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caso de reprodução no exterior (art. 104 da Lei n. 9.610/98). ■ 1ª edição – 2009 / 5ª edição 2015 Produção digital: Geethik ■ CIP – Brasil. Catalogação na fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Greco, Leonardo Instituições de processo civil, volume I / Leonardo Greco. 5ª ed. – Rio de Janeiro : Forense, 2015. Inclui Bibliografia ISBN 978-85-309-6416-0 1. Processo civil - Brasil. 2. Direito processual - Brasil. I. Título. 09-0911.
CDU: 347.91/.95(81)
Esgotadas as quatro primeiras edições, a emergência de um novo Código de Processo Civil impôs uma atualização cuidadosa do conteúdo. O principal objetivo desta obra é possibilitar o aprendizado do Direito Processual Civil aos estudantes e àqueles que terão os primeiros contatos com a disciplina. Alguns capítulos foram incluídos ou complementados, não só para atender às diretrizes que inspiraram a elaboração do novo Código, mas também para suprir lacunas verificadas nas edições anteriores. Aproveito para agradecer a receptividade que tiveram as quatro primeiras edições, na esperança de que também esta venha a merecer a mesma acolhida. Rio de Janeiro, março de 2015. LEONARDO GRECO
A origem desta obra foram os meus longos anos de magistério na Faculdade Nacional de Direito e o esforço desinteressado de um grupo de alunos que se graduou em agosto de 2008, ao qual ministrei, em cinco períodos letivos sucessivos, todo o curso de Direito Processual Civil. As gravações e subsequentes transcrições dessas aulas constituíram o ponto de partida que me animou a levar adiante esta empreitada. Meu primeiro intuito é o de oferecer aos que se introduzem no estudo do Processo Civil um veículo redigido em linguagem simples e acessível, como costuma ser a adotada em aula, mantidas as ênfases nas ideias mais importantes, para ajudar o leitor na compreensão e assimilação dos temas tratados. Apesar disso, não foi minha intenção esgotar todos os assuntos ou examinar todas as questiúnculas casuísticas que a doutrina e a jurisprudência têm versado sobre cada um deles; daí a parcimônia de citações de autores e obras, salvo os considerados indispensáveis, e a rara remissão a acórdãos dos tribunais. Animou-me o desejo de semear na mente do leitor os princípios e fundamentos teóricos do Processo Civil do nosso tempo, habilitando-o à reflexão crítica sobre a evolução da nossa área de conhecimento, desde o seu nascimento em meados do século XIX, e sobre as estratégias de reforma que vêm sendo ou que ainda poderão vir a ser adotadas entre nós para debelar a terrível crise em que se encontra mergulhada a administração da justiça civil. Daí o nome Instituições. Se, de um lado, tentei transmitir ao leitor o estágio do saber processual geralmente aceito entre nós, de outro, foi meu desejo com ele compartilhar o que penso e o que me aflige, as minhas convicções, preocupações e dúvidas, na luta por um Processo Civil que, acima de qualquer outro resultado, satisfaça às necessidades dos jurisdicionados. Este primeiro volume é dedicado ao que prefiro denominar de Introdução ao Direito Processual Civil. Embora reconheça que existe um núcleo de fundamentos comuns aos diversos ramos do Direito Processual – Civil, Penal e Especial –, eu os compararia a círculos secantes, que possuem institutos e características comuns, mas que não formam um único sistema normativo, mas dois, três ou mais sistemas autônomos, cada um com a sua racionalidade, que se
completa com outros institutos e características próprias de cada um. Os volumes que se seguirão serão dedicados, respectivamente, ao Processo de Conhecimento (2º), aos Recursos e aos Processos da Competência Originária dos Tribunais (3º), à Execução (4º), à Tutela de Urgência e aos Procedimentos Especiais (5º). Este trabalho não seria possível sem a colaboração abnegada e incansável de três jovens juristas, integrantes daquela turma de agosto de 2008 da Faculdade Nacional de Direito, Diego Martinez Fervenza Cantoario, Felipe Rollemberg Lopes Lemos da Silva e Vitor Maurício Braz Di Masi, aos quais incorporo como coautores desta obra, uma vez que montaram os primeiros esboços dos capítulos, a partir das gravações das minhas aulas, e comigo os revisaram e discutiram linha por linha, formataram as referências e fizeram os últimos ajustes para a sua publicação. A eles agradeço e presto homenagem, na esperança de que, junto a outros jovens idealistas e valorosos da sua geração, possam construir um país melhor, uma justiça melhor e uma sociedade mais justa. Rio de Janeiro, 2 de dezembro de 2008 LEONARDO GRECO
Índice Capítulo I – Paradigmas da Justiça Contemporânea e Acesso à Justiça1 1.1. DISTINÇÃO ENTRE OS SISTEMAS DA CIVIL LAW E DA COMMON LAW 1.2. OUTRAS CARACTERÍSTICAS DOS DOIS MODELOS 1.3. ACESSO AO DIREITO E À JUSTIÇA Capítulo II – O Direito Processual e as suas Fontes1 2.1. CONCEITO E ESPÉCIES 2.2. FONTES DO DIREITO PROCESSUAL 2.3. LEI PROCESSUAL NO ESPAÇO 2.4. LEI PROCESSUAL NO TEMPO Capítulo III – Jurisdição1 3.1. CONCEITO 3.2. ATO JURISDICIONAL X ATO LEGISLATIVO 3.3. ATO JURISDICIONAL X ATO ADMINISTRATIVO 3.4. CLASSIFICAÇÃO 3.5. JURISDIÇÃO CONTENCIOSA E VOLUNTÁRIA: DISTINÇÕES 3.6. CLASSIFICAÇÃO DA JURISDIÇÃO QUANTO À NATUREZA DO INTERESSE Capítulo IV – Poderes Inerentes à Jurisdição1 4.1. PODER DE DECISÃO 4.2. PODER DE COERÇÃO 4.3. PODER DE DOCUMENTAÇÃO 4.4. PODER DE CONCILIAÇÃO 4.5. PODER DE IMPULSO 4.6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Capítulo V – Princípios Informativos da Jurisdição 5.1. PRINCÍPIO DA INVESTIDURA 5.2. PRINCÍPIO DA INDELEGABILIDADE 5.3. PRINCÍPIO DA ADERÊNCIA DA JURISDIÇÃO AO TERRITÓRIO 5.4. PRINCÍPIO DA INÉRCIA DA JURISDIÇÃO 5.5. PRINCÍPIO DA INDECLINABILIDADE DA JURISDIÇÃO
5.6. PRINCÍPIO DA UNIDADE DA JURISDIÇÃO Capítulo VI – Competência 6.1. CONCEITO 6.2. FINALIDADES 6.3. COMPETÊNCIA INTERNACIONAL E COMPETÊNCIA INTERNA 6.4. COMPETÊNCIA ABSOLUTA E A REASSUNÇÃO DO PROCESSO 6.5. REGRAS RELATIVAS À COMPETÊNCIA TERRITORIAL 6.6. MEIOS DE ARGUIÇÃO DA INCOMPETÊNCIA 6.7. CONFLITO DE COMPETÊNCIA Capítulo VII – Institutos Correlacionados à Competência1 7.1. PERPETUAÇÃO DA COMPETÊNCIA 7.2. PREVENÇÃO 7.3. CONEXÃO 7.4. CONTINÊNCIA 7.5. PRORROGAÇÃO DA COMPETÊNCIA Capítulo VIII – Ação1 8.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS 8.2. AÇÃO COMO DIREITO CÍVICO 8.3. AÇÃO DE DIREITO MATERIAL 8.4. AÇÃO COMO DIREITO AO PROCESSO JUSTO 8.5. AÇÃO COMO DEMANDA 8.6. AÇÃO COMO DIREITO À JURISDIÇÃO 8.7. CUMULAÇÃO DE AÇÕES 8.8. CLASSIFICAÇÃO DAS AÇÕES Capítulo IX – Teorias da Ação e Condições da Ação1 9.1. AS TEORIAS SOBRE A NATUREZA DA AÇÃO 9.2. O TRINÔMIO DAS QUESTÕES DO PROCESSO 9.3. CONDIÇÕES DA AÇÃO 9.4. A TEORIA DA ASSERÇÃO Capítulo X – Processo1 10.1. CONCEITO 10.2. NATUREZA JURÍDICA 10.3. RELAÇÃO JURÍDICA PROCESSUAL: DIREITOS, DEVERES, ÔNUS E PODERES 10.4. PROCESSO E PROCEDIMENTO Capítulo XI – Sujeitos do Processo1
11.1. O JUIZ 11.2. SUJEITOS PARCIAIS 11.3. SUJEITOS AUXILIARES 11.4. SUJEITOS PROBATÓRIOS 11.5. OUTROS SUJEITOS POSTULANTES Capítulo XII – Atos Processuais1 12.1. A TEORIA DOS ATOS PROCESSUAIS E A TEORIA GERAL DOS ATOS JURÍDICOS 12.2. CLASSIFICAÇÃO DOS ATOS PROCESSUAIS Capítulo XIII – Atos de Comunicação Processual1 13.1. CITAÇÃO 13.2. A NULIDADE DA CITAÇÃO E O COMPARECIMENTO ESPONTÂNEO DO RÉU 13.3. EFEITOS DA CITAÇÃO 13.4. INTIMAÇÃO 13.5. SUBSIDIARIEDADE RECÍPROCA ENTRE AS NORMAS QUE DISCIPLINAM OS ATOS DE COMUNICAÇÃO PROCESSUAL Capítulo XIV – Pressupostos Processuais1 14.1. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS SUBJETIVOS RELATIVOS AO JUIZ 14.2. PRESSUPOSTOS SUBJETIVOS RELATIVOS ÀS PARTES 14.3. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS OBJETIVOS Capítulo XV – Lugar e Tempo dos Atos Processuais1 15.1. LUGAR DOS ATOS PROCESSUAIS 15.2. TEMPO DOS ATOS PROCESSUAIS 15.3. PRAZOS PROCESSUAIS Capítulo XVI – Defeitos dos Atos Processuais1 16.1. A TEORIA DOS DEFEITOS DOS ATOS PROCESSUAIS E SUAS DIFICULDADES 16.2. ESPÉCIES DE DEFEITOS DOS ATOS PROCESSUAIS 16.3. PRINCÍPIOS INFORMATIVOS DA TEORIA DOS DEFEITOS DOS ATOS PROCESSUAIS Capítulo XVII – Processo e Procedimento1 17.1. DISTINÇÕES 17.2. A DISCIPLINA DOS PROCEDIMENTOS NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E SUAS ESPÉCIES
Capítulo XVIII – Despesas Processuais1 18.1. SISTEMAS DE CUSTEIO 18.2. ESPÉCIES DE DESPESAS PROCESSUAIS Capítulo XIX – Assistência Judiciária 19.1. SISTEMAS DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA 19.2. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA E ASSISTÊNCIA JURÍDICA 19.3. CONTEÚDO DA ASSISTÊNCIA JURÍDICA 19.4. O BENEFICIÁRIO 19.5. REQUISITO PARA A CONCESSÃO DA GRATUIDADE 19.6. A ESCOLHA DO ADVOGADO 19.7. OUTROS ASPECTOS LEGAIS DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA 19.8. QUESTÕES EM ABERTO Capítulo XX – Processo Cumulativo1 20.1. CLASSIFICAÇÃO DO PROCESSO CUMULATIVO 20.2. CARACTERÍSTICAS DA CUMULAÇÃO DE AÇÕES 20.3. ESPÉCIES DE CUMULAÇÃO OBJETIVA 20.4. CUMULAÇÃO SUBJETIVA: O LITISCONSÓRCIO Capítulo XXI – Intervenção de Terceiros1 21.1. ASSISTÊNCIA 21.2. OPOSIÇÃO 21.3. NOMEAÇÃO À AUTORIA 21.4. DENUNCIAÇÃO DA LIDE 21.5. CHAMAMENTO AO PROCESSO 21.6. RECURSO DE TERCEIRO PREJUDICADO 21.7. EMBARGOS DE TERCEIRO 21.8. EXECUÇÃO COLETIVA 21.9. INTERVENÇÃO LITISCONSORCIAL 21.10. OUTROS TIPOS DE INTERVENÇÃO DE TERCEIROS Capítulo XXII – Princípios Gerais do Processo Civil1 22.1. PRINCÍPIO DA INICIATIVA DAS PARTES 22.2. PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO 22.3. PRINCÍPIO DISPOSITIVO 22.4. PRINCÍPIO DA LIVRE CONVICÇÃO 22.5. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE
22.6. PRINCÍPIO DO IMPULSO PROCESSUAL OFICIAL 22.7. PRINCÍPIO DA LEALDADE PROCESSUAL 22.8. PRINCÍPIO DA ORALIDADE Bibliografia1
O estudo do Direito Processual Civil deve ser iniciado pela análise da necessária correlação existente entre as características fundamentais das instituições públicas que administram a justiça e do seu modo de funcionamento e o papel que o próprio Estado desempenha na sociedade contemporânea. A obra mais importante para a compreensão dessa correlação e para possibilitar a necessária contextualização política e social do saber jurídico, cujo estudo vamos começar, é o livro de Mirjan Damaska, The faces of Justice and State Authority1. Damaska é um pesquisador da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, mas de origem croata, que, tendo convivido com os sistemas jurídicos da Europa continental e americano, fez penetrantes observações comparativas entre as duas grandes espécies de ordenamentos jurídicos, adotados em geral nos diversos países do Ocidente, a saber, os ordenamentos do sistema da civil law e os do sistema da common law. O sistema da civil law é o sistema da tradição romano-germânica, o qual é adotado nos países do continente europeu, especialmente na Itália, na França, na Alemanha, na Espanha e em Portugal, assim como em toda a América Latina colonizada por portugueses e espanhóis. O sistema da common law é o sistema do direito inglês, norte-americano, canadense, australiano etc., implantado principalmente em países oriundos das antigas colônias britânicas.
1.1. DISTINÇÃO ENTRE OS SISTEMAS DA CIVIL LAW E DA COMMON LAW A principal distinção entre os dois sistemas é a de que o sistema da civil law é de direito escrito, enquanto o da common law é de direito costumeiro, aplicado pela jurisprudência. É válido lembrar que, no Canadá, que teve tanto colonização francesa quanto inglesa, em algumas regiões, como Québec, é adotado o sistema da civil law, o que também acontece nos Estados Unidos com o Estado da Louisiana. A obra de Mirjan Damaska expõe as principais diferenças que esses dois paradigmas apresentam na organização da justiça civil e no processo das respectivas causas. Na verdade, assentam eles em concepções diferentes da
própria justiça. No sistema continental europeu (civil law), a função do judiciário, o papel da justiça, tem sido o de atuação do direito objetivo, isto é, a aplicação da vontade concreta da lei aos casos que lhe são submetidos. A jurisdição, que por ora caracterizamos apenas como a função dos juízes, é vista principalmente como instrumento da lei, ainda que muitos autores procurem dar ênfase aos reflexos que essa atividade produz na esfera subjetiva dos cidadãos e dos particulares que a ela recorrem. Na civil law, que é o nosso sistema jurídico, a jurisdição como função estatal, tem sido estruturada preponderantemente com a finalidade de atuação do direito objetivo, e por isso a administração da justiça adota o que Damaska denominou de modelo hierárquico, centralizador. Nesse sistema, os juízes são considerados a boca da lei, expressão usada por Montesquieu para justificar a ideia de que os poderes dos juízes decorrem da lei e à lei devem estar sempre subordinados. É imperioso que os juízes inferiores estejam rigidamente controlados pelos tribunais superiores para que se mantenham fiéis a essa missão de serem o instrumento de cumprimento da lei. Já no modelo de administração da justiça dos países da common law, a função da justiça é, primordialmente, a de pacificação dos litigantes. A paz social na civil law é um objetivo remoto. Já na common law, a paz entre os litigantes, a rearmonização e a reconciliação são os seus objetivos diretos, imediatos. Na common law, pouco importa se a pacificação dos litigantes vai dar-se à luz da lei ou de outro critério qualquer que seja mais adequado ao caso concreto. O importante é harmonizar os litigantes. Isso porque a justiça da common law tem um profundo enraizamento na vida da comunidade e tem por função primordial preservar a coesão e a solidariedade entre os seus membros, interdependentes entre si. Enquanto a justiça da civil law tem sido a justiça do rei, do soberano, do Estado, a justiça da common law é a justiça paritária, da comunidade. Daí resultam algumas características típicas da civil law que influenciam, como veremos, toda a nossa Teoria Geral do Processo, na medida em que a sua edificação se deu quase inteiramente pela doutrina dos países que adotam o sistema do direito escrito. Cabe observar desde logo que a crise decorrente da crescente perda de credibilidade ou de confiança da sociedade na sua justiça e nos seus juízes, o que poderíamos também chamar de crise de legitimidade do poder jurisdicional, decorrente da elevação da consciência jurídica da população e do seu grau de
exigência em relação ao desempenho do judiciário, está levando a que a doutrina e os ordenamentos jurídicos dos países da civil law voltem os olhos para os da common law, procurando lá encontrar soluções para problemas comuns por meio de institutos que não existem ou que são pouco desenvolvidos na civil law. O mesmo acontece, por sua vez, nos países da common law, que, para solucionar problemas não resolvidos através das suas técnicas, vêm também em alguns casos buscar soluções no nosso sistema. Quando se fala da Teoria Geral do Processo como uma teoria que assenta e estrutura os princípios básicos de uma ciência ou de um ramo de uma ciência, temos de ter consciência de que essa teoria, entre nós difundida, é a do sistema jurídico romano-germânico, que está crescentemente em busca da efetividade do processo e, portanto, de soluções para os pontos de estrangulamento da máquina da justiça e para o déficit garantístico do processo, no sentido de insuficiência das suas técnicas para assegurar o respeito à dignidade humana de todos os seus atores e a qualidade e confiabilidade das suas decisões. Na busca dessas soluções, muitas vezes teremos de recorrer a institutos de outro modelo de justiça, de outro paradigma. Assim, por exemplo, no Brasil, a criação dos juizados de pequenas causas – hoje com o infeliz nome de juizados especiais, porque especial é o que não é comum, geral, e, portanto, melhor seria que tivessem continuado a chamar-se juizados de pequenas causas – foi influenciada pelas chamadas small claims courts do direito norte-americano, em busca de uma justiça mais pacificadora do que sentenciadora, o que evidencia esse intercâmbio de paradigmas. Deficiências do sistema da civil law vão sendo resolvidas pela importação de mecanismos da common law. Assim, também, nos países da civil law, a defesa do interesse público, em juízo ou fora dele, incumbe ao próprio Estado e aos seus agentes, as autoridades, funcionários e procuradores das pessoas jurídicas de direito público, ou por particulares no exercício de funções delegadas do Poder Público. No entanto, no Brasil, como consequência da crise do Estado, que por múltiplas razões evidenciou a sua absoluta impotência, especialmente a partir da década de 70 do século passado, para prover à tutela do interesse público, foram criadas as ações coletivas, as ações civis públicas, originárias das class actions do direito norte-americano, nas quais uma associação ou um órgão público, no interesse geral da coletividade ou de parte dela, provoca o judiciário para que este adote as medidas que forem necessárias. A justiça civil passa a
desempenhar, assim, pela via das ações coletivas, funções que tradicionalmente cabiam à Administração Pública e ao próprio Poder Legislativo, formulando juízos de conveniência e oportunidade destas ou daquelas providências, não mais sob a ótica do estrito cumprimento da vontade da lei, mas como porta-voz de uma vontade política, função para cujo exercício os juízes não tiveram qualquer espécie de formação, nem receberam qualquer mandato político. Inversamente, países do sistema da common law, como a Inglaterra, também têm ido buscar soluções para suas deficiências em técnicas adotadas em países da civil law. A reforma inglesa de 1998 abandonou as características do juiz inerte, da escolha de peritos pelas partes e da desvalorização das provas escritas, recorrendo ao modelo da civil law2. O moderno Direito Processual não está fechado para esse diálogo entre sistemas. Ao contrário, ele tem de estar aberto a essa troca. De qualquer modo, toda nossa doutrina foi concebida à luz do sistema continental europeu, do sistema hierárquico, do processo como instrumento do direito objetivo. As importações que se fazem de institutos da common law sempre entram no nosso sistema de uma forma um pouco extravagante, anômala, e o sistema tem dificuldade de assimilar esses novos institutos ou até mesmo acaba por desvirtuar as suas finalidades ou características. Concordando com Damaska, ao enumerar os traços mais marcantes do paradigma de justiça do modelo hierárquico (civil law), é importante ter em mente que esse modelo, embora não seja absoluto, é ligado à nossa civilização, à nossa cultura. Todavia, a globalizada sociedade do nosso tempo vai impondo a sua superação em muitos pontos em benefício do respeito aos valores humanitários constitucional e internacionalmente reconhecidos. Essa abordagem da ciência jurídica e da Teoria Geral do Processo, em função desses diferentes paradigmas, é muito importante para livrar-nos da falsa ideia de que o nosso modelo de justiça seja universal e de que as suas características tradicionais devam ser aceitas como absolutas e imutáveis. A própria ideia de direitos humanos é tipicamente ocidental. Embora os países do Extremo Oriente, como o Japão, por exemplo, tenham ratificado todos os tratados internacionais de direitos humanos, têm eles dificuldade em assimilá-los e respeitá-los como nós os concebemos. A ideologia dos direitos humanos foi imposta aos vencidos na Segunda Guerra, mas esses culturalmente têm dificuldade em incorporá-la ao
seu modo de ser e de viver.
1.2. OUTRAS CARACTERÍSTICAS DOS DOIS MODELOS Examinemos as características do modelo de justiça do sistema da civil law – modelo hierárquico, originário da tradição romano-germânica, que tem sido adotado pelos países do continente europeu e ibero-americanos – em comparação com os do sistema da common law, sem perder de vista que a evolução recente verificada de parte a parte vai tornando menos rígidas as suas diferenças e que características de um modelo são hoje também encontradas nos países do outro, com maior ou menor intensidade em um ou outro país. Nos países da civil law a jurisdição normalmente é exercida por juízes profissionais, escolhidos por critérios técnicos e que se tornam vitalícios para exercer a judicatura como atividade remunerada de caráter permanente. Diferentemente da civil law, na common law predominam juízes leigos ou juízes profissionais de investidura política. No sistema da civil law, há uma tendência de especialização dos juízes, que julgam apenas determinadas matérias. Já, na common law, não há tantas especializações. Na civil law, o critério de decisão das causas tem sido rigorosamente um critério de legalidade. Juízos discricionários do juiz são, à primeira vista, repudiados. As decisões judiciais são, em geral, consideradas atos vinculados, ou seja, atos cujos requisitos estão estabelecidos pela lei. Num espaço muito limitado e rigidamente previsto, a civil law admite atos discricionários ou juízos de equidade, a chamada justiça do caso concreto, como se vê nos artigos 126 e 127 do Código de Processo Civil de 1973 e no artigo 140 do Código de 2015. Embora a lei faculte ao juiz ponderar os interesses em jogo, quando houver conflito de direitos fundamentais, e apesar de a hermenêutica impor ao juiz atender aos fins sociais da norma jurídica e das exigências do bem comum (Código de 2015, art. 8º), o juiz somente decidirá por equidade nos casos previstos em lei, porque a subordinação do juiz à lei é um postulado fundamental do Estado de Direito nos países de direito escrito, do qual se extrai a legitimidade política do poder jurisdicional. A lei procura limitar juízos discricionários e equitativos. Então, quando a lei dos juizados especiais
estabelece que o juiz pode decidir fora do critério de estrita legalidade (art. 6º da Lei n. 9.099/95), o que também se dá na chamada jurisdição voluntária (art. 1.109 do CPC de 1973; art. 724, parágrafo único, do CPC de 2015), a doutrina tende a considerar que tais regras não possam ser levadas ao extremo de permitir que o juiz possa decidir fora ou contra a lei, mas que a lei lhe confere certa margem de escolha, que deve ser fundamentada, objetiva, a partir de certos critérios. Há uma resistência da civil law a juízos discricionários, ou seja, juízos fundados na conveniência e oportunidade e na equidade. Estes são sempre excepcionais e muito controlados. A administração da justiça por equidade ou discricionariamente é excepcional. Um dos casos típicos de julgamento por equidade é o arbitramento de alimentos. A lei diz que o juiz decidirá sobre o provimento de alimentos de acordo com a necessidade do alimentando e a capacidade do alimentante (art. 1.694, § 1º, do Código Civil), ou seja, por equidade, de acordo com as exigências do caso concreto. Quando se importa um instituto de outro paradigma, de outro modelo, essa importação pode dar-se de dois modos: ou se importam todas as características daquele paradigma ou se adapta aquele instituto ao seu próprio paradigma. No caso dos juizados especiais, em que a Constituição (art. 98) prevê a sua composição por juízes togados ou togados e leigos, se o julgador é popular, ou seja, um juiz leigo escolhido pela comunidade, é natural que ele se preocupe mais em seguir os ditames da sua consciência e os sentimentos dessa comunidade do que em atuar como um cego instrumento da lei. Mas, se se trata de um juiz profissional, como na civil law, autorizá-lo a decidir fora da lei seria permitir julgamentos arbitrários. No Brasil, essa faculdade de julgamento por equidade sofre grande resistência em razão do nosso paradigma de justiça profissional, instrumento de revelação do direito objetivo. A própria Constituição Federal permitiu, entretanto, a ruptura desse paradigma, através da inclusão nos juizados especiais de juízes leigos, mas o corporativismo judiciário a rejeitou, impedindo, de um modo geral, a adoção de um sistema composto por verdadeiros juízes leigos, e em alguns Estados, como o Rio de Janeiro, criando falsos juízes leigos, que destes somente conservam o nome, porque na verdade são aprendizes de juízes profissionais, oriundos da escola da magistratura. Na civil law há repetição de decisões. Casos idênticos acabam sendo decididos
da mesma forma. Cria-se jurisprudência e, toda vez em que há divergência entre a opinião dos juízes, ela é resolvida hierarquicamente, nos tribunais superiores, e assim o assunto é uniformizado. Damaska diz que a jurisprudência tem mais força na civil law do que na common law. É fácil verificar esse entendimento pela importância que apresentam os recursos na civil law, tanto com relação à sua amplitude quanto à sua quantidade. As decisões judiciais no modelo da civil law têm uma forte tendência à manutenção da ordem jurídica e à uniformização das decisões através de um sistema de recursos bastante amplo. O principal recurso é a apelação, que permite que o tribunal de segundo grau, tribunal ou juízo ad quem, julgue novamente a causa como se fosse um juiz de primeiro grau, a quo, justamente para que este esteja sempre controlado por aquele. Por isso, Damaska o chama de modelo hierárquico, já que pouca é a liberdade do juiz de primeiro grau, porque aquilo que ele decide pode ser totalmente revisto. Ainda sobre os recursos, na civil law, há o repúdio a recursos para o próprio juiz, enquanto na common law é comum o pedido de revisão para o próprio juiz ou para o próprio órgão que proferiu a decisão. Na common law, o juiz de primeiro grau tem muito mais poder do que os tribunais superiores, porque esses exercem uma supervisão muito distante e excepcional sobre a justiça ministrada pelos juízes do primeiro grau. A justiça de primeiro grau é considerada mais próxima dos cidadãos, como justiça da comunidade. Uma das consequências dessa diferença de paradigmas é a de que os tribunais superiores no Brasil julgam um número infinitamente maior de recursos do que nos Estados Unidos e, de um modo geral, em países da common law. A Corte Suprema americana seleciona para decidir apenas algumas questões jurídicas (em torno de cem por ano) que entende mais relevantes e que estão a exigir um pronunciamento marcante como diretriz que deverá influir na evolução da ordem jurídica nacional. Não se preocupa em rever se as decisões dos juízes inferiores são justas ou não, porque, se esses órgãos são representativos da comunidade, as suas decisões, de um modo geral, devem ser consideradas justas. O fundamental não é saber se a lei foi aplicada ou não, mas se o litígio foi resolvido com equidade, se as partes se rearmonizaram. Esse é o espírito predominante na justiça da common law.
Ao importarmos o arbítrio, o poder discricionário que tem a Corte Suprema dos Estados Unidos na escolha dos casos que vai julgar, o que fizemos recentemente com a criação, pela Emenda Constitucional n. 45/2004 e pela Lei n. 11.418/2006, que veio a ser incorporada ao Código de 2015 (art. 1.035), do requisito de repercussão geral para a admissibilidade do recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, talvez estejamos esquecendo de que essa é uma característica paradigmática do sistema norte-americano, e, assim, estamos importando a solução de um modelo sem importarmos o próprio modelo. A decisão de primeiro grau na civil law é sempre provisória e, por isso, há aproximadamente dois mil anos a apelação tem efeito suspensivo. A execução provisória da decisão de primeiro grau, quando autorizada (CPC de 1973, art. 520; CPC de 2015, art. 1.012, § 1°), se dá por conta e risco do exequente (CPC de 1973, art. 475-O, inc. I), ou, como prefere o Código de 2015, “por iniciativa e responsabilidade do exequente” (art. 520, inc. I), porque parece que o vencedor está se antecipando, atropelando a justiça, quando ele quer executar uma decisão que ainda pode ser reformada pelos tribunais superiores, ao contrário do que acontece na common law, em que as decisões de primeiro grau normalmente são definitivas. Hoje, entre nós, já verificamos uma forte pressão à ruptura desse modelo, porque já se percebeu que a fragilização da decisão de primeiro grau favorece a procrastinação e a utilização dos recursos como instrumento protelatório. Verifica-se, também, a tendência de ampliar os recursos sem efeito suspensivo, fortalecendo a execução imediata de decisões recorríveis. Paralelamente, são criados outros mecanismos de aceleração da prestação jurisdicional, como a tutela antecipada, prevista no artigo 273 do Código de 1973 e nos artigos 300 e seguintes do Código de 2015. Esses são alguns exemplos de rupturas do paradigma tradicional, ditadas pela necessidade de ir em busca da melhoria da efetividade do processo, embora a sobrevivência do nosso paradigma hierárquico oponha sempre resistência a tais tipos de solução. No modelo hierárquico da civil law, há uma prevalência das provas escritas, da documentação escrita, enquanto na common law prevalecem as provas orais, não documentadas ou documentadas singelamente. Na common law, muitas vezes os próprios documentos devem ser ratificados
pelos depoentes na audiência final, de nada valendo as declarações prestadas em fases anteriores do processo. É uma justiça em que toda a cognição fática se dá oralmente na frente do julgador e ali se conclui. Até a prova pericial normalmente é prestada através de depoimentos orais. Na civil law, tudo é documentado, para que o tribunal de segundo grau possa ter a mesma amplitude de cognição que tinha o juiz de primeiro grau, o juízo a quo. Isso é uma ilusão, porque evidentemente o papel não registra tudo, mas é uma reprodução pálida do que ocorreu nos atos orais, e é esse o motivo pelo qual a common law não confia na capacidade do sistema da civil law de apurar a verdade dos fatos e considera o sistema probatório da civil law formalista e distante da realidade da vida. O uso de sistemas eletrônicos de gravação de som e imagem nos atos orais, já adotado em muitos juízos no Brasil, de algum modo contribuirá para diminuir a distância entre os dois modelos probatórios. Claro que há rupturas em ambos os paradigmas. Por exemplo: recentemente, a legislação norte-americana veio a permitir perícias através de laudos escritos, mas as notícias que temos de como essa e outras inovações estão sendo aplicadas são no sentido de que sofrem grande resistência, porque a tradição é mais forte do que a lei. Nós também criamos a perícia oral a partir de 1992, importando regra de outro paradigma (CPC de 1973, art. 421, § 2º; Lei n. 9.099/95, art. 35), uma vez que o laudo escrito retarda e encarece o processo. Entretanto, o nosso modelo paradigmático resiste e os juízes raramente fazem uso desta faculdade que a lei veio a conferir-lhes. Daí resulta que o processo na civil law é fragmentado, composto de atos sucessivos que passam pelas mãos do juiz inúmeras vezes, desde o despacho da petição inicial até a sentença. Entre nós, os processos passam pelas mãos dos juízes quantas vezes quiserem as partes. Na Alemanha, por exemplo, onde o sistema é o da civil law, diz-se que o processo normalmente passa pelas mãos do juiz cerca de três vezes, porque esse país foi fortemente influenciado pelo sistema da common law. Já na Suécia e na Noruega, que têm um sistema misto, o processo é, em geral, decidido em poucas semanas. Na civil law, os advogados são impedidos de colaborar intensamente em atos de movimentação e em atos probatórios. Na common law, prevalece a iniciativa do
advogado e o juiz, normalmente, permanece quieto, inativo, enquanto as partes discutem as questões da causa. O advogado é o grande ator do processo, produzindo provas em seu escritório, intimando a parte contrária para comparecer, fornecendo documentos ao adversário, colhendo depoimentos, embora depois todas as provas devam ser repetidas na presença do juiz ou do júri. Nos países da civil law, a colaboração dos advogados nem sempre é vista com bons olhos, ocorrendo muitas vezes para suprir a incapacidade da máquina judiciária de dar vazão a tantos processos. Na civil law, os peritos são considerados auxiliares da justiça, enquanto na common law eram originariamente testemunhas das partes. Nesse aspecto, nenhum dos dois sistemas é ideal, porque, no primeiro, o perito corre o risco de transformar-se no verdadeiro juiz, já que este o escolhe e nele confia cegamente. Dificilmente o juiz se posiciona contra o laudo do perito que escolheu. No segundo, em contrapartida, a parte somente apresenta o perito que sabe que vai depor a seu favor. Na civil law, a defesa do interesse público resulta quase exclusivamente da iniciativa de órgãos públicos, como se o Estado fosse o tutor exclusivo do interesse público, razão pela qual somente ele pode promovê-lo, mediante os seus diversos agentes, como os seus procuradores, o Ministério Público ou o próprio juiz. Na common law, o sistema é mais aberto porque a própria comunidade pode tomar a iniciativa da tutela do interesse público. Por isso, lá existem as ações de classe, class actions, movidas pelos particulares, assim como os amici curiae, pessoas desinteressadas que intervêm no processo somente para auxiliar, para que se obtenha uma boa decisão, transmitindo conhecimentos ou informações que podem ser úteis mesmo em processos privados. O Brasil importou em grande parte esses institutos, seja pelas ações populares (Constituição, art. 5°, LXXIII, e Lei n. 4.717/65) e pela legitimação das associações privadas para as ações civis públicas, seja ao facultar a intervenção de terceiros desinteressados em certos procedimentos por meio da Lei n. 9.868/99, que regulamentou a ação declaratória de constitucionalidade e a ação direta de inconstitucionalidade, e mais recentemente as Leis ns. 11.417, 11.418/2006 e 11.672/2008, respectivamente, sobre a súmula vinculante, a repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal e o julgamento dos recursos especiais repetitivos para o Superior Tribunal de Justiça. O Código de 2015 incorporou
vários desses institutos, como o amicus curiae no artigo 138, a repercussão geral no recurso extraordinário (art. 1.035), o julgamento dos recursos extraordinário e especial repetitivos (arts. 1.036 a 1.041), tendo ainda criado audiências públicas na alteração de súmulas e no julgamento de casos repetitivos (art. 927, § 2º) e o novo incidente de resolução de demandas repetitivas (arts. 948 a 950). Na civil law, há pouca possibilidade de atos de disposição das partes em relação ao processo. A suspensão do processo por convenção das partes é somente possível por seis meses (Código de 1973, art. 265, § 2º; Código de 2015, art. 313, § 4º); o autor não pode mudar o pedido depois da citação, a não ser com a concordância do réu (Código de 1973, art. 264; Código de 2015, art. 329, inc. I). Na common law, a disponibilidade é bem mais ampla. Nesse aspecto, o Código de 2015, seguindo o exemplo recente do direito francês, dá um grande avanço, ao facultar que as partes celebrem convenções sobre o procedimento para ajustálo às especificidades da causa (arts. 190 e 191). Na civil law, há interesse público na validade do processo. Sendo a função jurisdicional típica de atuação da vontade da lei, da vontade do Estado, o juiz na civil law deve velar rigorosamente pela validade do processo, e, portanto, tem o poder de decretar de ofício todas as chamadas nulidades absolutas (que são muitas). Na common law, isso não ocorre; o processo é encarado como uma relação preponderantemente de interesse privado dos litigantes. Entre nós, o princípio da liberdade das formas (Código de 1973, art. 154; Código de 2015, art. 188) vai progressivamente mitigando as nulidades absolutas, cada vez mais intensamente vinculando-as à prova efetiva de prejuízo. Na civil law, o juiz é ativo, não é inerte, na busca da verdade, no suprimento das deficiências defensivas e probatórias das partes, no exercício de uma autêntica função assistencial. É também ativo na provocação de questões, especialmente quando se trata de questões de ordem pública. Busca-se, assim, sem comprometer a necessária imparcialidade do julgador, assegurar a paridade de armas, superando os obstáculos econômicos, probatórios e postulatórios, com o intuito de dar efetividade à igualdade das partes em juízo. Na common law, o juiz é predominantemente inerte, e, por isso, dizem eles que o nosso sistema é inquisitório, autoritário, e que o deles é mais democrático. Por outro lado, a inércia do juiz na common law permite muitas manobras por parte dos advogados, especialmente em matéria penal, sofrendo a crítica de que, com
frequência, a justiça é desvirtuada, transformando-se em um grande jogo. Vê-se, pois, que os dois paradigmas têm qualidades e defeitos e que o processo ideal seria o que conseguisse conciliar as virtudes dos dois sistemas, minimizando os defeitos, o que as reformas processuais, nas últimas décadas, têm tentado realizar. Entretanto, não é possível ignorar que o processo judicial é uma atividade prática, exercida repetitivamente todos os dias por pessoas, como juízes, advogados, promotores, serventuários, que, apesar da sua formação acadêmica, fazem parte de povos com costumes, tradições e experiências políticas e sociais muito diferentes. O processo é um fenômeno cultural, típico de cada povo e, até mesmo, de cada comunidade. As reformas legais não conseguem transformá-lo da noite para o dia. Como leciona Oscar Chase, professor da Universidade de Nova Iorque, há uma interação contínua no processo entre a lei e a realidade. Uma influencia a outra e, por isso, a justiça ideal não será obra apenas dos legisladores, mas também e principalmente dos educadores e de todos os que possam contribuir para impregnar na consciência coletiva os valores humanitários sob os quais a sociedade deve viver3.
1.3. ACESSO AO DIREITO E À JUSTIÇA O acesso à justiça é apontado hodiernamente como uma das garantias fundamentais dos cidadãos no Estado Democrático de Direito. Na sua análise, é necessário ter consciência daquilo que o direito pode ou não fazer para assegurar a concretização dos valores e dos direitos fundamentais consagrados constitucionalmente. Os manuais de Direito Processual geralmente mostram uma perspectiva técnica do processo, valendo lembrar que este, como instrumento do acesso à justiça, é meio e não fim. Para tirar do processo o maior proveito possível nessa função, impõe-se a observação da realidade social e econômica do mundo atual, o que certamente permitirá ir em busca de mecanismos processuais mais eficazes do que aqueles que normalmente são apresentados pela doutrina tradicional. A justiça a todo o momento se depara com essa realidade e as respostas que ela é
capaz de dar geralmente ficam muito aquém das expectativas dos jurisdicionados, patenteadas no noticiário cotidiano dos órgãos de imprensa. Mesmo adotando uma perspectiva exclusivamente processual, de qualquer modo transparece como indispensável a necessária associação da ideia de acesso à justiça à ideia de acesso ao direito. Essa associação surgiu na Constituição portuguesa de 1976, que, no seu artigo 20, estabeleceu que “a todos é assegurado o direito de acesso ao Direito e à Justiça”, o que significa que, antes de assegurar o acesso à proteção judiciária dos direitos fundamentais, o Estado deve dedicarse diretamente à concretização da expectativa de gozo dos direitos dos cidadãos. Assim, toda proteção judiciária através dos tribunais se equipara a um instrumento sancionatório, de segundo plano, acionável apenas quando ocorrer alguma lesão ou ameaça a um desses direitos. 1.3.1. Pressupostos do acesso ao direito O acesso ao direito, nas sociedades contemporâneas, depende de inúmeros pressupostos, vários deles extrajurídicos. Assim, o ideal de realização do direito, como instrumento de convivência pacífica e harmoniosa de todos os cidadãos, depende de vários pressupostos a que o Estado precisa prover. Daí a importância das eleições dos mandatários políticos, sem os quais de nada adianta ter uma boa Constituição Federal e até mesmo muito boas leis. Cumpre enumerar, neste passo, os principais pressupostos do acesso ao direito. 1) O primeiro desses pressupostos é a educação básica, que forma os cidadãos, neles infundindo a consciência de seus direitos e também de seus deveres sociais, bem como os valores humanos fundamentais, os quais devem ser por todos respeitados na vida em sociedade. Aquele que não tem tal consciência não pode ter acesso ao direito. A educação básica corresponde ao ensino fundamental ministrado em boas escolas por bons professores. Em um país onde milhões estão excluídos do acesso à educação, ou estão envolvidos em processos educativos deturpados, que mais estimulam a revolta do que a solidariedade social, não cabe falar em cidadania, porque a ignorância os alija do conhecimento da sua própria dignidade humana e do acesso aos seus direitos. Não são capazes de exercê-los porque os desconhecem ou inconscientemente os
repudiam. A consciência de direitos exige também a de deveres, pois, se todos desrespeitam direitos alheios, ninguém tem direitos4. É uma ilusão pensar que o judiciário garante a todos a eficácia de seus direitos, através do amplo acesso à justiça. No Brasil, o Estado investe muito pouco em educação e na qualificação dos seus indispensáveis mobilizadores, que são os professores. O próprio modelo constitucional adotado para o nosso sistema educacional é intrinsecamente equivocado, porque atribui a responsabilidade do ensino fundamental aos Estados e aos Municípios, quando essa responsabilidade deveria caber à União, que apenas faz as leis sobre esse nível de ensino e adota políticas de apoio às estruturas educacionais dos outros níveis de poder, sem ter o seu próprio sistema de ensino fundamental. A União Federal cuida diretamente apenas das universidades e parcialmente do ensino técnico, que são importantes, mas não são para todos e não formam cidadãos. 2) O segundo pressuposto extrajurídico do acesso ao direito é o oferecimento a todos os cidadãos de condições mínimas de sobrevivência e de existência condignas, através do acesso ao trabalho produtivo, livremente escolhido, e da percepção da correspondente remuneração capaz de prover ao sustento do trabalhador e de sua família. O incapacitado para o trabalho, a criança, o idoso, o trabalhador eventualmente desempregado e aquele cuja remuneração não ofereça o mínimo para uma sobrevivência digna devem receber a proteção social do Estado e da própria coletividade. Num país com um número elevado de pessoas em situação de desproteção, deveriam existir programas institucionais de auxílios financeiros, como também amplos serviços de assistência social e políticas de mobilização da sociedade para ações de solidariedade. Assim, não têm eficácia ou utilidade inúmeros direitos constitucionalmente assegurados para milhões de cidadãos que vivem na ignorância e na miséria. Daí a importância social do trabalho. O cidadão desprovido dos meios de sobrevivência vive em condições selvagens, inúteis lhe são os direitos e não se sente vinculado a deveres, pois está sujeito à lei do mais forte. A pobreza engendra inúmeras relações de dominação entre pessoas e grupos sociais: o mais pobre é forçado a se submeter àquele que pode lhe dar alguma coisa. As habitações subumanas das periferias das grandes cidades são
verdadeiros quistos sociais, “terras sem lei”, no todo ou em parte controladas por xerifes ou quadrilhas de bandidos. Se o Estado não for capaz de dotar essas comunidades do acesso efetivo à educação, à saúde, à segurança, à paz pública e ao trabalho lícito, ele não lhes estará assegurando o acesso ao direito. A população, abrutalhada pela miséria e coagida pelo medo, não desfruta da eficácia concreta de seus direitos fundamentais. Uma política de urbanização das favelas, frequentemente adotada, não deve apenas embelezar o lugar, mas servir como oportunidade para a implantação dos serviços públicos essenciais dos quais as comunidades necessitam. 3) Outro pressuposto do acesso ao direito é o fortalecimento dos grupos intermediários e do associativismo. Cappelletti, ao enumerar os desafios a que estão sujeitas as reformas processuais na sociedade contemporânea, dava grande relevo às novas exigências da “sociedade de massa”5. O cidadão não tem mais condições de defender-se individualmente das ameaças e lesões aos seus direitos, perpetradas por pessoas ou grupos que se encontram em posição de vantagem nas relações econômicas e sociais. O indivíduo isolado é frágil. O sindicato tem de exercer esse papel de suporte ao mais fraco nas relações entre trabalhadores e empregadores, mas, hoje, as relações de dominação não são somente as do mundo do trabalho, pois se estendem a todas as áreas da atividade humana: relações entre o Estado e os cidadãos, relações de consumo, de vizinhança, internacionais etc. Dificilmente o Estado tem condições de prover, pela legislação ou pela administração, à efetiva manutenção do equilíbrio nas relações jurídicas privadas. Esse equilíbrio necessário só se alcança pela articulação dos sujeitos que se encontram em posição de desvantagem em organizações e associações que, pela união de esforços, consigam compensar o desequilíbrio existente na sociedade e dar aos indivíduos integrantes de grupos mais frágeis a força necessária para se ombrearem aos seus adversários, e lutarem por seus direitos e interesses em igualdade de condições. O Brasil possui um baixo índice de associativismo. Achamos que o soberano, que hoje é o Estado, vai resolver todos os nossos problemas, mas o nosso soberano é frágil, e, muitas vezes, corrompido. Daí a importância da associação. Quem tem exercido esse papel de intervenção em relações jurídicas privadas e
naquelas em que há um número elevado de pessoas que se encontram em condições de desvantagem é o Ministério Público, cuja atuação nesse campo tem caráter assistencial, que se justifica porque grande parte dos que necessitam de proteção não estão em condições sequer de se organizarem em associações, o que exige consciência de cidadania e educação6. Mas essa intervenção do Ministério Público, que é importante para suprir a falta de espírito associativo, é um resquício do paternalismo estatal e com frequência se exerce para a defesa de interesses políticos e polêmicos, sem respeito ao princípio da subsidiariedade, que deve ditar a intervenção do Estado nas relações jurídicas privadas. Tão antidemocrático quanto privar o mais fraco do acesso ao direito é transformar o Ministério Público em juiz do bem e do mal. É preciso ter consciência de que essa atuação do Ministério Público é necessária na sociedade carente em que vivemos, mas que ela pode se voltar até contra nós, pois transfere para o órgão do Ministério Público a responsabilidade de formular juízos políticos, de conveniência e oportunidade sobre questões que afetam diretamente o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas. O Ministério Público tem de ser atuante, mas, ao mesmo tempo, tem de ter consciência dos valores e interesses da comunidade e do caráter subsidiário e assistencial de sua atuação. 4) Também são pressupostos do acesso ao direito a responsabilidade do Estado, no cumprimento dos seus deveres para com os cidadãos, e a transparência do Estado no trato de questões que possam afetar a esfera de interesses dos cidadãos. A esses tem de ser assegurado o direito de influir nas decisões do Poder Público, através dos instrumentos de participação democrática. Os constitucionalistas dizem que estamos numa democracia participativa, em que a Administração Pública tem de ser transparente, em que os interessados devem ter a capacidade de influir nas decisões estatais, o que ocorre muito pouco. O Estado continua fechado, sigiloso. Mais importante ainda, no campo das relações Estado-cidadão, é o espontâneo e direto reconhecimento pelo Estado dos direitos dos cidadãos, a cujo respeito correspondam deveres, obrigações, serviços ou atividades do Estado e de seus agentes. O nosso Estado se acostumou a dizer “não” ao cidadão. Perdeu por completo a noção de que ele é o prestador de serviços à coletividade. Continua mantendo a relação autoritária de soberano a súdito, característica do
absolutismo sepultado pela Revolução Francesa. Hoje, a relação do Estado com os membros da sociedade é a relação Estadocidadão, em que este tem direito de exigir daquele pleno respeito ao seu patrimônio jurídico. Se o próprio Estado perdeu a noção de que a sua função é a de prover ao bem comum da sociedade, do qual é ele servidor, e não cumpre os seus deveres com os membros dessa sociedade, desrespeitando a todo o momento os seus direitos, todo o tecido social se contamina, e a ética do respeito aos direitos alheios em troca do recíproco respeito pelos outros aos seus é substituída pela prevalência da deslealdade e da esperteza, tanto em relação aos direitos dos concidadãos como também em relação aos do próprio Estado. 5) A visão deturpada do Estado e da sua responsabilidade distorceu também o papel da justiça, que deveria ser a guardiã das liberdades individuais e dos direitos dos cidadãos, e foi transformada em administradora da moratória do Estado e eficiente proteladora do pagamento das dívidas públicas e do cumprimento de suas obrigações para com os cidadãos. Esse ritual kafkiano de inadimplência oficial é amplamente favorecido por inúmeros privilégios processuais que a lei e a Constituição Federal estabelecem em favor da Fazenda Pública. Quando esses privilégios processuais não bastam para eternizar os processos, novas leis processuais são editadas no interesse do governo. Até 2001 o governo legislava, fazia leis processuais por medida provisória, e, com isso, mudava as regras do jogo processual de acordo com as suas conveniências. Hoje, ao governo, por força da Emenda Constitucional n. 32, que alterou a disciplina constitucional das medidas provisórias, não é mais permitida a edição de medidas provisórias sobre matéria processual, mas, ainda assim, ele consegue aprovar no Congresso leis processuais que o beneficiam na justiça, ou evitar que sejam aprovadas leis que reduzam as inúmeras vantagens de que desfruta no processo judicial para dificultar o sucesso das demandas contra ele propostas pelos particulares. O recente Código de 2015 não escapou a essa regra, mantendo o anacrônico reexame necessário obrigatório de sentenças desfavoráveis à Fazenda Pública (art. 496) e as inconstitucionais proibições de liminares contra o Estado no mandado de segurança, em medidas cautelares e antecipações de tutela (art. 1.059). A inadimplência estatal viciou a própria justiça e é grandemente favorecida pela
impossibilidade de execução específica das condenações judiciárias pecuniárias contra o Estado, em razão do regime dos precatórios, estabelecido no artigo 100 da Constituição Federal, geralmente descumprido pelas pessoas jurídicas de direito público, que não incluem anualmente, como manda a Constituição, as verbas no orçamento para o pagamento desses precatórios. Isso se agravou com a Emenda Constitucional n. 30/2000, que permitiu o parcelamento desses pagamentos em dez anos e com a mais recente Emenda Constitucional n. 62/2009, que instituiu um regime especial que pode eternizar o inadimplemento dessas condenações. Embora declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.425/DF, tudo indica que essas disposições ainda vigorarão por muito tempo, o que prenunciam os votos até agora proferidos no incidente de modulação temporal dos efeitos da decisão do STF, cujo julgamento ainda não foi concluído no momento de encerramento da redação da presente edição. Essas regras consagram, por via indireta, uma inaceitável imunidade do Estado ao cumprimento das condenações judiciais, porque verbas não são incluídas no orçamento, por ação ou omissão do Executivo ou do Legislativo. Ser credor do Estado não vale nada, pois ele não paga, a não ser fora da justiça, e muitas vezes com o emprego de expedientes escusos. No dia em que se acabar com essa imoral imunidade estatal, a corrupção cairá brutalmente. 6) O acesso ao direito também depende do oferecimento, pelo Estado, de aconselhamento jurídico aos pobres a respeito de seus direitos. A Constituição, em seu artigo 5º, LXXIV, refere-se à assistência jurídica – e não apenas judiciária –, que é importante para todas as pessoas, porque hoje em dia até as pessoas menos favorecidas mantêm complexas relações jurídicas com instituições financeiras, fornecedoras de bens e serviços etc. O aconselhamento jurídico serve para ajudar essas pessoas a tomarem decisões. Assim sendo, o Estado deve assegurar esse direito ao pobre. A instituição da Defensoria Pública, exigida em todo o País pela Constituição de 1988 (art. 134), ainda está muito longe de ser estruturada para atender satisfatoriamente os objetivos pretendidos pelo artigo 5º da Carta Magna. 7) O último pressuposto do acesso ao direito é o acesso à justiça, no sentido de acesso a um tribunal imparcial, previamente instituído pela lei como competente para a solução de qualquer litígio a respeito de interesses que se afirme juridicamente protegidos ou para a prática de qualquer ato que possa estar
subordinado à aprovação, autorização ou homologação judicial. Se o cidadão tem consciência de seus direitos de cidadania, educação, trabalho, se o Estado lhe fornece todas as condições para livremente exercê-los, mas outro cidadão ou órgão do Estado impede ou dificulta esse exercício, cabe ao Poder Público pôr à disposição do cidadão lesado ou ameaçado a jurisdição necessária para assegurar o pleno acesso ao direito. A mesma faculdade deve ser conferida ao cidadão que se apresente como titular de um direito cujo exercício ou cuja tutela esteja submetido a um provimento judicial. 1.3.2. O acesso à justiça Os professores Mauro Cappelletti, da Universidade de Florença, e Bryant Garth, da Universidade de Stanford, coordenaram para as Nações Unidas, na década de 70 do século passado, um projeto de pesquisa para levantar as condições de acesso à justiça no mundo todo, o que resultou na publicação de vários relatórios nacionais e estudos. O principal deles tem justamente o título de “Acesso à justiça”7. Pequena parte dessa obra está traduzida para o português8. Cappelletti diz que é preciso reconhecer que o acesso à justiça sofre hoje, para sua efetividade, três tipos de obstáculos: o econômico, o geográfico e o burocrático. O econômico resulta do custo da justiça. As custas, os honorários advocatícios, além do risco de perder a causa e ter de pagar as custas antecipadas pela parte contrária, muitas vezes fazem com que o benefício econômico almejado através do processo seja inferior às despesas com este. Geralmente, os honorários da sucumbência, que o juiz fixa na condenação para pagar o advogado do vencedor, não cobrem os honorários contratuais. Os honorários periciais muitas vezes desestimulam a parte que teria que antecipar seu depósito, pois não sabe se vai ganhar a causa e reembolsá-lo. Para cobrir esses gastos, os pobres dispõem da assistência gratuita, assegurada na Constituição (art. 5º, inc. LXXIV) e nas leis, que lhes conferem isenção de custas e o patrocínio gratuito por um advogado, que normalmente integra o serviço estatal da Defensoria Pública, também prevista na Constituição (art. 134).
A Defensoria Pública ainda não está bem-estruturada em todo o país. Mas mesmo onde ela existe e é considerada eficiente, como na Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a classe média fica excluída dos seus benefícios, tendo de arcar com despesas que pesam no seu orçamento, sem falar nas contribuições, que acrescem às custas e que sustentam e beneficiam grupos, como a caixa dos advogados, o instituto dos advogados, a associação dos magistrados etc., a meu ver, de flagrante inconstitucionalidade. As barreiras geográficas são decorrentes da imensidão do território nacional e da impossibilidade de colocar pelo menos um juiz ao alcance de qualquer cidadão. Há muitos Estados em que as partes têm de percorrer centenas de quilômetros para comparecerem à sede do juízo territorialmente competente, por meios de transporte precários e demorados. Na própria Justiça Federal é fato recente a criação de varas em municípios do interior. Justiça distante significa, em muitos casos, ausência da lei, porque violações de direitos são cometidas e é muito custoso e demorado acionar o aparelho judiciário. Ademais, o juiz dificilmente tem condições de ir ao local dos fatos, que muitas vezes é um local por ele totalmente desconhecido, e de colher provas mais diretas em razão da distância. Somente a presença do judiciário em todas as áreas habitadas no território nacional poderá assegurar o efetivo acesso à justiça a todos os cidadãos. Têm sido feitas experiências de justiça itinerante, especialmente no âmbito dos Juizados Especiais. Na Amazônia, até de barco se deslocam esses órgãos julgadores. São iniciativas positivas que obrigam o juiz a reagir à inércia e ao espírito burocrático, indo ao encontro dos jurisdicionados e vivendo de perto a sua realidade e os seus problemas. Recentemente a Emenda Constitucional n. 45/2004 (art. 125, § 7º) recomendou a ampliação dessa justiça itinerante. Nas áreas em que não há população suficiente para que se justifique a presença permanente de juiz togado, deveria existir um juiz de paz ou outro tipo de órgão, com poder de julgar causas de menor complexidade e de conceder medidas provisórias urgentes. Entretanto, a Constituição (art. 98, inc. II) proíbe a outorga ao juiz de paz de qualquer poder decisório. Cappelletti mostra que foram os regimes autoritários que acabaram com essa justiça de leigos, dos juízes de paz, dos juízes da comunidade. Para as ditaduras, é mais fácil controlar os juízes togados, porque são juízes profissionais, do que os juízes leigos, que
normalmente exercem a função em caráter altruístico. No entanto, as melhores justiças do mundo são aquelas que utilizam ao mesmo tempo juízes togados ou profissionais e juízes leigos. É o caso da justiça inglesa, que possui mais juízes leigos do que togados. Essa presença permanente do juiz em todas as localidades também deveria ser assegurada pela residência obrigatória do juiz na comarca, determinada na Constituição (art. 93, inc. VII), mas não cumprida satisfatoriamente. Os magistrados resistem a morar nas comarcas pequenas sem condições satisfatórias de habitação e educação para os filhos, e, muitas vezes, nelas permanecem apenas alguns dias da semana e, nos restantes, a população fica abandonada. O juiz deve estar ao alcance da população a qualquer hora, regra imposta, inclusive, pela Lei Orgânica da Magistratura (art. 35, inc. IV, da Lei Complementar n. 35/79). Quanto aos obstáculos burocráticos, ninguém ignora o desaparelhamento da máquina judiciária, decorrente da má remuneração e da falta de formação técnico-profissional dos serventuários, além da inadequação da estrutura judiciária para enfrentar a massa de demandas que lhe é submetida. Despachos de expediente, que deveriam ser proferidos em dois dias, levam seis meses; a distribuição de recursos na secretaria de alguns tribunais chegava a demorar cinco anos antes da Emenda 45/2004, que proibiu a retenção na distribuição; o Ministério Público muitas vezes retém autos para parecer durante meses; o mesmo ocorre com juízes para a prolação de sentenças; e em petições protocoladas, que demoram três meses para serem juntadas aos autos do processo e assim por diante. O próprio Supremo Tribunal Federal vive essa triste realidade, com processos aguardando por alguns anos a oportunidade de julgamento. Assim, se o cidadão tem um problema e a justiça não o resolve através do direito, ele pode sentir-se impelido ou forçado a ir em busca da sua própria justiça, que se manifestará por meio da prevalência da vontade do mais forte. A justiça pelas próprias mãos é a negação do verdadeiro acesso à justiça. Mas o excesso de processos atualmente é apontado por muitos como o mais grave obstáculo a uma prestação jurisdicional rápida e eficiente. Essas barreiras burocráticas tornaram vantajosa a posição de devedor, a litigância de má-fé, a inadimplência, a prática de atos procrastinatórios,
especialmente pelas pessoas jurídicas de direito público, a produção de provas inúteis e a contestação de direitos incontestáveis, sobrecarregando a justiça e dificultando e retardando o acesso do cidadão ao pleno gozo individual de seus direitos. Também é componente do acesso à justiça o direito do cidadão, em qualquer processo, se necessário, de entrevistar-se pessoalmente com o juiz, não apenas para ser ouvido sobre o que lhe for perguntado, mas para travar com o magistrado um diálogo humano. O processo escrito e o excesso de trabalho conduziram a um progressivo distanciamento entre o juiz e as partes, à criação de resistências e de dificuldades ao contato das partes com o julgador e de desvalorização da palavra oral, que é o meio de comunicação mais completo. Por outro lado, não seria solução a simples multiplicação do número de juízes, pois a baixa qualidade do ensino fundamental e do ensino jurídico, assim como o alto custo decorrente do pagamento de salários elevados, criam uma impossibilidade material à sua implementação e tornam improvável por essa via a melhoria da qualidade da justiça. 1.3.3. Conteúdo do acesso à justiça O acesso à justiça, como direito à tutela jurisdicional efetiva de todos os interesses dos particulares agasalhados pelo ordenamento jurídico, possui também alguns requisitos essenciais. Um deles é o patrocínio por um advogado, como condição necessária para o exercício da chamada defesa técnica, componente do direito à mais ampla defesa, constitucionalmente assegurada (art. 5°, inc. LV). Merece reflexão o papel do advogado no moderno processo judicial. Exercendo a referida defesa técnica, a presença do advogado tornou-se indispensável à administração da justiça, como reconhece o artigo 133 da Constituição. Todavia, a sua contratação impõe ao cidadão um custo, nem sempre necessário e nem sempre recuperado. Na medida em que o processo se desformaliza e que se eleva a consciência jurídica do cidadão, certamente decairá a necessidade imperiosa da presença do advogado. Nos Juizados Especiais, nas causas até 20 salários mínimos, a sua presença, em primeira instância, já é facultativa (Lei n.
9.099/95, arts. 9º e 41, § 2º). Em outras situações, deve também ser avaliada a presença forçada do advogado. Ele tem de ser um custo necessário, ou então um custo dispensável. Mas, sem dúvida, nas causas em que a parte constitui um advogado, esse deve gozar de absoluta qualificação técnica e de total liberdade profissional, sem as quais a plenitude de defesa não será mais do que uma garantia de fachada. O exercício profissional por pessoas incapacitadas é apontado, muitas vezes, como justificativa da concessão de poderes inquisitórios ao juiz, confrontada a triste realidade brasileira, em que muitos direitos legítimos são postos a perder pela incapacidade do advogado, o qual, pela simples inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), está apto a atuar em qualquer causa, em qualquer tribunal. Na defesa do pobre em juízo, fica clara a desvantagem do beneficiário de assistência judiciária gratuita, pela falta do vínculo de confiança entre ele e o seu advogado. O pobre deveria ter a mesma liberdade de escolha do seu advogado, como aquele que paga. A confiança no advogado permite a este um conhecimento mais perfeito das circunstâncias da causa, o que lhe possibilita articular de modo mais eficaz os instrumentos de defesa. O pobre, defendido por um advogado dativo, está sempre em posição de inferioridade em relação ao adversário, no acesso à justiça. Portanto, o juiz deve exercer uma vigilância especial sobre os processos em que uma das partes é defendida por advogado dativo, para assegurar igualdade efetiva às partes, a chamada paridade de armas. Outra desvantagem que atinge o pobre é a de que os agentes que participam do processo – advogados privados, serventuários, peritos – são obrigados a servir sem qualquer remuneração. A lei brasileira deveria assegurar, de algum modo, a remuneração dos agentes dativos, ou os beneficiários da justiça gratuita estarão sempre em situação de inferioridade em relação aos seus adversários. Outro requisito positivo do acesso à justiça é o contraditório participativo, como o direito de influir eficazmente na decisão por meio de um diálogo jurídico, com ampla oportunidade de oferecimento de alegações e de produção de provas, que sejam efetivamente consideradas pelo julgador. Por outro lado, a justiça, como um instrumento de garantia da eficácia dos
direitos dos cidadãos, somente cumprirá seu papel com decisões rápidas em prazo razoável, exigência reforçada pela Emenda Constitucional n. 45/2004, que introduziu o inciso LXXVIII no artigo 5º da Constituição. E o acesso à justiça pressupõe juízes independentes e responsáveis, o que constitui um dos grandes desafios do nosso tempo. Somente eles podem exigir dos demais poderes do Estado o respeito aos direitos subjetivos dos cidadãos, assegurando a convivência de todos num verdadeiro Estado Democrático de Direito. Eles não podem ser arbitrários ou corruptos, muito menos imunes a qualquer sanção, mas obedientes à lei e responsáveis civil, penal e disciplinarmente pelos abusos que cometerem. São juízes com responsabilidade social, que não devem perder o entusiasmo em razão da rotina, que leva ao conformismo e à indiferença burocrática; que precisam avaliar permanentemente o desempenho do judiciário e de si próprios, através de mecanismos apropriados; que precisam dedicar-se firmemente à revelação dos valores preponderantes na sociedade e atender prontamente os cidadãos, apesar dos obstáculos mencionados, por meio de tutelas diferenciadas e outros meios eficazes de composição de conflitos. Não é também possível falar em acesso à justiça na vida democrática contemporânea sem mencionar o acesso à jurisdição constitucional, para que todos os direitos constitucionalmente assegurados encontrem em um tribunal constitucional a revelação do seu autêntico conteúdo e a garantia da sua plena eficácia. Infelizmente, no Brasil, esse acesso, em caráter individual, somente é facultado pela via recursal, tendo o interessado de percorrer todas as instâncias até chegar ao Supremo Tribunal Federal, e, mais recentemente, por meio da Emenda Constitucional n. 45/2004 e da Lei n. 11.418/2006, incorporada ao Código de 2015 (art. 1.035), mesmo por essa via, apenas se a questão apresentar repercussão geral, reconhecida por esse mesmo Tribunal. O acesso à justiça vai ser objeto de nosso estudo durante toda esta obra, na qual teremos oportunidade de aprofundar a análise dos seus diversos requisitos. Por ora, cumpre referir que o seu conteúdo atual é implementado através das chamadas garantias fundamentais do processo ou do que vem sendo
denominado processo justo, que, conforme expus em outro trabalho9, compreende todo o conjunto de princípios e direitos básicos de que deve desfrutar aquele que se dirige ao Poder Judiciário em busca da tutela dos seus direitos. De acordo com a classificação proposta por Comoglio em obra coletiva recente10, essas garantias fundamentais podem ser individuais e estruturais, conforme se refiram à proteção dos direitos e interesses subjetivos de cada uma das partes nos casos concretos ou às condições prévias de que deve revestir-se a organização judiciária. Todavia, é impossível dizer que a observância das últimas não seja também pressuposto da tutela jurisdicional efetiva dos direitos e interesses de cada uma das partes nos casos concretos, embora num primeiro momento elas se destinem a definir o método de exercício da função jurisdicional no Estado Democrático de Direito. Assim, as garantias individuais compreendem o acesso à justiça em sentido estrito, que constitui o direito de todas as pessoas naturais e jurídicas de se dirigirem ao Poder Judiciário e desse receber resposta sobre qualquer pretensão; a imparcialidade do juiz, como a equidistância desse em relação às partes e aos interesses a ele submetidos, examinando a postulação que lhe foi dirigida no intuito exclusivo de proteger o interesse de quem tiver razão, de acordo com a lei e as demais normas que disciplinem essa relação jurídica; a ampla defesa, como direito de apresentar todas as alegações, propor e produzir todas as provas que possam militar a favor do acolhimento da pretensão ou do não acolhimento da postulação do adversário; a assistência jurídica aos pobres, assegurando os direitos de agir e de defender-se perante qualquer jurisdição em igualdade de condições com quaisquer outros cidadãos; o juiz natural, entendido como o direito das partes ao julgamento de sua causa por um juiz abstratamente instituído como competente pela lei antes da ocorrência dos fatos originadores da demanda; a inércia, que proíbe a interferência da jurisdição na vida privada e nas relações jurídicas das pessoas, exceto quando provocada por algum interessado; o contraditório, como a ampla possibilidade de influir eficazmente na formação das decisões que atingirão a esfera de interesses das partes; a oralidade, como direito ao diálogo humano e público com o juiz da causa; e, finalmente, a coisa julgada, como garantia da segurança jurídica e da tutela jurisdicional efetiva.
Por outro lado, têm-se compreendido como garantias estruturais a impessoalidade da jurisdição, impondo que esta seja exercida por juízes subordinados exclusivamente aos princípios e valores do Estado Democrático de Direito; a permanência da jurisdição, como o seu exercício por órgãos instituídos em caráter permanente e compostos por magistrados vitalícios ou temporários investidos na forma da lei; a independência dos juízes, como a absoluta isenção em relação a qualquer outra autoridade pública, inclusive judiciária, e a qualquer tipo de pressão individual ou coletiva que possa comprometer a sua impessoalidade; a motivação das decisões, como a justificação suficiente do seu conteúdo, evidenciando o respeito ao contraditório participativo mediante o exame e a consideração de todas as alegações e provas pertinentes apresentadas pelas partes; a inexistência de obstáculos ilegítimos, impostos por interesses acessórios ou alheios ao exercício da jurisdição; a efetividade qualitativa, dando a quem tem direito tudo aquilo a que ele faz jus de acordo com o ordenamento jurídico; o procedimento legal, que deve ser flexível e previsível, objetivando assegurar a necessária paridade de tratamento de todos perante todos os órgãos jurisdicionais e regular de modo equilibrado o encadeamento lógico dos diversos atos, a fim de garantir o respeito às regras mínimas de um processo justo; a publicidade, como o único instrumento eficaz de controle da exação dos juízes no cumprimento dos seus deveres e no respeito à dignidade humana e aos direitos das partes; o prazo razoável, impedindo que a demora no julgamento crie uma instabilidade na situação jurídica das partes, incompatível com a noção de segurança jurídica; o duplo grau de jurisdição, como direito a um segundo julgamento por órgão colegiado, composto por magistrados mais experientes; e, por fim, o respeito à dignidade humana, como o direito de exigir do Estado o respeito aos seus direitos fundamentais. 1.3.4. Meios alternativos de solução de conflitos O acesso à justiça, tal como o preconizamos, com frequência se depara com os mais variados obstáculos, seja pelo custo, pela demora, pelo temor do escândalo que a publicidade da justiça estatal venha a dar ao litígio, seja pelo receio de que os tribunais estatais não disponham de conhecimentos especializados para solucionar controvérsias de grande complexidade técnica, seja, ainda, porque a solução da lei pode não ser a melhor para os próprios litigantes. Nesses e em outros casos, é comum os litigantes procurarem outras vias para
equacionar as suas divergências, e o direito processual deve estimular essas práticas, desde que elas sejam livremente escolhidas pelos interessados como as que mais lhes convêm e que não sejam impostas pelo mais forte sobre o mais fraco como instrumento de abuso de direito ou de abuso de eventual posição dominante que uma parte tenha em relação à outra. Em muitos povos, como os orientais e a sociedade norte-americana no século XX, a expansão desses meios deu-se de modo espontâneo, como reflexo do multiculturalismo e da coesão da vida comunitária. A própria sociedade foi estruturando esses mecanismos, chamados nos Estados Unidos de ADRs (Alternative Dispute Resolution), que foram progressivamente recebendo o reconhecimento da lei, como a mediação, a arbitragem e um sem-número de outros institutos, como o rent a judge na Califórnia, o facfinding, o summary jury trial, a arbitragem anexa à corte, os ombudsmen em inúmeras instituições, como bancos e hospitais, e a early neutral evaluation.11 Nos países da civil law, não ocorreu o mesmo fenômeno, mas, no último quartel do século XX, o aumento incontrolável do demandismo, a congestionar as pautas dos tribunais, determinou o surgimento de políticas públicas de estímulo à adoção da mediação, da arbitragem e, até mesmo, em certos casos, impôs por lei a sua utilização antes ou no lugar do ingresso em juízo, a par da justiça interna das associações, dos comitês de empresa e da subordinação à prévia postulação administrativa para a propositura de ações em face do Estado. Não é possível avaliar o sucesso dessas políticas como um todo e nem sempre o que dá certo em um país dará certo em outro; assim, embora o discurso em favor dessa expansão perdure, esses meios continuam a ter uma importância secundária como instrumentos de acesso à justiça, mas não podemos deixar de considerá-los e examiná-los, por ser imperioso reconhecer que, em muitas situações, eles podem constituir vias de acesso à justiça mais adequadas e de qualidade melhor do que a própria justiça estatal. O Brasil enveredou timidamente por esse caminho, adotando iniciativas esporádicas. A Justiça do Trabalho, desde a sua criação na Constituição de 1946, teve uma atuação preponderantemente conciliatória. Não por outra razão, os seus órgãos de primeiro grau, originariamente compostos de um juiz togado, um representante sindical dos trabalhadores e um representante sindical dos empregadores, eram denominados Juntas de Conciliação e Julgamento.
O Código de Processo Civil de 1973, na sua redação original, introduziu a fase de conciliação (arts. 447 a 449) na audiência do procedimento ordinário, nos litígios patrimoniais de caráter privado e nos de família, nos casos em que a lei consente a transação. Em 1994, a Lei n. 8.952 deu nova redação ao artigo 331 do Código, criando a audiência preliminar de conciliação nas causas sobre direitos disponíveis, que, com a Lei 10.444/2002, passaram a ser as causas sobre direitos que admitem a transação. Em 1984, haviam sido criados pela Lei n. 7.244, depois substituída pela Lei n. 9.099/95, os juizados de pequenas causas, que deram muita ênfase à conciliação. A Constituição de 1988, no § 1º do artigo 217, estabeleceu que a justiça estatal somente admitirá ações relativas à disciplina e às competições esportivas depois do esgotamento das instâncias da justiça desportiva. Em 1993, a Lei n. 8.630/93 criou as Comissões Paritárias de Conciliação Prévia, postergando por dez dias o ingresso em juízo das causas trabalhistas. O Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior do Trabalho esvaziaram esse mecanismo, não permitindo que a sua utilização funcionasse como um pressuposto do ingresso em juízo, em face do disposto no inciso XXXV do artigo 5º da Carta Magna. Em 1996, o Brasil adotou uma nova Lei de Arbitragem (Lei n. 9.307/96), que representou um grande avanço no fortalecimento desse instituto, cujas decisões passaram a ter a mesma eficácia das sentenças judiciais. A Emenda Constitucional n. 45/2004 criou, no âmbito do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça, que passou a desenvolver uma estratégia de estímulo à mediação e à conciliação, sob a égide da Resolução n. 125/2010. Também o Governo Federal, por meio do Ministério da Justiça, tem se dedicado ao assunto, tendo incluído no chamado II Pacto Republicano de 2009 o objetivo de fortalecimento da mediação e da conciliação, com estímulo à solução de conflitos por meios autocompositivos, com melhores resultados na pacificação social e menor judicialização. No final de 2012, esse Ministério criou a Escola Nacional de Mediação e Conciliação. Na esfera da Administração Federal, em 2007, foi criada a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal, órgão da Consultoria-Geral
da União, com a finalidade de evitar litígios entre órgãos e entidades vinculados ao Poder Executivo, o que vem ao encontro do que recomenda o artigo 175 do Código de Processo Civil de 2015. Esse Código dá um novo incentivo à mediação e à conciliação, antecipando no procedimento comum a audiência de conciliação ou de mediação, que se realizará logo após a citação do réu, antes mesmo da apresentação da sua defesa (art. 334), e disciplinando nos artigos 165 a 175 a atuação dos conciliadores e mediadores judiciais. Seguindo diretrizes já adotadas na Resolução do CNJ, o artigo 165 prevê que os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, para realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e desenvolvimento de outros programas por conciliadores e mediadores com formação adequada. A conciliação e a mediação adotarão os princípios da independência, da imparcialidade, da autonomia da vontade, da confidencialidade e da decisão informada, definidos na Resolução do CNJ, aos quais o artigo 166 do Código de 2015 acrescenta os princípios da oralidade e da informalidade. O procedimento será livremente estabelecido pelas partes, admitindo o uso de técnicas negociais (art. 166, §§ 3º e 4º). Os conciliadores, mediadores e câmaras privadas de conciliação e mediação serão inscritos em cadastro nacional e em cadastros dos próprios tribunais e poderão ser livremente escolhidos pelas partes (art. 168). Ao assunto voltaremos no item 11.3.1 e quando tratarmos no 2º volume da audiência de conciliação ou de mediação. Por ora, cumpre observar que o Código de 2015 não traça uma distinção clara entre mediação e conciliação, usando como possível critério distintivo (§§ 3º e 4º do art. 165) ter ou não havido vínculo anterior entre as partes, o que me parece absolutamente impreciso. Para efeito de compreensão da sua inserção no processo judicial, essa circunstância, assim como a distinção entre as duas figuras, parece-me absolutamente irrelevante. Na mediação, a atuação do interlocutor é a de um simples estimulador da composição das partes que, elas próprias, irão equacionar as suas divergências, independentemente da celebração de um acordo final que a materialize. Essa mediação tem mais sentido antes de ter se configurado plenamente um litígio sobre um determinado fato ou a respeito de um direito; normalmente ela é eficaz
antes ou fora de um processo judicial em que já se definiu uma disputa concreta em torno de uma pretensão de direito material. No processo judicial, em geral, o mecanismo mais apropriado é a conciliação, em que o interlocutor não se limita a estimular a autocomposição dos interesses das partes, mas direciona a sua intervenção na proposição de solução concreta para a pretensão formulada em juízo, a ser materializada em um acordo que necessariamente terá de produzir efeitos em relação ao andamento ou ao desfecho do processo em curso e, por isso, terá de ser submetido à homologação do juiz, a quem cabe a direção do processo. Por exceção, há litígios, como os familiares, em que a postulação judicial mascara um litígio real subjacente, cuja solução é mais importante do que a do próprio pedido. Nesses casos, a mediação é mais adequada. Por ora, tendo em vista a incipiência das estratégias até aqui adotadas no desenvolvimento de uma política nacional de solução de conflitos, parece importante firmar algumas premissas que considero indispensáveis à formulação e à implementação dessa política, bem como à avaliação que o direito processual deva fazer da conveniência de articulação dos meios alternativos de solução de litígios, com o processo judicial. Primeiramente, apesar da orientação adotada desde a instauração da conciliação no processo trabalhista, o juiz não é normalmente o interlocutor adequado para conduzir a busca de uma solução consensual do litígio. Não basta ter autoridade ou conhecimentos jurídicos, é preciso desfrutar da confiança das partes, dispor de tempo e paciência, além de saber usar de técnicas de negociação que estimulem a participação dos litigantes. A mediação e a conciliação voluntárias, com a escolha dos interlocutores pelos próprios interessados, são mais proveitosas do que as obrigatórias, que nem sempre encontram as partes com disposição de negociar, especialmente se não tiveram possibilidade de escolher o tipo de intermediação e os sujeitos que vão desempenhá-la. O ambiente propício para a negociação ou o acordo não se forma necessariamente no momento processual agendado para a audiência preliminar ou para a audiência de conciliação ou de mediação, parecendo-me que, enquanto as partes não colocam as cartas na mesa, expondo todos os seus argumentos e
apresentando o conteúdo de todas as provas, não são capazes de avaliar as probabilidades de vencer ou de perder, indispensáveis para estimulá-las ou não à negociação. Sou mais favorável a uma conciliação conduzida paralelamente ao andamento do processo judicial do que à realização dessa tentativa em um momento determinado do processo. A tentativa de conciliação no curso do processo não pode transformar-se em um pretexto para retardar o andamento ou a solução do processo judicial. Quem acha que tem razão, deve ter o direito de alcançar com celeridade o provimento final de tutela do seu direito material. É preciso preservar a independência do mediador e do conciliador, poupando-o do depoimento em juízo e assegurando-lhe o sigilo das negociações. É necessário, também, estimular a mediação extrajudicial e pré-processual, especialmente nas relações dos particulares com o Poder Público, nas relações familiares e em outras relações jurídicas duráveis, induzindo a sua utilização com a economia de custos, a instituição de interlocutores confiáveis, a solução rápida das divergências e o eficiente controle jurisdicional do seu funcionamento e dos seus resultados. Além disso, deve-se estimular a arbitragem entre os desiguais, como nas relações trabalhistas e nas relações com o Poder Público, desde que ao Judiciário seja reservado o controle rigoroso sobre a livre adesão dos interessados e sobre a consciência das suas consequências, inclusive sobre a impossibilidade do reexame judicial das suas decisões. O estímulo à busca de uma justiça não estatal não deve ser perseguido como um meio de fugir de uma justiça estatal cara, demorada, ineficiente e pouco confiável, ou, ainda, visando reduzir o trabalho dos juízes, mas em busca de uma justiça melhor. O Estado não se desonera do seu dever de oferecer aos cidadãos uma boa justiça estatal, mas os força a buscar justiça fora dos tribunais. A deficiência da justiça estatal força os cidadãos a aceitarem soluções extrajudiciais ou aparentemente consensuais iníquas, pela impossibilidade de obterem do Estado a tutela adequada, plena e oportuna dos seus direitos. O uso dos meios alternativos é desejável, mas deve ter como pano de fundo uma justiça estatal eficiente e confiável, para que a escolha dos cidadãos entre uma ou
outra via se dê em busca do meio que mais bem tutele os interesses em jogo e para que aqueles que optarem pelos primeiros se sintam seguros de que a justiça estatal estará sempre de portas abertas para coibir os abusos ou erros manifestos que ocorrerem na sua atuação. Ficam assim delineadas as premissas teóricas do Direito Processual, em geral, e do Direito Processual Civil, em especial, que constituirão os fundamentos do estudo que estamos a iniciar. ________ 1 DAMASKA, Mirjan R. The faces of justice and State authority. Yale: Yale
University Press, 1986. 2 ANDREWS, Neil. The modern civil process – Judicial and Alternative Forms
of Dispute Resolution in England. Tübingen: Mohr Siebeck, 2008. p. 95-146. 3 CHASE, Oscar. Law, Culture and Ritual – disputing systems in cross-cultural
context. New York: New York University Press, 2005. 4 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à justiça. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2007. p. 66. 5
CAPPELLETTI, Mauro. Problemas de Reforma do Processo Civil nas Sociedades Contemporâneas. In: Revista de Processo, São Paulo, ano 17, n. 65, jan.-mar. 1992. p. 127-143. 6 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à justiça. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2007. p. 68. 7
CAPPELLETTI, Mauro. Access to justice (6 v.). Milano/Sijthoff and Noordhoff: Alphenaandenrijn: Giuffrè, 1978. 8
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988. 9 GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. In:
PEIXINHO, Manoel Mesias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO
FILHO, Firly (Org.). Os Princípios da Constituição de 1988. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 369-406. 10 COMOGLIO, Luigi Paolo; FERRI, Corrado; TARUFFO, Michele. Lezioni
sul Processo Civile. 5. ed. Bologna: Il Mulino, 2011. 1º v. 11
RISKIN, Leonard L.; WESTBROOK, James E. Dispute resolution and lawyers. 3. ed. St. Paul: Thomson West, 2005.
2.1. CONCEITO E ESPÉCIES O Direito Processual é comumente definido como o ramo do direito público interno que disciplina os princípios e as regras relativos ao exercício da função jurisdicional do Estado. É um ramo do direito público porque dispõe sobre o exercício de uma função predominantemente pública, a função jurisdicional, por órgãos do próprio Estado, os juízes e tribunais, e porque no seu exercício esses órgãos buscam realizar fins eminentemente públicos de atuar a vontade concreta da lei e de assegurar a paz social. É um ramo do direito público interno porque a função jurisdicional é uma das três funções essenciais do Estado Democrático de Direito, que emana da própria soberania estatal. Cada nação soberana institui os seus próprios juízes e estabelece as regras que devem ser observadas na sua atuação. No exercício da função jurisdicional, o Estado trava relações jurídicas com outros sujeitos de direito, públicos ou privados, interessados ou não no seu resultado, e todos esses múltiplos vínculos entre todos esses sujeitos, direcionados para o objetivo comum de propiciar o adequado exercício da função jurisdicional, formam o processo, que empresta o seu nome a esse ramo do Direito. Embora essas noções, originárias da doutrina processual da primeira metade do século XX, continuem a prevalecer, elas não se apresentam mais como absolutas. A função jurisdicional segue sendo predominantemente exercida por juízes e tribunais estatais, mas atualmente também se reconhece que a pacificação dos litígios e a atuação da vontade da lei podem ser também desempenhadas por órgãos e sujeitos não estatais, através dos meios alternativos de solução de conflitos, entre os quais a arbitragem e a justiça interna das associações. Para muitos, esses institutos, que têm sido bastante estimulados pelo próprio Estado, são apenas equivalentes jurisdicionais de natureza contratual. Entretanto em certos países, como a Alemanha, os poderes conferidos a esses mecanismos, como a arbitragem, chegam em certos casos a equiparar-se aos que a lei confere aos próprios magistrados: não apenas poderes de decisão, mas também de coerção. Por isso, forte corrente considera que esses institutos são
verdadeiramente jurisdicionais, integrando a sua disciplina também o Direito Processual. Por outro lado, a ideia de que o Direito Processual é um ramo do direito público interno se relativiza, porque cresce o anseio por maior autonomia dos particulares na formação e no desenvolvimento da relação processual. Os próprios Estados soberanos, após os horrores da Segunda Guerra Mundial, aceitaram submeter as suas relações com os particulares, em matérias em que estão em jogo direitos e valores universais, ao controle de tribunais supranacionais, como a Corte Europeia e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Assim, o Direito Processual se classifica em interno e internacional: o primeiro disciplinando o exercício da jurisdição pelos órgãos próprios de cada Estado soberano; e o segundo regendo a jurisdição dos tribunais supranacionais, a cooperação jurisdicional internacional e o cumprimento de decisões da justiça de um país pela justiça de outro. Quanto ao Direito Processual interno, a ordem jurídica nacional, em diversos países, vem expandindo os espaços de atuação da autonomia privada na definição dos rumos do processo, como pretende fazer o Código brasileiro de 2015, que faculta às partes delimitar consensualmente as questões de fato e de direito a serem instruídas e decididas no processo (art. 357, § 2°) e convencionar mudanças no procedimento, bem como sobre os ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou depois do processo (art. 190). Por outro lado, os ordenamentos jurídicos nacionais habitualmente criam um ou mais sistemas normativos em relação a determinados tipos de causas. No Brasil, o Direito Processual se subdivide em Direito Processual Civil e Direito Processual Penal: o segundo disciplina o exercício da jurisdição penal na apuração da responsabilidade de autores de atos ilícitos definidos como crimes ou contravenções e na imposição das penas correspondentes; enquanto o primeiro trata do exercício da jurisdição interna em relação a todos os demais tipos de causas não penais. Em nosso país, o Direito Processual Penal, por sua vez, se classifica em Direito Processual Penal comum e Direito Processual Penal especial: este último, subdividido por sua vez em Direito Processual Penal Militar, sobre o exercício
da jurisdição penal relativa a crimes militares, e Direito Processual Penal Eleitoral, relativo a crimes eleitorais. O Direito Processual Penal comum ou simplesmente Direito Processual Penal disciplina a jurisdição penal relativa a todos os demais crimes não militares e não eleitorais. Também o Direito Processual Civil, entre nós, se subdivide em Direito Processual Civil comum e especial: o segundo dividido em Direito Processual Civil Trabalhista ou simplesmente Direito Processual Trabalhista ou do Trabalho, relativo a causas trabalhistas, e Direito Processual Civil Eleitoral, relativo à matéria eleitoral não penal (registro de eleitores, inscrição de candidatos a cargos eletivos, fiscalização da propaganda e das campanhas eleitorais, coleta e apuração dos votos e diplomação dos eleitos). O Direito Processual Civil Comum ou apenas Direito Processual Civil disciplina o processo das causas não penais, não trabalhistas e não eleitorais. Países como o Brasil, em que as causas entre particulares e as causas entre esses e o Estado estão submetidas aos mesmos órgãos jurisdicionais, sendo regidas pelas mesmas normas processuais, são chamados de países de jurisdição una. E países em que as causas do Estado não estão submetidas aos órgãos do Poder Judiciário, mas a órgãos de julgamento estruturados dentro da própria Administração Pública, como a França e a Itália, numa concepção distinta da separação de poderes, são chamados de países de dualidade de jurisdição. Atualmente essas diferenças se reduzem, porque em certos países do primeiro grupo existem ramos do Poder Judiciário autônomos para o julgamento de causas do Estado, embora a sua atuação continue regulada pelas mesmas leis processuais, como o Brasil, com a implantação da Justiça Federal em 1967. Em outros, a justiça das causas do Estado, além de ser um ramo autônomo do judiciário, é regida por normas processuais específicas, como ocorre com a Alemanha em relação às jurisdições administrativa, financeira e previdenciária. Por outro lado, em países de dualidade de jurisdição, o contencioso administrativo, ainda que formalmente vinculado de algum modo à Administração Pública, tem evoluído no sentido de adquirir independência em relação a ela e de oferecer aos adversários um processo revestido das garantias fundamentais universalmente reconhecidas, como vem ocorrendo na Itália e na França. Mencionam-se na atualidade outras espécies de processos, juridicamente regulados, que não são objeto do Direito Processual, mas dele assimilam muitos
princípios, regras e formas, e que não serão examinados na presente obra, como o processo legislativo, relativo à elaboração das diversas modalidades de atos legislativos: as emendas constitucionais, as leis complementares, ordinárias e delegadas, as medidas provisórias, as resoluções e decretos legislativos (Constituição, arts. 59-69); e o processo administrativo, objeto de inúmeros sistemas normativos, como o processo administrativo fiscal, o processo perante o Tribunal de Contas da União e o processo disciplinar dos funcionários públicos, entre outros. Na esfera federal, a principal lei que rege o processo administrativo é a Lei n. 9.784/99.
2.2. FONTES DO DIREITO PROCESSUAL As fontes do direito são o meio de revelação do conteúdo dos princípios e das regras que compõem determinado sistema de normas. No que tange especificamente ao Direito Processual, podem ser elencadas como fontes formais a Constituição, os tratados internacionais, as leis complementares, as leis federais ordinárias, as leis de organização judiciária e os regimentos internos dos tribunais. Há também fontes complementares, como os costumes, a analogia, os princípios gerais de direito, além da jurisprudência e da equidade, que merecem ser tratadas à parte. Procede-se, a seguir, à análise de cada uma dessas fontes. 2.2.1. Constituição A primeira fonte de Direito Processual é a Constituição Federal. Neste passo, cumpre percorrê-la e apontar as principais disposições que constituem seus princípios e regras, começando pelo artigo 1º, inciso III, que estabelece que a República Federativa do Brasil constitui-se num Estado Democrático de Direito e tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. O referido artigo pode ser relacionado com o artigo 4º, que, em seu inciso II, estabelece que um dos princípios da nossa República é a prevalência dos direitos humanos, e com o artigo 5º, que minudencia uma série de direitos e garantias fundamentais, várias delas referentes ao processo judicial. O artigo 5º da Constituição garante, entre outros, os direitos à igualdade e à segurança (caput), ambos de extrema relevância para a sistematização do processo judicial. A igualdade aplicada no plano do processo corresponde ao
que, hoje, se costuma chamar de paridade de armas. Extrai-se desse preceito constitucional que os litigantes no processo judicial devem ser tratados com iguais prerrogativas, com iguais direitos, de modo que tenham a mesma possibilidade de influir na formação da decisão judicial. A segurança jurídica, por sua vez, está ligada à previsibilidade das relações jurídicas e das suas consequências, determinando a estruturação de institutos muito importantes no âmbito do direito processual, como a coisa julgada, também prevista na própria Constituição (inc. XXXVI do art. 5º). Ainda no artigo 5º da Lei Maior, merecem destaque os seus incisos X e XII, que asseguram, respectivamente, a inviolabilidade da intimidade e do sigilo das correspondências e das comunicações, em que pese o segundo prever a possibilidade de interceptação telefônica, com prévia autorização judicial, para a apuração de certos crimes. Esses dois incisos influem muito no chamado direito probatório, ou seja, na regulação da apuração da verdade em juízo, porque um grande limite a essa atividade é justamente a inviolabilidade da intimidade e do sigilo das comunicações. Eles se articulam com o inciso LVI do mesmo artigo 5º, que estabelece a inadmissibilidade no processo judicial das provas obtidas por meios ilícitos, consagrando a chamada proibição das provas ilícitas. No inciso XXXIII, o artigo 5º institui o direito à informação dos cidadãos a respeito de qualquer ato do Estado que seja de seu interesse particular, constituindo, na verdade, um dos fundamentos dos atos de comunicação processual, como as citações e as intimações. No exame desse artigo, talvez o inciso mais importante seja o XXXV, que estabelece aquilo a que a doutrina chama de garantia da tutela jurisdicional efetiva, ao prescrever que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito. O inciso LIII estabelece a garantia do juiz natural, ao prescrever que “ninguém será processado ou sentenciado senão pela autoridade competente”, fortalecida pelo inciso XXXVII, que proíbe “juízo ou tribunal de exceção”. O inciso LIV consagra a garantia do devido processo legal, enunciando que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, pano de fundo de todos os procedimentos judiciais. No inciso LV, são consagradas as
garantias do contraditório e da ampla defesa aos litigantes, seja no processo judicial, seja no processo administrativo, sem as quais não é possível falar-se em devido processo legal. Em seguida, o próprio artigo 5º cria várias ações constitucionais para a tutela dos direitos fundamentais, quais sejam: o habeas corpus (inc. LXVII); o mandado de segurança (LXIX); o mandado de segurança coletivo (LXX); o mandado de injunção (LXXI); o habeas data (LXXII); e a ação popular (LXXIII). Em capítulos posteriores do texto constitucional encontra-se a previsão de outras ações. Assim, no artigo 102, que dispõe sobre a competência do Supremo Tribunal Federal, vamos encontrar as ações direta de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade (inc. I, letra a) e a arguição de descumprimento de preceito fundamental (§ 1º). Essas ações, portanto, têm a sua fonte direta na própria Constituição Federal. O inciso LXXIV do artigo 5º institui a assistência jurídica aos necessitados, que vai servir de fundamento à isenção de custas e de honorários de advogado e também ao patrocínio pela Defensoria Pública ou por advogado dativo. Cabe ainda mencionar o inciso LXXVIII, introduzido pela Emenda Constitucional n. 45/2004, que explicitou o direito à razoável duração do processo, determinando que o Estado predisponha meios que garantam a celeridade na sua tramitação. Diante dessa enumeração, na qual omitimos a referência a incisos de interesse específico do Processo Penal, vemos que o artigo 5º da Constituição possui uma enorme riqueza como fonte formal de direito processual. O artigo 22 da Constituição estabelece, em seu inciso I, a competência privativa da União para legislar sobre direito processual. Essa unidade, que deve existir em todo o País acerca da legislação processual, tem origem na Constituição de 1934 e dá ensejo a um sistema legislativo extremamente rígido, engessador do processo e do funcionamento da justiça brasileira, isso porque o Brasil é um país muito heterogêneo, sob os mais diversos aspectos, com grandes disparidades regionais, que tornam inadequada uma disciplina uniforme do processo judicial em âmbito nacional, especialmente diante da grande dificuldade que alguns Estados têm de prover meios materiais e humanos para organizarem os seus sistemas judiciários. A própria Constituição prevê algumas exceções a essa competência privativa,
como, por exemplo, a contida no artigo 24, que trata da competência legislativa concorrente. Os seus incisos X e XI permitem que também os Estados legislem sobre os então chamados juizados de pequenas causas – hoje denominados juizados especiais – e sobre procedimentos em matéria processual. Entretanto, como a legislação processual federal é exaustiva, pouco espaço sobra para os Estados legislarem sobre essas questões. No caso dos procedimentos sobre direito processual, é impossível tal complementação, porque a legislação federal existente praticamente esgota o assunto; já em matéria de juizados especiais ou de pequenas causas há razoável espaço para os Estados legislarem supletivamente em relação à legislação federal. Essa necessidade de flexibilização e adaptação das regras processuais às contingências locais tem sido introduzida na própria legislação federal, através de dispositivos que muitas vezes outorgam aos tribunais, através dos seus regimentos internos, ou à própria lei de organização judiciária a complementação do regime da legislação federal. É o que tem ocorrido, por exemplo, com as novas disposições sobre a informatização do processo judicial, que vem sendo implantada no País em ritmos diversos nas justiças estaduais, na justiça federal e na justiça do trabalho (ver especialmente a Lei n. 11.419/2006). No capítulo que trata do Poder Legislativo, há algumas normas importantes sobre a administração da justiça e, portanto, de interesse do direito processual, dentre as quais pode ser apontada a do artigo 52, inciso III, alínea a, que outorga privativamente ao Senado Federal competência para aprovar previamente, por voto secreto, após arguição pública, a escolha de magistrados nos casos estabelecidos pela própria Constituição. Trata-se da escolha pelo Senado Federal dos magistrados dos tribunais superiores: ministros do Supremo Tribunal Federal, ministros do Superior Tribunal de Justiça etc. O processo de escolha desses magistrados é pressuposto essencial da sua independência. Também merece destaque o § 1º, alínea b, do artigo 62, introduzido pela Emenda Constitucional n. 32/2001, que estabeleceu a proibição de edição de medidas provisórias em matéria processual. Até o advento dessa emenda, o Governo Federal abusava da edição de medidas provisórias para dificultar o acesso à justiça dos cidadãos contra o Estado e criar novos privilégios para a Fazenda Pública. Muitas disposições contidas em medidas provisórias anteriores à referida emenda, restritivas do acesso à justiça do cidadão contra o Estado, algumas jamais ratificadas expressamente pelo Congresso Nacional, ainda se
encontram em vigor, como, por exemplo, as proibições de concessão de liminares em face do Estado em diversas matérias (ver art. 1º da Lei n. 8.437/92, com os acréscimos da Medida Provisória n. 2.180-35/2001, mantido em vigor pelo artigo 1.059 do Código de 2015). Outro capítulo importante da Constituição para o presente estudo é o referente ao Poder Judiciário (arts. 92 a 126), embora algumas disposições nele contidas aproximem-se mais da organização judiciária do que propriamente do direito processual. Nesse capítulo, está estabelecida a competência de diversos órgãos do Poder Judiciário e, especificamente, a competência dos tribunais superiores. Possuem especial relevo alguns incisos do artigo 93, como, por exemplo, o inciso IX, que estabelece a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais; o inciso XII, que estabelece que a atividade jurisdicional é ininterrupta, ou seja, que a justiça tem de ficar o ano todo de portas abertas, vedando férias coletivas de juízes de primeiro grau e tribunais de segundo grau; o inciso XV, que proíbe a retenção da distribuição de processos nos tribunais, e que, assim como o inciso XII, foi introduzido pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Através do exame das disposições constitucionais comentadas no presente item, podemos ter uma ideia da importância da Constituição para o direito processual, principalmente porque, hoje, a maioria dos princípios processuais vai encontrar suporte no texto constitucional. Atualmente, existe um grande debate na hermenêutica constitucional a respeito da distinção entre princípios e regras e sobre a eficácia daqueles. Na medida em que os princípios são normatizados, como hoje o são muitos princípios gerais de direito, eles passam a constituir regras com a mesma eficácia imediata que têm quaisquer outras. Então, dizer, usando a expressão cunhada pelo jurista alemão Robert Alexy, que os princípios são mandados de otimização1, ou seja, são diretrizes, caminhos, metas a serem perseguidas, embora não realizadas totalmente de imediato, não revela todo o seu alcance e pode transformar-se em pretexto para o seu descumprimento, mesmo quando consagrados em normas jurídicas expressas. Tenho afirmado com muita convicção que, ao contrário do que se pode falar sobre princípios em outros sistemas, em outras áreas do Direito, tratando-se de
direito processual, os princípios erigidos ao status de garantias devem ter eficácia máxima, e não eficácia mínima. Assim, por exemplo, o princípio do contraditório, que garante a qualquer litigante o direito de ser ouvido e de influir eficazmente nas decisões judiciais. Não deve existir a possibilidade de garanti-lo apenas em parte porque a sua plena eficácia é uma imposição do próprio Estado Democrático de Direito; ou o processo garante amplamente o contraditório e a audiência das partes, permitindo-lhes influir eficazmente na decisão que as atingirá, ou então esse processo será absolutamente nulo, por violação desse princípio e, em última análise, da própria Constituição. Uma das únicas possibilidades de reduzir-se a eficácia de um princípio-garantia, constitucionalmente assegurado, é aquela em que esse entra em choque com outro princípio de igual status. Por exemplo: o princípio do contraditório pode entrar em choque com o princípio do amplo acesso à justiça. Aquele que precisa de uma providência jurisdicional urgente não pode ter o seu direito de acesso à justiça sacrificado para fazer valer outro princípio fundamental, como é o do contraditório. É o que ocorre nos casos em que o juiz deixa para apreciar o pedido de liminar após a oitiva do réu. Pode ocorrer também o contrário, nas hipóteses em que o juiz decide uma liminar sem a audiência do réu. Nessas situações, o juiz deve fazer uma ponderação dos interesses em jogo, pela aplicação do critério da proporcionalidade, levando em conta os interesses e os valores humanos que se entrechocam e, em que medida, devam eles conciliar-se ou se a eficácia de um deles pode reduzir, ainda que minimamente, a do outro. Atualmente, técnicas de aceleração do processo, impostas pela necessidade de assegurar a sua efetividade, aliadas a certa margem de liberdade das partes, têm criado procedimentos com redução de garantias que somente podem ser compatibilizados com a Constituição se as decisões neles adotadas puderem ser reexaminadas em procedimentos amplamente garantísticos. É o que ocorre com os chamados juizados especiais, que examinaremos no capítulo XVIII do 2º volume desta obra. Feitas essas ressalvas, reafirmo que a eficácia dos princípios-garantia deve ser máxima, e não mínima.
Em resumo, percebe-se que a Constituição não só estrutura o Poder Judiciário, mas também estabelece um rol dos mais importantes princípios processuais, muitos dos quais definidos como direitos ou garantias fundamentais. Institui também diversas ações constitucionais e disciplina a organização e o funcionamento de várias instituições essenciais à administração da justiça ou dela auxiliares, como o Ministério Público (arts. 127 a 130) e a advocacia (arts. 131 a 135), nesta incluídas a advocacia pública e a defensoria pública. 2.2.2. Tratados internacionais Os tratados internacionais são incorporados ao direito interno através da sua aprovação por decreto legislativo do Congresso Nacional (Constituição, art. 49, inc. I) e a sua promulgação por decreto do Poder Executivo. Embora muitos sustentem que o tratado tem uma posição de supremacia na hierarquia das leis, o entendimento consagrado durante anos pelo Supremo Tribunal Federal foi o de que o tratado tem o nível hierárquico de uma lei federal ordinária. A Emenda Constitucional n. 45/2004 inovou nessa matéria, conferindo o nível de emendas constitucionais aos “tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros” (§ 3º do art. 5º da Constituição). Muitos tratados bilaterais ou multilaterais incorporados ao direito interno brasileiro dispõem sobre princípios e regras de Direito Processual, como a Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, o Protocolo de Las Leñas de 1992 e o Protocolo de Ouro Preto de 1994, os dois últimos, respectivamente, sobre cooperação interjurisdicional e sobre o cumprimento de medidas cautelares no âmbito dos países do Mercosul. Esses dois primeiros tratados contêm disposições expressas tutelares de garantias fundamentais do processo, como a imparcialidade do juiz, a publicidade, o juiz natural e a celeridade. Já os Protocolos do Mercosul estabelecem, entre outras, regras sobre o reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras e sobre cartas rogatórias expedidas pela justiça de um país para cumprimento pela justiça de outro.
Como todos esses instrumentos internacionais foram ratificados antes da Emenda Constitucional n. 45 e não se sujeitaram no processo de ratificação à nova regra constante do § 3º do artigo 5º da Carta Magna, mesmo aqueles que versam sobre direitos humanos, como os dois primeiros citados no parágrafo anterior, continuam a ter, em minha opinião, a hierarquia de leis federais ordinárias. Entretanto, em 3 de dezembro de 2008, no julgamento dos Recursos Extraordinários (REs) ns. 349.703 e 466.343, por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os tratados de direitos humanos, enquanto não ratificados na forma prevista no § 3º do artigo 5º da Constituição, assim como todos os tratados que, na forma do § 2º do mesmo artigo, instituam outros direitos ou garantias fundamentais, têm posição hierárquica superior à das leis. Com base nesse entendimento, considerou derrogadas pela Convenção Americana de Direitos Humanos as disposições do direito interno que permitiam a prisão civil do depositário infiel. Na mesma ocasião foi revogada a Súmula n. 619 da Jurisprudência Predominante do STF, que tratava da matéria. Questão delicada nessa matéria é a da harmonização de disposições dos tratados com as do texto constitucional e com as do próprio Código de Processo Civil e outras leis ordinárias. Os tratados de direitos humanos, se ratificados na forma do § 3º do artigo 5º, terão a hierarquia de emendas à Constituição, mas não poderão reduzir ou revogar os direitos consagrados no artigo 5º, que são imunes ao poder de emenda como cláusulas pétreas, nos termos do artigo 60, § 4º, inciso IV, da própria Lei Maior. Entretanto, os tratados, não ratificados com o ritual de emenda constitucional, assim como os demais que instituam direitos ou garantias fundamentais, poderão ampliar os direitos previstos no artigo 5º, porque estes, na forma do seu § 2º, são direitos mínimos. Todavia, essa possibilidade de ampliação não é de fácil aplicação, porque ocorre, em determinados casos, que a disposição de um tratado amplia direitos individuais de determinados cidadãos em detrimento de direitos individuais de outros. Esse problema emerge na conciliação da Convenção Americana de Direitos Humanos com a Constituição, quanto à prisão civil do depositário infiel,
facultada pelo texto constitucional (art. 5º, inc. LXVII) e proibida pelo Pacto de San José. Se o texto do inciso LXVII do artigo 5º da Constituição apenas outorgasse um direito fundamental a alguém (a proibição de prisão civil por dividas) sem também outorgar um direito fundamental contraposto a outrem (a garantia da prisão civil do depositário infiel em favor do respectivo credor), então ele poderia sofrer ampliações sem que houvesse violação à Constituição. Ocorre que, ao dizer que é lícita a prisão do depositário infiel, está dando uma garantia ao credor, ao depositante. Então, não se trata apenas de uma disposição que confere, unilateralmente, um direito a alguém, mas de uma disposição que também confere um direito contraposto a outro sujeito. Confere o direito de não ser preso por qualquer outra dívida civil, mas também confere o direito, a garantia, ou a ação da prisão a quem for prejudicado pelo depositário infiel ou pelo devedor de pensão alimentícia. Esse, a meu ver, é o problema. Parece-me que a utilização do § 2º do artigo 5º da Constituição, para aplicar a Convenção Americana, não serve neste caso, porque o texto constitucional não se limita a conferir um direito a não ser preso – hipótese em que tal direito poderia ser ampliado –, mas confere uma garantia ao credor do depositário, que não pode ser retirada por uma convenção internacional. Até porque os direitos e garantias fundamentais são cláusulas pétreas, que não podem ser alteradas nem por emendas à própria Constituição (art. 60, § 4º, da Constituição). Por outro lado, se os tratados relativos a direitos e garantias fundamentais têm hierarquia superior à lei, as normas do Código de Processo Civil, que é uma lei federal ordinária, se sobrepõem as dos tratados internacionais, porque todo o direito processual implementa a efetividade de direitos e garantias fundamentais; quais sejam, o acesso à justiça, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. Por isso, o Código de 2015, em seu artigo 13, determina que a jurisdição civil se rege pelas normas processuais brasileiras, “ressalvadas as disposições específicas previstas em tratados, convenções ou acordos internacionais de que o Brasil seja parte”.
2.2.3. Lei complementar A terceira fonte de direito processual é a lei complementar. Essa espécie legislativa autônoma (art. 59, inc. II, da Constituição) corresponde a uma lei aprovada pelo Congresso Nacional com um quórum especial, qualificado e, portanto, é uma lei mais estável do que a lei ordinária. Além disso, as matérias que devem ser tratadas por meio de lei complementar não podem ser objeto de medidas provisórias (Constituição, art. 62, § 1º, inc. III), pois estas têm hierarquia de lei ordinária. Segundo a doutrina dominante, as leis complementares dependem de previsão constitucional, ou seja, é a própria Constituição que estabelece em que casos determinadas matérias deverão ser reguladas por lei complementar. Há, pelo menos, três previsões expressas na Constituição que dizem respeito ao direito processual e que dependem de lei complementar. Uma delas é o Estatuto da Magistratura, que está previsto no artigo 93 da Constituição, o qual enuncia em seu caput que lei complementar de iniciativa do Supremo Tribunal Federal disporá sobre o assunto. A Constituição fixa o próprio balizamento dessa lei complementar, consubstanciado nas garantias e nos princípios constitucionais da Magistratura, entre os quais a necessidade de fundamentação das decisões, a proibição das férias coletivas em certas instâncias, entre outros. Entretanto, como a lei complementar prevista na Constituição atual sobre o tema ainda não foi editada, grande parte das matérias do estatuto da Magistratura encontra-se regulada em uma lei complementar anterior à atual Constituição, que tem fundamento em texto constitucional anterior, a chamada Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar n. 35/79). Esse diploma está em parte derrogado pelo advento da Constituição de 1988, porque a organização e a estrutura do Poder Judiciário brasileiro em 1979 eram bem diferentes das instituídas em 1988. Todavia, alguns dos seus dispositivos remanescem em vigor, como, por exemplo, os que disciplinam os deveres dos juízes, as suas faltas funcionais, as punições que lhes são aplicáveis pelos tribunais etc. Outra lei complementar prevista na Constituição em matéria processual diz respeito à organização e à competência da Justiça Eleitoral (art. 121).
