Revisão Norma Baracho Projeto Gráfico Gisela Abad Assistente d e diagramação Waleshka Vieira Foto da capa Hu mberto Medeiros
QUINTAS, Fátima(Org.) . A civilização do açúcar. Recife: Sebrae, Fundação Gilberto Freyre, 2007. 192 p. Il. 1. Açúcar - Brasil, Nordeste - História. I. Título. CDU 664.1 981(812/814)
SUMÁRIO GERAL Nota Introdu tória | 9 Apresen tação - A Civilização Açucareira | 13 Manuel Correia de Andrade
Cultura, Patrimôn io e Civilização | 21 Fátima Qu intas
Cana, Engen ho e Açúcar | 49 Fátima Qu intas
A Família Patriarcal - Personagens e Costumes | 69 Fátima Qu intas
Casa-Grand e, Capela e Senzala | 109 José Luiz Mota Menezes
Religiosidade - Fé, Festa & Cotidiano nas Terras do Açúcar | 125 Raul Lody
Açúcar no Tacho | 133 Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco | 145 Tânia Kaufman
A Moda como Representação Social | 159 Fátima Qu intas
À memória de Manuel Correia de Andrade, geógrafo, historiador, ensaísta, cujos estudos sobre a terra, o homem e o Nordeste constituem um marco na interpretação da cultura brasileira.
A verdade é que no Brasil, ao contrário do que se observa noutros países da América e da África de recente colonização européia, a cultura primitiva – tanto a ameríndia como a africana – não se vem isolando em bolões duros, secos, indigestos, inassimiláveis ao sistema social europeu. Gilberto Freyre
NOTA INTRODUTÓRIA O presente livro é resultado de uma extensa pesquisa, com foco na contextualização do projeto turístico Roteiro Integrado da Civilização do Açúcar – envolvendo os Estados da Paraíba, de Pernambuco, de Alagoas –, nascida por solicitação do Sebrae, na tentativa de aprimorar “possíveis” conceitos ao longo da sua implementação. Fazia-se essencial uma configuração da realidad e p ara adequar os pressupostos teóricos à orientação dos u lteriores procedimentos. Duas razões demandavam tal iniciativa: a) a compreensão da abordagem socioantropológica como estrutura de fundamentação do referido projeto; b) a necessidade de acoplar maiores conhecimentos históricos e conjunturais dos períodos colonial e pós-colonial, alicerces da nossa sociedade patriarcal. Com este propósito foram realizados quatro grandes seminários sobre temas relevantes: Cultura, Civilização, Patrimônio, Gastronomia, Religiosidade, Moda e Presença Judaica em Pernambuco. Os textos ora publicados refletem, portan to, a pesquisa e os d ebates emp reend idos. Houve a p reocupação em atender a questionamentos enriquecedores, com o intuito de elaborar uma síntese fided igna das argu men tações proferidas. Frise-se que o livro-coletivo não tem a preten são de esgotar o assunto. Pelo contrário: o seu objetivo recai em conceitos que venham a subsidiar as políticas de turismo direcionadas ao Roteiro Integrado da Civilização do Açúcar. Na qu alidad e de Documento-base guarda as suas limitações e carece naturalmente de acréscimos e desdobramentos – início de uma longa trajetória –, em razão dos postulados da Ciência Social que, pela sua própria natureza, reivindica flexibilização e, sobretudo, incursões em tempos viventes e nãoviventes. A intersecção da História com a Antropologia – ou vice-versa – exige densos aprofundamentos, o que vem a sugerir renovadas abordagens em torno do complexo canavieiro do massapê nordestino. Fátima Quintas
A CIVILIZAÇÃO AÇUCAREIRA Manuel Correia de Andrade geógrafo, historiador e ensaísta
Manu el Correia de And rade
1. Dos períodos em que se costumou dividir a história econômica brasileira – pau-brasil, açúcar, gado, algodão, ouro, café, etc. –, o da cana-de-açúcar, inegavelmente, é um dos mais importantes, por ter ocupado maior área territorial e por haver se prolongado por cinco séculos, o maior período de nossa história. Na verdade, não é aprop riado se denominar cada um desses períodos de ciclos, de vez qu e eles não foram se sucedendo através de ép ocas determinad as, e sim, com uma grande disponibilidade de espaço geográfico, se expandiram, conquistando novas áreas, à proporção que a demanda internacional estimulava sua expansão. A denominação de ciclos, dada por Normano (1) para cada um desses períodos, generalizou-se a tal ponto que, no caso da cana-de-açúcar, consagrou-se no Nordeste, em face do uso da expressão, “ciclo da cana-de-açúcar,” usada por José Lins do Rego, para denominar a coleção de livros que escreveu, nos anos Trinta e Quaren ta – Menino de engenho, Doidinho, Moleque Ricardo, Bangüê e Usina. 2. Na verdade, a cana-de-açúcar foi trazida para o Brasil, pelos colonizadores portugueses, no início do século XVI; tendo a sua cultura se iniciado na feitoria situada na costa de Itamaracá, já na segunda década da colonização, pelo navegad or Cristóvão Jaques (2). Em seguida, com a política de povoamento iniciada no governo de D. João III, numerosos donatários procuraram trazer a gramínea das ilhas do Atlântico para cultivá-la no Brasil, dentre eles, Duarte Coelho Pereira, de Pernambuco; Jorge d e Figueiredo Correia, de Ilhéus; Pero do Campo Tourinho, de Porto Seguro; Vasco Coutinho, do Espírito Santo, e o p róprio Martim Afonso de Souza, de São Vicente. As capitanias que se situavam mais próximas de Portugal, em razão do menor custo do transporte, tiveram produção mais expressiva nos primeiros tempos, segunda metade do século XVI, como Pernam buco, então chamada de Nova Lusitânia, e a Bahia de Todos os Santos, onde o governo português instalara o Primeiro Governo-Geral do Brasil, em 1549. O açúcar produzido no Brasil ensejou a formação de empresas artesanais de tran sformação da m atéria-prima e a implantação de gran des áreas de plantios de cana, com o investimento d e capitais, em geral acum ulados por judeus na Europa Central. Daí admitir Celso Furtado que a “plantação” canavieira, a plantation dos ingleses teria sido o primeiro emp reend imen to capitalista em atividade agrícola (3). Olinda, que nos fins do século XVI era a principal aglomeração urban a da América, serviu de ponto de partida para o avanço dos canaviais: para o Sul até Penedo, para o Norte até Goiana, então capitania de Itamaracá, e para as capitanias da Paraíba do Norte e d o Rio Grande. Já Salvador, que crescera como capital de toda a Colônia, seria a responsável pelo desenvolvimento da cultura canavieira no chamado Recôncavo Baiano, de ricos solos de massapé originários da decomposição de rochas calcárias.
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Apresentação - A Civilização Açucareira
Assim, nessa faixa litorânea, que se esten de da foz do Poten ji até a Bahia de Todos os Santos, desenvolveu-se a chamada Civilização do Açúcar, estudada em p rofun didade pelo mestre Gilberto Freyre, em livros magistrais como Casa-grande & senzala (4) e Sobrados e mucambos (5), enquanto as implicações ecológicas do avanço dessa cultura seriam analisadas em Nordeste (6). A Civilização do Açúcar permitiu a formação de uma sociedade aristocrática, dominada por grandes e médios proprietários de terra, os sesmeiros, que viviam em casas grand es, ricas e luxuosas, dispond o de uma imen sa quantidade de serviçais, além de artífices especializados na fabricação do açúcar e d a aguardente. Os serviçais, inicialmente indígenas nativos da América, foram em seguida substituídos por escravos negros, trazidos da África. Os escravos formavam d ois gru p os d istin tos, os que trabalhavam na agricultura, sujeitos à submissão total, e os que eram destinados aos serviços domésticos, na casagran de, gozan do de alguns favores e regalias. Os cronistas coloniais que viveram na área e conviveram com escravos e com senhores, dão um testemunho de grande valor, dos hábitos e costum es da sociedade colonial e das tran sformações que ela foi sofrendo à proporção que o tempo passava; alguns cronistas famosos como Antonil, fizeram uma análise profunda da sociedade da época. Mas, se no século XVI, o açúcar de cana, usado como alimento, se generalizara na Europa, o mesmo ocorreu no Brasil; por isso, à proporção que o p ovoamento se expan dia através de áreas m enos povoad as, sobretud o no Sertão, expandia-se também a cultura da cana-de-açúcar, quer cultivada em pequenas parcelas, quer, às vezes, pelos próprios agricultores livres – pequ enos proprietários ou rend eiros – com a finalidade de p roduzir os tabletes de açúcar, chamados em geral de “rap adura,” e a cachaça. Essas unidades de prod ução eram os engenh os rapad ureiros que p erman eceram p rimitivos até o século XX, movidos a tração animal, em geral bovinos. Enquanto isso, os engen hos d o litoral evoluíram do engen ho movido a tração animal, os chamad os engenh os de “bestas”, para os engen hos reais movidos a água, para os engenhos a vap or, já n o século XIX, e, finalmen te, para as usinas de açúcar de p equeno, médio e grande portes. Os en genh os rapad ureiros tornaram-se famosos no Cariri cearense, na Ibiapaba, no Brejo Paraibano, na ser ra d e Triunfo em Pernambuco e em áreas úmidas dos sertões d a Bahia, de Minas Gerais e de Goiás. 3. As grandes regiões açucareiras de Pern am buco e Alagoas, assim com o da Bahia, no en tanto, vêm p erden do espaço e importân cia p ara outras regiões açucareiras, como as situadas no Baixo Paraíba, Rio de Janeiro e, mais recentemente, em terras situadas em Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e São Paulo (7). Nas áreas onde as condições climáticas, as técnicas de cultivo permitirem e o mercado internacional estimular, os canaviais tendem a se estender,
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sobretud o em um país que d ispõe de grand e extensão de terras e de m ão-deobra barata e com gran de mobilidade. 4. A sociedade açucareira, porém, não apresenta grande mobilidade em ascensão social, as várias classes estão bem estruturadas e hierarquizadas e as diferenças sociais estão estruturadas com base nas diferenças raciais. Isto, apesar de ter havido, desde o período colonial, uma grande miscigenação e de haver no Brasil leis que incriminem o preconceito racial e, mais recentemente, procurem favorecer a ascensão social de negros, mulatos e indígenas por meio do acesso à educação. Mesmo assim, até hoje, no Brasil, só dois indígenas conseguiram obter títulos de doutorado em universidades federais. No período Imperial, alguns negros e mulatos conseguiram ascender a postos elevados no govern o e a desfrutar de prestígio na Corte, como Rebouças, o barão de Cotegipe e o escritor Machado de Assis. Também na República, ainda marcada por ritos e costumes imperiais, apenas Nilo Peçanha, que era mulato, ascendeu à Presidência, embora muitos negros e mulatos tenham ocupado posições de relevo e desfrutado de riquezas. No en tanto a cultura brasileira é profun dam ente influen ciada pela cultura negra, sobretudo nos Estados onde a escravidão foi mais intensa, como na Bahia, no Maranhão, em Pernambuco, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em São Paulo. A influência do açúcar se fez sentir nos mais variados aspectos: na organização familiar, na arquitetura, na alimentação, na religião e na cultura. Assim, em u ma sociedade latifundiária, monocultora e escravagista, como salientou Gilberto Freyre, o proprietário de terras e de escravos tinha o domínio absoluto sobre a família, tanto no sentido restrito, aquela formada por esposa e descendentes, como no sentido amplo, reunindo também agregados e dependentes. Poucas foram as matriarcas que resistiram às determinações dos maridos e, após a morte destes, a dos filhos primogênitos, como D. Ana Paes, durante o domínio holandês, no século XVII, ou D. Emerenciana da Costa Azevedo do Engenho Barra, no século XIX. Ambas casaram três vezes. A regra geral era o marido mandar e desmandar no seu clã, “casando e batizand o”, mantend o a casa cheia de parentes pobres, de filhos, de n etos e de agregados, vivendo muitas vezes uma vida dissoluta, emprenhando não só a esposa como também comad res pobres e remediadas e escravas da senzala, sobretudo as novas e bonitas. Em geral consideravam-se brancos e nobres, embora, nos primeiros séculos, muitos tivessem sangue indígena – os descendentes de Jerônimo de Albuquerque com a índia tabajara, que foi formalmente sua primeira esposa – ou sangue negro, como um famoso capitão-mor de Bom Jardim qu e espantou o cronista inglês Henry Koster ao en contrar u m mu lato investido em um cargo tão importante (8).
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Apresentação - A Civilização Açucareira
Na realidad e, a nobreza brasileira n em sempre era branca e n obre, mas em grande parte formada por judeus, os chamados cristãos-novos ou marranos, por mouros com forte sangue árabe e por descendentes de outros povos do Mediterrâneo, como os Costa e os Cavalcanti, de origem italiana, e os Holanda, oriundos da Europa Central. Com um século de Brasil e a fortuna acumulada com a produção açucareira, formou-se uma casta, a chamada “açucocracia” de que falava Tobias Barreto, representada por famílias tradicionais, como os Cavalcanti – Rego Barros, os Albuquerque, os Wanderley, os Souza Leão e os Carneiro da Cunha. Os Cavalcanti, por exemplo, tornaram-se importantes a ponto de se afirmar que “quem viver em Pernambuco/ há de estar desenganado/ ou há de ser Cavalcanti/ ou há de ser cavalgado”. Na Paraíba, em pleno século XX, quando Epitácio Pessoa dominou a República, dizia-se que, “quem não é Pessoa é coisa”, ou até que “quem não é Coutinho é coitado”. Os cronistas narram o fausto em qu e viviam os senh ores de engen hos em suas casas-grandes como a do Engenho Patrimônio no Recôncavo da Bahia, a do Engenho Noruega na Mata Meridional pernambucana e a de Poço Comprido na Mata Setentrional deste mesmo Estado, além dos sobrados suntuosos que construíram nas cidades, como o famoso “Sobrado Grande da Madalena” no Recife (9), e numerosos outros constru ídos em cidades como João Pessoa (antiga cidade da Paraíba), em Goiana, no Recife, em Maceió, em Penedo, em São Cristóvão e nas cidades baianas de Salvador e Cachoeira. Na organização familiar, apesar de dominar o casamento monogâmico, a influência árabe era grande; a fidelidade conjugal não era respeitada pelo homem, podendo o chefe de família procriar em vários leitos a seu bel-prazer. Os filhos mamelucos e mulatos eram numerosos, embora se procurasse impedir que eles casassem com os filhos da linha chamada legítima; daí os casamentos “arrumados” pelos pais para as filhas donzelas que deveriam casar virgens e com pessoas escolhidas, geralmente primos. Com isso, impedia-se o casamento com estranhos, preservando-se a fortuna e a cor da família. Essa preservação tornava-se mais branda quand o o cand idato, embora mu lato, fosse rico ou tivesse um título de doutor, formado em direito, medicina ou engenharia, como ocorreu com Tobias Barreto e, certamente, com o barão de Cotegipe. Na alimentação, a influência não européia foi muito grande, tanto com a inclusão de alimentos indígenas, como a farinha de mandioca, ou “de pau”, como com o u so de animais e de num erosas frutas da terra, a exemp lo do caju, do sapoti, da goiaba, do araçá, etc., além de animais de caça – tatus, veados, cotias, pacas, antas, etc. Também os alimentos produzidos com animais e plantas da África, da Ásia e da O ceania, como as galinhas d’angola, os bodes, o sorgo, chamado de “milho d’angola”, a manga, a jaca, a banana e o a fruta-pão se jun taram aos prod utos europ eus, dand o à região açucareira um a culinária mu i-
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to rica e diferenciada. A culinária à base do milho e do feijão é típica de várias regiões do Brasil, sobretud o do Nordeste (10). Do ponto de vista religioso, não podemos deixar de salientar o grande sincretismo que existe entre o catolicismo romano e as crenças religiosas dos indígenas e dos africanos. As pessoas, sobretudo das classes populares e do meio rural, temem entrar em uma mata, à noite, por causa da ação de seres que elas temem que existam e que as persigam, como a caipora, o saci-pererê, o curupira, tão divulgados na literatura infantil do grande Monteiro Lobato. As crenças espíritas de origem africana na Bahia deram origem ao Candomblé e, em Pernambuco, ao Xangô. Essas crenças dão origem a cultos que têm grande penetração entre as pessoas humildes das capitais e de cidades do interior, mas que são também respeitadas por pessoas ligadas às classes média e alta das grandes cidad es e que foram fortemente divulgadas em trabalhos d e Antropologia, como os de Artur Ramos, de Câmara Cascudo e de Valdemar Valente e nos romances famosos de Jorge Amado, que nos mead os do século XX foi um dos romancistas mais lidos do Brasil. Assim, a Civilização Açucareira tem importância tanto econômica como social na vida e cultura brasileiras; sobretudo na região nordestina, como têm a do Ou ro e a do Café no Sud este do Brasil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (1) NORMANO, F.J. Evolução econômica do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1939. (2) ANDRADE, Manoel Cor reia de. A terra e o homem no nordeste. 7. ed.. São Paulo: Cortez Editora, 2005. (3) FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Rio d e Janeiro: Fun do de Cultura, 1959. (4) FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 5. ed. São Paulo: Global, 2003. (5) ______. Sobrados e mucambos. 15. ed. São Paulo: Global, 2003. (6) ______. Nordeste. 7. ed. São Paulo: Global, 2004. (7) ANDRADE, Manoel Correia de. Modernização e pobreza. São Paulo: Editora Un esp, 1986. (8) KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1942. (9) GOMES, Geraldo. Engenho e arquitetura. Fundação Gilberto Freyre: Recife, 1997. (10) CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2003.
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CULTURA, PATRIMÔNIO E CIVILIZAÇÃO Fátima Quintas antropóloga e ensaísta
A lembrança é a matéria viva da cultura. O esquecimento faz parte do desapego à tradição. Fátima Quintas
SUMÁRIO Em torno d e um possível conceito de Cu ltura | 25 Quad ro sinótico d os Universais da Cu ltura | 28 O Potlach e o Kula: especificidades culturais da sociedade primitiva | 29 Origem da Cultura | 29 Em torno d e u m possível conceito d e Civilização | 30 A morfologia das Civilizações | 32 Patrimôn io: o sentimento d e perten ça | 34 O fenômeno d a remotização | 35 Patrimônio material: a vida social das coisas | 35 Patrimônio n acional: um breve h istórico d e suas p olíticas | 38 Tradição e memória | 43 Região e regionalismo | 45 Bibliografia | 48
Fátima Qu intas
EM TORNO DE UM POSSÍVEL CONCEITO DE CULTURA O termo cultura vem do latim cultura, ae, derivado d o verbo colligere, “lavoura”, “cultivo dos campos”, “colheita”, ação ou maneira de cultivar a terra ou de explorar produções naturais. Acrescente-se que é sinônimo de agricultura – cultura agri, do latim ager , agri, camp o. Fun dar cultura era, pois, plantar u ma determ inad a espécie ou selecionar o terreno para u m cultivo adequ ado. Por conseguinte, a cultura representava o exercício da inteligência humana direcionado ao tratamento dos plantios. A acepção primeira esteve ligada à terra e à n atureza, conforme o em prego ainda da semântica usu al: cultura d a cana, cultura do algodão, cultura do café, etc. Depois, a idéia de colheita assumiu dimensão mais ampla, agregando o sentido de conhecimentos adquiridos. Mesmo n essa nova contextualização, percebe-se a fidelidade etimológica, ao denotar u ma outra forma de colheita – a d o espólio social. Logo, a cultura é a contribuição hu man a ao habitat ; aquilo que o h omem adicionou à natu reza. Em outras palavras: o modo de vida de um p ovo, a sua cosmovisão. Por sua vez, a sociedad e é o agregado organ izado d e ind ivídu os que ad otam o mesmo modo de vida. Em resumo: um a sociedad e é comp osta de u m conjun to de pessoas; o modo como se comportam essas pessoas é a cultura. A expressão, “quanto mais distante da natureza, mais próximo da cultura”, destaca a interferência do homem nas coisas da natureza, a pon to de distanciar a cultura do seu núcleo-fonte. Faço um parêntese: a palavra cultura relacionada à pessoa erudita provém d o germanismo kultur . Na Alemanha, por volta de 1793, o termo recebeu a significação de aperfeiçoamento do espírito humano ou de um povo. Ironicamen te, justo n a Aleman ha, o marechal nazista Hermann Goering pro nunciou a melancólica frase: “quando ouço a palavra cultura pego no revólver ”. A divulgação d o vocábulo foi de início u ma arma p olítica d e aliciamento intelectual – kultur kampf , luta pela cultura. A rádio oficial de Berlim, durante a Segunda Guerra Mundial, sobretudo entre 1942–45, repetia insistentemente o slogan : “Alemanha! Defensora d a Cultura!”. A propaganda p opularizou-se. Ainda assim, a sua decodificação vincula-se à idéia do indivíduo que congrega um maior número de conhecimentos adquiridos, aquele que armazenou um inventário intelectual digno de ser realçado. Do que se conclui que o “imaginário coletivo” incorpora razões nem sempre desconhecidas pela próp ria razão. Uma das melhores definições de cultura – até hoje aceita e referendada p elos estud iosos – foi prop osta p or Edward Tylor, em 1871, no século XIX: “Um conjunto complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei,
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costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como m embro da sociedad e”. Ralph Linton (1893–1953) tam bém oferece um a definição bastan te consistente: lato sensu , cultura significa a herança social e total da H um anidad e; stricto sensu , significa determinada variante da herança social. Em consonância com a visão de Linton, cultura, como um todo, comp õe-se de um grand e nú mero d e culturas, cada u ma caracterizand o um certo grupo de indivíduos (cf. LINTON, Ralph. O homem, uma introdução à antropologia. São Pau lo, 1943). As duas concepções citad as op õem -se distintivamente: a de Tylor, descritiva, enum erativa, quase exaustiva n o seu esquema seqüencial; a de Linton, mais generalista e, talvez, de melhor apreensão. Há muitas outras definições de cultura – os antrop ólogos Alfred Kroeber e Clyde Kluckhohn arrolam 164. Todas, entretanto, reconhecem alguns aspectos que lhe são comu ns: 1. a cultura, toda ela, é aprendida. O ap rend izado correspon de ao traço diferencial que a distingue da natureza, esta, a existir per se, independentemente da vontade do homem. Ninguém nasce investido de cultura, mas há um legado an cestral que é rep assado através da h istória de vida de cada u m. Portanto, o ser cultural advém de u ma an cestralidade sociológica que Gilberto Freyre nom eia d e Sociologia genética; 2. as manifestações culturais são variáveis, mú ltiplas e diversificadas, o que não implica em uma valoração de superioridade de uma cultura sobre outra; sim de aprimoram ento técnico de algum as. É de gran de imp ortância introduzir tal critério, de modo a evitar qualquer juízo de valor; 3. a cultura é ao mesmo tempo estável e mutável, operando em uma dualidade que se assenta no dinamismo que lhe é próprio. A vibração dos seus elemen tos faz parte do estímu lo d o gru po, inclinan do -se para m ais ou para m enos, a depen der dos impu lsos do cotidiano. Ao lado d o dinam ismo, há, todavia, um continuum estruturan te que evita o esgarçamen to do fio condutor. O tecido social resiste a uma mutação dissolvente porque o pólo de sustentação se defende das rupturas, embora não impeça o movimento de mudança; 4. os processos culturais se desdobram em pensamentos, idéias, instituições e objetos materiais – a cultura material se relaciona d iretam ente com o imaginário simbólico e cogn itivo. Embora a expressão “cultura m aterial” se refira ao real/tangível, nela h abitam as circunvoluções do m undo simbólico e fantasioso. Há, por efeito, uma cultura material e outra não-material. A cultura não-material responde sobretudo às dimensões de valor e subjetivação comu nitárias. Mas nem um a n em outra coexistem isoladam ente; 5. a cultura revela-se como o instrumento por meio do qual o indivíduo se ajusta ao cenário local/total e ad quire meios de expressão criadora;
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6. a cultura contém o princípio da universalidade – onde há agrupamento humano sua presença se instala. Na sua universalidade, prevalece uma “adequação” ao tempo e ao espaço. As modulações são inúmeras: especificidades e dessemelhan ças, semelhan ças e an alogias. As singularidades enriquecem as culturas, tornando-as únicas, sem minorar, contudo, a perspectiva universal; 7. a cultura deriva de componentes biológicos, ambientais, psicológicos e históricos; 8. a cultura é estruturada em blocos: a cultura d a arte, a cultura religiosa, a cultura da alimentação, etc. Importa entender essa fragmentação para perceber a rede que se forma numa dada comunidade, tal qual uma tecelagem com novelos interconectados; a esses “blocos culturais” que se disseminam com características peculiares agregam-se os chamados Universais da Cultura. Observam-se duas apreciáveis convergências nessa universalidade: a. a universalidade, enquanto critério presencial, emerge em qualquer aglomerad o hu man o – cond ição sine qua non de sobrevivência, presen ça real e subjetiva; b. a universalidade, enquanto crivo de manifestações particulares – universal x particular –, arreban ha os desejos de cada gente. Por exemplo: o nascer, o falar, o alimentar-se, o morar, o dormir... o morrer são inerentes ao ser humano, porém, os rituais simbólicos que circundam tais fenômenos modificam-se de um lugar para outro. E são únicos nas suas expressões de cultura. *** Tentarei adaptar os enu nciados dos antrop ólogos Edward Tylor e Clark Wissler em um quadro sinótico, a fim de obter resultados elucidativos quanto à universalidade da cultura, melhor dizendo, quanto aos tópicos culturais aderentes a qualquer cultura, seja “primitiva” ou “civilizada”. Volto a exemplificar: os ritos do nascimento sofrem variações de acordo com os modelos culturais; há muitas línguas faladas entre países de fronteiras contíguas, às vezes, até mesmo dialetos dentro de um mesmo país; mora-se em chalés, em casas com quintais, em sobrad os austeros, em ocas, em m ocambos de palha; dorm e-se em red e, em cama, no chão; os ritos fun erários têm u m largo espectro demonstrativo. Todo esse pluralismo de representação não diminui o carisma da universalidade. Portanto, onde houver aglomerado humano, hão de existir tais tópicos.
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QUADRO SINÓTICO DOS UNIVERSAIS DA CULTURA
Os Universais da Cultura provêm de necessidades básicas que, por sua vez, geram necessidades derivadas numa cadeia crescente e progressiva. As sociedad es “primitivas” possuem um a dinâm ica menos acelerada, o que provoca um volum e menor d e necessidades derivadas, o mesmo n ão acontecendo nas sociedades contemporâneas ocidentais, estas infladas de estímulos exógenos e capitalizantes de n ovas necessidades. A partir dos desejos satisfeitos, desenvolvem-se as chamadas necessidades psicoculturais, que vão além das categorias derivadas, provocand o um forte ritmo d e desdobramentos e de incentivo às transformações. Exemplifico: o abrigo é uma necessidade básica; a moradia já adiciona componentes a mais e, cumpridas essas etapas, a sociedade gera artifícios prazerosos – rádio, televisão, luz indireta – que se sucedem numa aspiração exceden te do h omem social. O mun do capitalista consagra um leque d e amplo espectro na emulação das necessidades psicoculturais.
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O POTLACH E O KULA Especificidades culturais da sociedade “primitiva” Com o intuito de clarificar o quanto as singularidades culturais dos grupos humanos apresentam-se diversificadas, escolho duas cerimônias clássicas – bem distantes da construção mental do “civilizado” – referentes a sinais de p restígio entre os povos “selvagens”. O Potlach é um festival institucionalizado, no qual ocorre a destruição de bens pelo fogo: cobertores, canoas, folhas de cobre são queimados pelos chefes rivais. Um dos chefes inicia a destruição, demonstrando o máximo de desprezo pela quantidade de bens destruídos, e, dessa forma, açulando o rival a proceder dentro dos mesmos parâmetros, até que um deles não tenha mais nada a oferecer. O excesso de desprend imen to se converte n um gesto de poder – destruir o que se tem significa opulência em demasia. Destróise porque se pode reconstruir, contra-senso aberrante para o mundo em que vivemos. E a intensidade do prestígio é proporcional ao tamanho do “incêndio”. Tal costume é descrito detalhadamente por Franz Boas, considerado o pai da Antropologia americana, com a finalidade de evidenciar a luta pelo status entre os Kwakiutl, índios da costa noroeste dos Estados Unidos. Bron islaw Malinowski, antrop ólogo polonês (1884–1942), apresen ta o Kula, sistema de trocas cerimoniais intergrupais e interinsulares de braceletes por colares, ritual periódico dos trobriandeses, índios do Sudoeste da Melanésia (Ilhas Trobriand), com o igual propósito de lograr prestígio – quem obtiver mais braceletes ou colares será distinguido em superioridade. Os costumes descritos mostram-se aparentemente exóticos para nós, os ditos “civilizados”. Podem parecer estranhos à primeira vista; no entanto, qualificam tendências comuns ao homem, qual seja, a ambição pelo poder. Entre “primitivos” e “civilizados” os mecanismos diferem, porém os objetivos se igualam. ORIGEM DA CULTURA Naturalmen te que n ão sei contar, repetind o Câmara Cascud o, como a primeira cultura começou e nem tampouco quais os primeiros elementos que a compuseram. No en tanto, há ind ícios da imp ortância de algumas d escobertas: o fogo, o uso dos metais, a roda para a História Social da Humanidade. Em razão desses artefatos, outros foram se desenvolvendo no arcabouço daquilo que se chama Cultura. No primeiro momento, objetos incipientes; hoje, sofisticados em tecnologias. Uma pergunta me instiga: Por que os primeiros homens escolheram a atividad e da caça e da pesca como maneira de angariar alimen tos de substância viva, imp licand o n o ato d a m orte de outro ser, para m anter a sua sobrevivência? A colheita de frutos p raticava-se de maneira embrionária e d ispersiva. A
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agricultura, essa surgiu posteriormente e tem origem na prática da lavoura doméstica, realizada pela mulher na cond ição de sedentária, logo de repassadora dos valores da rotina. Assim, o nomadismo masculino – caça, pesca, guerra – não facilitou a regulação da cultura; coube à mulher, portanto, a grande parcela de contribuição cumulativa no arquivo cultural. E pode-se eleger, de uma forma absolutamente aleatória, que a cultura ordenada, repito, a cultura ordenada e não a cultura per se, tem a sua consolidação no ato d a sistematização da agricultura – é bom lembrar que cultura é sinônimo de agricultura (item 1). Vale igualmente reprisar que o nomadismo não concorreu para a fixação da cultura, porque se afastava dos fluxos regulares e ordenadores. A aventura se opõe à rotina, e dela, a aventura, não se extraem preceitos disciplinadores de cultura. Convém alertar que a sobrevivência, como ponto de partida, e a curiosidade racional e intuitiva ensejaram, ao longo do tempo, um sistema cultural mais complexo. Arqueologicamen te faland o, as formas h um anas partem do esqueleto do Pithecanthropus erectus – cujo crânio e um fêmu r foram encontrados por Eugène Dubois, em 1891, em Java –, passando pelo Sinanthropus pekinensis – encontrado em Chucutien, ao sudoeste de Pequim, em 1921 –, até o Homem de Neandertal. Esquema simplista e discutido: a ausência de descoberta de um esqueleto completo e a fragmentação de ossos – alguns, inclusive, calcinados –, deparados nas escavações, provocam críticas e conclusões desencontradas. Faço questão de pincelar aspectos físicos e culturais de um passado remoto para sublinhar a complexa carpintaria da nossa construção biológico-cultural. Como se chegar à aurora da História do Mundo? A indagação continua, com algumas respostas pouco precisas.
EM TORNO DE UM POSSÍVEL CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO Civilização vem do latim civis – cidadão, civilidade, civismo, civilização, cidade – e diz respeito à cultura das cidades. Tal conceito, como todos os conceitos, admite uma série de variações. Karl Marx lembra que a sede da civilização antiga era a cidade, enquanto Aristóteles ao usar a expressão zoon politikon se referia ao hom em habitante das cidades. O homem político correspond e ao que participa da Ágora, ou seja, do d ebate no espaço público. Na Grécia, o espaço público – a Ágora – configurava a polis e era responsável pela construção da cidadania. As idéias de cidadania floresceram em diversos períodos históricos – na Grécia e na Roma antigas, nos burgos da Europa medieval, nas cidades do Renascimento. Mas a cidadania moderna, embora influenciada por essas concepções antigas, possui um caráter próprio. Primeiro, a cidadania formal é hoje quase un iversalmente definida como a condição de membro de um Estado-Nação. Em segun-
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do lugar, tem se tornado cada vez mais significativa a cidadania substantiva, que subscreve a posse de um corpo de civis (leis), políticos e especialmente líderes sociais. A civilização grega antiga foi controlada pela cidade, volta-se a falar na polis. As cidades da Mesopotâmia, anteriores à Grécia, já utilizavam a urbe como pólo de atividades mercantil e cultural – por exemplo, chegavam a incluir campos e plantações de tâm aras que eram cultivadas por emp resários urbanos dentro dos muros da cidade. A situação seria revertida na Idade Média, quando a sede da propriedade fundiária coincidia com o locus do poder – o campo – e as cidades existiam principalmente como mercado para a troca do excedente produ zido pelos nobres em seus imen sos latifún dios. A cidade ganhou força com a formação da burguesia, o burgos, embora não se possa desprezar o caráter fundiário que a terra assumiu como poder econômico ao longo da História. Esta proposição levou o sociólogo Max Weber a distinguir entre civilização com base na cidade, política no sentido literal da palavra, pois fun damentada na polis, e civilização econômica, no sentido literal de oikos, ou família, fundamentada na economia de núcleos familiares amplos. O Brasil se desenvolve por entre os contatos do homem econômico com o homem político de Weber. Tal formatação induz ao modelo que Gilberto Freyre caracterizou como RURBANO , ou seja, uma sociedad e entrelaçada de costumes e hábitos tanto rurais quanto urbanos. Nessa civilização regional predominantemente rural – e açucareira – já se fazia notar uma complementação urbana, com Olinda e o Recife – o Recife como porto de mar, importantíssimo para a exportação do açúcar e para a importação de valores europeus e africanos. (...) Se podem esses surtos de desenvolvimento sociocultural brasileiro ser denominados civilizações é que não lhes faltaram características urbanas de vivência e de convivência. Mas essas características, sobre bases e sobre espaços principalmente rurais. De onde poderem ser considerados exemplos de ajustamentos toscamente rurbanos. Ou antecipações de toscos ajustamentos rurbanos (FREYRE, Gilberto. Rurbanização, que é?. Recife: Ed. Massangana, 1982. p. 12).
Cumpre registrar que o conceito de civilização traz sempre a idéia de Progresso, como uma aspiração evolutiva de princípio irreversível, “induzindo” Oswald Spengler a apontar A decadência do ocidente, em virtude do excesso de tecnologias e de acentuadas materializações, em detrimento de uma cultura mais espiritual e subjetiva. Por ou tro lado, Freud, no seu livro O mal-estar da civilização, defend e a tese de que a civilização resulta da repressão do desejo sexual de cada um, isto é, da canalização da energia libidinal – então su blimada – para p rojetos culturais.
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Como se pode observar, o conceito de civilização sofre inúmeras releituras, e está sujeito a grandes polêmicas, egressas da própria dificuldade que todo conceito avoca a si mesmo. A MORFOLOGIA DAS CIVILIZAÇÕES Uma das principais características da cultura – conforme já foi assinalado – é a sua estruturação em blocos, o que a pulveriza em núcleos de expressão. As partes, todavia, não são autônomas; interconectadas em firmes ligamentos, bosquejam a espinha dorsal da árvore germinadora. É preciso entender que o todo civilizador é maior que a soma das partes culturais. Quando digo: cultura religiosa, cultura da habitação ou cultura alimentar, remeto aos blocos culturais de um arranjo macro. A dimensão civilizatória engloba todos os segmentos, mas não resulta de uma simples adição, sim de um cimento unificador que lhe confere perfil e singularidade. Em outras palavras: a civilização é maior que a soma de suas partes porque constrói, na sua engenharia social, um jogo de xadrez bem encaixado, não obstante o diversificado volume das peças. Todos os povos são parecidos e dessemelhantes, mesmo na coexistência milenar. O espanhol é diferente d o português; o alemão, do francês; o inglês, do irlandês. E, no entanto, estão próximos geograficamente, sofrem influências entre si e submetem-se a um a irradiação de costumes e hábitos em suas fronteiras. Por mais que escoem as possibilidades de contato, vizinhança, miscigenação mantêm distinções essenciais, intransponíveis, “insuscetíveis de exportação”. O comum e o peculiar se aproximam e se afastam. Esse índice diferencial represen ta a marca da individualidade do coletivo, o traço próprio de uma civilização. As demarcações físicas não são apenas físicas; trazem uma paisagem psicológica que as define enquanto rostos comunitários. A civilização não é transmissível. Tentarei destrinchar melhor esse postulado. O que se transmite é a cultura, ou melhor, os blocos culturais; propagam-se através da divulgação, da migração, da difusão. Mas o rito de passagem, no sentido literal da locução, não acontece den tro dos parâmetros de sua verdadeira gênese. Com o deslocamento ocorre uma ressignificação dos elementos culturais. O maracatu, o reisado, a capoeira terão nítidos ajustamentos se praticados por povos europ eus ou asiáticos. Qualquer imitação, da mais simples a mais complexa, sofre o efeito da recriação. O mobiliário, a moda, os sistemas de linguagem disseminam-se, comunicam-se de país a país, sem que neles se inclua a civilização originária que os produziu. O espírito criador, que é a medula da civilização, esse não vai além do contexto em que foi desenvolvido. Observa-se um caráter inviolável no conceito de civilização. Há uma morfologia impregnada que não se deixa macular por processos de d ifusão. “A cultura bizantina foi uma das mais divulgadas e influenciadoras e a sua civilização a mais enquistada e
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hermética” (CASCUDO, Luís da Câmara. Civilização e cultura. São Paulo: Global Editora, 2004. p. 46). A essência da civilização é intransferível. Sua conservação no tempo extrapola o imaginável. Por vezes, a civilização entra em decadência, chega a perder os blocos culturais, fenece em meio a novas composições, nunca, contudo, perd e a substância mater da sua configuração. O tálamo persiste. As abstrações de um ethos morto continuam a refluir no imaginário dos pósteros. Os gregos modernos não são os gregos antigos, porém as emanações de uma civilização que se excedeu em pen samento filosófico inscrevem a marca de um passado que tem cheiro de eternidade. E a Grécia contemp orânea vive da sua Antiguidade. Os gregos modernos carregam essa história civilizatória como lastro estruturante. Recorro, mais uma vez, a Câmara Cascudo: O Egito perdeu o idioma, a religião milenar, administração, dinamismo cultural típico. Manteve superstições e métodos primários rurais. O clima mental é egípcio em suas soluções psicológicas populares. Na mentalidade. Na literatura oral. Na defesa legítima do seu invisível e eterno patrimônio. Não é o egípcio turco, árabe, romano, mas o egresso das trinta dinastias faraônicas o que sentimos ainda (CASCUDO, Luís da Câmara. Idem, p. 47).
A continuidade morfológica da civilização atravessa o sentido material. Os elementos invisíveis não acompanham a temporalidade. Petrificam-se em subjetivações, transcende o apenas tangível, alongam-se em cronologias não mensuráveis. A fisionomia de cada civilização possui morfologia própria. Tem alma, nom e e matéria. Não se desfaz facilmente. Exorta o lacre da individualidade dentro de um inventário coletivo. Um artista, pianista ou pintor, recebe a técnica para a execução de suas obras, mas o esplendor da execução é o que lhe outorga o toque de genialidade: a intuição, a sensibilidade, a harmonia no lidar com os elementos aprendidos. A civilização se caracteriza por emissões psicológicas que desenham o espírito nacional. As acepções de cultura dizem de conteúdo; a civilização, de continente. Para o grande sociólogo Pitirim Sorokin, as civilizações podem desaparecer, mas elas expandem suas partículas como átomos que se libertam de um núcleo catalisador para girar ao redor do imaginário coletivo. Os Maias, os Incas, os Astecas – “civilizações mortas” – continuam a jorrar o caráter de seu ideário. Gostaria de me deter na idéia de Spengler, quando anuncia a morte da cultura em estado civilizatório. Com isso o au tor atribui a decadência ao momen to em que a cultura se p ermite afogar nu ma realidad e sem essência, ou seja, ao esgarçar-se em artefatos com pobreza simbólica. A Decadência do Ocidente de Spen gler atém-se à m elancolia de uma sociedade que se deixa engolfar por traços indigentes em simbolismo. Sem a substância do espírito, sem a
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alma d a cultura/civilização, sem o intangível do h umano, a sociedade galgaria o triste decesso criador. Ao se adotar a legenda A Civilização do Açúcar, recorre-se aos blocos culturais conectad os em um determinad o eixo possibilitador d e irradiações. Trocando em miúdos: a Civilização do Açúcar é um complexo social com base na cana, mas seguramente expandido por todos os lados e por todos os ângulos – uma civilização que se quis horizontal, gorda, barroca, ancha de adereços, a extrapolar o mandala paradigmático da casa-grande, da senzala, do engenho propriamente dito, da capela... A lavoura da cana gestou uma sociedade rica em alinh amen tos entrelaçados e en roscados num a teia híbrida e plural. A planta – da família das gramíneas – não se isolou em si, apesar de sua tirania monopolizante; projetou toda a orquestração das rel ações sociais do passado colonial e pós-colonial. Por efeito, A Civilização do Açúcar é bem maior do que a cultura do açúcar. A segun da cabe na primeira. A primeira não cabe na segun da. E a sua m orfologia aglutina fluências e confluências ún icas, a estampar um quadro que fala de um contexto intran smissível na sua totalidad e.
PATRIMÔNIO o sentimento de pertença O que dá dignidade a uma pessoa é a segurança de pertencer a alguma genealogia – tanto biológica quanto cultural. O mundo está carregado de símbolos que fazem parte da nossa biografia individual e coletiva. O homem solto no universo, sem história, sem tradição, sem origem cultural, é um homem desterrado (Fátima Quintas).
O Patrimôn io representa um conjunto de bens materiais e imateriais que compendiam a herança da humanidade. Nele reside um forte traço pessoal: cada indivíduo recebe o seu legado num tempo e num espaço prescrito, sem que essa pessoalidade venha a distorcer a índole ancestral e universal. O Patrimônio reivindica o sentimento de pertença, ou seja, a dimensão de posse de uma sucessão de realidades acasaladas ao contexto histórico. Sem essas marcas impregnantes, a humanidade existiria no vácuo, desintegrada dos elos afetivos e psicológicos. O real só se funda na memória e na idéia de pertencimento. O presente é conseqüência de uma memória transfigurada. Importante acentuar: a única forma de se ter acesso à captação do presente advém da introspecção e da busca das reminiscências pessoais. E o que mais pertence ao ser humano senão a sua própria história? A lucidez do passado – tradição – legitima o sentimento de pertença, fortalecendo o espírito de identidade.
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Todo homem – hom em, no sentido de human idade – necessita aprofund ar suas raízes para dilatar os laços de “propriedade” que lhe pertencem . À medida que a dominação de si mesmo acontece, isto é, que o legado se introjeta verdadeiramente, o calço para a formação da personalidade se fortifica. Quem não pertence a nada nem a ninguém levita por entre uma existência desagregada e dissoluta. Do que se infere: o patrimônio é estruturante, porque a consciência do sentimento de pertença garante a vértebra da identidade e do equilíbrio humano. Em última instância: ter identidade é pertencer a um patrimônio inalienável – o do espólio ancestral. O FENÔMENO DA REMOTIZAÇÃO O nascer biológico demanda a ideologia da retrospecção. A atitude remissiva se promulga através das circunstâncias culturais que se processam por entre internalizações nem sempre conscientes. Quanto mais inconscientes as intern alizações, maiores os efeitos de perm anência. Para tanto, a “cognição cultural” – ato de conhecimento de costumes, hábitos, etc. – deve desprezar artifícios de aprendizado e exaltar as naturais absorções. Todos os valores alheios à nossa experiência pessoal trazem a conotação de efemeridade, porque a internalização não se fez espontaneamente. A cognição, para ter autenticidade, invoca, portanto, a legitimidade da remotização. O que não é nosso é alienígena, isto é, está fora do tronco genético da cultura. Ora, se a criança recebe temp os passados, presentes, futu ros, em mom entos não fragmentados, a ela não lhe pode faltar a inserção de uma história já construída – âncora da remotização. Digo em outras palavras: o sentido do que é remoto oferece sustentação à biografia do homem como pilar inerente à narrativa pessoal, que tem começo muito antes da d ata de n ascimen to. O qu e é remoto é anterior ao tempo social vivente, mas pertence ao tempo histórico de cada um. Exemplificando: a remotização do brasileiro não é igual à remotização do dinamarquês. Conseqüentemente, o fenômeno da remotização valida o sentimento de pertença. É, pois, a introjeção de um remoto não-vivente que chancela o mérito dos símbolos viventes. Em última análise: a remotização consolida a ordem da pertença. PATRIMÔNIO MATERIAL a vida social das coisas A cultura material correspond e à forma aparen temente tangível de relação com o mundo. Nenhum objeto tem somente um uso funcional, mas, sobretudo, significação e representação para a época – história – e para o espaço – geografia. Não se deve pensar num artefato isoladamente; há que se entendê-lo no
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simbolismo e n o subjetivismo qu e d ele se desprend em. O toucador n ão revela apenas um móvel de mad eira, sucup ira ou am arelo vinh ático: nele rostos se projetam, cabelos se penteiam, mãos se agitam na construção de uma imagem feminina ou masculina. A mod a, o portar-se, o alimento não coexistem dissociados da convivência com o homem; são as relações sociais que dão pigmentação ao subjetivismo das coisas. Os objetos oferecem um grande suporte à morfologia das diferentes culturas. Spengler já dizia que a casa reflete a forma de ser de quem a habita (cf. A decadência do ocidente. Rio de Janeiro: Zahar, 1964). O vestuário designa um a das mais fortes expressões de cultura. O fraque, o colete, os espartilhos, as saias longas e franzidas patenteiam “insígnias de prestígio”, no qual o ócio se torna quase obrigatório. A cadeira de balanço e a rede sugerem a imagem de lerdeza que a cultura patriarcal tanto preconizou. Uma fotografia, supostamente corriqueira, remete a ilações diversas: o jeito de empertigar-se, o toque do penteado, a brilhantina no cabelo, o olhar triste acusam sensações transmitidas de um tempo que parece findo, mas não o é; os vestígios vão seguindo um destino cultural, de gerações a gerações. Gilberto Freyre foi o primeiro antropólogo brasileiro a d edicar um interesse especial à Sociologia das Coisas: a apalpar a cultura material como algo metatangível; a sentir as “nuances sensoriais” de uma longa mesa de jacarandá; a absorver os sentimentos que tran sitaram den tro da casa-grand e. E afirmou , sem tergiversar: “A história social da casa-grande é a h istória íntima d e quase todo brasileiro. [...] Nas casas-grandes foi até h oje ond e melhor se exprimiu o caráter brasileiro” (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2000. p. 56). O ânimo proustiano de Freyre – Marcel Proust (1871–1922) foi um romancista francês que facultou às coisas um valor sentimen tal – robustece o seu dese jo de tocar nos objetos para deles extrair significados mais amplos. Não é sem razão que n o seu livro Um engenheiro francês no Brasil, Gilberto inclui o diário de Vauthier – engen heiro e arqu iteto qu e permaneceu n o Brasil entre 1840–1846 – , assim como as suas cartas, datad as de 1840. Saliente-se que o d iário do francês foi descoberto por Paulo Prado em alfarrabista parisiense e enviado como regalo a Gilberto Freyre – tanto que o livro supracitado é oferecido à memória de Paulo Prado. Os comentários do francês denotam uma acuidade extraordinária no que se refere ao detalhismo da arquitetura u rbana e d oméstica: O que constitui uma cidade e lhe faz a beleza são as casas; portanto, nunca é demais aproximá-las. Tal é ainda hoje a teoria dos brasileiros de antiga linhagem, para os quais o alargamento das ruas parece uma aberração. É ainda a influência dessa idéia que explica a ausência completa de vegetação no centro das cidades intertropicais. A vegetação significa o campo, e as árvores não são julgadas dignas de se mesclarem às obras do homem. [...] Na arquitetura doméstica, os
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costumes são o espírito que engendra, a alma que dá forma à matéria (FREYRE, Gilberto. Um engenheiro francês no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960. vol. II, p. 802, 814-815).
É o próprio Freyre que reconhece em Vhautier sua sensibilidade para com a arquitetura do século XIX em Pernambuco: Como deixar [...] de exprimir o meu espanto ao ver nas cartas de Vauthier, ainda mais do que no seu diário, voltar-se o francês para as casas-grandes e os sobrados de Pernambuco da primeira metade do século XIX, com o olhar de quem, fixando-se por mais tempo no problema, acabaria talvez descobrindo aí os principais pontos de referência para o estudo da nossa história social (FREYRE, Gilberto. A casa brasileira. Rio de Janeiro: Grifo Edições, 1971. p. 82).
