarem amparados por uma irmandade no momento da mortes e, mais que as mulheres forras, tiveram dificuldades em garantir os sufrágios adequados na hora da morte. Os comerciantes volan tes, por exemplo, demonstraram preocupação por não encontrar a igreja ou hábito adequado para o enterro e muitos tiveram de se contentar com um len çol. Mais temor provocava a morte em pleno sertão, onde não haveria condição de garantir os sufrágios adequados. Simão Alves Ferreira, apesar de pertencer à Irmandade das Benditas Almas em Morro Vermelho, pediu que “em qualquer parte da América seja meu falecimento, será feito meu enterro do modo e Igre ja mais conveniente”; que lhe ministrassem “o Santíssimo Sacramento da pe nitência, [...] livrando-me das tentações do Demônio” e perdoassem a quem ofendera em vida e o enterrassem com o hábito de São Francisco e “na falta outro qualquer”.76 João Pereira Montalvão, viandante da barra do rio das Ve lhas, determinou que o sepultassem “na Matriz ou Igreja mais próxima onde for meu falecimento”, onde deveria ser rezada missa de corpo presente, pagando-se as esmolas aos sacerdotes que forem encontrados e puderem acompa nhar o corpo.77José Ribeiro Manso, que fazia carregações para o sertão, afirmou que seu corpo deveria ser “sepultado na Matriz, na paragem onde falecer, na capela mais próxima que houver e será meu corpo amortalhado com um hábito
71 MI.AHCP. Cód. 137. Auto 1719. 72 AEAD. Caixa 521, f. 49v-50. 73 AEAD. Caixa 521, f. 79v-80. 74 AEAD. Caixa 521, f. 387v-388. 75 MO.CBG. Testam ento. L8(16), f. 113v-129v. 7,1 MO.CBG. Testam ento. L2(06), f. 98v-103v. 77 MO.CBG. Testam ento. L2(06), f. 11 l-120v.
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de Santo Antônio e, na falta deste [...] amortalhado em um lençol”.78 Por sua vez, Jerônimo da Costa Vale esperava que morresse na Bahia, onde poderia ser enterrado no convento do Carmo, onde era irmão, mas, consolava-se resignado que “sendo em outra qualquer parte, se fará conforme a terra o permitir e será sepultado donde for mais conveniente”.79 O momento da morte era também momento de contrição, arrependim en to, por isso esmolas eram deixadas para santos e entes queridos, e promessas eram feitas para remissão das culpas. Cristóval Fernandes da Silva, que em prestava dinheiro a juros em Caeté, deixou “à Irmandade de Nossa Senhora dos Brancos [...] para douramento do retábulo”, para missas pelas almas de seus escravos mortos, e determ inou que seu filho fosse “cumprir a romaria que prometi para os santos, com esmolas, dizendo uma missa para cada um nas suas capelas”.80 M anuel Ferreira Leal, viandante, deixou também várias esmolas para os santos de sua devoção: à Nossa Senhora das Almas, para o ornato de sua imagem; às Nossas Senhoras da Piedade e da Barroquinha, para decorar de seu altar e ao “glorioso São Félix”, para seu azeite.81 Tam bém as mulheres forras seguiram o mesmo comportamento, em benefício dos san tos, irmandades e pobres, parentes ou entes queridos, mas ao fim revertidos à própria alma. Teresa Félix deixou um laço de ouro, seu bem mais valioso, para Nossa Senhora do Rosário, Maria de Azevedo deixou sua casa para a Irm andade do Amparo e Maria de Sousa Encarnação legou para Irmandade da Terra Santa as que tinha alugadas. Ao contrário do que se poderia esperar, foi a itinerância, e não o nascimen to em condições desfavoráveis, que contribui mais significativamente para a diminuição da pompa. Comerciantes fixos e mulheres forras encontraram na hora da morte todas as condições para exteriorizar a importância que alcança ram em vida, em detrim ento dos mercadores volantes. O novo mundo e prin cipalm ente o rush minerador abriam espaços para a mobilidade social, apesar das tendências hierárquicas da sociedade. A ascensão dos estratos sociais de forros, mulatos livres e comerciantes levou, na prática, a que os estatutos excludentes das irmandades mineira fossem burlados. Se a escravidão e o viver do trabalho das próprias mãos eram fatores de segregação, a conquista da liberdade pelas forras e o enriquecim ento dos comerciantes mudava-lhes a condição e, independente do nascimento, homens e mulheres buscavam e tornavam públicos, na hora da morte, os símbolos que os dignificavam, ao mesmo tem po que garantiam sua salvação.
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M O.CBG. Testam ento. L7(13), f. 104v-112. MO.CBG. Testam ento. L3(8), f. 107-116. MO.CBG. Testam ento. L4(9), f. 24-34. M O.CBG. Testam ento. L3(8), f. 116v-126v.
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m u l h e r e s
fo rr as
Arquivo do Fórum do Serro 1. Jacinta da Siqueira. Testam ento. Livro 8, f. 33v-38v. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina 2. Ana da Glória dos Santos. Livro dc Registro de Óbitos do Tejuco. Caixa 521, f. 397v-398. 3. Ana Maria de Freitas. Livro dc Registro dc Óbitos do Tejuco. Caixa 521, f. 120-120v. 4. Antônia de Oliveira Silva. Livro de Registro dc Óbitos do Tejuco. Caixa 350, f. 162v-163. 5. Bcrnardina Maria da Conceição. Livro de Registro dc Óbitos do Tejuco. Caixa 350, f. 38v-39. 6. G ertrudes Angélica da Glória. Livro de Registro dc Óbitos do Tejuco. Caixa 521, f. 70-70v. 7. Isabel da Silva. Livro de Registro dc Óbitos do Tejuco. Caixa 521, f. 79v-80. 8. Isabel Gomes. Livro dc Registro de Óbitos do Tejuco. Caixa 350, f. 84v-85v. 9. Joana Carvalho. Livro de Registro dc Óbitos do Tejuco. Caixa 350, f. 166-167. 10. Josefa da Costa da Visitação. Livro dc Registro dc Óbitos do Tejuco. Caixa 350. f. 32v. 11. Josefa Dias. Livro dc Registro dc Óbitos do Tejuco. Caixa 521, f. 76v-77. 12. Luzia Gom es Ferreira. Livro de Registro dc Óbitos do Tejuco. Caixa 521, f. 367v-368. 13. Maria de Sousa da Encarnação. Livro de Registro de Óbitos do Tejuco. Caixa 350, f. 34-34v. 14. Maria M artins Castanheira. Livro dc Registro dc Óbitos do Tejuco. Caixa 521, f. 387-388. 15. Maria Vaz da Conceição. Livro dc Registro dc Óbitos do Tejuco. Caixa 521, f. 49v-50. 16. Rita Pais de Gouveia. Livro de Registro dc Óbitos do Tejuco. Caixa 521, f. 35-35v. 17. Rosa Fernandes Passos. Livro de Registro dc Óbitos do Tejuco. Caixa 521, f. 102-102v 18. Teresa Félix. Livro de Registro dc Óbitos do Tcjuco. Caixa 521, f. 48-48v. 19. Francisca da Silva dc Oliveira. Livros de Óbitos. Ordem 3.a de São Francisco. Caixa 350. Biblioteca Antônio Torres, Diamantina 20. Ana da Encarnação Amorim. Cartório do 1." ofício. Maço 4. Ana da Glória dos Santos. Cartório do 1." ofício. Maço 4. 21. Inês de Santa Luzia. Cartório do 1." ofício. Maço 26. 22. Inês Fernandes N eves. Cartório do 1.° ofício. Maço 26. 23. Maria dc Azevedo. Cartório do 1.” ofício. Maço 58. 24. Rita Vieira de Matos. Cartório do 1.“ ofício. Maço 65. O
u t r o s
d o c u m e n t o s
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese dc Diamantina Livro da Fabriqueira da Capela de Santo Antônio. Caixa 509. Livros dos Irmãos da Terra Santa no Tejuco. Caixa 509. Irm andade de Nossa Senhora das Mercês. Caixa 520. Entrada de Juizes e Juízas Irm andade Nossa Senhora das M crcês. Caixa 510.
T estam ento s
de
c o m e r c i a n t e s
Arquivo Público Mineiro: Seção Câmara M unicipal de Sabará 1. Cód. 24, f. 151/153v. Félix da Silveira M useu do Ouro dc Sabará/Casa Borba Gato 2. L l( l) , f. 118-124. 3. L2(6), f. 37v-43v. 4. L2(6), f. 70v-76v. 5. L2(6), f. 80v-83. 6. L2(6), f. 98v-103v. 7. L2(6), f. lll-120v.
João Freire de Macedo Manuel dc [M endes] Guimarães Rafael M onteiro Heircs. M anuel Madurcira Pinto. Simâo Alves Ferreira João Pereira dc Alvorcdo Montalvão
TRANSITORIF.DADE
DA
VIDA,
E T E R N ID A D E
DA
MORTE
415
8. L3(8), f. 94v-101v. 9. L3(8). f. 116v-126v. 10. L3(8), f. 102-107. 11. L3(8), f. 107-108. 12. L4(9), f. 24-34. 13. L4(9), f. 40-54. 14. L4(9), f. 82-88v. 15. L4(9), f. 88v-97. 16. L 5(l 1), f. 7v-l 1. 17. L5( 11), f. 16-20v. 18. L5( 11), f. 43v-50. 19. L 5 (ll), f. 50-58. 20. L5( 11), f. 67v-74v. 21. L 5 (ll), f. 104v-l 13. 22. L6(12), f. 9-16v. 23. L6(12), f. 43v-51. 24. L6(12), f. 97v-104. 25. L6( 12), f. 127-132. 26. L7(13), f. 13-18. 27. L7(13), f. 15v-18. 28. L7(13), f. 26-32. 29. L7(13), f. 39-43. 30. L7(13), f. 52v-58v. 31. L7( 13), f. 104v-112. 32. L8(16), f. 113v-129v. 33. L8(16), f. 160v-169.
Maria de Freitas Manuel Ferreira Leal João Monteiro Baião Jerônimo da Costa Vale Cristóval Fernandes da Silva Martinho Afonso de Melo Marcos Ferreira da Silva João Veloso de Carvalho Rosa Correia M anuel Fernandes Ferreira Francisco Alves Lima G uálter da Costa Porto Domingos Jorge Moreira M anuel Pereira Castro Lourenço Pereira da Costa José da Costa Porto Domingos da Mota Lucas Pereira do Lago Jacinto Pereira Colares Antônia N unes dos Anjos Antônio Jorge Calhau Agostinho Rodrigues Manuel Pinto Rosado José Ribeiro Manso Alferes José Teixeira de Macedo Domingos Vieira de Sousa
Cartório do 1.° Ofício 34. CPO . Caixa 2. Avulso.
Matias Castro Porto (com transcrição do testam ento).
Cartório do 2.° Ofício (Projeto “Vida Quotidiana na Comarca do Rio das Velhas”, projeto dc pesquisa financiado pelo C N P q e coordenado pela Prof.' Beatriz Ricardina de Magalhães.) 35. CSO. 12.(05) Inventário de Antônio da Silva Azevedo 36. C S0.13.(06) Inventário de José Afonso 37. C S0.12.(09) Inventário de José Tavares Pereira (Capm.) Arquivo Histórico do M useu da Inconfidência/Casa do Pilar. 1.° Ofício Domingos Gonçalves Cruz 38. Cód. 34. Auto 402 Inácio Dias Cardoso 39. Cód. 63. Auto 761 João Gonçalves Batista 40. Cód. 67. Auto 802 Domingos Ferreira de Carvalho 41. Cód. 75. Auto 893 Lourenço Pires de Carvalho 42. Cód. 93. Auto 1140 M anuel da Silva Machado 43. Cód. 114. Auto 1467 Vicente Leal da Silva 44. Cód. 137. Auto 1719 Arquivo da Casa Setecentista 1: Ofício M anuel M endes da Silva 45. Cód. 22. Auto 586 46. Cód. 45. Auto 1045 M anuel Cardoso de Matos Antônio de Matos Pereira 47. Cód. 71. Auto 1511 48. Cód. 87. Auto 2169 Domingos Rodrigues de Matos BIBLIOGRAFIA Bazin, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983. Boschi, Caio César. Os leigos e o poder. Irmandades leigas epolítica colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986.
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J ÚN IA
FERREIRA
FU RTA D O
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□ □□ F e r r e i r a F u r t a d o é professora-adjuntade História da Universida de Federal de Minas Gerais, mestre e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo.
Júnia
R e s u m o . O texto pretende refletir sobre os ritos fúnebres determ inados em testa mentos por moradores das Minas no século XVIII. Estes ritos garantiam ao morto a salvação da alma, por meio dos sufrágios necessários ao perdão, e eram tam bém for ma de exteriorização do lugar social que cada um ocupava na sociedade. Desse ponto de vista, o estudo pretende não só analisar os mecanismos preferenciais de perdão, como missas e esmolas, mas tam bém estabelecer comparações entre diversos seg m entos sociais, com base na análise da pompa que cercava cada um destes enterros. A filiação às Irmandades, o tipo de mortalha, o núm ero de velas, esmolas, missas celebradas, local do enterro dentro da igreja, etc.; tudo servia como forma de exte riorização da condição social do morto. Visa-se, particularmente, estabelecer compa rações entre os enterros de comerciantes e negras forras, buscando aproximações e peculiaridades, por meio das quais se podem perceber diferenças nas inserções so ciais de cada um, salientando-se que a mobilidade inerente a uma parcela do prim ei ro segm ento interferiu de forma significativa na definição de seus ritos fúnebres.
