MÉRITO E FLEXIBILIDADE A gestão das pessoas no setor público
MÉRITO E FLEXIBILIDADE A gestão das pessoas no setor público
Francisco Longo
Edições Fundap Fundap
Governador do Estado
José Serra Secretário de Gestão Pública
Sidney Beraldo FUNDAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO ADMINISTRATIVO–FUNDAP Diretora Executiva
Neide S. Hahn Coordenação editorial
Carlos H. Knapp Tradução
Ana Corbisier Lucia Jahn Luis Reyes Gil Paulo Anthero Barbosa Revisão
Helena Jansen Revisão técnica
Pedro Anibal Drago Sandra Souza Pinto Capa
Cristina Penz Ilustração da capa baseada na escultura “Le Chariot” (1950), de Alberto Giacometti Editoração eletrônica
Ricardo Serraino Fevereiro/2007 © 2004 by Ediciones Paidós Ibérica, S.A. Reprodução proibida sem a expressa autorização da Fundap. Dados Internacionais de Catalogação da Publicação (CIP) (Centro de Documentação da Fundap, SP, Brasil) Longo, Francisco Mérito e fexibilidade: a gestão das pessoas no setor público / Francisco Longo; tradução Ana Corbisier, Lucia Jahn, Luis Reyes Gil, Paulo Anthero Barbosa; revisão Helena Jansen; revisão técnica Pedro Anibal Drago, Sandra Souza Pinto. – São Paulo: FUNDAP, 2007 248 p. radução de: Mérito y fexibilidad: la gestión de las personas en las organizaciones del sector público. ISBN 978-85-7285-1 978-85-7285-102-2 02-2 1. Administração de pessoal. 2. Administração de pessoal – Setor público. 3. Gestão de pessoas – Setor público. I. Fundação do Desenvolvimento Administrativo Administrativo – Fundap. II. ítulo. CDD – 360.1
EDIÇÕES FUNDAP Rua Cristiano Viana, 428 05411-902, São Paulo, SP Telefone (11) 3066 5584 Fax (11) 3081 9082
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Para Alejandro e Alberto Longo
SUMÁRIO Agradecimentos Apresentação da edição brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .9 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .15 1. A gestão das pessoas nas sociedades contemporâneas . . . .23 2. O que o emprego público tem de diferente. A função pública . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .53 3. Gerir pessoas no setor público: um sistema integrado de valor estratégico . . . . . . . . . . . . . . .77 4. Os grandes subsistemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .97 5. As tendências de reforma da gestão das pessoas nas democracias avançadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .129 6. Dirigentes públicos profissionais: por que, para que e como . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .165 7. Os desafios do futuro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .197 Epílogo: mérito e flexibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .223 Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .227
AGRADECIMENTOS Como autor deste livro, tenho uma dívida de gratidão para com muitas pessoas. Entre elas está antes de mais nada uma longa lista de gestores públicos que participaram dos programas do IDGP da Esade 1 nos quais exerci a docência. enho consciência de ter recebido, deles, estímulos e ensinamentos muito valiosos. Devo mencionar também os governadores e dirigentes que conaram na minha capacidade de consultor e assessor ao longo destes anos. E também os meus alunos de nove promoções de MBA da Esade, que ano após ano desaaram minha capacidade para ormar gestores de pessoas. As coisas que aprendi com todos eles contribuíram para ltrar minhas percepções, aproximar à realidade os meus pontos de vista e melhorar minha habilidade para comunicá-los. Esade, a instituição em que desenvolvo meu trabalho há mais de dez anos, deve ser especicamente destacada neste parágrao. Sua conguração aberta e horizontal, que oxalá seja capaz de conservar durante muito tempo, proporcionou-me o ambiente estimulante e de cooperação, necessário a todo o trabalho intelectual, e o contato com as pessoas cuja contribuição generosa oi básica para o meu crescimento prossional. Sua cultura humanista e plural acilitou o engate de minhas convicções com os valores próprios do ambiente organizacional em que trabalho. Sou consciente do privilégio que isso signica. Nesse ponto, dirijo minha gratidão a Lluís Pugès, o diretor que me contratou, e a Carlos Losada, que um dia me sugeriu a incorporação e depois, com a responsabilidade atual de diretor geral, manteve sua conança em mim. Dentro do Esade, recebi dos meus companheiros do Instituto de Direção e Gestão Pública numerosas contribuições e uma infuência que, sem dúvida, se traduzem naquilo que este livro terá de mais valioso. Em especial a reqüente colaboração na docência, na pesquisa e na consultoria de Koldo Echebarría, hoje licenciado, oi uma importante infuência para congurar a minha orma de entender a gestão pública, como também o oi o estreito contato prossional que mantive esses anos com Xavier Mendoza, Alred Vernis, Albert Serra e o já citado Carlos Losada. ambém expresso meus agradecimentos a Manolo Férez, Raa Jiménez Asensio, Pere Puig, Manel Peiró, Enric Colet, Roberto Quiroga,
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N: IDGP é o Instituto de Dirección y Gestión Pública, instituição da Esade (Escuela Su perior de Administración de Empresas ), uma das dez mais prestigiosas Business Schools da Europa.
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Sam Husenman, amyko Ysa, Eduard Gil, Joat Henrich, Cristina Navarro e as demais pessoas que colaboram com o IDGP. Alguns colegas do departamento de Direção de Recursos Humanos da Esade leram trechos do manuscrito e me passaram seus valiosos comentários. É o caso de Carlos Obeso e de Ricard Serlavós, a quem devo um reconhecimento especial por ser o inspirador do modelo de gestão de recursos humanos que adotei na época, apliquei e desenvolvi nos últimos anos e que, adaptado à gestão pública, apresento neste livro. A relação de trabalho com outras pessoas do mundo acadêmico proporcionou-me valiosas reerências e comentários que beneciam o livro. Nesse ponto, devo citar Joan Subirats e toda a equipe do IGOV da Universidade Autônoma de Barcelona; Manuel Villoria, do Instituto Universitário Ortega y Gasset; Manuel Zara e Frederico Castillo, do CEMCI de Granada; Miguel Sánchez Morón, da Universidade de Alcalá de Henares; Alberto Palomar, da Universidade Carlos III; Carlos Vignolo, da Universidade do Chile; Regina Pacheco, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo; e Oscar Oszlak, da Universidade de Buenos Aires. Agradeço também a Michael Barzelay, da London School o Economics, e a Sonia Ospina, da New York University, pelos comentários sobre um material prévio em que apoiei uma parte do livro. Considero a experiência de dirigente público, no meu caso, como uma onte decisiva para o crescimento pessoal e prossional. Em particular, os oito anos de trabalho na municipalidade de Barcelona oram para mim uma autêntica escola de gestão pública, sem a qual este livro não teria sido possível. A coincidência entre o período de desenvolvimento do projeto olímpico de 1992 e uma etapa de transormação urbana sem precedentes, liderada pelo governo da cidade, ez daqueles anos uma experiência diícil de se repetir. Eram muitos os que comigo aziam parte da equipe do preeito Pasqual Maragall e me proporcionavam úteis aprendizados. Na impossibilidade de nomeá-los, recorro a um agradecimento genérico dirigido a todos. Personalizarei esta menção em Albert Galoré, com quem ainda compartilhei, depois daquela experiência, muitas horas de consultoria e amizade. Diversos trabalhos encomendados durante os últimos anos pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento me proporcionaram marcos de estudo e experiências que contribuíram para enriquecer várias partes do livro. Em particular, a elaboração de um marco analítico para a avaliação de sistemas de serviço civil e o acompanhamento de sua aplicação nos diagnósticos institucionais de uma vintena de países da América Latina e do Caribe me brindaram com excelentes e raras oportunidades para contrastar os modelos conceituais utilizados.
AGRADECIMENTOS
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Recebi do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas e do Centro Latino-Americano de Administração para o Desenvol vimento o pedido de elaborar um anteprojeto da Carta Ibero-Americana da Função Pública e de deendê-lo, como relator, perante a Conerência de Ministros de Administração Pública e Reorma do Estado, em junho de 2003, em Santa Cruz de la Sierra (Bolívia). Essa tarea me obrigava a sintetizar e enquadrar em ormato peculiar as minhas concepções básicas sobre a gestão pública do emprego e das pessoas, a m de torná-las acessíveis a dierentes ambientes institucionais e susceptíveis de serem compartidas por dierentes governos. A aprovação da Carta pela cúpula dos chees de estado e de governo e sua conversão em documento ocial da ONU pela Assembléia Geral são os primeiros resultados, que espero sejam seguidos por iniciativas de aplicação de seus princípios nos países da comunidade ibero-americana. Em todo caso, é justo que eu aça constar aqui minha gratidão às instituições que conaram em mim para esse trabalho. Carmen, minha mulher, revisou o manuscrito, como az habitualmente, tratando de polir minha linguagem. Sou grato a ela por isso e, principalmente, por tantas outras coisas.
APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO BRASILEIRA Escrevo estas linhas de apresentação quando acaba de se celebrar, em Barcelona, um seminário internacional, auspiciado pelo CIDOB 2, sobre a prossionalização do emprego público na América Latina. Com Carles Ramió, meu colega da Universidade Pompeu Fabra, tive o prazer de co-dirigir o seminário, que contou com a participação de reputados especialistas de ambos os lados do Atlântico. Durante as sessões, como não poderia deixar de ser, os dois grandes temas que dão título a este livro, mérito e fexibilidade, assim como a relação entre ambos, oram proundamente abordados e discutidos de ângulos diversos, dando lugar a pontos de vista às vezes antagônicos. Retive especialmente dois dos temas de debate e me permito comentá-los resumidamente aqui. O primeiro centra-se na idéia de mérito; mais especicamente, em suas dimensões ormal e substantiva, e na conveniência de distingui-las entre si.
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N: CIDOB: Centro de Investigación de Relaciones Internacionales y Desarrollo . Centro de Pesquisa de Relações Internacionais e Desenvolvimento.
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Freqüentemente, o mérito, enquanto atributo do emprego público, é pensado undamentalmente na primeira dessas dimensões. Assim concebido, um sistema de mérito converte-se num conjunto de garantias ormais cujos eeitos benécos se produziriam – diríamos com raseologia jurídica – erga omnes, ou seja, projetando-se para o exterior dos governos e organizações públicas e pensando nas necessidades da sociedade em seu conjunto. Uma vez que a sociedade necessita de administrações compostas por prossionais capazes de emitir decisões conormes com a legalidade e protegidas contra a captura e a corrupção, a criação dessas garantias é imprescindível. Entretanto, para dentro das organizações, isto é, para o governante ou o dirigente público, essas garantias operam basicamente como limitações, como condicionamentos de suas decisões de manejo do emprego público que restringem sua margem de decisão discricional. A partir disso é ácil concluir que essas limitações podem comprometer a ecácia das decisões e processos de gestão das pessoas e que precisam, por isso, ser compensadas por políticas fexíveis que restabeleçam um equilíbrio adequado. Nesta perspectiva, mérito e fexibilidade se situariam no marco de um trade of, de um dilema undamental que conronta os requisitos de prossionalidade da ação pública, de um lado, com sua pretensão de ecácia, de outro, de tal modo que os avanços em um campo signicassem retrocessos no outro e vice-versa. No meu entender, a questão muda de modo undamental se abordarmos a noção de mérito por sua dimensão material e substantiva. Nessa aproximação, as garantias do mérito protegem a prossionalidade da administração porque conseguem que as decisões de manejo do emprego público persigam e assegurem a idoneidade das pessoas, isto é, o mais alto grau de adequação de todas suas capacidades (de suas competências, diríamos no jargão atual dos recursos humanos) para o desempenho das tareas que devem cumprir. Para conseguir essa idoneidade, os instrumentos de gestão devem garantir adequadamente a busca, a escolha, o estímulo e a recompensa dos melhores em cada caso. Deste ponto de vista, as decisões sobre o emprego devem ser meritocráticas nos governos e organizações do setor público para proteger os cidadãos e os mercados da arbitrariedade e da corrupção. Razões semelhantes recomendam os ajustes meritocráticos também em outros tipos de organização, inclusive nas empresas do setor privado, para produzir os resultados alme jados pelas estratégias e objetivos de cada uma. Quando contemplamos o mérito dessa orma, a prossionalidade dos servidores públicos deixa de ser vista como uma limitação à ecácia dos governos e se converte, pelo contrário, em seu pré-requisito. A superação do saque, do clientelismo e da apropriação de setores e sua substituição por modelos me-
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ritocráticos de emprego público não produzem unicamente maior segurança jurídica nas sociedades que realizam essas mudanças, mas também mais ecácia, eciência e eetividade em bancos centrais, na scalização de arrecadação de tributos, nas polícias, nos hospitais e nos serviços sociais. A relação entre mérito e fexibilidade deixa de ser de conronto. Na realidade, se desejarmos alcançar a idoneidade das pessoas nos contextos contemporâneos, precisaremos de órmulas cada vez mais fexíveis no acesso, na carreira, na capacitação e na recompensa; e essa fexibilidade reorçará, em lugar de debilitar, a dimensão meritocrática do emprego público. O segundo dos temas mencionados, não muito distante deste, nos introduz mais uma vez no que Bresser Pereira 3 denominou “a questão da seqüência”. Em muitos oros continua viva a idéia, a meu ver alaciosa e ademais desmentida pelos atos, de que na América Latina os esorços reormadores devem se concentrar na construção de burocracias weberianas para, depois, num uturo indeterminado, incorporar as reormas fexibilizadoras da gestão de recursos humanos que hoje constituem moeda comum no primeiro mundo. É ácil notar que essa visão se apóia na aproximação ormalista da idéia de mérito que acabamos de discutir. Na obra citada, o ilustre político e acadêmico brasileiro argumenta vigorosamente contra esse discurso. De minha parte, depois de concordar com ele, remeto-me modestamente ao epílogo deste livro em que se acha uma argumentação sobre esse ponto. Na minha opinião, ela é substancialmente válida. Como se deduz dos parágraos anteriores, as convicções que me levaram a escrever “Mérito e Flexibilidade” continuam vivas, no substancial, no momento de sua publicação em língua portuguesa no Brasil. Não é preciso mencionar que esse ato é para mim motivo de prounda satisação, que agradeço muito sinceramente à Fundap e, em especial, ao estímulo da minha admirada amiga Evelyn Levy. Ao longo dos últimos anos, desde meus primeiros seminários na ENAP de Brasília, têm sido reqüentes os encontros com acadêmicos e gestores públicos brasileiros com os quais sempre encontrei um alto grau de sintonia, tanto nas preocupações como também, quase sempre, nos enoques. ambém no Brasil a modernização da gestão dos recursos humanos se encontra sistematicamente entre os grandes temas de qualquer agenda de reorma da gestão pública. Nós a encontramos quando revisamos o modelo de
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Bresser Pereira, L. C., Democracy and Public Management Reorm. Building the Republican State. Oxord University Press, 2004.
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gestão do PPA4 na esera ederal, quando acompanhamos a experiência de gestão dos serviços assistenciais e culturais por meio das organizações sociais do Estado de São Paulo ou quando analisamos as carreiras e a avaliação do desempenho nessa apaixonante experiência de reorma conhecida como “Choque de Gestão”, em Minas Gerais. Ela está igualmente presente nas principais preocupações dos secretários de gestão reunidos nessa importante plataorma de inovação e reorma institucional que é o Consad 5. ambém no Brasil, os temas relativos aos recursos humanos são, com reqüência, os mais resistentes a reormas; aqueles em que são mais habituais as percepções de insatisação com o logrado. Nada que revele características idiossincráticas dos contextos institucionais brasileiros, mas sim, como este livro pretende evidenciar, traços comuns das tentativas de melhorar a gestão pública das pessoas em qualquer lugar e circunstância. Para o bem ou para o mal, o comportamento humano nas organizações é uma variável sobre a qual é diícil infuir. Ao mesmo tempo, exercer essa infuência constitui uma questão central para a ecácia, eciência e eetividade das organizações, que se acentua nos serviços públicos e que, portanto, se torna irrenunciável para os inovadores e reormadores da gestão pública. A todos eles, elizmente numerosos no Brasil, é dedicada em primeiro lugar a edição deste livro em português. Oxalá lhes seja útil. Barcelona, janeiro de 2007 Francisco Longo
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PPA, Plano Plurianual instituído no governo Fernando Henrique Cardoso. Consad: Conselho Nacional de Secretários de Estado de Administração.
INTRODUÇÃO “É mais importante conhecer os temperamentos e características das pessoas que os das ervas e das pedras. Esta é uma das coisas mais sutis da vida: os metais se conhecem pelo som e as pessoas pelo que dizem. As palavras demonstram a retidão, mas os atos muito mais ainda. São necessários, em grau máximo, reexão, observação e capacidade crítica.”
Baltasar Gracián, Oráculo Manual y Arte de Prudencia, 1647 Mais de vinte e cinco anos de dedicação à gestão pública, na administração e no mundo acadêmico, oram ortalecendo minha convicção da importância crucial do ator humano como chave para explicar os êxitos e racassos dos governos e das organizações do setor público. Na condição de dirigente, experimentei na primeira pessoa o caráter crítico do comportamento humano nas organizações, seu extraordinário peso nos resultados de qualquer iniciativa ou projeto, e também a complexidade de suas motivações, a fuidez e pluralidade dos atores que o infuenciam, o quanto é árdua a tarea de decirar as origens e procurar as respostas aos problemas que aetam as pessoas no trabalho. enho experimentado a diculdade adicional que o oício de gerir pessoas traz implícito nos ambientes públicos; a ambigüidade das prioridades, seu caráter mutável, a brevidade dos ciclos políticos, a reticência para medir e avaliar, o peso imenso da inércia, as numerosas limitações legais e, principalmente, as restrições intangíveis de natureza cultural. Como docente, o prolongado contato com dirigentes públicos nos programas do Instituto de Direção e Gestão Pública (IDGP) do Esade tornou-me consciente tanto do interesse com que são abordadas as questões relacionadas ao ator humano, como do décit de preparação especíca que pode ser constatado na maioria dos casos. Os conhecimentos e habilidades relacionados com a gestão das pessoas não são normalmente levados em conta entre os requisitos de capacitação exigidos para exercer responsabilidades de direção no setor público. Este ato não impede que, às vezes, nos intercâmbios que caracterizam a ormação para dirigentes, aforem as boas práticas, os casos de sucesso e as experiência inovadoras. Em geral, não obstante, a percepção dominante entre os gestores públicos combina a crítica dos modelos de gestão existentes com uma aguda sensação, próxima do desalento ou do ceticismo, a respeito de como é diícil mudá-los.
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A experiência como consultor de governos e organizações públicas raticou para mim muitas destas percepções e as tornou extensivas a dierentes países e ambientes institucionais. Hoje a gestão do emprego público e das pessoas que azem parte dele preocupa cada vez mais aqueles que dirigem as organizações e os sistemas multiorganizacionais do setor público. A demanda de idéias, estratégias, metodologias e instrumentos que permitam melhorá-la cresceu de modo signicativo. Foi cando evidente que as mudanças legais, as reestruturações organizacionais e a modernização tecnológica, embora sejam importantes, não são sucientes para mudar em proundidade o uncionamento das organizações públicas. A verdadeira mudança é aquela que consegue penetrar nas mentes dos indivíduos e transerir-se para suas condutas. O olhar se volta conscientemente para as pessoas e é, na maioria das vezes, um olhar de interrogação, dúvida e perplexidade. Em suma, melhorar a gestão das pessoas é visto em nossos dias como um dos desaos principais da gestão pública e, ao mesmo tempo, como o que enrenta maiores obstáculos e resistências. Dessa dupla convicção sobre a importância e a diculdade desse empenho nasce este livro.
