História Constitucional Portuguesa
Maria Cerejo
HISTÓRIA CONSTITUCIONAL PORTUGUESA CARACTERÍSTICAS ARACTERÍSTICAS DO CONSTITUCIONALISMO PORTUGUÊS:
Corte com o absolutismo monárquico O constitucionalismo é constitucionalismo é movimento que se inicia (a partir do momento em que se entra no final do séc. XVIII/início do séc. XIX, no constitucionalismo, dificilmente transportando uma visão das constituições escritas como garantes de direitos, volta a vingar o absolutismo Os essencialmente individuais. Temos assim uma portugueses, principalmente os regressão do princípio absolutista monárquico. concentrados nas áreas mais urbanas, Procura de direitos básicos (ainda que nem sempre confirmados): desejavam vivem num regime Inviolabilidade pessoal do domicílio; constitucional [incapacidade de D. Liberdade de culto; Miguel satisfazer a sua vontade em Liberdade de imprensa; 1828]. Sigilo da correspondência. As Constituições não vivem no vazio, têm uma ligação com o processo histórico. histórico . As constituições são produto desse processo e simultaneamente moldam o contexto histórico (que se sobrepõe à própria vontade dos juristas e legisladores). Assim se conclui na interdependência de vicissitudes constitucionais e circunstancialismos políticos e sociais do país. Os diversos constitucionalismos portugueses têm origem em ruturas – todos menos um documento constitucional têm origem revolucionária, existindo uma ligação com as vicissitudes históricas e com as movimentações históricas de cada época. Podemos dizer que os diversos constitucionalismos portugueses têm uma índole revolucionária com a ordem estabelecida: Constituição de 1822 = Revolução Liberal de 1820; o Carta Constitucional o Ato Adicional de 1852 = Revolução de 1851; Constituição de 1838 = Setembrismo e Revolução de 1836; o Constituição de 1910 = 5 de Outubro de 1910; o Alteração de 1918 = Revolução de 1851; Constituição de 1933 = 28 de Maio de 1926; o Constituição de 1976 = 25 de Abril de 1974. o Importância do constitucionalismo para todos os setores da vida jurídica, e não apenas para o Direito Constitucional. A Constituição não é mero produto, molda também.
Assim, tal como na generalidade dos países continentais, o constitucionalismo surge entre nós por via revolucionária; não por continuidades, mas por corte com o passado, seja esse corte feito pelo povo em armas (1820 e 1834) ou pelo próprio monarca (1926). O que sucede em Portugal – a passagem do Estado absoluto ao Estado constitucional – exemplifica a asserção atrás feita de que a Constituições trazem algo de diverso e original em face das anteriores «Leis Fundamentais». Em segundo lugar, as seis Constituições – decretadas em 1822, 1826, 1838, 1911, 1933 e 1976 – são o produto do circunstancialismo histórico do país e o reflexo de determinados elementos políticos, económicos, sociais e culturais. Fruto dos nossos atribulados dos dois últimos séculos, elas traduzem os seus problemas e as suas contradições e apresentam-se como veículos de certas ideias, tentativas de reorganização da vida coletiva, projetos mais ou menos assentes na realidade nacional, corpos de normas mais ou menos efetivos e duradouros.
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Maria Cerejo
Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 242/243]
É importante perceber que antes da Revolução Liberal de 1820 e da Constituição de 1822 já existiam leis (ordenações) – ver Leis Fundamentais do Reino. Ver também Código de Seabra (1867).
A HISTÓRIA POLÍTICA E CONSTITUCIONAL PORTUGUESA PORTUGUESA É de salientar a relação existente entre história política e história constitucional portuguesa constitucional portuguesa – são os factos decisivos da história política que, direta ou indiretamente, provocam o aparecimento das Constituições, a sua modificação ou a sua queda. Por outro lado, contudo, as Constituições, na medida em que consubstanciam ou condicionam certo sistema político e na medida em que se repercutem no sistema jurídico e social vêm a ser elas próprias, igualmente, geradores de novos fatores políticos. CRONOLOGIA Podemos dividir as constituições entre dois ciclos (o monárquico e o republicano), mas o importante é dividi-los de acordo com a substância, e não tanto o regime. Assim sendo, apresentamos três ciclos: 1.- CICLO LIBERAL E, à distância, as principais diferenças entre essas Constituições (relativas aos poderes recí procos do Rei ou Presidente e do Parlamento e à forma de eleição deste) parecem bem menores do que aquilo que as une (a separação de poderes e os direitos individuais). Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 244]
Fase da Instauração do Liberalismo (1820-1851): Liberalismo (1820-1851): Antagonismo entre liberais e absolutistas; o Depois, entre vintistas (liberais radicais) e cartistas (partidários da Carta o Constitucional); Clima da guerra civil; o Pela feitura e substituição de três Constituições. o Fase da Regeneração (1851-1891): Regeneração (1851-1891): Pacificação à sombra do Ato Adicional de 1852; o Fontismo e desenvolvimento – política de melhoramentos materiais; o Rotativismo político (dois blocos no poder). o Fase de Crise da Monarquia Constitucional (1891-1910): Ultimatum Inglês – humilhação para Portugal (o sonho do Mapa Cor-de-Rosa e o o principio da ocupação efetiva na Conferência de Berlim), que culmina com o centenário de Camões: lembrando o imperialismo. É também preciso pensar no 31 de Janeiro e no Golpe das Caldas, assim como o na criação do Partido Republicano (que vai a eleições). D. Carlos tenta fazer algum endurecimento com a nomeação de João Franco para tomar o pulso e 2
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Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 242/243]
É importante perceber que antes da Revolução Liberal de 1820 e da Constituição de 1822 já existiam leis (ordenações) – ver Leis Fundamentais do Reino. Ver também Código de Seabra (1867).
A HISTÓRIA POLÍTICA E CONSTITUCIONAL PORTUGUESA PORTUGUESA É de salientar a relação existente entre história política e história constitucional portuguesa constitucional portuguesa – são os factos decisivos da história política que, direta ou indiretamente, provocam o aparecimento das Constituições, a sua modificação ou a sua queda. Por outro lado, contudo, as Constituições, na medida em que consubstanciam ou condicionam certo sistema político e na medida em que se repercutem no sistema jurídico e social vêm a ser elas próprias, igualmente, geradores de novos fatores políticos. CRONOLOGIA Podemos dividir as constituições entre dois ciclos (o monárquico e o republicano), mas o importante é dividi-los de acordo com a substância, e não tanto o regime. Assim sendo, apresentamos três ciclos: 1.- CICLO LIBERAL E, à distância, as principais diferenças entre essas Constituições (relativas aos poderes recí procos do Rei ou Presidente e do Parlamento e à forma de eleição deste) parecem bem menores do que aquilo que as une (a separação de poderes e os direitos individuais). Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 244]
Fase da Instauração do Liberalismo (1820-1851): Liberalismo (1820-1851): Antagonismo entre liberais e absolutistas; o Depois, entre vintistas (liberais radicais) e cartistas (partidários da Carta o Constitucional); Clima da guerra civil; o Pela feitura e substituição de três Constituições. o Fase da Regeneração (1851-1891): Regeneração (1851-1891): Pacificação à sombra do Ato Adicional de 1852; o Fontismo e desenvolvimento – política de melhoramentos materiais; o Rotativismo político (dois blocos no poder). o Fase de Crise da Monarquia Constitucional (1891-1910): Ultimatum Inglês – humilhação para Portugal (o sonho do Mapa Cor-de-Rosa e o o principio da ocupação efetiva na Conferência de Berlim), que culmina com o centenário de Camões: lembrando o imperialismo. É também preciso pensar no 31 de Janeiro e no Golpe das Caldas, assim como o na criação do Partido Republicano (que vai a eleições). D. Carlos tenta fazer algum endurecimento com a nomeação de João Franco para tomar o pulso e 2
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as rédeas do poder. Esta tentativa falha e resulta no regicídio (em 1908) que precipita a queda do governo em 1910. República Velha (1911-1917) República Nova (1918) Sidonismo o Nova República Velha (1918-1926) Noite Sangrenta (1921), início de descalabro financeiro. o
2.- CICLO AUTORITÁRIO Vem a seguir, entre 1926 e 1974, a quase obnubilação do Estado constitucional, representativo e de Direito ou, doutro prisma, a pretensão de se erguer um constitucionalismo diferente, um «Estado Novo», um constitucionalismo corporativo e autoritário. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 2447245]
Ditadura Militar (1926-1933): Continua a ser aplicada, ainda que noutros moldes, a Constituição de 1911. o Estado-Novo no seu apogeu (1933-1945): De salientar o início do consulado de Salazar (ainda em 1928). o Estado-Novo em declínio (1945-1961): Ventos democráticos do pós guerra; o Guerra em África; o Invasão de Goa; o Golpe de Santa Maria. o Estado Novo em queda (1961-1974): Fase dominada pelas guerras ultramarinas. o
3.- CICLO DEMOCRÁTICO Com a revolução de 1974, entra-se na época atual – muito recente e já muito rica de acontecimentos, ideologias e contrastes sociais e políticos – em que o país se encaminha para um regime democrático pluralista (ou pluralista (ou de liberalismo político) com tendências descentralizadoras, por um lado, e de Estado social¸ por outro lado. A Constituição de 1976, resultante dessa revolução, significa, em primeiro lugar, o termo daquele interregno e, depois, a abertura para horizontes e aspirações de Estado de Direito democrático. E só nesta altura pode falar-se em constitucionalismo democrático, porque só agora está consignado o sufrágio universal. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 245]
25 de Abril de 1974 a 11 de Março de 1975: Spínola no poder. o 11 de Março de 1975 a 25 de Novembro de 1975. 25 de Novembro de 1975 em diante: Estabilização. o
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A FORMAÇÃO E AS VICISSITUDES DAS CONSTITUIÇÕES Se cinco em seis das Constituições portuguesas brotam em linha reta de revoluções, o modo como são elaboradas revela assinaláveis diferenças. Três são elaboradas e decretadas por assembleias constituintes – as de 1822, 1911 e 1976. Uma é elaborada e aprovada por assembleia constituinte e submetida a sanção real – a de 1838. Outra – a de 1933 – é elaborada pelo Governo e Governo e objeto de plebiscito. plebiscito. E a Constituição de origem não revolucionária – a de 1826 – é escrita e outorgada pelo rei. rei . Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 252]
OS TEXTOS CONSTITUCIONAIS São precedidas de preâmbulo as preâmbulo as Constituições de 1822, 1911 e 1976 por sinal, ou por isso mesmo, as que estão ligadas a revoluções que quiseram fazer vingar maiores viragens históricas. É variável a extensão do articulado; articulado ; 240 artigos, em 1822; 145, em 1826; 140, em 1838; 87, em 1911; 142, em 1933; 312, em 1976. A primeira e a última Constituição são as mais longas. A extensão depende tanto da técnica legislativa usada como dos assuntos elevados à Constituição (em sentido material e em sentido formal) ou dotados de relevância constitucional. Quanto à sistematização, sistematização, um nítida contraposição separa as Constituições de 1822 a 1911 das Constituições de 1933 e 1976. Enquanto que aquelas assentam na organização política, à volta dos «Poderes do Estado» e se dividem em títulos sem coordenação entre si, estas são mais exigentes no tratamento dos grandes temas constitucionais, objeto de partes, por sua vez subdivididas em títulos. Por outra banda, ao passo que a Constituição de 1933 somente compreende duas partes («Garantias Fundamentais» e «Organização Política do Estado»), além de disposições disposições complementares, a Constituição de 1976 compreende quatro partes («Direitos e deveres fundamentais», «Organização económica», «Organização do poder político» e «Garantia de revisão da Constituição«) além de «Princípios fundamentais» (correspondentes aos títulos sobre a «Nação portuguesa» das Constituições anteriores) e «Disposições finais e transitórias». De realçar aqui o progresso conceitual traduzido ainda na definição de «princípios fundamentais» em cada uma das três primeiras partes. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 254/255]
Quanto às matérias reguladas pelas Constituições, Co nstituições, em todas vão encontrar-se;
Referências ao povo, ao território e ao poder político ou soberania, ou tradicionais «elementos» ou condições de existência do Estado, umas vezes definidos por meros critérios formais, outras vezes definidos ou descritos por critérios materiais; O tratamento da forma de Estado e da forma de governo (para empregar as locuções clássicas); A enumeração dos direitos fundamentais e regras sobre o seu exercício, as suas garantias e a sua suspensão em estado de necessidade; ne cessidade; Regras sobre as relações das Igrejas e do Estado; Regras sobre a participação política dos cidadãos, nomeadamente através de eleições (embora de sentido e extensões variáveis); Regras sobre os órgãos de soberania e outros órgãos diretamente criados pela Constituição; Regras sobre as autarquias locais (assim denominadas desde a Constituição de 1933) e a divisão administrativa do território;
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Preceitos sobre as Forças Armadas (em título ou capítulo autónomo, salvo na Constituição de 1911); Preceitos sobre as finanças públicas; A regulamentação da revisão constitucional.
AS ORIENTAÇÕES DE FUNDO Numa primeira observação global das grandes orientações expressas nas seis Leis Fundamentais portuguesas percebemos que têm vários pontos em comum. Têm de comum1:
A reafirmação (e a acentuação mesmo) do caráter soberano do Estado português; A proclamação do princípio da igualdade jurídica; A consagração, embora em moldes diferentes, di ferentes, da liberdade de expressão, de garantias de direito e processo penais, da inviolabilidade do domicílio e de correspondência, do direito de petição, do direito de sufrágio, do direito de acesso aos cargos públicos, da propriedade privada e de certa maneira, do direito à educação; As instituições representativas, sem exclusão, no entanto, de outras formas de participação política dos cidadãos; e o sufrágio individual, e não o sufrágio orgânico, pelo menos sempre na eleição dos deputados; A pluralidade de órgãos políticos, havendo sempre um Chefe de Estado (Rei ou Presidente da República) e uma assembleia; A consagração dos tribunais entre os poderes do Estado ou os órgãos de soberania, a par dos órgãos políticos; A garantia da existência de concelhos conc elhos ou municípios e dos seus órgãos representativos.
Muito claras oferecem-se, do mesmo passo, algumas contraposições2:
Entre Constituições de Estado unitário (todas salvo a de 1822) e Constituição de Estado composto, embora imperfeito (esta); Entre Constituições monárquicas (as de 1822, 1826 e 1838) e republicanas (as de 1911, 1933 e 1976); Entre Constituições com religião oficial do Estado (as de 1822, 1826, 1838) e Constituições com separação da Igreja do Estado (as de 1911, 1933 e 1976); Entre Constituições surgidas sob o princípio da legitimidade monárquica, como é a Carta, e Constituições surgidas sob o princípio da legitimidade democrática, como são as demais; Entre Constituições pluralistas e liberais (em sentido político), como são todas, menos a de 1933, e Constituição autoritária, como é esta; Entre Constituições liberais individualistas (as quatro primeiras) e Constituições de intenções sociais (as de 1933 e 1976); Entre Constituições que se ocupam ex professo da economia (as de 1933 e 1976) e Constituições que não se ocupam (as anteriores);
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Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 257/258] Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 258/259]
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Entre Constituições que estabelecem o sufrágio universal (a de 1976) e Constituição que o não estabelecem (todas as outras); Entre Constituições que estabelecem o sufrágio direto na eleição do Parlamente (todas, salvo a Carta) e Constituições que estabelecem o sufrágio indireto (a Carta até ao Ato Adicional de 1852); e, entre Constituições que prevêem a eleição direta do Presidente da República (as de 1933 e 1976, além da alteração de 1918) e Constituições que prevêem a eleição indireta (a de 1911 e a de 1933, após a revisão de 1959); Entre Constituições com concentração do poder político (a Carta e a Constituição de 1933) e Constituições com desconcentração do poder (as restantes); Entre Constituições que formalmente consagram o princípio da separação de poderes (as liberais e, sob a forma da separação e da interdependência dos órgãos de soberania, a de 1976) e Constituições que o repelem (a de 193, embora reconheça a independência da função judicial); e entre Constituições que atribuem ao Parlamento a plenitude da competência legislativa (as liberais) e outras que apenas lhe atribuem ao primado (as de 1933 e 1976); Entre Constituições com Parlamento unicameral (as de 1822, 1933 e 1976, sem se esquecer, porém, a existência nelas, respetivamente, do Conselho de Estado, da Câmara Corporativa e do Conselho da Revolução) e Constituições com Parlamento bicameral (as de 1836, 1838 e 1911); Entre Constituições que instituem o governo como ´rgão colegial autónomo (as de 1933 e 1976) e Constituições sem desdobramento ou com desdobramento imperfeito do Poder Executivo (as anteriores, que prevêem Secretários de Estado ou Ministros com estatuto próprio); Entre Constituições que instituem fiscalização jurisdicional da constitucionalidade (as de 1911, 1933 e 1976) e Constituições que a ignoram (as anteriores); Entre Constituições puramente representativas quanto a decisões políticas a nível nacional (todas, menos a de 1933, após 1935, e a de 1976, após 1989) e Constituições que admitem referendo (estas, desde essas datas); Entre Constituições com Conselho de Estado (as de 1822, 1826, 1933 e 1976, após 1982) e Constituições sem Conselho de Estado (as de 1838 e 1911).