MADRE DE, DEUS
MADRE DE DEUS
SUMMA TRIUNFAL DANOVA, E GRANDE CELEBRIDADE do Glorioíò, e invi&o Martyr
S.GONCALO G A R C I A : Dedicada, e offerecida ao Senhor Capitaó
JOZERABELLO DEVASCONCELLOS, PO R SEU A U TO R
SOTERIO DA SYLVA RIBEIRO: Com huma Colleçaó de rarios folgedos ,edanças, Oraçaõ Panegírica, que recitou o Doutíífimo,e Reverendifíirao Padre Fr. ANTONIO DE SANTA MARJA JABOATAM, Rcligíofo C sp ucho da Província deSaoco A ntonío do Brtzil,
Na Igreja dos Pardos da
SENHORA DO LIVRAMENTO, EmPernambuconoprtweirodeMayodoanno de 174Ç. L I S B O A. Na Officia» de- PEDRO PERREIRA , lmpreflbt d* Auguftiffina
Rdintu oolta Senhori.
Anno de M .O C C .L III. Com tc d jr «j littn fS l a c u jftr iú l,
Aranha, corrigindo erradamente Inocêncio (voL 16, p. 258) coloca a Summa triunfal entre as obras de Manoel da Madre de Deus Bulhões. Como indica Jaboatão, foi publi cada com o nome de Sotério da Sil va Ribeiro. A Summ a Triunfal é uma rela ção dos festejos que os “Homens
pardos” do Recife realizaram em primeiro de maio de 1745 em hon ra do Beato Gonçalo Garcia. Nas primeiras páginas o autor, Frei Ma noel da Madre de Deus, conta que foram as jesuítas que deram a no tícia da existência do beato, natu ral da Índia, e portanto de “côr parda”. Mas, continua o autor,
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Frontispício da Summa triunfal da nova, e grande celebridade do Glorioso, e invicto MartyrS. Gonçalo Garcia: Dedicada, e oferecida ao Senhor Capitaõ Jozé Rabello de Vasconcellos, por seu autor Soterio da Silva Ribeiro: [. ..]. Lisboa: Na Officina de Pedro Pereira, Impressor da Augustissima Rainha nossa Senhora. Foto André Ryoki.
A REDENÇÃO DOS PARDOS: A FESTA DE SÃO GONÇALO GARCIA NO RECIFE, EM 1745 R
i t a
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I n i c i e m o s c o m a c i t a ç ã o de um provérbio, segundo o qual o Bra sil seria o “purgatório dos brancos, inferno dos pretos e paraíso dos mulatos e das mulatas”.1 Em voga na passagem do século XVII ao XVIII, o registro encontra-se em Antonil, que o reproduziu em seus estudos voltados princi pal, mas não exclusivamente, ao Brasil agrário, de modo especial ao dos enge nhos de açúcar da Bahia, do Rio de Janeiro e dc Pernambuco. Usualm ente comparados pelos senhores aos escravos, os mulatos ou par dos — em cujas veias corria o sangue dos brancos senhores mesclado ao mui to ou pouco dos negros — eram considerados extrem am ente habilidosos na execução de ofícios vários; e, no julgar do jesuíta, mais ainda o eram no lidar com os senhores, nas manhas, artimanhas, intrigas e nos jogos amorosos em que se envolviam. A imoralidade, associada à figura do mulato, tinha raízes, segundo os registros, na forma como os mulatos e mulatas eram tratados pe los senhores, cheios de mimos e gostos. As escravas vivendo promiscuamcnte com os “senhorzinhos”, despertando-lhes cedo a libido e gerando filhos bastardos, a quem , um dia, por herança, pertenceriam as propriedades, enge nhos e fazendas, da colônia.2 Tidos e havidos, pelos que compunham a elite
1 André João Antonil. Cultura e opulência r!u H rasilpor.tuas drogas e minas. Recife: M useu do Açúcar, 1967, p. 24. 2 Vilhena chamava a atenção dc S. Majestade para este que era, na sua opinião, um dos graves problemas da colônia: “o virem os engenhos e as grandes fazendas a cair nas mios destes pardos naturais, homens eom umente estragados Luís dos Santos Vilhena. A Ha/tia no séculoXVIII. Bahia; Editora ItapuS, 1969, v. 1, especialmente o capítulo 3, p. 135-7.
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branca local, como insolentes, soberbos, preguiçosos, vadios e lascivos, o pa raíso de que pareciam desfrutar os mulatos só se via verdadeiram ente am ea çado pelos infortúnios do amor e dos vícios.3 Sedutores, ardilosos, verdadeiras fontes de mau caminho, o perigo que julgavam representar os mulatos para a moralidade, pública e privada, com parava-se ao que viam nas cidades. Lugares de riscos e fontes de desvirtuarnento, nelas um sujeito poderia facilmente dar-se a vícios, aos jogos e à licenciosidade a que o sexo fácil convidava. Realidades desconhecidas para aqueles senhores que viviam no ermo dos canaviais, exigiam cuidados e vigí lias dos pais em relação aos filhos, que para lá se dirigiam com o fito de estu dar e de tornar-se um Aristóteles nas conversas de salões. Viver na cidade para deixar dc scr um “tabaréu”, na expressão de Antonil, sujeito com limita da capacidade para a conversação, com um repertório que pouco variava, gi rando em torno de bois, cavalos e canas, e, o que parecia bem pior, no mais das vezes, analfabeto. Mais que apontar para mudanças de valores que se operavam na sociedade colonial, precisamente observadas entre a geração presente e as passadas dos senhores rurais de um lado, e a de seus filhos, de outro, os comentários do “Anônimo Toscano” indicavam a percepção dos contemporâneos de que ha via duas realidades distintas em contraposição: a do campo e a da cidade, expressas sobretudo nos costumes e modos de vida verificados em um e nou tro espaço. Sinais de que se constituía uma certa urbanidade e, também, da presença de uma cultura letrada, privilégio de uma minoria mesmo entre membros da elite, as quais se insinuavam sutilm ente como gozando de maior prestígio ante o tradicional viver dos que se ocupavam da terra.4 Entremos pois nesse mundo citadino colonial, de brancos, pretos, mulatos e raças infames; de senhores e escravos, livres e vadios; passados entre hon ras, devoções, glórias, vícios e pecados, atendendo à convocação que a festa nos faz. Nossa entrada será pura evocação. Em nada rivalizará com aquelas por ruidosos bandos publicam ente anunciadas, ansiosamente esperadas por to
3 Para uma análise sobre a visão do mulato no período colonial, ver Charles R. Boxer. A idade de ouro do Brasil. São Paulo: Nacional, 1963, p. 32-5; Idem. Relações raciais no império colo nial português, 1415-1825. Rio dc Janeiro: Tem po Brasileiro, 1967; Gilberto Freyre. Sobra dos & mocambos. 7.“ ed. Rio de Janeiro-Brasília: Josc O lym pio-INL, 1985, cspecialm cntc o 2." tomo; José Antônio Gonsalvcs dc Mello. “O acidcntc da cor”, in: José Antônio Gonsalves de Mello. Tempo dejornal. Recife: Fundaj, Ed. Massangana, 1998, p. 255-9. 4 Parte dos comentários desfavorável às cidadcs, cm Antonil, dcve-sc ao fato dc scr ele da opinião que “as melhores minas do Brasil” eram o açúcar c o tabaco, discordando do e n tu siasmo febril em torno das riquezas que provinham das minas de ouro, das quais decorre ram o crescim ento das cidadcs mineiras, no século XVIII, c, com ele, a dissolução dos costumes. Ver José Antônio Gonsalves de Mello. “Antonil e sua obra” , in: André João Antonil. Op. cit., p. I-VIII.
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dos, ou quase todos, e sempre excedendo em brilho com que as cidades cos tumavam saudar seus visitantes ilustres. Tradição antiga tão bem recuperada quanto refinada pelas monarquias do Antigo Regime.5 Ingressaremos nas festas e cerimônias públicas, realizadas na América por tuguesa, pela palavra, pelo que ficou registrado na memória escrita. Memória que nos chega sobretudo através das narrativas dos homens de letras, leigos ou eclesiásticos, invariavelmente em tom panegírico-histórico como convi nha aos princípios da retórica, que exigiam dos autores obediência às regras de arte e aos preceitos da poesia, agudeza em seus engenhos, sutileza nos conceitos, elegância e clareza do discurso, propriedade dos vocábulos.6 Submetidas à censura de autoridades várias, exigia-se, para a publicação das relações sobre as festas públicas comemorativas, que não contivessem coisa alguma que fosse contrária à santa fé católica, aos bons costumes e às leis e reais decretos. O conhecimento prévio da censura, a que seriam sub metidos os textos, aliado às prerrogativas do gênero literário, em que se en quadravam, certam ente explicam muito das preferências e acentuações que os autores davam a determinados aspectos do cerimonial. O que contrastava com o aparente desinteresse demonstrado para com outros acontecimentos festivos — quanto não, por não serem perceptíveis ao seu olhar, decodificação sempre histórica e cultural. Conflitos envolvendo as diversas instâncias do poder político e do religio so muito raramente eram publicados nas relações sobre as festas. Uma das exceções talvez seja a das cartas trocadas entre o governador de Pernambuco, Luís José Correia de Sá, e a câmara do Recife, por haverem os oficiais mecâ nicos da vila se negado, ou o terem feito muito a contragosto, os custeios referentes às figuras alegóricas a serem exibidas nas festas pela aclamação de Dom José I.7 N este caso, a publicação deveria servir para inibir, com o exem
5 Jacqucs Hecrs. Festas de loucos e carnavais. Lisboa: Publicações Dom Q uixote, 1987; Jean-M arie Apostolidès. 0 rei-máquina: espetáculo e política no tempo de Luís XIV. Rio dc Janeiro-Brasília: José Olym pio-Edunb, 1993; Klaus Bringmann. “El triunfo dei em perador y las saturnales de los esclavos en Roma”, in: Uwe Schultz (dir.). La f/esta: una historia cultural desde la Antigiiedad hasta nuestros dias. Madri: Alianza Editorial, 1993, p. 65-75; Elsbet Orth. “La coronación imperial de Carlomagno en Roma”, in: Uwe Schultz (dir.). Op. cit., p. 77-92. 6 José Aderaldo Castello realizou trabalho de fôlego ao coligir documentação referente às manifestações culturais do período barroco, no Brasil, e que se encontra reunido na “Cole ção de Textos e D ocum entos”, nos volumes do livro 0 movimento academicista no Brasil: 1641-1820122. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1969-1978. 7 A legislação portuguesa ordenava a realização dc festas religiosas anuais em todas as exten sões do reino, tais como a do Corpo de Deus e a do Anjo Custódio, assim como a procissão de Nossa Senhora, de obrigação dos juizes e vereadores das vilas e cidades coloniais. O u tras comemorações públicas, cívicas ou religiosas, eram decididas ou por ordens régias ou pelos governos locais, câmaras e prelado. Ver Ordenaçõesfilipinas do Reino de Portugal. Nota dc apresentação dc Mário Júlio da Costa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985
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plo, outras atitudes semelhantes em todo o império português.8 Termos e descrições de figuras jocosas, das máscaras com que costumavam divertir-se os estudantes, o burlesco e o risível das festas também não se adequavam ao tom solene e grave que o estilo recomendava às narrativas festivas. Os registros históricos das comemorações públicas começavam por ser uma explícita exaltação do reino, tal qual as festas intensam ente vividas e teste munhadas pelos autores. No eixo temporal, suas obras tinham por função projetar no tempo futuro e perpetuar na memória aqueles tão grandiosos quanto efêmeros acontecimentos — repletos de símbolos e intenções políti cas todavia. Tão fugaz, que muitas vezes findavam com a espetacular queima das máquinas e cenários que, há bem poucos instantes, eram motivos de pas mo e admiração. Pretensão mais de uma vez acentuada nos pareceres dos censores, dentre os quais destacamos o do padre mestre Dom Antônio Cae tano de Sousa, qualificador do Santo Ofício, sobre os Aplausos Natalinos, de 1718, para quem o relato escrito deveria “levantar um Obelisco contra as injúrias do tempo, para que não fique somente na duvidosa tradição dos ho mens, a memória que desejam eternizar do seu Vice-rei Dom Antônio de Noronha, Marquês de Angeja [...]” .9 A exaltação do reino através da memória escrita — além de se fazer por meio do registro histórico, que assegurasse aos homens do presente uma lem brança num futuro indizível — realizava-se também pela atualidade geográ fica. As palavras de um censor, escritas no ano de 1760, fornecem indicações do anteriorm ente afirmado: “me parece muito digno de que se divulgue por benefício da estampa para que se saiba por mais uma experiência, que os vassalos de Vossa M ajestade em toda parte do mundo conservam o caráter de Portugueses, isto é, o de leais, amantes e extremosos para com seus Prínci pes”.10 Os registros sugerem que essas memórias circulavam, 0 11 deveriam circular, entre as diversas partes que compunham o reino, metrópole e colô nias, estabelecendo como que um elo entre elas, reforçando a idéia de unifi(edição fac-similada da edição feita por Cândido M endes de Almeida, Rio de Janeiro, 1870), Livro I, T ít. LXVI, parág. 48. As câmaras tiveram estas obrigações até 1.” de outubro de 1928. Ver também , Fernando M endes de Almeida. “O folclore nas O rdenações do Reino”, in: Revista (to Arquivo M unicipal, São Paulo, /,F/:5-126, 1939; especialm ente p. 50 e 64. s Felipe Néri Correia. “Relação das festas que se fizeram em Pernam buco pela feliz aclama ção do muito alto, e poderoso rei dc Portugal Dom José I. [...], 1751 -1752”, in: José Adcraldo Castello. Op. cit., v. III, t. 2, p. 257-69. ' “Aplausos natalícios com que a cidade da Bahia celebrou a notícia do felicc Primogênito do Excelentíssimo Senhor Dom Antônio dc Noronha, Conde de Vila Verde, [...] Lisboa O ci dental, na Oficina de Miguel Mcnescal, Impressor do Santo Oficio, c da Sereníssima Casa de Bragança (S.l.A) 1718” , in: José Aderaldo Castello. Op. cit., v. III, t. 6, p. 29. 1(1 M anuel de Cerqueira Torres. “Narração pancgírico-histórica das festividades com que a cidade da Bahia solenizou os felicíssimos desposórios da Princesa Nossa Senhora com o Sereníssimo Senhor Infante Dom Pedro, [...], (1760)”, in: José Aderaldo Castello. Op. cit., v. III, t. 3, p. 193.