A importância concedida por Freyre à cultura material é reverenciada por vários escritores, entre eles o historiador inglês Peter Burke que realça, no seu extraordinário artigo A cultura material na obra de Gilberto Freyre, a antevisão do escritor pernambucano. Ao mesmo tempo, Burke analisa as possíveis fontes que influenciaram esse olhar visionário, citando alguns estudiosos que antecederam a Freyre: Franz Boas com seu rigor etnográfico e espírito descritivo; Oswald Spengler e os enunciados sobre a casa; Thorstein Veblen, famoso sociólogo que se ateve com precisão ao valor das coisas; Walter Peter (1839–1894), escritor inglês que buscava compreender como as pessoas viviam, o que elas eram realmente, e como elas se mostravam, este último também bastante enfatizado por Maria Lúcia Pallares-Burke no seu livro Gilberto Freyre: Um vitoriano dos trópicos (São Paulo: Ed. Unesp, 2005). A cultura material tem, sem dú vida, um lugar expon encial na H istória das Mentalidades. É símbolo. É complexo social. É reflexo de um contexto gerado pelo hom em em um período h istórico e em um a região distinta. Gilberto Freyre, ao se inclinar para a narrativa íntima do brasileiro, não poderia esquecer os artefatos que cercaram a vida dos antepassados, como afirma Peter Burke no artigo acima citado: “Não seria possível uma história da vida cotidiana sem as evidências da cultura material, assim como a história da cultura material seria ininteligível se esta não fosse colocada no contexto da vida cotidiana” (BURKE, Peter. “A cultura m aterial na obra de Gilberto Freyre”. In: FALCÃO, Joaquim; ARAÚJO, Rosa Maria Barboza de. [Orgs.]. O imperador das idéias. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho/Topbooks, 2001. p. 68). As coisas possuem vida. Não são inertes na sua concretude. O que faz delas, coisas, dotadas de alma e matéria, é a sua interação com o homem.
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Cada móvel com um sigilo, com uma cumplicidade, com um afeto quase externo e dizível. Um aparador do século XIX guarda silenciosamente histórias de várias gerações. E como são d iscretos no seu gesto confessional! A representação do que é táctil ultrapassa a simp les materialidade física – matriz indispensável para o acervo da História. Basta pensar nas escarradeiras, nas conversadeiras, no urinol, na cama de solteirão, nas nam oradeiras, no hábito de deixar um pou co de comida no prato como sinal de boa educação, nos lustres dos salões, nas cortinas pesadas a esconder o ambiente, nos severos leitos nupciais... para idealizar-se os interiores das moradas dos séculos XVII, XVIII e XIX. As fachadas das casas exprimem testemunhos valiosos. Esclareço o tema com mais uma citação de Freyre: Há casas cujas fachadas indicam todo o gênero de vida dos seus moradores. Os mais íntimos pormenores, os gostos, os hábitos, as tendências. Mas não são apenas as casas que falam e revelam a vida, o espírito e o gosto dos donos. Falam também por sinais esses outros surdos-mudos que são os móveis (FREYRE, Gilberto. Artigos de jornal. Recife: Edições Mozart, [s.d.]. p. 82).
PATRIMÔNIO NACIONAL um breve histórico de suas políticas A primeira iniciativa brasileira relacionada à proteção de monumentos históricos data de meados do século XVIII, precisamente de 5 de abril de 1742. (cf. LEMOS, Carlos A. C. O que é patrimônio histórico. São Paulo: Brasiliense, 1981). O nobre português, D. André de Melo e Castro, Conde de Galveias, Vice-Rei do Estado do Brasil, entre 1735 e 1749, ao tomar conhecimento das intenções do governad or de Pernambuco, Luís Pereira Freire de And rade, enviou um a carta de protesto pelo projeto que tran sformaria o Palácio das Duas Torres, construído pelo Conde de Nassau, em quartel de tropas locais. O teor da carta dem onstrava ind ignação no trato com a obra holand esa, esta, merecedora d a integridad e que honra as construções públicas de natureza estética e artística. O segundo registro remete a um século depois, quando o ministro do Império, Conselheiro Luiz Pereira de Couto Ferraz, mais tarde Visconde do Bom Retiro, ordenou aos Presidentes das Províncias que guardassem as coleções epigráficas, assim como cuidassem d a reparação dos mon um entos, de m odo a não dilapidar as inscrições neles gravadas – a epigrafia é a parte da paleontologia que estuda as inscrições, isto é, a escrita antiga em matéria resistente (pedra, metal, argila, etc.), incluindo sua decifração, datação e interpretação.
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Três décadas depois, o chefe da Seção de Man uscritos da Biblioteca Nacional, Alfredo do Vale Cabral, percorreu as províncias da Bahia, Alagoas, Pernambuco e Paraíba, recolhendo a epigrafia dos monumentos da região (cf. Proteção e revitalização do patrimônio cultural do Brasil: um a trajetória , Ministério da Educação e Cultura, Secretaria d o Patrimôn io Histórico e Artístico Nacional, Fundação Nacional Pró-Memória, Brasília, 1980). O Imperad or D. Pedro II semp re dem onstrou simpatia pelos estudos históricos, mas apesar dessa vocação “acadêmica” nenhuma providência foi tomada du rante o seu reinado para p roteger os monumentos nacionais. Com o advento da Repú blica, alguns escritores, tais como, Araújo Viana e Afonso Arinos, preocupados com a questão do patrimônio nacional, reivindicaram med idas efetivas, porém não obtiveram sucesso. Em 1922, o arquiteto Lúcio Costa, ainda estudante – formou-se em 1924 – , empreend eu um a viagem pelas cidad es históricas de Minas, com a intenção de realizar um estudo sobre os monumentos artísticos da região. Suas impressões foram decisivas. Ao chegar a Diamantina, maravilhado, confessa que caiu “em cheio no passado no seu sentido mais despojado, mais puro; um passado de verdade, que eu ignorava, um passado que era novo em folha para mim. Foi uma revelação”. ( Apud PUNTONI, Pedro. “A casa e a m emória: Gilberto Freyre e a noção de patrimônio histórico Nacional”. In: FALCÃO, Joaquim; ARAÚJO, Rosa Maria Barboza de. [Orgs.]. O imperador das idéias. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho/TopBooks, 2001. p. 27). Para Lúcio Costa, a arquitetura brasileira colonial emblemava o qu e havia de m ais recôndito na formação do brasileiro e, vê-la de perto, transportava-o para o sentimento de origem, o núcleo inicial responsável pela consubstanciação do espírito nacional. O desvanecimento do menino arquiteto denunciava o sentimento de pertença necessário à elaboração da personalidade individual e coletiva. E a epifania de Diamantina provocou-lhe um forte insight : Quem viaja pelo interior de Minas percorrendo suas velhas cidades, Sabará, Ouro Preto, São João Del-Rei, Mariana e tantas mais, não pode deixar de ter a impressão triste que tive, a pena infinita que se sente vendo completamente esquecidos aqueles vestígios tão expressivos do passado, de um caráter tão marcado, tão nosso. Vendo aquelas casas, aquelas igrejas, de surpresa em surpresa, a gente como que se encontra, fica contente, feliz, e se lembra de cousas que a gente nunca soube, mas que estavam lá dentro de nós. Não sei – Proust devia explicar isso direito. (“O Aleijadinho e a arquitetura tradicional”, artigo publicado n a Edição Especial de O Jornal, em 1929).
Quando Manuel Bandeira escreve, em 1938, seu Guia de Ouro Preto (informe-se que, em 1934, Gilberto Freyre publicou o primeiro Guia de cida-
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de no Brasil, o Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife, com ilustrações de Luís Jardim, e em 1939, Olinda – 2º Guia prático, histórico e sentimental de cidade brasileira) partilha do sentimento comum ao seu grupo-geração – o d e fisgar d a arquitetura vernacular a verdadeira história do Eu brasileiro. Dessas casas proviam os fantasmas do passado. A vida dos que lá moraram dizia da vida dos indivíduos que integram a Nação brasileira. O poeta Bandeira, assim se coloca: Para nós brasileiros, o que tem força de nos comover são justamente esses sobradões pesados, essas frontarias barrocas, onde alguma coisa de nosso começou a se fixar. A desgraça foi que esse fio de tradição se tivesse partido (BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. Rio de Janeiro: Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1957. p. 43-45).
Retorno à cronologia das políticas adotadas em defesa do patrimônio nacional. Em 1924, ocorre a h istórica viagem a Minas, capitaneada p elos modernistas de São Paulo – Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, acompanhados de d. Olívia Guedes Penteado, René Thiollier e Godofredo da Silva Telles. Tal viagem simbolizou um marco na história do patrimônio brasileiro e teve o propósito de levar o poeta francês, Blaise Cendrars, a conhecer as cidades históricas mineiras. O esclarecedor artigo de Pedro Puntoni, já referenciado, traz à tona inúmeras questões de grandeza incontestável. Alerta: O fato dos nossos modernistas irem mostrar ao homem da vanguarda francesa nossas velhas cidades, com seus casarões e igrejas carcomidas pelo tempo, não passa de aparente paradoxo. Antes de tudo, revela muito da necessidade de construção de uma identidade no bojo do movimento de atualização estética (PUNTONI, Pedro. Op. cit., p. 83).
Provavelmen te Pun toni se refere à avidez inovadora da Seman a de Arte Modern a, aconte cida em São Paulo, em 1922. É da máxima relevância frisar que o autor não lhe subtrai o devido valor – o que é sabido e consabido por todos os que cultuam uma vida intelectual. O que não se deve, entretanto, aqui realço uma opinião pessoal – que fique bem clara, apenas opinião pessoal –, é proclamar unilateralmente uma convergência quase fatalista dos sopros lançados pela Semana de Arte Moderna. Entre exaltações e extremismos, há um equilíbrio que deve nortear a emoção mesmo daqueles que empunharam bandeiras vanguardistas. O Brasil “transigiu” na pintura, na prosa, na poesia, enfim, na arte e na escrita, mas “transigiu” basicamente na forma qu e, embora alavancada pelos ecos modernistas, jamais deixou de imprimir o ex-libris da brasilidade. A Semana d e Arte Modern a sintetizou um d ivisor d’águas: para u ns, com fustigantes criações; para outros, com derrotismos importados aleatoriamente.
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Não é demais repetir: Gilberto Freyre sempre se aliou à cultura material, vista pelo ângulo arquitetônico e pelo aspecto interacional homem-artefato. Já havia se impressionado com as p alavras de Lúcio Costa, publicadas em 1929, em edição especial de O Jornal, tanto que as utilizou no Prefácio à primeira edição de Casa-grande & senzala. Aproveito para transcrever parte da carta de Manuel Bandeira, escrita em 23 de março de 1935, de Cambuquira, Minas Gerais, na qual se observa a troca de idéias entre os dois amigos, ambos susceptíveis aos encantos dos casarões, dos telhados, das ruas antigas. Afinal desencantei a viagem a Cambuquira. Estou aqui desde o dia 15, e parece que as águas estão me fazendo grande bem. [...] Anteontem fui numa excursão a Campanha, cidadezinha morta que fica a uns ¾ de hora daqui. Faz agora justamente 30 anos que cheguei lá carregado. Verifiquei que era um camelo em 1905, pois não senti então a delícia que são aquelas ruas tão simples, tão modestas, com os seus casarões quadrados, quase todos com bicos de telhado em forma de asa de pombo. Há lá uma rua Direita (hoje tem nome de gente) que é um encanto: tão genuinamente brasileira, tão boa, dando vontade de morrer nela (Arquivo da Fundação Gilberto Freyre).
O poeta e o ensaísta se comp lementavam, desde então, em claras aproximações. Freyre, ao antecipar os estudos de vida íntima na Antropologia, numa época em que a abordagem positivista exortava os “dogmas” da metodologia científica, lança novos olhares para o social, trazendo a lume discussões verdadeiramente madrugadoras. Tanto que o primeiro estudo sobre a arquitetura vernacular brasileira publicado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1937, tem a assinatura d e Freyre. A mentalidade patrimonial começava a florescer d e maneira sistêmica. Já não era possível frear os apelos de um grupo de intelectuais empenhados na luta pela criação de um órgão ligado à defesa dos mon um entos nacionais. Coube a Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde (1934–45), transformar a iniciativa em lei federal. São suas as palavras: Nos princípios de 1936, sendo Ministro da Educação, e às voltas que então já andava com os nossos múltiplos assuntos culturais, lembrou-me mandar fazer o levantamento da obras de pintura, antigas e modernas, de valor excepcional, existentes em poder dos particulares, na cidade do Rio de Janeiro. [...] Mas vi que isso só, sendo embora coisa relevante, não teria o sentido compreensivo e geral de um cometimento de tal natureza. [...] A idéia inicial, deste modo, se transformava num programa maior que seria organizar um serviço nacional para a defesa do nosso extenso e valioso patrimônio. [...] Logo me ocorreu o caminho: Telefonei para o Mário de Andrade, então Diretor do Departa-
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mento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Expus-lhe o problema e lhe pedi que organizasse o projeto. (CAPANEMA, Gustavo. “Rodrigo: espelho de critério”, In: A lição de Rodrigo. Recife: Amigos do DPHAN, 1969, p. 41).
Consigne-se, por dever de justiça, que Rodrigo Melo Franco de Andrade exerceu um papel imprescindível na implantação desse programa, razão pela qual, em 1936, foi nomeado diretor do recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), ainda em fase d e experimentação, embora aprovado pelo presidente da República, Getúlio Vargas. Finalmente, no dia 30 de novembro de 1937 foi promulgado o Decreto-lei nº 25, efetivando a instituição em moldes oficiais. O projeto de Mário de Andrade recebeu algumas alterações de Rodrigo M. F. de Andrade, não sendo afetado, entretanto, nas suas linhas gerais. A chamada “fase heróica” do SPHAN estende-se de 1936 a 1967, período da gestão de Rodrigo M. F. de Andrade, o grande incentivador das políticas públicas direcionadas ao tema. Ainda em 1930, quando o único serviço de proteção do patrimônio se estruturava no Museu Histórico Nacional, sob a direção de Gustavo Barroso, Rodrigo M. F. de Andrade pensara em nomear Gilberto Freyre para a função. O que lhe impediu foi a situação política do sociólogo, que se via, então, no exílio em Lisboa. [...] Segundo Lauro Cavalcanti [no artigo “O cidadão moderno”, Revista Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, 24; p. 114, 1996], quando o SPHAN foi finalmente criado, ter-se-ia cogitado a nomeação do sociólogo para diretor (regional?), o que foi vetado por Agamenon Magalhães. Em uma carta de 14 de janeiro de 1938 endereçada a Capanema, o interventor recusou a indicação por esse “haver participado do movimento comunista de 1935” [sic] e se recusado, em 1937, “a fazer uma preleção anticomunista, ordenada pelo reitor” (PUNTONI, Pedro. Op. cit., p. 91-92)
Durante o “período heróico”, comandado por Rodrigo de M. F. de Andrade, ocorreram 689 tombamentos, send o que 529 referentes à fase colonial, confirmando a importância da arquitetura vernacular do oitocentos, como arcabouço fun dan te da nossa iden tidad e. Não h á como h esitar: a cultura m aterial representa a grand e dep ositária do espaço arquitetônico e social da mem ória coletiva do brasileiro – “é um passado que se estuda tocando em nervos, um passado que emenda com a vida de cada um”, adverte Gilberto Freyre ( Casagrande & senzala, p. 56). A segun da etapa do SPHAN é chefiada por Renato Soeiro e vai de 1967 a 1979, devendo-se assinalar que, em 27 de julho de 1970, por Decreto, o Ministério da Educação e Cultura transforma a Diretoria do Patrimônio Histórico, Ar-
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tístico Nacional em Instituto, o IPHAN. Resumindo o caminho percorrido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), elenco: a. a sua criação, no dia 30 de novembro de 1937, Decreto-lei nº 25, com o nome Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN); b. transformação em Diretoria (DPHAN), em 2 de janeiro de 1946, pelo Decreto-lei nº 8.534; c. Finalmente Instituto (IPHAN), em 27 de julho d e 1970, por novo Decreto-lei nº 66.967, designação até hoje utilizada. Há nom es que devem ser lembrados na luta pelo patrimôn io: o de Aluízio Magalhães – idealizador do Centro Nacional de referência Cultural –, o de Paulo Duarte, o de Mário Melo, o de Aníbal Fernandes, o de Airton Carvalho, entre outros. À obstinação e à tenacidade de um grupo de intelectuais brasileiros do Nordeste, do Sudeste e de outras regiões, deve-se o surgimento de um pensamen to voltado p ara a riqueza do nosso patrimôn io vernacular. Sem essa disposição para inventariar a cultura material do Brasil, teria sido m uito difícil recapitular os meandros por onde transitaram os nossos antepassados. *** Preservar não é somente guardar o artefato, mas mantê-lo vivo na sua contextualização. Os museus, por exemplo, requerem um tratamento de todo especial, de mod o a escapar do isolamento e de um possível estatismo do objeto exposto. A sociedade se mostra como uma tecelagem cuja urdidura se fabrica em bases relacionais – fenômenos entrançados e interativos. A cultura material faz parte dessa trama cheia d e ramificações. As genealogias objetivas e subjetivas “nomeiam” as entrelinhas do fato social, não importando se egressas de concretudes visíveis ou de subterfúgios implícitos à realidade em mira.
TRADIÇÃO E MEMÓRIA Os nexos de um a consciência vivente perdu ram enquan to há memória. O traço de individualidade tributa às lembranças acumuladas um crédito de valor intran sferível. Recordar pod e vir a ser um a leveza de fruição ou um peso traumático do passado que vai e que vem num círculo vicioso. O escritor colombiano Gabriel García Márqu ez diz na epígrafe da sua autobiografia: “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”. Desse contar ribomba a construção existencial de cada um. As biografias human as comp ortam vivências extraordinárias, ou seja, experiências p ara além do que é plausível à observação ordinária. A elas outorga-se a consistência ontológica, porque a au sência do não feito redu nd aria no nad a. Na mem ória habita a textura do ser. 43
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Somos tempos: passado, presente, futuro. O passado conserva a solidez do acontecido – fundação do ciclo vital do indivíduo. Há um passadovivente e um passado não-vivente. O que quero dizer com isso: o passado-vivente resulta das experiências de on tem, de um passado p articipan te da nossa história, o que já foi vivido em sentido pleno. Ao distanciar-se da presentificação, o factual adentra em um tempo que se aloja na memória, resistindo, assim, às várias “interrupções” e recriando-se no processo da transmutação. As lembranças cabem nessa memória, mas já não são vivências, e sim recordações transfiguradas. Do passado-vivente, a memória reelabora o experienciado através de uma narrativa fantasmática. O passado não-vivente é o que se desloca até a ancestralidade – herança recebida de uma história da qual não participamos, aind a que sujeito posteriori desta história, então incrustada dentro de uma família, de um sistema de parentesco, de alianças afetivas, enfim de uma comunidade, ou seja, daquilo que é comum ao grupo. O passado-vivente e não-vivente concebe pactos de pertença, de modo a ajustar o homem às suas referências psicológicas e culturais. Tradição, do latim traditio, traditionis, derivado do verbo tradere, significa entregar, transmitir, legar à geração seguinte. Embora o verbo se referisse, de início, à transmissão de coisas triviais, ao termo acresceram-se as reservas marcantes de um passado que repercute no presente e, presumivelmente, no futuro. Logo, tradição é a transmissão oral de fatos, lendas, acontecimentos, de idad e em idad e, de geração em geração através do fio cond utor d os testemunhos. Aqui dois aspectos sobressaem: o da oralidade e o da transmissão. O da oralidade reún e a concepção primeira, no sentido de veicular os costumes e hábitos que incidiam no imaginário coletivo dos povos ágrafos. Tal versão perdu rou por longo tempo e aind a perdu ra com bastante vigor ao acoplar os nichos de contam inação de uma realidade para outra, isenta de registros escritos. Naturalmente que a tradição vem sofrendo reelaborações e, na contemporaneidade, o significado se alarga, abarcando escrituras reveladoras de passados. Entretanto, os estudiosos mais ortodoxos aceitam a tradição apenas no seu viés de oralidade. Na tradição escrita perder-se-iam os elementos de espontan eidad e e a força da narrativa verbal, ou seja, a força do significante. A transmissão se acasala à tradição numa simbiose perfeita. Não se pode pensar uma sem a outra. Ambas se equivalem em grau e intensidade. Jamais acontecerá tradição sem transmissão, embora nem toda transmissão seja tradição. Transmitir não é sinônimo de tradição; tradição é sinônimo de transmissão. Por conseguinte, a etimologia da palavra tradição conserva a chama da historicidade. O hom em tem na trad ição o seu pon to de origem. E precisa não só recebêla como espólio de um passado não-vivente, como aceitá-la para se construir em humanidade. A tradição diz do passado não-vivente, da memória ancestral, de
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um longe que parece não ser nosso, mas que o é, com todos os seus fluxos e refluxos. Arredios aos resíduos desse legado, os continuísmos se romperiam, desagregand o a pirâmide psíquica. Um homem sem raízes é um hom em m orto na sua integração ao mundo – alado, solto, imbuído da síndrome de orfandade cultural. Reavivo o princípio da pertença porque é deste sentimento que se sugam os ajustes e os desajustes do Sujeito pensante. A sua ausência inflamará sérias distorções, provocadas pela carência sociocultural. Os conluios formados pelos grupos carimbam exatamente a necessidade dos selos coletivos: ligamentos culturais que se firmam para sancionar a homogeneidade do comp lexo sociológico. Cumpre afiançar que o patrimônio, a memória, a tradição confluem em um mesmo direcionamento, qual seja, o do sentimento de pertença. Sem ele, torna-se complicado sedimentar laços identitários, uma vez que a pessoalidade demanda um mastro de valores comuns para os quais converge a imprescindível sensação de pertencer a alguém ou a algo que assegure solidez existencial.
REGIÃO E REGIONALISMO Os tópicos acima referenciados vão desaguar na idéia de região-regionalismo. Por região, aqui se conceituam os vetores físicos e culturais delimitados pelo espaço; por regionalismo, amplia-se o conceito a padrões atinentes a um grupo cultural que pode estar inserido em um dado espaço ou dele transcender, importando para outros locais os pressupostos valorativos que o balizam. Tomo como exemplo as manifestações culturais congêneres em regiões diferentes. Ressalte-se, contudo, que o regionalismo encrava-se dentro do processo civilizatório mais amplo, isto é, dentro da Civilização onde os blocos culturais se encaixam. Portanto, o regionalismo subjaz à Civilização e não extrapola, na sua dimen são autêntica, os seus p ontilhad os. O mun do globalizado, por incrível que pareça, tem recrudescido os princípios do regionalismo justamente porque abala o sentimento de pertença, trisca as raízes, uniformiza realidades. Pertencer a um mundo anônimo e impessoal não é pertencer a uma região que tem n ome e proximidad e. Há u m fosso enorme entre uma coisa e outra. O mundo representa a exterioridade maior, algo superior à apreensão de cada um, aquilo que se esgueira para além d as possibilidad es do indivíduo. Igualar diferenças é anular identidades. Padronizar costum es é dissolvê-los numa atmosfera de ninguém. Por essa razão, que leva a uma outra, a da bu sca de origem, o regionalismo ten de a fortalecer os sinais peculiares a um conjunto cultural: seus padrões distintivos. E antes do homem diluir-se nos fantasmas da globalização, ele vem intentando realçar os atavismos, o que quer dizer: as aderências à origem. O regionalismo não pode ser compreendido em oposição ao 45
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universalismo. Esse aspecto é de natureza primordial para um bom discernimento do postulado. Um depende do outro para que se assentem em estacas duradouras. Do contrário, prevaleceriam extremos inaceitáveis. Da pequena aldeia de Tolstoi se desenhará o mundo, assertiva de caráter indiscutível. A linha d e intersecção qu e cabe entre a p arte e o todo estabelecerá a primazia da unidade. No Brasil, a primeira voz a levantar-se em favor d e uma visão regional foi a de Gilberto Freyre, em 1923, quando cria informalmente o Centro Regionalista: Toda terça-feira, um grupo apocalíptico de “Regionalistas” vem se reunindo em casa do professor Odilon Nestor, em volta da mesa de chá com sequilhos e doces tradicionais da região – inclusive sorvete de Coração da Índia. Discutem-se então, em voz mais de conversa que de discurso, problemas do Nordeste (FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista. QUINTAS, Fátima (Org.). 7. ed. Recife: Editora Massangana, 1996. p. 49).
Ao voltar de viagem dos Estados Unidos e Europa – onde permaneceu cinco anos –, exatamente em 1923, Freyre se estonteia com a devastação do Recife, sentindo-se agredido na sua p rópria cidade, ond e o traçado u rbanístico mais remoto desmantelava-se. O Recife começava a doer-lhe, como segredava Unamuno em relação à Espanha. Reagindo à descaracterização causada por uma falsa mod ernidade, realiza, em 1926, o primeiro Congresso Regionalista a seu modo Modernista, mom ento no qual leu o seu m anifesto. Eis algun s fragmentos: Pois de regiões é que o Brasil, sociologicamente, é feito, desde os seus primeiros dias. [...] Somos um conjunto de regiões antes de sermos uma coleção arbitrária de “Estados”, uns grandes, outros pequenos. [...] Regionalmente é que deve o Brasil ser administrado. É claro que administrado sob uma só bandeira e um só governo, pois regionalismo não que dizer separatismo. [...] Regionalmente deve ser estudada, sem sacrifício do sentido de sua unidade, a cultura brasileira, do mesmo modo que a natureza; o homem da mesma forma que a paisagem (FREYRE, Gilberto. Ibid., p. 50, 51).
Com o igual propósito de conclamar a gên ese do p ovo, Freyre já organizara, em 1925, o Livro do nordeste, comemorativo do centenário do Jornal Diario de Pernambuco, livro esse que foge dos parâmetros esperados e transforma-se em u m verd adeiro hino ao ethos nordestino. Mais um a vez o escritor pernambucano encorpa o sentido de brasilidade, evocando o passado arquitetônico vernacular em todos os seus matizes: materiais e subjetivos.
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O respeito ao regionalismo engrand ece a imagem d o Nordeste: da sua cultura, da sua fecundidade, do seu pluralismo. Ter consciência dos frutos que desabrocharam d a história do m assapê equivale a enaltecer as tradições, o patrimônio, a memória, enfim, o complexo civilizatório que se difundiu a partir da monocultura açucareira. Nunca é demais esmiuçar a edificação social do triângulo rural – casa-grande, incluindo a senzala, engenho/fábrica e capela – para alcançar um ethos que se espraiou, com as devidas adequ ações, por todo o território brasileiro. Não tem o afirmar qu e as fazendas de café, de cacau, de gado adotaram o mesmo modelo patriarcal das construções vernaculares do massapê canavieiro. Mesmo os que enriqueceram com o ciclo da mineração desejaram alongar-se n os referenciais do sistema agricultor. O brasão da agricultura se impôs verdadeiramente no Brasil dos nossos bisavôs – o escud o imagético lá estava, no modus vivendi do senhor p atriarca. Reacendo as palavras de Gilberto Freyre para tonificar o pensamento que almejo repassar: Talvez não haja região no Brasil que exceda o Nordeste em riqueza de tradições ilustres e em nitidez de caráter. [...] O Nordeste tem direito de considerar-se uma região que já grandemente contribuiu para dar à cultura ou à civilização brasileira autenticidade e originalidade e não apenas doçura ou tempero. [...] Apenas nos últimos decênios é que o Nordeste vem perdendo a tradição de criador ou recriador de valores para tornar-se uma população quase parasitária ou uma terra apenas de relíquias: o paraíso brasileiro de antiquários e de arqueólogos (FREYRE, Gilberto. Ibid., p. 52-53).
Concluindo esse primeiro tema, gostaria de enfatizar que a internalização dos princípios do regionalismo resulta no calço estruturante da personalidad e psíquica e cultural do h omem , sem a qual não se concebe o desenvolvimento, nele, homem, indivíduo ou coletivo, do espírito de identidade e de caráter nacional. A estima pela cultura nasce do au toconhecimento, e para se galgar a condição de persona, faz-se iminente a descoberta de si através de um olhar de alto-alcance que venha a penetrar no fenômeno da remotização – o que é remoto, o que é longínquo, o que é ancestral. São os longes que consubstanciam o ser e o estar no presente. Os rasgos d e criatividade alimentam-se do passado. Só o processo da aquisição prescinde dele. Dos antep assados emanam a nossa história, a nossa comp reensão do un iverso e, conseqüentemente, os nossos pertencimentos.
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CANA, ENGENHO E AÇÚCAR Fátima Quintas antropóloga e ensaísta
A cana-de-açúcar é de todas as plantas domesticadas pelo Homem a que mais implicações teve na História da Humanidade. (...) A chegada ao Atlântico, no século XV, provocou o maior fenômeno migratório que foi a escravatura de milhões de africanos. Alberto Vieira
SUMÁRIO
Origem da cana | 53 A Capitania de Pernam buco: berço da civilização do açúcar | 53 O m assapê | 56 Engenh o: a man ufatura d o açúcar | 57 A escravidão | 64 Sabor e d oce: do alimento à gastronomia | 65 Bibliografia | 67
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ORIGEM DA CANA Originária do Sudeste asiático (provavelmente da Índia), a cana-de-açúcar alcançou a Pérsia e dali foi levada p elos conquistadores árabes à costa oriental do Mediterrâneo (CASCUDO, Câmara. Sociologia do açúcar , 1971; FREYRE Gilberto. Açúcar , 1987; ANDRADE, Manuel Correia de. Cinco séculos de coloni zação, 2004; GOMES, Geraldo. Engenho e arquitetura, 2006). Há, entretanto, os que adm item ser a planta nativa do Pacífico, talvez da Papua, Nova Guiné, ond e já era conh ecida há cerca de 12 mil anos (NUNES, Naidea N unes. Palavras doces, 2003). Ao migrar pelo Mediterrâneo, os árabes levaram -na a Gênova, Veneza, Sicília e ao sul da Espan ha; em Portu gal, a sua cultura teve início no Algarve, ao tem po de D. João I (1385–1433), Mestre de Avis, no ano de 1404, posteriormente, transportada pelo Infante D. Henrique para a Ilha da Madeira, centro de grande irradiação do cobiçado produto. Bom lembrar que a Ilha da Madeira, no século XV, foi a maior produtora de cana do mundo, cuja ascendên cia vertiginosa correspon deu ao seu prop orcional declínio, então nos meados do século XVI, diante da efervescência do cultivo no Brasil. Acrescente-se que foi dessa mesma Ilha da Madeira que a p lanta chegou até nós p elas mãos dos colonizadores portu gueses, nas p rimeiras décadas d o quinh entos. Segundo o historiador F. A.Varnhagen ( História geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal, 1975), baseado em documentos relativos a pagamentos de impostos à Alfândega de Lisboa do açúcar proveniente de Pernambuco, datados de 1526, a cana-de-açúcar já havia sido introduzida no Brasil antes da chegad a do seu primeiro don atário. E mais: no período da feitoria de Cristóvão Jacques, teria sido cultivada “parcimoniosamente” em Itamaracá, em 1516. Do que se infere que ela fez parte da paisagem pern ambucana desde o início do século XVI. Oficialmente a sua introdução na Terra de Vera Cruz se deu por meio de Martim Afonso de Souza, em São Vicente, no ano de 1532.
A CAPITANIA DE PERNAMBUCO
berço da civilização do açúcar Vingan do a can a-de-açúcar na Ilha d a Madeira, os portugueses a cultivaram em Cabo Verde, Açores e São Tomé, tentando potencializar um produto em alta no mercado internacional. Afinal, o ouro branco, assim chamado o açúcar, representava um a das melhores e m ais caras iguarias da Europ a, bastante cobiçada pelos reis, desejosos de aumentar os seus impérios. Para tanto, fazia-se necessário terra propícia à fertilização de uma gramínea poderosa no tocante à comercialização e a lucros avantajados. Os olhos do mundo voltavam-se para os grãos brancos, brancos, brancos e doces e fustigadores da gula econômica. 53
Cana, Engenho e Açúcar
Com a decepção da descoberta do Brasil, em 1500, Portugal, desolado, quase abandonou a empreitada da colonização. Gilberto Freyre tece a feliz metáfora: O “Brasil foi uma carta de paus puxada num jogo de trunfo em ouro. Um d esapon tamento para o imperialismo qu e se iniciara com a viagem à Índ ia de Vasco da Gama” (Casa-grande & senzala, 2000, p. 263-264). Durante as três primeiras décadas d o século XVI, não houve por parte d o Reino lusitano u m olhar d e efetiva fixação nas terras trop icais. O Brasil tinha p ouco a oferecer quanto a atividades extrativistas e exigia deslocamentos humanos duradouros para o cultivo de uma terra com imensa extensão territorial. A população portuguesa, à época do descobrimento, correspondia a 1 milhão de h abitantes e su as conquistas já se espalhavam pela África, Índ ia e até Extremo Oriente. Uma pergunta se impunha: O que fazer? O português adquirira experiência colonizadora com o sistema de capitanias hered itárias nos Açores, na Ilha d a Mad eira e em Cabo Verde. Resolveu transferir esse modelo para o Brasil. Assim, D. João III (1521–1557), Rei de Portugal, entregou a Duarte Coelho a Carta Régia de Doação – em 10 de março de 1534 –, concedendo-lhe o d ireito e u sufru to d e novas terras. “Sessenta léguas de terra... as quais começarão no Rio São Francisco (...) e acabarão no rio que cerca em redondo toda Ilha de Itamaracá, ao qual ora novamen te ponh o o n ome de Rio Santa Cru z...” Dizend o d e outra forma, o território da capitania de Pern ambuco estend ia-se de Itamaracá à foz do Rio São Francisco, com as ilhas e as terras da margem esquerda, até a sua nascente, na Serra da Canastra, no atual Estado de Minas Gerais. As capitanias de Pern ambuco e de Itamaracá nasceram juntas, além de limítrofes. Itamaracá foi uma capitania frustrada, como assevera Manuel Correia de Andrade, apesar de possuir uma razoável delimitação territorial, que se espalhava de Igaraçu até o Rio Grande do Norte. Pero Lopes de Souza, o seu don atário – irmão de Martim Afonso d e Souza –, nun ca m orou n a capitania, desenvolvendo uma administração assistemática, o que resultou no fracasso de uma faixa de terra predisposta à semeadura. Por esse motivo, Itamaracá esteve sob a jurisdição informal da capitania de Pernambuco durante um século, tend o sido, por fim, legalmente anexada, em 1763, amp liando o universo geográfico da região da cana. O primeiro engenh o de açúcar de Pernambu co, o São Salvador , posteriormente conh ecido como Engenho Velho de Beberibe, foi edificado p or Jerôn imo de Albuquerque, sob a invocação de nossa Senhora da Ajuda, em lugar hoje denominado “Forno da Cal”. A Civilização do Açúcar iniciou-se realmente com o donatário Duarte Coelho que, com habilidade administrativa, não tard ou em solicitar ao Reino de Portugal a presença de mestres-de-açúcar da ilha da Madeira, assim como a importação de mão-de-obra da África, além de capital jud eu para levar a termo o seu emp reend imen to. A Capitania Duartina
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se desenvolveu à larga, abençoada por um solo especial, uma terra puxando para a cor de sangue, ora arroxeada, ora quase avermelhad a, o massapê. *** Du arte Coelho chegou ao Brasil, com projeto de moradia, a 9 de março de 1535, em companhia da esposa, D. Brites de Albuquerque, do cunhado Jerônimo de Albuquerque e de uma numerosa comitiva de pessoas, amigos, aventureiros, nobres decadentes. Chamou sua capitania de “Nova Lusitânia” e ao pequeno povoado que erigiu denominou de Igaraçu, uma corruptela do tupi Igara-Açu, que quer dizer “barco grand e, canoa enorm e”, como os indígenas designavam as grandes embarcações de Duarte Coelho. Em seguida, construiu uma Igreja de Ação de Graças dedicada aos santos Cosme e Dam ião. O donatário tomou a direção para o sul e fundou a vila de Olind a (1537), consolidando, assim, a sede do govern o. Sacramen tava-se, dessa forma, a colonização do Brasil. O nome Nova Lusitânia não se firmou, prevalecendo o vocábulo indígena Pêra-Nh ambu co, que quer d izer “furo do mar, ped ra furada, ou buraco no mar”, em alusão à abertura nos extensos arrecifes naturais de pedra ali existentes, por ond e entravam os navios no an coradou ro. Uma única cultura parecia viável na exploração do massapê: a cana. Portugal, como já foi dito, tinha experiência com a p lanta n a Ilha da Mad eira e, logo, Duarte Coelho fez uso do cabedal de conh ecimentos. A mão-de-obra seria trazida da África, cuja prática de trabalho escravo acontecia – negros eram objeto de comércio por parte de árabes e de africanos arabizados. Tomadas as devidas providências, a prosperidade da cana agigantou-se em Pernambuco e provocou um a forte concentração econômica, outorgando à capitania um vigoroso poder territorial. Os resultados favoráveis decorreram da eficiente administração duartina, de grande valia para o processo colonizador. O ouro branco destacava-se no mercado internacional com tal proeminência que, na Europa, representou, segundo Paulo Prado, dote distintivo entre os enxovais dos nobres casamentos. Se os lusitanos não encontraram os metais preciosos da América espanhola – Astecas, Incas, Maias –, deparavam-se com uma realidade nova, indicativa de promissores lucros. Investir na terra que “em tudo se plantando dá”, fazia-se urgente. A incansável diligência de Duarte Coelho suscitou a proliferação de engenhos pelas várzeas dos rios Capibaribe, Beberibe, Jaboatão, Una... E o percentual de fabrico seguiu em progressão geométrica. A repercussão do açúcar da capitan ia de Pern ambuco no circuito internacional foi estrondosa. O crescimento dos engenhos fez-se célere, correspondendo à seguinte ascensão: em 1570, 23 engenhos; em 1583, 66 engenhos; em 1608, 77 engenhos. Em 38 anos, um avanço substantivo. A alta
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produção, o solo favorável d as terras n ordestinas brasileiras, a especiaria em alta, geraram a cobiça de ou tros países. As atenções voltavam -se para o grande porto comercial do Recife, olhos gulosos de desejo mercantil. Tanto e tanto, que o açúcar representou a senha aliciadora da invasão holandesa e não as pedras preciosas como a alguns possa parecer. A criação da Companhia das Índias Ocidentais (1623) fortalecia o ímpeto, cada vez maior, de levar aos Países Baixos considerável quantidade do “melaço” para as suas sôfregas e ren táveis refinarias. Só em Amsterdam quantificavam-se 26. Os h olandeses permaneceram 24 anos em Pernambuco, fomentando um desenvolvimento urbanístico e artístico de reconhecido valor. Mostraram-se excepcionais apreciadores da SACCHARUM OFFICINARUM. As frutas cristalizadas os enlouqueceram , acepipes preferidos dos n órdicos de H aia. O Recife, a n ova capital, transbordava sensações d ulcíssimas. Não se podem desprezar alguns elementos que contribuíram para que Pernambu co se distingu isse como uma das primeiras e mais imp ortantes capitanias hereditárias do Brasil. Sua história é a história do Brasil. Impossível separar uma da outra. Pernambuco foi o açúcar, com todos os benefícios e malefícios. Dos períodos em que se costuma dividir a história econômica do Brasil – paubrasil, cana, gado, ouro, café, algodão, etc. – o da cana é sem dúvida o mais expressivo. Por quê? Há razões que justificam tal enunciado. Cumpre apontálas, de forma didática, com o objetivo de destrinchar melhor a trilha vitoriosa: a. pelas condições favoráveis do solo, o massapê; b. pela grande extensão territorial ocupada pelas plantations, denominação inglesa utilizada para a lavoura da cana; c. por sua cultura haver se prolongado durante quatro séculos ininterruptos. Ainda hoje o plantio da cana acontece com safras bem significativas; d. pela situação geográfica de Pernambuco – o ponto mais próximo da Europa e da África.
O MASSAPÊ O massapê – terra que se agarra aos pés com “modos de garanhona” – é o solo predominante da Zona da Mata, de aparência viscosa, oleosa, cor avermelhada (aluviais de massapê e aluviais de barro vermelho) que, aliado à cond ição climática – clima qu ente e úm ido com duas estações bem pronunciadas durante o ano, uma seca, outra chuvosa – oferece condições excepcionais para a semeadura da cana-de-açúcar. Assim se pronuncia Freyre:
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Fátima Qu intas
Há quatro séculos que o massapê do Nordeste puxa para dentro de si as pontas de cana, os pés dos homens, as patas dos bois, as rodas vagarosas dos carros, as raízes das mangueiras e das jaqueiras, os alicerces das casas e das igrejas, deixando-se penetrar como nenhuma outra terra dos trópicos pela civilização agrária dos portugueses (FREYRE, Gilberto . Nordeste, 1985, p. 6).
Sem essa argila especial, sem esse hú mus generoso, sem essa resistência de terra, a paisagem do Nordeste não teria se alterado tão decisivamente no ru mo d e um latifún dio canavieiro ancho d e dem and as sociais e hum anas. A qualidade do solo tornou possível o avanço civilizador da cana. O que chama a aten ção é o que essa gleba fascinante representou para a civilização mod erna mais seden tária que o p ortugu ês fun dou nos trópicos: um a civilização que escapou do extrativismo do pau-brasil, fixando-se numa região e gestando uma sociedade singularíssima, no sentido material e sociocultural.
ENGENHO a manufatura do açúcar Havia três tipos d e engen hos: a. os reais, movidos a água, os preferidos d os senh ores de engen ho p or acelerar a produção e oferecer uma maior rentabilidade; b. os trapiches, aqueles que utilizavam a tração animal. O boi, pachorrento, porém dotado de grande força, suportou a ciranda das almanjarras. Documentos bibliográficos e iconográficos do período holandês registram a presença de bois para m ovimen tar a m oend a dos engenh os de açúcar. Porém éguas, as célebres bestas, velozes e obstinadas foram as prediletas. Trabalhavam incessantemente, repetindo a circularidade de uma moenda artesanal. O movimento ensejava uma penosa dedicação. Pelo excesso de esforço, ritmo acelerado e continuado, as éguas morrim com um a freqüência indesejada, o que ocasionou o aparecimento do cemitério das bestas – a besta morta. Na verdade, tal imagem fixou-se no imaginário popular e provém do sentimento de respeito ao trabalho do animal, um reconh ecimen to român tico, uma vez que não existia concretamente um cemitério, e sim um local onde se enterravam as bestas, de ord inário, um a várzea que, em m omen to posterior, acolhia o plantio da cana. Até na morte a besta d oou-se em adubo animal; 57
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c. os a vapor, surgidos no século XIX, em decorrência da modernização da técnica. A denominação bangüê aplicava-se a todos os tipos de engenho, porque o bangüê consubstanci onsubstanciava ava um u m ícone n o transporte transp orte da cana: espécie de padiola de cipós trançados na qual se levava o bagaço d a cana ou os p ães de açúcar par a a seca – a seca do açúcar . Os term os bangüê e engenho merec merecem em u m parêntese parêntese.. O nome engenho refere-se à dimensão engenhosa que os mouros atilaram na construção da moen d a, pois pois se tratava tratava d e um u m mecanis mecanismo mo habil habiliidoso e astuto, cujo funcionamento dependia de uma engrenagem à base de encaixes. Assim, bangüê e engenho acabaram sendo sinônimos da gravura do passado: insígnia insígnia da man ufatura do aç açúcar úcar.. O complexo do engenho desmembrava-se em casa-grande, senzala, engen en genhh o (também cham ado de fábri ábricca) propri prop riamen amen te di d ito e capela. capela. A distri distribuibuição dos “edifí “edifíci cios” os” d ava-se em um u m terren terrenoo com ond on d u lações p ré-estabel ré-estabeleci ecidd as, a p erfi erfillar u m a ord em d e interesse inter esse geopolític geopolítico. o. Assi Assim m , divid divid iam-s iam-se: e: a. o engenho. Assentava Assentava-s -see na n a parte p arte bai ba ixa, o que qu e se justific justificava ava p ela maior proximidade da água. Os rios foram de importância fundamental porque atenderam à energia hidráulica demandada pela moenda, à constância do umedecimento do terreno e à distribuição do produto além terra – escoadouro eficiente. Daí os engenhos terem se desenvolvido à beira dos rios e deles dependerem, sobretudo dos rios menores, perenes, mais confiantes, humildes e serviçais. Os rios grandes foram os rios dos bandeirantes. Muito deve o Brasil agrário aos rios menores porém mais regulares: onde eles docemente se prestaram a moer as canas, a alagar as várzeas, a enverdecer os canaviais, a transportar o açúcar, a madeira e mais tarde o café, a servir aos interesses e às necessidades de populações fixas, humanas e animais, instaladas às suas margens; aí a grande lavoura floresceu, a agricultura latifundiária prosperou, a pecuária alastrou-se (FREYRE, Gilberto. Casagrande & senzala, 1966, p. 98-99).
b. a casa-grande. No patamar intermediário, local ideal para a eficiente vigilância do patriarca sobre a dura e sistemática labuta do açúcar; c. a capela. Ao cimo, pela sacralidade que dela emanava. Igualmente para se resguardar dos possíveis ataques dos índios; d . a senzala. Um pouco afastada do engenho, em terreno de similar latitude, à vista do senhor “aristocrata”. **** ** 58
Fáti Fá tima ma Qu intas
O proces processo so da m anu fatura d o açúcar açúcar seguia seguia etapas seqüen ciadas: 1. Preparo Preparo da t err erra a–O
massapê, dotado d e um a visc viscosi osidad dad e agregadora, representou a terra ideal ideal para o p lantio da cana. Presto Prestou-se u-se como como n enh um a outra ao desenvolvimento artesanal da sua lavoura, quase que repelindo qualquer tipo d e tecnologi tecnologia. a. Gl Gleba mais materna que p aterna, hosped ou com generosidade o sêmen salvador. O açúcar nela vicejou com independência e auto -s -sufi uficciênci ência. a. A enxada, apen as a enx en xada na mão do hom em, sum ari arizou zou o instru men tal precí precípu o. Até Até o século século XI XIX não hou ve m ud anças no tam anh o d essa terra tão receptiva ao acon aconcch ego do d o vasto can canavial avial.. O vis visgo go arenoso aren oso de um barro vermelho ofereceu resistência ao uso do arado puxado por bois. A argila pegajosa optou – tiranicamente, não se pode negar – pelos pés dos escravos. Aos poucos, entretanto, as técnicas infiltraram-se, mas com lerdeza, atraso provocado provocad o pela emp áfi áfiaa dos nu n u trientes do solo solo e pela topologia topologia do terreno, com altos e baixos, pouco afeito ao recebimento de máquinas; 2. Plantio – A etapa mais simples da manufatura do açúcar. O barro esteve sempre à espera da fertilização da semente salvadora; 3. Colheita – Tarefa p en enosa. osa. Trabalh Trabalhoo lento. len to. Aind Aind a h oje se faz com fac facão ão e foice. foice. Ex Exige ige do h om omem em um a en ergia vital vital in in comu comum m . Debaix Debaixo d o sol, sol, a céu aberto, do amanhecer ao anoitecer, o negro embrenhou-se no canavial, a cortar a cana uma a uma, deixando-se alagar em suor não somente pelas altas temperaturas com também pelo esforço desprendido em uma ocupação rude e primária. O eito significou um espaço representativo de força e resistência – o trabalho manual no seu paroxismo. Tanto que a expressão “cair no eito” denota o sentido pejorativo de quem não possui habilidades para tarefas menos sacrificadas; 4. M oage oagem m – Probl Problem emaa maior m aior da p rod roduu ção do açúcar, açúcar, is isto to é, aquele que invocou inteligên inteligênci cia, a, criati criatividad vidadee e p erm erman anen ente te conservação. A rod rodaa d ’águ água, a, utilizada com freqüência nos “bangüês” até o século XIX, sintetizou uma brillhan te inven bri inven ti tivi vidad dad e d a engen haria mecânica. mecânica. Os moinhos moinh os de rod a d ’água foram introd uzidos pelos mouros em Portugal e posteriorm posteriormente ente levados para a Ilha Ilha d a Madeira. Mad eira. “A rod rodaa d’ d ’águ água, a, sem sempr pree na n a vertical, vertical, ti tinn h a o d iâmetro d e aproximad aproxi mad amen te sete metros. Acoplada ao mesmo ei eixxo d a rod a d ’água havia uma outra roda menor, dentada, chamada rodete, que transmitia o movimento a uma roda m aior aior,, esta horizontal e com com o m esmo d iâm âmetro etro da da roda d’água e que se chamava bolandeira. Assim, enquanto o rodete girava três vezes a bolandeira girava u m a só. O eixo eixo vertical vertical da bolandeira, revestido de um cilindro dentado e reforçado com aros de ferro, transmitia o movimento a outros dois ci-
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lindros paralelos, um de cada lado, igualmente dentados e reforçados. Entre esses ci cili lind nd ros é que qu e passava p assava a can cana. a. Por Por três séculos, séculos, esse esse engen h o man m antevetevese sem significativas alterações, mas considerando-se a sua complexidade, pod ee-se se imaginar imaginar os cuidad cuidad os que inspirava inspirava p ara que não fossem fossem interrom pidas as operações de moagem” (GOMES, Geraldo. Engenho & arquitetura, 1998, p. 14-15). A primeira modificação na técnica de moagem deu-se em relação aos tambores que esmagavam a cana. Inicialmente verticais; posteriormente horizontais. As moendas horizontais resultaram num avanço porque facilitavam o encaix encaixe da d a cana e d iminu íam os perigos perigos de aciden aciden tes, embora n ão os eliminassem. Repito: alguns engenhos recorreram à tração animal, porém a utilização da roda d’ d’água água d eu-se mais mais assi assidu amen te, em vi virtud rtud e da d a sua agili agilidad e p rod roduu tiva. Só n o século XIX XIX as inovações nas técnicas técnicas da d a m oagem iri iriam am surgir. A máquina a vapor referendou a grande “revolução” na feitura do açúcar. Importada da Inglaterra, subtraiu esforços humanos em favor de uma melhor qualidad qualidad e de trabalho. trabalho. O pri p rimeiro meiro engenh o a vapor em Pernambu co reporta-se rep orta-se ao ano d e 18 1817, em embora bora Hai Ha iti e Cuba, cent centros ros de gran d e prod pr oduu ção açucareira, tenham-se locupletado de seus favores ainda no século XVIII; 5. Cozimento – O caldo extraído da moagem era acomodado no parol, (o caldo frio), dando início ao cozimento. Várias tachas de cobre recebiam o sumoo d a cana, cada sum cada um a d el elas as aquecida aquecida em isol solados ados fornos d e lenh lenh a. A ino vação nessa etapa aconteceu igualmen te com com u m século de atraso em rel r elação ação às An An til tilhh as, qu quan andd o da ad oção d as forn fornalhas alhas con contínu tínuas, as, ou seja, a disseminação de um ún ico fogo fogo para vári várias as bocas, bocas, através de u m tún el que que diminu ía de d iâmetro até chegar chegar a u ma cham iné, cujo cujo ci cilind ro dep end ia do tam anh o da fornalha. Tal invento denominou-se de trem jamaicano, por ter sido utilizado na Jamaica, outro centro de produção açucareira de reconhecimento internacional; 6. Purga ou Purificação – Após o cozimento, despejava-se a calda em recipientes com modelagem de cones. Colocadas invertidas em andaimes de madeira, essas formas tinham um furo na base, orifício por onde escorria o mel durante alguns dias. Bom lembrar que somente após a cristalização do açúcar, o que acontecia entre 5 e 8 dias, os orifícios eram desarrolhados, de modo a provocar quase um processo inverso de decantação, no qual o líquid o “sorvido” “sorvido” da sacarose caía caía em um u m por porão, ão, sen sendd o de d e lá retirad retiradoo pelo p elo coco coco – utensílio de longa vara com uma extremidade em molde de cuia, larga e fundd a. Esse fun Esse mel con concentrad centrad o seguia par a a desti d estilaç lação ão com o fim fim d e tran sf sforormar-se em cachaça. A cachaça parece ter sido uma bebida nascida entre os escravos: esc ravos: No início, início, a espu m a da d a primeira p rimeira fervu fervu ra d o cald cald o de d e cana, consideconsiderada inútil, era abandonada em cochos, ao relento, para a alimentação dos
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animais. Esse mosto, ao receber os efeitos do sol, fermentava com facilidade. Os escravos, talvez por necessidade de ingerir algo exótico, ou por simples acaso, passaram a ap reciar o seu sabor. Converteu-se então em u ma bebida a que chamavam de “água-ardente”. O Reino proibiu o seu consumo e a sua fabricação por considerar os efeitos nocivos ao rendimento do trabalho. O fabrico, entretanto, aum entou e, para surpresa de todos, ascendeu à condição de símbolo de resistência ao domínio português – bebida de patriotas, nativista (cf. CAVALCANTI, Maria Lectícia. Açúcar no tacho, 2006). Volto à purificação. Com o objetivo de chupar as imp urezas, costumava-se colocar um pou co de m assapê e d e água n o caldo grosso depositado nos cones. Decorridos os dias necessários, os “cristais” de sacarose apresen tavam -se pron tos para as etapas subseqüen tes. Após a m aturação, ou seja, o condensamen to d o caldo, então solidificado em grãos, o açúcar acomodava-se em 3 camadas: o mais branco, de m elhor qualidade, ocupava a parte superior da forma, enquanto o mais escuro – o mascavo – assentava-se n os espaços inferiores, sendo qu e, por último, repousava o cabucho, quase preto, para u so animal. Os volumes, dep ois de retirados d as formas, cham avam-se pães de açúcar . Originariamente as formas de pães de açúcar foram de barro, o que vem a explicar a presença d e olarias nos engenh os desde o século XVI. Com o passar dos anos, despontaram as de m adeira e as de ferro. Os açucares de cores e valores diferentes atraíam igualmente lucros diferentes. A casa de p urgar n ormalmente era espaçosa porque lá o açúcar perm anecia por algun s dias – entre 5 e 8 –, enqu anto qu e na moen da e n a casa das caldeiras a sua passagem fazia-se rápida. Costumava-se dizer que pela casa de purgar conhecia-se a produtividade do engenho, tal era a sua importância no complexo açucareiro. Segund o João Correia de And rad e, prop rietário do Engenho Jundiá, que me concedeu uma longa entrevista, a casa de purgar costumava ser bem protegida, e até escura, como se o local necessitasse de descanso e afagos extremad os para a boa geração do p rodu to; 7. Secagem ao Sol – Seguia-se a secagem ao relento, método natural, artesanal e quase p rimitivo. O local da secagem recebia o n ome de bagaceira, ou seja, a seca do açúcar que poderia ser a seca do bagaço ou dos referidos pães. Assinale-se que o nome bagaceira adquiriu um conceito maior, representativo da paisagem africana no en genh o; 8. Pesagem e embalagem – Depois de cuidadosamente pesado, era o açúcar embalado em caixas de madeira, com a finalidade de serem transportadas e comercializadas. Tais caixas derivavam dos troncos das árvores da
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den sa e robusta floresta, o que d enu nciava um per verso desmatamen to. Somente no século XIX, surgiu o armazenamento em sacos de algodão. A Mata Atlântica, ainda inviolada, viu-se devastada por vários motivos: habitat do canavial, lenha de fornalhas, material para as caixas de arm azenamento do açúcar e para o fabrico de portas, janelas, altares, pú lpitos e mobiliário... em Portugal. Uma exportação que vingou sem clemência. A arribação de muita madeira de lei acentuou-se após o terrem oto de 1755, em Lisboa, quando hou ve maciços embarques para a Europa de jacarandá, pau d’arco e sucupira (ANDRADE, Manuel Correia de. Geografia de Pernambuco, 1974, p. 27). Na luta aguerrida pelo açúcar, o desmatamento deu-se de maneira agressiva, sem o menor respeito, como se a avidez da cana não permitisse migalhas de p rudência, sôfrega na su a invasão, com receio de possíveis contra-ataques, a usurpar o que não era seu. E a devastação florestal avançou com a jactância da intemperança. O canavial desvirginou todo o mato grosso do modo mais cru: pela queimada. A fogo é que foram se abrindo no mato virgem os claros por onde se estendeu o canavial civilizador mas ao mesmo tempo devastador (FREYRE, Gilberto. Nordeste, 1985, p. 45).