A QUEM SE DIRIGE ESTE LIVRO E COMO PRETENDE FAZÊ-LO Este é um livro sobre gestão pública, o que quer dizer no mínimo duas coisas. A primeira, que ele assume a orientação pluridisciplinar que caracteriza a reerida perspectiva e incorpora, sem complexos, contribuições e enoques próprios da economia, do direito, da ciência política, da sociologia e de outras disciplinas cientícas. A segunda, que ele se undamenta numa noção ampla do management , que vai além da mera importação de técnicas nascidas no mundo empresarial privado. A gestão pública modula seu instrumental analítico partindo da especicidade do público e incorpora não só modelos teóricos e erramentas, mas também um conjunto de valores necessários para o bom uncionamento e a renovação dos sistemas públicos e suas organizações. O livro tem uma pluralidade de destinatários: os primeiros são os dirigentes públicos, no sentido mais amplo da expressão. Incluímos aí todas as pessoas que assumem, nas organizações do setor público, responsabilidades que compreendem a direção de equipes humanas; desde aqueles que, no vértice estratégico das administrações, adotam decisões que aetam milhares de empregados, até aqueles que gerenciam pequenos centros ou serviços dotados de poucas pessoas. odos eles – seus objetivos, problemas e preocupações – têm sido a principal reerência inspiradora deste trabalho.
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O livro pretende ser também útil para aqueles que se ocupam da administração pública a partir da refexão acadêmica ou da consultoria, assim como – esperamos – para aqueles que o azem a partir da política ou do sindicalismo. Pode igualmente ser proveitoso para os empregados públicos e para os jovens que aspiram azer da gestão pública sua prossão e desejam melhorar seu conhecimento sobre uma parcela básica dela. Não ca descartado, inclusive, que possa captar o interesse de outros públicos. Anal, ala de questões que acabam aetando a vida da maioria. Há tempos estou convencido de que a modernização da gestão pública geralmente se produz quando seus temas saem do círculo restrito dos especialistas e passam para a esera do debate público. Acredito que qualquer cidadão interessado no uncionamento das organizações públicas encontrará nestas páginas algumas refexões úteis, quer concorde com elas ou não. Embora minha experiência tenha sido gestada principalmente no ambiente institucional espanhol, e este ato se transra inevitavelmente para o que escrevo, o livro não oi produzido pensando apenas no leitor desse País. Ao contrário, tenho tentado azer com que as análises e refexões sejam, no undo e na orma, acessíveis e úteis a leitores de outras latitudes. Como poderá comprovar quem siga adiante, tanto os modelos conceituais como os reerenciais utilizados caracterizam-se por uma vocação de universalidade e uma orientação comparada. Em particular, teve-se presente a todo momento a possível utilidade do livro para os leitores latino-americanos. A reqüência e intensidade dos contatos com governos e organizações públicas da Ibero-América ao longo dos últimos dez anos tornaram-me particularmente sensível à maneira de tratar a questão pública que caracteriza essa parte do mundo, tão distante e tão próxima. A probabilidade de que este livro seja de interesse será tanto maior quanto mais aberto à mudança or o espírito com que se empreenda sua leitura. No IDGP da Esade adotamos como sinal de identidade um compromisso com os inovadores do setor público. Este compromisso está presente no livro, que incorpora nossa crença na questão pública, em seu papel insubstituível para o bem-estar e o progresso de nossas sociedades, mas também no seu imenso potencial de melhora, imprescindível para adaptar-se às exigências de uma demanda social intensa e mutante. O livro aborda um assunto de especial complexidade. Há questões para as quais o desenvolvimento cientíco e tecnológico acabou criando protocolos de respostas predeterminadas. As incidências relacionadas à gestão das pessoas costumam pertencer, ao contrário, àquela categoria de problemas que Schumacher chama de divergentes; aqueles que, quanto mais conhecimento especializado incluem, mais soluções possíveis admitem. Além disso, em matéria de
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recursos humanos, essas soluções são quase sempre a médio ou longo prazo, o que obriga a adotar decisões cujo êxito ou racasso não pode ser vericado imediatamente. Por outro lado, as questões que aetam as pessoas e seu trabalho costumam ser objeto de pontos de vista dierentes, que refetem a diversidade de interesses e valores dos grupos humanos aetados. O confito com reqüência az parte da situação. A necessidade de harmonizar na medida do possível as preerências e expectativas de uns e outros obriga a assu mir uma visão não dogmática das coisas ou, o que dá no mesmo, um enoque contingente das respostas. O peso do contexto, do situacional, é determinante, o que reduz o valor prescritivo do precedente e obriga a investir em diagnóstico. A capacidade para ler adequadamente cada realidade concreta, com as singularidades e matizes que lhe são inerentes, é uma condição do sucesso. oda esta complexidade normalmente aumenta nos ambientes públicos pelo peso que a dimensão política tem neles. A gestão pública das pessoas é um território intrincado, onde é ácil perder-se. Este livro pretende ornecer elementos de orientação que tornem mais ácil transitar por esse território, mas não a qualquer preço. Não quisemos oerecer ao leitor uma viagem organizada, daquelas que levam a passar de um ponto a outro através de um itinerário préxado, tornando mais cômoda a vida do viajante à custa de selecionar para ele umas poucas porções de realidade e apresentá-las supercialmente. Optou-se de orma deliberada por outro enoque: aquele que tenta apresentar as coisas em toda a sua complexidade, procurando ao mesmo tempo oerecer as pistas e reerências possíveis para acilitar uma leitura adequada da realidade nos dierentes contextos. Assim, o livro é mais uma bússola ou, quando muito, um mapa, uma carta de navegação, que o viajante-leitor deverá usar segundo suas circunstâncias e conveniência.
O QUE O LIVRO CONTÉM E COMO FOI ORDENADO Meu objetivo principal ao empreender a tarea de escrever este livro era apresentar o modelo global de gestão pública das pessoas que venho utilizando e aplicando há anos na docência, na pesquisa e na consultoria, para projetar depois sobre ele uma análise das principais tendências de mudança que as organizações do setor público enrentam em nossos dias. Na hora de azer isso, deparei-me com a necessidade de contextualizar este propósito num quadro mais amplo: o da gestão das pessoas no setor público, qualquer que seja a natureza destas, isto é, incluindo entre elas, de modo bem dest acado, as empresas e organizações do setor privado.
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A essa nalidade oi dedicado o capítulo 1, cujo objetivo é oerecer uma panorama geral, obrigatoriamente sintético, dos aspectos e tendências apresentados pela gestão dos recursos humanos nas sociedades atuais. Para chegar a esse ponto, oi necessário abordar primeiro uma série de mudanças cuja natureza, de algum modo, az com que precedam a gestão como tal; nos últimos anos elas transormaram substancialmente o universo do trabalho humano, tanto em sua dimensão ormal como nos elementos intangíveis que azem parte da relação de emprego. Portanto, em linhas gerais, descrevemos esse cenário cheio de paradoxos e claros-escuros, para, a partir dele, explorar as principais orientações que podem ser reconhecidas como tendências de undo de nossa época, tanto na literatura da gestão como na prática empresarial. A noção de fexibilidade, característica das abordagens contemporâneas à gestão das pessoas, aparece aqui pela primeira vez e nos acompanhará ao longo de todo nosso percurso posterior. A introdução a esses conteúdos nos obrigava, por sua vez, a entrar na exploração do que o emprego público tem de especíco. A pergunta é: em que se apóiam, na realidade, os aspectos singulares, as dierenças que azem com que as mudanças e as orientações de gestão mencionadas no primeiro capítulo cheguem de orma distinta ou matizada às organizações do setor público? Desta questão vamos nos ocupar no capítulo 2, que apresenta e desenvolve a noção de unção pública (tratada expressamente como sinônimo de “serviço civil”, termo mais usado em certas latitudes). Elucidar o que é e o que não é unção pública nos parecia imprescindível para precisar até que ponto a gestão do emprego público e das pessoas que o integram deve ser entendida como um território singular. É aqui que aparece e é desenvolvida a idéia do mérito e da necessidade de garanti-lo para tornar possível a existência de administrações prossionais. O prossionalismo da administração pública é um atributo exigido tanto pela segurança jurídica como pela ecácia dos serviços públicos, e requer um conjunto de arranjos institucionais que a preservem e a protejam. Determinar onde termina neles a proteção dos bens de interesse geral e onde começa a dos privilégios corporativos dos uncionários será uma questão que teremos que elucidar em cada caso. Nesse capítulo é examinada a natureza distinta desses arranjos em dierentes países e ambientes, e são apresentados assim os traços básicos dos dierentes modelos de unção pública. Este parecia o ponto adequado para expor o modelo de gestão que estamos propondo. A isso dedicamos o capítulo 3. Nele, denimos a gestão dos recursos humanos como um sistema integrado, colocado a serviço da estratégia organizacional, cujo objetivo é produzir resultados que estejam de acordo
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com ela. Conseguir essa sintonia estratégica é particularmente complicado nos ambientes públicos, cujas características de ambigüidade e instabilidade conduzem ao “dilema da estratégia”, que abordamos neste ponto – e que constitui sem dúvida o principal obstáculo que o gestor público encontra em sua tarea. Por outro lado, alar de resultados obriga-nos a precisar primeiro o alcance da noção e a explorar depois os elementos que relacionam as pessoas com os resultados. As políticas e práticas de gestão das pessoas produzem resultados graças a seu impacto sobre duas variáveis principais: o dimensionamento dos recursos humanos, de um lado, e o comportamento dos indivíduos, de outro. Por sua vez, a infuência sobre esta segunda variável – a conduta das pessoas no trabalho – se desenvolve por meio da gestão de dois atores básicos: as competências das pessoas e sua vontade de esorço ou motivação. São desenvolvidas nesse capítulo todas estas noções, inseridas nos cenários característicos da gestão pública, e, por último, são descritos, também a partir dessa perspectiva, os principais atores situacionais que exercem infuência em tudo isso. A apresentação do modelo continua no capítulo 4, que o desenvolve por meio da apresentação de sete subsistemas básicos: os de planejamento, organização do trabalho, gestão do emprego, desempenho, compensação, desenvol vimento e relações humanas e sociais. Foi acrescentada uma parte dedicada à organização da unção de recursos humanos. Para cada um desses subsistemas, descreve-se em primeiro lugar seu objetivo ou nalidade undamental, e depois detalham-se as relações existentes com os demais subsistemas, seguindo a orientação integrada à que zemos reerência. A seguir, identicam-se os processos e práticas nos quais eles se desdobram para alcançar suas nalidades. Foi incorporada para cada subsistema uma relação de pontos críticos, enunciados como proposições de boa prática em cada um dos campos abordados, que pode ser utilizada como instrumento de comparação na análise e avaliação de experiências concretas de gestão. Finalmente, oram incluídas considerações especícas que a análise de cada subsistema deve levar em conta. Depois de apresentado o modelo de gestão, o passo seguinte é identicar as tendências de mudança que estão sendo produzidas nos sistemas e organizações do setor público de nossa época. As últimas duas décadas oram o cenário de numerosas transormações na gestão pública das pessoas, especialmente nos países do mundo desenvolvido. Dessas reormas, cujo alcance e proundidade têm sido bastante desiguais, assim como das dinâmicas abertas por elas, ocupamo-nos no capítulo 5. De novo, o lema da fexibilidade nos aparece aqui como um o condutor de boa parte das orientações de mudança. Para apresentá-las, começamos descrevendo o diagnóstico que lhes deu undamento, cujos conteúdos se inserem nas orientações próprias do discurso pós-burocrático
INTRODUÇÃO
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ou gerencialista da chamada “nova gestão pública”. Abordamos depois o sentido das mudanças, detalhando as estruturas e políticas que têm sido objeto preerencial das transormações, assim como a direção e o alcance destas nos dierentes cenários institucionais, e concluímos com uma série de refexões a título de balanço. Algumas das mudanças identicáveis nas reormas mencionadas convergem para um tema ao qual, por sua especial importância para a gestão pública contemporânea, demos um tratamento dierenciado. rata-se do surgimento, desenvolvimento e consolidação da gerência pública ou direção pública prossional. Dedicamos a esse tema o capítulo 6, no qual, depois de descrever o enômeno e seu signicado, no contexto das reormas da gestão pública antes apontadas, azemos nosso o modelo de exercício da unção dirigente divulgado por Mark Moore e seus colegas da Kennedy School de Harvard, e tentamos denir as bases por meio das quais ele pode ser incorporado ao desenho institucional dos sistemas públicos. Apresentamos para isso um quadro de responsabilidade voltado para a direção pública, integrado por quatro elementos básicos: um âmbito discricionário, um sistema de controle e prestação de contas, um regime de prêmios e sanções, e um conjunto de valores de reerência. Abordamos em seguida a nada ácil tentativa de identicar um espaço dirigente prossional, o que nos leva a explorar a delimitação entre cargos políticos e dirigentes, para o que propomos um modelo contingente baseado na análise de quatro variáveis básicas. O capítulo termina com uma refexão a respeito das áreas nas quais se deveria intervir para alcançar um grau aceitável de institucionalização da gerência pública. O capítulo 7 e último é dedicado à identicação dos principais desaos oerecidos atualmente pela gestão das pessoas nas organizações do setor público. Isso obriga a examinar, de saída, uma das situações possíveis: a de uma eventual minimização progressiva do emprego público como conseqüência da tendência de privatizar a gestão dos serviços públicos, o que sem dúvida tiraria importância dos esorços voltados para reormá-lo. Descartada essa opção, e argumentada a necessidade decorrente de investir na melhora dos sistemas públicos de gestão do emprego e dos recursos humanos, abordam-se alguns eixos prioritários de intervenção, ordenados pelos dierentes subsistemas que oram descritos anteriormente. Alude-se depois à mudança nas regras do jogo, tanto ormais como inormais, que essas mudanças exigem. Por último, incluise uma parte destinada a explorar os desaos do uturo, passando em revista primeiro as competências que será necessário incorporar e desenvolver nos sistemas públicos, para concluir enunciando os temas que estão convocados a congurar a agenda dos próximos anos.
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O livro naliza com um breve epílogo para onde convergem dois grandes eixos, em torno dos quais se dá a refexão de undo, ou seja, os dois atributos essenciais que, a nosso ver, devem ser incorporados por qualquer sistema público de gestão das pessoas: mérito e fexibilidade. A idéia que articula esta refexão nal é que ambos os componentes devem ser tratados como dois princípios condutores complementares que, longe de competir entre si, se reorcem reciprocamente. Como ler este livro? Para quem disponha de tempo e interesse, a recomendação é que o aça pela ordem em que acabamos de apresentar o conteúdo. Anal, é a orma pela qual organizamos nossas idéias e construímos o discurso subjacente aos dierentes temas. No entanto, não é a única maneira possível de azê-lo e, portanto, sugerimos outras opções. O leitor interessado em conhecer imediatamente o marco conceitual em que se assenta nossa visão do assunto pode começar a leitura diretamente pelo capítulo 3 e completá-la com a do 4. A partir daí, ca a seu critério, se desejar, selecionar, nos demais capítulos que integram o sumário, aquelas matérias que despertem especialmente seu interesse, sem que a ordem em que o aça acarrete, a nosso ver, maiores problemas de compreensão. Por sua vez, os leitores cujo interesse principal prescinda dos aspectos mais teóricos e se concentre nas tendências de mudança no emprego público, podem começar pelo capítulo 5, continuar com a primeira parte do 6 – a que apresenta a eclosão da administração pública – e terminar com o 7. Se dispuserem de um pouco de tempo, provavelmente lhes será útil ler antes o primeiro capítulo, destinado, como dissemos, a situar as mudanças num contexto mais amplo que o do setor público em sentido estrito. Em todo caso, se um leitor, qualquer que seja a seqüência escolhida, deseja aproundar a noção de mérito, que é, como temos dito, um dos elementos básicos de qualquer sistema de gestão pública das pessoas nos estados democráticos de direito, encontrará no capítulo 2 os modelos conceituais e os argumentos correspondentes.
1. A GESTÃO DAS PESSOAS NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS Este primeiro capítulo destina-se a apresentar um panorama geral das principais tendências atuais da gestão do emprego e dos recursos humanos. O propósito é caracterizar a situação global em que hoje se situa o emprego público, cuja gestão constitui a refexão principal do livro. Os aspectos e as orientações aqui descritos pretendem, portanto, servir de reerência ou de contraponto a esse assunto central. A necessidade de apresentar uma realidade multiacetada e complexa num espaço limitado obriga a desenhar este pano de undo com uma técnica de grandes traços, ou seja, a dar prioridade à síntese em lugar da proundidade analítica, à concisão em vez da riqueza expositiva. udo isso priva inevitavelmente o resultado de desenvolvimentos e de matizes que teriam exigido uma extensão maior.
A NOVA PREEMINÊNCIA DAS PESSOAS Entre os numerosos trabalhos que nos últimos anos tratam de interpretar as mudanças sociais, tentando vislumbrar o uturo das sociedades e de suas organizações, seria diícil encontrar algum que não tenha destacado o valor do ator humano. Na nossa época, pelo menos para aqueles que escrevem sobre ela, as pessoas importam. Desde a sobrevivência ou o crescimento empresarial até a própria competitividade das nações, os grandes objetivos de qualquer projeto coletivo contemporâneo parecem depender em boa medida da correta provisão, desenvolvimento e utilização do capital humano. A preeminência das pessoas é destacada por abordagens de caráter muito dierente. Os enoques quantitativos costumam colocar ênase na magnitude do investimento e na necessidade de garantir taxas de retorno adequadas. As abordagens qualitativas sublinham mais a conexão dos recursos humanos com a produção de vantagens competitivas, destacando seu vínculo com o desenvolvimento do conhecimento, a inovação tecnológica e a gestão da complexidade; atores, todos eles, determinantes do sucesso das empresas e das sociedades atuais. Os livros e revistas de management repercutem esta coincidência e têm sido o veículo de uma abundante produção teórica que revalorizou a gestão das pessoas, entronizando-a entre as práticas empresariais de valor estratégico. A importância do ativo humano tem undamentado orientações de mudança que
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atravessam a estrutura da empresa em todas as direções. Para cima, aumentando as opções básicas relacionadas com as pessoas no nível das decisões estratégicas. Para os lados, produzindo transerências de responsabilidade a partir das unidades especializadas até a linha de comando. Para baixo, por meio de processos de delegação (empowerment ) destinados a incrementar o poder de decisão nos níveis em que se produz a interação com o mercado. Paralelamente, e congruentemente com tudo isso, as políticas de pessoas se orientam para a gestão do talento e o compromisso dos indivíduos. Dispor dos melhores a cada momento e alinhar seus objetivos vitais com os da empresa passam a ser os objetivos centrais. Sem dúvida, em toda esta explosão há infuências da moda, como tantas vezes ocorre no mundo da gestão empresarial. Com reqüência, as invocações retóricas da importância das pessoas maquiam apenas práticas de gestão que as desmentem contundentemente. Perto de nós, o número de pessoas em trabalho precário e em aposentadoria antecipada e prematura seria uma mostra disso. O desperdício desse ativo humano supostamente estratégico é ainda mais evidente nos abundantes exemplos de redução de pessoal ou downsizing que nos últimos anos têm prolierado em muitas empresas do mundo desenvolvido. Freqüentemente, tais processos têm sido menos uma resposta a situações de crise, ou medida de estrito saneamento de custos, e mais a conseqüência de sucessivas operações de reengenharia destinadas à eliminação de qualquer aparência de gordura, resultante das ciras de pessoal. São atos que deixam patente o sucesso conseguido por uma visão de “empresa fexível”, que interioriza uma obsessão por converter todas as pessoas, e a todo momento, em custo variável. A vinculação dos incentivos (compensação, carreira etc.) da alta direção das empresas à rentabilidade econômica a curto prazo, característica da losoa de gestão que coloca ênase na “criação de valor para o acionista”, ou a utilização de técnicas contábeis EVA (Valor Econômico Agregado), que ponderam nos resultados o custo de oportunidade dos ativos xos utilizados, criaram nos gestores a tendência a evitar qualquer investimento de caráter estrutural (Cappelli e outros, 1997, p. 38 e seguintes.), acentuando assim essas tendências. Em geral, a tensão entre a visão de médio e de longo prazo exigida pelas políticas de recursos humanos e a lógica reativa e a curto prazo com que são adotadas habitualmente as decisões nos turbulentos ambientes empresariais de nossos dias é uma onte de diculdades para aqueles que querem situar as pessoas no centro do cenário. Por sua vez, explica porque essa nova preeminência das pessoas não é tanto uma característica comum, generalizável às empresas atuais, e sim um traço dierenciador daqueles projetos empresariais com autêntica vocação de sustentabilidade. Só quando se busca o sucesso a longo prazo é
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que se está disposto a avaliar adequadamente investimentos que, como ocorre com reqüência com os de capital humano, oerecem um retorno consideravelmente demorado no tempo. Ainda mais contraditórias com as alegações de centralidade do capital humano são as operações de cirurgia de dotações, cuja nalidade é puramente o incremento conjuntural da capitalização na bolsa. Como soube ver Sennett (2000, p. 52), o mero anúncio da reorganização de uma empresa eleva o valor da ação. Quando se incluem drásticas reduções de pessoal, a ecácia do enômeno é ainda maior. O acesso a cotas estratégicas da propriedade das empresas por parte de “investidores institucionais” – cujo interesse não é promover projetos empresariais sustentáveis mas especular a curto prazo nos mercados de capitais – avorece a ampliação do enômeno. Assim, temos observado às vezes, nos últimos anos, como esses anúncios de redução são impudicamente divulgados, justamente nas épocas de maior bonança nos resultados empresariais. De qualquer modo, sem negar o quanto de contraditório tem a situação exposta, a centralidade estratégica das pessoas nas organizações contemporâneas abre caminho para além da retórica do ashion management e de seu aproveitamento por mero interesse. O volume de recursos de diversas origens aplicado pelas empresas à gestão dos recursos humanos cresceu signicativamente. A posição interna da unção de recursos humanos cresceu de nível e status organizacional. A consultoria estratégica de recursos humanos tem se consolidado como um setor de serviços prossionais em alta, para além das oscilações conjunturais derivadas do ciclo econômico. Novas práticas de gestão, impregnadas dessa atribuição de valor ao ativo humano, abrem caminho na realidade de muitas empresas. Quais são essas orientações emergentes da gestão das pessoas? Até que ponto questionam paradigmas enraizados no uncionamento e na cu ltura das organizações? Antes de tentar um esboço de resposta a estas questões, parece necessário examinar algumas mudanças importantes produzidas, ao longo dos últimos anos, no mundo do trabalho.