A REDENÇÃO
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PARDOS
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cação e da existência de um “Lusitano Império”. Seria, assim, parte da polí tica diplomática do reino, a multiplicação dos exemplos estimulando uma discreta emulação entre as partes. A imponente festa pública, fosse ela reli giosa 0 11 cívica, tinha por função tornar visível a existência do império portu guês, e o relato escrito complementava o intento. Eles celebravam a paz e a eternidade do reino, simbolizado no corpo do rei: “E por mil anos com pazes vivas”, cantava o coro em sonata." Feitas estas considerações relativas à documentação... Não nos desvie mos mais da festa; não adiemos a promessa de júbilo e comunhão com que a festa se nos oferece. O CULTO
A
SÃO
GONÇALO
GARCIA
O culto a São Gonçalo Garcia, na América portuguesa, difundiu-se na dé cada de 1740, quando foram construídas igrejas e instituídas irmandades reli giosas, sob sua invocação em centros urbanos como Penedo, nas Alagoas, Recife, cidade da Bahia e Minas Gerais.12 Para Pernambuco, entretanto, po demos recuar a história do seu culto umas três décadas antes dessa data. Con ta o autor da Súmula Triunfal que “Haverá pouco mais de trinta anos, que indo deste Pernambuco ao Rei no de Portugal um homem pardo por nome de Antônio Ferreira no regres so trouxe uma pequena Imagem do Beato Gonçalo Garcia com a notícia que lá lhe deram de ser o santo da sua mesma cor, e acidente; 13
" O coro apresentou-se numa das funções oferecidas pelos artífices tanoeiros c carpinteiros, por ocasião das festas citadas na nota anterior. Ibidem, p. 204. 12 Gonçalo Garcia era natural da cidade de Baçaim, na costa do Malabar, ao sul de Goa, e nasccu em ano posterior ao de 1533, data em que os portugueses se apossaram dessas terras. Filho dc português com uma mulher hindu, tornou-se mercador, ocupação que aban donou para vestir o hábito de irmão terceiro franciscano. Foi crucificado em Nagasáqui, no Japão, em 1597. Foi beatificado em 1627 e canonizado em 1862. Sobre a devoção ao santo no Brasil, Sotério da Silva Ribeiro. “Súmula triunfal da nova e grande celebridade do glo rioso e invicto mártir São Gonçalo Garcia [...], 1745”, in: José Aderaldo Castello. Op. cit., v. III, t. 2, p. 7-105. Consultar, tam bém , o trabalho de pesquisa textual e iconográfico de Raquel Caldas Lins & Gilberto Osório de Andrade. São Gonçalo Garcia: um culto frustrado. Recife: Fundaj, Ed. Massangana, 1986. Idem. “Elogio do homem pardo”, in: Ciência & Trópico, Recife, 7z’(l):79-105, jan.-jun. 1984. Os dados biográficos foram reunidos por Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, autor do sermão proferido por ocasião das celebrações ao beato, na vila do Recife, na igreja de N. S. do Livramento, em 12 de setem bro de 1745, intitulado “Discurso histórico, geográfico, genealógico, político, e encomiástico [...]”, re produzido por Raquel Caldas Lins & Gilberto Osório dc Andrade. “Elogio do homem pardo”, in: Ciência & Trópico. Há indícios dc que existiam devotos do beato Gonçalo Garcia já em 1682, na vila de Penedo. Ver Ernani Méro. Penedo: templos, ordenseconfrarias. Maceió: Sergasa, 1991, p. 239. 13 Sotério da Silva Ribeiro. “Súmula triunfal...”, op. cit., p. 16.
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O culto a este mártir do Japão iniciou, podemos assim dizer, com a aspira ção demonstrada pelos homens pardos, que viviam em Pernambuco, de pos suírem um santo da sua cor. Desejo que, encontrando nas formas de pensa mento, nos ritos e símbolos do catolicismo um meio lícito e legítimo de se expressar, denunciava as precárias condições sociais em que a maioria deles vivia e a situação de inferioridade racial confrontada no dia-a-dia. Ao mesmo tempo, assinalava a presença de uma expectativa, nutrida pelos pardos, de alcançarem uma vida futura melhor. A existência de um santo pardo, aureolado pelo martírio, nascido em terras de colonização, da união de português com uma mulher de cor — situação tão sem elhante à dos pardos do Recife — dava a estes mais que um exemplo de uma possível santidade. Dignificavaos em sua acidentalidade étnica e permitia-lhes — como ocorria com brancos e pretos — o exercício de um culto publico, socialmente reconhecido e ex pressão do valor e das qualidades da gente parda. Antes, porém, de alcançarem tão gloriosos e prometidos dias, os homens pardos passaram por duras provações, que, certamente, não conheceriam caso a colônia fosse, em todos os sentidos, “o paraíso dos mulatos”. Os de sua cor suportaram infortúnios, a que responderam com devoção; sofreram opressão e angústia e resignaram-se na fé; ouviram calúnias e escárnios e mantiveramse pacientes. Talvez, estas tenham sido as superiores razões, segundo o autor da Súmula Triunfal, do reconhecimento divino de que era prova “a feliz no tícia do invicto Mártir São Gonçalo Garcia, Santo de sua mesma cor, e aci d en te” .14 Acirrada polêmica instaloú-se desde que a referida notícia foi divulgada localmente. Discutia-se ser verossímil ou não, a informação sobre a cor do santo. Um eclesiástico, a quem fora encomendado um sermão e cuja opinião chegou até nós, recusou-se prontam ente a fazê-lo. Protestou que “não faria pelo mais crescido interesse por não haver aprendido a pregar impossíveis, pois se não moldava com tal acidente a santidade”.15 Enquanto duraram as diligências, a imagem do santo permaneceu reclusa, quase clandestina, no interior da casa do pardo que a trouxera e que, ao morrer, deixou-a por heran ça aos seus iguais, que deram continuidade ao projeto. Situado o debate no interior dos cânones católicos, a resolução do caso escapava inteiram ente à vontade e aos limitados conhecimentos intelectuais dos principais interessados. Eram necessários saber e erudição para argumentar ser parda a cor do beato Gonçalo Garcia, e só uns poucos doutos e religiosos poderiam fazê-lo. Consultados, “nenhum concordava em que o Santo (sendo natural da índia) pudesse ter aquela cor” . Resistências e negativas davam a medida dos preconceitos alimentados pela maioria dos membros da elite bran 14 Ibidem , p. 15-6. 15 Ibidem , p. 18.
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ca local, entre clérigos e leigos, em relação aos mulatos. Mas o caso revelava, tam bém , a existência de discordâncias de opiniões e posicionamentos, exis tentes no corpo da Igreja, e de distintos e por vezes conflituosos interesses entre as diversas ordens religiosas que a compunham. Procurado para profe rir o sermão de entronização do santo, o que o fez no dia 12 de setembro de 1745, na igreja de N. S. do Livramento, o frei franciscano Antônio de Santa Maria Jaboatão “[...] sem impugnância alguma lhes respondeu, que pelo que entendia, podia estar na certeza de que o Beato Gonçalo Garcia, como natural da índia, tinha da cor parda tudo aquilo, que bastava para que eles pudessem ter o por Santo de sua cor, e acidente.” 16 A festa, seja ela sacra ou profana, realiza-se envolta numa rede de signifi cados que, expressando-se por meio de símbolos, ritos, alegorias, gestos e imagens, são tanto ou mais diversificados, ambíguos ou ambivalentes quanto múltiplas sejam a divisão social do trabalho e a procedência étnica e histórica dos indivíduos e grupos que compõem o conjunto da sociedade. Significados que muitas vezes escapam ao controle e sentido dos que se afirmam como idealizadores ou patronos dos festejos.17 Exaltação da grandiosidade do reino, representação, em forma de espetá culo, que a sociedade ordenada, cristã e obreira do Recife fazia de si e ofere cia a seus próprios olhos e discernimento, os louvores a São Gonçalo Garcia pretenderam ser mais que isto, singular. A festa, realizada entre os dias 30 de agosto e 19 de setembro, autoproclamou-se redentora dos pardos, propósito firmado pela conjuntura em que se deu e reforçado pelos registros escritos sobre a memória dos acontecimentos, dentre os quais se destacaram a Súmu la Triunfal e o Discurso Histórico, Geográfico, Genealógico, Político, e Encomiástico, de Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, que, em certo trecho, dizia
16 Ibidem , p. 17. 17 Além dos estudos citados na N ota 5, consultar, Maria H elena de Carvalho Santos (coord.). A festa. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Estudos do século XVIII, Editora Universitária, 1992, 3 v.; Maria H elena da Cruz Coelho. Festa e sociabilidade na Idade Média. Coimbra: 1994; Mary Del Priore. Festas e utopias no B rasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994; Rita de Cássia Barbosa de Araújo. Festas: máscaras do tempo: entrudo, mascarada efrevo no carna v a l do Recife. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1996; Jaime de Almeida. “Todas as festas, festa?”, in: Tânia Navarro Swain (org.). História no plural. Brasília: Edito ra da Universidade dc Brasília, 1994, p. 153-87; André Félibicn. Relaliondelafêtede Versailles. Lesdivertissementsde Versailles. Paris: Éditions Dédalc, M aisonneuve et Larose, 1994; Richard Alewyn. U universdu Baroque. Paris: Éditions Gonthier, 1959; Mona Ozouf. “A festa sob a Revolução Francesa”, in: Jacques Lc Goff & Picrre Nora (dir.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 216-32.
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“Crédito, lustre, honra, e glória, de todos, os que pela sua cor se cha mam Pardos. Este é aquele nome, que proferido com outros termos, e tomado em linguagem vulgar, se vos lançava até agora em rosto, quase por desprezo, como com menos política o faziam alguns, sem mais razão, 0 11 só com a sem razão, de não terem os Pardos, um Santo, que canonizado, já o nome vos não pode servir de desdouro algum, antes sem [írV] de muita glória, pois em o Beato Gonçalo Garcia Santo, Santo de vossa cor, vos de parou Deus um Restaurador, ou Redentor das calúnias do vosso N om e.” 18 Dando ênfase aos termos e precisão às palavras, Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão recordava aos homens pardos o quanto eram eles “tidos em ódio pelos homens, e por eles separados até de tudo o que é ação; boa e virtuosa” ; ao mesmo tempo que denunciava as hostilidades dos brancos para com os homens dessa cor. Relembrava serem eles alvos de calúnia, opróbrios, desprezos e irrisões, tudo porque lhes faltava um santo de sua cor. Falta de corrente, segundo pensava a maioria, do defeito inato da cor, ao que o reve rendo padre rebatia: “como se a cor, por acidentes, pudesse ser sujeito de alguma m aldade”.19 Dois eram os objetivos claramente definidos da oração: mostrar que o bea to Gonçalo Garcia era pardo por nascimento e ascendência, ou, conforme suas palavras, “a declaração, que eu me padeço devo fazer hoje, é daquilo, que pode ser e com efeito tem alguma contrariedade, e faz repugnância a alguns, que é a natureza, e cor parda desse santo”;20 e declarar que a cor parda era tão aventurosa e ditosa quanto as duas outras, a branca e a preta, por ter igualmente um santo de sua cor. E mais: demonstrar que a cor parda “é a mais perfeita que a branca, e que a preta”. Sua erudição foi posta a serviço dessas causas. D efendeu a primeira tese com argumentos retirados do repertório de conhecimentos disponíveis, no âmbito da história, geografia, genealogia e política; e a segunda, pela filosofia, moral e divina ou Sagrada Escritura. Baseado nessas fontes, afirmava que a cor parda aspirava a aperfeiçoar-se: “como a natureza aspira sempre a aperfeiçoar-se, e mais a mais, comunicando-se, ou misturando-se a cor preta, com a branca, por meio da mesma natureza” — e continuava — “assim se vai com a branca, aperfeiçoando-se a preta, até tornar ao princípio, e ficar no seu na tural” .21 Além da motivação religiosa, Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão defenls Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão. “Discurso histórico, geográfico...”, op. cit., p. 82. 19 Para uma análise sobre a política metropolitana em relação aos homens de cor na América portuguesa, consultar José Antônio Gonsalves dc Mello. “O acidcnte da cor”, in: José Mello. Tempo de jo rn a l..., op. cit., p. 255-9. 20 Frei Antônio dc Santa Maria Jaboatão. “Discurso histórico, geográfico...”, op. cit., p. 84. 21 Ibidem , p. 98.