Anteriormente ao advento da ordem constitucional vigente, essas matérias encontravam-se reguladas no Código Eleitoral, que foi editado como lei ordinária. Com a previsão contida no artigo 121 da Constituição de 1988, as disposições do Código Eleitoral sobre competência dos órgãos da Justiça Eleitoral passaram a ter a hierarquia de lei complementar. O Código Tributário Nacional é uma lei ordinária (Lei n. 5.172/66), editada sob a égide da Constituição de 1946, que não previa o instituto da lei complementar. Com o advento da Constituição de 1967 e das Constituições subsequentes, a matéria afeta à limitação do poder de tributar e à elaboração de normas gerais em matéria tributária passou a ser objeto de lei complementar (art. 146 da Constituição de 1988), levando a doutrina e a jurisprudência a entenderem que o Código Tributário Nacional, mesmo sendo originariamente lei ordinária, foi recepcionado com status de lei complementar. Portanto, as normas previstas no Código Tributário Nacional que tratam de direito processual, como, por exemplo, a que prevê a suspensão da exigibilidade de tributos através de liminares ou de medida cautelar de depósito e as que dispõem sobre a decadência da ação para a cobrança de tributos, têm como fonte uma lei materialmente complementar. Recentemente, com o advento da nova Lei de Falências (Lei n. 11.101/2005), houve necessidade de alterar-se o Código Tributário Nacional, por meio da Lei Complementar n. 118/2005, para que as disposições deste fossem adequadas às inovações trazidas por aquela. 2.2.4. Lei ordinária Evidentemente, a grande fonte formal de direito processual é a lei federal ordinária, elaborada no exercício da competência legislativa privativa da União, estabelecida no artigo 22, inciso I, da Constituição. As principais leis processuais federais são o Código de Processo Civil (Lei n. 5.869/73; e, a partir da vigência do Código de 2015, Lei n. 13.105/2015) e o Código de Processo Penal (DecretoLei n. 3.869/41). Porém, há também outras importantes leis federais, como o Código de Processo Penal Militar, editado em 1969, e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que contém regras sobre o processo do trabalho. Além dessas, existem muitas leis processuais extravagantes, uma vez que os Códigos de Processo Civil e de Processo Penal não conseguem esgotar toda
legislação processual. Somente o Código de Processo Civil de 1939 conseguiu tal amplitude; foi ele um Código completo, visto que todos os procedimentos possíveis em matéria não penal foram nele regulados. Depois de 1939, foram criados muitos procedimentos especiais que o Código de 1973 não conseguiu absorver e, assim, este manteve em vigor muitas leis já existentes antes da sua edição, conservando, inclusive, no artigo 1.218, algumas disposições do próprio Código de 1939. Isso ocorreu, por exemplo, com as ações de Direito Marítimo, previstas pelo Código Comercial de 1850, cujos procedimentos continuaram regulados, na vigência do Código de 1973, pela codificação de 1939. O Código de 2015 adotou orientação diversa. As disposições do Código de 73 relativas ao procedimento sumário e aos procedimentos especiais revogados pelo novo Código continuarão a reger as ações propostas antes do início da vigência deste último, desde que ainda não sentenciadas (art. 1.059, § 1º). O Código de 2015 regulou diversos procedimentos especiais nos artigos 539 a 770. Os que estavam no Código de 73 e no Código de 39, e não foram reproduzidos no novo Código, passaram a submeter-se ao procedimento comum, regulado nos artigos 318 e ss. (art. 1.046, § 1º), permanecendo em vigor inúmeras leis extravagantes disciplinadoras de outros procedimentos especiais (art. 1.046, § 2º), tais como a Lei n. 4.717/65, sobre a ação popular; a Lei n. 5.478/68, sobre alimentos (com exclusão dos seus artigos 16 a 18, suprimidos pelo artigo 1.086, inciso V, do novo Código); a Lei n. 6.830/80, sobre a execução fiscal; a Lei n. 7.347/85, sobre a ação civil pública; a Lei n. 8.078/90, que é o Código de Defesa do Consumidor (e tem várias disposições processuais); a Lei n. 8.245/91, sobre a locação; a Lei n. 9.099/95, sobre os juizados especiais; a Lei n. 9.307/96, sobre a arbitragem; a Lei n. 9.507/97, sobre o habeas data; a Lei n. 9.868/99, que regula as ações direta de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade; a Lei n. 9.882/99, que regula a arguição de descumprimento de preceito fundamental; a Lei n. 10.259/91, sobre os juizados especiais federais; a Lei n. 11.101/2005, que regula a falência e a recuperação judicial; a Lei n. 11.340/2006, sobre violência doméstica; a Lei n. 12.016/2009, que regula o mandado de segurança; e a Lei n. 12.153/2009, sobre os juizados especiais da Fazenda Pública. Muitas leis processuais extravagantes alteraram disposições do Código 1973, especialmente a partir de 1992, introduzindo novos institutos, como a tutela
antecipada e as tutelas específicas, reformulando integral ou parcialmente o regime de determinados institutos, como a prova pericial, as intimações e o recurso de agravo, reformulando o processamento dos recursos para o Supremo Tribunal Federal e para o Superior Tribunal de Justiça, o regime da execução de título extrajudicial e da execução de sentença. Em 2009, a Presidência do Senado Federal constituiu uma comissão de juristas para elaborar o Anteprojeto de um novo Código de Processo Civil. Compunham a comissão, com o Ministro Luiz Fux, que então integrava o Superior Tribunal de Justiça e posteriormente o Supremo Tribunal Federal, como seu presidente, os juristas Teresa de Arruda Alvim Wambier, Adroaldo Furtado Fabrício, Benedito Pereira Filho, Bruno Dantas, Elpídio Nunes Donizetti, Humberto Theodoro Júnior, Jansen de Almeida, José Miguel Garcia Medina, José Roberto dos Santos Bedaque, Marcus Vinícius Coelho e Paulo Cezar Pinheiro Carneiro. Concluído em poucos meses, deu-se início à tramitação legislativa no Senado Federal sob o título de Projeto de Lei do Senado n. 166/2010 e, em seguida, na Câmara dos Deputados, sob o título de Projeto de Lei n. 8.046/2010, retornando ao Senado em 2013 e, finalmente, submetido à sanção presidencial, transformando-se na Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015, com previsão de entrada em vigor um ano após a sua publicação oficial (art. 1.045), ou seja, em 16 de março de 2016. No processo penal, por outro lado, o nosso primeiro Código Nacional foi editado pelo Estado Novo em 1941, e ainda continua em vigor, embora tenha sofrido recentemente profundas alterações, fortemente influenciadas pelo novo rol de garantias fundamentais relacionadas no artigo 5º da Constituição, como, por exemplo, as das Leis ns. 11.689, 11.690 e 11.719/2008, que, entre outras disposições, introduziram profundas inovações no procedimento perante o Tribunal do Júri, instituíram novas regras probatórias sobre a acusação, a sentença e o procedimento da ação penal. Também por iniciativa da Presidência do Senado, foi constituída uma comissão de juristas, coordenada pelo Ministro Hamilton Carvalhido, do Superior Tribunal de Justiça, e tendo como relator Eugênio Pacelli de Oliveira, que elaborou o Anteprojeto de novo Código de Processo Penal, que tramitou no Senado Federal sob o título de Projeto de Lei do Senado n. 156/2009, seguindo para a Câmara dos Deputados, onde segue o seu exame sem conclusão, sob o título de Projeto de Lei n. 8.045/2010. 2.2.5. Leis de organização judiciária, resoluções e regimentos internos dos tribunais
A disciplina da competência – importante tema de direito processual – está entregue em grande parte às leis de organização judiciária. Grosso modo, a competência é o conjunto de regras que distribui os processos entre os vários órgãos jurisdicionais. Como cada Estado-membro da Federação tem a sua própria justiça, cabe à lei de cada um instituir os órgãos jurisdicionais da respectiva justiça estadual, estabelecer a sua competência, instituir os seus serviços auxiliares, inclusive os extrajudiciais, criar os cargos e funções de todos os agentes públicos que componham os seus quadros, disciplinando o seu regime jurídico. À lei federal também incumbe legislar sobre a organização judiciária das justiças federal, do trabalho, militar e eleitoral. Embora não sejam fonte formal de direito processual, as disposições das leis de organização judiciária refletem na aplicação das leis processuais, especialmente em matéria de competência, porque as regras sobre a fixação da competência estão estabelecidas no Código de Processo Civil. A competência é um instituto de direito processual, tanto em matéria civil como penal, mas a definição do órgão jurisdicional competente para julgar determinada causa, tanto do ponto de vista territorial quanto do ponto de vista da matéria, está estabelecida nas leis de organização judiciária (Código de 1973, arts. 91 e 93; Código de 2015, art. 44). No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, a lei de organização judiciária, editada em 1975, no ano da fusão do Estado do Rio de Janeiro com o Estado da Guanabara, é o Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro (Resolução n. 01, de 24 de março de 1975, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro). O meio então adotado para disciplinar a matéria foi uma resolução do Tribunal de Justiça porque, pela Constituição vigente à época, que era a Constituição de 1967, com a redação da Emenda Constitucional n. 1/69, a organização judiciária não era matéria de lei, mas de resolução do Tribunal de Justiça de cada Estado. Ocorre que, por emendas constitucionais posteriores a 1975 e pela própria Constituição de 1988, a organização judiciária voltou a ser matéria de lei estadual. Assim, depois da sua edição, o CODJERJ foi emendado por diversas leis estaduais e, hoje, tem força de lei estadual. É nele que se deveria encontrar o número de órgãos jurisdicionais que existe em cada comarca do Estado do Rio de Janeiro, quais são os municípios abrangidos por cada comarca, qual a competência dos órgãos jurisdicionais, que matérias eles julgam etc. Entretanto,
a partir de 2001, por força do parágrafo único do artigo 68 do CODJERJ, acrescentado pela Lei estadual n. 3.603, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça, mediante Resolução, passou a fixar a distribuição de competência dos órgãos jurisdicionais, a alteração de sua denominação, a redistribuição dos feitos em curso, “sem aumento de despesa, sempre que necessário para a adequada prestação jurisdicional”. Trata-se, a meu ver, de flagrante violação do princípio da legalidade, que põe em risco a garantia constitucional do juiz natural previamente determinada pela lei, inscrita nos incisos XXXVII e LIII do artigo 5° da Constituição. No âmbito da Justiça Federal, a principal lei que dispõe sobre organização judiciária é a Lei n. 5.010/66, que instituiu a Justiça Federal e possui também dispositivos sobre matérias de direito processual, pois, como lei federal, pode dispor sobre ambas as matérias quanto ao funcionamento dos órgãos jurisdicionais federais. Então, pode observar-se que a lei de organização judiciária não é fonte propriamente dita de direito processual, ou seja, não é fonte de regras e princípios pertencentes a esse ramo do Direito, mas reflete na aplicação dessas regras e princípios do processo, através da estrutura organizacional por ela implantada e pela distribuição da competência nela estabelecida. O regimento interno dos tribunais, por sua vez, regula o seu funcionamento, dentro da autonomia que cada um deles tem de se auto-organizar. No direito brasileiro, uma das garantias da independência do Judiciário é o poder de autogoverno da magistratura e de auto-organização dos tribunais, delineado no artigo 96, inciso I, da Constituição Federal, que atribui aos regimentos internos dos tribunais dispor sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais, ou seja, das respectivas câmaras, turmas, grupos, seções etc. Embora o respeito às disposições do regimento interno devesse, em princípio, ser imposto apenas aos próprios membros dos tribunais – porque aquele é um instrumento de auto-organização –, a Constituição e as leis ordinárias têm delegado ao regimento interno a disciplina de matérias processuais. Assim, além do inciso I do artigo 96 da Carta Magna, podem citar-se os artigos 548 do Código de Processo Civil de 1973, e 930 do Código de 2015, que atribuem ao regimento interno dos tribunais a disciplina da distribuição dos processos, e o
artigo 533 do Código de 1973 (sem correspondência no Código de 2015), que determina o processamento do recurso de embargos infringentes “conforme dispuser o regimento do tribunal”. O Código de 2015 também remete ao regimento interno dos tribunais: a disciplina da arguição de impedimento e de suspeição do membro do Ministério Público, dos auxiliares da justiça e dos demais sujeitos imparciais do processo nas instâncias superiores (art. 148, § 3º); a edição de súmulas de jurisprudência (art. 926, § 1º); a definição de preferências de julgamento (art. 936); a definição em complemento à lei de julgamentos em que é facultada a sustentação oral aos advogados (art. 937, inciso IX); a disciplina do conflito de competência entre órgãos e membros dos tribunais (art. 958) e dos conflitos de atribuições entre autoridades judiciária e administrativa (art. 959); o procedimento no Superior Tribunal de Justiça da homologação da sentença estrangeira (art. 960, § 2º); o processamento do agravo interno contra decisão monocrática do relator (art. 1.021); o procedimento no Superior Tribunal de Justiça do recurso ordinário contra decisões de juízes federais (art. 1.028); a admissão de manifestação de terceiros sobre a repercussão geral de recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal (art. 1.035, § 4º); a disciplina complementar do processamento dos recursos extraordinário e especial repetitivos no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça (arts. 1.036 e 1.038, inc. I); a disciplina complementar do processamento do agravo em recurso especial ou extraordinário (art. 1.042, § 5º); e o procedimento dos embargos de divergência no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça (art. 1.044). As leis federais e estaduais instituem, respectivamente, os Tribunais Regionais Federais e os Tribunais de Justiça, mas a definição da competência dos seus órgãos de julgamento é estabelecida pelo regimento interno desses tribunais, nos termos do artigo 96, inciso I, da Constituição Federal. Com alguma frequência, nem sempre por expressa autorização legal, os tribunais têm complementado a disciplina da lei processual através de resoluções não incorporadas aos seus regimentos internos. É o que ocorreu, ainda recentemente, com o Superior Tribunal de Justiça que, por exemplo, em 2005, editou a Resolução n. 9, que dispôs sobre a homologação de sentenças estrangeiras incluída em sua competência originária pela Emenda Constitucional n. 45/2004; em 2008, editou a Resolução n. 8, que regulamentou, por autorização da Lei n. 11.672, reproduzida no artigo 1.036 do Código de 2015, o procedimento dos
recursos especiais repetitivos; em 2009, sem autorização legal, mas seguindo orientação adotada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de um caso concreto, expediu a Resolução n. 12, que dispôs sobre o processamento de reclamações destinadas a dirimir divergência entre decisão de turma recursal de juizado especial e a jurisprudência do próprio STJ. Nesse rol de disposições normativas não podem ser esquecidas as Resoluções do Conselho Nacional de Justiça, criado pela Emenda Constitucional n. 45/2004, mediante a introdução no texto constitucional de um novo artigo 103-B, como órgão superior de controle administrativo e disciplinar do Poder Judiciário, que têm disciplinado inúmeras matérias que constituem objeto do direito processual, ou que repercutem na aplicação das suas normas, como, por exemplo: as Resoluções ns. 35 sobre os procedimentos extrajudiciais de separação e divórcio; 59 sobre interceptações telefônicas; 74 sobre autorizações de viagens de menores para o Exterior; 115 sobre o cumprimento de precatórios; e 125 sobre conciliação e mediação2. Podemos dizer que o pragmatismo, a necessidade de suprir lacunas e a inércia do legislador e a premência de dar aos cidadãos segurança em relação aos meios de que dispõem para a perseguição do seu direito perante a justiça e ao modo de utilizá-los têm legitimado a proliferação dessas fontes extralegais do direito processual, que, em geral, acabam sendo acatadas pelo respeito hierárquico que os juízes e tribunais inferiores e, por isso mesmo, até a contragosto, os cidadãos e os seus advogados devotam aos órgãos que delas se utilizam. Essa pluralidade de fontes que versam sobre direito processual – umas com mais completude e profundidade do que outras – demonstra que o profissional do direito deve consultar diversos diplomas para poder advogar perante determinado tribunal, como, por exemplo, a Constituição, a lei processual, o regimento interno desse tribunal e resoluções desse tribunal, dos tribunais superiores e do CNJ. Com isso, o chamado princípio da legalidade, na sua antiga acepção de que o Estado só pode fazer aquilo que a lei permite, em matéria de direito processual, em que pese ser este um ramo do direito público, está fortemente mitigado. Significa, também, que a autoridade da lei, como fonte de direito processual, está enfraquecida, porque muitas dessas disposições extralegais não se limitam a preencher lacunas legislativas, mas até dispõem em sentido oposto ao da própria
lei, numa verdadeira usurpação da competência privativa do legislador (Constituição, art. 22, I). Isso não significa, entretanto, que essas normas sejam equiparadas às da lei. Assim, não se pode arguir em sede de recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça (Constituição, artigo 105, inciso III) violação às normas do regimento interno de um tribunal, porque este não é lei formal. Todavia, na prática, se impõem ao respeito dos jurisdicionados na medida em que os próprios tribunais as observam nos seus julgamentos. É evidente que, ainda que não venham a ser reputadas inconstitucionais, por violação do referido inciso I do artigo 22, são francamente antidemocráticas, pois submetem os cidadãos à obediência a preceitos emanados de fonte ilegítima. 2.2.6. Fontes complementares O artigo 126 do Código de 1973 estabeleceu que no julgamento da lide caberá ao juiz aplicar as normas legais, e que, não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. No mesmo sentido já dispunha o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, renomeada pela Lei n. 12.376/2010 como “Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro”. O Código de 2015 não reproduz esse dispositivo, preferindo dispor no artigo 8º que, “ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”. Mais adiante, o artigo 140 estabelece que o juiz “não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.” O Código de 2015 substitui a lei pelo ordenamento jurídico, que abrange a lei formal e todas as normas de hierarquia superior ou inferior emanadas dos poderes competentes. Outro não é o sentido da palavra lei nos diversos artigos da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que continuam em vigor. Entretanto, cabe firmar claramente que no direito brasileiro, diferentemente do que ocorre em outros países, a lei formal, emanada do devido processo legislativo regular, é a fonte específica das normas processuais, de acordo com o artigo 22, inciso I, da Constituição. Outros atos normativos que integram o
ordenamento jurídico são fontes legítimas, na medida em que a lei formal os autoriza. Assim, tanto no sentido formal, como no sentido amplo de ordenamento jurídico, a principal fonte de direito processual é a lei, mas esta tem lacunas, não sendo capaz de regular todos os atos possíveis de serem praticados no processo. Para remediar tal situação, preenchendo essas lacunas numa função de integração do direito, existem fontes complementares ou subsidiárias reconhecidas pela própria lei, que são a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. O Código de 2015 não se refere mais a essas fontes complementares, mas, a meu ver, não as excluiu, porque continuam expressamente previstas no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Nem se imagine que os critérios hermenêuticos estabelecidos no artigo 8º (a dignidade humana, a proporcionalidade, a razoabilidade, a publicidade e a eficiência) possam substituir essas fontes complementares, porque as fontes revelam normas, enquanto esses critérios servem apenas para interpretar o conteúdo e o alcance de normas, e não para criá-las. A dignidade humana, inscrita como fundamento do Estado Democrático de Direito no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, é um limite intransponível à ingerência do Estado na vida das pessoas ou à eficácia dos direitos de um que invadam a esfera de interesses de outros, impedindo que o cidadão seja submetido a experiências degradantes, que violem a sua liberdade de consciência e de vontade, que exponham publicamente os aspectos mais íntimos da sua personalidade ou o submetam a tratamento humilhante, doloroso ou cruel. A proporcionalidade é um método de equacionamento da colisão de princípios e de direitos fundamentais que procura colocá-los numa balança para definir qual deles deve prevalecer quando se tornar impossível preservar simultaneamente a eficácia de todos, avaliando a sua relevância em abstrato e em face das circunstâncias do caso concreto, visando limitar ao mínimo o sacrifício de quaisquer deles, moderando apenas os princípios estritamente necessários à preservação do que for reputado mais valioso. A razoabilidade é uma análise de adequação dos meios aos fins que examina a eficácia das normas jurídicas para evitar que elas sejam utilizadas com desvio de finalidade ou que sua aplicação conduza a situações absolutamente iníquas ou
absurdas. A publicidade, além de critério hermenêutico, é princípio e garantia inscrita no inciso LX do artigo 5º e no inciso IX do artigo 93 da Constituição, como pressuposto da transparência da administração da justiça e de controlabilidade dos seus atos e decisões pelas partes, pelos seus órgãos superiores e pela própria sociedade, à qual retornaremos no item 22.5. A eficiência é um critério de mensuração da qualidade da justiça, que procura adequar os instrumentos processuais aos seus fins, e que tem sido muito desenvolvido em outros países, especialmente para assegurar (1) que a estrutura e a máquina judiciárias sejam acessíveis a todos aqueles que delas necessitam; (2) uma prestação jurisdicional célere e tempestiva; (3) o respeito à paridade de armas e a uma proteção legal equânime a todos os jurisdicionados; (4) a implementação de mecanismos de mensuração, monitoramento e controle do desempenho dos juízes e dos órgãos jurisdicionais e a consequente promoção da credibilidade e da confiança, bem como das respectivas responsabilidades pessoais e institucionais3. Também não se pense que os princípios gerais de direito sejam sempre regras de comportamento diretamente eficazes. Embora constituam diretrizes gerais do ordenamento, impõem-se a observância de todos quando erigidos à condição de garantias, como ocorre com o contraditório, a ampla defesa e a publicidade. Nesse caso, o seu alcance poderá ser delimitado pelos demais critérios hermenêuticos do artigo 8º. Contudo, há outros princípios, como o da lealdade ou da boa-fé, que, não erigidos à condição de garantias, podem estar mais ou menos positivados e que, na lacuna das regras positivadas, constituirão fonte complementar de direito processual. O artigo 188 do Código de 1973, por exemplo, confere à Fazenda Pública e ao Ministério Público, quando for parte, prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer. Ocorre que nem sempre o Ministério Público é parte no processo, podendo nele atuar como um órgão auxiliar imparcial do juiz, na qualidade de fiscal da lei, opinando livremente acerca do direito material das partes e da regularidade da relação jurídico-processual. Nesses casos, o Código de 1973, diferentemente do Código de 2015 (art. 180), não previu expressamente que o Ministério Público tivesse prazos mais dilatados. No entanto, a doutrina e a jurisprudência, valendo-se da analogia, estenderam esse privilégio também à
atuação do Ministério Público como fiscal da lei, por identidade de razões. A analogia consiste, pois, na aplicação a uma situação jurídica não expressamente disciplinada pela lei de uma regra legal relativa a outra situação jurídica que com a primeira guarda alguma correlação, afinidade ou semelhança. Embora o direito processual seja um ramo do direito público e a atividade estatal seja regida pelo princípio da legalidade, o processo tem um fundamento cultural insuperável. A atividade humana de administração da justiça, através do exercício profissional do juiz, dos serventuários, dos advogados, é uma atividade milenar, que vai desenvolvendo práticas que se tornam regras inconscientemente e independentemente de previsão legal. É a chamada praxe forense. Por exemplo: apesar de os requisitos substanciais da sentença serem regulados no artigo 458 do Código de 1973 e no artigo 489 do Código de 2015, o seu modo de redação não é disciplinado pela lei. É o costume, a praxe, que estrutura a sentença como vista na prática cotidiana, no dia a dia do fórum. O costume processual, a praxe, assim, nasce da repetição do modo de praticar-se determinado ato que se sedimenta na consciência dos atores do processo como devendo ser o modo correto de praticá-lo. A praxe e o costume têm criado certos institutos não previstos em lei – e até batizado tais institutos –, como é o caso da precatória de vênia, no foro do Rio de Janeiro, e da exceção de pré-executividade. Quanto aos princípios gerais de direito como fontes suplementares, recordando o que escrevemos neste item e no item 2.2.1, aqui nos referimos aos princípios que não constituem garantias, nem se encontram consagrados no ordenamento em regras específicas de comportamento, ou seja, aqueles que inspiram determinado sistema jurídico, embora não positivados ou positivados genericamente, de modo insuficiente para concretizar a sua plena eficácia. Assim, por exemplo, o princípio da fungibilidade dos recursos é aceito como uma diretriz que informa todo o sistema das impugnações às decisões judiciais, embora não consagrado em qualquer dispositivo legal, para permitir que o recurso erroneamente interposto seja conhecido e julgado como se fosse o recurso certo, desde que o erro de interposição não seja grosseiro. A alguns desses princípios gerais de direito, os que estão consagrados na Constituição, refere-se o artigo 1º do Código de 2015, quando prevê que o
processo civil “será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição”. Os valores são extrajurídicos, mas podem delimitar o conteúdo de princípios e direitos previstos na Constituição. As normas fundamentais são os princípios, tanto os que têm eficácia plena, como os que são erigidos ao status de garantias, e aqueles que constituem meras fontes complementares ou critérios hermenêuticos de interpretação das leis processuais. 2.2.7. Jurisprudência A jurisprudência é o entendimento que se forma a respeito de alguma questão jurídica através da reiteração de decisões num mesmo sentido, proferidas por tribunais superiores. A jurisprudência revela uma tendência do judiciário a seguir esse entendimento. Nos países da common law, a jurisprudência é uma fonte formal de direito; é uma fonte da mesma hierarquia da lei, de maneira que os tribunais, especialmente quando compostos de juízes leigos, muitas vezes decidem contra a lei, sem que isso lhes acarrete uma especial censura. Nesses países, para que a jurisprudência seja mesmo uma fonte de direito, o que eles chamam a força do precedente, não é necessária sequer a reiteração de decisões. Basta que haja apenas uma decisão em determinado sentido, um precedente. Toda decisão de um tribunal superior sobre uma determinada questão jurídica vincula os juízes e tribunais a ele subordinados a seguirem o referido entendimento. No sistema continental-europeu, como a jurisprudência não é fonte formal, somente adquire força persuasiva com a reiteração de julgamentos num mesmo sentido. Vive-se, atualmente, um momento muito curioso, na evolução da questão da jurisprudência como fonte de direito. Isso porque os países de direito costumeiro, depois de terem implantado um sistema rígido de força vinculante do precedente, o chamado stare decisis, pouco a pouco foram relativizando essa força do precedente. Hoje, existem vários critérios de flexibilização que permitem ao juiz ou tribunal inferior deixar de aplicar o precedente do tribunal superior, como a overruling, a distinguishing e o precedente desgastado pelo tempo.
Enquanto isso, nos países da civil law, em razão da multiplicação de processos e de recursos nos tribunais superiores, há uma tendência de fortalecer a jurisprudência, ou o que os italianos chamam de função nomofilática das cortes superiores. Já há países, como, por exemplo, a Espanha, que na própria Constituição estabelecem que os tribunais inferiores têm de respeitar a jurisprudência do Tribunal Supremo, quando em dois ou mais julgamentos esse tiver fixado um entendimento sobre determinada questão. Na Suíça também ocorre tal fenômeno, embora esses dois países não adotem o paradigma de jurisdição da common law. O Brasil é herdeiro da tradição lusitana. Em Portugal, o rei tinha a sua corte de jurisconsultos, que eram os desembargadores do Paço e que integravam a chamada Casa de Suplicação de Lisboa. Como esses juízes eram porta-vozes do rei, eles elaboravam assentos da jurisprudência da Casa de Suplicação; assentos que eram enunciados breves, extraídos de vários julgados – ou até extraídos de um único julgado – que tivessem, por exemplo, resolvido um conflito de jurisprudência. Esses enunciados tinham um texto tão sintético quanto abstrato e, portanto, eram divulgados pela Casa de Suplicação e impostos, por ordem do rei, como se lei fossem, a todos os juízes e tribunais inferiores. Em Portugal, a força normativa dos assentos atravessou séculos e perdurou até 1993, ano em que ela foi declarada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional português, sob o argumento de violação da separação dos poderes, uma vez que o judiciário não poderia elaborar normas de eficácia geral. Para o Tribunal Constitucional daquele país, o judiciário somente poderia resolver casos concretos. A força normativa do assento era tão forte que nem o próprio Supremo Tribunal de Justiça – que sucedeu à Casa de Suplicação – podia alterá-la. Esses assentos eram leis do ponto de vista formal, e se o Governo considerasse que aquele entendimento não era correto tinha de propor uma lei ao Parlamento, para que este revogasse o assento do Supremo Tribunal de Justiça. Esse sistema de vinculação à jurisprudência é muito semelhante ao que prevaleceu na Inglaterra até 1966, quando a Câmara dos Lordes, através de seus lordes juristas – que até 1º de outubro de 2009, quando foi instalada a Corte Suprema do Reino Unido, fizeram as vezes de tribunal de cúpula daquele país –, declarou que a referida Câmara não estaria mais vinculada aos seus próprios precedentes.
No Brasil, importaram-se todos esses assentos do direito português enquanto este aqui vigorou. Em matéria processual, especificamente, o direito português vigorou no Brasil, ainda que parcialmente, até o advento do Código de Processo Civil de 1939. Em 1943, foi editada a Consolidação das Leis do Trabalho, que continha uma previsão no sentido de que o Tribunal Superior do Trabalho poderia, com base na sua jurisprudência, elaborar prejulgados e que esses seriam de observância obrigatória pelos juízes e tribunais inferiores. O Brasil, naquele momento da edição da CLT, não era uma democracia; o Congresso Nacional estava fechado desde 1937 pelo Presidente Getúlio Vargas. Durante mais de vinte anos, o Tribunal Superior do Trabalho elaborou mais de duzentos prejulgados, até que, em 1977, o Supremo Tribunal Federal repudiou a força normativa dos prejulgados trabalhistas. Segundo a decisão do Supremo Tribunal então proferida sobre a matéria (Representação n. 946), a força vinculante das decisões judiciais viola o princípio da separação de poderes, utilizando, portanto, o mesmo fundamento que viria a ser usado pelo Tribunal Constitucional português em 1993 para repudiar o caráter normativo dos assentos, antes comentado. O Brasil tinha se tornado novamente uma democracia com o advento da Constituição de 1946, em que prevalecia o princípio da separação de poderes. Assim, a lei anterior que continha dispositivo incompatível com esse princípio ficou revogada pela Constituição de 1946. Nesse julgamento, o Supremo Tribunal Federal não declarou inconstitucional o prejulgado trabalhista, mas considerou revogado pela Constituição de 1946 o dispositivo da CLT que previa a força vinculante desses precedentes, por incompatibilidade com a separação de poderes. Esta é uma técnica de declaração de inconstitucionalidade usada pelo Supremo Tribunal pátrio e que não me agrada: entender que a incompatibilidade com um texto constitucional posterior não gera propriamente inconstitucionalidade da lei, mas a sua revogação. Esse entendimento tem limitado o controle concentrado de constitucionalidade em nosso país apenas às leis posteriores à Constituição, o que reduz sensivelmente o papel de um tribunal constitucional, especialmente em países como o nosso, em que os textos constitucionais têm pouca duração. No início da década de 1960, assume o cargo de Ministro do Supremo Tribunal
Federal Vitor Nunes Leal, que já tinha sido procurador-geral de Justiça no antigo Distrito Federal e era um homem ilustre, com reconhecida cultura humanística. Esse ministro foi o grande mobilizador da criação da súmula da jurisprudência predominante daquele tribunal. Ele começou a fazer, junto a seus colegas e junto à comunidade jurídica, a crítica da divergência de julgados dentro do tribunal, observando que ocorria uma verdadeira loteria judiciária. Por exemplo, quando um recurso sobre determinada questão jurídica era distribuído à Primeira Turma, era acolhido; mas, quando um recurso sobre matéria idêntica era distribuído à Segunda, era rejeitado. Às vezes, a mesma Turma, em dias diferentes, com relatores diferentes, tomava decisões contraditórias. Isso era uma verdadeira loteria. Era preciso dar uniformidade às decisões do Supremo Tribunal Federal. Se o Supremo é o porta-voz da interpretação da Constituição – e à época também o era em relação às leis federais –, ele não pode interpretá-la de modo diverso em casos idênticos, porque isso significa, em última análise, que os cidadãos não são tratados com igualdade pelo judiciário. Então, o Ministro Nunes Leal fez um trabalho ciclópico – além de participar normalmente dos julgamentos, como qualquer outro ministro –, no qual foi auxiliado por alguns assessores. O Supremo Tribunal Federal, então, em 1963, fez uma emenda regimental e, no ano seguinte, passaram a ser editadas as primeiras 370 súmulas da sua jurisprudência predominante4. Essas súmulas não tinham força de lei; eram apenas publicadas para que a comunidade jurídica, através dos juízes, dos advogados, dos tribunais etc., as levassem em consideração nos julgamentos futuros. A esse tipo de súmulas hoje chamamos de súmulas persuasivas. Quanto ao Supremo Tribunal Federal, a emenda regimental dizia que ele tinha de aplicar as súmulas; para não aplicá-las, ele deveria, antes, revogá-las. As súmulas do Supremo Tribunal Federal, aliás, adotaram, formalmente, o mesmo modelo dos assentos portugueses: enunciados curtos e de grande abstração. Elas são, portanto, diferentes dos precedentes americanos, que são constituídos pelo inteiro teor dos julgados. O Professor Alfredo Buzaid, que foi o autor do anteprojeto que se tornou o
Código de Processo Civil de 1973, era muito favorável ao modelo português, de força normativa dos assentos. Nesse anteprojeto, ele propôs a súmula com força vinculante (art. 518), com força de lei, que não somente poderia ser elaborada pelo Supremo Tribunal Federal, mas por qualquer outro tribunal superior (arts. 516 e 520). Contudo, na revisão do anteprojeto, não prevaleceu o seu entendimento, e, portanto, o texto do Código de 1973 introduziu no processo perante os tribunais superiores um incidente, a que denominou incidente de uniformização de jurisprudência, regulado nos artigos 476 a 479, estabelecendo que, toda vez que em algum órgão de um desses tribunais, em determinado julgamento, se verificasse divergência na interpretação da lei, poderia ser suscitado um incidente para que o plenário do tribunal decidisse qual entendimento deveria prevalecer. Se nesse incidente o entendimento fosse revelado pela maioria absoluta dos membros do tribunal, esse poderia elaborar uma súmula, que teria força de precedente (art. 479). O Código, entretanto, não explicitou o que seria essa força de precedente. O entendimento dominante acerca desse dispositivo foi no sentido de que essa força era meramente persuasiva, ou seja, que recomendaria aos demais órgãos de julgamento do próprio tribunal e aos juízos e tribunais inferiores o respeito àquele entendimento, para serem evitados recursos inúteis e para que a uniformidade na aplicação da lei resultasse em tratamento isonômico dos cidadãos, sem, contudo, criar vedação de julgamentos em sentido diverso. O precedente vale apenas como doutrina, como um entendimento que o tribunal adota e recomenda que os juízes e os tribunais inferiores sigam, embora conservem plena liberdade de divergirem e de darem àquela lei a interpretação que julgarem mais adequada. A partir da década de 1960, passou-se a ter em outro campo de atuação do judiciário decisões com força vinculante, com a Emenda Constitucional n. 16/65, que criou a chamada representação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. Esse instituto antecedeu a atual ação direta de inconstitucionalidade instituída na Constituição de 1988 (art. 102, inc. I, alínea a). Além do julgamento de casos concretos, que é o que o judiciário faz
normalmente, a Constituição atribuiu com exclusividade ao Supremo Tribunal Federal o poder de declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese. É o que se chama de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade das leis. Na vigência da Emenda Constitucional n. 16, de 1965, e até o advento da Constituição de 1988, somente o procurador-geral da República podia propor a representação para declaração da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual perante o Supremo Tribunal Federal. Essa ação, proposta em abstrato perante o Supremo Tribunal Federal, seguia um modelo europeu de controle concentrado de constitucionalidade. Por esse modelo, quando uma Corte constitucional reconhecia no controle abstrato a inconstitucionalidade de uma lei, esta era retirada do ordenamento jurídico, funcionando como legislador negativo. Por esse fenômeno, a decisão judicial tinha força normativa, já que havia retirado a lei do ordenamento jurídico. Então, passamos a ter, a partir de 1965, decisões do Supremo Tribunal Federal com força normativa: as decisões que declaravam, em sede de representação do procurador-geral da República, a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo federal ou estadual. A ideia de um tribunal constitucional, acima dos demais poderes do Estado, e esse novo papel de controle em abstrato da constitucionalidade das leis para obrigar os parlamentos a se submeterem ao pacto político fundamental, que é a Constituição, é originária de Hans Kelsen e da Constituição austríaca do primeiro pós-guerra, disseminando-se em toda a Europa, entretanto, somente depois da reconstitucionalização democrática decorrente da derrocada das ditaduras nazista e fascista na 2ª Guerra Mundial. A Constituição de 1988 acolheu e ampliou o instituto, estendendo a legitimidade ativa para a propositura das ações diretas de inconstitucionalidade (art. 103 da Constituição), que, hoje, pode ser proposta, por exemplo, pelo Presidente da República, pelos Governadores, por entidades de classe de âmbito nacional etc. A força normativa das decisões do Supremo Tribunal Federal sempre se restringiu às hipóteses de declaração de inconstitucionalidade em sede de controle abstrato. No exercício do controle difuso de constitucionalidade das leis, que herdamos do modelo constitucional norte-americano de tripartição de poderes com supremacia do Poder Judiciário, quaisquer juízos ou tribunais, no julgamento de casos concretos, podem recusar-se a aplicar as leis que reputem incompatíveis com a Constituição. Essas decisões, inclusive quando proferidas
pelo Supremo Tribunal Federal, não têm força normativa, tanto que a própria Constituição, no seu artigo 52, inciso X, prevê que cabe ao Senado Federal, mediante Resolução, nesses casos, suspender a execução da lei. Em 1993, no governo do Presidente Itamar Franco, foi aprovada uma Emenda Constitucional, a Emenda n. 3, que criou uma nova ação de controle concentrado de constitucionalidade. Tal ação é a ação declaratória de constitucionalidade, de competência originária do Supremo Tribunal Federal. O Supremo Tribunal Federal, que já podia declarar a inconstitucionalidade com forma normativa, passou também a poder declarar a constitucionalidade com força normativa, obrigando as instâncias inferiores a seguirem o seu entendimento, impedindo-as, assim, de deixar de aplicar a lei sob o fundamento da sua inconstitucionalidade. Considero esse instituto uma aberração, que somente existe no Brasil, pois é absolutamente impossível que o Supremo Tribunal Federal declare com força vinculante que uma lei é constitucional, sem ter concretamente examinado a sua compatibilidade com mais de 800 dispositivos enunciados na Constituição. Todavia, está ela constitucionalmente prevista no atual inciso I, letra a, e no § 2º do artigo 102 da Carta Magna, oriundo da Emenda n. 3 e ampliado pela Emenda n. 45/2004, já tendo o próprio Supremo Tribunal tido ocasião de repelir a sua inconstitucionalidade. Também a Emenda n. 3/93 e posteriormente a Lei n. 9.882/99 vieram a instituir a chamada arguição de descumprimento de preceito fundamental, mecanismo que me parece misto, ao mesmo tempo de controle abstrato e concreto de constitucionalidade, que se aplica a hipóteses restritas não alcançadas pelas ações de constitucionalidade e de inconstitucionalidade, cujos contornos ainda não estão definitivamente delineados na jurisprudência do tribunal. Com o advento da ação declaratória de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal passou a entender que as decisões de improcedência na ação direta de inconstitucionalidade, desde que alcançassem o quórum da maioria absoluta, passaram a ter também força normativa. A ADI e a ADC passaram, então, a ser ações dúplices, ambivalentes, com força normativa sempre que concluírem pela constitucionalidade ou não da lei pelo voto da maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal, ou seja, pelo voto no mesmo sentido de pelo menos seis dos onze ministros da Corte. Esse entendimento do Supremo Tribunal Federal acabou consagrado na redação
que a Emenda Constitucional n. 45/2004 deu ao referido § 2º do artigo 102 da Constituição. Então, em matéria de interpretação da Constituição, no julgamento de ações diretas de inconstitucionalidade ou de ações declaratórias de constitucionalidade, as decisões do Supremo Tribunal Federal têm sempre força normativa. Assim, atualmente temos uma sensível diferença na eficácia das decisões do Supremo Tribunal em matéria constitucional, conforme sejam elas proferidas em ações de controle concentrado, como a ADI e a ADC, ou em outras ações ou recursos relativos a causas comuns, o que é objeto de críticas, inclusive de membros da Suprema Corte. Observe-se, por outro lado, que há uma diferença, quanto à extensão subjetiva, entre a declaração de inconstitucionalidade e a de constitucionalidade em ações de controle concentrado. A declaração de inconstitucionalidade é uma declaração de nulidade, retirando a lei do ordenamento e vinculando o próprio Supremo Tribunal Federal, que tem a prerrogativa constitucional de velar pelo primado da Constituição e atua, nesses casos, como legislador negativo, mas que não pode, ele mesmo, em outro julgamento, vir a modificar o seu entendimento para restaurar a vigência da lei, porque a elaboração de leis compete exclusivamente ao Poder Legislativo ou excepcionalmente ao Executivo, no exercício das competências que a própria Constituição confere a esses poderes. Já a declaração de constitucionalidade não tem nenhuma consequência sobre a validade, vigência ou eficácia da lei preexistente. E, por isso, a força vinculante dessa declaração atinge a Administração Pública e os demais órgãos do Poder Judiciário, não o próprio Supremo Tribunal, que, em julgamento posterior, seja em controle abstrato ou difuso, poderá vir a declarar a inconstitucionalidade da lei. É o que resulta do disposto no referido § 2º do artigo 102. Observe-se, todavia, que a imperfeita redação desse parágrafo, conferida pela Emenda n. 45, ao estender essa mesma eficácia às declarações de inconstitucionalidade, poderia gerar a falsa impressão de que a declaração de inconstitucionalidade pelo STF em controle concentrado não vincularia o próprio Tribunal, o que seria incompatível com a mera função de legislador negativo que a Corte exerce nessa declaração. Nas demais matérias, ou seja, naquelas que não são de ordem constitucional, o Supremo Tribunal Federal, assim como os demais tribunais e juízos de primeiro
grau, continua adstrito à regra da força meramente persuasiva da jurisprudência, e não força vinculante, em razão do artigo 479 do Código de 1973, já examinado, dos dispositivos do Código de 2015, que, em seguida, examinaremos, e da tradição do direito brasileiro. Todavia, a recente crise do Poder Judiciário e a preocupação com o excesso de processos e de recursos levaram a sucessivas reformas do Código de Processo Civil e da própria Constituição, para dar mais força à jurisprudência. Um dispositivo bastante expressivo desse fortalecimento da jurisprudência foi o artigo 557 do Código de 1973, alterado pela Lei n. 9.756/98, que criou o que no jargão forense foi chamado de súmula impeditiva de recurso. Esse dispositivo permitiu que, em qualquer tribunal, o relator negue seguimento a recurso em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal ou de tribunal superior, cabendo, desse despacho unipessoal, entretanto, o chamado agravo interno, para o colegiado a que pertence o relator, nos termos do § 1º do referido artigo. O Código de 2015 contém dispositivo semelhante, incumbindo ao relator negar provimento a recurso contrário a súmula de qualquer tribunal, a acórdão do STF ou do STJ em julgamento de recursos repetitivos ou a entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência (art. 932, inciso IV, c), com agravo interno para o colegiado (art. 1.021). Posteriormente à Lei n. 9.756/98, a Lei n. 11.276/2006 introduziu um novo § 1º no artigo 518 do Código de 1973, estabelecendo que o próprio juiz, quando recebe a apelação, poderá negar-lhe seguimento, se a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal. Foi reforçada, portanto, a chamada súmula impeditiva de recurso. Esse dispositivo desapareceu no Código de 2015, que não mais prevê a admissão ou não da apelação pelo juízo de primeiro grau (art. 1.010, 3º). A criação da súmula vinculante foi fruto do novo artigo 103-A da Constituição, acrescentado pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Esse dispositivo conferiu ao Supremo Tribunal Federal o poder de, por sua própria iniciativa ou por provocação de qualquer legitimado para a as ações de controle concentrado de constitucionalidade, aprovar súmula em matéria constitucional, que terá força vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública direta e indireta, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na
forma da lei. Já foi referida a força vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal nas ações de controle concentrado de constitucionalidade, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade, decorrente do artigo 102, § 2º, da Constituição. Então, a ideia de jurisprudência como fonte formal de direito parece ter sido consagrada solenemente com a criação da súmula vinculante. Esse instituto foi regulamentado pela Lei n. 11.418/2006. A aludida emenda também criou a chamada repercussão geral, no parágrafo terceiro do artigo 102 da Constituição. Os recursos, em casos individuais, para o Supremo Tribunal Federal sobre matéria constitucional somente serão admitidos se a questão constitucional for uma questão de repercussão geral, instituto que veio a ser regulamentado pela Lei n. 11.418/2006. A partir dessa inovação, não é qualquer violação à Constituição que será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, mas apenas aquelas que ele considere que têm uma repercussão que ultrapassa o caso concreto, o interesse das partes do processo. Com a repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal renuncia à sua missão de guardião de toda a Constituição, para reduzir-se à função tutelar dos preceitos constitucionais que tiverem sido objeto de violações de especial relevância. O direito individual, constitucionalmente assegurado, mas que não possui repercussão geral, deixou de ser agasalhado pelo Supremo Tribunal. Paradoxalmente, um indivíduo pode chegar nesse caso até a Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas está impedido de levar o seu pleito ao mais alto tribunal do seu país. Essa restrição, aparentemente heroica, pois visa a reduzir o número excessivo de recursos para o Supremo Tribunal Federal, é péssima para os cidadãos. Com ela o direito brasileiro está olvidando uma lição lapidar de Cappelletti, por ele recordada em 1991 aqui mesmo no Brasil, na sua última palestra proferida em nosso país, no sentido de que a justiça do nosso tempo não pode ser mais pensada em benefício dos seus produtores, mas em função dos seus usuários5. A justiça não existe para servir ao Estado, mas para servir aos cidadãos. Para servir ao Estado, já existem todos os órgãos da Administração Pública. Parodiando expressão de consagrada jurista francesa a respeito de filtro semelhante introduzido naquele país ao recurso para a Corte de Cassação, com esse tipo de limitação o Supremo Tribunal Federal está deixando
de exercer uma justiça democrática para transformar-se em instrumento de uma justiça aristocrática6. Essa visão, entretanto, foi ignorada pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Para piorar ainda mais essa perda de garantia de direitos previstos na Constituição, a lei que regulamentou a repercussão geral, já referida, criou ainda um procedimento em que, para a sua aferição, são selecionados alguns processos-modelos, que são remetidos ao Supremo Tribunal Federal, enquanto outros ficam sobrestados nas instâncias de origem. O Supremo Tribunal Federal, verificando a multiplicidade de processos semelhantes e fazendo uso dessa faculdade, pode decidir acerca da repercussão geral e do próprio mérito dos recursos selecionados, sem que, entretanto, tenham as partes nos processos sobrestados a mais ampla possibilidade de influírem na decisão eventualmente adotada (CPC de 1973, art. 543-B). Isso viola frontalmente o contraditório e a ampla defesa, proclamados no inciso LV do artigo 5º da Carta Magna. Esse mecanismo de processos-modelo foi também adotado pela Lei n. 11.672/2008 para o julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça de múltiplos recursos especiais sobre a mesma questão de direito, chamados de recursos especiais repetitivos (CPC de 1973, art. 543-C). O Código de 2015 dedicou um capítulo, que encabeça a disciplina do processo nos tribunais (arts. 926 a 928), à jurisprudência, determinando que os tribunais a uniformizem, mantendo-a estável, íntegra e coerente, recomendando que os tribunais elaborem súmulas correspondentes à sua jurisprudência dominante, atentas às circunstâncias fáticas dos casos que as motivaram (art. 926) e possibilitando, na sua revisão, a realização de audiências públicas e a participação dos interessados (art. 927, § 2º). Prevê também na alteração de súmula ou de jurisprudência dominante a modulação temporal dos efeitos da nova decisão (§ 3º). O dispositivo mais emblemático e que certamente ensejará vivas as polêmicas é o que determina (art. 927, caput) que os juízes e os tribunais observem a jurisprudência dos tribunais superiores, os precedentes do plenário do STF e da Corte Especial do STJ e a orientação do plenário do tribunal a que estiverem vinculados. Em vários casos, essa recomendação se funda não em uma série de julgamentos que consolidaram um entendimento, ou seja, uma jurisprudência dominante, mas em apenas um julgamento, que, apesar de emanado de um único
colegiado de nível superior, pode vir a ser revisto em julgamento posterior pelo mesmo colegiado ou até no reexame do mesmo caso concreto por uma instância recursal subsequente. O dispositivo determina a observância, e não a obediência, aos julgados dos tribunais superiores, o que é corroborado pela ausência de sanção expressa para o descumprimento da norma. Assim, a independência dos juízes e tribunais inferiores, garantia constitucional democrática a que nos referimos no item 1.3.3, impede-os de seguir cegamente no julgamento dos casos a eles submetidos as decisões dos tribunais superiores. Contudo, deverão eles levar em consideração essas decisões, justificando porque não as aplicam nos casos que julgarem. No mesmo sentido de fortalecimento da jurisprudência, o Código de 2015 manteve e ampliou os institutos da assunção de competência (art. 947), de julgamento dos recursos extraordinário e especial repetitivos (arts. 1.036 a 1.041) e criou o novo incidente de resolução de demandas repetitivas (arts. 976 a 987). Em consequência, desaparece, por desnecessário, o incidente de uniformização de jurisprudência dos artigos 476 a 479 do Código de 1973. Em minha opinião, portanto, salvo nos casos em que a força vinculante dos julgados ou das súmulas é imposta pela própria Constituição, a jurisprudência continua a ser uma fonte persuasiva, complementar, subsidiária de direito processual. Em síntese, continuamos fiéis à tradição romano-germânica de que a jurisprudência não é fonte formal de direito; é uma fonte complementar. Contudo, existe uma evolução forte no direito brasileiro no sentido de dar mais importância à jurisprudência, e até de obrigar os juízes e tribunais inferiores e a Administração Pública a respeitá-la, por meio das súmulas vinculantes, das súmulas impeditivas de recurso e da imposição aos juízes da observância da jurisprudência e da orientação dos tribunais superiores. O próximo passo catastrófico nessa tendência nacional talvez venha a ser o de punir os juízes que julguem contrariamente às súmulas vinculantes, à jurisprudência ou à orientação dos tribunais superiores. Em realidade, os juízes rebeldes, que não observam nas suas decisões as súmulas, a jurisprudência e os precedentes dos tribunais superiores, já estão sendo punidos no momento das suas promoções na carreira, pois o índice de reforma das suas sentenças é certamente levado em consideração na avaliação da qualidade das suas decisões
e do seu merecimento funcional. Portanto, estão sendo forçados pelo tribunal a marcharem ao ritmo de um mesmo tambor, como dizia Damaska no texto comentado no primeiro capítulo desta obra. Parece terem razão os que observam que, no Brasil, a jurisprudência tem mais força do que a própria lei7, porque esta, se descumprida pelo juiz, não lhe acarreta qualquer sanção, ao passo que a desobediência à jurisprudência pode prejudicá-lo na sua carreira. Apesar da ascensão que teve a jurisprudência no direito brasileiro, continuo entendendo que ela não chega a constituir uma fonte formal autônoma de direito, por duas razões: em primeiro lugar, porque ela deve limitar-se a interpretar leis preexistentes, entre as quais a própria Constituição, não criando direito novo; em segundo lugar, como consequência dessa primeira característica, porque ela não está sujeita aos limites de eficácia temporal a que se submete a própria lei, isto é, ela não dispõe apenas para o futuro, respeitando direitos adquiridos na época em que prevalecia entendimento diverso ao que ela tiver adotado. Ao contrário, esse é um dos maiores riscos das mudanças de jurisprudência. As expectativas de que um direito exista, porque assim têm entendido os tribunais, pode ficar frustrada pela nova jurisprudência ou súmula, ainda que seja uma súmula vinculante, pois, quanto a esta, o próprio Supremo Tribunal Federal pode revê-la ou revogá-la. Nesse aspecto, conferia maior segurança o velho assento lusitano, que somente poderia ser revogado pela lei posterior, a qual, por sua vez, tinha de respeitar direitos adquiridos. O Código de 2015 tenta solucionar esse problema da força retroativa da jurisprudência, permitindo, no § 3º do artigo 927, a modulação dos efeitos da alteração de jurisprudência pelo próprio tribunal do qual ela emana. Essa técnica, já anteriormente adotada entre nós no controle concentrado de constitucionalidade (Lei n. 9.868/99, art. 27), é muito perigosa, porque, ao extravasar as circunstâncias fáticas e jurídicas do caso concreto por ele julgado para alterar entendimento anteriormente firmado, o tribunal superior é chamado a definir o alcance da sua decisão a outros casos concretos, cuja configuração fática e jurídica não foi no julgamento objeto de qualquer cognição, com a participação dos interessados e o respeito ao contraditório e à ampla defesa. Então, a conclusão a que se chega é a de que a justiça brasileira, ao enveredar pelo caminho do fortalecimento da jurisprudência, pode estar diminuindo o número de processos e de recursos, mas sujeita a sociedade ao ônus de ter de submeter-se a decisões e entendimentos judiciais fixados sem cognição adequada
e sem que os por eles atingidos tenham tido ampla possibilidade de influir na sua elaboração, como é da índole do processo judicial, por força dos incisos LIV e LV da Constituição. Essa evolução, ditada por uma justiça em crise, é flagrantemente violadora das garantias fundamentais do processo, do direito de acesso à justiça e, muitas vezes, do direito fundamental à segurança jurídica. 2.2.8. Equidade O artigo 127 do Código de 1973 e o parágrafo único do artigo 140 do Código de 2015 estabelecem que o juiz somente decidirá por equidade nos casos previstos em lei. Numa definição simples, costuma-se dizer que a equidade é a justiça do caso concreto; ela é o critério de decisão do juiz fundado no sentimento de justiça que lhe revelam as circunstâncias do caso concreto. A redação do Código de 2015, aprovada na Câmara dos Deputados, eliminou o parágrafo único do artigo 140, restabelecido na revisão final do Projeto no Senado. Com efeito, muitos censuram esse dispositivo e entendem que a equidade permeia o ordenamento jurídico e que ao juiz cabe considerá-la em todas as decisões, à luz das diretrizes que a lei lhe impõe nos artigos 1º e 8º, e não apenas nos casos previstos em lei. Como eu já afirmei a respeito dos princípios, quando estes não se materializam em regras de comportamento ou em garantias, eles constituem critérios hermenêuticos que contribuem para revelar o conteúdo e o alcance das regras do ordenamento jurídico e, somente à falta destas, são fonte de direito. No entanto, a aplicação da lei à luz dos princípios não autoriza o juiz a abandonar a lei em benefício de quaisquer princípios, nem a criar uma norma de comportamento específica fundada nas peculiaridades de cada caso concreto, porque seria a ruína do Estado de Direito, o fim da igualdade e da segurança jurídica e a instauração do arbítrio. Por isso, sistemas jurídicos tradicionais ainda mantêm dispositivo equivalente ao que estamos comentando, como o Código de Processo Civil italiano no artigo 113. Muitas vezes, o juiz se sente inclinado a deixar de aplicar a lei por considerá-la injusta. Isso ele só pode fazer declarando a lei inconstitucional por afronta a algum preceito da Carta Magna. Especialmente em um país como o Brasil, de frágil tradição democrática, regra como a ora comentada é muito importante para reafirmar a subordinação do juiz à lei, porque a submissão à lei é um dos fatores fundamentais de legitimação democrática do juiz no sistema da civil law.
No sistema brasileiro, que é de direito escrito, normalmente o juiz somente pode decidir por equidade quando a lei o autoriza, por força do princípio da legalidade. Ao julgar dessa maneira, deve ele adotar a melhor solução para o caso concreto, de acordo com os critérios e nos limites que a lei lhe impõe. Pelo princípio da legalidade, o juiz, como autoridade pública, deve exercer o seu poder nos limites da lei e em conformidade com a lei. Então, resumidamente, a equidade é esse critério de julgamento que dá ao juiz o poder de, examinando as circunstâncias do caso concreto, formular um juízo de conveniência e oportunidade sobre a decisão mais adequada, sem, entretanto, se chocar com as disposições da lei. Tenho sustentado que também as partes deveriam poder conferir ao juiz a faculdade de decidir por equidade, como ocorre em outros países. Se aos árbitros na convenção de arbitragem pode ser conferida essa faculdade (Lei n. 9.307/96, art. 2º), não vejo fundamento para a impossibilidade de igual concessão ao juiz. Quando o Código Civil, por exemplo, estabelece, a respeito do arbitramento da pensão alimentícia, que o juiz a fixará de acordo com a capacidade econômica do alimentante e a necessidade do alimentando (art. 1.694, § 1º), está permitindo que o juiz sopese as circunstâncias do caso concreto e estabeleça o valor da pensão de acordo com os rendimentos e encargos de um e as despesas necessárias do outro para prover a uma sobrevivência condigna. A lei não fixa desde logo o valor da pensão, mas dá ao juiz o poder de ponderar todas as circunstâncias fáticas que possam influir no arbitramento mais justo possível. Isso porque alguém pode ter uma remuneração idêntica à de outrem, mas ter encargos que não lhe permitam pagar a pensão no mesmo valor que o outro pode pagar. Do mesmo modo, uma criança sadia de tenra idade necessita de meios materiais de menor porte do que um adolescente ou do que uma criança doente. Essas circunstâncias deverão ser avaliadas pelo juiz. Essa é a equidade como fonte de direito civil. No processo, essa maior liberdade dada ao juiz para ditar regras processuais adequadas ao caso concreto é objeto de várias disposições. O conceito moderno de equidade estabelece um limite a esse poder criativo do juiz, que é a isonomia, a paridade de tratamento. Mesmo que o juiz possa, em muitos casos, revelar ele próprio a regra que deve vigorar no caso concreto, ponderando as circunstâncias
que caracterizam esse caso, essa regra, que ele revela, deverá ser idêntica toda vez em que ele se deparar, em outros casos, com as mesmas circunstâncias. Ou seja, apesar de a equidade se revelar empiricamente no exame de cada caso, ela não deve ser instrumento de arbítrio. Diante das mesmas circunstâncias, o juiz deve aplicar as mesmas regras. No Código de Processo Civil, deparamo-nos diversas vezes com a equidade. O Código de 2015 (art. 85, § 2º), numa redação semelhante à do Código de 1973 (art. 20, § 3º), estabelece que os honorários advocatícios sejam fixados no mínimo de dez por cento e no máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação, do proveito econômico ou do valor atualizado da causa, atendidas várias circunstâncias, como o grau de zelo do profissional, o lugar da prestação do serviço, a natureza da causa, o trabalho realizado pelo advogado. Então, entre o mínimo de dez e o máximo de vinte por cento, o juiz pode fixar qualquer valor, levando em conta as circunstâncias mencionadas. Esse é um exemplo de um juízo de equidade. O Código de 1973 (art. 177) e o Código de 2015 (art. 218, § 1º) também contêm uma regra relativa à equidade na fixação dos prazos processuais. Esses artigos dispõem que os atos processuais realizar-se-ão nos prazos previstos em lei; quando esta for omissa, o juiz determinará os prazos, tendo em conta a complexidade da causa. Ainda nesse sentido, o Código de 1973 (artigo 232, inciso IV) e o Código de 2015 (art. 257, inciso III), ao estabelecerem os requisitos da citação por edital, conferem ao juiz certa flexibilidade na fixação do prazo de eficácia do edital, “que variará entre vinte e sessenta dias”, fluindo da sua publicação. Situação semelhante ocorre na ação rescisória (art. 491 do CPC de 1973; art. 970 do CPC de 2015), em que o relator poderá fixar, por equidade, o prazo para contestação entre o mínimo de quinze e o máximo de trinta dias. Isso dependerá, por exemplo, da cidade onde se encontre o réu da ação rescisória, pois, como essa é da competência de um tribunal – normalmente localizado na capital do Estado-membro, conforme o caso, ou em Brasília, no caso dos tribunais superiores da União –, pode ser que um determinado réu necessite de mais tempo para produzir a sua defesa e levá-la tempestivamente ao protocolo físico ou virtual do referido tribunal. Esse poder de criar a regra também se encontra previsto – até com mais
complexidade, porque não diz respeito apenas à aplicação de uma regra processual, mas também de uma regra de direito material – na chamada jurisdição voluntária, que estudaremos no capítulo seguinte, com base no artigo 1.109 do Código de 1973 e no parágrafo único do artigo 723 do Código de 2015, assim como nos juizados especiais, por força do artigo 6º da Lei n. 9.099/95. Como veremos adiante, a jurisdição voluntária é uma modalidade de jurisdição eminentemente assistencial, em que não há litígio. O juiz tutela assistencialmente interesses que a lei impõe e que devam ser providos por um ato judicial. Assim, por exemplo, a nomeação de um tutor e a interdição são um ato e uma situação que só podem ser adotados mediante uma decisão judicial. No procedimento judicial para esse fim instaurado, normalmente não há um litígio, mas cabe ao juiz velar pelo interesse de uma pessoa mais frágil, que precisa ser protegida. Os artigos 1.109 do Código de 1973 e 723, parágrafo único, do Código de 2015, tratando genericamente dos procedimentos de jurisdição voluntária, estabelecem que o juiz não é obrigado a observar critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a solução que reputar mais conveniente ou oportuna. Há uma grande polêmica doutrinária acerca do que significa o fato de o juiz, na jurisdição voluntária, não estar sujeito a um critério de legalidade estrita. Num sistema de juízes leigos, de juízes da comunidade, como ocorre em países da common law, essa inobservância da legalidade estrita é mais ampla, porque a jurisprudência, como vimos, é uma fonte de direito tão importante quanto a lei, e porque a justiça da comunidade tem uma função primordialmente pacificadora. Portanto, o fato de a justiça decidir contra a lei não é nada aberrante ou extravagante. É a vontade da comunidade, a vontade popular que assim determina, representada por juízes com legitimidade democrática, originários da própria comunidade. De certo modo, nós temos no Brasil esse desprendimento do juiz em relação à lei no tribunal do júri, que é um órgão jurisdicional composto de pessoas do povo e ao qual a própria Constituição confere a soberania dos seus veredictos (art. 5º, inc. XXXVIII, c). Contudo, num sistema de juízes profissionais, autorizar o juiz a decidir de acordo com a conveniência e a oportunidade de cada caso pode significar uma autorização ao arbítrio. Assim, a maioria da doutrina entende que, também na jurisdição voluntária, o juiz está subordinado à lei, mas, sem prejuízo de
observar a lei, ele deve ter sempre uma margem dentro da qual vai formular um juízo de conveniência e oportunidade, no sentido de praticar ou não o ato, de acordo com o que lhe parecer mais adequado para o caso concreto. Por exemplo: de acordo com o Código Civil (art. 1.691), o pai não pode vender um imóvel do filho menor sem autorização judicial. Se o pai de determinado menor pretender vender um imóvel deste, deverá, então, requerer ao juiz a expedição de um alvará, autorizando-o a realizar a venda. Para tanto, o juiz precisará saber, por exemplo, qual o valor do imóvel, o destino do dinheiro arrecadado com a venda, o motivo da alienação etc. A decisão que o juiz vai adotar estará, ao mesmo tempo, sujeita às prescrições legais e à conveniência e oportunidade da realização dessa venda, sob o prisma do interesse do menor. Então, o fato de, na jurisdição voluntária, ser facultado ao juiz realizar um juízo de conveniência e oportunidade não significa que ele esteja autorizado a contrariar a lei. Essa é a forma de conciliar a legalidade típica da justiça profissional com a função assistencial que o juiz deve ter de exercer e que, no exemplo dado, se caracteriza pela necessidade de resguardar o interesse do menor. Outro sistema normativo em que existe regra semelhante é o dos juizados especiais, regulado pela Lei n. 9.099/95. Os juizados especiais foram instituídos para o julgamento de causas de menor complexidade, que, hoje, são as causas até quarenta salários-mínimos na justiça estadual e sessenta na justiça federal e algumas outras. A justiça nos juizados é, em regra, mais simples, mais barata e menos formal, sendo dispensada a presença do advogado nas causas até vinte salários-mínimos. O artigo 6º da Lei em referência estabelece que o juiz adotará, em cada caso, a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum. Estabelece-se, assim, a mesma liberdade relativa que tem o juiz na jurisdição voluntária, o que, contudo, vem sendo usado por alguns para deixar de aplicar a lei. No direito anglo-americano, nos procedimentos semelhantes ao dos nossos juizados especiais, podem até ser proferidas decisões contrárias à lei, mas, ao importarmos tal sistema do direito anglo-americano (em que há as chamadas small claim courts), deixamos de importar também a forma de composição
desses juizados, que é preponderantemente leiga ou de investidura popular, e não profissional, como ocorre no Brasil. Então, naquilo que a lei regula, ela não pode ser afastada; mas, nos vazios e nos limites da lei, poderá o juiz fazer juízos de conveniência e oportunidade. Esses juízos também são muito comuns na execução, em que o juiz tem de decidir, por exemplo, sobre quais bens irá incidir a penhora. A lei estabelece certos parâmetros, certas preferências, mas o bem que o juiz reputa mais valioso e mais capaz de satisfazer o credor com menor onerosidade para o devedor pode ser um bem que não atenda rigorosamente a essas regras. Por isso, há uma regra, baseada na equidade, prevista nos artigos 620 do Código de 1973 e 805 do Código de 2015, que determina que, se por mais de um meio se puder cumprir a obrigação, o juiz escolherá aquele que for menos oneroso para o devedor. Esse poder criador ou criativo da regra processual, que é a equidade como fonte complementar de direito processual, autoriza o juiz a flexibilizar os procedimentos? Os procedimentos são os diversos modelos de tramitação do processo, que a lei estabelece em função da tutela jurisdicional invocada, do valor da causa, ou da espécie de direito, fixando a sequência, o rito e os prazos dos atos de cada processo. O juiz pode flexibilizar a forma dos atos, ou seja, o seu modo de exteriorização, de uma maneira até bastante ampla, pois o artigo 154 do Código de 1973 e o artigo 188 do Código de 2015 estabelecem que os atos processuais são válidos, ainda que não observem a forma prevista em lei, desde que atinjam a sua finalidade. É o que se denomina princípio da instrumentalidade ou da liberdade das formas, que, obviamente, não é absoluto, como teremos oportunidade de examinar quando tratarmos das invalidades processuais. Entretanto, quanto à sequência dos atos e à fixação dos prazos, houve uma evolução flexibilizadora do Código de 1973 ao Código de 2015. O primeiro, em princípio, não permitia que o juiz alterasse essa sequência ou que aumentasse prazos previstos em lei, a não ser em casos excepcionais. Entretanto, essa rigidez cede cada vez mais diante das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, que estão consagradas no artigo 5º, inciso LV, da Constituição. Assim, o Código de 2015, no artigo 139, inciso VI, veio conferir ao juiz o poder de “dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior
efetividade à tutela do direito”. Adota, portanto, o Código de 2015 o princípio que sempre defendi quando escrevi sobre as garantias fundamentais do processo: um procedimento legal e previsível, mas flexível.8 O procedimento deve ser legal porque as partes necessitam de segurança quanto ao rito que adotará a sua causa, para que possam agir com previsibilidade, mas esse procedimento não pode ser rígido ao extremo, porque há garantias constitucionais mais valiosas, que podem exigir em certas situações prazos maiores ou certos desvios na sequência dos atos, o que, obviamente, deve ser posto em prática através de uma decisão bem fundamentada. Este é um dilema do processo moderno, especialmente nas causas menos complexas: o dilema entre o procedimento legal e o procedimento livre. Os sistemas processuais modernos têm adotado as soluções mais variadas para esse dilema. O sistema anglo-americano tende a um procedimento mais livre; o juiz pode ditar o procedimento que ele reputa mais adequado para a solução de determinada causa, através do chamado sistema de gerenciamento do caso, agindo como um manager, um administrador do processo, ou pode escolher entre algumas opções de procedimentos previstos em lei. Recentemente, o direito inglês, na reforma que entrou em vigor no ano de 1999, deu ao juiz o poder de escolher procedimentos, na primeira audiência, ao se deparar com as peculiaridades de cada causa. Na Alemanha, nas pequenas causas, o procedimento é ditado pelo juiz. Vê-se, pois, que essa flexibilidade pode ser mais ampla ou mais restrita, variando em função de múltiplos fatores, entre os quais a qualidade e a confiabilidade dos juízes. Os países em que a justiça goza de uma alta credibilidade costumam dar aos juízes mais liberdade. Outro campo em que se manifesta esse poder criador do juiz é o das medidas cautelares, através do poder cautelar geral ou poder geral de cautela, que está previsto nos artigos 798 do Código de 1973 e 297 do Código de 2015, facultando ao juiz determinar as medidas provisórias que julgar adequadas. Esse poder suplementar é uma importação da common law. Na tradição histórica dos países da civil law, as medidas cautelares sempre foram taxativas; somente a lei podia prevê-las. Por outro lado, na common law, havia a previsão de no
máximo uma ou duas medidas cautelares, cabendo ao juiz, de acordo com a necessidade de cada caso, adotar as medidas que julgasse cabíveis. As medidas cautelares são medidas provisórias para tutelar, no curso do processo ou antes dele, situações fático-jurídicas, a fim de assegurar que elas venham a ser reguladas posteriormente pelas decisões nas causas ou nos processos principais. Na civil law, a partir de Chiovenda9, passou-se a defender que o juiz deveria ter esse poder complementar, porque havia situações que a lei não podia prever, mas que necessitavam de uma proteção urgente. Assim, a partir desse posicionamento, também nos países de direito escrito, cujos juízes se submetem ao princípio da legalidade, passou-se a prever esse poder suplementar do juiz, já referido e denominado poder geral de cautela, desde que presentes os seus dois requisitos, quais sejam, o fumus boni iuris e o periculum in mora. Calamandrei, que foi o grande sistematizador da tutela cautelar, era, em princípio, contrário ao poder geral de cautela, por considerá-lo arbitrário e ofensivo à legalidade, mas reconhecia que havia situações para as quais a lei não previa uma proteção adequada10. Em um estudo que fiz sobre as medidas cautelares, tentei abordar o problema que existe para a conciliação do poder geral de cautela com o princípio da legalidade. Hoje, não se discute mais a importância do poder geral de cautela, porque o legislador não pode prever todas as situações de perigo que podem ocorrer na realidade da vida, numa ordem jurídica e numa sociedade tão complexas. Contudo, é preciso impor limites a essa tutela feita através das chamadas ações cautelares inominadas. Os limites são necessários para que o juiz não viole direitos básicos inerentes à dignidade humana. Por exemplo: pode o juiz decretar a prisão de alguém fazendo uso do poder geral de cautela? Evidentemente, não. Ele não pode violar direitos fundamentais através do exercício desse poder criativo que a lei lhe confere. Nesse ponto, a doutrina fraqueja, porque ela não consegue definir com clareza esses limites, e a jurisprudência casuisticamente trata da questão, o que leva à insegurança jurídica, na medida em que situações idênticas são solucionadas de
maneiras diversas pelo Poder Judiciário. 2.2.9. Convenções processuais O interesse preponderante das partes no exercício da jurisdição não mais permite que elas sejam tratadas como sujeitos estranhos à disciplina dos atos processuais, que lhes é imposta pela lei e pelos poderes de direção e de instrução do juiz. A jurisdição pré-existe ao Estado de Direito. Toda sociedade humana estrutura espontaneamente a sua jurisdição, como instrumento de pacificação social, resolvendo os litígios entre os seus membros. Como veremos adiante (Capítulo III), a tutela dos interesses dos membros da sociedade, agasalhados pela ordem jurídica vigente, é a finalidade direta e imediata da função jurisdicional. A paz social ou a proteção da própria ordem jurídica são finalidades remotas da jurisdição que ela somente alcança com decisões justas, ou seja, com decisões que efetivamente tutelem os interesses de quem tem razão ou, pelo menos, demonstrem que o juiz envidou todos os esforços para alcançar esse objetivo. Os jurisdicionados não buscam a justiça estatal ou arbitral para tutelar a ordem jurídica ou para preservar a paz social, mas para tentar demonstrar que os seus interesses são legítimos à luz da ordem jurídica e para obter a sua tutela. Na linha dessa nova perspectiva de avaliação dos escopos do direito processual, o contraditório participativo exalta os deveres de cooperação e de boa-fé de todos os sujeitos processuais e a instauração de um diálogo humano em que todos lealmente contribuam para o melhor alcance do resultado almejado. Com a crise de autoridade que se verifica no Estado Moderno, não se pode mais recusar a gestão cooperativa ou compartilhada do processo, com fundamento nos deveres acima indicados (cooperação e boa-fé). A completa desvinculação do juiz das deliberações que as partes entre si ou em conjunto com ele próprio tenham adotado é uma visão anacrônica e autoritária do processo. A expansão dos espaços de autonomia das partes e de respeito às deliberações adotadas em conjunto com o juiz é uma expressão da tendência de flexibilização da marcha do processo, para melhor adequá-lo às necessidades de preparação de uma decisão justa, reflexo do dever de colaboração imposto a todos os sujeitos do
processo e inscrito no artigo 6º do Código de 2015. Como observa Loïc Cadiet11, essa gestão cooperativa do processo pode delinearse antes mesmo do seu surgimento, por meio de protocolos de procedimento e de audiência, como os praticados na Itália no âmbito dos Observatórios da Justiça, que se assemelham a convenções coletivas, concluídos entre as jurisdições e as profissões judiciárias. No anteprojeto de reforma do direito probatório do Grupo de Pesquisa da UERJ, cuja elaboração coordenei12, também previmos essas convenções coletivas para a disciplina do que os ingleses chamam de pre-action protocols. No estágio atual de humanização do Estado de Direito, os jurisdicionados e as suas organizações não aceitam mais ser tratados como objetos da função jurisdicional, mas exigem dela participar como sujeitos que definem não apenas o que vai ser decidido, mas também como vai ser decidido. A concepção publicística do processo relegou a segundo plano a reflexão sobre os limites da autonomia da vontade das partes a respeito da multiplicidade de questões que podem ser suscitadas no processo ou, simplesmente, a considerá-la sempre dependente da aprovação ou homologação do juiz, vigilante guardião dos fins sociais e do interesse público a serem atingidos e preponderantemente tutelados. Os fundamentos de direito público das normas processuais rejeitaram a ideia de que a autonomia da vontade das partes pudesse constituir uma de suas fontes. A recente crise da administração da justiça civil com a consequente necessidade de recuperar a confiança na justiça estatal, assim como o reconhecimento doutrinário, recuperando as raízes históricas do processo, de que a jurisdição civil se exerce preponderantemente no interesse dos seus destinatários, que são os jurisdicionados, e não do próprio Estado, passaram a recomendar que, tal como na arbitragem, pudessem as partes, também no processo judicial, ajustar meios, formas e procedimentos às necessidades do litígio que elas próprias, certamente, conhecem muito mais do que o próprio juiz.13 Não obstante esse poder das partes se contraponha aos poderes do juiz, não deve ser interpretado, de forma alguma, como uma tendência de privatização da relação processual, mas representa simplesmente a aceitação de que aquelas, como destinatárias da prestação jurisdicional, têm também interesse em influir
na atividade-meio e, em certas circunstâncias, estão mais habilitadas do que o próprio julgador a adotar decisões sobre os seus rumos e a ditar providências em harmonia com os objetivos publicísticos do processo, consistentes em assegurar a paz social e a própria manutenção da ordem pública. Afinal, se é certo que o processo judicial não é apenas coisa das partes, são elas as destinatárias da tutela jurisdicional e são os seus interesses que a decisão judicial diretamente atinge, e, por meio deles, os seus fins últimos, embora remotos e abstratos, de tutela do interesse geral da coletividade, do bem comum e da paz social. Se as partes podem convencionar a solução extrajudicial do litígio pela instituição da arbitragem e nesta ditar o procedimento, desde que observadas as garantias fundamentais do processo justo, num processo de que resultará decisão com a mesma força da decisão estatal, não há razão para negar-lhes esse mesmo espaço de autonomia privada quando submetem o seu litígio ao juiz estatal. O Código de 2015, além de impor a todos os sujeitos do processo os deveres de boa-fé e de cooperação (arts. 5º e 6º), prevê nos artigos 190 e 191 a possibilidade de as partes celebrarem convenções processuais, cuja validade o juiz controlará (art. 190, parágrafo único), ditando alterações no procedimento, disciplinando os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais ou, de comum acordo com o juiz, fixando calendário para a sequência dos atos processuais a serem praticados. Em diversos outros dispositivos, o Código faculta que a vontade das partes interfira nos poderes do juiz, como, por exemplo: quando prevê a delimitação consensual dos pontos controvertidos (art. 357, § 2º), que, homologada, “vincula as partes e o juiz”; quando prevê a escolha consensual do perito pelas partes (art. 471), desde que plenamente capazes, e a causa possa ser resolvida por autocomposição; ou quando admite que,“de comum acordo, o juiz e as partes” estabeleçam calendário para a prática dos atos processuais, vinculando as partes e o juiz, inclusive na fixação de prazos, somente podendo ser modificado “em casos excepcionais, devidamente justificados” (art. 191), além de outras que já existiam no Código de 1973, como, por exemplo, sobre a suspensão do processo (CPC de 1973, art. 265, inc. II; CPC de 2015, art. 313, inc. II) e de distribuição de ônus da prova (CPC de 1973, art. 333; CPC de 2015, art. 373, §§ 3º e 4º). Nas convenções processuais, o juiz exerce o controle da sua validade para reconhecer-lhes, ou não, a eficácia no processo, verificará se não incidem em
nulidade e se não foram abusivamente inseridas em contrato de adesão ou em contrato em que alguma das partes se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade (art. 190, parágrafo único). Quanto à não incidência em nulidade, veremos que a falta de condições da ação, tratada no capítulo IX, é sempre matéria de ordem pública, apreciável de ofício e insuperável, enquanto a falta de pressupostos processuais somente constitui invalidade que impeça a celebração de disposição convencional quando caracterizar uma nulidade absoluta, como tal entendida a nulidade insanável, categoria em franco declínio em face da instrumentalidade do processo e da liberdade das formas (v. capítulos XIV e XVI). Essas convenções podem afetar apenas direitos subjetivos processuais das próprias partes, como a redução de prazos ou a dispensa de intimações. Contudo, ao prever a nova lei que elas disponham sobre ônus, poderes e deveres processuais, podem interferir no exercício de prerrogativas do juiz, como as de direção e impulso do processo, o exercício dos poderes instrutórios e até a observância de regras de avaliação das provas na formação do seu convencimento por ocasião da sentença final. Essa interferência da autonomia da vontade das partes não pode ser vista como uma diminuição da autoridade do juiz como órgão do Estado, mas o exercício do dever de colaboração que pode ser essencial para o cumprimento da finalidade direta e imediata da jurisdição, que é a tutela do interesse de quem tem razão. Não se trata mais de simples atos prejudiciais aos direitos das próprias partes, mas de atos que, independentemente do seu resultado favorável ou contrário, decidem sobre os rumos do processo, sobre o seu conteúdo ou sobre o modo de instruir e decidir as questões nele pendentes ou, conforme a lição de Carnelutti, de atos mediante os quais “o agente regula, segundo o seu interesse, a composição ou o desenvolvimento do processo”14. Tito Carnacini já afirmava que “não só a tutela jurisdicional está entregue à vontade das partes, mas, em determinadas condições, também a técnica do processo”15. Conforme sustentei anteriormente16, esse poder conferido às partes não deve ser interpretado como uma tendência de privatização da relação processual, mas representa, simplesmente, a aceitação de que os destinatários da prestação jurisdicional têm também interesse em influir na atividade-meio e, em certas circunstâncias, estão mais habilitados do que o próprio julgador a adotar decisões sobre os seus rumos e a ditar providências em harmonia com os objetivos publicísticos do processo, consistentes em assegurar a paz social e a
própria manutenção da ordem pública. Afinal, se o processo judicial não é apenas coisa das partes, são elas as destinatárias da tutela jurisdicional e são os seus interesses que a decisão judicial diretamente atinge, e, por meio deles, os seus fins últimos, embora remotos e abstratos, de tutela do interesse geral da coletividade, do bem comum e da paz social. Parece-me, em consonância com o disposto nos referidos artigos 190 e 191 do Código de 2015, que essas convenções, tanto as que afetam apenas os direitos das partes, como as que interferem nos poderes do juiz, se submetem ao controle de legalidade do magistrado e somente poderão ser por ele acolhidas se preencherem os seguintes requisitos: (a) a possibilidade de autocomposição a respeito do próprio direito material posto em juízo, ou a impossibilidade de que a convenção prejudique o direito material indisponível ou a sua tutela17; (b) a celebração por partes plenamente capazes; (c) o respeito ao equilíbrio entre as partes e à paridade de armas, para que uma delas, em razão de atos de disposição seus ou de seu adversário, não se beneficie de sua particular posição de vantagem em relação à outra quanto ao direito de acesso aos meios de ação e de defesa; e (d) a preservação da observância dos princípios e garantias fundamentais do processo e da ordem pública processual. Como veremos adiante, no capítulo XVI, a noção de ordem pública processual, que caracteriza a nulidade absoluta, é o conjunto de requisitos dos atos processuais impostos de modo imperativo para assegurar a proteção de interesse público precisamente determinado, o respeito a direitos fundamentais e a observância de princípios do devido processo legal, quando indisponíveis pelas partes. Entre esses princípios indisponíveis, podem ser mencionados: a independência, a imparcialidade e a competência absoluta do juiz; a capacidade das partes; a liberdade de acesso à tutela jurisdicional em igualdade de condições por todos os cidadãos (igualdade de oportunidades e de meios de defesa); um procedimento previsível, equitativo, contraditório e público; a concorrência das condições da ação; a delimitação do objeto litigioso; o respeito ao princípio da iniciativa das partes e ao princípio da congruência; a documentação dos atos processuais; a possibilidade de ampla e oportuna utilização de todos os meios de defesa, inclusive a defesa técnica e a autodefesa; a intervenção do Ministério Público nas causas que versam sobre direitos indisponíveis, as de curador especial ou de
curador à lide; o controle da legalidade e da causalidade das decisões judiciais por meio da fundamentação; e uma cognição adequada pelo juiz e, em certos limites, a celeridade do processo. Quanto às convenções que interferem nos poderes do juiz, há uma série delas em que a própria lei categoricamente confere às partes a possibilidade de impor ao juiz limites ao exercício dos seus poderes. É o que ocorre com as convenções sobre a suspensão do processo ou sobre a redistribuição do ônus da prova. Existem, ainda, outras subespécies que exigem que o juiz concorra com a sua vontade para que os seus poderes sejam limitados. Na primeira subespécie, como nas convenções que apenas prejudicam as próprias partes, o controle do juiz é restrito à legalidade do ato. Já na segunda subespécie, além do controle de legalidade, deve o juiz concorrer com a sua vontade (vontade do Estado) na formação do ato convencional, em um juízo de conveniência e oportunidade. O que caracteriza uma convenção como processual ou é a sede do ato – ato integrante da relação processual praticado no processo –, ou é a sua finalidade de produzir efeitos em determinado processo, presente ou futuro. O conteúdo dessas convenções pode compor-se de questões substantivas – relativas ao direito material das partes – ou de questões tipicamente processuais – relativas a pressupostos processuais, impulso processual, admissão ou não de provas etc. São estas últimas as que agora nos interessam. A partir de agora, podemos falar em três espécies de convenções processuais. A primeira é composta de acordos ou contratos que afetam apenas os direitos das partes; a segunda, dos que afetam poderes do juiz, que, por força de lei, podem ser limitados pela conjugação da vontade das partes; e a terceira, daqueles que limitam os poderes do juiz, mas se perfazem com a conjugação da vontade das partes e do juiz. Nas duas primeiras espécies, essas convenções se perfazem com a conjugação, simultânea ou sucessiva, da vontade dos litigantes e, como tal, produzem efeitos jurídicos de imediato, nos termos dos artigos 158 do Código de 1973 e 200 do Código de 2015. Esses atos estão sujeitos ao controle de legalidade por parte do juiz, mas, na verdade, a deliberação é das partes. Assim, por exemplo, na convenção sobre a distribuição do ônus da prova, cuja validade o juiz deve rejeitar se recair sobre direito indisponível ou se tornar excessivamente difícil a uma das partes o exercício do direito (CPC de 1973, art. 333, parágrafo único; CPC de 2015, art. 373, §§ 3º e 4º). Também na convenção para suspensão do processo (CPC de 1973, art. 265, inc. II; CPC de 2015, art.
313, inc. II), em que o juiz deverá controlar a observância do prazo-limite estabelecido no § 4º, assim como a livre-manifestação de vontade das partes e a proibição de uso do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim vedado por lei (CPC de 1973, art. 129; CPC de 2015, art. 142); na delimitação das questões de fato e de direito no saneamento do processo (CPC de 2015, art. 357, § 2º), em que a homologação judicial verificará a possibilidade de autocomposição, a livre-manifestação de vontade das partes e efetuará o controle de legalidade; e na escolha consensual do perito, em que o juiz deverá verificar se as partes são plenamente capazes e se a causa pode ser resolvida por autocomposição ou se a convenção não prejudica a tutela de direito insuscetível de autocomposição (CPC de 2015, art. 471). Incluo nas convenções que, a meu ver, as partes podem celebrar, interferindo nos poderes do juiz, por analogia com a arbitragem, aquelas que autorizem o juiz a decidir por equidade, como expressamente previsto em outras legislações, as de electio juris, escolha da lei aplicável, de renúncia ao duplo grau de jurisdição e sobre o custeio ou reembolso de despesas processuais18. Admito, ainda, a convencionalidade da escolha do juiz, desde que respeitadas as regras de competência absoluta, como já tivemos até 1973 no desquite amigável. Já não admito, por violação da ordem pública, a convenção que pretenda impor o segredo de justiça, fora das hipóteses legais. Quanto aos sucessivos adiamentos convencionais da audiência, não mais prevendo o CPC de 2015 o limite de uma só vez do artigo 453, inciso I, do Código de 1973, me parece que violam a celeridade do processo. A terceira espécie de convenções se compõe daquelas em que o ato não se perfaz apenas com a manifestação conjunta de vontade das partes, mas em que o ato é subjetivamente complexo, integrando-se com a conjugação da vontade das partes e a vontade do juiz. Exemplo é o calendário a que se refere o artigo 190, e que afeta os poderes do juiz de impulso processual e de direção do processo. A meu ver, também os contratos de procedimento, a que se refere o caput do artigo 190, quando envolvem restrições aos poderes do juiz ou aos deveres das partes com o juiz, são convenções processuais dessa terceira espécie, devendo o juiz, a par do controle de legalidade, formular um juízo de conveniência e oportunidade, aderindo ou não à convenção. O juiz participa da deliberação, que se insere no seu poder ou atinge direito seu e, assim, no mais autêntico exercício do dever de cooperação (art. 6º), compatibiliza a autonomia da vontade das partes com os
fins imediatos e mediatos da jurisdição estatal. Como observa Giorgio De Nova19, em um paralelo com a arbitragem, na qual o árbitro aceita atuar como julgador, o juiz aceita atuar de acordo com as regras definidas de comum acordo por ele e pelas partes, porque o juiz pode não aceitar que os seus poderes sejam limitados ou modificados. Outro exemplo de ato convencional subjetivamente complexo é a redução de prazo peremptório por iniciativa do juiz, que tem como requisito essencial a anuência das partes, prevista no § 1º do artigo 222 do Código de 2015. As convenções processuais das duas primeiras espécies produzem efeitos de imediato, ou seja, no mesmo momento em que o ato é praticado pelas partes ou no momento em que o próprio ato fixar. Eventual homologação do juiz é mero controle da legalidade do ato. Já as da terceira espécie produzirão os seus efeitos no momento em que o juiz concorrer com a sua vontade, aprovando ou homologando a deliberação das partes. Nesses casos e em todos os outros agora acobertados pelos novos artigos 190 e 191 do Código de 2015, diversas questões merecem ser analisadas a respeito dessas convenções, tais como o seu regime jurídico e a sua revogabilidade, o que faremos no momento em que estudarmos os atos das partes (capítulo XII).
2.3. LEI PROCESSUAL NO ESPAÇO No Brasil, como já foi afirmado, compete à União legislar privativamente sobre direito processual, nos termos do artigo 22, inciso I, da Constituição. Ressalvada a hipótese do parágrafo único do mesmo artigo, o qual faculta que, autorizados por lei complementar federal, possam vir os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias de competência privativa da União, a lei processual é sempre uma lei nacional. Entretanto, existe uma parte do direito processual não regulada inteiramente pela legislação interna, que é o direito processual internacional, que dispõe sobre a competência internacional para julgamento de determinadas causas, a cooperação interjurisdicional e o cumprimento de decisões de um país no território de outro. Questiona-se, muitas vezes, qual a lei aplicável a esses procedimentos que tramitam de um país para outro, assim como qual a fonte dessas normas de
direito processual internacional. Muitos esforços têm sido feitos para criar-se uma ordem jurídica supranacional; entretanto, esta ainda se funda no primado da soberania ou autonomia de cada Estado nacional e na sua adesão voluntária às fontes do direito internacional, principalmente aos tratados internacionais. Por exemplo: a Carta das Nações Unidas institui a Corte Internacional de Justiça, com sede em Haia, na Holanda. Essa Carta é um tratado celebrado pelos Estados-membros das Nações Unidas, mas que somente se torna lei interna de cada país no momento em que é incorporado pelos instrumentos de direito interno de cada um deles às suas respectivas ordens jurídicas. Assim, a lei nacional, através da ratificação e promulgação dos tratados ou dos acordos bilaterais, também vai regular o direito processual internacional. O Brasil é signatário de importantes tratados multilaterais que regulam a competência sobre determinadas causas e estabelecem regras de cooperação jurisdicional internacional, como, por exemplo, o Tratado de Havana de 1928 (conhecido como o Código de Bustamante), que estabelece relações da nossa justiça com as de inúmeros países latino-americanos e os Protocolos de Las Leñas e de Buenos Aires, no âmbito dos países do MERCOSUL. É também signatário de acordos bilaterais com diversos países, como a Espanha e a França. Na ausência de instrumentos internacionais, cada país regula o direito processual internacional na sua própria lei interna, que rege as relações da sua justiça com as de outros países. É nesse âmbito que têm aplicação os artigos 88 a 90 do Código de 1973 e com muito maior amplitude os artigos 21 a 41 do Código de 2015. No Brasil, a Constituição estabelece que o tratado seja considerado lei interna, desde que ele cumpra o ritual de aprovação pelas autoridades legislativas nacionais, passando a vigorar internamente, em regra, como lei nacional. Num país como o Brasil, em que o direito processual é homogeneamente normatizado em todo o território nacional, diferentemente do que ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos, em que cada estado tem a sua própria legislação processual, nós não temos ainda frequentes problemas de escolha da lei processual aplicável na área geográfica de um ou outro juízo ou tribunal. Com certeza, proximamente esse tipo de questão surgirá com a tendência de delegação normativa da lei processual às organizações judiciárias locais e aos regimentos internos e resoluções dos tribunais.
Mas esse tipo de questão surge com frequência na cooperação jurisdicional internacional. Qual é a lei processual que se aplica quando um ato de cooperação da justiça de um país tem de produzir efeitos ou ser complementado em outro ou quando a decisão judicial tem de ser executada ou cumprida no Exterior? Por exemplo: o Brasil recebe uma carta rogatória da Espanha, na qual se requer a inquirição de determinada testemunha. Qual a lei aplicável para a prática desse ato? A regra universalmente adotada para responder a essas perguntas é a da chamada lex fori, lei do foro, ou seja, a lei em vigor no país ou na área geográfica onde o ato processual foi ou será praticado. Assim, a justiça espanhola vai expedir a carta rogatória de acordo com a lei processual espanhola e a justiça brasileira vai ou não cumpri-la nos termos da lei brasileira, salvo se existir um acordo ou tratado internacional em vigor nos dois países que estabeleça requisitos uniformes a serem em ambos observados. Ainda que essa regra nem sempre esteja positivada em cada ordenamento jurídico – entre nós ela está parcialmente adotada no artigo 13 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – ela decorre do princípio da territorialidade da jurisdição e da estatalidade da função jurisdicional. Cada Estado nacional somente pode exercer uma função pública nos limites do seu território, que é a base física da sua soberania. Para exercê-la no território de outro Estado nacional, dependerá de autorização desse, de acordo com a sua própria legislação nacional. É muito elucidativo o disposto no artigo 784, §§ 2º e 3º, do Código de 2015, que corresponde ao artigo 585, § 2º, do Código de 1973, que cuida da execução no Brasil dos títulos executivos estrangeiros. Segundo esse dispositivo, “o título estrangeiro só terá eficácia executiva quando satisfeitos os requisitos de formação exigidos pela lei do lugar de sua celebração e o Brasil for indicado como o lugar de cumprimento da obrigação”. Voltando ao exemplo dado, quanto à admissibilidade da prova testemunhal no processo da Espanha, quem irá decidi-la será o juiz espanhol de acordo com a lei espanhola. Entretanto, a forma em que se dará a inquirição da testemunha observará a lei brasileira, as leis processuais vigentes no Brasil. Daí podem surgir alguns problemas no tocante à cooperação interjurisdicional internacional, porque, às vezes, a lei estrangeira determina que o juiz se desloque
do seu país para outro para inquirir uma testemunha, problema, inclusive, já enfrentado no Brasil, nos casos de inquirição de pessoas supostamente ligadas à máfia italiana, por exemplo. O juiz italiano não pode dirigir perguntas à testemunha no Brasil, porque aqui ele não é juiz. Quem tem de fazê-lo é o juiz brasileiro. Obviamente, a cortesia entre a justiça brasileira e a italiana, conforme foi noticiado pela Imprensa, teria levado o juiz brasileiro a convidar o juiz italiano para que assistisse à prática do ato e até informasse o que ele gostaria de saber da testemunha. Às vezes, o direito de um país remete ao direito de outro, para verificar se deve ou não exercer essa cooperação. É o caso, por exemplo, da homologação de sentença estrangeira, que, hoje, está regulada na Resolução n. 9, de 2005, do Superior Tribunal de Justiça, e na Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Essa lei estabelece que a sentença estrangeira, para ser homologada no Brasil, tem de ter transitado em julgado no país de origem. Então, é de acordo com a lei do país de origem que o juiz brasileiro vai aferir se a sentença que se pretende executar no Brasil já transitou em julgado, ou seja, se ela já se tornou imutável. Muitas vezes, portanto, o juiz de um país tem de aplicar a lei do outro, matéria que se estuda também no âmbito do direito internacional privado. Assim, o princípio em matéria de eficácia da lei processual no espaço é o da lex fori; a lei territorial de cada justiça aplica-se em relação aos atos que ela pratique ou deva praticar. A descoberta da lei aplicável, entretanto, nem sempre é fácil. Não me esqueço de um caso com o qual me deparei durante a minha vida profissional, quando atuava no Ministério Público como curador de uma vara de família. Tratava-se de uma ação em que se requeria pensão alimentícia, proposta por uma chinesa em face de um chinês. Para provar a existência do casamento entre eles, a autora juntara aos autos um documento, redigido em japonês e traduzido para a nossa língua, no qual constava a informação de que o varão havia comprado a sua mulher. A autora afirmava que tal documento era uma certidão de casamento. Nos termos do artigo 7º, § 3º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, nesse caso, o casamento se rege pela lei do primeiro domicílio conjugal. Corresponderia aquela escritura de compra a um casamento? Qual teria sido o primeiro domicílio conjugal? É acessível hoje,
passados muitos anos, o conhecimento de qual seria a lei aplicável no momento do casamento na localidade do primeiro domicílio conjugal? Muitas regiões da Europa e da Ásia têm sofrido guerras, invasões, divisões territoriais, contestações internacionais sobre o Estado ao qual estariam legalmente subordinadas, sem falar na diversidade de sistemas normativos cuja compreensão é muitas vezes inacessível. Ainda no sentido de demonstrar a dificuldade de se encontrar a lei aplicável, podemos citar como exemplo a situação da Áustria, anexada pelo regime nazista, na década de 1940; da Polônia, durante o comunismo; ou de muitos países africanos em que ainda vigoram regimes tribais. Nesses casos, por umas e outras razões, é difícil para o aplicador do direito saber qual é ou qual era o direito vigente e aplicável ao caso. E não posso deixar de mencionar o Líbano, em que o direito privado é confessional, ou seja, os membros das comunidades católica, muçulmana e israelita estão submetidos nas relações privadas ao direito das suas respectivas comunidades. Então, resumidamente, em relação ao princípio ora estudado, que rege a aplicação do direito processual no espaço, pode-se dizer que cada justiça aplica a sua lei processual e somente aplica a de um país estrangeiro na medida em que aquela determina essa aplicação.
2.4. LEI PROCESSUAL NO TEMPO Com a série de mudanças que vêm sendo realizadas na lei processual, a questão da sua eficácia temporal ganha relevo e dificuldade. Recentemente, com a entrada em vigor da Lei n. 11.232/2005, sobre o cumprimento de sentença, discutia-se se o seu novo regime iria aplicar-se ou não aos processos em curso. Um dos autores dessa lei, o Ministro Athos Gusmão Carneiro, chegou a escrever que o novo regime somente se aplicaria às execuções iniciadas depois do início da vigência da referida lei, salvo quanto aos meios de expropriação20. A lei pode conter uma disposição transitória que estabeleça um prazo ou um determinado momento para a sua entrada em vigor, condicionando a sua aplicação aos processos a partir de tal data ou a sua aplicação aos processos que se iniciarem após essa data. Entretanto, em geral, a lei é omissa, deixando para os juízes e para os juristas essa decisão.
O princípio que vigora acerca da aplicação da lei processual no tempo é extraído da regra prevista no artigo 1.211 do Código de 1973, que dispôs sobre a eficácia no tempo do próprio Código, quando da sua edição. Esse Código entrou em vigor em 1º de janeiro de 1974 e encontrou naquele dia milhares de processos pendentes. Estabeleceu o Código que, ao entrar em vigor, suas disposições aplicar-se-iam desde logo aos processos pendentes. Em outros termos: todos os processos em curso, a partir de 1974, passaram a ser regidos pelo novo Código de Processo Civil. Disposição semelhante contém o Código de 2015 no caput do seu artigo 1.059, segundo o qual, ao entrar em vigor, um ano após a data da sua publicação oficial (art. 1.058), suas disposições se aplicarão imediatamente aos processos pendentes. Como esse novo Código extinguiu o procedimento sumário e diversos procedimentos especiais previstos no Código anterior, o § 1º do mesmo artigo 1.059 manteve a regência das causas dessas espécies propostas antes do início de sua vigência pelo Código de 1973, “desde que ainda não tenham sido sentenciadas”. Também a insolvência civil, ainda que proposta depois da entrada em vigor do Código de 2015, continuará a reger-se pelos artigos 748 a 786-A do Código de 1973, porque não existe procedimento que lhe corresponda no Código de 2015, enquanto não sobrevier lei específica que regule a matéria (art. 1.066). Portanto, o princípio que se aplica em matéria de lei processual no tempo, salvo disposição legal expressa em contrário, é o de que a lei processual nova se aplica de imediato aos processos pendentes, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, nos termos do inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição. Para saber-se de que modo uma lei nova incide sobre um processo em curso, é preciso conhecer quais são os atos jurídicos perfeitos e acabados e quais são os direitos adquiridos na vigência da lei antiga que não podem ser prejudicados pela lei nova. Esse, contudo, é um trabalho árduo. Assim, por exemplo, o direito adquirido de embargar a execução do devedor que já havia sido intimado da penhora antes da vigência da Lei n. 11.232/2005, que substituiu os embargos pela impugnação como novo mecanismo de defesa na execução pecuniária de título executivo judicial, nasceu no momento em que a penhora se efetivou. Se a lei que extinguiu os embargos entrou em vigor antes da
penhora, não haverá direito adquirido a embargar. Se entrou em vigor depois da penhora, a defesa deverá articular-se mediante a interposição dos embargos. O direito de ação e o direito de recurso se adquirem em um determinado momento, e, se no momento dessas aquisições vigia uma lei anterior, esses direitos adquiridos têm de ser respeitados por ocasião da vigência da lei nova. Sobre os recursos, o direito à sua interposição nasce no momento em que a decisão recorrida é publicada. Tem-se entendido entre nós que essa publicação corresponde ao momento em que a parte vencida é intimada da decisão. Ninguém tem direito a um processo regido imutavelmente pelas mesmas leis, a não ser que as leis que sobrevierem no curso do processo ressalvem a sua não aplicação de imediato. Portanto, em regra, a lei processual nova se aplica desde logo aos processos pendentes ou em curso. ________ 1 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. 3ª reimp. Madrid:
Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002. p. 86-87. 2
Sobre a inadequação do Conselho Nacional de Justiça como instituição responsável pela implementação de uma política nacional de solução de conflitos e instância disciplinar máxima do Poder Judiciário, ver o meu estudo A reforma do Poder Judiciário e o acesso à justiça. Estudos de direito processual. Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2005. p. 583-621. 3
V. GRECO, Leonardo. Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual. In: MITIDIERO, Daniel; AMARAL, Guilherme Rizzo (Coords.). Processo Civil – estudos em homenagem ao Professor Doutor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. São Paulo: Atlas, 2012, p. 273-308. 4 Ver CRUZ E TUCCI, José Rogério. Eficácia do precedente judicial na história
do direito brasileiro. In: O advogado, a jurisprudência e outros temas de processo civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 63-64. 5
CAPPELLETTI, Mauro. Problemas de Reforma do Processo Civil nas Sociedades Contemporâneas. Revista de Processo, São Paulo, ano 17, n. 65, jan.-mar. 1992. p. 127-143.
6 AMRANI-MEKKI, Soraya. L’avenir du nouveau Code de Procédure Civile
en France. In: CADIET, Loïc; CANIVET, Guy (Org.). De la commémoration d’un Code à l’autre: 200 ans de procédure civile en France. Paris: Litec, 2006. p. 259. 7
STRECK, Lênio Luiz. Súmulas no direito brasileiro – eficácia, poder e função – a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. STRECK, Lênio. Jurisdição constitucional e hermenêutica – uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 8 GRECO, Leonardo. Garantias…, p. 369-406. 9 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução
de J. Guimarães Menegale. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1965. 1º v. p. 280-281. 10
CALAMANDREI, Piero. Introduzione allo studio sistemático dei provvedimenti cautelari. In: Opere giuridiche. Napoli: Morano Editore, 1983. v. IX. p. 193-194. 11 CADIET, Loïc. Les conventions relatives au procès en droit français. Sur la
contractualisation du règlement des litiges. Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 160, ano 33, jun. 2008. p. 61-82. 12 GRECO, Leonardo et alii. A reforma do direito probatório no processo civil
brasileiro – primeira parte. Anteprojeto do Grupo de Pesquisa “Observatório das Reformas Processuais” da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Revista de Processo, São Paulo: RT, ano 40, n. 240, fev. 2015. 13 V. o meu estudo: Os atos de disposição processual – primeiras reflexões. In:
MEDINA, José Miguel Garcia e outros (coords.). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais – estudos em homenagem à Professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: RT, 2008. p.290-304. 14 CARNELUTTI, Francisco. Sistema de derecho procesal civil. Buenos Aires:
Uteha, 1944. v. III. p. 7. 15 V. CARPI, Federico. Introduzione. In: CARPI, Federico et alii. Accordi di
parte e processo. Milano: Giuffrè. 2008. p. 5. 16 GRECO, Leonardo. Os atos de disposição processual – primeiras reflexões.
In: MEDINA, José Miguel Garcia e outros (coord.). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais – estudos em homenagem à Professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: RT, 2008. p. 290-304. 17 ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de. Das Convenções Processuais no
Processo Civil. Tese de Doutorado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2014. p. 176-178. 18 CADIET, Loïc. Les conventions…, Revista de Processo…, jun. 2008. 19 DE NOVA, Giorgio. Accordi delle parti e decisione. In: CARPI, Federico et
alii. Accordi di parte e processo. Milano: Giuffrè. 2008, p. 60. 20 CARNEIRO, Athos Gusmão. Cumprimento da sentença civil. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2010. p. 104.
3.1. CONCEITO A Teoria Geral do Processo assenta sobre três pilares: os institutos da jurisdição, da ação e do processo. Jurisdição é a função; ação é o direito de exigir do Estado o exercício da jurisdição; e o processo é o meio, o instrumento através do qual se exerce a jurisdição. O primeiro instituto fundamental da Teoria Geral do Processo é, portanto, a jurisdição. Essa é a função preponderantemente estatal, exercida por um órgão independente e imparcial, que atua a vontade concreta da lei na justa composição da lide ou na proteção de interesses particulares. A jurisdição é basicamente uma função estatal. Desde a Antiguidade, desde o período da cognitio extraordinaria, no direito romano, a partir do século III d.C., passando pela Idade Média, pela Idade Moderna e chegando até a Idade Contemporânea, os governantes reivindicaram para si a função de julgar litígios e tutelar interesses particulares, embora até a Idade Moderna a maior parte da administração da justiça fosse exercida dentro das comunidades com base na praxe dos tribunais costumeiros e na doutrina de jurisconsultos. Com o surgimento do Estado Moderno, os soberanos chamaram para si o monopólio da jurisdição, sistematizando-a, a partir de Luís XIV, em códigos emanados da sua própria autoridade1. Nos países de direito escrito, esse monopólio da jurisdição tornou-se um instrumento de imposição da autoridade das leis do soberano ou dele próprio. No nosso tempo, no estágio de desenvolvimento das relações Estado-cidadão a que os europeus chegaram após a Segunda Guerra e a que nós chegamos com a Constituição de 1988, muitos entendem que a jurisdição não precisa ser necessariamente uma função estatal, porque a composição de litígios e a tutela de interesses particulares podem ser exercidas por outros meios, por outros órgãos, como os órgãos internos de solução de conflitos, estruturados dentro da própria Administração Pública, compostos de agentes dotados de efetiva independência, e até por sujeitos privados, seja por meio da arbitragem, seja pela justiça interna das associações.
Contudo, temos de reconhecer que, para que a jurisdição se desprenda do seu vínculo quase umbilical com o Estado, será preciso que esses órgãos ou esses mecanismos privados de solução de conflitos e de tutela de interesses particulares recebam poderes que, hoje, ainda em muitos países, são exclusivos da autoridade pública e, portanto, de órgãos estatais, especialmente o poder de coerção. Este é o poder de impor, pela sua própria atuação, o respeito às suas decisões. Na maioria dos países, contudo, ainda que tenham sido implementados mecanismos não estatais de solução de conflitos, como, entre nós, a arbitragem, através da Lei n. 9.307/96, eles não receberam a totalidade dos poderes que caracterizam a jurisdição. Portanto, nesses países, neles incluído o Brasil, ainda a jurisdição é uma função tipicamente estatal. Daí dizer-se que o conceito de jurisdição é um conceito em evolução, na medida em que alguns sistemas jurídicos conseguiram desprendê-lo do Estado, pelo menos em parte, e outros ainda o associam a uma função essencialmente estatal. Será que a História vai confirmar a evolução no sentido da desestatização da jurisdição? Eu pessoalmente acredito que sim, porque, a rigor, mesmo antes da formação do Estado, todos os povos juridicamente organizados instituíram os seus órgãos jurisdicionais como a exigência da própria vida em sociedade. Por outro lado, o desprestígio, a perda de credibilidade dos órgãos estatais que exercem a jurisdição, é um fenômeno universal, menos pelas suas deficiências e mais pela expansão das aspirações de justiça da sociedade contemporânea a que o judiciário estatal não é capaz de dar respostas inteiramente satisfatórias. Esse descontentamento vai certamente resultar na busca de outros meios não estatais, até mesmo informalmente. Por outro lado, após a grande onda do acesso à justiça que banhou o mundo ocidental na segunda metade do século XX, assistimos hoje a uma reação contrária, que é a imposição de filtros cada vez mais restritivos a esse acesso, para conter o crescimento da demanda num ritmo muitas vezes superior à capacidade de sua administração pela máquina judiciária. Se a justiça, num país como o Brasil, começa a fechar as suas portas, a deixar os cidadãos do lado de fora, eles vão buscar outros meios de solução de conflitos, que podem até ser meios à margem da lei, contrários à lei ou por ela ignorados, correndo o risco de voltar aos tempos primitivos, com o uso da força. Por isso, o Estado deve facilitar que a sociedade espontaneamente ou por indução de uma política pública planejada, venha a instituir os seus próprios
mecanismos de exercício da jurisdição, criando as condições necessárias à coordenação da sua atuação com a dos órgãos estatais. Assim, ainda não se pode desligar totalmente o conceito de jurisdição de uma função tipicamente estatal, ou preponderantemente estatal, porque, entre nós, ela ainda o é, embora essa não me pareça a sua característica essencial. É uma característica histórica da jurisdição, ou de uma boa parte dos órgãos que a exerceram nos últimos mil e setecentos anos, aproximadamente, mas que hoje apresenta sinais de desgaste, que poderão levar, num prazo que ainda não pode ser previsto, a uma superação dessa vinculação. A jurisdição é exercida por órgãos independentes e imparciais, o que não significa, necessariamente, que ela deva ser exercida por juízes. A Convenção Americana de Direitos Humanos alude à jurisdição como uma função exercida por um “tribunal imparcial” (art. 8º). Um órgão imparcial, em sentido amplo, é aquele dotado de dois atributos, que são notas essenciais da jurisdição, quais sejam: independência e imparcialidade em sentido estrito. A primeira é a isenção do órgão que exerce a jurisdição e dos sujeitos que o compõem em relação a qualquer pressão ou coação que possa intimidá-los no exercício da função jurisdicional. Essa isenção significa que a jurisdição tem de ser exercida por um órgão e por pessoas que não possam estar sujeitas a qualquer risco de sofrerem um mal, um prejuízo, na sua esfera de interesses ou na daqueles que os cercam, por ato de qualquer autoridade ou de qualquer força econômica ou social, que possam ter interesse, direta ou indiretamente, no resultado do exercício da jurisdição. O juiz que teme por vinganças ou retaliações, que podem pôr em risco até a sua própria vida, não é um juiz independente. Se ele teme que, em razão da sua atuação, possa sofrer algum mal ou que possam vir a sofrê-lo pessoas do seu círculo de relações íntimas, como os familiares mais próximos, ele deixou de ser um juiz independente. Para garantir a independência dos juízes, daqueles que exercem a jurisdição, no direito brasileiro, existem as chamadas garantias constitucionais da magistratura: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio ou de vencimentos (Constituição, art. 95). Contudo, essas garantias nas sociedades modernas não são mais suficientes, porque, por exemplo, em muitos casos a inflação ou a elevação do custo de vida corroem os vencimentos, e os juízes precisam ter segurança econômica nas suas vidas. As
ameaças que os juízes podem sofrer hoje não são apenas aquelas oriundas dos três poderes do Estado, mas podem ser advindas da própria sociedade. Ainda recentemente, no Estado do Espírito Santo, ocorreu um infeliz episódio no qual um juiz foi assassinado em razão da sua atuação profissional. Nas ditaduras, às vezes, os juízes se escondem, como ocorreu, por exemplo, no regime ditatorial de Alberto Fujimori, no Peru, em que os juízes julgavam encapuzados e não assinavam as suas sentenças, para que a sua identidade não fosse descoberta. A independência, portanto, não trata de um vínculo do juiz com um determinado caso concreto, com um determinado interesse em litígio. Ela exige que aqueles que exercem a jurisdição não devam estar sujeitos a represálias – ou não devam sentir-se temerosos de sofrê-las – em razão do conteúdo das suas decisões. Assim, quando um tribunal leva em consideração, como critério de promoção dos magistrados a ele subordinados, o número ou o índice de reforma das decisões destes por aquele, está, na verdade, ofendendo a independência dos juízes a ele subordinados, porque o juiz pode se sentir pressionado a decidir de acordo com o entendimento do tribunal para que a sua carreira não seja prejudicada. Aliás, essa observação – no sentido de que a carreira pode comprometer a independência do juiz – já fora feita por Lopes da Costa, em 1947, quando da sua posse como desembargador no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, depois de ter exercido a judicatura de primeiro grau por cerca de vinte anos no interior daquele Estado, quase sem qualquer promoção, por adotar decisões contrárias aos interesses dos governantes2. Imparcialidade em sentido estrito, por sua vez, é a desvinculação do juiz em relação às partes de determinada causa e aos interesses em conflito. Afere-se, assim, a imparcialidade levando-se em conta os interesses ou as pessoas que serão julgadas pelo juiz. O juiz imparcial tem de guardar uma posição de desprendimento, de desvinculação em relação às pessoas, aos bens e aos interesses submetidos à sua apreciação. Fala-se, nesse sentido, em neutralidade do juiz; o juiz deve ser um terceiro, equidistante das partes e dos interesses em conflito.