Os tran sportes preferidos p elos senh ores de en genh o foram o fluvial e o marítimo. Fluvial até a costa. Marítimo até o ponto de destino. De tal maneira os rios tiveram imp ortân cia na vida d a bagaceira que se respon sabilizaram pela localização dos engenhos ao longo de três séculos. A partir da implantação das estradas de ferro (segund a metade do século XIX), construídas pelos ingleses, a paisagem veio a modificar-se. Na verd ade, os ingleses possibilitaram a interiorização d os engenh os ao introd uzir um novo m eio d e transporte. A maioria dos rios, em Pernambuco, encontra-se na Zona da Mata, e os engen hos, por sua vez, localizavam-se n a Mata Úm ida, isto é, na Mata Sul, onde o massapê floresce com a galhard ia dos tirân icos imperad ores. Irman ados ao rio, outros fatores “condicionaram” o desenvolvimento do bangüê: a proximidade da Mata e a distância dos índios. Ambos interligaram-se aos princípios seletivos da propriedade do senhor de engenho. O atraso ocorrido nas inovações técnicas na região de Pernambuco é fato incontestável. Durante três séculos, do XVI ao XVIII, as mudanças ocorridas foram p oucas. Provavelmen te o m assapê, com generosidad e d e nutrientes, associado às condições climáticas e à regularidade pluviométrica, retardou os avanços agrícolas. O arado, por exemplo, aqui chegou com um século de retardo (já implantad o nas Antilhas), porqu e o barro vermelho, úm ido e viscoso, opunha-lhe resistência. Por outro lado, a topografia do terreno, com aclives e declives, também empurrou o trator para terras mais planas.
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Houve um imobilismo técnico em Pernambuco. As regiões das Antilhas e do Caribe mostraram-se precoces nas mudanças; quiçá porque o solo não fosse tão fértil. É o caso d a Jamaica, que teve d e conviver com u ma terra pobre, vitimada por fortes ventos e por constantes tormentas. Assim sendo, os grandes melhoramentos em Pernambuco vêm a acontecer somente no século XIX. Entre eles, distingo: a. utilização sistemática d a irrigação, drenagem e ad ubos animais; b. mudan ça d e m atéria-prima na feitura dos p ães de açúcar; fabricados inicialmen te de barro, passam a ser de m adeira, de ferro ou de estanh o; c. caixas d e m adeira para a comercialização são substituídas p or sacos de tecido, poupando assim a agressão à Mata Atlântica; d. aparecimento da chaminé na casa das caldeiras. Antes, a fumaça esvaía-se pelas precárias frestas das telhas; e. implantação do trem jamaicano – fornalha contínua – em substituição às fornalhas “individuais”; f. utilização do bagaço da cana como combustível, desprezando-se a lenha da madeira retirada da Mata Atlântica; g. inversão da posição das moendas, de vertical para horizontal; h. substituição d a cana crioula pela cana caiana, mais sumaren ta e rica em concentração de açúcar. Tais melhoramentos vão culminar com o aparecimento da máquina a vapor (as primeiras, importadas da Inglaterra) que, apesar de ter sido introd uzida em 1817, ganh ou realmen te maior consistência a p artir de 1870. Por incrível que possa parecer, ainda no século XX, com a ascensão das usinas e da industrialização, Pernambuco conviveu com engenhos moendo a roda d’água. “No recenseamento efetuado em 1920 para todo o Nordeste, encontram-se 5.370 engen hos movidos a an imais, 1.609 a vap or e 444 a águ a. O elevado n úm ero de engen hos na região é explicável pelo fato de que m uitos deles eram p equen os, espalhad os pelo Sertão e dedicados à p rodu ção da rapadu ra” ( Apud GOMES, Geraldo. Engenho e arquitetura, 2006, p. 39). Em um panorama geral, sem entrar em minúcias de detalhes quase sempre necessárias ao entendimento dos fenômenos, o Ciclo do Açúcar no Nordeste brasileiro esboçou um gráfico inicial de grande prosperidade. Nos séculos XVI e XVII, Pern ambuco foi o m aior representan te m undial do produto. No século XVIII, a d escoberta d o ouro n as Minas Gerais suscitou um a migração interna de escravos, desarrumando os núcleos da produção canavieira. Mesmo o enriquecimento na mineração não d irimiu a cobiça pela terra. Esta, sim, trazia a h egemonia de qu e tan to cobiçava o colonizador. Os que se favoreceram com o Ciclo da Mineração não d eixaram d e lado o apetite pela agricultura porque dela man avam os possíveis títulos de nobreza. Em paralelo à efervescência d o ou ro, o H aiti, então colônia fran cesa, conquistou
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o posto, no século XVIII, de maior p rodu tor do mu nd o, o que vem a engrossar ainda mais a crise interna no Brasil. Com a Revolução dos Escravos ocorrida em 1791, no Haiti, dissolveu-se por lá a estrutura canavieira, impulsionando Cuba a assumir o papel de maior produtora mundial do século XIX. Cuba soube, e bem, aproveitar a situação pós-revolucionária, ao importar d o Haiti escravos, mão-de-obra e p rocessos técnicos adotados para o p lantio. A concorrência do Caribe e das Antilhas, junto com o Ciclo do Ouro, abalou, sem d úvida, a “bonan ça” açucareira de Pern ambuco, levand o-o a um declínio que vai reflorescer no século XIX, com menos vigor em razão do Ciclo do Café. O surgimento da usina, no final do século XIX, sustentou o poder canavieiro por alguns anos, mas não o “perpetuou” em Pernambuco – a excelsa capitania da sacarose – para além dos primórd ios da segun da metade do século XX. Embora o aparecimento de uma burguesia, descendente da aristocracia açucareira, tenha firmado o seu papel social em décadas passadas, apresentand o contemp oraneamen te rasuras p or interferências outras, hoje, o Estado de Pernambuco reage às oscilações de produtividade do açúcar. Desde 1980, constata-se um surto renovador entre as usinas exportadoras. O cenário modifica-se em circunstâncias sociais, sem qu e a terra, contu do, venha a perder o seu brasão de fidalguia, ainda que a alternância dos ciclos açucareiros tenha assinalado uma das fortes variantes no “desmonte” – entre aspas naturalmente – da oligarquia das famílias patriarcais.
A ESCRAVIDÃO Assim como o en genho não perdeu a sua força social, a escravidão igua la-se na mesma intensidade, com uma diferença fundamental: a ela adere a culpa de u ma sociedad e qu e almeja d eslembrar a m ácula histórica. Uma p atologia social que traz o gosto amargo d e fel, tão distante d a doçura d e mel do d ulcíssimo açúcar. Rima cru enta qu e exibe a fereza do sistema escravocrata. Julgados em conjunto, os brasileiros têm o que os psiquiatras chamam um passado traumático. A escravidão foi o seu grande trauma. Para muitos a cor menos branca foi, em certo tempo, lembrança desagradável de situação social infeliz de pais ou avós ou de episódio vergonhoso do passado pessoal ou de família (FREYRE, Gilberto . Novo mundo nos trópicos, 1971, p. 124).
O negro patenteou a representação do trabalho, da d ureza d e um a atividade que reivindicou energia física e psicológica. Não lhe bastava apen as o vigor orgânico, m as igualmen te o vigor men tal para sup ortar as 64
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p éssimas con d ições d e trabalho e as inú meras horas despren didas no esforço repetitivo e monóton o. A paisagem da bagaceira revelava-se de tal man eira insólita que o trabalho d a manufatura d o açúcar avocou a si a qualificação do deplorável, do tirânico, do bestial. O português afirmou-se indolente diante de um a escravidão qu e não nasceu n o Brasil, já conhecida pelo lusitano desde 1448, quan do da imp ortação de m il escravos para serviços dom ésticos – registre-se que, em 1551, Lisboa contabilizava um número equivalente a mais de 9 mil escravos –, não n asceu a escravidão no Brasil, por certo, porém aqui se estend eu por quase quatro séculos. O desprezo pelo trabalho manual na sociedade brasileira decorre seguram ente d a escravidão, um trabalho com rótulos de indignidade, portanto, não merecedor de reverências. O açúcar foi o negro e o seu empenho expressou-se com tamanho esmero que freou a revolução técnica na agricultura em Pernambuco. Mais um paradoxo da Civilização do Açúcar. E por quê? Porque o negro respon sabilizava-se pelo volume e otimização de tarefas passíveis de serem substituídas pela máquina. Postulado esdrú xulo tanto quan to verdadeiro, como todas as ambigüidades que evoluíram na sociedade brasileira. O eito reclamou o negro, uma vez que o índio não se adaptou ao ritmo da lide agrícola. Bom lembrar que o indígena era nômade, vivia da caça, da pesca, da guerra; logo, de atividades da aventura, pouco convivendo com a partitura do cotidiano – a agricultura, essa surgiu com a mulher e decorreu das tímidas culturas de sobrevivência. Sem a aptidão física nem psicológica do autóctone para o cultivo da cana, restava um outro tipo de escravidão: a africana. E o Brasil entregou ao negro o processo civilizatório. Um débito que acusa o lado doloroso da cultura.
SABOR E DOCE do alimento à gastronomia Tudo que se mostra agradável, prazeroso, instigante, é doce. Do adjetivo latino dulcis e, tem sabor como o do mel ou o do açúcar. Dá água na boca e instiga as sensações palatais. Por analogia, percorre um vocabulário amplo, ao fustigar os sentidos e consolidar emoções de deleite – basta rememorar algumas expressões: “Quem a boca do meu filho ad oça, a minha beija”; “luade-mel”; chamar a bem-amada de “doce” é elogio. Dizer que alguém é um “alfenim” equivale a d izer que é u ma p essoa frágil – o alfenim d errete-se em contato com a saliva, lhano como a sua aparência.
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Cana, Engenho e Açúcar
A satisfação de saborear um doce foi tão intensa que não se comia açúcar nos engenh os na sexta-feira santa p or representar um prazer incomp atível com a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. O gosto deriva do cultural. Aprende-se a saborear aqueles pratos que fazem parte da nossa culinária. O sabor se educa; por isso gostamos de uma determ inad a receita e não d e outra. Há todo u m ap arato estimu lativo para a escolha do que se qu er comer. E este sabor dep end e d o jeito de p reparar o alimento. Daí a importância em separar-se o alimento in natura do alimen to cozinhado, regado a temperos, feito para açular o apetite. A gastronomia resulta da cultura, ou seja, da combinação dos ingredientes e da forma do cozinhamento. O antropólogo Levi-Strauss, no seu livro O cru e o cozido, apresenta com clareza essa d up la função: o cru equivale ao estado d e natureza; o cozido, ao cultural. Exemplificando: a casa-grande preferia os alimentos cozidos, enquanto os africanos apreciavam os assados. Na cozinha da casa-grande fervia-se mais do que se assava. Fervia-se fritando com manteiga inglesa, azeite doce de Portugal, banha de porco mineiro, óleo de dendê, de Angola, Congo e Guiné. A “constante” do passado canavieiro era o caldo das carnes cozidas (CASCUDO, Câmara. Sociologia do açúcar, 1971, p. 173).
Torna-se relevante entender tal conceituação, de modo a desvendar o processo da culinária que vai do natural à gastronomia; do que a natureza oferece ao que o homem reelabora; do que se refere ao alimento per se ao alimento transformado em acepipes pantagruélicos. Enfim, dos nutrientes virgens à comensalidade refinada. Tudo indica que o sabor doce é oriental. Excessivamente doce. Dulcíssimo. Os mouros o disseminaram pelo mundo afora. Impressionante o consum o de mel no Oriente. As carnes salgadas servidas com doce – costume que julgamos saxônico – são de origem moura. Mulheres gordas, barrocas, as árabes, fartas de lambu zar-se no m elaço. E o doce pern ambucano é o mais doce dos doces. Sobressai, inclusive, entre as outras regiões do Brasil. Doce para ninguém botar defeito; tanto que o açúcar usado nos doces de fruta canibalizam o sabor d a fruta, esta imolada p ela arrogância d a glicose. Os nossos índios e os africanos que para cá vieram – da África O cidental – não conheciam o açúcar. Usavam mel na preparação das receitas. E cabem também aos árabes, desde tempos remotos, a difusão do mel pela Europ a e o m odo d e como usá-lo na preparação de bolos e doces. Os mosteiros portugueses aprimoraram-se como produtores de mel, hábeis apicultores. Os frades en gend raram sobremesas e velas de mel.
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À Europa o açúcar chegou, oficialmente, no século XV, embora já se tenha notícias de sua presença nos séculos XIII e XIV. Foi utilizado inicialmente como remédio – calmante, cicatrizante, digestivo, diurético. Na verd ade, os começos deram se pelos laboratórios dos boticários. (cf. CAVALCANTI, Maria Lectícia. Açúcar no tacho, p. 3, 2006). Pern ambuco é o açúcar. O massapê. A cana. Na Zona da Mata abrolhou a Civilização do Açúcar, por entre o vasto latifúndio de uma planta que se quis única, absoluta, autoritária.
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A FAMÍLIA PATRIARCAL Personagens e Costumes Fátima Quintas antropóloga e ensaísta
O senhor de engenho não foi apenas um ser econôm ico , mas uma entidade social com dotes vitalícios de imagem e de poder. Fátima Quintas
SUMÁRIO Família: da origem lusitana à formação personalizada| 73 A plasticidade d o português | 73 Família: a unidade colonizadora | 74 Uma sociedad e mon ista | 76 Tédio e ócio em um Brasil de genitalidade | 76 A popu lação nativa | 88 A fêmea | 77 O macho | 79 Os corredores da casa-grand e | 80 A reclusão da p ortuguesa | 80 O rito de p assagem da Primeira Comunh ão | 82 A festa de casamen to | 84 O círculo da end ogamia | 86 Decadên cia da sinh á-don a | 88 Ecos da africanidade | 90 A imagem d a mãe-preta | 90 A prostituição doméstica | 91 A culinária e a negra | 94 A influência deletéria d a sífilis | 99 A religião d o sexo | 101 Bibliografia | 106
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FAMÍLIA Da origem lusitana à formação personalizada A PLASTICIDADE DO PORTUGUÊS O caráter cosmopolita do português – uma mistura de raças e culturas – assegurava-lhe uma boa capacidade de adaptação, transformando-o, antes de tudo, num desbravador de caminhos, um plástico em sua maleabilidade cultural. Do cosmopolitismo assomou a flexibilidade psicológica que facilitou o ajustamento, esse quase eclético, a emendar-se da terra à gente da terra. A “ind efinição” étnica lhe trou xera grandes vantagens que, somadas ao temperamento latino, fez do português um arauto da aventura. As adversidades do trópico não chegaram a ser uma barreira de difícil enfrentamento, o que teria sido obstáculo intransponível para o inglês, reservado no seu “purismo” étnico. Várias razões contribuíram para que o processo de estabilização ocorresse em aparente harmonia. Em primeiro lugar, Portugal detinha características bicontinentais, influenciado pela cultura européia e africana. Configurava-se, em alguns mom entos, mais África que Europa. Essa bicontinentalidade, analisada à luz do processo de acomodação de um povo, produziu conseqüências relevantes: protegeu o p otencial adaptativo do reinol ao tempo em que alargou os horizontes culturais, ao evitar a formação de uma personalidade social ensimesmada em sectarismos e ortodoxias. Além dessa plástica cultural instigadora de mentalidades mais transigentes, o português guardava a plástica religiosa. Duas religiões o envolviam – o cristianismo e o islamismo. Fortes na sua expressão ritualística, deixaram marcas profundas no espírito místico do lusitano. Bicontinentalidade, plástica cultural e du alismo religioso dizem do português como um elemento propício aos desdobramentos geográficos e à aclimatação, superando em proporções significativas a reclusão étnica de outros povos. O eurocentrismo atenuava-se na mescla ibérica. Há ainda que se considerar a importante, a imp ortantíssima influên cia moura. Não somente n a religião ela se embrenhou, como também n os costum es, nos hábitos, na arquitetura, nas normas sociais e, sobretudo, no aprendizado de técnicas agrícolas. Aliás, de técnicas especialmente tropicais. Não fora essa predominância, o português estaria inapto a assumir o mundo brasileiro nordestino. Sem a experiência moura, o colonizador teria provavelmente fracassado nessa tarefa formidável. Teria fracassado, impotente para corresponder a condições tão fora de sua experiência propriamente européia (FREYRE Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 229).
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FAMÍLIA a unidade colonizadora A dimen são histórica da família p atriarcal justifica seu grau de importância na sociedade brasileira; figurou, no passado colonial, como a instituição de maior peso. Aliás, contemporaneamente, ainda agrega variáveis de sup erior valia. A história do brasileiro não poderia ser reconstituída ao largo da engrenagem familiar, uma vez que uma e outra dialetizam-se na formação de um núcleo de caráter doméstico. O Brasil antigo foi um Brasil essencialmente de família. Nela se p rocessaram os outros brasis: o político, o monárquico, o federativo e o republicano. Um Brasil de pais, de mães, de filhos, de netos, de bisnetos, de escravos, de noras, de genros, de tias, de tios, de comadres, de compadres... reverenciavam uma família extensa e cristocêntrica. Extensa, por incorporar membros aos refúgios mais íntimos, os tradicionais agregados; cristocêntrica, por adotar o cristianismo como força motriz da sua dinâmica. Um Brasil alimentado por relações domésticas, cheio de filigranas e de rotinas. Um Brasil submerso na convivência do casulo privado. E nenhuma história mais natural do homem – ou de uma sociedade – que a de sua vida de família; e esta, em termos crus, é a história do seu sexo. O sexo do indivíduo não apenas biológico mas social. (...) da raiz dos seus cabelos, sensível ao cafuné ou ao trinco voluptuoso por mão de mulata em cabeça de ioiô ou de iaiá, às pontas dos dedos dos pés aristocráticos, por sua vez vibráteis às comichões provocadas pela extração, às vezes doce como uma carícia sexual, de bichos aí encravados (FREYRE, Gilberto. Vida, forma e cor. 1962, p.114).
Tudo leva a crer que o caráter exacerbado da fundação familiar no passado patriarcal é proporcional à ausência do Estado na empreitada da colonização. A maximização do esteio familiar em muito decorreu do deslocamento do público para o p rivado. Tendo sido tarefa de particulares, tornou-se mais fácil a sua viabilização através de batalhas individualizadas e distantes da burocracia impessoal. É bom que se enfatize que o processo colonizador não foi obra do Estado nem tampouco de nenhuma companhia de comércio, e sim de pessoas isoladas que se aventuravam em terras longínqu as e inóspitas. Afinal os trópicos significavam um território desconhecido, onde tudo poderia acontecer. E aconteceu.
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O Estado, afastando-se do controle sobre o indivíduo, concorreu diretamente para o familismo da sociedad e p atriarcal, propiciand o uma ambientação mais doméstica, erigida em bases de parentesco, consangüinidade, afinidades e relações de dependência. Parecem tão indubitáveis os nexos convergentes do p rivatismo d oméstico que a estrutu ra da casa-grand e, com o seu alto poder de aderência social, canonizou as diversas faces do patriarcalismo. Exemplifico: os nascimentos, os batizados, a Primeira Comunhão, o casamento, os partos, a morte, e até o cemitério, compuseram o cenário do doméstico. Nada esteve fora do seu alcance. Dentro da concavidad e de família tudo desfilou. O lastro doméstico, portanto, arregimen tou o domínio de forma fun dan te. Nem m esmo a Igreja, que surge como um a flâmula de alta, altíssima ingerência, pôde lhe fazer frente. Disputou, disputou, disputou... Mas não conseguiu sobrepujar-se em vantagens. No final das contas, perdeu a batalha. Assim, o privado revelou-se único na auto-suficiência e no “governo” régio. Uma família acasalada ao massapê, hierática na condição de senhora nobre e fidalga. Os seus aspectos econômicos, sociais e organizacionais sobrepujaram os possíveis elementos competitivos. Do que se conclui que a família albergou a un idad e produ tiva máxima, a célula mestra do ap arelho colonial. Lastreada n a dimensão extensa e cristocêntrica, no patriarcalismo polígamo, e na trilogia étnica, constituiu-se substantivamente plural. O domínio de todas as instâncias disseminou-se através de sua morfologia, nervo polarizador de ânimos diversificados e do poder unitário e múltiplo. O que quero dizer com isso: a família reuniu todas as ramificações da sociedade; nela preponderou uma ação centrípeta, capaz de albergar os mais variados problemas. A soberania da casa-grand e transcendeu os limites do dom éstico, sem sair do doméstico, ao ensejar um cenário autocrático e oligárquico, onde o paterfamilias atraiu para si um arrogante monopólio. Autocrático por ser representado por uma única pessoa; oligárquico por ser o poder dominado por uma classe ou grupo de famílias. Em suma: o paterfamilias referenciou o sinal distintivo do cerco privado. Os nossos bisavôs prezaram a união de todas as confluên cias personificadas no absolutismo familiar. A célula mater concentrou o ponto angu lar das gentes que habitaram os engenhos de outrora. Tud o se resum ia às circunstâncias privadas, ponto alto e mais que exponencial de suas vidas. A casa-grande consignou a estrutura clássica – clássica no sentido sociológico – da en genharia de família; perdurou por quatro séculos, chegan do até os nossos dias, não enquanto edifício arquitetônico, mas enquanto figuração emblemática da história colonizadora. Tentarei percorrer os seus desvãos: esconderijos, aposentos, alpendres, de modo a pintar um quadro capaz de dar visibilidade aos segredos que por lá deambularam. E o que se passou nessa casagrande?
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UMA SOCIEDADE MONISTA O portu guês plasmou-se ao contexto que emergia: gerou uma sociedad e pautada no monismo – concepção segundo a qual a realidade é constituída por princípios únicos –, com uma agricultura imperativa, monocultura, com um a concentração de renda latifun diária, monoeconom ia, com um a regência isolada do patriarca, monopoder, com uma sexualidade dirigida ao macho, monossexual, o que a identifica como sociedade patriarcal, isto é, reveladora de convergências para o patriarca. Do que se deduz que visões monistas e autoritárias fizeram parte do cenário colonizador. Aristocrática – a terra como título nobiliárquico – , excludente – a escravidão selando fortes marginalidades –, plena de exuberâncias – da cana ao esplendor das festas –, a sociedade patriarcal ergueu -se à sombra e ao sol dos pilares do açúcar. TÉDIO E ÓCIO EM UM BRASIL DE GENITALIDADE O cotidiano doméstico sexualizou-se por entre as etnias que o formaram. Sob formas diferentes: umas moderadamente, outras exacerbadamente. O português, um lúbrico por excelência, emprenhou à brava. Para cá veio uma massa de m achos dispostos a cum prir a tarefa do p ovoamen to. Cum priramna com vontade e com garra. Ciosos, que o eram, de sua virilidade, cercaram -se d e estímu los genitais, os mais extravagan tes. Nesse aspecto, os lusitanos comportaram-se com magnitude. O regime robusteceu o ócio que, quando bem conduzido, é o melhor celeiro de criatividade, a lerdeza, a preguiça e, conseqüentemente, o erotismo. Qu anto maior o nú mero de horas vagas dos senhores, maior o nú mero de escravos e tanto maiores o erotismo e a depravação. Uma relação de causalidade entre o pod er econôm ico e o d esadoro sexual. O ócio atingiu tal monta que se chegou a associá-lo ao açúcar no sangue. Engano. O açúcar responsabilizou-se apen as ind iretamente pela prom iscuidad e moral e sexual. No fun do, a sua interferência concentrou-se no monopólio da cana, na repulsa à policultura e no apelo à escravidão, todos geradores de m odelos deformantes. O ócio aliou-se à genitalidade p ara desenhar as matrizes dominad oras do mundo colonial; foi o grande cúmplice das fantasias eróticas, da permissividade sexual e da imaginação da libido. A ele se atribui a maior dose do tempero sexual que o português conservou. Devotado ao nada fazer, o patriarca ia levando a vida com o objetivo de enriquecer em meio a uma rotina monótona, flanando de um lado para o outro, à disposição da própria criatividad e e à d isposição dos arroubos penianos. A inação gera necessidades sexuais provenientes dos vazios psicológicos. O pórtico da casa-grande cheirava ao prazer da carne e à canseira de hom ens indolentes que deliravam ao vigor dos sonh os da concupiscência.
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(...) A vida dos aristocratas do açúcar foi lânguida, morosa. (...) Os dias se sucediam iguais; a mesma modorra; a mesma vida de rede, banzeira, sensual. E os homens e as mulheres, amarelos, de tanto viverem deitados dentro de casa e de tanto andarem de rede ou palanquim (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 466-467).
A rede – de origem am erínd ia – resum ia o escud o da preguiça dentro d o molusco patriarcal. Interessante assinalar que os índios dela fizeram um uso benéfico. Entretanto, portugueses e portuguesas apropriaram-se de maneira escandalosa do seu lado negativo, ou melhor, transformaram-na em objeto de moleza e de lascívia. A tão decantada rede acomodou a inatividade do patriarca. Rede que aconchegava o corpo encharcado da astenia do tédio. Rede confortando o cansaço do cansaço inútil. Rede reservatório de insuperáveis inoperâncias. Ociosa, mas alagada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho tornou-se uma vida de rede. Rede parada, com o senhor descansando, dormindo, cochilando. Rede andando, com o senhor em viagem ou a passeio debaixo de tapetes ou cortinas. Rede rangendo, com o senhor copulando dentro dela. Da rede não precisava de afastar-se o aristocrata para dar suas ordens aos negros; mandar escrever suas cartas pelo caixeiro ou pelo capelão; jogar gamão com algum parente ou compadre. De rede viajavam quase todos – sem ânimo para montar a cavalo: deixando-se tirar de dentro de casa como geléia por uma colher (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 466).
Em cada aposento da casa-grande, a sexualidade expressou-se. Cedo se desenvolveu na penumbra do vácuo. Esteve presente em quase todos os momen tos da vida cotidiana: no quarto d e dormir, nos marquesões da sala de jantar, na sonolenta rede que exercia uma sedução especial... A família patriarcal consolidou-se numa paisagem sensual, polarizada en tre o relaxamento e as sensações libidinosas. A pasmaceira e o sêmen invadiram o doméstico. Adultos perdidos no “atoleiro da carne” e na inércia do corpo. Preguiçosos, mas reprod utores infalíveis, orgu lharam-se da viril aristocracia. O Brasil colonizador particularizou-se por intensas modorras e por “teimosas” sexualidades.
A POPULAÇÃO NATIVA A FÊMEA Dona de um corpo rijo em musculatura, sem as terríveis estrias, as deforman tes celulites ou qu aisquer outras m azelas que o d esgaste do m un do
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contemporân eo imprime ao feminino, a mulher indígena sorriu alegre para o colonizador. Anestesiada como uma criança diante do brinquedo recebido. O mundo derramava-se aos seus pés; ela, vigorosa na capacidade de entregar-se inteira, cabelos molhados, pele bronzeada pelo sol causticante, pronta para a oferenda do prazer. Alumbrou-se a cunhã diante do colono recém-chegado, pleno de afetação nos seus trajes europeus: roupas indevidas, adereços modernizantes, porte de ocidental. Dele brotavam o desconhecido, o fantástico, o misterioso, o que por trás da cortina pode acontecer de enigmático. Mais ainda: os “cosméticos” sofisticados, com saibos de civilização, alguma coisa fantástica, sem tradução imediata. De longe, de caminhadas adversas, falando língua diferente, com a tez branca e os cabelos pretos, enfeitiçava a gentia, ansiosa por experienciar as carícias européias. Tudo lhe era excitante no litoral brasileiro. Do cheiro da pele ao perfume ativo, exalando aromas afrodisíacos. E a mulher deixou-se seduzir por esse homem divinizado. Não hesitou diante de tanta novidad e. O eu ropeu trazia o progresso com todas as incontáveis vantagens. A cunhã aquiesceu doando-se freneticamente. O ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual. O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne. Muitos clérigos, dos outros, deixaram-se contaminar pela devassidão. As mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 103, o grifo é meu)
A própria distância cultural serviu de bússola para o fascínio. Os rituais, os mimos sofisticados e as “bugigangas” imp ortadas pontu aram cham amen tos irresistíveis. A cerimôn ia exibia o êxito comp leto. A índia vivenciou-a sem restrições, como presas passivas, à mercê do exercício absoluto do encanto – hom ensdeu ses. Para aquém e para além dos mares, o lusitano espraiava-se na proeza do hedonismo, ele, um franco atirador, acostumado a beijar donzelas portuguesas. Paulo Prado, ensaísta do livro Retrato do Brasil, espantou-se diante das primeiras impressões que os cronistas nos deixaram sobre a moral sexual entre o gentio. Impressões de pasmo e de horror. O mesmo acontece com Gabriel Soares de Souza em relação aos Tup inam bás: são desregrados e n ão há pecado de luxúria que não cometam. O padre Nóbrega também se alarma com o elevado número de mulheres que os portugueses têm e com a facilidade com que as abandonam. As descrições falam de uma moral lassa, desmedida, em face dos desejos sexuais. Para se compreender o complexo indígena, torna-se necessário desprender-se dos princípios ocidentais. As idéias de fidelidade e de sexualidade afastam-se dos parâmetros por nós concebidos. A cunhã sentiu-se atraída
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pelo homem branco – o oposto dos seus pares: índ ios nômades. Daí o espanto das discrições acima textualizadas. E para cá, ressalte-se, não desembarcou nenhuma elite portuguesa com dotes de primorosa educação. Nem a erudita nem a sexual. Ao contrário, restos de homens, vocações explícitas para o erótico, sobras do banquete ibérico. Se não foram os degredados tão anunciados, historicamente falando – em decorrência das Ordenações Manuelinas (1521) –, foram h omens ambiciosos, capazes de enfrentar duros obstáculos para atender aos ímpetos da intemperança. Para a formidável tarefa de colonizar uma extensão como o Brasil, teve Portugal de valer-se no século XVI do resto de homens que lhe deixara a aventura da Índia. E não seria com esse sobejo de gente, quase toda miúda, em grande parte plebéia e, além do mais, moçárabe, isto é, com a consciência de raça ainda mais fraca que nos portugueses fidalgos ou nos do Norte, que se estabeleceria na América um domínio português exclusivamente branco ou rigorosamente euro peu (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p.103).
E alumbrou-se a cunhã. Quem sabe, o caminho mais próximo da sua condenação. O MACHO Tanto a índia quanto o índio congregaram o capital básico que o colono encontrou em terras brasileiras, ou seja, as referências para o prazer e para o trabalho. No prazer, a fêmea satisfez plenamente; no trabalho, o macho decepcionou. Decepcionou por incompatibilidade cultural, por incapacidade de submeter-se ao sistema do eito. Não resistiu; foi aniquilado pelas exigências técnicas e emocionais da lavoura d a cana, a requerer um a saúd e física e m ental inigualável, que só o africano, mais tarde, ostentaria. Em estágio cultural nômade, os nossos indígenas estavam acostumados a um ir e vir permanente: a caça, a pesca, a guerra. Os atos repetitivos da rotina não lhes agradavam. Apen as o conviver com a natureza lhes renovava o apetite de vida. Tais elementos dificultaram o português a fazer u so da m assa autóctone. Sem as maravilhosas iguarias da Índia, restava a imensidão da terra a ser explorada. A agricultura seria o germ e latente da colonização qu e se iniciava. Não h avia ou tra alternativa. Levar a term o o trabalho d a lavoura represen tava a saída possível. Assim foi feito. A princípio, com o índ io escravizado, mas sem os resultados à altura d a ambição portugu esa. E o reinol, melhor dizendo, o português, apelou para o africano.
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OS CORREDORES DA CASA-GRANDE A RECLUSÃO DA PORTUGUESA A bagaceira não poupou a vida da mulher. Fê-la um ser amorfo, sem vontade, pron ta para agrad ar à paisagem d a cana, tão imp erativa nos seus quereres. Madrugadoramente aprendeu a portuguesa o caminho da sujeição porque assim a ordem social determinava. O m odelo patriarcal usou d e todos os artifícios, contanto que essas mulheres introjetassem sentimentos de sujeição e pacatez. E apressou-se em entronizá-las em retiros quase religiosos; guardá-las para não serem vistas; reservá-las em ermos enigmáticos; cobrilas com o véu da pudicícia. Assim garantia uma feição doméstica adequada aos ditames do patriarcalismo. E o retraimento começava pelos próprios aposentos. A disposição dos cômodos mostrava uma arquitetura conventual, a recatar a mulher, ou melhor, a marginalizá-la na vida cotidian a. Além d a reclusão física, sofreu a vigilância d e argutos observadores: da m ucama, sempre ao seu lado; do m arido, com olhos e ouvidos atentos para rep reend ê-la; do pai, a mensurar o tamanho da prole. Ao derredor, dedos em riste. O isolamento árabe em que viviam as antigas sinhás-donas, principalmente nas casas-grandes de engenho, tendo por companhia quase que exclusivamente escravas passivas. (...) Basta recordarmos o fato de que, durante o dia, a moça ou menina branca estava sempre sob as vistas de pessoa mais velha ou da mucama de confiança. Vigilância que se aguçava durante à noite. À dormida das meninas e moças reservava-se, nas casas-grandes, a alcova, ou camarinha, bem no centro da casa, rodeada de quartos de pessoas mais velhas. Mais uma prisão que aposento de gente livre. Espécie de quarto de doente grave que precisasse da vigília de todos (FREYRE, Gilberto. Casagrande & senzala, 1966 , p. 363-364).
O “isolamento árabe” de que fala Freyre alongava-se na discrição de sequer expressar-se diante d os questionam entos do m arido. Sua voz não deveria ser ouvida entre conversas de homem, a não ser para pedir vestido novo ou rezar pelos filhos. Às vezes cantar modinhas para afugentar a pasmaceira d a casa-grand e. A med ida do retraimen to deveria correspon der à intensidad e da polidez feminina. Guardadas em fortalezas babilônicas, a mansidão m uçulmana exortava modelos a seguir – verdadeiros cativeiros que deveriam abafar os arrufos de libertação. Mulheres acanhadas, porque assim evitavam desconfortos para maridos conscientes da sua em páfia, a viver n os seus claustros, sufocadas na 80
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solidão de quem não pode se pronunciar nem tampouco alimentar enleios para além dos muros, dos grossos muros de suas alcovas. A prisão física indicava outras prisões: a social, a cultural, a política. O que se queria era que essa mu lher estivesse alheia aos acontecimentos importantes, ou pelo menos distanciada dos trâmites que a cana reivindicava. Em casa, sob os olhos vigilantes que a orbitavam ela se viu cerceada nos apelos pessoais. O excesso de mordomia agigantava os níveis de cobrança. Ela, a mulher, raramente se sentia à vontade, ora acudindo a um, ora acudindo a outros, e esquecend o-se de acud ir a si mesma. Sem bu scar um apren dizado educacional compatível à sua posição de esposa de patriarca, falhou na relação a dois. A reclusão fabricou u m quad ro de timidez e d e acídia diante d o volum e de escrúpulos que não lhe foram poupados. Com uma subserviência dependente, sem os brios do conh ecimento, conviveu com h omen s solitários porque reduzida no seu potencial reflexivo. Um ser de estufa, medularmente postiço. A ratificar o estilo da casa-grande, a preocupação de resguardar os personagens ali viventes prevaleceu. A mulher talvez tenha sido o elemento mais sacrificado. Não só foi envelopada em folhagens artificiais, como protegida da ambiência externa. Mas a essa mulher passiva, ante o marido, tocava a distinção de ser uma espécie de objeto quase religiosamente ornamental dentro da cultura de que fazia parte, especialmente como esposa e como mãe (FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 42).
A casa compendiou o espaço que lhe confiaram e, assim mesmo, até certo pon to: com parcimôn ia e prudên cia, sem exageros de individualidad e; a prestar contas de seus atos, mínimos atos, como se a vida dela exigisse o máximo de perfeição. Mas através de toda a época patriarcal – época de mulheres franzinas o dia inteiro dentro de casa, cosendo, embalando-se na rede, tomando o ponto dos doces, gritando para as mulecas, brincando com os periquitos, espiando os homens estranhos pela frincha das portas, (...) parindo, morrendo de parto (FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 94-95).
Clausuras femininas eclodiram d esse ambiente de cárcere. As visitas, quando aconteciam, eram das comadres e dos padres. Das comadres que vinham conversar sobre assuntos prosaicos ou queixar-se de doença ou de falta de dinh eiro; do padre, para aferir o grau de religiosidade ou recomen dar n ovos ap rimoramentos – a perfeição em primeiro lugar. Exemplo de comportamento.
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Cópia fidedigna de Maria, a Virgem Santíssima. O culto à Virgem Maria, no Brasil, foi exageradamente praticado. Talvez com a finalidade de neutralizar o autoritarismo da casa-grande, assim como apaziguar as contradições que o patriarcalismo exaltou. (...) A devoção católica pela Virgem Maria, glorificada como Rainha – Regina – , em nenhuma outra região do mundo parece se ter tornado tão forte como no Brasil. Resultado, talvez da extrema idealização da mulher aristocrática e mesmo da mulher negra – através do simbolismo da Mãe Preta – como componentes básicos e vitais do complexo de vida familiar nas plantações. Complexo desenvolvido durante os dias da escravidão (FREYRE, Gilberto. Novo mundo nos trópicos, 1971, p.177).
E de quantas Marias constituíram-se as casas-grandes? O RITO DE PASSAGEM DA PRIMEIRA COMUNHÃO O circuito patriarcal produziu ritos de passagem bruscos, repentinos. Não se preocupou com as cronologias, tampouco com elaborações psicológicas convenientes. A cana exigiu u m amad urecimen to precoce em nom e da sua prosperidade. Que homens e mulheres se tornassem adultos o mais rápido possível. Sem ajustamentos. Do dia para a noite. Não havia tempo para delongas. Aliás, a categoria infantil não foi valorizada. As crianças eram suportadas enquanto anjinhos de cachos nos cabelos, beicinhos de bebê, rostos gorduchos e risonhos de qu em n ão sabe de n ada, pequeninas, aind a capazes de suavizar o mau -humor dos mais velhos. Até aí, acarinharam-nas com d oses de ternura. Idolatradas em nichos beatificados, confundiam-se com as imagens dos santos. Até certa idade, era idealizado em extremo. Identificado com os próprios anjos do céu: andando nu em casa como um Menininho Deus. (FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 68).
Mas esperem . Não se contentem com taman ha benevolência. Logo mais a inversão de papéis acontecerá. Pois é. Depois alongavam -se, essas mesmas ado ráveis criancinh as, em ind esejados meninos e a etapa subseqüen te emergia de pronto. Transformavam-se em artificiais adolescentes, hirtos e endurecidos na falsa condição de adultozinho. Até os 6 ou 7 anos, bem-vindos. A partir daí, rechaçados e, até mesmo, ostensivamente repelidos. O tornar-se “maduro” assumiu ares de imperativo categórico, porque o canavial não perm itia deslizes de infância. Portanto, os ritos de passagem foram
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praticados com um rigor inigualável. Rigor e precocidade. Por conseguinte, a criança pouco se entendeu com a meninice. Foi órfã da sua pu erilidade. A impaciência de um crescimen to fora de hora encarregou-se de arrancar-lhe dos braços as bonecas de pano feitas pelas negras. Afinal, o Brasil precisava de gente para colonizar terras tão vastas e os úteros ainda virgens clamavam por fecundação. Crianças por pouco tempo. Havia uma hierarquia a ser respeitada: hom ens ditadores, mulheres submissas, crianças esquecidas e abafadas. Ao invés de brincar, aprender o mais rapidamente as regras adultizantes. Ciclos vitais interrompidos. Nada de transgredir um processo que se quer vitorioso desde que montado na direção certa. E vitórias não faltaram ao empório açucareiro, ainda que à custa d o sacrifício da mulher e da criança. E por que não admitir, do homem também, severamente entronizado na “arrecadação” vinda do massapê. Desde os tempos primeiros, a família brasileira teve como sustentáculo uma tripeça imutável: pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados. (PRADO, Paulo. Retrato do Brasil, 1962, p.106).
Sob o verde do canavial, dogmas espalhavam-se, alguns culturais, outros cristãos. A trama sociológica demandava para a mulher estados de candidez e para as crianças “constrangimentos” infantis. Cedo, as crianças deveriam começar a rezar porque os pecados não tinham idade. A sociedade patriarcal exortou precocidades em todos os ângulos, inclusive no arquitetar pecados antes do tempo. E antes do tempo absolvê-los. Para tanto, faziase necessário injetar doses d e santidad e. Meninas de doze, treze, quatorze anos. “Santas imaculadas”. “Pálidas madonas”. “Marias do Céu”. “Marias da Graça”. “Maria das Dores”. “Marias da Glória”. E eram de fato umas Nossas Senhoras (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 369).
Prematu ramen te as crianças tornavam-se hom ens e mu lheres. Deixavam as espontaneidades para adotar obrigações dissociadas da idade mental e biológica. E o começo dava-se na liturgia da Primeira Comunhão, mediante a qual asseguravam o caminho da virtuose, convictas do crédito de meninas beatificadas, então prontas para catar as ordens dos adultos. Muito cedo, no Brasil de nossas avós e bisavós, as meninas se arredondavam em senhoras. Aos nove ou dez anos estavam moças. Faziam então a primeira comunhão. E era um grande dia, o de vestir a meninazinha o vestido comprido
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de comungante, todo de cassa e guarnecido de folhos, o corpete franzido, a faixa de fita azul caindo atrás, em pontas largas, a bolsa esmoleira de tafetá, o véu de filó, os sapatos de cetim, as luvas de pelica, o livrinho de missa encadernado em madrepérola – tudo branco ou azul (FREYRE, Gilberto . Região e tradição, 1968, p. 160-161).
A solenidade da Primeira Comu nh ão imp un ha o m aior respeito. O esmero subscrevia a ordem social. Momento de grande importância no volteio patriarcalista. A benção da ad ultização. A preparação para o casamen to. Primeiro, o batismo; depois, a Primeira Comunhão; por fim, o Matrimônio. Mesmo sem saber ler, essas meninas carregavam o livrinho de missa com a máxima satisfação. A vida na fé. Felizes por se saberem capazes de ajudar a família que delas aguardava condutas irretocáveis. O degrau iniciatório da responsabilidade confirmava-se. E a partir do d ia da Primeira Comu nh ão, já se sentia mulher, o que quer dizer: habilitada para o casamento. Iniciava-se a angústia pela procura do marido. E os jogos de sedu ção aumentavam e aumentavam, procurando escapar d e algum inesperado infortúnio. Debaixo de rígidos ritos de passagem, a sociedade patriarcal fixou etapas no ciclo de vida de homens e de mulheres. Não fez por menos. Atribuiu-lhes papéis irrefutáveis. Pouco importavam as rupturas biológicas; valia a pena aplaudir seus critérios de precocidade. A FESTA DE CASAMENTO Casavam-se com maridos 10, 15, 20 anos m ais velhos, as portuguesinhas. Sisudos, circun spectos, emp avonados de tan tos gáudios. Barbud os senh ores de en genho, bacharéis, médicos, oficiais ou, mais tarde, espertos negociantes... Bigodes lustrosos de brilhantina, gordos, arredondados em largas barrigas, suíças enormes, grandes diamantes no peitilho da camisa, nos punhos e nos dedos... Os bacharéis ostentavam rubi no dedo. Aí vinha colhê-las verdes o casamento: aos treze e aos quinze anos. Não havia tempo para explodirem em tão franzinos corpos de menina grandes paixões lúbricas. (...) Abafadas sob as carícias de maridos (...) muitas vezes inteiramente desconhecidos das noivas (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 364).