A INSTABILIDADE CONSTITUCIONAL E A DEFICIÊNCIA DAS I NSTITUIÇÕES PORTUGUESAS Exceto a de 1933 (pelo menos, em parte) as Constituições portuguesas são todas Constituições na linha do Estado de Direito de tipo ocidental. Visam regular o processo político, limitar o poder, agir sobre o sistema social, prescrever os princípios fundamentais dos vários ramos de Direito. Na prática, não têm conseguido (ou não têm conseguido até há pouco) desempenhar plenamente tal função. Dados históricos bem conhecidos, a relativa inaptidão dos projetos políticos nela contidos em face dos problemas concretos do país, os atrasos económicos, sociais e culturais, o relativo pouco enraizamento de práticas de participação política, as dificuldades de institucionalização, o excessivo peso dos militares em consequência de tudo isso, a cisão entre «estrangeirados» e «nacionais» e entre progressistas e tradicionalistas, a prevalências das razões de dissenso sobre as razões de consenso nacional têm travado ou mitigado tal possibilidade. (…)
Será agora diferente, irão, enfim, os hábitos constitucionais radicar-se em Portugal? A experiência, em tantos casos dolorosa dos três primeiros quartéis do século XX, a modernização da sociedade, os progressos da cultura cívica, o desenvolvimento das instituições de Direito público, o
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contexto europeu têm tornado o atual regime político muito mais estável e consensual que todos os regimes precedentes. Pela primeira vez, tem prevalecido o princípio da autoridade dos governantes exclusivamente com base no sufrágio . E a Constituição de 1976, depois de ter ultrapassado não poucas dificuldades, vai-se mostrando uma Constituição normativa (na aceção de Karl Loewenstein), uma Constituição que fundamenta e limita o poder . Todavia, a persistência do revisionismo constitucional – fruto de um positivismo legalista ainda dominante e de obsessão da classe política e dos próprio juristas – pode levar a supor que ainda alguns caminhos têm de ser percorridos até se chagar a um estádio comparável ao das democracias vizinhas. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 260/262]
CONSTITUCIONALISMO PORTUGUÊS E FRANCÊS3 Ao passo que na França – como se referiu atrás – a instabilidade de Constituições se faz num processo dialético, em que os contrastes se vão tornando menos cavados e as sínteses cada vez mais amplas, em Portugal a instabilidade de Constituições não só resulta da instabilidade política e social como até não a apresenta tão claramente como poderia supor-se. Em França, para lá da variedade de regimes políticos, ao longo do século XIX foram-se sedimentando grandes princípios constitucionais, nomeadamente os que constam da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; em Portugal, se do século XIX para o século XX o acordo sobre os fundamentos do constitucionalismo não oferece solidez (assim como no Brasil, em Espanha e na Grécia), ele ainda mais vai ficar afetado pela duração inusitada de uma ditadura que os põe em causa. Compreendem-se aliás, as razões destes discrepantes fenómenos. Enquanto que em França a crise da legitimidade é vencida cerca de 1880 e se dão, simultaneamente, uma estabilidade de classes e um surto do progresso económico e social¸ em Portugal não conseguem ser vencidos todos os fatores de atraso, e só nos nossos dias se alcança, depois de muitos traumas, uma plena legitimidade democrática. Enquanto que em França há fortes instituições políticas a nível central e local, em Portugal elas quase não têm tido tempo para se formar ou são débeis demais para persistir. E, por isso, cada nova Constituição tem sido para os Portugueses um começar ou recomeçar de novo na procura de uma convivência política pacífica, tem sido o ter de fazer tudo desde a base no plano institucional. Porque, obviamente:
A instabilidade e a variabilidade constitucionais são o reflexo dos problemas sociais e políticos dum país; Nenhuma Constituição resolve só por si tais problemas, quanto muito é um adjuvante da sua resolução ou não resolução. Separação de poderes
O princípio da separação, entendido como distribuição das diferentes funções estaduais por diferentes instituições ou órgãos, faz parte do núcleo essencial do Estado de direto. A limitação do poder passa, antes de mais, pela sua divisão. A este propósito é também relevante a separação vertical de poderes, entre Governo central e poder local, a que atrás se faz referência. A separação dos poderes é instrumental na perspetiva da sujeição de todos os poderes ao direito, o que corresponde a uma das ideias matrizes do Estado de direito. Isto significa, de resto, um enorme avanço em relação ao
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Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 261]
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entendimento tradicional da separação de poderes, no âmbito do qual o poder executivo, por exemplo, não era integralmente submetido à lei. Para além desta função de servir o Estado de direito , a separação de poderes exerce também uma função democrática, na medida em que possibilita a representação das diferentes correntes políticas no domínio do Estado e, desse modo, assegurar-lhes um lugar adequado na vontade do Estado. Finalmente, a separação de poderes permite uma divisão do trabalho e, desse modo, uma especialização na prossecução das diferentes tarefas do Estado, através da sua atribuição aos órgãos competentes em razão de matéria Neste sentido, a separação de poderes é ao mesmo tempo um instrumento de divisão e um instrumento de racionalização. Podemos mesmo afirmar que o parlamento é o lugar de deliberação pública, o Governo e a Administração o lugar da reflexão , cabendo-lhes não s+o decidir, mas decidir fundamente. É porque aos tribunais cabe dizer o direito que se justifica a sua independência e a sua subordinação apenas à lei e à Constituição. A Constituição fala não apenas de separação, mas também de interdependência, ou de freios e contrapesos, checks and balances, ou ainda de vínculos. Lições de Introdução à Teoria da Constituição – Miguel Nogueira de Brito [p. 101]
Regimes liberais-democráticos, autoritários e totalitários Ora, os regimes liberais-democráticos ou constitucionais caracterizam-se pela recusa de o Estado adotar uma doutrina abrangente e geral, seja no plano religioso, filosófico, ou moral, mas ao mesmo tempo promover, ou pelo menos não impedir, essa mesma adoção pelos cidadãos; num regime ditatorial ou autoritário o Estado adota uma doutrina abrangente e feral e impede que os indivíduos adotem abertamente doutrinas contrárias; num regime totalitário, não só o Estado promove uma doutrina abrangente e geral como a impõe ativamente a todos os membros da população. Lições de Introdução à Teoria da Constituição – Miguel Nogueira de Brito [p. 109]
CONSTITUCIONALISMO LIBERAL O conteúdo permanece relativamente estável ao longo das Constituições liberais, de 1822 a 1911. Se enriquecimento se verifica é tão só no domínio dos direitos, liberdades e garantias. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 256]
BREVE CRONOLOGIA
1820-1822: fase pós-revolucionária imediata; 1822-1823: primeira vigência da Constituição de 1822; 1823-1826: abolição da Constituição, retorno a regime pré-constitucional; 1826-1828: primeira vigência da Carta Constitucional depois desta ser outurgada por D. Pedro IV; 1828-1834: regime legitimista de D. Miguel (salvo na Terceira) e guerra civil (desde 1832); 1834-1836: segunda vigência da Carta Constitucional; 1836-1838: após a revolução de Setembro (Setembrismo), segunda vigência da Constituição de 1822 (pouco efetiva, porém) e preparação de nova Constituição; 1838-1842: vigência da Constituição de 1838; 1842-1910/11: terceira vigência da Carta Constitucional: 8
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1851-1852: preparação de reforma da Carta, após a Revolução de 1851 (Regeneração); 1852-1910: continuação da vigência da Carta, alterada, designadamente, pelo o Ato Adicional de 1852. 1910-1911: governo provisório da República; 1911-1917: vigência da Constituição de 1911; 1917-1918: governo de Sidónio Pais e alteração da Constituição de 1911 pelo Decreto nº 3997, de 30 de Março de 1918; 1918-1926: segunda vigência da Constituição de 1911. o
CONSTITUIÇÃO DE 1822 A Constituição de 1822 vem a ser preparada pelas Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes 4 de Janeiro de 1821 a 23 de Setembro de 1822, data da sua aprovação e que fica a individualizá-la. O Rei tem de a aceitar e de a jurar, sem nenhuma participação constitutiva na sua feitura. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 252]
A Revolução Liberal de 1820 foi muita apoiada pelo sinédrio (secretista, do tipo maçónico). Serviu-lhe de prenúncio a fuga do rei D. João VI (e de toda a corte) para o Brasil, o grande legado das invasões francesas. É também de salientar o Movimento de Chaves (1817), a primeira tentativa de revolução, liderada por Gomes Freire de An drade.
FONTES E PROJETO
Fonte direta: Constituição de Cádis de 1812; Subsidariamente, as Constituições francesas de 1791 e 1795 (linhas do constitucionalismo francês, atenuadas ou interpretadas, na linha do utilitarismo de Bentham, com procura de equilíbrio entre o poder do Estado e os direitos e deveres individuais).
Apesar de a Constituição de Cádis e de a Constituição portuguesa serem muito próximas, não deixa de haver diferenças assinaláveis entre elas: 1. Na Constituição de Cádis, apenas se encontram preceitos sobre direitos (art. 4º) spbre deveres (arts. 6º e 8º), enão um título autónomo como na portuguesa; 2. Na Constituição espanhola não se consagra em termos gerais a igualdade; ela é consagrada em Portugal (art. 9º); 3. Na Espanha, admitem-se foros especiais para eclesiásticos e militares (arts. 9º e 250º); não em Portugal (art. 9º, 2ª parte); 4. Na Espanha só se admite a religião católica (art. 12º); em Portugal admite-se a estranfeiros o exercício particular dos respetivos cultos; 5. A forma de governo é a monarquia moderada hereditária em Espanha (art. 14º) e a monarquia constitucional hereditária em Portugal; 6. Na Constituição espanhola, ao invés da portuguesa, não se fala em poderes legislativo, executivo e judicial; 4
Eleitas em Portugal, no Brasil, nos territórios portugueses da África e da Ásia, de acordo com uma regra de proporcionalidade entre o número de eleitores e o número de deputados a eleger – o que era bem significativo do princípio da igualdade de direitos e do conceito de Nação que os homens de 1820 adotavam.
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O poder executivo cabe em Espanha ao Rei, sé (art. 16º) e, em Portugal ao Rei e aos Secretários de Estado (art. 30º); O sufrágio para eleição das Cortes é universal, mas indireto em Espanha (arts. 35 e segs.), e com algumas incapacidades (art. 33º), mas direto em Portugal (arts. 37º e segs.); A Constituição de Cádis proíbe a reeleição dos Deputados (art. 110º), não a portuguesa; A liberdade de imprensa tem mais garantias na Constituição de Cádis (arts. 131º, nº24 e 371º) do que na nossa (arts. 7º e 8º); A Constituição espanhola admite duas devoluções da lei às Cortes em caso de veto do Rei (art. 148º), a portuguesa só uma; Na Constituição de 1812 não há representação paritária das províncias da Europa e do ultramar no Conselho de Estado (art. 232º), ao invés do que sucede na Constituição de 1822 (art. 162º); A Constituição espanhola é muito mais extensa (384 artigos) do que a portuguesa (240 artigos). Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 264/265]
Visa-se a criação de instituições políticas moldadas pelo constitucionalismo emergente da Revolução francesa, sem romper com as tradições nacionais. O processo constituinte compreendeu dois momentos: primeiro, foram definidas as «Bases da Constituição» e só depois (até porque as Cortes eram também ordinárias) viriam a ser elaborados e redigidos os preceitos constitucionais. As «Bases» foram aprovadas por Decrete de 9 de Março de 1821, vindo a servir de orientação para os trabalhos da Assembleia e também de Constituição, provisoriamente, e, tendo sido, por isso, juradas pelo Rei e por todas as autoridades tanto em Portugal como no Brasil. Eram trinta e sete princípios agrupados em duas secções, uma sobre «Direitos individuais dos Cidadãos» e outra sobre «a Na ção Portuguesa, sua Religião, Governo e Dinastia». Mais nenhuma assembleia constituinte portuguesa voltaria a usar técnica idêntica. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 266]
O Rei convoca as cortes constituintes, onde se elaboram e aprovam formalmente umas bases da constituição (elaboradas pelas cortes) – inéditas leis de tipo constitucional ou paraconstitucional – que antecedem a Constituição:
Assegura os direitos; Limita o poder do Estado; Defesa da liberdade, segurança e propriedade de cada cidadão; Segurança pessoal dos indivíduos frente ao poder – limitação dos excessos do poder régio; Propriedade como direito sagrado e inviolável; Livre comunicação de pensamentos (liberdade de expressão e imprensa) mas censura eclesiástica a matérias religiosas e morais por parte dos bispos, auxiliados pelo Estado; A lei é igual para todos; União de todos os portugueses, de ambos os hemisférios (ainda união real com o Brasil = ideia de Nação Portuguesa); Religião nacional é a católico apostólica romana.
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DIREITOS FUNDAMENTAIS A Constituição dedica o seu título I – os sues primeiros 19 artigos – aos «Direitos e deveres individuais dos portugueses». É a única Constituição portuguesa que o faz e pode presumir-se que esse título vem a corresponder, na intenção dos constituintes, a qualquer das declarações de direitos francesas. Não se esgota, porém, aí o tratamento da matéria. Como notas principais registem-se: a) O tom proclamatório (ou definitório) de algumas das fórmulas; b) O relevo conferido ao princípio da igualdade (arts. 9º e 12º); c) A ligação entre direitos e deveres e entre liberdades e lei (arts. 2º e 19º, deste constando uma verdadeira enumeração de deveres; d) O desenvolvimento emprestado às garantias (nesse título, no poder judicial e no da fazenda nacional), em contraste com o relativo apagamento das liberdades (de que apenas se prevêem a liberdade de expressão – mas com censura eclesiástica à imprensa – a liberdade de culto particular de estrangeiros e, no art. 239º, a liberdade de ensino); e) A humanização do Direito penal, com a afirmação do principio da proporcionalidade (arts. 10º e 11º, 1ª parte) e com a proibição da tortura, da infâmia, do baraço e pregão, da marca de ferro quente e de todas as penas cruéis ou infamantes (art. 11º); f) A humanização do Direito penitenciário, devendo as cadeias ser «seguras, limpas e arejadas» e servir «para a segurança e não para o tormento dos presos» (art. 208º) e prevendo-se visitas em que nenhum preso deixaria de ser apresentado (art. 209º); g) A necessidade de fundação de escolas, hospitas, casas de misericórdia e outros estabelecimentos de assistência (arts. 237º, 238º e 240º), preludiando incumbências do Estado nos domínios da educação e da saúde; h) O sentido percursos das preocupações ecológicas, ao cometer-se às câmaras municipais a tarega de plantio de árvores (art. 223º. v). Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 266/167]
Liberdade de imprensa mas censura eclesiástica; Direito de propriedade e defesa da iniciativa privada; Liberdade de ensino para ambos os sexos [reparar a presença de um embrião no sentido dos direitos sociais a nível da educação e da assistência]; Liberdade de culto particular para estrangeiros; Mantém-se a escravatura.