O Código de 1973 e o Código de 2015 tratam da imparcialidade, respectivamente, nos artigos 134 a 138 e 144 a 148, dividindo os motivos que a viciam em duas espécies: os impedimentos e os motivos de suspeição. Os primeiros são vícios mais graves, que geram uma presunção absoluta de parcialidade do juiz. Eles prejudicam em caráter irremediável a imparcialidade do juiz, gerando, portanto, a nulidade absoluta de todos os atos decisórios proferidos pelos juízes impedidos. Os segundos são vícios menos graves, dos quais o juiz pode conhecer de ofício, mas as partes têm o ônus de argui-los na primeira oportunidade que tiverem para se manifestar nos autos depois de deles tomarem conhecimento, sob pena de preclusão. Esses vínculos que viciam ou comprometem a imparcialidade em sentido estrito do juiz serão, contudo, analisados mais adiante, no capítulo referente aos pressupostos processuais, em especial no item 14.1, que trata dos pressupostos processuais subjetivos relativos ao juiz. A imparcialidade lato sensu, abrangendo a independência e a imparcialidade stricto sensu, é uma nota característica e essencial da jurisdição, seja a jurisdição exercida por um órgão público, seja a jurisdição privada, exercida naqueles sistemas em que já se concederam, no todo ou em parte, poderes jurisdicionais a outros órgãos ou sujeitos não estatais. Essa nota está consagrada em todos os diplomas internacionais como sendo característica da garantia do acesso à justiça. Este pressupõe o acesso a um julgamento imparcial, isento, que não seja influenciado pela amizade ou pela inimizade, pelo medo etc.; pressupõe, portanto, um julgamento objetivo, baseado na lei ou na equidade, conforme o caso e o sistema em que ocorra. Na Europa continental, é comum associar-se a imparcialidade organicamente aos juízes, como se somente essa classe de funcionários públicos estivesse revestida das garantias suficientes para proferir um julgamento isento, neutro ou imparcial. Contudo, no sistema anglo-americano, especialmente na Inglaterra, em que não há uma rígida separação de poderes, e nos Estados Unidos, a partir do New Deal, com a criação de agências para regularem diversos setores da economia, nem sempre os juízes são os únicos agentes públicos encarregados de exercer a
jurisdição para compor litígios ou tutelar os interesses particulares, de maneira que outros órgãos especializados, criados para esses fins, também devem gozar de igual imparcialidade. Logo, desde que os agentes públicos que resolvam litígios ou tutelem interesses particulares no âmbito desses órgãos especializados estejam dotados das mesmas garantias de imparcialidade e independência conferidas aos juízes, e desde exerçam essas atividades no intuito de reconhecer as posições de vantagem a quem a lei as atribua e não de sobrepor sistematicamente o interesse do Estado ao dos administrados, eles estarão exercendo função tipicamente jurisdicional. Cappelletti, em 1973, ao iniciar o chamado Projeto de Florença, já havia feito essa observação. Salientava o ilustre jurista que nem sempre – como, porém, costumam fazer os países do sistema continental-europeu – a imparcialidade deve ser associada necessariamente aos juízes. Nesse sentido, o direito angloamericano foi capaz de demonstrar que órgãos bem-estruturados, cujos membros sejam dotados de independência técnica e funcional, podem também criar internamente sistemas de solução de conflitos que promovam julgamentos imparciais3. No Brasil, recentemente, o Ministério da Fazenda divulgou um projeto4 por meio do qual pretende colocar em prática o que poderia ser chamado de uma execução fiscal-administrativa, o que causou grandes debates na doutrina, na medida em que se indaga se a execução, nesses casos, tendo em vista a invasão da esfera patrimonial dos particulares por um órgão do Estado, pode ser conduzida por um órgão administrativo. Estarão os funcionários desse órgão dotados da necessária independência e da necessária imparcialidade? Nos Estados Unidos e na Inglaterra já se chegou a esse estágio de conferir jurisdição a órgãos não compostos de juízes. A execução fiscal-administrativa também é adotada em alguns países do continente europeu. No Brasil, seguramente, esse estágio ainda não foi alcançado, porque a mentalidade dos funcionários públicos no nosso país é a de absoluta subordinação ao poder hierárquico, o que, muitas vezes – como costumo observar –, os leva, inclusive, a desobedecer à lei ou a decisões judiciais por temor de que o seu cumprimento possa desagradar aos seus superiores. Então, as relações entre os funcionários públicos da Administração Pública
brasileira ainda são relações autoritárias, apesar de muitos terem estabilidade e até estatutos próprios – como os policiais, os diplomatas, os agentes fiscais –, que lhes dão certa independência, mas que não é absoluta para que possam se colocar numa posição de equidistância entre os interesses da Administração e os interesses dos cidadãos. Assim, as resistências que certamente serão opostas a esse projeto de execução fiscal-administrativa tendem a convergir para a falta de imparcialidade dos funcionários por ela responsáveis. Quando se afirma, portanto, que a jurisdição é normalmente exercida por um órgão estatal, não se pretende excluir do seu conceito os casos em que essa função é exercida por quem não é juiz, por leigos temporariamente investidos no exercício da jurisdição, desde que garantidas a imparcialidade em sentido estrito e a independência. Em alguns casos, a própria Constituição atribui a função jurisdicional a quem não é juiz, como ocorre, por exemplo, no julgamento dos crimes de responsabilidade do Presidente da República pelo Senado Federal (Constituição, art. 52, inc. I). É uma função jurisdicional exercida, excepcionalmente, por um órgão do Poder Legislativo, cujos membros não possuem necessariamente independência, pois podem ter compromissos políticos, simpatias, antipatias e até interesses favoráveis ou contrários em relação à autoridade que irão julgar. Invoca-se, para justificar essa regra excepcional, que os crimes de responsabilidade teriam predominantemente caráter político. Contudo, no Brasil, a lei ordinária não poderá efetuar tal atribuição enquanto os princípios regentes da Administração Pública, que estão previstos no artigo 37 da Constituição, não forem integralmente observados, entre os quais o da impessoalidade no exercício da função administrativa. Impessoalidade nada mais é do que neutralidade, independência, imparcialidade. Prosseguindo na análise do conceito de jurisdição, a visão tradicional romanogermânica, consolidada a partir do Iluminismo, é no sentido de que aquela atua a vontade concreta da lei, visão essa que preservei no conceito da função jurisdicional não como característica essencial, mas como uma característica real. Nos países de direito escrito, como o nosso, a jurisdição é um instrumento da lei; o juiz resolve as questões a ele submetidas buscando no ordenamento
jurídico a norma de comportamento aplicável ao caso concreto. Então, como dizia Chiovenda5, o juiz transforma a norma de comportamento, que é uma norma genérica e abstrata, numa norma concreta e específica, que vai ser a lei do caso concreto. Muitos dizem: a sentença é a lei do caso concreto. Essa noção coaduna-se à do chamado juiz boca da lei, mencionado por Montesquieu. A lei é um fator determinante do conteúdo da prestação jurisdicional, mas a função ou a finalidade desta não é a de atuar a lei, e, por isso, considero a atuação da vontade concreta da lei uma nota que, não obstante caracterize a jurisdição nos países de direito escrito, não é essencial a um conceito universal de jurisdição. A definição da jurisdição como atuação da vontade da lei, embora aparentemente sedutora como fruto da supremacia do legislador representativo da vontade popular, é insatisfatória na medida em que conduz à errônea conclusão de que a sua finalidade precípua seja efetivar o cumprimento e a observância da lei. Sem dúvida, o exercício da jurisdição pressupõe a busca, no ordenamento jurídico do Estado, das regras de comportamento que este estabeleceu para regular a vida em sociedade; mas a finalidade da jurisdição não é preservar ou aplicar essas normas, embora indiretamente ela o faça. Se a finalidade da jurisdição fosse a de assegurar a eficácia das normas estatais, ela deveria ser exercida de ofício, para que todas as violações daquelas normas fossem devidamente coibidas e reparadas pelos juízes. Ao contrário, como veremos, a jurisdição é inerte, ou seja, o juiz somente exerce jurisdição quando provocado. Essa inércia da função jurisdicional é, inclusive, corolário da sua imparcialidade, que estaria comprometida se o juiz pudesse sair pela sociedade investigando e sancionando aqueles que se comportam de maneira contrária à lei. A subordinação do exercício da jurisdição à iniciativa de algum interessado deixa claro que a sua finalidade não é a tutela do direito objetivo, mas que essa é apenas o meio através do qual os juízes tutelam direitos e interesses subjetivos. A jurisdição nasceu historicamente para resolver litígios. O surgimento de conflitos entre os indivíduos remonta às mais primitivas organizações sociais. Assim, a maior parte da atividade jurisdicional está voltada para a resolução de litígios; compor a lide significa resolvê-la, solucioná-la.
Contudo, a jurisdição deve atuar para a justa composição da lide, ou seja, compor a lide de acordo com o direito, porque é ele que estabelece as regras de comportamento vigentes numa sociedade, recomendando a sua observância a todos os cidadãos. Logo, a justa composição da lide é a solução do conflito de interesses pela aplicação do direito, de acordo com as regras de comportamento que todos devem observar. Assim, não satisfaz qualquer composição da lide, mas apenas aquela que se dê em conformidade com o direito. Além da justa composição da lide, o conceito elucida que a jurisdição visa também a tutelar ou proteger interesses particulares. Isso porque, desde a Antiguidade, a lei atribui aos mesmos órgãos que resolvem os litígios a função de tutelar certos interesses privados, mesmo que sobre esses não haja nenhum litígio. Por exemplo: imagine-se que determinado menor caia na orfandade. Esse menor precisa de um tutor, para representá-lo, velar pelos seus interesses. Quem nomeia esse tutor é o juiz, no exercício de uma função tipicamente assistencial, que é a jurisdição voluntária. Como veremos mais adiante, quando trataremos mais detidamente da jurisdição voluntária, muitos chegaram a afirmar que, pela falta de litigiosidade, essa atividade assistencial do juiz de tutela de interesses particulares não seria uma atividade jurisdicional. Reconheço que, sem dúvida, a jurisdição nasceu para resolver litígios. Contudo, desde a Antiguidade, como os responsáveis pelo exercício da jurisdição eram pessoas dotadas de grande credibilidade, também a eles foi conferida a administração de interesses privados, sempre que esses interesses devessem ser tutelados, não para atender aos anseios do soberano, mas para serem providos assistencialmente em benefício dos seus próprios destinatários. Na verdade, seja resolvendo litígios, seja tutelando interesses privados não litigiosos, mas que dependem da intervenção do juiz, a jurisdição está sempre tutelando interesses particulares. Essa é a sua segunda nota característica. A jurisdição não se exerce no interesse do Estado, mas no interesse dos seus destinatários, e, por isso, os responsáveis pelo seu exercício devem ser totalmente independentes em relação a qualquer poder, pressão ou ameaça, para poderem fazê-lo altruisticamente. Então, se tivesse de apontar duas características essenciais nesse conceito eclético de jurisdição ora adotado, mencionaria necessariamente a
imparcialidade em sentido lato dos responsáveis pelo seu exercício e a finalidade de tutelar interesses particulares. Neste ponto, a palavra “particulares” não está sendo usada como antônima de “públicos”, de maneira que nada impede que a jurisdição venha a tutelar, por exemplo, em determinado caso concreto, o interesse legítimo de uma pessoa jurídica de direito público, violado por ato de algum cidadão. O Estado também pode ter um interesse particular. O juiz, então, sempre tutela interesses de sujeitos de direito agasalhados pela lei, com os quais ele não se confunde nem se contamina, mantendo-se alheio. Pode haver causas, por exemplo, em que dois entes da Federação ocupem posições subjetivas antagônicas, mas, na solução desse conflito, o juiz deve buscar no direito o fundamento para prestigiar o interesse de um em detrimento do outro, tratando-os como verdadeiros particulares, sob esse prisma. E, quando o juiz se depara com um litígio entre um ente público e um sujeito privado, os interesses desses dois sujeitos devem ser por ele examinados como dois interesses particulares, que ao juiz de modo equidistante cumpre avaliar com absoluta igualdade, fazendo prevalecer aquele que tiver fundamentos mais sólidos na verdade dos fatos e nas razões jurídicas que os sustentam. Essa é a verdadeira finalidade da jurisdição: a tutela dos interesses particulares juridicamente relevantes. Muitos sustentam que a finalidade da jurisdição é o interesse público, a paz social. Sem dúvida, colocando a administração da justiça à disposição dos cidadãos, o Estado busca alcançar a paz social, a convivência de todos em absoluta harmonia. Mas esse é um objetivo remoto e ideal. Não é a paz social que desencadeia o exercício da jurisdição, nem é a paz social que o juiz alcança quando termina de exercer a jurisdição. A finalidade para a qual tende a jurisdição é a tutela, a proteção, o reconhecimento ou a prevalência das situações fático-jurídicas de que são titulares determinados sujeitos em relação a outros ou em relação a toda a sociedade. Mesmo quando esses interesses possuem a mais ampla extensão subjetiva, abrangendo todos os cidadãos, como, por exemplo, quando o Ministério Público propõe a ação penal pública ou propõe uma ação civil pública em defesa da qualidade do ar, a finalidade da jurisdição, exercida por um juiz equidistante entre esse interesse e qualquer outro de qualquer sujeito que a ele se contraponha, é tutelar aquele interesse que vier a ser reconhecido pela lei como prevalente, público ou privado, de toda a sociedade ou de apenas um indivíduo.
3.2. ATO JURISDICIONAL X ATO LEGISLATIVO Tratando da jurisdição como função estatal, é indispensável distinguir a atividade jurisdicional do Estado, da atividade legislativa e da atividade administrativa, que são as três funções que normalmente exercem os três poderes do Estado, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, independentes e harmônicos entre si (Constituição, art. 2º). A distinção entre o ato jurisdicional e o ato legislativo é, à primeira vista, bastante simples, porque, enquanto a lei é norma de caráter genérico e abstrato, o ato jurisdicional tem natureza específica e concreta. A lei é uma disposição geral que atinge todas as pessoas e todas as situações que se enquadrem nos modelos por ela previstos. A lei descreve comportamentos humanos ou situações fáticas que podem acontecer inúmeras vezes e aos quais se aplica a sua determinação sempre que ocorrerem. Mas a lei é um comando abstrato. A situação ou comportamento nela previsto são meramente hipotéticos. Podem ocorrer ou não. Daí o seu caráter de abstração. A lei não é mais ou menos eficaz porque aconteceram muitos casos nela previstos. Há leis plenamente eficazes sem que tenha ocorrido uma única vez a situação nelas prevista. Na Constituição de 1967, com a redação da Emenda Constitucional n. 1/69, havia previsão da pena de morte para determinados crimes. Nunca foi aplicada. Já a jurisdição profere decisões que regulam apenas os casos concretos a ela submetidos, determinadas situações fáticas e comportamentos concretamente ocorridos ou existentes. Da mihi factum, dabo tibi jus. “Dá-me o fato, que eu te darei o direito”, diziam os romanos. A sentença do juiz incide sobre fatos e pessoas reais e impõe a essas pessoas comportamentos concretos e específicos. No exercício da jurisdição o juiz normalmente se debruça sobre fatos passados concretamente ocorridos dos quais extrai o direito das partes. O juiz não dispõe hipotética e abstratamente para o futuro. Quando profere decisões que vão produzir efeitos futuros, extrai as suas conclusões sobre o futuro a partir do exame dos fatos pretéritos. Assim, por exemplo, quando o juiz arbitra uma pensão alimentícia, impõe prestações futuras, com base na capacidade econômica do alimentante e na necessidade do alimentando, apuradas de acordo com as provas de fatos passados.
A generalidade da lei obriga a sua obediência por todos os sujeitos de direito que incidirem nas condutas por ela previstas. A especificidade do ato jurisdicional impõe a sua observância apenas pelas partes no processo em que foi praticado. Essa é a regra geral, mas há exceções. Existe a lei que interessa ou atinge apenas uma pessoa, um grupo determinado de pessoas ou um determinado fato. É o que se costuma denominar direito singular. Assim, a lei que concede anistia ao autor de determinado crime ou que concede pensão vitalícia à viúva de determinado compositor famoso ou que autoriza uma autarquia federal a alienar determinado imóvel. Também existem decisões judiciais que atingem um número indeterminado de pessoas ou, até mesmo, todos os cidadãos, como certas decisões nas ações populares e nas ações civis públicas (Lei n. 4.717/65, art.18; Lei n. 7.347/85, art. 16; e Lei n. 8.078/90, art. 103). Essas decisões são atos jurisdicionais porque resolvem litígios concretos entre determinadas pessoas ou grupos de pessoas, embora muitas vezes os componentes desses grupos sejam indeterminados ou indetermináveis e a sua defesa em juízo se dê através de outros sujeitos que atuam no seu interesse, como indivíduos, associações, órgãos públicos ou o Ministério Público. Hoje existem também as ações de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias de constitucionalidade e arguições de descumprimento de preceito fundamental, que já mencionamos, em que a compatibilidade da lei ou ato normativo com a Constituição é examinada in abstracto pelo Supremo Tribunal Federal, independentemente da sua aplicação a um determinado caso concreto. Fala-se nesses casos de processo objetivo e da atuação da Corte Suprema como legislador negativo. A doutrina dominante atualmente não hesita em atribuir-lhes natureza jurisdicional, não só pelo caráter contencioso que geralmente adotam, mas também porque se trata de procedimentos que visam à busca de um provimento sobre uma situação fática concreta, no caso a incompatibilidade ou compatibilidade de determinada lei ou de determinado ato normativo com a Constituição. A extensão subjetiva que tem a decisão é uma consequência da própria eficácia subjetiva da lei ou do ato normativo examinado. De qualquer modo, não posso deixar de reconhecer que a força vinculante que têm as decisões judiciais nas ações de controle concentrado de
constitucionalidade se aproxima bastante do caráter normativo genérico e abstrato da função legislativa, que somente pode ser atribuída aos juízes através de preceito constitucional, pois, se é a Constituição que institui a separação de poderes, somente ela pode estabelecer as exceções a esse princípio. Também têm caráter normativo, no direito brasileiro, os regimentos internos dos tribunais e as súmulas vinculantes. Em ambos os casos estamos diante de atos administrativos, não jurisdicionais, dos tribunais superiores, sendo que no caso da súmula vinculante, do próprio Supremo Tribunal Federal, a que a própria Constituição veio a atribuir eficácia geral e abstrata (art. 96, inc. I, a; e art. 103A, acrescentado pela Emenda Constitucional n. 45/2004). A atribuição de função normativa aos tribunais através de Emenda Constitucional, entretanto, não pode deixar de ser analisada à luz dos limites do poder de emenda, tendo em vista as cláusulas pétreas que impedem a reforma da Constituição em certas matérias, como os direitos e garantias individuais (Constituição, art. 60, § 4º, inc. IV). Sob esse prisma, cumpre mencionar que a força normativa da declaração de constitucionalidade, instituída pela Emenda Constitucional n. 3/93, foi considerada pelo Supremo Tribunal Federal compatível com a Constituição. E quanto à da súmula vinculante não há esperança de que outra seja proximamente a orientação da Corte Suprema, que já adotou formalmente várias súmulas dessa natureza.
3.3. ATO JURISDICIONAL X ATO ADMINISTRATIVO Para a diferenciação entre o ato jurisdicional e o ato administrativo muitos critérios foram propostos, mas praticamente todos eles mostraram-se insuficientes. O primeiro critério distingue essas duas espécies de atos quanto à inércia. Assim, a jurisdição se exerceria somente quando provocada, enquanto a função administrativa se exerce de ofício, por iniciativa do próprio Estado. Esse critério é um critério auxiliar, pois não estabelece a nota característica entre essas duas funções, na medida em que, excepcionalmente, a jurisdição também se exerce de ofício. Da mesma forma, há casos em que o Estado, no exercício da função administrativa, somente age quando provocado por um particular. É o caso do registro de marcas e patentes, ao qual o Estado não procede de ofício, mas apenas por provocação do interessado.
Então, pode-se dizer que, preponderantemente, a atividade administrativa se exerce de ofício, ao passo que o judiciário atua, na maioria dos casos, mediante provocação dos interessados. O segundo critério de distinção é a lide ou a existência de um litígio. Muitos conceituaram a jurisdição como a função de resolver litígios, havendo até hoje aqueles que defendem que a litigiosidade é a nota característica da jurisdição. Entretanto, ao conceituarmos a jurisdição, foi possível demonstrar que ela também tutela interesses particulares sem que haja litígio, o que ocorre na chamada jurisdição voluntária, embora a função de julgar tenha surgido, originariamente, sem dúvida, para resolver conflitos de interesses. Então, o surgimento do judiciário e dos juízes se deve à litigiosidade, mas a função jurisdicional não se esgota na solução de litígios. É essa a sua atividade mais comum, mais usual, sem, contudo, ser a única desempenhada pelo Poder Judiciário. Por outro lado, dizer-se que a função administrativa não pressupõe litígio também é incorreto, pois ela se exerce, haja ou não litígio. Ocorre, muitas vezes, de ela se exercer justamente porque há um litígio. Ora, basta imaginarmos a intervenção da polícia numa briga entre dois cidadãos numa via pública. Há nitidamente um conflito de interesses, que motivou a atuação de um funcionário público. Especialmente na atividade administrativa ligada à manutenção da ordem pública, da paz pública, essa função se exerce motivada por litígios, que serão resolvidos por métodos próprios, diversos daqueles empregados pelo juiz: apaziguamento dos conflitantes, o uso da força para impedir a “justiça com as próprias mãos” etc. Outro critério é aquele que, em decorrência dos anteriores, afirma que a função jurisdicional é substitutiva, enquanto a função administrativa é primária. Chiovenda, há aproximadamente um século, já se referia ao caráter substitutivo da jurisdição, dizendo que o juiz, ao exercê-la, substitui a vontade das partes pela vontade do Estado e produz um efeito jurídico que as próprias partes poderiam alcançar voluntariamente6. Como as partes não foram capazes de, por si sós, alcançar esse efeito jurídico consensualmente, elas terão de recorrer ao juiz para que ele produza esse efeito.
A função administrativa, por sua vez, seria primária, pois, como ela se exerce no interesse público, não visa a substituir a vontade de ninguém; ela é primariamente o exercício de uma vontade do Estado, e não de uma vontade que esse manifesta para substituir uma ausência de vontade dos próprios interessados. Todas essas distinções mostram uma faceta da atividade jurisdicional e da atividade administrativa do Estado e, embora partam de critérios imperfeitos, servem para, pouco a pouco, construir as noções de jurisdição e de administração. De fato, no exercício da função administrativa, o Estado exerce atividades que manifestam diretamente a sua própria vontade; também é verdade que na função jurisdicional o Estado ignora a liberdade de disposição dos particulares sobre os seus próprios interesses, para substituir a vontade das partes pela sua própria, a qual ele não manifestaria se os próprios interessados tivessem equacionado consensualmente os seus próprios interesses. Mas, na verdade, muitas vezes a jurisdição não é substitutiva da vontade dos particulares, mas se mostra obrigatória. Há muitos casos na própria jurisdição contenciosa – e, portanto, em que há lide – em que os particulares não podem alcançar o efeito jurídico pretendido a não ser por meio do juiz, em que a vontade do Estado tem de concorrer com a vontade dos particulares ou, ao menos, com a de um deles, pois, caso contrário, o referido efeito não poderá ser alcançado. É o caso, por exemplo, da anulação de casamento. Os cônjuges não podem anular o seu casamento, ainda que estejam de acordo, se o juiz não vislumbrar alguma nulidade do ato. O mesmo se dá com a interdição. É preciso que o juiz decrete a interdição mediante a constatação de motivos fundados, uma vez que ninguém pode dispor da sua própria capacidade que, além de afetar a si mesmo, afeta também todos aqueles que com ele mantêm relações. Nesses casos, portanto, a função jurisdicional não é substitutiva, mas imperativa e primária, concorrendo ou não com a vontade das partes. Outro critério de distinção sustenta que a atividade jurisdicional estaria sujeita ao devido processo legal, ao passo que a atividade administrativa se exerceria informalmente, ou seja, que a forma de desempenho desta última seria livre, podendo o administrador conduzi-la sem seguir uma rígida ritualidade estabelecida na lei.
Essa distinção está desaparecendo, porque no moderno Estado Democrático de Direito também a Administração Pública, em razão do princípio da legalidade, tem de respeitar, no exercício da função administrativa, direitos, deveres e ônus dos interessados, e tem de ritualizar a sua atividade. Isso decorre, em primeiro lugar, da garantia inscrita no artigo 5º, inciso LV, da Constituição, que garante aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, o contraditório e a ampla defesa. Da mesma forma, decorre dos princípios regentes da Administração Pública, insculpidos no artigo 37, caput, da Constituição, como os princípios da legalidade, da moralidade etc. A Administração Pública, no Estado de Direito contemporâneo, tem de demonstrar de forma transparente a consistência das suas decisões e dos seus atos, como forma de possibilitar o seu controle, seja por parte de outros órgãos da própria Administração, seja pelos interessados nas atividades por ela exercidas, seja pelos demais poderes do Estado. Tanto isso é verdade que, depois do advento da Constituição de 1988, foi editada no Brasil uma lei geral sobre o processo administrativo, que é a Lei n. 9.784/99, cujas disposições se aplicam à Administração Pública, direta e indireta, e aos Poderes Legislativo e Judiciário da União (art. 1º, § 1º)7. Então, dizer que a função administrativa se exerce informalmente não é mais correto. Obviamente, há uma grande margem de poder discricionário conferida ao administrador, que se exerce em uma gama de atividades que a lei não regula minuciosamente, devendo ser implementadas por escolhas razoáveis do administrador com base em juízos de conveniência e oportunidade. Assim, nota-se uma progressiva ritualização da atividade administrativa, que não pode mais ser considerada puramente informal, sob pena de legitimar-se o arbítrio. O respeito a essa processualidade dos atos da Administração é controlado em grande parte pelo próprio judiciário, do qual não pode ser subtraído o exame de qualquer lesão ou ameaça a direitos, consoante dispõe o inciso XXXV do artigo 5º da Constituição. Essa contraposição de características não pode significar que, na atividade jurisdicional, o procedimento legal seja visto como um mito, pois, hoje, vivemos uma fase de evolução histórica do direito processual em que há uma tendência crescente ao abandono do formalismo e da ritualidade excessiva. A esse respeito, por exemplo, estabeleceu o artigo 154 do Código de 1973 que a forma dos atos
processuais é livre, instituindo, portanto, o que conhecemos por princípio da instrumentalidade das formas. No mesmo sentido, dispõe o artigo 188 do Código de 2015, proclamando que os atos e termos processuais independem de forma determinada. Por isso, atualmente sustento como uma das garantias fundamentais do processo a existência de um procedimento legal, flexível e previsível: legal, porque regido pela lei; flexível, porque o juiz deve poder realizar alguns desvios no procedimento legal a fim de manter a paridade de armas e assegurar a ampla defesa; e previsível, porque, toda vez em que o juiz sai do limite da lei, ele deve adotar uma série de ações para a qual as partes possam se preparar de modo adequado. É o que hoje vem sendo denominado princípio da previsibilidade ou da confiança legítima. No Código de 2015, como já assinalamos, a flexibilidade do procedimento judicial foi acentuada com a previsão de sua alteração por convenções das partes, nos termos dos artigos 190 e 191. Outro critério comumente apresentado é o que aponta a existência de coisa julgada na função jurisdicional, a qual não existiria na função administrativa. A coisa julgada é a imutabilidade das decisões judiciais contra as quais não caibam mais recursos ou, de acordo com os termos do artigo 502 do Código de 2015, “a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”, em redação semelhante à do artigo 467 do Código de 1973. A coisa julgada é responsável pela estabilização das relações jurídicas controvertidas, para que aqueles cujos direitos foram reconhecidos judicialmente possam gozá-los sem mais ser molestados no futuro pelas mesmas pessoas mediante os mesmos fundamentos. Ocorre que a coisa julgada não é característica de todas as modalidades de jurisdição, mas apenas de uma das espécies de jurisdição, qual seja, a jurisdição de conhecimento de natureza contenciosa de cognição exaustiva. Isso porque na tutela provisória, de natureza cautelar ou antecipada, na jurisdição voluntária e na jurisdição de execução, não se exerce uma atividade cognitiva exaustiva, o que impede que as decisões nelas proferidas adquiram a imutabilidade da coisa julgada. Quanto à tutela provisória, cautelar ou antecipada, há dispositivos legais que expressamente consagram a inexistência de coisa julgada (CPC de 1973, arts. 807 e 273, § 4º; Código de 2015, art. 296), podendo ser revogadas ou modificadas a qualquer tempo. Portanto, não é correto sustentar-se que a coisa
julgada seja uma característica da jurisdição como um todo, mas tão somente o é em relação à jurisdição de conhecimento de cognição exaustiva. Os atos administrativos nunca fazem coisa julgada, em razão do princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional (art. 5º, inc. XXXV, da Constituição). Eles estão sempre sujeitos à revisão judicial e, por isso, não podem tornar-se imutáveis. Porém, muitas vezes, a decisão administrativa somente pode ser anulada dentro de certo prazo. Também é preciso dizer que a própria coisa julgada judicial vem sofrendo muitos abalos, ultimamente, com a difusão das teses da relativização da coisa julgada e da coisa julgada inconstitucional, às quais voltaremos em outro momento, assim como com a criação de procedimentos cognitivos sumários8. A desconstituição da coisa julgada no processo civil se dá principalmente por meio da propositura da chamada ação rescisória, cujas hipóteses de cabimento estão elencadas nos incisos do artigo 485 do Código de 1973 e do artigo 966 do Código de 2015. Procura-se também distinguir a atividade jurisdicional da administrativa pelo critério da indelegabilidade, que é uma consequência da garantia do juiz natural. Cada órgão jurisdicional exerce jurisdição nos limites da competência que lhe é atribuída pela lei e não pode transferi-la a nenhum outro órgão, seja de hierarquia superior, inferior ou de mesma hierarquia. Contudo, há exceções ao princípio da indelegabilidade, como, por exemplo, o cumprimento de cartas precatórias, rogatórias e de ordem, que são atos de cooperação interjurisdicional, através dos quais um órgão jurisdicional colabora com outro para a prática de atos de comunicação, de atos probatórios e de atos de execução. No âmbito da Administração, vigora o princípio oposto ao da indelegabilidade, que é o princípio da hierarquia. O superior sempre pode exercer as atribuições do seu subordinado; ele avoca as funções e as exerce. Da mesma forma, salvo exceções constitucionais, o superior sempre pode transferir ao subordinado uma atribuição sua, através de um ato de delegação. Na avocação, o superior exerce funções que cabem ao seu subordinado; na delegação, transfere funções que lhe cabem aos seus subordinados. Também há exceções a respeito do princípio da hierarquia no âmbito da Administração Pública. O Presidente da República, por exemplo, não pode delegar funções
políticas, como, em geral, aquelas que ele exerce nas relações com os outros poderes e que estão relacionadas à sua investidura democrática. Todos os critérios até aqui examinados relevam aspectos importantes das duas atividades, mas não são satisfatórios para definir a sua essência, que me parece sobressair dos critérios seguintes. O próximo critério a ser analisado é o que vincula a independência à função jurisdicional e a subordinação à função administrativa. Realmente, os juízes não estão sujeitos ao princípio da hierarquia; cada juiz exerce a sua jurisdição nos limites que a lei lhe atribui, sendo que nenhum deles pode sofrer qualquer sanção em razão do conteúdo das suas decisões. Contudo, isso não significa que o juiz seja irresponsável, mas que o exercício da sua função está revestido de certas garantias para assegurar a sua atuação de modo independente e imparcial. Assim, um dos grandes dilemas da justiça contemporânea é a conciliação da independência com a responsabilidade dos juízes, porque, obviamente, a primeira não pode implicar a impunidade do juiz, ideia que seria incompatível com o próprio Estado de Direito. Poucos, entretanto, são os Estados contemporâneos que conseguem solucionar esse problema, promovendo a responsabilidade pela prevaricação, concussão ou corrupção dos juízes. O direito americano, neste ponto, é um dos poucos que tem se mostrado capaz de promover uma satisfatória responsabilização dos juízes. Nos Estados Unidos, por exemplo, os juízes federais estão sujeitos a sofrer – e alguns já sofreram – impeachment perante o Senado, assim como o Presidente da República. A independência é uma garantia muito mais dependente da cultura e dos costumes de cada povo do que de rígidas regras legais que a protejam. No Brasil, os juízes gozam das chamadas garantias constitucionais da magistratura, que são a inamovibilidade, a vitaliciedade e a irredutibilidade de subsídios ou de vencimentos (art. 95 da Constituição). Contudo, há países em que os juízes, embora não sejam vitalícios, são mais independentes do que no Brasil, como na Suíça, por exemplo. Nesse país, os juízes têm mandatos, mas na prática são moralmente vitalícios, pois o Parlamento, ao final do seu mandato, costuma normalmente reconduzi-los aos seus cargos. O administrador não tem a mesma independência do juiz, embora o servidor
público ocupante de cargo efetivo seja titular de muitas garantias – estabilidade, irredutibilidade de vencimentos etc. Contudo, os administradores estão sujeitos ao poder hierárquico, podendo receber instruções dos seus superiores, as quais serão obrigados a cumprir, salvo se manifestamente ilegais. Como garantia da sua independência, os juízes não podem receber ordens ou determinações sobre o conteúdo das suas decisões. Logo, apesar de os tribunais estarem organizados hierarquicamente, no sentido de que a organização judiciária prevê juízos de diferentes graus, cabendo aos de grau mais elevado rever através de recursos as decisões dos de grau inferior, no exercício da função jurisdicional cada juiz é soberano; no momento da decisão, ele não está sujeito a respeitar ordens de ninguém. Mesmo com o advento das súmulas vinculantes, os juízes que deixarem de observá-las não poderão ser punidos, mas apenas ter as suas decisões reformadas por um tribunal superior. Aliás, acerca da matéria, há um projeto de lei em trâmite no Congresso Nacional que prevê punições para os juízes que desobedeçam às referidas súmulas, o que, se vier a ocorrer, constituirá grave atentado à independência dos juízes. Nos Estados Unidos, há uma lei que estabelece que o juiz que desrespeita os precedentes, que são os entendimentos firmados pelos tribunais superiores, comete falta funcional; mas essa previsão não é absurda no sistema americano, em que vigora, como regra, a vinculação do juiz inferior ao precedente do tribunal superior. Ainda assim, há relatos de que essa lei caiu em completo desuso e não se tem notícia de que, nas últimas décadas, juízes tenham sido punidos por não observarem os precedentes. Conforme já expusemos anteriormente, essa ausência de hierarquia e de um dever de obediência a ordens superiores não significa, entretanto, que os juízes sejam absolutamente independentes, pois as imposições da carreira muitas vezes são mais severas do que as da própria lei. O último critério de distinção é o que consegue verdadeiramente apontar as diferenças entre as atividades sob exame. De acordo com esse critério, a jurisdição se exerce para a tutela de interesses particulares, enquanto a administração se exerce para a tutela do bem comum, do interesse público ou do interesse geral da coletividade. Interesses particulares são interesses de certos sujeitos – dentre eles, o próprio
Estado – que podem se contrapor aos de outros sujeitos e sobre os quais a jurisdição deve exercer uma tutela impessoal em que não cabe ao juiz pender para o lado do interesse público, a pretexto de que se trata de um interesse de todos, em detrimento do interesse de poucos. A tutela jurisdicional se exerce em favor do interesse tutelado pelo Direito, seja ele de um, de poucos ou de todos os cidadãos. O juiz há de ser sempre um terceiro alheio e equidistante dos interesses em conflito, que não exerce o seu mister em benefício do Estado, mas daquele que tem razão à luz do ordenamento jurídico. Obviamente, no exercício da jurisdição, existe sempre uma reflexa tutela do interesse público, que é a busca da paz pública, da paz social; mas esse é um interesse remoto e secundário. Já a Administração, em princípio, vela pelo bem comum. É verdade que certas atividades da Administração também atingem diretamente interesses particulares ou os tutelam, como o registro de comércio, o registro de marcas e patentes, o registro de nascimento, mas sempre serão exercidas sob o prisma da subordinação desses interesses privados ao interesse público. A jurisdição não deve ser exercida com a finalidade de fazer prevalecer o interesse público. Se, num processo judicial, se estabelecer um conflito entre o interesse público e um interesse particular, o juiz tem de fazer prevalecer aquele que merecer a tutela jurisdicional de acordo com a lei ou com o ordenamento jurídico. Logo, não se pode dizer aprioristicamente que nesse conflito sempre prevalecerá o interesse público. A democracia social, engendrada pelo chamado Estado-Providência, subsequente à Primeira Guerra Mundial, foi estruturada sob o absoluto primado do interesse público sobre o interesse particular. Contudo, esse não é mais o Estado Democrático do nosso tempo, pois, sob o pretexto da supremacia sistemática do interesse público, aquele modelo de Estado propiciou o surgimento de regimes autoritários, que violaram sistematicamente direitos e garantias individuais, instituindo truculentas ditaduras, tal como o fizeram os regimes nazista e fascista e algumas ditaduras militares na América Latina. No Estado de Direito contemporâneo, vivemos sob a égide do primado dos direitos fundamentais (Constituição, preâmbulo e art. 1º), sem olvidar-se, contudo, do necessário equilíbrio que deve haver entre o interesse público e o interesse privado. Mas, se o núcleo duro de um direito fundamental individual estiver em jogo e esse direito for tutelado pela lei, o juiz não pode afastá-lo para
agasalhar um suposto interesse público.
3.4. CLASSIFICAÇÃO A jurisdição pode ser classificada por vários critérios. O primeiro é o critério hierárquico, de acordo com o nível do órgão que a exerce. De acordo com o critério hierárquico, a jurisdição se classifica em jurisdição inferior e jurisdição superior. Jurisdição inferior é aquela exercida pelos órgãos jurisdicionais de primeiro grau, aqueles que compõem a base do organograma do Poder Judiciário, os de primeira instância. São os juízos de direito ou varas compostas por um só juiz, na justiça estadual e do Distrito Federal; os juízos ou varas federais, igualmente singulares ou monocráticos, na justiça federal; os juízos ou varas do trabalho, monocráticos a partir da Emenda Constitucional n. 24/99 (Constituição, art. 116), na justiça do trabalho; as auditorias e conselhos da justiça militar, as primeiras monocráticas e as segundas colegiadas, na justiça militar; e os juízos e as juntas eleitorais, monocráticos os primeiros e colegiadas as segundas, na justiça eleitoral. Na justiça estadual e do Distrito Federal, assim como na justiça federal, em matéria criminal, há também um tipo de órgão jurisdicional de primeiro grau colegiado, que é o Tribunal do Júri, competente para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (Constituição, artigo 5º, inc. XXXVIII). Todos esses são órgãos jurisdicionais inferiores. Jurisdição superior é aquela exercida por: tribunais de segundo grau, como os Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais; e também pelos tribunais superiores da União, como o Superior Tribunal de Justiça, o Tribunal Superior Eleitoral, o Tribunal Superior do Trabalho, o Superior Tribunal Militar e, ainda, pelo Supremo Tribunal Federal, que é o órgão que se sobrepõe a todos os demais, como Corte Suprema e órgão de cúpula do Poder Judiciário. O fato de um órgão ter o nome de tribunal não significa em si que ele faça parte do Poder Judiciário, que ele seja titular do poder jurisdicional, que ele exerça jurisdição. O Tribunal de Contas da União, por exemplo, não integra o Poder Judiciário, não é um órgão jurisdicional. É um órgão auxiliar do Poder Legislativo para fiscalizar as prestações de contas de todos os administradores de
recursos públicos federais e exercer outras atribuições que lhe são conferidas pela Constituição (arts. 71 a 73). Possui o nome de tribunal, seus membros gozam das mesmas garantias dos magistrados, tais como vitaliciedade, irredutibilidade dos vencimentos, mas não integra o Poder Judiciário. As decisões do Tribunal de Contas podem ser impugnadas perante o Poder Judiciário, como qualquer decisão de qualquer órgão do poder público. As decisões do Tribunal de Contas podem ainda ser revistas ou anuladas pelo próprio Congresso Nacional, em muitos casos. No julgamento das contas do Presidente da República, por exemplo, o Tribunal de Contas dá apenas o parecer, mas quem vai decidir em definitivo sobre a regularidade dessas contas é o Congresso Nacional (Constituição, art. 49, inc. IX). O mesmo ocorre com o Tribunal Marítimo, que julga litígios, sem a força das decisões judiciais. Está instalado no centro da Cidade do Rio de Janeiro, perto da Praça XV de Novembro, e se dedica a julgar os acidentes marítimos, as avarias e outros eventos da vida do mar, dos marinheiros, dos navegantes e das embarcações. Exerce atividade administrativa, não jurisdicional, sendo uma instância administrativa da Marinha do Brasil. Suas decisões também podem ser atacadas, podem ser impugnadas perante um órgão jurisdicional. No Estado de São Paulo, há o Tribunal de Impostos e Taxas, que também é um órgão administrativo. É conveniente que a Administração Pública tenha órgãos internos para julgar os conflitos entre ela própria e os particulares. No Brasil, esses órgãos da Administração Pública, que a própria Administração institui para julgar atos da Administração ou conflitos entre esta e os particulares, como os Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda, não são órgãos jurisdicionais, mas sim órgãos administrativos. Nos Estados Unidos, muitos desses órgãos adquiriram tal independência, tal autonomia, tal profissionalização, que o próprio judiciário passou a aceitar que as suas decisões fossem a primeira instância judicial. São os órgãos internos de solução de conflitos das chamadas agências, como a Agência de Meio Ambiente, a Agência de Comércio Internacional, a Agência de Segurança e Saúde no Trabalho, o Banco Central.
No Brasil, esses órgãos, ainda que profissionalizados, tendo seus funcionários certas garantias, exercem fiscalização sobre a própria Administração, mas suas decisões são administrativas, não jurisdicionais, estando sujeitas à revisão e controle judicial através de ações que venham a ser propostas perante o Poder Judiciário. Nos Estados Unidos, as decisões das agências são revistas diretamente pelas Cortes de Apelação Federais, e não pelos juízes de primeiro grau, sistema esse que se pretendeu instalar no Brasil em 1977, através de uma Emenda Constitucional, mas que jamais foi implementado, em razão da resistência da própria sociedade em aceitar a supressão ou postergação do direito de ingresso em juízo em favor de uma instância administrativa organizada pelo próprio Poder Executivo sem a garantia da sua efetiva independência. Nos Estados Unidos, esses órgãos internos das agências exercem verdadeira jurisdição, pois são a primeira instância de julgamento dos litígios entre particulares e a administração nas matérias específicas em que elas atuam. Em relação ao Tribunal de Contas, seus atos também estão sujeitos ao controle jurisdicional comum, mas, por exceção, o mandado de segurança e o habeas data contra esses atos do Tribunal de Contas são da competência originária do Supremo Tribunal Federal, de acordo com o artigo 102, inciso I, alínea d, da Constituição. Então, para essas ações contra atos do Tribunal de Contas, o juízo competente é o Supremo Tribunal Federal. Vale mencionar que habeas data é uma ação semelhante ao mandado de segurança, que tem por finalidade obter informações pessoais sobre a própria pessoa, que constem de bancos de dados e cadastros oficiais, ou, então, cancelar essas informações, caso sejam ofensivas ou inverídicas (Constituição, art. 5º, inc. LXXII; e Lei n. 9.507/97). 3.4.1. Jurisdição de conhecimento, de execução e cautelar A jurisdição também se classifica quanto à modalidade de provimento jurisdicional invocado. É um dos dois principais critérios de classificação. Qual atividade se espera do juiz, se pleiteia ou se pede ao juiz? É a classificação de acordo com o tipo de atividade que será exercida pelo juiz, dada conforme a natureza da tutela jurisdicional invocada. Isso porque a proteção dos interesses particulares diante de determinada lide ou de determinada situação jurídica pode
dar-se através da jurisdição de conhecimento, da jurisdição de execução ou da jurisdição cautelar. Na jurisdição de conhecimento, a jurisdição se exerce através de uma atividade cognitiva, uma atividade intelectual. Também é chamada de jurisdição de sentença, e a finalidade de tal jurisdição é o pronunciamento do juiz sobre a existência ou inexistência do direito do autor e a aplicação a esse pronunciamento de todas as consequências daí decorrentes. Nessa jurisdição, o judiciário julga as ações declaratórias, constitutivas e condenatórias. Julga os fatos e julga o direito, dando a cada um o que é seu (suum cuique tribuere), declarando o direito das partes. Na jurisdição de execução, a atividade jurisdicional não é preponderantemente intelectual, cognitiva, mas sim uma atividade coativa, satisfativa. É a modalidade de tutela jurisdicional na qual o juiz desencadeia uma série de atos coativos contra o devedor ou sobre o seu patrimônio, para satisfazer um crédito consubstanciado num título executivo. É uma atividade eminentemente prática. O juiz penetra no mundo da vida, podendo agir por meio de pressões, coações, ou então praticar atos de força para entregar ao credor a prestação a que ele faz jus, presente no título executivo. O título executivo pode ser uma sentença proferida no exercício da jurisdição de conhecimento. Por exemplo: o juiz da jurisdição de conhecimento, em uma ação de indenização, condenou o réu a pagar ao autor dez mil reais. Contudo, o réu continua não pagando os dez mil reais. Então, o autor, vencedor, pede ao juiz, normalmente no mesmo processo de que resultou a sentença, para instaurar a execução, penhorando os bens do devedor e praticando os demais atos necessários para transformá-los em dinheiro, a fim de pagar o credor. É o que hoje se denomina no Brasil cumprimento de sentença (Código de 1973, arts. 475-I a 475-R, com a redação da Lei n. 11.232/2005; Código de 2015, arts. 513 a 538). No entanto, o título executivo também pode ser um outro documento qualquer ao qual a lei dê força executiva, como uma nota promissória ou uma confissão de dívida, sem que tenha havido um procedimento cognitivo anterior. À sua cobrança o legislador hoje reserva a denominação de processo de execução, regulado no Código de 1973 nos artigos 566 a 795 e no Código de 2015 nos artigos 771 a 925. Existe cognição na execução, mas é uma cognição acessória, complementar. A certeza do direito já está constituída no título executivo.
A jurisdição cautelar é instrumental e se realiza por uma multiplicidade bastante variável de atividades, sendo algumas cognitivas, algumas executórias e outras de mera documentação. A tutela jurisdicional cautelar é aquela que visa a proteger provisoriamente e em caráter de urgência um interesse que dependerá de apreciação final por uma das duas outras modalidades de jurisdição, assegurando a eficácia da respectiva prestação jurisdicional. A tutela cautelar normalmente serve à tutela de conhecimento ou à tutela de execução. No Código de 1973, o processo cautelar foi objeto de um Livro próprio, nos artigos 796 a 889. No Código de 2015, ela é tratada no âmbito da tutela provisória de urgência (arts. 294 a 310). Por exemplo: cobra-se uma dívida em uma ação de conhecimento. No curso dessa ação, o réu começa a dissipar seus bens, de forma que, se a causa for ganha, não haverá meios para executar a decisão, pois os bens do réu não serão encontrados. Então, o autor pede ao juiz uma medida cautelar de arresto dos bens (CPC de 1973, arts. 813 a 821; CPC de 2015, art. 301), que consistirá na apreensão dos bens do devedor, na entrega desses bens à guarda de um depositário, para assegurar a eficácia do provimento jurisdicional de conhecimento na ação de cobrança da dívida. A tutela cautelar é sempre assecuratória, instrumental. Calamandrei, grande teórico italiano das medidas cautelares, dizia que as medidas cautelares são o instrumento do instrumento9. A jurisdição de conhecimento e a execução protegem os interesses dos cidadãos, enquanto a jurisdição cautelar protege a de conhecimento e a de execução. A partir de 1994, o artigo 273 do Código de 1973 criou um novo instituto, a tutela antecipada, que permite ao juiz, no próprio processo em que exerce a jurisdição de conhecimento, antecipar os efeitos da decisão final, em algumas hipóteses, entre as quais se inclui a de perigo de lesão grave ou de difícil reparação. Tutela antecipada é tutela cautelar? Em minha opinião, a hipótese do artigo 273, inciso I, do Código de 1973, que prevê a sua concessão no perigo iminente de dano, é. Contudo, a doutrina dominante não a tem considerado como cautelar, limitando o conceito de tutela cautelar apenas às hipóteses de simples proteção do próprio processo e não de proteção do direito material que o processo
principal visa a alcançar. É a distinção que tem sido feita entre medidas de urgência cautelares e antecipatórias, a qual o Código de 2015 procurou dar um tratamento mais sistemático. Na doutrina tradicional, no que se refere a tal matéria, sempre se entendeu que tanto a proteção pura do processo como a do próprio direito material teriam caráter cautelar, pois muitas vezes não é possível garantir a eficácia da prestação jurisdicional no processo principal sem se proteger, desde logo, o próprio direito material que é objeto do processo principal. Além disso, sempre houve medidas cautelares antecipatórias ou satisfativas, como os alimentos provisionais (CPC de 1973, arts. 852 a 854), não mais previstos no Código de 2015, na vigência do qual sobrevivem apenas os chamados alimentos provisórios, igualmente satisfativos, instituídos no artigo 4º da Lei n. 5.478/68. Referendando a natureza cautelar da tutela do artigo 273, inciso I, do Código de 1973, o § 7º desse mesmo artigo, introduzido pela Lei n. 10.444/2002, estabeleceu que, se com o nome de tutela antecipada o autor tiver pedido tutela cautelar, o juiz deveria conceder a medida cautelar no próprio bojo do processo de conhecimento, o que a doutrina veio a denominar de fungibilidade entre a tutela antecipada e a tutela cautelar, porque, de qualquer maneira, a tutela antecipada realiza um dos objetivos da tutela cautelar, que é a proteção provisória dos interesses em jogo. Reconhecendo que a tutela cautelar e a antecipatória do inciso I do artigo 273 possuem objetivos que se confundem, o Código de 2015 preferiu tratá-las em conjunto, nos dispositivos acima mencionados, como modalidades de tutela de urgência, no âmbito do que denominou tutela provisória, que passou a incluir expressamente uma outra modalidade de tutela antecipada sem o explícito requisito da urgência, que é a denominada tutela de evidência (art. 311), que tem a natureza de jurisdição de conhecimento.
3.5. JURISDIÇÃO DISTINÇÕES
CONTENCIOSA
E
VOLUNTÁRIA:
Outro critério de classificação tradicional da jurisdição, também muito importante, é quanto à existência de litigiosidade. Por tal critério, a jurisdição se classifica em contenciosa e voluntária. Na concepção tradicional, a jurisdição é a
função de resolver litígios, é o meio de solução de conflitos. É forçoso reconhecer que o que fez surgir a função jurisdicional, ou o próprio judiciário, foi a litigiosidade, conforme explicamos. O Código de 1973, no artigo 1º, exprimiu com toda clareza essa classificação da jurisdição ao dizer: “A jurisdição civil, contenciosa e voluntária é exercida pelos juízes, em todo o território nacional, conforme as disposições que este código estabelece”. O seu Livro IV, relativo aos procedimentos especiais, que começava no artigo 890, se subdividia em dois títulos: procedimentos especiais de jurisdição contenciosa e procedimentos especiais de jurisdição voluntária, os últimos a partir do artigo 1.103. Havia também procedimentos de jurisdição voluntária regulados no Livro III sobre o processo cautelar, como os protestos, as notificações e as interpelações, a justificação, a posse em nome do nascituro e a homologação do penhor legal. O Código de 2015 também confere aos procedimentos de jurisdição voluntária um tratamento comum, no capítulo XV do título III do Livro I da Parte Especial, dos artigos 719 a 770, instituindo um grupo de disposições gerais (arts. 719 a 725) aplicável a todos os procedimentos dessa espécie, ainda que previstos ou regulados em outros capítulos do próprio Código ou em outras leis, e regulando especificamente alguns procedimentos, como as alienações judiciais (art. 730), o divórcio consensual, a extinção da união estável, a alteração do regime de bens no matrimônio (arts. 731 a 734) e a interdição (arts. 747 a 758). Há outros procedimentos ou provimentos de jurisdição voluntária previstos em leis especiais, como a Lei dos Registros Públicos, e em outros capítulos do próprio Código, como a decisão homologatória de autocomposição extrajudicial de qualquer natureza” (art. 515, inc. III, e art. 725, inc. VIII), e o procedimento probatório da justificação (art. 381, § 5º). Afora as disposições que lhes são próprias, aos procedimentos de jurisdição voluntária se aplicam todas as demais disposições do Código de 2015 aplicáveis a quaisquer outros procedimentos, como as relativas ao procedimento comum (arts. 318 e ss.), ao cumprimento de sentença (arts. 513 e ss.), aos processos nos tribunais e aos recursos (arts. 926 e ss.), integrando, portanto, a jurisdição civil, cujo exercício é disciplinado, que é o objeto do próprio Código (art. 1º). Alguns dizem que a verdadeira e própria jurisdição é a contenciosa, que é aquela que se destina a resolver litígios, lides, no conceito de Carnelutti, exposto como
o conflito de interesses regulado pelo Direito e caracterizado por uma pretensão resistida ou insatisfeita10. Toda vez que dois sujeitos disputam um bem da vida e um deles se dirige ao juiz contra o outro, pedindo que esse bem lhe seja atribuído com exclusividade, há uma lide e a jurisdição é contenciosa. A atitude do sujeito passivo da lide pode ser ativa, de resistência, ou uma atitude passiva, de insatisfação. Exemplo: crédito não pago. A lide está na impossibilidade de o credor, por seus próprios meios, buscar no patrimônio do devedor o recebimento da dívida, pois a sociedade repudia esse tipo de comportamento, e é, inclusive, um crime previsto no Código Penal como exercício arbitrário das próprias razões (Código Penal, art. 345). A jurisdição também pode ser voluntária. Observando-se os procedimentos que a própria lei inclui nessa jurisdição, fica mais fácil compreendê-la. O artigo 1.112 do Código de 1973 e o artigo 725 do Código de 2015 mencionam a emancipação, a sub-rogação, a alienação, o arrendamento ou a oneração de bens de incapazes. Em seguida, seções específicas tratam de outros procedimentos, como os já referidos (alienações judiciais, divórcio consensual e interdição). Um procedimento de jurisdição voluntária pode ser encontrado, por exemplo, naquelas hipóteses em que o pai de um menor, que recebeu como doação do avô um imóvel, deseja vendê-lo, por achar que o seu custo de manutenção é muito alto, que o imóvel está desvalorizando e que são mais vantajosas para o filho a venda do imóvel e a aplicação do dinheiro em outro bem. Apesar de representar legalmente o filho, de acordo com o Código Civil (art. 1.691), o pai somente pode alienar bem imóvel do filho mediante autorização ou alvará judicial. Tal autorização constitui um procedimento de jurisdição voluntária, uma vez que não há lide, mas apenas a fiscalização pelo juiz se a decisão do pai atende ao interesse do menor. Pelo conceito tradicional, é um ato judicial de administração pública de interesse privado. Na jurisdição contenciosa, alguns procedimentos também suscitam o questionamento de diversos juristas quanto à presença ou não de litigiosidade, como, por exemplo, o arrolamento sumário, que é o inventário quando os herdeiros são todos capazes e estão de acordo quanto à partilha de bens (CPC de 1973, arts. 1.031 a 1.038; CPC de 2015, arts. 659 a 667). Nesse caso, onde está a
litigiosidade? No final do século XIX e início do século XX, a jurisdição voluntária era considerada uma atividade anômala do Poder Judiciário, uma atividade formalmente jurisdicional, mas essencialmente administrativa. Chiovenda dizia que o critério de distinção entre a jurisdição contenciosa e a voluntária era a ausência de partes e a consequente impossibilidade (não simples ausência) de contraditório11. Na jurisdição voluntária não havia partes, não havia dois sujeitos em posições subjetivas antagônicas, um disputando contra o outro o mesmo bem. Por isso, na dogmática processual se aceitou a noção de que os sujeitos na jurisdição voluntária não deveriam ser chamados de partes, mas de interessados. Reflexo disso está nos artigos 213 do Código de 1973 e 238 do Código de 2015, que tratam da citação, fazendo a distinção entre réu e interessado. O segundo critério de diferenciação, de acordo com essa doutrina, não é a ausência de contraditório, que também pode ocorrer na jurisdição contenciosa, por exemplo, quando o réu não contesta a ação, mas a impossibilidade de efetiva polêmica, disputa, justamente pela ausência de sujeitos diversos em posições subjetivas antagônicas. Tais características levaram Chiovenda e a doutrina tradicional a considerar a jurisdição voluntária uma atividade administrativa do Poder Judiciário. Surge aí um problema, que é o conflito entre a atribuição de função administrativa ao judiciário e o princípio da separação de poderes. Antes da Revolução Francesa, enquanto não havia separação de poderes, pois o soberano concentrava em suas mãos todos os poderes, o Estado era monolítico e não havia esse problema, pois um mesmo funcionário podia exercer funções administrativas e jurisdicionais. É famoso o chamado anátema de Mortara, segundo o qual a jurisdição voluntária não era nem jurisdição, porque não havia litígio, nem voluntária, porque era obrigatória. A expressão jurisdição voluntária vem de uma interpolação de Marciano, um imperador romano do Oriente, do século V, que distinguia a jurisdição entre aqueles que não concorrem com a sua vontade (inter nolentes) e os que concorrem (inter volentes). Daí essa denominação equívoca de jurisdição voluntária. No direito francês, é denominada jurisdição graciosa, expressão que também é muito criticada, porque dá a entender ser uma atividade facultativa do
juiz, quando, em verdade, ela normalmente é obrigatória e imposta ao juiz pela lei, embora, para os interessados, algumas vezes a lei permita que alcancem o efeito almejado sem a intervenção do juiz, como, por exemplo, no divórcio consensual, que pode ser obtido por escritura pública (CPC de 1973, art. 1.124A, introduzido pela Lei n. 11.441/2007; CPC de 2015, art. 733), e na constituição do devedor em mora, que pode ser produzida por interpelação judicial ou extrajudicial (Código Civil, art. 397, parágrafo único). A lei atribui ao juiz o poder de intervir em certas relações jurídicas privadas em caráter assistencial, subordinando a validade ou a eficácia de certos atos da vida particular à sua aprovação, autorização ou homologação. Voltando ao exemplo do pai que representa o filho perante o juiz, pedindo autorização para a venda de imóvel, a manifestação de vontade é uma só: a vontade do filho, representado pelo pai. Não há partes oponentes. Contudo, pode acontecer de o pai querer tirar vantagem de um direito do seu representado. Então, a lei impõe à administração paterna, ao poder parental, uma fiscalização, um controle exercido pelo juiz. A abrangência da jurisdição voluntária varia de país para país e de época para época. Há certos atos da vida privada cuja validade ou eficácia depende de autorização ou aprovação judicial em um país, mas não depende no outro, como, por exemplo, o divórcio. No Brasil, até recentemente e em muitos outros países, dependia de homologação judicial, mas no Japão e na Suécia, por exemplo, não dependia. Outro exemplo é o inventário, através do arrolamento sumário. No Brasil, até o advento da Lei n. 11.441/2007, dependia de homologação judicial, enquanto na Itália, como na maioria da Europa, por exemplo, não dependia. Dividiam-se os bens e levava-se a partilha a registro. A Lei n. 11.441/2007, que continuará em vigor com o advento do Código de 2015, dispensou da homologação judicial o arrolamento sumário, se todos os herdeiros forem capazes e concordes. A jurisdição voluntária não nasceu na Teoria Geral do Processo, mas sim no Direito Administrativo. Não é só o judiciário que administra interesses privados, também a Administração Pública o faz, como já apontava o próprio Chiovenda nos textos atrás referidos. Porém, a Administração Pública administra interesses públicos ou privados sempre sob o prisma da preponderância do interesse público, sob a perspectiva do cumprimento das finalidades públicas daquela
atividade. Exemplo de atividade administrativa de tutela de interesse privado é o registro público de empresas mercantis (Código Civil, arts. 1.150 a 1.154), exercido pelas Juntas Comerciais. O registro interessa preponderantemente ao empresário na constituição de uma sociedade empresária. Outro exemplo é o registro de propriedade industrial, das marcas e patentes, atributivo de propriedade, de acordo com a Constituição Federal de 1988 (art. 5º, inc. XXIX). Por que a lei atribui ao juiz certas atividades de administração pública do interesse privado? Porque os juízes são funcionários públicos presumivelmente dotados da maior independência no quadro dos funcionários estatais, em razão das garantias que possuem, de modo que essa atividade seja exercida exclusivamente no interesse dos próprios destinatários e não no interesse do rei, do soberano, do próprio Estado ou dos governantes. Se fosse dada tal função a qualquer funcionário, em um sistema hierárquico, a impessoalidade seria menos segura, podendo subordinar-se a interesses estranhos aos do destinatário. A função do juiz nesses casos é de tutela assistencial, mas nada impede que a lei retire do juiz tal função, uma vez que é ela que a concede. Em todos os sistemas jurídicos conhecidos existe a jurisdição voluntária. Com a separação de poderes, poder-se-ia questionar sobre a possibilidade de se continuar atribuindo aos juízes essa atividade de administração do interesse privado. Nos países da Europa continental, o problema não existe, pois, em geral, adotam concepção orgânica da separação de poderes. O importante é que haja três poderes, de funções preponderantemente definidas, independentes entre si, podendo a lei atribuir a função típica de um a outro, o que é frequente no parlamentarismo, em que o próprio limite entre a função legislativa e a função administrativa é impreciso. A concepção brasileira de separação de poderes, que herdamos do modelo norteamericano anterior ao New Deal, é mais rígida, funcional, no sentido de que, salvo disposição expressa em contrário da própria Constituição, cada poder exerce as funções que lhe são próprias, vedado o seu exercício por qualquer outro. Por exemplo, quando a Constituição manda o Senado Federal julgar o Presidente da República, atribui função jurisdicional a órgão do Parlamento (art. 52, inc. I). Outro exemplo é quando ela atribui à magistratura, aos tribunais, o poder de autogoverno, de administração e nomeação de seus juízes e funcionários (art. 96, inc. I), o que consiste na atribuição de função administrativa ao judiciário, para resguardar a autonomia desse poder.
O Supremo Tribunal Federal tem decisões categóricas no sentido de não permitir que a lei atribua a um poder função típica de outro. Uma decisão histórica do Supremo Tribunal Federal foi a que condenou a eficácia normativa do prejulgado trabalhista, que era um instituto existente na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943, por ser incompatível com a separação de poderes. Quando o Tribunal Superior do Trabalho divulgava um prejulgado, seu enunciado tornava-se obrigatório para todos os juízos e tribunais inferiores. O Supremo Tribunal Federal julgou que o prejulgado trabalhista era incompatível com a divisão de poderes, e como ele tinha sido criado pela CLT, que é de 1943, ou seja, na vigência do Estado Novo, sem a divisão dos poderes em vigor, entendeu revogada a disposição que o criava pelo advento da Constituição Federal de 1946, que restabeleceu o regime democrático e a separação de poderes. O Supremo Tribunal Federal tem aceitado o exercício de funções normativas pelo Executivo além dos limites do poder regulamentar. Hoje, o Banco Central edita normas, assim como o Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Ministério do Trabalho, dentre outros órgãos. Contudo, a nossa Corte Suprema não tem aceitado o exercício de funções administrativas, pelo judiciário, a não ser nos limites da própria Constituição Federal. A partir do New Deal, o sistema norte-americano evoluiu. A crise do fim da década de 1920 e início da década de 1930, levou o governo americano a criar as agências, bastante técnicas, para administrar, através da intervenção no domínio econômico, uma série de áreas de exercício da atividade empresarial. Desapareceu, a partir de então, no modelo americano, a primitiva rigidez na divisão entre os poderes. 3.5.1. Jurisdição voluntária: conceito A jurisdição voluntária é uma modalidade de atividade estatal ou judicial, em que o órgão que a exerce tutela assistencialmente interesses particulares, concorrendo com o seu conhecimento ou com a sua vontade para o nascimento, a validade ou a eficácia de um ato da vida privada, para a formação, o desenvolvimento, a documentação ou a extinção de uma relação jurídica ou para a eficácia de uma situação fática ou jurídica12.
É uma definição muito longa, porém descritiva da chamada jurisdição voluntária, porque, nos atos da vida privada das pessoas, há situações fáticas ou relações jurídicas que, independentemente da existência de uma lide, podem ser formadas, modificadas, documentadas, extintas ou produzir efeitos, com a intervenção de uma autoridade estatal. Quando essa autoridade é um juiz, costuma-se qualificar o procedimento como um procedimento de jurisdição voluntária. Zanobini, grande administrativista da primeira metade do século XX, foi um importante teórico da jurisdição voluntária, e a definiu como a administração pública do direito privado13. A abrangência da jurisdição voluntária varia de um sistema jurídico para outro, dependendo da extensão do papel assistencial que a lei dá ao juiz na administração de relações jurídicas privadas. 3.5.2. Natureza jurídica O que nos interessa estudar neste passo é a jurisdição voluntária exercida pelo juiz, ou seja, como atividade estatal judicial. Alguns administrativistas também chamam de jurisdição voluntária aquela administração de interesses privados exercida por órgãos da Administração Pública do Poder Executivo, como o registro de marcas e o registro de comércio. Qual é a natureza jurídica da jurisdição voluntária? Essa é a grande questão processual, objeto de disputa entre duas correntes inconciliáveis. A corrente mais tradicional, que é capitaneada justamente por Zanobini, atribui à jurisdição voluntária natureza administrativa. Daí o seu conceito de administração pública de interesses privados. A essa corrente se opôs outra, capitaneada a partir da década de 1930 por Carnelutti, que discordou do entendimento de que a jurisdição voluntária tivesse natureza administrativa e lhe atribuiu natureza de atividade jurisdicional. A doutrina se dividiu. Com a corrente administrativista ficaram Calamandrei, Zanzucchi, Piero Pajardi (na Itália), Jaime Guasp (na Espanha), Liebman (na Itália e no Brasil), Lopes da Costa e José Frederico Marques (no Brasil). Esses
dois últimos foram os primeiros autores brasileiros a dedicarem um livro ao assunto, na década de 1950. A segunda corrente, a de Carnelutti, teve como expoentes, na Itália, Satta, Vittorio Denti, Monteleone, e, entre nós, Pontes de Miranda, Edson Prata e José Maria Tesheiner. Liebman, que lecionou na Universidade de São Paulo na década de 40 do século passado, influenciou bastante o direito processual civil brasileiro, contribuindo decisivamente para que ele fosse subtraído do velho procedimentalismo lusitano em que estava mergulhado. Para esse renomado jurista, a jurisdição voluntária era substancialmente administrativa e formalmente jurisdicional14. Ao dizer isso, ele já mostrava que a jurisdição voluntária exerce uma função não litigiosa, mas sob uma técnica inteiramente jurisdicional. José Frederico Marques também a definia como materialmente administrativa e subjetivamente judiciária: administrativa como atividade estatal de tutela de interesses individuais15. Entre essas duas correntes principais, situa-se uma terceira, defendida por Fazzalari, outro grande jurista italiano, que, adotando uma posição eclética, considera a jurisdição voluntária um gênero em si mesmo, genus in sè stante16. Não a considera nem jurisdição nem administração, mas uma categoria autônoma, uma atividade do Estado que consiste na tutela de interesses privados através da Administração ou do Poder Judiciário. Com isso, pretendia esse autor desmascarar o hábito de querer definir todos os institutos quanto à sua natureza jurídica, tentando vinculá-los a outros institutos. O que Fazzalari sustenta é que não adianta querer enquadrar a jurisdição voluntária na administração ou na jurisdição, pois ela é outra coisa, tem características próprias. Não é administração porque não tutela o interesse público, ela tutela o interesse particular. Por outro lado, não é jurisdição, pois não há lide. A questão permite examinar o que a jurisdição voluntária é, do ponto de vista funcional, de sua substância, qual o papel que ela exerce e também como ela se estrutura do ponto de vista formal, ou seja, que função a autoridade pública exerce na jurisdição voluntária e como ela se desenvolve conforme seja atribuída a um juiz, a um administrador ou até a um serventuário. Do ponto de vista funcional, seja qual for a autoridade que exerça a jurisdição voluntária, ela corresponde à tutela estatal de interesses privados, ou seja, é uma
modalidade de atividade assistencial em que o órgão do Estado atua, não no interesse público do Estado, não para realizar fins públicos ou objetivos públicos, mas no interesse dos sujeitos que são destinatários do seu ato. Nesse sentido, é correta a opinião de Fazzalari de que a jurisdição voluntária não se confunde nem com a função administrativa nem com a função de resolver litígios. A administração do Poder Executivo persegue os seus próprios fins, com a sua própria autonomia, não se inserindo no processo de formação da vontade de um sujeito privado. Por outro lado, a função jurisdicional não se resume a solucionar litígios reais ou potenciais, mas ela primordialmente tutela interesse particulares. Ainda que não haja litígio, é função tipicamente jurisdicional, desde que exercida por órgãos e funcionários revestidos das garantias necessárias para exercer essa tutela com absoluta independência e impessoalidade, exclusivamente no interesse dos seus destinatários. Uma diferença que é feita entre a jurisdição contenciosa e a jurisdição voluntária diz respeito à existência ou não de lide. Há casos em que tal distinção é facilmente realizada, como, por exemplo, no divórcio consensual, onde não há lide, pois ambas as partes interessadas estão pedindo a mesma coisa, e, portanto, consiste em um procedimento de jurisdição voluntária. Já em uma ação de despejo, a jurisdição é contenciosa, porque há um locatário que resiste e um locador que quer retomar o imóvel. Porém, em outros casos é difícil definir se o juiz atua em jurisdição contenciosa ou jurisdição voluntária. Na administração de interesses privados, podem entrar em choque verdadeiros direitos subjetivos, como na remoção de um tutor, em que pode haver um interesse deste de não ser removido. Na suspensão do pátrio poder há um interesse do pai de não perdê-lo, que se contrapõe ao interesse do filho de se livrar do controle do pai. Carnelutti chamava as ações constitutivas necessárias, como a anulação de casamento, de processos sem lide, pela ausência de interesses subjetivos antagônicos, e as assemelhava à jurisdição voluntária. Esse autor assim considerava também o processo penal, no qual via um conflito intrassubjetivo e não intersubjetivo. O que está em jogo é apenas a liberdade do réu. O Estado acusa e ele mesmo julga, sendo uma ficção a existência de partes em posições subjetivas antagônicas. Ora, o Estado que acusa tem mais o dever do que o
direito de punir, se ficar comprovada a culpabilidade do réu, e o dever de não punir, caso não comprovada17. A evolução das relações entre Estado e cidadão nas democracias contemporâneas e a obrigatoriedade da aplicação à jurisdição voluntária das garantias fundamentais do processo, que se aplicam sempre à jurisdição contenciosa, reduziram as distâncias entre o modo de atuação do juiz e dos próprios administradores públicos em ambas as modalidades de jurisdição. No Brasil, como em todas as democracias ocidentais, tanto a administração como a jurisdição estão sujeitas a vários princípios comuns, como é o caso do princípio do contraditório. O contraditório, a ampla defesa, a impessoalidade, a moralidade e a publicidade são garantias do cidadão tanto perante os juízes como perante a Administração, e isso está expresso tanto no artigo 5º, inciso LV, como no artigo 37, ambos da Constituição Federal. Já houve decisões na Europa, por exemplo, oriundas da Corte Constitucional italiana, declarando inconstitucionais os dispositivos que dispensavam o contraditório em procedimentos de jurisdição voluntária, como a interdição. Isso levou Vittorio Denti a dizer que pouco resta da distinção entre jurisdição contenciosa e jurisdição voluntária18. Resta dessa diferença a ausência de partes, entendida como a ausência de duas pessoas em posições antagônicas, com interesses conflitantes. Outra diferença é uma maior possibilidade de atuação de ofício na jurisdição voluntária em relação à jurisdição contenciosa, ainda que em caráter excepcional. Há também, na jurisdição voluntária, uma maior flexibilidade na apreciação do pedido, embora também essa flexibilidade exista na jurisdição contenciosa, em especial nos processos de execução e cautelar. A inexistência de coisa julgada na jurisdição voluntária também é uma diferença; porém, a não formação da coisa julgada também ocorre na jurisdição contenciosa de execução e na jurisdição contenciosa provisória de urgência ou de evidência, em razão da ausência de uma cognição exaustiva. Então, a distinção entre jurisdição contenciosa e jurisdição voluntária pode nos ajudar a definir se há ou não a formação da coisa julgada, se o juiz tem ou não maior
poder de julgar por equidade e se o juiz pode tomar iniciativa ex officio, mas nas duas têm de ser respeitadas as garantias fundamentais do processo. O fato de dizer que na jurisdição voluntária não há coisa julgada não quer dizer que a decisão na jurisdição voluntária possa sempre ser revogada. Há muitas decisões na jurisdição voluntária que gozam de uma estabilidade quase igual à da coisa julgada. No divórcio consensual, por exemplo, o juiz não pode revogar a sentença unilateralmente, porque nela concorrem a vontade do marido, da mulher e do Estado-juiz, e então ele só pode modificar o provimento anterior com a concorrência da vontade dos outros dois sujeitos ou numa ação contenciosa. Outra grande polêmica é se a jurisdição voluntária continua sempre jurisdição voluntária ou se ela se transforma em jurisdição contenciosa quando surge litigiosidade. Nas hipóteses de remoção de tutor e curador (CPC de 1973, arts. 1.194 a 1.198; CPC de 2015, arts. 761 a 763), de suprimento da outorga para poder casar (Código Civil, art. 1.519), ou ainda com relação à retificação da metragem de um imóvel no Registro Geral de Imóveis (Lei n. 6.015/73, arts. 212 e 213), poderá haver um procedimento que nasça de jurisdição voluntária e se transforme em jurisdição contenciosa. Nasce como jurisdição voluntária porque é um ato de administração pública de um interesse privado, que o próprio interessado não podia praticar a não ser com a autorização do juiz, mas depois, com o surgimento da lide, se transforma em jurisdição contenciosa. Desde que o juiz provocado seja competente para processar e julgar a causa em caráter contencioso, que o processo adote um procedimento com amplitude de defesa, de formas e de provas e que sejam admissíveis os mesmos recursos, a decisão final, resultante de cognição exaustiva, também gerará a imutabilidade da coisa julgada. Em países em que a jurisdição voluntária não é exercida pelos juízes que exercem a jurisdição contenciosa, segue um procedimento de cognição limitada ou não propicia os mesmos recursos e os mesmos meios de defesa da contenciosa, é difícil transformar um procedimento de jurisdição voluntária em jurisdição contenciosa, para dar força de coisa julgada à decisão de um procedimento que começou na voluntária. Não é o que ocorre normalmente no Brasil. A tutela jurisdicional efetiva dos direitos do cidadão é a tutela realizada por um
órgão estatal imparcial e independente. O rótulo é secundário. Portanto, a jurisdição voluntária é jurisdição, não porque ela pertence aos juízes, mas porque ela é tutela de interesses particulares por um órgão imparcial e independente. Além disso, como explica Vittorio Denti, as garantias fundamentais do processo, como o contraditório, a ampla defesa, o devido processo legal, e o acesso à tutela jurisdicional, que estão inscritas nos incisos XXXV, LIV e LV do artigo 5º da Constituição, não distinguem se a jurisdição é voluntária ou contenciosa. Onde quer que o Estado esteja tutelando interesses particulares com independência e imparcialidade, têm de ser respeitadas as garantias fundamentais do processo. O problema dos diferentes paradigmas de jurisdição é de extrema relevância no estudo deste tema. O direito continental-europeu tem uma tendência a concentrar a função jurisdicional nos juízes. A Constituição alemã, chamada de Lei Fundamental (Grundgesetz), em seu artigo 92, dispõe que “o poder jurisdicional é confiado aos juízes” (Die rechtsprechende Gewalt ist den Richtern anvertraut). Já o direito anglo-americano, após o New Deal, não tem essa preocupação, e com muita frequência um determinado funcionário é ao mesmo tempo administrador e juiz. O que interessa é que ele seja independente, que tenha garantias para exercer sua função sem sofrer nenhum tipo de pressão, ou sem poder sofrer nenhum tipo de represália em razão do conteúdo de suas decisões. No caso do Brasil, nós seguimos a tradição europeia, na qual a jurisdição é exercida por juízes, embora o Supremo Tribunal Federal aceite que outro poder, no exercício de suas funções, possa exercer jurisdição por expressa disposição constitucional, como aquela contida no artigo 52, inciso I, da Constituição, que prevê o julgamento do Presidente da República pelo Senado Federal, nos casos de crimes de responsabilidade. Assim, tutelar interesses particulares sem que haja lide também é função jurisdicional, desde que exercida por órgãos e funcionários investidos das garantias necessárias ao desempenho dessa atividade com absoluta independência e imparcialidade, exclusivamente no interesse de seus destinatários, em caráter unicamente assistencial. Não é, portanto, meramente casual a atribuição da jurisdição voluntária aos juízes, pois são esses que desfrutam no Estado Democrático contemporâneo das garantias apropriadas a tutelar o interesse privado exclusivamente à luz da conveniência e oportunidade de suas decisões para os próprios destinatários.
3.6. CLASSIFICAÇÃO DA JURISDIÇÃO QUANTO À NATUREZA DO INTERESSE A classificação da jurisdição quanto à natureza do interesse divide-a em jurisdição civil e penal. Jurisdição penal é aquela que resolve os conflitos ou tutela interesses decorrentes da prática de fatos definidos pela lei como infrações penais, como os crimes e as contravenções. É uma jurisdição exercida para a definição da existência de fatos definidos como crimes, apuração de quem são os seus autores, apuração da responsabilidade desses autores e consequente aplicação das sanções penais. O sujeito passivo é normalmente um acusado, um ser humano. Atualmente, existe também a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, como ocorre em matéria de proteção ambiental, em que se preveem crimes praticáveis por pessoas jurídicas, com assento no § 3º do artigo 225 da Constituição e na legislação específica. A principal sanção penal é a pena restritiva de liberdade – reclusão, detenção ou prisão simples –, que só pode incidir sobre seres humanos. Pessoas jurídicas podem receber outras sanções penais, como a multa ou penas alternativas. Salvo nas pequenas comarcas, a jurisdição penal é, normalmente, exercida por órgãos jurisdicionais especializados. Naquelas, muitas vezes, o mesmo órgão jurisdicional acumula competências cíveis e criminais. Em qualquer caso a jurisdição penal é objeto de regras próprias, objeto do Direito Processual Penal. A outra espécie de jurisdição é a jurisdição civil. Nos países de unidade de jurisdição, define-se a jurisdição civil por exclusão da jurisdição penal, como ocorre no Brasil, em que os mesmos juízes, sob as mesmas regras, resolvem os litígios entre os particulares e entre estes e o Estado. No nosso sistema, a jurisdição civil é toda aquela que não é penal, ou seja, é aquela que não se destina à apuração da prática de crimes e à aplicação de sanções penais, mas à solução de causas não penais. Nos países de dualidade de jurisdição, em que há uma jurisdição para as causas entre os particulares e outra para as causas do Estado, a jurisdição civil é definida como aquela que predominantemente julga as causas entre os particulares. São os países que seguem o modelo francês, em que há o chamado
contencioso administrativo, como a Itália e Portugal. Essa caracterização bastante singela do sistema de dualidade de jurisdição, na qual há uma jurisdição civil para as causas entre os particulares, sem interesse estatal, e outra para as causas do Estado, não é absoluta, pois em vários países que adotam esse sistema há conflitos entre particulares e o Estado que são ora resolvidos pelo contencioso administrativo, ora pela jurisdição civil comum. Na França, por exemplo, em matéria tributária, questões sobre determinados tributos são da competência do contencioso administrativo, enquanto questões sobre outros tributos são da competência da jurisdição civil comum, mesmo tendo como uma das partes o Estado. Na Itália, foram retirados recentemente da jurisdição administrativa e transferidos para a jurisdição civil os conflitos entre o Estado e os seus funcionários. Na Suíça, na França, na Itália e em Portugal, a jurisdição civil incide sobre as causas entre os particulares, mas excepcionalmente também julga alguns casos entre os particulares e o Estado. Essa variação se dá de acordo com a vontade do legislador de atribuir certo conflito ao juiz mais capacitado para examiná-lo sob a ótica do interesse do Estado, ou sob a ótica do interesse particular. Essa evolução na Itália, por exemplo, deve-se a uma mudança conceitual, que passou a considerar a maioria dos funcionários estatais como trabalhadores comuns. Na Suíça, chama-se Direito Judiciário Privado o nosso Direito Processual Civil, abrangendo, de modo mais restrito, apenas as causas entre particulares. Nos países de dualidade de jurisdição, as causas penais são sempre de competência da justiça comum, ou seja, dos magistrados que, em matéria civil, julgam as causas entre particulares. Isso tem causado frequentemente sérios problemas políticos, como recentemente na França, onde os magistrados, os juízes do Poder Judiciário, não julgam os litígios não penais entre os particulares e o Estado, salvo aqueles que versam sobre alguns tributos, não julgam os atos da Administração Pública, mas julgam os atos dos administradores públicos por meio da repressão aos crimes a eles imputados. Portanto, quanto à jurisdição penal, não há dualidade. Pode haver até dualidade de estruturas judiciárias em alguns países, como o Brasil, que possuem justiças estaduais e uma justiça federal, mas como conjunto sistemático de princípios e regras há homogeneidade da jurisdição penal nesses dois ramos do Poder Judiciário.
Quando se fala em jurisdição civil no Brasil, fala-se da jurisdição que resolve os conflitos entre os particulares e entre estes e o Estado, desde que a matéria não seja própria da jurisdição penal. Logo, tudo o que não for da jurisdição penal compete à jurisdição civil. Cada país estrutura o exercício da jurisdição através de órgãos articulados ou não entre si. Ao criar o sistema de normas para reger o exercício da jurisdição penal e da jurisdição civil, o Estado pode estabelecer regras diferentes para os diversos tipos de causas. Pode haver, assim, uma jurisdição penal comum e jurisdições penais especiais; uma jurisdição civil comum e jurisdições civis especiais. A jurisdição penal comum no Brasil é a que julga indistintamente quaisquer espécies de crimes, não sujeitos a uma determinada jurisdição especial. Jurisdições penais especiais são a jurisdição penal militar e a jurisdição penal eleitoral. A jurisdição penal militar tem como característica especial a sua composição, pois a primeira instância, formada pelos Conselhos de Justiça Militar, é composta temporária ou eventualmente por militares integrantes em caráter permanente do quadro de oficiais das Forças Armadas. Nessa instância, há também o auditor militar, um magistrado togado, que atua como um juiz instrutor, participando das sessões do Conselho de Justiça Militar, sem poder decisório. Os juízes militares são designados pelos comandantes militares das três Armas para exercerem função jurisdicional, sendo que a sua patente é sempre superior à patente do réu. Assim, a Justiça Militar é considerada uma justiça corporativa, o que sacrifica sobremodo a sua independência. Na vigência do Ato Institucional n. II, de 1965, foi estendida a competência dos tribunais militares aos crimes contra a segurança nacional, período em que muitos civis foram nela julgados por crimes políticos. A Justiça Militar, por conta disso, se expandiu, mas, posteriormente, voltando à sua função normal de julgamento apenas dos crimes militares, ficou bastante esvaziada, julgando atualmente um número muito reduzido de casos, que abrange apenas os crimes contra as instituições militares e os praticados por militares no exercício de suas funções. O militar que cometa um crime fora do exercício das suas funções será julgado como um cidadão civil, por um tribunal civil.
Esse modelo de Justiça Militar surgiu na França, como meio de preservar a disciplina militar, a qual rejeita a intromissão até mesmo dos juízes. Quem julga os militares são eles próprios, e sempre os de hierarquia superior julgam os de hierarquia inferior, justamente para assegurar a disciplina e a hierarquia. Entretanto, esse modelo de Justiça Militar tende a desaparecer, já que ele cria um tratamento diferenciado entre o civil e o militar pela prática de infrações penais da mesma natureza, o que é criticado por muitos por violação da isonomia. A função do auditor é a de instrutor, pois é ele quem vai receber a denúncia do Ministério Público, verificando a concorrência dos elementos para promover cada ação penal, decretar a prisão preventiva, colher as provas na instrução do processo e conduzi-lo até o julgamento. O auditor, entretanto, não tem poder de decisão, colaborando com a sessão de julgamento e com os militares por ele responsáveis. Tal como ocorreu na França, cujo modelo o Brasil imitou, a Justiça Militar deveria subsistir apenas para julgamento dos crimes militares nas expedições de tropas brasileiras no Exterior, deixando de existir como uma jurisdição permanente. A jurisdição penal eleitoral julga os chamados crimes eleitorais. A Revolução de 1930, que foi uma revolução contrária à República Velha, na qual o processo eleitoral era reconhecidamente fraudulento, introduziu o voto secreto e entregou o processo eleitoral a um órgão independente, a Justiça Eleitoral, por ela criada. O Brasil é um dos poucos países do mundo em que o processo eleitoral é presidido pelo Poder Judiciário, que administra e julga as eleições e os crimes eleitorais. O nosso modelo tem sido observado com muito interesse pela comunidade internacional. A Justiça Eleitoral exerce, portanto, jurisdição especial, em parte penal e em parte civil. É uma justiça sem juízes permanentes, utilizando os magistrados da Justiça Estadual designados pelo Tribunal Regional Eleitoral para presidirem as zonas eleitorais, que são as circunscrições em que se divide o território nacional para a catalogação dos eleitores, preparação das urnas, votação, apuração etc. A primeira instância da Justiça Eleitoral é composta por juízes de direito, pertencentes à Justiça Estadual. A segunda instância, formada pelos Tribunais Regionais Eleitorais, tem composição mista. Cada Estado-membro tem o seu
próprio Tribunal Regional Eleitoral, que é composto de acordo com o estabelecido no artigo 120 da Constituição Federal. Todos os seus membros detêm mandato, o que faz a Justiça Eleitoral trocar frequentemente os seus membros. Se, por um lado, isso favorece a independência da Justiça Eleitoral, por outro, sem dúvida, compromete a sua eficiência administrativa. Existem ainda as juntas eleitorais, que apuram as eleições e são compostas de leigos. Entretanto, hoje, com a utilização e difusão da urna eletrônica, essa participação popular perdeu quase toda a sua importância. O Tribunal Superior Eleitoral é composto por sete ministros, sendo três do Supremo Tribunal Federal, dois do Superior Tribunal de Justiça e dois advogados (Constituição, art. 119). A jurisdição penal comum se aplica a todas as infrações penais que não competem à jurisdição penal militar e à jurisdição penal eleitoral, sendo exercida por juízes togados e pelos tribunais do júri, estaduais ou federais, conforme a matéria, e regida pelo Código de Processo Penal. A jurisdição civil abrange duas jurisdições civis especiais e a jurisdição civil comum. As duas jurisdições civis especiais são a jurisdição civil eleitoral e a jurisdição trabalhista. Não há jurisdição civil militar, pois todas as causas que envolvam militares e que não têm por objeto a apuração e punição de crimes, como, por exemplo, as que versem sobre remuneração e promoções, são objeto da jurisdição civil comum. A respeito da Justiça Eleitoral caberia mencionar, em acréscimo ao que foi exposto acima, que lhe compete a disciplina das eleições para os cargos políticos dos Poderes Executivo e Legislativo, o registro dos eleitores, dos partidos e dos candidatos, a disciplina e fiscalização das campanhas e da propaganda eleitorais, a apuração dos pleitos, a proclamação dos resultados e a diplomação dos eleitos. A rigor, a Justiça Eleitoral exerce cumulativamente e por tradição, eis que sem previsão expressa na Constituição, a função jurisdicional, a função administrativa e também a função normativa, esta última mediante resoluções do Tribunal Superior Eleitoral. Essa justiça é regulada pelo Código Eleitoral e por outras leis, como a Lei Orgânica dos Partidos Políticos, cabendo à lei complementar, a partir da Constituição de 1988, a definição da sua competência (Constituição, art. 121). A outra jurisdição civil especial é a exercida pela Justiça do Trabalho. A Justiça
Militar não tem jurisdição civil, enquanto a Justiça do Trabalho não tem jurisdição penal. A Justiça do Trabalho trata de causas civis decorrentes das relações de emprego e outras relações de trabalho estabelecidas em lei, julgando litígios entre patrões e empregados (art. 114 da Constituição). Até 1999, essa justiça tinha composição paritária em todos os níveis, com juízes togados e os chamados juízes classistas, que eram representantes dos sindicatos dos trabalhadores e dos empregadores. Entretanto, houve uma grande deterioração dessa representação classista, oriunda de vícios no sistema de escolha dos representantes, o que gerou reação contra a sua permanência. Nesse sentido, a Emenda Constitucional n. 24/99 extinguiu essa representação, cuja origem pode ser encontrada no regime fascista, apesar de não ser uma característica exclusiva de regimes autoritários, uma vez que alguns países democráticos ainda a conservam, como a França e a Alemanha. Talvez a melhor justiça trabalhista seja a da França, onde não há juiz togado, mas apenas dois representantes dos trabalhadores e dois representantes dos empregadores, que decidem por maioria, sendo muito comum que os representantes dos trabalhadores ou dos empregadores votem contra interesses dos seus representados. Em caso de empate, o que ocorre em aproximadamente 10% dos julgamentos, convoca-se um juiz togado para completar a composição do colegiado. É o chamado departage. No passado, na Justiça do Trabalho, o entendimento dos dois representantes classistas eventualmente prevalecia sobre o do juiz togado, já que a Junta de Conciliação e Julgamento decidia por maioria. Nos últimos vinte anos, porém, os classistas apenas concordavam irrestritamente com o julgamento promovido pelos juízes togados. Isso mostrava um vício no sistema de escolha dos representantes, que não se sentiam de fato vinculados à sua classe de origem, mas acentuadamente mais dependentes da presidência do tribunal que os havia escolhido. Com a extinção dos juízes classistas, houve algum temor de que a Justiça do Trabalho viesse a perder a sua razão de ser, o que levou o legislador constituinte a dar-lhe outras funções, como a execução de créditos previdenciários (art. 114, inc. VIII, da Constituição), de duvidosa constitucionalidade.
Os órgãos de primeiro grau dessa justiça são os juízes do trabalho, organizados em diversas varas do trabalho de composição monocrática. A Justiça do Trabalho é uma justiça federal especial. Os seus órgãos de segundo grau são os Tribunais Regionais do Trabalho, de composição variável. Em âmbito nacional, há o Tribunal Superior do Trabalho, com sede em Brasília, composto por vinte e sete ministros togados e vitalícios, sendo um quinto eleito dentre advogados e membros do Ministério Público e os demais oriundos dos Tribunais Regionais do Trabalho (art. 111-A, incs. I e II, da Constituição). Por fim, a jurisdição civil comum é a jurisdição não penal, não trabalhista e não eleitoral. Não penal, por não julgar causas referentes à prática de crimes e imposição de penas. Não trabalhista e não eleitoral, porque essas matérias estão afetas respectivamente à jurisdição trabalhista e à jurisdição eleitoral. Os princípios e regras da jurisdição civil comum, que são objeto de Direito Processual Civil, e cujo principal diploma é o Código de Processo Civil, são também de aplicação subsidiária a todas as demais jurisdições penais ou especiais. As causas fundadas em direito tributário, administrativo, cível e comercial são todas solucionadas pelos órgãos da jurisdição civil comum, distribuídos em razão da matéria em dois ramos do Poder Judiciário, que são as Justiças Estaduais e do Distrito Federal e a Justiça Federal. Classifica-se como uma jurisdição comum, uma vez que ela não é especial e as suas regras se aplicam subsidiariamente às demais jurisdições civis. A jurisdição civil persiste una, no sentido de que todas as causas cíveis são julgadas por órgãos integrantes de um único Poder Judiciário e regidas por um conjunto de princípios e de regras comuns, mas é exercida, tal como a jurisdição penal comum, no primeiro e no segundo graus de jurisdição por órgãos diversos, integrantes de estruturas diversas e compostos por magistrados que participam de carreiras e organizações diversas, como a Justiça Federal, as vinte e seis Justiças Estaduais e a Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Esses órgãos estão subordinados a um único tribunal de superposição, de âmbito nacional, que é o Superior Tribunal de Justiça.
________ 1 PICARDI, Nicola. La giurisdizione nell’alba del terzo milennio. Milano:
Giuffrè, 2007. 2 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Lopes da Costa e o processo civil brasileiro.
In: FIUZA, César Augusto de Castro et alii (Coord.). Temas atuais de direito processual civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 359-384. 3 CAPPELLETTI, Mauro e TALLON, Denis. Fundamental guarantees of the
parties in civil litigation. Milano: Giuffrè, 1973. p. 704-708. 4 É o Projeto de Lei n. 5.080/2009, enviado pela Presidência da República ao
Congresso Nacional. 5 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições…, 1º v. p. 41. 6
CHIOVENDA, Giuseppe. Principii di Diritto Processuale Civile.3. ed. Napoli: Jovene, 1923. p. 296; Instituições…, 1º v. p. 9-15. 7 O mesmo fez o Estado do Rio de Janeiro, com a edição da Lei Estadual n.
5.427/2009. 8 Ver GRECO, Leonardo. Ainda a coisa julgada inconstitucional. In: Estudos de
direito processual. Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2005. p. 557-581; e também: Cognição sumária e coisa julgada. Revista Eletrônica de Direito Processual, ano 6, nº X, jul.-dez. 2012. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Disponível em:
, p. 275-301. 9 CALAMANDREI, Piero. Introduzione…, v. IX. p. 176. 10 CARNELUTTI, Francesco. Lezioni di diritto processuale civile. Padova:
Cedam, 1926. 1º v. p. 130-131; Sistema de derecho procesal civil. Tradução de Niceto Alcalá-Zamora y Castillo e Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Uteha, 1944. 1º v. p. 44-46; Instituciones del proceso civil. 2. ed. Buenos Aires: EJEA, 1973. 1º v. p.28. 11 CHIOVENDA, Giuseppe. Principii…, p. 317; Instituições…, 1º v. p. 19-30.
12 GRECO, Leonardo. Jurisdição voluntária moderna. São Paulo: Dialética,
2003. p. 11. 13 ZANOBINI, Guido. Corso di diritto amministrativo. 2. ed. Milano: Giuffrè,
1957. 5º v. p. 293 e ss. 14 LIEBMAN, Enrico Tullio. Giurisdizione volontaria e competenza. Problemi
del processo civile. Napoli: Morano Editore, 1962. p. 441. 15 MARQUES, José Frederico. Ensaio sobre a jurisdição voluntária. 2. ed.
São Paulo: Saraiva, 1959. p. 28 e 134. 16
FAZZALARI, Elio. Giurisdizione volontaria. Enciclopedia del diritto. Milano: Giuffrè, 1970. v. XIX. p. 330-381. 17
CARNELUTTI, Francesco. Sistema…, p. 276-278; Diritto e processo. Napoli: Morano Editore, 1958. p. 60-62. 18 DENTI, Vittorio. La giurisdizione volontaria rivisitata. Rivista Trimestrale di
Diritto e Procedura Civile. Milano, ano XLI, n. 2, p. 325-339, 1987. p. 325339.
Como já vimos, a jurisdição, como função estatal, assenta as suas raízes na soberania do próprio Estado, sendo uma das expressões dessa relação de autoridade, de submissão que existe entre os indivíduos e o Estado, a qual permite a este último impor coercitivamente a sua vontade àqueles. Cabe observar que a soberania é um conceito em crise, principalmente no atual contexto de formação dos chamados blocos econômicos, cujo mais singular exemplo é a União Europeia. A União Europeia elabora normas que têm aplicabilidade imediata dentro de todos os países que a compõem, independentemente de ratificação pelos paísesmembros, inclusive sobre matérias processuais. A União Europeia também possui um tribunal supranacional, a Corte de Justiça com sede em Luxemburgo, que interpreta as normas por ela editadas em decisões de observância obrigatória pelas justiças nacionais. Os países que participam desse bloco regional alienaram, inegavelmente, uma parte da sua soberania em favor da União Europeia. Ainda assim, permanece a jurisdição como uma função emanada de um poder soberano, estatal ou supraestatal. Poderes são prerrogativas inerentes ao exercício de uma vontade em nome do Estado, a que devem se sujeitar, obrigatoriamente, todos os cidadãos. Quais os poderes que o juiz tem como autoridade pública, como órgão da soberania estatal? São, basicamente, três: poder de decisão, poder de coerção e poder de documentação. Como auxiliares aos dois primeiros, podem ainda ser mencionados os poderes de conciliação e de impulso.
4.1. PODER DE DECISÃO O poder de decisão do juiz é o poder de resolver todas as postulações e questões que lhe forem submetidas ou que se apresentarem como necessárias, com vistas a tutelar os interesses sujeitos à sua apreciação ou proteção. Poder de decidir, primeiramente, é o poder de proferir sentenças. No processo civil brasileiro, sentença é o ato decisório que encerra conclusivamente o processo ou a sua fase cognitiva, podendo versar apenas sobre matéria
processual ou sobre a relação jurídica de direito material entre as partes (CPC de 1973, arts. 162, § 1º, 267 e 269; CPC de 2015, arts. 203, § 1º, 485 e 487). Tradicionalmente, denominava-se sentença a decisão judicial que se pronunciava sobre o pedido, que respondia ao libelo do autor, acolhendo-o ou rejeitando-o. Os sistemas processuais modernos, como o brasileiro, adotaram conceitos mais ou menos próximos dessa noção, para atender a exigências técnicas, como, por exemplo, a determinação do recurso cabível contra esse tipo de decisão. A emanação da sentença diretamente da soberania estatal é formalizada, em países de mais forte tradição, através da proclamação inicial de ter sido proferida em nome do soberano, o povo, ou do monarca que o representa. Assim, por exemplo, na Itália, o art. 132 do Código de Processo Civil inclui no conteúdo da sentença que ela é pronunciada em nome do povo italiano e ter como cabeçalho o dístico República italiana. Embora a sentença que julga o pedido do autor normalmente faça coisa julgada entre as partes, conforme preceituam os artigos 472 do Código de 1973 e 506 do Código de 2015, como manifestação da vontade estatal, ela deve ser respeitada, quanto à certeza do direito entre as partes por ela reconhecido, por todos os cidadãos. Ainda que se aceite a ideia de Chiovenda, anteriormente exposta, de que a sentença substitui a vontade das partes, a verdade é que o juiz, quando profere sentença, não pratica um ato da vida privada, mas um ato de vontade do Estado. Além das sentenças, o juiz profere no curso do processo outras decisões, através das quais ele também exerce esse poder decisório, manifestando a vontade do Estado (CPC de 1973, art. 162, § 2º; CPC de 2015, art. 203, § 2º). São as decisões interlocutórias, assim chamadas porque são provimentos intermediários entre o pedido inicial e a sentença final. Essas decisões têm como conteúdo principalmente a apreciação de questões processuais, como as relativas à formação e ao desenvolvimento válidos do processo e à instrução da causa. Entretanto, com bastante frequência, decisões interlocutórias apreciam o próprio direito material das partes, como, por exemplo, nas liminares cautelares ou de antecipação da tutela (CPC de 1973, arts. 273 e 804; CPC de 2015, arts. 300, §§ 1º e 2º, e 311, parágrafo único) e, no Código de 2015, no julgamento antecipado parcial do mérito (art. 356). Em todas as modalidades de jurisdição os órgãos jurisdicionais proferem
decisões, embora a jurisdição de conhecimento seja aquela precisamente estabelecida para alcançar uma decisão final que defina qual é o direito material das partes e quais os efeitos jurídicos que daí decorrem para elas. A subordinação do juiz à lei, proclamada pelo Iluminismo e consagrada a partir da Revolução Francesa, levou a doutrina processual, em sua maioria, a sustentar que os atos decisórios do juiz são sempre atos vinculados, ou seja, atos que devem se submeter rigidamente aos requisitos formais e substanciais estabelecidos pela lei, sem qualquer margem de discricionariedade. Já vimos que a equidade, nos países da civil law, é de utilização excepcional. Entretanto, em certas modalidades de jurisdição, como a execução, em que o juiz tem de velar permanentemente pela menor onerosidade para o devedor dos atos executórios (CPC de 1973, art. 620; CPC de 2015, art. 805), o juiz se despe da função de mero aplicador da lei para proferir inúmeras decisões ditadas por critérios de conveniência e oportunidade, como a escolha dos bens a serem penhorados, a alienação antecipada de bens e muitas outras. Ainda que a lei estabeleça certos parâmetros para essas decisões, abre-se ao julgador uma larga margem de escolha, que deve ser exercida com motivação consistente (CPC de 1973, art. 131; CPC de 2015, arts. 371 e 489), para não se tornar instrumento de arbítrio.
4.2. PODER DE COERÇÃO O poder de coerção é o poder do juiz de impor aos sujeitos do processo ou a terceiros o respeito e a obediência às suas ordens, determinações e decisões. Esse poder faculta, inclusive, se necessário, o emprego da força física ou da força policial, e se exercita através de sanções e restrições à liberdade individual, pessoal e patrimonial. Esse poder, que encontra a sua expressão mais forte na atividade jurisdicional de execução, se desdobra nos poderes de apreensão, expropriação e administração. A apreensão é o desapossamento forçado dos bens do seu proprietário, possuidor ou detentor, para sujeitá-los à guarda e controle da autoridade judiciária ou de um preposto desta. Pode ser encontrada, exemplificativamente, nos artigos 625, 653 e 659 do Código de 1973 e 806, § 2º, 830 e 831 do Código de 2015. A administração é a substituição temporária do titular do bem na sua gestão, para
conservá-lo e manter a realização dos seus fins econômicos. Está prevista, também de modo exemplificativo, nos arts. 670, 719 e 634 do Código de 1973 e 852, 868 e 817 do Código de 2015, e normalmente é exercida através de um preposto, o administrador (CPC de 1973, arts. 148 a 150; CPC de 2015, arts. 159 a 161). A expropriação é a retirada dos bens do patrimônio de alguém para dar-lhes a destinação mais adequada à consecução dos objetivos da atividade jurisdicional. Normalmente, a expropriação somente ocorre na execução por meio da adjudicação, da alienação por iniciativa particular ou da alienação em hasta pública ou em leilão judicial, reguladas nos arts. 685-A a 707 do Código de 1973 e 876 a 903 do Código de 2015. A execução forçada de uma sentença, na qual são praticados atos coativos, como a penhora (CPC de 1973, arts. 659 a 679; CPC de 2015, arts. 831 a 865) e a arrematação em hasta pública ou em leilão judicial (CPC de 1973, arts. 686 a 707; CPC de 2015, arts. 886 a 903), é um exemplo típico do exercício do poder de coerção. Outro exemplo da utilização desse poder do juiz é a condução coercitiva da testemunha que se recusou a comparecer em juízo para depor (CPC de 1973, art. 412, caput; CPC de 2015, art. 455, § 5º). O tribunal arbitral, no nosso sistema jurídico, não tem poder coercitivo (Lei 9.307/96, art. 22), pois não é um órgão considerado como investido de função pública, mas um órgão contratualmente instituído pelos litigantes. Somente o Estado detém o poder de impor pela força, coercitivamente, a sua vontade, requisitando, se necessária, força policial. Se o juiz necessitar de força policial para o cumprimento de uma decisão, ele a requisitará ao Poder Executivo e este colocará à sua disposição os homens e as armas necessários à efetivação do cumprimento da ordem judicial. A não colaboração do Poder Executivo, em tais circunstâncias, pode dar ensejo à intervenção federal no Estado (art. 34, inc. VI, da Constituição), à responsabilização criminal do funcionário infrator por crime de prevaricação ou desobediência (arts. 319 e 330 do Código Penal), ou, no caso de descumprimento pelo Presidente da República ou por ministro de Estado, às sanções pela prática de crime de responsabilidade (Lei n. 1.079/50). Isso porque o princípio da separação de poderes, tal como estruturado constitucionalmente,
impõe ao Executivo o dever de colaborar com o cumprimento das decisões judiciais, atendendo às requisições do Poder Judiciário. Fala-se até, em alguns casos, em polícia judiciária como a atividade policial desenvolvida para a apuração de crimes já praticados, que serve para instruir o seu julgamento pelo Poder Judiciário, atuando, assim, de forma repressiva, com a finalidade de revelar a sua autoria e materialidade. Trata-se de denominação anacrônica, mas que, de algum modo, retrata o caráter auxiliar da função jurisdicional que é exercido por órgãos da Administração Pública, dotando os órgãos jurisdicionais dos meios necessários que induzam quaisquer pessoas ou autoridades a colaborarem e a se submeterem às suas determinações.
4.3. PODER DE DOCUMENTAÇÃO O terceiro poder inerente à jurisdição é o poder de documentação. Documentar é registrar de modo permanente e inalterável o conteúdo de determinados fatos ou atos. O processo compõe-se de uma série de atos praticados por diversos sujeitos que formam a chamada relação jurídica processual. Todos os atos processuais devem ser documentados, desde o primeiro, que é a petição inicial, até o último, que pode ser uma sentença ou a sua execução, para que o conteúdo de cada ato seja conservado e mantenha no processo sempre os mesmos efeitos. A documentação é uma atividade aparentemente acessória, mas muito importante no processo, pois todos os seus atos devem estar perenizados, conservados com o seu conteúdo preciso, através de algum tipo de registro. É um poder que a lei confere ao juiz e aos seus auxiliares imediatos, como o escrivão e o oficial de justiça. Esses auxiliares têm o poder de documentar os atos por eles praticados, assim como os atos dos particulares que sejam praticados na sua presença ou sejam a eles apresentados. Se o juiz estiver presente por ocasião da prática de determinado ato, na condição de mais elevada autoridade, ele deve documentálo. Em geral, o juiz o faz com o auxílio do escrivão ou do chefe de secretaria. 4.3.1. Fé pública
A documentação, como poder, se exterioriza na expressão fé pública. A fé pública significa que o registro documental, elaborado pelo juiz ou por um de seus auxiliares permanentes, do ato processual praticado, goza de presunção de veracidade quanto aos fatos por eles presenciados e declarados no documento que os atesta. A fé pública não é característica apenas dos documentos lavrados pelo juiz ou por um de seus auxiliares permanentes, mas de todos os registros feitos por qualquer funcionário público no exercício de suas funções. Todo funcionário público tem fé pública no registro documental que faz dos atos do seu ofício e dos atos de que toma conhecimento no exercício de suas funções. Aliás, esse é o conceito de documento público, contido no artigo 364 do Código de 1973 e do artigo 405 do Código de 2015. A fé pública é uma presunção relativa, e, portanto, o documento que a detenha prova o fato enquanto não surgir uma prova cabal em contrário, devendo o juiz aceitar a sua veracidade sempre que o seu conteúdo não for desmentido por outras provas, não for absurdo ou manifestamente inverossímil. O poder de documentação é exercido, em primeiro lugar, pelo escrivão ou chefe de secretaria, que forma os autos do processo. Os autos do processo são o volume ou o arquivo eletrônico que o escrivão ou chefe de secretaria vai compondo de acordo com a ordem cronológica dos atos praticados, juntando a ele os documentos que os registram, como as petições, os documentos que as instruem, as decisões, os termos, os autos etc. Ao tratarem dos atos processuais, os artigos 166 a 171 do Código de 1973 e 206 a 211 do Código de 2015 dispõem sobre a formação dos autos do processo. O escrivão, para documentar os atos do processo, também realiza o registro dos principais atos do processo nos livros obrigatórios e lavra os termos dos atos processuais orais praticados na sede do juízo ou presididos pelo juiz. Também o oficial de justiça dispõe desse mesmo poder, no cumprimento das citações, penhoras e todas as demais diligências do seu ofício (CPC de 1973, arts. 226 e 663 a 666; CPC de 2015, arts. 251, 838 a 840, 846, § 3º). Caberá ao juiz a documentação dos atos processuais orais em que estiver presente, ditando para o escrivão um resumo do ocorrido (CPC de 1973, arts. 443 e 457; CPC de 2015, arts. 367 e 484), rubricando as folhas e subscrevendo
os termos ou outros documentos escritos que os registrem. 4.3.2. Documentação eletrônica A documentação eletrônica dos atos processuais teve início no Brasil na Justiça Federal, em São Paulo, no âmbito dos juizados especiais federais. Os atos do processo eram documentados eletronicamente e o procedimento se desenvolvia via internet, não havendo atos escritos. Esse tipo de documentação se estendeu a outros juizados federais, às justiças comum e do trabalho em todos os níveis, passando a ter suporte legal na Lei n. 11.419/2006. Examinaremos os diversos aspectos da informatização do processo em ocasiões próprias. Por ora, cumpre alertar que a sua adoção está inçada de inúmeros problemas, havendo juízos em que não mais existem processos físicos; outros, em que há processos físicos que coexistem com processos eletrônicos; e outros, em que ainda todos os processos são exclusivamente físicos. O Brasil possui um sistema oficial de autenticação dos documentos eletrônicos, que é a chamada Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, instituída pela Medida Provisória n. 2.200-2/2001. Por outro lado, a Lei n. 9.800/99 permitiu a prática de atos das partes por comunicação eletrônica ou por meio de fax, desde que ratificados nos cinco dias seguintes. Em 2006, foi editada a Lei n. 11.419, que dispôs sobre a informatização do processo judicial, criando o chamado processo eletrônico, que vem sendo progressivamente implantado em todo o País por meio de estruturação de sistemas no âmbito dos diversos tribunais, aos quais têm acesso juízes, serventuários e advogados por meio de senhas de identificação e presumível autenticação dos atos que praticam. Quando estiver definitivamente implantado, certamente o processo eletrônico contribuirá para a aceleração da tramitação dos feitos, facilitando o acesso às peças deles constantes simultaneamente pelos diversos interessados e sem a necessidade da busca da informação na sede do tribunal. Esse benefício já é sensível nos juízos e nos tribunais em que já está implantado. Entretanto, a informatização exigirá que não só os juízos e tribunais, mas todos os advogados disponham de equipamentos de informática bastante modernos, para poderem ler o Diário da Justiça e o conteúdo dos atos dos processos na internet, assim como
peticionar e juntar documentos, também por esse meio, revestidos da necessária autenticidade. As dezenas de organizações judiciárias existentes no País deverão uniformizar a sua gestão, utilizar programas e sistemas operacionais compatíveis; caso contrário, seremos vítimas não apenas de uma indesejada elitização da advocacia, mas de uma verdadeira Babel, que, em lugar de agilizar os processos, dificultará ainda mais a sua tramitação. O Conselho Nacional de Justiça iniciou em 2011 a implantação do sistema Processo Judicial Eletrônico (PJe), que pretende instituir uma base informatizada única em todos os tribunais do País e que já conta com muitas adesões. O Código de 2015 regulou a prática eletrônica de atos processuais nos artigos 193 a 199 e em alguns outros dispositivos esparsos, relativos à assinatura digital da procuração (art. 105, § 1º), à publicação de decisões no Diário da Justiça Eletrônico (art. 205, § 3º), à formação dos autos eletrônicos (art. 209, § 1º), ao horário da prática de atos processuais eletrônicos (art. 213), à contagem dos prazos (art. 229, § 2º), às citações e intimações (art. 231), à comunicação do cumprimento de carta precatória, rogatória ou de ordem (arts. 232 e 915, § 4º), à gravação digital da audiência (art. 367, § 5º), à fotografia e aos documentos e às cópias digitais (arts. 422, § 1º, 425 e 438, § 2º), ao leilão eletrônico (art. 880), ao sorteio eletrônico na distribuição dos feitos nos tribunais (art. 930), à lavratura eletrônica dos votos e acórdãos e aos julgamentos eletrônicos nos tribunais (arts. 943 e 945), ao registro no CNJ e nos tribunais dos incidentes de demandas repetitivas (art. 979), entre outros, mantendo as regras da Lei 11.419 e conferindo, ao Conselho Nacional de Justiça e supletivamente aos tribunais, a regulamentação do processo eletrônico. Comentaremos essas regras quando estudarmos os atos processuais, em especial do capítulo XII em diante.
4.4. PODER DE CONCILIAÇÃO Em qualquer processo, cabe ao juiz a qualquer tempo a iniciativa de promover a solução amigável do litígio (CPC de 1973, art. 125, inc. IV; CPC de 2015, art. 139, inc. V), que o Código de 2015 denominou genericamente de autocomposição. Seguindo tendência recente que vem se verificando em vários países, como
Espanha, Itália e Argentina, e certamente motivado pelo sucesso alcançado no último século nos Estados Unidos, o Código de 2015, em diversas disposições, estimula a utilização dos chamados métodos alternativos de solução de conflitos, universalmente conhecidos como Alternative Dispute Resolutions (ADRs). Assim, no artigo 3º, § 3º, determina sua utilização dentro e fora do processo judicial a juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público. Voltaremos ao assunto no capítulo XI, quando tratarmos dos mediadores e conciliadores como sujeitos processuais. A promoção da conciliação e de outros métodos consensuais é uma atividade assistencial do juiz, que, em certos momentos do processo judicial, deve exercêla pessoalmente, como nas audiências, contando, se possível, com a colaboração de mediadores e conciliadores. Na conciliação, o juiz, em diálogo com as partes, analisa todas as circunstâncias do litígio, avalia os seus desdobramentos e as auxilia a encontrar voluntariamente um modo de resolvê-lo por meio de atos de disposição do direito material ou simplesmente do próprio processo: transação, desistência da ação, renúncia ao direito ou reconhecimento do pedido. Embora não seja um poder exclusivo da função jurisdicional, o poder de conciliação é o instrumento ativo usado no Estado moderno para a busca da efetiva paz pública. Na conciliação, o juiz tem papel indutor, formulando como mediador ou conciliador propostas, ponderando as vantagens e desvantagens de cada alternativa, apresentando sugestões para superar impasses, tentando aproximar as partes, enfim, buscando ativamente encontrar uma solução que atenda da maneira mais satisfatória possível aos interesses dos dois adversários. Encontrada a solução amigável, o juiz deve concorrer com a vontade estatal na sua homologação, que constitui ato de aprovação do acordo, homologação essa que deve ser recusada se o ajuste for manifestamente desvantajoso ou ruinoso para um dos interessados, ou contiver ato simulado ou fraudulento (CPC de 1973, art. 129; CPC de 2015, art. 142). Na jurisdição de conhecimento, o procedimento ordinário e o procedimento sumário do Código de 1973, substituídos pelo procedimento comum do Código de 2015, preveem duas oportunidades formais para a tentativa de conciliação, na audiência preliminar, que o Código de 2015 denomina audiência de conciliação
ou de mediação, e na audiência final de instrução e julgamento (CPC de 1973, arts. 331, 447 a 449 e 277; Código de 2015, arts. 334 e 359). A resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça, que dispôs sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado de conflitos de interesses, determinou a criação de Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos junto aos Tribunais e de Centros Judiciários de Solução de Conflitos, para atuarem nas conciliações e mediações pré-processuais e processuais, por meio de conciliadores e mediadores cadastrados e supervisionados por um Juiz Coordenador. No mesmo sentido, dispôs o Código de 2015, nos artigos 165 a 175. Voltaremos ao assunto no capítulo XI.