AS MUDANÇAS NO MUNDO DO TRABALHO Um conjunto de mudanças de amplo alcance alterou ao longo das duas últimas décadas, nas economias e nas sociedades do mundo desenvolvido, o contexto do trabalho humano (Bridges, 1995; Giarini e Liedtke, 1996; Brewster e outros, 1997; Cappelli e outros, 1997; Fundación Encuentro, 1998; Peer,
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1998b; Navarro, 1999; Sennett, 2000; Beynon e outros, 2002). São transormações que não advêm, no entanto, de uma causa única. O vertiginoso desen volvimento tecnológico, especialmente o produzido no campo da inormação e das comunicações, mas também aquele que aetou a biogenética e as ontes energéticas, tem sido sem dúvida um dos atores decisivos. A mundialização dos intercâmbios de toda ordem, a maciça incorporação das mulheres ao trabalho, assim como a crise dos valores da modernidade, que desde a revolução industrial e durante muitas décadas ormaram o substrato cultural das empresas e das sociedades, são também atores poderosos de mudança, amplamente destacados pela literatura sociológica contemporânea. As transormações às quais nos reerimos aetaram tanto a estrutura das relações no ambiente de trabalho (entendendo como tal o conjunto de elementos ormais ou ormalizáveis dessas relações), como a cultura subjacente, isto é, os aspectos intangíveis: modelos mentais, valores dominantes, normas de conduta etc. São mudanças de amplo espectro, que aetam as ormas pelas quais as pessoas têm acesso ao mercado de trabalho, a sua experiência sobre o processo de trabalho e suas expectativas sobre segurança no emprego (Beynon e outros, 2002, p. 297). Enunciamos a seguir alguns dos aspectos que nos parecem mais destacáveis. O contrato de trabalho: em direção ao fim do taylorismo
A uniormidade e padronização que caracterizava a relação de emprego da era industrial tornou-se em nossos dias diversidade e fexibilidade. Os produtos ou serviços podem ser produzidos e distribuídos através de redes globais (Giarini e Liedtke, 1996, p. 194), o que criou uma tendência à redenição e descentralização do lugar de trabalho. Os desenhos empresariais na rede estimulam o surgimento de novas modalidades de articulação das relações entre a organização e o trabalhador. O trabalho itinerante ou a distância abre caminho como uma órmula que pode ser útil para ambas as partes. A redução de custos empresariais em inra-estrutura e espaço ísico combina-se, para o trabalhador, com a disponibilidade fexível do próprio tempo, tão conveniente para os novos modelos de vida pessoal e amiliar. Freqüentemente, essa remodelação do tecido contratual se undamenta numa distinção entre trabalhadores essenciais, os que são vitais para produzir a vantagem competitiva a longo prazo e a sobrevivência da organização, e que portanto devem estar permanentemente empregados; e trabalhadores periéricos, aqueles cujos postos são menos importantes para a empresa e cujas habi-
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lidades podem ser compradas com maior acilidade externamente (Hegewish, 1999, p. 115), o que os sujeita com reqüência a políticas de alta rotatividade. Como conseqüência de tudo isso, o binômio dependência/autonomia do trabalho por conta alheia começa a ser conjugado de ormas muito diversas. Múltiplos tipos de relação de emprego, nos quais os mecanismos de prestação e contraprestação se diversicam, substituem o contrato de trabalho tradicional. Os contornos dessas relações se esumam e dão lugar a guras – o trabalhador autônomo, o emprego em tempo parcial, o trabalhador designado através de uma empresa de trabalho temporário, o consultor de processos – que coexistem no ambiente de trabalho com os empregados que mantêm relações ormais mais convencionais. O diretor de recursos humanos de nossos dias começa a não saber com clareza quem deve ser convidado para a estinha de m de ano. O enfraquecimento do emprego estável
Esse novo contrato de trabalho tende a perder uma parte considerável da estabilidade que o caracterizava. As conseqüências deste ato são de grande importância. Para compreender todo o seu alcance, é preciso recorrer à noção de “contrato psicológico”, entendido como o equilíbrio intangível subjacente à articulação ormal da relação de emprego, e que se materializa no conjunto de percepções tácitas que são interiorizadas pelas partes dessa relação. O contrato psicológico subjacente à relação de trabalho da era industrial podia ser esquematizado como “lealdade em troca de segurança”. O trabalhador entregava seu esorço e se comprometia com os interesses e objetivos de sua empresa, que em contrapartida lhe assegurava trabalho estável e perspecti vas de progresso prossional. Certamente, esse esquema básico admitia modulações em unção do tipo e da cultura da empresa, que acentuavam ou diluíam o substrato paternalista do modelo, mas o núcleo deste podia ser considerado comum. A aspiração do trabalhador era encontrar “uma boa empresa”, ou seja, aquela que mais se ajustava ao padrão denido. Por sua vez, o empregador se esorçava por estimular no trabalhador o sentido de pertinência que caracteriza uma relação deste tipo. Em nossos dias, esse ediício contratual desabou estrepitosamente. O trabalho para toda a vida praticamente desapareceu do horizonte de nossos trabalhadores, em especial dos mais jovens. A expectativa temporária de uma vida de trabalho se torna muito mais duradoura que o primeiro posto de trabalho, e provavelmente mais que a própria empresa na qual se encontra o primeiro emprego. O ajuste entre a pessoa e o emprego se descentraliza, passa
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a ser uma responsabilidade transerida exclusivamente ao indivíduo. Já se oram os dias – arma Supiot (2001) – em que as organizações empregadoras aceitavam de bom grado que, como compensação por assumir o controle e a direção da vida das pessoas, elas deviam assumir alguma responsabilidade sobre o emprego uturo e a segurança salarial de seus empregados. As pessoas encaram o trabalho, cada vez mais solitariamente, como um itinerário no qual a mudança de empregador será inevitável, o que provavelmente implicará administrar várias vezes, no percurso, processos de ajuste que terão o mercado de trabalho como cenário. O conceito que para alguns (Waterman e outros, 2000, p. 403) simboliza a nova relação, e redene o contrato psicológico entre as organizações e seus empregados é o de empregabilidade , que signica (Peer, 1998b, p. 162) que as empresas proporcionam trabalhos interessantes que ajudarão o trabalhador a desenvolver sua capacidade, mas não prometem uma permanência a longo prazo no posto. Em seu lugar, a única promessa é que a experiência e as habilidades adquiridas irão abrir-lhe melhores possibilidades de encontrar emprego quando tiver necessidade de um novo. Como arma Bridges (1995, p. 76), nessa nova relação a esera do posto de trabalho, de ambos os lados da ronteira da organização, converte-se num mercado; manter alto seu valor de mercado será uma preocupação undamental do trabalhador nos cenários do uturo. As “boas empresas” de nossos dias não seriam já as que prometem uma estabilidade que não está ao seu alcance, mas aquelas que garantem a manutenção e o desenvolvimento de uma alta empregabilidade, ou que pelo menos acilitam, caso necessário, a recolocação de seus empregados excedentes, utilizando para isso os numerosos serviços de outplacement que começaram a ser oerecidos pela consultoria de recursos humanos. A capacidade de adquirir novos conhecimentos e habilidades será um ingrediente básico da empregabilidade. Processos contínuos de aprendizagem e desaprendizagem serão, por isso, consubstanciais em tais cenários. Do homo faber ao homo sapiens
A entrada na sociedade do conhecimento pressupôs a conversão do talento das pessoas num ativo crucial para as organizações (Obeso, 1999, p. 23 e seguintes). Este ato implica, por um lado, uma perda de peso do trabalho menos qualicado, que tende a mecanizar-se ou a ser providenciado ora. Por outro lado, tornou prioritária a captação e o desenvolvimento de trabalhadores qualicados, reqüentemente portadores da vantagem competitiva, cuja gest ão
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exige ormas e métodos muito dierentes dos que têm caracterizado as burocracias empresariais da era industrial. A capacidade de atrair, reter e motivar o talento impõe-se como um ator dierenciador da gestão contemporânea dos recursos humanos. A construção de uma boa “marca de empregador” concentra já os esorços daquelas empresas que perceberam que é necessário ser competitiva no mercado do trabalho qualicado para sê-lo também naquele mercado para o qual produzem seus bens ou serviços. O que acabamos de dizer não pode nos levar a ignorar, se não queremos incorrer numa evidente simplicação da realidade, a existência de nutridos mercados periéricos de trabalho, nos quais se realizam as transações que aetam a mão-de-obra de inerior qualicação. A necessidade de gerenciar adequadamente tanto a relação com esses mercados como as pessoas que nutrem esse segmento dos recursos humanos não pode ser ignorada. Esquecer dos “normais” – lembra Serlavós (1996, p. 10) –, sobre os quais descansa a responsabilidade de assegurar e dar continuidade aos “primeiros da classe”, é um erro pelo qual os gestores de pessoas costumam pagar muito caro. Por isso, a idéia, amplamente diundida e divulgada, de que as empresas começaram a travar uma “guerra pelo talento”, não está isenta de contestações. Peer (2001, p. 249 e seguintes) chama atenção para elas, destacando os seguintes possíveis eeitos negativos dessa orientação: a) a ênase no rendimento individual (gloricar as “estrelas”) pode criar concorrência interna destrutiva e enraquecer o trabalho de equipe; b) exaltar os talentos dos de ora pode subestimar os de dentro; c) pode produzir um eeito de proecia auto-cumprida, conseguindo azer com que certas pessoas cheguem a ser menos capazes depois de terem recebido sistematicamente menos atenção e recursos; d) tende a minimizar a importância das questões de ordem sistêmica e cultural e dos processos empresariais reqüentemente mais importantes para o sucesso do que o ato de encontrar o melhor, e e) pode desenvolver uma atitude arrogante e auto-satiseita (já ganhamos a guerra, o melhor pessoal é o nosso) que deteriore signicativamente a capacidade de percepção objetiva da própria organização. De qualquer modo, é indiscutível a armação de que em nossa época o talento das pessoas conta. Especialmente se não limitarmos nossa visão do talento à mera posse de conhecimento. O verdadeiro homo sapiens de nossos dias é aquele que, além de possuir conhecimento, dispõe da capacidade para contextualizá-lo, recriá-lo, aplicá-lo, codicá-lo, diundi-lo e compartilhá-lo. O que nos leva a um paradoxo, mais um, num universo como o do trabalho contemporâneo, repleto deles: nunca o conhecimento oi tão importante como hoje, e nunca como hoje, por contraditório que possa parecer, os componentes propriamente cognitivos do talento humano precisam ser, no entanto, mati-
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zados e relativizados. Os conhecimentos devem estar vinculados à posse de qualidades sem as quais não produzem sucesso no trabalho. Como veremos a seguir, nas situações de trabalho atuais a noção de qualicação se enriquece, deixa de identicar-se com os conhecimento técnicos especializados e se estende (Dalziel, 1996, p. 32 e seguintes) a um conjunto mais amplo de competências, no qual outras características humanas, especialmente as que possuem uma dimensão relacional, adquirem, cada vez mais, um signicado determinante (Longo, 2002). Os paradoxos de um mercado de trabalho global
Os países europeus têm vivido nos últimos anos um crescimento signicativo do desemprego, que se converteu na principal preocupação dos governos (Conselho Europeu, 1997). Alguns países, dos quais a França é o exemplo mais destacado, desenvolveram planos nos quais o setor público desempenhava um papel relevante nos processos de aprendizagem e inserção no trabalho, ligados a novas oportunidades de emprego. Ainda hoje, na Espanha, o desemprego é, de longe, como revelam as pesquisas, a principal preocupação dos cidadãos. Paralelamente, e de modo paradoxal, o crescimento da demanda de empregados qualicados excedeu, às vezes muito, a capacidade do mercado de trabalho para provê-los. A crise generalizada dos sistemas educacionais acentuou esse desajuste que, embora tenha aetado principalmente os trabalhadores do conhecimento, acabou estendendo-se a setores de qualicação média da indústria e dos serviços, insucientemente nutridos pelos sistemas regrados de educação prossional. Estudos recentes (Jiménez e outros, 2002) prognosticam para a Espanha, em poucos anos, como conseqüência principalmente da queda demográca, um excedente de postos de trabalho oerecidos em todos os setores da atividade econômica. Se isso or certo, estaríamos, por contraditório que possa parecer em relação ao quadro atual, diante de uma situação iminente de endurecimento da concorrência entre as empresas no mercado de trabalho, especialmente no que se reere, como já dissemos, à captação de pessoal qualicado. Esta concorrência se desenvolve num mercado cada vez mais global, o que acentua seus aspectos mais paradoxais. Embora em alguns casos vejamos um acirramento, como apontávamos, da concorrência entre empregadores pela captação e retenção de talento, em outros – onde a interace entre tareas e qualicações o permite – o que ca acirrado é a concorrência entre países e territórios pela captação das empresas, utilizando o custo do trabalho como
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elemento dierenciador. As práticas do que vem sendo chamado de dumping social (manutenção de salários baixos e condições de trabalho precárias para atrair investimentos) e os processos de “des-localização” de empresas (mudanças de sedes e de pessoal, à procura de custos de trabalho mais baixos) são enômenos característicos dessas situações. Alguns especialistas têm destacado o eeito de tudo isso sobre o recorte dos direitos trabalhistas e o enraquecimento da posição dos sindicatos (Giarini e Liedtke, 1996, p. 223). A reordenação do tempo de trabalho
A dimensão temporal do emprego passou para o centro do cenário, reestruturando as relações de trabalho (Supiot, 2001). No contexto empresarial ala-se de um novo sistema de concorrência centrado na economia do tempo, que leva em conta o tempo empregado para produzir bens, para inovar e para comercializar novos produtos e serviços (Beynon e outros, 2002, p. 122). A importância do tempo de trabalho vem se undamentando num conjunto de dinâmicas dierentes, e nem sempre interrelacionadas, que aetam tanto o sistema produtivo como o sistema social. Por um lado, os novos ambientes da empresa vêm exigindo, cada vez mais, uma capacidade fexível de resposta que as regulações padronizadas da jornada de trabalho não acilitam (Brewster e outros, 1997). As jornadas anualizadas – os contratos azem constar um número anual de horas de trabalho, permitindo certas futuações no horário mensal ou semanal para adaptar-se aos fuxos de demanda, estoques etc. –, as reservas de horas para trabalho imprevisto ou sazonal, a compensação de horas extras por tempo livre ou simplesmente o prolongamento não remunerado da jornada de trabalho – a mais comum e reqüentemente esquecida (Hegewish, 1999, p. 125) das modalidades de fexibilidade temporária – têm sido, entre outras, as órmulas cada vez mais utilizadas nessa direção. Por sua vez, a reordenação do tempo de trabalho abriu caminho para melhoras de produtividade que undamentaram algumas tentativas de redução da jornada de trabalho, nos moldes das políticas públicas de luta contra o desemprego. Um modelo de novo pacto social chegou a desenhar-se em torno da organização de tempo de trabalho. A França oi o país que apostou mais orte nisso, embora as mudanças políticas tenham levado a uma certa reconsideração da iniciativa. Os processos de mudança neste campo oram acelerados, por outro lado, por enômenos como a maciça incorporação da mulher ao trabalho, ou as necessidades, que têm aumentado, de conciliar o trabalho com a vida pessoal e amiliar, que estimularam modalidades de trabalho em tempo parcial, a dis-
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tância, e outras (Fundación Encuentro, 1998, p. 174; Giarini e Liedtke, 1996, p. 236 e seguintes). Esta não oi, no entanto, uma tarea ácil. Para alguns especialistas, os trabalhadores devem se esorçar hoje mais por conservar seus empregos e por manter seu próprio tempo privado e amiliar separado daquele que oerecem ao seu empregador (Perrons, 1998). Por sua vez, Sennett (2000, p. 61) destacou o caráter contraditório da fexibilização do tempo de trabalho, aparentemente desenvolvido de orma mais livre, mas igualmente controlado, embora de orma dierente: “Nas instituições, e para os indivíduos, o tempo oi liberado da jaula de erro do passado, mas está sujeito a novos controles e a uma nova vigilância vertical”. udo isso levou, nesse terreno, a processos de ajuste, nem sempre áceis, entre as necessidades empresariais e as preerência pessoais dos trabalhadores, cujo resultado tem sido, em geral, uma ampla diversicação e fexibilização dos modelos de jornada, que perderam uma boa parte da uniormidade e imutabilidade que caracterizava a ordenação dos tempos de trabalho nas empresas da era industrial. A empresa diversa, multicultural e individualizada
A globalização rompe as barreiras e intensica os movimentos da orça de trabalho através das ronteiras nacionais. Esta intensicação dos enômenos migratórios está transormando aspectos substanciais das sociedades contemporâneas, especialmente no primeiro mundo. A plena incorporação das mulheres ao trabalho se une ao surgimento de minorias sociais em atividades produtivas que antes lhes eram vedadas. Numerosas e dierentes identidades grupais coabitam nos mesmos ambientes de trabalho. A Divisão de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas inclui, na noção de diversidade social na esera do trabalho, as dierenças de gênero, raça, etnia, religião, orientação sexual e aptidão psicoísica, assim como as que emanam do substrato e dos status amiliar, econômico, educacional e geográco (Undesa-IIAS, 2001, p. 1). Certamente, não estamos mais alando apenas de atos que aetam os níveis baixos da estrutura de tareas das organizações, mas que começam a apresentar, como é inevitável num mundo globalizado, traços que se introduzem na gestão de prossionais e dirigentes e que atravessam toda a organização do trabalho. Estas situações transerem para a gestão das pessoas novas perguntas, a saber: como minimizar os aspectos negativos da diversidade sobre a capacidade dos grupos humanos para satisazer as necessidades de seus membros e uncionar com ecácia? Como, paralelamente, maximizar os eeitos positivos
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da diversidade sobre a criatividade, a qualidade das decisões e a maior participação na governabilidade organizacional? Como reduzir as dierenças entre os grupos de identidade concorrentes no lugar de trabalho e destacar os interesses comuns, ao mesmo tempo em que se avaliam e se apreciam as contribuições originadas justamente da diversidade social? Como assegurar uma adaptação rápida e suciente das políticas e práticas de pessoal a m de garantir que o trabalho se converta num ambiente acolhedor para empregados que no passado cavam excluídos? (Ospina, 2001, p. 21). A gestão da diversidade passa a converter-se assim num imperativo organizacional e num novo desao para os gestores. Por sua vez, incorpora novas oportunidades, que não devem ser ignoradas. A fexibilidade uncional exigida pela empresa atual, como assinalaremos mais adiante, requer a diversidade uncional, ou seja, a diversicação de características humanas relevantes para o desempenho, tais como as dierenças em conhecimentos, habilidades, capacidades, valores, atitudes, personalidade e estilos cognitivos e de conduta. Pois bem, alguns especialistas têm destacado que a diversidade uncional se nutre em boa medida da diversidade social, enquanto a resistência a admiti-lo reduz as oportunidades de encontrar as pessoas mais adequadas no momento devido (Schneider e Northcra, 1999). rata-se de enômenos que, como outros que temos apontado, não só requerem uma atenção especíca e o desenvolvimento de um instrumental de gestão ad hoc, como, principalmente, uma mudança de modelos mentais. Provavelmente, a própria noção de identidade grupal começa a car para nós insuciente para explicar a verdadeira diversidade da empresa contemporânea. A expressão “empresa individualizada” (Ghoshal e Bartlett, 1997) ala-nos de um passo a mais: o necessário para destacar o indivíduo como o verdadeiro protagonista da diversidade no trabalho. No undo, o que está acontecendo é que o trabalho humano deve começar a ser visto como um território povoado por pessoas, cada uma das quais – sem prejuízo das múltiplas identidades de grupo, reqüentemente assimétricas e sobrepostas, e dos aspectos comuns que as assemelham em certas coisas – apresenta características próprias. Cada trabalhador expressa interesses e preerências que se desprendem especicamente dessa individualidade. Podemos colocar isso da seguinte orma, embora soe redundante: as organizações de nossos dias necessitam cada vez mais de uma gestão personalizada das pessoas. alvez a biogenética resolva um dia o problema da diversidade da orça de trabalho, mas por enquanto o mundo do trabalho se tornou cada vez mais fuido, paradoxal, ragmentado, heterogêneo; e sua gestão, orçosamente, tende a se tornar cada vez mais fexível, individualizada e complexa.