Vestia-se a rigor a menina-moça no grande dia do casamento. De branco e com adereços de pureza. Trajo especial, cintura adelgaçada, saias redondas, longas, um figurino previamente desenhado. O enxoval, confeccionado por freiras, assinalava o capricho típico das religiosas, únicas na feitura artesanal de
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peças delicadas, bordados, pontos de cruz, renascenças, tarefas que exigem requintes de devoção. A excelência dos trabalhos atingia níveis de tal detalham ento que o enxoval era publicamente exposto aos convidados para ser apreciado em valor e em beleza. Cum pria-se assim um dos objetivos da festa: o de demonstrar, da forma mais prepotente possível, todos os “encantos” da noiva. Encantos que se revestiam mais de dotes materiais que de outra coisa. E um bom dote não deve ser escondido a sete chaves. A festa do casamento p ontificava u m fato aguard ado com arquejos de gozo. Durava en tre 6 e 7 dias. Às vezes, para m aximizar a em oção, simulavase a captura da noiva pelo noivo. Regras de etiqueta, convenientes à celebração do conluio mais espalhafatoso do patriarcalismo. Momento, inclusive, em que as evidências deveriam ser expostas a fim de evitar susp eitas ind evidas. O reconhecimento social do status familiar estava em jogo. Era chegada, pois, a hora d e queimar os cartuchos na sau dação à vitória do açúcar. Ind ícios econômicos, indícios sociais, indícios pessoais. Alardear sinais de sólidas prosperidades ap ontava o d esregramen to desses banquetes. Escravos, bens, riquezas. Quanto maior a ostentação, maior o grau de riqueza. Um Potlach com todas as letras. O império da casa-grande media-se muitas vezes pela extravagância d as solenidad es, que funcionavam como termôm etros ind icadores de prestígio do senhor de engenho. Não se poupavam esforços no sentido de levar às “últimas conseqüências” os detalhes da cerimônia e, adjetivamen te, ind icar o dem onstrativo d o fausto. O casamento era um dos fatos mais espaventosos em nossa vida patriarcal. (...) Preparava-se com esmero a “cama dos noivos” – fronhas, colchas, lençóis, tudo bordado a capricho em geral por mãos de freiras; e exposto no dia do casamento aos olhos dos convidados. Matavam-se bois, porcos, perus. Faziam-se bolos, doces e pudins de todas as qualidades. Os convivas eram em tal número que nos engenhos era preciso levantar barracões para acomodá-los. Danças européias na casa-grande. Samba africano no terreiro. Negros alforriados em sinal de regozi jo. Outros dados à noiva de presente ou de dote: “tantos pretos” “tantos muleques”, uma “cabrinha” (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 374).
A exibição d a carta d e alforria de algun s pou cos escravos, revelava u m aparato esbanjador, uma vez que o senhor do engenho, ao emancipá-los, estava com isso metralhando o seu poder de fogo. Prescindir de velhos escravos equivalia a jogar dinheiro fora, indicativo de excesso de riqueza, e repito, demonstrativo das iguais exibições perdulárias dos índios Kwakiutl, no ritual do Potlach. Outros seriam comp rados, mas a felicidad e do momen to invocava verdadeiras “aberrações” econômicas. A ocasião permitia “espern ear ” a magn ificência e o luxo. “Legitimar ” a liberdad e dos escravos,
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por exemp lo – mão-de-obra ind ispensável à labuta do eito –, denotava u ma maneira efetiva de manifestar desprezo em relação ao que poderia ser readquirido sem o menor desequilíbrio econômico. Compras de novos escravos aconteciam no próprio “duelo” do casamento. Um duelo claro, claríssimo, de delírios orçamentários. Iguarias de todo tipo faziam d a mesa do banqu ete uma oferend a de qualidade inigualável. Explodia a Festa-Mãe, em exibições pantagruélicas, a reivindicar insondáveis exageros. Nad a faltava. Nem as man dingas fetichistas para o amor dar certo. A família brasileira tem sido através do tempo o instrumento disciplinador por excelência, produzindo e conservando a ordem social numa sociedade em formação (QUEIROZ, Maria Isaura Pereira d e. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios, 1976, p. 194).
O h omem colonizador contraiu matrimôn io mu itas vezes devido à m orte das esposas. Na segunda, terceira ou quarta núpcias, o casamento já se convertia em rotina. Para a mu lher, não: uma experiência diversa das anteriores. O receio da noite nupcial estampava-se: uma noite tão desejada quanto repelida pelo imaginário sexológico feminino. A vida a dois. A alcova. A solidão d o qu arto d e d orm ir. E tantas obrigações!!! Cerrada a imponente cortina da festa do casamento, o medo alongava-se em caráter definitivo. Principalmente o medo do marido: um estranh o, agora dono d e sua carne, de seu pálido p razer e de sua vontade. A festa, a grand e festa, ficava ap enas na lembrança recondicionad a em saudade. CÍRCULO DA ENDOGAMIA A cadeia matrimonial dos tempos de outrora referendou-se em lastros parentais – uma circularidade interna que fortalecia a ampliação dos bens, a fixidez do status, a conservação de uma aristocracia oligárquica. Em última instância, priorizava o enqu istamento d os bens. Maria Graham, cronista inglesa, encantou-se com a vida de família no Brasil, mas notou a inconveniência de os casamentos efetuarem-se entre paren tes, principalmen te tios com sobrinhas. Um excesso de zelo tão forte com pessoas do mesmo sangue que a ela pareceu o espírito de clã dos escoceses. Nesse capítulo, o Brasil pontificou, ao arregimentar elos para que o domínio econômico-consangüíneo não fosse abalado. Famílias fechadas em focos étnicos, culturais e mercadológicos.
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O casamento era questão de grande importância; os pais escolhiam cuidadosamente as alianças ou para reforçar os laços de parentesco e resguardar a propriedade de mãos estranhas (...) ou para aumentar poder e prestígio, indo se unir a outras famílias de (...) nomeada fortuna (QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios, 1976, p. 45).
A casa-grande preservou-se sob todos os ângulos. O casamento entre famílias foi por ela estimulado, de modo a agigantar o caráter endogâmico das relações conjugais, isto é, relações dentro da mesma linha de consangüinidade. O privatismo da família patriarcal incentivou o mais possível o seu fechamento em sólidos pactos. (...) Casamentos, tão freqüentes no Brasil desde o primeiro século da colonização, de tio com sobrinha; de primo com prima. Casamentos cujo fim era evidentemente impedir a dispersão dos bens e conservar a limpeza do sangue de origem nobre ou ilustre. (...) Indivíduos que, casando-se, apertavam os laços de solidariedade de família em torno do patriarca. Era esse o fim dos casamentos de tios com sobrinhas (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala ,1966, p. 366-367).
O português, embora voltado para intercursos sexuais com mu lheres exóticas, raramente legalizou os rebentos que provieram dos encontros clandestinos. O que equivale a dizer: se o reinol não acatou o arianismo étnico – seguramente não o fez –, acatou o “arianismo familiar”, evitando a inserção de filhos bastardos no mosaico parental. Do legítimo leito nupcial nasceram, sim, os filhos descendentes diretos da linhagem européia. A endogamia escudou as uniões oficiais envoltas em regras “proselitistas”, enqu anto as cland estinidad es acobertaram-se de razões mais prazerosas do qu e de raciocínios cartesianos. Hospedou a casa-grande os dois tipos de amplexos sexuais, sendo os primeiros aqueles legitimados e ordenadores do esteio familiar; os demais, olhados de soslaio, por transgredirem as instruções prescritas. Os contatos episódicos, não outorgados pela sociedade privada, rolaram como ramificações de uma árvore de tronco sólido. Viúvos precocemente, os portugueses adotavam uma sucessão end ogâmica: casavam com as irmãs solteiras da esposa, com primas ou paren tes próximos. Ratificavam, assim, a circularidade do eixo doméstico para o qual nunca arrefeceram os recursos intrafamiliares. Um sistema com tendências a castas e à en tronização d e uniões fechadas. A família end ogâmica e cristocêntrica cresceu à sombra de uma privacidade excessiva. A paren tela consolidou-se em claustros e revigorou a coesão da família. Uma aderência decantada em prosa e verso. Basta salientar a convivência com
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os mortos, muito significativa na defesa de uma circunferência amparada em vínculos de consangüinidade. Os mortos, enterrados na capela do engenho – que representava uma puxada da casa-grande –, perpetuavam-se na memória familiar, incorrendo numa presença menos etérea que materializada. Mortos coabitand o o m esmo espaço dos vivos, ou p orque os vivos perderam o prestígio ou porqu e os mortos contabilizavam brasões den otativos, ou aind a, porque os mortos canibalizavam posições sociais que começavam a ruir. A convivência mais com os mortos do que com os vivos estreitava-se. Os mortos sedimentavam a coesão e gravavam sua ingerência com p oderes maiores do qu e os dos vivos. Ainda hoje, muitas famílias sobrevivem à luz d e imagens fisicamente mortas, mas sociologicamente vivas. Os mortos arrebatam a vida d os vivos. Na família patriarcal, a interação deu-se tão forte que os mortos ganh aram a forma d e fantasmas, assombrações que se p resentificavam para alimentar a lembrança. Tanto que os seus retratos guardavam-se no santuário, bem à m ostra, misturados às imagens dos santos, com direito à mesma luz votiva de lamparina de azeite e às mesmas flores devotas, indulgentes. E as tranças dos cabelos das senhoras falecidas e os cachos dos meninos com igual sorte complementavam o adorno do orago das saudades. Um culto doméstico com semelhan ças aos dos an tigos gregos e roman os. Abaixo dos santos e acima dos vivos ficavam, na hierarquia patriarcal, os mortos, governando e vigiando o mais possível a vida dos filhos, netos, bisnetos (FREYRE, Gilberto . Casa-grande & senzala, 1966, p. XXXVII).
O especial procedimento endogâmico cerziu arestas com a finalidade de apaziguar possíveis desacertos. O patriarcalismo teve no sistema cilíndrico de parentesco um aliado portentoso para enfrentar os reveses do cotidiano. Embora incongruências e ambivalências destaquem-se na fotografia da realidade doméstica, impossível aplacar o fenômeno do fechamento grupal da família, que procurou, de todas as m aneiras, assentar as vigas mestras da era colonial e pós-colonial. Com o aprimorar dos esquemas endogâmicos, as uniões matrimoniais entre portugueses estavam conferendadas; e inscrito e subscrito o perfil centrípeto da casa-grande. Em conseqüência, assegurada a chama da coesão familial. O engenho, com habilidade, asilou um encontro de gentes que em muito ajudou a selar o elo da pirâmide hierárquica. DECADÊNCIA DA SINHÁ-DONA As precocidades levam ao envelhecimento antes do tempo – relação de causa e efeito. O sistema patriarcal excedeu-se em precocidades. E as sinhás-donas, de súbito, transformavam-se em senhoras. Amadurecidas em estufas. Frutos que
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feneciam ao susto dos ritos de passagem. Num piscar de olhos, velhas. O afear-se correspondia ao fluxo do desleixo. Mulheres engordando. Consumidas em corpos abandonados. Com dezoito anos, matronas, pesadas, largadas à não-sorte. Aos vinte anos, a ruína. A sociedade de antanho foi cruel com a p ortuguesa. Cedo se fez tarde n essas jovens. Qu and o tud o deveria começar, o ocaso emergia exuberante a u surp ar-lhes as últimas forças. Após os vinte anos, a derrocada instalava-se em um corpo exaurido por indébitas invasões. Adquiriam papadas. Tornavam-se másculas, assumiam ares de homem. Perdiam a feminilidad e. As mulheres amadureciam cedo. Os anos de infância raras vezes estouvada eram curtos. Aos quatorze ou quinze anos, a menina vestia-se já como uma grave senhora. Os daguerreótipos da época trazem até nós figuras de meninotas amadurecidas antes de tempo em senhoras: senhoras tristes, tristonhas (FREYRE, Gilberto. Vida social no Brasil nos meados do século XIX, 1977, p. 86).
O homem conservou melhor o corpo, uma vez que a rotina imp un ha-lhe alguns deveres. Andou a cavalo, percorreu o canavial em esporádicas diligências, levou u ma vida mais próxima da natu reza. Não por livre vontad e; antes, pelas obrigações que o eito lhe demandavam. A pálida musculatura manteve-se mais rija – nada de formas exemplares – e, lembrem-se, a sua relação com o corpo d eu-se com ruidosa intimidade, porque os amores clandestinos ofertaram-lhe momentos de extraordinária vibração. À guisa da submissão mu çulmana, a mu lher submergiu em u m completo sedentarismo. Passeava de rede para poupar energia. O desmazelo vencia o regozijo de viver. Naturalmente que a negligência derivava de diversos fatores, un s e outros em constante intersecção. A auto-anulação aparentava-se ao desânimo e, juntos, migraram p ara o desabamento existencial. Até mesmo à Igreja a lusitana ia refestelada em redes. Imagine-se a inércia que se apoderava desse corpo! Somente mais tarde, tal ostentação – a de chegar em recinto religioso em cômodas redes amparadas por escravas – foi proibida pelo caráter desditoso que a cena denunciava. Outrossim, o esbanjar escravos submissos, carregando em palanquins senh oras ind olentes, acusava um péssimo exemplo para um cristianismo que d everia apregoar preceitos men os desiguais. Aos vinte e cin co an os, m ulheres velhas n o qu into ou oitavo p arto. Arruinadas, como se tivessem sessenta. O feminino definhou em “frívolos” circunlóquios. Autoflagelou-se em estados de apatia. Tombou cedo numa visível pusilanimidade. Feneceu: e o fenecimento é o princípio do fim. Precocemen te a p ortugu esa disse ad eus à infância, aos verdes an os, à beleza. Murchou em imagens melancólicas. Acenou lenços brancos de desped ida sensual.
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Pena que tão cedo se desfolhassem essas entrefechadas rosas. Que tão cedo murchasse sua estranha beleza. Que seu encanto só durasse mesmo até os quinze anos. Idade em que já eram sinhás-donas; senhoras casadas. Algumas até mães (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 373).
ECOS DA AFRICANIDADE A IMAGEM DA MÃE-PRETA As mães-pretas despontavam no picadeiro familiar patriarcal como as verdadeiras mães-de-criação. Quase onipotentes em relação às frágeis portuguesas, ocuparam posições destacadas na estrutura da família, quer pela sua importância como elemento de vitalidade, quer pela contribuição ao doméstico. Apoderaram-se da ordenação, no sentido “ritualístico”, do espaço privado. Ordenação essa que interferiu largamente na teia afetiva. Gordas, pachorrentas, embalavam bebês, acariciando-os como filhos seus. O exercício da maternagem acabou por lhes incutir prerrogativas de muito bom alvitre para o patriarcalismo. Quando alforriadas, permaneceram no seu papel regulador, os meninos tomavam-lhes a bênção, os escravos tratavam-nas de senhora, os boleeiros andavam com elas de carro. Nos dias de festa, comandavam a cerimônia, dando ordens e aparentando senhoras bem-nascidas. Imbuíram-se de tal maneira da posição de mãe “postiça” que defend eram ardorosamente os ímpetos da criançada. O que teria sido da infância na casagrande sem a africana a distribuir promessas de felicidade? Sem as narrativas noturnas que ninavam meninos e meninas? Sem as histórias de bicho ou de monstros com cara de gente? Sem o seu espírito também infantil? A compleição orgânica representou o fator decisivo no impulso da africana à amamentação dos recém-nascidos. A harmonia física carreou o estímulo mais contu nd ente na história da mãe-preta – peitos rijos, den tes brancos, saúd e a vender. Não lhe faltaram vantagens. Ademais, acrescidos aos fatores biológicos, reunia melhores condições de higiene, pois se identificava, por motivos óbvios, com os ruídos da tropicalidade. A união dos trunfos, orgânicos e culturais, elegeu-a indispensável. Dos seios da negra, rebentou o leite da vida. (...) Negra ou mulata. Peitos de mulheres sãs, rijas, cor das melhores terras agrícolas da colônia. Mulheres cor de massapê e de terra roxa. Negras e mulatas que além do leite mais farto apresentavam-se satisfazendo outras condições, das muitas exigidas pelos higienistas portugueses do tempo de D. João V. Dentes alvos e inteiros (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 386).
O quinhão não se restringiu somente ao leite. A mãe-preta substituiu o afeto da mãe portuguesa, quase arruinada pelos excessos do clima, ela, que não 90
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conhecia os destros caminhos de um Brasil ambicioso em contrastes e em desafios; que não sabia como comportar-se diante de um trópico escaldante e, menos ainda, diante de tradições, costumes e hábitos estranhos. Tudo lhe era desconhecido. E não lhe permitiram adaptar-se; logo, invocaram-lhe as exigências biológicas da maternidad e. A negra correspond eu às lacunas deixadas pela branca. Abraçou, mimou, deu carinho. Nada melhor que um bom dengo para sarar as feridas do cotidiano. Dengo para o m enino. Dengo para a gen te grand e. Dengo para adultos sacrificados pelo desassossego do massapê. A sua influência foi tanta que chegou a levar alguns estudiosos a argumen tos de n atureza p sicológica – o ato de mam ar, send o de extrema imp ortância na formação da criança, geraria conseqüências imediatas na construção dos desejos. Desejos que se perpetraram no futuro, oriundos de raízes de significação sexual – quantos portugueses só conseguiram atingir o êxtase sexual no contato com negras! Como se a atração física da fase ulterior retom asse a direção da men inice. Será que não retoma? É sabido que a primeira infância representa o alicerce do edifício psicológico. O lusitano cobiçou a negra com olhos gulosos. O en contro entre as raças deu-se desde o “instinto” do seio materno – “instinto” primitivo – aos instintos de adulto, expressivos e determinados. Amam entados por negras, acariciados p or negras, aconchegados por negras, meninos portugueses criaram dependências decorrentes das pulsões do aleitamento. Qu ase todos os brasileiros do período colonial e pós-colonial foram educados por negra. A sua ascendência fez-se direta em vários momentos. Um olhar de troca em constante reciprocidade. Um mimetismo que bosquejou as linhas do rosto do mundo português em estreita sintonia com o mundo brasileiramente africano. A PROSTITUIÇÃO DOMÉSTICA Terra [o Brasil] de todos os vícios e de todos os crimes. Segundo o próprio testemunho dos escritores portugueses contemporâneos, a imoralidade dos primeiros colonos era espantosa, e excedia toda medida (PRADO, Paulo. Retrato do Brasil, 1962, p. 27).
Sem a glória econômica de tempos outros, Portugal não temeu alardear a glória fálica. A nobreza perdida reclamava um drama não resolvido – país ferido na honra de navegador insup erável. A Escola de Sagres conheceu o brilho d a excelência marítima, mas Portugal declinava no seu esplendor náutico. O Brasil bem que poderia transformar-se na Terra Prometida, pelo menos na esperança perdida. E a glória fálica apontava como uma paisagem m essiânica. A escravidão favorecia excessos sexuais. Para tanto, bastava usufruir das vantagens que o sistema oferecia. Não precisou de muito o portu guês para lan-
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çar-se ao êxtase do sexo. A sensualidade da negra encimou o patriarca em visões paradisíacas. Era tudo o que ele queria. Dos contactos clandestinos, nem sempre houve ternura. Ou quase sempre não houve. A volúpia da carne foi mais forte que qualquer outro sentimento. Casos ocorreram de amor. Raros. Na sua maioria, apelos apenas epidérmicos por parte do colonizador. Entretanto foram as negras acusadas de desvirtuarem os dignos valores da casa-grande, canalizando-os para caminhos pouco louváveis, como o de terem sido a principal mentora das fantasias do senhor de engenho. Também recebeu acusações de musa iniciatória do menino – esse geralmente conduzido pela mucama às coisas do am or. O que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com a sua docilidade de escrava; abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço. Desejo, não: ordem. (...) O que houve no Brasil (...) foi a degradação das raças atrasadas pelo domínio da adiantada (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 397-398, 463).
Não há escravidão sem prostituição – uma verdadeira sentença para a dialética patriarcal. A relação de dominação provoca blocos ditatoriais de inten sa periculosidade para a moral sexual. Impulsiona distorções. Açula inconsistências e impropriedades. Os limites apóiam-se em autoritarismos arbitrários e danificam o equilíbrio das relações interpessoais. É absurdo responsabilizar-se o negro pelo que não foi obra sua nem do índio, mas do sistema social e econômico em que funcionaram passiva e mecanicamente. Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime. Em primeiro lugar, o próprio interesse econômico favorece a depravação, criando nos proprietários de homens imoderado desejo de possuir o maior número possível de crias (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 341).
Se Joaquim Nabuco extraiu de um manifesto escravocrata de fazendeiros palavras como “a parte m ais produtiva da p ropriedad e escrava é o ventre criador”, não há como hesitar diante da premissa de Freyre – “é da essência do regime escravista a depravação sexual” . Logo, não foi a negra que optou pela prostituição, e sim os contextos absolutistas que a estimularam a aceitar a permissividade como um caminho de ingênua libertação. Sério equívoco que confundiu frios diagnósticos. Qualquer estrutura de dominação instiga efeitos deletérios. A escravidão revelou-se ímpar nessa hedionda cadeia. A promiscuidade emergiu categórica, enfática e decisiva. A poligamia ilegítima, p orém socialmen te aceita, alastrou-se como norma a ser seguida, uma vez que do uso sexual de várias
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mulheres surgiriam múltiplos ventres geradores. Em nenhum momento, a poligamia doméstica colonial sofreu ataques. Ao contrário, recebeu pródigos elogios. Sinônimo de diversidade de encontros carnais, bailou nos salões da aristocracia lusitana. A posse da terra gerou a propriedade sobre os homens e a utilização dos dominados ao bel-prazer e aos caprichos dos poderosos (ANDRADE, Manuel Correia de. O escravo negro e a intimidade da casa-grande, 1995, p. 103).
O sistema “deletério” da escravidão selou a forte fagulha do passado colonial. Atraiu p ara si tantos defeitos e tão poucas virtudes que fabricou um quadro com pinturas dissonantes. É indispensável entender que o negro ou a negra escravizados separam-se do negro ou da negra visualizados sob o prisma da etnicidade. Sempre que consideramos a influência do negro sobre a vida íntima do brasileiro, é a ação do escravo, e não a do negro per se, que apreciamos. (...) Parece às vezes influência de raça o que é influência pura e simples do escravo: do sistema social da escravidão. Da capacidade imensa desse sistema para rebaixar moralmente senhores e escravos (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 339).
Se a prostituição da casa-grande viu na negra a cúmplice insuspeita, as virtudes da senhora branca, decantadas e homenageadas, arrimam-se, em parte, nos deslizes da escrava fêmea. Pecando umas e santificando outras, os dualismos sedimentavam-se. Os erros tornavam-se mais explícitos enquanto os acertos assomavam proporções significativas. A portuguesa no cetro da sacralidad e; a negra, no d a profanidad e. Op ostos que se agigantavam na m edida da perfeição ou da devassidão consen tida. O amor precoce da mucama com os filhos do patriarca nem sempre foi analisado com condescendência. Uma moral contraditória que estimulou o menino à depravação e ao desregramento no uso do corpo da negra, ao tempo em que a acusou de promiscuidade por acicatar o pequeno adolescente aos “subornos” da carne. Esse jogo sádico trouxe uma mística confusa à ideologia da casa-grande, se não confusa, pelo m en os un ilateral e tend en ciosa: esqueceu qu e, antes d a cor, a africana se subm eteu ao caos da escravidão. Diz-se geralmente que a negra corrompeu a vida sexual da sociedade brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos-família. Mas essa corrupção não foi pela negra que se realizou, mas pela escrava. Onde
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não se realizou através da africana, realizou-se através da escrava índia (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 340).
A imoralidade foi decorrente e não causal. Resultado de detestáveis conexões com princípio e fim, os meios a justificarem os objetivos. A prostituição da casa-grande consignou a prostituição do patriarcalismo, a prostituição da monocultura, a prostituição do servilismo que se engalonaram sob a maquilagem da escravidão. E se há hábito que faça o monge, esse é o do escravo. A CULINÁRIA E A NEGRA O espaço adstrito à cozinh a da casa-grand e agrup ou o encontro d e raças, combinando emoções com temperos, sentimentos com receitas culinárias, saudades com cheiro e gosto de condimentos. Nesse desvão, aparentemente resguardado, desfilaram as enormes proezas da convivência doméstica. Oráculo de confissões, de fuxicos, de troca de sigilos. Zona de confraternização. Locus de intercâmbio. Na “sagrada” cozinha, a conversa mole, os mexericos, o disse-me-disse alçaram a moldura da intimidade. Entre o preparo de um prato e de outro, muitas histórias foram verbalizadas. Tanto quanto o confessionário, o suposto esconderijo do fabrico das guloseimas sum arizou o grosso caud al por ond e escoaram conversações em tom introspectivo, sonhos recônditos, mistérios femininos. Debaixo do manto da solidão, a larga e tosca mesa da cozinh a agasalhou os pu dores d e mulheres acanh adas – lugar de especial atrativo para o transbord amen to de dizeres porven tura perigosos ou pecaminosos. Com a devida reserva, a p alavra ali soada e ressoada exerceu importante função libertadora. Pretas velhas, mu camas, sinh azinh as, sinh ás-donas, nh onh ôs coabitaram os mom entos de relaxamento que o forno e o fogão possibilitavam. Entre receitas, o rastro dos ap etites, seja qu al for a etiologia – palatal ou sexual –, deixou-se singrar em discursos reprimidos. Pamonha, milho assado, pão-de-ló, arroz-doce, alfenins, alféloa emparelharam -se à mesa da casa-grand e em uma d emon stração de hibridismo de paladares. As negras, exímias cozinheiras, redondas de tanto comerem, esmeravamse no prep aro de “acepipes” para o regalo do men ino, da sinh á ou d o patriarca. Imensos pan elões comp un ham a paisagem da comensalidad e patriarcal. Passava-se o dia a beliscar e a provar pratos temperados ao saibo preferido da próxima refeição ou à blandícia da donzela enfraquecida – a necessitar de cuidados especiais. Do café da manhã à ceia noturna, o dedo decisivo da negra. Do simples caldo de pintainho à gord urosa feijoada. Da m esa repleta de convidados ao almoço trivial. A qualquer h ora, a chaminé fluind o o olor d as esp eciarias.
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[O negro ensinou] o brasileiro a explorar todas as possibilidades das papilas da língua, bem como os nervos do faro, com a sua magia culinária (RIBEIRO, Darcy. Ensaios insólitos, 1979, p. 94).
Os serviços da cozinha tiveram um prévio escalonamento. As pretalhonas, as escolhidas, instigaram o paladar com vocação de tecelã. Mas houve negros incapazes de servir no eito, com tendências a maricas, que foram inigualáveis no preparo de quitutes. Homens efeminados a d esejarem man ifestar os seus pend ores no espaço dedicado à mulher, o da cozinha. Talvez até para provar a capacidade de executar tarefas de tradição não masculina, capricharam em sutilezas, agudamente “primorosas” no que tange à expressão de uma gastronomia sofisticada. Desse modo, a culinária brasileira africanizava-se, capitalizando a inspiração exótica dos seus acepipes. Exuberante e ind iscreta. Gordas e alegres, as pretas orgulhavam-se dos pratos que elas próprias elaboravam. Novidades a tod a hora. Temperos excêntricos vindos de uma África não menos excêntrica. A vantagem aconteceu na adequ ação a um regime tropicalmen te correto. Uma d ieta que se adaptava ao calor excessivo de regiões quentes e úmidas. Ao mesmo tempo, refeições buriladas em pimentas e molhos, o que sugeria incoerências para um clima de altas temperaturas. O clima, com certeza, não determinou, mas concorreu para a extroversão gastronômica. O Nordeste aceitou de bom grado as ambrosias de uma etnia que injetou atavismos ao erud ito modo de ser de um Ocidente civilizado. A mistura deu certo. Criou-se um sincretismo culinário, de sabores vivos e, alguns, até berrantes. Introduzido com a cautela dos “invasores”, o menu ajudou a atenuar dissidências e a acalmar arestas. Na culinária, manifestou a negra títulos professorais. Senhora de densos “refogados”, atraiu para si atenções que se anelavam em “armadilhas” capazes de nublar a faísca da portuguesa. Exerceu com uma certa maledicência o d esafio da mesa. Há que se render vênia a essa emu lação. Quem duvidará da sua competência na arte de cozinhar? (...) Mocotós, vatapás, mingaus, pamonhas, canjicas, acaçás, abarás, arroz-decoco, feijão-de-coco, angus, pão-de-ló-de-arroz, pão-de-ló-de-milho, rolote de cana, queimados, isto é, rebuçados etc. (...) É nossa opinião que no preparo do próprio arroz-doce, tradicionalmente português, não há como o de rua, ralo, vendido pelas negras em tigelas gordas donde o guloso pode sorvê-lo sem precisar de colher. Como não há tapioca molhada como a do tabuleiro, vendida à maneira africana, em folha de bananeira (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & sen zala, 1966, p. 490-491).
Africano também é o acarajé, prato precioso na Bahia: feito com feijão fradinh o ralado na ped ra; como temp ero leva cebola e sal; a massa é aquecida
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em frigideira de barro on de se derrama um bocado de azeite-de-cheiro. Além das receitas genuínas, a africana sobressaiu-se no apuro dos doces lusitanos à terra do pau-brasil. E atenuando asperezas, ajeitando ali e acolá, os ingredientes foram dosados com o toque do am álgama cultural. Dentre os pratos africanos que se impuseram à mesa patriarcal e firmaram-se até com uma certa arrogância, distinguem-se o caruru e o vatapá. Os eleitos. Os mais apreciados. Os que se fixaram quase genuinamente. Sem retoques significativos. Puros e absolutamente distintos. Por muito tempo a mesa do engenho foi africana. O paladar girou em torno das circunvoluções da negra, que habilmente articulou doses “marotas” de condimentos. Arte, acima de tudo arte, subscreveu a mescla dos influxos, ao incorporar especiarias e ao retirar as possíveis indisposições. Com mais ou menos pimenta, retemperou a culinária. Durante séculos, afiançou o relevo da gastronomia, do sentido mais figurado ao sentido mais biológico. Não se pode falar em culinária nacional sem remeter ao mastro balizador da desembestada glicose. A arte do doce espargiu-se do Nordeste para o Brasil afora. A sua expressão – sociológica, econômica, sentimental – advém da família patriarcal, extensa, cristocêntrica, horizontal, a repousar na imensidão de um monopólio canavieiro. A escravidão propiciou o culto da hipérbole da sacarose. Na gangorra do açúcar não se mediram estímulos para acirrar o degustativo. A escrava revelou-se única na produção do doce. As intermináveis receitas reivindicavam o exercício da persistência, longas tardes à beira do fogão, a vigiar as panelas em que se preparavam caldas em ponto de visgo. Porções estrambóticas entornaram quilos de açúcar, de rapadura, de mel – o mel de abelha indígena que, segundo José de Alencar, morava nos lábios de Iracema. Ovos e mais ovos esbanjavam dos tachos, esfumando o creme, que se transformaria em refinados postres. Exigiu-se o máximo de perseverança para levar a termo os “preciosismos” da doçaria. A constância da africana acentuou-se na realização das fórmulas prescritas. Somente a pasmaceira da casa-grande permitia operacionalizar o fabrico de d oces complicadíssimos. Tempo. Horas. Pacatez. Os vagares d o p atriarcalismo, algun s foram preen chidos com a carpintaria do doce. O comp lexo da cana, com as suas derivações, jamais teria se validado, com tamanha efervescência, não fossem a quantidade de escravas, o tédio das horas mornas e intermináveis, a lerdeza do badalar do relógio, os minutos por consumir, o longo intervalo do nada... Cedo começava o preparo. Receitas demoradas, demoradíssimas, só explicadas pelo excesso de ócio. Sinhás-donas gulosas e adictas de glicídios à espera do gozo alimentar. Houve, no Brasil, uma maçonaria do doce, isto é, um poder coeso de m ulheres sobre o sigilo da feitura dos bolos de família. O caderno de receitas – período em que as mulheres já escreviam – foi repassado de
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geração em geração, mediante um inventário sentimental. Não se banalizou a ementa gastronômica em mãos à toa. Prevaleceu uma intencional escolha na descendência dos bolos e doces de família – a doçaria patriarcal recebeu a filhasobrinha eleita, aquela que garantisse a discrição do claustro da glutonaria. A história do açúcar guarda fortes veios de privacidade. De enigmas de família. De endogamia também culinária. O doce e a escravidão “afinaram-se” em prolongados passadios. Um e outro estiveram tão juntos que parece difícil elidi-los. A paisagem acoroçoou o desenvolvimento de deliciosas guloseimas, em razão da matéria-prima abundante. A cana, o massapê, a escravidão. Subtraindo um desses elementos, certamente a doçaria não teria alcançado o paroxismo d a culinária brasileira dos tempos de antanho. Exalte-se a tipologia das frutas, essas dulcíssimas, a aliarem-se à cana na conjugação do supinamente melífluo. O paladar ajustou-se, por efeito, ao que vinha de fora – de Portugal e da África. O endógeno e o exógeno acasalaram-se. Tudo contribuiu para que, na Nova Lusitânia, as receitas com base na blandícia proliferassem. De Portugal, sobretudo dos mouros, chega-nos uma herança singularmente açucarada. A representação do doce no Nord este se dá com tamanh a veemência que aponta p ara a formulação de uma Sociologia do Doce, eivada de traços de confeitaria, pastelaria e estética de sobremesa, o que leva a implicações socioculturais da maior relevância. A ritualística açucareira invocou refinamentos sensoriais. O regime escravista possibilitou a arte da sobremesa através d o exercício da paciência bíblica. Os caprichos foram completos. Nada se rejeitou para anular a acidez da casa-grande, e o açúcar vinha a calhar, preenchendo os vazios que se alastravam nos seus corredores. Em torno do doce brotou uma doutrina quase mitológica. O doce exigiu finas devoções. A liturgia reivindicou o máximo de reverência. O doce nord estino, com a sua origem nos bangü ês – “um dos rituais mais sérios da antiga vida de família das casas-grandes e dos sobrados” – detém uma história sentimental. Não é um rebuçado qualquer. É uma sacarose que as nossas bisavós comeram; logo, um regalo que carrega ancestralidade. Quando se reproduz uma receita antiga, há de ressaltar-se a ternura e o carinho que a envolveram, encerrando um bem-querer de todo especial, prolongamento de outros bem qu ereres que se perderam a meio do caminh o. Haverá m elhor iguaria que aquela receita da vovó? Os pratos ou tabuleiros nos quais se acomodavam as guloseimas eram enfeitados de modo a alucinar os olhos. As negras recortadoras aperfeiçoaram-se em detalhes e mais detalhes: ritmos inventivos, inspirações fantásticas, visando a embelezar a oferenda do produto. E o princípio da gula é antes de mais nada plástico, com acentos pictóricos. O olhar antecipa o olfato na “fermentação” do apetite. A estética do orn amentar aprimorou o espetáculo
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do paladar que não se conformou com a simples degustação. Foi mais além, alongando-se na “poesia óptica”. E a arte fez-se também no açúcar e por meio do açúcar. Os tabuleiros ficaram famosos pela delicadeza do rendilhado e pela coreografia lúdica. As negras especializaram-se no preparo não somente do doce, mas também do arranjo que o complementaria. Com papel azul ou encarnado enfeitaram-no e recortaram-no em corações, passarinhos, peixes, galinhas. Neles abrolhavam uma arte com sugestões fálicas, totêmicas e barrocas. Negras, algumas forras, iam vendê-los na rua, exibindo seus dotes, tanto físicos como culinários. As célebres “Mães Bentas” ilustram as nuances de u m cenário du al em glutonaria e plasticidade. Com a desafricanização da mesa nas primeiras décadas do século XIX, o brasileiro perdeu o hábito de vegetais e verduras, tão do agrado do negro. Tornou -se abstêmio de vegetais. O pão surgiu como a gran de novidade. Antes predominaram o beiju de tapioca ao almoço e, ao jantar, a farofa. Ainda: o pirão escaldado ou a massa de farinha de mandioca espalhada no caldo do peixe ou de carne. O feijão representou o prato do cotidiano – feijoada com carne salgada, cabeça de porco, lingüiça, muito tempero africano. Após a Independência, a cozin h a brasileira sofreu a influ ên cia d ireta da fran cesa. Na verd ad e, nesse período, o Brasil aderiu a galicismos de toda ordem. O gelo foi introduzido em 1834, trazido pela primeira vez ao Brasil por um navio americano, o Madagascar . A sua chegada avultou em sucesso, pois os “novos” brasileiros eram grandes bebedores de água em virtude do calor tropical, do excesso da pimenta e da quase libidinal ingestão do açúcar – a pimenta, já antiga conhecida dos índios, reforçaram-na os negros e os portugueses, esses com a pimenta do Reino. Com a introdução do gelo, as frutas brasileiras que já eram utilizadas como d oces e geléias, tornaram -se sorvetes e gelados. O sorvete trouxe uma importante revolução: desbancou a sobremesa patriarcal normalmen te quen te ou ao natu ral. Também fun cionou como u m traço de dissolução dos serões em volta dos chás fumegantes com sequilhos, bolo de goma, queijo do sertão e pão torrado na hora. O sorvete provocou mud anças de h ábitos merecedoras de realce: nos idos de 1840, as moças elegantes do Rio de Janeiro iam à Capela Imperial não somente ouvir música como deliciar-se com sorvete – o chamado doce gelado. O processo de desafricanização, todavia, não se operou de forma radical. Veio aos poucos, mas não subtraiu o paladar silvestre do continente negro; na verdade, expandiu-o, atenuado por novas combinações, embora algumas denotem a originalidade na feitura – o caso do caruru e do vatapá. Outras sofreram alterações. A maioria perdurou afinada numa simbiose eletiva: indígena, portuguesa, africana – o triângulo brasileiro da antropologia da alimentação. Diante dos purismos da europeização, a alimentação original dos africanos sofreu algumas emendas para que o resultado ocorresse sem conflitos. De
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sorte que a exuberância alimentar da culinária negra recebeu retoques acomodatícios. Uma certa parcimônia não lhe caía mal ante o exotismo dos sabores. Cumpre ressaltar esse aspecto extravagante por envolver a emocionalidade de um povo que não hesitou em doar seus valores comensais quase sem polimen to; em estado p uro; em paz com a sua n atureza ru idosa. Os quitutes excederam-se em pigmentações degustativas. Um roteiro, o afro-brasileiro, com enorm e vocação para os transbordamen tos. Não há cozinha mais explícita que a africana, como não há canção de ninar mais embaladora que a da mesma africana. A negra dominou e foi percuciente no passado de nossas bisavós. Polifônica. Polissêmica. Polivalente. A sua influên cia destacou-se não somente nos qu itutes e nos arran jos das travessas, como na abundân cia e n a diversidad e da mesa brasileira, cuja variedad e de timbres confere-lhe um caráter peculiar, extralusitano e marcadamente atávico. A INFLUÊNCIA DELETÉRIA DA SÍFILIS A sífilis fez sempre o que quis no Brasil patriarcal. Matou, cegou, deformou à vontade. Fez abortar mulheres. Levou anjinhos para o céu. Uma serpente criada dentro de casa sem ninguém fazer caso de seu veneno. (FREYRE, Gilberto . Casa-grande & senzala,1966, p. 343).
O Brasil, na sua enxurrada pela carne, padeceu de um mal de ordem sexual. A sífilis campeou abertamente, sem a menor cerimônia, como uma aliada às alcovas clandestinas. E não só as cland estinas. Ao mais legítimo leito nu pcial. Contaminados ou contaminadas, homens e mulheres difundiram o lues. Por dever de justiça, impõe-se recorrer à história, demonstrando que, antes do portu guês, europeus em visita ao Brasil já propalaram a doença. Entrem entes, com a vinda em massa de lusitanos pela instalação colonizadora, a patogenia alastrou-se à semelhança de uma praga, a espargir nefastas conseqüências, tanto sociais quanto genéticas. Um flagelo que alterou a plástica do brasileiro e arrecadou respostas drásticas para o desenvolvimento biológico de um povo em formação. De todas as influências sociais talvez a sífilis tenha sido depois da má nutrição, a mais deformadora da plástica e a mais depauperadora da energia econômica do mestiço brasileiro. (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 51).
O português procurou culpabilizar o africano pela ação patogênica da sífilis. Na verdade, ele, o africano, foi o principal receptor, contraindo com absoluta involuntariedade o mal de lues, sem sequer conhecer os vieses danificantes de 99
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seus efeitos. Na condição de escravo infestado, recebeu a disgenia do “civilizador ”. Data do princípio do século XVI a grossa difusão da sífilis no Brasil. Da chegada dos portugueses, os grandes contaminadores. Os franceses foram, contudo, os primeiros a jorrarem a doença entre os autóctones duran te as visitas à América. Registre-se que, já no mesmo século, o Brasil era considerado o país da sífilis por excelência. Não é difícil imaginar o quão galopan te se deu a sua propagação! A França viveu a temida peste sifilítica no século XVI, o que leva a inferir a origem da doença. Os franceses verteram o mal para o resto d a Europ a, contaminan do corpos sadios e difun dind o o que deveria ter sido errad icado rapidam ente. As condições da medicina – ainda em atraso significativo – não possibilitaram um combate eficaz, razão pela qual a doença ganhou terreno sem um antídoto à altura. Da casa-grande, a sífilis invadiu a senzala, o massapê, o canavial... Nasceu na intimidade d a família portuguesa e de lá se entranh ou por entre os recantos do engenho. Meninos brancos, os nhonhôs, de 12, 13 anos, já exibiam sobranceiros a marca da sífilis, confundida com o emblema de virilidade. Desde os tenros anos, aos meninos dóceis, mais inclinados a empinar papagaio que a outra coisa, cobravam-lhes o exercício da sexualidade. Cedo sifilizaram-se em nome de uma petulante falocracia. O distintivo sifilítico, por incrível que pareça, arrogou-se de insolências de macho. Sifilítico, mas m acho, ninguém poderia questionar a pronta e eficiente varon ia. O corpo d enu nciava a mancha do falo. Ferida de guerra, a sífilis sacralizou muitos heróis, dentro de casa, na perigosa dimensão do que é familiar – a familiaridade quebra a perspectiva do intenso, anulando as proporções e amortecendo os riscos. O que é familiar é próximo, não causa receio. Pequeninos em idade, mas protagonistas de façanhas de adulto. Negrinhas virgens, as mais apetitosas, constituíam o alvo dos meninos sifilíticos. Dizia-se até que nada melhor do que uma negrinha virgem para a cura da doença. Sórdida lenda que se teceu em tempos coloniais. Como se o excesso de saúde da africana pudesse neutralizar o despautério do lues. Cruel argumento que vem somente a ratificar o abuso do corpo da negra. Negras tantas vezes entregues virgens, ainda mulecas de doze e treze anos, a rapazes brancos já podres da sífilis das cidades (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 341).
Numa sociedade onde os intercursos lúbricos foram vistos como sinônimo de exuberância, nada m ais natu ral que as d oenças sexualmente transmissíveis – as DSTs – se propagassem à larga, sobretudo quando não avultavam meios para preveni-las, men os aind a p ara curá-las. É claro que, sifilizadas – muitas vezes ainda impúberes – pelos brancos seus senhores, as escravas tornaram-se, por sua vez, depois de mulheres feitas, gran-
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des transmissoras de doenças venéreas entre brancos e pretos. O que explica ter se alagado de gonorréia e de sífilis a nossa sociedade do tempo da escravidão (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 342).
O elixir e as garrafadas – com estamp as estranham ente devotas, de imagens do Men ino Deus, cercado de anjinhos, a aconselhar o elixir tal – tiveram a função de chamar a atenção para a doença, mas não alcançaram a plenitude da cura. A casa-grande ensaiou várias tentativas, algumas homeopáticas, que não surtiram os efeitos almejados; serviram apen as como d enú ncia de um mal que inu nd ava o sangue imoderad amen te. A política sexual fora sempre a de cultuar a licenciosidade em níveis elevados, o que ocasionou a veiculação da sífilis em um campo aberto à ação devastadora. Lamentável dizer: o Brasil não se civilizou diante de tantas intempéries. Sifilizou-se antes. A prostituição doméstica deu cancha à livre revoada de uma enfermidade imp lacável, que a n ingu ém p oup ou, nem mesmo aos recém-nascidos, esses contaminados pelo leite materno. Como se pode inferir, o efeito chegou a gentes que não praticaram sexo. A ama-de-leite contagiou-se com o m enino no peito ou vice-versa. Verificou-se, portanto, a ingerência pela via da amamentação, ocasionando prejuízos irreversíveis. Costuma dizer-se que a civilização e a sifilização andam juntas: o Brasil, entretanto, parece ter-se sifilizado antes de h aver civilizado (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala,1966, p. 51, o grifo é meu).
O Brasil, ainda no século XIX, quantificava uma grande massa de sifilíticos. A erradicação da doença foi lenta e gradual. Os higienistas demonstraram preocupação com o evoluir de um grave mal. Por ignorância ou por deficit científico, a sífilis perdurou durante muito tempo e impregnou a população brasileira de uma moléstia inspiradora de inquietantes astenias sociais. A RELIGIÃO DO SEXO O catolicismo brasileiro vestiu-se de túnicas líricas. Resultou de encontros ecléticos, quase holísticos. Portu gal, já p or si, eviden ciava um misticismo carregado de “hiperestesias”, talvez até despersonalizado nas múltiplas raízes: romanas, mouras, judias, bárbaras, pagãs, cristãs... Do islamismo advieram inúmeras influências que embrandeceram o quadro religioso em vigor. A seu jeito, esculpiu a mentalidade do português ou fê-la conviver com outras formas de conhecimento religioso, aumentando a percepção para além de si mesmo. Religião com cheiro d e carne. O cristianismo ren deu-se a ou tros princípios para apaziguar a fúria civilizatória. E apaziguou muito bem. Com
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esbanjadores acenos. Com artifícios meticulosos. Com focos exagerados de lubricidade. A rotina entremeou-se de apelos sexuais que animaram a festa da carne, religiosamente permitida, o que já lhe conferia ganhos adicionais – regalos d ivi ivinn os, abençoados p ela liturgia liturgia da d a fé. Santos de carne e com o mesmo sensualismo de homens desejosos de copular copu lar.. A reli religião gião reacen reacendd eu a pu p u ls lsão ão já inflamad inflamadaa pela p ela libi libidd o portu p ortugu guesa. esa. Sob o arrimo da d a Igreja, Igreja, o sex sexoo tornou -s -see leve leve e solenem solenemente ente ou torgado p or mãos m ãos que não eram humanas. Mãos sacrossantas com o poder de amortecer o maior dos defeitos. Machos e fêmeas desfrutaram o êxtase de uma sexualidade acariciada por Deus. Que mais se poderia almejar para que o desejo se realizasse com a plena anuência dos “imortais”? O corpo fez-se enlouquecidamente cobiçado na tríade das etnias. Basta citar as alusões aos Santos, à Virgem, ao Menino Jesus, ao quotidiano do bangüê: Nossa Senhora do Ó adorada na imagem de uma mulher prenhe; São Gonçalo do Amarante a desdobrar-se para atender aos rogos das mulheres que tanto o arreliavam com promessas e fricções; São João Batista, moço bonito, namorador, solto entre as moças que lhe d iri irigiam giam pil p ilhh érias érias.. A d iversi iversidd ad adee do d o hagiol h agiológio ógio católi católico co em m uito ajudou ajud ou a alegoria da d a festa sexu sexu al. Até mesmo os azulejos – de influência moura – transformaram-se em tapetes decorativos nas capelas, nos claustros, nas residências. E os desenhos, então assexuados, adquiriram, na arte cristã, formas afrodisíacas, quase obscenas. Mais uma ingerência muçulmana à qual se adicionaram pinceladas eróticas. Nas sacristias e interiores das igrejas, as grandes paredes cobriram-se de azulej azu lejos os com cenas cen as de d e p lás lástic ticaa sexual. Brancos, negros, índios pacificavam-se no mutirão da religião. O catolicismo pontuou a peça fundamental de família na obra colonizadora. O cimento da união. O lastro propulsor de proles desvairadas. Só uma barreira mostrava-se intransponível no Brasil colonial: a da heresia. Essa era vista com repúdio, desprezo, rejeição. Tudo se aceitava, menos a mancha do ateu, a obliqüidade do ímpio ímp io e sua frigid frigid ez estéril qu quee emp em p u rra almas à cond en enação. ação. O Brasi rasill precisava precisava ser um Brasil de santos ou, pelo menos, de guardiões da fé. Assim foi. Exageradamente defensor dos valores cristãos e jesuíticos. Católicos, sim. Hereges, nunca. A obra de cristianização referendou um processo seletivo, vivenciado com bravura pelo Brasil de nossos antepassados. Qu e chegassem chegassem machos e fêmeas em graç graça. a. Desi Desinfetados d a p este da heresia. Pelo batismo, estariam prontos para o ofício da “governância”, isto é, para o ofício de administrar os seus corpos em permanente erupção d e d esej esejo. o. A orgia da d a carne carn e d is isse se da d a celebração celebração d o p atriarcal atriarcalis ism m o. A reli religião gião chegou a abençoar com o sinal-da-cruz os “devassos” de moralidade sexual. Pais-nossos e ave-marias rezavam-se ao compasso da cerimônia do amor e das fustigantes sandices da paixão.