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dia uma causa histórica, concreta: a dos homens pardos de Pernambuco. A glória que se queria era a terrena, e não a celestial; a bem-aventurança de que falava, era a possível de ser desfrutada neste mundo. Para reforçar seus argu mentos, recorreu a exemplos de homens pardos distintos e virtuosos, alguns, naturais de Pernambuco, que ascenderam na hierarquia, como o Padre Ma nuel Gonçalves, doutor pela Universidade de Coimbra, muito estimado por D. Pedro; Domingos de Sá e Silva, doutor pela mesma universidade, advoga do da Casa da Suplicação, dentre outros.22 O sermão constituía um dos pontos altos da liturgia católica. A exibição de saberes e erudição nem de longe sonhados pelo vulgo, o púlpito, situando o orador num plano mais elevado do templo, sublinhando as diferenças entre a sua pessoa e os devotos, tudo, no ritual religioso, contribuía para revestir o mom ento de uma aura mística. A mensagem sagrada, eivada de conteúdo moral, era proferida para penetrar fundo no coração dos devotos e repercutir em suas memórias. A oratória e a eloqüência verbal deveriam impressionar tanto ou mais a audiência quanto os temas abordados. A oração cabia compe tir em condições de igualdade com os apelos sensitivos e sensuais da festa: “Sendo tanto as ocorrências da festa, não podiam ser menos as palavras do Tem a”, afirmava o consciencioso orador. A festa falada, em suas várias manifestações sagradas e profanas — ser mão, epigramas, sonetos, sonatas, loas — deveria atrair tanto ou mais a aten ção dos assistentes quanto o faziam o colorido e variedade das imagens exibi das, o engenho das máquinas, o cintilar dos ornatos, o ritmo das músicas e volteios e saracoteios dos corpos em dança. Não esqueçamos o ruído dos fo gos e o alarido das vozes e tambores, o odor e o paladar das pitanças de rua ou dos lautos banquetes para seletos convidados, e a oferta mais abundante de bebidas espirituosas, facilmente ingeridas em excesso nessas ocasiões: vinho para os mais abastados, jeribita ou cachaça para os pobres e remediados. Antes, porém, de deixarmos o interior do templo e alcançarmos as ruas, onde os festejos aconteciam mais frouxa e plenam ente, e se mostravam em todo o esplendor, procuremos com preender melhor as motivações terrenas para a ocorrência dessa grandiosa homenagem ao beato Gonçalo Garcia, ho mem pardo na cor e ex-mercador por profissão, numa vila colonial da Améri ca portuguesa, a de Santo Antônio do Recife, em meados do século XVIII. O RECIFE,
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Dissemos que poderíamos datar as comemorações não quando de sua efetiva realização, em setembro de 1745, mas recuá-las daí a três décadas.
22 Ib id em , p. 96-7.
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Transportá-las aos dias em que os homens pardos do Recife, sabedores da existência de um santo de sua mesma cor e acidente, São Gonçalo Garcia, externaram o desejo de vê-lo socialmente reconhecido como tal. Esta pre tensão dos mulatos, manifestada no campo religioso, já então convertida em reivindicação, possibilita pensarmos na hipótese de que algumas mudanças estavam se processando na capitania de Pernambuco, mais particularmente no Recife. Suposição reforçada pela informação de que os festejos ao santo promovidos na cidade da Bahia, no ano de 1746, ocorreram em circunstâncias bem diferentes das realizadas em Pernambuco, especialm ente considerando o conteúdo dos sermões. Enquanto Frei Jaboatão pronunciou eloqüente dis curso de exaltação da cor parda, Frei José dos Santos Cosme e Damião, capucho da província de Santo Antônio do Brasil, demonstrou constrangimento ao abordar o tema. Após discorrer sobre a origem genealógica do beato G on çalo Garcia, concluiu: não só lhe competia o título de neófíto, “mas também o específico predicado ou tributo, ainda que de alguns mal avaliado, e menos apreciado (não quisera proferir para não escandalizar os vossos ouvidos; mas permita-m e o dizer uma vez) de mulato, ou mestiço” .23 A outrora povoação dos Arrecifes, originariamente um arruado de pescado res e base portuária da capitania, foi elevada à condição de vila por carta régia, em itida em 19 de novembro de 1709; sendo estabelecido o seu termo e insta lada a sua câmara de vereadores em 1710. O título não lhe chegou como dádiva real ou divina, mas foi conquistado a duras penas. M udanças nas tradi cionais relações de poder econômico e político na capitania, sobretudo após a expulsão dos holandeses em 1654, geraram conflitos vários, disputas de inte resses, nos quais se viram envolvidos os mercadores do Recife, de um lado, e a nobreza da terra, de outro, aboletada na vizinha e rival cidade de Olinda. Tensão política que desaguou na chamada Guerra dos Mascates.24 Em frase contundente, o historiador José Antônio Gonsalves de Mello sen tenciou que “O período que vai de 1654 a 1710 é para o N ordeste do Brasil um período crucial”.25 A dominação exclusiva exercida pelos senhores de engenho e lavradores de canaviais, na conduta política do governo da m etró pole em relação ao Brasil, começou a sofrer abalos com a ascensão de uma nova classe: a burguesia comercial. No caso de Pernambuco, o confronto as-
23 Raquel Caldas Lins & G. Osório Andrade. São Gonçalo Garcia: uni culto frustrado..., op. cit., p. 50. 24 Evaldo Cabral dc Mello. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco 16661715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 25 José Antônio Gonsalves de Mello. “N obres e mascates na câmara do Recifc, 1713-1738”, in: Rev. Inst. Arq. Hist. Geo. Pern. Recife, A ///: 113-262, 1981. Sobre o período dc 1654 a 1710, da história pernambucana, consultar também Vera Lúcia Costa Acioli. Jurisdição e conflitos: aspectos da administração colonial — Pernambuco século XVII. Recifc: Editora Uni versitária da U FPE , 1997.
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sumiu nítidos contornos geográficos: em Olinda, a açucarocracia procurava a muito custo reconstruir a cidade incendiada pelos holandeses. Economica mente, esta classe enfrentava sérias dificuldades, provocadas pela queda do preço do açúcar no mercado internacional, a concorrência com outras áreas produtoras do gênero, a desvalorização da moeda portuguesa, gerando enor me alta de preços dos produtos importados europeus e os produzidos inter nam ente, na colônia, a descoberta das minas de ouro, outro fator de elevação de preços, em particular o dos escravos, tudo isto agravou a crise da economia açucareira. Os senhores de engenho viram-se em dificuldades, impossibilita dos de saldar as dívidas contraídas com os credores, que não eram outros senão os “homens de negócio do Recife”, funcionando também como prestamistas as ordens e irmandades religiosas, as misericórdias, as instituições pias como o Hospital do Paraíso. O Recife, ao contrário, com os vazios deixados na classe comercial após a retirada dos holandeses, oferecia oportunidades promissoras a mercadores, comissários volantes, “mascates” e trabalhadores de vários ofícios manuais. D e Portugal, então, desembarcava uma gente ávida por fazer fortuna, amea lhar alguma riqueza, quase sempre de origem social modesta e humilde, saí da do campo e da cidade. Muitos vieram designados pela Coroa para ocupar postos e funções administrativas, e tornaram-se mascates; outros foram pou co a pouco acedendo a essas cobiçadas posições de poder e prestígio. Fonte tam bém de discórdias, uma vez que os “principais da terra” as entendiam como privilégio reservado aos de sua classe e não, ao alcance daquela “gente sem qualidade e de humilde origem”. O caso de Antônio Fernandes de Matos, minhoto de Ponte de Lima, cons titui exemplo expressivo de imigrante português, de origem humilde, que ascendeu social e economicamente no Recife seiscentista. Iniciou como mes tre pedreiro, foi contratador de obras públicas e arrematador de cobrança de impostos. Tornou-se capitalista, proprietário de imóveis urbanos, comercian te de sobrado — atividade que capacitava para o exercício das funções de vereador — e senhor de muitos escravos: noventa e oito negros ladinos consta vam em seu testam ento.26 Homem de poucas letras e mãos calejadas pelo trabalho manual, mas pos suidor de grande fortuna e reconhecido como uma das figuras mais importan tes do Recife, tratou de obter cargos e títulos que lhe dessem a almejada projeção social. Alcançou, assim, o título de capitão da Fortaleza da Madre de D eus e São Pedro, construída à sua própria custa e oferecida ao rei; e o de cavaleiro da Ordem de Cristo, hábito com o qual pediu para ser amortalhado.
26 José Antônio Gonsalves de Mello. Um mascate e o Recife — a vida de Antônio Fernandes de Matos no período de 1671-1701. 2 “ ed. Recife: Fundação dc Cultura Cidade do Recife, 1981.
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Como bom católico, esteve ligado a várias associações religiosas. Pertenceu à Irmandade das Almas e à de São Pedro, ambas sediadas na matriz do Corpo Santo. Foi juiz da Irmandade do Senhor Bom Jesus das Portas e ministro, por três anos, da prestigiosa Ordem Terceira de São Francisco. Seu enterro, ocor rido em 24 de agosto de 1701, foi tido como um verdadeiro acontecimento, um ritual religioso que expressava toda a riqueza acumulada em vida e pres tígio alcançado pelo antigo mestre pedreiro. Exemplo talvez ainda mais significativo de homem em preendedor, que alcançou riqueza rápida, e revelador da ascensão da burguesia recifense no período, é o de Luís Cardoso.27 Natural de Pernambuco, ex-escravo, filho de uma mulata também escrava, comprou a própria alforria no ano dc 1667, com dinheiro conseguido por esmolas dadas pelos fiéis. Começou vida de homem livre como empregado na loja do português Cristiano Paulo, de quem assu miu o estabelecim ento comercial. Já no final do século, além do açúcar, nego ciava com tabaco e escravos e exercia com sucesso a atividade de prestamista. Adquirira sobrado e, ao morrer, possuía cinco escravos e deixou uma fortuna superior a trinta contos para a Ordem Terceira. Assenhoreou-se tam bém de posições sociais de prestígio, tornando-se membro de várias irmandades religiosas: da Madre de Deus e Terceira do Carmo, da rica Irmandade do Santíssimo Sacramento, da de Nossa Senho ra do Rosário dos Pretos, a de Santa Luzia, a de Santa Catarina e a do Bom Jesus das Portas. Fez carreira na Irmandade da Ordem Terceira de São Fran cisco, em que chegou ao importante posto de definidor. Sua admissão na ordem, cujas regras impediam o ingresso de homens de cor, é reveladora de que a sociedade colonial apresentava algumas brechas na sua ordem hierárquica, posto que inúmeros outros pedidos sem elhantes haviam sido negados por conta da cor dos candidatos. Luís Cardoso a conseguiu, sem dúvida, em virtude das gordas doações e contribuições em dinheiro feitas à entidade. Faltava, à povoação do Recife e aos homens enriquecidos pelo comércio, conseguir poder e reconhecimento político, o que veio a ser a viabilizado com a elevação do povoado à condição de vila e com a instalação da câmara m uni cipal. A câmara permitia aos homens de negócio dirigirem-se diretam ente ao rei e ao governador e reivindicar em nome de seus interesses e dos da vila. Habilitava-os a administrar o território, no qual residiam e m antinham ativi dades econômicas, e a exercer cargos públicos equivalentes aos da nobreza
-1 Sobre o assunto, ver João Alfredo dos Anjos. “Luís Cardoso, um homem dc negócios no Recife da segunda m etade do século XVII”, in: M anuel Correia dc Andrade; Eliane Moury l'crnandes & Sandra Melo Cavalcanti (orgs.). Tempos dos flamengos e outros tempos: B rasil século XVII. Brasília-Recife: CN Pq-Fundação Joaquim Nabuco-Ed. Massangana, 1999, p. 255-66.