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AS NOVAS ORIENTAÇÕES DA GESTÃO DAS PESSOAS Agora, sim, é o momento de nós nos perguntarmos sobre a infuência de todas estas mudanças nas convicções e nas tendências que caracterizam a gestão contemporânea das pessoas. rata-se de uma pergunta que não tem resposta ácil. Não existe atualmente um modelo indiscutível, um paradigma dominante ao qual possamos nos reerir; pelo contrário, a teoria da gestão de recursos humanos apresenta a aparência de um órum ou ágora na qual se entrecruzam debates e propostas de eição dierente. Apesar de tudo, é possível, sim, apontar para algumas tendências que, pela intensidade e extensão com que parecem estar infuenciando as práticas reais das organizações, podem ser vistas como enoques que transcendem as modas do management e merecem por isso ser consideradas como orientações de undo no período em que vivemos. Vamos a seguir apontá-las de modo breve e sistemático, advertindo que não se tratam de enoques antagônicos, mas reqüentemente complementares, embora não isentos de certos elementos contraditórios. A orma pela qual os apresentamos obedece à pretensão de introduzir uma sistemática que acilite a leitura, mas não implica desconhecer as abundantes inter-relações e sobreposições que existem entre eles. O lema da flexibilidade
Se uma única palavra pudesse servir como lema das orientações contemporâneas do emprego e dos recursos humanos, e isso tanto na literatura sobre gestão como nos ambientes acadêmicos e empresariais, essa palavra seria sem dúvida “fexibilidade”. Flexibilidade é um termo carregado de signicados possíveis que, como costuma ocorrer, entram às vezes em confito. Vale a pena, por isso, azer um esorço para esclarecer de que coisa, ou melhor, de que coisas estamos alando quando o utilizamos neste campo. O debate contemporâneo sobre a fexibilidade no trabalho inicia-se na Europa no nal da década de 1970 e no início da de 1980 (Farnham e Horton, 2000, p. 7), ligado a um conjunto de atos sociais entre os quais se encontram: 1) a mudança nos mercados mundiais e o incremento da concorrência global; 2) a mudança tecnológica, especialmente a registrada no campo da inormação e das comunicações; 3) a volatilidade dos mercados de produto; 4) o desemprego crescente, e 5) o trânsito da economia industrial para a chamada era pós-industrial. São cenários que aetam diversos atores sociais, em torno de um conjunto de questões como a educação e a ormação continuada,
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a legislação social, os sistemas salariais, a jornada de trabalho, a igualdade de oportunidades e a fexibilidade das organizações de serviço público (Comissão Européia, 1997). O paradigma da “empresa fexível” (Atkinson e Meager, 1986, p. 2-11), supostamente capaz de azer rente ao conjunto de desaos que derivam de t ais cenários, incorpora diversos tipos de fexibilidade no que se reere à gestão dos recursos humanos. A fexibilidade numérica, denida como a capacidade das companhias para ajustar o número de trabalhadores ou de horas de trabalho às mudanças ocorridas na demanda. A fexibilidade uncional, ou capacidade de reorganizar as competências associadas aos empregos, de maneira que os titulares dos postos possam desenvolvê-las através de um leque de tareas ampliado horizontalmente, verticalmente ou em ambos os sentidos. O “distanciamento”, concebido como a substituição de contratos de trabalho por contratos mercantis ou pela subcontratação, a m de concentrar a organização na vantagem competitiva ou encontrar órmulas menos onerosas de administrar as atividades não nucleares. A fexibilidade salarial, que se identica com a capacidade da empresa para conseguir que suas estruturas de retribuição estimulem a fexibilidade uncional, se revelem competitivas no que respeita às competências mais escassas no mercado de trabalho e recompensem o esorço e desempenho indi vidual dos empregados. ■
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Implícitas neste conjunto de enunciados (em sentido similar, Institute o Personnel and Development , 1994), encontramos duas visões da fexibilidade, presentes, em doses variáveis, nos processos e discursos de mudança dos sistemas de gestão das pessoas. Embora não se tratem, em sentido estrito, de vis ões reciprocamente excludentes, elas costumam corresponder aos enoques dominantes de gestão adotados em cada caso. A primeira dessas visões da fexibilidade ancora-se numa percepção dominante das pessoas como restrição e se centra na redução dos custos de pessoal. Ela combina com os discursos empresarias da reengenharia, da redução de pessoal (downsizing ), das competências-chave e da empresa em rede, e se orienta principalmente para a detecção e eliminação de excedentes e para a conversão dos custos de pessoal, xos em variáveis. A segunda visão tende a perceber as pessoas mais como oportunidade, e coloca a ênase na fexibilidade da Gestão de Recursos Humanos (GRH) como apoio à criação de valor por parte das pessoas. Sintoniza-se com os discursos empresariais da qualidade
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total (Fundação Européia para a Gestão da Qualidade, 1999), do nivelamento de estruturas e da promoção de autonomia pessoal para decidir ( empowerment ), ), ou com as práticas de alto desempenho (Peer, 1998b, p. 44 e seguintes), e se orienta principalmente para a melhora qualitativa das políticas de recursos humanos, especialmente das mais relacionadas com o envolvimento e o compromisso das pessoas. Em sentido análogo, az-se distinção entre uma gestão de recursos humanos “dura dura””, caracterizada por uma aproximação mais instrumental e uma ênase clara na minimização dos custos, e uma “branda”, integrada pelo conjunto de políticas destinadas a maximizar a integração organizacional, o compromisso dos empregados e a qualidade do trabalho (Storey,, 1995). (Storey 1 995). Sob um prisma dieren di erente, te, o das preerências e expectativas dos atores em jogo, outras duas visões são possíveis e necessárias (Ridley, 2000, p. 33). De um lado, do ponto de vista dos interesses das organizações, a fexibilidade se relaciona com os mecanismos por meio dos quais se consegue que as estruturas organizacionais, organizacion ais, os processos de trabalho t rabalho e as práticas de pessoal incrementem o controle dos gestores sobre os recursos humanos. De outro, a partir da perspectiva das pessoas, a fexibilidade tem a ver com as mudanças que habilitam os trabalhadores a exercer maior controle sobre suas vidas, como ocorre, para citar um só exemplo, com a relação entre a maternidade e o uso do emprego em tempo parcial. Levando em conta esta ambivalência, armou-se armou-s e que o desenvolvimento das novas modalidades de emprego fexível pode ser considerado em parte como o resultado da mútua interação de atores situados no lado da oerta e no da demanda (Beynon e outros, 2002, p. 123). Ambas as dimensões contribuem, em proporções a serem determinadas em cada caso, para as mudanças nos sistemas de GRH. Em algumas ocasiões, são perspectivas compatíveis e complementares que se reorçam reciprocamente. Às vezes, no entanto, entram em confito e obrigam os gestores a denir opções que privilegiam uma ou outra. Seja como or, a orientação dos sistemas de gestão do emprego e dos recursos humanos para a fexibilidade não deve se dar à custa da perda de continuidade e coesão. Um excesso de fexibilidade pode p ode produzir danos (Lundblad (Lundblad e outros, 1996), como um comportamento organizacional anárquico, uma liderança enraquecida pela diculdade de exercê-la sobre pessoas cujo vínculo com o posto é raco ou por uma cultura organizacional dispersa, ragmentada e pouco comprometida com o propósito comum. Mayrhoer (1996) utilizou o exemplo da coluna vertebral para tornar visível a necessidade de que as organizações adaptáveis combinem, em proporções adequadas, elementos fexí-
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veis e rígidos. Richards (1995, p. 16) nos lembra por sua vez que a fexibili dade não equivale à pura reatividade diante de estímulos externos, nem pressupõe a carência de uma estratégia de recursos humanos. Ao contrário, devem ser levadas em consideração as necessidades da política de pessoal a longo prazo e integrar as dierentes partes da gestão de recursos humanos num sistema mais fexível. Por isso, “[...] fexibilidade e estratégia não se contrapõem: se dão a mão”. A gestão por competência
As idéias sobre a gestão por competência impregnaram a GRH ao longo das duas últimas décadas, a ponto de alguns autores chegarem a alar de uma mudança de paradigma que substituiria uma organização baseada no posto por uma organização baseada nas competências (Lawler, (Lawler, 1994). A noção de competência aparece aparece na gestão contemporânea contemporânea dos recursos humanos a partir de uma série de estudos empíricos desenvolvidos nos Estados Unidos em princípios da década de 1970. Um artigo de McClelland em Te American Psychologist , do ano de 1973, é considerado por alguns como o momento undacional dessa orientação. Esses estudos constatam o vínculo existente entre o sucesso no trabalho (resultados obtidos pelas pessoas no trabalho) e a prática reiterada de uma série de comportamentos observáveis no contexto de sua atividade produtiva. A exploração e identicação desses comportamentos, assim como sua análise por meio de certas técnicas, os relacionam com a posse de determinadas qualidades ou características pessoais. É descoberta transcendente que tais qualidades vão além dos conhecimentos técnicos especializados, tradicionalmente considerados determinantes da qualicação prossional, para penetrar em motivos, traços de caráter, conceitos de si mesmo, atitudes ou valores, habilidades e capacidades cognitivas ou de conduta. Isso leva McClelland a desqualicar os exames e provas tradicionais como prenunciadores prenunciadores do sucesso no trabalho. A McBer Associates , consultoria criada por McClelland, elaborou para dierentes companhias norte-americanas modelos de competências baseados neste enoque. Em 1982, um dos membr membros os da McBer , Richard Boyatzis, desenvolv des envolveu eu por encomenda da American Management Association uma pesquisa cujo objetivo era identicar as competências que dierenciam os managers excelentes dos que produzem resultados meramente aceitáveis, e estes últimos dos menos bemsucedidos. Participaram deste estudo 1.800 dirigentes, titulares de 41 postos dierentess e pertencentes dierente p ertencentes a 12 companhias. A publicação desse estudo contém
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a denição, já clássica, das competências como “características subjacentes a uma pessoa, causalmente relacionadas com uma atuação de sucesso num posto de trabalho” (Boyatzis, (Boyatzis, 1982). Embora a pesquisa identicasse i denticasse dezenove competências genéricas que os dirigentes deveriam possuir (mais tarde esse dicionário genérico seria renado e ampliado por seu autor), Boyatzis enatizou desde o primeiro momento o peso do contexto contexto,, sublinhando a necessidade de denir modelos de competências próprios próprios de cada organização organização.. Em estreita relação com este enoque encontra-se a noção de “inteligência emocional”, popularizada pelo best-seller de Goleman (1996). A inteligência emocional oi denida como “uma orma de inteligência social que inclui a capacidade de manejar os sentimentos e emoções próprios e os dos outros, azer distinção entre eles e usar essa inormação como guia dos próprios pensamentos e ação” (Salovey e Mayer, 1990). Num desenvolvimento mais recente, em que esta noção oi aplicada à análise da liderança, sustentou-se que 80 a 90% das competências, que permitem distinguir os líderes que se sobressaem, pertencem ao domínio da inteligência emocional, e não às capacidades cognitivas (Goleman, Boyatzis e McKee, 2002, p. 306). A gestão por competência pressupõe sua utilização como um padrão ou norma para a seleção de pessoal, o planejamento de carreiras e a sucessão, a avaliação do desempenho e o desenvolvimento pessoal (Hooghiemstra, 1992). Este enoque converte as competências num eixo central dos sistemas de gestão das pessoas, tal como hoje são entendidas e praticadas num número crescente de empresas e organizações de todo tipo. Como já apontamos, entramos numa época em que os conhecimentos especializados adquiridos num certo momento vêm sua vida útil se reduzir progressivamente, progressivamente, enquanto os processos permanentes de aprendizagem e re-qualicação são vistos como inerentes ao sucesso no trabalho. Parece razoável pensar que as competências genéricas, que tornam possíveis esses processos de ajuste, podem chegar a ter tanta ou mais importância que o grau de saber técnico especíco possuído num momento dado. Se esta é uma refexão importante para os indivíduos, já que está ligada à sua empregabilidade, não o é menos para as empresas, cujo ativo humano será com reqüência tanto mais valioso quanto mais adaptável. Gerenciar por competências implica dedicar uma atenção prioritária aos elementos qualitativos do investimento em capital humano. Neste enoque encontram seu undamento conceitual algumas inovações importantes da gestão dos recursos humanos em nossos dias. Reerimo-nos a orientações que aetam os sistemas de organização do trabalho, como é o caso do desenho de postos em banda larga ( broadbanding ); ); os de incorporação, como se detecta no uso crescente da entrevista de incidentes críticos ou dos centros de avaliação
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assessmentt centers); os de desenvolvimento de pessoas, como ocorre com os (assessmen modelos de carreira horizontal, ou os de compensação, que incorporam crescentemente centemen te os planos de retribuição por competências. A todas elas iremos nos reerir mais adiante. O capital intelectual como vantagem competitiva
Embora a gestão por competência centre sua atenção, como vimos, nas pessoas e em suas qualidades e características individuais, a noção de competência serviu de base para orientações de gestão baseadas na dimensão coletiva daquelas, e em sua diusão e interiorização por parte da organização. Os conceitos de “competência distintiva” ou “competências-chave” ( core competences), extensamente diundidos, entre outros, por Pralahad e Hamel (1990, 1995), transerem do ambiente exterior para o interior da empresa, e undamentalmente para as pessoas, a refexão sobre a vantagem competitiva. Aquilo que a organização sabe azer melhor que seus concorrentes é a chave do sucesso. Em comparação com os produtos que a empresa é capaz de obter e lançar no mercado, suas competências-chave são mais estáveis e não diminuem com o uso. Pelo contrário, nas palavras dos autores citados, as competências aumentam quando são aplicadas e compartilhadas. A concorrência real entre as empresas, chega a dizer Hamel (1991, p. 83), numa rase que em espanhol parece um jogo de palavras, é a concorrência entre competências (N) 6. Ou, o que vem a dar na mesma: dierentemente dierentemente do que ocorre quando a concorr concorrência ência é entre produtos, a concorrência entre as empresas está diretamente relacionada com a aquisição, posse, diusão e aplicação de conhecimen conhecimentos tos e habilidades. A criação e manutenção de uma vantagem competitiva concebida desta orma depende não só da qualidade da soma dos recursos humanos individuais reunidos pela empresa, mas da própria capacidade desta última para aprender coletivamente. Os mesmos Pralahad e Hamel (1990, p. 82) identicam a core competence com “a aprendizagem aprendizagem coletiva, em especial sobre como coordenar diversas habilidades na produção e integrar fuxos múltiplos de tecnologias”. Por isso é importante que as empresas consigam converter-se em organiorganisations ons), em empresas capazes de criar zações que aprendem ( learning organisati conhecimento. Durante a década de 1990, obras como as de Senge (1992) e Nonaka e akeuchi (1995) desenvolveram esse enoque de gestão tendo a
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N: em espanhol, competencia entre competencias.
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aprendizagem organizacional como centro. Considerando que a aprendizagem, sem discutir sua dimensão grupal e seu impacto organizacional, é um enômeno protagonizado sempre por indivíduos, a relação dessas orientações com a gestão das pessoas ca evidente e estreita. As companhias que desejem ser “organizações que aprendem” deverão propor a si mesmas e desenvolver um conjunto de políticas e práticas de gestão cujo centro sejam as ações e relações humanas no interior da organização. Em estreito contato com tudo isso está a noção, diundida mais recentemente, de “capital intelectual”. Como assinalou Stewart (1997, p. 55), quando os mercados de capitais avaliam as companhias três, quatro ou dez vezes acima do valor contabilizado de seus ativos, estão dizendo simplesmente o seguinte: os ativos materiais de uma empresa baseada no conhecimento contribuem muito menos para o valor de seu produto ou serviço nal do que os ativos intangíveis, ou seja, os talentos de seu pessoal, a ecácia de seus sistemas de gestão, o caráter das relações com seus clientes etc. Estas coisas são, consideradas em conjunto, seu capital intelectual. Este capital deve ser gerenciado e sua gestão vai muito além do armazenamento e da manipulação de dados. Pode ser denida (Azúa, 1999, p. 67, citando Marshall e outros) como a “tarea de reconhecer um ativo humano enterrado na mente das pessoas, e convertê-lo num ativo empresarial que possa ser acessado e que possa ser utilizado por um maior número de pessoas, de cujas decisões depende a empresa”. Em outras palavras, a inteligência se torna um ativo quando adquire uma uti lidade externa ao livre fuxo das idéias no cérebro; quando se dá a ela uma orma coerente (um banco de dados, uma listagem postal, a agenda de uma reunião, a descrição de um processo); quando ela é capturada de uma orma que permita sua descrição, compartilhamento e exploração, coisas que seriam impossíveis se permanecesse dispersa. O capital intelectual é conhecimento útil empacotado (Stewart, 1997, p. 67). Como gerenciá-lo? Obeso (1999, p. 35 e seguintes), citando Davenport e Prusak, enumera quatro enoques reconhecíveis na prática empresarial: a) armazéns de conhecimento: o conhecimento é catalogado como algo “externo” aos seus criadores, e armazenado em documentos ísicos ou eletrônicos; b) acesso e transerência de conhecimentos: centrados no desenho de procedimentos para avorecer a transmissão de conhecimentos entre possuidores e usuários potenciais; c) ambientes avoráveis ao conhecimento : centram-se em criar consciência e receptividade cultural a respeito do uso e da transmissão de conhecimento; d) projetos de medição e melhora: sua ênase está nas técnicas de avaliação do conhecimento disponível.