Traço fundamental: UNIÃO REAL LUSO-BRASILEIRA – dois Estados com órgãos comuns: Rei, Cortes e um órgão consultivo, o Conselho de Estado. No Brasil existiria uma delegação do poder executivo. A elevação do Brasil à categoria do Reino, em 1815, por D. João viria, depois, a ser resposta tanto a aspirações que nele se faziam sentir como a exigência de política externa, tendo em conta os princípios de legitimidade monárquica que o Congresso de Viena e a Santa Aliança professavam. Surgia, assim, o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. A Constituição de 1822 mantém esta união real luso-brasileira, estabelecendo que a Nação Portuguesa é «a união de todos os portugueses de ambos os hemisférios » e instituindo um sistema complexo de organização do poder. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 269]
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SISTEMA DE GOVERNO A Constituição de 1822 consigna uma estrita forma de governo representativo: «A soberania reside essencialmente na Nação»; porém, «não pode ser exercitada senão pelos seus representantes legalmente eleitos» (art. 26º). Daí que somente à Nação (isto é, ao povo) pertença fazer pelos seus Deputados juntos em Corte s a sua Constituição (art. 27º); e que a lei seja vontade dos cidadãos declarada pela unidade ou pluralidade dos votos de seus representantes juntos em Cortes, precedendo discussão pública (art. 105º); e que a autoridade do Rei provenha da Nação (art. 121º). Apesar de não se estabelecerem diretamente requisitos de caráter censitário, há incapacidades derivadas da condição social das pessoas que tornam o sufrágio restrito. A monarquia transforma-se em «monarquia constitucional hereditária , com leis fundamentais, que regulam o exercício dos três poderes» (art. 29º). Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 270/271]
Poder legislativo concentrado numa assembleia unicameral, as Cortes; Poder executivo na figura do Rei, apoiado por Secretários de Estado e pelo Conselho de Estado. O monarca era então simultaneamente Chefe de Estado e Chefe de Governo (da sua exclusiva responsabilidade), não tendo responsabilidade política perante as Cortes (apenas no caso de atos ilícitos). Esta figura detém o poder de veto suspensivo, superável pela mesma maioria da primeira deliberação, prevêem-se promulgação tácita ao fim se certo tempo e a possibilidade de ultrapassagem da recusa; não há veto das leis de revisão e das decisões políticas das Cortes, tão pouco existe poder de dissolução. Deve ouvir o Conselho de Estado nos negócios graves, em particular obre o veto, a guerra e a paz e os tratados. Todos os decretos do Rei devem ser assinados (referendados) pelos Secretários de Estado. Poder judicial consagra-se a figura do juíz letrado ou de carreira, dotado de garantias de inamobilidade.
É a realização do princípio da separação dos poderes – mas com supremacia das Cortes, pelo seu caráter mais democrático, pela sua estrutura e pelo regime das suas relações com o Rei. (…)
Não se trata de um sistema parlamentar, por causa desse regime de separação e porque os Secretários de Estado são nomeados e demitidos livremente pelo Rei e perante ele responsáveis; a sua responsabilidade perante as Cortes dá-se apenas por atos ilícitos; e, se podem galar e ser chamados a prestar declarações diante delas, não podem estar presentes às votações. Contudo, se a Constituição tivesse podido aplicar-se, de duas uma: ou a separação rígida de poderes instituída teria tornado inviável o governo ou este ter-se-ia convertido em governo parlamentar, por a responsabilidade ministerial passar a ser responsabilidade política (como sucedeu, no século XVIII, em Inglaterra). Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 271/272]
Em nome da santíssima e indivisível trindade...
Todos os portugueses são cidadãos; Soberania reside na nação; 12
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Tripartição de poderes; Supremo Tribunal de Justiça no topo do poder judicial; Existência de escolas para ambos os sexos que ensinavam a ler e a contar (segundo uma visão assistencialista), por uma lógica catecista – religião civil. Casas de misericórdia e hospitais civis.
CARTA CONSTITUCIONAL DE 1826 A Carta Constitucional resulta do exercício do poder absoluto real que, assim, se autolimita. Redigida por D. Pedro IV de 24 a 29 de Abril de 1826, este é «servido decretá-la, dá-la e mandá-la jurar imediatamente pelas Três Ordens do Estado» (como se diz na fórmula de outorga). Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 253]
FONTES E PROJETO
Carta Constitucional Francesa de 1814; Constituição Brasileira de 1824.
A Carta tem, por conseguinte, por fonte a Constituição brasileira, embora com diferenças, explicáveis pelas diversas circunstâncias dos dois países. As mais importantes das diferenças, são as seguintes: 1. A Constituição brasileira abre com a invocação da Santíssima Trindade, não a Carta Constitucional; 2. Na Constituição brasileira, admite-se o culto doméstico e particular de qualquer religião (art. 5º), na Constituição portuguesa só a estrangeiros (art. 6º); 3. Na Constituição portuguesa garante-se a nobreza hereditária (art. 145º, 1º), não na brasileira; 4. Os poderes de Estado são considerados delegações da Nação no Brasil (arts. 11º e 12º), ao passo que a Carta portuguesa diz que o Rei e as Cartas são seus representantes (art. 12º); 5. Em vez de Senado, em Portugal há uma Câmara dos Pares, composta por Pares hereditários e por Pares vitalícios nomeados pelo Rei (arts. 39º e segs.); 6. A denegação de sanções das leis é suspensiva no Brasil (arts. 62º e segs.) e absoluta em Portugal (art. 57º e segs.).
Outorgada e redigida pelo monarca na viagem entre o Brasil e Portugal; Rei conservava para si a maior parte dos poderes; Conservadorismo esclarecido no sentido em que era uma maneira de constitucionalismo condicionada/gerido pelo monarca; Moderantismo; Just millieux na procura do equilíbrio dos poderes.
PRINCÍPIO MONÁRQUICO E PRINCÍPIO REPRESENTATIVO
A outorga feita pelo Rei implica uma mudança de natureza do regime político: de monárquico passa a monárquico constitucional ; ao outorgar a Carta, ao exercer o poder constituinte , o Rei manifesta-se, pela última vez, como Rei absoluto; mas, a partir desse momento, a partir da entrada em vigor da Carta, ele torna-se um poder constituído ao lado de outros poderes constituídos; e, por isso, não lhe pertence poder de revisão constitucional – este pertence às Cortes com sanção real da deliberação de abrir o processo (art. 142º), mas não da lei de revisão (art. 14º). A Carta não proclama o princípio da soberania nacional. Todavia, não só declara expressamente que o
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governo é monárquico, hereditário e representativo (art. 4º) como considera representantes da Nação o Rei e as Cortes (art. 12º). E, conquanto não possa vislumbrar-se uma representação com a mesma natureza (apenas os Deputados, porque eleitos, têm representação político ou representação em sentido moderno – não o Rei e os Pares do Reino), por essa via projete-se a prevalência do princípio representativa em detrimento do princípio monárquico.
DIREITOS FUNDAMENTAIS Aquisições importantes são o princípio da não retroatividade das leis, a liberdade de deslocação e emigração, a liberdade de trabalho e de empresa, a propriedade intelectual, a instrução primária gratuita e, mesmo, o primeiro prenúncio da liberdade religiosa. Promete-se a organização «quanto antes» de um Código Civil e Criminal «fundado nas sólidas bases da Justiça e Equidade». Sinal do espírito de contemporização com o passado é a garantia da nobreza hereditária. O Ato Adicional de 1852 aboliria a pena de morte nos crimes políticos e a Lei de 1 de Julho de 1987 nos crimes comuns. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 277]
A regra é a liberdade, a exceção é a proibição. D. Pedro, por graça de Deus...
Direitos (ver artigo 145) – maior relevo pois maior concentração:
Inviolabilidade dos direitos civis; Princípio da legalidade (é lícito fazer tudo o que não é proibido); Disposição da lei não tem sentido retroativo (principio típico do liberalismo); Liberdade de culto mas respeito pela religião nacional oficial e não ofensa à mesma; Liberdade de deslocação e emigração; Educação primária gratuita ( não é para aplicar ); Liberdade de trabalho e emprensa; Ninguém isento de contribuir para o Estado, mas em proporção; Direito de propriedade; Socorros públicos; Defesa da nobreza hereditária e das suas regalias.
SISTEMA DE GOVERNO
O PODER DO E STADO
Aos três poderes vindos do século XVIII – legislativo, executivo e judicial – a Carte, como a Constituição brasileira, acrescenta um quarto poder, o moderador. E, como estatui o art. 71º, «o poder moderador é a chave de toda a organização política e compete privativamente ao Rei, como Chefe Supremo da Nação, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais Poderes Políticos». Ao lado do Rei, surge um Parlamento bicameral, com Câmara de Deputados eletiva (por sufrágio censitário e indireto) e Câmara dos Pares hereditários e vitalícios. Contudo, esta estrutura viria também a entrar em crise após 1834, a encontrar-se no centro dos debates políticos durante toda a vigência da Constituição e a estar presente nos sucessivos Atos Adicionais. No poder moderar se compreendem, a nomeação dos Pares, a sanção dos decretos das Cortes – não
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podendo a denegação da sanção ser ultrapassado por novo voto parlamentar – a prorrogação ou o adiamento das Cortes, a dissolução da Câmara dos Deputados; a nomeação e a demissão dos Ministros, a suspensão de magistrados, a amnistia (art. 74º). Não é muito nítida, porém a distinção entre estas faculdades e algumas integradas no poder executivo (art. 75º); não se acha aí, decerto uma diferença de natureza. Só os atos do poder executivo carecem de refenda ou intervenção dos Ministros (art. 102º). Mas, quando o Rei se proponha a exercer qualquer das suas atribuições do poder moderador, s alvo a nomeação e a demissão de Ministros, tem de ouvir o Conselho de Estado (art. 110º) – composto por conselheiros vitalícios por eles nomeados (art. 107º). O Ato Adicional de 1885 submetia a referenda os atos do poder moderador relativos à subsistência das Cortes (Art. 7º) e o Ato Adicional de 1895 confirmá-lo-ia (art. 6º). Antes desta revisão, sem dúvida pelo menos à face da letra da Carta, o poder moderador conferia ao Rei proeminência sobre os demais poderes. Isso não significava, porém, que nos fosse razoável assimilá-la a um poder consumptivo e absorvente que pusesse em movimento o estado e que, constantemente o sustivesse. O poder moderador não era um poder anterior e superior à Constituição. Enquadrava-se sim, num complexo sistemático em que, pelo contrário, se definia a divisão e a harmonia de poderes de Estado como «princípio conservador de Direitos dos Cidadãos e o mais seguro meio de fazer efetivas as garantias que a Constituição oferece» (art. 10º, além do art. 144º e do próprio art. 71º). Se, através dele operava o princípio monárquico, este não valia de per si; valia (insistimos) em conjugação com o princípio representativo. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 278/179]
O órgão legislativo passava a ser bicameral, dividindo-se em:
Câmara dos Deputados eleita por sufrágio censitário (de acordo com os rendimentos); Câmara dos Pares, hereditários ou vitalícios (sendo estes últimos nomeados pelo re i).
Introdução do quarto poder, o poder moderador, fulcral para a nova figura de monarca que:
Nomeia os pares vitalícios; Nomeia os ministros; Tem a capacidade de prorrogar as cortes; Detém o poder de dissolução da Câmara dos Deputados; Pode sancionar as leis.
É importante perceber as características do sistema português, percebendo as diferenças entre o Parlamento e o Rei e inserindo o conceito de Monarquia limitada. Uma das questões que mais polémica causou durante as diferentes vigências da Carta foi a d os decretos ditatoriais – uma prática recorrente do Governo era emitir estes decretos com aval de lei em alturas em que as Câmaras estavam fechadas (ora porque estavam de férias, tinham sido dissolvidas,...), sendo que o poder legislativo acabava por pertencer também ao órgão executivo. Dava-se depois que a Câmara seguinte que entra em vigor desculpava o facto do executivo agir à margem da Constituição, através do Bill de Imunidade – ainda não existia fiscalização da constitucionalidade, só chega com a Constituição de 1911 e em grande parte devido a este enorme problema. Este funcionamento do sistema de governo refletir-se-ia, em consequências importantes quanto à produção legislativa: na feitura das leis pelo Governo estando a Câmara dos Deputados dissolvida – os
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chamados decretos ditatoriais ; e na concessão de bills de indemnidade (ou de isenção de responsabilidade, por se tratar de violação de Constituição) pela Câmara a seguir eleita. Os decretos ditatoriais viriam a ser, por seu turno, um dos fatores do aparecimento precoce da fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das leis em Portugal. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 281/282]
O ROTATIVISMO POLÍTICO
Finalmente, este sistema de governo viria a entrecruzar-se com o sistema de partidos, conhecido como de rotativismo ou de alternância de dois partidos, um no poder e outro na oposição, à imitação (distante) da Grã-Bretanha. E os dois partidos viriam a ser, por um lado, o regenerador e, por outro lado, o histórico, e a partir de 1878, o progressista. Apesar de se tratar de partidos pouco estruturados a nível de ideologia e de organização, sem que a sua força parlamentar viesse a ter base no «país real», e, apesar do Rei conservar uma influência há muito desaparecida na Inglaterra, o sistema funcionava razoavelmente bem até 1891, num clima de liberdade política e de progresso material. Já não pôde, porém, resistir aos embates emocionais do ultimato, à crise financeira, à propaganda republicana e às dissidências em ambos os partidos, nem soube transformar-se para integrar, por exemplo, as aspirações da pequena burguesia (como viria a suceder mutatis mutandis em Inglaterra com o partido trabalhista que integrou as classes trabalhadoras no sistema político). E, tivesse, ou não conseguido desenvolvimento institucional, a sua falência foi o sinal da queda próxima do constitucionalismo monárquico no início do século XX. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 282/283]
AS REVISÕES No último período de vigência da Carta Constitucional deram-se várias revisões e reformas constitucionais através dos diferentes Atos Adicionais, dos quais destacamos quatro: ATO ADICIONAL DE 1852 (D. Maria II, com sentido democratizante):
A passagem a direta da eleição dos Deputados (art. 4º); A redução dos limites do sufrágio censitário (arts. 44º e segs.) A sujeição de todos os tratados a aprovação das Cortes antes de serem ratificados (art. 10º); A possibilidade de constituição de comissões parlamentares de inquérito (art. 14º); A admissibilidade de legislação especial e de descentralização nas províncias ultramarinas (art. 15º); A abolição da pena de morte para crimes políticos (art. 16º). Mantém-se a escravatura mas dá-se a abolição da pena de morte nos crimes políticos (art. 16º) [e de todos em 1867, mas reestabelece-se na I Guerra Mundial e prolongase]; Prenúncio do poder de descentralização: leis especiais para algumas colónias.
ATO ADICIONAL DE 1885 (D. Luís, também com sentido democratizante, sendo o único que respeitou rigorosamente o sistema de revisão da Carta):
A redução da legislatura de quatro a três anos (art. 2º); 16
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A reforma da Câmara dos Pares, que, doravante, era constituída por 100 membros vitalícios nomeados pelo Rei, por 50 membros eletivos e pelos pares por direito próprio (art. 6º); Referenda ministerial de certos atos do poder moderador (diminuindo os poderes reais); Limites ao poder de dissolução da Câmara dos Deputados: a proibição de nova dissolução antes de passada uma sessão legislativa sobre a anterior dissolução (art. 7º, 2º); A exigência do transcurso de quatro anos, pelo menos, entre duas revisões constitucionais (art. 8º); Consagração dos direitos de reunião (art. 10º).
ATO ADICIONAL DE 1895 (D. Carlos, num sentido de engrandecimento do poder real através de um Decreto Ditatorial):
Uma nova reforma da Câmara dos Pares, ficando a ser composta por 90 membros vitalícios nomeados pelo Rei e pelos pares por direito próprio (art. 1º); A possibilidade de nomeação pelos Ministros de delegados especiais para tomarem parte na discussão perante as Câmaras de determinados projetos de lei (art. 4º); Uma nova regulamentação da comissão mista paritária de pares e de deputados para o caso de divergências entre as duas Câmaras, e atribuição ao Rei – no exercício do poder moderador – ouvido o Conselho de Estado, da competência para decidir (através de «decretos com força legislativa») havendo empate ou desacordo na comissão (arts. 5º e 6º); Reforma da Câmara dos Deputados e inexistência de limites temporais para dissolução (art. 6º, 3º).