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de Olinda. Possibilitava-os, enfim, usufruir dos privilégios e do prestígio de ser vereadores.28 Apesar das dificuldades econômicas e embates políticos, o Recife conse guiu acumular alguma riqueza no período. Sua população, embora as fontes disponíveis não nos permitam afirmar com segurança, estava estimada em torno de dez mil pessoas, escravos inclusive, no ano de 1710; passando a doze mil quinhentas e trinta e seis em 1745.29 No correr dos séculos XVII e XVIII, a área urbana do Recife expandiu-se do burgo original, situado no istmo de Olinda, em direção à ilha de Antônio Vaz, tendo início a ocupação do atual bairro da Boa Vista. A construção de um elevado número de igrejas, no período dc 1654 a 1738, constitui marca indiscutível da riqueza circulante na vila, além de externar, obviamente, a importância da vida religiosa para a sociedade colo nial. Muitas foram levantadas com recursos de associações leigas, como as igre jas da Penha, do Livramento, do Rosário dos Pretos, do Pilar, do Paraíso e as capelas das Ordens III de São Francisco e do Carmo e a da Congregação de N. S. da Conceição. Por iniciativa das Ordens Religiosas, edificaram a igreja do Carmo, a de N. Senhora do Ó dos Jesuítas e a da Madre de Deus da Con gregação do Oratório. Tiveram suas construções iniciadas entre 1710 e 1738, as igrejas do Terço, a da Conceição dos Militares e a de São Pedro dos Clé rigos.30 Estes templos, além das obras de alvenaria e cantaria, possuíam os interio res prim orosam ente ornamentados. Talhas, pinturas e a arte da azulejaria adornavam as igrejas para melhor impressionar os devotos e servir à fé católi ca.31 Assim também, a música nas vésperas, missas e procissões. Mas também eram reveladores da riqueza mercantil da vila e demonstrações do desenvol vim ento alcançado nas artes e ofícios mecânicos. Artes e ofícios cujos mestres e discípulos eram, no mais das vezes, homens livres e de cor, pretos e sobre tudo mulatos. Foram autores de obras duradouras, preciosidades do barroco, mas tam bém fabricaram artes efêmeras como as pinturas, telas, cenários, jar dins e fogos de artifício, que deram esplendor às comemorações públicas nos tempos coloniais. Junto aos tendeiros, profissionais liberais, militares e ecle
28 Sobre o papel representado pelas câmaras municipais no império português, ver Maria Fernanda Bicalho. “As câmaras municipais no império português: o exemplo do Rio de Janeiro”, in: Revista Brasileira de História. São Paulo, A npuh-H um anitas Publicações, /(36):251-80, 1998. 29 Os dados cncontram-se cm José Antônio Gonsalves dc Mello. “Nobres c mascates.. op. cit., p. 129-30. ,n Ibidem , p. 249, nota 33. 11 Mário dc Andrade. A arte religiosa no Brasil. São Paulo: Experimento-Giordano, 1993; Roger Bastide. Imagens do Nordeste mítico em branco e preto. Rio de Janeiro: Empresa Gráfica O Cruzeiro, 1945; Robert C. Smith. Igrejas, casas e móveis: aspectos da arte colonial brasileira. Brasília-Recife: M EC, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-Universidade Federal de Pernambuco, 1979.
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siásticos constituíam uma classe média, portanto formada de homens livres, de importância social e econômica crescente. Mulato era M anuel Ferreira Jácome, contemporâneo do mascate Antônio Fernandes de Matos, de quem parece haver sido discípulo. Foi mestre pe dreiro, apontado pela Ordem Terceira como um dos “oficiais mais peritos” do Recife. Líder de sua classe, elegeu-se juiz de ofício de pedreiro nos anos de 1707, 1708, 1711, 1717 e 1729. N este último, além de juiz de ofício eleito e confirmado pela câmara do Recife, declarou-se “M estre pedreiro e arquite to”, posição que parece haver alcançado após a elaboração da planta da igreja de São Pedro dos Clérigos. Fez parte da Irmandade de N. S. do Livramento, chegando a mordomo no ano de 1736.32 José Rebelo de Vasconcelos, homem igual na cor ao pedreiro e arquiteto, foi um dos pintores, mais renomados do Recife, no século XVIII. Pertenceu igual m ente à Irmandade do Livramento, ocupando os postos de mordomo cm 1736, procurador em 1738, escrivão dois anos depois, foi juiz em 1746, tesoureiro em 1774 e novamente juiz em 1792. Foi militar das Ordenanças, atingindo o mais alto posto de sua carreira: o de coronel do Regimento dos Pardos da Vila do Recife. Orgulhoso de sua “liberal Arte de Pintor”, respondeu com altivez a um ofício do governador, em que se identificava como pintor. Não pintor de loja aberta, indicativo de ofício mecânico, mas de sobrado, o que era lhe dava digni dade e certo prestígio.33 A este pintor Rebelo foi dedicada a Súmula Triunfal. E o chafariz, exibido por ocasião das comemorações, foi de fabricação sua junto com o reverendo padre Pedro da Silva Carneiro e José Mateus. Outro homem pardo, artista e irmão da N. S. do Livramento, foi o Padre Jerônimo de Sousa Pereira. Em 1731, era ele regente de orquestra bastante conceituado no Recife, ano em que foi eleito irmão da mesa da referida ir mandade. Em 1753, alcançou o posto mais alto na confraria, o de juiz, sendo reeleito no ano seguinte. Também músico e mulato era o Padre Filipe Néri da Trindade, filiado à Irmandade de N. S. do Livramento, assim como seu pai, o mulato e músico-militar Francisco de Almeida Pessoa; e o irmão, o padre mulato, músico e compositor, M anuel de Almeida Botelho. Músico e poeta, da mesma cor que os anteriores, Luís Alvares Pinto alcançou grande fama no século XVIII. Além da música, estudou filosofia, retórica e latim. Foi mestre-capela da igreja de São Pedro dos Clérigos, elegeu-se mordomo da Irmandade do Livramento em 1762, ano em que também publicou a obra Arte de Solfejar. Galgou ainda o posto de sargento-mor de milícias.34 n José Antônio Gonsalves dc Mello. “M anuel Ferreira Jácome — arquiteto, juiz do ofício dc pedreiro”, in: Revista da Escola de Belas Artes de Pernambuco, Recife, /(l):19-32, 1957. 33 José Antônio Gonsalves de Mello. “Rebelo, pintor setccentista do Recife”, in: José Antô nio Gonsalves de Mello. Tempos de jo rn a l..., op. cit., p. 221-5. 34 Pc. Jaime C. Diniz. Músicos pernambucanos do passado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1971, 3 v. Pela leitura desta obra, é possível identificar mais alguns nomes dc
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D esde os primeiros séculos de colonização, os mulatos se destacaram na arte musical, até mesmo na erudita, cabendo a Olinda e ao Recife papel im portante no desenvolvimento dessa arte. O maestro e pesquisador C urt Lan ge, ao expor sua tese sobre o que denominou de “mulatismo musical”, de fende que o tal “mulatismo musical” surgiu muito cedo no Recife. Para o autor, a maior parte dos músicos que migraram para Minas Gerais, no século XVIII, em busca de melhores condições de trabalho e de emolumentos, pro vinha de Pernambuco, e não da Bahia. Porém, em meados dos Oitocentos, acredita que o cenário musical pernambucano já estava inteiram ente recom posto, o que se podia constatar pela qualidade e variedade musicais exibidas nas festas religiosas e profanas. Ainda de acordo com este estudioso, parte considerável desses homens pardos obteve ascensão intelectual — à qual acrescentaríamos econômica e social — nos ofícios manuais e nas artes, sua posição artística sendo adquirida e sedim entada sobretudo no século XVIII. Quanto aos valores culturais, os músicos mulatos eram de “incondicional adesão [...] aos princípios estéticos europeus”. Valores que podiam ser estendidos também aos artesãos e ho mens de ofícios, que interpretavam as danças nas festas ordenadas pelo Esta do. E continua: “Em nenhum instante o mulato voltou a sua olhada para trás onde jazia sua origem” . Atribui esta “natural ambição” ao desejo de aproxi marem-se e igualarem-se aos brancos, seus superiores hierárquicos.35 Muitos desses pardos, os que viveram em 1745, no “Pernambuco país”, participaram, promoveram e custearam as celebridades de entronização de São Gonçalo Garcia. FESTA
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O Recife atendera à solicitação dos promotores das celebrações, compare cendo com sua devoção, assistência e alegria, contribuindo com esmolas ou “tolerando docem ente” o fardo da festa, ônus que cabia aos irmãos, padres ou devotos, que dispunham de recursos materiais suficientes para arcar com
músicos c pardos pertencentes à Irmandade do Livramento, como Máximo Pereira Garros, Ângelo Custódio de Oliveira, Dionísio Antônio Gomes, Francisco Rodrigues Seixas, e o organista Agostinho Rodrigues L eite. Outros nomes, para um período um pouco posterior ao considerado, podem ser encontrados em Lange, Francisco Curt. “Documentação musi cal pernam bucana”, in: Barroco, Belo Horizonte, 9:51,1977. O livro do músico setecentista foi republicado, em edição sob os cuidados do Padre Jaime Diniz; ver Pinto, Luiz Alvares. Arte Hesolfejar. Recife: Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Educação e C ul tura, 1977 (edição fac-similada). 35 Francisco C urt Lange. “As danças coletivas públicas no período colonial brasileiro e as danças das corporações de ofício em Minas Gerais”, in: Barroco, Belo Horizonte, /:59, 1969.
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as despesas requeridas pelos rituais e funções exibidas nos festejos. Segundo o autor da Súmula Triunfal, à vila de Santo Antônio do Recife, concorreu gen te vinda de até vinte léguas de distância — c bem dá para imaginar o alvoroço e o transtorno por que passavam todos em seu dia-a-dia, moradores do lugar e forasteiros. As solenidades iniciaram-se com as novenas cm louvor ao santo e com o hasteam ento de oito bandeiras e de oito mastros “de verde ramos revesti dos”. Tudo acompanhado de música e melodia, a que esteve presente o cor po eclesiástico local. Fogueiras e luminárias não faltaram: era preciso vencer as sombras da noite.36 No dia da N atividade da Senhora, a oito de setem bro, a imagem de São Gonçalo Garcia finalm ente saiu à luz. Em cortejo processional, deixou o convento dos franciscanos para acomodar-se à nova morada: a igreja do L i vramento. Percorreu as ruas da freguesia de Santo Antônio, no geral estrei tas e de traçado irregular, conduzida em andor ofertado pelos juizes e escri vães das irm andades de N. S. de Guadalupe e de N. S. do Livram ento. Eram ambas irm andades de homens pardos, o que sublinhava a existência de laços de solidariedade que uniam indivíduos identificados em sua cor e sorte. Vieram as cerimônias da igreja propriamente ditas: missas, orações, visitas de irmandades ao novo altar do santo, hinos e TeDeum Laudamus, realizadas com esmero pela com unidade eclesiástica. Os acontecimentos mais concorridos e memoráveis, contudo, ainda estavam por vir, o que se deu entre os dias dez e dezenove de setembro, quando da festa da Senhora do Livramento. Sua devoção era uma das rnais cultuadas e populares dentre as que havia na vila do Recife, no século XVIII, e se manteria assim por muitas décadas. Padroeira dos homens pardos, sua capela já se encontrava construída em 1694, data em que já estava instituída a sua irmandade.37 Acolhia em sua capela e altares outros santos e as respectivas irmandades, sobretudo as protetoras dos pardos, como N. S. do Bom Parto e São Gonçalo Garcia. Chegado o dia dez, novas luminárias foram acesas, do braram os sinos, “ecos de Vulcano, instrumentos de M arte” e uma encamisada circulou pelas ruas:
36 Ao referircm-sc à luminosidade que das luminárias provinha, os autores das narrações fes tivas buscavam realçar a ação do homem, cstabcleccndo uma relação de equivalência entre esta c a grandiosidade da natureza: “por quanto as estrelas do céu pareciam luminárias da terra, c as luminárias da terra afetaram scr estrelas do firm am ento”. Padre M anuel de Cerqueira Torres. “Narração panegírico-histórica...”, in: J. A. Castello. Op. cit., v. III, t. 3, p. 197. 17 F. A. Pereira da Costa. Anais pernambucanos 1666-1700. 2 “cd. Recife: Fundarpe, Diretoria de Assuntos Culturais, 1983, v. 4, p. 412-6.
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“Montavam cerca de trinta parelhas em soberbos cavalos bem ajaezados, que entre a confusão dc cascavéis, clarins, trompas, charamelas, e atabales, acompanhava a cada um dois pajens graciosamente ornados à mourisca, que com flamantes arqueiros, e fogaréus circuíram toda a Vila, levando após si uma Balandra com todos os marítimos aprestos, acesos por alto, e baixo de fogos vários, com suspeitoso pasmo de um Vesúvio.”38 Enquanto a encamisada corria as ruas, no pátio do Livramento, bem de fronte à igreja, um jardim artificial fora montado sob pretexto de representar, por meio da imagem, a história da vida e martírio de São Gonçalo Garcia. Prolongamento do serviço divino, versão ilustrada das orações, as figuras c pinturas facilitavam a transmissão dos ensinamentos religiosos a um público tão cotidiana, social e culturalm ente diferenciado entre si, iletrado na imensa maioria. Elas ajudavam a fixar, na memória dos devotos, o drama do beato Gonçalo Garcia. Situado a quinze palmos de altura, tudo fora pensado e feito para causar admiração, despertar curiosidade e estimular a imaginação, comover, permi tir uma vez mais a exteriorização pública da fé. Circundado por três arcos ornamentados à oriental, adornado por “frondoso arvoredo”, exibia ao centro engenhoso e artístico chafariz: um leão de cujos olhos e boca jorrava água. O cenário, expressão da imaginação e habilidade dos artistas que o fabricaram, exibia uma praia “em cujas margens se contemplava com admiração, a bem ornada Fortaleza de Baçaim ilustre Pátria do glorioso Mártir, armada, e forti ficada com todas as militares circunstâncias”. Ao lado desta, figurava a nau em que o santo navegara para o Japão, a fim de cumprir seu trágico destino. Mais adiante, três passos: um primeiro, representando o beato como mercador de fazendas, com loja armada, vara e côvado nas mãos, de onde despendia muita água. E, aqui, talvez, fosse possível uma identificação maior dos oficiais mecânicos da vila, mulatos ou não, com o santo. O passo seguinte retratava o santo entre dois verdugos, mãos atadas atrás, sendo apresentado ao “Tirano Imperador”. A água corrente tornava a aparecer, lançada do cetro do imperador e das trunfas de dois validos que o ladeavam. O mais impressionante, porém, eram as lágrimas que desciam dos olhos do santo. Lágrimas que, diz o autor, “molificava, e movia a compaixão ainda ao peito mais bárbaro e desumano”. O terceiro e último passo, mostrava o santo crucificado, e, da lança dos verdu gos, jorrava água vermelha, imitação do sangue derramado pelo mártir. Para além da intenção religiosa manifestada em toda essa engenhosa arquitetura, a arte do jardim, com suas fontes, lagos, canais e chafarizes, figu rava como costume de longa data cultivado pelos monarcas absolutos. As fon