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N o Brasil Brasil,, a cated catedral ral ou a igreja, com a sua su a estrond estron d osa arqui arqu itetu tetura ra barroca, seri se riaa subs substi tituída tuída pela hu m ild e capela capela d o engen ho – páli pálida na engen har hariia d e p ed edra ra e cal, cal, porém exc excels elsaa na n a sim sim bologi bologiaa de d e um u m p od oder er ú n ic ico. o. O cleric clericali alismo smo não fl floresc oresceu eu apesar d os esforç esforços os dos p adr adres es da Comp anh ia. A catedral p erdeu para a capela de engenho; esta, tão pequena, simples e rusticamente constru ída; aquela, aqu ela, erigida em ali a licerces cerces e em d imen sões artístic artísticas as in in igualáveis. Mas a soberania “plástica” não foi suficiente para defrontar-se com o império dos oligopólios açucareiros. O s aposentos aposentos do engen ho sediavam um a prociss procissão ão permanen perm anen te. And avase de rosários na mão, relicários, santinhos, águas-bentas, um aparato quase béliico para bél p ara agradar agrad ar aos doi d oiss senhores: o da terra e o d o céu. Orava-se Orava-se pel p elaa mam anhã, à hora das refeições, à noite. Conversava-se com os santos, como se eles fizessem parte da família, com presença corpórea definida, a responderem e a trocarem idéias. Os santos deambulavam dentro de casa lembrando íntimos convidados. Foi esse cristianismo doméstico, lírico e festivo, de santos compadres, de santas comadres dos homens, de Nossas Senhoras madrinhas dos meninos, que criou nos negros as primeiras ligações espirituais, morais e estéticas com a família e com a cultura brasileira (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 380).
Essa fusão de deidades – umas fetichistas, outras católicas – induziu a equali equ alizações zações desejáveis desejáveis à med ida que qu e o negro n egro encai en caixxou a heran h erança ça religi religiosa osa afriafricana à realidad realidad e, não menos m enos religi religiosa, osa, europ éi éia. a. Emergiu Emergiu u m quad ro de d e justaposição, bem ao gosto dos atavismos de cada raça. As aderências proliferaram, penetrando pen etrando no imaginário imaginário col coletivo etivo do p ovo brasileiro, brasileiro, qu quee h oje defend e suas su as ondulações místicas entre flexibilizações de todo louváveis. Uma vida de rezas. Um cotidiano cheio de superstições e de convicções religi religiosas. osas. Nas cadeiras de balanço, as nossas n ossas bisavós bisavós mu ito ped iram ao ao Menino Jesus: saúde para os netos, casamento para a sinhá, prosperidade para a cana... Do santuário à cozinha, a ebulição da fé. Porém, uma fé ecumênica, que não se restringia às normas exclusivas do catolicismo. Presunçosa de fetiches, de atavismos, de misturas sadias que concorriam para o bem-estar familiar. A idéia de Deus corporificada. Santos carnais. Com sentimen to e com cheiro de gente, o que lhes conferiam conferiam d ivi viden den dos extraordinários extraordinários mediante fortes laços de solidariedade. Um Deus Deu s presente e partíci partícipe de d e um a vida vida n em semp re cati cativa va de opulênop ulência. Um Deus que chora, que ama, que ri, que aplaude os bons e condena os mau s. Um Deus Deu s im im ediati ediatista sta num nu m mu nd o secular; secular; logo, com sentenças sen tenças bem bem d efinidas para a desarmonia do universo.
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Dessa intimidade entre o sagrado e o profano deriva a mescla humanizada, indecomponível que transforma nosso catolicismo numa crença sem mística especulativa e sem ascética, antes idílico e sensual (MOUTINHO, José Geraldo Nogueira. O sentimento religioso em Casa-grande & senzala, 1985, p. 101).
Rezavaezava-se se a Santo Santo Antôn io para p ara arrumar arru mar casamen asamento; to; a Nossa Senh Senh ora do do Bom Parto para p ara auxi au xili liar ar a hora h ora do d o nasc na scimen imento; to; às N ossas Sen enhh oras e aos San Santos tos para pa ra colaborarem colaborarem na nass deci d ecisões sões mais comp comp lic icad adas as do d o di d ia-aa-a-dd ia. Uma relaç relação ão am iga, com trocas de confiabilidade. Na oc ocasi asião ão da d a botada – primeiro primeiro di d ia da d a moagem m oagem d a cana –, lá se posta p ostava va o pad re para p ara assegurar assegur ar o sucesso sucesso do eito. N ad adaa se fazia fazia sem sem sacralizar sacralizar o profano. p rofano. O mu nd o, sabi sabiaa-se, se, estav estavaa cheio cheio de d e maus-ol m aus-olhad had os. Com Deus Deu s como como patron patrono, o, o trabalho trabal ho fi firmava rmava garantias preli preliminares em base de futu ras prosperidad es. O sacerdote primeiro dizia missa; depois dirigiam-se todos para o engenho, os brancos debaixo de chapéus de sol, lentos, solenes, senhoras gordas, de mantilha. Os negros contentes, já pensando em seus batuques à noite. Os muleques dando vivas e soltando foguetes (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 471).
As etapas religiosas cumpridas, assim o engenho penhorava safras alvissarei alvi ssareiras. ras. A ord ordem em d ivina guiari gu iariaa a ordem ord em d o melaç m elaçoo e, em d ecorrênci ecorrência, a, a da econom ec onomiia. Orações, Orações, mui mu itas. Uma casaasa-grand grand e inund inu nd ada de preces preces.. Não só oravam mulheres brancas. As negras, sobretudo. Eram tão rezadoras, as negras, que passavam o dia cantarolando músicas “sacras”, recitando credos e versos m orali oralistas. stas. Síl ílvio vio Rom Romero ero afirma ter-s ter-see torna tor nadd o religios religiosoo diante d iante d o exem exempp lo de sua escrava Antônia, a mais devota mulher que conheceu. Passava o dia a rezar e a benzer-se, benzer-se, rogand rogandoo a Nosso Senh Senh or permiss per missão ão para tu do. Quando se perdia dedal, uma tesoura, uma moedinha, Santo Antônio que desse conta do objeto perdido. Nunca deixou de haver no patriarcalismo brasileiro, ainda mais que no português, perfeita intimidade com os santos. O Menino Jesus só faltava engatinhar com os meninos da casa; lambuzar-se na geléia de araçá ou goiaba; brincar com os muleques. (...) Com Santo Antônio chega a haver sem-cerimônias obscenas. E com a imagem de São Gonçalo jogava-se peteca em festas de igreja dos tempos coloniais (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. XXXVII, 246-247).
A intimidade entre o devoto e o santo consagrou a flexibilidade do cristianismo colonial. Uma interação que se quis acondicionada em pousos familiares, o divino a ocupar relações próximas, de rara afinidade com o humano. Este quadro simbiótico agregou o singular feitio da mística do passado.
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Assim a hegemonia religiosa, comum ao cristianismo clássico, perdeu terreno no contato com a africanidade. Ao amaciar a religião, lançando toques de mundanidade, o negro retirou-lhe o ar de punição, ressignificando-a em veios mais complacentes e, sobremaneira, mais altruístas. O Brasil desenvolveu-se sob a miragem benéfica do catolicismo plural e esbanjadoramente repositório de crenças alienígenas. A potencialidade em aceitar e em conviver com o “exógeno”, à orla da Bíblia lusitana, ofertou-lhe um amplo caleidoscópio, verdad eiro oráculo d e “gêneses” possíveis. Sem discriminações, aceitou as variadas influências, unificando-as em balizas de polifonia e polissemia. (...) O Catolicismo foi o elemento mais vigoroso nesse conjunto, mas ele mesmo é, sob certos aspectos, aqui no Brasil, “superstição católica” (MARTINS, Wilson. Livro definitivo na vida intelectual do Brasil, 1985, p. 273).
Sensualidade não faltou ao Catolicismo colonial. A religião chegou a condescender com a profusão de intercursos genitais. Os pad res, a quem se atribuía a virtude do celibato, não conseguiram controlar-se diante de tamanha permissividade. Tanto que, em nome da moral religiosa, houve iniciativas de preservar, sem o sucesso esperado, a condição de abstinência sexual dos sacerdotes, sugerindo-se a moradia do capelão fora da casa-grande. E, ainda: com escrava velha para servi-lo, dotada de poucos atributos físicos. Evitar-se-iam, dessa maneira, as numerosas tentações. Pelo menos, o clero deveria corresponder aos princípios louvados pela Igreja, entre os quais, o mais pudorosamente defendido, o da sublimação sexual. Que os leigos se afogassem n o prazer orgástico. Os padres, não. Tudo leva a crer, contudo, que a libido superou o presbítero, estimulou o desejo e anu lou os supremos dogmas católicos. Mas tentativas ocorreram. Se não lograram os resultados perseguidos, colaboraram para tranqüilizar a consciência dos mais austeros padres da Companhia de Jesus, esses, uns donzelões convictos. Do ateu ao religioso, o brasileiro traz den tro de si uma colméia de amuletos. As sup erstições integram o seu imaginário com uma gama vastíssima de lances mágicos. E ai do brasileiro que não respeite os seus babalorixás, o seu Deus, os seus santos protetores! Um tanto à mercê dos suspiros lendários, elabora a própria mitologia, marcada pelo improviso e pela versatilidade. Quermesses, festas de igreja, sorteios, rifas sincronizavam o cunho alegre e telúrico da secularização do cristianismo que se desenvolveu sob o crivo das oblações jesuíticas. Uma laicização qu e alfinetava a sexualidade, enquanto estabelecia adereços eróticos na dinâmica patriarcal. Basta recorrer a ainda usual denominação dos doces, hoje populares, porém, anteriormente, confeccionados em conventos peritos na técnica de estímulos seráficos e não menos
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fesceninos: sonhos, olhos-de-sogra, babas-de-moça, suspiros, manjar-dos-deuses, nuvens-de-coco, barriga-de-freira, bolo-de-beata, bolo en gorda m arido, bolo divindade, espera-marido, come-e-cala, bolinhos do amor, esquecidos, melindres, paciência, beijos-de-freira, abraços, caladinhos, saudades, triunfos-de-freira, capela-de-freira, fatias-de-freira, toucinho d o céu, cabelos da Virgem, papode-anjo, celestes, queijinhos de hóstia, conselheiros, velhotes, orelhas de abad e, galhofas, lérias, casadinhos, viúvas, jesuítas, arrufadas, sopapos, desmandadas... Nomes sensuais outorgaram à ação degustativa fermentos instigantes e aliciadores da prática do amor. Um surto de fascínio alimentar e libidinal para p icar os desvãos d a casa-grande nas coisas do sexo. A negra p rovou ser excelente n esse cond imen to. Exerceu um a função prep ond erante n a exegese do cristianismo lírico. Do negro, todos nós aprendemos um pouco. Reminiscências religiosas, as suas, estão presentes como insígnias culturais que ultrapassarão o tempo, alongando-se na unidade brasileira, qual refrão de velhos contrastes coloniais. E o cristianismo sensual e lírico resultou de uma partitura em três tempos.
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CASA-GRANDE, CAPELA E SENZALA José Luiz Mota Menezes arquiteto, urbanista e historiador
A casa-grande, completada pela senzala, representa todo um sistema econômico, social e político: de produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, o bangüê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo de família, com capelas subordinado ao pater família, culto dos mortos, etc.). Gilberto Freyre
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UMA OBSERVAÇÃO PERTINENTE Quando se deseja escrever sobre o tema Engenho de Açúcar se vive uma grande d ifi ficul culdd ad adee e isso isso talvez se expli explique que d ian ante te do d o que qu e di d iss sseram eram sobre esse esse assunto assun to muitos m uitos e bons pesquis p esquisador adores. es. Send endoo a existênci existênciaa dos d os engenh engen h os e os resultad resultados os deles obtid obtid os logo no primeiro século da colonização a explicação mais justa de uma autosustentabilidade da Capitania de Duarte Coelho e ainda por se tratar de um sistema de produção de grande interesse, em face de sua organização ter sido realizada nos moldes referidos no Brasil, essencialmente no primeiro século e nas mais antigas capitan capi taniias, a questão de d e im im ediato despertou desp ertou o interesse interesse daquel daqu eles es pesquisadores in in tegrantes gran tes das da s mais diversas ciênci ciências. as. Assi ssim m , é possí p ossível vel que no n o presen pr esente te texto se in in forme alguma coisa de novo ou em nada ele contribua para a questão. Mesmo assim nos gratifiica a poss gratif p ossiibi billid ad adee de d e debruçar d ebruçar sobre o tema tem a o vendo ven do com nossos olh olh os. Por vasto red reduziremos uziremos o tema pri p rinn cipalmen te aos engen engenhh os d e Pern Pernam ambuco buco das Capitanias ao Norte, excluindo em parte a da Bahia diante de sua maior complexidade. É possível que o aquilo dito sobre Pernambuco possa se aplicar aos engen engen hos da Bahia, Bahia, mas não n ão nos aventuramos aventu ramos a tanto. A CASA DE LAVRADOR NO MINHO – PORTUGAL “Como resultante das dominantes geográficas locais, e da prolongada evolução da sociedade rural minhota, o povoamento disseminado caracteriza-se, em oposição às demais formas de ocupação humana do território, pela fixação do lavrador e da sua família junto às terras que trabalha. Tendo em conta o intenso retalhado do solo, o tecido rural apresenta-se-nos salpicado de propriedades de todo o tamanho, a que os serpenteados caminhos vicinais dão à necessária coesão. À margem destes, mas cravados no seu próprio agro, despontam as casas de lavrador, que se constituem como organismos unifamiliares e auto-suficientes, composta pela moradia e as construções ane xas, erguidas consoantes as necessidades.” “Quando o proprietário rico, e também lavrador, ainda vive nas suas terras, em que a falha dos campos domina e enforma o seu caráter, a casa de lavrador, como um prolongamento direto da vida do agro, amplia-se e as instalações tomam as proporções que as necessidades exigem. E, embora o tamanho aumente, o esquema mantém-se igual ao da casa do remediado, e os objetos, animais e pessoas albergam-se, na mesma, lado a lado”. A modificação sofrida resume-se, portanto, à magnitude das dimensões.
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Para melhor exemplificar apresenta-se a Casa de Calvelho, em Creixomil, cujas características notáveis nos servem à maravilha. Ao lado da habitação, de traçado igual a tantas outras, instala-se a capela, que só por si dá o tom e classe das pessoas que nela viviam. Depois, rodeando pelo Norte e pelo Sul o terreiro, lá está a teoria completa de abrigos para as diversas coisas e operações. Atente-se na sua vastidão e nas dimensões de párea coberta, e verificar-se-á que estamos em presença duma grande casa de lavrador fidalgo. Apesar disso, não transparece a menor ostentação, antes, pelo contrário, tudo se mede pelos cânones de vida sóbria e digna, que se prolongam em gestos, hábitos e objetos marcadamente rústicos.” (In: Arquitectura Popular em Portugal, SNA, 19611)
A ORGANIZAÇÃO DA UNIDADE PRODUTORA DE AÇÚCAR NO BRASIL Quando, no século XVI, a exemplo em Pernambuco se organizam as primeiras unidades de produção de açúcar no Brasil, com emprego de engenhos para esmagar a cana e os demais componentes da fábrica, além da moradia do senhor, dos escravos e a capela, tudo se constituiu em uma experiência praticamente nova para os lusitanos, apesar das instalações existentes na Ilha da Madeira. O novo consistiu na organização do território e na montagem de um sistema que garantisse pouca improvisação. Isso no que se refere entre outras coi oisas sas ao ao uso u so do rio como como elemento elemen to auxil auxiliar do d o transporte tran sporte do d o produ p rodu zi zido do desd desdee os armazén s, passos passos,, de guarda gu arda d o açúcar açúcar,, e segura segura instalaç instalação ão da m oend oenda, a, quando se tratava de uso da roda d’água. Para m ateri aterial aliizar tal sistema sistema d e p rodu ção, considerand considerand o aquel aqu elaa ap ropriação do espaço, onde se situaria a plantação, o lavrador parece ter feito uso de sua memória e experiência vivenciada por ele na Península Ibérica, embora relacionada com outro tipo de produção, por exemplo, a do vinho. Desse modo, no conjunto que vai tomando forma nos primeiros assentamentos relacionados com a produção do açúcar ele não vai dispensar, considerando a dimensão do empreendimento, o que em Portu ortugal gal seri seriaa a sua morad m oradiia antes an tes descrita. descrita. Isto Isto é, teria que dotar d otar a prop p ropriedariedad e rural ru ral no Brasi Brasill de um u m a casa, casa, onde ond e quai qu aiss foss fossem em as suas dimensões dimen sões estas estas não afetariam o modo de distribuição interna dos cômodos e a presença daquela varanda VVAA, Arquitectura Popular em Portugal. Lisboa: Edição do Sindicato Nacional dos Arquitetos, 2 v. 196 1961. 1. p . 40 e segu int intes. es. 1
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voltada para a plantação. Nos mesmos termos ele n ão dis d ispp en ensari sariaa a existência existência da capela, cap ela, col colad adaa ou is isoolada da casa. Uma situação que nos parece natural ao se considerar o relativo isolamento do conjunto em relaç relação ão às vilas vilas e povoaç p ovoações. ões. O n úm ero bem m ai aior or de empregados e escravos o conduziria à construção de casas para trabalhadores livres e habitações coletivas col etivas,, a sen senzala, zala, esta por conta con ta do d o nú m ero razoável de d e famílias famílias n egras. N atu atu-ralmente a diferença do sistema adotado em Portugal para o do Brasil estaria na matéria-prima produzida, ou seja, o açúcar e a máquina (o engenho propriamen te dito, a moend m oenda) a) de obtenção d o cal caldo, do, os equipam equipamentos entos de cozimen cozimen to e de cura qu e requerem espaç espaços os diferentes diferentes e não existentes existentes natural natu ralmen men te naquel naqu elee conjunto antes descrito. N o Brasil Brasil vão vão-se -se multi mu ltipp li licar car as cap capelas elas rurais rur ais e elas passam a existir existir in in d if ifeerentemente rentem ente das d as dimen dimen sões e posses posses do propri prop rietári etário. o. Qu ase todo engenh en genhoo tinh tinh a sua capela ou um oratório doméstico de bom porte. Trata-se de uma necessidade de proteção dos santos que está acima da situação de cada senhor de engenh o, se sejja senh senh or de grand e ou p equena p ropri ropriedad edadee rural. rural. Diante de tal premissa, assim como em Portugal temos de considerar a capela do engen engenho ho e aquel aqu elas as que se ed ifi ficcam nas p ovoaç ovoações ões que se organi organ izam nas proximidades daqueles e que em alguns casos podem se transformar em igrejas igrej as paroqu p aroquiai iaiss vinculadas vinculad as às freguesi fregu esias. as. Q uer a capela rural ou ou a ou tra situad situad a na p ovoaç ovoação ão não parec p arecem em ser di d ife fe-rentes na arquitetura senão naquilo que deriva do poder e do orgulho do senh or do engenh en genhoo no sentido de d e aformosear aformosear mais sua casa casa de Deu s. A vi vida da rú stica desprovida de luxos é marcante na maioria das propriedades rurais, no entanto os grandes proprietários, contrariando o modelo de vida existente no Norte ou Sul de Portugal, passam a viver com mais requinte. Na maioria dos casos o melhor da ornamentação será destinado à casa de Deus, mas alguns senhores senh ores se se dão d ão ao di d irei reito to de bem tratar a d ec ecoraç oração ão intern intern a da d a casa-g casa-grand rand e, sua sua moradia, se bem que com maior intensidade isso ocorra já no século XVIII e seguinte. Havia propriedades somente de plantio de cana, onde o senhor não possuía recurso para construir o engenho e as que instalavam engenhos eram de mós de pedra, ou de paus movidos por meio de bestas, almanjarras, ou por força de uma roda de água. Tecnologias mecânicas conhecidas e empregadas desde muitos tempos em Portugal. Com fim fim d e estabel estabelec ecer er um a mel m elhor hor forma d e apreen são do assun assun to, divi divi-diremos a questão segund o os tipos tipos de d e edifi edificaç ações ões que comp comp un ham o conjun conjunto to de produção do açúcar. Não deixaremos de lado os mobiliários das casas-grandes e das capelas.
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Em cada um dos tipos estudados procuraremos localizar se possível os prováveis modelos em Portugal. Também se adotará um sentido cronológico e relacionado com o gosto arquitetônico vigente. A CASA DE MORADIA DO SENHOR DO ENGENHO OU DE APENAS PLANTAÇÃO DE CANA-DE-AÇÚCAR Nem todos os senh ores de terras doadas para plantar e moer eram dotados de meios para construir um engenho. Este era de alto custo e exigia mão-de-obra especial, além d a aquisição de metais para os tachos. Assim existiam propriedades somente de plantio outras que moíam uma vez que dotadas de moita e maqu inaria necessária a todas as etapas d a produ ção. AS PRIMEIRAS CASAS – SÉCULOS XVI E XVII Percorrendo um inventário, realizado em Portugal pelo Sindicato Nacional dos Arquitetos 2, já referido, encontramos algum as casas que muito nos ajudam para uma melhor análise do tipo construtivo da casa de um lavrador de cana-deaçúcar no Brasil. Elas estão situadas no Minho e nas Beiras. A maior parte delas na região primeira. A aparência externa dessas moradias tem como elemento de destaque a varanda correndo por quase toda uma das fachadas. Desta varanda, situada na maioria dos exemplos no pavimento superior, tem-se acesso aos cômodos (ou casas) de usos diversos: sala, alcovas, cozinha e sala do oratório, a das rezas. As alcovas são escuras ou abertas à luz se situadas na extremidade da varanda. Para tal varanda se tem acesso por escada quer ao ar livre outras vezes com proteção de um telhado. A varanda se abre geralmente para uma ampla paisagem 3.Em alguns casos a cozinha fica no pavimento inferior e, para acesso a ela, existe escada própria assim como para a adega 4. Em casas desse tipo, menores, o gado no inverno se abriga no térreo. Arquitectura Popular em Portugal. Lisboa: Edição d o Sindicato N acional dos Arquitetos, 2 v. 1961. “cabe, pois, referir aqui um aspecto não men cionad o e qu e é fun dam ental para a comp reensão do fato: como ressalta da análise mais circunstanciada da planta, semelhante às outras casas, as varand as são p rincipalmen te corredores qu e ligam a entrada d a casa com qu alquer quarto ou sala e serão tanto mais compridas quanto mais dependências existirem alinhadas e convenha servir. Apoiadas em pilares isolados; retraídas ou projetadas suspensas, de traves lançadas desde o interior e de lajes de pedra engastada na parede; abertas ou entaipadas, recolheram-se exemplos interessantes que nos mostram a relativa semelhança de soluções dispersas, numa faixa que se pode referen ciar por locais ou p ovoados como N espereira, ao Sul do Douro, em terras de Cinfães; Celorico d e Basto. Ao longo d a estrada que daqui segue para Vieira do Minh o, Monção e Meru fe.”. Arquitectura Popular em Portugal, 1961, op. cit. p. 84. 4 Vários exemplos existem na referida publicação do Sindicato e algumas das casas estão reproduzidas no presente texto. 2 3
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Para saber de que forma foram construídas as mais antigas casas-grandes, assim chamada as dos engenhos no Brasil, diante de não nos ter chegado exemplares íntegros aos nossos dias, temos que nos valer do representado nas pinturas do século XVII de origem holandesa. Elas têm seus partidos arquitetônicos vinculados quer a uma arquitetura de teor erudita, com uso de arcadas, pilastras, capitéis, base, tudo regido p or comp osições de arqu itetura qu e segue o determ inad o nos Tratados ou n as anotações dos engenh eiros militares ou mestres-de-obras. Elas se apresentam nas pinturas de duas formas: simples, em taipa de mão sobre pilares de tijolos, ou rebuscadas e fiéis a tais Tratad os ou anotações. Mas, em ambas, tudo faz crer qu e a d isposição dos cômodos interiores de um modo geral se filia àquela das casas do Minho, em Portugal. A presença da varanda, também uma necessidade no Brasil imposta pelo clima, não seria somen te à frente da edificação, em um bom número de casos ela faz a volta ao redor d o nú cleo central onde estão os dem ais ambientes de viver. Quando a casa era térrea, a varanda corria à volta e a cozinha situava-se quer fora do corpo ou na parte posterior da moradia. Em Portugal, assim também no Brasil, aquelas edificações em qualquer período de tempo foram edificadas em taipa, alvenaria de p edra ou em alvenaria de tijolos. Quan do em p edra, vai requerer o u so de canteis e a obra lavrada terá ares de erud ição. Sendo em taipa, no Nordeste, com freqüência a simplicidade da construção pode conduzir a uma composição de linhas sóbrias, mas em certos casos não é a arquitetura da casa desprovida de erudição. Uma sobriedade resultante do sistema construtivo, mas que não deixa à margem excelentes prop orções quanto ao d esenho, qual a Casa-Grand e do Engen ho Poço Comprido, em Vicência, Pernambuco. Nas pinturas do artista Frans Post, vindo com o Governador João Maurício de Nassau (1637–1644), podem-se ver tais tipos eruditos ou simples no trato da arquitetura rural 5. Um grande inventário dessas casas rurais já existe em estudo publicado e realizado p or um arquiteto na qu alidad e de Tese de Doutoram ento em São Paulo. Posteriorm ente a tese referida foi condensada e ed itada p ela Fundação Gilberto Freyre. No quad ro Casa de Plantação com Torre (nú mero 15), reproduzida no Livro sobre Frans Post de Joaquim de Sousa-Leão (Livraria Kosmo, Rio de Janeiro, 1973), a casa de taipa assenta em pilares de tijolos. Na pintura Engen ho (nú mero 17), temos um exemp lar erud ito com dois torreões ladeando um terraço em arcadas sobre um and ar térreo muito fechad o, talvez um a arrecadação. Outros exemplares são apresentados pelo autor, mas não fogem muito a tais modelos. 5
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A CASA-GRANDE NO SÉCULO XVIII Nos séculos XVIII, ao dominar em Portugal o Barroco também nas construções rurais, as casas-grandes de engenho seguirão aquele gosto quando de teor mais rebuscado. Exemplares em Pernambuco 6 demonstram essas novidades do Reino em termos de gosto e tal ocorrerá, como veremos com mesma modernidade nas capelas. No entanto essas edificações sempre manterão um tratamento que está mais vinculado às características do “estilo” Chão (Plain Style) do que as do Barroco, inclusive no que refere ao uso da superfície curva e de um espaço interior de acordo com as idéias de Borromini. Em algumas casas, raras, pinturas nos forros lembram esse gosto artístico. O SÉCULO XIX No século seguinte, onde predominam o Neoclássico e o Ecletismo, revestem-se desses “estilos” as casas rurais de Pernambuco 7. Nesse século XIX em termos de elementos de modenatura e modulação a casa-grande do engenho seguiu o m esmo tipo de composição da residên cia urbana, guardadas aquelas características de organização dos ambientes típica do modelo rural. O seguir as diretrizes dos estilos em voga denota o interesse do senh or de não ficar em situação inferior ao outro seu vizinho que reformou ou construiu n ova casa aos moldes dessa ou daquela modernidade. Pernambuco detém belos exemplares, todos mobiliados segun do o que a casa exigia naquele século. AS CAPELAS RURAIS Em Portugal capelas ru rais estão presentes junto às casas dos lavradores desde o mais recuad o tempo, segund o a data da fund ação de cada p ropriedade, as quais estão sempre integradas. Assim, suas características arquitetônicas acompanharam segund o aquele tempo o gosto dom inan te no lugar, sejam elas eruditas ou edificações simples. As Casas-Grandes da Bahia ostentam maior luxo que as de Pernambuco. No entanto nesta Capitania se pode assinalar a Casa-Grande e capela do Engenho Poço Comprido e a capela do Engenho Bonito como exemplares de excelente qualidade artística. 7 Grande nú mero d e Boas Casas-Grandes d e Pern ambu co é exemp lar do século XIX. Algumas são frutos de remodelações nessa centúria ou construções novas que substituíram antigas. Podemos citar entre elas: a Casa-Grande do Engenho Morenos, em Jaboatão; do Engenho Monjope, em Igaraçu; do Engenho Gaipió, em Ipojuca; do Engenho Preferência, em Escada; do Novo da Conceição, no Cabo; do Engenho Mattas, no Cabo; do Engenho, depois usina Pumaty, em Joaquim Nabuco; do Engenho da Madalena, no Recife e do Engenho São João, adquirida, pois em estrutura metálica, importada da Bélgica. 6
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No Brasil dois fatores se associam na questão da arquitetura daquelas capelas: os recursos disponíveis do proprietário e o gosto presente entre os mestres-de-obras, em grande maioria seus projetistas e executantes. Em qualquer das situações no conjunto da fábrica a atenção maior será voltada para as capelas, diante da necessária proteção d ivina em lugares às vezes h ostis. A distância entre as propriedad es, na m aioria das vezes define a dimensão da capela e sua imp ortância para a gente ao red or. Quanto às características arquitetônicas e artísticas da capela, pode-se d izer que elas seguiram com o desenrolar do tempo os modelos que podem se associar do Maneirismo 8 ao Neoclássico, onde inclusive os últimos exemplares serão vinculados ao Ecletismo. No Brasil, o longo tem po de duração da Colônia (1500–1822) se inclui no tempo do Barroco e em ap enas nu ma pequena parte do gosto artístico que o antecedeu na Europa, ora cham ado d e Protobarroco ou de Maneirismo 1. Depois da Independên cia, as capelas reconstruídas ou construídas se vincularão aos estilos que sucederam ao Barroco. Parece-nos, diante dos exemp lares ainda existentes, que a capela ru ral acompan hou a mod a das urbanas. Apesar de destinad as ao culto pelo Senh or e assim domésticas, a capela rural recebeu a gente do engenho a seu redor segundo a imp ortância que ela adquiriu no lugar. Com a extinção dos engenhos, algum as delas foram transformadas em paroquiais, e no Recife e seus arredores, com o desaparecimen to dos engenhos, se farão matrizes de freguesias. Quanto ao estilo dessas capelas, não se pode esquecer a filiação delas ao gosto lusitano presente nas capelas rurais ibéricas. Para entender o gosto presente nessas capelas, também entra no jogo a memória dos senh ores e a origem de cada um, e tal situação pode influir na arquitetura dessas edificações. A se saber que a arqu itetura será diferenciada no resultado, seja ela do N orte ao Sul de Portugal, e também se acredita que tal situação pode ter caracterizado as capelas edificadas no Brasil na zona açucareira. Assim, não se deve analisar de uma maneira geral o que ocorreu, e sim verificar cada situação segundo tais parâmetros, o que ainda não se fez devidamente 9. Seguindo aquele caminho natu ral do correr do tempo, verifica-se que as capelas dos dois primeiros séculos seguem as diretrizes do gosto pelo Protobarroco, com pred omínio da simplicidad e nas suas linh as, mesmo quand o seguem os Tratados de Arquitetura, onde em algum as d elas a esse tratam ento sóbrio do exterior se contrapõe, quando as condições assim o permitem, um a m aior riqueza n o interior, esta rep resentad a através do retábulo princiNão se pode esquecer a classificação de Kubler em Estilo Chão (Plan Style), grande parte da produção arquitetônica portuguesa dos séculos XVI e seguinte. 9 Os estudos no Brasil tendem a gen eralizações e deste modo ao esquecimen to de tais situações singu lares e decorrentes de particularidad es que se torn am importantes. 8
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pal ou nos demais quando tal ocorre. Nos retábulos a imaginária acolhe a mesm a lingu agem e d á a nota d ivina ao culto seguindo a d evoção da gen te. Cada um daqueles estilos artísticos antes citados tem linguagem própria e características que direcionaram o gosto do construtor da casa-grande e essencialmente o da capela. Em termos de características artísticas, andamos, da sobriedad e de u ma linguagem mais atenta às formas da arquitetura, para u m m aior dom ínio da escultura d ecorativa. De um modo Apolíneo, no ver d e Gilberto Freyre, ao d e Dionísio. As capelas mais antigas, pertencentes a engenhos dos dois primeiros séculos, não chegaram ao nosso tempo todas elas 10. As que temos hoje são produtos que sofreram intervenções salvo raros exemplares. No entanto, graças às pinturas do paisagista Frans Post, artista já referido, se conhecem exemp lares, a m aioria n ão iden tificados, de capelas rurais. São elas situad as próximas das casas-grandes e ora são de uma arquitetura erudita, outras vezes construídas em taipa de mão e mu ito simp les. Os d ois tipos têm plano redu zido a u ma sala, a nave, que se interliga por u m arco cruzeiro à capelamor. Dois espaços interligados com uma sacristia anexa ora do lado direito ou esquerdo. De um mod o geral, ausência d e sineiras em construção isolada ou colada ao corpo d a capela. Algum as adotam sineiras sobre a fachad a lateral ou n a frontal. Um elemento d e interesse em algum as capelas representadas é um alpen dre à frente d a contrafação principal. Esse alpend re, às vezes cham ado copiar, é um espaço aberto e bem afim com a galilé da igreja cristã. No caso das capelas constru ídas à luz d os Tratados d e Arquitetura a comp osição é cuidad a, e a se crer ten ham existido eram exemp lares de grand e beleza 11. A decoração interior dessas capelas teria retábulos de boa feitura. A tomar como referência a descrição do Reverendo Joan Baers de Olinda, elas A capela do Engen ho Velho, na Bahia, ún ica peça que resta d e um a casa-grand e construída no século XVII, seguiu o modelo das capelas de corpo com planta-baixa ao quadrado e elevação de mesma altura que o lado dessa figura geométrica, tendo uma cúpula, em meia esfera, assente sobre pendentes esféricos. Solução de arquitetura muito semelhante à da capela-mor da igreja dos franciscanos do conven to d o Recife (1608), onde as fontes d essa comp osição são as capelas do litoral da Estremadura em Portugal. A capela do Engenho Velho também recebeu, qual a do Recife, revestimento azulejar. Uma capela também de grande interesse é a da casa dos Garcia D’Ávila em Tatuapera, na Bahia. Esta tem p lanta h exagonal e cúpula em barrete d e clérigo. 11 As pinturas de Frans Post não se realizaram todas no Brasil. Somente um pequeno número ele pintou no Brasil. A maioria realizou a partir de um possível caderno de modelos e as situou em paisagens fictícias, porém tiradas de desenhos ao natural e montadas aleatoriamente. Assim tais construções, quer sejam casas-grand es ou capelas, são represen tações ou n ão d e edificações reais. Acreditamos que o sejam, mas a dúvida ainda persiste à luz de uma documentação onde o exemplar n ão mais existe. Uma capela com copiar que aind a existe é a capela de Nossa Senhora do Socorro, em Santa Rita, Paraíba. 10
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seriam adorn adas com belos retábulos dourados e com a imaginária adquirida em Portugal ou feita no Brasil. CAPELAS DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVII E SEGUINTES Com a derrota holandesa em 1654, apesar de se passar a conviver com uma economia difícil em face do desmonte de grande número de engenhos, a febre d e agradecimen tos a Deus motivou novas construções ou amp liações das antigas. Nos engenhos, quando refeitos, a casa-grande deve ter passado por reformas para adap tar-se ao novo gosto e assim também a capela. Não existe documentação capaz de fixar com exatidão quantos engenhos tomaram tais iniciativas, mas tendo, por exemp lo, o que ocorreu na área urbana, onde se reformularam tantas edificações religiosas, pelo men os as capelas foram remod eladas segundo o gosto do Barroco então surgindo como modernidades no pan orama artístico de Pernambu co da segunda metade do século XVII. Uma m ud ança de gosto no trato interior dessas capelas pode ter d erivado da introd ução da talha dourad a no Recife, revestind o todo o espaço interior da conhecida Capela Dourada. Os retábulos que entalhados e dourados empregavam colunas torsas surgem no século XVII em Pernambuco. No entanto, o maior exemplar, estonteante, foi a referida capela dos III de São Francisco 12. Toda essa mudança de gosto foi lenta e somente está identificada com o século XVIII por conta d e uma necessidad e didática. Ocorreu tal mud ança na verdade de modo contínuo e defasado segundo cada situação. Assim, as capelas rurais de en genhos vão sentir no século XVIII transformações não somente no seu aspecto interior, onde a talha dourada segue as diretrizes do Barroco D. João V, mas nos exteriores, que se acomodam aos ditames de uma composição que p erde a sobriedad e do estilo Chão se revestind o de curvas e contracurvas nos seus ricos frontões e ond e os pórticos em pedra lavrada acompanhavam o gosto lúdico do Barroco. Um dos exemplares mais interessantes desse período é a capela do Engenho Bonito de rico lavor interior. Interessante passou a ser o contraste que se instalou entre o tratamento arquitetônico da casa-grande e da capela. Essa em um “estilo” que revela uma sobriedade quase que arcaizante apesar de algum luxo interior, representado este pelo mobiliário e uso cada vez maior de serviços em porcelana, quer adquirida em Portugal, nesse momento na sua maioria, ou depois na França e Inglaterra. A casa-grande cresceu, mas não criou nenhuma relação, senão em p ou cos casos, com os palácios urba n os desd e qu e ela seria um p alácio Senhores de engenhos e comerciantes bem-sucedidos eram irmãos da Ordem III de São Francisco do Recife nesse momento vivido por Pernambuco e o Recife. 12
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ru ral em tese. Na Bah ia, isto n o fin al do sécu lo XVIII e n o século seguinte, algum as casas p od em ser iden tificad as com p alácios p ortu gu eses, m as são casos raros. O mesm o se pod e d izer d a capela. MOBILIÁRIO E IMAGINÁRIA Em princípio as casas-grandes e as capelas teriam sido decoradas com móveis cujas características os filiam aos modelos conhecidos e sóbrios de Portugal. Cadeiras de couro lavrado e mesa de discos e bolachas. Bancos de madeira. Rústicos ou ornamentados ainda se encontram nem sempre nos lugares de origem, mas em museus. Nas casas mais antigas, o mobiliário teria acompanhado a moda dos usuários e no século XIXse renovou toda a mais antiga mobília por ser antiquada e não representar o luxo desejado pela gente e seu tempo. Ainda em Pernambuco engenhos guardam no interior da casa-grande os móveis desse tempo de mudanças. Assim destacaríamos o Engenho Giapió, o Morenos, o Novo da Conceição e finalmente o Engenho Mattas. O mobiliário aí encontrado é de gosto Eclético e foram fabricados no Recife, a exemplo, os de Julião Berangèr, ou adquiridos na Europa através de Catálogos dos fabricantes. Pode-se encontrar nesses engenhos, isolada, alguma peça mais antiga, escapada da sanha de modernidade, porém a maioria dos móveis é de tal momento de importações em larga escala desde o Velho Mundo. Os jornais atestam tal situação em informações diárias. Qu anto à capela, esta também, no seu interior, acomp anh ará tais mudanças artísticas. Aquelas onde as talhas eram de feitio notáveis perm aneceram sem alterações. Outras, cuja simplicidade do altar exigia renovação, passaram a ser decoradas com retábulos de alvenaria e estuqu es decorativos de relativo bom gosto. A imaginária de tod as essas capelas de engenho era de grand e valor. Quase tudo se desviou d e lugar e p arou n a mão de antiquários ou colecionad ores. A decadência ou desaparecimen to dos engenh os levou a tal dispersão 13. Peças exisCom o surgimento no século XIX dos engenhos centrais, depois das usinas, fontes de maior capacidade produtiva do açúcar e que refletiam um capitalismo concentrador, onde o poder restava nas mãos d e pou cos, ao qual se somou um a prod ução mecanizada p elo desenvolvimento das máquinas a vapor, se terá de considerar no sistema então existente, havia a necessidade de mais cana p ara moen da. A forma d e resolver tal problema foi se adquirir ou arrendar engen hos à volta. Eles passaram a ser apen as lugares de plantio. Quand o tal aconteceu nessas prop riedades rurais, desmontou-se aquele modelo consagrado. As Casas-Grandes deixaram de abrigar os seus antigos senhores e as capelas serviram para outra gente ou deixaram de ter usuários. A decadência de tais construções foi inevitável. Por outro lado, com a libertação dos escravos, nem toda a senzala se manteve com os seus moradores. Na maioria dos casos os velhos engenhos passaram a ser coisas do p assado e dependen tes de u ma cultura representativa dos temp os decorren tes e relacionados com os novos senhores rurais, os usineiros. Estes talvez não integrados ao que eram p ara aqueles antigos senh ores os engen hos. A morte d o engen ho foi também a d e um a cultura a ele interligada. Passou tudo a ser páginas viradas e esquecidas de álbuns de família. 13
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tem, mas elas nem sempre estão ond e deveriam ser alvos de d evoção. São peças de decoração de casas urbanas. A rica variedade dos santos representados e a notável execução levam as autorias para bons santeiros de Pernambuco ou de Portugal. Muitas vezes o engenho associou seu nome ao santo de devoção do proprietário. Assim estão assinalados vários deles em mapas holandeses do século XVII da Capitania de Pernambuco e demais desenhadas pelo cartógrafo J.Vingboons em c.1665. AS SENZALAS A grand e quantidad e de escravos cond icionou o aparecimen to de u m tipo construtivo de certo modo igual em todos os engenhos: as senzalas. Um grande terraço, cuja coberta era sustentada p or colun as de alvenaria, de um modo geral, corria à frente de dois pequ enos cômodos interligados em seqü ência. São longas construções que em alguns casos, qual no Engenho Monjope, em Igaraçu, formavam simetricamente o terreiro à frente da casa-grande e da capela. Nesses dois cômodos, em princípio, vivia uma família. Era coberto o grand e corpo com um telhad o em duas águas que vinh a do terraço aos fun dos da parte mais longa. Poucas variantes existiam desse modelo consagrado. Singu larmen te o Governad or N assau fez u so dessa forma de abrigar famílias de colonos p obres em algum as quad ras da Cidad e Maurícia, a se acreditar ser verdadeira representação da realidade a pintu ra de Frans Poste existente em Potsdam , na Aleman ha. PALAVRAS FINAIS SOBRE A APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO PARA A INSTALAÇÃO DOS ENGENHOS Algumas palavras finais se devem permitir à questão da apropriação do espaço para a instalação dos engenhos e a relação entre eles. Com se disse a mem ória da form a de prod ução do vinh o levou a se conceder, ao saber o que podia produzir cada interessado, parcelas de terra na forma de sesmarias para nelas se fundar a plantação e construir as demais partes necessárias à produção do açúcar. Um ou tro problema a que se deve ficar atento é o d o escoamen to para o porto de em barque d o produ zido. Não era logo possível, diante d a configuração geográfica dos lugares, quer em Pernambuco como em outras partes, se construir logo pontes sobre rios e dar continuidade aos caminhos que seguiriam com o açúcar prod uzido para o porto. A solução foi usar a navegação pelos rios. Isso condicionou a localização das doações nas proximidades de um rio e que seguisse na direção daquele porto. Outra maneira, mais
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difícil seria a proximidade do m ar que tam bém p oderia ser útil ao transporte do açúcar. Preferiu-se como forma inicial e imediata a primeira solução. Assim as datas de terras doadas ficavam junto aos rios existentes próximos a Olinda e ao porto dos arrecifes. A teia começou a se organizar lentamente. Ela era resultado de sistematização cuja base lógica era bem fiel à nova razão, esta talvez resultante de um mundo mercantil nascente.
O DESENVOLVIMENTO DA GRANDE TEIA Finalmente a fórmula instalada vencera. Apaziguados os índios, afastados do litoral (ou dizimados) ao fim do século XVI, a boa produção dos engenhos permitiu em Pernambuco que Olinda pudesse ser comparada com “uma Lisboa Pequena”, por um jesuíta. Nos Diálogos das Grandezas do Brasil, com orgulho, seu autor fala desse novo Paraíso, malgrado os males decorrentes das feras e doen ças. Restava ampliar a produ ção para além d a sede da capitania quer para o Norte, até o limite legal da doação, e para o Sul, enquanto houvesse terra capaz da plantação. O modelo seguido foi o mesmo embora os rios fossem diferentes. E nos vales desses rios se instalaram lugares de p rodução. Para o Sul, com datas de terras maiores por conta de nova gente que, sabendo da vitória dos primeiros, vinh a com m ais capital. Assim foi com João Pais Barreto o qual ocup ou larga porção de terra ao red or d o Cabo de Santo Agostinh o, até onde a vista alcançava, lembrando frase tão conhecida. Ao examinar os map as que ilustram livros holand eses sobre o p eríodo d e ocup ação do Nordeste, pode-se verificar a certa localização desses lugares de produção tudo segundo aquela teia dos caminhos e com a presença dos rios navegáveis seguindo para p ortos instalados ao longo da costa da capitania. Uma organização que talvez tenh a sido fruto d o acaso, mas que se duvida o seja. O Estado d as Alagoas, antes parte de Pern ambuco, não teve situação diferenciada quanto ao sistema de localização da produção do açúcar. O que é de interesse na an tiga Comarca é a presença de d uas lagoas que por sua vez geraram um tipo d e relacionam ento com os engenhos à volta com respeito ao transporte que então foi vinculado à Vila de Santa Maria Madalena n a Lagoa do Sul, ou seja, a Alagoas ad Austrum dos h oland eses. Outro lugar importan te foi o do entorno ao Rio de São Miguel mais para o Sul da Capitania.
CONCLUSÕES O conjunto fabril, os engenhos numa designação genérica, eram verdadeiros complexos em termos de números de ed ificações e, entre elas, as Casas-Grandes constituíam obras-primas de arquitetura rural sobre as quais um escritor che-
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gou a rotular com propriedade de “Escuriais” do Nordeste, tendo como referência o grande palácio filipino espanhol. Ainda hoje as que permanecem de pé são atrações à parte daqueles antigos caminhos. O açúcar não é u m prod uto isolado. Dele surgem subprodutos e ele forma hábitos e modifica costumes. Câmara Cascudo, quando fala da anatomia do açúcar, destacou a imp ortância dos doces e bolos nas sobremesas e a variedade desses diante da invenção das sinhazinhas e das doceiras quer nas cidades ou no meio rural. Henry Koster, inglês e senh or de engenho em Pernambuco nos primeiros anos do século XIX, numa de suas viagens nos informa sobre a quantidade de doces e bolos que lhe foi oferecida após uma refeição, dita ligeira! O prazer da sobremesa passou a ser o de toda a hora e a perdição de quem n ão deseja engordar. Desde finais da Idade Média, os cremes de leite, frutas secas no mel, por confiture, reinavam no dessert ; levantar, desservir, o derradeiro serviço sobre a mesa, hora amável e leve da despedida gentil. Não apenas os mais diversos doces seriam subprodutos da cana-de-açúcar, outro é a aguardente. A aguardente, destilada da garapa ou do mel, possui no Brasil projeção econômica e presença na Cultura Popular como outro líquido da mesma origem em qualquer paragem d o Mund o. Ou tro produto aind a hoje de grande predileção é a rapadura. A rapadura teria vindo das Ilhas espanholas. Outro aspecto de interesse na p rodu ção do açúcar era a festa da Botada, o engenho passava a ser um pátio de feira. Os escritores sobre tal momento da prod ução escreveram belas páginas. Nos engenhos a capela tinha função de grande interesse. As missas e as festas das padroeiras dessas capelas traziam mu ita gente d o redor para o terreiro da casa-grande, onde os festejos eram variados. Depois esses foram deslocados para os povoad os com êxito. O Pastoril, auto do N atal e vivido com intensidade. As capelas o lugar onde na riqueza das talhas estava espelhado o pedido de perdão do d ominador em termos do m ales causados aos dominados. Que todos rezem uma Ave-Maria e um Padre-Nosso para esse pecador, assim dizia a inscrição de uma sepultura magistral. Ricas capelas, ornamentadas pelos melhores artistas constituem um dos melhores atrativo dessa civilização do açúcar. Será que tud o se desmanchou no ar?