O decreto obteria o bill de indemnidade das Cortes e converter-se-ia na Lei de 3 de Abril de 1896, mas com duas alterações: o número de 90 passou a ser apenas o limite do número de pares vitalícios, e, em vez de ser o Rei a decidir em caso de empate ou desacordo na comissão mista paritária a dar-se a qualquer das Câmaras o poder de pedir a reunião das Cortes Gerais para serem elas a deliberal. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 284]
ATO ADICIONAL DE 1907
O regresso parcial ao sistema da Carta, passando a Câmara dos Pares a ser composta por pares vitalícios sem número fixo (art. 1º); A atribuição ao Supremo Tribunal de Justiça da competência para o julgamento dos crimes de responsabilidade ministerial (art. 2º). Objeto de Decreto de 23 de Dezembro de 1907, a morte do Rei em 1 de Fevereiro de 1908 não permitiu a este Ato ter efetividade, nem vir a ser convalidado pelas Cortes (que estavam ara ser eleitas). Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 284]
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DIFERENÇAS ENTRE O SISTEMA BRITÂNICO E A EXPERIÊNCIA PORTUGUESA DA CARTA5
Na Grã-Bretanha, o Governo só depende do Parlamento; em Portugal, dependia também do Rei; Na Grã-Bretanha, o Governo tem a duração da legislatura; em Portugal era frequente começar antes do termo da legislatura e demitir-se a meio da legislatura seguinte; Na Grã-Bretanha, o Governo tem de ter sempre maioria (pelo menos relativa) na Câmara dos Comuns; em Portugal podia não ter maioria parlamente se sucedesse a anterior Governo a meio da legislatura; Na Grã-Bretanha, o Governo resulta das eleições; em Portugal, o Governo vencia todas ou quase todas as eleições; Na Grã-Bretanha, a dissolução é o meio normal de encerrar a legislatura; em Portugal era o resultado de uma crise política; na Grã-Bretanha a dissolução é para renovar o Parlamento; em Portugal para permitir ao Governo governar; Na Grã-Bretanha prevalece a estabilidade parlamentar e governamental; em Portugal, a instabilidade.
CONSTITUIÇÃO DE 1838 A Constituição de 1838 é elaborada pelas Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes de Janeiro de 1837 a Março de 1838 e sancionada pela Rainha em 4 de Abril de 1838. Tal como a Constituição francesa de 1830, adquire, pois, caráter pactício. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 253]
Compromisso entre o Parlamento e o Monarca, que vigora até 1842, altura em que é reposta a Carta Constitucional de 1826. A soberania reside na Nação e não no Monarca. A aceitação e o juramento de D. Maria II não foram atos meramente formais como os de D. João VI em 1822; foram atos de decisão política, corresponderam a sanção em sentido próprio. O texto de 1838 é dos mais aperfeiçoados, técnica e literariamente, dos textos constitucionais portugueses. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 286]
FONTES E PROJETO
Constituição de 1822; Carta Constitucional de 1826;
Costuma dizer-se que representa uma síntese entre os textos de 1822 e 1826. Na realidade, está mais perto do primeiro do que do segundo, porque reafirma a soberania nacional, restabelece o sufrágio direto e elimina o poder moderador, embora institua uma segunda Câmara (a Câmara dos Senadores) e aumente os poderes do Rei em relação aos atribuídos em 1822. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 286] 5
Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 280/281]
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Constituição francesa de 1830;
A conceção de uma monarquia liberal, baseada na aliança do Rei e da burguesia e à imagem do regime moderado de Luís Filipe em França, tal é o projeto da Revolução de Setembro e da Constituição de 1838. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 286]
Constituição belga de 1831; Constituição brasileira de 1824; Constituição espanhola de 1837.
Mas esse projeto não tinha ainda condições para se impor demoradamente e, cedo, o Decreto de 10 de Fevereiro de 1842 restauraria a Carta Constitucional. Viria a ser a Regeneração, nove anos mais tarde, a fazer aquilo que poderia ter sido a função histórica do setembrismo: a pacificação da sociedade portuguesa e a conciliação dos partidos desavindos, mas numa perspetiva agora mais próxima de 1826 do que de 1822. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 287]
DIREITOS FUNDAMENTAIS Da mesma sorte, alarga o equilíbrio entre as liberdades e as garantias que se tinha procurado na Carta. Como direito novos aparecem a liberdade de associação (art. 14º), liberdade de reunião (art. 14º, 1º ao 3º) e o direito de resistência «a qualquer ordem que manifestamente violar as garantias individuais, se não estiverem legalmente suspensas» (art. 25º). Por outro lado, a liberdade de imprensa recebe um maior impulso e estabelece-se que nos processos respeitantes ao seu abuso o conhecimento dos factos e a sua qualificação competem exclusivamente aos jurados (art. 13º, 2º). Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 287]
Consagração da liberdade de associação, de reunião e resistência (a ordens ilegítimas do poder, muito importante, devido ao fraco desenvolvimento do aparelho de Estado [a atual Constituição da República Portuguesa também reconhece o direito à resistência nos termos do Artigo 21º, contudo este perdeu a sua atualidade e utilidade] ).
SISTEMA DE GOVERNO Órgão legislativo
Lembre-se que na Carta Constitucional a 2ª Câmara era dominantemente aristocrática. Com a Constituição de 1838, dá-se uma vincada abertura do ponto de vista democrático: Câmara do Senadores temporária eleita por sufrágio direto censitário (de o acordo com os rendimentos) e capacitário; Câmara dos Deputados eleito por sufrágio direto não censitário. o
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Órgão executivo
Eliminação do poder moderador; O rei pode sancionar as leis; O rei pode dissolver a Câmara dos Deputados, mas tal obriga a uma renovação de metade dos membros da Câmara dos Senadores.
Ao contrário das duas Constituições anteriores e afastando-se aqui da tradição portuguesa, a Constituição não prevê nenhum Conselho de Estado junto do Rei. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 288]
Temos assim um sistema parlamentar mitigado. Compromisso mais perto da Constituição de 1822 do que da Carta (insistimos), a Constituição setembrista é mais clara do que aquela no sentido de um possível pendor parlamentar mitigado. A eleição por sufrágio direto do Parlamento num contexto de soberania nacional, por um lado, e por outro lado, os poderes institucionais do Rei levaria, assim, a uma monarquia constitucional idêntica à francesa – por sinal, exatamente como viria a funcionar o sistema da Carta após 1852.
CONSTITUIÇÃO DE 1911 A Constituição de 1911 é preparada de Junho a Agosto desse ano. Tem a data de 21 de Agosto, dia em que a Assembleia Nacional Constituinte a decreta. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 253]
A ELABORAÇÃO DA C ONSTITUIÇÃO
A Constituição de 1911 é das quatro produzidas em assembleia constituinte a mais rapidamente elaborada (assim como o período entre a revolução e a entrada em vigor da nova ordem constitucional definita é o mais curto que se regista nas cinco revoluções portuguesas donde saem Constituições). A Assembleia Constituinte, com todos os Deputados, menos um, ligados ao Partido Republica, reuniuse em 19 de Junho de 1911 e (num juridicismo desnecessário) «sancionou» a revolução de 5 de Outubro de 1919 e proclama a república. Nas duas reuniões seguintes elegeu uma comissão incumbida de preparar o projeto de Constituição. O projeto foi apresentado logo na reunião de 3 de Julho e, conforme nele se escrevia, esforçava-se por ser «uma fórmula conciliadora sem ofender os princípios democráticos nem lesar os interesses nacionais». Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 289/290]
FONTES
Constituição suíça de 1891 (por ir ao encontro das aspirações democráticas e descentralizadoras do partido republicano mas ao contrário da Constituição suíça, em Portugal o Presidente da República não detém o poder de dissolução do Parlamento);
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Constituição brasileira (no que deriva sobretudo no princípio de fiscalidade difusa da constitucionalidade mas também o habeas corpus, a equiparação de direitos portugueses e estrangeiros, a cláusula aberta dos direitos fundamentais, o tom laicista, a distinção entre leis e resoluções nos atos do Congresso, o regime do estado de sítio); Prática da III República Francesa.
A Constituição de 1911 pretende levar até às últimas consequências os princípios de 1820-1822, vendo na república a mais perfeita expressão dessas ideias. O projeto político consiste pois, em liberalismo democrático e não ainda em qualquer forma de liberalismo democrático que se condimenta de laicismo e anticlericalismo, por um lado, e em muito menor medida, de municipalismo romântico. Conhecem-se as vicissitudes do regime. Se ele viria a resistir às incursões monárquicas e a vária sublevações e a consolidar-se paulatinamente no plano da simbologia, já no plano das instituições revelaria uma incapacidade notória: preso ao primado do político sobre o social, assente na pequena burguesia citadina sem interessar outros grupos (quando 50% da população vivia da agricultura), desgastado pelo conflito religioso (aberto pela legislação do Governo Provisório), viveria de crise em crise, passando pelo interregno de Sidónio Pais em 1918 6, até à queda em 1926. E outro não seria o destino da Constituição. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 291/292]
DIREITOS FUNDAMENTAIS É preciso desmistificar. Apesar da consagração de inúmeros direitos, a I República não foi um tempo de enormes liberdades, como poderíamos pensar. Existia polícia política, controlo e censura da imprensa, proibição da greve, serviço militar obrigatório, sufrágio restringido... No art. 4º declara-se que essa especificação «não exclui outras garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos princípios que consigna ou doutras leis»: é isto uma cláusula aberta ou de não tipicidade dos direitos fundamentais. Salientam-se na enumeração: a) Um grau mais exigente do igualitarismo jurídico-político decorrente dos princípios republicanos e traduzido na extinção dos títulos nobiliárquicos e das ordens honoríficas (art. 3º, nº 3º); b) A consagração da igualdade religiosa e da igualdade de todos os cultos (art. 3º, nos 4, 6, 7, 8 e 9) embora com ressaibos laicistas e anticlericais (art. 3º, n os 5, 10 e 12), com a sujeição do culto público a lei especial, o ensino neutro mesmo em escolas particulares e o banimento da Companhia de Jesus e de todas as congregações religiosas e ordens monásticas; c) A abolição da pena de morte em qualquer caso – portanto, no que restava, nos crimes militares – e das penas corporais perpétuas (nº 22); d) O habeas corpus (nº 31); e) A inclusão, em sede de direitos fundamentais, do direito de não pagar impostos impostos criados inconstitucionalmente (nº 27); f) A obrigatoriedade do ensino primado elementar (nº11), e não apenas a gratuidade como na Carta Constitucional e na Constituição de 1838; g) Como único sinal de sensibilidade social, e já vindo de constituições anteriores, o direito à assistência pública (nº 29).
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Sem esquecer o de Pimenta de Castro em 1914
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SISTEMA DE GOVERNO Na versão originária da Constituição os órgãos são muito desequilibrados. O Presidente não podia dissolver o Congresso, mas este podia destitui-lo. Órgão legislativo = Congresso da República:
Câmara dos Deputados, eleita por sufrágio direto, com matérias reservadas: Iniciativa sobre impostos; o Organização das Forças Armadas; o Discussão das propostas do poder executivo; o Pronúncia dos membros deste; o Revisão da Constituição; o Prorrogação e adiantamento da sessão legislativa. o Senado, eleito por sufrágio direto, com matérias reservadas: Aprovação das propostas de nomeação dos governadores e comissários da o República para as províncias do ultramar.
Órgão executivo = Presidente da República e Ministros
O Presidente é eleito pelo Congresso, não pode ser reeleito durante o quadrilénio imediato e pode ser destituído, mediante resolução fundamentada e aprovada por fois terços dos membros do Congresso e que claramente consigne a destituição ou em virtude de condenação por crime de responsabilidade; O Congresso não pode ser dissolvido pelo Presidente; Não há veto presidencial, valendo o silêncio do Presidente ao fim do prazo de quinze dias, a contar da data de apresentação, por promulgação.
O muito maior peso do Congresso, o apagamento do Presidente da República e a responsabilidade política dos Ministros – um dos quais é o Presidente do Ministério (art. 53º) – perante as Câmaras (art. 49º e segs.) inculcam na qualificação do sistema de governo como parlamentar. E sistema parlamentar de assembleia ou, noutra perspetiva, sistema de dissolução atípico, por o Presidente não ter poder de dissolução, nem de veto e o Congresso ter ficado com a destituição. Reduzido o presidente a simples figura representativa ou a árbitro com poucos poderes de intervenção, deslocar-se-ia forçosamente o centro da vida política para o Parlamento e para os diretórios partidários. Num período de grande instabilidade política e social, isso até de Presidente da República (apesar de haver um partido «dominante«, o Partido Democrático de António Costa.
A ALTERAÇÃO DE 1918 Durante a ditadura de Sidónio Pais e a pretexto de lei eleitoral, o Governo introduziu importantíssimas modificações constitucionais, embora sem se reportar expressamente ao texto da Constituição. Foi o já aludido Decreto nº 3997, de Março de 1918: Introdução do sufrágio universal para os cidadãos do sexo masculino maiores de 21 anos, independentemente de saberem ler ou escrever (arts. 3º a 5º); Composição do Senado, através de um sistema de dupla representação – territorial e profissional – sendo 49 senadores eleitos pelas províncias e 28 por seis categorias profissionais – agricultura, indústria, comércio, serviços públicos, profissões liberais, artes e ciências (art. 2º), o que foi, por seu turno, a primeira forma de institucionalização constitucional do
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pluralismo social e dos grupos de interesse entre nós; Eleição do Presidente da República por sufrágio direto (art. 116º) e possibilidade de mandato mais longo que quatro anos (art. 121º); Atribuição ao Presidente da República da chefia da força armada de terra e mar, «competindo lhe privativamente empregá-la conforme for conveniente à segurança interna e defesa externa da Nação» (art. 122º); Atribuição ao Presidente da República da competência para «nomear e demitir livremente os seus Ministros e Secretários de Estado» (art. 123º). Era não só a prefiguração de um regime de índole corporativa mas também a opção por um sistema presidencial. E, por isso, para além da rutura feita pelo Decreto nº 3997 (que não respeitou, claro está, as regras de revisão do art. 82º da Constituição), mesmo materialmente não podia falar-se em verdadeira e própria revisão. Era outra constituição material que se pretendia fazer. A alteração não sobreviveu ao assassinato de Sidónio Pais, já que, dois dias depois deste, o Congresso da República suspendeu os arts. 116º e 221º do Decreto até à revisão constitucional prevista no art. II das disposições transitórias deste (Lei nº833, de 16 de Dezembro de 1918). E, assim, a Constituição se 1911 viria a ser reposta na sua integridade.
Sidónio Pais será o Presidente-Rei que tenta resolver a desagregação da república , através da personalização da sua figura. Contudo, acaba por ser assassinado no Rossio e as suas políticas morrem com ele. Em 1921 dá-se uma tentativa de reequilibrar o sistema mas já era tarde; apesar do pluralismo partidário era evidente a hegemonia do Partido Democrático (ou Republicano), mesmo que internamente muito fraccionado. Com a reforma, atribuiu-se ao Presidente da República o poder de dissolução, mas tal ainda gera maior instabilidade. Nos 16 anos da I República existiram 47 governos, sendo a duração média de cada um de apenas 4 meses. Forte radicalismo anticlerical de Afonso Costa: a Lei da Separação da Igreja e do Estado evidencia um claro divórcio entre a classe política e o país real. Este anticlericalismo é claro também com a expulsão de todos os jesuítas logo nos dias 7 e 8 de Outubro de 1910 (através da reposição de uma lei de Marquês de Pombal). É certo que os republicanos defendiam o avanço e o desenvolvimento do país, por exemplo através, nomeadamente, de programas de alfabetização. Contudo a ineficácia é clara quando olhamos para os números:
Nos últimos 10 anos da Monarquia a taxa de analfabetismo diminuiu 9%; Nos 16 anos da I República a taxa de analfabetismo desceu apenas 7%.
Era evidente um enorme desencanto com a República, por parte de vários sectores da sociedade: as mulheres, a igreja, o povo rural, os militares (a questão da guerra é fulcral para perceber esta situação, uma vez que os motivos que levaram Portugal para a I Guerra Mundial foram mais internos do que externos – os principais homens que fazem o 28 de Maio são heróis de guerra , à exceção de Carmona o “General da Espada Virgem”).
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O sistema parecia equilibrado do ponto de vista do desenho institucional (principalmente tendo em conta todos os seus arranjos), contudo, era bastante desequilibrado quando analisado a nível cultural e partidário. A nível económico, apesar de um conturbado período, Afonso Costa consegue o equilíbrio do orçamento – ainda assim, perde o poder para o divórcio entre o governo e o Portugal local. A FISCALIZAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE PELOS TRIBUNAIS Não foi apenas por influência da Constituição brasileira; foi ainda, sobretudo, por razões internas (antes de mais a reação contra os decretos ditatoriais de antes de 1910) que a Constituição reconheceu aos tribunais uma competência de apreciação da constitucionalidade das leis , segundo o modelo americano. E a Lei Fundamental de 1911 foi a primeira Constituição europeia a prever expressamente tal competência, o que pode considerar-se um dos mais positivos elementos da obra constituinte da 1ª república. Dizia o art. 63º: O «Poder Judicial, desde que, nos feitos submetidos a julgamento, qualquer das partes impugnar a validade da lei ou dos diplomas emanados do Poder Executivo ou das corporações com utilidade pública, que tiveram sido invocados, apreciará a sua legitimidade constitucional ou conformidade com a Constituição e princípios nela consignados». Era único e genérico o regime assim criado. Qualquer das partes num processo podia alegar qualquer inconstitucionalidade ou qualquer vício de forma ou de conteúdo. Mas os juízes não podiam conhecêlo oficiosamente (só o adquiriram com o art. 122º, depois 123º da Constituição de 1933). Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 297]
AS REVISÕES AS LEIS DE REVISÃO CONSTITUCIONAL A Constituição de 1911 foi objeto de cinco leis de revisão constitucional , em dois momentos diferentes: em 1916, por causa da guerra; e em 1919-1921, no seu rescaldo e no rescaldo no interregno sidonista de 1918, para aproveitar a experiência de funcionamento das instituições. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 297/298]
REVISÃO DE 1916 (Lei nº 635, de 28 de Setembro desse ano):
Restabelecimento de galardões por feitos cívicos e atos militares; Restauração da pena de morte em caso de guerra com país estrangeiro, enquanto a aplicação dessa pena fosse indispensável e apenas no teatro de guerra.