38 Sotério da Silva Ribeiro. “Súmula triunfal...”, op. cit., p. 23.
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tes ajudavam a compor a imagem idealizada do rei. Para a decifração do simbo lismo das águas inquietas para a monarquia portuguesa, fornece-nos a chave o médico setecentista, formado pela Universidade de Coimbra, João Ferreira da Rosa: “assim como a água está em constante movimento para auxiliar a N atureza”, também os príncipes têm por dever “viver em vigilância perpé tua para assistir seus vassalos” .19 Mas as águas fluentes, que compunham os cenários e figuras, as fontes e chafarizes, que apareciam nas grandes festas públicas, falavam tam bém das cidades que as inventavam. Expressavam o sonho dos homens de obterem o tão precioso líquido de forma mais fácil e abundante do que o era no cotidia no. No Recife do século XVIII, a água potável que abastecia a vila provinha da cidade de Olinda — situação que gerou sérios conflitos entre os dois aglo merados urbanos, outra forma de manifestar a extrema rivalidade em que viviam olindenses e recifenses, nobres e mascates. Se não, era subm eter o paladar ao gosto salobro das águas das cacimbas.40 A missa do domingo compareceram a nobreza da capitania, todo o eclesiás tico, o regular e o secular, e gente do povo. Ouviram o sermão de Frei Santa Maria Jaboatão, a que já nos referimos, e saíram às ruas para assistir à procis são, à “fingida tragicomédia no teatro do mundo representada” , no dizer do relator. Tratava-se de uma representação, de um suntuoso espetáculo teatral que se passava ao ar livre. O mais completo que uma vila colonial, identifica da com a cultura e a sociedade do Antigo Regime, poderia imaginar produzir e dar a si própria. A procissão solene, ao contar com a participação de grande número de irmandades religiosas, era ocasião para reforçar as alianças e es treitar os laços de solidariedade, que deveriam existir entre os membros da com unidade católica. Ao mesmo tempo, criava oportunidade para que os di versos grupos, reunidos, percebessem a si e aos outros, em suas semelhanças e diferenças, estimulando a rivalidade entre eles. A própria disposição dos indivíduos e grupos no cortejo processional facilitava o reconhecimento e expressava, no plano da representação simbólica, o lugar social destinado a cada um na ordem hierárquica vigente na sociedade colonial.
39 Sobre a arte dos jardins, ver Jean-M arie Apostolidès. Op. cit.; para o simbolismo da água para a monarquia portuguesa, João Ferreira da Rosa. A febre amarela no século XVII no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Edgard Blücher, 1971, p. 47. 40 A inauguração dos primeiros chafarizes do Recife data de 21 de maio de 1846. Sobre o tema, ver Gisanfran N. Mota Jucá. A implantação He serviços urbanos no Recife: o caso Ha Companhia Ho Beberibe 1838-1912. Dissertação de mestrado em História. Recife: Centro dc Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, 1979; Virgínia P. dc Mello. Água va i! A história Ho saneamento He Pernambuco 1537-1837. Recife: Com panhia Pernam bucana de Saneamento, 1991; José Luiz M. Menezes.; Hamilton F. de Araújo & José Castelo Branco Chamixaes. Águas Ho Prata. A Companhia Ho Beberibe: história Ho sa neamento He Pernambuco 1838 a 1912. Recife: Com panhia Pernam bucana de Saneam en to, 1991.
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Tradição ocidental, tão logo surja um aglomerado de casa, construam-se vilas e cidades, lá estarão os cortejos processionais percorrendo-lhes os ca minhos. Formarão bandos ruidosos para anunciar algum acontecimento ex traordinário, que seja do interesse do poder e dos moradores do lugar, e, ao fazê-lo, estarão reafirmando simbolicamente o território de sua jurisdição. Conclamarão para as festas e estas fornecerão a senha para que todos se sin tam mais próximos, apesar das diferenças que os separam no dia-a-dia e que se prolongam nas comemorações. Para que se percebam como semelhantes no pertencer a uma mesma comunidade, no partilhar de um mesmo espaço urbano, de sua cultura e história. Os cortejos triunfais desfilavam aos olhos da multidão que se apinhava nas ruas, pátios e adros das igrejas, para admirar aquelas maravilhas, para extasiar-se perante tão esplendoroso espetáculo público. Por vezes, a atenção desviava-se do centro dos acontecimentos, atraída por personagens que fi guravam entre os próprios assistentes: o farfalhar das roupas, algumas extra vagantes, outras luxuosas, o brilho excessivo das jóias, ornatos e feitios do cabelo, o séquito de escravos, todos bem trajados, de que alguns senhores abastados se faziam acompanhar para melhor exibir suas riquezas. Era oca sião de ver, mas tam bém o era de ser visto; de prestigiar e de ser prestigiado pela com unidade a que se pertencia. Esses excepcionais cortejos — nos quais o sagrado e o profano, tal como os distinguimos hoje, marchavam juntos — possuíam uma mesma e única fonte de inspiração: os triunfos imperiais da Roma antiga. As grandes solenidades públicas com que a cidade de Roma costumava receber os seus filhos e vi sitantes ilustres, sendo as mais im portantes as concedidas aos vitoriosos generais do exército romano. Este modelo prolongou-se à Idade Média, fi cando conhecido como adventus medieval, cujo exemplo mais memorável talvez seja a chegada de Carlos Magno, rei dos francos, à cidade de Roma, no ano de 800. Tradição urbana mais uma vez recuperada, os triunfos foram postos a ser viço das monarquias européias no Antigo Regime, acomodando-se aos in teresses particulares e conjunturais de cada uma delas. Eles modelaram as cerimônias de exaltação do rei e estimularam o desenvolvimento das artes cênicas, da música, pintura, escultura e da arquitetura no Velho Continente. Com o advento da cristandade, temas, ritos, símbolos e signos religiosos cris tãos passaram a conviver mais ou menos harmoniosamente com outros, de origem pagã, inspirados na cultura e mitologia greco-romanas clássicas. Ao ser projetado para suas extensões coloniais na América portuguesa, o modelo de festa pública sofreu alterações, nutrindo-se de novas formas e ele mentos de manifestações culturais e artísticas, oriundas dos povos domina dos: o africano e o índio. Traços dessas culturas foram aproveitados, porém, redefinidos e recodificados, destituídos de seus contextos e significados ori
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ginais, pelos que compunham as elites governante e religiosa locais, respon sáveis, entre outras coisas, por fazer valer as ordens régias e os regulamentos sobre as festas públicas. Mantiveram alguns elementos, signos, partes dos rituais que fossem considerados decorosos, lícitos, que não ofendessem à moral, à fé e aos bons costumes. Os que não pusessem cm risco a ordem pública e os interesses políticos e econômicos do reino na colônia. Essa política metropolitana em relação às cerimônias públicas foi, em grande parte, responsável pela exuberância das funções festivas observadas e pela diversidade de referências culturais que nelas se manifestavam. A intenção, entretanto, antes de ser a de produzir frutos culturais 0 11 artísticos originais nos trópicos — esta foi muito mais uma decorrência a longo prazo constituí da, que propósito conscientem ente elaborado — respondia a interesses prag máticos. Disciplinar os que viviam na colônia, tão distantes dos olhares do rei, sobretudo aqueles cujo “estado natural” reservava-lhes os estratos infe riores na hierarquia. Incorporá-los na boa ordem monárquica e na fé católica, dominá-los pela força e pela persuasão, fazê-los, por fim, parte integrante e constitutiva do sistema colonial escravista, eis 0 intento dos governantes e membros da elite eclesiástica que serviram na América portuguesa. A procissão solene de São Gonçalo Garcia nos dá bem uma idéia do que eram estes antigos faustos coloniais. As figuras alegóricas, em número de de zessete, ofertas provavelmente dos irmãos do Livramento e de São Gonçalo Garcia, desfilaram montadas em luzidos cavalos: Ásia, Aplauso, Alegria, M e ditação, Zelo, Pregação, Martírio, Merecimento, Prêmio, Anjo da Religião Seráfica, Júpiter, Amor Perfeito, Temor de Deus, Amor Divino, C onheci m ento de Deus, Caridade e a figura da Fé. Sucediam uma a outra, tal como se um catálogo de alegorias, signos e emblemas fosse posto à disposição dos mestres artífices que as confeccionavam e davam vida ao modelo. Tudo bem ao gosto do que se convencionou chamar de barroco. As inscrições latinas, que traziam às mãos, quase sempre tiradas a ouro, facilitavam a identificação das figuras pelo público. Certam ente, nem todos partilhavam deste saber letrado, apenas a fração da população de alguma forma iniciada na cultura latina, o que constituía sinal de distinção. Para o público iletrado, as alegorias presum ivelm ente possuíam outros significados, sendo provável que im pres sionassem mais pela riqueza das imagens e a imponência ritual da festa. O desfile das alegorias estimulava uma “discreta emulação” entre elas. O autor da Súmula Triunfal chega a opinar haver sido a figura do M erecim ento a que, entre todas, foi “vivo teatro de cobiça”. Vestia à trágica, “[...] compunha-lhe a cabeça por aperto um trono em acento de prata, c conhas verdes guarnecidas de ouro; nos meios trem entes de diamantes, e pedras preciosas, que o adornavam: na frente, e lados de dito formavam uma graciosa confusão de luzes, variedades de broches de ouro, e diaman
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tes, e mais flores do mesmo, que com variedade nas cores, o ornavam de alto a baixo.” Ladeada por dois Serafins, “em cujo meio se formava um círculo de cristal que continha doze menores com várias relíquias Santas”, das mãos desta fi gura “[...] saía uma fita carmesim, que formava meio círculo, com este dourado lema: «Tronus ejus sicut Sol». Posterior a toda esta maravilha, e artificiosa importância se via uma jóia cravada de esmeraldas, e diamantes presa em uma flor de fita de ouro com pontas perdidas; aí mesmo nascendo uma trem ulante plumagem azul; e das orelhas dois pendentes de diamantes cravados em ouro. Gingia-lhe o pescoço gargantilha de ouro e diamantes, em meio um rosicler do mesmo.”41 A narração prosseguia, sempre no sentido da cabeça para os pés, pois o corpo era concebido como uma metáfora da hierarquia político-social, em que à cabeça correspondia a figura do rei, e aos pés e mãos, os escravos. Verdadeira ostentação de riquezas materiais — do reino e da colônia, num plano mais abstrato, da capitania, cidade ou vila e, ainda, dos que as oferta vam em termos mais palpáveis — as figuras alegóricas impressionavam antes de tudo pelo luxo e brilho das indumentárias minuciosamente descritas; pelo tanto de ouro, prata, diamantes e outras finas pedrarias exibidas; pela harmo nia barroca do conjunto do qual faziam parte ainda os emblemas, as plum a gens, ornatos das cabeças, meias, calçados, pajens e os cavalos, que eram como um seu prolongamento. Mais custosos, porém, e excedendo aquelas em grandeza, os carros triun fais constituíam o ponto máximo do cortejo. M antinham-se apegados a idên tico fundo mítico-religioso e político, buscando inspiração na cultura latina, recompondo personagens da história antiga ou da mitologia greco-romana, compondo cenas bíblicas ou quadros da vida de santos, uma ou outra referên cia política mais direta aos signos da Coroa portuguesa: bandeiras, armas, o cetro e a coroa. Por vezes, fundiam um ideário a outro, quando a representa ção do tema exigia, formando nova unidade simbólica. A imponência artística dos carros alegóricos mostrava-se em toda a sua pujança nos cortejos régios ou por ocasião das entradas de visitantes ilustres na cidade; mais ainda que nas procissões religiosas quando, então, tinham de obedecer a certo rigor ético-teológico da Igreja católica. Nos primeiros, cortejos laicos e políticos — muito embora a Igreja deles participasse — era costume acrescentar diverti mentos burlescos e jocosos, sátiras, para agradar e fazer rir à assistência. 41 Sotério da Silva Ribeiro. “Súmula triunfal...”, op. cit., p. 28-9.