4.5. PODER DE IMPULSO O desenvolvimento do processo por impulso oficial (CPC de 1973, art. 262; CPC de 2015, art. 2º) é característico do Direito brasileiro. Outros sistemas preferem o impulso pelas partes. O poder de impulso é exercido pelo juiz por meio dos atos de movimentação, atos ordinatórios ou de mero expediente. O escrivão ou chefe de secretaria colabora com o juiz nesse impulso, praticando atos meramente ordinatórios (CPC de 1973, art.162, § 4º, com a redação da Lei n. 8.952/94; CPC de 2015, art. 152, inc. VI), dando execução aos seus despachos e submetendo a seu despacho petições e quaisquer outras correspondências, bem como compondo os autos do processo e lhes dando andamento. Também as partes colaboram para o impulso, custeando as despesas geradas pela prática dos atos processuais e prestando as informações necessárias para esse fim. Especialmente ao autor cabe o ônus de colaborar com o impulso oficial, fornecendo os dados necessários para a localização e citação do réu, para o custeio dos atos de formação do processo e de todos os atos que forem determinados pelo juiz ou que forem requeridos pelo órgão do Ministério Público como fiscal da lei (CPC de 1973, art. 19, § 2º; CPC de 2015, art. 82, § 1º). Por isso, as partes arcarão com as consequências desfavoráveis, caso se omitam na colaboração com o impulso oficial, como se vê, por exemplo, no disposto no artigo 267, incisos II e III, do Código de 1973, e no artigo 485, incisos II e III,
do Código de 2015. Conforme já sustentei em outras ocasiões, seria desejável a adoção de um sistema de mais ampla descentralização da movimentação do processo, especialmente quanto aos atos de comunicação processual (citações e intimações), acentuando-se as responsabilidades das partes e dos seus procuradores e aliviando a máquina judiciária, sobrecarregada com a prática cotidiana de um número exagerado de atos que desvia a atenção de juízes e auxiliares do exercício de suas mais relevantes funções. O Código de 2015 se inclina timidamente nessa direção, prevendo no artigo 455 a intimação da testemunha para prestar depoimento por carta registrada expedida pelo advogado da parte que a arrolou.
4.6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Decisão, coerção, documentação, esses são os três principais poderes inerentes à jurisdição, mas não dela exclusivos. Decisões também são tomadas no âmbito da Administração ou da atividade legislativa; essas também, dentro das funções que lhes são reservadas, podem impor a sua vontade com a utilização da força e também devem documentar de forma autêntica os atos dos seus funcionários e dos particulares que participam dos respectivos procedimentos. Esses poderes são essenciais à atividade jurisdicional como atividade estatal emanada do poder soberano do Estado, que, através deles, exprime a sua vontade política. Quanto à conciliação e ao impulso oficial, também podem apresentar-se no exercício das funções administrativa e legislativa, embora de forma pontual ou ocasional em determinadas atividades e não em outras. Apesar de auxiliares ou complementares aos demais, são poderes típicos da jurisdição no ordenamento jurídico brasileiro.
Por princípios informativos da jurisdição entendemos as diretrizes mais gerais que informam o sistema normativo que disciplina o exercício dessa função, sob cuja égide devem ser aplicados e interpretados os preceitos que o compõem e que se impõem à necessária observância de todos os sujeitos, públicos e privados, que participam dessa atividade. O rol ora apresentado não é exaustivo, não excluindo outros, igualmente gerais, cuja compreensão e alcance, entretanto, seriam difíceis de entender no estágio em que nos encontramos no estudo do Direito Processual Civil. Ao tema voltaremos no capítulo XXII, no qual iremos aprofundar a análise dos princípios aqui enumerados e mencionar outros de igual relevância. São princípios básicos e informativos da jurisdição: 1) o princípio da investidura; 2) o princípio da indelegabilidade; 3) o princípio da aderência ao território ou territorialidade da jurisdição; 4) o princípio da inércia; 5) o princípio da indeclinabilidade; e 6) o princípio da unidade.
5.1. PRINCÍPIO DA INVESTIDURA É o princípio segundo o qual a jurisdição só pode ser exercida por juízes regularmente investidos, providos em cargos de magistrados e que se encontrem no efetivo exercício desses cargos. A Constituição Federal, em diversos dispositivos, entre os quais sobressaem os artigos 93 e 96-II, estabelece os requisitos para a criação de cargos da magistratura e para o respectivo provimento. Somente juízes regularmente investidos nesses cargos e que se encontrem no seu efetivo exercício é que são portadores do poder jurisdicional, como tal entendido o conjunto de poderes inerente à jurisdição expostos no capítulo anterior. Exigindo o princípio da investidura que o juiz esteja no efetivo exercício do seu cargo, exclui-se, por falta de investidura, o juiz licenciado, aposentado ou no gozo de férias. Na hipótese de licença ou durante o gozo de férias, o exercício da função jurisdicional se encontra interrompido, enquanto a aposentadoria desvincula o juiz do seu cargo.
No Brasil, adota-se, preponderantemente, o sistema de juízes profissionais, cuja investidura se dá através de concurso público de provas e títulos, conforme estabelece o artigo 93, inciso I, da Constituição Federal. O inciso IV desse mesmo artigo, alterado pela Emenda Constitucional n. 45/2004, prevê ainda a realização de cursos oficiais de preparação, aperfeiçoamento e promoção de magistrados, que constituem etapa obrigatória do seu processo de vitaliciamento, pois os juízes somente se tornam vitalícios após estágio confirmatório de dois anos (art. 95, inc. I). As escolas da magistratura, no Brasil, não conseguiram se tornar requisito para ingresso na carreira. Na França, existe a Escola Nacional da Magistratura, modelo que se difundiu para a Itália, a Espanha e Portugal, países em que não se ingressa na magistratura por concurso público. Após terminar a Faculdade de Direito, realiza-se um exame para o ingresso na Escola da Magistratura, e, caso aprovado, o candidato realizará por dois anos um curso, a fim de preparar-se para o exercício da magistratura e, ao mesmo tempo, ser observado e acompanhado quanto ao seu comportamento. Os ministros dos tribunais superiores e os juízes temporários, como os juízes da Justiça Eleitoral e da Justiça Militar, são escolhidos por outros meios que não o concurso público. Os ministros dos tribunais superiores, normalmente, são indicados pelo Presidente da República e têm seus nomes aprovados pelo Senado Federal (Constituição, art. 52, inc. III, alínea a). Outro exemplo de investidura que não ocorre por meio de concurso público é a dos jurados do tribunal do júri, que são juízes leigos, cujo processo de escolha incumbe ao presidente do tribunal junto ao qual participarão dos julgamentos. A investidura do jurado se dá por meio de uma lista anual, elaborada pelo presidente do tribunal mediante conhecimento pessoal ou informação fidedigna, incluindo membros da sociedade que detenham notória idoneidade (arts. 425 e 426, 432 a 435, 436 a 439 do Código de Processo Penal, com a redação das Leis n. 11.689/2008 e 12.403/2011).
5.2. PRINCÍPIO DA INDELEGABILIDADE É o princípio segundo o qual cada órgão jurisdicional exerce a função jurisdicional nos limites da competência que a lei lhe conferiu.
Esse princípio está ligado à garantia do juiz natural (Constituição, art. 5º, incs. XXXVII e LIII), uma vez que esta pressupõe que os juízes exerçam a jurisdição nos limites previamente fixados pela lei. A garantia do juiz natural visa a impedir a escolha dirigida do juiz, sendo competente para julgar qualquer causa somente aquele juízo previamente estabelecido como tal pela própria lei, evitando-se, portanto, uma escolha subjetiva de quem quer que seja. A garantia do juiz natural assegura a impessoalidade da jurisdição, ou seja, é uma garantia de que a jurisdição seja exercida por um órgão julgador cuja escolha foi abstrata e impessoalmente prevista pela lei. Competência é uma fração da jurisdição; é uma parcela do poder jurisdicional. A competência destina-se a racionalizar o exercício da jurisdição, distribuindo-a entre os diversos juízes segundo determinados critérios objetivos, e também a facilitar o acesso à justiça. As regras de competência estão reguladas pela lei, de forma a atribuir a cada órgão jurisdicional uma parcela desse poder estatal. Sendo assim, todo juiz tem jurisdição, mas nem todo juiz tem competência, o que demonstra que a jurisdição é exercida nos limites da competência de cada órgão jurisdicional. A indelegabilidade é a impossibilidade de qualquer órgão jurisdicional transferir esse poder, outorgado pela lei, para outro juiz ou para outro órgão jurisdicional. A função jurisdicional, portanto, não é delegável. Às vezes, a lei atribui a mesma competência a vários órgãos jurisdicionais. No foro central da comarca do Rio de Janeiro, por exemplo, há 50 varas cíveis, todas igualmente competentes (Código de Organização e Divisão Judiciária do Estado, art. 94, inc. I). Nesses casos, o juiz competente para o julgamento de determinada causa é escolhido através de um sorteio impessoal, público e aleatório, a chamada distribuição. Nenhum juiz inferior pode recusar-se a julgar uma causa, remetendo-a a um tribunal superior, sob pena de violação da garantia do juiz natural, essencial ao Estado de Direito. Da mesma forma, nenhum órgão jurisdicional superior pode delegar o exercício da função jurisdicional a um órgão inferior ou a outro órgão de mesma categoria. Há, no entanto, exceções relativas ao princípio da indelegabilidade. As
principais, que são as cartas rogatória, precatória e de ordem, estão reguladas nos artigos 202 a 212 do Código de 1973, 35, 260 a 268 do Código de 2015 e justificam-se pela necessidade de colaboração entre os diversos órgãos jurisdicionais, na prática de determinados atos. 5.2.1. Cooperação jurídica internacional, carta rogatória e auxílio direto A cooperação jurídica internacional é fruto da cortesia e da solidariedade que deve existir entre as nações soberanas, que se encontram proclamadas em inúmeros tratados internacionais e acordos bilaterais que estão em vigor no Brasil. Se o Código de 1973 foi muito criticado pelos internacionalistas por ter sido excessivamente parcimonioso na disciplina dessa cooperação, o Código de 2015 a regulou em capítulo com quatro seções e dezesseis artigos, do 26 ao 41. Com base nestes últimos dispositivos que, de um modo geral, reproduzem regras já consagradas no direito internacional, a cooperação jurídica internacional abrange todas as solicitações que uma autoridade pública de um Estado soberano faça à autoridade pública de outro Estado soberano para a prática no território deste último de algum ato que se destine a produzir efeito em relação a essa autoridade ou para efetivar o cumprimento de um ato ou decisão sua. O exercício da função jurisdicional pelos órgãos da justiça brasileira, mesmo em colaboração com autoridades estrangeiras, é da competência da lei brasileira, a chamada lex fori. Por isso, para o processo civil brasileiro somente interessam os atos de cooperação jurídica internacional que tenham como uma das protagonistas a justiça brasileira, a saber: as cartas rogatórias da justiça estrangeira para cumprimento pela justiça brasileira; as homologações de sentenças estrangeiras para cumprimento no Brasil; os pedidos de auxílio direto de autoridade judiciária ou administrativa estrangeira a juiz brasileiro; as cartas rogatórias da justiça brasileira para cumprimento pela justiça de outro país; e os pedidos de auxílio direto de autoridade judiciária brasileira a autoridade judiciária ou administrativa estrangeira. A homologação ou o cumprimento de sentenças brasileiras para a produção de efeitos em outro país não é objeto do processo civil brasileiro porque se rege pelas leis do país de destino que normalmente não exigem qualquer providência perante a justiça de nosso país, a não ser a emissão de uma certidão do teor da decisão e do respectivo trânsito em julgado.
Essa cooperação pode ser objeto de tratados internacionais (Código de 2015, art. 26), incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro por ratificação, como o Código de Bustamante de 1928, celebrado com vários países latino-americanos. Com determinados países, como Uruguai, Espanha, Itália e França, o Brasil ainda celebrou acordos bilaterais que igualmente são tratados, embora envolvam apenas dois países. Quando não há tratado ratificado, a cooperação internacional depende de reciprocidade, isto é, a autoridade do país requerente deve comprovar formalmente que esse país se compromete a igualmente atender pedido de cooperação que venha a ser solicitado pela justiça brasileira (art. 26, § 1º). Na homologação de sentença estrangeira, por um princípio de solidariedade universal, a lei brasileira dispensa o compromisso de reciprocidade (§ 2º). São instrumentos da cooperação jurídica internacional que envolvem a prática de atos pela justiça cível brasileira a carta rogatória, o auxílio direto e a homologação de sentença estrangeira. Na justiça criminal, existe ainda o instituto da extradição, previsto na Constituição (art. 102, inc. I, letra g) e regulado na Lei n. 6.815/80 e em tratados internacionais. Trataremos da homologação da sentença estrangeira no vol. 3 destas Instituições, como um dos processos da competência originária do Superior Tribunal de Justiça (Constituição, art. 105, inc. I, letra i). A carta rogatória se destina à prática, perante a justiça do país rogado, de atos de comunicação, atos probatórios ou atos de execução, os quais deverão produzir efeitos em processo em curso na justiça do país rogante. As cartas rogatórias não são de cumprimento obrigatório, ao contrário das cartas precatórias, pois cada país é soberano para estabelecer na sua lei interna ou em tratados e acordos internacionais os pressupostos para o cumprimento de determinado ato processual emanado da justiça de outro país. Lembremo-nos de que o direito processual é preponderantemente um ramo do direito público interno de cada país. O direito brasileiro acata cartas rogatórias oriundas de inúmeros países, salvo se ofenderem a soberania nacional ou a ordem pública (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, art. 17; Resolução n. 9/2005 do Superior Tribunal de Justiça, art. 6º). A partir da Emenda Constitucional n. 45/2004, cabe ao Superior Tribunal de Justiça a concessão do exequatur (o cumpra-se) a cartas rogatórias estrangeiras (Constituição, art. 105, inc. I, letra i).
As cartas rogatórias podem ser de comunicação, como, por exemplo, as que se destinam a proceder à citação de determinada pessoa que se encontre no Exterior, ou instrutórias, como as que visam à prática de um ato probatório, como a oitiva de uma testemunha. Normalmente, não podem ser executórias, salvo se houver tratado internacional entre os países envolvidos, o qual permita a execução de cartas rogatórias de um no território do outro, ou de atos coativos de um pelo juiz do outro. O Brasil não aceita, em regra, cartas rogatórias executórias, salvo se oriundas dos países do Mercosul, Bolívia e Chile, por força do Acordo de Cooperação promulgado pelo Decreto 6.891/2009. A carta rogatória normalmente se processa por via diplomática. Por exemplo: se um juiz brasileiro tiver de expedir uma carta rogatória para ser cumprida por um juiz de Portugal, primeiramente o juiz brasileiro deverá enviá-la ao Ministério da Justiça, que, em seguida, remeterá o pedido ao Ministério das Relações Exteriores, o qual, por sua vez, a encaminhará à embaixada brasileira em Portugal, que a direcionará ao Ministério dos Negócios Estrangeiros daquele país, que, por fim, observando a lei interna, encaminhará a carta rogatória à justiça portuguesa. O retorno se dá pelo mesmo caminho. No Brasil, o Ministério da Justiça é normalmente a chamada Autoridade Central para a cooperação jurídica internacional, de acordo com o Decreto n. 6.061/2007. No âmbito de determinados tratados internacionais, a Procuradoria-Geral da República e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República exercem as funções de Autoridade Central. A carta rogatória a ser cumprida no Brasil segue roteiro inverso. O embaixador do país estrangeiro encaminha o pedido ao Ministério das Relações Exteriores, que o envia ao Ministério da Justiça, que o remete ao Superior Tribunal de Justiça, nos termos da lei brasileira. No Brasil, a carta rogatória somente será cumprida depois de receber uma decisão positiva determinando o seu cumprimento, a ser proferida pelo presidente desse tribunal ou pela sua Corte Especial, nos termos da antes mencionada Resolução n. 9/2005. A essa decisão é que se denomina de exequatur. Depois de emitido o exequatur, a carta rogatória será encaminhada, para a prática do ato processual requisitado pela justiça estrangeira, ao juiz federal que for competente, na forma do artigo 109, inciso X, da Constituição.
O auxílio direto é um pedido de cooperação que não constitui propriamente o cumprimento de uma decisão de autoridade jurisdicional estrangeira, mas em que esta ou outra autoridade administrativa estrangeira solicita à justiça brasileira uma informação ou uma atividade investigatória, cabendo à autoridade central – e, posteriormente, ao próprio juiz – decidir se deverá ser efetivada ou não. O auxílio direto não depende de exequatur, o chamado juízo delibativo do Superior Tribunal de Justiça. O Código de 2015 o regula nos artigos 28 a 34; e dele não trata o Código de 1973. 5.2.2. Carta precatória Deprecar significa pedir a outrem. É um ato de cooperação entre juízes de mesma categoria, mas de competências territoriais diferentes. Quando um juiz de uma área geográfica – comarca, seção judiciária etc. – precisa praticar um ato processual em outra área geográfica, que não aquela de sua competência territorial, ele expede uma carta precatória. Qualquer juiz de uma comarca pode receber uma carta precatória expedida por um juiz de outra, pedindo-lhe a prática de um ato processual que vai produzir efeitos num processo que tramita perante o juízo deprecante. Essas cartas podem ser de comunicação, executórias ou instrutórias (probatórias). Precatórias para citação ou intimação foram bastante frequentes e ainda podem ocorrer, embora a expansão da faculdade de prática desses atos através de comunicação postal (CPC de 1973, arts. 222, 223 e 238, com a redação da Lei n. 8.710/93; CPC de 2015, arts. 246 a 248 e 274) tenha reduzido a sua incidência. Constitui exemplo de ato processual a ser cumprido por meio de carta precatória executória a penhora de determinado bem que se encontre em outro Estado da Federação. Há também as cartas precatórias instrutórias ou probatórias, expedidas quando o juiz precisa, por exemplo, ouvir uma testemunha que está em comarca diversa daquela perante a qual tramita o processo. O juiz não pode obrigar a testemunha a vir à sua comarca depor, visto que a testemunha tem o direito de depor no juízo da comarca onde resida. Assim, ele deverá expedir uma carta precatória ao juiz da outra comarca, com o fim de instruir o processo. O Código de 2015, nos artigos 67 a 69, impõe aos juízes um dever de mútua cooperação, independentemente de qualquer forma específica, e cria ainda a
figura da carta arbitral (arts. 69, § 1º, 189, inc. IV, e 237, inc. IV, e 260, § 3º), que é a requisição pelo juízo arbitral ao juiz estatal da prática de algum ato que deverá produzir efeitos no processo arbitral, como a efetivação de uma providência de tutela antecipada. 5.2.3. Carta de ordem As cartas de ordem são pedidos de cooperação interjurisdicional, expedidos por um juiz de um tribunal superior a um tribunal inferior ou a um juiz de primeiro grau. Tal como as precatórias, também as cartas de ordem podem ser de comunicação, executórias ou instrutórias (probatórias). A ação rescisória, por exemplo, é sempre uma ação da competência originária de um tribunal superior. Se, no curso dessa ação, o tribunal precisar produzir provas, ele delegará a prática desses atos ao juiz de direito da comarca onde elas devam ser produzidas, o que ocorrerá através da expedição de uma carta de ordem (CPC de 1973, art. 492; CPC de 2015, art. 972). Resumindo essas exceções ao princípio da indelegabilidade, pode-se afirmar que as cartas rogatórias são expedidas para serem cumpridas por juízes de países diferentes, enquanto as cartas precatórias, por juízes de competências territoriais diferentes, e, por fim, as cartas de ordem, por um tribunal inferior ou por juízes de primeiro grau. O juiz deprecado, rogado ou ordenado só pode praticar o ato que lhe foi delegado, não devendo, em regra, recusar a sua prática. Há um caso, entretanto, em que a expedição de carta precatória vai transferir a competência do juiz deprecante para o juiz deprecado. É o que ocorre na chamada execução por carta, prevista nos artigos 658 e 747 do Código de 1973 (arts. 845, § 2º, e 914, § 2º, do Código de 2015). A execução por carta se dá nas hipóteses em que o devedor não possui bens no foro da causa, e, assim, a lei estabelece que seja expedida uma carta precatória para o juiz da localidade onde se encontrem os seus bens, a fim de que nesta sejam penhorados, avaliados e alienados. Caso exista algum vício ou defeito a respeito desses atos – penhora, avaliação e alienação –, quem decidirá os embargos ou a impugnação que versem sobre
essas matérias será o juiz deprecado, e não o juiz deprecante. Essa é, portanto, uma exceção à regra de que o juiz deprecado se limita, exclusivamente, a praticar o ato que o juiz deprecante lhe delegou. Também se tem entendido que o juiz federal de uma determinada seção judiciária que inclua várias comarcas de um determinado Estado pode deprecar a prática de atos processuais a um juiz estadual, mesmo em comarca do interior que se inclua na sua competência territorial, como exceção à regra de que as cartas precatórias são atos de cooperação entre juízos de competências territoriais diversas. Essa exceção foi expressamente consagrada no artigo 237, parágrafo único, do Código de 2015. 5.2.4. Outra exceção Há outra disposição no Código de Processo Civil cuja interpretação deve ser feita à luz do princípio da indelegabilidade. É a que regula a chamada suspeição por motivo íntimo (CPC/1973, art. 135, parágrafo único; CPC de 2015, art. 145, § 1º). O juiz somente poderá recusar-se a exercer a jurisdição caso sua imparcialidade esteja ameaçada, comprometida por algum impedimento ou motivo de suspeição (CPC de 1973, arts. 134 e 135; CPC de 2015, arts. 144, 145 e 147). A suspeição por motivo íntimo tem de ser controlada, a fim de impedir que o juiz a utilize de forma arbitrária, para não julgar a causa que não lhe convier, o que violaria a já citada garantia do juiz natural. No Código de Processo Civil de 1939, o artigo 119 prescrevia que o juiz, que se declarasse suspeito, motivaria o seu despacho, e que, se a suspeição fosse de natureza íntima, o juiz comunicaria os motivos ao órgão disciplinar competente, o qual, julgando improcedentes os motivos invocados, aplicaria ao juiz a pena de advertência. Essa regra lamentavelmente não foi reproduzida no Código de 1973, embora algumas organizações judiciárias, como a do Estado de São Paulo, de modo salutar a tenham mantido (Código Judiciário do Estado de São Paulo, artigo 64, inc. IV; Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, art. 216, inc. XV). Resolução do Conselho Nacional de Justiça (Resolução n. 82/2009), que
restabeleceu a regra do Código de 1939, foi questionada por setores da magistratura que a consideraram inconstitucional. O Código de 2015 lamentavelmente dispôs que o juiz que se declarar suspeito por motivo íntimo não necessita explicitar as suas razões (artigo 145, § 1º).
5.3. PRINCÍPIO DA ADERÊNCIA DA JURISDIÇÃO AO TERRITÓRIO No Estado de Direito contemporâneo, todo órgão jurisdicional possui uma base geográfica dentro da qual exerce jurisdição. O poder jurisdicional decorre da soberania estatal, e, portanto, sendo o território a base física da soberania, a jurisdição só pode ser exercida dentro de determinado limite territorial. Isso não quer dizer que o juiz não possa se deslocar dentro dessa área. Nesse sentido, existe no Brasil a possibilidade de funcionamento de uma justiça itinerante (arts. 107, § 2º; 115, § 1º; 125, § 7º, todos da Constituição). A área geográfica, que delimita a competência de cada órgão jurisdicional, é matéria regulada pelas leis de organização judiciária. Na Justiça Estadual do Rio de Janeiro, a unidade geográfica básica é a comarca (art. 5º, § 1º, do CODJERJ). Na capital do Estado do Rio de Janeiro, existe ainda outra unidade geográfica, que é a região administrativa, que constitui a base geográfica das chamadas varas regionais. A região é um fracionamento da comarca e corresponde à área de um grupo de bairros vizinhos. Em algumas comarcas do Interior, como Niterói e Petrópolis, há juízos com delimitação territorial vinculada a determinada região, zona judiciária ou distrito da comarca, como a Região Oceânica de Niterói ou a Região de Itaipava. Há juízes ou órgãos jurisdicionais que têm competência sobre todo o território estadual, como, por exemplo, os Tribunais de Justiça. Entretanto, há também tribunais com competência em mais de um Estado, como ocorre com o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que abrange os Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo. Na justiça federal, a unidade geográfica básica é a chamada seção judiciária (art. 3º da Lei n. 5.010/66), que corresponde ao território de um Estado; mas, hoje, já existem juízes federais que exercem jurisdição sobre áreas geográficas mais restritas dentro de um Estado, que são as chamadas subseções judiciárias.
Existem ainda os tribunais de âmbito nacional, cuja base geográfica é todo território nacional, como o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça. A aderência ao território não significa que todas as causas que surjam em determinada área geográfica somente possam ser julgadas por aquele juiz. A aderência significa apenas que cada órgão jurisdicional está acessível e disponível dentro da sua área geográfica de atuação e que as causas a ele submetidas normalmente possuem algum vínculo objetivo com essa área geográfica, como o domicílio do réu, a situação do imóvel. Entretanto, se mesmo sem qualquer vínculo com determinada área, a causa for aí proposta, o juiz nela sediado deverá exercer jurisdição, salvo se, em determinado prazo, for arguida a sua incompetência (CPC de 1973, art. 114; CPC de 2015, art. 65) ou se tratar de alguma das hipóteses legalmente previstas em que essa incompetência é decretável de ofício (ver itens 6.4 e 6.5 adiante).
5.4. PRINCÍPIO DA INÉRCIA DA JURISDIÇÃO Segundo esse princípio, a jurisdição é um poder inerte, ou seja, os órgãos jurisdicionais devem estar sempre à disposição dos cidadãos; porém, somente atuam quando forem provocados por algum interessado. A inércia da jurisdição (CPC de 1973, art. 262; CPC de 2015, art. 2º) é um princípio que visa a respeitar a liberdade individual, uma vez que o Estado não deve interferir nas relações jurídicas privadas, salvo quando algum interessado o requerer. Essa regra, típica da função jurisdicional, não vale para a função administrativa do Estado, cuja atuação, na maioria dos casos, se dá ex officio, vale dizer, por iniciativa da própria Administração, não dependendo de provocação. A inércia da jurisdição é também uma garantia da imparcialidade do juiz, pois a neutralidade do juiz ficaria comprometida se ele pudesse julgar aquilo que ele mesmo pediu. Existem algumas exceções ao princípio da inércia que devem ser tratadas com grande rigor, como, por exemplo, a que permite ao juiz instaurar de ofício um procedimento para a retirada do tutor de um menor (CPC de 1973, art. 1.197; CPC de 2015, art. 762). Nesse caso, a incapacidade do menor de prover por si mesmo à sua proteção, aliada ao dever do Estado de assistência à infância e somada à absoluta impossibilidade concreta de que outro sujeito público ou privado tome a iniciativa de mover o exercício da jurisdição, exige que o juiz
aja, mesmo sem ter sido provocado. Contudo, essa é uma situação excepcional, em que o juiz atua de ofício, desprezando a inércia, no exercício de uma função assistencial que o Estado deve prestar àqueles que não podem tutelar os seus próprios interesses ou não encontram na sociedade o apoio de qualquer outro sujeito que possa agir em seu benefício.
5.5. PRINCÍPIO DA INDECLINABILIDADE DA JURISDIÇÃO O princípio da indeclinabilidade determina que nenhum juiz possa recusar-se a exercer a jurisdição quando solicitado. A jurisdição é facultativa para o cidadão, que a provoca se quiser, devendo o Estado respeitar a sua liberdade individual, enquanto se mostra obrigatória para o juiz, que, provocado pelo interessado, tem o dever legal de dar uma resposta à sua postulação. O direito moderno não mais admite que o juiz se omita de exercer a jurisdição, quando estiver em dúvida sobre qual das duas partes deva tutelar. Na Antiguidade era permitido ao julgador, em caso de dúvida, abster-se de decidir. Era a chamada permissão do non liquet. Na atualidade, as regras de distribuição do ônus da prova, como as dos artigos 333 do Código de 1973 e 373 do Código de 2015, auxiliam o juiz a resolver os casos duvidosos, quanto à verdade dos fatos. E, quanto ao direito aplicável, o juiz adotará o entendimento que lhe parecer mais correto, sem poder abster-se de decidir. Se o juiz não exercer a jurisdição quando provocado, poderá responder civilmente com seu patrimônio pela referida omissão (art. 49, inc. II, da Lei Complementar n. 35/79; CPC de 1973, art. 133, inc. II; CPC de 2015, art. 143, inc. II), sendo esse o único caso em que poderá ter a causa subtraída da sua apreciação (CPC de 1973, art. 198; CPC de 2015, art. 235, § 2º).
5.6. PRINCÍPIO DA UNIDADE DA JURISDIÇÃO A unidade da jurisdição encerra, primeiramente, o sentido de que a jurisdição é um poder único do Estado soberano e de que, apesar de distribuída, pelas regras de competência, entre todos os seus juízes, cada um deles, quando a exerce, o faz em nome desse Estado soberano, manifestando a sua vontade única em relação àquela causa ou interesse. A jurisdição, no Brasil, é um poder que o Estado exerce através de qualquer juiz.
Sendo assim, se um juiz do trabalho, por exemplo, decretar um divórcio, todos têm de aceitar essa sentença de divórcio ainda que ela seja nula por incompetência absoluta do juízo que a proferiu, cabendo ao prejudicado propor uma ação rescisória em até dois anos, a fim de rescindi-la. O princípio da unidade da jurisdição comporta ainda outro significado, qual seja, o de indicar que não existe, no Brasil, uma justiça especializada para julgar as causas de interesse do Estado, ou seja, não existe o chamado contencioso administrativo. Portanto, não há uma justiça instalada fora do âmbito do Poder Judiciário para julgar as causas do Estado, cabendo observar que essas pertencem à Justiça Comum, estadual ou federal, que também possui competência para julgar as causas entre particulares. O fracionamento da jurisdição em diversos ramos do Poder Judiciário, de acordo com os diversos critérios determinativos da competência, não implica dualidade de jurisdição, mas apenas a existência de estruturas diversas, estabelecidas de acordo com a especialidade de cada uma dessas justiças, com o objetivo de assegurar a maior eficiência no seu desempenho.
Todos os órgãos jurisdicionais são portadores de jurisdição, mas cada um a exerce dentro de uma determinada esfera de atuação. As normas que cuidam especificamente dos limites em que a jurisdição deve ser exercida por cada órgão jurisdicional são as regras de competência.
6.1. CONCEITO Competência, portanto, é a medida da jurisdição; é a jurisdição na medida em que pode e deve ser exercida pelo juiz. Todos os órgãos jurisdicionais detêm jurisdição, ou seja, todos eles exercem a função jurisdicional em nome do Estado, são porta-vozes da vontade do Estado; mas a lei delimita esse exercício para que cada um se dedique apenas a uma parcela dessa extensa e complexa função. Essa parcela da jurisdição que cabe, segundo critérios legais, a cada órgão jurisdicional individualmente é a competência.
6.2. FINALIDADES Com qual objetivo a lei distribui a jurisdição fracionadamente, atribuindo-a em parte a cada órgão jurisdicional? Essa distribuição ou fracionamento da jurisdição possui três finalidades. A primeira delas é racionalizar a administração da justiça, assegurando-lhe eficiência operacional, através da especialização de cada órgão jurisdicional no julgamento de determinados tipos de causas. Para isso, a lei procura distribuir equitativamente o exercício da função jurisdicional entre os órgãos do Poder Judiciário, vinculando certas espécies de causas ou de procedimentos a estes ou àqueles órgãos, para que possam equacioná-las com a maior eficiência e correção. Se cada órgão jurisdicional pudesse decidir qualquer causa, o exercício da jurisdição seria caótico; basta imaginarmos um juiz do trabalho decidindo o divórcio de um casal. O exercício cumulativo de todos os tipos de competência só é possível, por expressa autorização legal, em situações de comprovada necessidade, ou nas localidades em que a demanda pelos serviços judiciários não justifique a instalação de órgãos jurisdicionais especializados no julgamento de
causas de determinada natureza. Entretanto, atualmente no Brasil não existe nenhum órgão jurisdicional que possa processar e julgar todos os tipos de causas. Todos os órgãos jurisdicionais, mesmo os que têm a competência mais ampla, estão impedidos de conhecer de um grande número de causas. Em uma comarca do interior, por exemplo, na justiça comum estadual, pode haver um único juiz com competência para conhecer de causas que versem sobre as mais diversas matérias. Isso porque o reduzido número de processos permite que não só o juiz, como também o seu apoio operacional – que é o cartório –, dedique-se a todos eles sem prejuízos aos jurisdicionados. Ainda que nessa comarca não haja juízo federal, nem militar, nem do trabalho, esse órgão não poderá conhecer da maioria das causas da competência da Justiça Federal, nem das causas da Justiça Militar ou da Eleitoral. Na medida em que o volume de processos aumenta, especialmente nas comarcas cuja população é mais numerosa, deixa de ser possível que um único juízo exerça jurisdição sobre todos os tipos de causas da própria justiça estadual, sem que isso acarrete prejuízos à eficiência e à qualidade da sua atuação. Na comarca da capital do Estado Rio de Janeiro, por exemplo, há 50 varas cíveis, 18 varas de família, 14 varas da fazenda pública, 10 varas de órfãos e sucessões, 7 varas empresariais, três juízos da infância e da juventude, dois dos quais com competência também para o idoso, 1 vara de registros públicos, 30 varas criminais, sendo 4 exclusivas do júri e uma de execuções penais, 123 varas regionais, sendo 51 cíveis, 12 criminais e 33 de família, e uma auditoria militar, além de juizados especiais cíveis, criminais, de violência doméstica e familiar contra a mulher e de fazenda pública, conforme estabelecido no artigo 94 do Código de Divisão e Organização Judiciárias do Estado (CODJERJ) e em Resoluções do Órgão Especial do Tribunal de Justiça. Essa especialização, como já observado, visa a racionalizar a administração da justiça, de modo que cada juiz se especialize no julgamento de determinadas matérias, e que os seus auxiliares operacionais desempenhem suas funções com maior grau de eficiência. A segunda finalidade do fracionamento da jurisdição é facilitar o acesso à justiça e o exercício do direito de defesa pelos litigantes, vinculando a jurisdição ao juízo da área geográfica mais próxima das partes, dos bens ou dos fatos a ela submetidos.
O acesso à justiça exige proximidade entre o juiz e os cidadãos, evitando que os jurisdicionados tenham de deslocar-se por muitos quilômetros ou durante inúmeras horas para terem acesso ao juiz legalmente competente. As leis de organização judiciária procuram distribuir os órgãos jurisdicionais por todo o território nacional ou por todo território de cada Estado-membro, a fim de torná-los acessíveis aos cidadãos, permitindo o ingresso e a postulação em juízo por parte do autor e garantindo o exercício da ampla defesa pelo réu. A justiça, repita-se, tem de estar próxima das pessoas, dos bens e dos fatos a ela submetidos. Por fim, a terceira finalidade da distribuição da jurisdição entre os diversos órgãos jurisdicionais consiste na preservação da estrutura hierárquica e piramidal do Poder Judiciário, em cuja base estão os órgãos mais numerosos, compostos por juízes mais novos e que realizam o primeiro exame de praticamente todas as causas. A esses se sobrepõem sucessivamente órgãos menos numerosos, compostos de juízes mais experientes e com grau de qualificação mais elevado, que, em regra, reexaminam o julgamento proferido pelos primeiros quando uma das partes não se conformou com a primeira decisão. Examinam, ainda, originariamente, algumas causas de excepcional relevância, os chamados processos da competência originária dos tribunais. Normalmente, o ingresso em juízo se dá através da postulação aos órgãos jurisdicionais de primeiro grau. Daí serem eles mais numerosos e distribuídos por todo o território nacional. É essa justiça, composta de juízes mais novos, que está ao alcance de todos os cidadãos. Acima dos juízes de primeiro grau, em regra, estão os tribunais de segundo grau, compostos por um número menor de juízes, que são presumivelmente mais experientes. A não ser em casos excepcionais, como na chamada remessa necessária (CPC de 1973, art. 475; CPC de 2015, art. 496), esses juízes de segundo grau somente irão conhecer das causas já julgadas em primeiro grau de jurisdição quando uma ou ambas as partes interpuserem recurso, por não se conformarem com a decisão proferida pelo juízo de 1º grau. Por vezes, esses tribunais superiores julgam originariamente certas causas ou certos procedimentos, que, de acordo com a Constituição Federal, com a Constituição Estadual ou com o Código de Processo Civil, são consideradas de
especial relevância ou são inerentes à sua posição hierárquica. O mandado de segurança contra ato do Governador do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, é uma causa da competência originária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, segundo o estabelecido no artigo 105 da Constituição Estadual, editado com fundamento no artigo 125, § 1º, da Constituição Federal. Em resumo, estruturalmente o Poder Judiciário é uma pirâmide hierárquica em cuja base estão os órgãos jurisdicionais de primeiro grau, que constituem a porta de entrada da justiça. Já os tribunais de segundo grau e os demais tribunais superiores, via de regra, só reveem as decisões proferidas em primeiro grau quando houver a interposição de algum recurso ou por disposição expressa de lei, mas, excepcionalmente, julgam de forma originária determinadas causas.
6.3. COMPETÊNCIA INTERNACIONAL E COMPETÊNCIA INTERNA As regras que definem a competência dos órgãos jurisdicionais se dividem inicialmente em regras de competência internacional (CPC de 1973, arts. 88, 89 e 90; CPC de 2015, arts. 21 a 25) e regras de competência interna (CPC de 1973, arts. 94 a 111; CPC de 2015, arts. 46 a 63). 6.3.1. Competência internacional São regras que atribuem o exercício da jurisdição à justiça de um ou de outro país, emanando, em grande parte dos casos, dos tratados internacionais. O Brasil é signatário de dois importantes tratados internacionais que estabelecem regras de competência internacional. O primeiro é o Código de Bustamante, que é o Tratado de Havana, de 1928, no qual estão previstas algumas regras que vigoram no Brasil e em vários outros países do continente americano, estabelecendo a competência das justiças dos Estados signatários para julgarem determinadas causas. O segundo tratado multilateral que possui regras de competência internacional é o Protocolo de Buenos Aires, de 1994, celebrado entre os quatro países que compunham o Mercosul à época, versando sobre a jurisdição internacional em matéria contratual.
Essas regras, contudo, são incompletas, pois não abrangem todas as hipóteses possíveis. Assim, cada país também adota as suas próprias regras de competência internacional, mas obviamente a lei de um país não tem o condão de atribuir poder jurisdicional à justiça de outro, já que a jurisdição é uma expressão da soberania estatal. Cada país somente pode elaborar leis que possa cumprir dentro dos seus limites territoriais e através dos órgãos da sua própria justiça. Por exemplo: uma lei nacional não pode estabelecer regras a serem observadas no exercício da jurisdição de outro país. As regras de competência entre dois países devem ser fixadas por meio de um tratado ou um acordo bilateral. Cada país poderá regular as causas que são da sua própria competência internacional, sem atribuir o julgamento de causas à justiça de outros países, pois não pode fazê-los cumprir essas regras coercitivamente, em virtude do respeito que deve à soberania alheia. Então, as regras de competência internacional que estão no direito interno de cada país são regras que definem a competência da justiça desse país em relação às justiças dos outros, relativamente a causas que possuam algum elemento de internacionalidade, ou seja, que apresentem circunstâncias que possam vinculálas à justiça de algum outro país. No Brasil, as regras gerais de competência internacional do direito interno se encontram no Código de Processo Civil (CPC de 1973, arts. 88 a 90; CPC de 2015, arts. 21 a 25) e, em matéria criminal, nos artigos 5º e 7º do Código Penal. São chamadas de regras de competência internacional porque elas fixam a competência do juiz nacional em face das justiças de outros países. As regras internas de competência internacional, em matéria civil, se dividem em regras de competência internacional concorrente (CPC de 1973, art. 88; CPC de 2015, arts. 21, 22 e 25) e regras de competência internacional exclusiva (CPC de 1973, art. 89; CPC de 2015, art. 23). 6.3.1.1. Competência internacional concorrente
As regras de competência internacional concorrente são aquelas que estabelecem a competência da justiça brasileira para o julgamento de determinadas causas
sem a exclusão de igual competência da justiça de outros países, se estabelecida em normas do seu direito interno ou em contrato. São regras nas quais não se exige exclusividade da justiça brasileira, ou seja, admite-se a possibilidade de julgamento dessas causas pela justiça de outro país. Essa caracterização possui destacada relevância no cumprimento das sentenças estrangeiras pela justiça brasileira, pois nos casos de competência internacional concorrente, cumpridos alguns requisitos, será aceita a homologação da decisão da justiça de outro país, mesmo que verse sobre matéria que a lei brasileira considere ser também da competência da justiça pátria. As principais disposições sobre a competência internacional concorrente estão contidas no Código de Processo Civil (CPC de 1973, art. 88; CPC de 2015, arts. 21, 22 e 25). O artigo 88 do Código de 1973, reproduzido no caput do artigo 21 do Código de 2015, atribui competência à autoridade judiciária brasileira para as causas cujos réus, brasileiros ou não, estiverem domiciliados no Brasil; aquelas que versarem sobre obrigações cujo cumprimento deva se dar no Brasil e as que resultarem de fatos ocorridos ou atos praticados no Brasil. Com a ressalva que faremos adiante com fundamento no princípio da submissão, essa enumeração não deve ser considerada exaustiva, porque até o advento do Código de 2015 prevaleceu o entendimento de que a justiça brasileira sempre deveria aceitar a sua competência internacional para processar qualquer causa. O cumprimento da sua decisão em território de país diverso seria matéria a ser aferida à luz do ordenamento jurídico vigente no país de destino. Com base nesse princípio de ampla aceitação da competência da justiça brasileira, o parágrafo único do artigo 21 e o artigo 22 do Código de 2015 explicitam outras hipóteses de competência internacional concorrente da justiça brasileira não necessariamente vinculadas às circunstâncias mencionadas no artigo 88 do Código de 1973 e no caput do artigo 21 do mesmo Código de 2015, a saber: causas contra pessoa jurídica estrangeira que no Brasil tenha agência, filial ou sucursal, mesmo alheias às obrigações contraídas pela agência ou filial (Código de 2015, art. 53, inc. III, b, mais amplo do que o art. 100, inc. IV, b, do Código de 1973); ações de alimentos, se o credor tiver domicílio ou residência no Brasil ou se o réu aqui tiver vínculos, como posse ou propriedade de bens, percepção de rendimentos ou de outros benefícios econômicos; ações decorrentes de relações de consumo, se aqui tiver domicílio ou residência o consumidor; e ações em que as partes, expressa ou tacitamente, se submetam à jurisdição internacional. Neste último caso, a submissão expressa
se refere ao chamado foro de eleição estabelecido em contrato escrito (Código de 1973, art. 111; Código de 2015, arts. 25 e 63). Já a submissão tácita é a que, independentemente de contrato escrito, decorre da ausência da alegação de incompetência no prazo e na forma legais (CPC de 1973, art. 114; CPC de 2015, art. 65). As hipóteses que não se enquadram numa dessas previsões, entretanto, não estão excluídas automaticamente da competência da justiça brasileira, tendo em vista que para determinar a competência nos casos não previstos em lei ou em tratados internacionais faz-se necessária a aplicação de dois princípios que regem a competência internacional: o princípio da efetividade e o princípio da submissão1. O princípio da efetividade é o princípio segundo o qual cada país somente deve processar as causas cujas decisões ele possa garantir, com razoável segurança, que efetivamente possam ser cumpridas. Por exemplo: de que adiantaria a justiça brasileira decretar o divórcio de duas pessoas que moram no interior da China, já que ela desconhece o funcionamento da justiça chinesa e a disciplina do matrimônio nesse país, e não tem certeza de que as autoridades chinesas venham a cumprir a sua decisão? Portanto, quando o cumprimento da decisão depender de uma justiça com a qual a justiça brasileira não tenha nenhum vínculo, ou cujo funcionamento a justiça brasileira não conheça, ou ainda em relação à qual ela suspeite de que a sua decisão não vai ser exequível, a justiça brasileira não deve decidir a causa. O mesmo acontece com as causas que são da competência internacional exclusiva da justiça de outros países. Em Portugal, por exemplo, há uma lei que estabelece, assim como a lei processual nacional faz em relação ao Brasil, que a justiça portuguesa ou em certos casos a de algum país da União Europeia é competente exclusivamente para ações relativas a bens imóveis situados em território português (Código de Processo Civil português, art. 63º; Código de Processo Civil brasileiro de 1973, art. 89, inc. I; Código de 2015, art. 23, inc. I). Assim, ainda que não haja no Brasil nenhuma lei que proíba a propositura perante a justiça brasileira de uma ação relativa a um imóvel situado em Portugal, o juiz brasileiro, sabedor dessa circunstância e conhecendo o teor da lei portuguesa, em respeito ao princípio da efetividade, não deverá processar essa causa.
Essa questão suscita posicionamentos divergentes na doutrina; mas, a meu ver, deve prevalecer a regra de que a justiça brasileira, não havendo norma expressa que lhe atribua competência nos termos do artigo 88 do Código de 1973 e dos artigos 21 e 22 do Código de 2015, somente deve processar as causas cujas decisões ela seja capaz de cumprir, ou, ao menos, de presumir que possam ser cumpridas pela justiça de outro país. Por outro lado, o princípio da submissão é aquele segundo o qual a justiça de determinado país é competente para o julgamento da causa cujas partes se submeteram voluntariamente à sua jurisdição. Os tratados internacionais divergem quanto ao princípio da submissão. O Código de Bustamante, por exemplo, admite a submissão tácita; já o Protocolo de Buenos Aires só admite a submissão expressa. Como o primeiro disciplina a relação do Brasil com os países sul-americanos não integrantes do Mercosul, em relação a estes valeria a submissão tácita, enquanto no âmbito do referido bloco econômico a submissão teria de ser explícita. Entretanto, parece-me que esta última restrição estará revogada pelo advento do artigo 22, inc. III, do Código de 2015, que, em qualquer caso, admite a submissão expressa ou tácita à jurisdição nacional. 6.3.1.2. Competência internacional exclusiva
É disciplinada por regras que estabelecem a competência da justiça brasileira com exclusão da competência de qualquer outra justiça estrangeira. Nesse passo, cabe repetir que a lei brasileira não pode impedir que a lei estrangeira determine que a sua justiça seja competente para julgar determinada causa. No direito positivo brasileiro, essas regras estão dispostas no artigo 89 do Código de 1973 e no artigo 23 do Código de 2015. Por esses artigos, são da competência exclusiva da justiça brasileira as ações relativas a imóveis situados no Brasil, assim como o inventário e a partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro ou tenha residido no exterior. O Código de 2015 explicitou que, em matéria sucessória, também a confirmação de testamento particular, obviamente de testador que tenha deixado bens a serem partilhados no Brasil, será de competência exclusiva da justiça brasileira. Esse novo diploma, ao mencionar expressamente a partilha de bens em matéria de sucessão hereditária, em divórcio ou dissolução de união
estável, afastou da competência exclusiva a partilha de bens decorrente de dissolução de condomínio ou de sociedade ou qualquer outra. A consequência imposta aos casos de inobservância da competência exclusiva é a impossibilidade de execução, no Brasil, das sentenças estrangeiras neles proferidas, ou, em outros termos, a sua não homologação pelo Superior Tribunal de Justiça (Constituição, art. 105, inc. I, letra i), o que impedirá a sua execução ou seu cumprimento em território nacional. Em resumo, pode dizer-se que a competência internacional concorrente fixa a competência da justiça brasileira sem excluir a competência da justiça de outros países, enquanto a competência internacional exclusiva o faz com a exclusão da competência da justiça de outros países, não no sentido de uma proibição dirigida a esses países, mas no sentido de impedir uma futura execução dessa sentença no Brasil. Os artigos 90 do Código de 1973 e 24 do Código de 2015 completam as regras sobre competência internacional, repudiando a litispendência internacional. Isso significa que a justiça brasileira não suspenderá, nem extinguirá qualquer processo porque a respectiva causa já esteja anteriormente pendente perante a justiça estrangeira. Essa regra geral não exclui, todavia, a possibilidade de que o Brasil celebre tratados ou acordos bilaterais ou multilaterais de cooperação interjurisdicional com determinados países, que estabeleçam que uma causa proposta na justiça de um deles não possa ser reproposta na de outro ou na brasileira, sob pena de suspensão, de extinção ou de não reconhecimento da eficácia extraterritorial da decisão. Essa ressalva não estava explícita no dispositivo do Código de 1973, mas foi agora corretamente formalizada no do Código de 2015. É o que ocorre com os países signatários do Código de Bustamante, cujo artigo 394 estabelece que “a litispendência, por motivo de pleito em outro Estado contratante, poderá ser alegada em matéria cível, quando a sentença, proferida em um deles, deva produzir no outro o efeito da coisa julgada”. De modo análogo, dispõe o Protocolo de Las Leñas, que vincula os países do MERCOSUL, no seu artigo 21.
6.3.2. Competência interna São aquelas regras de direito interno que fixam a competência de um determinado órgão jurisdicional através de três espécies de critérios, os chamados critérios determinativos da competência. Esses critérios são o critério objetivo, o critério funcional e o critério territorial. 6.3.2.1. Critério objetivo
As regras de competência estabelecidas dentro do critério objetivo adotam alguma circunstância objetiva da causa para a determinação do juízo competente. Essas regras se agrupam em regras de competência em razão da matéria (ratione materiae), em razão da pessoa (ratione personae) e em razão do valor da causa (ratione pecuniae). As causas, quanto à matéria nelas versada, podem ser ainda subdivididas em função da natureza da relação jurídica de direito material, em função do tipo de procedimento ou ainda em função da espécie ou natureza da ação. As regras de competência em razão da matéria são estabelecidas na Constituição Federal, nas Constituições dos Estados quanto à competência originária dos tribunais estaduais, no próprio Código de Processo Civil, nas leis federais sobre a organização dos ramos do Poder Judiciário de investidura federal, nas leis de organização judiciária estaduais, nos regimentos internos e resoluções dos tribunais superiores, conforme mencionam o artigo 91 do Código de 1973 e, numa enumeração mais completa, mas não exaustiva, o artigo 44 do Código de 2015 (V. o item 2.2.5., no capítulo II). A lei de organização judiciária de cada Estado-membro e, em alguns Estados como o Rio de Janeiro, resoluções do Tribunal de Justiça estabelecem as especialidades a que se circunscreve a atuação dos órgãos da justiça comum estadual. A definição da competência através das regras do critério objetivo visa a atender, preponderantemente, à racionalização da administração da justiça, de forma que as regras estabelecidas segundo esse critério apresentam pouca variação nas leis de organização judiciária estaduais: as varas cíveis e de família, por exemplo, existem em todas as organizações estaduais, observando-se variações, contudo, quanto à enumeração dos tipos de causas abrangidos na competência de cada uma delas.
Em outros casos, a lei, utilizando-se de outro ponto característico, especializa a competência em razão da qualidade de uma das partes. Isso ocorre, por exemplo, quando há a presença de uma pessoa jurídica de direito público em um dos polos da relação jurídica processual. A competência das varas da Fazenda Pública, na Justiça Estadual na capital do Estado do Rio de Janeiro (CODJERJ, art. 97), e a competência da Justiça Federal (Constituição, art. 109) são competências estabelecidas, preponderantemente ratione personae. A competência dos tribunais superiores também, em diversas hipóteses, é fixada em razão das pessoas. O mandado de segurança impetrado contra ato do Presidente da República, por exemplo, é da competência do Supremo Tribunal Federal (art. 102, inc. I, alínea d, da Constituição), ao passo que se a autoridade impetrada for um ministro de Estado, a competência será do Superior Tribunal de Justiça (art. 105, inc. I, alínea b, da Constituição). Nos Estados, as Constituições estaduais, autorizadas pelo artigo 125, § 1º, da Constituição Federal, costumam estabelecer a competência originária dos seus tribunais de justiça para o processo e julgamento dos mandados de segurança contra atos dos governadores, da Mesa da Assembleia Legislativa, de secretários de Estado e de outras altas autoridades estaduais. Assim, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, no seu artigo 161, inciso IV, alínea e, atribui ao Tribunal de Justiça competência para processar e julgar os mandados de segurança e os habeas data contra atos do governador, do próprio Tribunal, da Mesa Diretora e do presidente da Assembleia Legislativa, do Tribunal de Contas do Estado, dos secretários de Estado, dos procuradores-gerais da Justiça, do Estado e da Defensoria Pública e dos prefeitos da Capital e dos Municípios com mais de 200.000 eleitores. Assim, a competência em razão da qualidade das partes é aquela fixada em razão ou da natureza pública de uma das partes ou em razão de alguma outra característica subjetiva que lhes seja própria, peculiar. Convém observar que às vezes a especialização das competências é tão minuciosa que matérias semelhantes acabam sendo apreciadas e decididas por juízos diferentes, com grande possibilidade de interpretações diversas das mesmas leis e de adoção de soluções contraditórias para situações absolutamente idênticas. É o que ocorre, por exemplo, na capital do Estado do Rio de Janeiro, em relação aos menores de idade. Existem, de acordo com o Código de Organização Judiciária, três tipos de varas distintas com competência para julgar procedimentos de jurisdição voluntária relativos à proteção dos menores. O
processo em que for parte o menor sujeito ao poder parental é da competência das varas de família (CODJERJ, art. 96, c.c. o art. 85, inc. III; Lei estadual n. 6.956/2015, art. 43); o julgamento das causas relativas ao menor órfão compete às varas de órfãos e sucessões (CODJERJ, art. 98, inc. II, alínea b; Lei estadual n. 6.956/2015, art. 46); e, por fim, as causas que envolvam menores em situação irregular ou de risco são da competência das varas da infância e da juventude (CODJERJ, art. 102, c.c. o art. 92, incs. I e XII; Lei estadual n. 6.956/2015, art. 51). A terceira subdivisão do critério objetivo se dá em razão do valor da causa. A lei pode atribuir causas a diferentes órgãos jurisdicionais de acordo com o valor econômico que elas possuam. Atualmente, os juizados especiais estaduais julgam causas cujo valor atinja até 40 salários mínimos (Lei n. 9.099/95, art. 3º, inc. I), ao passo que nos Juizados Especiais da Fazenda Pública, federais ou estaduais, esse valor deve ser de até 60 salários mínimos (Lei n. 10.259/2001, art. 3º; Lei n. 12.153/2009, art. 2º; Lei Estadual do Rio de Janeiro n. 5.781, art. 16). Acima desses valores a competência é dos juízos comuns: varas cíveis ou da Fazenda Pública, na Justiça Estadual, e varas federais comuns, na Justiça Federal. Pode haver concorrência, superposição e até conflito entre as diversas regras de fixação da competência pelos vários subcritérios do critério objetivo, e a solução dessas situações nem sempre encontra suporte na lei, devendo ser objeto da aplicação, muitas vezes polêmica, de outras fontes de direito processual. Por exemplo, a Constituição Federal (art. 109, inc. I) estabelece que são da competência da Justiça Federal as causas em que intervier a União Federal na qualidade de autora, ré, assistente ou opoente. Já a Constituição do Estado do Rio de Janeiro (art. 161, inc. IV, alínea e), com fundamento no § 1º do artigo 125 da Constituição Federal, estabelece que são da competência originária do Tribunal de Justiça do Estado os mandados de segurança contra atos do governador do Estado. Suponhamos que a União intervenha como assistente do impetrante em um mandado de segurança contra ato do governador do Estado do Rio de Janeiro, proposto perante o Órgão Especial do Tribunal de Justiça. Qual das duas regras especiais deverá prevalecer? A meu ver, com a intervenção da União, a competência se deslocará para a Justiça Federal, por força do artigo 109 da Carta Magna, mas deverá a causa ser processada e julgada originariamente pelo Tribunal Regional Federal, que é o órgão de 2º grau da Justiça Federal,
exercendo nesse ramo do Poder Judiciário funções análogas às do Tribunal de Justiça Estadual, e não por um juízo federal de grau inferior, em respeito ao foro privilegiado por prerrogativa de função do governador do Estado. Com relação à competência pelo valor da causa, cumpre observar que o juiz com competência para julgar as causas de maior valor normalmente poderá julgar também aquelas de valor inferior, o que não é reciprocamente verdadeiro. Essa regra, no entanto, não poderá ser aplicada no âmbito dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, federais ou estaduais, tendo em vista que a sua competência, nas localidades em que estiverem instalados, é considerada absoluta (art. 3º, § 3º, da Lei n. 10.259/2001, art. 2º, § 4º, da Lei n. 12.153/2009). Nos Juizados Especiais Cíveis estaduais, pode o autor escolher entre propor a demanda no juizado especial ou em juízo comum, pois se tem entendido que a competência dos juizados não é absoluta, mas facultativa ou opcional, tendo em vista as limitações cognitivas e de garantias a que está sujeito o seu procedimento. Essa mesma opção deveria ser permitida nos Juizados Especiais da Fazenda Pública, federais ou estaduais, sendo a meu ver inconstitucional, por violação da garantia constitucional da ampla defesa, a obrigatoriedade estabelecida nas Leis n. 10.259/2001 e 12.153/2009. Normalmente, como expus, na competência em razão do valor, quem pode o mais pode o menos. Se o juiz pode julgar uma causa de maior valor, ele também pode fazê-lo com relação à de menor valor, mas as referidas Leis dispõem de modo diverso. 6.3.2.2. Critério funcional
O segundo critério determinativo da competência é o critério funcional. A lei e a doutrina nem sempre usam a expressão competência funcional com precisão. Cabe, neste passo, portanto, tratá-la com o seu conteúdo adequado. A competência funcional rege a atuação sucessiva de um ou mais órgãos jurisdicionais num mesmo processo. Por esse critério, regulam-se as situações nas quais um juízo é competente para a prática de certos atos processuais, e, a partir de determinado momento, no mesmo processo, há outro órgão jurisdicional competente para praticar os outros atos subsequentes. A competência funcional se subdivide em competência funcional horizontal ou competência em razão das fases do processo, e competência funcional vertical, também chamada de competência hierárquica ou recursal.
A competência funcional horizontal rege a atuação sucessiva de dois ou mais órgãos jurisdicionais no mesmo processo e grau de jurisdição. Ocorre quando, entre a petição inicial e o esgotamento da função jurisdicional pleiteada, atuam sucessivamente órgãos jurisdicionais diversos. As leis de organização judiciária podem estabelecer essa divisão de competências em quaisquer procedimentos, mas ela está expressamente prevista na Lei n. 9.099/95 (arts. 24, 37 e 40), sobre os juizados especiais estaduais, nos dispositivos que dividem no mesmo processo as tarefas do juiz togado e do juiz leigo. Quanto ao conciliador, parece-me que constitui um mero sujeito auxiliar, sem poder decisório e sem poder de concluir a própria conciliação, que compete ao juiz togado (art. 22, parágrafo único). Por outro lado, nos tribunais superiores, em alguns procedimentos, existe a atuação sucessiva de órgãos diversos do mesmo tribunal. É o que ocorre, por exemplo, no incidente de uniformização de jurisprudência do Código de 1973 (arts. 476, 477 e 479), que não mais existe no Código de 2015, na assunção de competência (CPC de 1973, art. 555, § 1º; CPC de 2015, art. 947), e no incidente de arguição de inconstitucionalidade (CPC de 1973, arts. 480 a 482; CPC de 2015, 948 a 950). Nesses incidentes, o processo que está em uma câmara ou em uma turma, que são órgãos fracionários dos tribunais, é suspenso e remetido ao plenário, ao órgão especial ou a outro órgão colegiado do tribunal de composição mais qualificada, que julgará a divergência jurisprudencial, a relevante questão de direito ou a questão constitucional, conforme o caso. Após o julgamento do incidente, na uniformização de jurisprudência e na arguição de inconstitucionalidade, o processo é devolvido à câmara ou turma originária para prosseguir no julgamento. Já na assunção de competência o órgão mais qualificado, reconhecendo o interesse público, julgará desde logo a causa. A atuação sucessiva de dois ou mais órgãos jurisdicionais dentro do mesmo processo, na primeira instância, ocorre também no processo penal, mais especificamente no processo dos crimes dolosos contra a vida, da competência do tribunal do júri. Nesses processos, o juiz togado processa o feito até a chamada sentença de pronúncia; mas o julgamento, quanto à condenação ou absolvição do réu, será
realizado pelo júri, que é composto de juízes leigos, os jurados. Proferido o veredicto por estes, cabe ao juiz singular proferir a sentença, aplicando as conclusões dos jurados e fixando a pena, em caso de condenação. Nesse caso, ocorre claramente uma atuação sucessiva na primeira instância de julgamento, o que é peculiar ao processo penal de julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Essa fragmentação do procedimento não está vedada no processo civil, dependendo das leis de organização judiciária. A competência funcional hierárquica, recursal ou vertical é a que estabelece a atuação sucessiva de vários órgãos jurisdicionais em razão da interposição de recursos contra as decisões de um para o outro. Assim, os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais julgam recursos contra as decisões dos órgãos de primeiro grau das justiças dos Estados e da Justiça Federal, e o Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais contra as decisões finais dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais. Em certos recursos contra decisões de tribunais, como os embargos infringentes previstos nos arts. 530 a 534 do CPC de 1973 e não mais previstos no Código de 2015, o órgão competente hierarquicamente superior pode ser um órgão de composição mais qualificada do mesmo tribunal, como ocorre no Estado do Rio de Janeiro, em que esses embargos, de acordo com o Regimento Interno do Tribunal de Justiça, são julgados por câmara cível diversa, com a participação de um número maior de desembargadores (cinco) do que o número que compôs a câmara embargada (três). Outras vezes o órgão competente para o julgamento do recurso é o mesmo que proferiu a decisão recorrida, como ocorre nos embargos de declaração, que são julgados pelo mesmo juiz que proferiu a sentença ou pelo mesmo órgão do tribunal que proferiu o acórdão. Isso também ocorre nos embargos infringentes contra acórdão do Plenário ou do órgão especial de qualquer tribunal. O Código de 2015, no artigo 942, substituiu esses embargos infringentes pela ampliação da composição do órgão julgador para prosseguir no julgamento da apelação, e em alguns casos de ação rescisória e de agravo de instrumento, quando a decisão com a composição originária não for unânime, de acordo com o regimento interno do tribunal. O que é preciso alertar quanto à expressão competência funcional é que a lei, algumas vezes, a utiliza não para disciplinar a atuação sucessiva de dois ou mais órgãos jurisdicionais no mesmo processo, mas para estabelecer regras de competência territorial absoluta.
Isso porque a competência territorial, normalmente, é relativa, modificável, pois que regida por regras dispositivas. Ocorre que, algumas vezes, nas hipóteses em que a lei visa a conferir a essas regras de competência territorial o caráter de normas imperativas, de competência absoluta, e, portanto, passíveis de gerar nulidade absoluta quando da sua não observância, ela se refere a tais regras como de competência funcional, o que, em realidade, significa que se trata de regras imperativas de competência territorial. Um exemplo dessa utilização imprecisa pode ser encontrado na Lei n. 7.347/85, que, ao disciplinar o foro competente para o julgamento das ações civis públicas, estabeleceu, no seu artigo 2º, que as ações de que trata a referida Lei deverão ser propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para o julgamento da causa. Nesse dispositivo legal, a expressão competência funcional não está sendo usada no seu sentido técnico, de atuação sucessiva de dois ou mais órgãos num mesmo processo, mas no sentido de que essa competência territorial é inderrogável, imperativa, absoluta. Normalmente, as regras de competência estabelecidas pelo critério objetivo e pelo critério funcional são imperativas, enquanto as estabelecidas pelo critério territorial são dispositivas, como veremos mais adiante. 6.3.2.3. Critério territorial
O último critério determinativo da competência é o critério territorial, segundo o qual a competência é distribuída levando-se em consideração as diversas áreas geográficas em que se divide o território nacional para fins de administração da justiça. Esse critério está intimamente ligado ao princípio da aderência da jurisdição ao território, que estabelece que todo órgão jurisdicional exerce suas funções sobre determinada base geográfica, devendo, em princípio, julgar as causas que estejam vinculadas objetivamente aos seus limites territoriais. As regras estabelecidas segundo o critério territorial visam a facilitar o acesso à justiça de uma das partes, em geral aquela que a lei reputa estar em posição de desvantagem em relação à outra no exercício do direito de ação ou no exercício da ampla defesa. A regra geral de competência territorial (CPC de 1973, art. 94, caput; CPC de 2015, art. 46, caput) busca facilitar o exercício do direito de defesa pelo réu, que será demandado, salvo em hipóteses excepcionais, no foro do seu domicílio.
Isso porque é evidente que o réu, pelo menos inicialmente, está em condições menos favoráveis do que o autor de exercer a sua defesa. Geralmente, o autor, salvo em situações de urgência premente, pode preparar-se melhor para a luta judiciária, elaborando cuidadosamente a petição inicial, buscando e anexando as provas que julgar mais importantes, estudando estratégias e alternativas possíveis, ao passo que o réu dispõe de menos tempo para colher provas, impugnar de forma precisa e específica os fatos contra ele aduzidos e propor argumentos, sob pena de presunção de veracidade daqueles (CPC de 1973, art. 302; CPC de 2015, art. 341) e de não poder posteriormente aduzir esses últimos (CPC de 1973, art. 303; CPC de 2015, art. 342). Portanto, vê-se que as regras de competência, fixadas segundo o critério territorial, que analisaremos mais adiante, buscam equilibrar o acesso à justiça quando uma das partes se encontra em posição de inferioridade, de desvantagem em relação a outra. Nesse sentido, merece destaque, pelo seu caráter protetivo, a regra de competência territorial que confere ao alimentando a possibilidade de propor a ação de alimentos no foro do seu domicílio (CPC de 1973, art. 100, inc. II; CPC de 2015, art. 53, inc. II).
6.4. COMPETÊNCIA ABSOLUTA E A REASSUNÇÃO DO PROCESSO As regras de competência dos diversos critérios podem ser regras de competência absoluta ou relativa. As primeiras são regras imperativas, enquanto as segundas são regras dispositivas. As regras de competência absoluta são inderrogáveis pela vontade das partes. O artigo 113, § 2º, do Código de 1973 estabelece que a sua inobservância acarretará a nulidade absoluta dos atos decisórios proferidos no processo. Menos radical, o Código de 2015 dispõe que, verificando a ocorrência de incompetência absoluta, o juiz declinará da sua competência para o juiz competente, mas que, se a final for proferida decisão de mérito por juiz absolutamente incompetente, ficará ela sujeita, no prazo de dois anos a partir do seu trânsito em julgado, à anulação por ação rescisória (arts. 966, inc. II, e 975). Essa espécie de incompetência tem de ser reconhecida pelo juiz por sua própria iniciativa, independentemente de provocação pelas partes, a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição (CPC de 1973, art. 113, caput; CPC de 2015, art. 64, § 1º).
Na vigência do Código de 1973, se o juiz, ao receber o processo para despachar a petição inicial, reconhecer que é absolutamente incompetente para o julgamento da causa, deverá declinar da sua competência para o juiz competente. Na vigência do Código de 2015, também deverá fazê-lo, depois de ouvir o autor no prazo de cinco dias ou no que fixar no seu despacho (art. 218, § 3º). Se determinar que o autor corrija alguma outra irregularidade da petição inicial, o prazo será de quinze dias, inclusive para manifestar-se sobre a incompetência (art. 321). Parece-me correto o novo tratamento dado à matéria pelo Código de 2015. Cumpre destacar que a incompetência absoluta não implica inexistência das decisões do juízo incompetente, nem deve necessariamente decorrer a sua nulidade. Em virtude do princípio da unidade da jurisdição, a decisão proferida pelo juiz absolutamente incompetente existe, pois qualquer juiz, ainda que incompetente, ao proferir uma decisão, o faz emitindo uma manifestação de vontade em nome do Estado. Se do juízo absolutamente incompetente resultar uma decisão de mérito que venha a transitar em julgado, poderá ser anulada em dois anos por ação rescisória (CPC de 1973, art. 485, inc. II; CPC de 2015, art. 966, inc. II), sem prejuízo da validade das decisões sobre matéria processual porventura por ele proferidas. O que será absolutamente nulo, em decorrência da incompetência absoluta, é o julgamento final da causa, não as decisões interlocutórias processuais ou de mérito que tiverem sido proferidas no juízo incompetente, que conservarão a sua eficácia, podendo ser revistas pelo juízo competente, se o processo chegar às suas mãos antes da decisão final (art. 64, § 3º). Foi o que concluí em estudo recente2, louvado em doutrina acolhida em decisões da Corte Constitucional e da Corte de Cassação italiana, no qual procurei demonstrar que a competência absoluta normalmente é pressuposto de validade do julgamento do direito material das partes, e, assim, a declaração de incompetência absoluta por determinado juízo deve acarretar apenas a nulidade dos atos decisórios relativos à relação jurídica de direito material. Portanto, apesar do teor do § 2º do artigo 113 do Código de 1973, as decisões sobre questões processuais, as liminares e as de caráter instrutório, deveriam, a princípio, ser respeitadas no novo juízo. Sustentei, entretanto, que essa convalidação das decisões processuais somente
deveria ocorrer se o acesso ao juízo incompetente tivesse decorrido de erro escusável, o que comumente acontece quando sobrevém uma nova regra de competência e surgem dúvidas sobre a sua aplicação. A noção de erro escusável, conhecida entre nós através de outros institutos, como o da fungibilidade dos recursos, está ligada, de um lado, à dúvida objetiva a respeito do conteúdo da norma aplicável, no nosso caso, a respeito do juízo competente; e, de outro, à preservação dos efeitos da escolha equivocada do jurisdicionado, do qual não seria lícito exigir que tivesse consciência do erro da escolha. O erro escusável mitiga a responsabilidade outrora considerada objetiva do defeito de competência, que fazia recair sobre o autor todas as consequências negativas daí decorrentes, a começar pela própria nulidade dos atos praticados3. Em contraposição, a má-fé da parte beneficiada por decisões processuais do juízo incompetente, ou do próprio juiz que, sabedor da sua incompetência, adotou decisões dessa natureza, usurpando conscientemente a competência de outro órgão jurisdicional, não podem convalidar tais decisões, salvo se delas não tiver decorrido qualquer prejuízo para as partes. Em síntese, a continuidade no juízo competente do processo iniciado perante o juízo incompetente, em razão do princípio da unidade da jurisdição e por imposição das garantias constitucionais da tutela jurisdicional efetiva e da celeridade (Constituição, art. 5º, incs. XXXV e LXXVIII), deve ocorrer sem extinção do processo, através da sua reassunção, da retomada do seu curso perante o juízo competente, preservando-se, em princípio, todos os efeitos processuais e substanciais dos atos já praticados no juízo ou no procedimento originários, salvo os diretamente contaminados pela incompetência. A nulidade dos atos decisórios, a que se refere o § 2º do artigo 113 do Código de 1973, deve ficar restrita apenas aos atos decisórios finais para os quais o juízo de origem era incompetente. Se a incompetência se restringia apenas à apreciação da matéria objeto da relação jurídica substancial, somente os atos decisórios definitivos que versaram sobre essa matéria é que serão nulos e deverão ser renovados no juízo competente. Em princípio, todas as decisões sobre questões processuais ou sobre matéria probatória, assim como as decisões provisórias sobre o direito material, serão preservadas, salvo se a incompetência atingir o próprio procedimento, se os atos já praticados não puderem ser aproveitados no procedimento adequado, por serem com ele incompatíveis, ou se o autor tiver
proposto de má-fé a demanda no juízo incompetente, ou este, ciente do vício, ainda assim tiver exercido jurisdição. No despacho em que determinar a continuidade do processo, o juiz declarará os atos viciados pela inicial incompetência. O Código de 2015 consagrou a regra da preservação da validade dos atos praticados perante o juízo absolutamente incompetente, submetendo as decisões por ele proferidas a eventual revisão pelo juízo competente ao qual for a causa redistribuída (art. 64, § 3º). Não cogitou dos fundamentos para essa revisão, por exemplo, o erro escusável, preferindo deixá-los em aberto. Assim, sou de opinião que o novo juízo, ao receber o processo para dar-lhe continuidade, poderá rever atos decisórios anteriores ou determinar a renovação de outros atos, invocando motivo que objetivamente justifique essa reapreciação, preservados os efeitos dos atos praticados perante o juízo incompetente, salvo se ocorrer alguma das hipóteses anteriormente mencionadas que impeçam o seu aproveitamento. A preservação dos efeitos processuais e substanciais do processo primitivo implica a projeção ao processo subsequente dos efeitos de eventuais preclusões já consumadas e dos direitos subjetivos processuais anteriormente adquiridos, bem como resguarda na fase sucessiva as faculdades decorrentes de atos ou fases do processo primitivo, ainda que não previstas no procedimento adequado, que deverá respeitá-las. Mas essa proteção do direito adquirido ou da confiança legítima é decorrente da presunção de boa-fé de que o erro de competência ou de procedimento seja escusável. Embora se aproveitem os atos e decisões intermediários, a sentença final de mérito proferida por juízo absolutamente incompetente é totalmente nula. Se contra ela for interposto recurso, o tribunal, ainda que não seja igualmente incompetente, deverá anulá-la e encaminhar o processo ao juízo competente para que outra sentença seja proferida. Se aquela sentença transitar em julgado, continuará nula, podendo ser essa nulidade declarada ou reconhecida através da propositura, no prazo legal de dois anos, de uma ação rescisória. No processo penal, se a sentença proferida por um juiz absolutamente incompetente for uma sentença absolutória, como regra ela prevalecerá e a incompetência estará sanada pelo trânsito em julgado, pois, em princípio, somente existe revisão criminal – ação contra a coisa julgada criminal – em
favor do réu, da defesa, e não em favor da acusação (Código de Processo Penal, art. 621). O juiz não deixa de ter o dever de reconhecê-la de ofício, mas o trânsito em julgado da sentença absolutória impossibilita a sua alegação posterior pela acusação. Por outro lado, a competência relativa é objeto de normas dispositivas. Por esse motivo, se a causa for proposta perante um juiz relativamente incompetente, essa incompetência dará causa a uma nulidade relativa, sanável, o que significa que ela poderá ser convalidada se a parte a quem prejudica não a arguir na primeira oportunidade que tiver para falar nos autos. No Código de 1973, a parte interessada deve argui-la através de um tipo de petição própria, que é a exceção de incompetência. No Código de 2015 desaparece essa petição específica, devendo o réu arguir a incompetência relativa como preliminar da contestação (art. 64). A incompetência relativa, em regra, não pode ser decretada de ofício, mas deve ser alegada pelo próprio interessado na primeira oportunidade. Quando o interessado não o fizer, prorrogar-se-á a competência do juízo perante o qual a ação foi proposta (CPC de 1973, art. 114; CPC de 2015, art. 65). A exceção de incompetência é uma petição que está regulada nos artigos 304 a 311 do Código de 1973, através da qual o interessado deve arguir a incompetência relativa, se pretender deslocar a causa para o juízo que considerar competente. Caso se omita, a nulidade estará definitivamente convalidada, perante o juízo junto ao qual foi a demanda proposta. Exceção a essa regra foi introduzida nos artigos 112 e 114 do Código de 1973 pela Lei n. 11.280/2006, incorporada ao Código de 2015 nos arts. 64 e 65, que comentaremos adiante (v. item 6.5.1.1). Essa é a principal diferença de regimes entre a incompetência absoluta e a incompetência relativa. Resta saber quais são os casos de incompetência relativa e quais os de incompetência absoluta. No processo penal, não há, nesse sentido, incompetência relativa, porque mesmo a competência territorial é sempre de observância obrigatória: o crime, em regra, tem de ser processado no lugar em que se consumou a infração (art. 70 do CPP). Como já foi observado, normalmente no processo civil as regras de competência
fixadas pelo critério objetivo e pelo critério funcional são absolutas, enquanto aquelas estabelecidas segundo o critério territorial são relativas. Se o Código de Organização Judiciária de determinado Estado, por exemplo, estabelece que as causas contra a Fazenda Pública estadual têm de ser propostas, na comarca da capital, em uma vara especializada e o autor dirige a petição inicial ao juiz de uma vara cível, esse declinará de ofício da competência para o juízo legalmente competente. As regras de competência fixadas segundo o valor da causa, por estarem inseridas no critério objetivo, em geral são absolutas. Entretanto, por exceção, a competência em razão do valor para o mais é absoluta e para o menos é relativa. Isso significa que o juiz, cuja competência se restrinja ao julgamento das causas de menor valor, é absolutamente incompetente para conhecer das causas cujo valor exceda o limite estabelecido para a sua competência. Por outro lado, aquele cuja competência seja a de julgar as causas de maior valor será apenas relativamente incompetente para o julgamento das causas cujo valor esteja abaixo do limite da sua competência. Essa regra, conforme já foi objeto de explicação anterior, não se aplica aos Juizados Especiais da Fazenda Pública, federais ou estaduais (art. 3º, § 3º, da Lei n. 10.259/2001; art. 2º, § 4º, da Lei n. 12.153/2009). Os exemplos dados com base nos juizados especiais não são inteiramente adequados, pois a sua competência não é exclusivamente ditada pelo valor da causa, mas também de acordo com o próprio objeto da causa, que deverá ser de menor complexidade. Essa especificidade nas causas em razão do valor se deve a um princípio geral de direito, fundado na lógica de que aquele que pode o mais pode o menos. É uma exceção às regras impositivas fixadas pelo critério objetivo, pois, nesse caso, a incompetência do juiz de alçada superior para julgar causas de valor inferior é meramente relativa. A essas situações, que em muitas organizações judiciárias são meramente hipotéticas por não possuírem juízos com a competência fixada em razão do valor pecuniário da causa, se referem os artigos 111 do Código de 1973 e 63 do Código de 2105.
Também existem exceções à regra de que a competência territorial é relativa, sendo que algumas delas podem ser encontradas na parte final do artigo 95 do Código de 1973 e nos §§ 1º e 2º do artigo 47 do Código de 2015. Segundo esses dispositivos, as ações reais imobiliárias, que são aquelas fundadas em direito real sobre bens imóveis, devem ser propostas no foro da situação da coisa, ou seja, perante o juízo cuja competência territorial compreenda a área geográfica em que está localizado o imóvel, permitindo que o autor, nessas ações, escolha o foro do domicílio do réu, se este à escolha não se opuser, ou o foro de eleição, salvo se o litígio recair sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de terras e nunciação de obra nova. Portanto, em regra, o autor pode escolher três foros distintos para propor a ação real imobiliária: o foro da situação da coisa, o foro do domicílio do réu e ainda, se estiver pactuado, o foro de eleição. Entretanto, se a ação estiver fundada num dos direitos reais ou se recair sobre uma das espécies previstas na parte final do artigo 95 do Código de 1973 ou nos §§ 1º e 2º do artigo 47 do Código de 2015, como é o caso, por exemplo, da ação possessória, da ação reivindicatória, da ação de usucapião, a regra de competência territorial da situação da coisa será absoluta, imperativa. Dessa forma, se o juiz de outra comarca recebe uma dessas ações para despachar ou decidir, ele deve declarar sua incompetência e remeter os autos ao juiz da área geográfica onde está situado o imóvel. No Estado do Rio de Janeiro, há também uma discussão acerca da competência das chamadas varas regionais, órgãos jurisdicionais descentralizados sediados em bairros distantes do centro da Cidade do Rio de Janeiro, como Méier, Jacarepaguá, Ilha do Governador, Santa Cruz, Campo Grande, Barra da Tijuca, em que se fraciona a comarca da capital. O Tribunal de Justiça desse Estado tem entendido que a competência desses órgãos é absoluta. Ocorre que, em função da distância e de outros fatores, há certa resistência das partes e dos advogados em atuar nas varas regionais, sendo que muitos preferem o foro central, mais próximo do seu lugar de trabalho fixo e dos escritórios dos seus advogados. Para evitar essa situação, foi acrescentado pela Lei n. 3.432/2000 ao artigo 94 do Código de Organização Judiciária do Estado do Rio de Janeiro o seu § 7º,
segundo o qual “a competência das Varas Regionais, fixada pelo critério funcional-territorial, é de natureza absoluta, sendo a incompetência declarada de ofício ou a requerimento dos interessados, independentemente de exceção”. A meu ver, esse entendimento está equivocado, pois viola a Constituição Federal e as regras do Código de Processo Civil que estabelecem como relativa a competência territorial. Os critérios determinativos da competência e a eficácia das normas de fixação da competência, que os aplicam, são matéria de direito processual, da competência legislativa privativa da União, de acordo com o artigo 22, inciso I, da Constituição Federal. Aos Estados cabe, apenas, instituir os órgãos jurisdicionais das respectivas justiças e delimitar a extensão territorial a que estão vinculados esses órgãos. É uma ilegalidade que a justiça do Rio de Janeiro comete em benefício da sua própria comodidade, esquecendo-se de que as regras de competência territorial não são estabelecidas apenas para racionalizar a administração do Poder Judiciário, mas primordialmente para facilitar o acesso à justiça. Analisadas essas exceções, cumpre proceder ao exame das principais regras previstas no Código de Processo Civil relativas à competência territorial, também chamada de competência de foro. Foro, que é o nome normalmente atribuído ao edifício onde têm sede os órgãos jurisdicionais, é palavra aqui empregada no sentido de juízo territorialmente competente.
6.5. REGRAS RELATIVAS À COMPETÊNCIA TERRITORIAL A primeira regra geral, prevista no Código de Processo Civil (CPC de 1973, art. 94; CPC de 2015, art. 46), é a de que qualquer causa cível deve ser proposta no foro do domicílio do réu, ou seja, no foro do domicílio daquele em face de quem o autor formula o pedido. Essa é a regra geral da competência territorial, quando o réu é uma pessoa física. Como já foi objeto de abordagem anterior, essa é uma regra universalmente aceita e estabelecida em benefício da plenitude de defesa do réu. Entretanto, o autor pode ingressar com uma ação no foro de seu próprio domicílio, ou onde lhe for mais cômodo, e esperar que o réu ofereça, no prazo e na forma legal, a exceção de incompetência (CPC de 1973, art. 297) ou a arguição de incompetência relativa como preliminar da contestação (CPC de 2015, arts. 64 e 337, inc. II). Se o réu não o fizer, prorroga-se a competência do juiz perante o
qual a ação foi proposta (CPC de 1973, art. 114; CPC de 2015, art. 65). Nesse sentido, a Súmula n. 33 do Superior Tribunal de Justiça enuncia que a incompetência relativa não pode ser declarada de ofício. Entretanto, inovação trazida pela Lei n. 11.280/2006 acrescentou um parágrafo único ao artigo 112 do Código de 1973, permitindo ao juiz, reconhecida a nulidade da cláusula de eleição de foro em contrato de adesão, declará-la de ofício, declinando da competência para o juízo do domicílio do réu. Com outra redação, o Código de 2015 igualmente acolheu essa exceção, da qual trataremos adiante (item 6.5.1.1.). No que se refere ao conceito de domicílio da pessoa física, vigora no direito brasileiro o princípio da pluralidade de domicílios. Acerca dessa matéria, o Código Civil de 2002 trouxe disposição inovadora em relação ao diploma anterior, permitindo que o domicílio seja considerado tanto o lugar da residência com ânimo definitivo como o lugar de trabalho, quanto às relações concernentes à profissão (art. 72). O réu que possui mais de um domicílio pode ser demandado no foro de qualquer deles (CPC de 1973, art. 94, § 1º; CPC de 2015, art. 46, § 1º). Em relação à pessoa jurídica, a regra geral de competência de foro está regulada no artigo 100, inciso IV, alínea a, do Código de 1973 e no artigo 53, inciso III, alínea a, do Código de 2015. Segundo esses dispositivos, a pessoa jurídica tem de ser demandada no local da sua sede, que é a localidade onde está situada sua administração central, por ela escolhida e determinada no seu ato constitutivo. A empresa multinacional, pessoa jurídica estrangeira, pode adotar diferentes formas de organização social. Pode ocorrer que a empresa estrangeira esteja autorizada a funcionar no Brasil por meio de um decreto do Presidente da República, sem a necessidade de criação de uma nova pessoa jurídica constituída segundo as leis brasileiras. Nesse caso, aplicar-se-á uma regra especial, que determina como foro competente o do local onde se ache a sua a agência ou sucursal (CPC de 1973, art. 100, inc. IV, alínea b; CPC de 2015, art. 53, inc. III, alínea b). A multinacional também pode optar por constituir no Brasil uma nova empresa, com nova personalidade jurídica, submetendo-se às normas previstas no nosso ordenamento jurídico. Nessa hipótese, aplica-se a regra geral e ela será
demandada no local em que estiver a sua sede, determinada no seu ato constitutivo. Essa nova empresa será uma pessoa jurídica nacional. Tratando-se de ação proposta em face de pessoa jurídica para lhe exigir o cumprimento de obrigação contratual, o foro competente é o do lugar onde a obrigação deva ser satisfeita, não importando onde fique a sua sede, segundo a regra especial prevista no artigo 100, inciso IV, alínea d, do Código de 1973 e no artigo 53, inciso III, alínea c, do Código de 2015. Contudo, as regras gerais que se aplicam tanto às pessoas jurídicas como às pessoas físicas comportam algumas regras subsidiárias. Isso porque, muitas vezes, não se conhece ou não existe no Brasil a sede da pessoa jurídica, o que pode ocorrer também em relação ao domicílio do réu. Essas regras são chamadas pela doutrina de regras de competência subsidiárias do foro geral ou foros subsidiários do geral. Em relação à pessoa física, essas regras subsidiárias estão previstas nos §§ 2º a 4º do artigo 94 do Código de 1973, a que correspondem no Código de 2015 os §§ 2º a 4º do artigo 46. Assim, se é incerto ou desconhecido o domicílio do réu, o autor poderá demandá-lo onde o encontrar ou no domicílio dele próprio. Se o réu não tiver nem domicílio nem residência no Brasil, a ação será proposta no domicílio do autor. Caso esse também resida fora do país, a ação poderá ser ajuizada em qualquer foro. Havendo dois ou mais réus, a ação pode ser proposta no domicílio de qualquer um deles, à escolha do autor. Esta última regra, entretanto, tem sido utilizada de forma abusiva, porque, às vezes, o autor quer escolher um foro que ele considera mais vantajoso, e, então, artificialmente, simula uma lide com outro sujeito que tenha domicílio nesse foro onde ele quer intentar a ação, fazendo com que o processo atinja também esse terceiro e que o verdadeiro réu tenha de se defender no domicílio deste. Até o momento, as notícias de que disponho são no sentido de que esse é um tipo de abuso que não tem sido coibido adequadamente pela justiça brasileira. No tocante às pessoas jurídicas, em princípio, a sua sede não deve ser desconhecida, uma vez que ela deve constar expressamente do seu ato constitutivo, que deverá estar regularmente registrado. Todavia, em alguns casos, como, por exemplo, o das empresas estrangeiras com sede no exterior ou o das chamadas sociedades em comum, que são aquelas sociedades de fato, cujos atos
constitutivos não estão inscritos (art. 986 do Código Civil), não se sabe ao certo qual a sua sede ou em que local está situada a sua administração central. No caso das primeiras, aplica-se a regra (CPC de 1973, art. 100, inc. IV, alínea b; CPC de 2015, art. 53, inc. III, alínea b), segundo a qual serão demandadas no local em que se ache sua agência ou sucursal. Quanto às segundas, serão representadas em juízo pela pessoa a quem couber a administração de seus bens (CPC de 1973, art. 12, inc. VII; CPC de 2015, art. 75, inc. VIII) e demandadas no foro da localidade em que exerçam a sua atividade principal (CPC de 1973, art. 100, inc. IV, alínea c; CPC de 2015, art. 53, inc. III, alínea c). 6.5.1. Regras especiais de competência territorial Conforme estudado no item anterior, a regra geral de competência territorial estabelece que a ação deve ser proposta no foro do domicílio do réu, quando esse for pessoa física. Por outro lado, caso o réu seja uma pessoa jurídica, em regra, competente será o foro em que estiver situada a sua sede, nos termos do artigo 100, inciso IV, alínea a, do Código de 1973, e do artigo 53, inciso III, alínea a, do Código de 2015. Como veremos, há também inúmeras regras subsidiárias dessas regras gerais, aplicáveis a alguns casos específicos. 6.5.1.1. Foro de eleição
A primeira regra especial é a do chamado foro de eleição. O artigo 111 do Código de 1973 estabelece que as partes “podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde serão propostas as ações oriundas de direitos e obrigações”. Tem o mesmo teor o caput do artigo 63 do Código de 2015. De acordo com esse artigo, percebe-se que a competência territorial é, em regra, relativa, e, portanto, derrogável pela vontade das partes. O mesmo ocorre com a competência em razão do valor, que é relativa para o juízo que a lei declara competente para conhecer das causas de maior valor. Por não serem regidas por regras imperativas, as competências territorial e em razão do valor (para o menos) permitem que as partes estabeleçam, em sede
contratual, o foro de eleição. Assim, serão resolvidos no juízo da comarca escolhida pelas partes quaisquer litígios oriundos ou decorrentes do contrato por elas firmado. O § 1º do artigo 111 do Código de 1973 e o § 1º do artigo 63 do Código de 2015 dispõem que o foro de eleição somente produzirá efeitos se constar de contrato escrito e fizer alusão expressa a determinado negócio jurídico. Então, o acordo entre as partes para estabelecer o foro de eleição poderá estar no bojo de um contrato ou num contrato separado, autônomo, devendo, neste caso, fazer referência a um negócio jurídico determinado. O foro de eleição prevalece sobre quase todos os foros especiais, inclusive sobre as regras gerais de competência estabelecidas nos artigos 94, e 100, inciso IV, alínea a, do Código de 1973 e nos correspondentes artigos 46 e 53, inciso III, alínea a, do Código de 2015. Para que seja válido, é necessário que as partes do contrato estejam em posição de equilíbrio, o que significa que somente aqueles que podem livremente ajustar todas as cláusulas contratuais poderão também avençar a cláusula de eleição de foro. Nesse sentido, a doutrina e a jurisprudência vinham rechaçando as cláusulas de eleição de foro nos contratos de adesão, como, por exemplo, os contratos de seguro, os contratos referentes ao Sistema Financeiro de Habitação, o contrato de leasing, e em todos os outros em que um dos contratantes se encontra em posição de vantagem em relação ao outro, a esse impondo todas as cláusulas contratuais, às quais é ele forçado a aderir por inteiro, sob pena de não se concretizar a contratação. Nos contratos de adesão, que estão definidos no Código de Defesa do Consumidor (art. 54, caput, da Lei n. 8.078/90), as cláusulas não são livremente ajustadas e, portanto, não é lícita a estipulação da cláusula de eleição do foro em prejuízo do aderente. Consagrando o entendimento doutrinário e jurisprudencial acima esposado, a Lei n. 11.280/2006 acrescentou um parágrafo único ao artigo 112 e deu nova redação ao artigo 114 do Código de 1973, dispondo o primeiro que “a nulidade da cláusula de eleição de foro, em contrato de adesão, pode ser declarada de ofício pelo juiz, que declinará da competência para o juízo de domicílio do réu”. Tratase de uma exceção à regra de que a incompetência relativa não pode ser
declarada de ofício, o que excepciona, inclusive, os termos da Súmula n. 33 do Superior Tribunal de Justiça. Ocorre que, conforme apontei em recente estudo sobre os atos de disposição no processo4, essas novas regras não são de fácil integração com as anteriormente vigentes em matéria de incompetência relativa, porque, em verdade, criaram hipótese de declaração de ofício de uma nulidade relativa, que não se convalida se não for arguida nem declarada. A lei não estabelece em que momento o juiz pode declarar a nulidade da cláusula de eleição de foro, nem em que momento se considerará prorrogada a sua competência por não ter sido a incompetência arguida ou declarada. Parece-me que a nulidade ou a excessiva onerosidade da cláusula de eleição de foro constituem matéria que pode exigir dilação probatória, ainda que sumária. Assim, se a parte não arguiu a nulidade do foro de eleição através da exceção de incompetência e o juiz não declinou dessa competência até o despacho saneador, pois é até esse momento que ele deve examinar as questões processuais pendentes (art. 331, § 2º, do CPC de 1973), ficará prorrogada a competência do juízo perante o qual foi a ação inicialmente proposta. Ressalte-se a imprecisão do legislador da Lei n. 11.280/1986 ao pretender que, na recusa do foro de eleição, o juiz decline de sua competência para o juízo do domicílio do réu. A meu juízo, essa regra deve ser interpretada no sentido de que o juiz, nesse caso, decline da sua competência para o juízo que for legalmente competente, podendo ser o do domicílio do réu ou qualquer outro, se ocorrer alguma das hipóteses previstas nos artigos 95 e seguintes do Código de 1973. O Código de 2015, atendendo às críticas feitas à Lei n. 11.280/1986, manteve o instituto, aperfeiçoando a sua formulação. No § 3º do artigo 63, prescreveu que, “antes da citação, a cláusula de eleição de foro, se abusiva, pode ser reputada ineficaz de ofício pelo juiz que determinará a remessa dos autos ao juízo do foro do domicílio do réu”. E no parágrafo seguinte deixou claro que, citado o réu, a este incumbe “alegar a abusividade da cláusula de eleição de foro na contestação, sob pena de preclusão”. Daí resulta que o poder do juiz de declinar de ofício da sua competência em razão da nulidade do foro de eleição se esgota no momento da citação. A partir
daí, a matéria retorna à livre disposição da parte, no caso o réu, que deverá alegá-la na arguição de incompetência relativa como preliminar da contestação (art. 338, inc. II), prorrogando-se a competência do juízo perante o qual a ação foi proposta se não o fizer (art. 65). Como até a citação os únicos elementos de que dispõe o juiz para apreciar a abusividade da cláusula de eleição de foro são os fatos e as provas unilateralmente apresentados pelo autor, fica claro que o juiz somente deverá fazer uso desse poder se evidente essa abusividade. Na dúvida, deverá determinar a citação do réu, ficando a cargo deste a iniciativa da sua alegação e da proposição de provas para demonstrá-la. Observe-se que o novo diploma não restringe a hipótese aos contratos de adesão, porque a abusividade da eleição de foro pode existir em qualquer contrato, no qual a cláusula torne excessivamente onerosa a defesa do réu, comprometendo a paridade de armas, que integra a garantia constitucional do contraditório. Surpreendentemente, o parágrafo único do artigo 65 confere ao Ministério Público nas causas em que atuar a prerrogativa de arguir a incompetência relativa. Nas causas em que atua como parte, pode efetuar essa arguição nessa qualidade. Naquelas em que é fiscal da lei, a meu ver, sua iniciativa em matéria de proposição de questões de direito, sejam elas de natureza processual ou de direito material, está circunscrita às matérias que o juiz pode conhecer de ofício, não podendo abranger outras quaisquer que se encontrem na esfera de inteira disponibilidade das partes. Portanto, a incompetência relativa somente pode ser arguida pelo Ministério Público até a citação do réu, nos casos de abusividade de cláusula de eleição de foro, porque o § 4º do artigo 63 estabelece categoricamente que, a partir desse momento, se o réu não arguir essa matéria na contestação, ocorrerá a preclusão. 6.5.1.2. Foro de situação do imóvel
Outra regra especial de competência de foro se aplica às ações fundadas em direitos reais sobre bens imóveis (CPC de 1973, art. 95; CPC de 2015, art. 47). Direitos reais são aqueles que se exercem diretamente sobre determinada coisa, não pressupondo necessariamente a intervenção de outro sujeito de direito5. Esses direitos estão enumerados no Livro III do Código Civil de 2002 e, de acordo com o seu artigo 1.225, são a propriedade, a superfície, as servidões, o
usufruto, o uso, a habitação, o direito do promitente comprador, o penhor, a hipoteca e a anticrese. A regra geral de competência de foro para essas ações é a do local de situação da coisa, ou seja, o foro do lugar onde estiver situado o imóvel, podendo também ser intentadas no foro do domicílio do réu ou no foro de eleição. Ocorre que, de acordo com a parte final do artigo 95 do Código de 1973 e com os §§ 1º e 2º do artigo 47 do Código de 2015, se o litígio relativo a imóvel tiver por fundamento direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de terras e nunciação de obra nova, o foro competente será o da situação do imóvel, obrigatoriamente. Trata-se de regra de competência territorial absoluta e, portanto, sua inobservância, nos casos citados anteriormente, poderá ser reconhecida de ofício pelo juiz, em qualquer tempo e grau de jurisdição, nos termos do artigo 113 do Código de 1973 e do § 1º do artigo 64 do Código de 2015. É relevante observar que o foro da situação do imóvel deve prevalecer inclusive nos casos em que o réu for o Estado-membro. A oponibilidade a terceiros dos direitos reais sobre imóveis exige que as causas que versam sobre esses direitos sejam decididas na localidade que mais favoreça o acesso à prova direta da sua existência ou da sua inexistência, que é aquela em que o imóvel está situado. Destaque-se que o legislador incluiu nesse rol as ações sobre a posse, cuja natureza de direito real é matéria controvertida, não a tendo o Código Civil de 2002 incluído nessa categoria. Provavelmente por essa razão o Código de 2015 dispôs sobre o foro das ações possessórias imobiliárias em regra específica (§ 2º do art. 47). Caso o litígio recaia sobre um direito real não previsto nesses dispositivos, a competência será relativa. É o que ocorre, por exemplo, nas ações de rescisão de compromisso de compra e venda. O direito do promitente comprador, quando registrado no Cartório de Registro de Imóveis, é um direito real, de acordo com o artigo 5º do Decreto-lei n. 58, de 1937, e com o artigo 1.417 do Código Civil de 2002. Portanto, a ação de rescisão de compromisso de compra e venda deve ser proposta no foro da situação do imóvel; porém, se essa regra não for observada, a incompetência do juízo não será absoluta, mas relativa. Caberá ao réu, então, argui-la através de exceção de incompetência na vigência do Código de 1973 ou de preliminar da contestação na vigência do Código de 2015. Se não
o fizer, prorrogar-se-á a competência do juízo perante o qual a ação foi proposta. Geralmente, o pedido de rescisão do compromisso de compra e venda é cumulado com um pedido possessório, que consiste na reintegração de posse do imóvel. Nesse caso, sustenta-se que haverá subordinação a uma regra de competência absoluta. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, com relação a essa matéria, tem apresentado divergências: há decisões no sentido de que essa competência de foro da situação do imóvel, quando há cumulação da rescisão do compromisso de compra e venda com o pedido possessório, é absoluta, enquanto, em outras decisões, o referido Tribunal vem entendendo de forma contrária. Entretanto, a meu ver, quando há essa cumulação de pedidos, não se está diante de ações reais, e sim pessoais, porque a devolução do imóvel é uma consequência da rescisão do compromisso de compra e venda, ou seja, um efeito secundário do seu acolhimento. Importa ressaltar que o artigo 95 do Código de 1973 e o § 1º do artigo 47 do Código de 2015, ao se referirem à propriedade, abrangem também as ações de usucapião, porque essas são ações declaratórias da propriedade. Todavia, essas ações não serão propostas no foro da situação do imóvel quando autora for a União, devido ao estabelecido no § 1º do artigo 109 da Constituição, segundo o qual “as causas em que a União for autora serão aforadas na seção judiciária onde tiver domicílio a outra parte”, assim como no seu § 2º, em virtude do qual “as causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal”. Portanto, quando uma das partes for a União, essas regras do artigo 109 da Constituição prevalecem sobre a competência absoluta da parte final do artigo 95 do Código de 1973 e dos §§ 1º e 2º do artigo 47 do Código de 2015, exceto quanto às ações fundadas na usucapião especial (Constituição, arts. 183 e 191), que não afastam a competência do foro da situação do imóvel, como consagrado na Súmula n. 11 do Superior Tribunal de Justiça. 6.5.1.3. Foro do último domicílio do autor da herança
Outra regra de foro especial estabelece como competente o foro do último
domicílio do morto ou de cujus, para a abertura do inventário, o cumprimento do seu testamento e para o julgamento de todas as ações ajuizadas em face do espólio (CPC de 1973, art. 96; CPC de 2015, art. 48). O dispositivo deste último Código incluiu também “a impugnação ou anulação de partilha extrajudicial”, harmonizando a regra com a evolução ocorrida com o advento da Lei n. 11.441/2007, que possibilitou a realização do inventário e da partilha extrajudiciais. A inclusão evidentemente alcança apenas as partilhas de bens deixados por pessoa morta, e não a partilha extrajudicial de bens de casais que se separam, se divorciam ou quaisquer outras. A lei privilegia o foro do último domicílio do morto para essas ações porque presume que nesse foro serão mais facilmente localizados os seus herdeiros e os seus bens, ainda que o óbito tenha ocorrido no estrangeiro. Então, para a abertura de um inventário, é necessário ter conhecimento de onde o autor da herança teve o seu último domicílio. Se o autor da herança não possuía domicílio certo, serão aplicadas as regras subsidiárias previstas no parágrafo único do artigo 96 do Código de 1973, aperfeiçoadas no parágrafo único do artigo 48 do Código de 2015. Aquele determinava que, não possuindo o autor da herança domicílio certo, o foro competente seria o da situação dos bens. Se além de não ter domicílio certo o autor da herança possuísse bens em lugares diferentes, o foro competente seria o do local onde ocorreu o óbito. Não havia previsão legal expressa para a hipótese do de cujus que não possuísse domicílio certo, mas tivesse bens em lugares diferentes e tivesse morrido fora do Brasil. Nesse caso, dever-se-ia entender que o inventário poderia ser aberto em qualquer foro onde o falecido tivesse deixado algum bem. Se ele tivesse mais de um domicílio certo, o inventário poderia ser aberto em qualquer desses foros. O Código de 2015 dissipou qualquer incerteza, priorizando, em falta de domicílio certo do falecido, “o foro de situação dos bens imóveis; havendo bens imóveis em foros diferentes, é competente qualquer destes; não havendo bens imóveis, é competente o foro do local de qualquer dos bens do espólio”. A inclusão nessa regra de foro especial da impugnação ou anulação de partilha extrajudicial não tem, como pode parecer, apenas o efeito de acomodar o dispositivo ao advento de inventários e partilhas extrajudiciais, porque nada justifica que, desaparecido o espólio com a partilha dos bens em favor dos
herdeiros, qualquer impugnação ou anulação da partilha somente fique sujeita ao foro especial se for extrajudicial, e não também a partilha judicial, resultante de inventário ou arrolamento judicial. A analogia aqui é perfeita. Parece-me, pois, que, também se resultante de procedimento judicial, prevalecerá a regra especial de foro na ação de impugnação ou anulação da partilha, mesmo porque, nesse caso, essa terá sido a regra incidente no próprio inventário. 6.5.1.4. Foro do domicílio ou da residência do alimentando
Outra regra especial de competência de foro é a que estabelece a competência do foro do domicílio ou da residência do alimentando para a ação de alimentos por ele proposta (CPC de 1973, art. 100, inc. II; CPC de 2015, art. 53, inc. II). Cabe observar que o alimentando é aquele que pede ou a quem são oferecidos os alimentos, enquanto o alimentante é aquele de quem se exige ou que oferece a pensão. O alimentando se presume a parte mais fraca, porque ele aparenta não ter meios de prover à sua própria subsistência. Então, a lei lhe dá a vantagem de não precisar deslocar-se para o foro de domicílio do réu, podendo propor a ação no foro do seu próprio domicílio ou da sua residência. O Superior Tribunal de Justiça aplica essa regra nos casos em que há cumulação do pedido de investigação de paternidade com o pedido de alimentos, havendo, inclusive, consolidado esse entendimento na sua Súmula n. 1. Quanto à execução de sentença de alimentos, no Código de 1973 subordina-se em princípio à regra do artigo 575, inciso II, que estabelece que a execução é da competência do juiz que decidiu a causa no primeiro grau de jurisdição. Entretanto, parece-me que o alimentando poderá promovê-la no local onde se encontram os bens ou no do novo domicílio do executado, beneficiando-se por identidade de situação do disposto no parágrafo único do artigo 475-P, introduzido pela Lei n. 11.232/2005. Também me parece que, sendo no regime do Código de 1973 a execução de alimentos um procedimento autônomo, a ela se aplica diretamente a regra do inciso II do artigo 100, facultado ao alimentando ajuizar a execução no foro do seu próprio domicílio ou da sua residência. Já no regime do Código de 2015 a execução de sentença de alimentos passou a subordinar-se ao chamado cumprimento de sentença, no mesmo procedimento de que resultou o provimento condenatório (arts. 528 a 533), sujeita às regras de
competência do artigo 516 e do § 8º do artigo 528, à escolha do alimentando, a saber: execução no juízo que decidiu a causa no primeiro grau de jurisdição, no juízo do atual domicílio do executado, no juízo do local onde se encontram os bens do executado ou no juízo do próprio domicílio do exequente. Não há nenhuma regra especial de competência de foro para a investigação de paternidade isoladamente. 6.5.1.5. Foro do cumprimento da obrigação
Outro foro especial, relativo às pessoas jurídicas, é o foro “onde a obrigação deve ser satisfeita, para a ação em que se lhe exigir o cumprimento” (CPC de 1973, art. 100, inc. IV, alínea d; CPC de 2015, art. 53, inc. III, alínea d). Se um contrato é celebrado no Rio de Janeiro contendo uma prestação que deve ser cumprida em Salvador, a ação que exigir o cumprimento dessa obrigação deverá ser proposta na comarca da capital do Estado da Bahia. Em princípio, o autor pode propô-la no Rio de Janeiro, mas o réu tem o direito de exigir que essa ação seja encaminhada para a Bahia, onde o contrato deve ser cumprido, por meio da exceção ou arguição de incompetência relativa. O lugar do cumprimento da obrigação é um foro especial nos contratos. O pedido de indenização pelo inadimplemento do contrato segue essa regra? Acredito que não, pois ela só se aplica ao pedido de cumprimento da obrigação, e não à sua conversão em perdas e danos, nos casos de descumprimento. 6.5.1.6. Foro das ações de reparação do dano decorrente de ato ilícito
O artigo 100, inciso V, alínea a, do Código de 1973, reproduzido no artigo 53, inciso IV, alínea a, do Código de 2015, estabelece uma regra especial de competência de foro para as ações de reparação dos danos decorrentes de ato ilícito. Nestas, prevalece a regra de que a ação deve ser proposta no lugar onde ocorreu o ato ilícito, no local onde ele foi cometido (forum commissi delicti). Esse é o foro competente para as ações de indenização por ato ilícito. Todavia, há ações de indenização por ato ilícito decorrentes da prática de algum crime ou de acidente de veículo. Para esses casos específicos, aplica-se outra regra especial (Código de 1973, art. 100, parágrafo único; Código de 2015, art. 53, inc. V), segundo a qual, nas ações de reparação do dano sofrido em razão de
delito ou acidente em veículo, será competente o foro do domicílio do autor ou do local do fato. Ao possibilitar essa escolha, a lei busca proteger a vítima do crime, do acidente de trânsito ou do acidente aéreo, que poderá propor a ação de indenização no foro onde ocorreu o ato ilícito ou no foro do seu próprio domicílio. A regra geral de que as ações devem ser propostas no foro do domicílio do réu, porque este é que está em posição de ter de se sujeitar à ação proposta pelo autor, se inverte em benefício da vítima do ato ilícito, para facilitar a perseguição do seu direito à indenização. A ação criminal, em regra, é da competência do juízo do lugar onde ocorreu o crime (art. 70 do CPP), que é absolutamente competente para o seu julgamento. É o chamado forum delicti, que é o foro onde o crime foi praticado, não podendo ser proposta a ação no foro do domicílio do autor. Curiosa e injustificável, a não ser como um privilégio odioso, é a nova regra especial de competência de foro introduzida na alínea f do inciso III do artigo 53 do Código de 2015, em favor “da sede da serventia notarial ou de registro, para a ação de reparação de dano por ato praticado em razão do ofício”. A lei despreza o interesse da vítima em benefício da comodidade e da economia do serventuário. 6.5.1.7. Foro das ações intentadas contra a pessoa jurídica
Nas ações intentadas contra a pessoa jurídica, existem duas regras especiais (Código de 1973, art. 100, inc. IV, alíneas b e c; Código de 2015, art. 53, inc. III, alíneas b e c). Na verdade, essas regras especiais são regras subsidiárias daquele foro geral da pessoa jurídica, que é o foro da sua sede para as ações em que forem rés. Se a pessoa jurídica for ré e ela tiver um único estabelecimento, ela deve ser demandada no foro da sua sede (Código de 1973, art. 100, IV, a; Código de 2015, art. 53, III, a). No entanto, ela pode ser uma empresa que tenha vários estabelecimentos espalhados pelo território nacional, como, por exemplo, uma grande rede de supermercados. Assim, aquele que quiser propor uma ação contra essa grande rede de supermercados, por causa de uma compra feita em Duque de Caxias, não precisa ir ao foro da sua sede, que poderá estar localizada no Rio de Janeiro ou
em São Paulo, podendo propor a ação no foro da agência ou sucursal onde foi celebrado o negócio. Essa também é uma norma de proteção do particular que negocia com uma empresa que tenha agências ou sucursais espalhadas pelo país, para ele não ter de deslocar-se até a sede para propor ação contra essa pessoa jurídica. Se a sociedade não tem personalidade jurídica, não é certo o endereço da sua sede, tampouco de suas agências ou filiais e, nesse caso, em benefício do amplo acesso à justiça de quem com ela litiga, a ação contra ela será proposta onde ela exerce a atividade principal. 6.5.1.8. Foro da residência da mulher
O artigo 100, inciso I, do Código de 1973 instituiu o foro da residência da mulher como o competente para a ação de separação dos cônjuges, a conversão desta em divórcio e para a anulação de casamento. Nesses casos, a mulher teria o direito de propor a ação no seu próprio foro de residência. No entanto, as relações de família evoluíram muito no Brasil desde então e a emancipação da mulher tornou-se uma realidade, pelo menos nos grandes centros urbanos. Autores, como Yussef Said Cahali6, entenderam que esse dispositivo seria inconstitucional, e não teria sido recepcionado pela Constituição de 1988, que estabeleceu a igualdade entre o homem e a mulher no artigo 5º, inciso I. Todavia, tem-se admitido que esse dispositivo não atenta contra a regra isonômica prevista na Constituição, na medida em que o tratamento diferenciado se justifica pelas dificuldades práticas que a mulher ainda encontra em nossa sociedade. Em relação ao foro da conversão de separação em divórcio, havia uma questão interessante que dizia respeito a outra regra que entra em conflito com esta, que é a existente na Lei do Divórcio (Lei n. 6.515/77). O artigo 35, parágrafo único, dessa Lei, estabelecia que o pedido de conversão será apensado, ou seja, costurado aos autos da separação judicial. Isso significava que o pedido de conversão deveria processar-se no mesmo juízo onde se processou a separação, ou seja, haveria uma prorrogação da competência, por força daquele dispositivo, do juízo da separação para a subsequente conversão dessa separação em divórcio.