REVISÃO DE 1919-1921 (Leis nos 854, 892, 1005, 1154 respetivamente de 20 de Agosto de 1919, 22 de Setembro de 1919, 7 de Agosto de 1920 e 27 de Abril de 1921):
Atribuição de subsídios aos membros do Congresso; Conferir de competência do Presidente da República para «dissolver as câmaras legislativas, quando assim o exigirem os interesses da Pátria e da República, mediate prévia consulta do Conselho Parlamentar»;
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Criação do Conselho Parlamentar, formado por membros eleitos pelo Congresso de harmonia com um princípio de representação proporcional de «todas as correntes de opinião e que foi a primeira forma de institucionalização ou de reconhecimento constitucional dos partidos ou dos grupos parlamentares no Direito português; Incremento da descentralização nas colónias e criação do regime de altos comissários; Organização das Câmaras em sessão plenárias e por secções, sendo chamadas às reuniões destas para «expor os seus alvitres» «representantes das classes organizadas e associações interessadas nos assuntos que nas mesmas se discutem». Apesar de extensa e profunda, esta reforma não afetaria o teor do sistema do governo; nem aumentaria a base de apoio ao regime republicano. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 298]
CONSTITUCIONALISMO AUTORITÁRIO CONSTITUIÇÃO DE 1933 A Constituição de 1933 é aprovada em referendo. O Governo elabora um projeto, que dá a conhecer através dos jornais, em 28 de Maio de 1932; e é esse projeto, com algumas alterações, que vem a ser votado em «plebiscito nacional» em 19 de Março de 1933. A data da Constituição é de 11 de Abril, dia da publicação dos resultados do plebiscito. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 253]
A Constituição de 1933 ocupa-se da proteção da família, da opinião pública, das incumbências económicas do Estado, da organização dos interesses sociais, da empresa, do trabalho, da função pública, do domínio público. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 256]
Breve cronologia no plano jurídico-constitucional:
1926-1933: «Ditadura Militar», com latência constitucional, só em 1931 começando a ser preparada nova Constituição; 1933-1974: vigência da Constituição de 1933, ainda que sujeita a várias revisões, de maior ou menor vulto.
ORIGEM : A DITADURA MILITAR A I República encontrava-se fragilizada nomeadamente no que respeita às estratégias e decisões políticas das elites políticas republicanas. Perante a instabilidade político-governamental da I República, a 28 de Maio de 1926, os militares desencadeiam um golpe de Estado que resultou num regime autoritário – A Ditadura Militar.
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O Governo concentrava agora os podres políticos sobre si, poderes esses que anteriormente pertenciam ao Parlamento e ao Ministério – a lei que vigorava eram os “decretos com for ça de lei”.
A ditadura militar portuguesa foi de curta duração e terminou numa ditadura civil. O ATO C OLONIAL O Ato Colonial foi a 1ª Lei Constitucional do Estado Novo. Foi publicado em 1930, na pasta das colónias e fortaleceu a política colonial do Estado Novo. A lei que regia as províncias ultramarinas era distinta da de Portugal embora sob a jurisdição da Constituição que era vigente no país. Afirmava-se:
A missão histórica civilizadora dos portugueses; Vocação Colonial; Mística Imperial.
Artigo 2º: É da essência orgânico da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam, exercendo também a influência moral que lhe é adstrita pelo Padroado do Oriente. Artigo 22º: Nas colónias atender-se há ao estado de evolução dos povos nativos, havendo estatutos especiais dos indígenas que estabeleçam para estes, sob a i nfluência do direito público e privado português, regimes jurídicos de contemporização com os seus usos e costumes individuais, domésticos e sociais, que não sejam incompatíveis com a moral e com os ditames da humanidade.
As disposições do Ato Colonial, aprovado pelo Decreto nº 18 570, foram consideradas matéria constitucional pela Constituição (art. 132º) e publicadas de novo a 11 de Abril de 1933. Continuariam a valer como normas constitucionais não integradas na Constituição instrumental até 1951. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 303]
FONTES E PROJETO PORQUÊ UMA NOVA C ONSTITUIÇÃO? A ideia de alteração da ordem constitucional está presente praticamente desde o dia do golpe militar de Maio de 1926. A Lei de Salazar – António Araújo
A institucionalização do regime exigia a elaboração de um texto constitucional. Existiam várias possibilidades: durante vários anos considerou-se uma revisão profunda à Constituição de 1911 (foram lançados vários decretos com força de leis que comportariam a alteração constitucional), depois optou-se por redigir uma nova Constituição que viria a ser a de 1933. CONSELHO POLÍTICO NACIONAL 26
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Órgão criado pelo Decreto nº 20.643 de 22 de Dezembro de 1931, presidido pelo Presidente da República, constituído por:
Presidente do Ministério; Ministro do Interior; Presidente do Supremo Tribunal de Justiça; Procurador Geral da República; 11 membros de nomeação do Presidente da República de entre homens públicos de superior competência.
É necessário perceber que esta não era uma «comissão de acompanhamento do processo constitucional», cabendo-lhe apenas emitir um parecer sobre o projeto da Constituição, sobre os Códigos Administrativo e Eleitoral e ainda acerca da organização regime corporativo. Q UEM FORAM OS C ONSTITUINTES DE 1933? A tarefa de desenhar o projeto constitucional coube a Salazar, que desenvolveu os trabalhos preparatórios na sua casa na Rua do Funchal, «no meio de grande sigilismo», usando as palavras de Marcello Caetano. Por exemplo, os caricaturistas figuraram Salazar como D. Pedro, outorgando uma nova carta constitucional e não hesitaram em desenhar a Constituição calçando um par de botas, já ao tempo uma marca característica do futuro Presidente do Conselho. A Lei de Salazar – António Araújo
Falando nos constituintes de 1923, são de salientar também as figuras de Quirino Avelino de Jesus e sobretudo a do «técnico constitucional» de Salazar, Domingos Fezas Vital. O PLEBISCITO C ONSTITUCIONAL DE 1933 Antiparlamentarista como se proclamava, não convocou o regime uma assembleia constituinte para apreciar o projeto constitucional ou, eventualmente, outros projetos que fossem apresentados. Simplesmente, o Governo publicou-o nos jornais diários de 28 de Maio de 1932 para efeito de discussão, e, depois, refundiu-o e submeteu-o a «plebiscito nacional ». No dia 19 de Março de 1933 realizou-se o plebiscito que deu lugar à aprovação da Constituição Política do Estado Novo. Publicação dos resultados no Diário do Governo, 1ª Série, nº 83 , de 11 de Abril de 1933:
1.292.864 a favor; 6.190 contra; 30.358 abstiveram-se; 666 nulos. Total de recenseados (Portugal continental, ilhas e colónias): 1.330.258.
Sobre o plebiscito, escreveu Afonso Costa , «uma marcada torpe, em que se contavam como favoráveis os votos dos eleitores que não compareceram!» . 27
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FONTES Conservou-se inclusivamente, quase na redação original, tudo o que se pôde aproveitar da Constituição de 1911, sem perder a oportunidade de resolver as dúvidas a que certas disposições tinham dado lugar. Relatório da Constituição, 1932 - Salazar
A experiência da Ditadura Militar, traduzida parcialmente em leis (no que se refere ao sistema de compressão das liberdades públicas); A Carta Constitucional da Monarquia (pela visão do Chefe de Estado como árbitro moderador) e Constituição de 1911 e as lições extraídas da sua prática ; A Constituição da República Federal da Alemanha votada em Weimar em 1919 (a nível da intervenção Estado na economia, da ordem administrativa e da própria sistematização do texto constitucional); A atenção prestada ao fascismo italiano (na qualificação do Estado como corporativo e na criação de uma Câmara Corporativa).
Escreveu Vidal Moreira «globalmente considerada», a lei básica do «Estado Novo» é um produto original do seu fundador.
Segundo Jorge Mirando podemos reter da Constituição de 1933 um tríplice compromisso entre:
Liberalismo (direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, regimes de suspensão das garantias constitucionais, Assembleia Nacional com poderes legislativos e de fiscalização do Governo, fiscalização da constitucionalidade pelos tribunais) e autoritarismo (regulamentação por lei e sujeição das liberdades a regime preventivo, papel do Estado pera a opinião pública, ordem administrativa autoritária, prevalência do Chefe de Estado sobre a Assembleia Nacional); Democracia (conceito de Nação do art. 3º, princípio da soberania nacional, eleição do Presidente da República e da Assembleia Nacional por sufrágio direto dos cidadãos) e nacionalismo político (regime de território nacional, papel do Estado perante a família, a educação e a religião, instituições de adestramento da mocidade para os seus deveres militares e patrióticos, ultramar); República (formalmente conservado) e monarquia (figura do Chefe de Estado decalcada sobre a do Rei na Carta Constitucional).
Porquê esse compromisso? Por várias razões:
A revolução de 1926 tinha elementos muito diversos e Salazar não chegara ao poder por si só, mas por convite vindo dos militares; A própria filosofia política de Salazar era bastante pragmática; Portugal, situado na periferia da Europa e pouco industrializado, não sofria o influxo direto dos fascismos, e, pelo contrário, tinha relações especiais com a Grã-Bretanha; Em Espanha, em 1933, vivia-se em regime republicano com a Constituição democrática e social de 1931. 28
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A Constituição de 1933 virá a servir de fonte a outras, de regimes autoritários:
Efémera Constituição austríaca de 1934 (de Dolfuss); Constituição brasileira de 1937; Constituição egípcia de 1956.
SISTEMA DE GOVERNO Órgãos de soberania:
Chefe de Estado; Assembleia Nacional; Governo; Tribunais.
CHEFE DE E STADO Chefe de Estado eleito por sufrágio direto dos chefes de família, por um mandato de 7 anos, com funções independentes da Assembleia Nacional.
Responde direta e exclusivamente perante a Nação; Personalidade política inviolável; Independência e solenidade das suas atribuições ; Nomeia e demite os governos; Detentor de verdadeiras funções de chefia de Estado; Convocar a Assembleia Nacional extraordinariamente para deliberar sobre assuntos determinados e adiar as suas sessões; Promulga as leis e resoluções decretadas pela Assembleia Nacional, podendo exercer poder de veto; Dispõe de um Conselho de Estado que emite pareceres, composto por: Presidentes do Conselho, da Assembleia Nacional, da Câmara Corporativa e do o Supremo Tribunal de Justiça, o Procurador-Geral da República e cinco membros vitalícios nomeados pelo Presidente da República. Pode dissolver a Assembleia Nacional quando assim o exijam os interesses superiores da Nação.
PRESIDENTES DA REPÚBLICA NO ESTADO NOVO , 1933-1974 DATA DA ELEIÇÃO 1935 1942
TIPO DE ELEIÇÃO Direta Direta
1949
Direta
1951
Direta
1958
Direta
1965 1972
Indireta Indireta
NOME DO PRESIDENTE Óscar Carmona (eleito sem oposição) Óscar Carmona (eleito sem oposição) Óscar Carmona (candidato da oposição, Norton de Matos, desistiu) Craveiro Lopes (candidato da oposição, Quintão Meireles, desistiu) Américo Tomás (candidato da oposição, Humberto Delgada: 23%)
Américo Tomás Américo Tomás 29
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ASSEMBLEIA NACIONAL Assembleia Nacional eleita, cuja legislatura durava 4 anos, mas a sessão legislativa 3 a 4 meses e meio.
Pronunciar-se sobre os grandes problemas nacionais; Definir os princípios das leis: fazer leis, vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis; Autorizar o Governo a cobrar as receitas do Estado e a pagar as despesas públicas; Fiscalizar a administração pública (sobretudo em termos das contas públicas); Aprovar as convenções internacionais; Declarar o estado de sítio.
As eleições de deputados eram “quase religiosas” mas o caráter ditatorial, não liberal e não
democrático, estava bem batente não só nas limitações ao direito de voto e na ausência de condições para a oposição atuar livremente.
ELEIÇÕES LEGISLATIVAS E PRESIDENTES DO CONS ELHO NO ESTADO NOVO , 1933-1974 DATA DA ELEIÇÃO
1934 1938 1942 1945 1949 1953 1957 1961 1965 1969 1973
LISTAS DA OPOSIÇÃO
LEGISLATURA
Não Não Não Sim (alguns grupos) Sim (em Castelo Branco e Portalegre) Sim (Lisboa, Aveiro e Porto) Sim (Braga) Sim (em 8 círculos) Não (desistem antes das urnas) Sim (em todo o país) Não (desistem antes das urnas)
I (90 deputados da UN) II (90 deputados da UN) III (90 deputados da UN) IV (120 deputados da UN) V (120 deputados da UN) VI (120 deputados da UN) VII (120 deputados da UN) VIII (130 deputados da UN) IX (130 deputados da UN) IX (130 deputados da UN) IX (150 deputados da UN)
PRESIDENTE DO CONSELHO Oliveira Salazar Oliveira Salazar Oliveira Salazar Oliveira Salazar Oliveira Salazar Oliveira Salazar Oliveira Salazar Oliveira Salazar Oliveira Salazar Marcelo Caetano Marcelo Caetano
A partir de 1945 as leis eleitorais foram modificadas. Salazar vai ao encontro das pressões da opinião pública estrangeira: as listas únicas nacionais (apresentadas num único círculo nacional e eleitas pelo sistema maioritário de lista) são substituídas por listas “concorrenciais” distritais, ou seja, em que em cada província era eleita a lista que tivesse tido mais votos, a qual ganhava todos os lugares. Passou-se, portanto, a aplicar o sistema maioritário de lista em vários círculos plurinominais, geralmente de base distrital. - A Câmara Corporativa Com a Constituição de 1933 morre o bicameralismo do Parlamento, mas nasce um órgão deliberativo, típico da República Corporativa (palavras de Marcello Caetano), a Câmara Corporativa. Órgão consultivo da Assembleia Nacional e depois também do Governo, mas altamente desprezado a nível político – ainda que de alto valor técnico.
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A Câmara Corporativa composta dos representantes dos interesses sociais em todos os seus aspetos de ordem administrativa, moral, cultural e económicas, que se destina a estudar e a dar parecer. A Câmara era composta por procuradores das Corporações, das autarquias locais, da Igreja Católica, das Universidades e instituições de assistência e de Administ ração Pública. Funcionava por secções e subsecções, que, em reuniões privadas, emitiam parecer em nome da Câmara. As Constituições Portuguesas – Marcello Caetano
GOVERNO Ao Governo, nomeada pelo Presidente da República cabe:
Gerência dos negócios públicos; Execução das leis e resoluções da Assembleia Nacional; Referenda dos atos do Presidente da República; Elaboração de regulamentos, instruções e decretos que se tornem necessários para aplicação dos princípios.
Em atenção aos superiores interesses do Estado e às exigências da sua administração confere-se aos governos a faculdade de elaborar decretos-leis no caso de urgência e necessidade pública, devendo todavia estes decretos ser presentes para ratificação à Assembleia Nacional. Relatório Constituição, 1932 - Salazar
De salientar que o Conselho de Ministros só se reúne quando o seu Presidente ou o Chefe de Estado o julguem indispensável. - Presidente do Conselho Nomeado diretamente pelo Chefe de Estado, escolhe e propõe os seus colaboradores, para nomeação por parte do mesmo.
Só ele responde perante o Presidente da República pela política geral do Governo. Dirige e coordena a atividade de todos os ministros (que a ele respondem); Substitui o Presidente da República quando necessário – aconteceu em 1951, altura em que Salazar foi simultaneamente Presidente do Conselho e Presidente Interino da República Portuguesa.