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RELIGIOSIDADE FÉ, FESTA & COTIDIANO N AS TERRAS TERRAS DO AÇÚCAR AÇÚCAR Raul Lody an t ropólo ropólogo go,, m u seólo seólogo go e en en saísta saíst a
Navegar é preciso Crer, também é preciso Raul Lody – paráfrase de Fernando Pessoa
Raul Lod Lodyy
Crer é re-l re-lig igar ar,, ju ju ntar, trazer trazer,, uni un ir, fazer fazer com que o homem h omem co conn si siga ga entend en tender er por p or que qu e n asc asce, e, p or que morre, m orre, por que qu e encontra nos n os sí sím bol bolos os mais an anccestrai estraiss e fun fundd amen amentai taiss seus sentimentos de pertença, de singularidade, de alteridade. É necessário justificar a criação do mundo, do h om omem em.. É n ecess ecessário ário criar criar mitos, m itos, d eu euses, ses, san santos, tos, orix orixás, seres diferenciados das relações físicas, carnais, essenciais, como buscar abrigo, comida, afeto, lúdica, jogos, regras e hierarquias para sistematizar papéis sociais, lugares de homens, mulheres e crianças. Trazer o amplo conceito de religião, aqui melhor situado na compreensão de religiosidades, é trazer principalmente a história, a sociedade, a cultura nos seus mais dinâmicos processos de trocas, de permanências, de transformações, de patrimônios, de acervos experimentados nos cotidianos, no tempo das festas, nas casas, nas ruas, nos templos, nos santuários, nos terreiros. Assim, olhar para as manifestações da religiosidade de maneira m aneira generosa e não preconceituosa é um dos papéis da ação turística, dando valor, reconhecendo e resp ei eitand tandoo a di d iferença e o direito direito a essa diferen diferençça. A FÉ A PARTIR DO AÇÚCAR Sem dúvida, a Civilização do Açúcar no Nordeste traz estilos próprios de ocupações e de representações espaciais e simbólicas. No século XVI, o então chamado ouro branco, o açúcar, inicialmente rara especiaria só comparada em valor comercial ao grama do ouro, é a grande abertura do encontro de povos, de continentes, de soc sociiedad edades es de várias partes do mu mund ndo. o. Esse processo tão rico e dinâmico do açúcar funda no Brasil um sistema de relações fortemente associado ao regime escravista. A partir do século XVI, estendendo-se até o XIX, por período de 350 anos, estima-se a chegada no Brasil de mais de quatro milhões de homens e mulheres na condição escrava. Vin d os de d iferentes local localiid ad ades es do d o continente continen te afric african anoo e d e culturas di d iversas, foram os o s então entã o escravos escravos co-form co-formad adores ores do d o Brasil Brasil col colôn ônia, ia, como apon ap onta ta Gilberto Gilberto Freyre em Casa-grande & senzala. Aliliás, ás, as relações relações entre en tre a Península Penín sula Ibérica Ibérica – Portugal Portuga l e Esp Esp an anhh a – com a Áfric África, a, j jáá há h á muito m uito se haviam estabel estabelec eciid o com os povos p ovos do Magreb, na mu m u çu lman manaa Áfri Áfricca do Norte, atuando decisivamente na formação e na construção de uma civilização euro-africana. É ai ainn da Gilberto Gilberto Freyre Freyre quem apon aponta ta para par a uma um a forte forte biafri biafricani canidd ad adee que une u ne o Norte, o Ocidente, as regiões austral e oriental do continente africano, unindo os
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Religiosidade – Fé, Festa & Cotidiano nas Terras do Açúcar
muçulmanos e o longo tráfico de escravos, dando ao Nordeste, às terras do açúcar, um a d ecisiva ação m atricial e formadora d o brasileiro. A escravidão africana foi muito estimulada pelo Vaticano (séculos XV, XVI, XVII), enquanto uma ação cristã de dar alma àqueles seres que viviam sem conhecer o verdadeiro Deus. Certamente os interesses comerciais dominavam e configuravam os verdadeiros motivos para esse tráfico exercido por Portugal no continente africano. Destaca-se que no Brasil à época do d escobrimen to (para m uitos historiadores, invasão) havia milhões de indígenas organizados em centenas de grupos étnicos e culturais, com os quais entrou em confronto o europeu faminto de açúcar , iniciando o longo processo de dizimação desses povos nativos. Isso é acompanhado pela implantação da monocultura da cana-de-açúcar na Mata Atlântica, gerando processos de profundas transformações no meio ambiente; tema tão bem tratado por Gilberto Freyre em Nordeste, livro em que, pela primeira vez em língua portuguesa, se publica o conceito e a palavra ecologia. Ecologia e cultura formam um dos mais importantes eixos da obra de Gilberto para interpretar o n ordestino, especialmen te o pern ambu cano, segundo suas teorias de uma ciência por ele chamada de tropicologia. Os vários estilos de ocupar as terras d o açúcar são assentad os na fé, nas religiões, criando devoções interpretadas na crença multicultural em santos, orixás, no Deus do olhar judaico, nos mitos indígenas, em Alá; e, mais, por convivências e conivências decorrentes d os contatos com os h olandeses (século XVII), no calvinismo; ou em muitos outros sistemas religiosos, por intermédio dos imigrantes do Oriente, libaneses, por exemplo. A fé agrega e compõe identidades – no caso da saga do açúcar, dos engenhos às cidades, constata-se um rico patrimônio partilhado e vivenciado por milhões de n ordestinos, de brasileiros de ou tras regiões e de estran geiros que estão no Nordeste. A FÉ NOS ALTARES, NOS PEJIS, NOS TEMPLOS, NAS ALDEIAS, NA CASA E NA RUA A Civilização do Açúcar formou e fortaleceu uma religiosidade doméstica, da casa, da casa-grande, da senzala, ampliando-se para os sobrados, os mocambos, as casas das cidades, estabelecendo intimidade com os santos, trazendo-os para o cotidiano, como membros da família, como bem situa Gilberto Freyre em Casagrande & senzala, relatando cenas de crianças convivendo com o Menino-Deus, tão próximo, que certamente também brincava e comia doce de araçá. Os altares dos interiores das casas, das capelas dos engenhos, das igrejas, altares múltiplos com imagens de santos da devoção portuguesa, como Santo Antônio, Sant’Ana, São Francisco, Nossa Senhora do Carmo – além de presépios, também arte
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sacra; no seu conjunto alegórico do nascimento do Menino-Deus marcando o Natal –, são dos mais significativos elementos da religiosidade nas terras do açúcar 14,15. No Natal as festas religiosas se estendem da casa à ru a. Pastoris, bois, reisados, guerreiros, cheganças, naucatarineta, marujada, coco-de-roda; trazendo música, dança, teatro medieval adaptado e reinventado nos canaviais, nos engenhos, nas praças e nos adros das igrejas. Ainda no Natal nordestino, mesas fartas, barrocamente opulentas, reunindo frutas secas próprias do inverno europeu em pleno verão tropical e emblematizadas por rabanadas suculentas ao leite, ao coco, ao vinho do Porto, ungidas de canela, açúcar, sim, muito açúcar. A fé continuada na boca, no corpo, e que se expande no tempo das fogueiras, de louvar os santos de junho, Santo Antônio, São João e São Pedro. É tempo do milho maduro, da safra, que é plantada no dia de São José (março) e colhida no São João, santo que é lembrado no fogo, símbolo mais antigo que o cristianismo, relembran do cultos agrários milenares que unem o sol e a purificação da terra. Também o fogo sagrado das fogueiras inclui-se nas festas religiosas afrodescendentes dos Santos em madeira e barro são fortes expressões do artesanato tradicional de Pernambuco, Paraíba e Alagoas, reunind o centenas de hom ens e m ulheres que se d edicam a trabalhar tem as religiosos que afirmam iden tidad es portu guesas, aquelas imp lantadas quan do do longo processo do plantio da cana-de-açúcar e da fabricação de açúcar. Assim, santos da fé de além-mar são rememorizados no trabalho familiar, de comunidades que se distinguem com a produção de imagens de Santo Antônio, São João, São Francisco, São Sebastião, Nossa Senhora do Carmo, Santa Luzia, Santo Amaro, Sant’Ana, São José, entre outros. As comu nidades de Goiana e de Tracunhaém , em Pernam buco, são reconh ecidas pelos santos feitos de barro, e a de Ibimirim pelos santos feitos de madeira. Ainda pintores, gravadores, fotógrafos e outros artistas têm na vasta imaginária católica seus temas preferenciais para interpretar e trazer estéticas que aproximam e justificam o sagrado do homem. 15 Exemplos magníficos da arquitetura sacra católica são visíveis nas igrejas, nos claustros dos conventos, nas capelas dos engenhos, nos altares internos de algumas casas patriarcais, aproximando sempre o santo, a devoção ao caráter e à fé de uma família, de um estilo próprio de crer constru ído n o p rocesso mu lticultural da civilização d o açúcar. Altares e retábulos entalhad os em madeira d e lei, matéria-prima abun dante d a Mata Atlântica; recobertos de folhas de ouro. Arcos romanos, colunas salomônicas, todos repletos de volutas, cachos de uvas, pássaros e outros motivos decorativos confirman do nosso barroco tardio do final do século XVIII estendendo-se ao XIX. Ainda alguns ambientes em barroco rococó convivendo com o n eoclássico das fachadas, das colun as, dos altares, trazendo novos usos dos estilos dórico, jônico e coríntio. Azulejos bicromáticos – azul e branco –, expressiva cantaria, pedra trabalhada, jun tos oferecem um a arte d evotada a Deus. Igrejas do Recife, Goiana, Igaraçu, O lind a, Pernambu co; igrejas em João Pessoa, Paraíba; igrejas em Penedo, Alagoas, são testemunhos vivos da opulência comercial do açúcar no Nordeste brasileiro 14
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terreiros, homenageando o orixá Xangô, que é Obá, rei, senhor da justiça e do fogo para os Iorubá (África Ocidental). Junho é um ciclo festivo especialmente nordestino. Fogueiras domésticas diante d as casas, comidas à base d e m ilho: canjica, pamonha, bolos que se integram ao espetáculo d as quad rilhas, conjun to d e d anças cujo imaginário europeu é adaptado ao sentimento sertanejo, telúrico, da Civilização do Açúcar 16. Outro ciclo de expressiva religiosidade tradicional e popular é o da Semana Santa, precedido, porém, pela festa da carne, o carnaval, que se inclui, assim, no amplo imaginário do sagrado. Nas ruas encontram-se as expressões afrodescendentes dos maracatus de baque-virado ou maracatus de nação, urbanas e características da cidade do Recife, ou os muitos grupos de maracatus de baque solto ou maracatus rurais, originários das áreas dos canaviais na zona da mata. Esses maracatus vêm das irman dad es religiosas de hom ens negros e pard os, reun ind o grande qu antidad e de escravos e libertos nas igrejas dedicadas a Nossa Senhora d o Rosário, São Benedito, Santa Ifigênia, Santo Elesbão, entre outros. Reunindo-os para relembrar os reinados do Congo, base dos maracatus e de inúmeras outras m anifestações, como cambind as, pretinh as do congo na Paraíba e as taieiras de Alagoas. Cabe, nos maracatus d e Pern ambu co, destaque para as calungas, bonecas feitas de madeira e que representam os orixás Iansã, Oxum e Xangô, fazendo uma extensão no carnaval da religiosidade dos antigos e tradicionais terreiros, como o Obá Ogun té Seita Africana Obá Om im – popularmen te conhecido como o Sítio ou Sítio de Pai Adão, no Recife. Em âmbito afrodescendente o sagrado é amplo e convive de maneira interativa com as festas, a do carnaval incluída. Contudo os muitos terreiros que estão nas terras do açúcar têm princípios ecológicos fortemente fundamentados nas próprias tradições de povos africanos, respeitand o e valorizand o a natu reza 17. Só comparáveis às escolas de sam ba do Rio de Janeiro em variedad e e espetacularização são as centen as de quad rilhas jun inas, fenôm enos d e m assa, organizadas em associações, agregand o outros ritmos regionais e tradicionais, como o baião, o coco, o forró, resultando em dinâmicas coreografias e indum entárias criativas e revitalizadoras do imaginário nord estino, aind a que com base nu m conjunto de danças francesas do século XIX. 17 Árvores monumentais marcam os espaços afrodescendentes nos terreiros e em outros locais, traduzindo maneiras de se relacionar com a natureza, manifestando sensibilidade ecológica e inclusão no sagrado do verd e das plantas, das águas dos rios e do mar, dos animais e, conseqüen temente, do homem. Destaca-se o terreiro Obá Ogu nté Seita Africana Obá Omim, preservand o centenária gameleira, árvore sagrada dessa comu nidad e reconhecida como patrimônio cultural d e Pernambuco, recebendo tombamento no ano de 1983. 16
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A religiosidade afrodescendente é orientadora de hierarquias, conhecimentos sobre etnobotânica e línguas, como Iorubá, Kikongo, Kimbundo, Fon, Ewe, entre muitos outros saberes patrimoniais. Em meio às festas e aos ciclos religiosos do Nordeste, retomemos a anunciada Semana Santa, repleta de manifestações públicas, como procissões teatralizadas, cortejos que relembram a fé medieval, profundamente alegórica; além de celebrações nas casas, mantendo o costume de uma culinária à base de coco: arroz de coco, feijão de coco, bredo ao coco, bacalhau ao coco, mungunzá, entre outras delícias de ver e de comer18. O sábado de Aleluia culmina um ciclo, anunciando a reabertura dos terreiros, geralmente com festas dedicadas a Ogum, orixá guerreiro, sendo interpretado no processo do sincretismo como São Jorge, um dos santos mais populares, juntamente com S. Cosme e S. Damião, Santa Bárbara, entre outros da plural fé afrocatólica19, 20, 21. Marcadas pela teatralização da fé da Idad e Média na Europa, vêem-se nas procissões da Semana Santa nas capitais da civilização do açúcar, perm anên cias de u ma estética que comove m ultidões por um conjun to de andores, santos, alfaias em prata, band eiras, cenas pú blicas que ainda expressam as interpretações misturadas do barroco nordestino com a fluente fé afrodescendente das Irmandades de Homens Negros e Pardos, formadas por africanos e crioulos e hoje por seis herd eiros, man tenedores d essas memórias nascidas n o açúcar e preservados n a fé pop ular. As cenas d e devoção nas ru as, os trajetos dos cortejos, un em-se aos cenários das cidades e de suas populações, sendo exemplos os mais comoventes de fé interpretada pelo homem regional, pelo nordestino. 19 Os muitos terreiros afrodescendentes são abertos ao público no período das festas, seguindo calendários de base católica, conforme as datas consagradas aos santos e suas relações de sincretismo com os orixás. Por exemplo: São Jorge, Ogum, 25 de abril; São João, Xangô, 24 de junh o; Nossa Senh ora do Carmo, Oxum, 16 de julho; Nossa Senhora da Con ceição, Iemanjá, 8 de dezembro; Nossa Senhora Sant’Ana, Nana, 26 de julho. Geralmente as festas são rituais coletivos em que música, dança, comida, indumentárias e objetos especiais marcam e caracterizam cada celebração, preservando estética sagrada de profunda interação com o barroco. As muitas festas da Igreja agregam formas ritualizadas em torno dos espaços sagrados, por meio de comida e música e principalmente cortejos processionais na terra, no mar e nos rios. Assim, unem-se os patrimônios arquitetônicos de capelas, santuários, igrejas e demais monumentos cristãos às manifestações populares por meio de teatro de rua, danças, entre outras expressões de devoção aos santos. 20 As comemorações familiares nos terreiros e nas ruas em louvor aos santos gêmeos em 27 de setembro são d evoções de catolicismo popu lar e de sincretismo com os Ibejis, gêmeos sacralizados pelos Iorubá, presentes na mitologia dos terreiros de Xangô em Pernambuco e Alagoas. São verdadeiros cultos da fertilidade, identificados nas celebrações de oferecimento de doces de diferentes tipos, indo do nego bom aos bolos mais elaborados. É, sem dúvida, a culminância do açúcar na fé popu lar do N ordeste. 21 O mês d e dezembro m arca o calend ário d as festas no mar, homenageand o Iemanjá, orixá d o rio Ogum (Nigéria) que no Brasil é a don a do mar; também conh ecida como rainh a do mar, sereia do mar, Dand alun da, entre outros n omes freqüentes n a religiosidad e afrodescend ente. Justamente a partir de 8 de dezembro, dia consagrado a Nossa Senhora da Conceição, os 18
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O imaginário de santos nas casas, nos altares de estabelecimentos comerciais, nos carros, nas roupas, em uma moda fashion sacra, juntamente com outras representações materiais como os ex-votos – objetos que atestam o milagre do santo – , expressa tecnologias e estéticas da oficialidade da Igreja com as fortes matrizes africanas, determinando soluções visuais que testemunham essa mistura de povos, etnias e culturas tão m arcadas e próp rias das terras d o açúcar 22,23. Os diálogos etnoculturais da região tocam formas expressivas e antigas tradições dos povos indígenas, que nas suas aldeias preservam estruturas de saber religioso, destacando-se o toré – ritual de contato com os antepassados, retomando memórias e assim marcando identidades. Em contextos afrocatólicos vê-se o mito do caboclo enquanto ancestral nativo, senhor das matas, figura emblematizada também em muitos terreiros, convivendo com os orixás e outras divindades criadas desses encontros dinâmicos e mu lticulturais que representam as heran ças patrimoniais da saga do açúcar, do homem nordestino. muitos terreiros do Nordeste realizam rituais públicos nas praias, com o oferecimento da panela – uma panela de barro, comidas, perfumes, fitas e muitas flores lançados ao mar. No litoral do Recife, destacam-se as praias do Pina, Boa Viagem; em João Pessoa, as praias de Manaíra e Cabo Branco, e, em Maceió, as praias d a Pajuçara, Ponta Verd e, como principais locais das festas públicas. Ainda no mês de dezembro, as festas do Ano Novo, também nas praias, integram-se às manifestações de religiosidade afrodescendente. 22 Ex-votos – manifestações especialmente visuais e que retratam o milagre, a ação divina na vida do homem. No Nordeste, especialmente nas terras do açúcar, vê-se ampla produção de objetos exvotivos, especialmente entalhados na madeira, de forma e estética fortemente afrodescendente. Luís Saia, que acompanhou Mário de Andrade nas suas missões de pesquisas na região, destaca o traço africano, herd eiro da estatuária e das máscaras da África Ocidental presentes nas soluções estéticas de cabeças e outras partes do corpo humano, exemplos das memórias e das criações do Nordeste. Além das esculturas de madeira, há outras, de barro e de diferentes materiais, com os chamados riscos de milagres – pinturas, desenhos – dos quais é excelente exemp lo o conjunto de três pinturas sobre tábuas, retratando as ações divinas de S. Cosme e S. Damião, protegendo a população de Igaraçu; acervo do museu-pinacoteca do Convento de Santo Antônio, naquela cidade de Pernambuco. Os ex-votos são formas artísticas da religiosidade nordestina apresentando-se, geralmente, em conjuntos de centenas de objetos, vistos em igrejas, capelas, santuários de estradas e outros locais que marcam devoção a diferentes santos, profetas, mitos criados na região, como Padre Cícero, entre outros. As técnicas empregadas no entalhe são as mesmas realizadas para a feitura de bonecos do mamulengo, expressão do teatro d e man ipu lação da região. 23 O amplo e variado conjunto de objetos que fazem a cultura material dos terreiros de Xangô, de Jurema e de outras expressões da religiosidade afrodescendente e afro-indígena pode ser visto e comercializado em barracas no interior do Mercado São José, no Recife – ervas, instrum entos musicais de percussão, destacand o-se o adjá, sineta d e metal de uso litúrgico nos terreiros, fios-de-contas (colares) e demais peças da joalheria ritual, além de amplo conjunto de modelagem em gesso policromado. É sem dúvida um importante acervo de arte de base etnocultural de matriz africana, além das presenças ind ígena e católica, todas reveladoras de estilos e manifestações próprias das terras do açúcar .
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AÇÚCAR NO TACHO Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti pesquisadora gastronômica
Numa velha receita de doce ou bolo há uma vida, uma constância, uma capacidade de vir vencendo o tempo sem vir transigindo com as modas. Gilberto Freyre ( Açúcar )
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
Impossível esquecer o cheiro do doce quase no ponto, incensando a casa com arom as de banana, caju, coco, goiaba, como a avisar que vinh a chegando a hora de raspar o tacho. Esse tacho era de cobre pesado, herança portuguesa, duas alças, largo quase três palmos grandes, ardendo sobre velhos fogões de lenha. Tudo sob o olhar vigilante de velhas pretas que, com experiência e sem pressa, cuidavam para que não passasse do ponto. A doçaria nordestina foi se formando assim, aos poucos, nesse ambiente de gostos e fumaças, fino equ ilíbrio en tre as cozinh as portugu esa, ind ígena e africana. Na m edida certa e com m uita harm onia. Aproveitand o imagem d e Ronald d e Carvalho, nossa própria alma foi nascendo também assim – “da saudade portuguesa adoçada pela sensibilidade ibérica, da inquietação índia e do travo do sentimen to resignad o d os africanos”. Mas esse açúcar, tão essencial para o preparo dos doces, nem sempre existiu por aqui. Que na cultura indígena, antes do colonizador português, doce era o m el de abelha. Tomad o puro, apen as como gu lodice. Ou em bebidas fermen tadas, prep aradas d e muitos jeitos. Às vezes apen as combinan do mel e água. “Com mel pode-se preparar licor, sem levá-lo ao fogo, apenas misturando -o com águ a da fonte e d eixand o-o ao relento”, observou Johan Nieuhof ( Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil, 1682). Outras vezes, misturavam aquele mel a raízes e frutas. Com mandioca faziam aipij, caracu, caxiri, cauim (de todas, a mais conhecida), paiauru , tikira; com batata-doce, ietici; com milho, abatií, aluá e aruá; com pacova, pacobi; com ananás, nanai; com caju, acaijba; com jenipapo, ianipapa. Para as crônicas da época, eram bebidas d eliciosas no sabor, mas rep ugn antes n a p reparação. É que as raízes e frutas desse prep aro, primeiro m astigadas, acabavam d epois cuspidas em jarras de barro, já misturadas com saliva, para dar início à fermentação. “As mulheres é qu e fazem a bebida. Tomam as raízes de m andioca que fervem em grand es potes. As moças sentam -se ao p é e m astigam essas raízes”, assim descreveu Hans Staden ( Viagens e aventuras no Brasil, 1554) o preparo do cauim. Índias moças, segundo Gândavo ( História da província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil , 1576). Ou velhas, segundo Marcgrave ( História natural do Brasil, 1648). Tanto faz. Steinen ( Entre os povos nativos do Brasil Central, 1884) se referia a essas bebidas como “ponche de ptialina”. Só lembrando, a palavra “ponche” tem raiz no Indostão (atual Índia), onde “pânch” significava “cinco”, o número dos ingredientes que entrava em sua composição – açúcar, aguardente, canela, chá, limão. De lá vieram para a Inglaterra (“punch”), França (“ponche”) e ganharam o mundo. Cada tribo fazia sua p rópria bebida. Nas festas iam os da terra em pere-
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grinação, de um a oca a outra, bebend o tud o que lhes fosse servido. Durante a noite inteira cantavam e dançavam entre fogueiras. Até a exaustão. “Bebem sem comer e comem sem beber”, escreveu Câmara Cascudo ( História da alimentação no Brasil, 1983). Depois passou a concorrer com as poucas bebidas que o português trouxe com ele, para o Brasil colônia – um fermentado (vinho), um destilado (bagaceira) e sangria (mistura de vinho, água, açúcar e rodelas de limão). Para os nossos índios, essas bebidas, vindas de tão longe, eram “cauim-tatá” (bebidas de fogo). Negros da África Oriental e Mediterrânea conheciam bem o açúcar – prod uzido com canas plantad as nessa região por árabes, que as trouxeram da Índia. Mas não os escravos que por aqui chegaram, tod os vindos d a África Ocidental (Angola, Guiné, Gana). Também eles usavam mel na preparação de suas receitas. A cana só se popularizou, ali, a partir do século XVI – quando já havia começado, no Brasil, o ciclo da escravatura. Foram aqueles árabes, bom lembrar, que desd e mu ito antes difun diram o mel pela Europa, ensinando como usá-lo na preparação de bolos e doces. Em Portugal as colméias tão importantes eram que, por segurança, acabavam cultivadas sempre p erto d as casas. Havia “meleiros” – que retiravam o favo das colméias; e “apicultores” – que viviam de vender o m el. No reinad o de D. João III, tanto prestígio tinh am que até imp ostos pod iam ser pagos com ele. Os mosteiros se tornaram, por essa época, grandes produtores desse mel – usad o en tão, especialmen te, para p reparar sobremesas e fabricar velas. Havia neles fartura de tud o, em razão d as heran ças deixadas p or famílias ricas ou por pecadores interessados na redenção de suas almas. Como D. Maria Francisca Isabel, filha do rei D. Pedro II – o português, claro. Que o Pedro II brasileiro, filho de D. Pedro I (que em Portugal era Pedro IV), não foi nunca rei na terra em que morreria velho e triste. Conta-se que essa princesa chegou a pagar a fortu na de 1.200.000 réis por 12.000 missas a serem celebradas após sua morte. Dada tanta opulência, ou pela origem nobre de freiras edu cadas no requinte da corte, nesses mosteiros se faziam banqu etes que em nada lembravam o rigor próprio das regras monásticas. Foi assim, especialmen te d o reinad o d e Dom Afonso IV, “O Bravo ” (início do século XIV), até o fim da Inqu isição. Em decreto de 19 de d ezem bro d e 1834, ainda no reinado de Dom Miguel I, “O Absoluto”, o ministro Joaquim Augusto Aguiar aboliu as ord ens religiosas e confiscou seu s patrimôn ios. Além d e ter ratificado a expulsão d os jesuítas, de 3 de setembro d e 1759, e a extinção da Ord em, em 21 de julho d e 1773; passand o a ser p or isso conhecido como “o Mata-Frades”. A nós chegaram receitas de bolos e doces que, em Portugal, continuavam send o feitas com mel d e abelha. Como o bolo d e m el e o folhad o com mel. Ou como o alfenim, pelo povo mais conhecido como alfeninho – do
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árabe “al-fenie”, que significa “cor branca”. Diz-se também, em corruptela, de pessoa delicada e melindrosa. Trata-se de massa seca e muito alva, feita com mel (depois, tam bém com açúcar), farinha e clara d e ovo. Ao chegar n o ponto, é moldada em diferentes formatos – reproduzindo animais, flores e santos. Nas mesas portu guesas era servido em ban dejas de prata, somente a nobres e pessoas de posses. Mas, em Pernambuco, foi sempre doce popular. Cum prind o aind a falar d o alféloa (ou alfelô ou alfeloa), do árabe “al-halaua”, que chegou a Portu gal com a invasão m oura n o século VIII. Por considerá-la privilégio de mulheres e crianças, proibiu D. Manuel I, “o Venturoso”, fosse vendida por homens. Sob pena de prisão e açoite. Em Pernambuco passamos a fazê-lo também com mel de engen ho (ou açúcar). O m el vai ao fogo até ficar em ponto firme – send o a p asta então esfriada aos pou cos, enqu anto se puxa com as mãos até embr anquecer. Por conta desse jeito de p rep arar, acabou conhecido como “puxa-puxa”. À Europ a o açúcar ch egou , oficialmen te, só n o século XV. Por m ãos mouras. Transportado em caravanas terrestres que vinham da Ásia para os portos d e Veneza e Gênova, daí seguind o pelo resto do continen te. Mas há registros esporád icos da presença desse açúcar bem antes d isso, em d ispensas nobres – como as do palácio de D. Dinis I (1279–1325). A princípio, era usado apenas como remédio – calmante, cicatrizante, digestivo, diurético. “Entrou no mundo pelo laboratório dos boticários”, disse Brillat Savarin (“A Fisiologia do Gosto”), em fins do século XVIII, quando afinal se tornou gastrônomo – depois de ser Juiz de Direito e fugir da Revolução Francesa, sobrevivendo na Suíça de ensinar francês e violino. Diferente no aspecto de como o conhecemos hoje, esse açúcar tinha então a forma de cristais grandes, irregulares, perfumados, com essências de violeta e limão. Para os portugueses, seria “sal índico” – pela semelhan ça de seu s grãos com o sal marinh o e pela origem d o lugar em que p rimeiro foi produ zido o açúcar, a Índia. Também conhecido como “açúcar-cande” (ou “Cândi”) – o nome vemo do sânscrito “khanda”, que os árabes converteram em “qándi”. Naqueles boticários passaram a ser ven didos aind a o “shu rba”, um xarope escuro d e aparência viscosa; e um açúcar em ponto de bala, aromatizado com ervas, conhecido como “bolas de sal doce”. Aos pou cos, passou o açúcar a ser usad o também p ara conservar frutas por mais tempo. E acabou tomando o lugar do mel, na elaboração das receitas dos conventos – jun to com a gema d e ovo que ali era entregue pelas vinícolas. Que do ovo, à época, se usava apenas as claras – para purificar vinhos e engomar roupas. Açúcar e gema passaram a ser base de todas as sobremesas. Sendo usad o, aind a, na fabricação de vinhos de m issa e de licores. Com esse açúcar, chegou à Península Ibérica, também trazidos pelos árabes, outros ingred ientes qu e começaram a fazer parte d as receitas de bo -
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los e doces – amêndoas e cardamomo (Java), canela e anis (Ceilão), cravo e gen gibre (Moluas), figos (Turqu ia), noz-moscada (Ban da), passas (de Málaga), tâmaras (Síria), damasco, nozes, avelãs, pistache (Índia). Mas o açúcar, naquele temp o, continu ava send o privilégio d e bem pou cos. Nele “estava um a fonte d e riqueza qu ase igual ao ouro”, escreveu Gilberto Freyre ( Açúcar , 1939). Em 1440, uma arroba (15 quilos) de açúcar valia 18,3 gramas desse metal. Produzir açúcar passou a ser sonho de reis. Uma tarefa difícil, na Europa, por exigir solo rico, úmido e, o que quase não havia por lá, especialmente quente. Com o domínio das técnicas de produzir, cumpria buscar terras mais amplas. Navegar era preciso. O Brasil estava pronto para ser descoberto. Duran te m uito temp o, acreditou-se que a cana-de-açúcar teria chegado nesta terra, a que primeiro chamaram Vera Cruz, em 1532. Com Martim Afonso de Souza, na capitania de São Vicente. Só mais recentemente vindo a p úblico registro d a alfând ega d e Lisboa, ind icand o p agamen to d e d ireitos sobre o açúcar já produzido em Pernambuco desde 1526. Mas o primeiro engenho oficialmente reconhecido em Pernambuco foi o de Jerônimo de Albuquerque, instalado no mesmo ano que aqui chegou (1535) – acompanh and o seu cun had o, o donatário da capitania Duarte Coelho Pereira. Era o “São Salvador”, depois conhecido como “Engenho Velho de Beberibe”. Ficava bem p erto da cidad e de Olind a, em lugar h oje conh ecido como “Forn o da Cal”. Por ser generosa essa terra, e como em se plantan do tud o nela d ava mesm o, engen hos foram toman do o lugar d a Mata Atlântica nas várzeas dos rios – Beberibe, Capibaribe, Jaboatão, Una. Dado se prestarem esses rios, magnificamente, “a moer canas, a alagar as várzeas, a enverd ecer os canaviais, a transportar o açúcar”, descreveu Gilberto Freyre ( Casa-grande & senzala, 1933). Depois se espalhou por todo o Nordeste. E assim, como nas palavras de João Cabral de Melo Neto, tud o foi se transform and o “nu m mar sem navios” formado “pelo anônimo canavial” ( O vento no canavial). Com os engen hos vieram casas-grand es que na arquitetura, por conta do nosso clima quen te, não foram cópias perfeitas das casas portu guesas do além-mar. Para diminuir o calor, faziam cozinhas afastadas das salas e dos quartos – fora d e casa, debaixo d e u m pu xado. Em seu interior havia uten sílios das três culturas que nos formaram. Dos portugueses herdamos alguidares, almofariz, caldeirões, chaminés “francesas”, fogões, fumeiros, potes, tachos de cobre; além de objetos de cozinha como formas de bolo em formatos diversos – coração, estrela, meia-lua, pássaro; mais enfeites e recortes de p apel para adorn ar band ejas (de estanho e p rata). Dos índ ios “jirau” (mesa feita com varas de madeira usada para preparação e armazenamento de alimentos), panelas de barro, pilão, “trempe” (tripé de pedra onde se apoiavam, no fogo, as panelas), urupema; mais cabaça e cuia, por Gabriel
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Soares de Souza ( Tratado descritivo do Brasil, 1587) cham adas “porcelana d os índ ios”. Dos africanos colher de pau , gamelas de m adeira (para preparação dos alimentos), quengo (metade d a casca d ura do coco, com cabo de mad eira, usado como concha), ralador de coco, tanque, tigelas e um pilão mais sofisticado que o dos índios. Mas não apenas utensílios se misturavam naquele ambiente. H avia lá sobretu do ingred ientes, hábitos, receitas e técnicas dessas três culturas. Devemos isso ao colonizador português, aberto a novas experiências, a novos sabores; e pron tos semp re a substituir, sem preconceito, produtos de suas receitas originais pelos do Novo Mundo. Também foi assim por razões utilitárias, que as senhoras de engenho não participavam diretamen te d o trabalho dom éstico. Limitavam-se a d eterminar o que queriam comer. Ficand o o preparo d os pratos por conta das escravas. Pernambuco chegou a ser, nos séculos XVI e XVII, o maior produtor mundial de açúcar. Por conta d e tanta riqueza, foi se forman do aqui um a aristocracia qu e Tobias Barreto (1839–1889) chamava de “açucarocracia”. Padre Fernão Cardim ( Tratado da terra e da gente do Brasil , 1625) descreveu o fausto desses engen hos d ecorados com “móveis de jacarand á ou vinh ático, louça da Índia, baixelas e talheres de prata, lençóis de linho franceses com monograma, brasões em cima de portais ... a casa cheia”. Dos seus donos, disse apenas que “parecem uns condes e gastam muito”. Por conta dessa opulência, foi surgindo, no Nordeste, uma das mais importantes doçarias do mundo. Com receitas passadas oralmente de mãe para filha – por não saberem escrever as mu lheres d a época ou p ara escond er seus segredos culinários. Açúcar branco era privilégio das casas-grandes. Com ele se faziam bolos e sobretu do comp otas, geléias, doces secos e cristalizados – conservados, por m eses, em p otes de barro verm elho ou em caixas rústicas de mad eira. Raramen te frutas frescas eram servidas ao natu ral – por temor dos seus efeitos, na saúde. Às senzalas eram destinadas essas frutas e também caldo, melaço e açúcar mascavo – de cor escura e cheio de p edras. Esses ingred ientes eram pelos escravos misturados à farinha, de mandioca ou de milho, formand o um a pasta mu ito apreciada – por seu gosto primitivo e pelo forte cheiro de álcool. Acrescentando águ a fria a essa pasta, faziam “jacuba” – por gerações, base d a prim eira refeição do dia. Essa p asta acrescid aca escravosmais finos.. Também rapadura – “tijolos que podem ser de 5 a 6 polegadas, bastante grossos, com cor, gosto e cheiro mais ou menos do açúcar queimado”, descreveu Auguste de Saint-Hilaire ( Viagem às nascentes do rio São Francisco e pela província de Goyaz , 1847). Uma rapadura que, ainda hoje, é feita do mesmo jeito – com caldo da cana bem fervido e bem batido,
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dep ois colocado em moldes d e madeira até qu e esfriem; após o que, tiradas das formas, são embrulhadas em papel simples ou palha de bananeira. Nessas senzalas nasceu também nossa cachaça. A espuma d a p rimeira fervura d o caldo da cana, por n ão ter à ép oca outra serventia, era colocada em cochos, ao relento, para alimentação dos animais. Esse mosto, por conta do clima quente, fermentava com facilidade. E pouco a pouco, meio por acaso, começaram os escravos a apreciar suas qualidades. Converteu-se em bebida, para eles estranha, a qu e chamavam “água ard ente”. O Reino tentou proibir, primeiro, o consumo; depois, sua própria fabricação. Que a concorrência diminuía o uso da “bagaceira” (e o volume dos tributos daí decorrentes). Em vão. Nessa briga ten do os nativistas apoio, inclusive, de comerciantes que usavam cachaça (e também fumo) como moeda na compra e venda de escravos. Acabou elevada à cond ição de símbolo de resistência à d ominação portuguesa. Bebida de patriotas. Na Revolução Pernambucana, como em Can ud os, brind ar com vinh os (especialmente p ortugu eses) ou ou tra bebida importada significava alinhar-se aos colonizadores. Uma parte importan te dessa doçaria está intacta, aind a hoje, fiel a suas raízes portuguesas. Continuamos fazendo o mesmo pão-de-ló à moda do Convento dos Amarantes. Bolo-de-bacia, com receita anotada no mais antigo livro de culinária de Portugal ( A arte de cozinha, 1680), de Domingos Rodrigues – cozinheiro de D. Pedro II (o de Portugal, já vimos). Pena que por aqui não tenham chegado toucinho-do-céu, pastel de Santa Clara, creme-da-abadessa, barriga-de-freira, mimos-de-freira, sonhos-de-freira, nu vens, morcelas de Arou ca e bolinhos de Amor, Ciúm es, Esquecidos, Paciência, Raiva e Tern ura. Bolo-de-noiva é ad aptação do “panis farreu s” rom ano – comp artilhado, pelos casais, como símbolo da vida em comum que se iniciava com a “confarreatio”. No Brasil, esses bolos de casamento têm preparos diferenciados. Os d o Sul usam massa branca e recheios variados. Em nad a lembrando aqueles de Pernambuco, feitos com massa escura à base de ameixas, passas, vinho e frutas cristalizadas – tradição britânica que chegou a bem poucos lugares do Brasil. Tudo coberto com pasta de amêndoa e, depois, também com glacê branco. Sendo, por fim, decorado com flores em relevo, feitas de goma e açúcar – um hábito que n os veio d a Ilha da Madeira. Esse bolo também está presente em outras festas importan tes – aniversário, batizado, primeira comunhão, noivado e Natal. Em nosso ambiente foram tam bém nascendo variações desses doces e bolos a partir de ingredientes novos – amendoim, castanha de caju, coco, frutas trop icais, man dioca, milho –, adicionad os às velhas receitas de Portugal, até então feitas com amêndoas, canela, cravo, gengibre, noz-moscada, pinh ões. Usamos também claras e gem as dos ovos d e galinha. Nossos índ ios não conheciam esse animal, trazido por Cabral quando por aqui passou a
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caminh o d e Calicute. Seus ovos p referidos continu aram send o os d e jacaré e de tartaruga. Algumas receitas sofreram adaptações. Ao manjar branco (criado no Convento de Santa Maria das Celas, em Guimarães), e também ao beijo (originalmente denominado beijo-de-freira, criado no Convento de Vila do Conde), acrescentamos leite de coco. No pastel de nata trocamos a massa folhada por outra um pouco mais simples, preservando quase integralmen te o recheio (aqui usand o leite, em lugar d e n ata). O arroz doce com desenhos de canela, criado no Convento de Guimarães, foi abrasileirado com o acréscimo d o leite d e coco. Aos filhoses jun tamos uma calda – algumas vezes feita com açúcar, outras com mel de engenho. O quindim do reino ganh ou coco, cravo e canela; o n ome se man teve, acrescido de complemento em homenagem às men inas e m oças que os saboreavam – quindim “de Iaiá”. No colchão-de-noiva, substituímos o recheio de amêndoa por creme de goiaba, enrolando a massa em finas camadas, daí surgindo nosso bolo-de-rolo – em Pernambuco, com uma delicadeza no fazer que o distingue do rocambole carioca e de variações dos outros Estados nordestinos. Mas um ped aço importan te dessa doçaria, cum pre registrar, é autenticamente daqui. Veio do desejo de fazer coisas com nossos gostos. Assim nasceram doces e compotas de todas as frutas da terra – abacaxi, araçá, banana, caju, caram bola, coco, goiaba, jaca, laranja-da-terra, m anga, mangaba. Além d a cocada, claro – branca, queimad a, de colher, de cortar, por Gilberto Freyre considerad a “o m ais brasileiro d os d oces”. Para acomp anhar, queijos muitos – coalho, do reino (assim se chamando por vir de Portugal) ou do sertão. Nasceram também biscoitos e bolos variados – de batata-doce, macaxeira, milho, pé-de-moleque. Em alguns casos, concebidos para homenagear m ovimen tos sociais – 13 de Maio, Cabano, Dom Pedro II, Guararap es, Legalista, Republicano, Santos Dumont. Ou pessoas – Dr. Constân cio, Dona Dondon, Dr. Gerôncio, Luiz Felipe, Tia Sinhá. Ou, ainda, famílias que os criaram – Assis Brasil, Cavalcanti. Sem esquecer o Souza Leão, ato exemplar de rebeldia gastronômica – em que ingredientes europeus foram substituídos p or sabores nord estinos: trigo, pela m assa d e m and ioca; man teiga francesa “Le Pelletier ”, por aqu ela feita de leite do p róprio engen ho. É receita d e Dona Rita de Cássia Souza Leão Cavalcanti, casada com o coronel Agostinho Bezerra da Silva Cavalcanti, senhor do engenho São Bartolomeu (em Muribeca). Nasceu também a misteriosa “Cartola”, que tem como ingredientes banan a, queijo d o sertão, açúcar e canela. Sem que se saiba o en genh o onde foi pela primeira vez produzida, nem quem a inventou. O nome se deve
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provavelmente à cor escura dada pela canela, e o formato alto do queijo sobre a banana, que lembra (remotamente) aquele tipo de chapéu que se usava na época. Nasceram também beijus ensinados por índios, feitos com massa de m and ioca esprem ida que d enom inavam “tipioka”. Da massa feita desse jeito, surgiram tapiocas de tod o tipo – en roladas n a m anteiga, recheadas com coco ralado, com queijo d e coalho. E, melhor exemp lo dessa miscigenação, a tapioca de coco – mais conhecida como “ensopada”, que usa mandioca (da culinária indígena), sal e açúcar (da portuguesa) e leite de coco (da africana). Cumprindo lembrar, também, sabores que marcam nossas festas: filhós, no Carnaval; bolos, tortas e ovos de chocolate, na Páscoa; bolo de frutas, pastel doce, passas recheadas, fatia parida (ou “de parida”), no Natal. Além de receitas do São João, sempre com muito milho. Esse milho, no começo da colonização, era alimento apenas de animal e escravo. O próprio Gabriel Soares de Souza ( Tratado Descritivo do Brasil , 1599) confirma que “portugueses plantam o milho para mantença de cavalos, galinha, cabra, ovelha, porco e também dos negros da Guiné”. A partir desse milho farto nas senzalas, juntando leite de coco e açúcar, foram nascendo angu, canjica, mungunzá, pamonha. E, também, um cuscuz muito melhor que aquele conhecido por portugueses e africanos – por lá feito com farinha de sorgo, farinh a d e arroz e até farinh a d e trigo. A doçaria nordestina é resultado dessa mistura. “Com as comidas indígenas e negras iam circuland o as am ostras da d oçaria p ortugu esa”, disse Câmara Cascudo ( A cozinha africana no Brasil, 1964). Inclusive doces de rua, de tabuleiro, bombons e confeitos, decorados com papel recortado – muito mais bonitos que aqueles aprendidos com as senhoras portuguesas. Uma culinária, no fundo, feita a partir de experiên cias de ou tros povos; mas, também, moldando essas experiências a nossos jeitos de ser. Uma culinária que resultou ú nica. Criativa, como n ossa gente. Altiva, como n osso espírito. Forte, como nossa história. Generosa, como nossa alma.
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A MEMÓ RIA JUDAICA NO MUNDO DO AÇÚCAR EM PERNAMBUCO Tânia Kaufman historiadora e ensaísta
Permanências, rupturas ou continuidade? Como fica a memória histórico-cultural judaica em Pernambuco, quando a mais natural das fronteiras do tempo – os séculos – perde seus limites em favor de um retorno à História? Tânia Kaufman
PRIMEIRAS PALAVRAS passado judaico presente em Pernambuco Neste ensaio apresenta-se um panorama da Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernam buco com vistas à elaboração de uma relação de engenhos pertencentes a cristãos-novos e judeus, reunidos por município com seus respectivos históricos. Não é novidade que há uma importante permeabilidade entre a história da Civilização do Açúcar no Nordeste do Brasil e a memória histórico-cultural dos judeus e cristão-novos que ap ortaram com os primeiros colonos portugueses, a partir de 1500. Depois, por volta de 1630, os judeus portugueses de Amsterdã chegaram com a ocupação holand esa. Espalharam-se pelo Nord este brasileiro: dedicavam-se, sobretudo, aos negócios do açúcar, que ainda hoje é umas das principais riquezas daquela parte do Brasil. Com o fim d o domínio holand ês e a retomada de Pernambuco pelos portugueses, em 1654, pelas mesmas razões de intolerância com qu e seus an cestrais haviam sido expulsos da Península Ibérica, uma nova “passagem” conduz um dos grupos de refugiados para Nova Amsterdam , mais tarde, Nova Iorque. Desta vez, na bagagem eles levaram, além d as singularidades do judaísmo, também o conceito de “cidadania”, apreendido e aprendido no curto espaço do tempo de Maurício de Nassau no período d o Brasil Holand ês. Trezentos e cinqüenta anos depois, tenta-se compreender como se deu a relação da cultura judaica com a estrutura da economia açucareira, básica na formação do Brasil. Sabe-se que foi significativo o nú mero de engenh os que tiveram o controle de cristãos-novos e judeus. E que também, as sinagogas, enqu anto fun cionavam cland estinam ente, estavam espalhadas pelas ruas da vila do Recife e seus arredores, mas de preferência eram erguidas nos engenhos. Embora os vínculos religiosos e sociocomunitários daquela população estivessem desfeitos, a teia cultural mostra-se, até hoje, resistente e un ifica os sobreviventes através de novos personagens que emergem da clandestinidade, autoidentificando-se como descend entes dos antigos cristãos-novos. É possível haver uma relação com costumes e tradições de uma cultura e de um a língu a herd ada d os jud eus espanhóis. No Nordeste do Brasil,
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não é difícil perceber que foram gradativamente se incorporando como parte do patrimônio material e imaterial brasileiro. O conceito de nossa pesquisa foi “olhar” a cultura judaica como uma teia de múltiplos fios; nenhum, tecido sozinho, nem qualquer deles, cortado definitivamente, porque são ligados por elementos herdados de uma ancestralidade nacional, religiosa e cultural. Também porque, ethos e costumes judaicos são antigos e esclarecedores para os cotidianos contemporâneos. Para este ensaio, tomamos como referência o caminho trilhado por José Alexandre Ribemboim – Senhores de engenho judeus – e Fábio Arruda, autor da Relação dos engenhos coloniais da capitania de Pernambuco. Estamos investindo nu m inven tário, por mu nicípio e época, dos engenhos que pertenceram a cristãos-novos e judeus sefardim, assim como, as d iferentes categorias ocup acionais em que também atuaram na dinâmica da produção do açúcar. São importantes sobretudo os suportes dos estudos de Gilberto Freyre, Anita Novinsky, Elias Lipiner, Oliveira Lima e José Antônio Gonsalves de Mello, pois revelam os passos de uma inten sa vida jud aica nos subterrâneos da sociedade colonial. Os estudos genealógicos de Fábio Arruda permitem refazer os laços familiares que uniam as propriedades açucareiras. Foi no comércio do açúcar que se d estacaram, através de red es comerciais constituídas muitas vezes por laços familiares, partindo de carregadores de açúcar na colônia, consignatários em Portugal e agentes comerciais no norte da Europa. Existe também uma bibliografia à margem do mercado editor, constituído por escritos particulares, como forma de registrar as histórias antigas de cada família. Se por um lado foi imp ortante o p apel do jud eu n a economia canavieira; por outro, a economia canavieira foi importante para a fixação do cristão-novo e como esse sucesso foi determinante para que aqueles personagens fizessem destas terras tropicais seu novo lar. Hoje, na visita a alguns engenhos, fica o sentimento de “ouvir” os ecos dos passos das pessoas que ali viveram seu s cotidianos e suas práticas religiosas, na inquietação de um suceder de dias que oscilava entre a hostilidade ou o afrouxamento da vigilância. Por isso, valorizamos as denunciações registradas na obra Primeira visitação às partes do Brasil. Denunciações e confissões de Pernambuco. 1593-1595, cujo conteúdo representa historicamente os fatos político-religiosos que regulavam a vida da América Portuguesa. As práticas judaizantes denunciadas eram realizadas no espaço privado do lar, dos engenh os e da vila, ond e viviam os denun ciados. Contudo, é preciso avançar com as pesquisas que podem consolidar e expandir, quantitativa e qu alitativamen te, as informações sobre a distribuição de um a popu lação jud aica na estrutu ra econôm ica e social do mun do do açúcar. Estão previstas algumas limitações relativas à historicidade desse fenômeno. Observa-se que, na m aioria dos autores citados, o tema das relações entre os
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judeus e a economia agroexportadora da colônia revela contradições, que podem ser atribuídas à escassez de documentação já estudada. Há também os casos em qu e apenas um dos cônjuges era jud aizante e, nem sempre, o cônjuge cristão-velho sabia da origem judaica do outro. Por outro lado, nos casos de casamentos entre cônjuges cristãos-novos, era freqüente a troca de nomes em cada lugar para ond e se deslocavam por conta dos interesses dos n egócios. Outro fator de limitação para estudos dessa natureza aponta para a extensividade e diversidade de funções também exercidas por judeus, ligadas à produção do açúcar. Eles atuaram como técnicos, mercadores, carregadores de açúcar, feitores, lavradores, implicando freqüentemente numa mobilidade espacial. Diante do exposto e por ser consistente uma memória cultural judaica, atávica ou silenciada, visível nos modos de viver de parcelas da população do Nordeste do Brasil, é que ao reunirmos as informações sobre o lastro de vida desse contexto, levamos em consideração a necessidade de dividir em etapas as pesquisas sobre o assunto. Como lembra o genealogista Fábio Arruda, é preciso analisar as famílias colaterais e seus casamentos; delimitar os acontecimentos correspondentes a cada homônimo tais como: cargo/atividade que ocupou, lugarejo onde viveu, quem são os filhos, esposa, etc.; considerar a temporalidade dos dados pessoais dos principais personagens enfocados; aliar os estudos de Genealogia e Demografia Histórica para cotejo das informações levantadas. Também é requerida uma revisão na bibliografia para contextualização na historiografia brasileira e judaica. Com a identificação dos personagens de origem judaica na história da Civilização do Açúcar, parte-se p ara a construção do Roteiro Judaico d os Engenhos em Pernambuco consolidando o projeto Novos Produtos, Novas Trilhas: Os Judeus no Mundo do Açúcar em Pernambuco.