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Os carros de idéia, assim também chamados, eram artefatos de engenhosa arquitetura. Exibiam suntuosos cenários, repletos de adornos, de alegorias ou fantásticas figuras, muitas das quais apresentando partes móveis e articula das — o que exigia perícia do artesão que as confeccionava — de grande efeito visual. Para melhor imitação do modelo, não raro traziam em movi mento água, fogo, música e vinho, que se mostrava tão farto nessas ocasiões como o era escasso no dia-a-dia dos habitantes da colônia. No triunfo a São Gonçalo Garcia, os carros apresentados ativeram-se princi palmente à temática religiosa. O de N. S. do Livramento, dado pelo irmão Antônio N., possuía forma de uma nau ou fragata: “nele se viam todas as partes constitutivas de um Navio: jardim, câmara, e varandas”. Ocupava a proa uma “marinha cantora do Egeu”, apresentando primorosos adereços. A Senhora do Livramento era sustentada por uma “nuvem de celeste Parinfo [í /V]”, vendose ainda dois anjos que louvavam a santa “com acorde e suave melodia”. Tão engenhosos quanto dispendiosos, os carros não eram menos pesados e ao mesmo tem po delicados em sua arte e maquinário. Conduzidos por en tre as ruas sinuosas do Recife colonial, calçadas de pedras irregulares quando muito, requeriam enorme cuidado e esforço físico de seus condutores, que não podiam ser outros senão os negros escravos, paramentados com luxo e asseio, como se fossem extensões dos conjuntos alegóricos. O carro em que seguia a N. S. de Soledade, por exemplo, era tirado “por oito negros vestidos de fraldões de damasco guarnecido de rendas: camisas presas nos buchos dos braços: nas cabeças gorras encarnadas, e franjadas de ouro” . A festa revelavase aqui, e mais uma vez, como reprodução simbólica da divisão social de tra balho estabelecida no espaço urbano da sociedade colonial escravista, e não, uma sua ruptura ou inversão. Ternos de charamelas, que precediam as irmandades religiosas conduzin do cruzes alçadas, varas de pratas e charolas, alegorias e carros triunfais não encerravam o espetáculo que se queria múltiplo em expressões artísticas e recreio. A multiplicidade musical e as danças exibidas, de variados estilos e referências culturais, completavam o espetáculo e faziam o regalo dos olhos e o recreio dos ouvidos. Na procissão do Santo Mártir, apresentou-se uma “graciosa dança de caboclinhos, composta de nove rapazes índios do País, ricamente ornados, e nus da cintura para cima ao modo pátrio”. O que lhes servia de guia acrescentava à cabeça “um papagaio ardficiosamente fingido”, alusão direta à natureza exóti ca do Novo Mundo, representação da América, da selva e dos selvagens, que apareciam já instruídos na fé e bons costumes cristãos. Sotério da Silva Ribeiro fez breve, porém rara na documentação, descrição dessas danças de índio: “Vários giros e voltas entrecadentes, com passo uniforme, faziam todos pelo centro de uns arcos de cipó, ornados e pintados de várias cores e pe
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nas. Vários giros digo formavam, a som e compasso de um tamborim e gaita, que tangia um Etíope (se bem que não ao nosso modo) não deixava por isso de atrair atenções, pelo Índico modo, com que sabe esta nação portar-se nas ocasiões de suas maiores celebridades.”42 Os negros exibiram a dança chamada quicumbis. Vestiam-se com o mes mo aparato e luxo que todos os demais. “Ao som de violas e pandeiros, can tando, e dançando, ao modo Etiópico, louvores entoavam a Santo Gonçalo, que certam ente era este um dos espectadores mais célebres, e sonoros, que continha todo este festival triunfo”. A marimba, instrumento de origem afri cana tocado por um negro ornado, foi motivo de comentário do autor da Sú mula Triunfal. Ao triunfo processional, sucedeu a cavalhada, ordenada à custa da Irman dade da Senhora de Guadalupe, protetora dos homens pardos da cidade de Olinda. Eram jogos eqüestres, de inspiração militar, produzidos para exerci tar e divertir a nobreza da terra. O povo assistia às partidas e se maravilhava perante aquela gente rica, abastada, farta e divertida. E não menos admira dos ficavam todos à vista de tão luzidas montarias, apanágios da elite colonial e signos de poder. A realização dos jogos exigia espaço amplo, aberto, público e, em se tratan do de divertim ento nobre, prestigiado. Em 1745, o local escolhido foi o pátio em frente ao palácio dos governadores. A época, governava H enrique Luís Pereira Freire de Berredo, ele próprio, a um só tempo, assistente e partici pante dos jogos, junto das autoridades civis e militares mais graduadas e mem bros da aristocracia local. Os prelados das religiões compareceram. Ternos de charamelas, clarins e bélicos instrumentos anunciavam a abertura dos jogos, aos quais seguiram as danças de langra, calhafasto, columis, quicumbis. Dis putaram argolas, organizaram-se partidas de justas com alcancias43 e justas simples, correram parelhas passando lanças e, por fim, houve jogos de esca ramuças. Os jogos, que faziam a alegria do público, guardavam igualmente momen tos e espaços para o estabelecimento de um convívio mais restrito, reservado à fidalguia, a um seleto grupo que desfrutava da companhia do governador e das damas da aristocracia. Especialm ente fabricadas para a ocasião, as barra cas, onde se reuniam, .ram ornadas com luxo e requinte: cortinas de damas cos carmesins e amarelas pendiam do teto e das paredes, tapeçarias finíssi mas decoravam o am biente, pinturas e o brilho das salvas, baixelas e fruteiras
42 Ibidem , p. 33. 43 “Bola de barro oca, que se arremessava cheia de flores e de outros mimos, nas cavalhadas antigas.” Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975, p. 63.
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de prata completavam o cenário. O festim dos cavalheiros enriquecia-se com o convívio à boa mesa, com as finas iguarias oferecidas: doces, frutas, bebidas e os muitos brindes levantados. Inteirava este seleto e urbano recreio sonoros acordes da música, executados pelo mcstre-capcla da Sé, e as danças dc esti lo cortesão. Três comédias estavam programadas para suceder à cavalhada mas que não vieram a acontecer. Provavelmente, foram alvo de censura do corpo ecle siástico de Pernambuco, pois o autor referiu-se a “um inopinado excesso de zelo” , que a todos escandalizara: ao povo, à nobreza da terra e às pessoas de maior categoria que se dispuseram a assisti-las.44 Os festejos encerraram-se com uma academia em honra ao Santo Mártir, presidida pelo Reverendo Doutor José Correia de Melo, realizada em uma das casas da Rua do Livramento. Lá fora, a pluralidade musical: coros en toando louvores, charamelas, trompas, atabales e trombetas. No interior da casa, pessoas distintas e convidados participavam dos jogos literários, recreio reservado a uma minoria letrada, privilégio partilhado pelos “mais Doutos Apollos da Cidade de Olinda, e vila de Santo Antônio do Recife”. Alguns acadêmicos somavam a arte da poesia e da retórica com a musical, e, dentre estes, havia alguns reconhecidam ente mulatos, como o Padre Filipe Néri da Trindade e o Padre Jerônimo de Sousa Pereira.4-’ Estes foram os festejos que os pardos de Pernambuco dedicaram ao santo de sua cor, Gonçalo Garcia, no ano de 1745. Foram comemorações que, além de proporcionar, à população, horas de diversão e de mais intenso convívio e fomentar momentos de exteriorização pública da fé católica, constituíram igualmente veículo de expressão de uma dada categoria étnica e social. Con siderável contigente de mulatos livres — que se encontrava num processo de mobilidade social e cultural ascendente e que buscava reconhecimento so cial e político condizente, segundo suas aspirações, com a nova condição — encontrou nas festas, de redentora dos pardos chamada, um mom ento espe cial para se fazer ver e ouvir, exibir a capacidade de organização do grupo, consolidar posições e prestígios conquistados e buscar outros ainda não al cançados. Isto se dava num contexto de mudança da própria sociedade per nambucana, e mais especificamente da recifense, sociedade em processo de reestruturação social, econômica e política, que caracterizou o período entre o fim da ocupação holandesa e as primeiras décadas do século XVIII. Todavia festas urbanas, que falavam da vila que as promovia. Símbolo dos poderes econômico e político alcançados e há pouco reconhecidos juridica mente, com a instalação da câmara do Recife. Eis as raízes dos conflitos que
44 Sotério da Silva Ribeiro. “Súmula triunfal...”, op. cit., p. 45-6. 45 Para identificar alguns dos músicos que participaram da referida Academia, ver Pe. Jaime C. Diniz. Músicos pernambucanos Ho passado..., op. cit.
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envolveram a realização da festiva e opulenta procissão da quarta-feira de Cinzas, que os irmãos da Ordem Terceira de São Francisco, dos homens de negócio, queriam fazer no Recife, desde 1703. A ordem congênere de Olin da, contudo, era contrária ao intento, procurando manter um privilégio que era seu. Em 1709, o cabido de Olinda não só não concedeu a licença para realizarem a procissão, como ainda “determinou a pastoral que ninguém des se ajuda para ornato da procissão e proibiu ao povo que a fosse ver, sob pena de excomunhão maior” .46 Com a chegada posterior do bispo, os do Recife conseguiram permissão para realizar a procissão, mas na primeira sexta-feira da Quaresma, o que fizeram no ano de 1710. Dez anos mais tarde, em 1720, saiu a primeira procissão na quarta-feira de Cinzas no Recife, que perdurou até 1864. As festas públicas foram alvo de disputas, entre os dois núcleos urbanos, em mais de um episódio, como, por exemplo, quando a cidade de Olinda realizou a im ponente procissão de trasladamento da imagem de Nossa Se nhora do 0 , em 7 de dezembro de 1711. A entrada do Governador Félix Machado, na cidade, foi triunfal. Cinco figuras alegóricas montadas a cavalo vieram recebê-lo, representando as quatros partes do mundo, sendo a quinta, a figura de Olinda, presumivelmente o umbigo do mundo. O governador deleitou-se com os recitativos, comédias, cavalhadas, missas e banquetes, recreios aristocráticos que se estenderam até o Natal. Ao retornar ao Recife, os mascates ofereceram-lhe três comédias e outros divertimentos.47 As celebrações a São Gonçalo Garcia foi mais uma dessas excepcionais ocasiões para a vila do Recife exibir seu poderio político, seu tanto de ouro e de prata acumulado, sua vitalidade social e cultural expressa na pluralidade e qualidade da música, das danças, jogos eqüestres e literários, nos custosos cenários, procissões solenes e triunfais. A festa fornecia a chave para o ingres so num m undo simbólico solidário e partilhado por todos, ainda que m anti vesse nitidam ente demarcadas as fronteiras sociais e raciais que distancia vam os moradores na sua existência histórica. Festas de uma sociedade, como o dissemos, em processo de reestruturação, dinâmica, na qual surgiam novas classes: a burguesia comercial e a classe média urbanas. Formadas no geral por gente de origem social humilde e modesta, a própria burguesia em ergen te buscando ver sua força econômica transformada em poder político e con vertida em prestígio e reconhecimento social. Classe que lutava contra pre conceitos arraigados da nobreza da terra, que lhe queria a todo custo fechar as portas ao reconhecimento social e político. Classe, talvez, por tudo isso e
46 Josc Antônio Gonsalves dc Mello. “O quinto volume dos Anais”, in: F. A. Pereira da Costa. Anais pernambucanos 1701-1739. 2.a ed. Recife: Fundarpe/D iretoria de Assuntos Culturais. 1984, v. 5, p. XVIII. 47 Evaldo Cabral dc Mello. A fronda dos m azom bos..., op. cit., p. 386.
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CÁSSIA
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ARAÚJO
nesse período, um pouco mais plural, mais tolerante em relação às categorias hierarquicamente inferiores; hipótese a ser averiguada por pesquisa mais por menorizada. Os significados da festa se vão tornando transparentes. O cristal do açúcar começava a sofrer fraturas. O jogo de cores, a embaralhar-se. Formaria um novo desenho num futuro que não se sabia ao certo. A luta dos pretos, pardos, índios e outros em igual situação de exclusão social, política e econômica, prolongar-se-ia décadas afora, em conflitos ora mais, ora menos explícitos e violentos, como na revolução de 1817, nos movimentos nativistas do N ordes te na primeira m etade do século XIX, na luta abolicionista ou numa disputa fim de milênio por um lugar no mesmo elevador social, que os conduzam a um outro lugar.
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R i t a d e C á s s i a B a r b o s a d f . A r a ú j o é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1983. Mestre em Antropologia, pela UFPE, em 1992. Doutoranda em História Social, pela Universidade de São Paulo, e pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco. Com a dissertação de mestrado, Festas: máscaras do tempo, recebeu os prêmios Jordão Emerenciano, 1992, da Fundação de Cultura Cidade do Recife, e Sílvio Romero, da Funarte-MinC, 1994. Tem publica dos: Festas: máscaras do tempo: entnido, mascarada efrevo no carnaval do Recife. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1996; “Festas públicas e carnavais: o negro e a cultura popular em Pernambuco”, in: Luiz Sávio Almeida; Otávio Cabral & Zezito Araújo. 0 negro e a cotistnição do carnaval tio Nordeste. Maceió: Edufal, 1996; “Carna val do Recife: a alegria guerreira”, in: Estudos Avançados, São Paulo, //(29):203-16, 1997. e s u m o . N o ano de 1745, no Recife, os homens pardos de Pernambuco organiza ram festejos públicos em louvor ao santo de sua mesma cor, São Gonçalo Garcia. A questão da cor do beato e de sua compatibilidade, ou não, com a santidade, foi moti vo de polêmica, envolvendo pessoas doutas e religiosas, e constituiu tema do sermão de Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, verdadeiro elogio do homem pardo. Procu ramos inserir a festa no contexto histórico e social do Recife setecentista, buscando identificar os sujeitos políticos e sociais que dela tomaram parte e as relações que teciam entre si. Pensamos, assim, tornar compreensível o que a festa expressava — no plano da representação simbólica — do processo de mudança por que passava o Recife, e, particularmente, da posição ocupada pelo homem pardo nessa sociedade.