TRIBUNAIS
Estabelece os princípios tradicionais da independência do poder judicial; Oferece as normas de ordem geral para reger as circunscrições políticas e administrativas e as autarquias locais ( numa orgânica de Estado de natureza profundamente municipalista e popular ).
Em suma, a ideia de Constituição subsiste como base de ordem jurídica e fundamento da legalidade (não tanto da legitimidade) dos governantes e dos seus atos. Mas a sua efetividade seria bem reduzida,
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até porque ao projeto objetivado nos seus preceitos se sobreporia o projeto realmente executado, fruto de condicionalismos de facto e da própria natureza do regime. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 308]
A SUPREMACIA DO PODER EXECUTIVO Porém, urge precisar que estamos muito distantes das teorizações sobre o Estado de Direito (liberal e representativo) elaboradas por Montesquieu. Se o Estado orgânico não pode ser fracionado entre partidos, muito menos poderá sê-lo entre diferentes poderes. No novo ordenamento constitucional, o executivo prevalece sobre os outros dois poderes. E, além disso, é em volta do executivo que se articulam o poder judiciário e legislativo, aliás, o própria poder legislativo entra quase completamente na esfera do executivo, que é dotado de um amplo poder de legislar através de decretos-leis. Sistema Político Português – [organizado por] André Freire
BICEFALISMO DO EXECUTIVO O longo consulado do Dr. Oliveira Salazar na Presidência do Conselho deslocou para este cargo a chefia efetiva do Governo e reduziu a Presidência da República a uma magistratura representativa e eventualmente arbitral. As Constituições Portuguesas – Marcello Caetano
Segundo Jorge Miranda a Constituição de 1933 estabelece um sistema de governo representativo simples de chanceler. O sistema de governo de 1933, se não é, evidentemente parlamentar (antes militantemente antiparlamentar), tão pouco pode qualificar-se de presidencial ou sequer ser reputado de presidencialismo bicéfalo. Deve qualificar-se de representativo simples de chanceler. Não é parlamentar, por tudo quanto acaba de se referir e por Presidente da República e Governo não estarem sujeitos a votações na Assembleia Nacional, como expressamente se estipula (arts. 78º a 111º). Não é presidencial, porque este sistema, conforme se viu a propósito dos Estados Unidos, implica separação e equilíbrio entre Presidente da República e Parlamento e tal não se verifica na Constituição portuguesa. Para além do mais, bastaria recordar que em sistema presidencial não existe dissolução do Parlamento pelo Presidente. É, sim, um sistema representativo simples, porque a pluralidade de órgãos governativos fica encoberta pela concentração de poderes no Chefe de Estado – considerado o mais direto representante da comunidade nacional e de quem dependem quer a Assembleia Nacional quer o Governo (que ele nomeia e demite livremente). E sistema de chanceler, porque o Presidente da República não governa, está acompanhado de um Governo com competência própria (pela primeira vez no Direito constitucional português) e não pode agir sem o Presidente do Conselho de Ministros, que referenda quase todos os seus atos e perante o qual respondem politicamente todos os Ministros (citados art s. 82º e 97º). Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 318]
Há, contudo, uma deslocação efetiva do sistema de governo (subvertendo, de algum modo, a letra da lei fundamental) evidencia também o caráter falacioso da ideia de separação de 32
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poderes com enorme concentração de poderes no Presidente do Conselho, subalternizando que o Chefe de Estado, quer o poder legislativo (Assembleia Nacional). - A União Nacional Forma-se oficialmente em 1930. Acaba com a ideia de partido passando agora a existir um único partido, a partir de 1934. Funções:
Gestão do poder Consagrar a união entre Estado e Sociedade Civil.
O voto individual passou a ser substituído pelo voto colectivo. A União Nacional teve um papel importante no controlo político e administrativo central e local; na união de tendências políticas que apoiavam o regime; no fornecimento de quadros políticos. Tinha um carácter cívico e não partidário. O específico da conceção de Salazar sobre a organização constitucional seria a ideia de um Estado representativo sem partidos, assente, por um lado, numa postura orgânico-corporativa sobre a essência da Nação e sobre o papel do cidadão e, por outro lado, uma crítica radical aos malefícios do sistema de partidos. Um «Estado sem partidos», em contraposição quer ao Estado pluripartidário ou pluralista ocidental, que ao Estado de partido único dos regimes soviéticos e fascistas, eis o que se pretenderia. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 311]
ESTADO ORGÂNICO E CORPORATIVO Na base da Constituição de 1933 está a ideia da. reestruturação da sociedade com um tipo de política que superasse o liberalismo, o parlamentarismo e o partidarismo. O Estado português passaria a ser uma República corporativa segundo o princípio da interferência de todos os elementos estruturais da nação (família, Igreja e autarquias locais) na administração, com todas as ambiguidades políticas inerentes, acabando por transformar o corporativismo numa ditadura. O Estado resulta de uma sociedade política que engloba comunidades naturais (família, freguesia, conselho, profissão…) e associações voluntárias, com interesses próprias a respeitar, embora devendo
ser disciplinados pelo interesse geral. As Constituições Portuguesas – Marcello Caetano
A obsessão pela ordem era a estrela polar de um regime que se dizia baseado nas leias naturais da organização humana.
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Esta «ordem social e económica» repousa na solidariedade (a todo o custo) dos interesses das classes sociais e em nome da qual:
Se proíbem as greves e o lock-out (art. 39º); Se afirma a função social da propriedade, do capital e do trabalho (art. 35º); Se admite a associação do trabalho à empresa (art. 36º)
Num Estado orgânico os indivíduos existem apenas enquanto átomos que formam a Nação, que por sua vez se funde com a sua elite política.
DIREITOS FUNDAMENTAIS Marcello Caetano: “Os interesses dos indivíduos deviam de todas as formas considerar -se submetidos aos supremos interesses morais da Nação Portuguesa ” – O que não foi teorizado de forma explícita – ideia de Estado ético. Os interesses dos indivíduos estavam subordinados aos interesses do coletivo . A ditadura reintegrou o povo português na plena posse dos seus destinos de nação livre. Foram arredados do seu caminho todos os obstáculos políticos que o tolhiam, todos os embaraços viciosos que não o deixaram viver e prosperar. Fez-se um solene apelo que foi escutado, às virtudes da raça, às forças generosas, e latentes que dormiam no coração de cada bom português. Relatório da Constituição, 1932 - Salazar
No tocante aos direitos fundamentais, na Constituição de 1933 sobressaem: a) A consagração expressa, pela primeira vez entre nós, do direito à vida e à integridade pessoal (Art. 8º, nº1), embora se admitisse – na linha da Constituição de 1911, após 1916 – a pena de morte em caso de beligerância com país estrangeiro e para aplicação no teatro de guerra (art. 8º, nº11); b) O caráter autoritário do regime dos direitos, liberdades e garantias , com leis especiais a regular o exercício das liberdades de expressão, de ensino, de reunião e de associação, «devendo, quanto à primeira, impedir preventiva ou repressivamente a perversão da opinião pública na sua função de força social» (art. 8º §2º); c) Mas caráter autoritário que não se converte em totalitário , em virtude da limitação da soberania pela moral e pelo direito (arts. 4º e 6º, nº1); e, que, apesar do disposto sobre a ordem administrativa, se compagina com a primeira consagração do direito a recurso contencioso dos funcionários públicos (art. 108º, nº4, in fine); d) O aparecimento, enquadrados no projeto corporativo de vários direitos sociais – proteção da família (art. 13º), associação do trabalho à empresa (art. 36º), direito à educação e à cultura (arts. 42º e 43º) e, a partir de 1951, direito ao trabalho (art. 8º, nº 1-A) e incumbência de defesa da saúde pública (art. 6º, nº 4º) – bem como da contratação coletiva (art. 37º), a acrescentar à função social da propriedade (citado art. 35º); e) A atribuição quer individual quer institucional dos direitos fundamentais por incumbir ao Estado definir e fazer respeitar os direitos e garantias resultantes da natureza ou da lei, em favor dos indivíduos, das famílias, das autarquias locais e das corporações morais e económicas (art. 6º, nº1, 2ª parte e ainda arts. 13º, 37º, 42º e 45º a 48º); f) A par da obrigatoriedade do serviço militar (art. 54º), a incumbência do Estado de promover, e auxiliar instituições civis que tivessem por fim “adestrar e disciplinar a mocidade em ordem a prepará-los para cumprir os seus deveres militares e patrióticos ” (art. 56º).
Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 308/310]
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MECANISMOS DE REPRESSÃO Era fulcral manter a ordem e a disciplina social. Como o fazer?
Através do uso de meios coercivos e repressivos.
O Estado Novo herda os aparelhos repressivos já constituídos pela Ditadura Militar e reforçaos:
Ditadura intelectual: Censura Prévia (“lápis azul”); Ditadura militar: PVDE/PIDE.
MECANISMOS DE PROPRAGANDA/ENQUADRAMENTO DAS MASSAS Para além da União Nacional, a unidade da Nação era também conseguida através de outras instituições:
Legião Portuguesa; Mocidade Portuguesa; FNAT – Federação Nacional para a Alegria no Trabalho; Obra das Mães para a Educação Nacional.
De modo a:
Enquadrar as massas para obter a sua adesão regime; Moldar mentalidades; Difundir os valores do Estado Novo.
BREVES APONTAMENTOS A ECONOMIA A Constituição de 1933 é a primeira portuguesa que confere à economia um tratamento especifico e global - pauta-se pelo dito nacionalismo e dirigismo económico, no sentido da autarcia. O artigo 6º incumbe o Estado de coordenar, impulsionar e dirigir todas as atividades sociais, fazendo prevalecer uma justa harmonia de interesses, dentro da legitima subordinação dos particulares ao geral .
Este nacionalismo económico levou à adoção de medidas protecionistas e isolacionistas de natureza fiscal, tarifária, alfandegária, para Portugal e suas colónias, que tiveram grande impacto, sobretudo até aos anos sessenta – altura em que o principio de « orgulhosamente sós» deixou de funcionar, também a nível económico. A IGREJA E O ESTADO O processo constitucional de 1933 infirma por completo a ideia de Salazar como um «agente» passivo, dócil e obediente da Igreja Católica. No início da sua carreira, pode ter sido uma criação da Igreja, mas, como nas histórias de ficção, a criatura libertou-se do criador.
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A Lei de Salazar – António Araújo
O Estado Novo não se transformou em Estado confessional como o Franquismo, ainda assim:
Criação da Ação Católica Portuguesa (ACP) em 1933 pelo episcopado que seria por muitos anos uma garantia de uma autonomia cooperante com o Salazarismo e as suas instituições, particularmente as corporativas. Concordata entre a Santa Sé e Portugal em 1940. O último ponto da legislação republicana a ser abolido com a concordata foi o divórcio, doravante proibido para casamentos religiosos. Pouco tempo depois, uma revisão da constituição incluía já a religião católica como “religião da nação portuguesa”.
A sociedade moderniza-se mas o regime não consegue pôr em dia os ponteiros do seu relógio. - Até a Igreja, Concílio do Vaticano II: A polémica visita de Paulo VI a Fátima no 50º
aniversário das aparições. MARCELLO CAETANO E O REFORMISMO FRACASSADO Em 1968, quando Marcelo Caetano chega ao poder, herda com uma pesada herança do Estado Novo. Marcelo tenta liberalizar o regime e implementa um conjunto de reformas de modo a conceder aos portugueses a “liberdade possível” . Era o “evoluir na continuidade” . 2 Fases: 1. “Primavera marcelista” – Tentativa Liberalizadora; 2. Intensifica a repressão e a censura. Todos quantos me conhecem ou tenham lido as minhas obras sabem qual é o meu conceito de liberdade. (…) A liberdade individual não pode ser avaliada fora do meio social em que os cidadãos vivem e relativamente ao qual têm deveres imperiosos a respeitar e a cumprir. A liberdade não é o capricho (…) não é a licença do procedimento anárquico: é a faculdade que se
reconhece às pessoas de obedecer às leis mais do que aos homens , o direito de só se ser obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa em consequência da lei geral. Discurso de Marcello Caetano à Assembleia Nacional a 2 de Dezembro 1970
AS REVISÕES REVISÃO DE 1935-1938
Redução da força da Assembleia Nacional; Ampliação de poderes do Governo e da Câmara Corporativa.
Segundo a Lei nº 1885, de 23 de Março de 1935:
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A necessidade de referenda, não de todos os Ministros, mas tão só do Presidente do Conselho e dos Ministros competentes; O Presidente do Conselho tem a possibilidade de submeter a referendo as alterações feitas à Constituição; É obrigatória a consulta da Câmara Corporativa quanto a tratados internacionais submetidos à Assembleia Nacional.
REVISÃO DE 1945 (Lei nº 2009, de 17 de Setembro de 1945):
Aumento do número de Deputados de 90 para 120; Estabelecimento da paridade de poderes legislativos entre a Assembleia Nacional e o Governo: competência do Governo para fazer decretos-leis em circunstâncias normais, e não só em caso de urgência e necessidade pública.
REVISÃO DE 1951 (Lei nº 2048, de 11 de Junho de 1951)
Integração do Ato Colonial na Constituição; Religião católica considerada como religião da Nação Portuguesa; O não poderem apresentar-se a eleição presidencial os candidatos que não oferecessem garantias de respeito e fidelidade aos princípios da Constituição, sendo esta idoneidade política verificada pelo Conselho de Estado (virá a ser abolida em 1959); Reconhecimento constitucional do direito ao trabalho e da incumbência de defesa da saúde pública.
REVISÃO DE 1959 (Lei nº 2100, de 29 de Agosto de 1959)
Substituição do modo de eleição do Presidente da República – É agora eleito por sufrágio indireto (Eleito por um colégio eleitoral restrito formado pelos membros da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa); Aumento do número de deputados de 120 para 130; Reafirmação dos princípios do Ato Colonial de 1930.
REVISÃO DE 1971 (Lei Nº 3, de 16 de Agosto de 1971) Se a revisão feita em 1971 foi a mais extensa e amais debatida de todas as revisões, ela foi insuficiente para transformar o regime e, para transformando-o, poder dar-lhe esperança de sobreviver. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 325]
Orienta-se num espírito favorável aos direitos fundamentais (época Marcelismo); Proibição expressa de descriminações fundadas na raça e, quanto à mulher, no bem da família; Define as províncias ultramarinas como regiões autónomas; Substituição do Presidente da República, enquanto a sua ausência, pelo Presidente da Assembleia Nacional.