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Sem dúvida, a gestão do capital intelectual tem um aspecto “duro” ( hard ), que está ligado ao uso das tecnologias: procedimentos de comunicação on-line, de prospecção de dados, sistemas especialistas etc. Sem prejuízo disso, seu centro se encontra muito próximo da gestão das pessoas, especialmente daquela gestão que se desenvolve em organizações de prossionais. Nahapiet e Ghoshal (1998) relacionaram os bons resultados das organizações na gestão do capital intelectual com sua riqueza em capital social interno – amplitude e densidade das redes internas de intercâmbios de conhecimento baseados na conança interpessoal e na existência de normas de reciprocidade. Essa aproximação realça os elementos próprios da gestão das pessoas como chave do sucesso. Anal, nenhuma intranet será capaz de criar conhecimento ali onde este não exista, ou de diundi-lo em contextos organizacionais nos quais os incentivos existentes estimulam mais a sua apropriação com exclusividade do que seu compartilhamento. As práticas de alto desempenho
Sob o lema de “alto desempenho” ou de “alto compromisso” (Lawler e outros, 1995) podemos agrupar um conjunto de orientações, políticas e práticas empresariais de gestão dos recursos humanos que tenham como objetivo a obtenção do máximo possível de alinhamento, envolvimento e produtividade dos empregados. O o condutor dessas políticas é a busca de maior grau de identicação entre as expectativas e preerências individuais e os objetivos de desempenho derivados da estratégia de empresa. O que az da empresa um lugar atraente para os empregados? Basicamente, a alta qualidade de três relações interconectadas: a relação entre os empregados e seus trabalhos; a relação dos empregados entre si, e a relação entre eles e suas cheas ( Great Place to Work Institute, 2003). Agrupamos aqui, sem pretensão de sermos exaustivos nem sistemáticos, algumas práticas de gestão destinadas a satisazer essas aspirações e melhorar assim os resultados empresariais.
O enfoque do empowerment ranserir para as pessoas uma esera tão ampla quanto possível de poder de decisão, e responsabilizá-las por isso, surge como conseqüência tanto da adoção de determinadas teorias sobre o comportamento humano, como de refexões derivadas da própria evolução do trabalho e das tecnologias, especialmente nos ambientes apropriados dos serviços.
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Assim, por um lado, uma crescente tendência de incorporar à gestão das pessoas aquelas teorias sobre a motivação que acentuam a identicação com a tarea (Hackman e Oldham, 1975, 1979) leva a salientar na medida do possível o signicado do posto de trabalho para a pessoa, assim como a percepção desta de ser responsável pela execução da tarea e dos resultados da reerida execução. Isso, por outro lado, mostra coerência com o incremento do peso dos serviços na economia produtiva, que implica a generalização de processos nos quais a produção e a distribuição se concentram e são protagonizados pelo indivíduo, em direta interação com o mercado. A própria qualidade do serviço prestado requer nesses casos uma ampliação signicativa da margem de decisão das pessoas. Nas organizações de prossionais que caracterizam a economia do conhecimento, essas exigências são sentidas de maneira particularmente intensa. A criação de equipes de trabalho autodirigidas (Peer, 1998b, p. 83) é uma das modalidades de empowerment que combina a descentralização da decisão com o estímulo da interação grupal. O trabalho em equipe, sem dúvida outro dos mitos de nossa época, revela-se particularmente necessário quando a complexidade do ambiente exige articular a combinação multiuncional de dierentes saberes técnicos em contextos não hierárquicos, como mecanismo adequado para produzir respostas de qualidade. Nonaka e akeuchi (1995, p. 160 e seguintes), entre outros, destacaram a relação das equipes com a produção de inovação. Quer tendo como destinatários indivíduos, quer equipes de trabalho, a descentralização do poder de decisão, substituindo o controle hierárquico pela autodireção, relaciona-se estreitamente com uma destacada tendência contemporânea do desenho de estruturas organizacionais, que consiste na eliminação de níveis de hierarquia intermediária. Essa eliminação de camadas (delayering ) nas cadeias de autoridade ormal das organizações expressa, ao mesmo tempo, a infuência do enoque do empowerment e a preerência por estruturas planas. Nestas, os fuxos de inormação ascendente, descendente e lateral circulam com maior velocidade e acilitam por isso a agilidade da resposta estratégica das organizações às mudanças cada vez mais reqüentes do ambiente empresarial.
A gestão do desempenho Atualmente os enoques sobre o desempenho das pessoas no trabalho tendem a superar as abordagens tradicionais, centradas na medição do rendimento, assim como os correspondentes debates em torno das técnicas e métodos de avaliação mais conáveis e válidos, e vão introduzindo orientações de
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gestão de caráter mais relacional, centradas no crescimento prossional das pessoas. Estes novos enoques do desempenho são coerentes, por um lado, com a desconança, própria de nossa época, nos arteatos centralizados próprios das burocracias taylorianas; por outro lado, se assentam em concepções dinâmicas do desempenho, que o vinculam ao desenvolvimento do potencial das pessoas. Em concordância com tudo isso, a gestão do desempenho prossional tende a ser vista cada vez mais como uma orma de estimular as competências e a motivação dos empregados para a obtenção de melhoras de desempenho (Spencer e Spencer, 1993, p. 264 e seguintes), e não apenas como um conjunto de técnicas de medição cuja utilidade é acilitar a aplicação de medidas administrativas (retribuir, promover, punir etc.). Nestes enoques, o dirigente de linha ou supervisor imediato passa a desempenhar um papel undamental, já que recai sobre ele a transormação das prioridades organizacionais em padrões e objetivos de desempenho individual dos empregados sob sua esera de autoridade, assim como a adequada comunicação dos padrões e objetivos e a obtenção do compromisso das pessoas em torno da sua consecução. As melhoras do desempenho consensuadas entre ambas as partes constituem o eixo de uma relação sustentada na qual são postas à prova as habilidades interpessoais e sociais dos dirigentes. A obtenção de melhoras no desempenho decorre, cada vez mais, do crescimento prossional das pessoas, ou seja, do desenvolvimento de suas competências, especialmente daquelas que apareçam em cada caso como decitárias. O coaching , ou atividade destinada a orientar, acilitar e apoiar esse desenvolvimento, converte-se às vezes, nesse contexto, em parte da unção de dirigir equipes humanas. A ênase em vincular a apreciação do desempenho ao desenvolvimento das pessoas produz, sem prejuízo do papel undamental dos comandos hierárquicos, que temos destacado, a extensão de novos métodos de avaliação, que ampliam o universo de atores que participam da mesma. Em particular, a avaliação de 360 graus, que converte em avaliadores os superiores, subordinados, colegas e inclusive os clientes e ornecedores, internos ou externos, é uma prática utilizada já por um número crescente de empresas, reqüentemente no contexto de experiências de gestão da qualidade. Sua utilidade reside principalmente no potencial identicador de áreas de melhora e de desenvolvimento pessoal e prossional que oerece às pessoas e às equipes de trabalho. odas essas práticas exigem cenários de trabalho distintos dos que caracterizavam as burocracias empresariais da era industrial. Para s eu enraizamento e diusão, são necessárias culturas organizacionais mais horizontais e partici-
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pativas, cujo surgimento não pode ocorrer de uma hora para outra. Neste mesmo capítulo aremos reerência a esses novos modelos de cultura empresarial.
A retribuição vinculada ao desempenho O que dissemos não é obstáculo para constatar, como característica das práticas de gestão das pessoas em nossa época, um incremento apreciável do uso dos mecanismos de retribuição variável ou contingente. Um grande número de empresas, seguindo uma evolução ascendente nos últimos anos (Esade, 2000), incorporaram mecanismos de retribuição variável aos seus sistemas de compensação. A obtenção de maior eqüidade, entendida como equilíbrio entre a contribuição e o salário, o incentivo do esorço individual ou de grupo e o reorço da percepção de pertinência e envolvimento com o projeto empresarial são os objetivos subjacentes à generalização dessas práticas e que se maniestam nas dierentes ormas que assumem. Em muitas ocasiões, a remuneração se vincula à consecução de determinadas metas de desempenho individual, como incentivo ao esorço. Embora esta seja uma prática generalizada na compensação do trabalho de diretores e em outras áreas da empresa, como as comerciais, alguns autores (Peer, 1998b, p. 199; Serlavós, 1996, p. 8) destacam os perigos que com reqüência aparecem na sua aplicação, devido à interdependência e ao caráter multidimensional que o desempenho humano costuma apresentar no trabalho, às grandes diculdades para realizar uma avaliação objetiva, à obstinação em converter em custo variável a retribuição antes de criar as condições necessárias para isso e aos riscos de deterioração das relações interpessoais no ambiente de trabalho. Esses problemas, unidos às características da organização do trabalho ou às limitações dos sistemas de contabilidade analítica, assim como à pretensão de estimular a cooperação para se obter resultados, levam à crescente adoção da remuneração variável de caráter grupal, prática que converte as equipes de trabalho, e não os indivíduos, em destinatárias da avaliação e compensação por desempenho. Embora esses incentivos sejam às vezes vulneráveis ao comportamento oportunista ( ree riding ), revelam-se geralmente de mais ácil aceitação e aplicação do que as recompensas de caráter individual. A vinculação da compensação aos resultados de uma unidade organizacional ou divisão, ou então aos resultados globais da empresa (participação nos lucros), são outras órmulas de retribuição variável em alta. Sua lógica subjacente é reorçar o vínculo das pessoas com o projeto empresarial, assim como
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permitir o pagamento de salários altos e competitivos nos momentos em que isso é compatível com a conta de resultados.
A ênfase na formação As empresas dedicam à ormação de seu pessoal um volume crescente de seus recursos. Embora os orçamentos de ormação continuem sendo em muitos casos os que sorem os primeiros cortes em momentos de diculdade nanceira, o aumento do peso da ormação entre as práticas de gestão de recursos humanos é um ato vericado (Esade, 2000). Em parte, esse ato se deve à necessidade de adaptar as habilidades e destrezas dos empregados à evolução das tecnologias, ao surgimento de novas demandas ou simplesmente à necessidade de garantir as mais altas cotas de qualidade nos produtos ou serviços. Em particular, a aceleração da mudança tecnológica está sendo nos últimos anos um impulso decisivo para o aumento da despesa das empresas em ormação. udo o que oi dito antes sobre as competências como vantagem competitiva pode servir de pano de undo para esse enômeno. Práticas como o mentoring , que consiste no emparelhamento de empregados com tutores especializados que podem transerir-lhes sua experiência, habilidades e hábitos de trabalho (Murray, 2001, p. 66), estão começando a se enraizar em algumas empresas, e se aplicam ao desenvolvimento prossional, à atualização de habilidades técnicas, ao planejamento da sucessão e a outros campos da gestão das pessoas. O indubitável crescimento do peso da ormação não nos deve levar a ignorar que algumas tendências do ambiente atual desempenham às vezes um papel mais minimizador ou restritivo do esorço empresarial neste sentido. Assim, a própria rapidez da mudança tecnológica, com suas constantes demandas de atualização, pode reduzir a utilidade do investimento interno em ormação e estimular ao contrário a compra de habilidades externamente. Por outro lado, o crescente uso da contratação temporária e a denição, em certas partes da estrutura das empresas, de políticas de alta rotação, tendem a reduzir em alguns casos o retorno do investimento em ormação, desestimulando o esorço empresarial neste campo (Beynon e outros, 2002, p. 117; Cappelli e outros, 1997, p. 123). Outro ângulo da questão tem a ver com a necessidade de satisazer as expectativas dos empregados em obter o nível mais alto possível de qualicação. Em contextos nos quais, como vimos, o emprego estável tende a ser substituído pela empregabilidade, a empresa se converte para muitas pessoas na escola em
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que podem aprender e desenvolver competências de alto valor no mercado, e onde têm garantida uma atualização das habilidades que permitem manter a própria competitividade individual (Groot e Maassen, 2000). Do ponto de vista da imagem transmitida pelas companhias, o investimento em ormação pode ser visto como uma aposta em manter o valor do capital humano da empresa, em lugar de opção por políticas de alta rotatividade, baseadas na procura constante no mercado de trabalho das competências que estejam altando. Da perspectiva do envolvimento das pessoas, isto constitui um sinal de que esse novo contrato psicológico, de que alávamos, não é simplesmente um slogan vazio, invocado pelas empresas para embelezar um contexto de precariedade de trabalho.
A empresa participativa e aberta A necessidade de atrair, reter e motivar as pessoas de alta qualicação prossional – com reqüência possuidoras de seu próprio projeto individual de carreira – em cenários nos quais aumenta a concorrência pelo talento nos mercados de trabalho, caracteriza nossos tempos e é cada vez mais considerada pelas empresas da economia do conhecimento. Em alguns casos, tais percepções estão começando a transormar as pautas da relação das companhias com esses prossionais, muitas delas de modo ainda incipiente e não extensível à maioria das empresas, mas palpáveis como tendência de undo. Alguns especialistas têm destacado a relação entre estas transormações e a orientação para a fexibilidade trabalhista, coerente, como temos visto, com o novo “contrato psicológico”. A elasticidade do emprego perseguida pelas empresas tem suas contrapartidas. Num ambiente fexível, as pessoas “têm o direito de minimizar o risco de se verem num beco sem saída, ou num emprego inseguro” (Waterman e outros, 2000, p. 410). Isso implica acilitar o acesso à capacitação e às oportunidades de trabalho necessárias para se manter em dia. Essa orientação implica não apenas, como apontamos antes, um aumento signicativo do investimento em ormação, mas também uma ampliação da esera de decisão das pessoas sobre como dirigir o uso da oerta ormativa e aplicá-la ao seu próprio desenvolvimento prossional e a suas perspectivas de carreira. A gestão autônoma das carreiras se vê potencializada quando a empresa incorpora e coloca à disposição de seus empregados mecanismos de avaliação de sua competência e de seu potencial, ajudando-os a identicar as linhas de desenvolvimento mais adequadas. Este enoque é coerente com um signicativo aumento da transparência com que a empresa deve congurar suas relações com os empregados. ratá-
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los como adultos implica às vezes compartilhar com eles inormação sensível, de um modo que se choca com percepções convencionais da gestão do pessoal. Algumas vezes, essa abertura inormativa aeta questões relacionadas com o andamento do negócio, questões tradicionalmente reservadas a círculos muito próximos da direção. Alguns dirigentes de empresa começaram a se dar conta de que exagerar no âmbito do condencial equivale a passar para os empregados a mensagem de que o projeto empresarial é, no undo, de alguns poucos. O contrário tem, é claro, seus riscos, mas muitas vezes é inevitável quando se dá prioridade ao ortalecimento e extensão do compromisso dos prossionais. Por razões similares, algumas empresas começaram a colocar à disposição de seus empregados, ou de alguns deles, inormações relacionadas com a possibilidade de desempenhar outros trabalhos disponíveis no interior da própria empresa, e a acilitar processos de ormação cruzada ( crosstraining ) que permitam o acesso a eles. ais práticas complicam a gestão interna do emprego e a mobilidade, ao incrementar a parte desta que gravita em torno de decisões autônomas dos empregados, mas ao mesmo tempo acilita para eles a gestão de suas próprias carreiras, e contribui para aumentar a satisação no trabalho. Mais contra-cultural ainda se mostra a política, adotada incipientemente por certas companhias, de acilitar aos seus empregados inormação disponível sobre oportunidades de emprego no exterior e apoiar até as iniciativas que perseguem uma melhora prossional ora da empresa. Deve a empresa avorecer o progresso prossional de seus trabalhadores à custa de perder, talvez, os melhores? Algumas contribuições recentes respondem armativamente, indicando que as organizações podem sentir em certos casos a necessidade de compensar os empregados pela carência de oportunidades de promoção interna, oerecendo-lhes oportunidades de desenvolver sua empregabilidade, mesmo quando essa política ajuda os indivíduos a deixar a organização e encontrar outro emprego, e considera esse enoque como uma estratégia de recrutamento que avorece a posição da empresa no mercado de trabalho (Beynon e outros, 2002, p. 121). Pode-se dizer que as empresas que agem assim – elas são, é claro, uma exígua minoria – admitem que as perdas concretas assim produzidas são compensadas por uma queda das ciras agregadas de rotação, por uma parte, e por um aumento na capacidade de atração de novos empregados, por outra, como conseqüência da melhora na imagem da empresa como empregadora. A construção dessa imagem de marca ( employer branding ) é, como dissemos, uma das tendências do momento. A construção de uma boa reputação no mercado de trabalho, capaz de atrair e reter o talento (Echeverría, 2002, p. 195), é construída combinando políticas de gestão das pessoas que satisaçam preerências dos empregados. O sucesso recente dos chamados planos de
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compensação à la carte, que personalizam a retribuição combinando percepções salariais e extra-salariais segundo a vontade do receptor, responde a esta lógica. Em suma, a autonomia, a fexibilidade, a transparência, a participação, o desejo de crescimento prossional, a percepção de poder conseguir uma alta empregabilidade, são, nas empresas da sociedade do conhecimento, algumas das expectativas individuais que a gestão das pessoas deve levar particularmente em conta. A redefinição da função de recursos humanos
A conguração e o papel da unção de recursos humanos nas organizações são um dos temas recorrentes na literatura especializada (Fitz-Ens, 1990, 1997; Ulrich, 1997; Mohrman e Lawler, 1998). Nas empresas, vai se consolidando de maneira desigual o que costuma ser chamado de trânsito da administração de pessoal para a gestão dos recursos humanos (Beer, 1998). A primeira descre ve uma unção indireta, de segunda ordem, concebida como um mero apoio às atividades empresariais verdadeiramente criadoras de valor: a produção, as nanças, as vendas. O administrador de pessoal realiza atividades necessárias – pagar a olha e os seguros sociais, contratar, exercer o controle de presença, organizar as érias e licenças – porém meramente aplicativas e despojadas de substância própria. Quando muito, deve enrentar a solução de alguns confitos interpessoais ou coletivos, ou até cuidar das relações trabalhistas comuns, mas mesmo nesse caso a nalidade é evitar os problemas que impeçam o uncionamento normal da organização, não lhe cabendo incorporar ao acervo estratégico grandes iniciativas e políticas de pessoal. A superação desse estado de coisas, é preciso insistir nisso, é desigual. Em muitas organizações encontraríamos ainda versões da unção de dirigir pessoas que reproduzem em boa medida o modelo descrito. No entanto, há dados reveladores de uma tendência para a potencialização da unção de recursos humanos. Entre eles, cabe citar: a) um desenvolvimento notável do instrumental técnico produzido neste campo e à disposição dos gestores. Algumas de suas maniestações concretas oram mencionadas anteriormente; b) um incremento, exigido pelo anterior, da qualicação prossional dos especialistas em recursos humanos. Esta evolução trouxe consigo novos requisitos de multidisciplinaridade; c) uma conexão crescente das políticas e práticas de gestão das pessoas com as prioridades estratégicas das empresas;
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d) uma elevação do posicionamento interno das unidades especializadas de recursos humanos na estrutura de autoridade ormal das organizações. Atualmente, e partindo dessa evolução, a literatura especializada parece concordar na existência de um desao aplicável à maior parte das situações reais: o de superar uma visão dos departamentos de recursos humanos e dos prossionais que os integram como “especialistas alheios ao negócio”, necessários para resolver problemas e enrentar decisões, com reqüência importantes, em âmbitos que só eles conhecem, mas aastados em boa medida do fuxo principal de ações e decisões centrais da organização. A superação dessa situação tenderia a se produzir por meio de processos que podem ser vistos como uma dupla aproximação, de sinal inverso mas coincidente, por meio da qual a unção de recursos humanos se aproxima do mencionado eixo central do management da empresa e por sua vez este eixo central se desloca, aproximando-se da unção de gerenciar pessoas. No que se reere à primeira aproximação, torna-se cada vez mais evidente não só que as políticas de gestão do emprego e das pessoas têm de ser coerentes com as prioridades estratégicas da organização, como também que a própria denição destas últimas deve se basear em análises dinâmicas da capacidade interna, nas quais a dimensão humana é reqüentemente a variável undamental. A denição do caminho que deve ser seguido a cada momento precisa levar em conta os cenários presentes e uturos de disponibilidade, quantitativa e qualitativa, de capital humano. A presença da perspectiva de recursos humanos no interior mesmo dos processos de refexão estratégica se congura assim como uma chave do sucesso empresarial. Esta aproximação conduz os prossionais de recursos humanos a um grau cada vez mais alto de vinculação ao negócio, o que implica tanto um maior conhecimento como um envolvimento pessoal maior no andamento do negócio. A expressão “sócio estratégico”, que prolierou no jargão mais recente do ramo, traz implícita essa consideração dos especialistas em gestão das pessoas como verdadeiros homens e mulheres de empresa, comprometidos com a conta de resultados e plenamente integrados à tripulação que pilota o projeto coletivo. Como armam com eloqüência Beatty e Schneier (1998, p. 83), “devem estar no campo, no jogo [...], não nas linhas laterais treinando [...], e menos ainda do outro lado das portas do estádio, contando o número de pessoas presentes”. Peer (1998a, p. 214) encara-os como encarregados da conexão entre o pessoal e os lucros, o que os distancia de uma prática de “atuar como policiais, reorçando leis e políticas”, mas adverte que no uturo eles não serão meros servidores das nanças e que contribuirão com sua própria visão das coisas.