Então, onde deveria ser proposta a conversão? No juízo da separação ou onde a mulher tem residência? O entendimento que conciliava esses dois dispositivos era o de que, se a mulher não mudou de residência, o juízo da separação seria o competente para a conversão. Agora, se a mulher mudou de residência, ela teria o direito, para facilitar o seu acesso à justiça, de requerer a conversão no foro de sua nova residência. A recente Lei n. 11.340/2006, que disciplinou a proteção da mulher em face da violência doméstica ou familiar, permitiu no artigo 14 a criação de juizados para essas causas, assim como estabeleceu no artigo 15 a competência, por opção da ofendida, do juizado do seu domicílio ou residência, do lugar do fato ou do domicílio do agressor. Parece-me que essas regras de competência serão aplicáveis ainda que não tenham sido criados os mencionados juizados. Entretanto, a evolução do direito de família prosseguiu com a edição da Emenda Constitucional n. 66/2010, que, ao dar nova redação ao § 6º do artigo 226 da Carta Magna, estabeleceu que “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”, não mais se referindo à separação, nem à sua conversão em divórcio. Dúvidas pairam sobre a sobrevivência infraconstitucional desses procedimentos. O Código de 2015 mantém a disciplina da separação consensual, ao lado do divórcio, da extinção consensual da união estável e da alteração do regime de bens do matrimônio (arts. 731 a 734), mas não mais se refere à conversão da separação em divórcio. Por outro lado, no capítulo da competência de foro (art. 53, inc. I), altera a regra anterior de proteção da mulher, estabelecendo que nas ações de divórcio, separação, anulação de casamento e reconhecimento ou dissolução de união estável é competente o foro do domicílio do guardião de filho incapaz, se houver, o do último domicílio do casal e, se nenhuma das partes residir neste, o do domicílio do réu. Assim, não é mais o sexo do cônjuge ou companheiro que atrai a competência, mas o encargo da guarda de incapaz, que para ele torna mais onerosa a defesa em juízo e à sua falta, o último domicílio comum, local em que a lei presume que ambas as partes tenham a mesma facilidade de acesso à justiça. Na minha opinião, a conversão da separação em divórcio é uma ação de divórcio e, assim, se submete a essas mesmas regras. Entretanto, como o Código de 2015, no artigo 1.046, § 2º, mantém em vigor “as disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis”, parece-me que não está derrogado o disposto no artigo 35, parágrafo único, da Lei n.
6.515/77, que manda processar a conversão em apenso à separação, aplicando-se essa regra se nenhum dos cônjuges for guardião de incapaz, nem residir no último domicílio do casal. 6.5.2. Outras regras especiais Outro foro especial está previsto nos artigos 100, inciso V, alínea b, do Código de 1973 e no artigo 53, inciso IV, alínea b, do Código de 2015, que cuidam da ação contra o administrador ou gestor de negócios alheios. Essa ação é da competência do juízo do lugar onde ele exerce a administração, do lugar onde ele praticou o ato cuja responsabilidade se pretende promover. Não é, portanto, uma ação da competência do foro do domicílio do réu. O que fixa a competência é o local onde ele praticava os atos de administração que estão sendo questionados. Outro foro especial é o foro do réu ausente (CPC de 1973, art. 97; CPC de 2015, art. 49). De acordo com esses dispositivos, as ações intentadas contra réus ausentes devem ser propostas no foro do seu último domicílio antes do seu desaparecimento. Se desconhecido esse último domicílio, devem ser propostas no foro do domicílio do autor, conforme o foro subsidiário do geral (CPC de 1973, art. 94, § 2º; CPC de 2015, art. 46, § 2º). O ausente é a pessoa física que desaparece de seu domicílio sem indicar o seu paradeiro, não se sabendo se está vivo ou morto, mas, em face de seu desaparecimento, é necessário investir alguém na sua curatela. As ações contra esse ausente não serão propostas no foro do curador, mas sim no foro do último domicílio do ausente. Da mesma maneira como ocorre nos inventários, presumese que seja mais provável que ele apareça no seu último domicílio e que nele sejam mais conhecidos os seus direitos, sendo mais fácil o exercício de sua defesa. Outro foro especial é o das ações contra o incapaz (CPC de 1973, art. 98; CPC de 2015, art. 50). Diferentemente do ausente, as ações contra os absolutamente ou relativamente incapazes (Código Civil, arts. 3º e 4º) não são propostas no foro do seu último domicílio e nem no foro do seu atual domicílio, mas no foro do domicílio dos seus representantes ou assistentes, conforme sejam absoluta ou relativamente incapazes (CPC de 1973, art. 8º; CPC de 2015, art. 71). Isso serve
para facilitar a defesa do incapaz, permitindo que o seu representante ou assistente o defenda onde esse tem o seu domicílio. Outra regra de foro especial está presente no artigo 101 do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), que permite que as ações de indenização e de responsabilidade civil propostas contra o fornecedor de produtos e serviços sejam ajuizadas no foro do domicílio do seu autor. Na verdade, fica a critério do autor. Se este preferir o foro da sede do réu ou o foro de onde está localizada a sua agência, ele está abrindo mão do privilégio de foro, mas ele tem o direito de promover a ação no seu próprio domicílio, por força do citado artigo 101. A Lei n. 10.741/2003, o Estatuto do Idoso, trouxe mais outra regra específica, prevendo, no artigo 80, que as ações propostas para proteger interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis ou homogêneos serão propostas no foro do domicílio do idoso, cujo juízo terá competência absoluta para processar a causa, ressalvadas as competências da Justiça Federal e a competência originária dos Tribunais Superiores. O Código de 2015, no artigo 53, inciso III, alínea e, incorporou o foro especial de residência do idoso para todas as causas que versem direito previsto no respectivo estatuto, sem repetir a exigência de que essa competência seja absoluta. Parece-me que, incorporado ao sistema do Código, o foro especial do idoso passou a constituir regra de competência territorial relativa, não mais circunscrita a ações que dispõe sobre interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis ou homogêneos. A Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985), que regula as ações civis públicas de defesa do meio ambiente, das relações de consumo, do patrimônio histórico, artístico, estético, turístico, paisagístico, estabelece, em seu artigo 2º, que as ações nela previstas serão propostas no foro do local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa. Com a expressão competência funcional, o legislador quis dizer que nessas ações civis públicas o lugar do dano implica regra de competência absoluta. Esse dispositivo é complementado pelo artigo 93 do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), que estabelece que as ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos, que são normalmente ações de
indenização, serão propostas no foro do lugar onde ocorreu o dano, o que repete a regra do artigo 2º da Lei n. 7.347/85, se o dano for de âmbito local. Mas também pode ser no foro da capital do Estado ou no Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil para os casos de competência concorrente. Essas disposições são merecedoras de crítica, não pelo fato de estabelecerem o lugar do dano como mais uma opção para o autor de fixação da competência territorial, mas por estabelecerem o local do dano como foro de competência absoluta. Muitas vezes para a vítima o foro mais conveniente, mais favorável e mais acessível não é o do local do dano, e o intuito da lei é favorecer a indenização, a reparação da lesão sofrida pela vítima. Submeter a vítima a um foro menos conveniente, dificultando o seu acesso à justiça por uma regra de competência que é inspirada na finalidade de protegê-la e não de proteger o causador do dano, é uma aberração. Portanto, questionável é o caráter absoluto da regra do artigo 2º da Lei n. 7.347/85. 6.5.3. Concorrência entre regras especiais O Direito procura estabelecer essas regras especiais de competência territorial para facilitar o acesso à justiça da parte mais fraca, para favorecer o equilíbrio entre as partes e a paridade de armas. Porém, o problema se dá quando há concorrência de mais de uma dessas regras, pois se questiona qual delas deverá prevalecer. A primeira observação para resolver esse problema é a de que as normas dos artigos 94 e 100, inciso IV, alíneas a, b e c, do Código de 1973, a que correspondem no Código de 2015 as dos artigos 46 e 53, inciso III, alíneas a, b e c, se aplicam apenas quando não houver regras especiais. Elas são regras gerais de competência de foro. Sobre elas prevalecem todas as demais regras especiais. Entre as regras especiais, em primeiro lugar, prevalecem as de competência territorial absoluta, como, por exemplo, as da parte final do artigo 95 do Código de 1973 e dos §§ 1º e 2º do artigo 45 do Código de 2015. Em seguida, abaixo das regras de competência territorial absoluta, vem o foro de eleição (CPC de 1973, art. 111; CPC de 2015, art. 63), desde que seja válido. Na escala descendente,
não havendo foro de eleição, prevalecem sobre as demais as regras de proteção de certas pessoas, para compensar a desvantagem em que se encontram em razão de sua inferioridade jurídica, social ou econômica (hipossuficientes, ausentes, a mulher, o cônjuge, o incapaz, o alimentando, os sucessores do falecido, os idosos). Depois das mencionadas regras de proteção especial de certas pessoas, vêm as regras de proteção das provas dos fatos, como as previstas no artigo 100, inciso V e parágrafo único, do Código de 1973 e no artigo 53, incisos IV e V, do Código de 2015, que estabelecem como competente na ação de indenização por ato ilícito o foro do lugar do ato ou do fato, ou do domicílio do autor, pois nesses locais tais provas devem estar mais acessíveis. Após, há o foro do devedor (art. 100, inc. III, do CPC de 1973, não reproduzido no Código de 2015) para a ação de anulação de títulos extraviados ou destruídos, o das demais ações reais imobiliárias (CPC de 1973, art. 95; CPC de 2015, art. 47), e do cumprimento da obrigação (CPC de 1973, art. 100, inc. IV, alínea d; CPC de 2015, art. 53, inc. III, alínea d) e o da sede da serventia (Código de 2015, art. 53, inc. III, alínea f). Se concorrerem duas regras do mesmo grau de preferência, poderá o autor optar por qualquer dos foros delas decorrentes. 6.5.4. Competência da Justiça Federal A competência da Justiça Federal de primeira instância se encontra regulada pelo artigo 109 da Constituição Federal. No § 1º desse artigo, a Constituição estabelece que as causas propostas pela União serão aforadas na seção judiciária onde tiver domicílio a outra parte. Essa é uma hipótese de competência relativa, que, conforme estudamos, normalmente é objeto de regras dispositivas, estabelecidas em benefício de uma das partes, nesse caso, em favor daquele que é demandado pela União. Nas causas em que a União for demandada, ou seja, nas ações em que figurar como ré, o § 2º do artigo 109 da Constituição confere ao autor a possibilidade de escolher quatro foros territorialmente competentes: o foro do seu próprio domicílio; o do local onde ocorreu o fato ou o ato que deu origem à demanda; o
foro da situação da coisa e o Distrito Federal. Embora a União, como pessoa jurídica de direito público, tenha sede no Distrito Federal, ela tem de se defender em qualquer lugar do território nacional, sendo necessário que a escolha do foro pelo autor recaia sobre uma das hipóteses descritas acima. O intuito do legislador constituinte ao estabelecer essa multiplicidade de opções foi o de facilitar o acesso à justiça daquele que litiga contra a União. Muitas vezes, no entanto, a jurisprudência resiste à livre-opção do autor. Um exemplo desse entendimento restritivo é a jurisprudência que obriga o autor a impetrar o mandado de segurança no local em que o funcionário público exerça suas funções. O funcionário impetrado, que se costuma denominar autoridade coatora, não é réu no mandado de segurança, embora seja diretamente notificado para nele prestar informações. Ré é a pessoa jurídica de direito público, da qual aquele funcionário é apenas um órgão. À luz do que estabelece a Constituição, essa jurisprudência está equivocada. As regras estabelecidas no artigo 99 do Código de 1973, que fixam a capital do Estado como foro competente para as causas em que for parte ou intervier a União, são anteriores à Constituição de 1988. Hoje, há também varas federais instaladas no interior dos Estados, nas chamadas subseções judiciárias. O Código de 2015, acomodando-se ao ditado constitucional, reproduz no artigo 51 as regras dos §§ 1º e 2º do artigo 109 da Carta Magna. Entretanto, esse Código introduziu um novo artigo 45 para regular situações que ocorrem com frequência de intervenção União, de suas empresas públicas, entidades autárquicas e fundações, bem como dos conselhos de fiscalização de atividade profissional, que também são considerados entidades autárquicas, em causas em curso na justiça dos Estados. Atualmente, em virtude do que estabelece a Lei n. 9.469/97 (art. 5º, caput e parágrafo único), a União pode intervir em qualquer causa, sendo desnecessária a comprovação de interesse jurídico. Essa regra, se aplicada de forma indiscriminada, apenas com o intuito de deslocar a competência para a Justiça Federal, violará a garantia do juiz natural.
Entretanto, deve considerar-se que algumas pessoas jurídicas de direito público são responsáveis por determinadas políticas públicas e podem ter interesse em intervir em certas causas, não por terem propriamente um interesse jurídico no seu desfecho, mas um interesse mais remoto: o de velar para que as diretrizes das políticas públicas sob sua responsabilidade sejam levadas em consideração nas decisões judiciais de casos concretos. É uma intervenção legítima, pois existe nesses casos um interesse jurídico do ente público. Embora o objeto litigioso não seja esse interesse, o atinge indiretamente. O novo artigo 45 explicita, em consonância com o caput do artigo 109 da Constituição, a exclusão da competência da Justiça Federal, mesmo que nelas se manifeste interesse de ente federal, das causas relativas à recuperação judicial, falência, insolvência civil, acidente de trabalho e às matérias eleitoral e trabalhista, genericamente mencionadas no parágrafo único do artigo 99 do Código de 1973. Seu enunciado principal consagra doutrina e jurisprudência já pacificadas no sentido de que, ocorrendo a intervenção do ente federal em qualquer outra causa, os autos serão remetidos ao juízo federal competente e acrescenta três parágrafos para disciplinar a hipótese em que, além da causa de interesse do ente federal, houver cumulação no mesmo processo de outra, com pedido cuja apreciação seja da competência do juízo estadual, assim, como daquela em que, remetido o feito à justiça federal em razão da intervenção do ente federal, vier esta a excluí-lo do processo, caso em que devolverá os autos ao juízo estadual (§ 3º). Na primeira hipótese (§§ 1º e 2º), determina que o juízo estadual retenha o processo sem examinar o mérito da causa de interesse do ente federal. Cumpre observar que a Constituição, ao mencionar a União nas regras específicas de competência estabelecidas nos §§ 1º e 2º do seu artigo 109, não está regulando a competência das causas relativas aos entes da Administração indireta que tenham personalidade jurídica própria, como as autarquias federais. Quando uma das partes for uma autarquia federal, como, por exemplo, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) ou o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), aplicam-se as regras gerais previstas no artigo 109, inciso I, da Constituição, e no artigo 100, inciso IV, do Código de Processo Civil de 1973 (art. 53, III, do Código de Processo Civil/2015). Há autarquias que embora tenham sede no Distrito Federal estão autorizadas
provisoriamente a continuar funcionando no Estado do Rio de Janeiro, como é o caso do Instituto Nacional de Propriedade Industrial. A jurisprudência tem entendido que as ações contra essas autarquias têm de ser propostas no Rio de Janeiro, embora legalmente tenham sede em Brasília. Trata-se de uma regra de competência territorial e, portanto, relativa, o que não impede que uma autarquia venha a responder a uma ação em foro diverso daquele em que está situada a sua sede, caso não alegue a incompetência territorial. Ainda o artigo 109, no seu § 3º, estabelece que “serão processadas e julgadas na Justiça Estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela Justiça Estadual”. Mesmo com a criação das subseções judiciárias, a Justiça Federal não possui varas distribuídas por todo o interior dos Estados, havendo pelo menos um juízo federal em cada unidade da Federação, sediado na sua capital. Em muitos desses municípios onde não há varas federais faz-se necessário o exercício da jurisdição em relação a causas de interesse da União ou das autarquias federais, como o Instituto Nacional do Seguro Social. Então, para facilitar ao cidadão o acesso à justiça, a Constituição, no dispositivo acima transcrito, permite que a lei determine o processamento e julgamento, perante a Justiça dos Estados, de causas de interesse da União, de suas autarquias e empresas públicas federais, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal. Por exemplo: caso um aposentado pela Previdência Social more num município em que não haja juízo federal e ele queira propor uma ação contra o INSS, autarquia federal que tem sede em Brasília, ele pode dirigir a petição inicial ao juízo estadual da comarca abrangida pelo seu domicílio, segundo as regras de organização judiciária. Nessa hipótese, por expressa previsão constitucional, o juiz estadual tem competência para julgar as causas que normalmente seriam da Justiça Federal. Entretanto, o órgão do Poder Judiciário competente para apreciar o recurso contra as decisões desse juízo estadual é o Tribunal Regional Federal, conforme
estabelece o § 4º do artigo 109 da Constituição. A Lei n. 5.010/66, no seu artigo 15, recentemente alterado pela Lei n. 13.043/2014, além de repetir a hipótese prevista no texto constitucional, estabelece ainda outras causas que deverão ser processadas pelos juízes estaduais das comarcas do interior, entre as quais as produções antecipadas de prova e justificações de residentes nessas comarcas, destinadas a fazer prova perante a administração federal, centralizada ou autárquica. A jurisprudência tem também admitido que a Justiça Estadual pratique atos de colaboração relativos a feitos da competência da Justiça Federal. É o que ocorre, por exemplo, se o juiz federal da capital do Estado do Rio de Janeiro decretar o sequestro de um bem que está situado numa comarca do interior que não possua juízo federal. Nesse caso, ele terá de expedir uma carta precatória para o juízo dessa comarca do interior onde está localizado o bem, que deverá mandar o oficial da Justiça Estadual executar a ordem judicial de sequestro. Essa solução foi consagrada no parágrafo único do artigo 237 do Código de 2015. Algumas súmulas do Superior Tribunal de Justiça tratam das questões relativas à competência da Justiça Federal. Contudo, pelo enorme casuísmo com que são editadas, suscitam elas próprias muitas divergências na jurisprudência (ver Súmulas n. 32, 34, 42, 66, 137, 209, 324, 349, 365 e 368). 6.5.5. Ação de consignação em pagamento A ação de consignação em pagamento é uma ação que o devedor propõe contra o credor para obter a quitação de uma dívida mediante o depósito da quantia ou da coisa que considera devida. O Código de Processo Civil, nos artigos 891 do Código de 1973 e 540 do Código de 2015, estabelece que essa ação deverá ser proposta no lugar do pagamento, que, normalmente, é o do domicílio do devedor. Todavia, se o contrato firmado entre as partes estabelecer outro local para o cumprimento da obrigação, nesse deverá ser proposta a ação. 6.5.6. Execução da sentença arbitral e da sentença estrangeira O foro competente para a execução da sentença arbitral não está expressamente previsto na Lei de Arbitragem, que é a Lei n. 9.307/96, mas as regras dos seus
artigos 7º e 13 estabelecem que, surgindo qualquer controvérsia na arbitragem, as partes têm de dirigir-se ao juiz a que tocaria, originariamente, o julgamento da causa. Assim, para se saber perante qual foro vai ser executada a sentença arbitral, deve-se atentar para a natureza do litígio e buscar as regras gerais de competência territorial que seriam normalmente aplicáveis à espécie. A execução da sentença estrangeira, após a sua homologação, compete aos juízes federais, de acordo com o artigo 109, inciso X, da Constituição. 6.5.7. Execução fiscal A execução de títulos extrajudiciais, que estão enumerados nos artigos 585 do Código de 1973 e 784 do Código de 2015, deve observar algumas especificidades. Na execução fiscal, por exemplo, o artigo 578 do Código de 1973, a que corresponde o § 5º do artigo 46 do Código de 2015, permite que ela seja proposta no foro do domicílio do réu, no foro onde ocorreu o fato ou se praticou o ato que deu origem à dívida ou, ainda, no foro da situação dos bens, quando a dívida deles se originar. Essa regra diverge do estabelecido pelo artigo 109, § 1º, da Constituição, segundo o qual a União tem de propor a ação no foro do domicílio da outra parte. Portanto, não deve ela ser aplicada às execuções fiscais ajuizadas pela União, mas somente às promovidas pelas autarquias federais, pelos Estados e pelos Municípios. 6.5.8. Falência e insolvência Os processos de falência e insolvência, mesmo quando presente interesse da União, não serão da competência da Justiça Federal, por expressa ressalva contida no texto constitucional (art. 109, inc. I). Essas ações são sempre da competência da Justiça Estadual. O foro competente para processar a falência é o do principal estabelecimento do devedor ou o da filial da empresa que tenha sede fora do Brasil, conforme dispõe o artigo 3º da Lei n. 11.101/2005. O foro que deve processar a insolvência é o do domicílio do devedor, de acordo com o artigo 760, caput, do Código de 1973, mantido em vigor pelo artigo 1.052 do Código de 2015.
A principal distinção entre a insolvência e a falência reside na pessoa do devedor, uma vez que a primeira incide sobre as pessoas físicas, associações e sociedades simples, enquanto a segunda incide sobre o empresário e a sociedade empresária (art. 1º da Lei n. 11.101/2005). A insolvência encontra-se regulada a partir do artigo 748 do Código de 1973. É importante ressaltar que essas regras de competência territorial referentes aos processos de falência e insolvência civil são, excepcionalmente, regras imperativas, de competência absoluta. 6.5.9. Ação de cobrança de duplicata O artigo 17 da Lei n. 5.474/68 estabelece que “o foro competente para a cobrança judicial da duplicata ou da triplicata é o da praça de pagamento constante do título”. Portanto, em regra, o foro competente para ação de cobrança da duplicata é aquele em que a obrigação deva ser cumprida. 6.5.10. Ação popular A ação popular tem de ser proposta no local onde foi praticado o ato por ela impugnado, segundo a regra do artigo 5º da Lei n. 4.717/65. De acordo com o caput do artigo mencionado, caso a ação popular interesse à União, competente será a Justiça Federal para processá-la e julgá-la, enquanto nas ações populares que interessem ao Distrito Federal, ao Estado ou Município, deverão ser observadas as regras de organização judiciária, cabendo às Varas da Fazenda Pública ou a outro juízo privativo, onde houver. 6.5.11. Usucapião especial pro labore A Lei n. 6.969/81, em seu artigo 4º, estabelece que a ação de usucapião especial deverá ser proposta no foro da situação do imóvel. Essa regra prevalecerá mesmo quando uma das partes for a União, por considerar-se uma das causas a que se refere a parte final do § 3º do artigo 109 da Carta Magna, o que está consagrado no enunciado contido na Súmula n. 11 do Superior Tribunal de Justiça.
6.5.12. Jurisdição voluntária Nos procedimentos de jurisdição voluntária muitas vezes não há réus ou requeridos. Nesses casos, será competente o foro do domicílio do requerente. Entretanto, há procedimentos especiais, como a interdição, por exemplo, em que pode haver sujeitos que resistam à pretensão deduzida pelo requerente. O interditando pode, inclusive, impugnar o pedido e constituir advogado para defender-se (CPC de 1973, art. 1.182, caput e § 2º; CPC de 2015, art. 752, caput e § 2º), hipótese em que a interdição deverá ser processada no foro do seu domicílio. 6.5.13. Causas do Estado-membro e do Distrito Federal O Código de 1973 não continha qualquer regra especial de foro para as causas de interesse dos Estados-membros e do Distrito Federal, exceto a regra já mencionada do artigo 578 para as execuções fiscais. O Código de 2015, no artigo 52, estabeleceu que as causas em que Estado ou Distrito Federal sejam autores serão propostas no foro do domicílio do réu. A meu ver, essa não é uma regra especial de foro, mas simplesmente a determinação de que o Estado e o Distrito Federal se submetam à regra geral e às regras subsidiárias da geral de competência de foro, reguladas no artigo 46. Consequentemente, deverão o Estado e o Distrito Federal submeter-se às regras especiais do Código ou de leis extravagantes, como as das ações reais imobiliárias (art. 47), as dos feitos sucessórios (art. 48), as das ações contra o ausente e o incapaz (arts. 49 e 50), a do cumprimento da obrigação (art. 53, inc. III, alínea d), as das ações de reparação do ano (art. 53, incs. IV e V), as das ações de consignação em pagamento, ações populares e a da ação civil pública. Quanto às ações propostas contra os Estados ou contra o Distrito Federal, o mesmo artigo 52 confere ao autor as mesmas opções que, em relação à União, são estabelecidas pelo artigo 109, § 2º, da Constituição Federal, a saber, propositura da ação no foro de domicílio do autor, no de ocorrência do ato ou fato que originou a demanda, no de situação da coisa ou na capital do respectivo ente federado. Essas regras especiais não se aplicam aos entes da administração descentralizada do Estado-membro ou do Distrito Federal, com personalidade jurídica própria.
O artigo 99 do Código de 1973 previa foro especial para as causas de interesse dos Territórios Federais que, apesar de previstos nos artigos 33 e 110 da Constituição Federal, não mais existem, desde o advento da Constituição de 1988, o que justifica o desaparecimento da regra no Código de 2015.
6.6. MEIOS DE ARGUIÇÃO DA INCOMPETÊNCIA A incompetência absoluta pode ser arguida a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, constituindo matéria que deve ser conhecida de ofício pelo juiz, ou seja, independentemente de provocação das partes (CPC de 1973, art. 113; CPC de 2015, art. 64, § 1º). Todavia, a lealdade processual recomenda que o réu a alegue na primeira oportunidade que tiver para falar nos autos que, normalmente, é a contestação, como, aliás, preveem os artigos 301, inciso II, do Código de 1973 e 337, inciso II, do Código de 2015. Entretanto, tratando-se de incompetência relativa, o Código de 1973 determina que ela tem de ser arguida por meio de exceção (art. 112), que é uma petição específica, própria, processada em apenso aos autos principais (art. 299) e oferecida no mesmo prazo da contestação (art. 297), provocando a suspensão do processo (art. 265, inc. III). A suspensão do processo visa a proteger o excipiente, justamente para que, enquanto não julgada a incompetência relativa, não sofra o prejuízo de continuar se defendendo no foro que lhe é menos conveniente. No mesmo sentido, a autuação em apenso serve para que o juiz atente para a questão da incompetência, que pela sua gravidade deve ser conhecida antes das demais, possibilitando que o processo, após a sua solução, prossiga validamente, evitando-se, assim, possíveis prejuízos advindos do seu reconhecimento tardio. No intuito de simplificar o processo e diminuir os formalismos, o Código de 2015 não mais prevê o oferecimento de exceção de incompetência, determinando que a incompetência relativa, tal como a incompetência absoluta, seja arguida pelo réu como preliminar da contestação (art. 337, inc. II). Ocorre que, muitas vezes, o réu é citado em comarca diversa daquela em que a causa foi proposta e, além disso, nas causas em que seja possível a conciliação ou a mediação, o que examinaremos adiante no item 17.2.3, o réu será citado para a audiência de conciliação ou de mediação (art. 334), contando-se o prazo para a contestação a partir dessa data, se ficar frustrada a tentativa de solução amigável
(art. 335, inc. I). Para que o réu não se veja forçado a comparecer a essa audiência ou a dirigir-se ao foro que considera incompetente para se defender, o artigo 341 veio a facultar o oferecimento da contestação no juízo deprecado, ou seja, naquele em que foi citado, antes mesmo da audiência de conciliação ou mediação, que ficará suspensa, remetendo-se a contestação ao juízo de origem para apreciação da sua alegada incompetência. O Código de 1973 também previa, por emenda introduzida no artigo 305 pela Lei 11.280/2006, o oferecimento de exceção de incompetência no juízo do domicílio do réu. No Código de 2015, extinta a exceção de incompetência, é a própria contestação que deverá ser antecipada pelo ajuizamento nesse juízo, não havendo suspensão do processo para a apreciação dessa questão, mas simples suspensão da audiência de conciliação ou de mediação, se tiver sido designada, cabendo nova designação após a solução da questão da competência (art. 340, § 4º).
6.7. CONFLITO DE COMPETÊNCIA O conflito de competência está regulado nos artigos 115 a 124 do Código de 1973 e nos artigos 66 e 951 a 959 do Código de 2015. Há conflito de competência quando dois ou mais juízes consideram-se simultaneamente competentes ou incompetentes para o julgamento de uma mesma causa. O conflito de competência, portanto, pode ser positivo ou negativo. O primeiro ocorre quando dois ou mais juízes se reputam simultaneamente competentes para julgar a mesma causa, ao passo que o segundo se dá nas hipóteses em que dois ou mais juízes se consideram incompetentes para o seu julgamento. Por exemplo: duas causas idênticas foram propostas em juízos diferentes, mas submetidos ao mesmo tribunal. Se nenhum dos dois reconhecer a sua própria incompetência para o julgamento da causa, haverá um conflito positivo de competência e qualquer interessado poderá dirigir-se a esse tribunal para suscitálo. A Constituição Federal estabelece que, ocorrendo o conflito entre juízes de primeiro grau submetidos a tribunais diferentes, entre um tribunal e um juiz a ele não vinculado ou entre quaisquer tribunais de segundo grau, a competência para
o seu julgamento será sempre do Superior Tribunal de Justiça (art. 105, inc. I, alínea d). Todavia, quando se der entre tribunais superiores, entre esses e qualquer outro tribunal ou entre o Superior Tribunal de Justiça e qualquer outro tribunal, a competência será do Supremo Tribunal Federal (art. 102, inc. I, alínea o). Toda vez em que é suscitado um conflito de competência, o seu relator poderá, de ofício ou a requerimento das partes, suspender os processos envolvidos e designar um dos juízes para, em caráter provisório, adotar providências urgentes até que o conflito seja decidido (CPC de 1973, art. 120; CPC de 2015, art. 955). No conflito negativo, um dos juízes declina da competência para outro, que, entretanto, acredita que a competência pertença ao primeiro. Assim, será suscitado por este o conflito, cabendo ao tribunal superior decidi-lo. Contudo, se o segundo juízo, por sua vez, declinar da competência para um terceiro juiz, ainda não há conflito, que somente nascerá se este terceiro entender que a competência é do primeiro ou do segundo. O conflito de competência, como incidente processual, também pode ser suscitado pela parte, pelo Ministério Público ou pelo próprio juiz, quando surgir entre dois ou mais juízes controvérsia sobre a reunião ou separação de processos (CPC de 1973, art. 115, inc. III; CPC de 2015, art. 66, inc. III). O artigo 117 do Código de 1973 e o artigo 952 do Código de 2015 proíbem a parte que ofereceu exceção de incompetência de suscitar conflito. Essa disposição e a dos parágrafos únicos dos mesmos artigos, que, contrariamente, facultam a arguição da incompetência pela parte que não suscitou o conflito, são muito criticadas porque podem ocorrer situações em que, tendo arguido a incompetência em determinado momento, venha a parte a suscitar conflito em momento subsequente, para que a questão da incompetência não seja resolvida de modo que lhe pareça incorreto, especialmente, se se tratar de conflito positivo; como também parece que, se estiver o processo suspenso pelo conflito suscitado, não pode a parte que não suscitou o conflito arguir a incompetência. ________ 1 Ver GRECO, Leonardo. A competência internacional da justiça brasileira. In:
Revista da Faculdade de Direito de Campos. Campos dos Goytacazes, ano VI, n. 7, dez. 2005. p. 169-194. 2 GRECO, Leonardo. Translatio iudicii e reassunção do processo. In: Revista de
Processo, São Paulo: n. 166, p. 9-26. 3 CASTRO FILHO, José Olympio de. Abuso do direito no processo civil. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1955. p. 152 e ss. 4 GRECO, Leonardo. Os atos de disposição processual – primeiras reflexões. In:
MEDINA, José Miguel Garcia et alii (Coord.). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais – estudos em homenagem à Prof.ª Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 290-304. 5 GOMES, Orlando. Direitos reais. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 13-
14. 6 CAHALI, Yussef Said. Divórcio e separação. 9. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000, apud CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 172.
A competência dos órgãos jurisdicionais pode ficar condicionada ou ser afetada em razão de alguns institutos que com ela se relacionam. Não é fácil definir com segurança o que esses institutos têm em comum, a não ser o fato de que, de algum modo, influem na competência dos órgãos jurisdicionais. São eles a perpetuação da competência, a prevenção, a conexão, a continência e a prorrogação da competência.
7.1. PERPETUAÇÃO DA COMPETÊNCIA A perpetuação da competência, também chamada de perpetuação da jurisdição, é objeto do artigo 87 do Código de 1973 e do artigo 43 do Código de 2015. O primeiro prescreve que a competência se determina “no momento em que a ação é proposta”, sendo “irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia”. Portanto, é no momento da propositura da ação, ou seja, quando a petição inicial for despachada pelo juiz ou distribuída, onde houver mais de uma vara com igual competência (art. 263), que, no regime do Código de 1973, devem ser verificadas todas as circunstâncias que determinam a fixação da competência. Esses dispositivos suscitaram muita insegurança, porque o despacho do juiz pode demorar alguns dias, devendo esperar o sorteio da distribuição, onde houver mais de um juízo com a mesma competência. Nem sempre esse sorteio ocorre na mesma data do ajuizamento da petição inicial. Por outro lado, o artigo 219 estatui que é a citação válida que torna prevento o juízo, o que poderia levar ao entendimento de que a perpetuação da competência ficasse sujeita à consumação do chamamento do réu a juízo. Aos poucos sedimentou-se o entendimento de que basta o protocolo da petição inicial para que a ação se repute ajuizada. Os artigos 312, 43 e 59 do Código de 2015, com uma redação pouco melhor, estabeleceram, respectivamente, que a ação se considera proposta quando a petição inicial for protocolada, que a competência se determina no momento do registro ou da distribuição inicial e que o registro ou distribuição da petição inicial torna prevento o juízo, isto é,
fixa a competência do juízo perante o qual a ação foi proposta ou ao qual foi distribuída. Pressupõe-se que o registro ou a distribuição, especialmente com a implantação do processo eletrônico, ocorra no momento imediatamente seguinte ao protocolo da petição inicial ou até simultaneamente. Por isso, hão de interpretar-se essas regras no sentido de que a perpetuação da competência se dá com o simples protocolo da petição inicial, ou seja, de que o juiz competente nesse momento assim permanecerá até o final do processo, ainda que ocorram posteriormente “modificações do estado de fato ou de direito”, “salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta” (art. 43). Um exemplo bastante elucidativo é o da mudança do domicílio do réu no curso do processo. Se o réu tem o seu domicílio na cidade do Rio de Janeiro e contra ele é proposta nesse foro uma ação, é perante um juízo dessa cidade que a referida ação deverá tramitar. Em virtude da regra que estabelece a perpetuação da jurisdição (CPC de 1973, art. 87; CPC de 2015, art. 43), ainda que o réu se mude para a cidade de São Paulo, por exemplo, a causa continuará a ser processada no Rio de Janeiro. A ação continuará a ser da competência do juízo perante o qual foi proposta, porque as circunstâncias determinativas da competência são aquelas circunstâncias fáticas e jurídicas existentes no momento do ajuizamento da ação, ou seja, do protocolo da petição inicial. A finalidade da perpetuação de competência é a de evitar que, depois da propositura da ação, as partes ou até mesmo terceiros alterem as circunstâncias que influem na determinação da competência apenas com o intuito de retirar a causa do juiz para o qual foi distribuída, transferindo-a para outro. A perpetuação da jurisdição visa a preservar a competência do juiz previamente definido pela lei, consagrando, portanto, a garantia do juiz natural, inerente ao devido processo legal assegurado na Constituição (art. 5º, incs. XXXVII, LIII e LIV, da Constituição). Evitam-se, assim, perseguições às partes, limitando-se, inclusive, a atuação do próprio legislador. 7.1.1. Exceções à perpetuação da competência Resumindo-se o que foi estudado no item anterior, concluímos que o juiz que, de acordo com as regras vigentes no momento do ajuizamento da ação, se apresenta como competente, sê-lo-á até o fim do processo, mesmo que as circunstâncias
fáticas e jurídicas que regulam a competência venham a modificar-se no seu curso. Entretanto, a parte final do artigo 87 do Código de 1973 e do artigo 43 do Código de 2015 prevê duas exceções: a primeira permite a modificação da competência nos casos de supressão do órgão judiciário, enquanto a segunda, nos casos de alteração da competência em razão da matéria ou da hierarquia (alteração da competência absoluta, no segundo dispositivo). 7.1.1.1. Supressão do órgão judiciário
A supressão do órgão judiciário ocorre nas hipóteses de extinção de determinado órgão jurisdicional. Por exemplo: em razão da reduzida demanda pelos serviços judiciários, extingue-se determinada comarca. Nesse caso, a área geográfica abrangida pela comarca extinta passará a integrar o limite territorial da comarca mais próxima, o que se aplicará também aos processos em curso, tornando competente o juiz desta comarca para as causas que estiverem tramitando naquela. A supressão de órgãos judiciários já ocorreu na Justiça Federal, mais especificamente nas varas federais localizadas nos antigos Territórios. Inicialmente, havia uma vara federal em cada Território, mas, após alguns anos, constatou-se que não havia causas suficientes para justificar a presença de juízos federais nessas localidades. Atualmente, o parágrafo único do artigo 110 da Constituição estabelece que “nos Territórios Federais a jurisdição e as atribuições cometidas aos juízes federais caberão aos juízes da justiça local, na forma da lei”. Fato semelhante ocorreu no Estado do Rio de Janeiro quando da extinção do Tribunal de Alçada. Contudo, a extinção desse Tribunal foi menos drástica, porque os seus membros se tornaram desembargadores do Tribunal de Justiça, compondo novas câmaras do Tribunal de Justiça correspondentes às antigas do Tribunal de Alçada. A extinção de órgãos jurisdicionais ocorre em função da necessidade de racionalização do serviço judiciário e, portanto, aplica-se de imediato, ou seja, o órgão é extinto imediatamente e as causas nele pendentes vão ser transferidas para a competência de outro juízo.
7.1.1.2. Alteração da competência absoluta
A outra exceção à perpetuação da competência diz respeito à mudança nas regras que disciplinam a competência absoluta. Embora o artigo 87 do Código de 1973 mencione apenas a alteração das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia (funcional vertical), esse dispositivo deve ser interpretado de forma ampla, no sentido de que a referida exceção abrange a alteração de quaisquer regras de competência absoluta, conforme a redação do artigo 43 do Código de 2015. As leis de organização judiciária, ao criarem varas especializadas, precisam avaliar com cuidado a incidência das novas regras de competência absoluta sobre os feitos pendentes perante órgãos jurisdicionais preexistentes, porque a transferência imediata de todos eles aos novos órgãos pode inviabilizar desde logo o seu funcionamento pelo excessivo volume de trabalho. Por isso é comum que essas leis, ao criarem novos órgãos ou modificarem a competência absoluta dos já existentes, estabeleçam em disposições transitórias a continuidade da competência dos órgãos antigos para os feitos que neles já se encontram em andamento ou que neles já atingiram uma determinada fase. Isso ocorreu, por exemplo, na criação e implantação da Justiça Federal de primeira instância, em 1º de janeiro de 1967, em que a Lei n. 5.010/66, no artigo 80, preservou a competência dos juízes estaduais nas causas que passaram à competência dos novos juízes federais, quando aqueles já tivessem iniciado a instrução em audiência. Se é a lei que estabelece a regra, é também a lei que deve estabelecer as exceções, que não podem ficar sujeitas ao arbítrio de qualquer autoridade, sob pena de violação da garantia do juiz natural. Nesse sentido, são censuráveis disposições como a do § 2º do artigo 262 do Código de Divisão e Organização Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro, que conferem ao Tribunal de Justiça a faculdade de determinar ou não a redistribuição de feitos já ajuizados perante outros órgãos, por ocasião da implantação de novos juízos que absorvam parcialmente a competência daqueles. A perpetuação de competência também se dá nas hipóteses de desmembramento de comarcas. Nesses casos, as causas já ajuizadas continuam nas varas de origem, enquanto as novas passam a ser da competência do juízo da comarca
recém-criada. Suponha-se que havia uma vara competente para julgar as causas provenientes de três municípios. Caso seja criada uma nova comarca num desses três municípios, aquela vara deixará de ser competente para julgar as futuras ações oriundas da localidade em que for instalada a nova comarca. Muitas vezes, por razões práticas, a organização judiciária não respeita essa regra e determina que mesmo as causas pendentes sejam encaminhadas ao juízo da nova comarca, especialmente quando esta tem sede numa localidade muito distante daquela em que tramitavam os processos anteriores. Essas decisões são fundamentadas na injustiça de impor a certos cidadãos o ônus de continuarem a responder a ações na comarca originária, enquanto outros, em situação idêntica, o fazem na comarca nova, mais próxima. Também inversamente, na criação de novas especializações de varas em determinada comarca, regras de transição frequentemente preservam os processos antigos daquela matéria nas varas anteriormente competentes. Foi o que ocorreu no Rio de Janeiro quando foram criadas as varas de falências e concordatas, atuais varas empresariais, retirando a competência naquelas matérias dos juízos das varas cíveis. Falências antigas continuaram por muitos anos a tramitar nas varas cíveis de origem. Na verdade, mais do que a rigidez da aplicação imediata das mudanças de competência absoluta ou relativa, o que a perpetuação da competência visa a coibir é a violação à garantia do juiz natural e à impessoalidade da jurisdição. O legislador não pode usar o seu poder para retirar determinada causa de certo juízo ou atribuí-la a outro, em verdadeiro desvio de poder para beneficiar ou prejudicar a parte que está nas graças ou na desgraça perante o poder político. Se a evolução e o aperfeiçoamento da organização judiciária, para facilitar o acesso à justiça de todos em melhores condições, sugerem a mudança ou a manutenção da competência para causas já em andamento, elas podem e devem ser adotadas, desde que não reste a mínima suspeita de que essas decisões foram adotadas para influir positivamente ou negativamente no desfecho de quaisquer causas. 7.1.2. Desmembramento do processo e perpetuação da competência Embora os dispositivos comentados sobre a perpetuação de competência
mencionem expressamente apenas as duas exceções analisadas nos itens anteriores, a aplicação do parágrafo único do artigo 46 do Código de 1973, que foi introduzido pela Lei n. 8.952/94, a que correspondem os §§ 1º a 3º do artigo 113 do Código de 2015, pode levar a outras hipóteses de exceções à perpetuação da competência. Esses dispositivos permitem, nos casos de litisconsórcio facultativo, a limitação do número de litigantes e o desmembramento do processo, a requerimento de algum interessado, quando essa cumulação subjetiva tornar difícil a sua condução, comprometendo a celeridade ou a amplitude de defesa. O § 1º do artigo 113 do Código de 2015 estendeu expressamente essa faculdade à execução e ao cumprimento de sentença, acrescentando ao instituto um terceiro fundamento, qual seja o de que o acúmulo subjetivo dificulte o cumprimento da decisão. Esse desmembramento visa, em realidade, facilitar o acesso à justiça ou, em outros casos, evitar que se torne excessivamente morosa ou onerosa a defesa de uma ou mais partes. Por exemplo: o indivíduo que esteja em condições de demonstrar com facilidade a sua ilegitimidade passiva em determinada causa, se demandado em litisconsórcio passivo com inúmeros corréus, pode ter de esperar todo o processamento inicial da causa para livrar-se do ônus injusto que lhe foi imposto pelo autor. Em princípio, os processos originados por esse desmembramento são dirigidos ao mesmo juiz perante o qual tramitava a causa originária, porque eles são uma continuação do processo primitivo. Entretanto, há casos em que o simples desmembramento, sem modificação de competência, não é capaz de garantir a celeridade e a viabilidade da causa, como, por exemplo, na execução de algumas ações coletivas, como as ações civis públicas. Isso porque essas demandas normalmente são propostas pelo Ministério Público ou por associações em benefício de muitos interessados, integrantes de determinado grupo de indivíduos. Então, a sentença de procedência irá beneficiar inúmeras pessoas, de modo que, se todas quiserem promover simultaneamente a liquidação e a execução da indenização resultante do prejuízo individual que sofreram, se instalará uma situação caótica. Sendo assim, será que todas essas execuções serão da competência de um mesmo juízo?
Luiz Paulo da Silva Araújo Filho1, ao tratar da tutela dos direitos individuais homogêneos nas ações civis públicas, narra um caso ocorrido no Rio de Janeiro no qual uma única sentença proferida no bojo de uma ação civil pública deu causa a dezoito mil e quinhentas liquidações e suas respectivas execuções. Diante dessa hipótese, esse autor defende que tais execuções e liquidações têm de ser livremente distribuídas a todas as demais varas com competência para a matéria, e não ficar vinculadas ao juízo que conduziu a fase de conhecimento, pois não haveria meios para o seu processamento simultâneo perante um único órgão jurisdicional. Assim, mostra-se mais prudente a distribuição desse ônus equitativamente aos outros juízes que tenham a mesma competência. A lei e a doutrina, ao criarem o princípio da perpetuação da competência, não podiam prever que essas situações, que geralmente são oriundas do chamado contencioso de massa, viessem a ocorrer. Em verdade, como já foi abordado, a perpetuação da competência foi instituída visando a assegurar a garantia do juiz natural, evitando-se que haja qualquer possibilidade de escolha do julgador. A impossibilidade de retirada do processo do juízo legalmente competente é uma garantia democrática, que confere segurança às partes quanto à impessoalidade da jurisdição. Quando há fatores decorrentes da eficiência da administração da justiça, que impõem o desmembramento e a distribuição dos processos dele decorrentes por razões práticas evidentes, ou seja, quando essa medida for adotada para assegurar a própria viabilidade da causa, como no exemplo da ação civil pública mencionada anteriormente, não há nenhuma violação à impessoalidade dos juízes. Cumpre advertir que o artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição da República estabeleceu como direito fundamental das partes a duração razoável do processo. Por outro lado, embora prevista pela própria lei a modificação da competência, nos casos de extinção do órgão jurisdicional ou de alteração das regras de competência absoluta, violaria a garantia do juiz natural a lei que adotasse uma dessas providências com o evidente intuito de subtrair determinada ou determinadas causas do juízo previamente instituído pela lei como competente, ou para impor-lhes um juízo supostamente mais ou menos favorável, e não por estritas e impessoais razões de eficiência e racionalização do serviço judiciário.
7.2. PREVENÇÃO Outro instituto, bem próximo ao da perpetuação de competência, que cabe examinar, é o da prevenção do juízo, que se define como a fixação da competência para determinada causa em um determinado órgão jurisdicional, quando, de acordo com os critérios e regras de competência, dois ou mais órgãos forem igualmente competentes. Por meio da prevenção, busca-se solucionar as hipóteses em que a aplicação das regras de competência oriundas dos critérios objetivo, funcional e territorial, conduz a dois ou mais juízos igualmente competentes para conhecerem da mesma causa. Por exemplo: se o autor propõe uma ação em face de dois réus que possuem domicílios diferentes, abrangidos por comarcas diversas, a aplicação das regras de competência poderá levá-lo à conclusão de que é possível aforar a causa tanto no foro do domicílio do primeiro quanto no do segundo (CPC de 1973, art. 94, § 4º; CPC de 2015, art. 46, § 4º). Da mesma maneira, uma ação possessória referente a uma fazenda cuja extensão ocupa no todo ou em parte a área geográfica de duas comarcas poderá ser proposta no foro de qualquer uma delas. Assim, nos dois exemplos citados acima, há, pelo menos, dois juízos igualmente competentes, situados em comarcas distintas. Contudo, não é apenas em virtude da multiplicidade de réus ou em razão da extensão dos bens que se pode chegar a dois ou mais juízos igualmente competentes. A competência para a ação de despejo relativa a um imóvel situado em Copacabana, por exemplo, poderá ser de quaisquer das varas cíveis da comarca da capital do Estado do Rio de Janeiro, que atualmente são cinquenta, numeradas da 1ª à 50ª. Neste terceiro exemplo, ao contrário dos outros, não há dois ou mais foros competentes a serem escolhidos pelo autor; todavia, num único foro, há cinquenta varas cíveis igualmente competentes em razão da matéria para o julgamento da causa. Quando em uma mesma comarca houver dois ou mais órgãos jurisdicionais com a mesma competência, a lei impõe a chamada distribuição, que é a escolha pública, alternada e aleatória do juízo para o qual será remetido o processo (CPC de 1973, arts. 251 e 252; CPC de 2015, arts. 284 e 285). Essa escolha é realizada por sorteio, que, atualmente, nas principais comarcas, é feito por meios eletrônicos.
A prevenção, portanto, serve para fixar a competência de forma exclusiva em determinado órgão jurisdicional, sempre que a aplicação dos critérios determinativos da competência levar a dois ou mais juízos igualmente competentes. Estes poderão estar situados ou não na mesma comarca, como vimos nos exemplos acima. No Código de 1973, o que fixa num único órgão jurisdicional a competência para determinada causa com a exclusão de qualquer outro, ou seja, o que torna prevento o juízo é a citação válida, conforme estabelece o seu artigo 219. A citação, como estudaremos mais adiante, é o ato de comunicação processual que dá ciência ao réu ou interessado da propositura de uma ação de seu interesse e do ônus de participar do processo daí resultante, inclusive nele exercendo a sua defesa (CPC de 1973, art. 213; CPC de 2015, art. 238). O § 2º do artigo 219 do Código de 1973 determina que o autor promova a citação do réu nos 10 (dez) dias subsequentes ao despacho que a ordenar. Se a citação tiver sido cumprida no prazo legal assinalado, ou ainda que este prazo seja extrapolado sem que a demora decorra da inércia ou de culpa do autor, a prevenção do juízo retroagirá à data do ajuizamento da ação, ou seja, à data em que a petição foi protocolada, despachada pelo juiz ou distribuída (art. 263). Por exemplo: determinado indivíduo propôs duas ações idênticas, que foram distribuídas a varas diferentes. A primeira foi ajuizada no dia 1º de março, o despacho do juiz ordenando a citação foi proferido no dia 05 de março e a citação foi realizada no dia 30 desse mês. A segunda ação foi proposta no dia 20 de março, o despacho da inicial se deu no dia 25 de março e a citação no dia 04 de abril. Se na primeira ação a inobservância do prazo de dez dias entre a ordem do juiz e a citação tiver sido causada por algum motivo não imputável ao autor, a citação feita no dia 30 de março retroagirá seus efeitos ao dia 1º de março e estará prevento o respectivo juízo. Entretanto, se a citação da primeira ação se retardou por mais de dez dias por culpa ou inércia do autor, não haverá retroação dos seus efeitos à data do ajuizamento e, portanto, o juízo prevento é o da segunda ação, uma vez que, nesta, observado o prazo legal de dez dias, a citação, realizada no dia 4 de abril, retroagirá seus efeitos ao dia 20 de março, ainda que tenha sido proposta
posteriormente, enquanto, na anterior, a citação, não retroagindo os seus efeitos, somente tornaria prevento o juízo na data em que foi efetivada (30 de março), ocasião em que o juízo já havia se tornado prevento na segunda. O Código de 2015 deu um passo adiante na simplificação do critério de prevenção, desvinculando-a da citação ou da efetivação desta no prazo legal e determinando no artigo 59 que o registro ou distribuição da petição inicial torna prevento o juízo. Como já vimos a respeito da perpetuação da competência, tendo em vista que esses atos normalmente se concretizam no momento imediatamente seguinte ao ajuizamento da petição inicial, com o protocolo desta coincidirá a prevenção, o que, aliás, é o entendimento mais correto e justo para o autor diligente, para que a fixação do juízo competente não fique na dependência de eventual e incontrolável registro ou distribuição por obstáculo burocrático, que foi exatamente o que justificou a desvinculação da prevenção em relação à citação. Ouso convictamente afirmar que no regime do Código de 2015, ainda mais do que no regime do Código de 1973, é o protocolo da petição inicial que previne o juízo, salvo se comprovado algum fato anormal, imputável ao autor, que injustificadamente retarde o registro ou a distribuição. A prevenção do juízo também se aplica a outros institutos, por exemplo, os de conexão entre duas ou mais ações da competência territorial de juízos diversos.
7.3. CONEXÃO A conexão é a analogia, a semelhança que existe entre duas ou mais ações. Entretanto, o processo civil e o processo penal a conceituam de forma diversa. No processo penal, por exemplo, duas ações são conexas, entre outros casos (CPP, art. 76), quando são movidas em face dos autores de um mesmo crime. Se os acusados estão sendo processados perante juízos diversos e eles cometeram o mesmo crime, ou praticaram crimes diferentes, mas que guardam entre si uma grande identidade fática, como os crimes de furto e receptação, por exemplo, há conexão entre as ações. Por outro lado, no âmbito do processo civil, o conceito de conexão não é unívoco. O Código de 1973, no artigo 103, estabeleceu um conceito legal de conexão muito restrito, repetido no artigo 55 do Código de 2015. A doutrina se encarregou de demonstrar que esse conceito não satisfaz a todas as hipóteses em
que a própria lei se refere ao instituto2. Assim, por exemplo, o conceito de conexão é mais amplo na reconvenção, que prevê a conexão desta com o fundamento da defesa do réu (CPC de 1973, art. 315; CPC de 2015, art. 343). De acordo com o disposto nos artigos 103 do Código de 1973 e 55 do Código de 2015, em princípio, são conexas duas ou mais ações que possuam o mesmo pedido ou a mesma causa de pedir. Quando duas causas tiverem pelo menos um desses elementos em comum, serão reputadas conexas, mas não idênticas. O elemento objetivo comum pode ser o mesmo bem da vida que se disputa em juízo. Assim, são conexas duas ações reivindicatórias referentes ao mesmo imóvel, ainda que as partes envolvidas sejam diferentes. As ações também podem ser conexas em função da relação jurídica de direito material que constitui o fundamento do pedido. Por exemplo: o locador propõe uma ação de despejo em face do locatário, visando a rescindir o contrato e a receber os valores em atraso, alegando que não está sendo efetuado o pagamento dos aluguéis. O locatário, por sua vez, ajuíza em face do locador uma ação de consignação em pagamento, alegando que os aluguéis estão sendo pagos regularmente e que o credor (locador) se recusa a recebê-los. Nessas duas ações os pedidos estão fundados numa mesma relação jurídica de direito material, que é a locação entre as partes e que parcialmente compõe a causa de pedir das duas demandas. Por motivos de conveniência e oportunidade aferidos pelo juiz, duas ou mais ações conexas que tramitem perante juízos diferentes podem ser reunidas num único processo e julgadas simultaneamente (art. 105 do Código de 1973). A reunião de ações conexas num só processo ocorre por dois fundamentos: o primeiro é a economia processual, possibilitando a instrução das duas ações ao mesmo tempo; o segundo fundamento é o de evitar que em causas que possuam, ao menos parcialmente, o mesmo pedido ou a mesma causa de pedir sejam proferidas decisões contraditórias. Por exemplo: o filho natural não reconhecido propõe contra o seu suposto pai, em dois processos distintos, uma ação de alimentos e uma ação de investigação da paternidade. O juiz da ação de alimentos, reconhecendo a paternidade, o vínculo filial, julgou-a procedente, ao passo que a ação de investigação de
paternidade foi julgada improcedente pelo juiz da segunda ação. De acordo com esse resultado esdrúxulo, o réu deverá prestar alimentos, porque o juiz da primeira ação reconheceu que o autor é seu filho, mas este não terá a paternidade reconhecida para todos os outros efeitos, em razão da decisão proferida no segundo processo. Nesse exemplo, o processamento e o julgamento das ações separadamente geraram decisões contraditórias, que produzem, inclusive, resultados práticos danosos à segurança jurídica. Entretanto, nem sempre se mostra proveitosa a reunião de duas ou mais ações conexas num mesmo processo, pois há hipóteses em que ela pode prejudicar a celeridade processual. É o que ocorre, por exemplo, quando uma das ações já está muito próxima do seu julgamento, enquanto a outra se encontra em fase inicial. Nesse caso, a reunião das ações poderá causar um retardamento injustificado do julgamento da ação que está mais avançada. Voltando ao exemplo do filho que propôs as duas ações em face do suposto pai, se a ação de investigação de paternidade foi proposta antes da ação de alimentos, o juiz desta poderá – trata-se de uma faculdade – suspender o processo por até um ano, aplicando a regra do artigo 265, inciso IV, do Código de 1973. Contudo, se a ação de investigação foi proposta depois da ação de alimentos, o processo não deve ser suspenso, uma vez que a procedência da paternidade não depende da condenação do réu à prestação de alimentos. Na vigência do Código de 1973, o entendimento francamente dominante é o de que a reunião de ações conexas é facultativa. Os juízes das ações conexas devem ponderar se é mais conveniente reuni-las e julgá-las simultaneamente ou não, levando em consideração a economia processual e a possibilidade de serem proferidas decisões contraditórias. O Código de 2015 manteve o mesmo conceito básico de conexão, que a caracteriza pela identidade de um elemento objetivo da causa, pedido ou causa de pedir, mas a estendeu também a todas as hipóteses em que possam existir em duas ou mais causas questões que possam gerar decisões conflitantes ou contraditórias (art. 55, § 3º). Essas noções, de extensão bastante imprecisa, permitem a reunião por conexão de quaisquer causas que possam ter um elemento fático ou jurídico comum ou semelhante ou em que elemento fático ou jurídico de uma possa influenciar o julgamento de outra. Levada ao extremo, essa correlação pode tornar-se motivo de retardamento injustificado da prestação
jurisdicional ou de imposição de ônus excessivo ao acesso à justiça de um ou mais litigantes, em benefício de uma hipotética e utópica busca de harmonia e de coerência entre todas as decisões, que contraria a finalidade da jurisdição – a tutela efetiva dos interesses legítimos dos jurisdicionados – e o próprio método, que lhe é característico, de julgamento de casos concretos, de apreciação de fatos determinados e de exame de questões jurídicas em face desses fatos e à luz das suas circunstâncias particulares. Além disso, essa busca de harmonia absoluta pode entrar em choque com outras disposições legais, que devem ser respeitadas. Assim, por exemplo, o artigo 104 do Código do Consumidor (Lei n. 8.078/90) permite que, proposta ação coletiva para a tutela de um direito individual homogêneo, o autor de ação individual anteriormente proposta prossiga com o processo desta, se não requerer a sua suspensão no prazo de trinta dias do conhecimento do ajuizamento da ação coletiva. O que está em jogo aqui é a liberdade individual de qualquer cidadão de perseguir a tutela do seu direito em juízo pela via que julgar mais adequada, que a conveniência de evitar decisões conflitantes ou contraditórias não pode desprezar, submetendo-o autoritariamente à condução da defesa do seu interesse por outra via. Portanto, a nova regra do § 3º do artigo 55 do Código de 2015 deve ser aplicada em conformidade com os critérios hermenêuticos constantes do artigo 8º, em especial com os critérios da razoabilidade e da eficiência, a que fizemos alusão no item 2.2.6. Por outro lado, a redação dos §§ 1º a 3º desse artigo 55 pode gerar a impressão, que me parece errônea, de que a reunião de ações conexas seja obrigatória, sempre que ocorrerem as circunstâncias de similitude constantes do seu caput, do seu § 3º ou nas hipóteses casuísticas do seu § 2º: execução de título judicial e ação de conhecimento relativa ao mesmo ato jurídico; ou execuções fundadas no mesmo título executivo. Apesar de toda a ênfase que o Código de 2015 confere à conveniência de uniformidade nas decisões judiciais e à sua coerência, o que se exterioriza nos diversos mecanismos que prestigia ou institui para a consolidação da jurisprudência, é inevitável que a decisão sobre a reunião de ações conexas fique sempre submetida a um preponderante juízo de utilidade, ou seja, de conveniência e oportunidade, com caráter preponderantemente discricionário. Por outro lado, nenhuma sinalização suficientemente enfática dessa suposta obrigatoriedade se encontra no Código de 2015 quando trata dos pressupostos de
validade do processo ou do tema das invalidades processuais. Isso significa que, mesmo em hipóteses em que o legislador é expresso, como as do § 2º do artigo 55, em recomendar a reunião de ações no mesmo processo, há um largo espaço para deixar de aplicar tal recomendação, tendo em vista inúmeros fatores, como o estágio em que se encontre um ou outro processo, a maior necessidade ou utilidade de associar a solução de um à do outro, a excessiva morosidade ou onerosidade que poderão decorrer dessa reunião. Não se pode esquecer, ademais, que a reunião de ações conexas implicará cumulação de ações no mesmo processo, cujos pressupostos, de que trataremos mais adiante no item 8.7, poderão impedir, sob pena de nulidade, essa reunião. Resta saber perante qual dos juízos envolvidos as ações vão ser reunidas. Para se resolver essa questão, no regime do Código de 1973, aplica-se à conexão a regra especial de prevenção do artigo 106, não reproduzida no Código de 2015, segundo a qual, “correndo em separado ações conexas perante juízes que têm a mesma competência territorial, considera-se prevento aquele que despachou em primeiro lugar”, ou seja, aquele que primeiro tiver proferido o despacho positivo de recebimento da petição inicial. Conforme se depreende da própria redação desse artigo 106, a lei processual dispensou uma regra específica para a reunião de ações conexas em trâmite perante juízes de mesma competência territorial. Esse Código foi omisso quanto ao juízo competente para a reunião de ações conexas em curso perante juízos de competência territorial diversa. Por exemplo: uma ação de despejo movida pelo locador está sendo processada na comarca da capital do Rio de Janeiro, enquanto a ação de consignação ajuizada pelo locatário tramita na comarca de Niterói. Nesse caso, qual dos juízos estará prevento caso haja a reunião das duas ações num único processo? Na omissão da lei, a doutrina dominante defende a aplicação da regra geral de prevenção, prevista no artigo 219 do Código de 1973, em detrimento da regra do artigo 106 desse diploma, pois considera que esta é uma regra especial e, portanto, somente aplicável às ações conexas processadas perante juízos que têm a mesma competência territorial. Assim, seguindo o entendimento doutrinário dominante, se os juízes das ações conexas possuem competência territorial diversa, no regime do Código de 1973, a prevenção é fixada de acordo com a regra geral do artigo 219: ocorrendo a
citação válida no prazo legal de dez dias, ou extrapolado este sem culpa do autor, os seus efeitos retroagirão à data do ajuizamento da ação, e o juízo prevento será aquele cuja causa, cronologicamente, preceder a outra quanto à sua propositura. O Código de 2015 simplificou esse regime, adotando uma regra de prevenção uniforme em qualquer caso, que é a do juízo em que primeiro tiver ocorrido o registro ou a distribuição (arts. 58 e 59), o que resulta, na prática e normalmente, conforme explicado no item anterior, na fixação da competência para a reunião de ações conexas com base na prioridade do ajuizamento da petição inicial. A reunião de ações conexas que se encontrem pendentes perante juízos diversos é uma causa de modificação da competência. Juízos antes competentes para uma e outra ação têm a sua competência modificada: um passa a ser competente também para a outra; e o outro, para esta, deixa de ser competente, porque a conveniência de que essas causas sejam decididas simultaneamente (CPC de 2015) impõe a sua reunião numa única relação processual. Recentemente, o artigo 253, inciso I, do Código de 1973 foi alterado pela Lei n. 10.358/2001, para determinar a distribuição por dependência, ou seja, ao mesmo juízo anteriormente prevento, das ações conexas ulteriormente propostas, mesmo que o processo da primeira ação já se encontre extinto. O Código de 2015 incorporou esse dispositivo no seu artigo 286. Interpreto esse dispositivo assentado na premissa de que a finalidade da conexão não é determinar a unidade de juízo competente, mas a unidade de processo, a cumulação de ações para julgamento em simultaneus processus. Se, em razão do estado da causa originalmente proposta, a causa distribuída por dependência não puder mais formar com a primeira um único e mesmo processo, o juízo prevento deverá remeter essa última à livre distribuição, ou seja, ao sorteio aleatório onde houver mais de um juízo com a mesma competência (CPC de 1973, arts. 251 e 252; CPC de 2015, arts. 284 e 285). Se se entender que o juízo originalmente prevento deverá, nesse caso, ser sempre competente para qualquer ação futura que, no todo ou em parte, apresente algum elemento objetivo comum com a ação primitiva, parece-me que estarão gravemente ameaçadas a impessoalidade da jurisdição e a garantia do juiz natural, ainda mais se se adotar um conceito amplo de conexão, como o que sugere § 3º do artigo 55 do Código de 2015.
7.4. CONTINÊNCIA Na continência, a afinidade entre duas ou mais ações é ainda mais intensa do que na conexão. Entre ações conexas, há um elemento objetivo comum – pedido ou causa de pedir –, mas elas são diversas, enquanto na continência as ações possuem as mesmas partes e a mesma causa de pedir; porém, o pedido de uma é mais abrangente do que o da outra, vale dizer, o pedido de uma está contido no da outra (CPC de 1973, art. 104; CPC de 2015, art. 56). Por exemplo: o autor, vítima de um atropelamento, propõe uma ação de responsabilidade civil requerendo a condenação do réu ao pagamento da importância de 10 (dez) mil reais a título de indenização. Numa outra ação posterior, proposta contra o mesmo réu e baseada nos mesmos fatos e no mesmo direito, o autor requer o pagamento de 12 (doze) mil reais. As ações são praticamente idênticas, pois envolvem as mesmas partes e possuem a mesma causa de pedir; porém, o pedido da segunda é um pouco mais amplo do que o da primeira. Nesse exemplo, há continência entre as ações, uma vez que o pedido de uma abrange o da outra. Na disciplina da continência, há uma imperfeição no Código de 1973, ao aplicar àquela as regras da conexão quanto à reunião das ações num único processo (art. 105). Na verdade, essa disciplina nem precisava existir na lei, porque, se a ação anterior é a de pedido mais amplo, a segunda deveria ser extinta por litispendência (CPC de 1973, arts. 267, inc. V, e 301, §§ 1º a 3º), visto ser idêntica à primeira – possuindo os mesmos elementos individualizadores. Na hipótese inversa, se o pedido mais amplo é o da ação posterior, há litispendência em relação à parte do pedido que se repete, mas há apenas conexão em relação à parte do pedido da segunda ação que exceder o deduzido na primeira ação. Assim, sendo o pedido mais amplo deduzido na ação posterior, aplicam-se a esta as regras da conexão, já comentadas no item anterior, estabelecidas nos artigos 219 e 106 do Código de 1973. Nesse sentido, foi corrigido no Código de 2015 o equívoco do Código de 1973, por meio do artigo 57, segundo o qual, “quando houver continência e a ação continente tiver sido proposta anteriormente, no processo relativo à ação contida será proferida sentença sem resolução de mérito; caso contrário, as ações serão necessariamente reunidas”.
Por identidade de razões já aduzidas a respeito da suposta obrigatoriedade da conexão, aqui também cabe a crítica ao uso do advérbio “necessariamente”. É absolutamente irrazoável supor que o simples fato de propor uma ação de pedido mais amplo posteriormente a outra de pedido menos amplo obrigue a fazer incidir no processo em curso essa nova ação que pode tornar-se um fator extremamente perturbador do adequado exercício da função jurisdicional em relação à primeira. Muito menos se poderia cogitar de entender que, se os dois processos tivessem seguido em separado, a falta de reunião poderia constituir alguma nulidade. Bastaria que o juízo da segunda ação não conhecesse do feito em relação à parte em que houvesse litispendência, processando e julgando apenas a parte mais ampla do pedido.
7.5. PRORROGAÇÃO DA COMPETÊNCIA A expressão prorrogação da competência nem sempre é utilizada corretamente pelo legislador. Conceitualmente, é a extensão da competência de determinado órgão jurisdicional para julgar certa causa ao julgamento de outra, que com a primeira mantém algum vínculo. O juízo que se mostra competente para julgar a primeira causa passa a sê-lo, automaticamente, ou seja, independentemente da aferição das regras relativas aos diversos critérios de determinação de competência, para o julgamento de outras causas que com aquela guardem determinada relação. Há, portanto, uma vinculação das demais causas ao juiz que processa ou que julgou a primeira, devido a determinada afinidade que exista entre elas. A prorrogação da competência ocorre no julgamento das causas acessórias, incidentes, consequentes e também na chamada distribuição por dependência. 7.5.1. Causas ou ações acessórias O que é uma causa acessória? É uma causa que só existe para produzir efeitos em outra, da qual é dependente. Exemplo clássico de causa acessória é o das medidas ou ações cautelares, disciplinadas nos artigos 796 e seguintes do Código de 1973 e tratadas no Código de 1973 no âmbito da chamada tutela provisória de urgência (arts. 294 e ss.). A vinculação das ações acessórias ao juízo competente para a ação principal está expressa nos artigos 108 do Código
de 1973 e 61 do Código de 2015. As medidas cautelares podem ser antecedentes ou incidentes. São chamadas incidentes quando propostas no curso da ação principal. Nesse caso, devem ser propostas perante o mesmo juízo da ação principal (CPC de 1973, art. 800; CPC de 2015, art. 299). Por exemplo: proposta a ação de cobrança, o autor, ao perceber que o réu está dissipando os seus bens, ajuíza uma medida cautelar de arresto para evitar que se frustre a execução futura da sentença que reconhecer o seu direito ao crédito. O arresto deverá ser requerido ao mesmo juízo em que estiver correndo a ação principal, a ação de cobrança da dívida. As medidas cautelares antecedentes, também chamadas de preparatórias, são aquelas propostas antes da ação principal. Por vezes, a urgência imposta pelas circunstâncias do caso concreto é tão grande que certas medidas têm de ser propostas antes mesmo da ação principal. Nessas hipóteses, a petição inicial da ação cautelar preparatória ou preventiva deverá ser dirigida ao juízo que seria competente para conhecer da ação principal. Há, contudo, exceções a essa última regra. As medidas cautelares que não têm instrumentalidade imediata e que não são restritivas de direitos, quando preparatórias, não previnem o juízo competente para a ação principal. É o caso, por exemplo, no Código de 1973, das justificações e das notificações (arts. 861 a 873) e, no Código de 2015, da produção antecipada da prova (art. 381, §§ 2º e 3º) e também das notificações (arts. 726 a 729). 7.5.2. Causas ou ações incidentes A segunda hipótese de prorrogação da competência ocorre nas chamadas ações incidentes, que são ações propostas no curso de outras para que com estas sejam julgadas simultaneamente ou não; são ações autônomas, mas que incidem sobre causas já em andamento. As ações incidentes podem provocar um julgamento simultâneo, na mesma sentença, pela conexão que existe entre elas e a ação principal, ou por produzirem efeitos numa ação que já está em curso. No Código de 1973, o fundamento legal da prorrogação da competência da ação principal para a ação incidente está no artigo 109, segundo o qual “o juiz da
causa principal é também competente para a reconvenção, a ação declaratória incidente, as ações de garantia e outras que respeitam ao terceiro interveniente”. No Código de 2015 não existe norma expressa equivalente, mas o novo diploma, em todos os procedimentos e ações incidentes, se refere ao seu processamento e julgamento pelo juízo da causa principal, conforme exemplificativamente exporemos adiante. A reconvenção, a que alude o artigo 109 do Código de 1973, está disciplinada nos seus artigos 315 a 318 e no artigo 343 do Código de 2015. O réu, citado para se defender, pode aproveitar o processo em que está sendo demandado para formular um pedido contra o autor. Na reconvenção, portanto, além de se defender, o réu contra-ataca, propondo, incidentalmente, uma ação em face do autor, que deve ser conexa com a ação que este lhe propôs ou com o fundamento da defesa. Por exemplo: uma mulher propôs contra o seu cônjuge uma ação de separação, fundada na culpa do marido. O marido, citado, defende-se e, simultaneamente, propõe a reconvenção contra a mulher, pedindo também a separação, mas por culpa desta. Em seguida, o artigo 109 do Código de 1973 menciona a prorrogação da competência nos casos de ação declaratória incidente, que pode ser de dois tipos. O primeiro deles é a ação declaratória incidental, que visa à extensão dos efeitos da coisa julgada a um dos fundamentos do pedido do autor. A ação declaratória incidental está prevista nos artigos 5º, 325 e 470 do Código de 1973, através da qual uma das partes pede ao juiz que declare por sentença a existência ou inexistência de determinada relação jurídica que constitui fundamento do pedido. Por exemplo: o filho natural não reconhecido propõe uma ação de alimentos apenas alegando a paternidade, sem, contudo, requerer ao juiz a sua declaração. O réu contestou a ação, o processo foi até o fim e, comprovada a paternidade, o juiz julgou procedentes os alimentos. Essa sentença só é eficaz quanto aos alimentos, mas não quanto à paternidade, porque, embora a paternidade constitua pressuposto dos alimentos, nenhuma das partes pediu a declaração da sua existência ou inexistência. O artigo 469 do Código de 1973 estabelece que o que vai fazer coisa julgada na sentença é apenas o seu dispositivo, a sua parte
conclusiva, na qual há o julgamento do pedido. O filho, no exemplo trazido acima, poderia ter cumulado o pedido de reconhecimento da paternidade com o de prestação de alimentos, mas como não o fez, o réu, através da reconvenção, pode propor uma ação declaratória incidental para que o juiz declare por sentença a existência ou não dessa relação jurídica. Essa é uma ação incidente, uma ação em que o réu, diante da controvérsia instalada acerca da existência do direito que constitui fundamento essencial do pedido do autor, pede que o juiz a declare definitivamente por sentença. Normalmente, ao ajuizar o pedido de alimentos, também se requer a declaração de paternidade, mas o autor não é obrigado a pedir uma sentença definitiva sobre a paternidade, podendo limitar-se a alegá-la tão somente como fundamento do pedido de alimentos. A ação sobre a paternidade, movida pelo réu através de reconvenção ou pelo próprio autor na réplica (art. 325), é uma ação incidental, porque no curso da ação de alimentos foi formulado outro pedido, que será objeto da mesma sentença. A questão da paternidade não será apenas decidida como fundamento para o julgamento dos alimentos, mas decidida em definitivo, com força de coisa julgada, desde que atendidos os requisitos do artigo 470 do Código de 1973. No Código de 2015, desaparece a ação declaratória incidental como instituto autônomo. Não haverá mais necessidade de expressa propositura de uma ação incidente para que a coisa julgada seja estendida à questão prejudicial. Nos termos do § 1º do artigo 503 a coisa julgada abrangerá a questão prejudicial resolvida expressa e incidentalmente no processo se dela depender o julgamento do pedido principal, se a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo e se o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolver essa questão como principal. Há outro tipo de ações declaratórias incidentes, como, por exemplo, o incidente de arguição de falsidade, regulado nos artigos 390 a 395 do Código de 1973 e 430 a 433 do Código de 2015. Assim, se uma das partes juntou um documento aos autos, mas a outra acredita que esse documento seja falso, a parte que suspeita da falsidade do documento tem o direito de, nesse mesmo processo, pedir a sua declaração.
No Código de 1973 o incidente de arguição de falsidade é uma ação declaratória incidente que não vai provocar o julgamento simultâneo da ação incidente com a ação principal (arts. 394 e 395). No Código de 2015 o incidente somente constituirá uma ação autônoma se a parte requerer que o juiz o decida como questão principal (arts. 19, inc. II, 430, parágrafo único, e 433), não havendo mais previsão de necessária suspensão do julgamento do pedido principal. Outros exemplos de ações incidentes são os embargos do devedor (CPC de 1973, arts. 745 a 746; CPC de 2015, arts. 914 a 920) e os embargos de terceiro (CPC de 1973, arts. 1.046 a 1.054; CPC de 2015, arts. 674 a 681). Estes últimos são cabíveis, por exemplo, quando um terceiro tiver um bem penhorado numa execução em que não for parte. Neste caso, os embargos de terceiro devem ser opostos no juízo perante o qual corre a ação ou a execução, de acordo com o artigo 1.049 do Código de 1973 e com os artigos 674 e 675 do Código de 2015. Vale lembrar que os embargos de terceiro são ações propostas por um terceiro interveniente, enquanto os embargos do devedor são ações propostas pelo próprio réu, pelo próprio executado, como meio de defender-se da execução contra ele movida. Cumpre observar que o rol presente no artigo 109 do Código de 1973 não é exaustivo. Há outras ações incidentes que também são de competência do juízo da ação principal. Conforme observamos anteriormente, no Código de 2015 não existe uma norma correspondente à do artigo 109 do Código de 1973, mas todos os procedimentos ou ações incidentes são da competência do juízo da causa principal, conforme se pode observar, além dos já mencionados, exemplificativamente nos seguintes casos: na assistência (art. 121), no incidente de desconsideração da personalidade jurídica (arts. 133 a 137), no incidente de impedimento ou suspeição do membro do Ministério Público, de auxiliares da justiça ou de outros sujeitos imparciais do processo (art. 148), na exibição de documento ou coisa (arts. 396 e ss.). Exceções são o incidente de impedimento ou suspeição do juiz, que será julgado pelo tribunal ao qual o juiz está subordinado em grau de recurso (art. 146), o conflito de competência (arts. 951 a 959) e o incidente de resolução de demandas repetitivas proposto no curso de causa no primeiro grau de jurisdição (art. 977, inc. I). Em alguns incidentes, nos processos perante os tribunais superiores, a competência pode ser de órgão diverso do mesmo
tribunal, como no incidente de assunção de competência (art. 947), no incidente de arguição de inconstitucionalidade (art. 950), no incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 978). Ressalte-se que, por exceção, a intervenção da União, das empresas públicas federais, de entidades autárquicas ou fundações federais e dos conselhos de fiscalização de profissões, na qualidade de parte ou de terceiro, em qualquer causa, provoca a modificação da competência, que se desloca para o juízo federal, nos termos do artigo 45 do Código de 2015, salvo nas causas falimentares, de acidentes do trabalho, eleitorais ou trabalhistas. 7.5.3. Causas ou ações consequentes A prorrogação da competência estende a competência do juízo da ação principal a outra causa acessória, incidente e, eventualmente, consequente. Os Códigos de 1973 e de 2015, diferentemente do Código de 1939, não possuem uma regra geral de prorrogação da competência do juízo da ação antecedente para a ação consequente. A ação consequente é uma ação derivada de outra ação anterior normalmente já finda. Nessas ações, o primeiro processo já chegou ao seu termo, mas, como consequência da decisão nele proferida, vai surgir outro processo, que também ficará vinculado ao juízo que julgou a ação antecedente. Como foi observado, os Códigos atuais não dispõem de uma regra geral sobre o tema, mas encontram-se casos específicos em que essa prorrogação da competência da ação consequente está expressamente prevista. Assim, no Código de 1973, o artigo 475-P, acrescentado pela Lei n. 11.232/2005, correspondente no Código de 2015 ao artigo 516, estabelece que o cumprimento de sentença efetuar-se-á perante “o juízo que decidiu a causa no primeiro grau de jurisdição”. É verdade que essa regra sofre as exceções que se encontram nos parágrafos únicos desses dois artigos. Outro exemplo de ação consequente é a conversão da separação em divórcio, hipótese em que o pedido de conversão deve ser formulado no próprio juízo que decretou a separação (art. 35, parágrafo único, da Lei n. 6.515/77). Há, entretanto, entendimento divergente quanto ao alcance desse dispositivo nos
casos em que a mulher tenha mudado de domicílio, pois o artigo 100, inciso I, do Código de 1973, determina que seja competente o foro da residência da mulher, para a ação de separação dos cônjuges, a conversão dessa em divórcio, e para a anulação de casamento. Assim, se após o processo de separação a mulher passou a ter residência em outro domicílio, abrangido territorialmente por juízo diverso daquele que processou a separação, tem-se sustentado que a regra do artigo 100, I, do Código de Processo Civil, deve prevalecer, não havendo, portanto, prorrogação da competência para a sua conversão em divórcio. No Código de 2015, como já comentamos no item 6.5.1.8, a regra de competência na conversão da separação em divórcio é a do inciso I do artigo 53, mas me parece que o artigo 35, parágrafo único, da Lei n. 6.515/77 ainda se aplica aos casos em que nenhum dos ex-cônjuges seja guardião de incapaz e se nenhum deles reside no último domicílio conjugal. Por não haver regra generalizante em vigor relativa à prorrogação da competência de juízo da ação antecedente para o processo e o julgamento da consequente, ao contrário do que ocorria no Código de 1939 (art. 138), os demais casos de ações derivadas de outras, em que não houver disposição expressa, são distribuídos livremente, observadas as regras normais de competência que devam incidir sobre a nova causa proposta. 7.5.4. Distribuição por dependência O art. 253 do Código de 1973, com as alterações nele introduzidas pelas Leis ns.10.358/2001 e 11.280/2006, e o artigo 286 do Código de 2015 instituem outras hipóteses de prorrogação de competência, que não se referem necessariamente a subsequentes ações acessórias, incidentes ou consequentes, determinando a distribuição da ação posterior por dependência ao mesmo juízo da antecedente. A primeira delas (inciso I) é a existência de conexão ou continência entre a ação anteriormente proposta e a nova ação; a segunda (inciso II) é a de reiteração de pedido de processo já extinto sem resolução do mérito, ainda que em litisconsórcio com outros autores ou com parcial alteração dos demandados; e a terceira (inciso III) é a de nova propositura de ação idêntica à outra já ajuizada e
cujo juízo já se encontre prevento. Esses dispositivos tiveram a nítida finalidade de coibir prática, por muitos considerada ilegal, de tentar o autor escolher um determinado juízo, ou de alguns deles tentar fugir, quando vários forem igualmente competentes, para com mais facilidade obter uma liminar ou uma tutela de urgência. A primeira hipótese é bastante extravagante, porque a conexão e a continência não geram necessariamente a cumulação das ações conexas no mesmo processo (art. 105), nem a falta dessa reunião gerará nulidade da decisão de qualquer delas. Por isso, me parece que constituiria mera irregularidade a inobservância do inciso I dos artigos 253 e 286 citados. E, consequentemente, se o juiz perante o qual ocorrer a distribuição por dependência não julgar conveniente e oportuna a cumulação das ações, a meu ver deverá enviar o segundo feito à livre distribuição, caso contrário estariam frustradas as finalidades da conexão e da continência, que são as de evitar decisões contraditórias e de economia processual com a cumulação de várias ações num mesmo processo, e não simplesmente no mesmo juízo. A segunda hipótese me parece ainda menos razoável. Se o juiz extinguiu o primeiro processo sem resolução do mérito, não exerceu qualquer cognição sobre a relação jurídica de direito material, não havendo, a meu ver, nenhum fundamento legítimo para mantê-lo vinculado a uma futura reiteração do pedido, a não ser o de desestimular o autor de voltar a apresentá-lo, o que é muito aleatório, porque os juízes que atuam nos diversos órgãos jurisdicionais não são permanentemente os mesmos. Ademais, é manifestamente injusto que as causas dos litisconsortes, que não participaram do processo primitivo, sejam submetidas a um juiz que de antemão se sabe que tem opinião desfavorável, sem a oportunidade, que a todos deve ser igualmente assegurada, da livre distribuição por sorteio para escolha do órgão julgador. A hipótese do inciso III me parece inútil. Se a litispendência vai determinar a extinção do processo subsequente (CPC de 1973, art. 267, inc. V; CPC de 2015, art. 485, inc. V), não há necessidade de determinar a distribuição por dependência, porque essa extinção, mais cedo ou mais tarde, ocorrerá. A realidade é que essas regras, de duvidosa utilidade, prejudicam em demasia a marcha do processo subsequente que, em muitos casos, acaba ficando retido por
longo tempo à espera de esclarecimento sobre a existência de conexão, de identidade do pedido ou de litispendência que, muitas vezes, dependem de informações de difícil acesso, não estando instantaneamente disponíveis no momento da distribuição ou logo após ela. A sua inobservância pode justificar-se por algum fundamento razoável, como a economia processual, o acesso à justiça, a celeridade, o respeito à garantia do juiz natural, e, ainda que não explicitamente justificada, constituirá mera irregularidade que não prejudicará a validade do processo. 7.5.5. Natureza das regras sobre prorrogação da competência A grande questão teórica acerca da prorrogação da competência é a de saber se suas regras são de competência absoluta ou não, ou seja, se são regras imperativas ou dispositivas, respectivamente. A sua predeterminação na lei levou a doutrina a considerá-las predominantemente imperativas, isto é, de observância obrigatória, cuja violação acarretaria nulidade absoluta do feito em que vier a ser processada a causa subsequente. Entretanto, a jurisprudência tem aplicado essa doutrina com menos rigor em alguns casos, em especial naqueles em que se evidencia que a prorrogação da competência, ao invés de ser um instrumento da economia processual e de evitar decisões contraditórias, pode até dificultar o acesso à justiça, frustrando, portanto, a própria finalidade do processo. Volto ao exemplo da ação civil pública, cuja sentença beneficie milhares de pessoas. Como já tivemos a oportunidade de expor, nas causas que envolvam direitos metaindividuais ou no chamado contencioso de massa, a vinculação automática do juízo que proferiu a sentença para conhecer da execução pode inviabilizar o acesso à justiça dos credores, pela excessiva sobrecarga do órgão jurisdicional responsável pela condução dessas ações subsequentes. Conforme já analisamos, essa desvinculação também pode ocorrer nos casos de conversão da separação em divórcio. Também a partir da reforma da Lei n. 11.232/2005, o Código de 1973 admitiu no
cumprimento da sentença condenatória que o exequente optasse pelo foro do novo domicílio do executado ou da situação dos seus bens (art. 475-P, parágrafo único), o que foi estendido pelo Código de 2015 ao juízo onde deva ser executada a obrigação de fazer ou de não fazer (art. 516, parágrafo único). Igualmente expus que as regras dos artigos 253 do Código de 1973 e 286 do Código de 2015 visam a acelerar a apreciação das questões relativas à conexão, à litispendência ou à repropositura do pedido já extinto, mas sua eventual inobservância não passará de uma mera irregularidade que ao juiz caberá evitar, se ainda não ocorrida, por meio do aperfeiçoamento operacional dos mecanismos de distribuição, mas que não se sujeita a qualquer sanção imponível às partes ou à validade dos atos, nem pode de nenhum modo transformar-se num obstáculo ao acesso à justiça. Observa-se, portanto, que a jurisprudência e a própria lei têm atenuado o caráter absoluto, imperativo dessas regras de prorrogação de competência. Alerte-se que a expressão prorrogação da competência tem sido utilizada de modo impróprio pelo legislador, o que tem levado alguns autores a se referirem a uma prorrogação legal da competência, que abrange hipóteses em que há extensão da competência de um juízo a uma determinada causa já pendente, não sendo esse juízo legalmente competente para processá-la e julgá-la. Nesses casos, o correto seria, em realidade, falar-se em modificação da competência. O principal caso de modificação da competência, a que a lei denomina de prorrogação, está previsto no artigo 114 do Código de 1973 e no artigo 65 do Código de 2015, na hipótese de incompetência relativa, que não foi arguida oportunamente pelo réu. Por exemplo: propõe-se uma ação contra um réu que mora em Campos, mas, contrariando a regra geral de competência do foro do domicílio do réu, o autor a ajuizou na cidade do Rio de Janeiro. O réu, citado na cidade de Campos dos Goytacazes – RJ, poderia arguir no prazo legal a incompetência, mas silenciou quanto a essa questão. Segundo os referidos dispositivos, a competência do juízo da comarca da capital do Estado do Rio de Janeiro ficou prorrogada, uma vez que ele se tornou competente pela não arguição de sua incompetência pelo interessado, o réu.
Na verdade, no exemplo acima, não se está diante de prorrogação da competência no sentido de extensão da competência de uma causa a outra, mas de modificação da competência, pois o juízo do Rio de Janeiro, que não era competente para a causa, passou a sê-lo pela omissão do interessado, ou seja, modificou-se a competência. Na hipótese apresentada, o juízo competente para essa causa por força da lei seria o da comarca de Campos dos Goytacazes; porém, proposta a ação na cidade do Rio de Janeiro e não arguida a incompetência pelo réu, essa causa deixou de ser da sua competência e passou a ser da competência do juízo da cidade do Rio de Janeiro, perante o qual ela foi proposta. O réu não pode mais arguir a incompetência relativa, nem pode o juiz decretá-la de ofício, conforme hoje está cristalizado na Súmula n. 33 do Superior Tribunal de Justiça, exceto na hipótese de abusividade da cláusula de eleição de foro, anteriormente comentada (CPC de 1973, arts. 112, parágrafo único, e 114, com a redação da Lei n. 11.280/2006; CPC de 2015, art. 63, §§ 3º e 4 º). No caso dessa exceção, não se trata nem de prorrogação nem de modificação de competência, mas de vinculação da causa ao juízo legalmente competente, que será aquele em que foi ela proposta com base no foro de eleição ou não, conforme repute o juiz válida ou nula a referida cláusula contratual. ________ 1 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional
dos direitos individuais homogêneos. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 190. 2
Ver BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A conexão de causas como pressuposto da reconvenção. São Paulo: Saraiva, 1979. p. 123-137.
8.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Como já dissemos anteriormente, a Teoria Geral do Processo se assenta em três institutos fundamentais: a jurisdição, a ação e o processo. Sinteticamente, pode-se dizer que a jurisdição é a função estatal de tutela dos interesses particulares, ao passo que a ação é o direito de acesso à jurisdição, que se exerce através do processo. A construção doutrinária em torno do direito de ação começa em 1857, na Alemanha, por meio de uma polêmica entre dois juristas: Bernhard Windscheid, que foi um grande civilista, e Theodor Muther, pesquisador de menor projeção de direito romano e história do direito. A diferença de reputação entre eles era muito grande, pois o primeiro foi um dos principais autores do primeiro projeto do Código Civil alemão, um jurista notável e marcante na história do direito moderno. Já o segundo, apesar de sua grande contribuição para a teoria da ação, dedicou-se à universidade e à vida pública, falecendo precocemente. Windscheid escreveu um estudo sobre a ação no direito romano e foi acerca desse tema que se instalou a polêmica1. Até então, na Antiguidade, na Idade Média e no direito anterior, as ações eram consideradas um meio de defesa do direito material, um verdadeiro complemento do direito material. Esse caráter acessório e dependente do direito de ação em relação ao direito material é que levava o legislador civil – inclusive o nosso legislador de 1916 (art. 75) – a entender que “a todo direito corresponde uma ação, que o assegura”. A ação seria o direito exercido em juízo, o meio de se obter em juízo a proteção do direito. De acordo com essa ótica, se não houvesse ação, não haveria direito, e, se não houvesse direito, não haveria ação. A ação era, assim, um elemento do direito subjetivo. Lendo-se o pensamento de juristas do século XIX, verifica-se que, nas discussões sobre as ações do direito romano, não se sabia com certeza se este era um sistema de direitos ou um sistema de ações, porque os direitos em Roma só
teriam eficácia quando tutelados por alguma ação. Apesar da controvérsia entre os dois juristas mencionados, ambos chegaram a importantes conclusões. A principal delas é a de que a ação é outro direito, não é o mesmo direito subjetivo material, tendo, portanto, características e conteúdo próprios. O direito subjetivo material é o direito do seu titular de exigir de outrem determinados comportamentos, enquanto o direito de ação não é o direito de exigir o comportamento assegurado pelo direito material, mas o direito de obter a prestação jurisdicional, de obter o exercício da jurisdição. Logo, o conteúdo do direito de ação não é o mesmo conteúdo do direito subjetivo material. A partir dessa conclusão começa a nascer o direito processual como ramo autônomo da ciência jurídica, pois, até então, o processo era apenas um complemento do próprio direito material. A autonomia do direito processual, como ramo científico do direito público, é fortalecida com a edição do livro de Oskar Bülow, A teoria das exceções e dos pressupostos processuais, em 1868. Nesse livro, o autor demonstra que, se a ação é outro direito, o processo é também outra relação jurídica. O processo é uma relação jurídica própria, que cria seus próprios direitos subjetivos, seus próprios deveres, ônus, poderes, enfim, com conteúdo totalmente diverso do conteúdo da relação jurídica de direito material. Discute-se se esse livro foi apenas uma obra fundamental na construção das bases da Teoria Geral do Processo ou se tinha também um objetivo político, porque nele o seu autor exalta o papel do Estado, do juiz como autoridade estatal, figura central da relação jurídico-processual. Alguns historiadores do processo veem nessa obra algum reflexo do Estado social, do Estado autoritário, tal como o caracterizava a ideologia que inspirou a unificação alemã na segunda metade do século XIX. Posteriormente, outros juristas se debruçaram sobre o direito de ação, e, aos poucos, a teoria do direito de ação foi evoluindo e servindo como pedra fundamental da construção teórica da autonomia do direito processual. Superadas essas sucintas considerações históricas, convém iniciar o estudo sobre o direito de ação enumerando e comentando os diversos sentidos em que a
palavra ação é utilizada. O Código de 1939, por exemplo, empregava a palavra ação como sinônimo de causa, processo, feito, lide, demanda, pleito e litígio. A questão não é meramente terminológica, como observei no meu pequeno livro sobre a teoria da ação2, mas consiste em reconhecer a existência de vários direitos de diferentes conteúdos, a que igualmente denominamos de direito de ação. A discussão acerca do tema deve ser feita à luz da eficácia concreta de todos os demais direitos que o direito de ação visa a assegurar, delineando-se os seus requisitos, elementos identificadores e os limites a que está sujeito.
8.2. AÇÃO COMO DIREITO CÍVICO O emprego da palavra ação como um direito cívico corresponde ao direito de petição constitucionalmente assegurado (art. 5º, inc. XXXIV, alínea a), que permite a qualquer cidadão dirigir-se ao Poder Judiciário e dele obter um pronunciamento a respeito de qualquer postulação. Nessa acepção, o direito de ação mostra-se absolutamente incondicionado, sendo conferido a qualquer pessoa, independentemente do conteúdo dessa postulação. A ação como direito cívico, relacionada à garantia fundamental do amplo acesso à justiça, é o direito de postular e de defender-se perante o Poder Judiciário, dele recebendo uma resposta sobre determinada pretensão. Essa compreensão do direito de ação tem maior relevância no âmbito do direito constitucional, ainda que mencionada por alguns processualistas. É preciso estar consciente de que a extrema abstração e a indeterminação desse primeiro sentido do direito de ação não são capazes de obrigar o juiz, como seu destinatário, a exercer a jurisdição sobre determinada relação jurídica de direito material. Para que o juiz se pronuncie acerca dessa relação, conforme estudaremos adiante, devem estar presentes certos requisitos, que não se configuram em qualquer postulação dirigida ao Poder Judiciário. Daí a insuficiência desse conceito de ação, do ponto de vista estritamente processual.
8.3. AÇÃO DE DIREITO MATERIAL Emprega-se ainda a palavra ação como pretensão à tutela jurídica do direito
material. Nesse sentido, trata-se de um direito concreto, pertencente apenas ao titular do direito material. De acordo com esse emprego, o titular do direito de ação coincide com o titular do direito material. A ação de direito material é uma garantia daquele que é o titular do direito material, pois, segundo o dogma civilista, a todo direito subjetivo corresponde uma ação, que o assegura. Nesse sentido estabelecia o artigo 75 do Código Civil de 1916. Essa visão concretista do direito de ação é incompleta, pois o direito à jurisdição é igualmente conferido a quem não é titular do direito material. Assim, há o exercício do direito à jurisdição mesmo nas hipóteses em que o juiz declara que o autor não tem razão, que ele não é o titular do direito perseguido. Entretanto, não é correta a suposição de que as teorias concretistas sobre o direito de ação estejam superadas, pois, de qualquer modo, é preciso reconhecer que uma das funções políticas da jurisdição é a de assegurar o acesso ao direito por parte daquele a quem o ordenamento jurídico confere determinado direito subjetivo material. Essa é uma função que ganha relevo no constitucionalismo moderno, em que o Estado se compromete a ser o guardião da eficácia de todos os direitos subjetivos outorgados pelo ordenamento jurídico.
8.4. AÇÃO COMO DIREITO AO PROCESSO JUSTO Por outras vezes, a ação é tratada como o direito ao processo justo. Por essa acepção, o direito de ação é visto como o direito ao meio através do qual é exercida a jurisdição. Enquanto a jurisdição visa a promover a tutela dos direitos dos particulares e a solução dos litígios, o processo é o meio pelo qual se exerce a jurisdição. Em outras palavras, o processo é o instrumento da jurisdição. Em realidade, a ação não é propriamente o direito ao processo, mas o direito à jurisdição. Quando se sustenta que todos têm direito a um processo justo, procura-se garantir aos que atuarem no processo o direito de formular alegações, propor e produzir provas e defender amplamente as suas posições de vantagem, ou seja, pretende-se que a jurisdição se exerça com a observância de todas as chamadas garantias fundamentais do processo. As regras que regem esse processo justo, garantístico, são regras de validade do
processo. Assim, aqueles que se referem à ação como direito ao processo estão confundindo o processo com a jurisdição. O processo, repita-se, é o meio, o caminho, o instrumento para se exercer a jurisdição, mas não é a própria jurisdição. A imparcialidade do juiz, a adequada representação das partes por advogados, o respeito ao contraditório, o adequado exame das postulações e das provas e a fundamentação das decisões são exemplos de garantias que ambos os sujeitos principais do processo têm direito de exigir que o Estado observe no processo através do qual exerce a jurisdição. Então, quando ouvimos falar equivocadamente que a ação é o direito ao meio, devemos lembrar que o meio de exercício da jurisdição é o processo. Entretanto, a jurisdição também pode ser um meio: o meio através do qual o Estado soluciona litígios e tutela interesses particulares. É apenas nesse último sentido que a ação pode ser entendida como direito ao meio.
8.5. AÇÃO COMO DEMANDA Há outro sentido relevante para o direito de ação, que é o de ação como demanda. Esta é o conjunto de elementos propostos pelo autor que delimitam o objeto litigioso, ou a pretensão sobre a qual o juiz vai exercer a jurisdição (res in judicium deducta). De acordo com o princípio da demanda, incumbe ao autor fixar os limites objetivos e subjetivos das questões sobre as quais deverá o juiz exercer a jurisdição. Essa concepção tem origem no liberalismo político, pois evita que o Estado intervenha nas relações privadas e nas suas relações com os cidadãos, a não ser quando provocado por um interessado, observados os limites por este fixados. No que tange aos elementos individualizadores da demanda, o sistema brasileiro adota a chamada tríplice identidade, segundo a qual duas ações são idênticas quando possuem as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir (CPC de 1973, art. 301, § 2º; CPC de 2015, art. 337, § 2º). Esses, portanto, são os elementos individualizadores da ação como demanda e delimitadores do objeto da jurisdição.
O objeto da jurisdição é o pedido formulado pelo autor, ou seja, é sobre o pedido que recairá o pronunciamento do juiz. Esse objeto é delimitado subjetiva e objetivamente pelas partes e pela causa de pedir, respectivamente, porque o pedido será apreciado e decidido pelo juiz em relação às partes litigantes e com base nos fundamentos alegados pelo autor. Pelo princípio da demanda incumbe ao autor definir qual é o seu pedido, em relação a quem é ele formulado e com base em que fundamento. 8.5.1. Partes Quem são as partes? Em toda demanda, há normalmente duas partes: uma parte ativa e outra passiva. O autor é aquele que pratica o ato inicial, desencadeando o processo e formulando o pedido ao Estado-juiz; é o sujeito ativo da demanda, ao passo que o réu é aquele em face de quem ou em relação ao qual o autor formula o pedido; é o sujeito passivo da demanda. 8.5.2. Pedido O pedido, como vimos, é o objeto da jurisdição. É sobre o pedido que o juiz exerce o seu poder, manifestando a vontade do Estado, adotando uma providência jurisdicional e atribuindo ou não, através dela, o bem da vida ao autor. O pedido, por sua vez, desdobra-se em imediato e mediato. O primeiro é a providência jurisdicional pleiteada pelo autor, ou seja, é o tipo de atividade que o autor pretende que o juiz desenvolva para alcançar o bem da vida. Por exemplo: o pedido imediato pode ser cognitivo. É o que ocorre quando o autor, através da propositura de uma ação de conhecimento, pede ao juiz que declare por sentença se ele tem ou não direito a um determinado bem. Nesse caso, o autor está formulando um pedido cognitivo declaratório, que visa a produzir um juízo positivo acerca da existência ou inexistência de um direito. Para adotar a providência requerida pelo autor, o juiz deverá exercer sobre a
causa uma atividade cognitiva, de análise dos fatos e do direito, ou seja, um exame normalmente profundo e exaustivo das alegações do autor, das defesas opostas pelo réu e das provas produzidas no processo. O mesmo ocorre nos pedidos cognitivos constitutivos e condenatórios, que serão analisados mais adiante. Em outro exemplo, o autor pede ao juiz que proteja um bem ou um interesse, a fim de que não pereça ou não sofra uma lesão grave ou de difícil reparação enquanto se discute a sua titularidade no mesmo ou em outro processo ou para assegurar a eficácia de decisão sobre outro bem ou interesse; ele está formulando, nessas hipóteses, um pedido cautelar. Pode ainda o autor requerer ao juiz a prática de atos coativos contra o devedor ou sobre o seu patrimônio, com vistas à satisfação de um crédito consubstanciado num título executivo. Nesse caso, formula um pedido executório. Essas diferentes atividades que o juiz poderá exercer em função do pedido formulado pelo autor possuem relevo na classificação das ações. Nesse aspecto, quanto ao pedido imediato, as ações se classificam em ações de conhecimento, ações de execução e ações cautelares. As ações de conhecimento, por sua vez, podem ser ainda: meramente declaratórias, constitutivas e condenatórias. Ações de conhecimento meramente declaratórias são aquelas em que o pedido imediato é a simples declaração de existência ou inexistência de um direito ou de uma relação jurídica, ou ainda da autenticidade ou falsidade de um documento (CPC de 1973, art. 4º; CPC de 2015, art. 19). Nas ações em que são formulados pedidos meramente declaratórios, a sentença do juiz não inova no mundo exterior, mas limita-se a reconhecer uma situação jurídica preexistente, sem criar qualquer direito novo. Por exemplo: o pedido formulado nas ações de investigação de paternidade. Nessas ações, o autor pede ao juiz que declare que ele é filho do réu, e, portanto, não é a sentença que cria a paternidade, pois essa existe ou não desde a concepção do autor.
Como afirmamos acima, a sentença se limitará a reconhecer ou não um direito já existente. Obviamente, em muitos casos o autor não pede apenas a declaração da paternidade, cumulando com a sua investigação o pedido de prestação de alimentos, hipóteses em que haverá um pedido declaratório cumulado com um pedido condenatório. O pedido imediato, nas ações de conhecimento, pode ser também constitutivo. Nesses casos, o autor pede ao juiz, além da declaração da existência do seu direito, que também, através da sentença, crie, modifique ou extinga uma relação ou situação jurídica. A procedência do pedido constitutivo altera a situação jurídica das partes, ou seja, com a sentença cria-se, modifica-se ou extingue-se uma relação jurídica entre elas. O pedido de divórcio é um exemplo de pedido constitutivo, uma vez que visa a extinguir uma relação jurídica. Cabe observar que os deveres conjugais permanecem até o trânsito em julgado da sentença, salvo se, antes ou de no curso do processo, tiverem sido objeto de uma medida cautelar ou tutela antecipada. O pedido imediato ainda pode ser condenatório. Nessa hipótese, o autor requer ao juiz que, além de declarar a existência do seu direito, imponha ao réu uma prestação, que pode consistir numa obrigação de dar, de fazer ou de não fazer. Portanto, condenar é impor uma prestação, que poderá ser a entrega de um bem ou de dinheiro (dar), a realização de uma atividade humana (fazer), ou ainda uma abstenção (não fazer). Há situações em que o pedido pode ser declaratório, constitutivo e condenatório simultaneamente. Por exemplo: o pedido formulado numa ação de despejo por infração contratual. O seu efeito declaratório está no reconhecimento do direito à extinção da locação pela ocorrência de uma infração contratual, ao passo que o constitutivo está na rescisão do contrato, e, por fim, o efeito condenatório, na imposição da prestação de devolver o imóvel, gerando ao devedor a perda da sua posse jurídica. A doutrina brasileira tem reconhecido outros dois tipos de pedidos imediatos: o pedido mandamental e o pedido executivo lato sensu. No entanto, a doutrina tradicional, que adoto, considera-os desnecessários e imprecisos, apesar de
estarem muito difundidos. Prova dessa difusão se deu com a inclusão do inciso V ao artigo 14 do Código de 1973 pela Lei n. 10.358/2001, que expressamente estabeleceu como dever das partes e de todos aqueles que participam do processo o de “cumprir com exatidão os provimentos mandamentais”. Redação semelhante se encontra no artigo 139, inciso IV, do Código de 2015, que incumbe ao juiz “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial”. A doutrina tradicional universalmente consagrada entende que a mandamentalidade e a executividade lato sensu nada mais são do que circunstâncias relativas ao modo através do qual a sentença será cumprida. Para essa visão tradicional, o pedido não deixa de ser condenatório, mas é no seu modo de cumprimento – que é um fato externo à sentença – que reside a sua peculiaridade. O pedido executivo lato sensu assemelha-se ao mandamental, porque também é executado de imediato, por ordem expedida ex officio pelo juiz. Contudo, o responsável pelo cumprimento da sentença, no primeiro caso, é o próprio juiz ou um de seus auxiliares, e não o réu ou um preposto, como ocorre no segundo. Um exemplo de pedido de execução lato sensu é o pedido de despejo, pois é o oficial de justiça quem executa a sentença e o seu cumprimento não depende da concorrência da vontade do réu. A meu ver, tanto o pedido mandamental como o executivo lato sensu não mudam a natureza do pedido, que permanece condenatório. Repita-se: o que os diferencia dos demais é o modo de cumprimento da sentença que os acolhe, o que é uma característica estranha à natureza do pedido. Em realidade, esses dois tipos de pedidos se confundem, pois, se o pedido mandamental não for cumprido espontaneamente pelo réu ou pelo preposto, o juiz mandará que o oficial de justiça o cumpra. A decisão judicial não ficará sem cumprimento. Em razão dessa acentuada semelhança, o artigo 14, inciso V, do Código de 1973 e o artigo 139, inciso IV, do Código de 2015 aludem apenas à mandamentalidade, sem, contudo, mencionar expressamente a executividade lato sensu. A diferença é tão pequena entre uma hipótese e outra que, no descumprimento da mandamentalidade, como explicado anteriormente, ela
poderá se converter em executividade lato sensu, para assegurar o cumprimento da decisão. No Brasil, a crise do processo de execução se tornou tão grande nos últimos anos que criou na comunidade jurídica um movimento no sentido de acabar com a autonomia do processo de execução. Em 1994, a Lei n. 8.952, dando nova redação ao artigo 461 do Código de 1973, introduziu a chamada tutela específica das obrigações de fazer e de não fazer, dispensando processo autônomo para a sua execução, quando decorrente de provimento judicial. Em 2002, a Lei n. 10.444, introduzindo no Código o artigo 461-A, estendeu às obrigações entrega de coisa esse mesmo regime. E em 2005 a Lei n. 11.232 criou os novos artigos 475-A a 475-R, transferindo para o mesmo processo de conhecimento de que resulte condenação pecuniária as fases de liquidação e de execução, que denominou de cumprimento de sentença. A partir de então, o processo civil brasileiro dispensa a instauração de um processo de execução autônomo para o cumprimento das obrigações de entrega de coisa, de fazer de não fazer e de pagamento em dinheiro, constantes de sentenças judiciais, o que o Código de 2015 referendou nos artigos 513 a 538. São execuções que se seguem a decisões que impõem o cumprimento de prestações, o que não contraria a natureza condenatória desses provimentos. A mandamentalidade executória, cujo nome está ligado a um termo que originou o nosso mandado de segurança, decorre da sentença quando a condenação nela imposta (dar, fazer ou não fazer) tem de ser cumprida de imediato pelo réu ou por seu preposto, através da simples expedição de um ofício ou mandado do juiz, sem a instauração de qualquer outro procedimento. Se o juiz concede a ordem num mandado de segurança determinando que certo funcionário público seja reintegrado ao cargo de que foi ilegalmente demitido, para o cumprimento da sua decisão bastará que o juiz expeça um ofício ao setor da Administração Pública responsável e, independentemente de instauração de um processo de execução autônomo, o réu ou o preposto que o representa são obrigados a cumprir a ordem do juiz. O juiz manda e o servidor público responsável cumpre. Não há a instauração de um novo processo, não havendo, portanto, a necessidade de outra petição inicial, nova citação, novo prazo para defesa etc. Assim, a peculiaridade no cumprimento das sentenças mandamentais e
executivas lato sensu, que incluía a dispensa da instauração de um processo de execução autônomo após a prolação da sentença exequenda, perdeu sua força, pois todos os pedidos condenatórios formulados a partir da Lei n. 11.232/2005, inclusive os de pagar quantia certa, passaram a ser cumpridos (executados) no mesmo processo original, numa fase seguinte, que é a fase de cumprimento da sentença, outrora denominada apenas de execução, ou até mesmo sem nenhum outro procedimento formal, como nas prestações de fazer, não fazer e entrega de coisa (CPC de 2015, arts. 536 a 538). Para muitos, todas as sentenças condenatórias ao cumprimento de prestações de entrega de coisa, de fazer ou de não fazer, passaram a constituir sentenças mandamentais ou executivas lato sensu, conforme o seu cumprimento se dê pelo réu e seus prepostos ou pelo juiz e um de seus auxiliares, respectivamente. Por conta dessa evolução no direito brasileiro, que se deu no sentido da desprocessualização da execução, grande parte da doutrina passou a adotar essa classificação quinária e não mais a trinária das espécies de ações de conhecimento: declaratórias, constitutivas, condenatórias, executivas lato sensu e mandamentais. Entretanto, entendo que não deve ser abandonada a classificação trinária, visto que a mandamentalidade e a executividade lato sensu são características externas à sentença, relativas ao modo como os efeitos condenatórios dela constantes se produzem no mundo exterior, e não propriamente efeitos de direito material diversos do efeito condenatório. O pedido mediato é o bem da vida que o autor pretende alcançar através da providência jurisdicional requerida ao juiz. Por exemplo: o autor requer a condenação do réu ao pagamento da importância de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Nesse caso, o pedido imediato é a imposição da prestação de pagar a quantia de dez mil reais, enquanto o pedido mediato é o dinheiro, a importância em si. De outro modo, se o autor pede a declaração da paternidade em relação ao réu, o pedido imediato é essa declaração e o mediato é o estado de filiação com todos os seus atributos. Numa ação de divórcio, o pedido imediato é a mudança do estado de casado para o de divorciado, ao passo que o pedido mediato é a investidura no estado de divorciado. Percebe-se, portanto, que o pedido imediato
é o meio para se alcançar o mediato. 8.5.3. Causa de pedir A doutrina brasileira ensina que a causa de pedir se compõe dos fatos e dos fundamentos jurídicos apontados pelo autor na petição inicial, sendo um dos seus requisitos legais (CPC de 1973, art. 282, inc. III; CPC de 2015, art. 319, inc. III). Os fatos são a causa de pedir remota; são os acontecimentos do mundo ou da vida geradores do direito material do autor, dos quais lhe resulta o direito ao bem da vida pretendido. Por exemplo: uma ação de divórcio fundada na separação de fato por mais de um ano. Nessa hipótese, o autor descreve que é casado com a ré e que estão separados há mais de um ano, não sendo possível a reconstituição da vida em comum. Esses são fatos que geram o direito dos cônjuges a requerer o divórcio. Todo direito nasce de determinados fatos (ex facto oritur jus). O fundamento jurídico é o direito material do autor que resulta dos fatos; é o que justifica o pedido, o que justifica a providência jurisdicional para a apropriação do bem da vida. É a causa de pedir próxima. Em outros termos, o fundamento jurídico é a consequência no direito material da ocorrência no mundo ou na vida de determinados fatos. Essa fundamentação jurídica justifica a formulação da pretensão ao bem da vida. É preciso não confundir o fundamento jurídico do pedido com o dispositivo legal em que o autor pretende respaldar o seu pedido. O fundamento jurídico não é determinado dispositivo legal, mas o próprio direito subjetivo material do autor que resulta de uma ou mais normas do ordenamento jurídico, de um ou mais dispositivos legais, que até, às vezes, podem não estar corretamente indicados pelo autor ou terem sido por ele inteiramente omitidos. No processo, portanto, há o seguinte encadeamento lógico: os fatos geram o direito material do autor, com base no qual ele propõe a providência jurisdicional para se apropriar do bem da vida, ou seja, há a exposição dos fatos (causa de pedir remota) e do direito (causa de pedir próxima) e, em seguida, a formulação do pedido imediato com vistas a alcançar o pedido mediato.