A MEMÓRIA JUDAICA NO MUNDO DO AÇÚCAR Da “Espanha das três culturas”, onde conviviam muçulmanos, cristãos e jud eu s d esd e o século XIII, alternando épocas de maior ou men or intran sigência político-religiosa, os judeus sefardim foram alvo de uma nova ordem social, política, econômica, cultural e geográfica. Deixaram Portugal, desde o final do século XV, à procura de outro d estino para d riblar a rede inqu isitorial, já mais regulamentada e enraizada em toda a Península Ibérica no final do século XV. Entre outros rumos, dirigiram-se ao Brasil, primeiro como conversos ou cripto-judeus e depois, com os holandeses, vieram os “judeus portugueses de Amsterdam” ou judeus sefardim . Os primeiros incorporaram-se aos planos de Portugal para povoamento e expansão geográfica do Reino, inclusive na form ação dos primeiros núcleos de engenhos, e os últimos vieram atraídos pelos negócios do açúcar. 149
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Partimos do pressuposto de que a integração dos judeus no Nordeste do Brasil, predominantemente nas diferentes funções da economia açucareira, foi suficientemente forte para produzir um processo de interculturalidade com base na polissemia das manifestações culturais e religiosas da população. Um dos vértices dessa polissemia expõe as práticas judaicas clandestinas e a reserva mental do judaísmo, profundamente enraizado nos cotidianos dos engenhos. Aos olhos de quem percorre as trilhas de velhos engenhos localizados nas antigas freguesias e atuais municípios da Mata Norte, Mata Sul, Grande Recife, Olinda, Camaragibe, São Lourenço da Mata e também no sertão de Pern ambuco, Paraíba e Alagoas, abre-se um passado conqu istado ao tempo e preservado na memória coletiva da população, silenciada atavicamente em nom e de deu ses estranhos.
PASSAGEM Novo destino Para contar esta história, é preciso iniciar p or u m breve olhar sobre a m atriz dos acontecimentos que traçaram o perfil dos primeiros atos para efetivar a ocup ação das terras recém descobertas. Só então p oderem os entend er a h erança judaica subjacente ao patrimônio histórico e cultural brasileiro com sua base na econom ia açucareira. Houve u m elo de continu idad e no p ropósito de engajamento dos judeus em todos os ciclos econômicos colonizadores. Todos tiveram os mesmos fatores atrativos: as “passagens”, as diásporas, as migrações compulsórias. Os p lanos d e Portugal para o p ovoamento e a expansão geográfica no Novo Mundo, em muito favoreceram a participação judaica nos deslocamentos para o Brasil. Primeiro, foi o arrendamento das novas terras a um consórcio de mercad ores cristãos-novos já em 1502. Afirm a-se que mu itos desses mercadores, por serem de origem judaica, viam os projetos colonizadores de Portugal como possibilidades de negócios e como lugar de refúgio para a população ameaçada diante das pressões inquisitoriais. Depois, em 1504, a política de doação de terras, costeiras e insulares, atraiu Fernão de Noronha, rico cristão-novo, radicado em Portugal. Datam dessa época os primeiros nú cleos populacionais de europeus, para não dizer, de cristãos-novos, estabelecidos na colônia como resultado dos acordos dos consórcios. Segundo Wiznitzer 24 existem documentos que confirm am ter sido WIZNITZER, Arn old. Os judeus no Brasil colonial. Trad ução d e O lívia Krähenbüh l. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, Editora da Universidade de São Paulo, 1966. 24
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esse o início do vínculo histórico dos judeus com os projetos colonizadores que evoluíram para a implantação da estrutura agrária na produção do açúcar. Diante d a d ificuldad e de recrutamen to e d o desinteresse pela oferta d e terras de p essoas do Reino portu guês n ão é d e estranhar as facilidades concedidas por Portugal para estabelecer as relações comerciais e arrendamento da colônia a mercadores e consórcio de cristãos-novos. Celso Furtado 25, analisand o os fund amentos sociais da expansão lusitana, lembra qu e, entre os cand idatos às capitanias brasileiras no início do pro jeto, não se contou com as classesricas do Reino.
PRIMEIROS MORADORES E COLONOS CRISTÃOS-NOVOS NO BRASIL Fran cisco Antônio Dória 26, analisand o a estrutura social da oligarquia agrária no Brasil, lembra que, em 1530, a população portuguesa era estimada em 1.200.000 indivíduos, período em que se inicia a exploração e colonização sistemática do Brasil. Destes, 20% eram judeus ou cristãos-novos, alguns proceden tes de Castela e da Andaluzia, expu lsos em 1492 pelos reis católicos, mas os dem ais eram n ascidos ou residentes na região lusitana da Península Ibérica. Considerando esse percentual, é possível afirmar que foi bastante significativo o contingente que se deslocou para o Brasil em busca de “passaporte” para a vida. O principal fator de atração e integração na vida colonial do Brasil português e do Brasil holandês foram, sem dúvida, as atividades ligadas à cultura açucareira, pred ominante na época como principal demand a de n egócios do mercado europeu. Como se sabe, entre os cinco primeiros engenhos d a Capitania erguidos com a chegada de Duarte Coelho, o primeiro donatário de Pernambuco em 1535, um deles teve como sócios importantes figuras do cripto-judaísmo do Brasil quinhentista: Diogo Fernandes e sua esposa Branca Dias, além de Pedro Álvares Madeira, o provável técnico de produção de especulada procedência da Ilha de Madeira, então o maior centro produtor de açúcar no Atlântico. Estas figuras se encaixariam na discussão apresentada por Arnold Wiznitzer ao citar O liveira Lima n o comen tário sobre os feitores treinados e os trabalhad ores qualificados trazidos por Duarte Coelho, d a Mad eira e de S. Tomé para o Brasil – eram “pela maior parte judeus, que constituíam o FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII . São Paulo: Ed. Hucitec e Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica. 26 DÓRIA, Francisco Antônio. Os herdeiros do poder . 2. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Editora Revan Ltda., 1994. 25
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melhor elemento econômico do tempo, e lucravam com fugir à fúria religiosa que grassava na Península”. O sociólogo brasileiro Gilberto Freyre também afirma que “a mecânica judaica da indústria do açúcar teve de ser importada pelo Brasil”. Entretanto, ele deixa de mencionar o fato histórico de que eram muitos em todo o Brasil os jud eus senh ores de en genh o. Desde o século XVI, instalaram-se principalmente em Pernambuco, na Paraíba e nas Alagoas, e daqui se espalhando para outras regiões do país. São muitos os dad os materiais e muitas são as histórias que alimentam o imaginário nordestino imp regnado d a cultura sefardi na região. Segundo Wiznitzer, no ano de 1639 havia 166 engenhos no Brasil holandês, dos quais 120 estavam funcionando. Dos 166 engenhos, 60% pertenciam a luso-brasileiros, 32% aos holandeses e 6% a judeus. Sem dúvida, alguns dos lusobrasileiros seriam d e origem judaica, que viviam clandestinamente o jud aísmo. Muitos mercadores judeus atuavam simultaneamente como senhores de engenho, e também possuíam criação de gado no sertão. Estavam sempre em mobilidade entre as diferentes propriedades e também por conta das ligações com os negócios do açúcar na Europa. Aparen temen te não se enraizavam nas suas terras conforme comenta José Antônio Gonsalves de Mello citando relações de 1609 e 1623 que revelam a descontinuidade na posse dos engenhos na mesma pessoa, em parentes ou em descendentes seus. Tanto essa mobilidade como a questão das várias identidades assumidas pu blicamen te pelos jud eus p ode ser explicada pelas circunstâncias que envolviam os familiares que per maneceram em Portugal. Muitas vezes, na metrópole, eles estavam respon dend o a processos de denú ncias e era preciso mu dar no Brasil. Desse modo, a sistematização de uma relação de propriedades merece uma busca acurada.
PARTICIPAÇÃO NA PRODUÇÃO AÇUCAREIRA O manuscrito intitulado “Os livros das saídas das urcas do Porto do Recife, 1595–1605”27 relativo aos an os de 1596 a 1605 confirm a a importância d a participação dos h omens de negócio cristãos-novos nas exportações do açúcar. Pelos totais recolhidos desse manuscrito, o exportador de maior volume do açúcar naquele período foi o cristão-novo Du arte Ximenes: 5.375 arrobas ou 80.625 quilos. Manuel Nunes de Matos, também cristão-novo, foi o segundo maior exportador segundo a mesma fonte, que indica: 4.662 arrobas ou 69.930 quilos. Filho de Gonçalo Nunes do Porto, era casado no Reino com Ana de Milão, filha de MELLO, J. A. Gonsalves de. In: Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Vol. LVIII, Recife, 1993. 27
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Henrique Dias Milão e Guiomar Gomes, cunhado de Manuel Cardoso Milão, Gomes Rodrigues Milão Paulo de Milão e Antônio Dias d e Milão. Todos fizeram sua aprendizagem comercial em Olinda – e todos eles eram cristãos-novos. Irmão de Manuel era João Nunes de Matos, que de Olind a tam bém exportava açúcar para os mesmos consignatários do irmão. Das filhas de Branca Dias e Diogo Fern andes, casadas com senh ores de engen hos cristãos-velhos – Holand a, Leitão, Barbalho, Alpoim, Costa Favella (Arruda), etc., dos filhos de Diogo Soares da Cunha e Catarina de Albuquerque e Manoel Leitão... casados com Leitão Arnoso/Vieira de Mello; dos filhos de Miguel Álvares de Paiva e Beatris Mendes (de Leão); dos filhos da Família Soeiro, entre outros, saem grande parte dos Senhores de Engenho de Pernambuco.
MEMÓRIAS E LEMBRANÇAS Devemos atentar que a história de uma nação, de uma cidade, de uma região não é registrada apenas pelo patrimônio material. Ela está também no acervo imaterial, que expressa as relações entre o espaço concreto e os acontecimentos do passado. Encontram os a história viva dos vestígios daqueles tempos nos relatos de muitas famílias espalhadas em toda a região. Eles evocam o uso de objetos e de artefatos de culto ou de uso doméstico, de costumes e de ritos, desvendando a formação do sincretismo a que foram induzidos os judeus, por séculos de censura e de perseguição. Confrontadas com as denúncias registradas, é possível perceber como se desenrolaram os seus cotidianos: ...esteve em casa do ditto Balthesar Leitão hum delles foi sabbado dia de trabalho no qual sabbado sendo dia de trabalho vio que Ines Fernandes cristaã nova molher do ditto Baltnesar Leitão se vestio de festa com huã saya de tafeta azul e jubão de olanda lavado e toucado na cabeça lavado e em todo o ditto dia de sabbado sendo de trabalho guardou e não trabalho, por que nos mais dias da semana a vio estar com huã saia de pano fiando e no ditto sabbado não tomou roqa nem fez outro serviço algum... ( Denunciações: 106)
Foi feito um levantamento no Livro das Denunciações28 sobre as principais práticas denunciadas. É interessante observar que a “celebração do shabat” teve a maior incidência (25%), seguindo-se “descrença em santos e imagens católicas” (16,7%); “blasfêmia da fé e ritos católicos” (10,7%), “negação de Jesus como Deus” (10,7%); “fazer esnoga e festas judaicas” (9,5%); “cerimônias judaicas de morte e sepultamento” (9,5%); “descrédito na autoridade católica” (4,8%); “as28
SERBIM, Aleksandra. Dissertação de mestrado em Antropologia, 2003.
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sumir ou ter fama de judeus” (4,8%); “costumes alimentares judaicos” (4,8%); “possuir a torah em casa” (3,6%); “possuir literatura hebraica” (2,4%). É comum descobrir gestos que são repetidos mecanicamente dentro dos cotidianos de algumas famílias espalhadas, tanto na área rural como na área urbana, até que um fato desperta para uma possível ascendência judaica. São pessoas que descobrem que mesmo pertencendo a outras denominações religiosas, surpreendem-se “enterrando” seus mortos de forma diferente, seguindo algumas restrições em hábitos alimentares, invocando sempre o Deus de Israel e outras manifestações. ...a minha família, lá em V., não trabalhava no sábado. Tinha gente que ainda dizia que éramos comunistas. Tinha um costume na minha família de reunir, várias vezes por ano os familiares que viviam nos arredores de V. Havia uma valorização muito grande da família. Minha mãe até contava, que antes, as reuniões eram na mata, escondidos. Ela também contava que as orações e as músicas tinham um sotaque diferente. Contavam-se muitas parábolas de Israel. (I.S.F. mais ou menos 40 anos na data da entrevista).
Muitos lembram as histórias contadas nas reuniões íntimas sobre um costume de reunir periodicamente os familiares para um jantar. O chefe da família ficava do lado de fora da casa, esperando o surgimento da primeira estrela no céu. Só então, tinha início a refeição. Como se sabe, o dia no calendário judaico começa com o surgimento da primeira estrela e termina n o dia seguinte à m esma hora. As celebrações judaicas começam semp re n o entardecer. Essa mem ória está relacionada à “reserva m ental” utilizada p elos cristãos-novos como forma de driblar a vigilância inquisitorial e a dos vizinhos, para manter ativa, pelo menos, o que era tradição no judaísmo. Esse padrão de resistência incluía artifícios de substituição mental de figuras cristãs por outra judaica. Assim relata Lipiner (1999, p. 214): ...os cristãos-novos assistiam o novo culto nas igrejas, murmurando para si frases e expressões restritivas. Deveriam pronunciar mentalmente tais fórmulas, sem que se proferissem palavras com os lábios... No Brasil, durante a Visitação do Santo Ofício em Pernambuco, o Visitador, no dia 15 de Dezembro de 1594, registrou uma denúncia contra o cirurgião cristão-novo Fernão Soeiro que “à missa, quando o sacerdote alçava a Deus, alçando a hóstia sagrada” foi visto estar de joelhos e batendo nos peitos para dissimular, mas pronunciando “eu creio no que creio”...
Daniel Breda 29, analisado quantitativamente a presença judaica no mundo do açúcar em Pernambuco, lembra: na ép oca, nem todos estariam registrados 29 30
Daniel Breda é mestrando na UFRN e pesquisador do AHJPE. MELLO, José Antôn io Gonsalves d e. Gente da Nação: cristãos-novos e judeu s em Pern ambu co
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seja como declarantes ou como denun ciados. José Antônio Gonsalves de Melo 30, a partir de diversas fontes, estima uma população de 7.000 moradores brancos em 1584. Consideran do o mesmo total para 1593, quando se iniciou a Visitação do Santo O fício em Pern ambuco, dos 7.000 morad ores brancos 14% seriam cristãos-novos, isto é, 910 pessoas. Breda entende a cautela de José Antônio, primeiro porque considera os cristãos-novos 14% da população porque esta é a percentagem de cristãos-novos declarantes, isto é, que compareceram à presença do Inquisidor para confessar-se ou fazer denúncia. Em Pernambuco foram 38 cristãos-novos declarantes. O fato é que somente o número d e den un ciados cristãos-novos supera em m uito esta marca e portanto o número total de nomes cristãos-novos registrados no livro é superior ao de cristãos-velhos, o que acabaria nos dando uma estatística de que a maior parte da população branca de Pernambuco em 1593 seria de cristãos-novos. Outro problema citado pelo pesquisador é a imprecisão na quan tidade d e engenhos existentes na segun da metade d o século XVI em d iante. Buscando em Gente da nação (Mello Recife, 1990, p. 8), a respeito de cristãos-novos senhores d e engenho e a respeito do total de engenhos, ele encontra qu e no início do século seguinte esse número aumentou, como se pode comprovar pelas relações dos engenhos existentes em Pernambuco e Itamaracá em 1609 e 1623. Dessas relações recolhemos (por ordem alfabética):
Em Pernambuco o número de engenhos passou de 23 em 1570 (Gând avo) para 66 em 1583 ([Padre Fernão] Card im) e para 77 em 1608 (Campos Moreno): em trinta e oito anos o número mais que triplicou. Assim, José Antôn io indica, da segunda m etad e do século XVI até 1623, 20 senhores de engenho cristãos-novos em Pernambuco. José Alexandre Rimbemboim em Senhores de engenho judeus em Pernambuco colonial 1542-1654 (5. ed. Recife, 2000), acrescenta a esta lista 12 nomes: Abraham Izhack Ferreira, Antônio Barbalho Pinto, Briolanja Fern andes, Carlos Francisco Drago, Cristóvão Paes D’Altero, Diogo Soares, Duarte de
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Sá, Felipe Diniz do Porto, James Lopes da Costa [Jacob Tirado], João Luiz Henriques, Leonardo Ferreira, Simão Soeiro e Simão Vaz. Além d isso, recolhemos das Denunciações... (Recife, 1984) o nome de Nuno Alvares, citado como senhor de engenho, além de André Pinto, Diogo Roiz [Rodrigues], Estevão Cordeiro, Estevão Rodrigues, Francisco Mendes, Francisco Mend es da Costa, Francisco Pardo, Gaspar Rodrigues, Jacome Lopes, João d a Rosa, João Diaz o Felpudo, Jorge Thomaz Pinto, Manoel de Andrade e Simão Fernandes, citados os 13 como lavradores de cana. Extraímos das Denunciações e confissões (Recife, 1984) uma lista de 35 mercadores cristãos-novos:
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PALAVRAS FINAIS Ao final deste ensaio, retornamos à indagação inicial para apresentar os resultados p reliminares de nossa reflexão visando à integração dessas informações ao projeto maior que destaca a Civilização do Açúcar: Permanências, rupturas ou continuidade? Como fica a memória históricocultural judaica em Pernambuco, quando a mais natural das fronteiras do tempo - os séculos – perde seus limites em favor de um retorno à História?
Mais de três séculos se passaram após o “silenciamento” dos judeus em Pernambuco. Todavia, ficaram os fragmentos recolhidos entre historiadores, narradores, escritores e também no imaginário da pop ulação que, agora, permitem devolver à história o papel dos cristãos-novos, dos cripto-judeus, dos jud eus sefardim e ashkenazim na composição do patrimônio histórico e cultural brasileiro. Aliando-se as atividades diretamen te ligadas à prod ução de açúcar nos engenhos, deve-se também considerar que foi no comércio do açúcar que se destacaram os cristãos-novos nos séculos XVI-XVII da História de Pernambuco. Não é de se estranhar que os judeus vindos de Portugal, tão bem adaptados às atividades comerciais na Europa, viessem para o Brasil com o intuito de exercer também atividades urban as. É, de fato, muito sup erior o n úmero d e cristãos-novos cujas atividad es estão ligadas aos ofícios da economia açucareira, rural e urbana, mas principalmente ao comércio quase que exclusivamente d o açúcar. Há aind a m uito para estud ar, ensinar e contar. Na tentativa d e alinh ar a cultura judaica aos estudos sobre a cultura de outras etnias que também “ficaram” em Pernambuco é que se vem investindo em abordagens não dogmáticas sobre o judaísmo no Brasil. A Memória Judaica no Mundo do Açúcar é uma dessas vertentes. O apoio de pesquisadores atraídos pela temática – Fábio Arruda, Leonor Medeiros, Branca Dias, Daniel Breda – garante um a p rogressiva am pliação d esse conhecimen to. Também a p alavra “passagem” foi referida an teriormente. Ela está sen-
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do lembrada como síntese da vida do povo judeu: a vida como passagem, itinerário, sucessão de chegadas e partidas. Passagens que são caminhos, pon tes entre os hom ens e entre m un dos distantes, iden tificados quan do p assamos a visitar os interstícios da cultura n ordestina. Nela, entram os em contato com um imaginário de ou trora sobre tradições, costum es e padrões d e comportamento judaico trazido de longe. Agora, com a história “pedindo passagem” tenta-se confirmar que o papel dos judeus na CIVILIZAÇÃO DO AÇÚCAR foi mais consistente do que ficou registrad o n a h istoriografia clássica brasileira e n os estud os antropológicos que se dedicaram ao fenôm eno d a interculturalidad e n o Nord este do Brasil.
BIBLIOGRAFIA ARRUDA, Fábio. Relação dos engenhos coloniais da capitania de Pernambuco. Levantamento genealógico e histórico. Alagoas, 2005. FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII . São Paulo. Ed. Hucitec e Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica DÓRIA, Francisco Antônio. Os herdeiros do poder . 2. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Editora Revan Ltda., 1994. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Editora Record, 1997. KAUFMAN, Tânia Neumann. Passos perdidos, história recuperada: a presença judaica em Pernambuco. Recife: Editora Bagaço, 2000. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 1997. MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos flamengos. Recife: Editora Massangan a, 1987. ______. Gente da nação. Recife: Editora Massangana, 1989. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Vol. LVIII. Recife. 1993. RIBEMBOIM, José Alexandre. Senhores de engenho judeus em Pernambuco colonial. 1542-1654. 20 Comunicação e Editora, 1998. WIZNITZER, Arnold. Os judeus no Brasil colonial. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1960. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil; Denunciações e Confissões de Pernambuco 15931595. Prefácio de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: Fundarpe. Diretoria de Assuntos Culturais, 1984. (Coleção Pernambucana, 2ª. Fase, 14)
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A MODA COMO REPRESENTAÇÃO SOCIAL Fátima Quintas antropóloga e ensaísta
A moda parece ter uma função antropológica bem definida, que se deve a sua ambigüidade (...) Une fantasticamente o inteligível – sem o qual os homens não poderiam viver – e o imprevisível ligado ao mito do viver. Roland Barthes
SUMÁRIO A força social da mod a | 163 A ind um entária no mun do p atriarcal | 169 Modas de sinhazinh a, sinhá-don a e senh ores portu gueses | 169 Moda de mulher negra | 180 A mod a no Brasil | 187 Bibliografia | 190
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A FORÇA SOCIAL DA MODA Georg Simm el, sociólogo alemão, nascido em Berlim em 1851, é considerad o um dos maiores intérpretes do tema em foco. Segundo a sua visão, a moda constitui um sistema de coesão e coerção social que permite conciliar dialeticamente a postura d o ind ivídu o no grupo e a sua relativa ind epen dên cia, resultante d esse entrosamento estético. Algumas características por ele apontadas se destacam: a da imitação e a da distinção. Imita-se para criar alianças e ao mesmo tempo para distinguir-se nas alianças. O processo de imitação estimula o de superação e o de aspirar ao topo de uma recriação do que antes foi pura cópia-imitação. A moda subseqüentemente detém uma dimensão paradoxal – a de selar pactos coletivos e, a partir da consistência dos pactos, galgar patamares individuais de expressão exterior. Simmel a define como um sistema de contrastes entre a sua ampla difusão e o seu rápido envelhecimento – rito de alta mutação –, o que p ermite ao sujeito social apoderar-se do direito de ser infiel à mod a. A rotatividade sazonal do estilo acata a síndrome da traição. Com isso, o sociólogo alemão reforça o poder coesivo da moda, mesmo em face da célere circularidade estilística: ora de um jeito, ora de outro. Mas semp re colada a um corpo d esejante d e exposições públicas. Trocando em miúdos: a moda age como força coercitiva e coesiva e faculta ao indivíduo a possibilidade de distinguir -se dentro do gru po, mesmo traindo as tendências dos figurinos de épocas anteriores. Georg Simmel vai além: outorga ao vestir-se o fenômeno de tensão cultural, que oscila entre o perten cer a um espaço pú blico e o reveren ciar um conjunto de regras estéticas, inconstantes enquanto moda e enquanto exposição estética. Com vistas a reconhecer-se nesse grupo, cada um traz a lume demarcações pessoais através do narcisismo individual. A estruturação das grandes cidades contemporâneas rende vênias ao narcisismo coletivo, por multiplicar os âmbitos de convergência dos agregados, esses, sensíveis ao culto da “reciclagem do corpo”. Fica claro que a moda consigna uma das expressões mais contundentes do sentimento de pertença, isto é: o trajo carimba níveis de adesão a um determinado grupo ou a vários grup os, um a vez que h á grup os principais e secundários. Pela forma de vestir as pessoas se alojam em núcleos diferenciados. A aparência externa ind ividu al sinaliza o p ertencimen to comun itário: o cabelo, os adereços, o perfume, o porte, a ind um entária dizem d e símbolos de ligação que somente reforçam a noção de pertencimento, noção indispensável à construção de personalidades individuais e coletivas. 163
A Moda como Representação Social
A análise simmeliana exalta o narcisismo como fonte d e vitalidade necessária à existência, cujo clímax é alcançado com a expressividade da moda. O respeito e o embelezamento de si mesmo tornam-se condição sine qua non de ajustamento individual e social. Um corpo vestido é u m corpo social que realiza o que significa, ou seja, a ostentação da performance exterior. E a sociedade reivindica aparências vistosas, a beirar sentimentos de virtuose e perfeição, pessoas bonitas, bem arrumadas, talhadas à semelhança dos “deuses”. Não é à-toa que atores e atrizes são objeto de adm iração, especialmen te no tocante à imagem. Aqui um a pergu nta m erece destaque: até que p onto os grup os sociais perseguem ícones condizentes com os valores em vigor? Quando falo em ícones, remeto à idéia do visual – do que é visível – como figuração de um desejo alimentado e retroalimentado pelo “mercado” das trocas sociológicas. Simmel, autor do século XIX, é absolutamente atual na concepção de narcisismo, entendido como introspecção individual e extroversão coletiva de uma sociedade que celebra a valoração do ego, a um temp o, e a valoração da massa a outro temp o. E não poderia ser de ou tra forma. A anu lação do eu seria a an ulação do nós. Os campos sociais nutrem-se da imperiosa permuta do individuo com o grupo. Um e outro se irmanam na formação do mundo, do micro ao macro. Em 1931, Edward Sapir, lingüista e antropólogo americano de origem lituan a, incursiona no estudo da moda e estabelece concepções de m oda, gosto e costume. O gosto seria uma tendência pautada na sedimentação de valores artísticos, enquanto que a moda veicularia autonomias comprometidas com a economia de mercado. Tento explicar: existe uma au tonomia d e estilos – talvez pela sua própria arbitrariedade –, não existe, entretanto, uma autonomia de decisões sociológicas. O estilo muda a seu bel-prazer, a sociedade segue-o ou dele se afasta, o que pode acarretar em uma marginalização dos grupos divergentes. Na verd ade, a sociedad e é um continuum com evidentes compromissos históricos e antropológicos. Não há como apartar-se dos grilhões que gravitam a sua esfera, até certo ponto fechada nos circuitos coercitivos e coesivos. Quanto ao costume, esse mostra-se relativamente estável, com durabilidade mais extensa e men os precária que a moda. O costume corresponde ao ato de vestir-se; a mod a, ao fluxo desse vestir-se, a depender das estações, da oferta, da d eman da, da instabilidade do desejo. Desejo no sentido de falta, daquilo que não se tem, de um sujeito sempre em busca de alguma coisa: no caso, de uma nova roupa, de um novo adereço, de uma nova aparência. Um sujeito insatisfeito, em permanente falta, buscando, buscando, buscando... A infidelidade às silhuetas serve de calço à frenética permuta e à traição ao mundo das exterioridades. Traição que se materializa na ordem do que é objetivo, não do que é subjetivo. Esclareço: a traição à moda se dá de maneira inconseqüente, sem remorsos e sem culpas, uma traição à margem d o sentimento, de natureza apenas funcional, ao largo de possíveis arrependimentos. A avidez
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mutativa não perm ite o mínimo de reflexão. Ela, a mod a, chega para assenh oriarse dos corpos sociais e raramen te não o consegue. Domina por um período, mas reinventa-se com autoridade inconteste, sem pedir licença a ninguém. A cada reinvenção, insere aportes adicionais aos modelos antigos, em algum momento decantados como beleza padrão. São as variâncias que atualizam os estilos e provocam o d esprezo pelas passarelas ultrapassadas para enaltecer o manequim do presente. A moda, pois, resume-se no agora, não obstante o seu efetivo rodeio. Dela se esperam renovações iminentes que incitem as pessoas a confiar na sua exigüidade. Talvez represente o efêmero desejável. É a nova estação que se aproxima, recriando modelos e estilos; desprezando o que antes parecia aceitável; ditando outras normas estilísticas sem d ó nem piedade. O m un do da mod a glorifica a traição com o enlevo de quem espera a primavera, o verão, o inverno, o outono. Por entre estações, a sociedade capitalista envaidece-se de ter os seus figurinos em dia. Um mecanismo de parciais rupturas claras. O trajo em alta retrata a indumentária sincrônica dominante. Equivale, assim, ao fato social total enunciado pelo sociólogo Marcel Mauss. E o que é um fato social total? Um fenômeno que congrega u m leque de representações capazes de traduzir os elemen tos fun dam entais da sociedad e. Imbuído de seus matizes, o observador estará apto a compreender o intricado da rede sociológica. Nele, fato social total, reside uma convergência de atitudes, hábitos e costumes reveladores da lingu agem sociocultural dom inan te. Quand o falo em lingu agem, faço-o com o intuito de atribuir ao social as estruturas classificatórias – taxionômicas – de uma possível realidade. Possível por d emonstrar fatos regulares, sistemáticos, repetitivos naquele instante em que é alvo de perscrutação. Importa realçar que a sincronia da m oda se associa à sua circularidade, jamais à perspectiva histórica, rica em episódios altercados e em significações sucessivas. O sincrônico equivale ao corte temporal, momentâneo, presentificado; o diacrônico ressalta a retrospecção dos fatos, isto é, a leitura histórica. A aparência do sujeito social reproduz as variações que orbitam o sistema comu nitário. A sociedad e presta mu ita atenção no vestir-se porque dele depen de uma série de tópicos que definem as classes e outras categorias responsáveis pela tessitura social. Vestir-se de acordo com os parâmetros esperados indica, no mínimo, um equilíbrio de exterioridad es. O ind ivídu o que se amolda às conjunturas reais é um ind ivídu o que se integra aos costum es editados pela comu nidade. Sem exageros de adaptação. Igualmente sem exageros de inadaptações. Um ou outro denuncia versões tanto divergentes quanto convergentes e consolida nichos de acomodação ou de contestação; logo, faz parte do xadrez social. A moda possui uma natureza circular e espiralada; prende-se a uma mudança periódica de estilo, como já se falou. Vai e volta; circula, mas no seu giro não retorn a com as mesmas feições. Daí a concepção espiral. Nunca inteiramen te igual, porém com uma topologia em aclive ou em declive. E obedece a regras que
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são veiculadas através de figurinos consoantes à época vivida. A sua volúpia rotativa invoca ajustamentos contínuos: acentua o poder coercitivo, ao confirmar modos e modas que devem balizar a trajetória dos seus seguidores. Nesse sentido, a roupa é temporal e circunstancial; oscila de acordo com as nuances que simbolizam os cosméticos de u ma superficialidad e aceita e deferida pelo sociológico. Estar na moda é estar no top o da h ierarquia da indumentária, é creditar ao coletivo a capacidade de discernir entre o belo e o feio. Entre o uso e o gosto. O gosto de que Sapir menciona. O belo consubstan cia a estética cobiçada, enqu an to qu e o feio, a de spre zível. Mas o que é feio e o q u e é belo em se tratand o d e somas, conjun tos, jogos pessoais? Tanto no homem como na mulher, as vestes gozam de atributos especiais, equivalentes a uma engenharia de privilégios ou de restrições: podem ser sinal de prestígio, como sinal de estigma. Uma roupa desleixada, suja, rasgada constitui um estigma de classe. Um paletó bem talhado em um corpo perfumado assegura dotes de prestígio. Quan do se quer agradar a alguém ou a algum a instituição, recorrese ao velho truque da boa aparência. A sociedade escalona padrões de exterioridades e não há como fugir do cerco da indumentária. Nem no amor, nem nos negócios. Ou se procuram exterioridad es de prestígio ou de estigma. A marca negativa quase sempre é alheia ao desejo de cada um. Resulta de uma estratificação social na qual as camadas se debatem entre si, nem sempre com respostas positivas. Tal dualidade imprime caráter identificatório, como alguns “fetiches” de dominação. A moda é, pois, conotativa e denotativa. Conotativa porque comu nica a imagem imed iata e denotativa porque, dessa comu nicação, deriva uma seqüência de simbolizações e desdobramen tos que se d eslocam do visual para o não-visual, do palpável para o que há de subliminar na forma projetada. A aparên cia tem valor de signo n a med ida em que sedimen ta outros signos e outras simbologias. Não estanca em si; dela desprendem-se ilimitadas ressonâncias. Ao lado de uma rotatividade sazonal, cunha juízos sociológicos. Pela roupa conhece-se sociologicamente o don o da rou pa, razão pela qual o vestuário catalisa legend as valorativas. A sociedade capitalista explora ao m áximo a circularidade d a mod a em pad rões intermitentes – renovados em períodos simétricos, o que evidentemente encarece e onera o trajar. O preço da elegância é alto. Mas vale a pena persegui-lo, uma vez que garante o reconhecimento pelo grupo, outorgando-lhe a fiança social. Uma mulher bem posta declara-se uma mulher respeitada. Um homem bem posto sugere um homem
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prestigiado. A Sociologia da Moda impõe deveres a machos e fêmeas. Que eles sejam cumpridos, visando a aceitação de seus corpos sociais. A moda também acusa escolhas de sedução que vão do homem para a mu lher, da mulher p ara o homem . Há o desejo masculino e o feminino, atração mú tua, tend ências que m aximizam ou minimizam a interação dos sexos. A roupa utilizada tem finalidades p róprias, dad o que ela integra um a circunferência dinâm ica em que os pólos de gênero se aproximam ou se afastam. O imperativo cultural do consenso prevalece, apoiado num sistema normativo tão arbitrário quanto homologado pelo coletivo. Assim, a mulher veste-se para seduzir o homem , para cham ar a atenção da sociedad e e para se distinguir das outras mulheres. Como afirma Simmel, para distinguir-se e liderar o grupo a que p ertence, ao assumir a posição de mais formosa, de mais esbelta, de mais charmosa. E o homem igualmente veste-se para adequar-se ao status que lhe é atribuído. A emulação da beleza faz-se com claras evidências no manejo do trajo. Que a aparência indica um escudo de respeito social, ninguém duvida. Assim, moda , como uso, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo e resultante de determinado gosto, idéia, capricho, ou das influências do meio. Uso passageiro que regula a forma de vestir, calçar, pentear etc. Arte e técnica de vestuário. Fenômeno social ou cultural, mais ou menos coercitivo, que consiste na mudança periódica de estilo, e cuja vitalidade provém da necessidade de conquistar ou manter, por algum tempo, determinada posição social (FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 17).
O nexo coercitivo da moda é polarizador, porque inclui ou exclui indivídu os na aren a social. Por efeito, infun de um du plo sentido – o de exclusão ou o de inclusão. O indivíduo na moda – quer homem ou mulher – insere-se no contexto da atualidade. Fora dela, exclui-se e resvala para hiatos desfocados. A função coercitiva e a fun ção coesiva possuem mão e contram ão no “trânsito” da estética da roupa. O assunto é palpitante: expressão social e estética, complemento de beleza, de elegância, de prazer. De prazer porque garante a posição social e pode ensejar mobilidade vertical positiva, ou seja, ascensão na escala do prestígio. Uma dialética em constante alerta, sem abrir brechas para fortuitos relaxamentos. Por algum tempo a mod a esteve mais ligada ao feminino, talvez pela própria concepção de feminilidade, afeita aos pressupostos da delicadeza e da finura. Mulher frágil. Mulher dócil. Mulher bela. Do homem esperavam-se outros predicados: virilidade, coragem, valentia, insígnias que não condiziam com a “frivolidad e” do vestuário. Contemporaneamente o complexo da indum entária estendeu -se ao homem em um a visível exacerbação do corpo e do trajo. O p aramento sempre se aliou à projeção social, tanto que, o já citado Edward Sapir,
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entendia que as mulheres mais inclinadas à adoção da moda são as menos jovens para as quais novos estilos podem beneficiar o inexorável envelhecimento. Julián Marías, outro grande estud ioso do tem a, afirma que a mod a se alicerça na inovação. Mais ainda: na ruptura. E confirma-se p elo reconh ecimento social, do contrário não seria tran smissível. Só é tran smissível aquilo que tem aprovação do grupo ou de p arte dele. Portanto, a sua viabilidad e dep end eria da aceitação d os que estão submetidos ou não à ad esão das sugestões apon tadas. E interp ela o pensador espanh ol no seu notável trabalho acerca da m ulher no século XX: O qu e verdad eiramen te interessa ao hom em e à m ulher? A reposta aponta na direção da vivência recíproca dos dois sexos, cada um com uma experiência distinta, com uma perspectiva histórica situada em mod os de vida dessemelhan tes. Histórias pau tadas, as de m achos e fêmeas, em culturas milenarmente construídas. Sabe-se que com o processo da globalização, visões simplificadoras vêm ganhando terreno através de elementos uniformizantes ou unissexualizantes. Entretanto, repetindo Julián Marías, a força psicológica de cada sexo tende a firmar-se por meio de diferenciações que balizam a moda, bipolarizando aparências femininas e masculinas. O qu e quero dizer com isso: ainda que o mercado aproxime a maneira de vestir de ambos os sexos, haverá um sentimento de iden tidade sexual e existencial que preponderará sobre a tentativa de p adronização. Modos bissexuais perdurarão com a finalidad e de aumen tar os encantos entre os sexos. Do que se pode inferir que a m oda contrap õe os sexos; acentua as diferenças; feminiliza a mulher e masculiniza o homem. Constrói “esculturas” de referência. É mister que para cada sexo haja atrativos específicos que sirvam de traços distintivos. Em suma, uma das funções da moda é embelezar para conquistar não somente degraus sociais, mas igualmente a ambos os sexos mediante saudáveis descobertas. Cores, tecidos, talhes deságuam em estilos que se ajustam a ap etites diversificados. Homem e mu lher expõem mod elos de roup a que louvam feminilidade e virilidade. De um lado, os caracteres da fêmea; do ou tro, os caracteres do macho. Ambos guarnecidos do invólucro da beleza. O trajo permeia a vida privada e a pública. Veste-se em casa de maneira informal e, na rua, de maneira formal. Porém, o paramentar é uma presença incontestável no ser humano habitante das sociedades ditas civilizadas. Quanto mais se cobre o corpo, maior o prestígio social. O homem nu grava o estigma da barbárie. Os escravos andavam d espidos e sequer tinham o direito de ad ornarse com dignidade. Vivenciavam a humilhação dos desprovidos de vestes. A civilização prescreve o vestuário como manto diferenciador. As monarquias tradicionais, por exemplo, excediam-se em roupas, longas roupas, majestáticas, ostensivas, únicas na sua representação de reis e rainhas, de príncipes e princesas, de cortesãos e áulicos.
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O certo é que a indum entária atravessa as fronteiras do privado e penetra o p úblico, sua desembocadura preferencial, confraternizando os espaços num “espiral cênico”. Se o âmbito privado se acomoda à rotina, a esfera pública reclama dimensões mais eficazes. O status do vestir começa necessariamente na casa e se propala na exibição pública, palco de maiores apreciações. Dessa maneira, granjeia emblemas bipolares que acabam por verter na en cruzilhada d a p osição social. Posição essa que já traz embutida a sexualidade do indivíduo num trajo formalmente reconhecido pelo desenho do tempo e do espaço, seja no privado ou no público. De fato o problema das vestes, como o da vida sexual, participa da área privada e da pública: projeta-se daquela sobre esta e reflui desta para aquela, como em um movimento pendular. A tradição corresponde a uma distinção entre traje de casa e traje de rua, distinção que se acentua nos contextos mais formais, e que o professado “informalismo” de nossos dias ainda não conseguiu extinguir de todo. Um pedaço de pano pode alterar o “efeito” da figura humana, e nas civilizações mais conhecidas a dignidade social sempre corresponde a um tanto mais de tecido ou de adornos sobre o personagem (SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça, 1993, p. 33).
A imagem do que sou socialmen te advém de uma imagem p rodu zida. O cabelo penteado de uma certa forma, a roupa discreta ou extravagante, os tons berrantes ou neutros dos tecidos tipificam modos de inserção na hierarquia comunitária. Do mais romântico ao mais racional; do mais agressivo ao mais tímido; do mais aristocrático ao mais popular. As gradações corresponderão à intenção do postar-se. A rede sociológica é elaborada em razão das relações interpessoais. Portanto, convém privilegiar construções culturais sob a hélice estetizante, de mod o a obter-se o efeito desejado: o de consignar pertencimentos grupais e o de ratificar posições hegemônicas.
A INDUMENTÁRIA NO MUNDO PATRIARCAL MODA DE SINHAZINHA, SINHÁ-DONA E SENHORES PORTUGUESES A preguiça e a letargia dominaram as lentas horas da portuguesa, como já foi analisado; mas faz-se necessário repetir para contextualizar a vestimenta da mu lher branca. Envolta na aura de colonizadora, pouco teve o que fazer, a não ser dar orden s às mucamas e tagarelar conversa mole na cozinh a. A mod orra era tanta que se distend eu por sobre os mais variados filamen tos. O vestuário, por exemplo, respon deu a essa desastrosa indolência. E, diga-se que o ócio, quando
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bem administrado, é um excelente aliciador de criatividade; não o foi, entretan to, no engenho do passado. Talvez pelo exagero da dose. Mulheres ansiosas à espera do casamento ou do filho para nascer. As primeiras, angustiadas diante da incerteza do advir; as outras, exauridas de parir, parir, parir... Ambas, amarfanhadas por um cotidiano abúlico. As sinhás-donas, decepcionadas com um matrimônio sem amor: quase contratos econômicos, com a finalidade de abonar a prosperidade da cana através de enlaces endogâmicos. Tristes. Um filho atrás do outro. O corpo se deformando, os seios em desleixo, a pele ressequida pelo morm aço tropical. Mulheres às avessas, a se entregarem à inércia de condu tas relapsas. Os cronistas da época falam que as sinhás-donas, em casa, vestiam-se de cabeção e chinelo, arrastando os pés, como se arrastassem o peso de uma vida mal vivida. Sem a mínima expressão de zelo ou de cuidado no param entar-se, deixaram vir à tona as p langentes dores p sicológicas. Mulheres aban donadas. Qu ase sujas. Perdidas na gordu ra, na obesidad e, no colesterol alto – proveniente das dosagens desequilibradas dos lipídios, da gula pelo açúcar, enfim, da alimentação mal balanceada. Sem o élan e o frisson da juventude que ainda latejava em suas veias. A mulher européia, diga-se a portuguesa, arruinou-se através de uma nadificação chan celada, e obteve dividen dos desfavoráveis à sua p ersonalidad e. A negação surgiu como um meio contu nd ente d e destruição. Ignoran do a estética do vestir, confinou-se à lassidão de uma malemolência prejudicial ao desen volvimento. Na esfera privada, ond e as frustrações poderiam evolar sem med o de censura, a população feminina branca man ifestou a anulação de si mesma. O desleixo com a vestimenta remetia a atitudes de acídia e, conseqüentemente, a fracassos individuais. Diante da insipidez sexual, e conhecedora das clandestinidades do “companheiro” – a mulata foi sua permanente rival –, aceitou agigantar o cerco da displicência. Cabisbaixa, por entre os corredores frios, longos, nostálgicos, anuiu a um estágio próximo à flagelação. Não se pode incriminála por esta reação de constrangimento. O espaço privado hospedou graves paradoxos e resumiu o refúgio de um viver mal construído. O pior de tudo era que, no palco patriarcal, o doméstico prevaleceu; do que se conclui que prevaleceram as insatisfações femininas. Se em casa, entre as paredes do solar do engenho, o relaxamen to prep onderava, na rua, entretanto, a pompa reinava. E com ares babilônicos. Uma figuração um tanto exótica, no mínimo estranha. Enfeitavam-se, as mulheres, em demasia. Adereços, jóias, braceletes. Uma verd adeira querm esse de variedade e riqueza. Porém, um luxo mal combinado. Sem a lucidez necessária. De tudo faziam para se travestir de d ondocas. Uma coisa é certa: nossas bisavós arrum avam-se exclusivamente para sair, como se tivessem vergonha de sua própria imagem dentro de casa. Ou de sua silenciosa humilhação social.
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Na missa, vestidas de preto, cheias de saias de baixo e com um véu ou mantilha por cima do rosto; só deixando de fora os olhos – os grandes olhos tristonhos. Dentro de casa, na intimidade do marido e das mucamas, mulheres relapsas. Cabeção picado de renda. Chinelo sem meias. Os peitos às vezes de fora. Maria Graham quase não conheceu no teatro as senhoras que vira de manhã dentro de casa – tamanha a disparidade entre o trajo caseiro e o de cerimônia (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 373).
A cor escura predominou entre as silhuetas patriarcais, fiéis adeptas do estilo europeu, sobretudo no século XIX quando se deu a chegada da Corte para o Brasil, em 1808, e a abertura dos portos às Nações européias – particularmente ao comércio britânico. Com o advento do Império, o Brasil perdeu o seu relativo isolamento, acatando quase anestesiadamente a influência da moda parisiense. O relativo isolamento a que me refiro remete a uma Ibéria aind a sem o gosto de Europ a – mais África que Europa –, sem a aceitação, contudo, de tal ambigüidade, abraçand o e repassand o o quan to pod ia os fidalgos preceitos europeizantes. Os anún cios de jornais mostram a chegada de costureiras francesas, estilistas, de tecidos inapropriados, de toda uma sorte de variações em torno dos referenciais de beleza da cidade das luzes, Paris. Em 1857, anúncio no Diario de Pernambuco tornava evidente o que vinha sendo, há anos, a europeização de trajo e de calçado no Brasil, através não só da importação de artigos europeus como de chegadas, ao nosso país de, além de artistas, artesãos. No referido anúncio, informa-se terem acabado de chegar de Paris um Sr. Blanchin, “optimo official de sapateiro, e Madame Blanchin, perita engomadeira de roupa fina...” Ofereciam seus préstimos “por se acharem com todos os aparelhos necessários para as suas artes. Evidente requintes novos para o Brasil, sendo de presumir dos sapatos que já fossem de aparências discretas” (FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 119-120).
A reeuropeização da moda vingou com facilidade. E a vestimenta da portuguesa aprimorou-se em critérios antiecológicos, tanto nas cores quanto nos modelos exageradamente abafados e pesados. D. Pedro II e a Imperatriz mostravam-se fiéis representantes dos trajos escuros. Ele, de sobrecasaca preta e de cartola também preta, ela, de vestidos tristonhamente escuros, a revelar a predominância de “gravidad e” e de “solenidade” que caracterizaram o Brasil patriarcal e escravocrata do longo reinad o do segundo Pedro. Se da Monarqu ia emanavam austeros visuais, segui-los dizia de um bom receituário na etiqueta da elegância. Afinal, as referências aristocráticas ditavam as normas da boa postura. E o Brasil esteve semp re na esteira da aristocracia, mesmo ao imp acto do seu declínio. Por ela lutou até os últimos estertores.
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A moda brasileira de mulher foi, assim, por algum tempo, uma moda vinda da França, sem nenhuma preocupação, da parte dos franceses, de sua adaptação a um Brasil, diferente no clima, da França. Uma moda imposta à mulher brasileira e à qual essa, quando de gentes mais altas, das cidades principais, teve de adaptarse, desabrasileirando-se e, até, torturando-se, sofrendo no corpo, martirizando-se (FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 106).
Importavam -se da Fran ça enxovais inteiros de casamen tos e batizados. O Brasil parecia n ão reagir a esse imp erialismo exógeno. As modas de cores de vestidos, de enfeites de chapéus, de espartilhos, de penteados, foram seguidas passivamente, sem o menor gesto de resistência. Impostas e tiranicamente obedecidas por adultos e crianças. Modas que correspondiam a climas temperados e frios, longe da tropicalidade do nosso país. A ditadura francesa alongava-se dos perfumes às loções, do ruge aos vestidos, de baile ou de dias comuns, dos sapatos às meias de sed a, dos espartilhos às roupas íntimas... E luvas. Imaginem luvas em um ambiente absolutam ente arred io a tais adereços! Na Belle Époque não se permitia que uma brasileira saísse sem as suas respeitosas luvas. Existiam modistas exclusivas de luvas e chapéus. Não chapéus leves e apropriados ao sol, mas modelos tipicamente parisienses. O pince-nez ostentou um dos toques estéticos mais franceses adotados no Brasil. Homens e mu lheres d ele fizeram uso com o propósito d e culminar a esbelteza. Nesse Brasil miloitocentista d e fim d e século, o pince-nez era completado por jóias: trancelim, camafeu, anéis, brincos, broches, pulseiras... E dentes de ouro como insígnia de fartura econômica. Joaquim Nabuco, por exemplo, homem reconhecidamente belo e airoso, foi acusado por seus adversários do uso de pulseira, alfaia pouco apreciada pelos homens machistas da época. Afirme-se que rara era a esposa de brasileiro rico do fim do século XIX e do começo do XX que não andasse sobrecarregada de jóias e perfumada da cabeça aos pés. E quanto às jóias de mulher, a preferência se dava pelos anéis de brilhante, brilhantes grandes chamando a atenção, broches cheios de brilhante, grandes também, cordão de ouro com medalha e crucifixo de brilhantes. Havia uma clara predileção por essas pedras, embora o rubi e a esmeralda ocupassem espaços de distinção. E nessas jóias a cruz referendou o símbolo mais em voga. O catolicismo abençoou a cultura brasileira em seus mais variados aspectos. Gilberto Freyre, na sua argúcia em pesquisar anúncios de jornais, anota mais um relativo às caracterizações de cores para a indumentária feminina, cores no mais alto grito de Paris:
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Para vestidos de passeio, à escolha, cores como “cinzento rato, toupeira, castanho não muito escuro... resedá, musgo, beige carregado, tijolo, violeta”; para “toilettes de visita e cerimônia: campagne heliotrópio, cinzento pérola, beige claro, groselha, azul Sèvres , verde esmeralda, mordoré , rubi escuro, violeta de Parma”; e para “toilettes de baile, soirée e teatro: rosa desde o tom mais suave até ao mais carregado, azul celeste, verde água, branco, amarelo canário, marfim, creme, rubi, gris , verde muito claro, gema de ovo, palha e pêssego” (FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 141).