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A PRÁTICA CONSTITUCIONAL E A NATUREZA DO REGIME
A prática da Constituição de 1933 consistiu, em resumo, no seguinte: a) Numa estabilidade e numa continuidade sem paralelo na Europa – não tanto das instituições (como se veria no final) quanto das pessoas e dos cargos: a. Desde 1933, somente houve três Presidentes da República e dois Presidentes do Conselho; b. A Assembleia Nacional só foi dissolvida uma vez, em 1945, e por motivos conjunturais, não por causa de qualquer conflito político; c. Não se deram verdadeiramente senão remodelações do Governo, nunca Governos novos; d. Raras foram as crises políticas de quais houve notícia. b) Na compreensão ou mesmo no apagamento das liberdades de expressão (com censura prévia à imprensa), de associação, de reunião e de emigração e de certas garantias de segurança pessoal, a par da existência de uma polícia política e de tribunais políticos. «O não se ter, na vigência da Constituição de 1933, feito uso das garantias de estado de sítio mostra de facto as garantias individuais se acham à mercê do Governo»; c) No não reconhecimento da Oposição ou da organização da Oposição fora dos períodos eleitorais, em contraste com a existência, embora que sempre ténue de uma «associação cívica» - qualificável ou não de partido único – de apoio ao regime e de cuja comissão central foi presidente, salvo entre 1968 e 1970, o Presidente do Conselho; d) No caráter não substantivo ou «plebiscitário« das eleições (5 para Presidente da República e 10 para a Assembleia Nacional), antes de 1945, não servindo as eleições – apesar de constitucionalmente imprescindíveis e sempre realizadas nos prazos prescritos – para legitimar governantes, mas sim para outros fins (para o regime, preparação de quadros, propaganda ou animação política, conhecimento dos adversários, aparência democrática para o estrangeiro; para a Oposição, oportunidade de presença, possibilidade de se fazer ouvir sem todas as restrições à liberdade do resto do tempo, lançamento de certas ideias-força). Daí e por não se ter chegado ao sufrágio universal, um número reduzido de eleitores recenseados e de eleitores efetivamente votantes; e) Na ambiguidade das realizações corporativas – entre corporativismo de associação e corporativismo de Estado (com bem pouca liberdade dos organismos corporativos perante o Governo, dentro do qual houve um «Ministério das Corporações») e entre corporativismo paro e corporativismo subordinado (com incompleta atribuição de funções políticas aos referidos organismos), avultando em toda a estrutura corporativa a fragilidade e a pulverização dos sindicatos nacionais; f) Na aplicação da Constituição económica, não em moldes de economia sujeita a fins éticos e políticos superiores aos seus agentes, no âmbito de uma autêntica integração corporativa (como defendiam os doutrinadores do corporativismo) mas sim em moldes de capitalismo autoritário, administrativo e protecionista, mas apostado na conservação do que no desenvolvimento; 38
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g) No completo domínio da vida política pelo Presidente do Conselho , fruto do «longo consulado do Dr. Oliveira Salazar», e na redução da Presidência da República a «uma magistratura representativa e eventualmente arbitral», tendo sido o cargo de Chefe de Estado desempenhado sempre por militares, por períodos muito extensos (quase como se fossem vitalícios) e os candidatos escolhidos pela União Nacional ou pela Ação Nacional Popular; só não terá sido assim no final do regime, quando o Presidente da República teve de substituir Salazar, por doença, e condicionou o novo Presidente do Conselho, Marcello Caetano; h) Na subalternização da Assembleia Nacional não apenas pelo apagamento jurídico dos seus poderes mas também por outros fatores: a. Pela sua composição homogénea, tendo sido eleitos, exclusivamente, Deputados propostos pela União Nacional ou pela Ação Nacional Popular; b. Pelo largo número de funcionário Deputados; c. Pelo escasso trabalho desenvolvido; d. Pelo caráter académico ou de mero interesse local de todos os discursos e debates; e. Pela ocupação da Assembleia quase somente com propostas enviadas pelo Governo; f. Em contraste com esta subalternização e com a do Conselho, na importância não despicienda da Câmara Corporativa, quase elevada a 2ª Câmara (na medida em que os seus pareceres, de bom nível técnico, eram geralmente acolhidos pela Assembleia e pelo Governo). Tal importância, assim como a tendência conservadora imperante na Câmara explicam-se pela representação de interesses e de grupos de pressão e pelo avultar da tecnocracia num regime sem pluralismo partidário. Em nossa opinião, apesar das similitudes com regimes fascistas e do uso, que sempre achou necessário, de técnicas fascistas, o sistema salazarista não foi um fascismo. Não assentava num partido ideológico de massas que se tivesse apoderado do Estado. E não lhe presidia uma conceção totalitária: se tinha da Nação (mas não do Estado) uma visão transpersonalista e não democrática – era a Nação historicamente definida em vez de Povo, o titular último da soberania – nem por isso lhe sacrificava aquilo que tinha por «liberdades essenciais», nem deixava de proclamar, como se sabe, a vinculação do Estado à moral e ao direito (art. 4º da Constituição). Estava-se, antes, em face de um regime conservador, preocupado com fazer viver «habitualmente» os portugueses no respeito das instituições tradicionais e não sem nostalgia do miguelismo. Uma dessas instituições tradicionais era precisamente a militar: vindo de um levantamento das Forças Armadas, o regime transformara-se num regime civil, embora sempre de base militar, e viria a cair, quando, por causa das convulsões ultramarinas entre 1961 e 1974m essas mesmas Forças Armadas lhe retiraram o apoio. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 332]
CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO CONSTITUIÇÃO DE 1976 Por último, a Constituição de 1976 é elaborada e decretada pela Assembleia Constituinte reunida de 2 de Junho de 1975 a 2 de Abril de 1976. Como elemento anómalo verifica-se a celebração de duas
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«Plataformas de Acordo Constitucional» entre os partidos políticos e um órgão provisório do poder, o Conselho da Revolução, destinadas a predeterminar certas matérias da organização política; mas, conforme se verá, as Plataformas são compromissos políticos sem valor jurídico. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 253]
Por seu turno, a Constituição de 1976 contém normas sobre os símbolos nacionais, o estado de emergência, o direito de asilo, a extradição e a expulsão, o Provedor de Justiça, o direito à intimidade, à informática, o direito de antena, a objeção de consciência, as comissões de trabalhadores, a liberdade sindical, a autogestão, as cooperativas, a segurança social, o ambiente, a qualidade de vida, a habitação, o urbanismo, o planeamento familiar, a maternidade, a infância, a juventude, os deficientes, a velhice, o acesso às Universidades, a educação física e os desportos, a proteção do consumidor, os setores de propriedade dos meios de produção, o plano, as atividades delituosas contra a economia nacional, os investimentos estrangeiros, a agricultura, os circuitos comerciais, os princípios gerais de direito eleitoral, os partidos e o direito de oposição, as regiões autónomas, as regiões administrativas, as organizações populares de base eleitoral. Manual de Direito Constitucional (Tomo I) – Jorge Miranda [p. 256/257]
Breve cronologia no plano jurídico-constitucional:
1974-1976: fase pós-revolucionária imediata, com processo de formação de nova Constituição; 1976-…: regime constitucional (em que poderá proceder -se à demarcação de duas subfases – até à primeira revisão constitucional, em 1982, e depois desta).
A REVOLUÇÃO DE 1974 E A CONSTITUIÇÃO - TRÊS GOLPES FUNDAMENTAIS : Com efeito, das proclamações difundidas no próprio dia 25 de Abril de 1974 e do programa do movimento revolucionário, o “ Movimento das Forças Armadas ” logo constou o anuncia público da convocação, no prazo de doze meses, de uma Assembleia Nacional Constituinte, a eleger por sufrágio universal, direto e secreto, e se estabeleceu que uma vez eleitos pela Nação a Assembleia Legislativa e o novo Presidente da República “a ação das Forças Armadas seria restrin gida à sua missão específica de defesa da soberania nacional”.
De harmonia com a ortodoxia constitucional democrática, o Movimento das Forças Armadas propunhase devolver o poder ao povo num prazo relativamente curto; e nisto se distinguia de quase todas as revoluções militares do nosso tempo. Deveria ser o povo, através da eleição dos económico-social em que desejaria viver – porque “a vontade do povo é o fu ndamento da autoridade dos poderes públicos e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto…” (artigo 21, nº 3, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, também invocada logo na noite e seguir à revolução). Mas o processo que se desenrolaria até à Constituição – e que duraria dois anos – viria a ser marcado por uma turbulência sem precedentes na história portuguesa, derivada de condicionalismo de vária ordem (descompressão política e social imediatamente após a queda de um regime autoritário de 48 anos, descolonização dos territórios africanos feita em 15 meses e após ter sido retardada 15 anos, luta pelo poder logo desencadeada) e traduzida, a partir de certa altura, num conflito de legitimidades e de projetos de revolução. Dessas circunstâncias resultariam uma Constituição elaborada muito sobre o acontecimento, simultaneamente sofrendo o seu influxo e reagindo sobre o ambiente político e social, o confronto ideológico de que a Assembleia Constituinte se moveu; e a índole de compromisso – de “compromisso histórico” – do texto votado, indispensável em face do pluralismo partidário surgido e projetado numa Assembleia Constituinte, em que nenhum partido tinha maioria absoluta.
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A Originalidade e as Características da Constituição – Jorge Miranda [p. 255/256]
25 de Abril de 1974; 28 de Setembro de 1974 – Manifestação da minoria silenciosa, de apoio ao então Presidente da República, General Spínola; 11 de Março de 1975 – Tentativa falhada de golpe militar organizada pelo general António Spínola, ex-presidente da República, aliado à Força Aérea e ao Exército de Libertação de Portugal (ELP), por oposição ao Comando Operacional do Continente (COPCON) e à Liga de Unidade e Acção Revolucionária (LUAR), na tentativa de pôr fim ao governo de Vasco Gonçalves, defensor de um regime socialista avançado. A missão foi abortada e o golpe foi dado como falhado. 25 de Novembro de 1975 – Golpe militar que pôs fim à influência da esquerda militar radical no período revolucionário iniciado em Portugal com o 25 de Abril de 74. Esta acção militar constituiu uma resposta à resolução do Conselho da Revolução de desmantelar a base aérea de Tancos e de substituir alguns comandantes militares. Os partidários do designado "Poder Popular" ocupam então várias bases militares, bem como meios de comunicação social. Este contra-golpe foi levado a cabo pelos militares da ala moderada, na qual se enquadrava Vasco Lourenço, Jaime Neves e Ramalho Eanes. Consequentemente, o almirante Pinheiro de Azevedo permaneceu no poder enquanto primeiro-ministro do VI Governo Provisório e demitiram-se alguns militares entre os quais Otelo Saraiva de Carvalho. O 25 de Novembro traduziu militarmente aquilo que a nível político se vivera no Verão Quente de 75 dando origem a uma crescente estabilidade permitida pelo reforço do pluripartidarismo e da Assembleia Constituinte, que se tornou visível com a redação da primeira Constituição verdadeiramente democrática: a Constituição da República de 1976.
Os pactos MFA-Partidos e a sua evolução
13 de Abril de 1975 (poucos dias antes das eleições constituintes) – 1º Pacto MFAPartidos: a força dos militares, tendo em conta o seu papel no golpe, é enorme e por isso conseguem um lugar reservado no poder (até 1982, não esquecer a importância do Conselho da Revolução); 25 de Abril de 1975 – eleições para a Assembleia Constituinte; 26 de Fevereiro de 1976 – 2º Pacto MFA-Partidos: devido aos resultados obtidos na eleição da Assembleia Constituição, os partidos têm mais força para reequilibrar o pacto. 2 de Abril de 1976 – aprovação da Constituição, com todos os partidos a favor exceto o CDS.
Facilmente concluímos que a Constituição de 1976 é compromissória sendo que por um lado assume as bases da tradição jurídica ocidental, ao mesmo tempo que defende uma passagem para o socialismo (perceber a importância e grandeza do sector público, ainda que acompanhado por um sector privado e um cooperativo). Apesar da preponderância deste caminho para o socialismo , defende-se a propriedade privada e institui-se o mercado. 41
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O compromisso entre os partidos e as forças armadas torna ainda mais singular a feitura da Constituição que se marca pela confluência e pela coexistência.
FONTES E PROJETO
Constituição italiana de 1948 e Constituição de Bona de 1949 (no que se refere às regras gerais sobre direitos, liberdades e garantias); Influência marxista (no que respeita os direitos económicos, sociais e culturais: a nacionalização de empresas nos setores básicos da economia – acentuação anticapitalista); Países de parlamentarismo racionalizado e de semipresidencialismo (no que toca às relações entre governo e parlamento e à conceção do Presidente da República); Constituição turca de 1961 (na qual subsiste o papel das Forças Armadas, como em Portugal subsiste o Conselho da Revolução); Constituição francesa de 1958 (pelas semelhanças encontradas entre a Comissão Constitucional portuguesa e os tribunais constitucionais e Conselho Constitucional francês); O provedor de justiça equivale ao omdudsman nórdico.
Mas a Constituição de 1976 ostenta algumas marcas de originalidade:
Não só no dualismo de liberdades e garantias e de direitos económicos, sociais e culturais mas também no enlace entre eles, operado, designadamente, pelo artigo 17º; Na constitucionalização de novos direitos e da vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias; Na receção formal da Declaração Universal dos Direitos do Homem enquanto critério de interpretação e integração das normas sobre direitos fundamentais; Não só na proclamação do direito ao ambiente mas também na atribuição ao cidadãos ameaçado ou lesado da faculdade de pedir a cessação das causas de violação e a respetiva indemnização; No desenvolvimento emprestado à matéria da comunicação social e na constitucionalização dos direitos dos jornalistas; Na proibição do lock-out ; No apelo à participação dos cidadãos, associações e grupos diversos nos procedimentos legislativo e administrativos; ou seja, à democracia participativa; No tratamento sistemático prestado às eleições, aos partidos, aos grupos parlamentares e ao direito de oposição; Na redobrada preocupação com os mecanismos de controlo recíproco dos órgãos do poder e na constitucionalização do ombudman (o provedor de Justiça); Na coexistência de semipresidencialismo a nível de Estado, sistema de governo parlamentar a nível de regiões autónomas e sistema diretorial a nível dos municípios; No sistema de fiscalização da constitucionalidade, com as quatro vias referidas, e no caráter misto de fiscalização concreta, com competência de decisão de todos os
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tribunais e recurso, possível ou necessário, para a Comissão Constitucional, primeiro, e depois para o Tribunal Constitucional; Na extensão da norma definidora de limites materiais de revisão constitucional.
A organização económica desenvolve-se:
Através da coexistência (concorrencial ou conflitual, como se queira) de três setores de propriedade dos meios de produção – público, cooperativo e privado, sendo ainda o primeiro subdividido em público estadual, coletivo ou autogestionário e comunitário; Através da coordenação entre mercado (definido e m termos de “equilibrada concorrência entre as empresas”) e plano (imperativo só para o setor público estadual); Através da tensão entre o reconhecimento da iniciativa privada e o desenvolvimento da propriedade social.
A organização política, por seu turno, consiste em quatro grandes relações:
Entre unidade do Estado, por uma banda, e autonomia político-administrativa dos Açores e da Madeira e poder local, por outra banda; Entre democracia representativa e democracia participativa; Entre Presidente da República e Assembleia da República, um e outro baseados no sufrágio universal e direto; Entre eles e o Governo e um órgão ainda radicado na legitimidade revolucionária recebida na Constituição, o Conselho da Revolução.
Fiscalização da Constituição:
Abrange todos os tipos possíveis – de ações e de omissões, abstrata e concreta, preventiva e sucessiva, concentrada e difusa – e cabe aos tribunais, ao Conselho da Revolução e a um órgão específico de comunicação entre aqueles e este, a Comissão Constitucional.
Em partes A Constituição refere-se numa primeira fase aos direitos, e só depois à economia. Este não era o desejo do Partido Comunista Português que, de acordo com a ideologia que defende, posiciona a parte económica antes da dos direitos fundamentais (que se dividem nos direitos clássicos, económicos, sociais e culturais) – a infraestrutura que suporta a supraestrutura.
SISTEMA DE GOVERNO De certo modo, pode afirmar-se que, ao pretender pôr fim a um regime nascido à sombra de uma figura e tutelado por ela (o Presidente do Conselho de Ministros, Oliveira Salazar), o 25 de Abril trouxe consigo uma exigência de reequilíbrio de poderes entre Presidente, Parlamento e Governo. (…) O sistema de governo a edificar deveria, assim, possuir um Presidente mas não um Presidente “presidencialista”, à maneira de Sidónio Pais, um Parlamento, mas não um Parlamento “parlamentarista”, como o da I República, e um Governo, mas não um Governo “forte” ao estilo
autoritário do regime deposto.
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Os Poderes Presidenciais nas Constituições Grega e Portuguesa – António de Araújo, Constantino Tsimaras [p. 394]
Os aspetos fundamentais a considerar eram estes:
Existência de quatro órgãos políticos de soberania: Presidente da República: o Atribuição ao presidente da República, também presidente do Conselho da Revolução, sobretudo de poderes relativos à constituição e ao funcionamento de outros órgãos do Estado e das regiões autónomas; Poder de promulgação e veto; Poder de declaração do estado de sítio ou do estado de emergência; Sujeição a referenda ministerial apenas de certos atos do Presidente da República; Eleição direta do Presidente da República, com candidatos propostos por grupos de cidadãos e em data nunca coincidente com a da eleição dos Deputados; Exigência de maioria absoluta para a eleição do presidente da República; Mandato presidencial de cinco anos e inelegibilidade do presidente para terceiro mandato consecutivo e durante o quinquénio subsequente a segundo mandato consecutivo; Poder de dissolução da Assembleia da República, verificados certos requisitos, designadamente parecer favorável do Conselho da Revolução; Formação do Governo “tendo em conta os resultados el eitorais”, seguido da apreciação do seu programa pela Assembleia da República. Conselho da Revolução: o Condicionamento dos principais atos do Presidente da República pelo Conselho da Revolução. Assembleia da República: o Atribuição à Assembleia da República, parlamento unicameral, sobretudo do primado da função legislativa e de funções de fiscalização do Governo e da Administração pública; Eleição dos Deputados à Assembleia da República segundo o sistema proporcional e o método de Hondt e com candidaturas reservadas aos partidos; Legislatura de quatro anos; Incompatibilidade das funções de deputado e de membro de governo. Governo: o Consideração do Governo como órgão de condução da política, sendo o Conselho de Ministros presidido pelo Presidente da República apenas a solicitação do Primeiro-Ministro;
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Responsabilidade política do Governo perante ambos os órgãos, não sendo, porém, necessária a confiança positivamente afirmada (pelo menos, da Assembleia) para que ele subsistisse, e bastando a não desconfiança explícita, exceto quando fosse o próprio Governo a pedir um voto de confiança.