Por exemplo: não basta o autor narrar na petição inicial que ele sofreu um acidente causado pelo réu. Ele também necessita explicitar que em razão do acidente sofrido ele tem direito a uma indenização, ou seja, que com base nos fatos narrados, ele requer a condenação do réu ao pagamento de uma indenização, a qual encontra suporte no ordenamento jurídico, no direito material. Complementando o que observamos acima, cumpre advertir que o fundamento jurídico não deve ser necessariamente a lei, pois o direito alegado pelo autor pode ser oriundo de um contrato, de um negócio jurídico ou de outra fonte que não estritamente a lei. O fundamento não é o dispositivo legal, mas sim o direito material invocado, seja ele resultante de uma ou de outra fonte de direito. Se o direito material nasce de um contrato, por exemplo, ele será composto do conjunto de vínculos jurídicos constantes desse contrato. O contrato como documento pertence ao mundo dos fatos, mas as obrigações, os vínculos, as relações jurídicas nele estabelecidas são o direito material. Integram a causa de pedir remota tanto a relação jurídica existente entre as partes, que é denominada de causa de pedir ativa, quanto a sua violação, a chamada causa de pedir passiva. Por exemplo: na ação de despejo, a causa de pedir ativa é a relação jurídica criada pelo contrato de locação (fatos constitutivos do direito) e a causa de pedir passiva é o descumprimento contratual por parte do locatário (os fatos violadores). No exemplo da ação de despejo proposta pelo locador contra o locatário, o que gera o despejo não é apenas o contrato, a relação de locação, mas também outro fato, que pode ser a permanência do inquilino no imóvel após o decurso do prazo de locação, o não pagamento dos aluguéis ou qualquer outra infração contratual praticada pelo locatário. A causa de pedir, como elemento individualizador da demanda, é regida por duas teorias: a teoria da substanciação e a teoria da individuação. Segundo a primeira, a causa de pedir se compõe conjuntamente dos fatos e do direito. A doutrina brasileira sustenta que o legislador brasileiro adotou-a expressamente, pois, segundo os artigos 282, inciso III, e 319, inciso III, respectivamente dos Códigos de 1973 e de 2015, não basta o direito para
identificar a ação, mas é necessário alegar o direito decorrente de determinados fatos. A teoria oposta, que seria a adotada pelo direito germânico, é a teoria da individuação, segundo a qual o que identifica a demanda é apenas o direito resultante de qualquer fato, e não necessariamente aquele resultante dos fatos que o autor relatou. Como salientado acima, o posicionamento da doutrina brasileira baseia-se nos mencionados preceitos legais, que estabelecem a necessidade de o autor apontar na petição inicial os fatos e os fundamentos jurídicos do pedido. Essa conclusão, entretanto, é passível de dúvida devido ao teor de três outros artigos do Código de 1973, os artigos 131, 462 e 474, a que correspondem, no Código de 2015, respectivamente os artigos 371, 493 e 508. Estabelece o primeiro (CPC de 1973, art. 131) que o juiz julgará a causa de acordo com a sua livre convicção, decorrente do exame dos fatos e das circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes. Por sua vez, reza o artigo 462 que, se depois da propositura da ação, o juiz tomar conhecimento de algum fato constitutivo, impeditivo ou extintivo do direito do autor, ele o apreciará de ofício na sentença, mesmo que não alegado pelas partes. Por último, estabelece o artigo 474 que, passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas que as partes poderiam opor tanto ao acolhimento como à rejeição do pedido. É importante, de qualquer modo, observar, quanto à redação dos artigos correspondentes do Código de 2015 (371, 493 e 508), no ponto que aqui nos interessa, que o último (508) é idêntico ao artigo 474 do Código de 1973; o segundo (493) também é semelhante ao que lhe corresponde no Código anterior (art. 462), mas recebeu um parágrafo único que determina que o juiz ouça as partes antes de decidir, se constatar de ofício o fato novo; já o primeiro foi bastante modificado, porque se refere à apreciação de ofício pelo juiz das provas, “independentemente do sujeito que a tiver promovido”, não mais mencionando a apreciação de ofício dos fatos. Diante do conteúdo desses artigos, indaga-se se os fatos e os fundamentos (o
direito) sempre e em conjunto individualizam a demanda. A questão envolve ainda o chamado jura novit curia, que é um brocardo latino muito usado pelos processualistas, que significa que o juiz conhece o direito, e, portanto, se daqueles fatos descritos pelo autor resultar um direito diverso do alegado, o juiz poderia acolher o pedido com base nesse outro direito. Nesse caso, a demanda seria individualizada apenas pelos fatos narrados pelo autor, incumbindo ao juiz extrair deles o direito: da mihi factum, dabo tibi jus, vale dizer, dê-me os fatos, que lhe darei o direito. 8.5.3.1. O jura novit curia
Há no Brasil quem entenda, a meu ver por influência de sistemas jurídicos estrangeiros, que o juiz pode variar a qualificação jurídica dos fatos, desde que ele não altere os próprios fatos que o autor apresentou e, portanto, que aqui se aplique o jura novit curia. Essa é a opinião, por exemplo, de Barbosa Moreira e Luiz Fux3. Entretanto, considero que o autor tem o direito de escolher qual a caracterização jurídica dos fatos que ele descreve e de exigir que o juiz responda ao seu pedido tal como ele o formulou, com a qualificação jurídica por ele escolhida. Desse modo, não me parece aceitável o jura novit curia, pois o juiz não pode dar aos fatos que o autor relatou uma configuração jurídica diferente e o réu tem o direito de se defender da hipótese jurídica que o autor propôs. Por exemplo: o autor ingressa em juízo requerendo a sua reintegração na posse de um imóvel que havia emprestado gratuitamente ao réu por meio de um contrato de comodato, alegando que, apesar de notificado, o réu não quis deixar o imóvel, tornando-se, assim, esbulhador. O juiz, entretanto, considerando que o réu comprovou ter pago ao autor alguma remuneração pelo uso do imóvel, a título de aluguel, julga procedente ou o improcedente o pedido, caracterizando a relação jurídica como locação por tempo indeterminado e analisando o pedido à luz do regime jurídico da locação. Em minha opinião, abstraindo-se outros aspectos, como a adequação do procedimento para um ou outro pedido, não cabe ao juiz atribuir aos fatos qualificação diversa daquela dada pelo autor, e, assim, não poderia o juiz julgar o pedido com fundamento na observância ou não da legislação que rege a locação.
Convencido de que o contrato firmado entre as partes não era o de comodato, como havia alegado o autor, deve julgar improcedente o pedido, porque dos fatos não resultou o direito alegado pelo autor. Este, de qualquer maneira, poderá ingressar com uma nova ação de despejo, fundada na relação jurídica locatícia. Em resumo, o juiz tem de respeitar a qualificação jurídica dada pelo autor, que serviu de base para o pedido por ele formulado. Assim, a afirmação, que com frequência se ouve, de que o juiz conhece o direito e o aplica de ofício aos fatos, tais como relatados pelo autor, se refere apenas à indicação dos dispositivos legais apontados pelo demandante e não à espécie de relação jurídica de direito material por ele invocada como sustentação do seu pedido4. Muitas vezes o erro de capitulação ou enquadramento dos fatos numa determinada figura jurídica (erro em vez de dolo; anulação em vez de declaração de nulidade) pode e deve ser corrigido pelo juiz, perquirida a real intenção do autor (Código Civil, art. 112) e me parece que isso não implica em admissão do jura novit curia. Problema diverso, que examinaremos no item 1.2 do 2º volume destas Instituições, e que envolve a análise desses mesmos dispositivos, é o da estabilização da demanda, mas que, neste passo desta obra, não pode merecer o tratamento adequado. 8.5.3.2. Os fatos e o direito identificadores da demanda
Os artigos 131 e 462 do Código de 1973 e o artigo 493 do Código de 2015 recomendam ao juiz o exame na sentença de fatos não alegados pelas partes. Qual seria o âmbito de aplicação dessas normas, tendo em vista que os fatos constitutivos do direito do autor individualizam a demanda e devem ser por este alegados, em obediência ao princípio da demanda? Reporto-me ao meu estudo sobre a teoria da ação5. Para compreender o alcance desses dispositivos é preciso distinguir inicialmente os fatos jurídicos dos fatos simples. Jurídicos ou jurígenos são os fatos fundamentais dos quais decorre o direito do autor; simples são fatos secundários que compõem o fato jurídico ou que auxiliam na comprovação da sua existência.
Chiovenda6 já ressaltava que a causa de pedir não sofria qualquer modificação pela variação dos fatos simples ou motivos, que apenas servem para provar a existência do fato jurídico. São os fatos simples que o juiz conhece de ofício e que estão compreendidos no enunciado do artigo 131 do Código de 1973. A mesma interpretação não pode ser dada aos artigos 462 do Código de 1973 e 493 do Código de 2015, que permitem que o juiz aprecie na sentença ou decisão de mérito, de ofício, novos fatos constitutivos do direito do autor, por este não alegados. Ainda que se pudessem interpretar essas regras no sentido de que elas se restringiriam aos fatos supervenientes, ocorrido depois da propositura da ação, o respeito ao princípio da inércia da jurisdição exigiria que o autor anuísse em incluí-los na causa de pedir da sua demanda. Conhecê-los de ofício o juiz, mesmo depois de ouvir as partes, não sofre a falta de adesão do autor à sua inclusão como elemento individualizador da ação. Parece-me que a única solução para conciliar esse dispositivo com o princípio da demanda, ou seja, com a fixação dos fatos que compõem a causa de pedir exclusivamente pelo autor, é empregar a antiga distinção, adotada pelas doutrinas alemã e italiana e difundida entre nós por José Rogério Cruz e Tucci, que diferencia dois tipos de relações jurídicas de direito material que, por si sós, se caracterizam por um ou mais fatos da mesma natureza ou por apenas um determinado fato7. Segundo Comoglio8, são autodeterminados (ou autolimitados) aqueles direitos (propriedade, direitos reais de gozo e outros direitos absolutos) que podem existir apenas uma vez com o mesmo conteúdo, e entre os mesmos sujeitos, independentemente da variação do respectivo fato genético; e são heterodeterminados (ou heterolimitados) aqueles direitos (direitos de crédito, outros direitos relativos e direitos reais de garantia) que podem subsistir e ser constituídos várias vezes com o mesmo conteúdo, entre os mesmo sujeitos. Os primeiros são normalmente afirmados e individuados com base no seu conteúdo, sem que assuma relevância diferencial a alegação de um ou mais fatos constitutivos concorrentes, e, portanto, o juiz pode examinar fatos diversos dos alegados pelo autor, porque o direito é o mesmo. Os segundos devem ser
afirmados e identificados em função exclusiva daquele específico fato constitutivo inicialmente alegado, cuja variação faz diversificar a sua identidade do seu conteúdo. Nos direitos heterodeterminados a mudança do fato constitutivo singular comporta a mudança do próprio direito a tutelar. Em síntese, nos direitos heterodeterminados a variação de fatos geradores do direito material resultaria em demanda diversa e por isso o sucesso de cada ação depende da minuciosa caracterização dos fatos geradores do direito, enquanto nos direitos absolutos os fatos têm importância secundária e contingente. Mas essa matéria está muito longe de ser pacífica, havendo grandes divergências na doutrina9 que, infelizmente, o Código de 2015 não se dispôs a solucionar. Parece-me, entretanto, inquestionável, diante do princípio da demanda, que não se pode definir o alcance fático da causa de pedir, a não ser adotando como ponto de partida a intenção do autor. Os efeitos vinculantes do julgado sucessivo devem limitar-se apenas ao julgamento do pedido com base naquela única causa petendi que, por vontade da parte, identifica o particular direito acionado, sem que o juiz possa automaticamente estendê-los também a outras não deduzidas, ainda que teoricamente sejam alternativas ou concorrentes. É verdade que essa perquirição nem sempre é fácil, especialmente quando, anos depois, pretendemos verificar o alcance da coisa julgada. No curso do processo, essa investigação ainda é possível, porque as partes ainda dependem da decisão do juiz e devem colaborar na delimitação da coisa litigiosa, podendo o juiz tomar as providências necessárias para elucidar a intenção da manifestação de vontade do autor. Mas depois de findo o processo, e até mesmo muitas vezes no curso do próprio processo, pode tornar-se difícil apurar qual é o alcance do ato originário de iniciativa processual, e em que medida se estabeleceu a litigiosidade. Quando isso ocorrer, creio que o recurso à doutrina processual poderia levar a adotar algumas regras de aplicação subsidiária, decorrentes dos princípios gerais do processo, em especial o princípio da demanda. A primeira regra seria a de que, nos direitos absolutos (direitos reais de gozo, direitos relativos ao estado das pessoas e direitos da personalidade), salvo evidente manifestação em contrário do autor, aplica-se o preceito dos artigos 462 do Código de 1973 e 493 do Código de 2015, podendo o juiz conhecer do direito com base em outros fatos além daqueles enunciados pelo autor na petição inicial, desde que sejam fatos da mesma fatispécie, isto é, fatos com as mesmas
características jurídicas dos fatos alegados inicialmente, fatos geradores daquele mesmo direito que o autor intenta tutelar. Assim, se a mulher propõe contra o marido ação de separação ou de divórcio alegando agressão física no dia 1º de janeiro de 2002, mas a final esse fato não fica demonstrado, mas sim que a autora foi vítima de agressão no dia 20 de março, esse outro fato, embora deva ser submetido pelo juiz ao crivo do contraditório, facultando às partes sobre ele se manifestarem e produzirem provas, serve para sustentar o acolhimento do pedido10. Os dois fatos têm as mesmas características jurídicas e geram, portanto, um só direito. Se o fato inicialmente alegado fosse uma agressão física e o fato provado fosse o adultério, já não seriam fatos da mesma fatispécie e, portanto, não estariam abrangidos na mesma causa de pedir. Já, na declaratória fundada em título de domínio e na ação de usucapião, o pedido é o mesmo, mas decorrente de relações jurídicas diferentes. Não apresentam a mesma fatispécie, não são o mesmo fato jurídico. Todavia, se a autora da ação de separação ou de divórcio tivesse expressamente delimitado a relação jurídica fundamentadora do seu pedido, como, por exemplo, se tivesse reconhecido que o marido frequentemente a agredia, mas declarado que vinha pedir a separação ou o divórcio apenas com base na agressão do dia 1º de janeiro, que considerava excepcionalmente grave porque era o dia do seu aniversário, então nenhum outro fato, nenhuma outra agressão em outro dia, poderia servir para fundamentar o acolhimento desse pedido. Já nas ações sobre direitos relativos, direitos de prestação, a regra subsidiária, se impossível apurar a intenção do autor, é a de que cada fato principal, apto por si só a sustentar o direito invocado, identifica uma demanda e que na qualificação jurídica do fato também deve ser respeitada a vontade do autor. Como dizia Chiovenda11, pouco importa que, rejeitada uma ação, outra possa ser proposta por outro fato, ainda que da mesma natureza. Os possíveis inconvenientes dessa reiteração indefinida de juízos podem, pelo menos parcialmente, remediar o réu pedindo em via reconvencional uma sentença que declare válido o ato em geral ou propondo uma ação declaratória com esse objetivo. Mas também nesses casos é complexa a delimitação causal da demanda. A ação declaratória negativa, segundo o mesmo Chiovenda12, comporta variação fática. Não pode haver pedido de declaração negativa de um direito, a não ser em face
de determinados fatos, porque a decisão judicial não tem o condão de declarar que um direito não existe a não ser em relação a fatos sobre os quais exerceu concreta cognição. Nas ações que tenham por fundamento uma série de fatos ou fatos constantes, como a ação de responsabilidade do administrador por gestão fraudulenta da sociedade, em verdade o suporte fático já é objetivamente complexo, abrangendo não apenas os fatos concretos alegados pelo autor, mas também outros que podem igualmente caracterizar a fraude na gestão no curso do período de tempo em que o réu permaneceu no exercício daquela função. Mas terá tido o autor a intenção de incluir esses outros fatos não alegados na caracterização do seu direito? Por isso, a quaisquer critérios que a doutrina se disponha a oferecer sobrepor-seá sempre a perquirição, desde que possível, da verdadeira intenção do autor, ao propor a demanda. Discorrendo sobre as posições conflitantes que existem no Direito brasileiro a respeito do alcance da coisa julgada tributária, uma mais restritiva, agasalhadora do enunciado da Súmula n. 239 do Supremo Tribunal Federal, outra menos restritiva, Arruda Alvim demonstra que, apesar de fundamentadas nos mesmos dispositivos de lei, “é em decorrência do pedido que se diversificam as posições”13. Essa é a regra de ouro. Se essa perquirição não for conclusiva, na dúvida, nos direitos autodeterminados deverá o juiz conhecer de ofício de fatos constitutivos não alegados expressamente pelo autor, desde que submetidos ao regular contraditório; e nos direitos heterodeterminados, ao contrário, não poderá conhecê-los. 8.5.3.3. A identidade da ação e o efeito preclusivo da coisa julgada
Outra indagação que o tema sugere diz respeito ao chamado efeito preclusivo da coisa julgada, previsto nos artigos 474 do Código de 1973 e 508 do Código de 2015, que considera repelidas todas as alegações que o autor poderia opor à rejeição do pedido. Essa regra não pode ser interpretada como um alargamento da causa de pedir sem a explícita manifestação de vontade do autor. Apesar da preocupação de alguns, na verdade, o que fica precluso para o autor como consequência do trânsito em julgado da sentença ou decisão de mérito é a possibilidade de
invocar outros fatos simples ou circunstâncias que não alterem a causa de pedir. Também ficam seguramente preclusas as defesas indiretas do autor às defesas indiretas do réu que, pelo princípio da eventualidade, deveriam obrigatoriamente ter sido objeto de alegação na réplica (CPC de 1973, art. 326; CPC de 2015, art. 350). Desse modo, não se pode extrair do efeito preclusivo da coisa julgada a perda da faculdade do autor de formular o mesmo pedido com causa diversa, mas será o princípio da demanda que irá delimitar o alcance do objeto litigioso de cada ação. Entretanto, a questão não pode ser considerada definitivamente pacificada. O advento, em 2001, da nova Ley de Enjuiciamiento Civil espanhola reabriu o debate, com a introdução do disposto no seu artigo 400, que exige que o demandante exponha como causa de pedir todos os fundamentos fáticos e jurídicos do pedido formulado, não podendo omitir nenhum para usá-lo em processo futuro. O dispositivo me parece claramente inspirado na preocupação ética de não permitir a eternização da litigiosidade em relação à apropriação do mesmo bem jurídico e de exigir que o autor, ao reivindicá-lo, concentre todos os fundamentos com base nos quais possa sustentar a sua postulação. Todavia, a doutrina e a jurisprudência daquele país hesitam em delimitar o alcance do novo dispositivo14. Recordem que no primeiro capítulo desta obra observei que a nossa teoria processual está intrinsecamente vinculada aos sistemas da civil law. Esse dispositivo introduzido pela reforma processual de 2001 na Espanha está muito próximo do conceito de cause of action e da função eminentemente pacificadora da jurisdição em países da common law15.
8.6. AÇÃO COMO DIREITO À JURISDIÇÃO O quinto significado do direito de ação é o mais importante na construção da teoria da ação. É o significado de ação como direito à jurisdição. Moacyr Amaral Santos definia o direito de ação como o direito de invocar o exercício da jurisdição, afirmando que a ação provoca a jurisdição e essa se exerce através do processo16.
Entretanto, a meu ver, o conteúdo do direito de ação é mais preciso, pois a ação não é somente o direito de provocar o exercício da jurisdição – senão ela seria o direito ao processo – mas o próprio direito à jurisdição. A ação é o direito de exigir do Estado o exercício da jurisdição a respeito de determinada demanda. Não é apenas o direito de provocar o exercício da jurisdição, de provocar a instauração de um processo para que a jurisdição se exerça, porque a ação é mais do que isso, é um direito a que corresponde um dever do Estado de exercer a jurisdição. Se o Estado não exercer esse dever, ele estará praticando um ato ilícito, uma vez que estará privando o cidadão da tutela jurisdicional efetiva do direito material e, portanto, não estará assegurando a eficácia concreta dos direitos dos cidadãos. Então, todos os outros significados de ação caem por terra, fracassam, se a ação não conseguir alcançar o seu resultado, o seu conteúdo essencial, que é o exercício da jurisdição sobre a demanda ou sobre a pretensão de direito material. A ação como direito à jurisdição também encontra fundamento no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição, porque é através dela que o titular do direito tem acesso à proteção do direito material. Contudo, a ação como direito à jurisdição não se confunde com a ação como direito cívico, porque enquanto este é um direito que todos têm, aquele é um direito que apenas determinadas pessoas possuem, particularmente as que são ou se afirmam titulares da relação jurídica de direito material (CPC de 1973, art. 6º; CPC de 2015, art. 18). A ação como direito à jurisdição é um direito que cada um tem em relação às suas pretensões de direito material; aos direitos que cada um acha que possui e que pretende que sejam tutelados. Nesse sentido, não é um direito que o autor exerce em relação a qualquer pessoa, mas em face da pessoa de quem o autor supõe poder exigir o respeito ao seu direito material, e contra o Estado, para exigir deste o exercício da jurisdição sobre aquele direito material. Também se fala em ação impropriamente, como sinônimo de procedimento. Por exemplo: o autor afirma ao juiz que está propondo uma ação ordinária. A impropriedade desse emprego reside no fato de que a ordinariedade não é a característica de determinada ação, mas, no Código de 1973, a denominação do rito, do procedimento através do qual vai se exercer a jurisdição de
conhecimento na maioria dos casos. Aliás, no Código de 2015 essa denominação desaparece, substituída pelo chamado procedimento comum, a partir do artigo 318. Atualmente, na Teoria Geral do Processo, muitos autores revelam pouco interesse pela teoria da ação. Em fevereiro de 2003 foi realizada na Universidade de Bolonha, na Itália, uma jornada comemorativa dos cem anos da aula magna que Giuseppe Chiovenda ali proferiu, em 03 de fevereiro de 1903, justamente sobre a ação no sistema dos direitos, que é o estudo clássico, básico, sobre a teoria da ação no direito processual moderno. Da leitura dos pronunciamentos de insignes processualistas contemporâneos (Federico Carpi, Franco Cipriani, Vittorio Colesanti, Elio Fazzalari e Michele Taruffo) nessa jornada comemorativa17, transparece a sensação de que não há mais nada a discutir sobre o direito de ação, faltando relevância ao seu debate. Não é o que eu penso, especialmente no direito brasileiro, em que muitas questões decorrentes da dogmática do direito de ação ainda se encontram em aberto, como vimos há pouco, por exemplo, sobre a extensão da causa de pedir. O direito de ação não pertence a todos, mas apenas a determinados sujeitos mediante o cumprimento de certos requisitos. A maior ou menor extensão desses requisitos ou desses pressupostos pode tornar o acesso à justiça mais ou menos amplo. Se o legislador for muito exigente nos requisitos para a propositura de uma ação, o direito de acesso à justiça de muitos cidadãos vai ser violado, desrespeitado, e, então, o direito à jurisdição não vai ser cumprido e os direitos fundamentais não vão ser eficazes. O acesso à justiça deve ser o mais amplo possível, mas essa afirmação democrática não deve dar a qualquer um o direito de interferir na vida alheia, pois o respeito à privacidade e à liberdade individual são igualmente direitos fundamentais. Deve haver, portanto, uma conciliação entre esses direitos, porque, se, de um lado, a garantia de buscar a tutela de direitos não pode ser limitada ou dificultada por obstáculos econômicos ou de qualquer outra natureza, por outro, o seu exercício deve respeitar a liberdade e a privacidade das outras pessoas, que devem também ter assegurado o direito de não serem molestadas no gozo dos seus direitos por demandas judiciais manifestamente inviáveis.
Essa é uma das utilidades do direito de ação, que deve servir como filtro a demandas temerárias e, ao mesmo tempo, garantir eficazmente o acesso à tutela jurisdicional efetiva dos direitos.
8.7. CUMULAÇÃO DE AÇÕES Uma questão frequentemente debatida na doutrina é a de saber se, quando há pluralidade de algum dos elementos identificadores da demanda, existe apenas uma ou existem várias ações. A posição da doutrina tradicional, à qual adiro, firmou-se no sentido de que toda vez em que houver pluralidade de algum desses elementos há tantas ações quanto forem os elementos plúrimos. Assim, se dois credores solidários, em litisconsórcio ativo, propõem uma ação de cobrança contra o devedor comum, o pedido, a causa de pedir e o réu serão os mesmos, mas, como há dois autores, há duas demandas, que foram propostas num único processo. Embora os elementos objetivos da demanda e o réu sejam os mesmos, cada um desses autores está exercendo o seu próprio direito de ação e irá sofrer os efeitos da sentença na sua própria esfera de interesses. Entretanto, quanto às relações jurídicas plurissubjetivas, em que o direito material só pode ser examinado no processo com a presença obrigatória de todos os seus titulares, parte da doutrina sustenta que, apesar da pluralidade de autores ou de réus, a ação é uma só. Por exemplo: o Ministério Público propõe uma ação de nulidade de casamento com fundamento na bigamia do cônjuge varão. Contra quem deverá ser proposta essa ação? Ela deverá ser proposta contra o marido e contra a mulher conjuntamente, porque ou o casamento celebrado entre eles é válido em relação aos dois ou é nulo em relação aos dois. Se fosse possível a propositura dessa ação apenas contra o marido, caso fosse julgada procedente, este estaria liberado do casamento, enquanto a mulher continuaria casada. Então, não é possível nessa relação jurídica essencialmente bilateral, que é a relação matrimonial, uma sentença declarar o casamento válido ou nulo em relação apenas a um dos sujeitos e não o fazer também em relação ao outro. A meu ver, seguindo a posição adotada tradicionalmente na doutrina, considero que, embora no exemplo acima as postulações estejam indissociavelmente unidas e devam ser decididas conjuntamente, há duas ações, duas demandas: a
primeira, que é a do Ministério Público em relação ao marido, e, a segunda, daquele em relação à mulher. De qualquer maneira, a sentença vai produzir efeitos próprios em relação a cada um dos destinatários. No exame do tema ora debatido, cumpre inicialmente diferenciar o concurso de ações da cumulação de ações. O concurso de ações é a possibilidade de propositura de duas ou mais ações diferentes para a tutela do mesmo direito subjetivo material. O exemplo clássico desse concurso é o do vício redibitório, em que o autor pode optar entre a rescisão do negócio celebrado (ação redibitória) e o pedido de redução de preço (ação quanti minoris), mas, ao eleger uma dessas ações, perderá a possibilidade de fazer uso da outra opção. É o que expressa o brocardo electa una via non datur regressum ad alteram (escolhido um caminho, não é mais permitido retomar o outro). Já Liebman, num dos seus estudos sobre a coisa julgada, se refere ao concurso de ações em outro sentido, qual seja, o de demanda única, mas que pode ser proposta por mais de um sujeito. O exemplo por ele dado é o da ação do sócio contra a sociedade para anular a deliberação assemblear, que também pode ser proposta por qualquer outro sócio. Se a primeira ação for julgada procedente, a nulidade da deliberação atingirá todos os demais sócios; se julgada improcedente, não poderia mais qualquer outro sócio, pelo mesmo fundamento de direito, formular o mesmo pedido de anulação daquela deliberação. A incindibilidade do direito material plurissubjetivo levaria a considerar o primeiro autor como substituto processual de todos os cotitulares da mesma pretensão18. Examinaremos essa questão no 2º volume desta obra, quando tratarmos da coisa julgada. Verifica-se, por sua vez, a cumulação de ações quando, num mesmo processo, se reúnem duas ou mais demandas a serem instruídas e decididas ou resolvidas simultaneamente. Um só processo é usado como instrumento para dar solução a duas ou mais ações. É da essência da cumulação de ações a formação do simultaneus processus, ou seja, de um processo cumulativo, no qual as ações cumuladas serão instruídas e resolvidas em conjunto, pelo menos no julgamento do mérito.
Os objetivos precípuos do fenômeno da cumulação de ações são o de atender à economia processual e o de evitar a prolação de decisões contraditórias. Quanto às espécies de cumulação de ações ou do chamado processo cumulativo, a doutrina costuma adotar dois critérios principais. O primeiro leva em consideração o elemento diverso nas ações cumuladas. De acordo com esse critério, a cumulação pode ser objetiva quando o elemento diverso, plural, é um dos elementos objetivos da demanda, vale dizer, quando há pluralidade de pedidos ou de causas de pedir; ou subjetiva, quando há pluralidade de autores, de réus, ou de ambos simultaneamente (elemento subjetivo da demanda). O segundo critério de classificação do processo cumulativo distingue as espécies de cumulação de ações quanto ao momento em que ela se forma. De acordo com esse critério, portanto, a cumulação pode ser inicial, quando surge desde a petição inicial, através do primeiro ato postulatório do processo; ou ulterior, se surge em momento posterior, depois de já instaurado o processo. O tema, todavia, será novamente abordado, em capítulo autônomo desta obra, que cuidará especificamente do processo cumulativo (capítulo XX).
8.8. CLASSIFICAÇÃO DAS AÇÕES Concluindo esta exposição inicial sobre o direito de ação, abordaremos, neste passo, a classificação das ações. Não é demais relembrar que toda classificação é imperfeita e predominantemente didática, fundada preponderantemente em critérios empíricos e idealizada para oferecer um panorama de todo campo de incidência do instituto que estamos examinando. As ações são classificáveis por vários critérios. O principal deles é o critério que considera a natureza do provimento jurisdicional invocado pelo autor, que já foi exposto quando tratamos da classificação da jurisdição. O provimento jurisdicional invocado é o pedido imediato. De acordo com a espécie de pedido imediato, as ações classificam-se em ações de conhecimento, ações de execução e ações cautelares. A primeira espécie de ação é aquela cuja tutela jurisdicional invocada visa principalmente à obtenção da certeza da existência do direito do autor ao bem da
vida (jurisdição de conhecimento). A segunda visa à obtenção da satisfação de uma prestação através de meios sub-rogatórios ou coativos (jurisdição de execução), enquanto a terceira à obtenção de uma proteção provisória e urgente de uma determinada situação fático-jurídica (jurisdição cautelar). As ações de conhecimento, por sua vez, podem ser classificadas em: meramente declaratórias, constitutivas e condenatórias. As ações meramente declaratórias são aquelas em que a providência pleiteada é a simples declaração da existência ou inexistência de uma relação ou situação jurídica, ou da autenticidade ou falsidade de um documento (CPC de 1973, art. 4º; CPC de 2015, art. 19). Muitas vezes, além de pedir a declaração da existência de uma relação ou situação jurídica, o autor pede ao juiz que, em face da existência desse direito, crie, modifique ou extinga essa relação ou situação jurídica. Nesse caso, a ação de conhecimento não é mais meramente declaratória, mas constitutiva. Por exemplo: se o autor, numa ação de investigação de paternidade, requer apenas o reconhecimento da sua filiação, o pedido por ele deduzido é meramente declaratório, pois a providência jurisdicional invocada é apenas a declaração da existência de uma relação jurídica: o estado de filiação. Dessa declaração de certeza poderão decorrer muitas consequências, mas a sentença em si tem apenas o efeito de declarar que o autor é filho do réu. Por outro lado, quando o autor pede ao juiz que decrete o divórcio, ele não está apenas visando à certeza do seu direito ao divórcio. Em realidade, ele está pedindo ao juiz que o divorcie, e, então, invocou-se um provimento jurisdicional que não se limita simplesmente a declarar quem tem razão, pois a sentença intervém na relação jurídica modificando-a, retirando as partes do estado de casados e as transferindo para o estado de divorciados. No estado de casados, os cônjuges tinham determinados direitos e deveres, que, após a sentença, deixarão de existir. Então, essa sentença é declaratória do direito ao divórcio, mas ela é mais do que isso, é também constitutiva, porque extingue uma determinada relação jurídica. Ainda entre as ações de conhecimento, há as chamadas ações condenatórias, que
são aquelas em que, além da simples declaração da existência do direito a uma prestação, o autor pede ao juiz que imponha ao réu o seu cumprimento, que pode dar-se pelo pagamento de uma importância em dinheiro, pela entrega de um bem ou pela prática ou abstenção de determinada atividade. Em outros termos, o juiz imporá ao réu uma prestação de dar, de fazer ou de não fazer. As ações condenatórias podem ser cumulativamente constitutivas. Cumpre repisar o exemplo da sentença de procedência na ação de despejo. Nesta, além da declaração do direito do autor, ocorre também a rescisão do contrato, que é um efeito constitutivo, e a entrega do imóvel, que é um efeito condenatório. Portanto, nada impede que determinada ação se enquadre em mais de uma dessas classificações. As ações constitutivas e as ações condenatórias são também sempre ações declaratórias, pois as sentenças nessas ações também produzem um efeito declaratório. Caso a sentença seja de procedência do pedido, ela conterá, além do efeito constitutivo ou condenatório, conforme o caso, o efeito de declarar que o autor é o titular do direito perseguido. Nas sentenças de improcedência, há o chamado efeito declaratório negativo, que consiste na declaração de que o autor não tem o direito ao bem da vida que pleiteia na petição inicial. Contudo, há casos em que a ação é ao mesmo tempo constitutiva e condenatória. Nessas hipóteses, por vezes instaura-se uma divergência na doutrina: alguns afirmam que a ação de despejo, por exemplo, é constitutiva, enquanto outros podem considerá-la uma ação condenatória. Na verdade, nesse exemplo, os autores divergem sobre qual é o pedido preponderante, a providência preponderante: a rescisão do contrato ou a entrega do bem. Parece-me que, na ação de despejo, o pedido preponderante é a rescisão do contrato, porque a entrega do bem é uma consequência dessa rescisão. Então, a ação de despejo é uma ação preponderantemente constitutiva, mas que possui também uma eficácia condenatória. Pontes de Miranda demonstrou com muita clareza que esses efeitos não se produzem isoladamente. O ilustre autor classificava as ações em cinco espécies: declaratórias, constitutivas, condenatórias, executivas e mandamentais. Adotando a teoria das cargas, ele graduava cada um desses efeitos, em cada sentença, numa escala de um a cinco, num exercício muito sofisticado e
inteligente, visando a demonstrar que esses efeitos não são estanques, isolados19. Conforme já tratamos quando enumeramos as espécies de pedidos, há uma tendência na doutrina brasileira recente de aceitar essas duas outras espécies de ações de conhecimento: as ações mandamentais e as ações executivas lato sensu. As primeiras são aquelas em que o autor pede ao juiz que expeça uma ordem a ser cumprida pelo réu, enquanto, nas segundas, o autor pede ao juiz que cumpra, por si ou através de um preposto, a prestação constante da sentença. Como já afirmei, a doutrina clássica, à qual me filio, não as aceita como espécies autônomas de ações de conhecimento, porque, na verdade, são ações condenatórias, que diferem das demais apenas no seu modo de cumprimento. Classificam-se ainda as ações quanto ao pedido mediato, que é o bem da vida que o autor pretende alcançar, através do provimento jurisdicional. Por esse critério, as ações podem classificar-se em mobiliárias e imobiliárias. Mobiliárias são as ações que têm por objeto um bem móvel, que pode abranger tanto um objeto físico como um bem que não tenha realidade no mundo físico, como, por exemplo, o direito ao nome e à intimidade. Já as ações imobiliárias são aquelas que têm por objeto um bem imóvel. As ações também podem ser classificadas quanto à natureza do direito material nelas versado, ou seja, de acordo com a natureza do direito que compõe a causa de pedir próxima. Essa, como já estudamos, é o direito material em que se fundamenta o pedido do autor. Por esse critério, as ações se classificam em ações reais e ações pessoais. As primeiras são ações que têm por fundamento um direito real, como, por exemplo, o direito de propriedade, de servidão, de uso, de habitação, enquanto as segundas são aquelas em que o direito material que compõe o fundamento jurídico do pedido é um direito obrigacional, um direito de família ou um dos direitos da personalidade. Dentre as ações pessoais fundadas nos direitos da personalidade ou no direito de família, há uma categoria a que a doutrina e a praxe denominam de ações prejudiciais, que são aquelas relativas ao estado das pessoas.
O estado é uma situação jurídica de que o indivíduo desfruta em relação a todos os membros da coletividade. No direito romano, havia três espécies de estado: o status civitatis, o status libertatis e o status familiae. O status civitatis correspondia à nacionalidade, e de acordo com esse estado os cidadãos podiam ser romanos ou estrangeiros. O status libertatis dizia respeito à liberdade do indivíduo, que podia ser escravo ou liberto. Por fim, o status familiae considerava o indivíduo como membro de uma determinada família. Hoje não existe mais, na sociedade ocidental, o status libertatis, porque todos os indivíduos são livres, não havendo mais seres humanos sujeitos à escravidão, e, por isso, as causas sobre o estado das pessoas versam apenas sobre a sua nacionalidade ou sobre o seu estado familiar. Citando Gabriel de Rezende Filho, Moacyr Amaral Santos restringe as ações prejudiciais, no direito moderno, à tutela do estado de família, enumerando-as: ação para pedir a posse em nome do nascituro (CPC de 1973, arts. 877-878, não mais prevista no Código de 2015), ação de emancipação (CPC de 1973, art. 1.112, inc. I; CPC de 2015, art. 725, inc. I), ação de levantamento de impedimentos matrimoniais, ação de suprimento de consentimento para casamento (Código Civil, arts. 1.517 e 1.519), ação de separação dos cônjuges (art. 1.572), ação de anulação ou nulidade de casamento (arts. 1.548 a 1.564), ação de filiação (art. 1.606), ação de contestação de paternidade e de maternidade (art. 1.601), ação de impugnação de reconhecimento de filho, ação reclamatória de filho, ação suspensiva de pátrio poder (art. 1.637), ação destitutória do pátrio poder (art. 1.638), ação de nulidade, de anulação ou de impugnação de adoção20. Algumas dessas ações estão também previstas no Código de 2015, nos artigos 693 a 699. As ações cautelares e as ações de execução têm a sua própria classificação, das quais trataremos mais adiante, no 2º e no 4º volumes desta obra, quando cuidarmos, respectivamente, da tutela provisória e da execução. ________ 1
Ver PUGLIESE, Giovanni. “Introducción” a Bernhard Windscheid y Theodor Muther, polemica sobre la “actio”. Tradução de Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: EJEA, 1974. p. XI-XLI.
2 GRECO, Leonardo. Teoria da ação no processo civil. São Paulo: Dialética,
2003. p. 9. 3 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro. 28. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 18; FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 178. 4 Sobre as hesitações que se têm verificado na doutrina e na jurisprudência
espanholas a respeito do iura novit curia, ver ORMAZABAL SÁNCHEZ, Guillermo. Iura novit curia – La vinculación del juez a la calificación jurídica de la demanda. Madrid: Marcial Pons, 2007. 5 GRECO, Leonardo. Teoria… p. 63-73. 6 CHIOVENDA, Giuseppe. Principii… p. 283. 7 CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 3. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 95-125. 8 COMOGLIO, Luigi Paolo. Azione e domanda giudiziale. In: COMOGLIO,
Luigi Paolo; FERRI, Corrado; TARUFFO, Michele. Lezioni sul processo civile.5. ed. Bologna: Il Mulino, 2011. 1º v., p. 289. 9 Ver GRECO, Leonardo. Teoria… p. 66-67. 10 LAZZARINI, Alexandre Alves. A causa petendi nas ações de separação
judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 11 CHIOVENDA, Giuseppe. Principii… p. 285. 12 Loc. cit. 13
ALVIM, Arruda. Anotações sobre a chamada coisa julgada tributária. In: Revista de Processo. São Paulo, n. 92, ano 23, out./dez. 1998. p. 7. 14 OLIVA SANTOS, Andrés de la. Objeto del proceso y cosa juzgada en el
proceso civil. Navarra: Thomson-Civitas-Aranzadi, 2005. p. 59 e ss.
15
FRIEDENTHAL, Jack H.; KANE, Mary Kay; MILLER, Arthur R. Civil Procedure. 3. ed. St. Paul: West Publishing Co, 1999. p. 639-648; ANDREWS, Neil. O moderno processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 197-201. 16 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 29.
ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 1º v. p. 191-193. 17 CARPI, Federico. Giornata chiovendiana; CIPRIANI, Franco. Il 3 febbraio
1903 tra mito e realtà; COLESANTI, Vittorio. La prolusione bolognesa del Chiovenda nel 1903; FAZZALARI, Elio. Giornata chiovendiana; TARUFFO, Michele. Considerazioni sulla teoria chiovendiana dell’azione. In: Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano: Giuffrè, 2003. p. 1.101 e ss. 18 LIEBMAN, Enrico Tullio. Ações concorrentes. In: Eficácia e autoridade da
sentença e outros escritos sobre a coisa julgada. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 209 e ss. Chiovenda também já havia mencionado essa espécie de concurso de ações, referindo-se às obrigações solidárias e à fiança (CHIOVENDA, Giuseppe. Principii… p. 287). 19 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de
Processo Civil. 4. ed. Atualização legislativa de Sergio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 1995. t. I, p.110-118. 20 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas…, 1º v. p. 217-219.
9.1. AS TEORIAS SOBRE A NATUREZA DA AÇÃO Na evolução da doutrina processual, após a consagração, na segunda metade do século XIX, da certeza de que o direito de ação é autônomo em relação ao direito material, ou seja, de que o direito de ação é outro direito subjetivo, com conteúdo próprio, o de exigir do Estado a prestação jurisdicional, e não o próprio direito subjetivo material, duas principais questões foram debatidas a respeito desse instituto. Sobre elas, muitos estudiosos têm manifestado opinião, mas ainda não se chegou a um completo consenso, embora vários ordenamentos processuais, como os nossos Códigos de 1973 e de 2015, tenham procurado, com maior ou menor clareza, posicionar-se sobre elas. A primeira questão procura definir se a ação é um direito subjetivo em face do Estado ou em face do adversário. Theodor Muther e Adolf Wach, ainda no século XIX, sustentaram que a ação é um direito contra o Estado, ao qual corresponde o dever de exercer a jurisdição, enquanto Chiovenda, já no século XX, entendeu tratar-se de um direito contra o adversário, que contra a sua vontade é submetido pelo autor aos efeitos da atividade jurisdicional do Estado. Chiovenda se referia à ação como um direito potestativo1. Parece-me que sobre essa primeira questão hoje existe um razoável consenso de que a ação como direito à jurisdição é um direito subjetivo público, ou seja, é um direito a que corresponde um dever do Estado, a prestação da jurisdição em uma das suas modalidades. Já a ação como demanda se exerce sempre em relação a todos os outros sujeitos de direito que participam da mesma relação jurídica de direito material e que o autor pretende que sejam diretamente atingidos pelo exercício da jurisdição. Esse sujeito comumente é o réu, ou seja, é aquele que no litígio resiste à pretensão do autor de fazer prevalecer o seu interesse ao bem jurídico disputado. Pode haver vários réus, como pode haver outros sujeitos que venham a assumir posição solidária ao autor ou, como creio, até outros sujeitos que venham a assumir posições próprias de disputa do mesmo bem jurídico, que não correspondem nem à pretensão do autor, nem à resistência do primitivo réu. Normalmente a demanda tem duas partes, autor e réu, dando origem a uma relação processual linear, mas há outros sujeitos que, em certas relações de
direito material, podem assumir outras posições, como, por exemplo, os diversos credores no processo de falência ou de insolvência. Há também casos de sujeitos que mudam de lado no curso do processo, como ocorre, não raramente, na ação popular (Lei n. 4.717/65, art. 6º, caput e § 3º). Na jurisdição voluntária não há necessariamente outro sujeito interessado, e para aqueles, como eu, que a consideram verdadeira jurisdição, o desencadeamento do seu exercício constitui manifestação do direito de ação. A segunda grande questão que aflige a doutrina sobre o direito de ação é se se trata de um direito concreto ou abstrato. Os partidários da ação como direito concreto, como Adolf Wach, Giuseppe Chiovenda, Piero Calamandrei e Girolamo Monteleone, embora reconheçam o caráter autônomo desse direito, sustentam que o direito de ação pressupõe a existência do direito subjetivo material e, por isso, costumam afirmar que esse direito se realiza, atinge o seu fim, com a obtenção de uma sentença favorável. Já os abstratistas entendem que o direito de ação provoca o exercício da jurisdição sobre a pretensão de direito material do autor, mas que esse direito se realiza pela entrega da prestação jurisdicional, seja ela favorável ou não ao autor, porque o seu conteúdo é apenas o exercício da jurisdição sobre aquela pretensão, não necessariamente em benefício do autor. Essa teoria foi abraçada, ainda no século XIX, por Degenkolb e Plósz e, já no século XX, por Alfredo e Ugo Rocco, Emilio Betti, Francesco Carnelutti e Enrico Tullio Liebman2. Calamandrei, no seu célebre estudo sobre a relatividade do conceito de ação3, ressalta que, desde as primeiras polêmicas sobre o tema, travadas pelos juristas alemães no século XIX, sempre esteve em jogo uma questão política envolvendo as diversas concepções das relações entre o cidadão e o Estado, e que nenhuma das diversas teorias propostas pode ser considerada absolutamente verdadeira, nem absolutamente falsa. Concretista, como era conhecido, o mestre de Florença via no direito abstrato de agir a expressão típica de uma concepção autoritária da justiça civil, que busca no processo apenas a realização de um fim público e que afasta radicalmente qualquer relação entre a ação e o direito substancial4. O concretismo parece a muitos não razoável e insuficiente, pois teria como
consequência afirmar a posteriori a ilegitimidade da iniciativa do autor, toda vez em que a sua demanda não fosse acolhida. Liebman já havia acentuado que, ao argumento dos concretistas de que é absurda a figura de um direito de não ter razão, que decorreria da teoria abstrata, corresponde a não menos absurda de um direito a ter razão. Na verdade, para Chiovenda, se o autor não tinha razão, o fato de ter agido teria feito nascer o direito de ação do réu, tendente a um resultado favorável a este, como consequência do acertamento negativo do direito pretendido pelo autor5. No processo vivo podem ser vistas ocasionalmente quase todas as concepções de ação, o que ressalta a sua relatividade. O importante é que o ordenamento jurídico acolha as garantias constitucionais do processo justo. As teorias abstratas tiveram o mérito de desvincular o direito de ação da existência do direito material, determinando que as condições da ação, na qualidade de pressupostos da ação como direito à jurisdição, fossem examinadas através de uma cognição superficial, num juízo prima facie da admissibilidade da pretensão de direito material. Qualquer indagação mais profunda sobre a existência dessas condições poderia vir a constituir um obstáculo ilegítimo ao acesso à tutela jurisdicional sobre o próprio direito material, constitucionalmente assegurado. Mas os concretistas criticam nas teorias abstratas a autolegitimação, que decorre da verificação das condições da ação in statu assertionis. O direito de ação nasce das próprias afirmações do autor, ainda que totalmente inverídicas ou até absurdas. Mais adiante veremos como as chamadas condições da ação vão servir justamente para tentar extrair das duas correntes os seus aspectos positivos, minimizando os seus inconvenientes. À guisa de conclusão, parece-me certo que a ação é um direito abstrato, porque a sua existência não resulta da existência do direito subjetivo material, não obstante a verificação da sua existência se concretize através do exame da fatispécie, ou seja, da relação jurídica de direito material submetida à apreciação judicial. Complementando o conceito exposto no capítulo anterior, diríamos agora que a ação é o direito subjetivo público, autônomo e abstrato de exigir do Estado a
prestação jurisdicional sobre determinada demanda de direito material.
9.2. O TRINÔMIO DAS QUESTÕES DO PROCESSO Para prosseguir no estudo do direito de ação, é preciso compreender que, em conformidade com a doutrina entre nós prevalente, o processo é composto de três tipos de questões. É o chamado trinômio das questões do processo. Quais são esses três tipos de questões que o juiz tem de apreciar no processo? São os pressupostos processuais, as condições da ação e o mérito. O que são os pressupostos processuais? São os requisitos da regular e válida formação do processo e do seu regular e válido desenvolvimento. No nosso estudo, trataremos dos pressupostos processuais mais adiante. Contudo, para uma melhor compreensão acerca das condições da ação e do mérito, é preciso entender o que sejam os pressupostos processuais. Esses são os requisitos que a lei impõe para a formação e o desenvolvimento do processo, como a sequência dos atos do procedimento, os requisitos de cada ato processual, os prazos em que cada ato deve ser praticado etc. Os artigos 282 do Código de 1973 e 319 do Código de 2015, por exemplo, estabelecem quais são os requisitos da petição inicial. Para Humberto Theodoro Júnior6, os pressupostos são aquelas exigências legais sem cujo atendimento o processo, como relação jurídica, não se estabelece ou não se desenvolve validamente. São requisitos jurídicos para a validade e eficácia da relação processual. São dados reclamados para análise de viabilidade do exercício do direito de ação sob o ponto de vista estritamente processual. Já as condições da ação importam o cotejo do direito de ação concretamente exercido com a viabilidade abstrata da pretensão de direito material. Parece-me clara a diferença entre pressupostos processuais e condições da ação. Os pressupostos dizem respeito à validade do processo, ao meio de exercício da jurisdição, enquanto destinados a assegurar no caso concreto o respeito formal às garantias mínimas de acesso à justiça que o Estado deve observar em relação a quaisquer cidadãos, independentemente de qualquer consideração sobre a existência real ou hipotética do direito material. Já as condições da ação são os requisitos da existência do direito a uma providência judicial sobre o direito material das partes, ainda que essa providência seja desfavorável a quem a
postula, que se verificam em face da possibilidade de acolhimento da hipótese formulada pelo autor no ato introdutório do processo. Aos pressupostos processuais é totalmente estranha qualquer consideração a respeito do direito material das partes ao bem jurídico almejado. Já às condições é totalmente estranha a forma ou o meio de exercício da jurisdição. O que interessa é saber se a hipótese fática e jurídica de direito material, abstratamente considerada e consistentemente fundamentada, tem a aptidão, de acordo com esse mesmo direito material, a propiciar ao autor, se comprovada, a obtenção de um pronunciamento favorável sobre esse mesmo direito material. É inegável que, se ambos, pressupostos processuais e condições da ação, devem ser examinados antes do julgamento do direito material, a falta de uns ou de outras vai igualmente impedir esse julgamento. Isso não significa, entretanto, que na sua essência não sejam diferentes. Se o juiz extingue o processo por falta de pressuposto processual, ele não chegou a pronunciar-se sobre o direito material das partes e sobre a própria existência do direito de ação. Já se, preenchidos os pressupostos processuais, faltar uma condição da ação, o juiz não se pronunciará sobre o direito material das partes, mas sim sobre a existência do direito de ação, sobre a viabilidade hipotética do seu acolhimento, para declarar o autor carecedor da ação. Se essa última decisão tivesse resultado de um processo não apenas válido, mas amplamente desenvolvido com o mais completo respeito a todas as garantias de acesso à justiça em benefício de ambas as partes, poderia a lei dar a essa decisão eficácia e estabilidade, de modo a não permitir a reiteração da mesma postulação com a formulação da mesma hipótese fática e jurídica. Todavia, como o Código de 1973, no § 3º do artigo 267, e o Código de 2015, no § 3º do artigo 485, equiparam o tratamento formal das condições e dos pressupostos processuais, determinando que o juiz examine de ofício a falta de qualquer deles a qualquer tempo, a eficácia da declaração da carência de ação é a mesma da extinção do processo por falta de pressuposto processual. Em verdade, a consequência concreta que se apresenta visível da diferença essencial entre os dois institutos se encontra na anterioridade lógica e, portanto, também cronológica, que apresenta o exame dos pressupostos em relação ao das
condições. Em todos os momentos em que lhe couber tomar qualquer decisão, primeiramente o juiz deve verificar se se encontra diante de um processo válido, que preencha todos os pressupostos processuais, velando assim para que nenhum pronunciamento sobre a existência do direito de ação ou sobre a existência do direito material nasça viciado. Isso é um corolário do princípio da legalidade e do dever de qualquer autoridade de velar pela licitude da sua atividade. Ultrapassados por um juízo positivo os pressupostos processuais, deve então o juiz verificar se concorrem as condições da ação, para só então, se for caso, diante de mais um juízo positivo, adentrar na apreciação do direito material das partes. Isso porque o processo judicial é uma relação jurídica que se desenvolve perante uma autoridade pública, e, portanto, é regida preponderantemente pelo direito público e pelo princípio da legalidade. A expressão clássica desse princípio enuncia que o Estado só pode fazer aquilo que a lei permite, de modo que toda atividade pública tem de estar legalmente regulada. A lei processual disciplina, então, o exercício da atividade do juiz, dos seus órgãos auxiliares e de todos os sujeitos particulares que intervêm nessa relação jurídica processual. Os pressupostos processuais, portanto, dizem respeito à validade e regularidade da atividade-meio, que é o processo. Quando o juiz decide se existe ou não um pressuposto processual, ele não está decidindo a respeito da demanda, mas a respeito da atividade-meio que ele está desenvolvendo. Esse exame é típico do Estado de Direito. Não é somente o juiz que tem de velar pela validade e regularidade da sua atividade-meio, pois qualquer funcionário público, em qualquer poder do Estado, não deve exercer suas funções sem controlar se o está fazendo no estrito respeito do princípio da legalidade. Por exemplo: se um cidadão se dirige à delegacia localizada no Centro da Cidade e afirma que foi vítima de um crime em Copacabana, o delegado de polícia deve informá-lo de que a sua delegacia não tem competência para apurar a prática desse crime, pois esse ocorreu na área geográfica de outra delegacia. Esse é um exemplo de controle de legalidade da atividade policial, que mostra que não são apenas os juízes que têm de velar pela legalidade e regularidade da sua atuação, mas todos os funcionários públicos.
Os pressupostos processuais são, em geral, requisitos de validade do processo, mas, se esse não for válido, inválidos poderão resultar o exercício da jurisdição e a própria sentença. Então, a validade do processo é um pressuposto da validade do próprio exercício da jurisdição. O segundo tipo de questões que o juiz precisa apreciar é o das condições da ação, que, na doutrina, são objeto de diferentes definições. Na minha compreensão, elas são os requisitos da existência do direito de ação como direito à jurisdição. São as condições da ação que vão definir se o autor tem ou não direito ao exercício da jurisdição sobre aquela pretensão de direito material, sobre aquela demanda por ele proposta. Alguns autores, entretanto, tratam as condições da ação como condições do exercício do direito de ação. Parece-me que essa doutrina, na verdade, considera que a ação é um direito incondicionado – empregando a palavra no sentido de ação como direito cívico –, embora aceite a imposição pela lei de certos requisitos para que esse direito seja exercido em juízo. Como já explicamos, diferenciando os diversos sentidos em que é empregada a palavra ação, poderemos dizer com toda segurança que as condições da ação são os requisitos da existência do direito de ação como direito à jurisdição. Isso porque só quem preencher as condições da ação é que tem direito ao exercício da jurisdição sobre determinada pretensão. Enquanto o pressuposto processual é normalmente um requisito de validade do processo e quase nada diz sobre a demanda, sobre o direito material, a condição da ação é um requisito do direito de obter o exercício da jurisdição sobre o direito material, o que não quer dizer que, concorrendo as condições da ação, a sentença vá ser favorável ao autor. Para os concretistas, o direito de ação seria o direito a uma sentença favorável, e, então, se o juiz, ao final do processo, julgasse o pedido improcedente, o autor não teria tido o direito de ação. Atualmente, a teoria que prevalece, que é a teoria abstrata, afirma que, nas hipóteses de improcedência, o autor teve sim o direito de ação, porque o direito de ação é o direito à prestação jurisdicional sobre uma demanda, mesmo que seja para rejeitá-la. Desse modo, a jurisdição também se exerce quando o juiz rejeita o pedido do autor.
A sentença que julga um pedido improcedente também resolve o litígio, pronunciando-se sobre o direito material e normalmente produzindo efeitos de direito material, salvo quando a lei expressamente a exclui7. Por isso, é incorreto dizer que não houve o exercício da jurisdição, sob pena de se eternizarem os litígios. O juiz pacifica o litígio, seja nas sentenças de procedência, seja nas de improcedência. Por último, o que é o mérito da causa? É o conjunto das questões de direito material que o juiz aprecia no exercício da jurisdição, que se compõe do objeto litigioso, dos seus fundamentos e dos fundamentos da defesa. O réu também pode alegar um direito material, visando a ilidir o direito material do autor. Daí dizer-se que o mérito é o conjunto de todas as questões de direito material, porque também abrange o direito material alegado pelo réu na sua defesa, que pode ser fundado em fatos extintivos, modificativos ou impeditivos do direito do autor. Essas questões de direito material que pretendem ilidir o direito do autor compõem a chamada causa excipiendi, ou seja, os fundamentos da defesa. Quando o réu se limita a rejeitar, negar, desmentir os fatos contra ele aduzidos, não está ampliando o mérito da causa, que continuará sendo a demanda anteriormente proposta. Contudo, quando o réu aduz, em contraposição ao direito alegado pelo autor, outro direito, ele amplia o mérito e estamos diante da causa excipiendi. É o que se denomina também de defesas indiretas de mérito, que ocorrem quando o réu opõe ao direito do autor fatos que lhe são extintivos, modificativos ou impeditivos. Por exemplo: o réu, na contestação, pode alegar prescrição, compensação, pagamento, novação, transação etc. Todos esses são fatos jurídicos que impedem que o pedido do autor seja acolhido, ou que extinguem, ou modificam o direito por ele alegado. Cabe então analisar a disciplina dos pressupostos processuais, das condições da ação e do mérito na lei processual, nos nossos Códigos de Processo Civil. Os pressupostos processuais estão espalhados pelos Códigos, pois a lei processual regula em diversos momentos os requisitos de cada ato, o seu encadeamento etc. É o que ocorre, por exemplo, com as regras que disciplinam o
conteúdo, os requisitos da petição inicial (CPC de 1973, art. 282; CPC de 2015, art. 319). Há também um dispositivo que menciona expressamente os pressupostos processuais, estabelecendo que o processo se extingue sem resolução do mérito quando não concorrerem quaisquer dos seus pressupostos de formação e desenvolvimento válido e regular (CPC de 1973, art. 267, inc. IV; CPC de 2015, art. 485, inc. IV). Nesse mesmo artigo o Código menciona três fatos que podem gerar a falta de um pressuposto processual, que são a litispendência, a coisa julgada e a perempção (CPC de 1973, art. 267, inc. V; CPC de 2015, art. 485, inc. V). Das condições da ação o Código de 1973 trata logo nos artigos 3º, 4º, 6º, no artigo 295, que cuida do indeferimento da petição inicial e no artigo 267, inciso VI, a que correspondem no Código de 2015 os artigos 17, 19, 18, 330 e 485, inciso VI. Cumpre atentar para o fato de que os dois Códigos não seguem rigorosamente o trinômio das questões do processo, não separando pressupostos, condições da ação e mérito, mas dispondo sobre as condições da ação e pressupostos processuais no mesmo artigo, como questões que dão ensejo à extinção do processo sem resolução do mérito. Quanto ao mérito, os Códigos dispensaramlhe tratamento num artigo específico (CPC de 1973, art. 269; CPC de 2015, art. 487). Essa opção legislativa não é irrelevante, porque, afastando as decisões dessas questões do mérito da causa, exclui categoricamente que possam adquirir a imutabilidade da coisa julgada (CPC de 1973, arts. 467 e 468; CPC de 2015, arts. 502 e 503), embora em vários casos, bem mais amplos no Código de 2015, a renovação da mesma ação extinta por falta de pressuposto processual ou de condição da ação dependa da correção do vício que determinou essa extinção. No Código de 1973 (art. 268), esses defeitos seriam a perempção, a litispendência e a coisa julgada. O Código de 2015, mais preocupado em evitar a reiteração de demandas inviáveis, não mais menciona a perempção e a coisa julgada (v. adiante o item 14.3.1), certamente porque as reputa irremediáveis, acrescentando à litispendência a falta de quaisquer outros pressupostos processuais ou condições da ação (art. 486, § 1º). Como não há coisa julgada, o erro a ser corrigido tanto pode ter causado pelo autor, que efetivamente propôs demanda viciada, como pode ter sido praticado pelo próprio juiz. Assim, não
havendo coisa julgada, nada impede que o autor, melhor instruindo a sua petição inicial, esclarecendo ou demonstrando o equívoco do juiz, venha em nova postulação a afastar o vício que ensejou a extinção do processo anterior por falta de pressuposto processual ou de condição da ação. Somente na hipótese de vícios irremediáveis, estará impedido o autor de renovar a mesma postulação, ficando a repropositura da demanda sujeita à rescisão da sentença de extinção, nos termos do artigo 966, § 2º. Os nossos Códigos ainda estabelecem (CPC de 1973, art. 267, § 3º; CPC de 2015, art. 485, § 3º) que o juiz poderá conhecer de ofício, a qualquer tempo e grau de jurisdição, de questões relativas à falta de condições da ação e de pressupostos processuais, mais uma vez dispensando, pelo menos aparentemente, tratamento igual a essas duas figuras distintas. Então, será que os pressupostos processuais e as condições devem ter exatamente o mesmo tratamento? Não, porque a falta de uma condição da ação é uma questão insuperável, que impede o próprio exercício da jurisdição. Se o autor não apresentou todas as condições da ação, ele não poderá provocar e obter o exercício da jurisdição. Entretanto, quanto aos pressupostos processuais, deve ser feita uma distinção, porque há pressupostos cuja falta é mais grave, e outros cuja falta é menos grave. Há pressupostos processuais, portanto, que constituem requisitos essenciais de certos atos processuais, enquanto outros constituem requisitos apenas úteis. Nem toda inobservância daquilo que a lei exige para a prática de determinado ato vai gerar a sua nulidade absoluta, e isso, no direito processual, decorre claramente do princípio da liberdade das formas, que está inserido nos artigos 154 do Código de 1973 e 188 do Código de 2015. Outra prova de que o juiz eventualmente pode passar por cima da falta de um pressuposto processual está contida no § 2º do artigo 249 do Código de 1973, a que corresponde o § 2º do artigo 282 do Código de 2015, segundo o qual o juiz não declarará a nulidade quando puder julgar a causa favoravelmente àquele a quem aproveitaria a sua declaração. Neste último Código, também o artigo 498 aplica o mesmo princípio. Daí decorre uma das grandes dificuldades da teoria dos defeitos dos atos processuais, que é a de saber quais os pressupostos cuja inobservância gera
nulidade absoluta e quais são aqueles cuja inobservância gera apenas nulidade relativa ou mera irregularidade. Para encerrar a exposição deste tema, considero importante reconhecer que, em certos casos, um determinado fato ao mesmo tempo compromete a validade do processo (falta de pressuposto processual) e o direito à prestação jurisdicional sobre o mérito (falta de condição da ação). É o que ocorre, por exemplo, nas hipóteses em que se verificam a perempção, a litispendência e a coisa julgada. Daí alguns autores tratarem esses fatos como falta de pressupostos processuais, como o faremos mais adiante (item 14.3.1), enquanto outros, como Machado Guimarães8, os considerarem condições negativas do direito de ação. Diante dessa divergência, o legislador do Código de Processo Civil de 1973 preferiu não se posicionar, dispondo da perempção, da coisa julgada e da litispendência à parte, no inciso V do artigo 267 do Código de 1973 e no inciso V do artigo 485 do Código de 2015. Assim, de acordo com a disciplina legal, ainda que esses fatos sejam qualificados de maneira diversa pela doutrina, ensejarão a extinção do processo sem resolução do mérito. A meu ver, pela prioridade lógica que deve haver entre o exame dos pressupostos processuais em relação às condições da ação – uma vez que, em razão do princípio da legalidade, o agente estatal deve verificar, previamente, se a sua atuação é conforme a lei –, esses fatos geram a extinção do processo pela inobservância de um pressuposto processual objetivo, que exige a inexistência de fatos impeditivos para a válida e regular formação e desenvolvimento do processo.
9.3. CONDIÇÕES DA AÇÃO Liebman, em posição às vezes chamada de eclética9, leciona que a ação não é concreta, pois sempre traz em si um elemento de risco. A sua abstração não pode ser entendida no sentido mais comum. Ela não cabe a qualquer um e não tem conteúdo genérico. Ao contrário, se refere a uma fatispécie determinada e exatamente individuada. Ela é condicionada a alguns requisitos que devem verificar-se caso a caso em via preliminar, comumente de modo implícito: interesse de agir, legitimação para agir e possibilidade jurídica. Em verdade, se a ação como direito à jurisdição existe independentemente da
existência do direito material, ele não é criado pela vontade unilateral e arbitrária do autor que se autolegitima e toma a iniciativa de instaurar o processo, pois a ação é um direito preexistente ao processo. A asserção é necessária, porque o Estado-juiz somente tem o dever de prestar a jurisdição a quem se afirme titular do direito a obtê-la. Mas não é a asserção que cria o direito à jurisdição. Não basta a asserção. É preciso que objetivamente da situação fática exposta resulte a concorrência das condições da ação que, conforme aponta a maioria da doutrina, são a possibilidade jurídica, o interesse e a legitimidade. Na definição dessas condições é preciso ter sempre em conta que a qualquer cidadão a Constituição assegura o acesso à jurisdição, ou seja, que as condições da ação não podem opor obstáculos indevidos a esse acesso. Por outro lado, também cumpre observar que a Constituição assegura a todos a eficácia concreta dos seus direitos subjetivos (art. 5º, § 1º) e que, assim, o acesso à jurisdição não pode impedir ou limitar o pleno gozo do direito por quem evidentemente é o seu titular, a não ser em razão de algum motivo justo devidamente comprovado. A eficácia concreta dos direitos do cidadão exige a sua proteção contra lides temerárias e contra o abuso do direito de demandar. As condições da ação são o filtro mínimo por que deve passar o postulante da tutela jurisdicional para assegurar-lhe o mais amplo acesso a essa tutela, com todas as suas consequências, inclusive a coisa julgada, se for o caso, e, ao mesmo tempo, evitar que o adversário seja submetido a um processo manifestamente temerário ou injusto, que lhe retira ou limita o pleno gozo dos seus direitos e ainda pode lhe causar prejuízos irreparáveis. Como vimos anteriormente, a ação como direito cívico é incondicionada, porque é um direito conferido a qualquer cidadão, independentemente do conteúdo da sua postulação. Assim, qualquer cidadão pode dirigir-se ao Estado-juiz e a ele formular qualquer pedido, do qual terá direito de receber uma resposta, ainda que o pedido formulado seja inteiramente absurdo, ilegal. Contudo, o direito de ação, tratado como direito à jurisdição, direito à prestação jurisdicional sobre o direito material, é condicionado. Só tem direito de exigir do Estado a prestação jurisdicional sobre o direito material aquele cuja postulação preencha certos requisitos, certas condições, as chamadas condições da ação.
Os diversos sentidos em que é utilizado o direito de ação influenciam a reflexão acerca da natureza jurídica das condições da ação. Em realidade, conforme já observamos, os autores que consideram as condições da ação requisitos do legítimo exercício do direito de ação estão se referindo ao conceito de ação como direito cívico, como direito incondicionado pertencente a qualquer cidadão. Entretanto, o direito à prestação jurisdicional sobre o direito material é um direito que depende do cumprimento de certos requisitos. Assim, considero as condições da ação requisitos da existência do direito de ação como direito à prestação jurisdicional sobre uma pretensão de direito material. O artigo 267, inciso VI, do Código de 1973, ao se referir à extinção do processo sem resolução do mérito, enumera as condições da ação, quais sejam, a possibilidade jurídica, a legitimidade ad causam e o interesse de agir. O Código de 2015, no dispositivo correspondente (art. 485, inc. VI), menciona apenas a legitimidade e o interesse processual. 9.3.1. Possibilidade jurídica do pedido A controvérsia sobre a sobrevivência da possibilidade jurídica do pedido como condição da ação surgiu no Brasil logo após o advento do Código de 1973 como reflexo da reedição por Liebman na Itália do seu Manuale, no qual teria deixado de mencioná-la, embora não tenha expressamente justificado essa exclusão. Liebman viveu no Brasil durante a 2ª Guerra Mundial, tendo lecionado na Faculdade de Direito de São Paulo, e aqui deixou inúmeros discípulos, como Alfredo Buzaid, José Frederico Marques e, mais recentemente, Cândido Rangel Dinamarco. A possibilidade jurídica é a conformidade do pedido com o ordenamento jurídico positivo. O autor somente pode formular pedido lícito, descrevendo uma situação jurídica agasalhada pela lei. Em outros termos, não se pode pedir o que a lei proíbe. A decisão acerca do direito ao bem da vida não se confunde com o exame da licitude do pedido, pois para que esta esteja presente basta que o pedido seja hipoteticamente admissível em face do ordenamento jurídico.
A possibilidade jurídica abrange não só a licitude do pedido, mas também a sua possibilidade material. Assim, aquilo que o direito não pode alcançar não pode ser postulado em juízo. Por exemplo: propõe-se uma ação requerendo a condenação do réu a entregar um terreno situado na Lua, juntando-se cópia do contrato de compra e venda. Nesse caso, estamos diante de um pedido juridicamente impossível, pois, embora não seja ilícito, ele é materialmente impossível e não agasalhado pelo direito. Contudo, há situações em que a ilicitude pode estar na causa de pedir, e não no pedido propriamente. Quanto a esses casos, há divergência na doutrina: a primeira corrente, mais restritiva, entende que a possibilidade jurídica diz respeito tão somente ao pedido, enquanto a segunda, mais ampliativa, defende que ela abrange também a causa de pedir. A posição por mim adotada é a mais restritiva, que identifica a possibilidade jurídica apenas com a admissibilidade hipotética do próprio pedido, e não da causa de pedir ou do direito material invocado. Por exemplo: o autor propõe uma ação objetivando a condenação do réu a entregar-lhe dez quilos de substância entorpecente. Como causa de pedir, alega que efetuou a compra da substância e realizou o seu pagamento. Nessa hipótese, o pedido é juridicamente impossível, porque as drogas são bens fora do comércio, cuja negociação é ilícita, e, assim, a prestação jurisdicional invocada – entrega de substâncias entorpecentes – não encontra respaldo no ordenamento jurídico. No regime do Código de 1973, o juiz extinguirá o processo sem resolução do mérito, com base no artigo 267, inciso VI, julgando, portanto, o autor carecedor de ação por impossibilidade jurídica do pedido. Por outro lado, diversa é a hipótese em que o autor propõe uma ação de cobrança de dez mil reais, fundada num contrato de compra e venda, alegando que vendeu drogas para o réu e este não lhe pagou. O pedido, neste caso, é juridicamente impossível? Não, pois o pedido, que é a condenação ao pagamento de uma importância em dinheiro, é agasalhado pelo ordenamento jurídico, e, assim, o juiz exercerá jurisdição sobre o mérito, julgando o pedido improcedente, julgando, portanto, o mérito da causa. O que é ilícito nesse segundo exemplo é o fundamento, a causa de pedir. A meu ver, a posição mais restritiva justifica-se também por uma razão
pragmática, pois toda vez que se alarga a abrangência de uma condição da ação se restringe o exame do mérito, ou seja, o julgamento do direito material. É justamente nas causas em que há julgamento do mérito que há a formação da chamada coisa julgada material, que gera a impossibilidade de discussão da decisão em qualquer outro processo, salvo nos casos de ação rescisória, cujas hipóteses de cabimento estão taxativamente delineadas nos artigos 485 do Código de 1973 e 966 do Código de 2015. Formada a coisa julgada material, impede-se a perpetuação dos litígios, sepultando-os, em nome da segurança jurídica. A crítica à possibilidade jurídica do pedido como condição da ação tem diversos fundamentos. Em primeiro lugar, a dificuldade de distinguir a ilicitude do pedido da inexistência do direito do autor, cuja declaração consistirá em julgamento do mérito da causa, com força de coisa julgada. O segundo é que, se o pedido é ilícito, deve a decisão repeli-lo com força de coisa julgada para que não seja mais repetido, por meio de decisão de mérito. O terceiro é o de que muitas vezes o autor formula um pedido aparentemente contrário à lei, que poderá vir a ser julgado procedente ou pelo reconhecimento da inconstitucionalidade da lei, ou por uma nova interpretação da lei, o que, aliás, contribui para a evolução do ordenamento jurídico e da jurisprudência. São argumentos ponderáveis que não podem impedir, entretanto, que o juiz poupe o réu do ônus de se defender de uma pretensão manifestamente ilícita. A meu ver, o silêncio do Código de 2015 sobre a possibilidade jurídica do pedido não significa que ela tenha deixado de existir. Ela sobrevive na condição da ação do interesse de agir. Se o pedido é ilícito, o autor não tem necessidade nem utilidade a extrair da pretensão de acolhimento do seu pedido, porque o juiz não poderá acolhê-lo. Aliás, se essa ilicitude transparecer claramente da hipótese formulada pelo autor na petição inicial, esta deverá ser liminarmente indeferida por inepta, porque da narração dos fatos não poderá decorrer logicamente a conclusão pretendida (CPC de 1973, art. 295, parágrafo único, inc. II; CPC de 2015, art. 330, § 1º, inc. III). 9.3.2. Interesse de agir A segunda condição da ação é o interesse de agir, que é a necessidade de recorrer ao exercício da jurisdição para tentar obter a satisfação da pretensão do autor.
Toda vez em que o autor tiver algum outro meio lícito acessível para alcançar o bem da vida, ele não tem interesse de agir, porque não tem necessidade de dirigir a sua pretensão ao Poder Judiciário para obtê-lo. Assim, o autor não poderá cobrar em juízo uma dívida que ainda não está vencida, pois até o seu vencimento pode o devedor pagá-la espontaneamente. Somente após o vencimento da dívida o credor passa a ter interesse de agir, pois passa a ter necessidade de recorrer à jurisdição para a satisfação da sua pretensão. Exceto nos raríssimos casos previstos em lei (ver Código Civil, art. 1.210, § 1º), o credor não pode simplesmente satisfazer a sua pretensão pela força, sob pena de praticar o tipo penal definido como exercício arbitrário das próprias razões (Código Penal, art. 345). O interesse de agir, na jurisdição contenciosa, normalmente nasce da lide. Toda vez em que o autor quer se apropriar de um bem da vida e a sua pretensão é resistida pelo réu, segundo o conceito de Carnelutti, há uma lide, e, portanto, deve aquele postular a satisfação dessa pretensão ao Poder Judiciário. Assim, é do litígio que nasce o interesse de agir, como consequência da impossibilidade do autor de satisfazer a sua pretensão diretamente, pelo uso da força. Por exemplo: se determinado indivíduo foi multado por cometer uma infração de trânsito contra a qual tenha interposto recurso administrativo com efeito suspensivo, ele não tem interesse de agir para requerer a sua anulação em juízo enquanto estiver pendente de julgamento o recurso administrativo, uma vez que ele pode ainda obter a satisfação do seu direito por providência estranha ao ajuizamento da ação. Entretanto, a incerteza jurídica que pode resultar da demora na decisão do seu recurso na esfera administrativa pode justificar o ingresso em juízo, mediante a desistência do recurso administrativo. Essa é a visão clássica sobre o interesse de agir, por mim defendida. Entretanto, hoje, fala-se também em interesse-utilidade e em interesse-adequação. Portanto, como veremos adiante, para alguns autores, o recurso à jurisdição deve ser, além de necessário, útil e adequado. Na jurisdição voluntária, o interesse de agir nasce por imposição da lei, que não permite que o autor alcance aquele bem da vida a não ser através da providência jurisdicional. Era o caso, por exemplo, da separação e do divórcio consensuais, que antes do advento da Lei n. 11.441/2007 somente poderia ocorrer através de
uma sentença judicial. Alguns autores sustentam que essa restrição legal de apropriação do bem da vida por conta própria não pode caracterizar o interesse de agir, pois há certas ações em que o autor não está impedido de se apropriar diretamente do bem da vida, mas a lei lhe assegura o direito de ir a juízo para que possa dirigir o seu comportamento com maior segurança, respaldado por uma sentença ou um despacho judicial. É o caso das ações meramente declaratórias, assim como, atualmente, do inventário, da separação e das notificações, que podem ser promovidos extrajudicialmente. Por exemplo: na condição de consumidor, determinado indivíduo celebrou um contrato de adesão. Certo da nulidade de determinada cláusula, esse indivíduo pretende descumpri-la. Ainda que se trate de nulidade de uma cláusula do contrato, ele poderá pedir ao juiz que a declare, a fim de se resguardar de eventual risco futuro. Essa é uma posição aceitável. Entretanto, considero que a hipótese acima está abrangida pelo chamado interesse-necessidade. Nesse caso, o autor necessitaria recorrer ao judiciário para dele obter a certeza de que a cláusula é nula, por uma questão de segurança jurídica. Ainda que o réu não esteja impedindo o autor de descumprir a referida cláusula contratual, pode ser do seu conhecimento (pela posição que o réu já assumiu em relação a terceiros, por exemplo) que ele não vá permanecer inerte se o autor simplesmente deixar de cumprir o contrato. Então, o autor tem interesse de agir para postular em juízo a declaração da invalidade daquela cláusula, da inexistência da obrigação de cumpri-la. Essa é uma pretensão à simples certeza jurídica, a uma simples declaração, que, no entanto, é dedutível em juízo. No meu ponto de vista, essa pretensão está agasalhada pela ideia de necessidade, a necessidade de certeza jurídica. É o que ocorre também em certas medidas judiciais de mera documentação. Assim, qual o interesse de agir que existe na justificação prévia, por exemplo? Procura-se simplesmente documentar um fato que pode ter ou não relevância jurídica, a fim de que se possa prová-lo no futuro, caso necessário. Alguns sistemas jurídicos, entretanto, conferem outro tratamento ao simples
interesse do autor na certeza jurídica. Celso Agrícola Barbi10 refere que em alguns países, como a Alemanha, a Áustria, a Espanha, e a Inglaterra, não é admitida pretensão meramente declaratória quando já tiver ocorrido lesão ao direito. Se esta já ocorreu, o autor não pode simplesmente pedir a declaração da certeza da existência do seu direito, mas também deve requerer a reparação da lesão por ele sofrida, ou seja, a lei processual não admite pedido meramente declaratório se já tiver ocorrido a lesão do direito. O direito brasileiro se coloca numa outra posição, admitindo o pedido meramente declaratório mesmo que já tenha havido lesão ao direito. É o que estabelecem expressamente o parágrafo único do artigo 4º do Código de 1973 e o artigo 20 do Código de 2015. Essa, portanto, é a ideia de interesse-utilidade. Atualmente, fala-se ainda em interesse-adequação. Exige-se, portanto, que o autor formule um pedido compatível com o procedimento eleito e com a situação fático-jurídica por ele exposta na causa de pedir. A ausência dessa compatibilidade caracterizaria falta de interesse de agir, por inexistência de interesse-adequação. O erro na escolha do rito, do regime processual a que a ação vai se submeter, que deve ser feita pelo autor na petição inicial, no Código de 1973 pode gerar o seu indeferimento, nos termos do artigo 295, inciso V. Este motivo de indeferimento da petição inicial não foi reproduzido no artigo 330 do Código de 2015, mas sobrevive porque a subordinação do procedimento à lei é um pressuposto processual de validade do processo (v. adiante o item 14.3.2), por cuja observância deve velar o juiz durante todo o seu curso, devendo de ofício apreciá-la a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição (CPC de 1973, art. 267, § 3º; CPC de 2015, art. 485, § 3º). Na verdade, quando se escolhe o procedimento inadequado, não está em jogo o direito do autor ao provimento sobre o direito material, e sim o caminho, o rito, o procedimento por ele eleito e, portanto, a falta de pressuposto processual. Se for possível a sua conversão no rito adequado, o processo não será extinto, a inicial não será indeferida, pois o vício vai ser regularizado, remediado. Por exemplo: na vigência do Código de 1973, propõe-se uma ação e escolhe-se o rito sumário, sem que, contudo, a hipótese se enquadre em uma daquelas previstas no seu artigo 275; ou, na vigência do Código de 2015, propõe o autor
uma ação monitória sem prova escrita do seu suposto crédito (art. 700). O que o juiz fará ao despachar a petição inicial? No primeiro caso, ele determinará ao autor que opte pelo rito ordinário, e, caso ele persista na opção pelo rito sumário, o juiz indeferirá a petição inicial, que importará a extinção do processo sem resolução do mérito (Código de 1973, art. 295, inc. V). No segundo caso, igualmente: determinará que o autor opte pelo procedimento comum (Código de 2015, art. 700, § 5º); caso não o faça, o juiz indeferirá a petição inicial (art. 321, parágrafo único). A inépcia da petição inicial por eleição da via inadequada também pode ocorrer nos casos em que o autor requer providência jurisdicional inadequada para a tutela da situação fático-jurídica que foi descrita na petição inicial. 9.3.3. Legitimidade A terceira condição da ação é a legitimidade ou qualidade para agir. Alfredo Buzaid a definia como “a pertinência subjetiva relativamente à lide que constitui objeto do processo civil”11. As partes na relação jurídico-processual devem ser, em regra, os titulares da relação jurídica de direito material. Assim, aquele que se afirma titular de um direito contra alguém tem o poder de propor uma ação figurando como autor do pedido e de sujeitar aquele que aponta como sujeito passivo do seu direito a ser réu no processo em que será julgada essa ação. Essa é a chamada legitimidade ordinária, que decorre da garantia constitucional do direito de ação, da garantia à tutela jurisdicional efetiva. Ora, se a lei confere a alguém um direito, a ele deve ser assegurado um meio para tutelar esse direito em juízo. Excepcionalmente, a lei dá legitimidade a quem não é parte na relação jurídica de direito material para figurar num dos polos da relação processual. É a lei ou o ordenamento jurídico que autoriza alguém a ir a juízo em nome próprio postular ou defender interesse de outrem (CPC de 1973, art. 6º; CPC de 2015, art. 18). É a chamada legitimidade extraordinária ou substituição processual. Por exemplo: os sindicatos, através da propositura de ações trabalhistas, defendem o interesse coletivo de determinada categoria de trabalhadores; o
Ministério Público, por meio das ações civis públicas, promove a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (Lei n. 8.078/90, arts. 81, parágrafo único, e 82). A legitimidade extraordinária, como a ordinária, pode ser ativa ou passiva, caso o substituto processual figure na posição de autor ou de réu, respectivamente. Na interdição, por exemplo, um curador poderá intervir para defender os interesses do interditando, conforme o caso (CPC de 1973, art. 1.182, § 1º; CPC de 2015, art. 752, § 2º). Outro caso de substituição processual é o da defesa do réu revel citado por edital ou com hora certa por um curador especial, nos termos dos artigos 9º, inciso II, do Código de 1973, e 72, inciso II, do Código de 2015. No Estado do Rio de Janeiro, essa curadoria é exercida pela Defensoria Pública, atribuição institucional que também lhe confere o Código de 2015 (art. 72, parágrafo único). Cabe observar que o mandatário não é substituto processual, pois age em nome alheio na defesa de interesse alheio. A substituição processual se dá nos casos em que há a defesa de interesse alheio, porém, em nome próprio daquele que a exerce, que não recebeu qualquer mandato do interessado para fazê-lo, e, até mesmo, como ocorre nas hipóteses de revelia, nem o conhece. O Código de 2015, no parágrafo único do artigo 18, estabelece que, havendo substituição processual, o substituído poderá intervir como assistente litisconsorcial. Há uma evidente impropriedade nesse dispositivo, que não considera a enorme variedade de situações em que pode ocorrer a substituição processual, isto é, em que alguém em nome próprio recebe da lei a legitimidade para figurar como parte numa ação para a defesa de interesse de outrem. Assim, por exemplo, o curador especial do réu revel, citado por edital ou com hora certa, deixa de atuar, porque o substituído passa a ocupar o seu lugar no polo passivo, a partir da sua intervenção. Em outros casos, como os das ações civis públicas fundadas em direitos individuais homogêneos, a intervenção dos titulares desses direitos não retira a legitimidade ativa do Ministério Público ou da associação, mas não se pode dizer que se trate de assistência litisconsorcial, porque nesta o assistente e o assistido têm interesses de direito material próprios e específicos, enquanto na substituição processual somente o substituído tem interesse jurídico próprio, embora, em benefício da mais ampla defesa desse interesse, invista um outro sujeito de legitimidade para praticar no processo
todos os atos que lhe possam ser favoráveis. Daí advém outra diferença. O legitimado ordinário normalmente, salvo nos casos de indisponibilidade do direito material, pode em relação a ele praticar atos de disposição, como transigir, renunciar ao direito. O legitimado extraordinário não tem essa faculdade, porque o direito material não lhe pertence. De qualquer modo, esse novo dispositivo tem o mérito de deixar claro que o substituído sempre pode intervir e tornar-se parte principal no processo em que a lei institui um legitimado extraordinário para defendê-lo, o que elimina qualquer possibilidade de que, em algum tipo de substituição processual, seja o substituído impedido de atuar no processo como sujeito principal, como ocorria no antigo regime dotal do Código Civil de 1916 (arts. 278 e ss.), que não mais existe no Código Civil de 2002. Cumpre observar que o Código de 2015, nos artigos 338 e 339, impõe ao réu que alegar a sua ilegitimidade o ônus de indicar, se souber, quem deva substituí-lo, facultando ao autor o redirecionamento da sua demanda para outro sujeito passivo e aproveitando o mesmo processo inicialmente instaurado. 9.3.4. Exaustividade das três condições A redação do inciso VI do artigo 267 do Código de 1973, que não mais subsiste no dispositivo correspondente do Código de 2015, sugere que possam existir outras condições da ação, além das três ou duas aqui examinadas (“quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual”). Alguns autores, como Machado Guimarães, Donaldo Armelin, José Maria Tesheiner e José Carlos Barbosa Moreira, apontam possíveis exemplos de outras condições da ação12. A ideia de uma variedade de condições, além das tradicionais, esbarra a meu ver na objeção de que, sendo as condições da ação limitadoras do direito fundamental à jurisdição, somente seria possível admitir a sua criação por lei como instrumento de proteção de algum outro direito fundamental, com o qual o direito de ação devesse coexistir. Alguns dos exemplos mencionados por essa fundada doutrina não são limitações
ao direito à jurisdição, mas requisitos circunstanciais de validade do processo (pressupostos processuais) adotados pelo legislador por razões de política legislativa, podendo implicar a caracterização do interesse de agir como necessidade fundamentada do exercício da jurisdição. Outros se inserem apenas no próprio interesse de agir. Outros, ainda, são questões de mérito, cuja verificação não se dá num mero juízo de admissibilidade. Assim, a coisa julgada, a litispendência, a perempção (CPC de 1973, art. 267, inc. V; CPC de 2015, art. 485, inc. V) são fatos impeditivos da formação e do desenvolvimento válido do processo e, ao mesmo tempo, atestam a falta de interesse de agir13. Na coisa julgada a falta de interesse decorre de a jurisdição já ter sido exercida. Na litispendência, de já estar pendente processo em que será exercida. Na perempção, foi o autor sancionado com a perda do direito de agir por ter feito dele reiteradamente uso abusivo. No beneficium excussionis (CPC de 1973, art. 595; CPC de 2015, art. 794), em que o fiador indica à penhora bens do devedor principal, não há qualquer impedimento à formação ou ao desenvolvimento do processo, mas apenas extensão subjetiva passiva da execução ao devedor principal, a partir da incidência da penhora sobre os seus bens por indicação do fiador14. O direito líquido e certo no mandado de segurança (Constituição, art. 5º, inc. LXIX) diz respeito à desnecessidade de dilação probatória para elucidação dos fatos em que se fundamenta o pedido15. Trata-se de pressuposto processual objetivo (adequação do procedimento) que não subtrai do autor o direito à jurisdição sobre o litígio, mas apenas invalida a sua busca através da via do mandado de segurança. Também pressuposto processual é o título executivo na execução (CPC de 1973, art. 586; CPC de 2015, art. 783)16, atestando as condições de exequibilidade do crédito, e não condição da ação, pois o direito à jurisdição, delimitado pelas condições da ação, pode adotar diversas formas de tutela, mas na essência é um só e o mesmo. O título fundamenta a necessidade da jurisdição, mas não cria o direito à jurisdição. O mesmo sentido têm os documentos indispensáveis à propositura da ação (CPC de 1973, art. 283; CPC de 2015, art. 320) e a notificação prévia obrigatória em certas ações, como a ação de rescisão de compromisso de compra e venda (Decreto-lei n. 745/69). São pressupostos de validade do processo e, ao mesmo tempo, atestam o interesse de agir do autor. E pressuposto processual é o recolhimento dos encargos da sucumbência para a renovação de ação extinta sem julgamento do mérito (CPC de 1973, art. 268; CPC de 2015, art. 486, § 2º), como sanção por ter molestado desnecessariamente o réu na primeira ação e
freio a uma nova demanda abusiva ou inócua, sem que essa exigência condicione o direito à jurisdição no segundo processo. Já a prova liminar do domínio na ação reivindicatória (Código Civil, art. 1.228), o contrato de locação com mais de 5 anos na ação renovatória (Lei n. 8.245/91, art. 71, inc. I), o fumus boni juris e o periculum in mora na tutela de urgência antecipada ou cautelar (CPC, arts. 273 e 801, incs. III e IV; CPC de 2015, art. 300) são questões de direito material que devem estar afirmadas e minimamente comprovadas para caracterizar o interesse de agir como necessidade fundamentada, mas que afinal deverão ser objeto de um juízo positivo resultante de cognição mais adequada, sob pena de improcedência do pedido. Concluo, pois, que não há condições específicas desta ou daquela ação, além das duas ou três condições tradicionais, porque eventuais requisitos de um ou outro procedimento são pressupostos de validade do próprio processo, que podem repercutir no interesse de agir, ou requisitos de acolhimento da postulação, integrantes do próprio mérito da causa.
9.4. A TEORIA DA ASSERÇÃO Analisadas as condições da ação, cumpre dar atenção à chamada teoria da asserção. Os Códigos de 1973 e de 2015 consideram as condições da ação questões processuais, que, portanto, não se confundem com o mérito da causa. Assim, o legislador confere às condições da ação um tratamento análogo ao dos pressupostos de regularidade e validade do processo, estabelecendo que este se extingue sem resolução do mérito quando faltar uma das condições da ação, como a possibilidade jurídica, o interesse de agir e a legitimidade (Código de 1973, art. 267, inc. VI) ou apenas o interesse e a legitimidade (Código de 2015, art. 485, inc. VI). Contudo, apesar de o direito positivo tratar o exame das condições da ação como uma questão que antecede o mérito, em realidade, o juiz afere a sua concorrência em face da relação jurídica de direito material. Assim, é em face da licitude do pedido formulado pelo autor que o juiz vai decidir sobre a sua possibilidade jurídica; é em face da necessidade de apropriação do bem da vida que ele vai decidir se o autor tem ou não interesse de agir; é em face da qualidade das partes
na relação jurídica de direito material que ele vai verificar se o autor e o réu têm legitimidade ativa ou passiva, respectivamente. Em resumo, pode-se dizer que, embora as condições da ação sejam aferidas com base na relação jurídica de direito material, essa aferição não implica um julgamento sobre o próprio direito material do autor. Então, qual seria a diferença entre a apreciação que o juiz faz acerca da concorrência das condições da ação e o julgamento sobre a existência ou inexistência do direito do autor ao bem da vida? Será que, quando o juiz reputa juridicamente impossível um pedido ou quando considera que o autor não é o titular do direito que afirma possuir, ele não está julgando improcedente o pedido do autor? Para respondermos a essas indagações devemos recorrer à teoria da asserção. A teoria da asserção enuncia que o juiz afere a presença das condições da ação apenas à luz da hipótese narrada pelo autor na petição inicial. Assim, esse tem de formular um pedido compatível com todas as circunstâncias de fato e de direito por ele apresentadas, para que a demanda, analisada apenas à luz dessas afirmações, se apresente como juridicamente possível, necessária e instaurada entre as partes legítimas. Se em face dos fatos e do direito expostos pelo autor na petição inicial, o pedido se apresenta hipoteticamente, abstratamente, lícito, evidenciando a necessidade de recorrer ao exercício da jurisdição e as partes aparentam ser as titulares da relação jurídica de direito material, então, concorrem as condições da ação. Por outro lado, se o réu contesta os fatos ou o direito alegado pelo autor, o juiz terá de decidir se realmente o pedido é lícito ou não, se o autor é ou não parte daquela relação jurídica de direito material, ou se o autor tem necessidade daquela prestação jurisdicional, e, então, nesse momento, ele o faz como exame do mérito, e não mais como simples aferição preliminar da presença das condições da ação. Portanto, se a hipótese que o autor formular for contestada pelo réu e, ao final do processo, restar desmentida pela sentença, as questões relativas à licitude do
pedido, à necessidade de recurso à jurisdição ou à legitimidade das partes foram analisadas como questões de mérito e não simplesmente a título de condições da ação. Essa a aplicação da teoria da asserção. Por exemplo: o autor de uma ação de despejo afirma que celebrou um contrato de locação com o réu e que este não pagou os aluguéis ajustados. Na contestação, o réu afirma que o locador, na verdade, é o pai do autor. O juiz vai ter de decidir entre a hipótese que o autor formulou e a versão dos fatos que o réu apresentou. Nesse caso, ainda que o réu, como preliminar da sua contestação, alegue a ilegitimidade do autor, o julgamento que o juiz vai proferir sobre essa questão é um julgamento de mérito, e, ao final, se ele se convencer de que o autor não é realmente o locador, ele vai julgar improcedente o pedido. Como consequência desse julgamento, haverá a formação da coisa julgada, impedindo que aquela mesma ação seja novamente proposta pelo mesmo autor contra o mesmo réu. Assim, aplicando a teoria da asserção, o juiz afere, de ofício e através de um juízo hipotético que recai somente sobre as afirmações feitas pelo autor na petição inicial, a concorrência das condições. Se a falta de uma condição da ação se tornar evidente apenas após o exame das alegações do réu, essa apreciação fará coisa julgada material, pois haverá julgamento do mérito. Portanto, em minha opinião, caso a falta de uma condição da ação transpareça não no exame da petição inicial, mas depois de instaurado o contraditório entre as partes, ela será julgada como uma questão relativa ao mérito da causa, gerando a improcedência do pedido, e não a carência de ação. Para facilitar a compreensão do assunto, analisemos outro exemplo: o autor propõe uma ação de separação contra a ré, juntando aos autos uma certidão de casamento. A ré, na sua defesa, alega a falsidade da certidão e a inexistência do casamento. Ao final do processo, se o juiz se convencer de que o registro de casamento é falso, ele julgará improcedente o pedido, porque, diante da hipótese que o autor formulou, ele, teoricamente, abstratamente, se apresentou como legitimado. Por outro lado, se o autor requer a separação do casal alegando que se casou com a ré numa festa caipira, a partir da própria hipótese apresentada, sem a
necessidade de se ouvir a parte contrária, o juiz poderá perceber que não concorrem as condições da ação, por absoluta falta de interesse de agir. Há casos, entretanto, em que a concorrência de alguma condição da ação não pode ser aferida simplesmente à luz das afirmações do autor. É o que ocorre, por exemplo, em todas as hipóteses de legitimação extraordinária. Por exemplo: se uma associação propõe uma ação civil pública alegando ter como objetivo social a defesa de determinados interesses metaindividuais, como exigido pelo artigo 82, inciso IV, do Código do Consumidor, e tal pressuposto da sua legitimidade se torna controvertido, a decisão que a final reconhecer a falta dessa qualidade não será de mérito, mas de carência da ação por ausência de condição da ação. Por outro lado, a teoria da asserção, defendida pelos abstratistas, merece críticas, na medida em que a outorga ao autor do direito à jurisdição não pode desprender-se de fatos objetivos para resultar simplesmente da sua palavra, ainda que destituída de qualquer verossimilhança. É o defeito que tem sido chamado de autolegitimação, pois basta que ele se afirme titular de um direito contra determinada pessoa para que possa ingressar em juízo e requerer em face dela uma providência jurisdicional. Segundo os críticos, tal faculdade favorece o abuso do direito de demandar, o espírito de aventura, ou seja, a instauração das chamadas lides temerárias, porque aquele que tem um inimigo pode afirmar-se titular de um direito contra ele apenas com o intuito de prejudicá-lo, de molestá-lo no pleno gozo dos seus direitos. Esse problema ganha ainda mais relevo na sociedade moderna, que, a despeito da importância conferida aos direitos humanos, é marcada pela exacerbação das relações de força, das relações de dominação e poder. Então, esse é um problema real gerado pela adoção da teoria da asserção, na medida em que é extremamente liberal e facilitadora do ingresso em juízo, mesmo para o litigante temerário ou desonesto. Para ter direito à prestação jurisdicional, basta que o autor se afirme titular de um direito. Daí se sustentar que a teoria da asserção escancara as portas da justiça. Obviamente, o direito de acesso à justiça tem de ser o mais amplo possível, mas não deve permitir que alguém, mediante afirmações completamente
inconsistentes, coloque outrem na posição de réu, forçando-o a contratar um advogado, a defender-se e a submeter-se ao constrangimento de ter contra si instaurado um processo judicial. Esse problema está mais claramente equacionado no âmbito do processo penal, através do conceito de justa causa. A falta dessa justa causa, que é a falta de uma fundamentação consistente na imputação do crime ao réu, impede o recebimento da denúncia e a continuidade da ação penal (Código de Processo Penal, arts. 43, inc. III, e 648, inc. I). Assim, o Ministério Público não pode, por exemplo, apenas a partir de uma simples notícia de jornal, oferecer denúncia contra o réu, caso não tenha qualquer outra prova que corrobore a autoria do crime. O recebimento da denúncia, nessas circunstâncias, pode ser, inclusive, impugnado por meio da impetração de um habeas corpus. O Ministério Público, nesses casos, para oferecer a denúncia acompanhada de um conjunto probatório mínimo indicativo de autoria e materialidade, deve requisitar a instauração prévia de um inquérito policial, a fim de coletar provas, realizar perícias, colher depoimentos etc. Assim, no âmbito do processo civil, o ideal seria que se aplicasse também o conceito de justa causa, como meio de frear inúmeras demandas inviáveis ou injustas. Por exemplo: se o autor afirma que encontrou o réu na China e que nesse país ambos celebraram um contrato, o juiz não irá aceitar essa hipótese como verdadeira simplesmente porque assim consta da petição inicial. Esse é um fato inverossímil, que foge ao senso comum, e, portanto, o autor tem de proválo, oferecendo algum elemento objetivo que dê credibilidade a essa afirmação. Caso a inicial esteja totalmente destituída de provas, o juiz não poderá aceitar esse fato – sequer hipoteticamente – como verdadeiro, porque não deve permitir que o autor abuse do direito de demandar, forçando o réu a defender-se sem que nos argumentos aduzidos contra ele haja elementos consistentes, elementos objetivamente razoáveis. Daí Chiovenda considerar a ação um direito potestativo, o que significa dizer que a ação é um verdadeiro poder, através do qual o autor obriga o réu a defender-se, a constituir um advogado e a figurar como sujeito passivo da relação processual, participando do processo independentemente da sua vontade.
No direito romano, existia a chamada litiscontestação, pela qual as partes se comprometiam a submeter-se ao processo e a acatar a sentença. Hoje, o processo nasce por iniciativa de uma só parte, a que a outra é obrigada a sujeitar-se, muitas vezes por um motivo ilícito, imoral ou desonesto da primeira. Nos dias atuais, é comum ouvirmos um cidadão ameaçar a outro, afirmando que moverá contra ele uma ação judicial. Isso porque, como já vimos anteriormente, o autor impõe ao réu diversos ônus, tais como o de constituir advogado, o de acompanhar o processo e o de publicamente figurar como réu, o que, em muitos casos, já é em si vexatório. Será que o autor tem esse direito? Obviamente, não, pois a hipótese é de verdadeiro abuso de direito. Entretanto, como já observamos, no processo civil, ao contrário do que ocorre no processo penal, não há a figura da justa causa. Sobre o tema, Afrânio Silva Jardim17 chega a afirmar que a justa causa é uma quarta condição da ação no processo penal. A meu ver, todavia, para evitar-se a autolegitimação não há necessidade de recorrer a uma quarta ou a uma quinta condição da ação. Considero que a consistência na hipótese formulada pelo autor é necessária para caracterizar o próprio interesse de agir, ou seja, para evidenciar a necessidade do autor de recorrer à jurisdição. Essa necessidade pressupõe uma hipótese verossímil, viável e minimamente fundamentada em fatos e provas. Nesse sentido, os artigos 283 do Código de 1973 e 320 do Código de 2015 estabelecem que o autor tem de anexar à petição inicial os documentos indispensáveis à propositura da ação. Quando a lei impõe tal determinação, ela não está exigindo apenas que o autor se afirme titular de um direito, mas que apresente desde logo as provas indispensáveis à credibilidade da hipótese que está formulando. Por exemplo: se o autor afirma que é casado com a ré, ele tem de apresentar junto com a sua petição inicial a respectiva certidão de casamento. Da mesma forma, se ele afirma que é parte num contrato de locação, tem de anexá-lo à petição inicial. Caso não tenha sido celebrado um contrato escrito, o autor tem de informar claramente ao juiz que deixa de juntar o contrato porque a locação
foi verbal. Obviamente, há alguns casos em que o autor não dispõe do documento hábil a provar os fatos narrados na inicial, seja porque o documento foi perdido ou porque está na posse do réu etc. Nesses casos, o autor deve informar ao juiz o motivo pelo qual não pôde apresentar desde logo as provas, e, então, requerer ao juiz, se for o caso, a adoção de providências para que se obtenha essa prova. A exigência dessa fundamentação probatória mínima é, portanto, uma maneira de equilibrar o direito de amplo acesso à justiça com a eficácia concreta dos direitos constitucionalmente assegurados. A aplicação da teoria da asserção deve coexistir com o direito de não ser molestado por uma demanda injusta, manifestamente inconsistente. Assim, ao verificar a concorrência das condições da ação, o juiz tem de examinar a existência de elementos objetivos que militem a favor da credibilidade da versão dos fatos apresentada pelo autor. Esse exame, portanto, aproxima-se da verificação da justa causa no processo penal, respeitadas as particularidades de cada relação processual. Assim, a concorrência das condições da ação tem de submeter-se a um filtro, pois, ainda que aferida à luz das afirmações do autor, este tem de oferecer dados objetivos que confiram o mínimo de credibilidade às suas alegações. Desse modo, o despacho da petição inicial não deve transformar-se num obstáculo ao acesso à justiça – que tem de ser amplo – nem em instrumento de injusta opressão do réu pela leviandade do autor em propor demandas manifestamente infundadas. O juiz deve procurar, então, um ponto de equilíbrio entre as duas situações acima, que, entretanto, a aplicação indiscriminada da teoria da asserção não assegura, porque, como já afirmamos, ela escancara as portas da justiça, uma vez que para nela ingressar basta que o autor se afirme titular de um direito. A Lei n. 11.277/2006 introduziu no Código de 1973 o artigo 285-A, segundo o qual, nas hipóteses em que “a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença,
reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada”. Ao analisarmos essa inovação legislativa, é preciso ter em mente que, ao lado do direito de ampla defesa conferido ao réu, há o direito do autor de participar de um processo no qual ele possa demonstrar, através de todos os meios legais, que tem razão, mesmo que prima facie o juiz assim não entenda. Como já afirmamos ao tratarmos da administração da justiça no sistema da civil law, o Poder Judiciário não deve ocupar-se apenas em aplicar o direito objetivo, mas principalmente em resolver os litígios e prover à tutela dos interesses que lhe são submetidos, exercendo uma função pacificadora. O Estado que não permite ao cidadão resolver os seus litígios na justiça, em verdade, o está aconselhando a fazê-lo pela força. Dessa forma, o acesso à tutela jurisdicional efetiva não pode ser sacrificado por motivos que são convenientes apenas à própria administração da justiça, porque essa existe para servir aos cidadãos, e não o contrário. O Código de 2015 tenta aperfeiçoar esse criticável dispositivo, por meio do qual denomina de improcedência liminar do pedido, no artigo 332, configurado preponderantemente como mecanismo de fortalecimento da jurisprudência, que não pode constituir instrumento de cerceamento do acesso à justiça. A não ser inconstitucional essa abrupta resposta à petição inicial do autor, somente pode ser compreendida como mais um dos vários provimentos que, apesar de se pronunciarem conclusivamente sobre o direito material das partes, não adquire a imutabilidade da coisa julgada por não ter resultado de uma cognição exaustiva, não impedindo a sua renovação em outro procedimento (V. o item 14.8 no 2º volume). Conclui-se, portanto, que a teoria da asserção serve como um importante complemento ao estudo das condições da ação, assim como para estabelecer um divisor de águas, delimitando os casos em que a questão é examinada como de simples carência de ação, gerando a extinção do processo sem resolução do mérito, e quando é examinada como de inexistência do direito do autor ao bem da vida, ocasionando a improcedência do pedido. ________
1 CHIOVENDA, Giuseppe. L’azione nel sistema dei diritti (1903). In: Saggi di
diritto processuale. Milano: Giuffrè, 1993. 1º v. p. 3-99. 2 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas… 1º v. p. 184-189. 3
CALAMANDREI, Piero. Relatività del concetto d’azione. In: Opere giuridiche. Napoli: Morano Editore, 1965. v. I. p. 426 e ss. 4 Ibidem, p. 440. 5
LIEBMAN, Enrico Tullio. L’azione nella teoria del processo civile. In: Problemi del processo civile. Napoli: Morano Editore, 1962. p. 51; CHIOVENDA, Giuseppe. Rapporto giuridico processuale e litispendenza. In: Saggi di diritto processuale. Milano: Giuffrè, 1993. 1º v. p. 375-398. 6 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 53. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2012. v. 1. p. 81. 7 Ver, por exemplo, os artigos 18 da Lei n. 4.717/65, 16 da Lei n. 7.347/85 e 103
da Lei n. 8.078/90 (Código do Consumidor) sobre a improcedência por insuficiência de provas na ação popular e na ação civil pública. Janeiro: Forense, 2012. v. 1. p. 81. 8
GUIMARÃES, Luiz Machado. Carência de ação. In: Estudos de direito processual civil. Rio de Janeiro: Editora Jurídica e Universitária, 1969. p. 96107. 9 LIEBMAN, Enrico Tullio, L’azione… p. 46. 10 BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de
Janeiro: Forense, 1975. 1º v., t. I. p. 96. 11 BUZAID, Alfredo. A ação declaratória no direito brasileiro. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 1986. p. 259. 12
GUIMARÃES, Luiz Machado. Carência… p. 102; ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979. p. 40; TESHEINER, José Maria Rosa. Eficácia da
sentença e coisa julgada no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 31; BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo… p. 25. 13 Em 13 de junho de 2009, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, dispensou
a conciliação prévia obrigatória nas demandas trabalhistas, estabelecida pela Lei n. 9.958/2000, ao conceder liminar nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade ns. 2.139 e 2.160. 14 Ver GRECO, Leonardo. O processo de execução. Rio de Janeiro: Renovar,
1999. v. I. p. 336. 15
Ver GRECO, Leonardo. Natureza jurídica do mandado de segurança. In: Revista Arquivos do Ministério da Justiça. Brasília, n. 129, jan./mar. 1974. p. 79. 16 Ver GRECO, Leonardo. O processo de execução. Rio de Janeiro: Renovar,
2001. v. II. p. 117. 17 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 9. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2000. p. 97.
O processo é o terceiro pilar de sustentação da Teoria Geral do Processo. Os dois primeiros, como já analisado, são a jurisdição e a ação. A jurisdição é a função predominantemente estatal que visa a tutelar interesses particulares através da solução dos litígios e outras providências de caráter assistencial, enquanto a ação é o direito de exigir o acesso à jurisdição, que se exerce através do processo. O processo, portanto, é o instrumento de exercício da jurisdição. Esse instrumento, no entanto, não é qualquer meio através do qual se pretenda que seja exercida a jurisdição, mas aquele processo impregnado de todas as suas garantias fundamentais – anteriormente ventiladas quando tratamos do acesso à justiça –, como, por exemplo, o contraditório, a ampla defesa, o devido processo legal, a imparcialidade do juiz etc.
10.1. CONCEITO O processo pode ser definido como um conjunto complexo de atos coordenados que são praticados pelos diversos sujeitos processuais, através dos quais se prepara e se exerce a jurisdição para a solução das demandas ou postulações que lhe são submetidas. Os atos processuais são manifestações de conhecimento ou de vontade que se destinam a formar, desenvolver ou extinguir o processo, ao passo que os sujeitos do processo se compõem das pessoas físicas, jurídicas ou outras pessoas formais que praticam os diversos atos que integram o processo. Estas últimas, como veremos adiante, são entes que não têm sequer personalidade jurídica, como, por exemplo, o espólio, o condomínio, a massa falida, mas às quais a lei confere a possibilidade de praticar atos processuais, através da chamada personalidade judiciária. Os sujeitos do processo, portanto, são sujeitos de direito ou outros entes despersonalizados que praticam manifestações de vontade ou de conhecimento que produzem efeitos no processo. Através delas o processo é formado, desenvolvido e conduzido em direção ao seu fim. Como veremos, esses sujeitos podem ser encontrados em posições muito diferentes.
Cumpre analisar primeiramente o juiz, que é o titular do poder jurisdicional. O juiz é um sujeito imparcial e pratica uma grande diversidade de atos no processo, utilizando-se da autoridade que lhe é conferida pela investidura no cargo de magistrado. Ele representa o Estado no exercício de uma de suas funções essenciais, qual seja a função jurisdicional. Há ainda as partes, que são os sujeitos parciais do processo e deste participam postulando ou defendendo seus próprios interesses ou até interesses alheios, como nos casos de legitimação extraordinária. Esses sujeitos parciais, normalmente na jurisdição contenciosa, encontram-se em posições antagônicas, uma vez que o autor pratica atos processuais a fim de obter o provimento jurisdicional invocado na inicial (a procedência do pedido), enquanto o réu os pratica visando a obter a improcedência do pedido ou a extinção do processo sem resolução do mérito. Além desses sujeitos principais, há também sujeitos auxiliares permanentes, como o escrivão e o oficial de justiça, além dos sujeitos probatórios, como, por exemplo, as testemunhas e os peritos. Participam ainda do processo outros sujeitos postulantes, como os terceiros interessados ou terceiros intervenientes, e os sujeitos ou órgãos auxiliares da justiça, como o Ministério Público e os advogados. Em certas organizações judiciárias, como a do Estado do Rio de Janeiro, pode haver ainda sujeitos auxiliares secundários, que exercem as suas funções como titulares de cargos efetivos dos próprios tribunais, como o testamenteiro e tutor judicial (CODJERJ, Livro III, art. 76) e o inventariante judicial (arts. 70-75). Onde não existem essas serventias, essas funções são exercidas, na forma da lei processual, por auxiliares eventuais, designados entre pessoas sem vínculo com a justiça, que colaboram com a justiça no cumprimento de um dever cívico, como o tutor dativo (Código Civil, art. 1.732), o testamenteiro dativo (CPC de 1973, art. 1.127; CPC de 2015, art. 735, § 3º) e o inventariante dativo (CPC de 1973, art. 990, inc. VI; CPC de 2015, art. 617, inc. VIII). Em regra, são sujeitos que praticam atos no processo: o juiz, as partes, o escrivão, o oficial de justiça, as testemunhas, os peritos, os terceiros postulantes, o Ministério Público e os advogados, além de outros auxiliares secundários, como o administrador, o intérprete, o depositário etc. Cada um desses sujeitos ocupa uma posição específica no processo e neste exerce um papel distinto, mas
todos contribuem para que esse conjunto de atos – que é o processo – se desenvolva e chegue ao seu resultado, que é o exercício da jurisdição a respeito daquela causa, daquela lide ou daquele interesse. Daí dizer-se que o processo é um complexo de atos, porque diversos sujeitos nele atuam simultânea ou sucessivamente, praticando atos ditados por interesses diversos, exercendo funções diversas e não raro antagônicas. Contudo, todos esses múltiplos atos processuais se coordenam, se articulam, apesar da diversidade de sujeitos, de conteúdo e de objetivos. Assim, em que pese essa extrema variedade de sujeitos com diversas posições e interesses, os atos por eles praticados são caracterizados por uma finalidade comum, por uma unidade teleológica, que é a de contribuir para a efetivação do exercício da jurisdição.