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Quanto à segunda das aproximações citadas, podemos dizer que os dirigentes de linha da organização, desde o vértice estratégico até o escalão inerior de sua cadeia hierárquica, precisam abraçar a gestão de recursos humanos, assumi-la como sua. Num ritmo não espetacularmente rápido, mas sustentado, vai aumentando a responsabilidade da cadeia de direção de linha nas decisões sobre pessoal (Esade, 2000, p. 9 e seguintes). Um dirigente é cada vez mais visto e valorizado como líder de uma equipe humana, o que implica que deve assumir a responsabilidade pelos resultados cuja conquista requer gerenciar o desempenho das pessoas sob seus cuidados. Por sua vez, isso vai exigir que a competência e a motivação dessas pessoas sejam maximizadas, não só por especialistas situados a distância e por meio de um repertório de instrumentos globais e impessoais, como, principalmente, por meio de um jogo de relações articuladas a partir da proximidade. A gestão das pessoas oi se convertendo numa unção diretiva. Para entender totalmente as implicações desse ato, devemos levar em conta que hoje a direção de pessoas é uma atividade não só mais importante, mas também mais diícil do que jamais oi. A direção de pessoas deve proporse a maximizar o talento e o compromisso dos empregados mais qualicados e autônomos, cuja percepção de pertinência se tornou mais diusa, e azê-lo dentro de ambientes de incerteza, instabilidade, risco e reciprocidade atenuada, que não são nada áceis de manejar. Esses cenários tornam a tarea diícil e também exigem dos dirigentes a aquisição de competências que implicam, de um lado, o conhecimento de um instrumental básico de gestão das pessoas e, de outro, e principalmente, o desenvolvimento de habilidades interpessoais e sociais que não aziam parte do elenco de qualidades que tradicionalmente eram consideradas próprias da unção de dirigir. Essa evolução, a respeito da qual existe um amplo consenso entre os especialistas, obriga a reormular o elenco organizacional da unção de recursos humanos nas organizações. O novo protagonismo dos dirigentes exigirá que avoquem uma boa parte das tareas anteriormente assumidas pelo departamento de recursos humanos. Ulrich (1997), baseando-se num estudo que projeta um modelo de atribuições de recursos humanos sobre várias experiências empresariais, mostrou como em quase todos os casos os supervisores diretos oram assumindo parcelas crescentes da unção de gerenciar pessoas. Essa unção se estende, como o próprio autor destaca, aos próprios empregados, que devem ser cada vez mais considerados como “proprietários” daqueles subsistemas de gestão que lhes incumbem diretamente, como os que aetam seu próprio desenvolvimento, sua carreira prossional e portanto a empregabilidade de que alávamos antes. Além destes, outros atores oram sendo incorporados a esse
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elenco, como os consultores de processo, as empresas que ornecem serviços especializados de gestão de recursos humanos em regime de outsourcing , ou as próprias tecnologias de inormação e as comunicações, que substituem hoje os prossionais de recursos humanos naquelas tareas mais padronizadas e repetitivas, do mesmo modo que ocorre em outras áreas da gestão empresarial. Esse novo elenco da unção de gerenciar pessoas levou a uma redenição do papel dos diretores e departamentos de recursos humanos nas organizações. Mais que gestores diretos de políticas, processos e práticas de pessoal, eles deverão ir se convertendo em provedores de serviços especializados que têm como destinatários os dirigentes, transormados por sua vez em “clientes internos”. Os novos lemas com que a literatura do management tem batizado a unção de recursos humanos expressam essa dimensão de apoio ( consultor interno), de assessoria (assessor de investimento em capital humano ) e de estímulo à inovação (agente de mudança). Os processos de descentralização da unção de gerenciar pessoas que são inerentes a tudo isso maniestam-se na realidade de orma muito heterogênea, e são aetados por diversos atores de contingência (o tamanho da organização, sua história e cultura, a tecnologia utilizada para produzir, o ambiente etc.), mas refetem orientações proundas de nossa época. Nesse contexto, a gestão dos recursos humanos ganha um novo valor, já que se converte num ingrediente básico da unção de dirigir as organizações, do alto até a base. alvez por isso, Bill Hewlett, um dos dois undadores da empresa Hewlett Packard, denia já há muitos anos a missão de seu departamento de recursos humanos como a de “melhorar a qualidade da direção”.
2. O QUE O EMPREGO PÚBLICO TEM DE DIFERENTE. A FUNÇÃO PÚBLICA Até que ponto a situação e as tendências indicadas no capítulo anterior são o resultado de sua aplicação às administrações públicas e, em geral, ao conjunto das organizações do setor público? Mais adiante, no capítulo 5, buscaremos passar em revista as orientações atuais da gestão pública das pessoas nas democracias do mundo desenvolvido. Podemos adiantar que boa parte das tendências descritas estão presentes nos processos e nos discursos de mudança produzidos no setor público. As transormações no mundo do trabalho infuem, de orma inquestionável, no emprego público, ainda que em maior ou menor grau. Os novos enoques de gestão de recursos humanos nas empresas alimentam os planos de modernização da gestão pública. A literatura da gestão empresarial é cada vez mais conhecida e valorizada pelos gestores públicos. A globalização da inormação aumenta a simultaneidade e a uniormidade com que as novidades são conhecidas e compartilhadas em contextos nacionais dierentes e distantes, inspirando linhas de intervenção requentemente coincidentes. A expansão das órmulas de colaboração público-privadas na gestão pública contemporânea acentua essa intercomunicação. Por tudo isso, o panorama esboçado no primeiro capítulo pode ser visto como um pano de undo onde os especialistas em gestão pública de recursos humanos reconheceriam algumas de suas aspirações, linhas de trabalho ou, simplesmente, preocupações. No entanto, uma aguçada consciência da dierença continua caracterizando, em muitos casos, aqueles que se ocupam desses temas no âmbito público, seja a partir da própria gestão, seja do ponto de vista da refexão acadêmica que tem a administração como objeto. Uma parte da explicação pode ser provavelmente atribuída ao caráter ainda emergente que, em muitos países, caracteriza o management público. O tratamento predominante dos grandes temas do setor público nutre-se, em alguns países, de disciplinas que analisam a realidade de pontos de vista e com instrumentos muito dierentes. Concretamente, na Espanha, a perspectiva do direito público, predominante, conere à maior parte das análises que versam sobre a realidade das administrações públicas uma dimensão ormalista, que se nutre de um constructo teórico nascido precisamente da armação da dierença entre o público e o privado. rata-se de uma contraposição radical, no sentido mais próprio do adjetivo: pertence à raiz das coisas e, ainda que nascida como elaboração teórica, acabou por impregnar proundamente a cultura administrativa dominante.
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Um exemplo servirá para ilustrar o que armamos. A metáora government is a business (o governo é um negócio), utilizada por Michael Barzelay (1995, p. 17), oi diundida nos Estados Unidos durante a presidência de Woodrow Wilson, por aqueles que não queriam o spoils system e se opunham ao avorecimento nas contratações, à liberalidade nos controles nanceiros ou à debilidade dos mecanismos de prestação de contas. Pois bem, na Espanha, para expressar tais valores, costuma-se utilizar justamente a metáora oposta: “o governo não é um negócio”. Como dissemos em outro lugar (Longo, 1995, p. 7), o paradoxo, além de provocar um sorriso, conduz à refexão. Aquilo que é empresarial, tido em princípio como sinônimo de rigor, responsabilidade, controle e prossionalismo, parece satanizado em nosso contexto, como equi valente ao contrário. A concepção do que é público como um universo regido por valores próprios, substancialmente distintos, e mesmo opostos, daqueles que regem a atividade das organizações privadas, constitui um refexo cultural proundamente arraigado em nossa cultura administrativa. À margem das dierenças que possam existir entre os dois mundos, o que muda habitualmente é o olhar com que contemplamos cada um deles. Nem tudo se reduz a isso, sem dúvida. Em parte, a consciência da dierença baseia-se também na comprovação da distância realmente existente entre as duas eseras, privada e pública, em especial na orma como em uma e na outra interage o binômio estabilidade/mudança. Constatam-se assim atos como a orma diluída com que muitas tendências de mudança são interiorizadas e vi vidas no âmbito público, o predomínio da retórica sobre o desejo de inovação ou a diculdade e a lentidão com que os sistemas e as organizações públicas evoluem. A aceleração das mudanças é uma característica das sociedades contemporâneas, que o mundo do trabalho humano viveu, como já vimos, com especial contundência. Ao lado do ritmo vertiginoso das transormações sociais, o movimento das organizações públicas é, em geral, consideravelmente mais lento e gradual. O que az com que, em alguns aspectos, como a estabilidade do emprego ou a rigidez na denição das tareas, a brecha entre o emprego público e o privado seja hoje, pelo menos em alguns países, muito maior do que alguns anos atrás. Como diria a rainha de copas de Alice, os sistemas públicos e suas organizações não correram sucientemente depressa para poderem manter-se no mesmo lugar. Na consciência social, esta percepção da dierença está diundida desigualmente, e pensamos que sem exceção, em todo o mundo. A visão dos uncionários públicos como trabalhadores privilegiados e pouco produtivos az parte do imaginário popular de todos os países. Faz parte habitual dessa imagem a impressão de que as regulamentações, de um lado, e a primazia da
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política, de outro, conguram um mundo em que a ecácia e a eciência das políticas e práticas de pessoal são diíceis e estão particularmente ausentes. A explicação mais consistente para tudo isso undamenta-se na existência de um marco institucional próprio do emprego público, com o que as democracias contemporâneas lhe atribuem determinadas características especícas. Esse marco institucional é chamado, na Espanha e em outros países da Europa continental, “unção pública”, enquanto que, no mundo anglo-saxão e, por extensão, em outras regiões, como em muitos países da América Latina, utiliza-se a expressão “serviço civil”. Dedicaremos este capítulo a analisar em que consiste esse marco institucional, adotando para isso, de preerência, a expressão unção pública, mas tratando-a como sinônimo e alternativa a serviço civil.
O QUE É A FUNÇÃO PÚBLICA Possíveis aproximações ao conceito
O primeiro problema que nosso objetivo propõe é o de precisar a que nos reerimos quando alamos de unção pública. A expressão é reqüentemente utilizada com signicados dierentes. Esta circunstância obriga-nos a aludir brevemente às dierentes acepções do conceito, para precisar aquela que adotaremos. Para isso, começaremos por passar em revista as principais tentativas de encontrar base conceitual para a delimitação entre a unção pública e o emprego que carece de tal condição e que caria situado, portanto, ora do marco institucional cuja natureza buscamos precisar. O critério da natureza das normas
Uma primeira aproximação, de nítido conteúdo jurídico e sobretudo relativa à Europa continental, identica o conceito atendendo ao caráter das regulamentações que lhe servem de undamento. Seria unção pública aquela parte do emprego público regulamentada por normas de direito público, dierentes das leis civis ou trabalhistas que regulamentam o resto do trabalho por conta de terceiros na sociedade. Esta é a abrangência com que se concebe na Espanha (Palomar, 2000; Sánchez Morón, 1996) e na França (Ziller, 1993; MAP, 1997) a unção pública, regida por um estatuto próprio, distinto do que se aplica ao emprego comum.
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Essa aproximação parece ter pouca utilidade para nossos propósitos, já que é meramente ormal. Ao não precisar os conteúdos, ela omite a dimensão, a intensidade e a extensão com que tais regulamentações singulares se distanciam das civis ou trabalhistas, razão pela qual o conceito carece de ecácia delimitadora. De ato, a noção nos levaria a incluir na suposição tanto os modelos de emprego público que, como no caso espanhol, se baseiam em um extenso código de regulamentações especícas, elaboradas sobre pautas muito distintas daquelas que regem o emprego comum, quanto por exemplo o holandês (Van der Krogt e outros, 2000), onde a proximidade material entre as regulamentações dos dois regimes é considerável. De outro lado, o emprego público de natureza trabalhista, nos casos em que existe a distinção, não deixa de estar normalmente submetido a regulamentações as quais, como garantia de princípios constitucionais aplicáveis a todo o emprego público, tornam sua gestão semelhante à daquele que teria caráter propriamente uncionarial, o que contribui para tornar ainda mais conuso o critério delimitador. O critério da natureza da relação de emprego
Uma segunda via, próxima à anterior, leva-nos a distinguir o caráter normativo do caráter contratual da relação existente entre o empregador e o empregado. Assim, caracterizaríamos a unção pública como um sistema no qual os conteúdos dessa relação estão estabelecidos legalmente, e são administrados pelo empregador público, em boa parte, de orma unilateral. Fora dele cariam os pressupostos, normais no mundo do trabalho, nos quais o conteúdo da relação de emprego se estabelece contratualmente, mediante negociação individual ou coletiva entre o empregador e os empregados. A distinção perdeu, em nossos dias, boa parte da orça delimitadora que pode ter tido em seu momento. Nas últimas décadas a interpenetração dos uni versos jurídicos do direito administrativo e trabalhista levou a uma conguração consideravelmente híbrida do emprego público (Cassese, 1994, p. 206). Como veremos mais adiante, o incremento da participação sindical e a negociação das condições de trabalho azem parte das tendências predominantes nos países do mundo desenvolvido e coexistem com marcos normativos estatutários em que os diversos elementos da relação de emprego são denidos pelo legislador. De outro lado, como acabamos de dizer, também o emprego público trabalhista contém, sem prejuízo de sua substância contratual, áreas nitidamente regulamentadas. Na Espanha, esse caráter híbrido da relação uncionarial é uma realidade amplamente constatada, que introduziu uma considerável ambigüidade no sistema de ontes, como mostra a jurisprudência recente.
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O critério da natureza das funções desempenhadas
Uma terceira orma de abordar a questão leva-nos a ver a unção pública como o sistema de emprego próprio de uma parte dos empregados públicos: aqueles que desempenham unções relacionadas com o exercício de poderes públicos, dierentemente de outros, cujas unções não lhes exigem tais aculdades. O caso típico seria o dos Beamte alemães7, únicos aos quais se aplicam os “princípios tradicionais do serviço civil prossional” (Röber e Löer, 2000, p. 117) e que representam, aproximadamente, 40% do emprego público na Alemanha. A distinção é importante por várias razões. Primeiro, porque a noção de poder público ou imperium oi historicamente relevante para construir a arquitetura jurídica da administração prossional. De outro lado, na União Européia, o exercício de poderes públicos é o critério consagrado pelo ribunal Europeu do Luxemburgo como limite para a livre circulação de trabalhadores entre as administrações dos países membros. Além disso, a partir de pontos de vista neo-institucionalistas sobre a reorma do Estado (Prats, 1995), deniu-se a noção de unção pública limitada ao “núcleo estratégico do Estado”, em que o sistema de mérito opera em sua plenitude, como garantia institucional para a governabilidade dos países, e que seria distinta do “emprego público”, noção mais ampla, onde caberiam relações de emprego dierentes, mais próximas daquelas do âmbito empresarial. No entanto, essa noção de unção pública continua sendo insatisatória para nosso propósito. Em primeiro lugar, porque só seria aplicável, e mesmo inteligível, naqueles países que possuem modelos duais de emprego público, o que deixaria de ora uma parte muito signicativa dos sistemas públicos das democracias contemporâneas. Em segundo lugar porque, mesmo nesses países, a parte do emprego público que não está diretamente relacionada ao exercício de poderes públicos (ou assim parece, já que é notável a imprecisão deste critério delimitador no Estado de nossos dias)8, é qualitativa e quantitativamente muito importante. Por último, porque quando se analisa o conteúdo real das normas, 7 8
N: Beamte = servidor público. Em alguns países, como é o caso da Espanha, unções que incorporam evidentes conotações de imperium (por exemplo, a inspeção técnica de veículos, ou a de elevadores, ou determinados serviços de segurança de equipamentos públicos) são desempenhadas não por empregados públicos em regime trabalhista e sim por trabalhadores de empresas pri vadas contratadas ou habilitadas para tanto. Paralelamente, serviços públicos de natureza nitidamente prossionais, como saúde e educação, são prestados por empregados detentores da condição, estatutariamente atribuída, de uncionários públicos.
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estruturas e políticas, o alcance da distinção é, requentemente, mais ormal do que substantivo. O critério do nível de governo
Uma quarta e última aproximação do conceito identica-o com o sistema aplicado aos empregados do governo ou administração central, isto é, excluídos os outros níveis de governo: o local e, nos estados ederais ou compostos, o dos estados, regiões ou comunidades intermediárias. Esta noção é exclusiva de um país: o Reino Unido (Ziller, 1993; Horton, 2000) assim como daqueles que reproduziram mimeticamente suas instituições. rata-se precisamente daquele país em que nasceu e oi cunhada a expressão civil service, a partir do qual se desenvolveu uma das tradições mais vigorosas e infuentes de respeito à conguração do emprego público, o que az com que esse critério delimitador deva ser levado em conta. Apesar disso, também não podemos reter essa acepção e adotá-la, pois o âmbito de nossa refexão integra todo o emprego público, incluindo, portanto, deliberadamente, os dierentes níveis de governo e administração. A noção adotada
Acreditamos que nosso propósito exige que partamos de uma noção de unção pública que se estenda à totalidade do emprego público, o que não ocorre em nenhuma das acepções analisadas. Por outro lado, nem todo tipo de emprego público é unção pública; apenas o é quando o emprego ocorre em determinados contextos institucionais: os que tornam possível a existência e a proteção de uma administração prossional. Consideraremos que esta existe quando as instituições públicas dispõem de uma série de atributos que lhes permitam dispor de pessoal com as aptidões, atitudes e valores requeridos para o desempenho eciente e ecaz de suas atividades. Entre outras coisas, isso signica poder garantir ao público o prossionalismo e a objetividade dos ser vidores públicos e uma conduta que respeite a institucionalidade democrática; também obriga a respeitar em sua gestão os princípios de igualdade, mérito e capacidade (Oszlak, 2003, p. 213). Portanto, o propósito de tornar viável e deender a existência de uma administração prossional é aquilo que está subjacente às articulações institucionais que caracterizam a unção pública e lhe outorga a especicidade que a
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dierencia do emprego comum. Dado que este propósito não se impõe espontaneamente, é necessário um conjunto de regras do jogo, ormais e inormais, para garanti-lo. Será a ecácia prática dessas regras que determinará a existência eetiva de um regime de unção pública. Só nos contextos institucionais, nacionais ou sub-nacionais, naqueles em que essa eetividade seja vericável, estaremos diante de modelos de gestão do emprego público a que possamos atribuir a natureza de unção pública. Propomos, portanto, uma noção de unção pública que a dene como o sistema de articulação do emprego público mediante o qual determinados países asseguram, com enoques, sistemas e instrumentos diversos, certos elementos básicos para a existência de administrações públicas prossionais.