CAMINHOS POSSÍVEIS DE UM DIPLOMA ENVIADO AO PRESIDENTE DA R EPÚBLICA : O QUE PODE O PRESIDENTE FAZER ? Promulgar, dando-se depois a referenda ministerial , existindo a possibilidade de fiscalização sucessiva por parte do Tribunal Constitucional. A falta de promulgação implica a inexistência jurídica destes atos; Vetar politicamente (o seguimento difere dependendo da origem do diploma): Governo (vem para ser aprovado como decreto de lei ): o O decreto de lei “cai” mas pode ser transformado em proposta de lei ; Assembleia (vem para ser aprovado como lei ) pode: o Nada fazer; Confirmar através da aprovação por maioria (em regra a maioria absoluta dos deputados, ou a maioria de 2/3 dos deputados, no caso dos diplomas mais importantes, por exemplo, leis orgânicas, outras leis eleitorais, diplomas que digam respeito às relações externas ,…) . Neste cenário o Presidente da República tem que promulgar, podendo suceder-se a fiscalização sucessiva por parte do Tribunal Constitucional. Enviar para fiscalização preventiva no Tribunal Constitucional, órgão jurisdicional, que pode declarar o diploma: Inconstitucional, sendo que o Presidente da República tem que o vetar o juridicamente; Não inconstitucional, sendo que depois disto o Presidente pode ainda o escolher entre: Vetar politicamente; Promulgar. Notas importantes: Se um diploma legislativo tem origem: Fora da Assembleia: proposta de lei; o Na Assembleia: projeto de lei. o Se vai do Governo para o Presidente da República, mesmo promulgado, o diploma não serei lei mas sim decreto de lei; Não cabe ao Tribunal Constitucional, como órgão jurisdicional, declarar a constitucionalidade dos diplomas – tal colocaria este órgão numa posição de constante revisão da Constituição.
COMPARAÇÃO COM A V REPÚBLICA FRANCESA Entre as semelhanças contavam-se:
Conceção do presidente como órgão dinamizador das instituições; Conceção do governo como órgão de condução da vida política geral do país; Poder de dissolução do Parlamento; 45
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Triplicidade dos atos sujeitos a referenda; Eleição presidencial direta.
As diferenças apresentavam-se, porém, mais significativas:
Em Portugal, o governo respondia tanto perante o presidente como perante o parlamento e o primeiro-ministro podia ser demitido pelo presidente; não em França, juridicamente (mas politicamente, sim, salvo em período de “coabitação”); Em França, o presidente preside ao Conselho de Ministros e nomeia os funcionários civis e militares; em Portugal só podia e pode presidir ao Conselho de Ministros a pedido do primeiro-ministro (o que assegura uma mais completa separação entre os dois órgãos); Em França, o presidente tem poder de decisão de referendo e pode tomar medidas extraordinárias em estado de necessidade; não em Portugal (muda em 1989); Em Portugal, existia um órgão de condicionamento do presidente da República; não em França [com a extinção do Conselho da Revolução em 1982, esta diferença diluise]; Em França, o mandato presidencial era (em 1976) de sete anos e admite-se reeleição indefinida; em Portugal era e é de cinco anos e com limites à reeleição [com a revisão francesa de 2000, o mandato presidencial é reduzido a 5 anos].
A diversidade não impedia a qualificação do sistema português como semipresidencial, tendo em conta o conhecido caráter heterogéneo destes sistemas.
DIREITOS FUNDAMENTAIS Assim, o tratamento dos direitos fundamentais assenta na afirmação simultânea dos direitos, liberdades e garantias e dos direitos económicos, sociais e culturais, numa dicotomia com proeminência dos primeiros (como é próprio do Estado social de direito). A Originalidade e as Características da Constituição – Jorge Miranda [p. 259]
As notas básicas do tratamento dos direitos fundamentais na Constituição s ão as seguintes:
A prioridade dentro do sistema constitucional e o desenvolvimento da regulamentação, com princípios gerais comuns às grandes categorias de direitos previstos; A extensão do elenco, sem se excluírem outros direitos provenientes de convenção internacional ou de lei; A perspetiva universalista, exibida no princípio de equiparação de portugueses e estrangeiros, nas garantias da extradição e da expulsão, na previsão do estatuto do refugiado político e, após 1982, no respeito dos direitos do homem como princípio geral das relações internacionais; A preocupação tanto de enumerar os direitos quanto de definir o seu conteúdo e fixar as suas garantias e as suas condições de efetivação;
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A contraposição entre direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e culturais, com colocação em títulos separados; A previsão entre os direitos, liberdades e garantias não só dos direitos clássicos mas também dos direitos novos, como as garantias relativas à informática, o direito de antena e a objeção de consciência; A colocação da propriedade, não já a par das liberdades, mas sim dentre de direitos económicos, sociais e culturais; A inserção da iniciativa económica privada, até 1982, na parte II relativa à organização económica e, a partir de 1982, no título de direitos económicos, sociais e culturais; e o apoio dado à iniciativa privada; O aparecimento como direitos fundamentais de direitos dos trabalhadores e das suas organizações.
AS REGIÕES AUTÓNOMAS E O PODER LOCAL A Constituição de 1976 proclama, entre os “princípios fundamentais ”:
Autonomia das autarquias locais; Descentralização democrática da administração pública; Erige os Açores e a Madeira em “regiões autónomas dotadas de estatutos políticoadministrativos próprios”; Inclui a autonomia das autarquias locais e a autonomia político-administrativa do Açores e da Madeira entre os limites materiais da revisão constitucional; Salienta como um dos fins da autonomia destas regiões “a participação democrática dos cidadãos”; Declara que “a organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais”.
O Estado Português continua unitário, sem embargo de ser também descentralizado – ou seja, capaz de distribuir funções e poderes de autoridade por comunidades, outras entidades e centros de interesses existentes no seu seio. Descentralizado na tríplice dimensão do regime políticoadministrativo dos Açores e das Madeira, do poder local ou sistema de municípios com outras autarquias de grau superior e inferior e ainda de todas aquelas medidas que possam caber na “descentralização democrática da administração pública”. A Originalidade e as Características da Constituição – Jorge Miranda [p. 267]
Não se adotou uma regionalização política integral do país, mas todos os elementos característicos do Estado regional estão presentes na Constituição. As regiões autónomas, como entidades políticas que são, gozam de extensos poderes e direitos:
Definidores do âmbito essencial da autonomia e traduzidos na prática de atos próprios para a prossecução do “interesse regional ”; Correspondentes à participação em atos do Estado; Têm garantias constitucionais adequadas para os defender; Dispões de órgãos de governo próprio – uma assembleia regional eleita por sufrágio universal e um governo perante ela responsável, em moldes de sistema parlamentar. 47
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A FISCALIZAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE Devido, porém, à subsistência do Conselho da Revolução até à primeira revisão constitucional, não pôde o legislador constituinte estabelecer unicamente a regra da fiscalização jurisdicional, conforme postulariam os puros princípios constitucionais. Assim, como em virtude da participação do Conselho na função de garantia e da tradição de fiscalização difusa, não pôde encarar decididamente a hipótese da criação de um tribunal constitucional. A Constituição manteve o controlo difuso vindo da Constituição de 1911 e criaria o primeiro órgão específico de controlo, a Comissão Constitucional, embora ao Conselho da Revolução coubesse, entre outras competências, a de declaração de inconstitucionalidade de normas jurídicas com força obrigatória geral. Em 1982, na primeira revisão constitucional, a Comissão daria lugar a um Tribunal Constitucional e este ficaria com todos os poderes até então assumidos pelo Conselho da Revolução, entretanto extinto. A Originalidade e as Características da Constituição – Jorge Miranda [p. 268]
O sistema português caracteriza-se por três notas principais:
Pluralidade de modalidades de controlo – de inconstitucionalidade por ação e por omissão, concreto e abstrato, preventivo e sucessivo; Conjugação do controlo concreto e do controlo concentrado; Extensão, em certos termos, do redime de fiscalização de constitucionalidade de à fiscalização de legalidade (por violação de leis de valor reforçado) e à fiscalização da conformidades de normas legislativas com normas de convenções internacionais
Aos tribunais em geral compete apreciar a conformidade com a Constituição das normas aplicáveis aos casos que tenham de decidir; mas, verificados certos pressupostos, é possível ou necessário recorrer para o Tribunal Constitucional. Quer dizer: ao contrário do que sucede na quase totalidade dos países europeus, os tribunais portugueses, todos eles, não só conhecem c omo decidem das questões de inconstitucionalidade; mas, se lhes cabe assim a primeira palavra na fiscalização concreta, a última cabe ao Tribunal Constitucional, por via de recurso (e não por via de incidente). A Originalidade e as Características da Constituição – Jorge Miranda [p. 269]
REVISÕES A Assembleia da República, é o órgão competente para alterar a Constituição, por maioria de dois terços dos deputados em efetividade de funções, observados certos re quisitos temporais e procedimentais e no respeito dos limites materiais correspondentes aos princípios estruturantes fundamentais. Não é possível – a Constituição exclui-o expressamente – referendo constitucional. De 1976 até hoje sucederam-se sete revisões constitucionais, das quais três bastante vastas (as de 1982, 1989 e 1997) e quatro, relativamente curtas, mas de grande significado, ligadas a tratados internacionais (as de 1992, 2001, 2004 e 2005). A Originalidade e as Características da Constituição – Jorge Miranda [p. 269]
A Constituição da República Portuguesa consagra quatro tipos de limites à possibilidade de revisão constitucional:
Limites temporais consagrados no artigo 284º (só pode ser revista de x em x tempo); 48
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Limites formais consagrados no artigo 285º e seguintes (tem que ser feito formalmente por uma lei constitucional); Limites materiais consagrados no artigo 288º (algumas matérias não podem ser revistas); Limites circunstanciais consagrados no artigo 289º (impossibilidade de revisão quando decretado estado de sítio ou de emergência).
REVISÃO DE 1982
A redução das marcas ou expressões ideológico-conjunturais vincadas de 1975 e, em particular, a supressão das referências ao socialismo em todos os artigos, salvo no 2º (a ponto de ser poder questionar se o socialismo tinha ou conservara, doravante, qualquer sentido autónomo); O aperfeiçoamento dos direitos fundamentais e a clarificação da Constituição económica em linha de uma economia pluralista; A extinção do Conselho da Revolução e o termo das funções políticas das Forças Armadas; Em conexão com essa extinção, o repensar das relações entre o Presidente da Republica, a Assembleia da Repúblico e o Governo, com reflexos no sistema político, e a criação de um Tribunal Constitucional; A criação de um órgão consultivo do Presidente da República, o Conselho de Estado, e do Conselho Superior de Defesa Nacional, e uma completa reformulação do Conselho Superior da Magistratura.
Consequentemente, alterações a nível do sistema de Governo :
A dissolução da Assembleia da República passa a ser livre, salvo parecer não vinculativo do Conselho de Estado, apenas com limites temporais (não pode ser dissolvida nos primeiros seis meses de legislatura da Assembleia nem nos últimos seis meses do mandato presidencial); Limitação da faculdade de demissão do governo, que agora só pode ser demitido quando tal se torne necessário para assegurar os regular funcionamento das instituições democráticas.
REVISÃO DE 1989
Supressão quase completa das menções ideológico-proclamatórias que ainda restavam após 1982; Aprofundamento de alguns direitos fundamentais, mormente os dos administrados; Supressão da regra de irreversibilidade das nacionalizações posteriores a 25 de Abril de 1974, e, em geral, aligeiramento da parte da organização económica; Reformulação parcial do sistema de atos legislativos, com criação de uma categoria de leis reforçadas pelo procedimento, as leis orgânicas [cujo veto só pode ser ultrapassado por maioria de dois terços]; Introdução do referendo político a nível nacional, embora em moldes muito prudentes; 49
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Modificação de três alíneas do artigo 290 (agora 288) sobre limites materiais da revisão constitucional.
REVISÃO DE 1992 A assinatura em 7 de Fevereiro de 1992, em Maastricht, de um tratado institutivo de uma “União Europeia” conduziria a uma terceira revisão da Constituição de 1976, tendo em conta a desconformidade de algumas das suas cláusulas com normas constitucionais. A Originalidade e as Características da Constituição – Jorge Miranda [p. 271]
Introdução do nº 6 ao artigo 7º (sobre relações internacionais): “Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização do princípio da coesão económica e social, convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à construção da uni ão europeia ”; Consagrou-se a possibilidade de atribuição, em condições de reciprocidade, de capacidade eleitoral a cidadãos de países membros da União Europeia residentes em Portugal na eleição de Deputados por Portugal ao Parlamento Europeu; Alterou-se o preceito sobre o Banco de Portugal, para permitir a adoção da eventual moeda única europeia; Passou a prever-se a competência do Parlamento para “acompanhar e apreciar” a participação de Portugal no processo da união europeia, à qual corresponde a obrigação do Governo de lhe prestar, em tempo útil, as informações necessárias para esse efeito; Passou a distinguir-se entre revisão constitucional ordinária e revisão constitucional extraordinária – aquela efetuada ao fim de cinco ou mais anos após a última revisão ordinária e esta podendo realizar-se a todo o tempo por assunção de poderes de revisão por quatro quintos dos Deputados em efetividade de funções.
REVISÃO DE 1997 (necessidade de revitalização do sistema político)
Desenvolvimento da matéria dos direitos fundamentais e das correspondentes incumbências do Estado; Relativa acentuação do papel da iniciativa privada dentro da organização económica; Desconstitucionalização de vários aspetos do sistema político; Reforço de mecanismos de participação dos cidadãos (participação no planeamento urbanístico, referendos nacionais, regionais e locais, iniciativa popular, possibilidade de círculos uninominais, candidatura independentes às eleições locais); Desenvolvimento dos poderes das regiões autónomas (no plano legislativo, tributário, administrativo e europeu), bem como das autarquias locais; Aumento dos poderes formais da Assembleia da República e aumento do número de matérias que exigem maioria qualificada de aprovação; Reforço do Tribunal Constitucional (com novas competências relativas aos partidos e às assembleias políticas e maiores garantias de independência dos juíz es).
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REVISÃO DE 2001 A semelhança do que acontecera em 1992, também em 2001 foi desencadeado um processo de revisõ constitucional por cause um tratado: o tratado constitutivo do Tribunal Penal Internacional assinado em Roma em 1998. A Originalidade e as Características da Constituição – Jorge Miranda [p. 273]
Adoção de uma fórmula genérica (no novo artigo 7º, nº7) semelhante à adotada já noutros países: “Portugal pode, tendo em vista a realização de uma justiça internacional que promova o respeito pelos direitos da pessoa humana e dos povos, aceitar a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, nas condições de complementaridade e demais termos estabelecidos no Estatuto de Roma; Matérias respeitantes à União Europeia, à língua portuguesa, às garantias de inviolabilidade do domicílio e ao direito à greve de agentes de força de segurança.
REVISÃO DE 2004 Na perspetiva da chamada “Constituição europeia ” e ainda antes não só da assinatura do respetivo tratado mas também da conferência intergovernamental em que ele seria aprovado (!), o Parlamento efetuaria uma sexta revisão constitucional. A Originalidade e as Características da Constituição – Jorge Miranda [p. 273]
Aditamento de um nº4 ao artigo 8º do seguinte teor: “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”; Alterações a respeito da entidade reguladora da comunicação social; Grande alargamento dos poderes legislativos regionais; Formalização da regra da limitação do número de mandatos admitido aos titulares de cargos políticos executivos.
REVISÃO DE 2005 Por último, ainda por causa da integração europeia, em 2005 efetuar-se-ia uma sétima revisão constitucional. A Originalidade e as Características da Constituição – Jorge Miranda [p. 273]
O referendo em Portugal – por razões históricas, de receio de manipulações plebiscitários – não versa diretamente sobre as leis e os tratados: num primeiro momento, o povo decide se deve ou não ser aprovada esta ou aquela lei ou este ou aquele tratado; e depois, o órgão competente, vinculado pelo resultado, aprova ou não aprova. Mas no caso dos referendos relativos à União Europeia passou agora a
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