10.2. NATUREZA JURÍDICA Qual é a natureza jurídica do processo? Foi um jurista alemão chamado Oskar Bülow que, em 1868, definiu o processo como uma relação jurídica complexa e dinâmica, através da qual se exerce a função jurisdicional. Essa concepção foi muito criticada, mas, passados 140 anos, ela ainda é a visão predominante acerca da natureza jurídica do processo. O processo é uma relação jurídica que se trava, normalmente, entre os seus sujeitos principais: o autor, o juiz e o réu. Conforme já afirmamos, o autor e o réu são as partes, que, em regra – ao menos na jurisdição contenciosa –, litigam em posições antagônicas pela titularidade de determinado bem da vida. O juiz é o órgão imparcial do Estado que vai exercer a função jurisdicional em relação aos interesses dos sujeitos principais. Eventualmente, no âmbito da jurisdição voluntária, pode haver processos que tenham somente um sujeito interessado, ou, na jurisdição contenciosa, pode haver um processo com vários interessados, como, por exemplo, o concurso de credores na falência ou na insolvência civil, mas, basicamente, a relação processual é triangular, tendo no ápice o juiz, que ocupa uma posição equidistante das duas partes. Essa é a configuração mais comum do processo. Entretanto, outras concepções foram debatidas acerca da sua natureza jurídica.
Dentre essas outras concepções, houve quem considerasse o processo uma relação puramente linear, uma relação contratual entre as duas partes. Com efeito, em determinado período do direito romano, em que havia a chamada litiscontestação, o processo possuía uma natureza predominantemente contratual, consensual. Há ainda uma concepção alemã, que é defendida até os dias atuais, segundo a qual o processo é uma relação angular, em que todos os vínculos se travam através do juiz e, assim, as partes não têm nenhum vínculo entre si, pois todos os seus vínculos passam necessariamente pelo juiz. Em que pese essas outras opiniões, predomina na doutrina a concepção de Bülow, que considerava o processo uma relação triangular, pela qual se formavam múltiplos laços, múltiplos vínculos jurídicos, não apenas do juiz em relação às partes, mas de cada parte em relação ao juiz e em relação à parte contrária. Devido a essa multiplicidade de vínculos, o processo encerra um conjunto de direitos, deveres e ônus das partes em relação aos outros interessados e em relação ao juiz, ao passo que encerra poderes, direitos e deveres do juiz em relação aos interessados, aos particulares. Por exemplo: o autor e o réu têm o direito de exigir do juiz que ele tome decisões, mas este também tem o dever de exigir daqueles um comportamento leal. Nesse sentido, o autor e o réu possuem idênticos direitos que podem ser exigidos entre si, como, por exemplo, o de que a parte adversa não faça alegações inverídicas em juízo. Na doutrina, vozes respeitáveis, como as de Goldschmidt e Carnelutti, por diferentes razões, combateram o conceito de relação processual1. Para Carnelutti há no processo inúmeras relações jurídicas, sendo impróprio e inútil unificá-las em uma só relação jurídica complexa. Já Goldschmidt entende que a unidade do processo resulta da identidade da relação substancial controvertida. Mandrioli2 sustenta que a relação jurídico-processual foi uma figura elaborada pelos juristas alemães da segunda metade do século passado (Bülow e Kohler), transplantando para o processo conceitos jurídicos elaborados por outros juristas alemães na teoria dos negócios jurídicos. A relação processual seria uma relação jurídica trilateral, composta simultaneamente do direito do primeiro sujeito à tutela jurisdicional, do dever do órgão de prestá-la e da sujeição de um terceiro
ao exercício de tal tutela. Por seu caráter dinâmico, o processo seria mais do que uma relação jurídica, figura estática e, portanto, inidônea a exprimir aquele movimento jurídico em que consiste a verdadeira realidade do processo, uma série de relações jurídicas em contínua transformação, na evolução de situações através do exercício dos poderes conferidos aos três sujeitos principais. Relação jurídica seria um conceito insuficiente para exprimir o fenômeno processual na sua complexidade, pois o processo é um fenômeno jurídico em evolução. Liebman3 refuta com vantagem as críticas à noção de relação jurídica processual reconhecendo que as normas processuais são atributivas de posições jurídicas subjetivas ativas e passivas, que encontram naquelas normas a sua garantia e os seus limites, não faltando matéria que permita ver no processo relações jurídicas que têm por conteúdo o seu desenvolvimento. Ocorre que todas as posições subjetivas do processo não são isoladas e suspensas no vazio, capazes de existir por força e virtude próprias. Têm, ao contrário, as suas raízes, os seus fundamentos no fato básico do processo, encontram o seu significado enquanto surgem e se exercitam no seio de uma relação mais ampla, da qual juridicamente dependem. Essa relação mantém a sua identidade do início ao fim, enquanto aquelas posições nascem e se extinguem na medida em que o processo segue o seu caminho. É a relação processual que, na sua unidade e continuidade, mantém a coligação entre os vários sujeitos do processo e contém a disciplina das suas recíprocas relações. Se a relação processual não se enquadra no esquema típico da relação jurídica do direito substancial, isso prova apenas que as relações de direito processual têm características próprias e não que o processo não seja uma relação jurídica. Então, o processo é uma relação jurídica que estabelece vários vínculos jurídicos entre os três sujeitos principais, e cada um deles se coloca ao mesmo tempo em posições jurídicas ativas e passivas em relação aos demais. Os demais sujeitos do processo travam vínculos jurídicos com um ou mais sujeitos principais.
10.3. RELAÇÃO JURÍDICA PROCESSUAL: DIREITOS, DEVERES, ÔNUS E PODERES
Direito subjetivo é uma posição jurídica ativa que confere ao seu titular a faculdade de exigir de outro sujeito a prática de um ato, a abstenção de um fato ou o exercício de uma atividade. A todo direito de um sujeito do processo corresponde um dever de outro. Os deveres são sujeições passivas a que se submetem determinados sujeitos do processo para atender a direitos de outros sujeitos. Ônus é uma prestação imposta a um determinado sujeito do processo em seu próprio benefício, cujo descumprimento não constitui ato ilícito, porque não viola direito de outro sujeito, mas acarreta para o seu titular uma consequência desfavorável. A defesa do réu, por exemplo, é um direito a que corresponde um dever do juiz: o dever de assegurá-la da forma mais ampla possível. Os artigos 319 do Código de 1973 e 344 do Código de 2015 estabelecem que, se o réu não contestar a ação, presumir-se-ão verdadeiros fatos alegados pelo autor. A defesa é, portanto, um direito e um ônus, uma vez que a inércia do réu não viola nenhum direito subjetivo do autor ou do juiz, nem sequer constitui ato ilícito, mas apenas o descumprimento de um ônus, que vai prejudicar apenas o seu próprio titular. Cada uma das partes se vincula à outra e ao juiz através de direitos, deveres e ônus: direito de ser ouvida sobre documento juntado pela outra (CPC de 1973, art. 398; CPC de 2015, art. 437, § 1º); direito de formular perguntas às testemunhas (CPC de 1973, art. 416; CPC de 2015, art. 459); direito de apelar da sentença desfavorável (CPC de 1973, arts. 496, inc. I, e 499; CPC de 2015, arts. 994 e 996); dever de veracidade (CPC de 1973, art. 14, inc. I; CPC de 2015, art. 77, inc. I); dever de cumprir com exatidão e sem criar embaraços todas as ordens do juiz (CPC de 1973, art. 14, inc. V e parágrafo único; CPC de 2015, art. 77, inc. IV e § 1º); dever de indicar quais são e onde se encontram os bens que devam sujeitar-se à execução (CPC de 1973, art. 600, inc. IV; CPC de 2015, art. 774, inc. V); ônus de contestar a ação no prazo legal, sob pena de revelia (CPC de 1973, art. 319; CPC de 2015, art. 344); ônus de provar os fatos alegados, sob pena de não serem reputados verdadeiros (CPC de 1973, art. 333; CPC de 2015, art. 373); ônus de custear o processamento do recurso interposto, através do chamado preparo, sob pena de deserção (CPC de 1973, art. 511; CPC de 2015, art. 1.007). Esses são apenas alguns exemplos. O juiz, ao contrário dos demais sujeitos, não possui ônus, mas apenas poderes, direitos e deveres. Poderes são aqueles atos que o juiz pratica no exercício da autoridade em que foi investido, dentre eles os poderes de decisão, de
documentação e de coerção. Esses direitos, deveres, poderes e ônus das partes e do juiz coexistem, surgindo e desaparecendo na medida em que o processo caminha em direção ao seu fim. Além de complexo, o processo é uma relação jurídica dinâmica, porque está sempre em movimento, a ponto de João Mendes de Almeida Júnior, processualista do início do século XX, afirmar que o processo é uma direção no movimento. A palavra processo vem de procedere. Em latim, cedere vem do verbo cadere, que significa cair para a frente4. Todo processo é uma atividade que se desenvolve em vários momentos, dirigindo-se a um fim. No processo, em regra, apenas se anda para a frente, nunca para trás. O fim almejado no processo é o exercício da jurisdição, de modo que todos os atos processuais, que geram todos aqueles vínculos que surgem e desaparecem no seu curso, contribuem para a realização de tal finalidade. Costumo comparar o processo a um caleidoscópio: na medida em que este é girado, as imagens nele formadas vão se modificando. Assim também é o processo, porque a cada momento os sujeitos processuais estão em posições diferentes das que estavam anteriormente. Por exemplo: o autor apresenta a petição inicial. Quem tem o dever de despachála é o juiz, cabendo ao oficial de justiça o dever de citar o réu e ao escrivão o de redigir o mandado de citação. O autor também possui deveres, nesse momento do processo, que consistem em prestar as informações necessárias à localização e identificação do réu, pagar as custas iniciais e fornecer as cópias necessárias à instrução do mandado de citação, se for o caso. Depois de citado, de qualquer requerimento da outra parte ou ato do juiz que possa atingi-lo, o réu tem um direito, que é o direito de se defender. Dessa forma, mostra-se que o processo é uma relação dinâmica, na qual há uma grande alternância entre as posições dos seus sujeitos, e em que em cada momento surgem e desaparecem inúmeros vínculos entre eles. Essa alternância de posições e vínculos somente se finda com a prestação jurisdicional ou com a extinção da relação jurídica processual por qualquer motivo ou vício que impeça o juiz de exercer a prestação jurisdicional sobre o mérito (CPC de 1973, art. 267;
CPC de 2015, art. 495). Apesar da sua constante movimentação e transformação, há situações em que o processo entra em crise e se paralisa, rompendo-se o seu dinamismo. É o que ocorre, por exemplo, nas hipóteses de suspensão do processo (CPC de 1973, art. 265; CPC de 2015, art. 313). Essa situação de crise e paralisia do processo é excepcional e deve estar expressamente prevista em lei, podendo ocorrer porque uma das partes morreu ou perdeu sua capacidade, ou ainda porque foi suscitada uma questão prejudicial que precisa ser decidida em outro processo, ou porque as partes assim convencionaram, visando a uma solução amigável do litígio (ver capítulo XVI no 2º volume). Nessa relação processual básica, formada pelas partes e pelo juiz, também se criam vínculos jurídicos com outros sujeitos, tais como o escrivão, o oficial de justiça, os peritos, as testemunhas, os terceiros intervenientes, o Ministério Público – que pode atuar como auxiliar do juiz ou como sujeito postulante – e o advogado, que ocupa uma posição intermediária entre o juiz e a parte que representa. Então, gravitam, em torno dos três sujeitos principais, outros sujeitos considerados secundários do processo, dentre eles, alguns obrigatórios, como o escrivão ou chefe de secretaria e o oficial de justiça, que são sujeitos auxiliares permanentes, ou outros sujeitos que assumem uma função específica dentro do processo. Portanto, o processo como instrumento do exercício da jurisdição é uma relação jurídica complexa e dinâmica, composta de uma série de atos coordenados, praticados pelos diversos sujeitos processuais em decorrência da multiplicidade de vínculos que os une no seu curso, através dos quais se prepara e se exerce a função jurisdicional. Alguns autores destacam que o processo se compõe de atos e fatos, ou seja, que, além de constituir-se por uma sequência de atos, também o integram fatos, acontecimentos. Está implícita na sequência de atos a ocorrência de fatos, por exemplo, o decurso dos prazos. E todo ato é um fato, como a citação, a publicação da sentença ou a penhora. Entendo que os fatos processuais, ou que nele produzem algum efeito, ou são consequências de atos do processo ou criam situações que vão determinar a prática de atos subsequentes, mas não são eles
que impulsionam o dinamismo do processo e, por isso, não considero relevante examiná-los em separado.
10.4. PROCESSO E PROCEDIMENTO A doutrina, em que pese a pouca relevância atual, durante muito tempo preocupou-se em distinguir processo de procedimento. De um lado, conceitua-se processo como sendo essa relação jurídica formada para o exercício da jurisdição sobre uma determinada causa e, por outro, o procedimento como o rito ou o conjunto de requisitos extrínsecos que devem ser observados na prática dos atos de cada processo e a série ou modo de encadeamento desses atos e os prazos em que devem ser praticados. Em razão do princípio da legalidade, que rege a atuação do Estado e de seus agentes, dentre eles os magistrados, todo processo judicial, como uma relação jurídica de direito público, tem o seu procedimento previsto em lei. Distinguem-se, ainda, os dois institutos afirmando-se que o processo é o conteúdo e o procedimento é a forma. Nesse sentido, o primeiro é o conjunto de atos e vínculos gerados pelos diversos sujeitos que dele participam, enquanto o segundo é o conjunto de requisitos formais desses atos e o modo pelo qual se encadeiam numa série contínua, que está sempre em movimento. Por ser o processo uma relação dinâmica, os diversos procedimentos existentes determinam que, terminado o prazo para a prática de um ato, comece a correr o prazo para a prática do ato imediatamente seguinte. No Código de 1973 o processo de conhecimento possui dois procedimentos comuns: o ordinário e o sumário (art. 272). No Código de 2015 desaparece o procedimento sumário e subsiste apenas um procedimento comum, com esse nome (arts. 319 e ss.). Além desses, há vários outros procedimentos especiais, como, por exemplo, os procedimentos que regulam a ação de consignação em pagamento (CPC de 1973, arts. 890 a 900; Código de 2015, arts. 539 a 549), as ações possessórias (CPC de 1973, arts. 920 a 933; CPC de 2015, arts. 554 a 568), os inventários (CPC de 1973, arts. 982 a 1.045; Código de 2015, arts. 610 a 673), a ação de prestação de contas (Código de 1973, arts. 914 a 919; CPC de 2015, arts. 550 a 553) etc. Em leis estranhas aos Códigos, a chamada legislação extravagante, são também regulados muitos outros procedimentos especiais, como o mandado de segurança (Lei n. 12.016/2009), a ação popular (Lei n.
4.717/65), a ação de alimentos (Lei n. 5.478/68) e tantos outros. No processo de execução, não há um procedimento comum, mas um procedimento para a execução por quantia certa, que pode ser individual (CPC de 1973, arts. 646 a 724; CPC de 2015, arts. 824 a 909) ou coletiva (CPC de 1973, arts. 748 a 786-A, mantidos em vigor pelo art. 1.052 do Código de 2015), outro para a execução das obrigações de fazer e de não fazer (CPC de 1973, arts. 632 a 645; CPC de 2015, arts. 814 a 823) ou de entrega de coisa certa ou incerta (CPC de 1973, arts. 621 a 631; CPC de 2015, arts. 806 a 813), além de procedimentos executórios específicos no próprio Código, como os que regulam a execução alimentícia (CPC de 1973, arts. 732 a 735; Código de 2015, arts. 911 a 913), a execução pecuniária contra a Fazenda Pública (CPC de 1973, arts. 730 e 731; CPC de 2015, art. 910), o cumprimento de sentença (CPC de 1973, arts. 475-I a 475-R; CPC de 2015, arts. 513 a 538), e também em leis extravagantes, como a execução dos créditos decorrentes de contrato de alienação fiduciária (Decreto-lei n. 911/69) e a execução fiscal (Lei n. 6.830/80), entre outros. O processo cautelar, por sua vez, no Código de 1973, possui um procedimento comum, regulado nos artigos 801 a 812 do Código de Processo Civil e aplicável a todas as ações cautelares que não tenham um procedimento específico. Além desse procedimento comum, há vários procedimentos específicos, tais como os que disciplinam o arresto (arts. 813-821), o sequestro (arts. 822-825), a busca e apreensão (arts. 839-843), o arrolamento (arts. 855-860), a justificação (arts. 861-866), as notificações (arts. 867-873), a produção antecipada de provas (art. 846-851) etc. Diferentemente, o Código de 2015 não disciplinou um procedimento comum para a tutela de urgência, antecipada ou cautelar. Agrupou algumas regras sobre o procedimento da tutela antecipada antecedente em capítulo próprio (arts. 303 e 304). No capítulo seguinte reuniu disposições sobre a tutela cautelar antecedente (arts. 305 a 310), mas não tratou especificamente do procedimento dessas tutelas quando requeridas incidentalmente, porque, em princípio, seguirão o procedimento da causa principal. O procedimento ordinário no Código de 1973 e o procedimento comum no Código de 2015 são regulados com maior extensão, neles institutos aplicáveis a todos os procedimentos, como a petição inicial, a resposta do réu, a revelia, as provas, a audiência, a sentença e a coisa julgada. As suas regras se aplicam
subsidiariamente ao procedimento sumário do Código de 1973, aos procedimentos especiais de jurisdição contenciosa e voluntária, aos procedimentos executórios e cautelares, inclusive aos que são objeto de leis extravagantes, salvo no que forem com eles incompatíveis. O procedimento rege os requisitos formais do processo de dois principais modos: um que dispõe sobre a série sucessiva, a cadeia de atos do processo e os respectivos prazos; e outro que regula os requisitos de cada ato do processo individualmente. Conforme já foi assinalado anteriormente, no Código de 1973 o processo de conhecimento possui dois procedimentos comuns: o sumário e o ordinário. O primeiro aplica-se às causas enumeradas no artigo 275 do Código de Processo Civil, como, por exemplo, as causas de valor não superior a 60 salários mínimos. Consiste – ou deveria consistir – num procedimento mais concentrado, que visa a dar mais rapidez e simplicidade a causas de menor complexidade, sem perder, todavia, a exaustividade da cognição de todos os tipos de questões de fato e de direito que possam ser relevantes para o seu julgamento. Lamentavelmente, o chamado procedimento sumário do Código de 1973 é tão ordinário quanto esse último, em todos os sentidos. Ele é tão ou mais complexo que o procedimento ordinário, que, em tese, deveria ser mais amplo, de maior complexidade e mais demorado. Faz bem o Código de 2015 em extingui-lo. O procedimento ordinário do Código de 1973 é o adequado às causas para as quais a lei não previu nenhum procedimento específico, determinado. Em minha opinião, se a lei prevê o procedimento sumário para causas inferiores a 60 salários mínimos e o autor escolhe como rito o procedimento ordinário, não há nulidade alguma, porque a escolha de um procedimento mais amplo, com prazos maiores, com formas mais exigentes, não causa nenhum prejuízo às partes. A maior duração que hipoteticamente a causa possa vir a ter não chega a constituir um prejuízo, especialmente porque o Código, na sua redação mais recente, oferece diversos mecanismos para acelerar a tutela dos interesses das partes, mesmo nos procedimentos mais demorados. Referindo-me agora também ao Código de 2015, não vejo nulidade se, cabível um procedimento especial, optar o autor pelo procedimento ordinário, o que, aliás, o próprio Código prevê na cumulação de pedidos (CPC de 1973, art. 292, §
2º; Código de 2015, art. 327, § 2º). Isso somente não será possível se se tratar de uma daquelas matérias, como o inventário, que, pela especificidade da atividade que vai ser desenvolvida no curso do processo, não comporta a sua realização pelo rito ordinário, exigindo todas as etapas e formalidades previstas no respectivo procedimento especial. Como já expus, considero não haver nenhum prejuízo para o réu na escolha de um procedimento mais demorado. Nesse sentido, aliás, vem se firmando, aos poucos, a jurisprudência. Entretanto, haverá nulidade caso o autor escolha um procedimento especial quando a ação deve submeter-se ao rito ordinário ou ao rito sumário. ________ 1 LIEBMAN, Enrico Tullio. L’opera scientifica di James Goldschmidt e la teoria
del rapporto processuale. In: Problemi del processo civile. Napoli: Morano Editore, 1962. p. 132-146. 2 MANDRIOLI, Crisanto; CARRATTA, Antonio. Diritto processuale civile.
23. ed. Torino: G. Giappichelli Editore, 2014. v. I. p. 39-40. 3 LIEBMAN, Enrico Tullio. L’opera scientifica… p. 135, 136, 139 e 142. 4 ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. Direito judiciario brazileiro. 2. ed.
Rio de Janeiro: Typographia Baptista de Souza, 1918. p. 257-264.
Conforme já analisamos, a relação jurídico-processual se forma entre os três sujeitos principais do processo (o juiz, o autor e o réu), aos quais se agregam outros sujeitos secundários de diversas espécies, como os auxiliares permanentes da justiça (o escrivão ou chefe de secretaria e o oficial de justiça), os sujeitos probatórios (as testemunhas, os peritos e os assistentes técnicos) e outros sujeitos postulantes, como os terceiros intervenientes, o Ministério Público e os advogados. A seguir, trataremos de cada um desses sujeitos, de forma a explicitar a sua atuação no processo.
11.1. O JUIZ O juiz, como sujeito processual, não é a pessoa física do magistrado, mas o órgão jurisdicional estatal, que é uma unidade de atuação do Poder Judiciário criada pela lei, cujas atividades são desempenhadas por um magistrado – pessoa física, funcionário público – regularmente investido no exercício das atribuições desse órgão. Assim, o juiz de determinado processo, por exemplo, é o juízo da 1ª vara cível ou o juízo da 5ª vara federal do Rio de Janeiro, ou seja, é aquela unidade organizacional ou unidade de atuação criada pela lei para o exercício da função jurisdicional de juiz em cada processo. Eventualmente, a lei trata do juiz como pessoa física, como, por exemplo, quando estabelece os seus motivos de impedimento e de suspeição, para que o órgão jurisdicional, em nome do Estado, exerça a jurisdição com todas as garantias do processo justo. Nesses casos, a lei não está se referindo ao órgão jurisdicional, mas ao juiz pessoa física, porque para a validade do processo também é necessário que o funcionário público investido no cargo de magistrado, que exerce as atribuições do órgão jurisdicional, preencha determinados requisitos e atributos. Portanto, o juiz, como sujeito processual principal imparcial, é o órgão
jurisdicional. 11.1.1. Deveres e responsabilidade do juiz Não é intuito desta obra apresentar um rol completo dos inúmeros deveres do juiz, que envolvem o exercício das atribuições do órgão jurisdicional no processo e também a necessária conduta pessoal do magistrado. Como deveres, o seu descumprimento constitui ato ilícito e normalmente viola direitos de outros sujeitos, podendo ter como consequências a responsabilidade civil do Estado e as responsabilidades civil, penal e disciplinar do magistrado. Vamos destacar os mais evidentes, sem preocupação com a exaustão. Podemos dizer que eles têm origem na própria Constituição, que institui o Poder Judiciário e assegura o direito de acesso à Justiça, revestido de uma série de garantias. Mas concretamente eles estão explicitados na Lei Complementar n. 35/79, que é a Lei Orgânica da Magistratura Nacional prevista no artigo 93 da Carta Magna, na Resolução n. 60/2008 do Conselho Nacional de Justiça, que institui o Código de Ética da Magistratura Nacional, no Código de Processo Civil e nas leis processuais em geral. A muitos desses deveres correspondem direitos subjetivos dos mais diversos sujeitos processuais, em especial das partes, embora muitas vezes eles constituam encargos pessoais dos magistrados em relação ao próprio Estado, para que este efetivamente cumpra a promessa constitucional de assegurar o respeito aos direitos de todos por uma justiça independente, honesta e eficiente. Num relato sem qualquer sistematização, verifica-se que os artigos 35 e 36 da Lei Complementar n. 35/79 enumeram claramente pelo menos nove deveres dos juízes, estritamente vinculados à sua atuação no processo: 1 – cumprir e fazer cumprir a lei; 2 – sentenciar e despachar dentro dos prazos que lhe são conferidos; 3 – ser um gestor eficiente do processo, velando pelo seu andamento nos prazos legalmente previstos e fiscalizando os seus subordinados; 4 – tratar os demais sujeitos processuais com respeito e compreensão; 5 – ser pontual no expediente e nas audiências; 6 – ser acessível, atendendo a qualquer momento aos que o procurarem em busca de providência urgente; 7 – velar pelo exato recolhimento das custas e demais despesas processuais; 8 – abster-se de manifestar opinião sobre processo pendente.
Os Códigos de Processo Civil de 1973 e de 2015 minudenciam em inúmeros dispositivos as exigências de gestão eficiente do processo, por exemplo, ao incumbir o juiz de velar pela celeridade do processo (CPC de 1973, art. 125, inc. II; CPC de 2015, arts. 139, inc. II), ao recomendar-lhe indeferir postulações e provas protelatórias (CPC de 1973, art. 130; CPC de 2015, arts. 139, inc. III, e 370). Mais explícito, o Código de 2015, no artigo 139, incisos VI, VII, IX e X, lhe confere o poder de polícia, que é instrumento do poder de coerção, o de dilatar prazos e alterar a ordem de provas para adequá-los às necessidades do conflito, o de determinar o suprimento dos pressupostos processuais e o saneamento de quaisquer outros vícios do processo e o de oficiar aos órgãos legitimados à propositura de ações coletivas quando se deparar com demandas repetitivas que possam recomendar a iniciativa desses órgãos. O Código de 2015, no artigo 6º, explicita um dos mais importantes deveres de todos os sujeitos do processo e especialmente do juiz, que é o dever de cooperação, para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. O dever de cooperação está associado à boa-fé (art. 5º) e implementa no processo a efetivação da solidariedade social, base ética de convivência pacífica dos cidadãos dentro do Estado de Direito (Constituição, art. 3º, inc. I), que exige de todos os agentes públicos, particularmente do juiz no processo, comportamento leal, honesto e previsível, que respeite as garantias fundamentais oferecidas às partes (contraditório, ampla defesa, paridade de armas etc.), assegurando-lhes em plenitude o exercício do direito de influir eficazmente na obtenção de uma decisão justa e prestando-lhes, nos limites impostos pela necessidade de preservar a sua imparcialidade, toda a assistência e colaboração. Nos dois Códigos também se encontram expressamente consagrados, entre outros, o dever de tratamento paritário das partes (Código de 1973, art. 125, inc. I; Código de 2015, art. 139, inc. I), o dever de exigir das partes comportamento honesto e leal (CPC de 1973, art. 125, inc. III, e art. 129; CPC de 2015, art. 139, inc. III, e art. 142), o dever de promover a conciliação ou autocomposição das partes (CPC de 1973, art. 125, inc. IV; CPC de 2015, art. 139, inc. V), o dever de decidir e de despachar, mesmo que a lei seja lacunosa ou obscura (CPC de 1973, art. 126; CPC de 2015, art. 140), o dever de adstrição e respeito à iniciativa de questões privativas das partes (CPC de 1973, art. 128; CPC de 2015, art. 141), o dever de fundamentação das decisões (CPC de 1973, art. 131; CPC de 2015, arts. 11 e 371), o dever de reconhecer de ofício ou quando provocado os seus
impedimentos ou motivos de suspeição (CPC de 1973, arts. 134 a 136 e 314; CPC de 2015, arts. 144 a 147) e o dever de adotar todas as medidas necessárias para efetivar o cumprimento de ordens e decisões judiciais (CPC de 1973, art. 14, inc. V; CPC de 2015, art. 77, inc. IV). A Resolução n. 60/2008, do Conselho Nacional de Justiça, reafirma e minudencia vários desses deveres e menciona outros que merecem ser aqui apontados: independência ética e desempenho isento de influências estranhas (arts. 4º e 5º), recusando-se a receber benefícios e vantagens que possam comprometê-los (art. 17); busca da verdade com objetividade e fundamento (art. 8º); equidistância das partes, evitando comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito (art. 8º); transparência e comunicação com os interessados de forma útil, compreensível e clara (arts. 10 e 11); prudência e equilíbrio nas relações com os meios de comunicação social (art. 12); tolerância e autocrítica no reconhecimento e correção dos seus erros (art. 26); sigilo profissional (arts. 27 e 28); permanente aprimoramento e atualização dos conhecimentos (arts. 29 a 32). As infrações aos deveres dos juízes podem acarretar a nulidade dos atos processuais por eles praticados, merecendo a censura e a correção dentro do próprio processo por meio do seu reexame nas instâncias hierárquicas e recursais, podendo acarretar inclusive a imposição de sanções processuais, por exemplo, a condenação nas custas na exceção ou incidente de impedimento ou de suspeição (CPC de 1973, art. 314; CPC de 2015, art. 146, § 5º). O Código de 2015 introduz o dever de juízes e tribunais de obediência à ordem cronológica de conclusão na prolação de sentenças e acórdãos (arts. 12 e 1.046, § 5º), recomendando a elaboração de lista de processos aptos a julgamento permanentemente disponível para consulta, e prevê uma série de exceções. É disposição simplista, de difícil ou impossível aplicação, não só pelo número elevado de exceções, mas porque contraria toda a filosofia que inspira esse novo Código de flexibilidade procedimental e adaptabilidade do procedimento às exigências de cada litígio e às conveniências dos litigantes, de que são exemplos o dever de prorrogar e dilatar prazos acima mencionado (art. 139) e a permissão de convenções sobre procedimento (art. 190). Ao contrário de militar em favor da celeridade do processo e da melhoria da qualidade das decisões, essa disposição estimula o juiz a uma postura burocrática, dedicando aos processos volumosos e complexos o mesmo tempo que depende aos processos mais
simples. Para não retardar uns, acelerar os outros, como se a Justiça fosse uma linha de produção em série padronizada de decisões. Aliás, essa ideia perversa de padronização transparece no inciso II do § 2º desse artigo 12, que exclui da ordem cronológica o julgamento de processos “em bloco”. Prática espúria, que esmaga os argumentos e provas apresentados por cada litigante e o protagonismo do contraditório participativo a um enunciado genérico, transposto para vários processos supostamente idênticos, o julgamento “em bloco” é que deveria ser proibido, mas, ao contrário, na busca de atingir metas de eficiência puramente quantitativa, é estimulado pelo novo diploma. Fora do processo, as faltas dos magistrados estão sujeitas à apuração e à imposição de sanções, reguladas nos artigos 27 a 29 e 40 a 48 da Lei Complementar n. 35/79, por parte dos tribunais de cúpula e conselhos de magistratura do respectivo sistema judiciário, assim como pelo Conselho Nacional de Justiça, conforme o disposto no artigo 103-B, § 4º, inciso III, da Constituição, introduzido pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Este Conselho regulou na Resolução n. 135/2011 o procedimento administrativo disciplinar aplicável aos magistrados. A Emenda Constitucional n. 45 também veio a impor a publicidade no julgamento desses procedimentos, conforme regra por ela introduzida no inciso X do artigo 93 da Constituição. O descumprimento desses deveres também determina a responsabilidade civil do Estado e do próprio juiz como funcionário público. A responsabilidade do Estado é objetiva, de acordo com o artigo 37, § 6º, da Constituição. A do juiz é subjetiva, mas se submete ao regime próprio previsto no artigo 49 da Lei Complementar n. 35/79, reproduzido integralmente nos artigos 133 do Código de 1973 e 143 do Código de 2015. Esses dispositivos estatuem a responsabilidade do juiz que, no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude, mas restringem a responsabilidade por simples culpa aos casos de recusa, omissão, retardamento, sem justo motivo, de providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento das partes. O único acréscimo do Código de 2015 é a explicitação de que a responsabilidade pessoal do juiz é sempre regressiva, o que significa que as vítimas das suas infrações não têm legitimidade de promovê-la diretamente contra ele, mas apenas contra a pessoa jurídica de direito público ao qual está ele vinculado, União Federal ou Estadomembro, à qual caberá, se entender caracterizada a responsabilidade subjetiva do magistrado, voltar-se em ação de regresso, no curso ou após o desfecho
favorável à vítima da ação de indenização contra ela proposta, o que examinaremos adiante no item 21.4. Os juízes, como funcionários públicos, podem ser responsabilizados criminalmente por quaisquer condutas, no exercício de suas funções, que caracterizem os crimes dos funcionários públicos contra a administração em geral, tipificados nos artigos 312 a 326 do Código Penal. Os magistrados que integram os tribunais superiores, assim como os juízes que dirigem foros da justiça de primeiro grau, também podem incorrer nas penas dos crimes de responsabilidade, previstos na Lei n. 1.079/50. Ressalvada a competência do Senado Federal (Constituição, art. 52, inc. II), os processos criminais contra juízes são da competência originária dos tribunais, conforme dispõem os artigos 102, inciso I, alíneas b e c, 105, inciso I, alínea a, 108, inciso I, alínea a, da Carta Magna, e, no Estado do Rio de Janeiro, o artigo 161, inciso IV, alínea d, da Constituição do Estado, editado em conformidade com o artigo 125, § 1º, da Constituição Federal. O próprio Código de Processo Civil prevê como fundamentos de ação rescisória de sentença transitada em julgado hipóteses em que o descumprimento de deveres funcionais pelo juiz caracteriza a prática de crime, como a prevaricação, a concussão e a corrupção passiva (CPC de 1973, art. 485, inc. I; Código de 2015, art. 966, inc. I). O rol meramente exemplificativo dos deveres do juiz anteriormente apresentado e as responsabilidades em que está incurso mostram claramente que o que a lei espera dos seus magistrados é que sejam seres humanos altamente capacitados quanto à amplitude dos seus conhecimentos jurídicos, quanto à sua experiência de vida e à sua aptidão para formular juízos de valor a respeito do comportamento humano, extremamente disciplinados e organizados para desempenharem as suas funções com estrita observância de todas as complexas regras a que estão sujeitos, honestos, seguros e corajosos, mas ao mesmo tempo afáveis, pacientes, humildes e tolerantes, para não se corromperem, saberem ouvir e aprender na convivência e no diálogo com os demais sujeitos do processo, não titubearem na energia necessária para fazer o direito prevalecer, mesmo diante das ameaças e intimidações, excepcionalmente altruísticos para colocarem o cumprimento dos seus deveres acima de qualquer interesse pessoal, entre outras virtudes. Como selecionar ou como formar seres humanos que reúnam todos esses atributos? Certamente não é o concurso público de títulos e
provas que assegurará o preenchimento de todos esses requisitos. A escola da magistratura que, a par da formação do juiz, para ensiná-lo a enfrentar os tremendos desafios do cargo, viesse a testar e aprimorar o preenchimento das qualidades de personalidade, caráter e disciplina, deveria constituir requisito essencial não para o simples vitaliciamento do magistrado (Constituição, art. 93, inc. IV, com a redação da Emenda Constitucional n. 45/2004), mas para o ingresso e a progressão na carreira. Por outro lado, o caráter impreciso de certos deveres, de que é exemplo mais candente o do inciso VIII do artigo 35 da Lei Complementar n. 35/79 (manter conduta irrepreensível na vida pública e particular), que não arrolei anteriormente porque não diz respeito ao comportamento do juiz no processo, e das correspondentes sanções (arts. 40 a 48 da mesma Lei), constituem um grande incentivo a que os juízes se acomodem, de modo burocrático e pusilânime, ao cumprimento formal dos seus deveres e à adoção das condutas que menos possam lhes trazer dificuldades no seu relacionamento com os tribunais superiores, especialmente no que possa ter reflexos sobre as perspectivas de progressão na carreira. Essa relação perversa é um dos fatores mais intimidativos que reduzem a independência dos juízes, mesmo com todas as garantias constitucionais de que se revestem os seus cargos. A responsabilidade civil simplesmente regressiva é uma proteção da sua independência, mas, em contrapartida, é um grave desestímulo à vítima que terá grande dificuldade de receber a devida reparação do Estado que, além de todos os privilégios processuais, não pode ter os seus bens penhorados e também não paga em dia os precatórios das condenações judiciais. O tema deste capítulo merece uma reflexão muito mais profunda, que esta obra não comporta, que extravasa os limites do direito processual, enveredando pelo direito constitucional, pela ciência política, pela ciência da administração e até mesmo pelas ciências da mente, que afronte esses e outros graves problemas, como o do provimento dos cargos de magistrado nos tribunais superiores, o da aplicação dos deveres dos magistrados profissionais aos juízes temporários, como os advogados que compõem os tribunais eleitorais e os jurados nos tribunais do júri, a composição dos órgãos disciplinares da magistratura, a vinculação dos juízes inferiores às instruções dos tribunais superiores e dos órgãos disciplinares, entre outros.
A insuficiência das regras existentes e dos mecanismos de sua implementação reflete na crise da administração da justiça e no declínio dos seus índices de confiança e credibilidade, o que constitui uma séria e grave ameaça à estabilidade democrática e um incentivo perverso à busca de soluções para os conflitos sociais à margem da lei e do direito.
11.2. SUJEITOS PARCIAIS O autor e o réu são os sujeitos processuais parciais do processo. Daí serem autor e réu chamados de partes do processo. Normalmente, autor é o sujeito que toma a iniciativa de instaurar o processo, propondo a petição inicial, formulando o pedido, ao passo que o réu é o sujeito contra o qual ou em face do qual o autor formula o pedido. Nos litígios individuais, em cada processo há pelo menos um autor e um réu. Entretanto, num único processo, podem concorrer vários autores ou réus, hipótese em que se verificará o fenômeno do litisconsórcio, que é justamente a pluralidade de autores, de réus ou de ambos no mesmo processo (CPC de 1973, arts. 46 a 49; CPC de 2015, arts. 113 a 118). Na jurisdição voluntária, contudo, a lei não utiliza a palavra partes para designar esses sujeitos, mas a palavra interessados. Isso porque há diversas hipóteses na jurisdição voluntária em que os sujeitos principais não ocupam posições antagônicas, sendo apenas sujeitos postulantes, como ocorre, por exemplo, no divórcio consensual, no qual os dois cônjuges, de comum acordo, se dirigem ao juiz formulando o mesmo pedido comum (Lei n. 6.515/77, art. 40, § 2º; CPC de 2015, art. 746). Pode-se perguntar se, no caso acima, a relação jurídica processual seria linear, e não triangular. A resposta é negativa, pois, apesar de os sujeitos estarem na mesma posição, cada um deles tem a sua própria situação jurídica, que não impede que, em momento futuro do processo, postulem em sentidos diversos. Ademais, ainda que não assumam posições conflitantes, o juiz tem de avaliar separadamente a situação jurídica e o interesse de cada um, impedindo que o mais forte imponha ao mais fraco um acordo desvantajoso. Entretanto, há casos em que existe apenas um sujeito postulante, hipótese em
que a relação será linear, pois que travada somente entre autor e juiz. É o que ocorre, por exemplo, quando um menor, representado por seu pai, requer a expedição de um alvará para vender determinado bem imóvel. 11.2.1. Deveres, ônus e responsabilidades das partes Os encargos que recaem sobre as partes no processo se dividem em deveres e ônus. A distinção é importante, mas em muitos casos sutil, gerando polêmicas. Por outro lado, a exaltação de postulados éticos que devam ser observados por todos os sujeitos do processo tem levado a que com frequência condutas antes consideradas simples ônus passem a ser tratadas como deveres. É preciso ter cuidado para não permitir que, sob o impulso de imperativos morais, o processo se torne autoritário, especialmente o processo regido pelo princípio dispositivo, em que maior é a liberdade das partes. Ônus é um comportamento imposto à parte em seu próprio benefício. O seu descumprimento não viola direito subjetivo de qualquer outro sujeito, nem constitui ato ilícito, podendo resultar, para a parte que o omite, na criação de uma situação de desvantagem no processo e, consequentemente, numa situação de vantagem para o seu adversário. A parte tem liberdade de cumprir ou não o ônus que a lei lhe impõe, avaliando em que medida pode o seu comportamento favorecê-la na obtenção do êxito por ela almejado no processo1. Dever é um comportamento imposto à parte para satisfazer o direito subjetivo de outro sujeito, cujo descumprimento constitui ato ilícito, incorrendo em sanções dentro e fora do processo, fundadas na responsabilidade processual, civil e muitas vezes até criminal. São exemplos de ônus das partes: o ônus de colaborar com o juízo no impulso processual (CPC de 1973, arts. 262 e 267, incisos II e III; Código de 2015, arts. 2º e 485, incs. II e III); o ônus de custeio das despesas (CPC de 1973, art. 19; CPC de 2015, art. 82); o ônus de iniciativa das questões processuais e de direito material (CPC de 1973, art. 128; CPC de 2015, art. 141); o ônus de contestar (CPC de 1973, art. 319; CPC de 2015, art. 344); o ônus de impugnação específica dos fatos (CPC de 1973, art. 302; CPC de 2015, art. 341); o ônus de fazer-se representar por advogado (CPC de 1973, art. 36; CPC de 2015, art. 103); o ônus da prova (CPC de 1973, art. 333; CPC de 2015, art. 373); o ônus de
praticar os atos processuais de seu interesse nos prazos legais, se peremptórios (CPC de 1973, art. 183; CPC de 2015, art. 223); o ônus de comparecimento da parte para prestar o depoimento pessoal (CPC de 1973, art. 342; CPC de 2015, art. 385); no processo regido pelo princípio dispositivo, o ônus de comparecimento da parte para inquirição pelo juiz para simples esclarecimento dos fatos (CPC de 1973, arts. 340, inc. I, e 599, inc. I; CPC de 2015, arts. 139, inc. VIII, 379, inc. I, e 772, inc. I), o ônus de submeter-se à inspeção judicial (CPC de 1973, art. 340, inc. II; CPC de 2015, art. 379, inc. II); o ônus de prestar informações, de exibir documentos, de fornecer provas ou de qualquer outro modo colaborar na instrução probatória (CPC de 1973, art. 340, inc. III; CPC de 2015, art. 379, inc. III). O dever mais amplo e, por isso mesmo, o mais inçado de dificuldades na sua aplicação é justamente o que o Código de 2015 consagrou logo no artigo 6º, o dever de cooperação “para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. Como já observamos em relação ao juiz, esse dever, que incumbe a todos os sujeitos do processo, decorre da solidariedade social, inscrita no artigo 3º da Constituição Federal, como um dos objetivos do Estado de Direito. Esse dever de cooperação é imposto a cada uma das partes em relação às outras, em relação ao juiz, como sujeito do processo, em relação aos demais sujeitos do processo e em relação ao próprio Estado que institui o serviço judiciário como um dos seus instrumentos de realização dos seus objetivos. O conteúdo desse dever é bastante indeterminado, mesmo porque os sistemas processuais modernos, com maior ou menor intensidade, o que em grande parte resulta de fundamentos culturais diversos quanto à extensão dos deveres morais que os próprios cidadãos têm uns em relação aos outros, o circunscrevem à colaboração em benefício da eficiência do instrumento processual ou o estendem ao compromisso com a busca da decisão mais justa e veraz. No curso do nosso estudo teremos oportunidade de examinar, ainda que sucintamente, muitos aspectos da sua aplicação e como ele se articula com os princípios e as garantias fundamentais do processo. Por ora vamos nos contentar em mencionar alguns dos mais importantes deveres das partes explicitados nos Códigos de 1973 e de 2015, muitos deles simples exteriorização do dever de cooperação. Os Códigos de 1973 (art. 339) e de 2015 (art. 378) enfatizam o dever de todos os sujeitos de direito, mesmo que não sejam sujeitos do processo, de colaborar com
o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade. É um dos aspectos do dever de cooperação. Conforme já observamos, no processo regido pelo princípio dispositivo, em que não estão em jogo interesses indisponíveis, em muitos casos essa colaboração é apenas um ônus. Já nos processos em que o interesse de uma das partes é indisponível, na busca da verdade para evitar eventual e injusto sacrifício desse interesse, essa colaboração é um dever. Essa distinção se aplica a todas as hipóteses dos incisos I a III do artigo 340 do Código de 1973 e do artigo 379 do Código de 2015. Voltaremos a esse assunto no 2º volume desta obra, inclusive para comentar a questionável ressalva que faz o caput do artigo 379 do Código de 2015, excluindo a incidência dessas regras para preservar o suposto direito da parte de não se autoincriminar. São também importantes deveres das partes, no âmbito do dever de cooperação, os de lealdade e de boa-fé (CPC de 1973, arts. 14, inc. II, 16 e 17; Código de 2015, arts. 5º, 79 e 80). O Código de 2015 não menciona expressamente a lealdade, que deve considerar-se incluída na boa-fé. Na abertura do seu livro sobre a lealdade processual, Marie-Emma Boursier proclama que a lealdade implica retidão, honestidade e probidade. E mais adiante enfatiza que a lealdade é uma atitude ética que se desdobra em um conjunto de regras universais que devem ser seguidas por todos os sujeitos do processo para assegurar o respeito aos direitos dos demais sujeitos processuais e à dignidade da própria justiça2. Se difícil é a conceituação da boa-fé, arrisco-me a assimilá-la no processo à conduta do sujeito absolutamente coerente com a sua consciência de certo e de errado, seja quanto à verdade dos fatos, seja quanto à possibilidade de existência do seu direito e dos direitos dos demais sujeitos, seja quanto à contribuição positiva que essa conduta deva prestar à boa administração da justiça em igualdade de condições e de oportunidades para todos os jurisdicionados, que se reflete no conteúdo das suas alegações, dos seus requerimentos e de todos os seus atos e omissões. A parte que age de boa-fé acredita no seu direito, na consistência das suas alegações e na sua versão dos fatos e traça uma linha de defesa das suas pretensões composta de ações que contribuem para a eficiência da administração da justiça, sem fazer uso de artifícios que possam prejudicar essa eficiência, o exercício do direito de defesa ou o acesso à justiça do seu adversário em igualdade de condições e respeitando a dignidade humana e os
direitos fundamentais de todos os sujeitos do processo. O contrário da boa-fé é a má-fé, que contém um elemento subjetivo de difícil comprovação, o dolo ou a intenção de tirar proveito ilícito do processo. Por isso, o legislador, além de proclamações genéricas (CPC de 1973, arts. 16 e 17; CPC de 2015, arts. 79 e 80), procura explicitar, embora de modo não exaustivo, as ações concretas que a caracterizam, desdobrando-as em outros deveres ou proibições, como o dever de veracidade (CPC de 1973, arts. 14, inc. I, e 17, inc. II; CPC de 2015, arts. 77, inc. I, e 80, inc. II), o dever de prudência, não formulando pretensões ou defesas, cientes de que não têm fundamento, contra texto expresso de lei ou fato incontroverso, bem como não promovendo ou praticando atos ou incidentes manifestamente infundados ou temerários (CPC de 1973, art. 14, inc. III, e art. 17, incs. I, V e VI; CPC de 2015, art. 77, incs. II, V e VI), o dever de colaborar com a eficiência na administração da justiça, não praticando atos inúteis ou desnecessários, nem promovendo a sua prática, nem dificultando o andamento do processo (CPC de 1973, arts. 14, inc. IV, e 17, inc. IV; CPC de 2015, arts. 77, inc. III, e 80, inc. IV), o dever de acatamento das decisões e ordens judiciais, cumprindo-as e não criando obstáculos ao seu cumprimento (CPC de 1973, art. 14, inc. V; CPC de 2015, art. 77, inc. IV), o dever de manter-se acessível às intimações e solicitações da justiça, informando sempre o seu endereço e a sua localização (CPC de 2015, art. 77, inc. V), o dever de não praticar no curso do processo atentado que represente inovação ilegal no estado de fato ou de direito (CPC de 1973, art. 879; CPC de 2015, art. 77, inc. VI), o dever de não utilizar o processo para alcançar objetivo ilegal, simulado ou fraudulento (CPC de 1973, arts. 17, inc. III, e 129; CPC de 2015, arts. 80, inc. III, e 142), o dever de não interpor recurso com intuito manifestamente protelatório (CPC de 1973, art. 17, inc. VII; CPC de 2015, art. 80, inc. VII), o dever de urbanidade, não empregando expressões injuriosas ou ofensivas (CPC de 1973, art. 15; Código de 2015, art. 78). Aplicações dos deveres de lealdade e boa-fé encontram-se em várias outras disposições da lei processual, cabendo destacar aqui, pela sua importância, as condutas que na execução são consideradas atentatórias à dignidade da justiça, enumeradas nos artigos 600 do Código de 1973 e 774 do Código de 2015, especialmente a fraude à execução e a não revelação pelo executado dos bens a serem penhorados ou da sua localização. Destaco, por fim, que o Código de 2015, provavelmente no intuito de induzir as
partes à autocomposição, estabeleceu no § 8º do artigo 334 que constitui ato atentatório à dignidade da justiça o não comparecimento injustificado do autor ou do réu à audiência de conciliação. Esse comparecimento pode ser pessoal ou por representante, com poderes para negociar e transigir (§ 10) e é obrigatório e, portanto, um dever, salvo se ambas as partes manifestarem o seu desinteresse na conciliação (§ 4º, inc. I). O descumprimento pela parte de qualquer um dos seus deveres processuais acarreta-lhe a responsabilidade processual, civil e penal, sem falar na responsabilidade profissional do seu advogado, se for o caso, de que trataremos quando estudarmos esse sujeito processual (item 11.5.3). A responsabilidade processual consiste normalmente na imposição de multa (CPC de 1973, art. 18; CPC de 2015, art. 81), que em geral reverte em benefício da parte contrária (CPC de 1973, art. 35; CPC de 2015, art. 96), embora algumas vezes reverta em benefício do Estado, por exemplo, no caso de não comparecimento à audiência de conciliação (CPC de 2015, art. 334, § 8º). Em alguns casos, a lei processual prevê outras sanções específicas, como a responsabilidade pelas custas a que deu causa e pelos honorários advocatícios da parte contrária, independentemente da sucumbência final (CPC de 1973, arts. 22, 113, § 1º, e 267, § 3º; CPC de 2015, art. 81) ou a proibição de falar nos autos no caso de atentado (CPC de 1973, art. 881; CPC de 2015, art. 77, § 7º) que, aliás, considero inconstitucional por incompatível com a garantia da ampla defesa. A responsabilidade civil se dá pela imposição ao infrator do pagamento de indenização à vítima, a requerimento desta ou de ofício pelo juiz da causa no próprio processo em que ocorreu a violação (CPC de 1973, art. 18; CPC de 2015, art. 81). A responsabilidade criminal por conduta maliciosa ou desleal pode ocorrer em casos de desobediência ou de resistência ao cumprimento de ordem judicial (CPC de 1973, arts. 663, 825, parágrafo único, 938; CPC de 2015, arts. 536, § 3º, 846, § 3º) e outras muito específicas, como a fraude de execução e outros crimes contra a administração da justiça (Código Penal, arts. 179 e 338 a 359). Entretanto, é importante que a ameaça de responsabilização criminal não constitua um fator de intimidação ao pleno exercício do direito de defesa. A parte deve se sentir segura de agir em juízo com a mais absoluta sinceridade,
ainda que afinal não consiga comprovar cabalmente todas as suas afirmações e alegações. Por isso, a doutrina e a jurisprudência normalmente repudiam a incidência da parte nas penas de crimes contra a honra, como a calúnia e a difamação, pela afirmação de fatos eventualmente desonrosos ao seu adversário que não restaram afinal comprovados. Do mesmo modo, será incabível, nessa mesma situação, qualquer indenização por suposto dano moral. O constrangimento e o sofrimento gerados pelo processo judicial, em princípio, se resolvem no âmbito da responsabilidade processual pelas despesas e na imposição ao vencido dos honorários da sucumbência. Multas e outras sanções por descumprimento de deveres processuais, responsabilidade civil e responsabilidade criminal pressupõem a comprovação concreta de comportamento doloso, intencional, com consciência da ilicitude, imposta em juízo em que tenham sido assegurados ao suposto infrator o contraditório e a ampla defesa.
11.3. SUJEITOS AUXILIARES Os sujeitos auxiliares da justiça podem ser obrigatórios ou eventuais. Os sujeitos obrigatórios são: o escrivão ou chefe de secretaria e o oficial de justiça, funcionários públicos responsáveis pela operacionalização das atividades do órgão jurisdicional. O nome do primeiro – escrivão – é tradicional no Brasil, mas cada organização judiciária pode lhe conferir outra denominação. Assim, na Justiça Federal e na Justiça do Trabalho, esse funcionário público é chamado de chefe de secretaria e o Código de 2015 consagra em diversos artigos esse título (v. arts. 152 e 153). O escrivão ou chefe de secretaria é o dirigente da unidade administrativa de apoio ao juiz – o cartório –, sendo responsável pela organização e implementação de todos os seus serviços, pela atribuição e controle das tarefas desempenhadas pelos diversos serventuários ali lotados. Ele é o sujeito auxiliar a quem o juiz transmite as suas ordens e decisões para cumprimento, possuindo o dever de documentar o processo, formando os autos, controlando a sua movimentação, registrando os atos processuais nos livros cartorários e nos arquivos próprios, lavrando os termos dos atos orais, redigindo todo o expediente do cartório, como os ofícios e mandados, atividades que exerce com a colaboração do pessoal lotado na serventia e praticando, ainda, os atos meramente ordinatórios (CPC de 1973, arts. 141 e 162, § 4º; CPC de 2015, art.
152). Quanto a estes últimos, ou seja, os atos ordinatórios, o Código de 2015 recomenda que o juiz edite ato que regulamente a sua prática (art. 152, § 1º). No Código de 2015, tal como o juiz (art. 12), também o escrivão terá de obedecer a ordem cronológica para publicação e efetivação das ordens e decisões judiciais (art. 153), o que me parece paradoxal porque faz supor que o serventuário não esteja cumprindo, por algum motivo justificável, os curtos prazos de cinco dias que lhe são impostos pelo artigo 228. O próprio artigo 153, ao prever exceções (atos urgentes e preferências legais), acabaria por não sujeitar a qualquer prazo os não urgentes e os que estão fora das preferências legais, enquanto houver algumas dessas categorias a serem aviadas. Assim, o escrivão é um sujeito auxiliar, de apoio, mas essencial ao andamento do processo e à documentação dos atos processuais. O outro sujeito auxiliar obrigatório é o oficial de justiça, que exerce suas funções como longa manus do juízo. O oficial de justiça tem como função principal a de cumprir as ordens do juiz fora da sede do juízo. Nesse sentido, é o oficial de justiça o responsável por cumprir os mandados de citação, de intimação e de penhora, entre outros. Entretanto, esse sujeito pode praticar, sempre em cumprimento às ordens do juiz, atos de diversas naturezas, como arrombar fechaduras, proceder ao despejo e remoção de bens do locatário, buscar e apreender determinada coisa. Além disso, o oficial de justiça possui uma segunda função essencial, que é a de auxiliar o juiz na chamada polícia das audiências, garantindo a ordem e a disciplina que devem ser mantidas na sua realização. Portanto, nas audiências, o juiz deve ter à sua disposição o oficial de justiça, para que este faça o pregão das partes, convoque as testemunhas – garantindo, inclusive, a sua incomunicabilidade –, retire eventualmente da sala pessoas que estejam perturbando a ordem, conduza a pessoa presa em flagrante pelo juiz no curso da audiência à autoridade competente etc. Então, em resumo, além de cumprir as ordens do juiz que devem ser executadas fora da sede do juízo, o oficial de justiça o auxilia na manutenção da ordem durante as audiências. As reformas processuais de 2005/2006, especialmente as efetuadas através das Leis nos 11.232/2005 e 11.382/2006, atribuíram-lhe também a responsabilidade
de efetuar avaliações nas execuções (CPC de 1973, arts. 475-J e 652, § 1º), o que já ocorria em algumas organizações judiciárias e na Lei de Execuções Fiscais (Lei n. 6.830/80, art. 13) e veio a ser incorporado no inciso V do artigo 154 do Código de 2015. Essas as funções principais do oficial de justiça, que estão previstas nos artigos 143 do Código de 1973 e 154 do Código de 2015. Este último Código incumbiuo ainda no inciso VI deste último artigo receber formalmente proposta de autocomposição que lhe apresente qualquer das partes por ocasião da realização de qualquer diligência. Existem outros sujeitos auxiliares da justiça que não são obrigatórios em todos os processos e, portanto, devem ser considerados como auxiliares da justiça eventuais. Alguns deles estão instituídos pela lei de organização judiciária como funcionários públicos ocupantes de cargos efetivos, ou seja, como serventuários da justiça. É o caso, por exemplo, dos contadores judiciais, na comarca da capital do Estado do Rio de Janeiro. Há ainda outros auxiliares eventuais que não ocupam necessariamente cargos públicos da estrutura do Poder Judiciário, dentre os quais o depositário, que pode ser público ou particular, e o intérprete ou tradutor, que, sendo um particular, deverá estar credenciado na Junta Comercial. Assim, de acordo com cada lei de organização judiciária, esses auxiliares poderão ser funcionários públicos, isto é, serventuários da justiça, ou particulares nomeados pelo juiz para exercerem suas funções apenas em determinados processos, mais especificamente naqueles em que se façam necessários os seus serviços. Como consequência da transferência para o Rio de Janeiro da capital da colônia em meados do século XVIII, especificamente em 1763, e a criação, nessa época, do Tribunal da Relação aqui sediado, pode-se dizer que o foro da capital do Estado do Rio de Janeiro é o segundo mais antigo do Brasil, seguindo-se ao da Bahia, e, em razão disso, conserva, até os dias atuais, muitas serventias criadas no tempo em que o nosso país ainda era colônia, serventias essas que não existem em outras comarcas, como, por exemplo, os liquidantes judiciais, que exercem as funções de administrador judicial nas falências, recuperações judiciais e insolvências civis; os tutores e testamenteiros judiciais, que exercem tais funções quando não for possível nomear tutor ou testamenteiro na ordem de preferência legal; os inventariantes judiciais, que atuam nos inventários e
arrolamentos, entre outros. A história dessas serventias não é das mais nobres. Até 1960, quando a capital se transferiu para Brasília, portanto, em plena República, os seus titulares, assim como os dos cartórios extrajudiciais (protestos, registros civis, registros de imóveis, títulos e documentos, tabelionatos de notas), eram livremente nomeados pelo Presidente da República, que aquinhoava os seus amigos e correligionários com essa investidura, havendo registro até de que alguns dos beneficiados a receberam como presente de casamento. A Constituição de 1988 (art. 236 e art. 31 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) estatizou as serventias do foro judicial e privatizou as do foro extrajudicial (tabelionatos, cartórios de registro etc.). Costumo dizer que a Constituição privatizou o filé mignon e estatizou o osso, porque o foro extrajudicial é altamente rentável e a receita decorrente dos serviços públicos que exerce é embolsada pelos titulares de cartório. Enquanto isso, a maioria das serventias judiciais, como as das varas criminais, arrecada muito pouco ou nada para os cofres do Estado, seguramente muito menos do que o seu custo. Muitos e talentosos juízes, procuradores e advogados têm deixado as suas carreiras para assumirem por concurso público a titularidade de cartórios extrajudiciais. Enquanto isso, em algumas justiças estaduais, como a do Rio de Janeiro, nas comarcas do interior, os cartórios judiciais não dispõem de funcionários em número suficiente. A baixa remuneração dos cargos não atrai candidatos aos concursos e em muitas comarcas os serviços cartorários são atendidos precariamente por funcionários emprestados pelas prefeituras municipais, o que é lamentável, pela inevitável contaminação que o judiciário acaba sofrendo do poder político local. 11.3.1. Conciliadores e mediadores judiciais Importante espécie de sujeito auxiliar que ganha relevo no Código de 2015 é a dos conciliadores e mediadores judiciais, objeto específico dos artigos 165 a 175. A Lei n. 9.099/95, que trata dos juizados especiais, já previa nos seus artigos 7º e 22 a condução da conciliação por conciliadores que, se bem-sucedidos na negociação entre as partes, submetiam o acordo à homologação pelo juiz togado.
Seguindo diretriz adotada pelo Conselho Nacional de Justiça na Resolução n. 125/2010, o Código de 2015 determinou que os tribunais criem centros judiciários de solução consensual de conflitos, nos quais serão realizadas sessões e audiências de conciliação e mediação. Quando tiverem sido implantados esses centros, neles estarão cadastrados conciliadores e mediadores, capacitados em cursos ministrados por entidades credenciadas (art. 167, § 1º). Embora possam ter sido submetidos a concurso (art. 167, § 2º), os conciliadores e mediadores poderão ser ou não funcionários públicos (§ 6º), percebendo na hipótese negativa a remuneração prevista no artigo 169. Mesmo sem o credenciamento pelo tribunal ou sem a instalação do centro judiciário de solução conflitos, as partes, de comum acordo, poderão escolher conciliadores, mediadores ou câmaras privadas de conciliação (art. 169). Nas localidades em que não existir um desses centros e desde que as partes não efetuem a livre escolha supramencionada, caberá ao próprio juiz conduzir a conciliação, seja na audiência específica (art. 334), seja na audiência final (art. 359). Os mediadores e conciliadores são sujeitos imparciais do processo, podendo ter arguidos o seu impedimento ou a sua suspeição, nos termos do artigo 148, ou decliná-los de ofício, nos termos do artigo 170. Poderão atuar individualmente ou em grupo (art. 168, § 3º). Observarão no exercício de suas funções os princípios expressos no artigo 166 (independência, imparcialidade, autonomia da vontade, confidencialidade, decisão informada, oralidade e informalidade). O Código de Ética anexo à Resolução n. 125/2010 do CNJ assim define os cinco primeiros: I – a independência como o dever de atuar com liberdade, sem sofrer qualquer pressão interna ou externa; II – a imparcialidade como o dever de agir com ausência de favoritismo, preferência ou preconceito, assegurando que valores e conceitos pessoais não interfiram no resultado do trabalho, compreendendo a realidade dos envolvidos no conflito e jamais aceitando qualquer espécie de favor ou presente;
III – a autonomia da vontade como o dever de respeitar os diferentes pontos de vista dos envolvidos, assegurando-lhes que cheguem a uma decisão voluntária e não coercitiva, com liberdade para tomar as próprias decisões durante ou ao final do processo e de interrompê-lo a qualquer momento; IV – a confidencialidade como o dever de manter sigilo sobre todas as informações obtidas na sessão, salvo autorização expressa das partes, violação à ordem pública ou às leis vigentes, não podendo ser testemunha do caso, nem atuar como advogado dos envolvidos, em qualquer hipótese; V – a decisão informada como o dever de manter o jurisdicionado plenamente informado quanto aos seus direitos e ao contexto fático no qual está inserido. Quanto ao dever de sigilo, o § 2º do artigo 166 do Código de 2015 proíbe o conciliador, o mediador, “assim como os membros de suas equipes”, de divulgar ou depor sobre fatos ou circunstâncias oriundas da conciliação ou da mediação. Esse dever do conciliador e do mediador se assemelha ao sigilo profissional do advogado, não me parecendo corretas as exceções abertas na Resolução do CNJ, que admitem a sua violação nos casos de “violação à ordem pública ou às leis vigentes”. O mediador e o conciliador, antes de serem auxiliares da justiça ou sujeitos auxiliares do processo, são auxiliares das partes, assessorando-as na busca do entendimento. Se qualquer delas puder temer que quaisquer de suas revelações possam lhe acarretar ou acarretar a pessoas de suas relações responsabilidade criminal, certamente não se sentirá segura de pôr as cartas na mesa e de oferecer ao interlocutor as informações necessárias para que ele possa contribuir para um bom acordo. Penso que ao conciliador e ao mediador se aplicam, por analogia, as exceções ao sigilo a que está sujeito o advogado, objeto do artigo 25 do Código de Ética aprovado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, restritas às hipóteses de “grave ameaça ao direito à vida, à honra” ou quando o conciliador ou mediador tiver de usar da informação que obteve no curso do desempenho do seu mister para defender-se de acusação de uma das partes a que prestou assistência. A oralidade significa que na mediação ou conciliação deverá prevalecer o uso da palavra oral, devendo as sessões se realizar com a presença das partes ou seus prepostos para, em diálogo humano com o interlocutor, tentarem encontrar uma solução consensual. As regras procedimentais que as partes estabelecerem (Código de 2015, art. 166, § 4º) poderão abrir exceções a esse princípio. E a
informalidade é uma diretriz no sentido de que no curso da negociação o conciliador e o mediador devem evitar o registro das etapas e sessões intermediárias, limitando-se a sucintas e reservadas anotações, para que do seu resultado, positivo ou negativo, não possam as partes ou terceiros extrair qualquer proveito, a não ser o que resultar do teor expresso do eventual acordo final subscrito pelos interessados. Onde não houver centros de conciliação ou mediação criados pelos tribunais, nem mediadores ou conciliadores escolhidos pelas partes, caberá ao juiz da causa promover a conciliação, observando, na medida do possível, os princípios e regras anteriormente expostos.
11.4. SUJEITOS PROBATÓRIOS Os sujeitos probatórios são terceiros sem interesse direto na causa, mas que vêm prestar colaboração à justiça na apuração e apreciação de fatos relevantes para o seu julgamento. Os principais sujeitos probatórios são as testemunhas e os peritos. A testemunha é a pessoa física capaz, isenta e idônea que presta depoimento oral perante o juiz a respeito de fatos que presenciou ou cujo conhecimento adquiriu através da sua própria percepção sensorial. Então, a testemunha é uma pessoa física que tem de estar dotada destas três qualidades: capacidade, isenção e idoneidade. É, portanto, a pessoa neutra, imparcial, que tomou conhecimento, através da sua própria percepção sensorial, de fatos relevantes para o julgamento da causa, que comparece a juízo para prestar declarações e transmitir ao juiz as informações sobre os fatos, das quais é portadora. Da prova testemunhal tratam os artigos 400 a 419 do Código de 1973 e 442 a 463 do Código de 2015. O outro sujeito probatório imparcial é o perito, que normalmente é uma pessoa física. O Código de 2015 oficializa a atuação como perito de órgão técnico ou científico inscrito em cadastro do tribunal (art. 156), que terá os mesmos deveres e responsabilidades da pessoa física, preenchendo os mesmos requisitos das testemunhas: capacidade, isenção ou imparcialidade e idoneidade. As mesmas hipóteses de suspeição e de impedimento aplicadas ao magistrado
também atingem os peritos, de acordo com os artigos 138, inciso III, do Código de 1973 e 148, inciso III, do Código de 2015. No Código de 1973, o perito ainda necessita preencher mais dois requisitos específicos, a saber: ser portador de conhecimentos científicos, técnicos ou especializados e ser detentor da confiança do juiz. O Código de 2015 introduz um terceiro requisito: estar inscrito em cadastro mantido pelo tribunal ao qual o juiz está vinculado (art. 156, § 1º). O perito elabora laudos e presta depoimentos informativos ou opinativos para apurar ou interpretar os fatos relevantes da causa, quando para esse fim forem necessários os seus conhecimentos. Então, toda vez que na instrução da causa o juiz carecer de conhecimentos técnicos, científicos ou especializados para poder apurar ou avaliar um fato, ele precisa recorrer à prova pericial, nomeando para tanto um perito de sua confiança. Atualmente, temos de distinguir o perito do assistente técnico. Este é o perito de confiança da parte, que acompanha o trabalho do perito designado pelo juiz e elabora parecer sobre aquele, colaborando na elucidação das questões técnicas. Na redação original do Código de 1973, também o assistente técnico tinha de ser um sujeito imparcial, mas a tradição da justiça brasileira demonstrou que o assistente técnico se sente comprometido a apresentar um laudo ou parecer que beneficie, de algum modo, a parte que o designou e que o remunera (CPC de 1973, art. 33; CPC de 2015, art. 95). A partir da Lei n. 8.455/92, o assistente técnico deixou de ser considerado um sujeito isento. Há, então, de um lado, o perito, que é um sujeito imparcial designado pelo juiz e da sua confiança, e, de outro, os assistentes técnicos, facultativamente designados pelas partes. Toda vez que o juiz designa um perito, a parte pode designar assistente técnico, que é uma pessoa física, capaz, idônea, portadora de conhecimentos técnicos, científicos ou especializados e da confiança da parte que o designou (CPC de 1973, art. 421, § 1º; CPC de 2015, art. 465, § 1º). Existem peritos de todas as especialidades técnicas e profissionais. Por exemplo, se o juiz precisa apurar se houve atos lesivos ao patrimônio da sociedade na gestão de um administrador, ele nomeia um perito que seja contador ou auditor; de outra forma, se precisa apurar qual foi o grau de incapacidade da vítima de
um acidente, nomeará um médico para tal função; se precisa apurar qual é o valor locativo de um imóvel numa ação renovatória de locação, ele nomeará um economista ou outra pessoa que tenha conhecimento do mercado imobiliário; por outro lado, se necessita apurar um defeito na construção de um prédio, o juiz deve nomear um engenheiro. Quanto à qualificação profissional, o Código de 1973 estabelece que os peritos serão escolhidos entre profissionais de formação universitária, devidamente inscritos no órgão de classe competente (art. 145, § 1º, do CPC). A lei cria uma presunção legal relativa de que os profissionais diplomados tenham mais conhecimentos dos que os não diplomados, o que, na prática, nem sempre é verdade, pois o mais importante é que o juiz disponha de um auxiliar da sua confiança e que tenha reputação como detentor do conhecimento da sua especialidade. Desse modo, o diploma de nível superior e a inscrição profissional são exigidos pela lei, mas podem até ser dispensados se não concorrerem para a mais segura apuração da verdade. O Código de 2015 não se refere mais à formação universitária, nem ao registro profissional, mas, no final das contas, cai numa imprecisa exigência formal, a de que o perito seja um profissional “legalmente habilitado” (art. 156, § 1º), propiciadora de equívocos. São as leis que regulamentam as profissões, muitas vezes complementadas por resoluções dos respectivos conselhos de fiscalização do exercício profissional que estabelecem que determinados trabalhos técnicos ou especializados sejam de execução privativa de profissionais neles inscritos, com esta ou aquela formação ou especialização. A habilitação legal pode ser um indício da capacidade técnica do perito, mas esta pode existir sem aquela e o que mais interessa à justiça é que o perito tenha os conhecimentos necessários e não que esteja legalmente habilitado. Por outro lado, há profissões que disputam entre si a habilitação legal para certos trabalhos técnicos e a lei processual não pode oferecer um argumento para uma possível arguição de nulidade de um laudo pericial porque o perito não estava legalmente interessado. O processo não é um fim em si mesmo, nem consagra formalismos inúteis. Na aferição da capacidade técnica do experto para a sua nomeação como perito, deverá o juiz levar em conta a sua habilitação legal, o que contribui para demonstrá-la, mas não se poderá cogitar de nulidade da perícia por falta de habilitação legal do perito, mas sim por falta de comprovação de ser ele portador dos conhecimentos específicos necessários.
A prova pericial, incluindo a atuação dos peritos e dos assistentes técnicos, está regulada nos artigos 420 a 439 do Código de 1973 e nos artigos 464 a 480 do Código de 2015.
11.5. OUTROS SUJEITOS POSTULANTES Há três tipos de outros sujeitos postulantes, além das próprias partes: os terceiros intervenientes, o Ministério Público e o advogado. 11.5.1. Terceiros intervenientes Os terceiros intervenientes ingressam e atuam no processo, por iniciativa própria ou pelo chamamento de uma das partes ou do juiz, para postular e defender interesses próprios ou de uma das partes, ou para colaborar desinteressadamente com o juiz, através das diversas modalidades de intervenção de terceiros. As modalidades geralmente aceitas de intervenção de terceiros são a assistência (CPC de 1973, arts. 50 a 55; CPC de 2015, arts. 119 a 123), a nomeação à autoria (CPC de 1973, arts. 62 a 69), que não subsiste no Código de 2015, a oposição (CPC de 1973, arts. 56 a 61; CPC de 2015, arts. 682 a 686), a denunciação da lide (CPC de 1973, arts. 70 a 76; CPC de 2015, arts. 125 a 129), o chamamento ao processo (CPC de 1973, arts. 77 a 80; CPC de 2015, arts. 130 a 132), o recurso de terceiro prejudicado (CPC de 1973, art. 499, § 1º; CPC de 2015, art. 996, parágrafo único) e os embargos de terceiro (CPC de 1973, arts. 1.046 a 1.054; CPC de 2015, arts. 674 a 681). Algumas dessas modalidades de intervenção caracterizam a verdadeira proposição de ações incidentes, como a oposição, a denunciação da lide e o chamamento ao processo, gerando cumulação de ações no mesmo processo. Outras são meros incidentes processuais que não alteram os limites subjetivos e objetivos da demanda preexistente, como a assistência simples e o recurso de terceiro prejudicado. Em leis recentes, surgiu uma nova modalidade de intervenção, que é a do que se tem convencionado chamar de amicus curiae. Originária do direito norteamericano, em que se apresenta como um auxiliar desinteressado, essa figura surgiu na Lei que disciplinou as ações direta de inconstitucionalidade e
declaratória de constitucionalidade (Lei n. 9.868/99, art. 7º, § 2º) e foi adotada mais posteriormente na disciplina da repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal (CPC de 1973, art. 543-A, § 6º, acrescentado pela Lei n. 11.418/2006) e da súmula vinculante (Lei n. 11.417/2006, art. 3º, § 2º), abrangendo sujeitos com interesse na causa e sujeitos desinteressados. O Código de 2015, no § 4º do artigo 1.035, reproduziu o § 6º do artigo 543-A do Código de 1973 e no artigo 138, na parte geral, instituiu-o como uma nova espécie de intervenção de terceiros, que pode surgir em qualquer processo. Cumpre observar que essas diversas modalidades, assim como as suas características, serão mais detalhadamente analisadas no capítulo XXI desta obra. Por ora, resumidamente, cabe esclarecer que os terceiros intervenientes são todos os sujeitos que intervêm no processo para apresentar requerimentos, alegações e opiniões em seu próprio benefício, em benefício de uma das partes ou para colaborar com a boa administração da justiça, desde que não sejam as partes originárias, os sujeitos probatórios ou os sujeitos auxiliares da justiça. 11.5.2. Ministério Público O artigo 127 da Constituição define o Ministério Público como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado”, conferindo-lhe “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. O Ministério Público tem origem na França, no século XIV, e tornou-se, na maioria dos Estados democráticos ocidentais, o órgão estatal encarregado de promover a ação penal pública. Entretanto, na Europa e na América Latina, ao Ministério Público foram atribuídas funções que extrapolam o âmbito do processo penal. No Brasil, após o Código de 1973, a atuação do Ministério Público no processo civil foi bastante intensificada, especialmente com a criação das ações coletivas pela Lei n. 7.347/85, pelo Código do Consumidor e por outros diplomas específicos, e das ações de improbidade pela Lei n. 8.429/92. Como sujeito processual, o Ministério Público intervém em inúmeras causas, ora como parte (CPC de 1973, art. 81; CPC de 2015, art. 177), ora como fiscal da lei ou fiscal da ordem jurídica (CPC de 1973, art. 82; CPC de 2015, art. 178).
Daí dizer que o Ministério Público pode atuar como órgão agente ou como órgão interveniente. Ele atua como órgão agente quando ocupa no processo a posição de autor ou réu, seja na condição de parte principal ou de substituto processual, e como órgão interveniente nos demais casos. Contudo, em algumas ações, o Ministério Público atua como legitimado ordinário, porque age em nome próprio na busca da tutela do interesse geral da coletividade. É o que ocorre, por exemplo, nas ações diretas de inconstitucionalidade propostas pelo procurador-geral da República (art. 103 da Constituição Federal), embora não seja ele o único órgão ou sujeito com legitimidade para propô-la. Os casos em que o Ministério Público exercerá o direito de ação na jurisdição civil estão previstos em leis diversas, como o Código Civil (arts. 69 e 1.549), o Código de Processo Civil (CPC de 1973, art. 1.178; CPC de 2015, art. 748), leis especiais como a relativa à improbidade administrativa (Lei n. 8.429/92, art. 17) e leis orgânicas federais da própria instituição, como a Lei Complementar n. 75/93, que dispõe sobre o Ministério Público da União, e, em seu artigo 6º, enumera as ações cuja promoção lhe compete. Uma das mais relevantes e frequentes áreas de atuação do Ministério Público como órgão agente é a titularidade que a própria Constituição e inúmeras leis lhe conferem de propor a ação civil pública para a tutela de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, sendo de destacar-se a sua atuação em defesa do meio ambiente, do patrimônio histórico, artístico e cultural e dos interesses do consumidor (Constituição, art. 129, inc. III; Lei n. 7.347/85, art. 5º, inc. I; e Lei n. 8.078/90, art. 82, inc. I)3. Os artigos 1.104 do Código de 1973 e 720 do Código de 2015 conferem iniciativa ao Ministério Público para instaurar procedimentos de jurisdição voluntária. Isso não significa que o Ministério Público possa dar início a qualquer procedimento não contencioso. As funções institucionais do Ministério Público estão delineadas nos artigos 127 e 129 da Carta Magna e em legislação infraconstitucional (Lei Complementar n. 75/93 e Lei n. 8.625/93), destacandose em matéria civil a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais indisponíveis, a promoção do respeito pelos Poderes Públicos e pelos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição e a defesa dos direitos e interesses das populações indígenas.
Nos limites necessários ao exercício dessas funções, o Ministério Público tem legitimidade para propor qualquer ação, como, aliás, preconiza o artigo 177 do Código de 2015. Entretanto, essa delimitação funcional é muito ampla e imprecisa, pois poderia admitir que a simples invocação de um desses fundamentos conferisse ao órgão do Ministério Público o poder de se autolegitimar em qualquer caso. Parece-me que, se a lei não for explícita, essa legitimidade deve ser reconhecida quando houver indícios de que a sua iniciativa atende à necessidade de cumprimento de uma das suas funções institucionais estabelecidas na Constituição, sob pena de se recusar a eficácia concreta da própria Constituição. Também me parece inquestionável a legitimidade do Ministério Público para a propositura em juízo de procedimentos preparatórios, incidentes ou acessórios da sua atuação nos casos previstos em lei, como produções antecipadas de prova, notificações, interpelações e justificações, desde que instrumentalmente predispostas a preparar ou instruir o exercício das suas funções institucionais, ações civis públicas ou ações de improbidade ou outras de sua iniciativa e até processos em que atue apenas como fiscal da lei (CPC de 1973, art. 83, inc. II; CPC de 2015, art. 179, inc. II). Há previsões expressas em alguns desses procedimentos, como no conflito de competência (CPC de 1973, art. 116; CPC de 2015, art. 951) e no incidente de resolução de demandas repetitivas criado no Código de 2015 (art. 976, § 2º). A defesa da ordem jurídica, que o artigo 127 da Constituição define como uma das missões do Ministério Público, justifica que a lei processual lhe conceda a iniciativa processual em muitos outros casos, que, a par da legislação extravagante, o Código de 2015 procura restringir a hipóteses como as dos artigos 33, 616, inciso VII, 761, 765, 778, inciso I, 967, inciso III, e 988. Além disso, como já ventilamos, o Ministério Público, no âmbito do processo civil, também atua de forma obrigatória como sujeito interveniente numa série de causas. É a intervenção como fiscal da lei, custos legis ou fiscal da ordem jurídica, na linguagem adotada no Código de 2015. Nessas ações, o promotor postula e opina livremente, de acordo com a sua consciência, sem estar, assim, obrigado a defender qualquer dos interesses específicos das partes. Os artigos 82 do Código de 1973 e 178 do Código de 2015, de modo não exaustivo, estabelecem que o Ministério Público intervenha como fiscal da lei, entre outras causas, naquelas em que haja interesses de incapazes. Todavia, considero um erro pensar que, nessas causas, a intervenção do Ministério
Público se dê para defender o incapaz, pois este não é representado por aquele, mas pelo seu representante legal. Em realidade, o Ministério Público atua nesses processos para garantir a sua conformidade à lei, a fim de que não haja nenhum prejuízo ou nenhuma violação a interesses do incapaz, legalmente tutelados. Age dessa forma porque a relevância dos interesses em jogo e a suposta desvantagem que atinge o incapaz na defesa dos seus próprios direitos justificam a presença no processo, ao lado do juiz, de outro órgão estatal, também dotado de inúmeras garantias. Contudo, ele pode opinar livremente a favor ou contra o incapaz; pode recorrer tanto da decisão que julgou a causa favoravelmente quanto desfavoravelmente ao incapaz. No artigo 82, inciso II, o Código de 1973, ainda inclui outras causas de direito de família e relativas à sucessão testamentária, hipóteses não reproduzidas no artigo 178 do Código de 2015. Quanto às primeiras, na vigência do Código de 2015, somente exigirão a intervenção do Ministério Público se estiver prevista em algum outro dispositivo legal. Aliás, o artigo 698, referindo-se aos processos contenciosos de divórcio, separação, reconhecimento e extinção de união estável, guarda, visitação e filiação, a prevê quando houver interesse de incapaz. No § 1º do artigo 734, o Código a contempla no pedido de alteração do regime de bens do casamento. Quanto às causas relativas à sucessão testamentária, há previsão na abertura do testamento cerrado e na confirmação do testamento particular (arts. 735, § 2º, e 737, § 2º). Na jurisdição voluntária, o Código de 2015 ainda prevê essa intervenção na arrecadação da herança jacente (art. 740, § 6º), nas ações de interesse dessa herança (art. 739, § 1º, inciso I), no levantamento da declaração de ausência (art. 745, § 4º) e na interdição não requerida pelo próprio Ministério Público (art. 752, § 1º). No artigo 82, inciso III, do Código de 1973 ainda está prevista a intervenção do Ministério Público nos litígios coletivos sobre a posse de terra rural, que o artigo 178, inciso III, do Código de 2015 estendeu às terras urbanas. É o interesse social envolvido (Constituição, art. 127), que justifica essa intervenção, assim como em quaisquer outras causas em que também estejam em jogo interesses sociais relevantes (Código de 2015, art. 178, inc. I), porque nesse sentido deve ser interpretada a expressão interesse público utilizada no inciso III do artigo 82 do Código de 1973. As expressões interesse público e interesse social nesse caso utilizadas pelo legislador são muito vagas e imprecisas, podendo ensejar a intervenção
ministerial sempre que o promotor considerar que há algum interesse geral da coletividade que possa ser afetado por aquela decisão, como, por exemplo, se entendeu a intervenção nas ações de indenização por acidentes do trabalho, em curso nas justiças estaduais, até o advento da Emenda Constitucional n. 45/20044. Outros casos de atuação como órgão interveniente constantes do Código de 2015 se encontram nos artigos 626, 948, 976, § 2º, 982, inciso III, e 991. Há também casos de intervenção obrigatória do Ministério Público previstos na legislação extravagante. Por exemplo: é obrigatória a intervenção do Ministério Público nos mandados de segurança (art. 12 da Lei n. 12.016/2009), nas ações populares (art. 7º, I, a, da Lei n. 4.717/65) e nas ações civis públicas (art. 5º, § 1º, da Lei n. 7.347/85)5. O Ministério Público, no âmbito da jurisdição civil, é, essencialmente, um instrumento da tutela de interesses sociais, ou seja, de interesses gerais da coletividade e não daqueles do próprio Estado. Portanto, apesar de ser uma instituição pública – hoje bastante independente em relação ao Poder Executivo –, que atua, primordialmente, perante o Poder Judiciário, sua missão se distancia totalmente da defesa dos interesses das pessoas jurídicas de direito público (Constituição, art. 129, inc. IX; Código de 2015, art. 178, parágrafo único). Entretanto, tem sido frequente a abstenção de membros do Ministério Público de intervirem como fiscais da lei (custos legis), apesar da previsão legal, como, por exemplo, em mandados de segurança, sob a alegação de que o inciso IX do artigo 129 da Carta Magna permite que lhe atribua outras funções, “desde que compatíveis com sua finalidade”. A meu ver, é absolutamente incorreta essa atitude. Conforme já acentuei, inclui-se entre as finalidades do Ministério Público, nos termos do artigo 127, caput, da Constituição, a defesa da ordem jurídica. Essa se apresenta sempre ameaçada pelas relações de dominação existentes entre pessoas e grupos da própria sociedade e pelos abusos e desvios de poder das autoridades públicas. A identificação pelo legislador dessas situações, como, por exemplo, nas causas de interesse de incapazes ou no mandado de segurança, é inteiramente fundada e razoável, não cabendo aos membros do Ministério Público omitir-se, calcados em juízos contrários aos do legislador em casos concretos. Se a lei, que exige a
intervenção do Ministério Público, não é razoável, deve deixar de ser aplicada, por incompatível com a Constituição. Por outro lado, não me satisfaz uma hermenêutica constitucional, que reduza as finalidades do Ministério Público apenas àquilo que a Constituição expressamente prevê. A Constituição não criou o Ministério Público, apenas erigiu em nível constitucional os princípios e as normas de regência dessa instituição que considerou mais relevantes e às quais quis conferir maior estabilidade. Até o costume confere atribuições ao Ministério Público. Nos tribunais superiores, em que o procurador-geral tem assento, é costumeiro, constando ou não dos seus regimentos internos, que o tribunal pode sempre pedir ao procurador-geral que opine sobre qualquer causa pendente, ainda que não seja uma daquelas em que é obrigatória a intervenção do Ministério Público, e me parece de grande interesse para a defesa da ordem jurídica que o procurador-geral preste essa colaboração à boa administração da justiça. O Conselho Nacional do Ministério Público, criado pela Emenda Constitucional n. 45/2004 como órgão de controle administrativo e financeiro da instituição, editou em abril de 2010 a esdrúxula Recomendação n. 16 que, dispondo sobre a atuação dos membros do Ministério Público como interveniente no processo civil, dispensou a sua intervenção em inúmeras causas em que ela é imposta por lei, como nas habilitações de casamento (Código Civil, art. 1.526), nos mandados de segurança (Lei n. 12.016/2009, art. 12, parágrafo único), e em outras causas em que o Código de Processo Civil de 1973 a exigia, como as ações de divórcio e de separação (art. 82, inc. II), e o Código de 2015 a dispensou. Espero que os membros do Ministério Público, fiéis à sua missão de defesa da ordem jurídica, não hesitem em aplicar a lei, que se sobrepõe à infeliz recomendação. Nas causas em que atua como fiscal da lei, o Ministério Público é sempre ouvido depois das partes (CPC de 1973, art. 83, inc. I; CPC de 2015, art. 179, inc. I) e, portanto, é o último a opinar antes de o juiz proferir as suas decisões. Essa regra deve ser interpretada e aplicada em harmonia com a garantia constitucional do contraditório (Constituição, art. 5º, inc., LV). É inegável que um dos sujeitos do processo deva ser o último a falar, se não o processo não terá fim. No entanto, também é indiscutível que qualquer das partes deve ter a oportunidade de se manifestar sobre os novos argumentos e questões suscitados que possam vir a ser apreciados ou a influenciar a subsequente decisão judicial. Assim, em consonância com o disposto no artigo 10 do Código de 2015, se o opinamento do Ministério Público contiver algum novo fundamento, ainda não debatido
pelas partes, deverá o juiz ouvi-las antes da sua decisão. E, mesmo que não o tenha, devem as partes ter a possibilidade de acesso ao parecer do Ministério Público antes da elaboração da decisão para, eventualmente, se for o caso, dirigirem ao juiz algum esclarecimento sobre ponto, que pode não constituir um novo fundamento no sentido de arguição de uma nova questão de direito, mas que pode versar sobre algum aspecto do conteúdo do processo, como a interpretação a ser dada ao depoimento de uma testemunha, que pode colher as partes de surpresa, por não ter sido objeto do debate. Como fiscal da lei, o Ministério Público pode formular alegações, interpor recursos e arguir todas as matérias de direito, processuais e de mérito, que o juiz possa conhecer de ofício e que não se encontrem na esfera de livre disponibilidade das partes. O Ministério Público possui, atualmente, duas funções tipicamente extrajudiciais. A primeira é a curadoria das fundações, que está regulada nos artigos 1.199 a 1.204 do Código de 1973 e nos artigos 764 e 765 do Código de 2015, assim como no artigo 66 do novo Código Civil. A outra atividade extrajudicial exercida pelo Ministério Público é a tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, através da instauração do chamado inquérito civil, previsto no artigo 8º, § 1º, da Lei n. 7.347/85. No âmbito dos inquéritos civis, pode o membro do Ministério Público celebrar termos ou compromissos de ajustamento de conduta, que são confissões de dívida ou transações que visam a promover a proteção ou a reparação das violações a interesses coletivos, tornando desnecessária, quando cumprido integralmente o compromisso, a provocação do Poder Judiciário. Os artigos 585 do Código de 1973 e 784 do Código de 2015, que enumeram os títulos executivos extrajudiciais, aludem indiretamente a esses termos de ajustamento de conduta (TACs) ao se referirem ao “documento público assinado pelo devedor” e ao “instrumento de transação referendado pelo Ministério Público”. Junto a cada órgão do Poder Judiciário atuam um ou mais membros do Ministério Público. Sob a égide da atual Constituição existem, em resumo, o Ministério Público da União e também um Ministério Público em cada Estado da Federação, que são instituições inteiramente independentes entre si, embora
sujeitas, a partir da edição da Emenda Constitucional n. 45/2004, ao controle de um colegiado de âmbito nacional, que é o Conselho Nacional do Ministério Público, previsto no artigo 130-A da Constituição. O Ministério Público da União é chefiado pelo procurador-geral da República – que também chefia o Ministério Público Federal – e compõe-se do Ministério Público do Trabalho, que atua junto à Justiça do Trabalho; do Ministério Público Militar, que atua junto aos órgãos da Justiça Militar; do Ministério Público do Distrito Federal, que atua na justiça do Distrito Federal; e do Ministério Público Federal, que atua, basicamente, junto à Justiça Federal. Na Justiça Eleitoral, compõem o Ministério Público Eleitoral membros do Ministério Público Federal e dos Ministérios Públicos estaduais. A Constituição de 1988 conferiu aos membros do Ministério Público praticamente as mesmas garantias constitucionais da magistratura, quais sejam, a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos, de acordo com seu o artigo 128, § 5º. Nesse sentido, aos membros do Ministério Público aplicam-se também quase todas as proibições referentes à magistratura, como, por exemplo, a vedação ao exercício da advocacia (art. 128, inc. II, alínea b, da Constituição). Essas garantias têm como objetivo conferir aos membros do Ministério Público a necessária independência, a fim de que atuem de acordo com a lei e a sua consciência, o que inibe qualquer sanção disciplinar em razão do conteúdo das suas opiniões ou manifestações. O Ministério Público, tanto quando atua como parte quanto como fiscal da lei, é sujeito imparcial do processo, sujeito aos mesmos impedimentos e motivos de suspeição do juiz. Nesse aspecto, o Código de 1973 faz uma distinção descabida entre os casos em que é parte e aqueles em que atua como fiscal da lei (art. 138, inc. I). Pouco importa. Como fiscal da lei, a imparcialidade se refere à sua isenção como órgão e como funcionário, no sentido de que não deve ter qualquer vínculo com as partes ou com os interesses em conflito. Como parte, a isenção se refere ao funcionário que desempenha a função do órgão do Ministério Público, que igualmente não deve ter qualquer vínculo que comprometa a impessoalidade da sua atuação. Em qualquer caso, deverá atuar de boa-fé e observar os deveres de lealdade a que se referem os artigos 14, 15 e 17 do CPC de 1973 e 77, 78 e 80 do Código de 2015, sob pena de responsabilidade processual.
Como o juiz, o membro do Ministério Público está sujeito à responsabilidade disciplinar, criminal e civil. A primeira, perante os órgãos próprios da sua instituição, a segunda se incorrer em alguma das condutas definidas pela lei penal como crimes e a terceira, que o Código de Processo Civil limita às condutas ilícitas dolosas (CPC de 1973, art. 85; CPC de 2015, art. 181). Neste último caso, o Código de 2015 explicita que essa responsabilidade é regressiva, o que protege o membro do Ministério Público de pressões, mas em contrapartida desestimula os eventualmente lesados que têm de reclamar indenização ao Estado. É curioso, e de certo modo injusto, que a lei isente de responsabilidade culposa o membro do Ministério Público nas suas omissões ou no retardamento da sua atuação, enquanto o juiz é considerado responsável nesses casos (art. 181). 11.5.3. O advogado A advocacia é função essencial e indispensável à administração da Justiça, conforme estabelece o artigo 133 da Constituição, e o seu exercício é privativo dos advogados regularmente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (Lei n. 8.906/94, art. 4º). O advogado não é um sujeito autônomo do processo, mas um sujeito que intervém como auxiliar de uma das partes ou de outro sujeito postulante, para exercer o seu patrocínio ou representação judicial. Em função disso, o nosso sistema processual adota o princípio do patrocínio obrigatório, segundo o qual ninguém pode postular ou defender-se em juízo a não ser através de um advogado (CPC de 1973. art. 36; CPC de 2015, art. 103). O advogado é, portanto, um sujeito auxiliar, mas que possui deveres e direitos próprios. Ele não pratica atos no processo em seu próprio nome, mas em nome da parte ou sujeito que representa, na qualidade de seu mandatário. Daí a necessidade da outorga de um mandato expresso, instrumentalizado por meio da procuração (CPC de 1973, art. 37; CPC de 2015, art. 104). Embora seja lícito, não é conveniente que o advogado postule em causa própria. Isso porque o advogado, ao atuar em defesa do seu próprio interesse, pode não avaliar as circunstâncias do caso com a necessária razoabilidade ou cautela, sendo levado, muitas vezes, pela emoção e pelos sentimentos pessoais.
Como sujeito auxiliar da parte, o advogado a representa em todos os atos do processo, salvo nos atos personalíssimos, os quais somente a própria parte poderá praticar. Por exemplo, o ato de prestar depoimento pessoal ou o de ser submetido a uma perícia médica são personalíssimos, vale dizer, pela sua própria essência, somente podem ser praticados pela própria parte. O advogado tem o dever de fidelidade à parte que representa (Lei n. 8.906/94, art. 34, incs. VIII, IX, XI, XV, XIX, XX e XXI), uma vez que pratica todos os atos em nome desta. Contudo, o advogado tem o dever de ser fiel não só ao seu cliente, mas também à própria justiça, e, sob esse aspecto, ele também tem deveres próprios (mesma Lei, art. 34, incs. VI, XIV e XVII; CPC de 1973; CPC de 2015, art. 77). O advogado, por exemplo, não pode mentir. É uma ideia falsa aquela de que o advogado pode mentir. Essa conduta somente é admitida no processo criminal, em que o advogado pode usar de todos os meios para defender a liberdade do réu, mas não no processo civil, em que o patrono da parte tem o dever de veracidade, conforme previsão expressa na lei (CPC de 1973, art. 14, inc. I; CPC de 2015, art. 77, inc. I). O advogado também não pode postular direito que ele sabe não existir. Assim, o advogado que aceita a causa sabendo que o cliente não tem razão, com o único intuito de retardar o acesso ao direito por parte do seu adversário, está prestando um desserviço à justiça (CPC de 1973, art. 14, inc. III; CPC de 2015, art. 77, inc. II). Ele tem de agir de boa-fé (CPC de 1973, art. 14, inc. II; CPC de 2015, art. 5º), como todos os demais sujeitos do processo. Na verdade, o advogado não precisa estar convencido de que a defesa procede, mas ele deve ter ao menos a esperança de que ela proceda e acreditar na possibilidade de demonstrá-lo. Às vezes, o cliente relata ao seu patrono uma determinada versão dos fatos, cuja veracidade não cabe ao advogado apurar, sempre que não haja nenhuma razão para que este desconfie daquele. Importante observar que, ao contrário do que possa parecer aos iniciantes na ciência do Direito, entre o juiz e os advogados não há qualquer hierarquia, consoante o artigo 6º da Lei n. 8.906/94 – Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil. Assim sendo, os seus atos e manifestações são invioláveis, nos limites da lei (art. 133 da Constituição e art. 2º, § 3º, do Estatuto da
Advocacia). A punição disciplinar do advogado, inclusive pela violação de deveres processuais, compete ao órgão de classe a que está submetido, que, no sistema brasileiro, é a Ordem dos Advogados do Brasil. Então, se o juiz entender que o advogado violou seus deveres, deve extrair peças e encaminhar à Ordem dos Advogados, que instaurará o procedimento disciplinar cabível, do qual poderá resultar sanção prevista no Estatuto. Por outro lado, os advogados também têm direitos, dentre os quais, o de serem tratados pelos juízes com urbanidade, além de todos aqueles direitos previstos nos artigos 6º e 7º do Estatuto dos Advogados. O artigo 7º do Estatuto mencionado possui vinte incisos, sendo que vários deles se referem às prerrogativas processuais dos advogados, por exemplo, o direito de pedir vista e examinar qualquer processo fora de cartório; o direito de se recusar a depor sobre fatos dos quais tomou conhecimento no exercício profissional; o direito de ingressar livremente nas salas de sessões dos tribunais e nos gabinetes, independentemente de hora marcada; o direito de proferir sustentação oral no processo em que exercer o patrocínio da parte; o direito aos honorários da sucumbência. A Lei n. 11.767/2008 reconheceu também aos advogados a inviolabilidade dos seus escritórios. A procuração deve ser escrita e é o instrumento do mandato que a parte confere ao advogado. Para tanto precisa ser juntada ao processo logo no primeiro ato por este praticado. Entretanto, em casos de urgência, o advogado pode postular sem apresentar a procuração, hipóteses em que ele terá de juntá-la em quinze dias, sob pena de nulidade absoluta dos atos que tiver praticado (CPC de 1973, art. 37; CPC de 2015, art. 104). O Código de 1973, no parágrafo único do artigo 37, que chega a considerar esse defeito, com certo exagero, como caso de inexistência, para acentuar a sua gravidade. Mais preciso, o Código de 2015 (art. 104, § 2º) denomina-o de ineficácia que, a meu ver, resulta da sua nulidade absoluta por falta do pressuposto processual da capacidade postulatória. Vale ressaltar que a procuração com poderes gerais de representação habilita o advogado a praticar todos os atos, com exceção daqueles que dependem de poderes expressos e que estão listados na parte final do artigo 38 do Código de 1973 e do artigo 105 do Código de 2015. Além da citação, são os chamados atos
de disposição, que serão objeto de estudo no capítulo seguinte deste livro, e que carecem de poderes especiais para serem praticados pelo advogado, não bastando a outorga de poderes gerais para o foro. A regra do Código de 2015 também exige poderes especiais para a declaração de hipossuficiência econômica. Há duas espécies de advocacia judicial que possuem regimes especiais, embora basicamente sujeitas à mesma disciplina que acabo de expor: a Defensoria Pública e a advocacia das pessoas jurídicas de Direito Público. Ambas estão previstas na Constituição: a primeira, no artigo 134; e a segunda nos artigos 131 e 132. Da Defensoria Pública trataremos ainda neste volume em capítulo específico sobre a assistência judiciária (capítulo XIX). Da Advocacia Pública não teremos oportunidade de tratar especificamente. A União, os Estados e muitos Municípios têm leis especiais que as regulam. O Direito Processual deve estar atento ao regime funcional desses advogados, aos quais dispensa de exibir procuração (CPC de 1973, art. 12; CPC de 2015, art. 75). Até o advento do Código de 2015, alguns têm direito à intimação pessoal, como os advogados da União (Lei Complementar n. 73/93, art. 38) e os demais representantes da Fazenda Pública nas execuções fiscais (Lei n. 6.830/80, art. 25). A partir desse Código, todos passam a ter direito a prazos em dobro e a intimações pessoais (arts. 183 e 186). O seu poder de praticar atos de disposição dependerá do seu regime administrativo. Advogados públicos, privados ou defensores públicos que atuem no processo judicial estão sujeitos a responsabilidade criminal e civil por atos que possam lhes ser pessoalmente atribuídos. De acordo com os artigos 184 e 187 do Código de 2015, a responsabilidade civil dos advogados públicos e defensores públicos é regressiva, ou seja, à vítima cabe acionar o Estado, competindo a este decidir se se volta contra o advogado ou defensor para se ressarcir do que tiver de desembolsar para indenizar a vítima. Vale aqui a mesma observação que fiz anteriormente em relação aos membros do Ministério Público, quanto à sua irresponsabilidade culposa nas omissões e retardamentos. ________ 1 DE STEFANO, Giuseppe. Onere (dir. proc. civ.). In: Enciclopedia del diritto.
Milano: Giuffrè, 1980. v. XXX. p. 114.
2 BOURSIER, Marie-Emma. Le principe de loyauté en droit processuel. Paris:
Dalloz, 2003. p. 21, 90 e 344. 3 Ver CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. O Ministério Público… p. 27-28. 4 O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Conflito de Competência n.
7.204, de que foi relator o Min. Carlos Ayres de Britto, definiu a competência da Justiça do Trabalho para essas ações, a partir da Emenda n. 45/2004 (DJU, 09.12.2005). 5 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. O Ministério Público… p. 28-31.
O estudo dos atos processuais examina o processo do seu ponto de vista objetivo. Insta relembrar que os atos processuais são atos jurídicos, que exprimem manifestações de vontade ou de conhecimento, praticados pelos diversos sujeitos processuais (principais ou secundários), através dos quais se forma, se desenvolve e se extingue o processo. Apesar de o Código Civil de 2002 ter relegado a segundo plano a disciplina do ato jurídico, transferindo para os negócios jurídicos quase toda a regulamentação legal anterior daqueles (arts. 82 e seguintes do Código de 1916; arts. 104 e seguintes do Código de 2002), considero conveniente continuar tratando dos atos processuais, sem cogitar à parte dos que possam ser capitulados como negócios jurídicos processuais, não só pela controvérsia que grassa a respeito da possibilidade de existência destes, mas também porque a questão de maior ou menor autonomia das partes na definição do seu conteúdo e da sua eficácia é matéria complexa, que não comporta solução no nível elementar destas lições. Tenho de reconhecer, entretanto, que o advento do Código de 2015 vai reacender a discussão em torno da existência e do alcance dos negócios jurídicos processuais, em razão de novos institutos que ampliaram a esfera de autonomia das partes, como as convenções sobre procedimento (art. 190), a delimitação consensual pelas partes das questões de fato e de direito por ocasião do saneamento do processo (art. 357, § 2º) e a escolha consensual do perito (art. 471). Também sob o ponto de vista objetivo, integram o processo fatos jurídicos stricto sensu, que são acontecimentos da vida real, que produzem efeitos no processo, sem que consistam em manifestações de conhecimento ou de vontade. Assim, por exemplo, são fatos jurídicos o não comparecimento da parte ou do advogado à audiência de instrução e julgamento (CPC de 1973, arts. 343, § 2°, e 453, § 2º; CPC de 2015, arts. 385, § 1º, e 362, § 2º), a morte da parte ou do seu procurador (CPC de 1973, art. 265, inc. I e § 1º; CPC de 2015, art. 313, inc. I e § 1º). Esses fatos não merecem, a meu ver, um estudo específico porque, em qualquer caso, vão sempre determinar ou influenciar o conteúdo e a eficácia de atos de um ou mais sujeitos do processo.
12.1. A TEORIA DOS ATOS PROCESSUAIS E A TEORIA
GERAL DOS ATOS JURÍDICOS Os atos processuais são atos jurídicos e assim têm sido tratados pela Teoria Geral do Processo. Ocorre que essa é uma teoria muito nova, concebida há cerca de 150 anos, enquanto a teoria dos atos jurídicos foi construída há 2.000 anos, desde o direito romano. Até o reconhecimento da sua autonomia, o direito de ação – exercido através do processo – era considerado mero complemento do direito material. Por isso, a teoria dos atos processuais herdou as categorias oriundas do direito privado, que, no entanto, não são totalmente apropriadas às peculiaridades do processo como relação jurídica que está sempre em constante mutação e cujos atos têm uma unidade de finalidade. Devido a essa impropriedade, em minha opinião, a teoria dos atos processuais é um dos temas mais difíceis de ser abordado no estudo do processo. Embora os atos processuais sejam praticados aos milhares todos os dias, visto que compõem o próprio conteúdo do processo, a seu respeito ainda não se construiu, até os dias atuais, uma teoria satisfatória. O único autor que tentou sistematizar a teoria dos atos processuais foi Francesco Carnelutti, ao escrever um volume de quase setecentas páginas somente sobre o tema. A obra desse jurista, apesar de gigantesca, magistral, não exaure toda a complexidade da teoria dos atos processuais1. 12.1.1. Características dos atos processuais Os atos processuais têm características próprias, que os distinguem dos atos jurídicos em geral. A primeira delas é a sua unidade de finalidade ou unidade teleológica: os atos praticados por todos os sujeitos do processo, ainda que com intenções ou em posições diferentes, contribuem para um único fim, que é o exercício da jurisdição. A segunda característica distintiva dos atos processuais é a sua interdependência: nenhum ato praticado no processo é um ato isolado e, por isso, não pode ser interpretado ou analisado ignorando-se o conteúdo dos demais atos, porque todo ato praticado no processo vai influenciar os atos subsequentes, da mesma forma
que é influenciado por aqueles que o antecederam. Há outra grande dificuldade para se aplicar a teoria dos atos ou dos negócios jurídicos do direito civil aos atos processuais: no processo atuam, sucessiva ou simultaneamente, sujeitos públicos e privados. O próprio Estado atua através de diversos sujeitos em posições diferentes, que exercem funções diferentes. O juiz, o escrivão, o oficial de justiça e o Ministério Público, por exemplo, possuem funções distintas no processo. Assim, os atos praticados pelos sujeitos públicos são regidos preponderantemente pelo direito público; estão muito mais próximos do direito administrativo do que do direito civil. Quanto aos atos dos sujeitos privados, das partes, a situação desdobra-se em duas: se as partes são sujeitos privados que litigam sobre um direito privado, os seus atos têm grande similitude com os atos da vida privada, regidos pelo direito privado, aos quais pode se aplicar em grande parte a teoria dos atos ou negócios jurídicos do direito civil. Contudo, também existem partes que são órgãos do Estado, presentes nas causas em que este figura como autor ou como réu. Nesses casos, os seus atos serão submetidos ao regime do direito civil ou do direito público? Essa é uma incerteza teórica que não foi até hoje equacionada no Brasil. Tenho dedicado alguns estudos ao que está começando a ser chamado de Direito Processual Público, que é o direito processual das causas do Estado2. Nos países em que há dualidade de jurisdição, como a França, Portugal e a Itália, essa questão foi mais bem solucionada, pois existe um regime processual para as causas de interesse do Estado, que em geral correm perante o contencioso administrativo ou a justiça administrativa, e outro para as causas entre particulares, que tramitam perante a justiça comum. No Brasil, entretanto, assim como nos Estados Unidos, vigora o sistema de jurisdição una, no qual a mesma justiça, com os mesmos juízes, as mesmas regras – às vezes até com juízes diferentes, mas com as mesmas regras –, processa tanto as causas entre particulares como aquelas entre os particulares e o Estado. Um exemplo dessa dificuldade pode ser encontrado, por exemplo, no exame da revelia e seus efeitos. Os efeitos da ausência de contestação numa causa em que
o réu é um particular serão os mesmos produzidos quando o réu for o Estado? De acordo com a literalidade dos artigos 319 do Código de 1973 e 344 do Código de 2015, a resposta seria positiva. Os dois Códigos, logo em seguida, ao tratarem dos casos em que não se aplicam os efeitos da revelia, novamente não distinguem entre o particular e o Estado. Dentre as hipóteses aí contempladas (CPC de 1973, art. 320; CPC de 2015, art. 345), existem as causas que versam sobre direitos indisponíveis, que, segundo muitos procuradores das pessoas jurídicas de direito público, são todas aquelas em que estejam presentes interesses do Estado. Assim, será mesmo que todos os interesses do Estado são indisponíveis? Atualmente, é muito difundida uma distinção, feita pelo jurista italiano Renato Alessi, entre os interesses públicos primários e secundários. Seriam indisponíveis apenas os primários, ou seja, aqueles interesses do Estado que se confundem com os interesses gerais da coletividade, e não os interesses secundários, que dizem respeito aos atos que o Estado pratica ou aos direitos de que é titular como um sujeito privado qualquer, como, por exemplo, quando celebra como locatário um contrato de locação de um imóvel particular. Em relação aos atos das partes, há ainda outra importante discussão. Dentre os atos das partes, há aqueles que produzem efeitos puramente processuais, como, por exemplo, a interposição de um recurso, e outros que além de produzirem efeitos processuais produzem também efeitos de direito material, como a transação, a renúncia ao direito, o reconhecimento do pedido etc. Esses atos das partes que também produzem efeitos no plano do direito material – que pode ser o direito civil, o direito comercial ou qualquer outro ramo do direito – são regidos pela disciplina do direito processual ou do direito material?3 Esses exemplos servem para mostrar os paradoxos que tornam extremamente complexa a teoria dos atos processuais, que, como já visto, é uma teoria ainda inacabada. A meu ver, em relação à capacidade dos sujeitos e à forma, deve sempre prevalecer a lei processual, ao passo que, em relação à licitude do objeto, o ato tem de obedecer tanto às regras do direito processual quanto às do direito material.