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Os elementos básicos desta noção são os seguintes. Entendemos por administração prossional uma administração pública dirigida e controlada pela política, conorme os princípios democráticos, mas não patrimonializada pela política, o que exige a preservação de uma esera de independência e imparcialidade em seu uncionamento, por razões de interesse público. Os partidos políticos dirigem a partir do governo a administração, mas não a possuem nem a conormam como bem lhes apraz, como ocorre nos sistemas de saque político. A noção de unção pública implica, neste sentido, a existência de um instrumental de proteção do emprego público rente a práticas de apadrinhamento, de clientelismo político ou de tentativas de apropriação por interesses particulares. A existência e preservação de uma administração prossional exigirão determinadas regulamentações especícas do emprego público, mas a noção de unção pública que propomos transcende a dimensão jurídica em um duplo sentido: 1. a mera existência das normas pode não ser suciente para garantir uma articulação eetiva das garantias que tornam possível uma administração prossional. Essa articulação real é a única que, para nós, permite alar de unção pública; 2. o grau de intensidade no uso das regulamentações pode variar notavelmente, dependendo dos dierentes contextos institucionais. Em alguns casos – entre os quais a Suécia, como veremos, é o exemplo mais marcante – as garantias de uncionamento da unção pública não são predominantemente jurídicas. Os sistemas de unção pública podem incluir um ou mais tipos de relação de emprego. A uniormidade ou diversidade das estruturas e políticas de gestão do emprego público expressam apenas a existência de dierentes modelos
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nacionais ou sub-nacionais de unção pública, e não têm porque aetar a essência do modelo, sempre que estejam presentes os outros elementos que o constituem. A noção de unção pública que utilizamos engloba pressupostos em que o grau de singularidade de suas regulamentações próprias com relação ao marco jurídico regulamentador do trabalho comum por conta de terceiros pode ser muito diverso, indo desde uma considerável distância até a virtual identicação9.
Origem histórica e razão de ser da função pública no estado democrático de direito
Os sistemas contemporâneos de unção pública têm sua origem na instauração dos regimes constitucionais na Europa e na América, a partir do m do século XVIII. O uncionário público (Sánchez Morón, 1996, p. 25) deixou de ser um servidor pessoal da coroa para transormar-se em uncionário do Estado, entidade impessoal regida pelas leis. Por outro lado, a supressão dos privilégios estamentais e a proclamação do princípio da igualdade perante a lei permitiram, pelo menos em teoria, que qualquer cidadão pudesse ter acesso a cargos públicos. Neste sentido, o célebre artigo 6 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, proclamou esta igualdade dos cidadãos para serem admitidos a “todo tipo de dignidades, cargos e empregos públicos, segundo sua capacidade e sem outra distinção senão a de suas qualidades e seus talentos”. A órmula histórica combina os dois pilares em que iria se undamentar a identidade da unção pública: a igualdade e o mérito. De ato, em outros países, (Ziller, 1993, p. 381; Palomar, 2000, p. 117 e seguintes), tem prioridade o princípio de recrutamento por mérito. O primeiro deles oi, no princípio do século XVIII, a Prússia, onde Frederico Guilherme o impôs, mediante uma ordenança de 1713. O sistema de mérito generalizou-se no Reino Unido ao longo do século XIX. Em 1853, Northcote e revelian, co-
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Esta noção de unção pública oi adotada pela Carta Ibero-Americana da Função Pública, aprovada pela V Conerência Ibero-Americana de Ministros de Administração Pública e Reorma do Estado, celebrada em Santa Cruz de la Sierra (Bolívia), em junho de 2003. O anteprojeto da Carta oi elaborado pelo autor deste livro, a pedido das Nações Unidas, e do Centro Latino-Americano de Administração para o Desenvolvimento (CLAD). O texto da Carta Ibero-Americana da Função Pública está acessível ao público no site do CLAD: www.clad.org.ve
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missionados por Gladstone para realizar uma pesquisa sobre a unção pública inglesa, maniestaram-se a avor da implantação de um sistema de concurso, aberto a todos, para o recrutamento dos servidores públicos, transerindo para a metrópole o sistema que já era aplicado naquele mesmo ano ao recrutamento para o serviço na Índia. Uma Order in Council , de 21 de maio de 1855, é a verdadeira certidão de nascimento do serviço civil. Criava a Civil Service Commission e nomeava três comissionados, encarregados de examinar todos os candidatos, a m de avaliar sua idoneidade para o cargo. A origem da unção pública moderna oi relacionada (Becke e outros, 1996) ao acontecimento histórico de cinco enômenos: 1) a separação entre o público e o privado; 2) a separação entre o político e o administrativo; 3) o desenvolvimento da responsabilidade individual; 4) a segurança no emprego, e 5) a seleção por mérito e igualdade. A concretização destes princípios na legislação de cada país (Sánchez Morón, 1996) oi um processo longo e desigual, intimamente ligado à evolução social e às concepções políticas e culturais dominantes. A Espanha oi o primeiro país a adotar um estatuto geral da unção pública, em 1852. A Itália, depois do precedente de uma lei de 1853, que estabelecia uma carreira administrativa, elaborou seu primeiro exto Único, em 1908. A Holanda ez o mesmo em 1929 e a Bélgica em 1937, bastante infuenciada pelo modelo britânico. Na França, embora parte de seu modelo – em particular o sistema de corpos – tenha se delineado na era napoleônica, o primeiro estatuto não oi promulgado antes de 1941, sob o regime de Vichy. Nos Estados Unidos, o Pendleton Act , de 1883, supôs a abolição do sistema de despojos ou de saque político e deu origem ao serviço civil. Embora alguns presidentes, e especialmente Roosevelt, que zera parte da Comissão do Serviço Civil, tenham potenciado o sistema de mérito, o marco normativo permaneceu imutável até o Civil Service Reorm Act , de 1978, no mandato do presidente Carter, que dene o modelo atual. Por que e para que nasce a função pública
Qual é a razão de ser da unção pública no Estado contemporâneo? A que propósito substantivo obedece a necessidade de um marco institucional próprio do emprego público, relacionado, como dissemos, à proteção de uma administração prossional? Para Prats (1995, p. 26 e seguintes), ela surge como uma criação evoluída do constitucionalismo moderno, estreitamente associada à ordem liberal do
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mercado, já que se trata de uma instituição-chave do valor econômico e social undamental que é a segurança jurídica, razão pela qual “é um dado que pode ser observado em todas as economias de mercado bem-sucedidas, e em nenhuma das economias planejadas ou de substituição de importações, independentemente da natureza autoritária ou democrática de umas ou outras”. Na mesma linha de pensamento, Evans e Rauch (1999) acrescentam, baseando-se em um ambicioso projeto de pesquisa, que a substituição de um sistema de apadrinhamento por uma burocracia pública prossional é uma condição, não suciente, mas necessária, para o desenvolvimento dos países. Esta burocracia “weberiana” exigiria (Rauch e Evans, 2000) a ocorrência de três características institucionais-chave: a) recrutamento por mérito, mediante pro vas competitivas; b) procedimentos especícos – não políticos – para contratar e demitir, e c) carreira prossional baseada na promoção interna. rata-se de condições de certo modo próximas a outras que puseram ênase no prossionalismo do emprego público como variável mais importante para a redução da corrupção. Etzioni-Halevy, citado por Villoria (2000, p. 144), explica a corrupção sobretudo em unção das relações entre as elites política e burocrática e a cultura política que as governa. Onde as regras do jogo separam a burocracia da elite política, conerindo-lhe um poder que lhe permite neutralidade política, a corrupção declina e os processos democráticos são mais puros. Esses argumentos tenderam a pôr ênase, com indiscutível solidez, em um dos elementos undamentais da unção pública como instituição criadora de valor: a segurança jurídica. No entanto, a realidade do Estado e das so ciedades contemporâneas obriga-nos a complementar esta perspectiva com outra: aquela que parte das exigências de ecácia da própria ação de governo (Parejo, 2000). Embora a segurança jurídica esteja na base das exigências de imparcialidade e de transparência no comportamento dos servidores públicos (a igualdade no acesso e a concorrência aberta são, nesse sentido, elementos essenciais), a ecácia do governo e da administração é o bem jurídico protegido – em alguns países, como a Espanha, pela própria constituição – pelos requisitos de prossionalismo e capacidade, características de um sistema de mérito. Não nos parece ácil transerir esse enoque para um sistema que aça distinção entre parcelas da institucionalidade pública, considerando que o primeiro tipo de valor pode ser atribuído à parte da administração que exerce poderes e o segundo aos setores que produzem, que são provedores de serviços públicos (o que estaria na base dos modelos duais já mencionados). De um lado, porque a ecácia deve ser um valor central da ação pública em qualquer circunstância (por acaso não é crucial para as sociedades contemporâneas a
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ecácia do regulador?). De outro, porque as exigências de eqüidade e de neutralidade no comportamento dos empregados públicos são também imprescindíveis nos processos de provimento dos serviços públicos como educação, saúde ou assistência social. Segurança jurídica e ecácia da administração são, portanto, os princípios que estão na base dos sistemas de unção pública, enquanto instituições criadoras de valor no estado democrático de direito. Para torná-los ecientes, os países que perseguiram sua materialização e proteção se obrigaram a eetuar um conjunto de articulações institucionais cujo objetivo é garantir que o comportamento dos empregados públicos obedeça a certos padrões. Se, para enunciá-los tomarmos como reerência o civil service britânico, encontraremos (Cabinet O ce, 1993) os seguintes quatro princípios básicos undacionais: 1) acesso aberto e transparente; 2) promoção por mérito; 3) integridade, objetividade e imparcialidade, e 4) não politização. O desao de nossos dias é, precisamente (World Bank, 2000), conseguir uma base rme para que esses princípios sejam traduzidos em prática, mas sem rigidez excessiva. Mais adiante voltaremos ao assunto.
MODELOS DE FUNÇÃO PÚBLICA Essas articulações institucionais, que pretendem garantir na unção pública os princípios básicos que destacamos, não são as mesmas em todos os países que estamos analisando. Pelo contrário, a unidade do objetivo contrasta aqui com a considerável diversidade dos caminhos escolhidos para alcançá-lo. Por isso, parece imprescindível reerir-nos, ainda que sucintamente, a essas dierenças, buscando na medida do possível sistematizá-las e ordená-las. A função pública e o contexto institucional
Nosso propósito é mais descrever as dierenças do que analisá-las; no entanto, parece inevitável começar por questionar sua origem. A unção pública não é senão uma parte da institucionalidade dos sistemas político-administrativos. Parece lógico pensar que as dierenças entre modelos de unção pública ou serviço civil devam ser coerentes com as que cabem, mais globalmente, a esses sistemas em seu conjunto. Pollitt e Bouckaert (2000, p. 52 e seguintes) aplicam, entre outros, à sua análise dos regimes político-administrativos, o critério da cultura administrativa dominante, cujo desenvolvimento descreve
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dois modelos culturais genéricos, que podem lançar alguma luz sobre a questão que estamos nos propondo. Chamam o primeiro desses modelos de “perspectiva do Rechtstaat ”10, onde a principal orça integradora da sociedade é o Estado, cujas preocupações básicas são a elaboração das leis e o uso da coerção necessária para aplicá-las. Os valores típicos deste modelo cultural são a segurança jurídica, o respeito ao precedente e a preocupação com a eqüidade, pelo menos no sentido de igualdade diante da lei. O segundo modelo, denominado de “interesse público”, atribui ao Estado – ou melhor, ao governo – um papel muito menos signicativo: seus poderes em nenhum caso devem ir além do necessário. Aqui a lei está mais subjacente do que em primeiro plano. O processo de governar baseia-se na busca do consenso – ou, pelo menos, do assentimento – para a adoção de iniciativas de interesse geral. Aceita-se que existam dierentes grupos sociais cujos interesses competem entre si e se preconiza para o governo um papel de árbitro, mais do que de tomada de partido. A imparcialidade, a transparência, a fexibilidade, o pragmatismo e a harmonização de interesses são valores que precedem a capacidade técnica e mesmo a legalidade estrita. No primeiro destes modelos, os uncionários tendem a ser vistos como investidos de poderes, razão pela qual o direito é o eixo central de seus processos de capacitação. Alemanha, França e Espanha seriam, entre outros, os países em que essa cultura predomina nitidamente. Na segunda perspectiva, os servidores públicos são vistos como simples cidadãos que trabalham para organizações governamentais, e não como uma classe ou casta especial, investida da elevada missão de representar o Estado. Sua ormação técnica tende a ser multidisciplinar. Os países anglo-saxões estariam neste âmbito cultural. Outros, como a Holanda ou a Suécia, teriam evoluído de um modelo basicamente legalista para marcos culturais mais próximos aos do segundo tipo, razão pela qual dispõem de uma consistente dimensão consensual no que diz respeito aos processos de elaboração das políticas públicas, mantendo ao mesmo tempo um orte senso de centralidade do Estado. Um outro estudo comparado, recente, limitado à análise das tradições administrativas do Reino Unido e da Alemanha, Knill (2001, p. 59 e seguintes) chega também a conclusões sensivelmente parecidas com as que oram descritas para cada um dos modelos citados. Embora tais modelos culturais genéricos sejam de indubitável utilidade quando se trata de explicar e demarcar as estruturas e políticas dos sistemas
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N: Rechstaat (alemão): estado de direito.
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nacionais de unção pública ou de serviço civil, acreditamos que seu peso não deve ser exagerado. Com reqüência, características próprias de cada um dos contextos internos dispõem de maior orça explicativa para analisar as distintas peculiaridades nacionais. Vamos nos reerir, neste sentido, aos casos da Holanda, do Japão e da Suécia. Na Holanda, constitui uma peculiaridade marcante (Van der Krogt e outros, 2000, p. 190) o ato de que, há muitos anos, os principais serviços sociais, como educação, saúde e assistência social, vêm sendo prestados aos cidadãos por organizações sem ns lucrativos, regulamentadas e nanciadas p elo governo central ou pelos governos locais. De ato, a relação entre estas organizações não lucrativas e os poderes públicos era tão intensa que as regulamentações de pessoal, incluindo salários e pensões, chegavam a ser praticamente as mesmas que as dos uncionários públicos. Como é lógico, dada essa situação inicial, as privatizações da década de 1980 aetaram o sistema público holandês em menor escala que em outros países. Por outro lado, a descentralização da gestão de recursos humanos que, como veremos, caracteriza a maior parte das reormas da unção pública, teve na Holanda um sentido pecu liar. Mais do que criar novas organizações às quais transerir autonomia e recursos, ela consistiu em modicar as regras da relação entre o Estado e o setor não lucrativo, que deixou de se reger por subvenções para azê-lo por contratos de serviço. Neste contexto, uma das conseqüências oi o relaxamento das regulamentações de pessoal e a tendência à dierenciação entre as diversas organizações prestadoras de serviços. Quanto ao Japão, seria diícil (Ikari, 1995, p. 81) entender seu modelo de emprego público sem considerar as práticas de gestão de recursos humanos no setor privado, peculiares e dierentes das que caracterizam a maior parte dos países do resto do mundo. A interpenetração dos dois setores evidencia-se na existência das mesmas características dominantes: contratação vitalícia, ausência de recrutamento exterior no meio da carreira, promoção interna, mobilidade reqüente, antiguidade, ormação no posto de trabalho, uniormidade das condições de trabalho e inexistência de sistemas de negociação coletiva. A Suécia é um caso especial. Os uncionários públicos suecos estão su jeitos à legislação trabalhista comum. Uma lei especial (Murray, 2000, p. 171 e seguintes) limita-se a acrescentar algumas regulamentações especícas em matéria de excedentes, regime disciplinar e poucas outras. Cada empregado é contratado por uma organização especíca (ministério, agência, governo local), e só estabelece relação de trabalho com ela. Não existe nenhum tipo de concurso ou exame estabelecido para esse processo de recrutamento. Se uma
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agência echa, seus empregados perdem o posto de trabalho. endo em vista tudo isso, parece, à primeira vista, duvidoso que na Suécia ocorram os elementos e as garantias necessários à existência de um sistema de unção pública tal como aquele a que nos reerimos no item anterior. O caso sueco é o mais representativo de um enoque dierente e alternati vo no que diz respeito à construção do marco institucional preciso para garantir e salvaguardar o sistema de mérito. Nos enoques tradicionais, amplamente dominantes, o alicerce do reerido marco é a legalidade. Criando um conjunto de garantias jurídicas, de um lado, e de restrições ao poder discricionário dos tomadores de decisões, de outro, a norma propõe-se a modular o comportamento dos diversos atores. Até a década de 1960, este era também o sistema na Suécia, desde quando, há mais de três séculos, Gustavo Adolo II garantiu a estabilidade dos servidores do governo central. A partir de 1965, no entanto, as regras do jogo mudaram drasticamente. Paralelamente ao reconhecimento do direito de greve dos uncionários públicos, uma reorma total da unção pública criou a nova institucionalidade a que correspondem as características descritas no parágrao anterior. Para o governo sueco, o objetivo de preservar uma administração prossional se mantém. O que muda é o instrumental que a garante. O novo marco institucional apóia mais no projeto de organização – e no conjunto de incentivos articulados por ele – do que na legalidade a missão de estruturar sua unção pública e de preservar, portanto, a existência de uma administração prossional. A implantação social e institucional do modelo de agências, na Suécia, é o ponto de partida. Nele irão se introduzindo medidas destinadas a conseguir que um ormato tão descentralizado não implique em perda de integridade e controle. Não é o momento de descrever em detalhes ess a arquitetura institucional, que combina elementos de contratação, atribuição de recursos, prêmio/sanção, capacitação, socialização, introdução de orças de mercado e controle dos gestores por outros atores sociais. Como identificar modelos de função pública
De tudo que oi dito depreende-se a diculdade que implica reduzir a diversidade dos sistemas de unção pública nos dierentes países em que existem uns poucos modelos denidos com precisão. De ato, além dos arquétipos genéricos, que manteriam a descrição num nível excessivo de abstração, os sistemas nacionais de unção pública combinam as articulações institucionais que os caracterizam de orma peculiar, ruto sem dúvida de suas respectivas
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histórias, tradições próprias e outros elementos que os singularizam. As semelhanças entre dois países, quanto a um elemento concreto, convertem-se em dierenças em outro, o que, por sua vez, daria lugar a novos alinhamentos e comparações. Apesar de tudo, a conveniência de sistematizar a descrição leva-nos a apresentar essa realidade consideravelmente heterogênea, identicando e agrupando os modelos nacionais em torno de quatro cortes transversais, que coincidem com os elementos centrais básicos de um marco institucional de unção pública ou serviço civil. Eles são os seguintes: a) os sistemas e instrumentos de acesso, isto é, o conjunto de mecanismos estabelecidos para o recrutamento e a seleção dos uncionários públicos; b) a organização da carreira prossional, que parte da distinção básica entre sistemas de carreira e de emprego; c) o conjunto de direitos e de deveres estabelecidos para os uncionários públicos; d) a administração do sistema, que se reere undamentalmente ao grau de centralização ou de descentralização com que o sistema unciona. Os sistemas de acesso: modelos francês, alemão e britânico
odos os países que dispõem de sistemas de gestão do emprego público que possamos caracterizar, de acordo com a noção adotada, como de unção pública, compartilham um mínimo de ormalização que distingue o acesso ao emprego público do sistema do setor privado (Siedentop, 1990; Ziller, 1993; Klingner e Nalbandian, 1994; Férez, 1995; MAP, 1997; OCDE, 1999a). Pois bem, naquilo que ultrapassa esse mínimo, são notáveis as dierenças quanto ao grau de ormalização. Uma das exigências oi denida (Ziller, 1993, p. 39 2) como o “mínimo comum” dos sistemas europeus da unção pública (podemos estendê-la ao resto dos países do âmbito examinado). rata-se da obrigação de tornar públicos os cargos vagos. A partir de um edital público, alguns países, como a Suécia – cujo caso já mencionamos – a Holanda ou a Dinamarca (todos eles podem ser incluídos no que mais adiante descreveremos como sistemas de emprego) dão ao responsável pelo órgão, agência ou unidade recrutadora uma ampla margem de liberdade para selecionar. Outros países e, em especial aqueles possuidores de sistemas de carreira, incorporam mecanismos adicionais para assegurar a preservação dos princípios de igualdade e mérito. O instrumental diere em cada país, mas pode ser agrupado, para simplicar a descrição, em três grandes modelos, cujos padrões
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básicos costumam ser identicados com os sistemas da França, da Alemanha e do Reino Unido.