Os espartilhos e as an quinh as den otavam u m enorm e sacrifício para a mulher. O espartilho acarretou males para a sua saúde, ao prender os pulmões e trazer um imenso desconforto aos apelos da mobilidade. Cinturas finas em sinhazinhas já depau perad as ou em corpos arredond ados das sinh ásdonas, arredias às linhas perfeitas da anatomia desejada. Mulheres que se lambuzavam de açúcar em caldeirões apetitosos e que se levavam pela gula diante d e um bolo irresistível ou de um doce, a d ar água na boca. O m artírio desses corpos em espartilhos desumanos açulava a veia da competição entre os prod utores. Como, por exemp lo: na tentativa de substituir o colete docloresse surgiu o colete devant droit com uma excelente propaganda – garantia uma “comodidade inexcedível”, recomen dado, inclusive, por higienistas brasileiros. O devant droit, asseguravam os vendedores, era rigorosamente científico. Quem poderia comprovar semelhante afirmação? Aliás, o mito do espartilho recebeu a condenação explícita d os cientistas mais esclarecidos. As anquinhas eram incômodas, porém não chegavam a acarretar danos à saúde. A morte no Brasil patriarcal cercou-se de rituais solenes e necessários ao mu nd o sociológico. Morria-se a toda hora, de parto, de d oenças banais, de prosaicas infecções. Crianças recém-nascidas subiam ao céu como an jinhos inocentes. Mães desesperadas, sem ao menos abraçar os filhos no colo, beijá-los, amamentá-los, amá-los vivos. E a morte ceifava o primeiro, o segun do, o terceiro... A medicina não alcançara ainda meios para curar doenças rotineiras, quase familiares e inexpressivas. Diante de tantas perdas, não bastavam as exéquias para demonstrar o sofrimento, mas a elas se juntava o ritual do luto, que incluía estilos de trajo. Luto fechado, tratando-se de pai ou mãe, avó ou avô, esposa ou esposo, filho ou filha. Luto fechad o por um ano, sem tran sgressões porventu ra dissociadas da dor do adeus: vestido preto, chapéu preto, sapatos pretos... O luto aliviado se traduzia em vestidos pretos salpicados de branco ou vestidos roxos; daí nun ca faltar vestidos roxos no guard a-roup a feminino dos engenh os de outrora. O luto fechado incluía, ortodoxamente, a moda do chamado chorão para as viúvas, que consistia num véu escuro que escond ia o rosto durante o período do luto. A roupa preta se impunha também em casa. Até as crianças submete173
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ram-se a essa rigidez. Os homens também, esses com maiores liberdades porque, em se tratando da perda da esposa, casavam-se com uma certa rapidez. Guardavam, assim, um luto ameno. As viúvas, ah, as viúvas!, isolavam-se do mundo real, a entristecer-se e a lamentar o malfadado destino do cônjuge. Às vezes o uso do preto estendia-se aos escravos domésticos, considerados membros sociológicos de uma família brasileiramente patriarcal. As modistas em voga esmeravam-se em confeccionar vestidos elegantes de luto. A homenagem do trajo fúnebre patenteou uma aguda demonstração nos temp os dos nossos antepassados por motivos sociológicos de coesão familiar e de tributo a entes queridos que partiam tão cedo. Para tanto, uma moda especialíssima: a dos vestidos requintadamente de luto. E depois, requintadamente de lutos aliviados, com relevos brancos ou p almas “bordadas a prata”. Um luxo que se incorporou à morte. Aliás, sobretudo na morte, porque o adeus era eterno. Não só: cumpre salientar que a sociedade patriarcal fez de seus mortos ícones inabaláveis, a adentrarem a vida cotidiana com mais vigor que os próprios vivos. Os mortos comandaram a cena de outrora porque o prestígio de muitos ultrapassava o “crédito social” dos que ficavam. Renderlhes láureas era uma forma de conservar um status em perigo. E nada melhor para manter h ierarquias que veemen tes saud ações ao mund o celestial. De lá, da esfera inabitada por matéria corpórea, manavam as ordens do cotidiano e, conseqüentemente, as ordens da estabilidade hegemônica. A mulher portuguesa “mesclou” duas vidas. Dois comp ortamentos. Duas atitud es. A de casa, submersa n a indolência; a da rua, resplendend o formosura. Maria Graham não se eximiu de revelar o seu espanto em não reconhecer as mu lheres n os espetáculos públicos, taman ha a diferença entre o estar em casa e o estar na rua. Adornavam-se não para os maridos, mas para outras mulheres porque, na verdade, não ousavam fazê-lo para h omens estranh os, o que d enotava a ansiedade de demonstrar em público elevados níveis de afortunamento. Na roupa, projetava-se a situação econômica, que se queria próspera no ranking do latifún dio monocultor. Enfeitadas d a p orta da rua para fora: nos teatros, nas festas religiosas, nas praças pú blicas e, ordinariamen te, nos costumeiros rituais da Igreja. Somente os olhos não podiam mentir. Denunciavam a cor da tristeza. O íntimo. O interior. O que ninguém vê. Enganar as exterioridades, muito fácil. Cobrir-se de preto ou de rosedá, conforme a ocasião, mais fácil ainda. Embrulhar-se em mantilhas, em véus, em lenços, como representação de hum ildade e recato, fazia parte do espetáculo. Isolar-se na n obreza d os paramentos, um artifício muito utilizado. O que não se podia esconder, aí sim, não se podia esconder mesmo, era o olhar melancólico. Este presidiu a vida da mu lher portu guesa. Em todas as idad es, em todos os espaços, em todos os temp os p atriarcais.
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Na Igreja, a mise-en-scène esperada. Um certo retraimento. No teatro, outra performance, porque ali o exibicionismo deveria assumir feições retumbantes. O corpo parecia pouco para expor o “mercado persa” de jóias, brincos, pulseiras, colares... O exagero de aparatos significava manifestações externas de ilusionismo. O que se passava no interior de cada u ma somente os espelhos conh ecidos seriam capazes de delatar. E deles a m emória histórica pouco preservou. Os esconderijos encarregaram-se de embaçar os padecimentos, subtraindo algumas lamentações que apenas escamoteavam lágrimas, jamais as eliminavam . O excesso de alfaias oferecia um espetáculo desagradável. A mulher, ao tentar embonecar-se com exóticos aportes, acabava por enfear-se. Sedas, veludos, rendas, chapéus, enfeites variados reuniam o instrumental das portuguesas em apresentações públicas. (...) As sinhás-moças, vestidas de ricas saias de cetim, camisas de cambraia finíssima, cobertas de jóias de ouro, cordões, pulseiras, colares, braceletes e balagandãs (PRADO Paulo. Retrato do Brasil, 1962, p.117).
Não h á como emp almar o gosto colonizador: a portuguesa escand alizou a estética com uma mistura de arranjos que a caricaturou em esboços de espan to. Para alcançar a comenda da aristocracia, a mulher enformou-se em confusos param entos, um verdad eiro picadeiro circense que a afastou dos p rincípios básicos da arte do bem vestir. (...) A julgar por Mrs. Kindersley, que não era nenhuma parisiense, nossas avós trajavam-se que nem macacas: saia de chita, camisa de flores bordadas, corpete de veludo, faixa. Por cima desse horror de indumentária, muito ouro, muitos colares, braceletes, pentes (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 370).
A cronista extasiou-se com a variedade de ornatos que as mulheres carregavam ao mesmo tem po. Falta d e senso estético, de h arm onia de cores, de equilíbrio de estilos – uma bizarria. Necessidade por vezes de simular opulências nem sempre condizentes com o entorno açucareiro. Exposição que p atenteou um grande m arco na sociedad e do p assado, tão depen den te de anuências sociais. Disfarçar a tristeza ou qualquer ou tro sentimen to que pusesse em xeque a coesão familiar foi a ord em do dia no m un do patriarcal. Nada d e exibir sinais que viessem a acusar baixas econôm icas. Isso, jamais. A indumentária evidenciava um escudo protetor para corpos pouco amados. Brasão que
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realçava a altivez de uma família pautada em condecorações latifundiárias e escravocratas. Homenagens e homenagens à sombra do açúcar, o mais exigente em d itadu ras ostensivas. A roup a estrondava como uma aliada importante que servia de ornamentação alegórica a uma rua tão estreitamente ligada à cancela do engenho – instrumen to pod eroso na coreografia teatral. Que os fingimentos nublassem os possíveis esboços de d eclínio canavieiro. O estilo de vestir da portuguesa explorou excessivamente requintes de complementos: rendas, babados, bicos. E na cabeça, o chapéu trabalhado com plumas, bem ao modo d a Belle Époque – no p róximo capítulo, discorrerei sobre o tema com mais detalhes. Para o retrato de família, uma aparência ideal: todos bem postos, roup as adequ adas, chap éus d e aba larga, saias armad as, espartilhos adelgaçando o corpo, ternos escuros, coletes abotoados, sapatos finos, bengalas no grito da moda... A mulher ibérica não se acanhava das suas formas arredondadas, protuberâncias visíveis, um pendor para o Barroco, não somente no excesso de adornos como também na anatomia de um corpo ancho de curvas e volumes. Interessante observar que, quand o sinh azinh as, apresentavam -se pálidas, comendo caldinh os de pintainhos, quase anêmicas, a deixar restos de alimen to no prato para não parecer famintas ou gulosas. Trancafiadas em camarinhas, recatadas e longe do sol, das luzes, dos holofotes que porventura a espiassem em pormenores. Sempre debaixo das sombras, amarfanhadas na insipidez de uma juventude condenada à perfeição. Santas. Seráficas. Virgens de vida. Um tipo de beleza doentio, com ares de anjo, corpos franzinos a sugerirem levitações. Após o casamen to – com a garantia de maridos para fecundá-las e sustentálas –, as mu lheres engordavam, adquiriam pap adas, assumiam jeito de matron as. Ancas largas, acentuadamente largas. Bom lembrar que Portugal, em decorrência da arabização, idealizou a mulher de sangue mourisco através do mito da “moura encantada”. Uma m oura en cantad a que se avantajava em quad ris amplos e ondulantes. E não foi difícil obtê-los debaixo do manto da preguiça e da lerdeza. Não é insignificante o vocábulo cadeiras ser sinônimo de ancas em português. O brasileiro ainda nos dias atuais dá muita importância à região glútea. O termo cadeiras caiu inclusive no uso popular com múltiplas recorrências a esse aspecto sensual. Basta reavivar a expressão mulher descadeirada olhada como deficiente de corpo, ou mulher de quartos caídos. Recorde-se que D. Ana Rosa Falcão, a célebre mad rinh a de Joaquim N abuco, por ele tão m aternalmen te amada, era uma mulher bastante corpulenta. O homem patriarcal igualmente cobriu-se de modos especiais: o do charuto e o do rapé, por exemplo. O charuto o embevecia, após o almoço ou jantar, com licor para acomp anh ar as tragadas ou m esmo para molhar o fum o no líquido aromático. E o rapé? Este foi um modo p redom inan temente masculino. Rapés guardados por homens em requintadas bocetas – sinônimo de caixa em
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Portugal; denominativo que no Brasil tornou-se posteriormente obsceno. Rapé fabricado na Bahia, famosa pelo seu fumo, ou vindo diretamente de Lisboa. Algum as mu lheres patriarcais, até mesmo baronesas, usaram charu tos na emulação com barões empertigados. Barões com chapéus, cartolas soleníssimas, pés metidos em botinas liturgicamen te pretas. Qu anto ao rapé, não. A este, só homens aderiram. Talvez por não se conformarem apenas com o gozo sexual, carecend o de sensações de orgasmos ou tros – o espirro. A letargia estendeu -se ao homem; não o poup ou. Nem pod eria deixar de ser assim. Ainda que, vez por outra, saísse a cavalo nas suas incursões pelos canaviais, o seu corpo n ão se modelou em espátula de H ércules. Quan do adu ltos, casados, com filhos, homens barrigudos, pouco musculosos, longe, bem longe de belezas de macho. E na m oda, o m asculino também refletiu a desastrada inação. Freyre demonstrou, com originalidade ímpar, que esse homem chegou a ser “feminino”, taman ha a manifestação de apuros de vaidad e. Cuidavase em d emasia ou descansava em d emasia: mãos delicadas, pés aman had os com assiduidade, cabelos com brilhantina, bigodes lustrosos, barbas talhad as, enfim, tratos exagerados que lhe conferiam um perfil mais feminino que masculino. A lassidão em que vivia não lhe possibilitava uma musculatura desenvolvida. A lerdeza, a languidez, a inércia triangulizavam um a bandeira favorável à anatomia debilitada. Quan do jovens, corpos franzinos, que se moldavam à imagem de mulher. A pele macia misturava-se a características de sexo frágil. As diferenças entre homem e mulher, no período patriarcal, subscreveram hiatos mais sociológicos que biológicos. O reforço às desigualdades culturais serviu para cristalizar as idealizações de fragilidad e e de virilidade. Mas a essência anatôm ica do hom em mostrou-se debilitada, em conseqüência de sua inap etência às atividades físicas. As regalias sociológicas responsabilizaram-se, outrossim, em masculinizá-lo através de um machismo autoritário e implacável. O certo é que a “feminilidade adquirida”, nos idos da bagaceira – salvo nas sinhazinhas –, pou co foi detectada. O mu nd o sociocultural hau riu excelentes aromas de arrogância nesse homem, homem até debaixo d’água. (...) O homem, no Brasil rural patriarcal, foi a mulher a cavalo. Quase o mesmo ser franzino que a mulher, debilitado quase tanto quanto ela pela inércia e pela vida lânguida, porém em situação privilegiada de dominar e de mandar alto (FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 101).
Do que se observa que o tálamo sociológico, com os seus melindres de santuário intocado, alvitra construções simbólicas a bel-prazer, com uma independência quase patógena. Manda e d esmanda na engrenagem n ormativa. Foi assim no passado e ainda o é no presente. E há de ser nos futuros próximos e longínquos. Vestidos a caráter, é verdade, porém entregues aos cafunés das
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mu camas em red es que os acolhiam em aconchegos quase uterinos. Outro modo de homem: o cafuné. E coligado à concupiscência de um afago não de todo desinteressado. Afago com cheiro de lascívia. As mu dan ças na ind um entária masculina começaram p or baixo: pelas calças bran cas, de influên cia inglesa. Depois, o terno p erd e o colete em bora não altere a sua terminologia triádica. As casacas – que se derreavam até os joelhos – diminuíram e foram obtendo contornos mais leves. De um modo geral, as alterações no trajo masculino são men os ousad as do qu e as do feminino. Este ponto merece questionamentos. Pelo menos deixo uma indagação: Por quê? Pode parecer estranho, mas uma moda feminina muito corrente nos séculos XVIII e XIX era a do ban ho d e rio. O exotismo não estava n os banhos de rio, mas n a man eira como as sinh azinhas se lançavam n as águas doces do Capibaribe. Pois essas jovens deliciavam-se inteiramente nuas com banhos astuciosos e aguardados. Em começos do século XX o hábito ainda reinava: Manuel Bandeira a ele se referiu quando poetizou a bela recordação da sinh azinh a nu a – “um dia eu vi uma m oça nu inh a no ban ho/ fiquei parado o coração batendo/ Ela se riu/ Foi o meu primeiro alumbramento”. E Tolennare, cronista francês, também se contaminou com a surpresa bemvind a, um a sinh azinh a nu inh a em ban ho n o rio, no arrabalde d a Madalena. De olhos arregalados, alegrou-se com a espontaneidade! Um novo alumbramento. Quando os banhos de mar passaram a substituir os de rio – inicialmente como prescrição médica, indicativo à cura de certas doenças –, os primeiros trajos seguiram a linh a vitoriana: nem decotes, nem pern as à mostra, dado que os calções das mulheres iam até os tornozelos. Roupas incômodas que não permitiam a liberdade do corpo em águas tão maravilhosas. As mulheres se satisfaziam com um lazer pela metade. O rio aind a evocava a saud ade de um a entrega total aos gozos de u ma distração recheada de tagarelices e conversas moles. Ah, os rios! Famosos pelo seu chamamento à sensualidade. Cabelos longos, mãos bem tratadas, pés cuidadosamente calçados, esses os traços diferenciadores de classe. Emblema de respeito. Escudo de prestígio. Marca de nobreza. Mãos, pés e cabeça, um trinômio bem significativo na configuração das extremidades. Mãos delicadas, mãos que não trabalhavam. Pés delicados, pés que se escondiam do massapê, calçados com sapatos, por vezes pouco confortáveis, para formatarem a delicadeza artificial do ethos da época – pés pequenos, mimosos, pueris. Cabelos compridos requerem cuidados especiais, um demonstrativo de ócio a ensejar penteados laboriosos, subseqüentemente, de horas vagas, para não dizer: de longas, longuíssimas horas vagas. O cabelo, tanto na mulher como no homem, referendava um privilégio somente digno das camadas aristocráticas.
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(...) A ostentação de cabeleira e de pé bem tratado e bem calçado foi, no Brasil patriarcal, ostentação mais de raça branca ou de classe alta – ou pelo menos de classe livre – do que de belo sexo. Mas não desprezemos o fato de que foi também ostentação de sexo belo, ornamental, como que nascido principalmente para agradar o outro: o forte. Física e economicamente forte (FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 100).
Exercera tamanha significação a arte d o cabelo, dos pés tratados e de mãos delicadas que suas exibições tornaram-se proibitivas à mulher negra, sempre de cabelo curto ou pano na cabeça, pés e mãos desgastados pelo eito ou p ela lide da casa. O cabelo, ao natural, guardava um toque de liberdade, uma variável conotativa para a interpretação sociológica. O penteado teve uma representação hierárquica tão forte que seus estilos extravagantes atingiram o esquisito. Formas elaboradíssimas, alfaiadas com pentes, coques volumosos, grandes tranças. Facho d iferenciador, a beirar o caricatural. Os próprios nomes indicavam o viés pejorativo: tapa-missa, trepa-muleque... A cabeça sinalizou um ponto de distinção. Cobri-la traduzia-se em perda de autonomia: um manto humilhante com estereótipos de inferioridade e posições excludentes. Assim, mãos delgadas, pele fina, compleição suave, estilo de cabelo denunciavam o repouso, a desídia, a folga, só permitidos à senhora de engenh o. A moda ajudava a exaltar conceitos impregnados no imaginário coletivo. O homem de barba, o homem sem barba, a mulher de cabelo comprido, a de cabelo curto arrematavam os ideais do grupo dominante. A barba tanto significou na pirâmide patriarcal, que um galã de teatro – já no final do Segundo Reinado – foi estrondosamente vaiado quando apareceu no palco sem barba nem bigode. A força de quem determina os padrões normativos infere conceptualizações de gênero e de classe, definidas em polimentos selecionados como referenciais de legitimidade. O indivíduo, homem ou mulher, precisa chancelar a sua identidade e a sua cidadania para enaltecê-las segundo a lógica da sociedad e na qual se insere. A mulher portuguesa obedeceu a caprichos que provieram não somente do gosto masculino como do concerto patriarcal, um e outro a destilarem formas de indumentária. Vestir adequadamente, para diferenciar status e aumentar as distâncias sociais. No fim do século XIX, o francês Max Leclerc, em suas Lettres du Brésil (1890) registrava a p ouca presença das senh oras nas ruas, isto já durante a República brasileira. Mulheres em casa, a serviço de seus maridos. A aparência fortalece as desigualdades e robustece o fosso entre ricos e pobres. Seguindo os princípios da ostentação, a mulher branca fazia uso de recursos estéticos com o objetivo de dividir classes e reforçar a sanfona da hegemonia. Sentia-se gratificada sob a capa do desejo dos que a olhavam. Porventura seus maridos?
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A indumentária acompanhou a escala social. Muitas jóias, muitos enfeites, muita arrogância. A figuração agigantou o poder da cana. E não houve poder mais histriônico que o do m assapê. Com roupas extravagan tes, adorn os não menos extravagantes, cabelos compridos, penteados exagerados – burlescos, grotescos, até ridículos –, mãos bem tratadas, pés recolhidos em formatos civilizatórias, a portu guesa creden ciou-se, à base de pura superficialidade, em senhora faustosamente paramentada. MODA DE MULHER NEGRA Os idos patriarcais editaram figurinos ao comp asso dos padrões de conduta de classe. Há uma sinergia entre a vida e o poder, a orquestrar as partituras em realce. A beleza da indumentária da mulher esteve circunscrita à casa-grande, com diferenciações nítidas de direitos e deveres para cada “fratria” – os princípios da arte a serviço da elite. A normatização do social privilegiou uma minoria que se animou sob a égide das excelsas referências. Os insulados, na base da pirâmide, que tratassem de respeitá-las porque sociologicamente inferiores. O açúcar deu forma à casa-grande ou a casa-grande prescreveu as regras do torneio doméstico? Um confronto que nem sempre interagiu sobre pressup ostos lógicos e subseqüen tes. Inclino-me a acreditar qu e o açúcar tiranizou a casa-grande, levando a reboque o escravismo que se fecundou em terras submersas na cana e exploradas pela ascendência que qualquer monopólio impinge. O social possui os seus cosméticos; esses são inevitáveis na fixação de pólos que se atraem e se repelem ao mesmo tempo. Existem o pólo ditador e o pólo receptor. Ambos se laçam com vistas a recrudescer as diferenças. No patriarcalismo, essas diferenças foram berrantes e espelharam funções opositivas. Se houve classes sociais, houve necessariamente pólos eqüidistantes. Ratificá-los e endurecê-los fazia parte da política discriminatória. Nada melhor que o vestuário para oferecer visibilidade aos contrários e para exacerbar o que deve ser acentuado: as aparências. E o que mais se desejava senão o fortalecimento das elites e o enfraquecimento dos segmentos subordinad os? A mod a serviu, e mu ito, para m over os tombadilhos do pod er. O vestir marca a posição social de cada um – pode sinalizar um ato de despojamento ou um ato de grave ostentação. Indica, sem eufemismo, uma pirâmide em cascata. Com diáfana clareza. Veste-se aquilo que agrad a os olhos, com apoio, evidentemente, no aceite dos outros, e respeita-se uma expectativa da qual não se deve fugir. O trajo tem uma força significativa incomum. Até mesmo as cores determinam os estamentos sociais. Cores neutras, pouco definidas n ão agradam às mu lheres d e baixa-rend a. Entre as destituídas de mais-valia econômica, observa-se um privilegiar das tonalidades firmes e exuberantes, de modo a consensualizar , um gosto marcado, avesso a estranh as especulações intelec-
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tuais. Vale sugerir um aprofundamento nessa análise, apoiada na simbologia das cores e na sua ad equação à ped agogia do oprimido. Merece um estudo à parte. No período dos bangüês, as diferenças agudizaram-se e marcaram, com manifestas exibições, classe e etnia. Ainda hoje apontam modelos sociológicos bem delineados, mas sem a rigidez de outrora; ao contrário: com consistentes entrosamentos. No passado, o fosso existiu e deu-se com claríssimas atitudes hierárquicas. Sob o prisma da fidalguia, imperou a influência das modas francesa e inglesa, que desfilavam largamente na Europa. Absorveu a portuguesa os estilos importados que a honravam no “último grito” da elegância. Os insumos exteriores da beleza arquearam o referencial da civilização vitoriosa.
Em O Carapuceiro (Recife, 1843), dizia o Padre Lopes Gama que (...) “As nossas sinhasinhas e yayás já não querem ser tratadas senão por demoiselles, mademoiselles e madames . Nos trajes, nos usos, nas modas, nas maneiras, só se approva o que é francez; de sorte que não temos uma usança, uma prática, uma coisa por onde se possa dizer: isto é próprio do Brasil” (FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 102).
Apesar da observação do p adre Lopes Gam a, válida p ara o século XIX, com as devidas ressalvas, como ele próprio as expressou, a portuguesa exagerou na aparência – séculos XVI, XVII, XVIII, XIX e começo de XX, quando as viagens à Europa eram pouco freqüentes ou quase impossíveis –, enfeitand o-se dem ais, como já se alud iu no capítulo anterior. E na ânsia de p rodu zir ad ornos p ara se distingu ir aristocraticamente, quase sem perceber os limites do ridículo, provocou o desenvolvimen to da arte d a renda e d o bico, objetivando valorizar a exuberância dos vestidos. Ainda: da arte da pluma para encantar os chapéus, o que veio a originar o aparecimento das unidades produtivas domésticas do país. Por conseguinte, tal arte se processou, até o século XIX, dentro de casa, e teve grande repercussão na linguagem estética da m oda em virtud e da su a delicadeza d e detalhes. O fato é que a compulsividade da lusitana em fazer-se bela contribuiu para a fabricação das mimosas rendas nordestinas, plenamente cobiçadas pelos estrangeiros, que se alumbravam com o feitiço e a artesanalidade do produ to. Tanto assim que, em temp os atuais, com o avan ço d a ind ustrialização e o acesso a tecnologias de p onta, tais trabalhos equ ivalem a excêntricos preciosismos, conseqüên cia d a d isponibilidad e d e u ma mão-de-obra barata, hereditariamente especializada. Com paciência evangélica, a execução de peças delicadíssimas chama a atenção pela sua natureza exclusivista. A arte da ren da e d o bico é artesanal, escapan do aos cham amen tos da maqu inaria avançada de produção em série. Impossível fabricar os desenhos de uma dúctil renascença sem o apuro de mãos francamente esmeradas.
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A mulher patriarcal no Brasil – principalmente a do sobrado –, embora andasse dentro de casa de cabeção e chinelo sem meia, esmerava-se nos vestidos de aparecer aos homens na igreja e nas festas, destacando-se então, tanto do outro sexo como das mulheres de outra classe e de outra raça, pelo excesso ou exagero de enfeite, de ornamentação, de babado, de renda, de pluma, de fita, de ouro fino, de jóias, de anel nos dedos, de bichas nas orelhas (FREYRE, Gilberto . Sobrados e mucambos, 1981, p. 98-99).
Sem os requintes de paramentos da portuguesa – bicos, rendas, penas, plumas –, as escravas vestiam-se de acordo com sua posição social. Como se não bastassem as etiquetas de um jugo arbitrário, sucediam-lhes outras, essas de origem estilística. À parte, visualizadas em estéticas distintas, aceitavam o império absoluto das arianas e cobriam-se com pan os, quase semp re estampados ao gosto africano, ou seja, alheios às normas da beleza ocidental. A competição entre portuguesas e negras deveria ser evitada a qualquer custo. Na qualidade de subalternas, o ostracismo impunha-se-lhes como uma luva, um imperativo exterior qu e gotejava d o regime escravista. Não foi à-toa a discriminação. A roupa sempre serviu de instrumento de validade de poder e de estigma de exclusão. Plugadas pelos lustros da ordem vigente, as mulheres lusitanas respaldavam-se mais uma vez em critérios distintivos. Sob o crivo da escravidão, a negra não escapou das modulações inferiorizantes d o trajar. Paramentava-se com roupas “desden hosas”, isto é, com roupas indicadoras da situação de subalternidade. Usava turbantes ou lenços na cabeça, porque tais adereços referendavam estereótipos estigmatizantes. Cobrindo a cabeça, ela cobria a liberdade e respondia à expectativa social: a de enquadrá-la na real postura de sujeição. Ao menor lampejo de desobediência, a norma editada falava mais alto. O ocultar a cabeça tinha um significado importante, por predispor o rótulo representativo de pessoas sem prestígio. Cabelos comp ridos e bem hidratados para as portu guesas. Reservavam-se o direito, como senhoras de patriarca, de alardear belos pen teados, contanto que prevalecesse o destaque da fidalguia – os cabelos eram repuxados para trás em exagerados coques e conferiam ao rosto um a moldura nem sempre em belezadora, mas supostamente requintada. Todos os esforços valiam a pena na tentativa de fortalecer o culto à estereotipia feminina e à divisão de classes sociais. Um preceito a mais sobrelevava a liturgia da submissão africana: esconder os cabelos debaixo de lenços ou turbantes... Requisito que acusava o status inferior de cada uma. As mu latas, na saudável ambição de ascend erem e de se confundirem com os figurinos da branca, reagiram a este sinal de expurgo social. E já se sentiam libertas, quando se independentizavam da cabeça coberta: uma mancha agregadora de sintomas de humilhação. Ainda hoje, do cobrir a cabeça latejam interpretações do passado. Na zona rural do Nordeste brasileiro,
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é muito comu m o hábito de usar lenços nos cabelos, a evocar chapéus protetores, expressão de pudor e de recato, principalmente entre camponesas que se retraem à medíocre situação de marginalidade. Ademais, há o estereótipo negativo do chamado cabelo ruim, que agregou du rante muito tempo um enxame de preconceitos. O p ixaim não se enquadrava na escala do belo e deveria ser escondido ou alisado para alçar os parâmetros estéticos perseguidos pela sociedade aristocrática ou burguesa. Quem tivesse o seu cabelo “brigado com Deus” – expressão típica de desdém –, que tratasse de reabilitá-lo; do contrário, estaria expondo-se ao ridículo ou, pelo menos, infringindo os moldes já legitimados. Hodiernamente, os conceitos foram-se modificando com a explosão da ideologia negra. As nominações pejorativas persistem, ainda que mitigadas pelas correntes defensoras do naturalismo e da beleza espontânea. Registra-se na cultura brasileira um enaltecimento dos valores africanos, etnicamente negróides. Parece que no cabelo ou, pelo menos, na cabeça, leia-se no alto, sedimentase a graduação do poder. Basta recordar as Monarquias com os seus símbolos bem patentes: coroa, cetro, bastão. Mas coroa em primeiro lugar. Os toques elitizantes começam p ela cabeça, como prêmio ou galardão d e recompensa. Glória, honra, distinção; cimo, cume, topo. A exuberância de uma bela cabeleira, ou o excesso de demonstração de vestuário indicava categorias nítidas de classe. Exibicionismo ou retraimento. A própria Igreja Católica recomendou, durante muito tempo, o uso do véu para expressar humildade no louvor a Deus. De cabeça coberta, as fiéis solidarizavam-se num a atitude de respeito ao divino. Um sinal de pud or, como se a cabeça coberta explicitasse o reconh ecimento público da reverência. O véu teve até pouco tempo sua representatividade, e ninguém entrava na igreja de cabeça descoberta. Ninguém, não; diga-se, mulheres; porque dos homens não se lhes exigia tal costume. Antes, retiravam o chapéu e ainda o retiram ao penetrarem em recintos fechados e, sobretudo, sagrados. Note-se que as freiras escondem o cabelo com mantos exageradamente largos, padrão opressor, objetivando a ocultação de madeixas porventura presunçosas e mundanas. Os padres não carecem de tal privação. Tudo leva a crer que a cond ição de gênero masculina acarreta, na religião católica, algumas regalias. Estão, todavia, a ocorrer reformulações nos fundamentos da Igreja, mirando torná-los mais equânimes. Pela sua natu reza hum anitária, a religião tend e a destruir preconceitos, o que implica no anulamento dos bolsões discriminatórios de gênero. Na acepção moderna, o véu caiu de uso e a própria comunhão é ofertada pela mulher, embora a consagração da hóstia ainda lhe seja vetada. Resistem algumas prerrogativas hierárquicas que beneficiam o homem, como a celebração da missa e outras cerimônias análogas. À mulher, falta-lhe ocupar espaços mais destacados na liturgia da religião cristã. Conquistas aconteceram e merecem registro no contexto histórico, porém a paridad e ainda não se efetivou.
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A exibição das “madeixas” particularizava modelos estéticos metaforizad os em púlpitos de exaltação. Revelavam características superlativas que não se deslocavam para as negras, escravizadas e sujeitas a um a mobilidade social bastante precária. O poder entroniza concepções refinadas, arroga-se per se de categorias de beleza, logo, enaltecê-lo, ratifica juízos pré-concebidos. No momento em que a sociedade reconhece e acumplicia a formação de castas institucionalizadas, tudo que vier a fortalecer os lastros de au toridad e será aceito com regozijo. E os rótulos se firmavam: à mulher bran ca, cabelos compridos e escovados; à mulher negra, cabelos curtos, estigmatizados e encobertos. Havia exceções. Algumas negras conseguiam vestir-se no mais puro requinte do trajo africano, à custa, todavia, dos aman tes que lhes pagavam as despesas do luxo. Representavam um a pequ ena m inoria que tirava proveito de uma situação especial, na qual sabiam barganhar o preço da clandestinidad e. Em todo caso, valiam-se de u m instrum ento d e inferioridad e – a pecha de concubinas – para converter os vezos discriminatórios em lucros que explicitassem os matizes estéticos. Usavam o escudo da ilegitimidade como uma fração, embora diminuta, de vantagem pessoal. Malgrado a postura desconfortável, usufruíram de alguns ganhos que, no frigir dos ovos, apenas arrematavam a empáfia do senhor patriarca. O importante é que não aderiram à moda européia. Arrancavam de dentro do peito os atavismos sufocados e transmitiam os enlevos da terra dos seus ascendentes – a arte africana. Este aspecto tradu z a força da cultura d e origem. (...) Amantes de ricos negociantes portugueses e por eles vestidas de seda e cetim. Cobertas de quimbembeques. De jóias e cordões de ouro. Figas da Guiné contra o mau-olhado. Objetos de culto fálico. Fieiras de miçangas. Colares de búzio. Argolões de ouro atravessados nas orelhas (FREYRE, Gilberto . Casagrande & senzala, 1966, p. 337-338).
Essas negras-rainhas souberam desfilar garbosamente o ar de fidalguia que apregoavam. O requinte no trajar chamava a atenção e apontava para o grau de versatilidade de que tanto se mun iram. Distingu iram-se pela liberdade conquistada – a preços altos, naturalmente. A graça do talhe e o ritmo do andar compendiavam a elegância de quem não perde o porte de majestade. Mãos e pés, cuidad osamente tratados, insinuavam inatividade: recusa a trabalhos manuais pesados, negação de esforços físicos, demonstração de nada fazer e de nada produzir – pré-requisitos de segmentos privilegiados. Por fim, revelação de superioridade de classe. Quem mais poderia cultivar o repouso senão a mulher branca e o patriarca? Para esses, o tempo resumia-se em mais um instrumento de brincadeira. Foram exímios na arte de driblá-lo, sobretudo o hom em qu e se dava ao luxo de d ormitar em imensas horas de “folga”.
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Impossível para as negras ou para as mucamas e, menos ainda, para as trabalhad oras agrícolas, conservarem a higiene perfeita dos pés e das mãos, elas que eram verdad eiras burras-de-carga, quer n a casa-grand e, a cuidar dos afazeres domésticos, quer no eito, a lavrar, a plantar, a extrair a colheita... Pés e mãos contabilizavam as mais valiosas ferramentas de trabalho. Como tal, não lhes restavam sobras de tempo para dedicação a esses cuidados. Pele grossa, calos nas mãos, pés mal tratados calcinavam a labuta diária, labuta que sequer possibilitava momentos de asseio pessoal. Assim, a negra não pôd e cultuar o corpo: não fez uso de cosméticos reparadores, tampouco acudiu às “cicatrizes” temporais. Espelhou-se diafanamente, em estado puro, longe da sofisticada pintura dos reparadores estéticos. Sem consagrar-se aos princípios da “encenação pessoal”, envelheceu a céu aberto, desconh ecend o os retoques de beleza, tão aplaudidos e tão generosamen te enganadores. Há de se admitir que os recursos da estética agem com uma eficácia indiscutível. Cabelos em mise-en-plis , vestidos de bom corte, mãos e pés tratados dão à aparência lances mágicos, quase de ilusionismo. Hoje em d ia, costuma-se dizer que n ão há mu lheres feias; há, sim, mulheres mal prod uzidas. Um postulado qu e não ind uz a contestações. Do espartilho aos estranhos penteados, a artificialidade da aparência se fez tônica de representação de elite. Os adereços denunciaram claros separatismos. O costume de roupas inadequadas – à maneira européia – determinou mais uma distorção do ethos patriarcal. E o que se referiu à moda de cabelo seguiu parâmetros semelhantes. As negras e os negros forros fizeram uso de belas cabeleiras, talvez para desafiar o preconceito de cabeças cobertas em africanas submetidas ao regime da escravidão. O esmero nos penteados revela a altivez de uma liberdade que não se queria contestada. E os sinais exteriores começavam pela cabeça; todo o esforço de exibi-la ao ar da faceirice seria pouco na neutralização de rejeitáveis estrabismos. Quanto aos cabelos, repita-se que os negros forros, os caboclos e os mulatos livres se esmeravam quase tanto quanto os brancos em trazê-los bem penteados e luzindo de óleo de coco, os homens caprichando quase tanto no penteado quanto as mulheres (FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 101).
Negros de brilhantina, com cabelos assentados à semelhança do senhor de engenho; imp ortando o jeito emp ertigado d e fazer jus à sua alforria. Adotaram posturas de reis. E foram reis, com certeza, nas suas Nações africanas. As criadas de dentro da casa-grande recebiam um trato particularizado, quer pela questão do asseio pessoal – afinal iam cuidar dos meninos e meninas portuguesas –, quer pela natureza da família patriarcal sociologicamente exten-
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sa, orgulhosa de seus agregados, não obstante ocuparem posições de parentes pobres, tal qual as mirradas ramificações de uma árvore crescida em tronco sólido e germinador. Uma ressalva: as amas-de-leite, como a famosa Mônica, retratada duas vezes em épocas diferentes, indicam as “sinuosidades” da condição de escrava. No seu desconfortável vestido de tafetá não esconde a timidez do olhar, tampouco a tensão das mãos nas duas fotografias. A primeira, ainda jovem, com uma criança a derrear a cabeça sobre o seu ombro em uma atitude de afeto bastante tangível; a segunda, com uma adolescente em igual atitude de carinho, uma Mônica envelhecida, cabelos brancos, corpo decaído, magra, a acusar o declínio físico. As duas fotografias, comparadas, denotam a posição social por ela ocupada – o mesmo vestido de tafetá em datas diferentes e distanciadas cronologicamente, com o acréscimo apenas de u m xale, possivelmente para aquecer seu corpo já debilitado. Essas negras, amas-deleite, representadas p or Mônica, parecem ter possuído a sua roup a d e gala, única p or toda a vida: para os dias de festa e para a pose da fotografia. O retrato da velha ama-de-leite constitui uma peça histórica da máxima valia, porque a imagem pode camuflar uma mirada desprevenida, jamais um olhar atento, perscrutad or. A lup a não engana. Às negras proibia-se também o uso de jóias e de tetéias com finalidades análogas, de m arcarem distâncias sociais. Mais uma fronteira a assinalar afastamentos e exclusões. Enquanto as brancas se atopetavam de ouros e finas bijuterias, a ponto de sugerirem apelidos pejorativos de macacas – tal a injunção de braceletes, cordões, fitas, pratas –, às negras lhes eram interditados aparatos que porventura pudessem ferir a faísca da sua oponente. À beleza associavam-se o pod er e o m and o, devendo-se evitar possíveis man ifestações de equanimidade. De modo geral, obedecendo ao rigor das angulações de classe, a moda da mulher negra era simples, porém colorida e alegre, a refletir o temperamento extrovertido da raça. Normalmente, usava “Panos da Costa” com listras vermelhas, vestidos de matames, babados brancos e lenço na cabeça. Quantas vezes ela teve que despir as vestes de malês para enfrentar a europeização da indumentária! Uma desafricanização que não conseguiu anular a sua performance. Conservaram-se muitos dos seus traços: a abundância de babados, a riqueza coreográfica, a escala cromática, o jogo de tons, alguns berrantes, as estampas florais, a cenografia lúdica das saias. A mod a narra a sociedad e no espaço e no temp o. Um potente instrumen to de an álise socioantropológica. Os daguerreótipos e retratos do p assado explanam as oscilações no paramentar-se mediante minúcias enriquecedoras do caixilho temporal: tetéias, xales, diadem as, sapatos, chapéus, babados, rendas, vestidos longos, turbantes, babados, saias coloridas... Pela roupa identifica-se o homem no seu traçado sociológico. Um e outro estão relacionados com o mito da beleza introjetado na vida ocidental.
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Na moldura da bagaceira, a mulher simbolizou o objeto de procriação, bibelô de carne, ser abafado pelo “totem” do macho. Mas se queria uma mulher no rigor da moda. Sinhazinha pálida, lhana, com o heroísmo das santas e a fragilidade de corpos infantis. Perfeitas, virtuosas. A aguardar pela saga de um futuro previsto – esposa e mãe, que Deus a livrasse de ficar solteirona. Sinhádona barroca, plena de curvas, seios volumosos, um conjunto de ostentações que propu gnavam param entos de beleza. O objeto desejado deveria atender às solicitações de quem o deseja. Se não atendesse satisfatoriamente, merecia ser escanteado e trocado p or outro em melhores cond ições. Qu antas e quan tas vezes a mulher branca foi relegada diante do fascínio da negra? A escolha partia sempre do homem, que a ambas manipulava com o peito inflado de gozo. A roupa, o jeito de trajar, o porte, uma época. Estilos de cabelo, penteados, cortes, vestidos bem talhados ou não, roupas desleixadas ou elegantes, saias rodad as, cores berrantes ou neu tras somam -se ao clipe instantâneo d a fotografia. E revelam a síntese do modo de estar de uma gente. Modos e modas, de homens e de mulheres. No caso, de mulheres negras. Moda ou antimoda? A proibição de jóias, a cabeça coberta, as mãos e os pés mal tratados, s vestidos descuidad os resum iam o tom da submissão da ind um entária feminina negra. A roup a externou os labirintos de uma sociedad e acimen tada em tirânicas “castas”. Para a africana patenteou um estigma a mais na escala da dominação.
A MODA NO BRASIL Os ciclos de vida da mod a brasileira têm acompanhado as variações dos centros internacionais, com bastante veemência no eixo francês, como aludido nos itens precedentes. O Brasil recebeu influência direta francesa por adotar uma filosofia pedagógica europeizante, voltada com vigor para os valores intelectuais franceses. E na moda não foi diferente. Se Paris representava o cânone da elegância da mulher ocidental, não é de admirar o culto às suas Casas de Alta-Costura. O contrário é que seria de estranhar. Durante os séculos XIX e meados do XX as repercussões da moda francesa são insofismáveis. Apesar do clima tropical, as temperaturas quentes não foram suficientes, nos “mastros” colonial, imperial e republicano – pelo menos até 1960 –, para gerar um tipo en dógeno de vestuário. A abertura d os portos às Nações européias, em 1808, quan do da chegad a de D. João VI à Terra do pau-brasil, vem fortalecer ligações européias, antes menos impregnantes em razão dos ecos mais direcionados à tradição portuguesa, ou melhor, à Península Ibérica. Assim, o período colonial se ateve aos modelos lusitanos que não deixavam de ser igualmen te europeu s, porém primord ialmen te ibéricos. Com o Império, as ingerências se ampliaram e, no caso da moda, adquiriram a verve parisiense. Ademais,
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o Brasil aderiu à d outrina comtista – Augusto Comte (1798–1857), pensador francês e sistematizador do positivismo –, a ponto de formular uma República em figurinos positivistas, bem endossados pela legenda da bandeira nacional: Ordem e Progresso. A mulher seguiu à risca o que a França a orientou no tocante à moda. O hom em p autou a sua indum entária sob o signo d a Inglaterra, capital do refinamento masculino. Perfumes, cosméticos, penteados, adereços tiveram o lacre de Paris ou Lond res e também da Itália em temp os mais recentes. Anú ncios de jornais transcritos por Gilberto Freyre revelam o afrancesamento e o anglicismo na moda dos brasileiros: 13 de abril de 1861: “enfeites de cabeça para senhoras de bom gosto”, tanto pretos como de lindas cores. Eram última moda de Paris. Haviam chegado por vapor francês. A 25 do mesmo abril, a loja recifense de Burle Júnior anunciava ter recebido pelo “último vapor de Havre... borzeguins de Meliés todos de bezerro e de cordovão”. Novidade francesa. [...] O escuro em paletós e casacas para homens caracterizaria também casimiras inglesas, admitindo-se, porém, calças de cores, sem que se voltasse, neste particular, a casacas de cores dos dias coloniais (FREYRE, Gilberto . Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 121-122).
O século XX, o século das mudanças no vestuário, a começar pela libertação dos espartilhos, das anquinhas e de outras medidas similares, ainda permite florescer, e muito, a moda europeizante. Nas suas últimas quatro décadas, contudo, detecta-se uma forte mutação nas tendências brasileiras, ao se adicionar elementos ecológicos de grande sustentação na indumentária feminina e masculina. Os trópicos se impõem, o clima quente reivindica uma roupa apropriada, mulheres e homens são afetados diretamente pela ambiência de um espaço abaixo da linh a do Equador. Bom frisar que tais transformações germinaram em momentos paralelos ao movimento hippie, esse com o seu apelo à formação de uma ideologia de contracultura. Tempos de contestação. Tempos de redefinições. Tempos de insubordinação. Respeito às minorias e abaixo os preconceitos. O filme Hair , de 1968, provocou ruídos relevantes, abalando estruturas consolidadas. Os reflexos chegaram ao vestuário, que se modificou a bem de uma adequação lugar-clima. Adstrito a uma submissão eurocêntrica, o Brasil ao final do século XX superou o passado opressor para incorporar uma firme identidad e, o que vem a desconstruir os paradigmas emblemáticos até então cortejados. Com isso, as nu ances africanas se mostram em evidência, espargindo uma leitura afro-negra bem acentuad a. O conotativo da moda contemp orânea brasileira advém de u ma mistura de culturas e de classes, com fronteiras tênues ou acentuadas. A africana, ao longo do temp o – a história faz-se com tempo e m uito tempo –, embora
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subjugada às normas impostas, conseguiu estabelecer um fluxo e um refluxo de cores e de estilos que vão d esaguar no tipo brasileiríssimo de vestir. Atualmente, ressalta-se a malha estética com “bilros” de africanidade, a ocupar espaço na sociedade nacional. A moda em alta rendeu-se à complexidade das diferenças, com ênfase nas etnias formad oras do ethos brasileiro. O que hoje se apresenta como um tipo nacionalmente brasileiro de sociedade e de cultura tanto resulta do que se pode considerar, nesse conjunto, sua predominante feição civilizada avançada como sua sobrevivente primitividade: um complexo sociocultural antropológico nada insignificante quando assim misto. Para tal concorreu grandemente o afronegro (FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 88).
A combinação d e “civilidade” e “primitividade” embeleza a plástica d a aparên cia à luz d e excelentes cintilações que cativam olhares internacionais. A mescla ensejou invejáveis derivativos, enfatizando as particularidades de um Brasil incorporado às origens. O primitivo induz ao simples e ao despojamento; o civilizado invoca a fidalguia dos salões aristocráticos. De um e de outro, depreende-se a composição esteticamente aplaudida pelos mais aficionados figurinistas ocidentais. Naturalmente, a síntese deu-se com o passar dos séculos, quando a cultura africana se embrenhou na sociedade brasileira de maneira mais firme. A revolução no vestuário se inicia com uma reelaboração de todo estrutural: explodem as cores vívidas, as estampas, os berloques em contas de plantas e de frutos, extravagantes, ousados... enfim, a miscigenação cultural se dá entre m odos e mod as de h omens e m ulheres. O trópico rebenta com a força do sol e da luminosidade, o vestir ganha a prevalência d as temp eraturas qu entes, tecidos leves, finos, decotes exagerad os, vestidos d e alça, biquínis do tipo fio den tal... Os estilistas brasileiros alcançam as p assarelas eu ropéias com au tenticidade e orgu lho, o grito de ind epen dên cia no trajo espouca em realismo e em mistura étn ica. Ainda que o mundo globalizado repouse em uma ideologização com nítida propensão a padrões massificadores, os traços culturais brasileiros emergem com p ropósitos deliberados. E a mod a apon ta para u ma d as maiores mutações no campo da identidade nacional. Corajosa, intrépida, e por que n ão dizer?, um tanto p etulante por tardia na sua d emon stração estética. Não h á como reverter u m processo que se quer vitorioso em tod os os sentidos. Os corpos biológicos se adaptam aos corpos sociais e culturais numa simbiose alegórica e astuciosamente singular. O Brasil define a sua indumentária em bases multirraciais, em estilos transnacionais e em misturas saud avelmente tropicais.
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