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A M Ú S I C A NA F E S T A
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A M Ú S I C A N A FESTA
lidade c a com preensão do m undo. Talvez seja essa mistura, que aqui prefiro cha mar dc articulação de culturas, que imprimiu características próprias às práticas cul turais como um todo. N aturalm ente, negros, brancos, índios e mestiços procura vam, cada um cm seu respectivo espaço, m anter sua forma tradicional com a qual se identificara. E ntretanto, cm alguns m om entos da vida social da colônia, as ruas, praças, tem plos religiosos c por algumas vezes os estabelecim entos de espetáculos, tornaram-se espaços comuns. Neles, os vários estam entos c grupos étnicos reuniram -se para comem orar alguma data, ou reverenciar algum nobre ou príncipe, e, de forma estratégica, esses encon tros serviram tanto para atenuar quanto para acentuar as diferenças sociais. Se se fez a música do branco pelas relações dc poder e de juízo dc um sobre o outro, fez-se tam bém a música de sua própria cultura, porque se acreditava nela. As modinhas, os batuques, os lundus, as peças instrum entais e mais raram ente os vilancicos, foram m anifestações que aconteceram fora dos círculos religiosos e, m uitas vezes, se entrccru/.am com eles. R E L I G I O S I D A D E S
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C O L Ô N I A
(fa ix a s 2 0 e 2 3 )
As festas foram acontecim entos m uito comuns na América portuguesa, e a música, sem pre presente nelas. Os músicos eram contratados para as mais diversas ocasiões, quer para acontecim entos religiosos, quer para profanos. D e nascim ento de prínci pes a morte de soberanos; de festas particulares como os saraus, a festas públicas; dos simples cultos aos soleníssimos te-déuns; das representações teatrais às faustosas cerimônias nos tem plos religiosos. O músico aproximava-sc mais do artifício e seu ofício, da ars mechanica; ou seja, do artesão habilitado que possuía uma técnica dc compor e/ou interpretar. Essa idéia, surgida na Idade M édia européia, durou um pouco mais nas colônias, onde o exercício da música foi visto como um a prática manual. N a sociedade escravista, as relações dc 6
trabalho se dividiam cntrc scnhor-escravo, ordcm-obediência. O caso dos músicos, dc maioria mestiça, se reuniu numa questão de tarefas: a prática da música foi uma das poucas oportunidades de trabalho que, no geral, não foram ocupadas por brancos. Trabalhador livre na ordem escravocrata, o músico teve de se articular segundo suas necessidades c possibilidades. Sc a música em si aproximava-sc do sublime, do divino c dos princípios de uma sociedade organizada, que estabeleceu um gosto através do sistema de tonalidades, a prática, ao contrário, foi artifício; artfex. P R Á T I C A S
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(fa ix a s 2 4 a 2 6 )
Cada um via as práticas da forma como com preendia seu próprio mundo; na maioria das vezes era preciso inverter o olhar. N o Brasil os negros passaram a fazer suas festividades com uma música tão rica cm ritmos quanto em melodias. Batuques, jongos, congadas e congos foram as práticas mais comuns entre os negros escravizados e libertos. O jongo remonta aos tempos da escravidão quando eram dan çados pelos banto-descendentes que trabalhavam nas fazendas de café. O batuque, tam bu ou ainda caiumba é uma dança coletiva cuja coreografia culmina com a umbigada, com um gesto associado aos antigos rituais dc fertilidade do Congo e Angola. Com uma estreita relação com o tambor-de-crioula do Maranhão, o batuque é ainda praticado nas cidades de T ietê, Capivari e Piracicaba, no estado de São Paulo. O congo é a guarda ou grupo de cortejo do congado m ineiro que vai à frente do m oçam bique, abrindo caminho num ritual dc proteção aos ouvintes. É tam bém uma dança que rem onta às antigas funções guerreiras dos congos; a m usicalidade resgata o quotidiano dos negros do Rosário. Essas representações testem unham as formas populares do catolicismo, com suas atividades africanas transformadas em santos revestidos dc nova roupagem.
Maurício Monteiro 7
U m a colônia de ouvintes 15. Matais (te incêndios. Anônimo, primeira m etade do scc. XIII. Transcrição e pesquisa: Paulo Castagna 16. Vocêtrata amor em brinco. Música dc Marcos Portugal, letra dc Domingos Caldas Barbosa. 17. Lições deso/fejo, parte 1. Pe. Maurício N unes Garcia. 18. Lições de sotfejo, parte 2. Pe. Maurício N unes Garcia. 19. Lundu. Anônimo, recolhido por Spix e Martius. K
lepsidra
:
Pcrge Grassi, Beatriz Chaves, Luis Antonio Ramoska, Tiche Puntoni, Eduardo Klein. Fonogramas gentilm ente cedidos pelos intérpretes a partir de gravação da Rá dio Cultura FM .
Religiosidade na colônia 20. Mote/o O vos onines. Anônimo, séc. XVIII. 21. Moteto Popute meus. Anônimo, scc. XVIII. 22. Stabat Mater. Andante moderato. Pe. João dc D eus dc Castro Lobo. 23. Stabat Mater. M oderato. Pc. João dc D eus de Castro Lobo. B rasile ssen tia G rupo V o c a l e O rq u e stra
Direção: Vitor Gabriel. Fonogram as g e n tilm e n te cedidos pela G ravadora Paulus, a partir do C D D D D 1 1562-2 de 1997. Transcrições: Francisco C urt Langc, Regis D uprat e Carlos Alberto Baltazar. 10
Práticas afro-americanas 24. A luz que ve/a. Daniel Reverendo Toledo. 25. Batuque de São Jorge. Daniel Reverendo Toledo. 26. Nego no Cativeiro. C om unidade Negra dos Arturos, Minas Gerais. G r u p o C a c h u k r a ! (24 e 25): André Bueno, Andréa de Valcntim, Bia Siqueira, Daniel R everendo Toledo, Beto Teixeira, Boi, Cczar Azevedo, Cláudio Spinola, Cris L unardi Cris Abramo, Daniel Braga Campos, Daniela Aquino, Lili do Nascim ento, João Gimenes, M arcelo M an/.atti, M aria Aguiar, M arianna M onteiro, M atusalém Silvério, Renato N unes, Rosangcla Macedo, Silvio Oliveira, Teresa Callas, T iana Marques e W alter Chá. Direção: Paulo Dias. C o m u n i d a d e N e g r a d o s A r t u r o s (26) Fonogramas gentilm ente cedidos pela Associação e Grupo Cachuera! c pela C om unidade Negra dos Arturos, a partir dc gravação de Paulo T atit c mixagens dc Celso Gclman.
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A gradecim entos Akron Projetos Culturais Anima Anna Maria Kieffer Associação c Grupo Cachuera! Brasilesscntia Com panhia Papagalia Com unidade Negra dos Arturos David Kullock Editora H ucitec Fapesp Frei Lucas
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Gravadora Paulus Klepsidra L unatus E nscm blc M edieval Mário Solimene Maurício M onteiro Paulo Dias Rádio Cultura/FM E quipe de Externas Rubem Araújo Universidade de São Paulo Vitor Gabriel
9. /I Ia vil/n voy. Anônimo, séc. XVI. (Cancioneiro d ’Elvas) C
ompanhia
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apagalia
:
Anu Luiza Lima, João Lima, Eduardo Areias, Fernanda Sala Barrios, Eduardo Klein. T écnico d c som: João Rcgis lima Fonogramas gentilm ente cedidos pelos intérpretes, do CD A m de Vera Cruz. U m p rim e iro o lh a r so b re os trópicos 10. Cantos tupinambcís (recolhidos por Jean dc Lérv), pesquisa Anna Maria Kicffcr. Salmo 130. M artinho Lutcro, pesquisa H cnriqucta Fernandes Braga. 11. Qnien te visitv Isabel? Pe. José de Anchieta, 1595. Música dc Francisco Salinas 1577, pesquisa Rogério Budasz. 12. Sapateiro novo. Tradicional, recolhido por L eonel Silva. 13. ZeiJierasiti lenijtaot El. Isaac Aboab da Fonseca, 1646, pesquisa Anna Maria Kieffer c David Kullock. 14. liaiano do boi. Anônimo, recolhido por Mário dc Andrade. A nna M a ria K ie f f e r , R M ário S o l im e n e , A n im a :
uben
A
raújo
, D
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K
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,
Isa Taube, Ivan Vilela, João Carlos Dalgalarrondo, L uiz H enrique Fiaminghi, Patrícia Gatti, Valeria Bittar. Técnico d e som: Luis Alves Costa (Gato) Fonogramas gentilm ente cedidos pelos intérpretes a partir do C D Akronos Teatm do Desconhecido, 1999. 9
RELAÇÃO
DAS
PEÇAS
CONTIDAS
NO
CD
A Id a d e M édia 1.
La Manfredina. Anônimo, séc. XIV.
2.
AWentrata drl tens ciar. Anônimo, séc. XIV.
3.
Baclie bene venies. Canção goliarda, séc. XIII. L
unatus
E
nsemble
M
edieval:
André Victor, Francisco Espuny, João Braga, Paulo Barja, Wilson Melo. T écnico de som: Francisco Espuny Fonogramas gentilm ente cedidos pelos intérpretes.
O cancioneiro ibérico 4.
O manjar bino, du/ce y provechoso. Anônimo, séc. XVI. (Cancioneiro de Belém)
5.
Non tendes cama bom Jesus, não. Anônimo, séc. XVI. (Cancioneiro de Paris)
6.
Venid a suspirar con Jesus Amado. Anônimo, séc. XVI. (Cancioneiro d ’Elvas)
7.
Zagaleja de Io verde. Anônimo, séc. XVI. (Cancioneiro de Paris)
8.
Por que não me ves Joana. Anônimo, séc. XVI (Cancioneiro d ’Elvas)
8
tinha tanto dc tradicional como dc inovador, perm itindo a liberdade dc acoplar le tras diferentes sobre a mesma melodia. Uma obra como Venid a suspirar al verde prado foi usada como dispositivo catequizador com outra letra por José dc Anchicta: tornou-sc Venid a suspirar con Jesus Amado. IJM
P R I M E I R O
O L H A R
SO liltK
OS
T R Ó P I C O S
(faixas
1 0 u 14)
N este momento, já em terras tropicais, tem -se m uito de obscuro como de indagador c dc recriação. O bviam ente as práticas musicais européias chegaram como mais uma força em território indígena c impuseram , com suas possíveis articulações para aqueles momentos iniciais, sua m aneira m onoteísta dc ver o mundo. Jcan de I ,cry recolheu cantos dos índios tupinam bás, H ans Stadcn invocou a melodia e o texto do De Profundis dc Lutcro, na iminência de sua m orte pelos índios. E nquanto isso a colônia se fazia como um imenso e m ultifacctado Portugal. N esta parte, apresentam os um pouco deste universo das festas, cujas articulações se estendem das práticas autóctones e populares às atividades catequistas, representa das pela festa de Santa Isabel, c judaicas. N este momento, o contraponto francoflamengo c o barroco de Van Eyck através dos em preendim entos dc Maurício de Nassau, se misturam ao tem po circular dos índios. A recriação dos cantos judaicos entoados no século XVII na Sinagoga do Recifc é representada aqui pelo primeiro poema hebraico conhecido das Américas, o Zecher asili teniflaot El. Da mesma for ma, as interferências e ocorrências da cultura popular nas tradições colonizadoras aparecem cm dois cantos do Ciclo do Boi. U M A
C O L Ô N I A
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O U V I N T E S
(faixas 15 a 19)
O período colonial brasileiro é um a das épocas mais instigantes da História do Bra sil, sobretudo no que se refere às práticas culturais, resultantes dc uma miscigena ção forte e diversificada e que representou, num dos matizes da sociedade, a menta5
IDADE
MÉDIA
(faixas 1 a 3)
Na Idade M édia o m undo era basicamente modal. Até o século XIV, época da Missa de Notre Dame de G uilherm e de Machaut, a m onodia não era som ente um estilo de cantar a D eus, era tam bém a representação da própria unidade da Igreja. Fora dos centros religiosos, a música tomava os m atizes da espontaneidade, em detrim ento das regras: de tem ática mfstica mas vivida; amorosa e m uitas vezes irô nica. Nos séculos X II c XIII, o amor ganhou matizes de sagrado e profano: dc religio sos e fiéis para com D eus, de relações feudais de um vassalo com seu senhor c deles mesmos com seus ou suas amantes. Trobadours, trouvères e goliardos se tornaram, durante a Idade M édia, referências da música não religiosa. Estes últimos escreve ram textos e músicas que pregavam o amor, a bebida, o sexo, o jogo, a juven tu d e e a abundância. A ironia chega ao ponto de esses poetas errantes utilizarem a mesma melodia de textos religiosos em cantigas diam etralm ente opostas ao sentido original. E o caso do drama litúrgico Ludus Danie/is, de autor anônimo do século XII, que forneceu trechos para uma cantiga a Baco, Bache Bene Venies, presente neste CD. O
C A N C IO N E IR O
IBÉRICO
(faix as 4 a 9)
A polifonia foi um dos grandes sintomas dos séculos XV e XVI mas não superou a monodia. A prática tem ária dos vários sons sim ultâneos, que antes encontrava restri ções na Igreja e na m aioridade dc seus teólogos e teóricos, passou a ser uma representatividade harmônica c, por isso, bela e construtiva. A Península Ibérica foi um dos maiores centros desta prática c uma da maiores referências da cantiga polifônica profana. Em Portugal as coletâneas destas músicas, conhecidas como Cancioneiros, combinam traços ibéricos tradicionais c algumas delas remontam ao período trovadoresco galaico-português, sobre um contraponto franco-flamengo. N a maioria das vezes as formas poéticas e musicais predom inantes nos cancioneiros podem ser agru padas cm vilancicos (ou vilancetcs), cantigas e romances. Boa parte destas obras 4