O modelo francês A administração rancesa az do concurso o eixo dos procedimentos de recrutamento e seleção. A noção de concurso, na França, exige a existência de pelo menos quatro requisitos (Ziller, 1993, p. 398): a) um número de cargos vagos (no concurso típico o número costuma ser alto), determinados com precisão; b) uma banca julgadora independente do poder político, dos candidatos e dos dirigentes das unidades em que existem vagas; c) uma classicação dos candidatos admitidos por ordem de mérito (normalmente eita depois da realização de um exame sobre matérias de um programa previamente conhecido e composto, pelo menos em parte, por provas escritas anônimas), e d) a obrigação da autoridade respeitar a classicação resultante. O recrutamento por concurso é a norma, em dierentes modalidades (MAP, 1997), na Bélgica, na Espanha (onde é preerencialmente chamado de “oposição”), na Itália (onde continua depois da reorma “privatizante” de 1993) e no Japão, assim como, ainda que dentro de outro modelo de garantias, no Reino Unido. Outro traço próprio do modelo rancês de recrutamento é o papel que nele é atribuído às escolas de uncionários. De ato, o que normalmente a administração central rancesa recruta não são diretamente uncionários, mas alunos de uma escola especializada, em que serão ormados os uturos uncionários. Esta é uma característica própria (muito ligada ao sistema de corpos a que nos reeriremos adiante) que teve diusão muito menor do que o concurso. Entre os países analisados, só a Espanha e ainda assim, muito limitadamente, tem usado essa modalidade.
O modelo alemão Na Alemanha, o acesso à condição de uncionário baseia-se num sistema muito ormalizado de seleção por etapas, que combina teoria e prática. No serviço superior, uma primeira seleção (exame de Estado), posterior à graduação universitária, dá lugar a um serviço preparatório, de dois anos de duração, que combina a ormação teórica com estágios práticos de trabalho, dierentes segundo a especialidade. Esse serviço culmina com um segundo exame de
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Estado, a cargo de uma banca independente, cuja aprovação habilita o candidato para o desempenho de unção pública; nessa unção ele ca em condição probatória por três anos, sem estabilidade. Esta é alcançada depois de um pronunciamento avorável dos titulares dos órgãos em que o serviço oi prestado. Nos outros três níveis de serviço, abaixo do superior, as regras básicas são as mesmas, embora o primeiro exame seja substituído pela certicação escolar e alguns prazos sejam reduzidos. O recrutamento propriamente dito ca a cargo dos responsáveis ministeriais e dos Länder, que escolhem os mais adequados dentre os uncionários habilitados que tenham se candidatado. A participação dos representantes do pessoal nessa seleção é um ator que limita signicativamente a possibilidade de escolha discricionária por parte dos dirigentes. rata-se de um modelo original de recrutamento e seleção que não se diundiu por outros países, com a única exceção do Luxemburgo, que o adotou parcialmente para a seleção de seus uncionários graduados. A crítica de que o modelo tem servido para a manutenção do monopólio dos juristas na unção pública (Ziller, 1993, p. 395) é uma das mais reqüentemente citadas.
O modelo britânico O sistema do Reino Unido caracteriza-se por encarregar o recrutamento a um órgão central independente, não submetido às pressões dos eleitores. rata-se da Comissão do Serviço Civil, criada, como vimos, em meados do século XIX, e ormada por três comissionados (commissioners ), nomeados pelo governo para recrutar e selecionar os empregados necessários aos ministérios, azendo que compitam em concurso aberto. A tradição britânica de uncionários generalistas, dierentemente do que ocorre no modelo rancês, leva a concursos muito abertos, centrados em entrevistas destinadas a avaliar as qualidades e a personalidade dos candidatos, sem privilegiar nenhuma ormação universitária especíca, o que também dierencia o sistema, nitidamente, da seleção no modelo alemão. A administração ca cerceada pelas escolhas da Comissão, não podendo nomear senão candidatos que disponham da certicação que ela ornece. Além do Reino Unido, a Irlanda, o Canadá, os Estados Unidos e o Japão empregam uma comissão independente para proteger o sistema de mérito. ambém a Bélgica inspirou-se diretamente no modelo britânico ao criar, em 1937, uma secretaria permanente para o recrutamento. Na Alemanha, um sistema similar existe para selecionar os candidatos que, em certos casos, postulam direta-
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mente um emprego, sem pertencer à carreira de uncionário, não tendo passado pela seleção prévia antes descrita. As principais críticas ao sistema da comissão independente assinalam (World Bank, 2000) os riscos de distanciamento entre os critérios da comissão e os dos gestores de linha, condenando, nas palavras de Ziller (1993, p. 396) um excesso de independência da comissão. Resumindo, poder-se-ia dizer que os três modelos descritos pretendem garantir a igualdade e o mérito nos sistemas de unção pública ou ser viço civil mediante um instrumental de garantias que apresenta alguns elementos comuns e outros especícos, mas que certamente enatizam elementos dierentes. Os países que adotam o modelo rancês acentuam o papel dos instrumentos de seleção, criando sistemas de garantias undamentalmente ormais. O modelo alemão, também muito ormalizado, busca assegurar a capacitação teóricoprática ao longo de um processo prolongado. O modelo britânico, mais fexível nos instrumentos, insiste, sobretudo, no prossionalismo e na independência dos órgãos de seleção. A organização da carreira: sistemas de emprego e de carreira
A carreira é um elemento reqüentemente utilizado para distinguir sistemas de unção pública. Esse elemento permite distinguir (Ziller, 1993; Férez, 1995; Sánchez Morón, 1996; Palomar, 2000; World Bank, 2000) os sistemas de emprego ( position based ) dos sistemas de carreira propriamente ditos.
Os sistemas de emprego Estão organizados a partir das necessidades de pessoal, a curto prazo, da administração. O recrutamento é realizado para um emprego ou cargo e não para integrar um agrupamento prossional mais amplo que habilite o candidato para ocupar certos cargos. É, normalmente um sistema aberto, em que qualquer cargo pode ser ocupado por candidatos externos à administração, embora, em certos casos, possa haver condições distintas para candidatos internos e externos. A Suécia, os países nórdicos da Europa e a Holanda têm sistemas de emprego. ambém é este o sistema que se aplica em muitos países europeus ao emprego contratual, cobrindo unções (técnicas, braçais, subsidiárias ou temporárias) ou setores (o governo local no Reino Unido; a unção pública territorial rancesa) não aetados pela reserva uncionarial. A amplitude dessa parte do emprego público em certos países permite que se ale (Ziller, 1993,
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p. 412) de sistemas mistos, quando é preciso se reerir à Alemanha e à Bélgica, além dos casos citados. Com semelhante undamento, a Espanha poderia ter sido incluída nesse grupo.
Os sistemas de carreira Esses modelos baseiam-se numa estrutura hierarquizada dos cargos públicos. Nela os uncionários, recrutados para um determinado nível de emprego, podem, com o tempo, percorrer uma trajetória ascendente passando por uma série de níveis, até chegar ao nível máximo que lhes compete. Os planos de carreira pressupõem, portanto, que existam certos postos considerados de acesso, reservados para recrutamento externo, e que o resto dos postos correspondentes a níveis superiores sejam preenchidos mediante promoção interna. Em todo plano de carreira existe, pois, um determinado número de di visões horizontais (categorias, escalas, graus, classes, grupos ou outras denominações) que refetem a hierarquização dos empregos e cujos limites são, de um lado, os pontos ou escalas em que se realiza o recrutamento externo e, de outro, os que marcam o nível máximo a que pode chegar a promoção interna. O normal é que essa hierarquização leve em conta o nível ormal (reconhecido por um título ou diploma) dos conhecimentos especializados exigidos para o acesso. Fundamentalmente, e sem prejuízo dos pressupostos mistos já mencionados, os sistemas de carreira e os sistemas de unção pública ou serviço civil da França, Reino Unido, EUA, Japão, Alemanha, Bélgica e Espanha, entre outros, são sistemas de carreira. Em certas ocasiões, junto com a citada estraticação horizontal, os planos de carreira incluem divisões verticais. Em certos casos, respondem ao dese jo de limitar a mobilidade entre setores ou organizações do sistema público, como ocorre na Alemanha, para preservar o princípio constitucional de autonomia ministerial em matéria de gestão de pessoal. Em outros casos, trata-se de mecanismos de organização da carreira, como ocorre no sistema corporati vo, nascido na França e adotado também, com certos matizes, na administração central espanhola. Em síntese, uma corporação é um grupo prossional que reúne um conjunto de uncionários recrutados especicamente para si e chamados a exercer um determinado número de empregos, próprios de sua área de qualicação. É no quadro da corporação que estes uncionários desen volvem sua carreira. Os estatutos particulares das corporações complementam o estatuto geral da unção pública. Na administração rancesa existem cerca de mil corporações de uncionários.
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Como síntese, pode-se armar que a distinção undamental entre os dois sistemas de unção pública apresentados consiste em sua relação com o mercado de trabalho. No primeiro caso, as necessidades quantitativas e qualitativas de pessoal são basicamente satiseitas mediante ajuste externo, isto é, recorrendo ao mercado. No segundo, mediante o recrutamento para os postos denidos como de acesso. A criação de um ou mais mercados de trabalho internos (Hondeghem e Steen, 2000, p. 65) ará com que os gestores de pessoal operem preerentemente neles para atender o restante de suas necessidades.
Os direitos e os deveres Em todos os sistemas de unção pública examinados (MAP, 1997; Ziller, 1993), o direito ao cargo ou estabilidade ( tenure) protege, em maior ou menor grau, o uncionário público da demissão arbitrária, como mecanismo de garantia para a manutenção de um comportamento independente e prossional. Em todos eles, também, está contemplada a possibilidade da demissão por razões disciplinares. A distinção undamental, nesta matéria, está entre os sistemas que normatizaram a extinção da relação de emprego por causas organizacionais ou econômicas, e os que não o zeram desse modo. Voltaremos a esse ponto mais adiante, já que incidem às vezes sobre essa questão extrema os processos de reorma. Seja como or, os analistas concordam em que tanto a cultura tradicional das organizações, quanto o peso das organizações sindicais em seu interior, sempre dotam o emprego público de uma estabilidade consideravelmente superior à do emprego privado. Os sistemas de unção pública coincidem ao exigir dos uncionários públicos um dever de lealdade à nação e a suas instituições básicas, assim como o dever de reserva com relação a assuntos a que tenham acesso em unção do cargo. Regulamentam, também, em geral, as incompatibilidades dos servidores públicos com a realização de outros trabalhos ou o desempenho de atividades políticas, embora aqui a dispersão dos regulamentos nacionais quanto ao grau de liberalidade seja muito grande, não sendo possível vislumbrar nenhum padrão que permita sistematizá-la. Quanto aos direitos coletivos, o reconhecimento do direito de greve dos uncionários públicos divide os sistemas de unção pública. É expressamente proibido na Bélgica e na Alemanha e plenamente reconhecido na França e na Itália. ambém na Espanha, onde apenas constituem exceção as corporações da polícia. Na Holanda e no Reino Unido o direito não é reconhecido ormalmente, mas seu exercício não dá lugar a sanções. Os direitos de participação e
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negociação coletiva das condições de trabalho oram consideravelmente consolidados e ampliados, ao longo das últimas décadas, com algumas exceções. Aludiremos a eles em um item posterior. A administração do sistema
Os sistemas político-administrativos contemporâneos tendem à complexidade e à ragmentação. Isso desencadeia tendências contrárias: de um lado no sentido da diversicação, necessária para a adaptação a contextos complexos; de outro, no sentido da integração, imprescindível para manter a coesão geral e o controle. Vários países respondem à questão de uma orma que se relaciona, em geral, com contextos institucionais mais amplos. Os sistemas de unção pública não estão alheios a essas pressões. De ato, pode-se pensar que os denominados sistemas de emprego respondem às pressões diversicadoras e adaptadoras, enquanto os modelos de carreira identicam-se mais com as necessidades de coordenação interna e de coesão. A distinção parece-nos pelo menos duvidosa. De um lado, a capacidade dos gestores para adaptar a gestão de pessoal às necessidades concretas dos serviços depende – mais do que da existência de um sistema de emprego enquanto tal – de um projeto de organização que lhes conra a autonomia necessária. De outro lado, os modelos de carreira abrigam reqüentemente uma considerável ragmentação. Isso ocorre pelo menos em três casos: a) quando a heterogeneidade do aparelho estatal e de sua carteira de serviços impõe de ato estatutos de emprego (carreiras) dierenciados para setores di stintos (educação, saúde, polícia, administrações territoriais etc.); b) quando há uso abundante do recurso de criar entidades e organismos dierenciados, excluídos do regime comum, e c) quando as divisões verticais a que nos reerimos, em especial as corporações, aumentam as tendências ragmentadoras, chegando a introduzir elementos de concorrência interna para a apropriação de parcelas do aparato estatal. Não há dúvida de que a gura do empregador público (um departamento ou organismo central, ou então os ministérios e agências) pode parecer mais centralizada, nos casos em que predominaram as tendências integradoras e de coesão, ou mais descentralizada, quando predominaram as pressões para a adaptação. Assim (OCDE, 1999a , p. 21), podemos dizer que França, Japão, Canadá e Espanha dispõem de modelos consideravelmente centralizados, enquanto EUA, Suécia, Holanda, Nova Zelândia e Austrália utilizam sistemas de emprego e gestão de recursos humanos mais descentralizados.
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Como se verá mais adiante, uma das mais poderosas orientações de reorma dos sistemas de unção pública no âmbito da OCDE é precisamente a descentralização das decisões sobre pessoal. Nos últimos anos, a idéia de que a melhora das estruturas políticas de recursos humanos exige um projeto descentralizado dos sistemas de tomada de decisões obteve, além mesmo das iniciativas concretas de mudança em cada país, um amplo consenso.
FUNÇÃO PÚBLICA: UMA OU MUITAS? Chegados a este ponto, parece car claro que a unção pública ca mais inteligível como um propósito do que como uma orma determinada de tornálo realidade. A nalidade está clara, e é compartilhada enquanto tal em dierentes contextos institucionais: organizar o emprego do setor público de modo a tornar possível a existência de administrações prossionais. anto a segurança jurídica como a ecaz prestação dos serviços públicos exige organizações públicas não apropriadas pela política nem capturadas por interesses particulares. É necessário para isso que existam mecanismos, incentivos, regras do jogo, ormais e inormais, que permitam alcançar esse objetivo. ais composições institucionais implicam, em maior ou menor medida, um certo grau de singularidade da gestão do emprego público, dierente do que se desenvolve e pratica nas empresas do setor privado da economia. Ora, quando penetramos na natureza desses acertos nos dierentes países, como pretendemos azer neste capítulo, a unidade do propósito traduz-se, como vimos, em diversidade dos meios utilizados para materializá-lo. A unção pública transorma-se em realidades muito distintas, nas quais a infuência das culturas e tradições nacionais ca evidente. Voltando à pergunta com que começamos o capítulo, um panorama tão heterogêneo permite denir de algum modo as dierenças que a unção pública apresenta com relação à gestão contemporânea do emprego e das pessoas, tal como dissemos no capítulo anterior? Algumas dessas dierenças são comuns à imensa maioria dos sistemas de unção pública, em que pese a diversidade assinalada. Em trabalho recente, reerindo-se ao contexto espanhol, Castillo Blanco (2003, p. 32) dene essas peculiaridades em quatro extremos: a) maior estabilidade da relação, como conseqüência da rigidez para a demissão; b) maior impacto das normas, dada a vigência do princípio de vinculação jurídica positiva que impera no direito público, assim como a necessidade de acatar exemplarmente as decisões judiciais;
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c) maior rigidez nos procedimentos, especialmente evidente na seleção e nas políticas disciplinares, como conseqüência da estabilidade inerente às normas; d) maior diculdade para medir o desempenho em zonas de denição de políticas, o que cria obstáculos para certas práticas de retribuição. Este é um inventário sucinto de elementos que dierenciam e que poderíamos estender, sem medo de errar, à maior parte dos contextos institucionais de unção pública. Contudo, devemos ter em conta – e nisso insistiremos no capítulo nal do livro – que o distanciamento que a unção pública apresenta com relação ao emprego comum não se explica apenas considerando as regras ormais, como também, e principalmente, pela orma em que estas interagem com as convicções, valores e modelos mentais que povoam o inconsciente coletivo das organizações do setor público. rata-se de uma interação que se reorça mutuamente, que consolida este olhar dierente sobre a realidade, a que aludimos ao iniciar este capítulo, e que se traduz em dierentes maneiras de azer. Na realidade, as dierenças entre os modelos nacionais de unção pública não se encontram undamentalmente nos diagnósticos sobre seu uncionamento e na conseqüente identicação das áreas de melhoria. De ato, como veremos no capítulo 5, as tendências atuais de reorma da gestão pública avorecem a realização de diagnósticos comuns sobre os problemas de gestão pública do emprego e dos recursos humanos, aplicáveis à imensa maioria de países dotados de sistemas de unção pública ou serviço civil. O que muda, em muitos casos, é o ponto de partida. Dependendo das características das composições institucionais incorporadas pelos dierentes sistemas político-administrativos, os esorços para corrigir suas disunções e colocá-las a serviço de uma gestão pública mais ecaz e eciente deverão iniciar-se em momentos ou estágios determinados, com itinerários especícos, adaptados às características, tradições, contextos sócio-políticos e culturas sociais dos diversos países.
3. GERIR PESSOAS NO SETOR PÚBLICO: UM SISTEMA INTEGRADO DE VALOR ESTRATÉGICO Nos capítulos precedentes, abordamos a situação e as tendências da gestão das pessoas, assim como as peculiaridades que a dotam de uma grande especicidade quando se desenvolve no seio das organizações do setor público. No presente capítulo, apresentaremos um modelo integrado de gestão do emprego e dos recursos humanos. Este modelo será desenvolvido depois no capítulo 4, destinado à apresentação dos vários componentes ou subsistemas que o integram.11 Com que alcance utilizamos o termo “modelo”, para os ns deste capítulo? Um modelo não é senão um instrumento que o estudioso elabora, sobre uma realidade complexa, com a nalidade de descrevê-la e de aproundar o conhecimento que se tem dela e dos atores que a compõem. Constitui uma aproximação especíca àquela realidade, entre outras possíveis. O modelo é menos que uma hipótese, porque não pretende ser a ormulação de uma verdade que quer ser provada. É também menos que um paradigma, porque este alude geralmente a um quadro explicativo usado e aceito de maneira muito geral ou por uma parte muito importante da comunidade cientíca, o que não é o caso quando se ala de modelos. Assim, um modelo justica-se basicamente por sua utilidade explicativa e analítica. Não pretende ornecer a única explicação possível de uma realidade complexa, mas acilitar o acesso a ela. al é a nalidade do modelo que descrevemos a seguir: acilitar a compreensão do propósito principal, as nalidades associadas, as áreas básicas de intervenção, os atores situacionais relevantes e os critérios de avaliação aplicá veis a um sistema de gestão do emprego e dos recursos humanos. O modelo que apresentamos não é, em essência, exclusivo do s etor público, mas sim resultante da sua aplicação à gestão de recursos humanos (GRH) em qualquer organização, pública ou privada. De ato, acreditamos que as especicidades próprias do quadro institucional do emprego público, mencionadas no capítulo anterior, aparecerão, sobretudo, na descrição dos subsiste-
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O modelo apresentado neste capítulo e desenvolvido no seguinte serviu de base para um Marco Analítico para a Avaliação de Sistemas de Ser viço Civil, elaborado pelo autor deste livro a pedido do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para o diagnóstico institucional de realidades nacionais da América Latina e do Caribe. Para uma apresentação da metodologia e uma síntese das conclusões dos primeiros diagnósticos, vide Longo, 2003c. O Marco Analítico pode ser acessado no portal do BID www.iadb.org