12.2. CLASSIFICAÇÃO DOS ATOS PROCESSUAIS Os atos processuais classificam-se de acordo com diversos critérios, sendo o mais simples e mais difundido o que os agrupa de acordo com o sujeito de que emanam ou que os pratica. Assim, segundo esse critério, os atos processuais classificam-se em: atos do juiz, atos das partes e atos dos auxiliares da justiça. Os demais sujeitos do processo praticam sempre atos que se enquadram em uma ou mais categorias dessa classificação. Frequentemente, um mesmo ato se enquadra em mais de uma categoria, servindo a classificação apenas para a finalidade didática de explorar a diversidade de conteúdos que eles podem ter. 12.2.1. Atos do juiz O juiz pratica cinco espécies de atos processuais, quais sejam, os atos decisórios, os atos de movimentação, os atos de instrução, os atos de coação e os atos de documentação. 12.2.1.1. Atos decisórios
Atos processuais decisórios ou decisões judiciais são aqueles que contêm pronunciamentos do juiz a respeito de questões do processo, visando à produção de efeitos jurídicos dentro ou fora deste. Portanto, o juiz, através de um ato decisório, resolve uma questão do processo, que é um ponto qualquer de fato ou de direito a respeito do qual ele deva se pronunciar, porque desse pronunciamento decorrerão consequências, efeitos, tanto no âmbito do próprio processo como fora dele. Há duas espécies de atos decisórios: as decisões interlocutórias e as sentenças. As primeiras são pronunciamentos intermediários; são decisões do juiz no curso do processo, que não põem fim ao processo. O conceito de decisão interlocutória está contido no artigo 162, § 2º, do Código de 1973, que estabelece: “Decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente.” Até o advento da Lei n. 11.232/2005, esse conceito de decisão interlocutória era facilmente assimilável, porque o conceito de sentença, ao qual se contrapunha,
também era um conceito muito simples, constante do § 1º do mesmo artigo 162, segundo o qual sentença era o ato decisório que encerrava o processo, com ou sem o julgamento do mérito. Então, o juiz só praticava dois tipos de atos decisórios: as sentenças, quando extinguia o processo, e as decisões interlocutórias, quando resolvia alguma questão incidente sem encerrar o processo. A sentença era, portanto, o ato final do processo e se subdividia em duas espécies: de um lado, as sentenças de mérito ou sentenças definitivas e, de outro, as sentenças meramente processuais ou sentenças terminativas. Assim, o legislador do Código de 1973, muito didaticamente, a fim de espancar qualquer dúvida, enumerou no artigo 267 os casos de extinção do processo sem julgamento do mérito, ou seja, de sentenças terminativas, e o fez no artigo 269 em relação aos casos de extinção do processo com julgamento do mérito, ou seja, de sentenças definitivas. É óbvio que o processo, como instrumento da jurisdição de conhecimento, se destina a julgar a causa e, por isso, ele somente cumpre a finalidade de exercer essa jurisdição quando profere sentença de mérito, nas hipóteses do artigo 269 do Código de 1973. Entretanto, às vezes, o juiz se depara com alguma nulidade que o impede de julgar o mérito. Na verdade, as hipóteses previstas no rol do artigo 267 – que é mais extenso do que o contido no artigo 269 – proíbem o juiz de julgar o mérito, e, portanto, diante de alguma nulidade insanável ou não sanada, ele profere uma sentença terminativa daquele processo, daquela relação processual, mas o litígio continua pendente. Isso porque o pedido não foi julgado, e, no futuro, esse mesmo pedido poderá ser renovado em outro processo, de acordo com o artigo 268 do Código de 1973. Mesmo com o mencionado esforço didático do legislador, sobrevieram críticas ao conceito originário de sentença. Para a compreensão do debate, costumo advertir, primeiramente, que é importante ter em mente que o Direito não é uma ciência exata, e, assim, toda vez em que o legislador cria determinado conceito, ele corre o risco de cometer algum erro ou omissão. Recorde-se o brocardo de Justiniano, atribuído a Javoleno, no Digesto: omnis definitio in jure civili periculosa est (toda definição em direito civil é perigosa)4.
Como já explicamos, o legislador de 1973 conceituou sentença como o ato que encerrava o processo (de acordo com a antiga redação do art. 162, § 1º, do Código). Ocorre que há certos procedimentos especiais em que a atividade cognitiva se desdobra em várias fases sucessivas, que são encerradas por decisões também denominadas pela lei de sentenças, mas que não põem fim ao processo como um todo. É o que se verifica, por exemplo, na ação de prestação de contas ou de exigir contas, na qual o juiz primeiramente decide se o réu tem ou não a obrigação de prestar contas, e, caso positivo, em outra decisão, proferida numa fase seguinte, ele decidirá a prestação de contas propriamente dita, julgando os documentos, as alegações das partes e, ao final, as próprias contas (CPC de 1973, arts. 914 a 919; CPC de 2015, arts. 550 a 553). Nesse procedimento, em que há duas fases cognitivas sucessivas, tanto a decisão que encerra a primeira fase quanto a que encerra a segunda fase recebem no Código de 1973 o nome de sentença (art. 915, §§ 2º e 3º). Contudo, a decisão que encerrou a primeira fase somente seria sentença no sentido original do artigo 162, § 1º, do Código de 1973, se ela declarasse que o réu não tinha o dever de prestar contas, porque, nesse caso, estaria encerrando, de fato, o processo, como um todo. Caso contrário, essa primeira decisão, chamada pela lei de sentença, não encerraria o processo, demonstrando, assim, na visão dos críticos, a imperfeição do conceito originário. Portanto, às vezes, o legislador denominava de sentença decisões que não encerravam o processo por inteiro, mas apenas uma de suas fases, ou, em outros casos, denominava de sentença uma decisão que resolvia uma questão incidente. Assim, por exemplo, a decisão que decreta a insolvência civil é chamada pela lei de sentença (CPC de 1973, art. 761, mantido em vigor pelo art. 1.052 do Código de 2015), sem que, contudo, encerre o processo, mas apenas uma de suas fases. Essa incoerência do legislador – de denominar de sentenças decisões que não extinguem o processo, apesar do conceito originalmente adotado no artigo 162, § 1º, do Código de 1973 – se verificava com frequência no julgamento de certas questões de direito material, que, mesmo sem encerrar o processo, mas pela sua grande importância, deveriam ficar definitivamente resolvidas, através de decisões intermediárias. Essa era uma das críticas feitas ao antigo conceito de sentença do Código de 1973.
Além disso, havia certas ações cujos procedimentos também não se encerravam com a sentença e que correspondiam ao que importante doutrina chamou de ações mandamentais e ações executivas lato sensu (v. no capítulo VIII o item 8.8). Tais ações visam à imposição de prestações que serão cumpridas pelo próprio juiz, pelo oficial de justiça ou pela parte, após o julgamento final, mas sem a necessidade de instauração de um novo processo. Utilizemos como exemplo a ação de despejo, que é uma ação do locador contra o locatário, para rescindir o contrato de locação e para que este desocupe o imóvel. Nessa ação, o processo não se extingue com a sentença, pois, proferida esta, o juiz intima o inquilino para deixar o imóvel e expede o mandado de desocupação (Lei n. 8.245/91, arts. 63 a 65). Diante dessas críticas – que eram procedentes, sem dúvida – ao conceito de sentença, alterou-se, por meio da Lei n. 11.232/2005, a redação original do Código de 1973. O conceito formal de sentença, atrelado à extinção do processo, era muito útil, por exemplo, na identificação do recurso cabível, pois, de acordo com o artigo 513 do Código de 1973, da sentença cabe apelação, ao passo que o artigo 522 estabelece que das decisões interlocutórias cabe agravo. Então, se havia razoável clareza no conceito de cada uma dessas espécies de decisões, prevalecia a segurança jurídica para se definir qual o recurso cabível. Nos casos de imprecisão do legislador, como os comentados acima, a doutrina já havia pacificado, durante os trinta anos de vigência do Código, o entendimento quanto ao recurso cabível. A Lei n. 11.232/2005 teve como objetivo o de criar o que hoje está sendo chamado vulgarmente de processo sincrético; acabar com a necessidade de um processo de execução autônomo nas condenações judiciais pecuniárias, como, aliás, o legislador já havia feito com as tutelas específicas das obrigações de fazer, de não fazer e de entrega de coisa, que são objeto dos artigos 461 e 461-A do Código de 1973. A meu ver, entretanto, era melhor lidar com os poucos e conhecidos defeitos que possuía o antigo conceito do que com os muitos que passamos a constatar após essa referida alteração legislativa. Se, de um lado, corrigiram-se alguns defeitos,
de outro, criaram-se defeitos muito piores5. O processo chamado de sincrético é aquele que funde, numa única relação processual, cognição e execução; começa com atividade cognitiva e, após a sentença, continua com a atividade executória (ou de cumprimento da sentença), sem precisar formar um processo novo. Assim, a Lei n. 11.232/2005 retirou do Livro II do Código de 1973, que trata do processo de execução, as disposições sobre a execução das sentenças relativas a prestações pecuniárias (condenações em dinheiro) e as transferiu para o Livro I, que cuida do processo de conhecimento, sob o título “Do cumprimento da sentença” (arts. 475-I a 475-R). Portanto, as ações de conhecimento que tenham por objeto condenação em dinheiro, se julgadas procedentes, não terminam mais com a sentença, porque, proferida a condenação, elas vão continuar para a execução no mesmo processo. Daí o legislador, na alteração legislativa já mencionada, ter mudado o conceito de sentença. De acordo com a nova redação do artigo 162, § 1º, conferida pela Lei n. 11.232/2005, sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos artigos 267 e 269 do Código de 1973. O artigo 267, que trata das sentenças terminativas, continua se referindo à extinção do processo. Entretanto, o artigo 269 não mais se refere à extinção do processo, mas apenas à resolução do mérito, enumerando os casos em que essa ocorrerá. Será que sempre que o juiz resolver uma questão de mérito ele estará proferindo uma sentença? Será que o legislador da Lei n. 11.232/2005 criou o conceito de sentença parcial? Por exemplo, sendo uma decisão de mérito, qual a natureza do pronunciamento em que o juiz resolve a concessão ou não da tutela antecipada (CPC, art. 273)? A decisão que homologa uma transação sobre parte do pedido, sem encerrar o processo, é sentença? Será que com o novo conceito o legislador quis possibilitar que o juiz fragmentasse o julgamento do mérito, permitindo que este seja resolvido em sucessivas decisões? Havendo sentença parcial de mérito, qual o recurso
cabível? Apelação ou agravo? O Código de 2015 não pretendeu inovar no tratamento da matéria, mas adotou no § 1º do artigo 203 uma definição de sentença semelhante à da Lei n. 11.232/2005, segundo a qual, “ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução”. A ressalva dos procedimentos especiais se justifica porque, como já dissemos, há decisões em procedimentos especiais que, embora não encerrando o processo ou a sua fase cognitiva, são denominadas pelo legislador de sentenças. Por outro lado, o conceito do Código não abrange eventuais decisões intermediárias que julguem conclusivamente uma parte do pedido, porque o julgamento parcial do mérito é objeto de dispositivo expresso, que comentaremos oportunamente (art. 356), que estabelece a sua recorribilidade por agravo de instrumento (§ 5º), o que deixa claro que não se trata de sentença, pois esse agravo é o recurso específico contra as decisões interlocutórias (art. 1.015). Também é decisão interlocutória a homologação parcial da transação, que não encerra o processo e que poderá ser impugnada por agravo de instrumento, com fundamento no inciso II do artigo 1.015, que da mesma forma prevê outras decisões interlocutórias de mérito, como as que versem sobre a concessão de tutelas provisórias da urgência ou da evidência (inc. I). Essa análise permite concluir que o conceito de sentença, no Código de 2015, somente abrange as decisões que encerrem qualquer processo sem resolução do mérito, com fundamento no artigo 485, ou que encerrem o próprio processo como um todo, seja ele de conhecimento, inclusive no cumprimento de sentença, de execução ou especial, solucionando conclusivamente todo o seu mérito, com fundamento no artigo 487, bem como que encerre conclusivamente a fase cognitiva do processo, definindo o direito material das partes, para que em fase subsequente do mesmo procedimento se efetive o seu cumprimento. Em síntese, sentença é o ato do juiz que, proferindo uma decisão processual ou de mérito, encerra conclusivamente o processo como um todo ou a sua fase cognitiva, seja ele um processo de conhecimento de procedimento comum ou especial ou um processo de execução. Qualquer outra decisão intermediária que o juiz profira antes do encerramento do processo como um todo, ou do encerramento conclusivo da sua fase cognitiva
se lhe couber continuar com o cumprimento de sentença, seja ela uma decisão sobre matéria processual ou sobre o direito material, ainda que resolva definitivamente uma parte deste, nas hipóteses restritas de julgamento antecipado parcial do mérito (art. 356), será sempre uma decisão interlocutória, nos termos do § 2º do artigo 203. 12.2.1.2. Atos de movimentação
A segunda espécie de atos praticados pelo juiz é a dos atos de movimentação, que são aqueles que o juiz pratica conduzindo o processo em direção ao seu fim, por força do princípio do impulso processual oficial (CPC de 1973, arts. 125 e 262; CPC de 2015, arts. 2º e 139). Assim, quem movimenta o processo em direção ao seu resultado, em direção ao exercício da jurisdição, no direito brasileiro, é o juiz, através da prática dos atos de movimentação. Esses atos também são chamados de atos ordinatórios, de despachos de mero expediente ou de despachos meramente ordinatórios, e são tratados pelo § 3º do artigo 162 do Código de 1973 e pelo § 3º do artigo 203 do Código de 2015, como os demais atos do juiz praticados no processo, de ofício ou a requerimento da parte. O Código de 2015, com exagero, os denomina de pronunciamentos, tal como as sentenças e as decisões interlocutórias. Prefiro chamar de pronunciamentos dos atos decisórios, sentenças ou decisões interlocutórias, que solucionam questões do processo. Os despachos ordinatórios não resolvem questões, simplesmente impulsionam o processo. Então, qual a diferença entre um despacho meramente ordinatório e uma decisão interlocutória? Primeiramente, cabe observar que a lei chama de despachos algumas decisões interlocutórias, o que impede uma diferenciação que leve em consideração apenas a denominação utilizada pelo legislador. Portanto, às vezes, a lei chama determinados atos de despachos sem considerar se eles têm ou não algum caráter decisório. Nos despachos de mero expediente, o juiz praticamente não resolve nada, não decide nada, mas apenas movimenta o processo, ao passo que, nas decisões interlocutórias, há um pronunciamento do juiz sobre determinada questão. Assim, nos despachos, o juiz apenas decide sobre a própria movimentação do processo, pois se ele está mandando citar o réu, por exemplo, ele está decidindo pela movimentação, pela continuação do processo. Isso não significa que o juiz,
ao proferir despachos, não exerça nenhuma cognição, porque sempre o juiz tem de estar atento à concorrência dos pressupostos de validade da sua atuação. Daí resultar a dificuldade em identificar se determinado ato do juiz é um mero despacho ou uma decisão interlocutória. Mesmo não resolvendo conclusivamente qualquer questão, o juiz, em todos os despachos, deve verificar, pelo menos superficialmente, se o impulso processual por ele determinado é legalmente cabível e preenche os pressupostos que a lei estabelece. Basta ler os artigos 284 e 295 do Código de 1973 e 321 e 330 do Código de 2015, sobre o despacho e o indeferimento da petição inicial, para constatar que a continuidade do processo não é ditada por um automatismo inconsciente, que poderia ser determinado até por um programa de computador. Até mesmo os atos de impulso, que a lei permite que sejam adotados pelo próprio escrivão, aos quais denomina de “atos meramente ordinatórios, como a juntada e a vista obrigatória” (CPC de 1973, art. 162, § 4º; CPC de 2015, art. 203, § 4º), são antecedidos de alguma cognição, embora inconclusiva. Portanto, para verificar se um ato do juiz é apenas um despacho é preciso apurar se tem ou não algum caráter decisório, ou seja, se nele o juiz resolve ou se pronuncia de modo conclusivo a respeito de algum ponto de fato ou de direito do processo, vale dizer, se ele decide alguma questão sobre tal ponto para que o seu pronunciamento prevaleça desde então no processo, de modo definitivo ou até que outra decisão venha a revogá-lo. Essa distinção não é irrelevante, uma vez que a totalidade das decisões interlocutórias, no Código de 1973, é impugnável por agravo, de acordo com o artigo 522; no Código de 2015, grande parte delas é impugnável por agravo de instrumento (art. 1.015). Já os despachos de mero expediente, nos dois Códigos, são irrecorríveis (CPC de 1973, art. 504; CPC de 2015, art. 1.001). São consideradas simples despachos de movimentação: a juntada de petições aos autos; a abertura de vista dos autos às partes; a designação de dia e hora para a audiência etc. Há, entretanto, situações polêmicas, que suscitam algumas dúvidas, como, por exemplo, o despacho positivo da petição inicial, contendo a ordem de citação do réu. A maioria da doutrina entende que essa última situação é de um despacho de mera movimentação, mas há quem a entenda como decisão interlocutória, pois o juiz teve de verificar a concorrência das condições da ação e dos pressupostos processuais6.
A meu ver, em geral, o despacho de recebimento da petição inicial é um despacho de mero expediente, mas, em alguns casos, ele adota conteúdo decisório, porque o juiz, para consumá-lo, se pronunciou sobre alguma questão, ou pelo menos exerceu cognição sobre uma questão, seja processual ou de mérito, que foi o pressuposto do seu ato de movimentação. Por exemplo: o juiz, na execução, manda penhorar os bens do sócio da empresa devedora. Nesse caso, em minha opinião, não se trata de um despacho de mero expediente, mas uma decisão, porque o juiz, para adotá-la, teve de se convencer de que os bens do sócio respondiam pelas dívidas da sociedade. O § 4º do artigo 162 do Código de 1973, introduzido pela Lei n. 8.952/94, e o § 4º do artigo 203 do Código de 2015 estabelecem o seguinte: “Os atos meramente ordinatórios, como a juntada e a vista obrigatória, independem de despacho, devendo ser praticados de ofício pelo servidor e revistos pelo juiz quando necessário”. Na verdade, esse dispositivo, ao permitir que o próprio escrivão ou chefe de secretaria pratique esses atos de movimentação mais simples, como a juntada e a vista, tentou começar a resolver um problema muito sério do nosso processo, que é a excessiva centralização dos atos de movimentação nas mãos do juiz. Ocorre que essa centralização é uma questão de cunho predominantemente cultural e, portanto, não é facilmente alterada com a simples mudança da lei. Assim, na Inglaterra, até a entrada em vigor da Civil Procedure Rules, em 1999, o juiz praticamente não despachava, somente recebendo o processo para tomar grandes decisões, enquanto muitas questões menos relevantes eram resolvidas pelo próprio escrivão (master)7. No direito brasileiro, como já salientamos, em razão da cultura processual pátria, há ainda uma excessiva centralização do processo nas mãos do juiz, o que o torna um burocrata e o obriga a despachar qualquer movimentação no processo. Adicione-se a isso o fato de a lei, ao delegar ao escrivão os despachos meramente ordinatórios, não ter esclarecido quais despachos seriam meramente ordinatórios ou não. Ainda nesse sentido, a falta de profissionais investidos nos cargos de escrivão ou chefe de secretaria que possuam formação adequada e homogênea impede que,
em alguns juízos, essa descentralização se intensifique mais do que em outros. Outro problema que pode surgir é o de o tribunal, ao qual esteja submetido o juiz em grau de recurso, entender que determinado ato praticado pelo escrivão não é meramente ordinatório. A regra de ouro para decidir essas situações limítrofes é a de que um ato de simples movimentação, em si mesmo, não deve causar nenhum prejuízo juridicamente relevante para qualquer dos sujeitos do processo, mas, se o prejuízo ocorrer, não poderá mais ser considerado um simples ato ordinatório, mas uma decisão interlocutória. O Código de 2015, atentando para a dificuldade de efetivar essa descentralização dos atos ordinatórios e para os obstáculos que possam decorrer da falta de homogeneidade na formação dos serventuários, estatuiu no § 1º do artigo 152 que a prática de atos meramente ordinatórios pelo escrivão ou chefe de secretaria será regulamentada em ato específico editado pelo juiz titular. 12.2.1.3. Atos instrutórios
A terceira espécie de atos do juiz corresponde à dos atos probatórios ou instrutórios. O juiz é o principal destinatário de todas as provas, pois estas são produzidas no processo para gerar o seu convencimento em relação à verdade dos fatos. Então, nessa condição, o juiz tem de praticar atos de aquisição do conhecimento das provas, que são os chamados atos de produção das provas, e, como condutor do processo, praticar atos deferindo ou não a produção das provas ou determinando de ofício a sua produção (CPC de 1973, art. 130; CPC de 2015, art. 370), que são os atos de admissão das provas. Desse modo, é o juiz quem tem de examinar se determinada prova precisa ou não ser produzida, porque é a ele que a prova se destina. Em resumo, analisando conjuntamente a sua condição de destinatário das provas e de responsável pelo impulsionamento do processo, pode-se dizer que o juiz, em matéria probatória, pratica atos de admissão e produção das provas, que são chamados genericamente de atos probatórios ou instrutórios do juiz. Não há diferença de essência entre um ato ordinatório e um ato instrutório; entre decisão interlocutória e ato instrutório. Tanto podem ser instrutórios atos meramente ordinatórios, como a juntada, como também podem ser atos
instrutórios as decisões interlocutórias. Por exemplo: se o juiz, ao inquirir uma testemunha em audiência, deferir a pergunta feita por um dos advogados, ele estará praticando, simultaneamente, uma decisão interlocutória e um ato instrutório. Nesse ponto, é importante recordar a ressalva feita no início deste capítulo, no sentido de que, muitas vezes, alguns atos se amoldam a mais de uma categoria, dentro da classificação ora proposta, o que nos coloca diante de problemas difíceis, como os que decorrem da decretação das nulidades de determinados atos para avaliar em que medida vícios neles existentes podem ter contaminado atos subsequentes dele dependentes (CPC de 1973, art. 248; CPC de 2015, art. 280). No item 6.4 do capítulo VI tratamos brevemente desse problema em face da declaração de incompetência absoluta do juiz. A juntada de um documento, como vimos anteriormente, não possui caráter decisório, e, portanto, se feita por juiz impedido ou suspeito, será sempre preservada. Em resumo, pode-se dizer que os atos instrutórios do juiz são atos de admissão e de produção das provas, que se exteriorizam ou através de decisões interlocutórias ou através de atos de movimentação. 12.2.1.4. Atos de coação
A quarta espécie de atos do juiz corresponde aos atos de coação ou de coerção, que são atos de autoridade, de invasão da esfera de interesses ou da esfera patrimonial de uma das partes ou até de terceiros, para impor-lhes, pela força, o respeito a ordens ou determinações judiciais. Os atos de coação são muito importantes para o processo de execução, em que são praticados atos como a penhora, a alienação forçada de bens, o pagamento do credor etc. Na execução de obrigações pecuniárias, resumidamente, o juiz apreende os bens do devedor e os entrega a um depositário para, após transformá-los em dinheiro, pagar o credor, praticando nesse percurso diversos atos de coação.
Aliás, nós definimos a execução como a modalidade de tutela jurisdicional em que o juiz desenvolve uma série de atos coativos contra o devedor ou sobre o seu patrimônio, a fim de satisfazer um crédito, consubstanciado num título executivo. São exemplos de atos de coação: o sequestro, o arresto, a prisão do devedor de pensão alimentícia, a prisão da testemunha que desacatou o juiz durante a audiência, a condução coercitiva da testemunha que se recusou a comparecer na sede do juízo para prestar depoimento etc. Esses atos derivam do poder de coerção dos juízes, que é um poder inerente ao exercício da função jurisdicional por órgão público, que decorre da própria soberania estatal. 12.2.1.5. Atos de documentação
Por fim, a última espécie de atos praticados pelo juiz é a dos atos de documentação. Os atos processuais de todos os sujeitos do processo precisam ficar registrados e o seu conteúdo, preservado, para que se perenizem e produzam de modo estável os seus efeitos no processo. Muitas vezes, quem pratica esses atos de documentação é o próprio juiz. Ele documenta todos os atos que pratica, assinando os seus despachos, as suas decisões e as suas sentenças, assim como todos os atos que preside, como a audiência. O juiz documenta a audiência, ditando para o escrivão tudo que nela ocorreu, ou seja, o que ocorreu na tentativa de conciliação, nas inquirições das testemunhas, nos depoimentos das partes, nas alegações finais orais dos advogados, e dita até a própria sentença, se for o caso. Ao final do ato, o juiz assina o termo, auto ou ata lavrados pelo escrivão e rubrica todas as folhas, conferindo autenticidade àquele documento. Isso porque, como máxima autoridade presente, é a assinatura do juiz ao pé do documento que registra o ato lavrado pelo escrivão que gera a presunção de que aquilo que ocorreu no ato corresponde ao que consta do documento. É a chamada fé pública do documento público, que é uma presunção relativa de veracidade. Cabe ainda mencionar, entre os atos do juiz, os acórdãos, que são quaisquer pronunciamentos proferidos por um órgão colegiado de um tribunal superior, e
podem ter o conteúdo e a natureza substancial de decisões interlocutórias, sentenças ou de despachos de expediente. 12.2.2. Atos das partes Os atos processuais das partes classificam-se em quatro espécies: atos postulatórios, atos dispositivos, atos instrutórios e atos reais. 12.2.2.1. Atos postulatórios
Os atos postulatórios são todas as petições e requerimentos que as partes dirigem ao juiz para submeter à sua apreciação o exame de quaisquer questões. A petição inicial, a contestação, a réplica, a petição que contém o rol de testemunhas, a petição de interposição de um recurso, as alegações finais orais feitas em audiência, a sustentação oral do advogado na sessão do tribunal são exemplos de atos postulatórios. Então, todas essas manifestações das partes, que submetem ao juiz ou ao tribunal o exame de qualquer questão, são atos postulatórios. Em geral, os atos processuais praticados pelas partes têm caráter postulatório e são privativos de advogados regularmente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (Lei n. 8.906/94, art. 1º, inc. I). Os artigos 158 do Código de 1973 e 200 do Código de 2015 estabelecem que “os atos das partes, consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade, produzem imediatamente a constituição, a modificação ou a extinção de direitos processuais”. Em outros termos, significa que o ato da parte, desde que válido, consuma no processo, automaticamente, os efeitos desejados pelo seu autor, independentemente de qualquer homologação, aprovação ou autorização do juiz ou de qualquer outro sujeito. Constitui exceção a essa regra a desistência da ação, que só produzirá efeitos depois de homologada por sentença (CPC de 1973, art. 158, parágrafo único; CPC de 2015, art. 200, parágrafo único). O teor desses artigos é de grande importância, porque há atos das partes que podem influir na própria sobrevivência do processo, como, por exemplo, a renúncia ao direito material por parte do autor. De acordo com a regra em questão, o ato da parte se consuma a partir do momento em que é praticado, de
modo que todos os seus efeitos se produzem desde logo, independentemente de homologação, o que certamente restringirá a possibilidade de sua ulterior revogação. Por exemplo: a parte não pode pretender retirar a eficácia da sua renúncia ao direito simplesmente porque o juiz ainda não despachou a petição em que ela foi manifestada, pois o efeito da renúncia já se produziu no momento em que o ato foi praticado. 12.2.2.2. Atos dispositivos
A segunda espécie de atos das partes são os chamados atos dispositivos, que também possuem caráter postulatório, mas se caracterizam por serem atos em que as partes abrem mão de algum direito, de alguma faculdade, ou deliberam sobre situações jurídicas do próprio processo, na medida em que a lei lhes faculta adotar esse tipo de decisões. Assim, os atos de disposição são, primeira e tradicionalmente, aqueles que as partes praticam em seu próprio prejuízo, em seu próprio desfavor. É exemplo típico desses atos a desistência da ação, que, até o decurso do prazo para resposta ou do seu oferecimento, pode o autor promover independentemente da concordância do réu (CPC de 1973, art. 267, § 4º; CPC de 2015, art. 485, § 4º). A partir de então, a desistência da ação será um ato unilateral do autor cuja eficácia dependerá de outro ato unilateral de disposição do réu. Apontem-se, como exceções, a desistência da execução (CPC de 1973, art. 569; CPC de 2015, art. 775), e a do mandado de segurança, que entendimento jurisprudencial sedimentado dispensa de concordância do réu. Cabe ainda observar que na desistência da ação o autor simplesmente desiste da continuidade do processo, mas não renuncia ao direito material, e, por isso, a desistência da ação vai provocar a extinção do processo sem resolução do mérito, o que permitirá ao autor, no futuro, ingressar com nova ação a respeito do mesmo direito, ressalvados os casos de perempção, a que se referem o parágrafo único do artigo 268 do Código de 1973 e o § 3º do artigo 486 do Código de 2015. Outro ato dispositivo unilateral é a renúncia ao direito material por parte do autor, que implicará resolução de mérito (CPC de 1973, art. 269, inc. V; CPC de
2015, art. 487, inc. III, alínea c). Também é de ato de disposição unilateral o reconhecimento do pedido por parte do réu. Esse reconhecimento é um ato de disposição porque é através dele que o réu aceita que o autor tem razão. De acordo com os artigos 269, inciso II, do Código de 1973 e 487, inciso III, alínea a, do Código de 2015, o reconhecimento do pedido pelo réu implica resolução do mérito. Ato de disposição muito comum é a transação, em que as partes põem fim ao litígio através de um acordo consensualmente ajustado. Ressalte-se que a transação é um ato de disposição bilateral, e não unilateral, como os anteriormente analisados. Na transação, as concessões feitas por uma ou por ambas as partes envolvem o próprio direito material, motivo pelo qual a homologação do acordo se dará por uma sentença de mérito (CPC de 1973, art. 269, inc. III; CPC de 2015, art. 487, inc. III, alínea b). A transação, como ato de disposição processual, tem sentido mais amplo do que o contrato de transação, regulado nos artigos 840 a 850 do Código Civil. Este exige concessões mútuas, enquanto aquela se refere a qualquer acordo sobre o direito material controvertido, ainda que nele apenas uma das partes tenha feito concessões. Importante ato de disposição bilateral é a suspensão do processo por convenção das partes (CPC de 1973, art. 265, inc. II; CPC de 2015, art. 313, inc. II). Na jurisdição de conhecimento, essa suspensão não poderá exceder a seis meses (CPC de 1973, art. 265, § 3º; CPC de 2015, art. 313, § 4º); já, na execução, poderá durar o tempo necessário ao cumprimento voluntário da obrigação pelo devedor (CPC de 1973, art. 792; CPC de 2015, art. 922). Outros conhecidos atos de disposição são a renúncia ao direito de recorrer (CPC de 1973, art. 502; CPC de 2015, art. 999) e a desistência do recurso (CPC de 1973, art. 501; CPC de 2015, art. 998). Ambos são atos unilaterais, que não carecem da concordância da outra parte para produzirem efeitos. Renuncia-se ao direito de recorrer antes que o recurso tenha sido interposto, enquanto a desistência pressupõe a prévia interposição do recurso. Essa a diferença entre os dois atos: no primeiro, ainda não houve manifestação de vontade no sentido de provocar uma nova decisão, ao passo que, no segundo, já houve tal manifestação, que é revogada pela própria desistência. Todos os atos de disposição têm uma característica importante, que é a de
somente poderem ser praticados por advogados que detenham poderes especiais (CPC de 1973, art. 38; CPC de 2015, art. 105). Assim, para a válida prática de atos de disposição pelo advogado, não basta que na procuração a ele outorgada conste o poder genérico para praticar qualquer ato do processo, ou que nela sejam conferidos os poderes gerais para o foro ou os poderes da chamada cláusula ad judicia, mas é preciso que nela se incluam expressamente os poderes para desistir, renunciar, transigir etc. Com o advento do Código de 2015 ganham novo impulso os atos dispositivos bilaterais ou multilaterais, em razão da expansão das hipóteses de convenções processuais, tais como as que vieram a instituir sobre o procedimento (art. 191), sobre a fixação dos pontos controvertidos (art. 357, § 2º) e sobre a escolha consensual do perito (art. 471), além de outras que já existiam no Código de 1973, por exemplo, sobre a suspensão do processo (CPC de 1973, art. 265, inc. II; CPC de 2015, art. 313, inc. II) e sobre a distribuição de ônus da prova (CPC de 1973, art. 333; CPC de 2015, art. 373, § 3º). Não se trata mais de simples atos prejudiciais, mas de atos que, independentemente do seu resultado favorável ou contrário, decidem sobre os rumos do processo, sobre o seu conteúdo ou sobre o modo de instruir e decidir as questões nele pendentes, dos quais já tratamos no item 2.2.9 supra. Ali classifiquei as convenções processuais em três espécies. A primeira composta de acordos ou contratos que afetam apenas direitos das partes; a segunda dos que afetam poderes do juiz, que por força de lei podem ser limitados pela conjugação da vontade das partes; e a terceira dos que limitam os poderes do juiz, mas se perfazem com a conjugação da vontade das partes e do juiz. Nas duas primeiras espécies, essas convenções se perfazem com a conjugação, simultânea ou sucessiva da vontade dos litigantes e, como tal, produzem efeitos jurídicos de imediato, nos termos dos artigos 158 do Código de 1973 e 200 do Código de 2015. Esses atos estão sujeitos ao controle de legalidade por parte do juiz, mas, como já exposto, a deliberação é das partes. Assim, por exemplo, na convenção sobre a distribuição do ônus da prova (CPC de 1973, art. 333, parágrafo único; CPC de 2015, art. 373, §§ 3º e 4º), na convenção para suspensão do processo (CPC de 1973, art. 265, inc. II; CPC de 2015, art. 313, inc. II), na delimitação das questões de fato e de direito no saneamento do processo (CPC de 2015, art. 357, § 2º) e na escolha consensual do perito (CPC de 2015, art. 471).
A terceira espécie de convenções se constitui daquelas em que o ato somente se perfaz com a manifestação conjunta de vontade das partes e do juiz, como na fixação do calendário (CPC de 2015, art. 191) que afeta os poderes do juiz de impulso processual e de direção do processo. A meu ver, também os contratos de procedimento, a que se refere o caput do artigo 190, quando envolvem restrições aos poderes do juiz ou aos deveres das partes para com o juiz, são convenções processuais dessa terceira espécie, devendo o juiz, a par do controle de legalidade, formular um juízo de conveniência e oportunidade, aderindo ou não à convenção. O juiz participa da deliberação, compatibilizando a autonomia da vontade das partes com os escopos imediatos e mediatos da jurisdição estatal. As convenções processuais da primeira e da segunda espécies produzem efeitos de imediato, ou seja, no mesmo momento em que o ato é praticado pelas partes ou no momento que o próprio ato fixar. Eventual homologação do juiz é mero ato de controle a posteriori da legalidade do ato. Já as da terceira espécie produzirão os seus efeitos no momento em que o juiz concorrer com a sua vontade, aprovando ou homologando a deliberação das partes. Quanto à revogabilidade dos atos dispositivos, parece-me que os unilaterais podem ser revogados pelo seu autor até a sua homologação ou aprovação pelo juiz. Não me convence a irrevogabilidade dos atos de disposição defendida pela importação da ideia civilista do chamado venire contra factum proprium. O processo é uma relação jurídica complexa e dinâmica e, por isso mesmo, instável, em que todos os atos praticados por todos os sujeitos são influenciados por circunstâncias eventuais, que se modificam continuamente. A boa-fé não obriga as partes a ficarem inexoravelmente comprometidas com as suas declarações anteriores, feitas sem a mais clara previsibilidade das consequências jurídicas e dos desdobramentos que delas possam decorrer. Afinal, o processo não é um jogo de espertezas em que uma das partes vai ali adiante tirar proveito de uma declaração feita aqui atrás pelo seu adversário, sem que a situação subsequente do processo fosse por este previsível. Isso não é atuar de boa-fé. Esta, a boa-fé, exige que as partes e o próprio juiz se comportem com sinceridade e destemor, cooperando na elucidação dos fatos e na formulação das questões de direito para que, no seu momento culminante, que é a sentença, esta seja a mais justa possível. Nesse aspecto, o Código de 2015 é paradoxal, porque, de um lado, admite que o juiz convoque as partes para serem inquiridas sem o risco da confissão (art. 139, inc. VI); de outro, declara no artigo 393 que a
confissão é irrevogável, salvo por erro de fato ou coação. Contudo, é claro que, tendo o ato dispositivo da parte produzido efeitos no processo, a sua revogação, por imposição da boa-fé, deve submeter-se a alguns requisitos: a) a existência de um motivo justificável, como o erro de fato, a coação ou a ausência de previsão das suas consequências jurídicas; b) que a revogação não prejudique a eficácia dos atos subsequentes ao ato revogado, nem eventual direito adquirido da parte contrária; ou c) como consequência da falta de uma dessas duas circunstâncias, a preclusão temporal ou consumativa, que impede que o ato praticado ou omitido tenha uma nova oportunidade de ser manifestado. Além disso, os atos dispositivos das partes podem ser anulados por decisão do juiz no curso do processo, se ficar comprovado que não preencheram na sua celebração os requisitos de validade que expusemos no item 2.2.9, a saber: a) a possibilidade de autocomposição a respeito do próprio direito material posto em juízo ou a impossibilidade de que a convenção prejudique o direito material indisponível ou a sua tutela; b) a celebração por partes plenamente capazes; c) o respeito ao equilíbrio entre as partes e à paridade de armas, para que uma delas, em razão de atos de disposição seus ou de seu adversário, não se beneficie de sua particular posição de vantagem em relação à outra quanto ao direito de acesso aos meios de ação e de defesa, por exemplo, nos casos de inserção abusiva em contrato de adesão ou de manifesta vulnerabilidade de uma das partes ou de excessiva onerosidade; e d) a preservação da observância dos princípios e garantias fundamentais do processo e da ordem pública processual. Já os atos dispositivos bilaterais, sejam da primeira ou da segunda espécie, ainda podem ser revogados com a conjugação da vontade de todos os sujeitos que anuíram à sua celebração. Resta saber se o juiz pode revogar ou recusar-se a cumprir atos de disposição das partes. Ao juiz sempre cabe o controle da legalidade de todos os atos processuais e dos atos que no processo se destinem a produzir efeitos. Por esses mesmos motivos, o juiz pode recusar a homologação de quaisquer atos de disposição das partes, unilaterais ou bilaterais. Entretanto, como vimos, há atos bilaterais ou convencionais que, autorizados por lei, restringem ou modificam os poderes do juiz relativamente a certos atos, como os da segunda espécie anteriormente enumerados, sem que a lei exija a concordância do juiz com a sua prática e com a produção dos seus efeitos,
sujeitando-se simplesmente ao controle de legalidade. Quanto a estes, somente pode o juiz anulá-los se eivados de nulidade absoluta. É o que ocorre, por exemplo, na convenção sobre a distribuição do ônus da prova (CPC de 1973, art. 333, parágrafo único; CPC de 2015, art. 373, §§ 3º e 4º), na convenção para suspensão do processo (CPC de 1973, art. 265, inc. II; CPC de 2015, art. 313, inc. II), na delimitação das questões de fato e de direito no saneamento do processo (CPC de 2015, art. 357, § 2º) e na escolha consensual do perito (CPC de 2015, art. 471). E há outros atos convencionais para cuja consumação a lei exige a concordância do juiz, que fica vinculado às suas disposições. Também estes, sem dúvida, poderão ser declarados nulos, se eivados de nulidade absoluta e insanável. No entanto, a sua revogação unilateral pelo juiz ou a pedido de apenas uma das partes anuentes somente poderá se dar, sem a concorrência das vontades de todos os sujeitos que a ele anuíram, desde que: a) haja um motivo justificável, resultante de nova avaliação da conveniência e oportunidade da revogação, resultante de fatos e circunstâncias devidamente comprovados, posteriores à consumação do ato ou cujo conhecimento foi posterior a essa consumação, em especial, mas não exclusivamente, o desequilíbrio entre as partes, a excessiva onerosidade do ato questionado ou o impasse por ele criado à continuidade do processo; b) não afetem a autonomia da vontade das partes na fixação do objeto litigioso e das questões de direito material de que podem livremente dispor; c) não violem direito adquirido de qualquer das partes, nem a confiança legítima, ou seja, as expectativas razoáveis das situações de vantagem geradas pelo ato ou das situações de desvantagem por ele sepultadas; d) respeitem os efeitos de todos os atos já praticados na vigência do ato revogado. São exemplos de convenções sujeitas a essas regras as relativas à fixação do calendário e à modificação de ônus das partes, poderes, faculdades e deveres do juiz, a que se referem os artigos 190 e 191 do Código de 2015. Como qualquer ato jurídico, o ato processual dispositivo exige sujeito capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei (Código Civil, art. 104), à luz do direito processual. Entretanto, cabe considerar que há atos do processo que possuem conteúdo de direito material, como uma transação. Se celebrada por meio de ato processual, deve observar em todos os seus elementos o direito processual, bem como, quanto ao conteúdo ou objeto, o direito material de regência da respectiva
relação jurídica. No entanto, também existem atos de disposição das partes que são praticados fora do processo, como a própria lei processual em alguns casos prevê (v. CPC de 1973, art. 333, parágrafo único; CPC de 2015, art. 373, § 3º), embora destinados exclusivamente a nele produzir efeitos. No momento da sua prática eles não integram a relação processual, embora devam vir a ser nela posteriormente documentados e aí produzir efeitos. Apesar de serem atos extraprocessuais, deverão observar a capacidade, o conteúdo e a forma prescritos pelo direito processual. Diferentemente, se forem atos extraprocessuais destinados a produzir efeitos de direito material e de direito processual. Estes últimos, quanto à capacidade e à forma, deverão observar o respectivo direito material, mas quanto ao conteúdo reger-se-ão tanto pelo direito material quanto pelo direito processual, podendo ocorrer que sejam considerados lícitos e eficazes para um, e não para outro. 12.2.2.3. Atos instrutórios
A terceira espécie de atos das partes é a dos atos instrutórios, que consistem, normalmente, na proposição e produção das provas. Os artigos 282 e 300 do Código de 1973, 319 e 336 do Código de 2015, que tratam da petição inicial e da contestação, estabelecem que o autor, na petição inicial, e o réu, na contestação, devem requerer as provas que pretendem produzir. Esse requerimento é, ao mesmo tempo, um ato instrutório, porque possui a finalidade de instruir o processo com elementos de convicção a respeito dos fatos que são objeto da causa, e um ato postulatório, porque contém um requerimento de que a questão sobre a produção desta ou daquela prova seja decidida pelo juiz. Da mesma forma, a petição através da qual a parte se dirige ao juiz nomeando seu assistente técnico e formulando quesitos é um ato probatório e, ao mesmo tempo, postulatório. O mesmo se pode dizer do depoimento pessoal da parte realizado em audiência, das perguntas que os advogados fazem às testemunhas, da juntada de um documento etc. 12.2.2.4. Atos reais
A quarta espécie de atos das partes corresponde aos chamados atos reais, que são ações ou atividades humanas que se destinam a produzir efeitos no processo, como, por exemplo, a exibição de um documento pela parte, o comparecimento da parte em juízo para prestar depoimento pessoal, ou ainda o seu comparecimento ao consultório do médico-perito para submeter-se a um exame. Muitos desses atos reais são atos que apenas a própria parte pode praticar, e, portanto, não podem ser praticados pelo advogado, pois são atos personalíssimos. É o que ocorre, por exemplo, nas ações de indenização por acidente de tráfego, nas quais a vítima do acidente se submete ao exame médico para aferir o seu grau de incapacidade laborativa, caso em que somente a própria parte envolvida poderá fazê-lo. Outros, como a conciliação, podem ser praticados por advogado ou preposto, que é um mandatário ad negotia, com poderes especiais (CPC de 1973, art. 277, § 3º; CPC de 2015, art. 335, § 10; Lei n. 9.099/95, art. 9º, § 4º). Nos Juizados Especiais da Fazenda Pública, federais ou estaduais, os representantes legais das pessoas jurídicas de direito público rés estão autorizados a conciliar, nos termos dos arts. 10, parágrafo único, da Lei n. 10.259/2001 e 8º da Lei n. 12.153/2009. 12.2.3. Atos dos auxiliares da justiça Após a análise das quatro espécies de atos praticados pelas partes, examinaremos os atos dos auxiliares da justiça, aqui entendidos como os sujeitos imparciais que colaboram diretamente para o bom exercício das funções do juiz e que têm caráter permanente, ou seja, são sujeitos de qualquer processo judicial, a saber, o escrivão e o oficial de justiça. Os atos desses sujeitos se classificam em atos de movimentação, atos de execução ou de coerção e atos de documentação. Assim, ao receber a petição inicial, o juiz a despacha, em regra, ordenando a citação do réu. Esse ato, na verdade, contém duas ordens: uma dirigida ao escrivão, para que redija o mandado de citação; e outra dirigida ao oficial de justiça, para que, munido do mandado expedido pelo escrivão, compareça ao endereço do réu e efetive a citação. Então, o escrivão pratica parte do ato de citação e o oficial de justiça, por sua vez, pratica a outra parte. Ambos atuam conjuntamente para cumprir o conteúdo
do ato do juiz, mas o fazem através de atos distintos e sucessivos. 12.2.3.1. Atos de movimentação
A primeira espécie de atos praticados pelos auxiliares obrigatórios do juiz é a dos chamados atos de movimentação, dentre os quais a categoria de maior relevância é a dos atos de comunicação processual, que têm como objetivo cientificar os sujeitos do processo do conteúdo dos despachos e decisões proferidas pelo juiz ou de que eles devem praticar algum ato processual. No processo civil, existem apenas duas espécies de atos de comunicação: as citações e as intimações. Em razão de sua relevância – principalmente no que tange à realização do princípio do contraditório – e extensão, os atos de comunicação processual serão objeto do capítulo seguinte desta obra, no qual serão mais detidamente analisados. 12.2.3.2. Atos de execução ou de coerção
Além dos atos de comunicação processual, esses sujeitos auxiliares também praticam, em cumprimento às ordens do juiz, atos de coerção. Por exemplo: o juiz determinou a penhora de certo bem móvel. Para efetivá-la, o escrivão lavra o mandado de penhora e o entrega ao oficial de justiça, que apreenderá o bem, o entregará ao depositário e, ao final, lavrará o auto de penhora (CPC, arts. 664 e 665). Como já vimos ao tratarmos dos atos do juiz, os atos de coerção ou coação são atos de força, atos de autoridade inerentes ao poder jurisdicional. Os auxiliares da justiça cumprem esses atos como longa manus do juiz, em cumprimento às suas ordens. No exemplo dado acima, os atos de coação, ou seja, a apreensão e depósito do bem são realizados pelo oficial de justiça, após a lavratura do mandado pelo escrivão. Nesse caso, o ato incide sobre o patrimônio de determinada pessoa, que pode ser parte no processo, ou até um terceiro. 12.2.3.3. Atos de documentação
A última espécie de atos praticada pelos auxiliares da justiça é a dos chamados atos de documentação, os quais competem, em sua maioria, ao escrivão ou chefe de secretaria (CPC de 1973, arts. 166 e ss.; CPC de 2015, art. 206 e ss.). O escrivão é quem forma os autos do processo, isto é, o volume do processo. Ele ainda é o responsável, ao receber a petição inicial, por dar-lhe uma capa e nela lançar todos os dados do processo; carimbar, numerar e rubricar todas as folhas do processo; promover a juntada de todos os atos que forem praticados, através dos termos de juntada, de conclusão, de vista etc. É o que se chama a formação dos autos do processo. O escrivão é o guardião dos autos, do volume do processo, além de ser obrigado, por leis locais, a registrar em livros obrigatórios do cartório certos atos mais importantes do processo. Ele também é responsável por lavrar termos, autos e atas dos atos que pratica no processo, assim como dos atos que o faz sob o ditado do juiz. Por isso, o escrivão deve sempre acompanhar o juiz nos atos orais, justamente para escrever os termos, autos ou atas que registrem o conteúdo desses atos processuais. Assim, o escrivão acompanha o juiz nas audiências, nos leilões, nas inspeções judiciais, sempre com a função de redigir os termos, autos ou atas referentes a esses atos. Logo, o escrivão ou chefe de secretaria é o principal documentador do processo, não somente auxiliando nos atos que o próprio juiz documenta como autoridade maior, mas documentando ele próprio, com a fé pública que lhe é inerente, todos os outros atos que ocorrem na sua presença, formando e, ainda, conservando o volume do processo ou o seu arquivo eletrônico. O oficial de justiça também pratica muitos atos de documentação, no cumprimento das ordens judiciais. Por exemplo: o oficial de justiça procura o réu em seu domicílio para citá-lo. Caso o encontre, lerá para ele o mandado de citação; entregar-lhe-á a contrafé; e lavrará uma certidão, na qual descreverá o ocorrido, esclarecendo se o réu exarou ou não o ciente no corpo do mandado. Essa certidão prova a citação, documenta o ato de citação. 12.2.4. Atos dos outros sujeitos processuais
Todos os demais sujeitos do processo, terceiros intervenientes, Ministério Público, peritos, testemunhas, advogados, praticam atos de algumas dessas sete espécies: atos de movimentação, atos de documentação, atos de instrução, atos de execução, atos postulatórios, atos dispositivos e atos reais. Por isso, não há necessidade de analisar, especificamente, os atos praticados por esses outros sujeitos. E certos atos, que acima vinculamos a determinados sujeitos, podem eventualmente ser praticados por outro. É o que acontece, por exemplo, com os atos de movimentação, normalmente praticados pelo juiz ou pelos auxiliares da justiça, que também podem ser praticados pelas partes, na medida em que essas devem colaborar com o impulso processual, fornecendo informações e custeando as despesas. Nos países em que prevalece o impulso das partes, estas atuam como sujeitos principais dos atos de movimentação. Também os atos reais, que caracterizamos como atos das partes, são frequentemente praticados pelo oficial de justiça, no exercício do que costumamos chamar de “diligências”, como, por exemplo, a busca do réu para ser citado, a remoção de bens penhorados para o depositário, a condução coercitiva da testemunha. O próprio juiz pratica atos reais, como, por exemplo, o exame de pessoas ou coisas na inspeção judicial (CPC de 1973, arts. 440 a 443; CPC de 2015, arts. 481 a 484). Não me parece possível, portanto, tentar definir em cada sujeito, de modo inflexível, apenas um número limitado de funções ou de tipos de atos que pode praticar. Apenas os atos decisórios é que são privativos do titular originário do poder jurisdicional, que é o juiz. Na arbitragem, os árbitros também praticam essa espécie de atos. Mas o próprio avanço de uma concepção cooperativa do processo, verificado hodiernamente, tende a permitir que as partes participem ativamente na tomada de decisões, como examinamos na análise dos atos dispositivos das partes8. ________ 1
CARNELUTTI, Francesco.Sistema del diritto processuale civile. Padova: CEDAM, 1938. 2º v.; Sistema de derecho procesal civil. Tradução de Niceto
Alcalá-Zamora y Castillo e Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: UTEHA Argentina, 1944. 3º v. 2 Ver, por exemplo, os estudos: Execução de liminar em sede de mandado de
segurança. In: Estudos de direito processual. Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2005. p. 131-174; e A busca da verdade e a paridade de armas na jurisdição administrativa. In: Revista do Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal – CEJ, Brasília, n. 35, out./dez. 2006. p. 20-27. 3 Esbocei uma tentativa de sistematização de alguns tipos de atos das partes que
produzem efeitos nos dois planos, do direito processual e do direito material, no meu estudo Os atos de disposição processual – primeiras reflexões (p. 290-304). 4 FRANÇA, Rubens Limongi. Brocardos jurídicos – as regras de Justiniano. 4.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984. p. 136. 5 Ver o meu estudo Primeiros comentários sobre a reforma da execução oriunda
da Lei 11.232/05. In: Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, n. 36, mar. 2006. p. 70-86; ver também BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A nova definição de sentença. In: Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo, n. 39, jun. 2006. p. 78-85. 6 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo… p. 24. 7 Ver VARANO, Vincenzo. Organizzazione e garanzie della giustizia civile
nell’Inghilterra moderna. Milano: Giuffrè, 1973. 8 Ver CADIET, Loïc. Les conventions relatives au procès en droit français. Sur la
contractualisation du règlement des litiges. In: Revista de Processo, São Paulo, n. 160, ano 33, jun. 2008. p. 61-82; ver também o número especial Accordi di parte e processo, que reproduz o artigo de Cadiet e outros de Vincenzo Ferrari, Giorgio de Nova, Michele Taruffo, Remo Caponi e Adrian Zuckerman, divulgados no Seminário realizado em 1º de dezembro de 2007, na Universidade de Bolonha e publicados em suplemento ao n. 3 da Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, ano LXII, Milano, Giuffrè, set. 2008.
Os atos de comunicação processual têm por finalidade noticiar algo que já ocorreu no processo, como, por exemplo, a prolação de uma decisão, ou, ainda, cientificar a parte ou algum outro sujeito da ocorrência de um fato, de algum ato já praticado ou da abertura de um prazo para a prática de determinado ato. Atos de comunicação são, portanto, preponderantemente atos de ciência. Esses atos são também de grande importância para a efetividade do princípio do contraditório, uma vez que o conhecimento das decisões e dos demais atos praticados no processo assegura o direito das partes de nele participarem efetivamente, influindo no seu andamento e no seu desfecho. Todos os sujeitos do processo podem ser destinatários de atos de comunicação. Entretanto, a lei processual somente regula a esse título os atos de comunicação dirigidos às partes e aos demais sujeitos secundários do processo, omitindo as comunicações dos três sujeitos oficiais permanentes – juiz, escrivão e oficial de justiça – que, entre si, se comunicam, em regra, pessoalmente, já que têm o dever de ofício de comparecimento diário na sede do juízo e de permanência nesse local de trabalho durante todo o horário de expediente. No processo civil, existem apenas duas espécies de atos de comunicação: as citações e as intimações. O Código de Processo Penal, por sua vez, prevê também as notificações (art. 514).
13.1. CITAÇÃO O artigo 213 do Código de 1973 define a citação como o “ato pelo qual se chama a juízo o réu ou o interessado a fim de se defender”, ou seja, nos termos da lei, a citação é um chamamento inicial do réu para se defender. Contudo, a definição legal não é totalmente correta, pois, às vezes, o réu é citado não apenas para se defender, mas para que tome conhecimento da própria existência do processo e, em consequência disso, para dele participar e se defender ou não, conforme o caso. Por exemplo: o autor propõe uma ação de cobrança contra o réu e este é citado
regularmente. Através da citação o réu toma ciência da propositura da ação de cobrança em seu desfavor, dos seus direitos e também do ônus de se defender. Essa é a regra geral. Contudo, excepcionalmente, o réu é simplesmente cientificado da propositura da ação ou da demanda contra ele, e não também para defender-se. É o que ocorre, por exemplo, na notificação, que é um procedimento de jurisdição voluntária, caso em que o interessado é simplesmente cientificado, de modo formal, da intenção manifestada pelo requerente (CPC de 1973, art. 867; CPC de 2015, art. 726). Por outro lado, há casos em que alguém deve ser citado para participar do processo como sujeito principal, podendo escolher se figurará como autor ou como réu, ou podendo assumir uma outra posição, o que ocorre nos casos de litisconsórcio necessário ativo (v. mais adiante item 20.4.1) e de denunciação da lide (v. item 21.4), entre outros. Por tudo isso, o Código de 2015, no artigo 238, definiu com mais precisão citando como “o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual”. A menção ao executado não era estritamente necessária porque ninguém duvida, que eu saiba, que o executado, que normalmente é o devedor, seja réu na execução. Quanto ao interessado, para aqueles que entendem que na jurisdição voluntária não existem partes, ela serve para identificar aqueles que nela devam participar. Existem cinco espécies de citação: a citação pessoal por mandado; a citação pessoal pelo correio; a citação com hora certa; a citação por edital e a citação eletrônica. 13.1.1. Citação pessoal por mandado Primeiramente, é importante não confundir mandato com mandado. O primeiro é um contrato, cujo instrumento é a procuração, enquanto o segundo é um documento expedido pelo cartório para cumprimento de uma ordem do juiz. Na citação pessoal por mandado, o escrivão ou chefe de secretaria elabora o mandado de citação, do qual deve constar a ordem do juízo competente para que o oficial de justiça se dirija ao lugar em que se encontra o réu ou interessado e a
este dê ciência de que contra ele foi proposta uma ação ou de que a ele foi imposto pelo juiz o ônus de participar do processo como sujeito principal, cientificando o réu do endereço do juízo (CPC de 1973, art. 225; CPC de 2015, art. 250). O Código de 1973, nos artigos 225, inciso II, e 285, determina ainda que conste do mandado a advertência de que, não contestada a petição inicial, se presumirão por ele aceitos, como verdadeiros, os fatos articulados pelo autor, se o litígio versar sobre direitos disponíveis. No Código de 2015 não foi incluída essa advertência, devendo o mandado de citação mencionar apenas o prazo para contestar, sob pena de revelia, ou para embargar, e a intimação para comparecer à audiência de conciliação ou de mediação, com a menção do dia, da hora e do lugar do comparecimento (art. 250, incs. II e IV). A referida advertência, na vigência do Código de 1973, em geral correspondia a uma simples referência ao prazo para contestar sob pena de revelia, que foi tornada expressa no Código de 2015. Ocorre que o citado não é necessariamente pessoa versada em direito processual, que saiba o que significa a expressão “sob pena de revelia”. Contudo, ainda que não lhe seja difícil obter essa informação, há no mandado de citação do procedimento comum do Código de 2015 uma convocação para comparecimento à audiência de conciliação que, em caso de não vir a ser atendida pelo réu, poderá causar-lhe sensíveis prejuízos, a saber, ser sancionado com a multa cominada no § 8º do artigo 334 por ato atentatório à dignidade da justiça. A meu ver, essa sanção somente poderá ser aplicada se da sua incidência, em caso de ausência não justificada, tiver sido o réu advertido no mandado de citação. O mandado de citação é, portanto, um documento assinado pelo juiz ou pelo escrivão, por ordem do juiz, e instruído com cópia da petição inicial ou com o seu resumo, além dos demais requisitos presentes nos artigos 225 do Código de 1973, 250 do Código de 2015, e mais, em caso de intimação para audiência de conciliação ou de mediação, a advertência do que consta no § 8º do artigo 334. O oficial de justiça deve procurar o réu no endereço informado pelo autor e, se o encontrar, lerá para ele os termos do mandado, entregando-lhe uma cópia – a chamada contrafé –, e pedindo-lhe que exare o ciente no próprio mandado. Os artigos 215 do Código de 1973 e 242 do Código de 2015 preveem em alguns casos, como o do réu ausente e o do locador que tenha viajado para o Exterior sem deixar procurador, a citação em pessoa diversa daquela constante do
mandado, mas que mantenha vínculo com a relação jurídica que seja objeto da ação. O oficial de justiça certificará no verso do mandado o cumprimento da ordem de citação e retornará, então, à sede do juízo para que o mandado de citação devidamente cumprido seja juntado aos autos, ato que constitui, no procedimento ordinário do Código de 1973, o termo inicial da contagem do prazo de 15 dias para a defesa do réu (arts. 241, inc. II, e 297) e, no procedimento comum do Código de 2015, o termo inicial do prazo de vinte dias para a realização da audiência de conciliação ou mediação (art. 334). O oficial de justiça pode procurar o réu para ser citado em qualquer lugar (CPC de 1973, art. 216; CPC de 2015, art. 243). Daí dizer que o mandado de citação tem caráter itinerante, já que o oficial de justiça, não encontrando o réu no endereço declinado no mandado e obtendo informações de que ele se encontra em local distinto, tem o dever de dirigir-se ao endereço onde o réu se encontra e lá efetivar a citação. Contudo, há algumas restrições ao cumprimento dessa diligência pelo oficial de justiça. No Código de 1973, o artigo 172 determina que os atos processuais sejam praticados nos dias úteis, das seis às vinte horas, dependendo de autorização judicial expressa a citação nas férias forenses, nos feriados e nos dias úteis, além das vinte horas ou antes das seis horas da manhã. Tornou-se usual a inclusão dessa autorização em todos os mandados, tendo em vista ser comum as pessoas somente poderem ser encontradas em casa à noite ou nos finais de semana. Assim, o Código de 2015, no artigo 212, dispensou essa autorização expressa, podendo a citação ser efetivada em qualquer dia ou horário. Remanesce apenas a impossibilidade de citação durante o repouso noturno, por força da inviolabilidade de domicílio constante do artigo 5º, inciso XI, da Constituição. O repouso noturno é aquele horário, a partir das 20 horas e até as 6 horas da manhã, em que as pessoas normalmente se recolhem para dormir. Se o oficial de justiça, autorizado pelo juiz para cumprir mandado de citação nesse horário, se dirige à residência do réu, observa que as luzes da casa estão acesas, percebendo, pelo ruído da televisão ligada, que os moradores estão acordados, ele toca a campainha e, atendido por alguém, indaga pelo réu. Se a resposta que receber for
a de que ele está dormindo, não poderá invadir a casa, “salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro” (como expresso no inc. XI do art. 5º da Constituição). Se o réu estiver acordado, pedirá que venha até a porta ou que seja permitido o seu ingresso na residência, para citá-lo. Se não for atendido, pedirá ao juiz ordem de arrombamento e requisição de força policial para cumprimento do mandado (CPC de 1973, arts. 660 e 661; CPC de 2015, art. 846). Ressalte-se que, enquanto no Código de 1973 são feriados os domingos e os dias declarados em lei (art. 175), o Código de 2015 acrescentou a esse rol os sábados e os dias em que não haja expediente forense que, normalmente, são aqueles em que, por ato do Poder Executivo, o ponto é facultativo nas repartições públicas, embora não sejam feriados declarados por lei. Hoje, é muito comum, nas grandes cidades, em que as pessoas passam a maior parte do dia fora de casa, que o mandado de citação já seja expedido com a autorização aludida no § 2º do artigo 172 do Código de 1973. Há, ainda, outras restrições ao cumprimento dos mandados de citação, previstas nos artigos 217 do Código de 1973 e 244 do Código de 2015. São restrições que visam a respeitar determinadas ocasiões, como, por exemplo, o culto religioso, o luto ou as núpcias do réu. Assim, não poderá ser feita a citação – salvo para evitar perecimento do direito –, por exemplo, a quem estiver assistindo a ato de culto religioso; ao cônjuge ou a parente do morto, no dia do falecimento e nos sete dias seguintes; aos noivos, nos três primeiros dias após o casamento; e aos doentes graves. Em complemento, os artigos 218 do Código de 1973 e 245 do Código de 2015 impedem que o oficial de justiça cumpra a citação se perceber que o réu é mentalmente incapaz ou está impossibilitado de recebê-la, caso em que será submetido a exame por um médico e, caso confirmada a sua incapacidade, nomear-lhe-á o juiz um curador, preferencialmente entre os seus parentes próximos, para receber a citação e defendê-lo. Outra restrição ao caráter itinerante do mandado de citação diz respeito à área geográfica dentro do qual pode ser cumprido, tendo em vista que cada órgão jurisdicional tem uma base territorial que corresponde à sua área de competência territorial. Em consequência dessa delimitação geográfica, o juiz de uma determinada comarca não pode enviar o seu oficial de justiça para o cumprimento de um mandado de citação em outra comarca. Os artigos 230 do
Código de 1973 e 255 do Código de 2015 abrem exceção para possibilitar o cumprimento de diligências em comarcas contíguas de fácil comunicação e nas que se situem na mesma região metropolitana. As varas federais com sede nas capitais dos Estados e competência em todo o território estadual, exceto nos municípios que sejam sede de outras varas federais, como não dispõem de infraestrutura de apoio em todos os municípios do interior, também costumam valer-se da colaboração dos juízos estaduais e dos respectivos oficiais de justiça, através da expedição e cumprimento de citações e intimações por cartas precatórias, o que o Código de 2015 veio a chancelar no artigo 237, parágrafo único. 13.1.2. Citação pessoal pelo correio A citação pelo correio foi expandida e tornada prioritária pela Lei n. 8.710/93, que alterou diversos dispositivos do Código de 1973, uma vez que é menos custosa e mais célere do que a citação por mandado. Isso se deve ao fato de que essa espécie de citação prescinde do deslocamento pessoal do oficial de justiça, sendo cumprida por via postal, ou seja, utilizando-se de um serviço já prestado pelos Correios em todo território nacional. Portanto, atualmente, em consonância com os artigos 222 do Código de 1973 e 247 do Código de 2015, a citação deverá ser feita, em regra, pelo correio. Nessa modalidade de citação, o escrivão expede a carta de citação, que deverá conter os mesmos requisitos do mandado de citação e será entregue ao réu pelo agente postal. A citação tem de ser confirmada pela assinatura de mão própria do réu no Aviso de Recebimento (A. R.), pela sua devolução ao cartório e consequente juntada aos autos. Em regra, não é válida a citação pelo correio quando a correspondência é entregue à outra pessoa, e não ao próprio destinatário, ressalvados os casos de ausência e de locação, anteriormente mencionados, os de pessoas jurídicas, em que a citação pode ser feita na pessoa do gerente ou administrador (CPC de 1973, art. 223, parágrafo único; CPC de 2015, art. 248, § 2º). Neste último caso, admitiu o Código de 2015, na esteira da jurisprudência anterior, a entrega em mãos do funcionário da pessoa jurídica responsável pelo recebimento de
correspondências. Consagrando prática anterior e seguindo o modelo da execução fiscal, o Código de 2015, no § 4º do artigo 248, também permitiu, mesmo em relação a pessoas físicas, a entrega ao funcionário da portaria do edifício ou loteamento com controle de acesso, salvo se este funcionário declarar por escrito que o citando está ausente. A lei é imperfeita. Não somos um país europeu, em que os cidadãos têm de registrar na Polícia ou em outra repartição o seu endereço de residência e torná-lo ostensivo na portaria do edifício ou na caixa de recebimento de correspondência. Em grandes edifícios, os porteiros não conhecem a identidade de todos os moradores, familiares e empregados. O extravio de correspondências e a demora na sua entrega ao destinatário não são incomuns. Por outro lado, os funcionários das portarias nem sempre são pessoas devidamente treinadas e responsáveis para emitirem declarações sobre a ausência de moradores, ainda mais se interpelados por um oficial de justiça. Se o funcionário da portaria tiver recebido a carta de citação sem declarar que o citando está ausente e ele, ao chegar de viagem, receber a citação em prazo menor do que a lei exige para poder preparar-se para a audiência de conciliação ou para defender-se, poderá, comprovando o impedimento, requerer a devolução do prazo. A citação pelo correio tem outra vantagem em relação à citação pessoal por mandado: enquanto o oficial de justiça somente pode exercer suas funções nos limites geográficos da comarca ou nas áreas contíguas, o serviço postal opera em todo território nacional. Os artigos 222 do Código de 1973 e 247 do Código de 2015 contêm uma série de limitações à citação pelo correio. De acordo com o primeiro, a citação não poderá ser feita pelo correio: nas ações de estado, como, por exemplo, as ações de divórcio e separação e as ações de investigação de paternidade; quando o réu for incapaz; quando o réu for pessoa de direito público, vale dizer, a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e os entes da administração indireta que possuam natureza jurídica de direito público, como as autarquias e as fundações públicas; nos processos de execução, salvo na execução fiscal (art. 8º da Lei n. 6.830/80); quando o réu residir em local não atendido pela entrega domiciliar de correspondência, como, por exemplo, em favelas; quando o autor requerer outra forma de citação. O dispositivo do Código de 2015 manteve a mesma enumeração, excluindo apenas do rol de exceções as execuções. Nestas, ainda que o réu seja citado pelo
correio, normalmente haverá necessidade de extrair mandado para cumprimento pelo oficial de justiça para a penhora e avaliação, se o devedor em três dias não pagar nem indicar bens a serem penhorados (art. 829). 13.1.3. Citação com hora certa A citação com hora certa é um desdobramento da citação pessoal por mandado e está regulada nos artigos 227 a 229 do Código de 1973 e nos artigos 252 a 254 do Código de 2015. Procede-se à citação com hora certa quando o oficial de justiça, tendo procurado o réu três vezes no endereço declinado no mandado e, não o encontrando, suspeite de que ele esteja se ocultando para não receber a citação. Então, o oficial de justiça intima qualquer pessoa da família, ou em sua falta qualquer vizinho do citando, de que, no dia seguinte, voltará, na hora por ele designada, para citar o réu. O parágrafo único do artigo 252 do Código de 2015 acrescentou que, nos condomínios edilícios e nos loteamentos com controle de acesso, a intimação poderá ser feita ao funcionário da portaria responsável pelo recebimento de correspondência. Sempre entendi, na vigência do Código de 1973, que essa intimação também poderia ser feita a qualquer morador ou empregado da residência ou do endereço constante do mandado. Esse parente, vizinho ou outro destinatário da intimação tem a incumbência de avisar o citando de que o oficial de justiça voltará para fazer a citação no dia seguinte e de que ele deverá estar presente para recebê-la. Se, no dia e hora marcados, o réu não estiver presente, o oficial fará a citação na pessoa que tiver sido anteriormente intimada ou em outra que estiver presente, devendo lavrar em certidão o ocorrido. O Código de 2015 (art. 253, § 4º) determina que nesse caso o oficial de justiça fará constar da contrafé (não do mandado, como está redigido) a advertência de que será nomeado curador especial se houver revelia. Feita a citação com hora certa, o escrivão terá de enviar ao réu telegrama, carta, radiograma (Código de 1973) ou correspondência eletrônica (Código de 2015, art. 254), dando-lhe ciência de tudo. No Código de 2015 desaparece o radiograma, porque desnecessário, já que este é um telegrama expedido pelo
rádio, e é incluída a correspondência eletrônica, desde que o réu esteja devidamente cadastrado para receber esse tipo de comunicação, nos termos do artigo 246, § 1º, e da Lei n. 11.419/2006. No entanto, a contagem do prazo para a defesa do réu citado com hora certa ou para qualquer outro efeito se inicia com a juntada do mandado de citação aos autos, e não com essa carta, telegrama ou correspondência eletrônica direcionados ao réu após as diligências adotadas. A citação com hora certa não é uma citação real, já que não há certeza de que o réu a tenha recebido; é uma citação ficta, presumida, e, portanto, se o réu, citado com hora certa, não se defender no prazo legal, será considerado revel e o juiz terá de nomear-lhe um curador especial (CPC de 1973, art. 9º, inc. II; CPC de 2015, art. 72, inc. II). Essa modalidade de citação não existe no processo penal e, em minha opinião, também não é cabível na execução por quantia certa, no regime do Código de 1973, em que a não localização do réu vai determinar o arresto dos seus bens e a sua citação por edital (art. 653). O Código de 2015 deu novo tratamento a essa hipótese (art. 830). Determinado o arresto por não ter sido localizado o réu para a citação pessoal, o oficial de justiça procurará o devedor mais duas vezes para citá-lo pessoalmente. Não o encontrando e havendo suspeita de ocultação, realizará a citação com hora certa. Se, em seguida, o réu permanecer inerte, caberá ao exequente requerer a sua citação por edital. 13.1.4. Citação por edital A quarta modalidade de citação é a citação por edital. Cumpre analisar, inicialmente, as suas hipóteses de cabimento. A primeira delas diz respeito aos casos em que o réu ou citando é desconhecido ou incerto (CPC de 1973, art. 231, inc. I; CPC de 2015, art. 256, inc. I). Será que o réu pode ser pessoa incerta? Não, o réu não pode ser pessoa incerta, pois toda ação deve ter um sujeito passivo certo. Por exemplo: determinada pessoa deixa o seu automóvel estacionado numa via pública. Ao retornar, o proprietário percebe que o seu veículo sofreu uma avaria. Nesse caso, se não for possível identificar o autor do fato, ele não poderá simplesmente propor uma ação contra pessoa desconhecida ou ignorada.
Então, a que hipóteses se refere o inciso I dos artigos citados, quando prevê a citação por edital se o réu for desconhecido ou citando? Àquelas em que o autor não conhece os dados de identificação oficiais do réu, mas é capaz de fornecer outros dados que possibilitam identificá-lo. É o que ocorre, com grande frequência, nas ações possessórias. O autor pode ser capaz de identificar o réu, por exemplo, através das suas características físicas, ou através de outro meio idôneo, como pelo seu apelido etc. Portanto, é possível que o autor proponha uma ação sem indicar o nome completo do réu, mas deverá fornecer todos os dados possíveis à sua identificação. No artigo 942 do CPC de 1973, relativo à ação de usucapião, havia uma previsão de citação por edital dos réus “ausentes, incertos e desconhecidos”, fórmula que era criticada pela doutrina, porque, na verdade, não se tratava de verdadeira citação, que deve dirigir-se a pessoas determinadas. Daí a nova redação que a esse dispositivo deu a Lei n. 8.951/94, substituindo aquela expressão pela citação, “por edital, dos réus em lugar incerto e dos eventuais interessados”, esses, na opinião de Cândido Dinamarco, como destinatários de verdadeira intimação, para, se quiserem, intervirem como opoentes, sem que possam considerar-se partes pela simples publicação do edital1. O Código de 2015 não mais prevê o procedimento especial da ação de usucapião. No artigo 246, § 3º, exige a citação pessoal dos confinantes, salvo se a ação tiver por objeto unidade autônoma de prédio em condomínio. E no artigo 259 prevê a publicação de editais na ação de usucapião de imóvel, sem mencionar que se trate de citação, justamente para propiciar que terceiros interessados eventualmente venham a ingressar no feito. Conforme comentarei mais adiante, no item 13.5, estou convencido que não se trata nem mesmo de verdadeira intimação, porque esta tem como destinatário algum sujeito do processo, natureza que não possui qualquer eventual interessado na ação de usucapião, enquanto não intervier no processo. A segunda hipótese de citação por edital corresponde aos casos em que o réu ou citando se encontra em lugar ignorado, incerto ou inacessível (CPC de 1973, art. 231, inc. II; CPC de 2015, art. 256, inc. II). Nesse ponto, cabe a pergunta: a favela é um lugar inacessível? Ocorre que, em muitos casos, o endereço não identifica o lugar em que o réu
está. Por exemplo: a favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, é frequentemente identificada pelo seguinte endereço: Estrada da Gávea, n. 150 ou sem número. Então, em realidade, o oficial de justiça não dispõe com precisão do endereço do réu, e, portanto, tornou-se comum, nas favelas, que as correspondências e demais documentos sejam entregues na associação de moradores. Não, há, nesses casos, citação pessoal. A meu ver, a sociedade não deve aceitar a ideia de que a favela é um lugar inacessível. Isso seria o mesmo que aceitar a presença de outro Estado dentro do Estado brasileiro. Se existe um lugar no território nacional a que a autoridade pública não tem possibilidade de acesso, então sobre essa localidade o Estado não exerce a sua soberania. Nos dois Códigos, o § 1º do artigo de que estamos tratando dispõe ainda sobre os lugares inacessíveis, considerando como tais os países que recusarem o cumprimento de carta rogatória. Por sua vez, o § 2º determina que, nos casos em que o réu ou citando se encontre em local inacessível, “a notícia de sua citação será divulgada também pelo rádio, se na comarca houver emissora de radiodifusão”. Nas ações possessórias o Código de 2015 (art. 554, § 1º) admite perigosamente a citação editalícia dos réus que não forem encontrados no local o que, a meu ver, como enfatizaremos adiante, não dispensa que se esgote a tentativa de localizálos, antes de promover essa modalidade de citação. Os demais casos de citação por edital estão previstos em lei (CPC de 1973, art. 231, inc. III; CPC de 2015, art. 256, inc. III). Essa abertura para a possibilidade de previsão legal merece ser vista com cautela, porque a citação por edital é também uma modalidade de citação ficta, ou seja, uma citação em que se presume que o destinatário tenha tomado conhecimento da causa pela divulgação do edital, o que está muito longe de ser uma ilação razoável na sociedade atual, especialmente nos grandes centros. O réu, citado por edital, está numa posição de franca inferioridade no exercício de sua defesa em relação ao autor, porque provavelmente ele não vai tomar conhecimento da ação e quem o defenderá será um curador especial (CPC de 1973, art. 9º, inc. II; CPC de 2015, art. 72, inc. II), ao qual ele não transmitirá qualquer informação sobre a realidade da causa que possibilite a articulação de uma defesa eficaz. Por isso, a citação editalícia deve ser excepcionalíssima, somente se justificando, do ponto de vista humanitário,
quando a citação pessoal do autor (por mandado ou pelo correio) for realmente impossível, para que a ausência do réu não inviabilize o acesso do autor à justiça. Nesse aspecto, é prudente a regra inscrita no § 3º do artigo 256 do Código de 2015, segundo a qual o juiz somente poderá considerar que o citando se encontra em lugar ignorado, para efeito de citação por edital, “se infrutíferas as tentativas de sua localização, inclusive mediante requisição pelo juízo de informações sobre seu endereço nos cadastros de órgãos públicos ou de concessionárias de serviços públicos”. Portanto, a previsão de outros casos pelo legislador infraconstitucional deve preencher pressupostos excepcionais e insuperáveis. Daí por que me parece absolutamente inconstitucional, por exemplo, o disposto no § 1º do artigo 999 do Código de 1973, que determina no inventário a citação por edital, mesmo que tenham endereço certo, das pessoas que residam em comarca diversa daquela em que se abriu a sucessão ou que aí não sejam encontradas. O Código de 2015, no artigo 626, § 1º, corrige essa anomalia, determinando que no inventário o cônjuge ou companheiro, o herdeiro e o legatário sejam citados por edital. Determina, ainda, na minha opinião, com evidente exagero, a publicação de edital para conhecimento de terceiros, o que a meu ver somente deverá ocorrer se houver razoável suspeita de que possam existir outros interessados cuja identidade ainda não é conhecida. Os artigos 232 do Código de 1973 e 257 do Código de 2015 regulam os requisitos da citação por edital. De acordo com esses artigos, a citação por edital pressupõe a afirmação de ausência, por parte do autor, sob as penas da lei, ou seja, sob ameaça do processo criminal por falsidade ideológica (Código Penal, art. 298), ou a certidão do oficial de justiça de que o réu se encontra em lugar incerto e não sabido, ou de que ocorre uma das outras hipóteses previstas em lei. Contudo, conforme observamos anteriormente, o juiz não deve se contentar apenas com a simples afirmação do autor ou com a certidão do oficial, e, portanto, deve apurar, dentro das circunstâncias de cada caso, com os elementos constantes dos autos e os meios de informação de que disponha sobre o paradeiro de pessoas que se encontrem ao seu alcance, a melhor forma de localizar o réu, para constatar se realmente o seu paradeiro é desconhecido. A consulta a cadastros de órgãos públicos, como a Receita Federal e a Justiça Eleitoral, assim como às concessionárias de energia elétrica e de telefonia, se apresenta indispensável.
No regime do Código de 1973 (art. 232), ao determinar a citação por edital, o juiz fixará o seu prazo de carência (inc. IV) de 20 a 60 dias. Em seguida, o cartório ou secretaria: redigirá o edital com os mesmos requisitos de um mandado de citação, dele fazendo constar, se o litígio versar sobre direitos disponíveis, a advertência de que, se o réu não contestar a ação no prazo legal, se presumirão verdadeiros os fatos alegados pelo autor (inc. V); o afixará na sede do juízo no lugar de costume, que deve ser um lugar público do cartório ou do prédio do fórum, visível e acessível a todos (inc. II); promoverá a sua publicação, uma vez no Diário Oficial e pelo menos duas vezes em jornal local, se houver (inc. III); e, no final de tudo, juntará aos autos um exemplar de cada publicação e do anúncio cuja afixação certificará. A juntada aos autos dos editais publicados e afixados é essencial para que todos os sujeitos do processo, em especial o juiz e as partes, possam verificar se todos os requisitos foram rigorosamente cumpridos, se as partes e o processo estão precisamente identificados, se o inteiro teor da petição inicial está nele transcrito ou está resumido de modo a permitir que o réu se inteire do seu conteúdo etc. Como vimos, o edital deve ser publicado três vezes: uma no diário oficial e duas em jornal local. Se não houver jornal local, o que ocorre em muitas comarcas do interior, assim como nos casos em que o autor for beneficiário da assistência judiciária (art. 232, § 2º), o edital será publicado três vezes no diário oficial. Entre a primeira e a terceira publicação deve haver um intervalo máximo de quinze dias. A lei não estabelece a ordem dessas publicações, podendo duas delas, a do órgão oficial e uma de jornal local, ocorrer no mesmo dia. Na fixação do prazo de carência do edital, que variará entre vinte e sessenta dias (art. 232, inc. IV), o juiz considerará as circunstâncias da localidade em que será veiculado o edital, estimando o prazo necessário para que os seus termos sejam de conhecimento da respectiva comunidade. Esse prazo de carência é contado a partir da primeira publicação e, por isso, os exemplares dos jornais em que houverem sido publicados os editais devem ser juntados ao processo, a fim de que a data em questão fique devidamente comprovada. Qualquer prazo subsequente, como o prazo para contestar no procedimento ordinário do Código de 1973 (art. 297), começará a correr quando esgotado o prazo de carência do edital. Então, na verdade, se o edital possui um prazo de
carência de vinte dias, por exemplo, o réu dispõe desses vinte dias, além dos quinze dias para se defender. No regime do Código de 2015 (art. 257), ao determinar a citação por edital, igualmente o juiz fixará o seu prazo de carência de 20 a 60 dias (inc. III) e, eventualmente, determinará também a sua publicação em jornal local de ampla circulação ou por outros meios, que especificará (parágrafo único). Em seguida, o cartório ou secretaria: redigirá o edital com os mesmos requisitos de um mandado de citação, dele fazendo constar a advertência de que será nomeado curador especial em caso de revelia (inc. IV); e promoverá a sua publicação no sítio do tribunal na rede mundial de computadores, na plataforma de editais do Conselho Nacional de Justiça (inc. II) e eventualmente em jornal local e por outros meios, conforme determinado pelo juiz. Embora não haja previsão legal nesse sentido, será conveniente a juntada aos autos de um exemplar de cada publicação, para que todos os sujeitos do processo, em especial o juiz e as partes, possam verificar se todos os requisitos foram rigorosamente cumpridos, se as partes e o processo estão precisamente identificados, se o inteiro teor da petição inicial está nele transcrito ou está resumido de modo a permitir que o réu se inteire do seu conteúdo etc. O edital deve ser publicado pelo menos duas vezes: uma no sítio do tribunal na rede mundial de computadores e outra na plataforma de editais do CNJ. A meu ver equivocadamente, o inciso III se refere à publicação única, quando, na verdade, o que pode ocorrer é que as duas publicações, no sítio do tribunal e na plataforma do CNJ, saiam no mesmo dia, caso em que dessa data fluirá o prazo de carência. Na fixação do prazo de carência do edital, que variará entre vinte e sessenta dias (art. 257, inc. III), o juiz também considerará as circunstâncias da localidade, a distância em relação à capital na qual o edital será publicado, a facilidade de acesso à internet e aos sítios do tribunal e do CNJ, o que certamente também terá sido levado em consideração para eventualmente determinar a publicação por algum outro meio, estimando o prazo necessário para que os seus termos sejam de conhecimento da respectiva comunidade. Esse prazo de carência é contado a partir da primeira publicação. Qualquer prazo subsequente, como o prazo de antecedência da audiência de conciliação ou de mediação no procedimento comum do Código de 2015 (art. 335), começará a
correr quando esgotado o prazo de carência do edital. A inobservância de quaisquer dos requisitos acima, em qualquer dos dois regimes, acarreta a nulidade da citação. Entretanto, é importante observar que, tendo sido atendidos todos os seus requisitos, a citação por edital não é nula pelo simples fato de o réu não ter efetivamente tomado conhecimento da propositura da ação, uma vez que esse conhecimento é presumido. Daí a fragilidade, na sociedade atual, dessa espécie de citação. A despeito do ritmo acelerado da vida moderna e dos inúmeros compromissos pessoais e profissionais que assoberbam a vida das pessoas, a lei presume que o réu tomou ciência da ação proposta contra ele pela mera afixação de um edital numa tabuleta na porta do cartório ou do fórum, e pela sua publicação em jornais locais e no órgão oficial, no regime do Código de 1973, ou pela veiculação do edital em dois sítios da internet, no regime do Código de 2015. Será que essa veiculação torna público, conhecido, o edital na comunidade em que se supõe que o citando se encontre ou frequente e que, pelos comentários que as pessoas que o leem venham a transmitir umas às outras, chegue a citação ao concreto conhecimento do seu verdadeiro destinatário? Por outro lado, importa frisar que a citação por edital existe para assegurar ao autor o seu direito de acesso à justiça. Isso porque o desaparecimento do réu, o desconhecimento de seus dados oficiais de identificação ou o fato de residir em local inacessível não podem impedir que o autor se socorra da justiça para ir em busca dos seus direitos. Contudo, essa modalidade de citação é uma solução que, obviamente, sacrifica o direito de ampla defesa do réu e, como restrição a um direito fundamental, deve ser reservada para casos excepcionais e apenas na medida em que seja estritamente necessária para assegurar o gozo de outro direito fundamental, qual seja, o direito de acesso à justiça do autor. Daí o juiz ter de esgotar todos os meios para localizar o réu antes de determinar a sua citação por edital. A lei, visando a garantir um mínimo de defesa ao réu revel citado por edital, tal qual na citação com hora certa, manda que o juiz nomeie em seu favor curador especial (CPC de 1973, art. 9º, inc. II; CPC de 2015, art. 72, inc. II). Todavia, esse curador especial é um defensor muito limitado, pois não conhece o réu e tampouco a versão que este poderia dar a respeito dos fatos alegados pelo autor e
as provas que poderia indicar ou fornecer. Ainda nesse sentido, o Código de Processo Civil estabelece que, aos réus citados por edital ou com hora certa, não se aplica o ônus da impugnação específica dos fatos, cuja inobservância implica, como regra, para aqueles que foram citados pessoalmente, a presunção de veracidade dos fatos não impugnados, o que, contudo, não é suficiente para retirá-los da sua posição de inferioridade (CPC de 1973, art. 302; CPC de 2015, art. 341). 13.1.5. Citação por meio eletrônico A citação por meio eletrônico foi introduzida no nosso sistema processual pela Lei n. 11.419/2006 (CPC de 1973, art. 221, inc. IV). Ao criar essa nova modalidade de citação, o legislador adotou o sistema da autocomunicação (arts. 5º e 6º da Lei n. 11.419/2006), segundo o qual o destinatário da citação é considerado citado no momento em que acessa o sítio eletrônico do tribunal e nele toma conhecimento da citação. Entretanto, esse sistema de autocomunicação está vinculado a outro requisito, que é o cadastro prévio do destinatário da citação a esse serviço de comunicação processual por meio eletrônico. Assim, é necessário, primeiramente, que o usuário desse serviço – seja ele parte ou advogado – faça o seu cadastro, de acordo com os artigos 2º e 5º da Lei n. 11.419/2006. Então, qualquer pessoa que queira passar a ser citada por meio eletrônico – evitando, assim, diante do número muito elevado de processos, que, por exemplo, os seus representantes ou procuradores sejam frequentemente molestados por oficiais de justiça, bem como possíveis extravios de cartas registradas pelo correio –, deve cadastrar-se previamente no portal do tribunal. Para efetivar esse cadastro, o tribunal exigirá dos usuários uma identificação eletrônica, a fim de ficar sabendo sempre quando um deles acessar o portal. Era uma utopia pensar que aqueles que são procurados pela justiça passariam a buscá-la voluntariamente, para fazer parte de ações movidas em seu desfavor. Além disso, o processo eletrônico, que será desencadeado com a citação, exigirá equipamentos de informática com grande capacidade e, consequentemente, de custo elevado, tanto pelos tribunais quanto pelos usuários, assim como sistemas
operacionais e programas que compatibilizem as informações dos diversos órgãos para que os processos possam transitar eletronicamente por todos os órgãos jurisdicionais, dos diversos graus de jurisdição. Assim, o primeiro pressuposto para a realização da citação por meio eletrônico é o prévio cadastro do usuário, na forma do artigo 2º da Lei acima mencionada. A partir desse cadastro, quando o usuário acessar o portal e consultar o processo em que está pendente a sua citação, o tribunal o considerará citado. O Código de 2015 dá um importante passo à frente na expansão da utilização da citação por meio eletrônico, estabelecendo, nos §§ 1º e 2º do artigo 246, que será preferencial para as empresas públicas e privadas, com exceção das microempresas e das empresas de pequeno porte, as quais ficam obrigadas a manter cadastro junto aos sistemas de processo em autos eletrônicos, para efeito de recebimento de citações e intimações. Também a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e as entidades da administração indireta, como autarquias e fundações públicas, deverão efetuar esse cadastro. Na sua entrada em vigor, o Código de 2015 concedeu o prazo de trinta dias para que as pessoas jurídicas de direito público, assim como o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Advocacia Pública efetuem esse cadastro (art. 1.050). As entidades privadas deverão cadastrar-se no prazo de trinta dias da inscrição dos respectivos atos constitutivos (art. 1.051). No silêncio da lei, presume-se que as preexistentes já deverão estar cadastradas na data da entrada em vigor do Código de 2015. Se não estiverem, deverão cadastrar-se no mesmo prazo do artigo 1.050. O segundo requisito da citação por meio eletrônico é o de que o usuário do sistema de citações eletrônicas assuma o compromisso de entrar no sítio do tribunal pelo menos de dez em dez dias (Lei n. 11.419/2006, art. 5º, § 3º). Isso porque, se o tribunal disponibilizar no seu portal um aviso de citação e transcorrerem dez dias sem que o usuário destinatário dessa citação tenha acessado o referido portal, ele será considerado citado, obviamente, de forma ficta, presumida. Cumpre, ainda, observar que a lei, nesse ponto, sequer contém qualquer ressalva quanto aos feriados, ao carnaval, às férias, ao recesso de fim de ano que há em alguns ramos do Poder Judiciário etc. Diante disso, quem estará disposto a submeter-se espontaneamente a esse risco?
Suponhamos que o usuário necessite viajar, por período superior a dez dias, para local em que haja dificuldade de acessar a internet. Será que ele assumirá o compromisso de que, num intervalo máximo de dez dias, acessará o portal do tribunal, sob pena de ser presumido citado? Penso que não. As pessoas jurídicas e demais órgãos mencionados no artigo 1.050 do Código de 2015 terão de organizar-se para que não haja descontinuidade na consulta ao portal de citações e intimações dos sítios dos tribunais. As pessoas físicas, para as quais o cadastro ainda não é obrigatório, dificilmente correrão o risco de cadastrar-se, a não ser quando se sentirem forçadas, como hoje acontece com os advogados, pois sem o cadastramento têm enorme dificuldade, muitas vezes insuperável, de acesso ao conteúdo dos processos eletrônicos. O terceiro requisito, que está na parte final do artigo 6º da Lei n. 11.419/2006, é o da disponibilidade da íntegra dos autos no portal do tribunal, para consulta do citando. Assim, não basta que do sítio eletrônico conste o aviso da citação, mas que esteja disponível para consulta pelo usuário o inteiro teor dos autos, com todas as suas petições, documentos, decisões, para que ele não precise ir ao fórum para consultar o processo na íntegra. No mais, a citação por meio eletrônico rege-se também pelas regras gerais aplicáveis às outras modalidades, como os requisitos presentes nos artigos 225 do Código de 1973 e 250 do Código de 2015. Há, entretanto, ainda uma peculiaridade que diz respeito a essa modalidade, que é a contagem do prazo para a defesa, que será analisada mais adiante, quando tratarmos da resposta do réu. A rigor, essa espécie de citação pode ser implantada a qualquer momento em qualquer tribunal, desde que este crie o sistema de cadastro, passe a publicar no seu portal os avisos de citação e nele disponibilize a íntegra dos processos, e desde que os usuários se registrem e cumpram as demais exigências feitas pela lei. Essa virtualização do processo e a imposição de exigências custosas para que os advogados exerçam o patrocínio judicial terão o nefasto efeito da elitização da advocacia. A meu ver, apenas alguns grandes escritórios de advocacia, que estarão aparelhados tecnologicamente, poderão cumprir todos os requisitos exigidos pela lei e atuar com eficácia no processo eletrônico.
Assim, os demais advogados e escritórios de pequeno porte terão grande dificuldade de acesso ao conteúdo dos processos, que não existirão mais na forma de papel, não terão mais realidade física. Por outro lado, com o advento do Código de 2015, qual será a consequência para as pessoas jurídicas e demais entidades que, apesar de legalmente obrigadas, não tiverem providenciado o seu cadastramento ou que estiverem cadastradas em tribunal diverso daquele em cujo sítio foi publicado o aviso de citação? A meu ver não poderão considerar-se citadas, porque a norma que impõe o cadastramento não prevê tal consequência. Nesse caso, a citação deverá efetuarse por qualquer outro meio, podendo o réu que tiver omitido dolosamente o cadastramento sujeitar-se à responsabilidade por dano processual (arts. 79 e 80, inc. IV). 13.1.6. Citação pelo escrivão ou chefe de secretaria O Código de 2015 cria uma nova modalidade de citação “pelo escrivão ou chefe de secretaria, se o citando comparecer em cartório” (art. 246, inc. III). A ideia de que o comparecimento de alguém em cartório faculta ao escrivão efetuar-lhe diretamente e em caráter oficial uma comunicação processual havia sido introduzida pela Lei n. 8.710/93 no artigo 238 do Código de 1973, a respeito das intimações. O Código de 2015 estende essa possibilidade às citações, mas não regula os requisitos e as formalidades que o escrivão terá de cumprir. Em edições anteriores desta obra, já havia feito recomendações quanto ao uso dessa modalidade de intimação, às quais voltarei no momento oportuno (item 13.4.1). Estendido esse mecanismo pelo Código de 2015 à citação, considero necessárias algumas observações. Alguns sistemas processuais chegam a proibir expressamente que alguém que intimado para comparecer em juízo para a prática de algum ato em determinado processo, como, por exemplo, depor como testemunha, seja surpreendido, ao apresentar-se em cartório, com a citação pelo escrivão ou pelo oficial de justiça para responder a outro processo, do qual é réu. Os cidadãos não devem ser desestimulados de colaborar com a justiça, nem deve esta fazer uso de artifícios e simulações para atingir os seus fins, como enviar o escrivão uma cartinha ao citando, pedindo-lhe para comparecer em cartório a fim de tratar de assunto do
seu interesse. Qualquer pessoa de bem atenderia a esse tipo de convocação, para, apresentando-se em juízo, ser surpreendida com uma citação para se defender em processo cuja existência ignorava. A lealdade e a boa-fé, que o Código de 2015 tanto exalta (art. 5º), não autorizam que o réu seja vítima de uma cilada. A economia processual e a celeridade não justificam o emprego desse expediente. A utilizar-se esse meio de citação, deverá o escrivão preencher todos os requisitos e formalidades de uma citação pessoal por mandado efetivada pelo oficial de justiça, de que já tratamos no item 13.1.1, lendo a ordem de citação e entregando ao réu contrafé com todos os requisitos do mandado de citação, cientificando-o da data da audiência de conciliação ou mediação, sob pena de ato atentatório à dignidade da justiça, ou do prazo para contestar, de tudo lavrando certidão nos autos, ao pé da qual pedirá que o réu exare o seu ciente.
13.2. A NULIDADE DA CITAÇÃO E O COMPARECIMENTO ESPONTÂNEO DO RÉU A citação é, sem dúvida, o ato de comunicação mais importante do processo, pois é através dela que o réu passa a ter conhecimento da propositura da ação e que se completa a formação da relação processual. Por isso, a lei considera uma das nulidades mais graves a nulidade de citação, o que está expresso nos artigos 247 do Código de 1973 e 280 do Código de 2015. Nesse ponto, prevalece, no processo civil, o formalismo, pois, se todos os requisitos da citação não tiverem sido atendidos, o processo estará eivado de um vício insanável, que compromete a validade de todos os atos subsequentes. Entretanto, essa afirmação de que a nulidade de citação é a mais grave das nulidades está muito relativizada, uma vez que o próprio Código prevê que a nulidade de citação se convalide se o réu comparecer espontaneamente, conforme o disposto nos artigos 214, § 1º, do Código de 1973 e 239, § 1º, do Código de 2015. Nesse passo, é muito importante que os advogados ajam atentamente, cientes de que, se o réu tomar conhecimento da ação antes de ser efetivada a sua citação, o seu comparecimento espontâneo ao processo, por meio da prática de qualquer ato processual – como, por exemplo, a juntada da procuração –, suprirá a ausência de citação.
O Código de 1973, entretanto, confere ao réu a faculdade de comparecer ao processo somente para arguir a nulidade da citação (art. 214, § 2º), hipótese em que o prazo para contestar será reaberto após a decisão que a reconhecer, se for o caso. Essa regra não foi reproduzida no Código de 2015 que determinou, no § 1º do artigo 280, que, comparecendo o réu espontaneamente, fluirá a partir dessa data o prazo para apresentação de contestação ou de embargos à execução. Cabe recordar, já que a redação do dispositivo é imprecisa, que no procedimento comum do Código de 2015, à citação normalmente segue a audiência de conciliação ou de mediação, correndo o prazo de contestação a partir do término dessa audiência. Então, o § 1º deverá ser interpretado no sentido de que a partir do comparecimento do réu contar-se-á o prazo de antecedência da audiência de conciliação (art. 334).
13.3. EFEITOS DA CITAÇÃO Dispõe o artigo 263 do Código de 1973 que a ação se considera proposta desde o momento em que a petição inicial é despachada pelo juiz, distribuída ou protocolada. Entretanto, o mesmo artigo determina que a citação produzirá importantes efeitos em relação ao réu, que são os mencionados no artigo 219 do mesmo Código, a saber: a prevenção do juízo, a litispendência, a litigiosidade da coisa, a constituição do devedor em mora e a interrupção da prescrição. O Código de 2015 dispõe diferentemente que a ação se considera proposta quando a petição inicial for protocolada (art. 312), condicionando à citação a produção em relação ao réu dos efeitos mencionados no artigo 240, que são os mesmos do artigo 219 do Código de 1973, com exceção da prevenção do juízo, que, conforme já examinamos no item 7.2, foi desvinculada da citação ou da efetivação desta no prazo legal, determinando o artigo 59 que ela se verifique com o registro ou distribuição da petição inicial. Como o registro e a distribuição ocorrem em momento imediatamente subsequente ao protocolo da inicial e salvo se esses atos se retardarem por algum motivo imputável ao autor, a prevenção do juízo, que é a fixação da competência em determinado órgão jurisdicional quando dois ou mais órgãos forem igualmente competentes para a mesma causa, coincidirá com esse protocolo, deixando de constituir efeito da citação. Dos quatro efeitos remanescentes da citação, a litispendência é um efeito tipicamente processual; a constituição do devedor em mora e a interrupção da
prescrição são efeitos de direito material e a litigiosidade da coisa atinge tanto o plano do direito processual quanto o do direito material. No Código de 1973, a prevenção do juízo, que também é um efeito processual da citação, no caso de ações conexas, somente decorre da citação se as diversas ações estiverem pendentes perante juízos com diferentes competências territoriais, porque, se a competência dos juízos diversos for territorialmente a mesma, o juízo prevento será o que tiver despachado em primeiro lugar (art. 106). Nesse Código, à prevenção do juízo, à litispendência e à interrupção da prescrição se aplicam os §§ 1º a 4º do artigo 219, que fazem retroagir esses efeitos da citação à data do despacho inicial ou do ajuizamento da ação, se aquela for efetivada no prazo de dez dias do despacho que a ordenou ou, mesmo que excedido esse prazo, se o retardamento não resultar de culpa do autor, mas de demora apenas imputável ao próprio serviço judiciário. Em relação à litispendência e à interrupção da prescrição, o Código de 2015 adota essas mesmas regras nos §§ 1º a 4º do artigo 240, fazendo-as retroagir à data da propositura que, consoante já vimos, é normalmente a data do protocolo da petição inicial. A litispendência, que consiste na repropositura de ação idêntica a outra anteriormente proposta (CPC de 1973, art. 301, §§ 1º a 3º; CPC de 2015, art. 337, §§ 1º a 3º), vai determinar a extinção da posterior sem resolução do mérito, por violação do princípio da unidade da jurisdição (CPC de 1973, art. 267, inc. V; CPC de 2015, art. 485, inc. V). A litigiosidade da coisa, na jurisdição contenciosa, é a situação de incerteza do direito das partes quanto à possibilidade de uso e gozo do bem jurídico que é objeto da demanda, com fundamento no direito alegado pelo autor. Esse efeito da citação submete as partes, como consequência dos deveres de lealdade, boa-fé e colaboração com a administração da justiça, a certas limitações na fruição e na disponibilidade dos seus bens e direitos, para não pôr em risco a plena eficácia da decisão final da causa, tornando ineficazes eventuais atos de disposição, que poderão caracterizar fraude de execução (CPC de 1973, arts. 592, inc. V, e 593; CPC de 2015, arts. 790, inc. V, e 792) e obrigando-as a obedecer às restrições impostas pelo juiz e a abster-se de alterar a realidade fática relevante para o julgamento da causa, o que poderá constituir atentado (CPC de 1973, arts. 879-
881; CPC de 2015, art. 77, inc. VI e § 7º). Esse efeito somente se produz a partir do momento em que o réu tiver sido citado, não retroagindo como os anteriores, porque, enquanto não tiver conhecimento oficial da demanda contra ele proposta, não se poderá presumir que qualquer ato de disposição de bens ou de direitos por ele praticado tenha tido a intenção de lesar ou impedir o exercício ou o gozo de algum direito pelo seu adversário. Por exceção introduzida pela Lei 11.382/2006 com o acréscimo do artigo 615-A do Código de 1973, correspondente ao artigo 792, inciso II, do Código de 2015, a averbação no registro de imóveis ou de veículos do ajuizamento da execução também tornará a coisa litigiosa, para efeito de fraude de execução, mesmo antes da citação. O Código de 2015 estendeu esse efeito à averbação no registro de propriedade do bem da hipoteca judiciária ou de qualquer outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude. Voltaremos ao assunto quando estudarmos, no 4º volume, a execução. A constituição do devedor em mora diz respeito às ações de cobrança de créditos. De acordo com o artigo 394 do Código Civil, “considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer”. Embora o conceito transcrito inclua a mora do devedor e a do credor, o efeito da citação se aplica apenas à mora do devedor, que por ela incorre na responsabilidade pelo ressarcimento dos consequentes prejuízos (art. 395) que, nas obrigações pecuniárias, são os chamados juros da mora, as custas e os honorários de advogado (art. 404). O devedor pode estar em mora antes da citação ou, até mesmo, muito antes do ajuizamento da ação, nas hipóteses reguladas nos arts. 397 e 398 do Código Civil, conforme reconhece o artigo 240 do Código de 2015, ao ressalvar justamente esses casos de obrigação a termo, de anterior notificação judicial ou extrajudicial ou de ato ilícito. Nesses casos, a citação não produzirá o efeito aqui comentado, porque esse já se terá produzido anteriormente. Na verdade, a mora decorrerá da efetivação da citação, sem retroação a momento anterior, apenas se ela não se tiver ainda produzido. A interrupção da prescrição pode ser definida como a extinção da exigibilidade ou da pretensão ao recebimento de um crédito de natureza patrimonial, por não ter sido exercida no prazo legal (Código Civil, art. 189)2. O que se interrompe
não é propriamente a prescrição, mas o respectivo prazo, que deixa de fluir com a citação, que retroage ao despacho ou ao ajuizamento, nos termos dos §§ 1º a 4º dos artigos 219 do Código de 1973 e 240 do Código de 2015. Interrompida a prescrição pela citação, somente voltará a fluir o respectivo prazo a partir do último ato do processo (Código Civil, art. 202, parágrafo único), salvo nos casos de prescrição intercorrente, que é uma figura excepcional de prescrição no curso do processo, aplicável às ações contra a Fazenda Pública, sempre que o feito fique paralisado pela metade do prazo legal (Decreto 20.910/32, art. 8º; DecretoLei n. 4.597/42, art. 3º) e a qualquer outra causa que, por desídia do autor, fique sem movimentação pelo prazo legalmente previsto. Também de prescrição intercorrente tratar-se-á na hipótese de tornar-se exequível a sentença condenatória, sem que o autor requeira o seu cumprimento nos termos do artigo 475-J do Código de 1973 e dos §§ 1º a 4º do artigo 523 do Código de 2015, deixando fluir por inteiro o lapso prescricional. O Código Civil de 2002 estabeleceu no artigo 202 que a interrupção da prescrição somente ocorrerá uma vez. Essa disposição, que visa a coibir sucessivas interrupções abusivas, sem que o credor promova efetivamente a busca da tutela do seu direito em juízo, deve ser interpretada no sentido de que a ulterior interrupção, se oriunda de citação, impedirá que a prescrição se consuma, enquanto pendente a causa, salvo se ocorrer a prescrição intercorrente. Não seria razoável interpretar a norma em afronta à garantia constitucional da tutela jurisdicional efetiva (Constituição, art. 5º, inc. XXXV), condenando o autor à perda da exigibilidade do seu crédito e premiando manobras procrastinatórias do devedor. O artigo 220 do CPC de 1973 manda aplicar o disposto no artigo 219 a todos os prazos extintivos, além dos prazos prescricionais. Também o § 4º do artigo 240 do Código de 2015 impõe o efeito retroativo da interrupção da prescrição previsto no § 1º à decadência e a quaisquer outros prazos extintivos. A extensão visa a assegurar que a citação ou o simples ajuizamento, desde que retroajam os seus efeitos, assegurem a tempestividade da propositura dentro dos respectivos prazos de todas as ações ou pretensões sujeitas a prazos de decadência, como a ação rescisória (CPC de 1973, art. 495; CPC de 2015, art. 975). O prazo de decadência não se interrompe, mas ajuizada a ação antes do seu término, se a citação se efetuar no prazo de 10 dias do despacho que a ordenou ou posteriormente devido a demora não imputável ao autor, terá sido evitada a
consumação da decadência. Há certos procedimentos em que a interrupção da prescrição ou a purgação da decadência não dependem da citação, mas do simples ajuizamento ou do despacho de recebimento da petição inicial, independentemente de eventual demora no chamamento do réu a juízo, até mesmo imputável ao autor. É o que ocorre com a execução fiscal, por força do artigo 174, parágrafo único, inciso I, do Código Tributário Nacional (Lei n. 5.172/66, com a redação da Lei Complementar n. 118/2005), em que a interrupção da prescrição decorre do despacho inicial do juiz. É também o caso do mandado de segurança, cujo prazo de decadência de 120 dias não se consuma se o mandado for apenas ajuizado tempestivamente (Lei n. 12.016/2009, art. 16). O caput do artigo 219 do Código de 1973 assegura a constituição do devedor em mora e a interrupção da prescrição pela citação, mesmo que esta tenha sido determinada por juiz incompetente. Conforme já expusemos no exame do § 2º do artigo 113 (item 6.4), a incompetência corresponde à falta de um pressuposto processual, que invalida os pronunciamentos conclusivos sobre o mérito da causa. A rigor, portanto, também a litispendência e a litigiosidade da coisa deverão ser preservadas na citação por juiz incompetente, observados os requisitos que mencionei naquela passagem. Nesse sentido dispõe o artigo 240 do Código de 2015. Por fim, incluo como último efeito da citação a estabilização da demanda, prevista no artigo 264 do Código de 1973 e 329, inciso I, do Código de 2015, que impedem alterações objetivas ou subjetivas da causa, salvo com o consentimento do réu até o saneamento do processo e, depois desse momento, nem mesmo com esse consentimento. De início, cumpre ressalvar que essas restrições se aplicam apenas com esse rigor à jurisdição de conhecimento. Na jurisdição cautelar existe a chamada fungibilidade da tutela cautelar ou de urgência, que permite ao juiz, até mesmo de ofício, alterar o provimento almejado pelo requerente, nos termos dos artigos 805 do Código de 1973 e 297 do Código de 2015. E na execução, se o exequente pode desistir unilateralmente da demanda (CPC de 1973, art. 569; CPC de 2015, art. 775), com maior razão pode redefini-la em termos objetivos ou subjetivos. Ademais, os artigos 620 do CPC de 1973 e 805 do CPC de 2015 igualmente consagram a fungibilidade do meio executório3.
A estabilização da demanda, nos moldes dos artigos 264 do Código de 1973 e 329, inciso I, do Código de 2015, me parece absolutamente inconveniente, típica de um processo judicial que é visto preponderantemente como um jogo de espertezas e não como instrumento de efetiva pacificação dos litigantes. Muitas vezes o autor é surpreendido com as alegações ou documentos apresentados pelo réu e já não pode mais rever a sua postulação. Outras vezes, a demora no julgamento final da causa distancia o litígio congelado na citação do litígio real, que já evoluiu com o passar do tempo. O réu pode fazer certos ajustes, alegando a qualquer tempo fatos e direitos supervenientes, além de matérias de ordem pública, mesmo anteriores (CPC de 1973, art. 303; CPC de 2015, art. 342). O autor está adstrito à causa estabilizada no momento da citação. Esse formalismo tem se mostrado extremamente iníquo nos juizados especiais, particularmente nos casos em que o autor postula sem advogado. Os juízes dos juizados muitas vezes se sentem obrigados a ignorar o artigo 264 do Código de 1973, invocando para tanto a informalidade dos juizados (Lei n. 9.099/95, art. 2º). Mas mesmo nos demais procedimentos é frequente essa dificuldade. Outros sistemas processuais são mais flexíveis, permitindo ajustes da demanda no curso do processo. Reservando-me para um estudo mais aprofundado do tema em outra sede (v. no 2º volume, o item 1.2), parece-me que, estando o autor de boafé e desde que a inovação não coloque o réu em dificuldade excessiva no exercício da sua defesa, deva aquele ser autorizado a emendar unilateralmente a sua postulação a qualquer tempo ou pelo menos até conhecer a reação do réu ao seu pedido inicial, assegurada ao demandado a mais ampla defesa, novo prazo para contestar a inovação do autor, podendo propor e produzir novas alegações e novas provas. Afinal, no momento em que profere a sentença, o juiz deve estar o mais próximo possível do litígio, tal qual ele existe no mundo real nesse momento.
13.4. INTIMAÇÃO Como já conceituada, a citação é o chamamento inicial do réu ou interessado para participar, como sujeito principal, da relação processual. Assim, por exclusão, todos os outros atos de comunicação processual, que não constituam a citação inicial do réu ou interessado, são denominados de intimações. Os sujeitos do processo, com exceção do juiz, do escrivão e do oficial de justiça,
são destinatários das intimações. Como já visto, os sujeitos auxiliares permanentes da justiça e o juiz comunicam-se entre si diretamente na própria sede do juízo. Assim, se o juiz, através de despacho, ordena que o escrivão recolha o mandado de citação que está em poder do oficial de justiça, aquele chefe do cartório toma ciência da ordem judicial no momento em que ocorre a entrega dos autos com tal mandamento. Com o comparecimento do oficial de justiça à sede do juízo, que deve ser diário, ele receberá a comunicação diretamente do escrivão, para que devolva o referido mandado. Então, essa comunicação entre o juiz, o escrivão e o oficial de justiça é direta, feita na própria sede do juízo ou no cartório, e não depende de intimação. De acordo com os artigos 456 do Código de 1973 e 366 do Código de 2015, encerrados os debates em audiência ou oferecidos pelas partes os memoriais, o juiz proferirá a sentença desde logo ou no prazo que o primeiro fixa em 10 e o segundo fixa em 30 dias. Para o controle desse prazo, é usual que o escrivão lance nos autos uma certidão ou termo em que declara que fez a conclusão dos autos ao juiz, isto é, de que efetuou a entrega dos autos ao juiz para a prolação da sentença. É a partir do momento em que receber os autos com o termo de conclusão que o magistrado deverá cumprir o prazo previsto no artigo mencionado. Com o fito de permitir às partes a observância e controle dos prazos do juiz, no cartório deve existir um livro – raramente escriturado corretamente – com o registro de todos os autos que estão conclusos. A rigor, o escrivão, ao entregar os autos ao juiz, deve assentar nesse livro a remessa feita e registrar também o momento da devolução dos processos sentenciados ou despachados. Hoje a informática estrutura um registro virtual para o mesmo fim. Na verdade, o juiz, o escrivão e o oficial de justiça não precisam ser intimados. Entretanto, deve haver um registro oficial que documente a movimentação dos processos entre eles. Os demais sujeitos do processo, no entanto, têm de ser intimados, para que tomem conhecimento do conteúdo do processo, seja para a simples ciência ou para providenciarem alguma medida judicial. Essas, portanto, são as duas
finalidades da intimação: cientificar e chamar os destinatários para praticar algum ato processual. Em resumo, as intimações são quaisquer atos de comunicação, que não a citação inicial, dirigidas aos sujeitos do processo – salvo o juiz e seus auxiliares permanentes –, com a finalidade de dar ciência aos seus destinatários dos atos processuais já praticados ou de que eles possam ou devam praticar determinado ato. Trataremos, a seguir, das espécies de intimações, ponto que apresenta elevada afinidade com a disciplina das citações. São espécies de intimação: a intimação pessoal; a intimação pelo correio; a intimação pela publicação de aviso no Diário da Justiça; e a intimação por meio eletrônico. 13.4.1. Intimação pessoal A primeira espécie é a chamada intimação pessoal, que é cumprida normalmente pelo oficial de justiça. Em realidade, a intimação pessoal poderá ser feita tanto pelo comparecimento do destinatário na sede do juízo como por meio da expedição de mandado de intimação, a ser cumprido pelo oficial de justiça ou ainda pela abertura de vista do processo ao destinatário, com a lavratura de um termo e a efetiva entrega dos autos. Essa espécie de intimação se dá, em certos casos, pela natureza do sujeito, que tem a prerrogativa da intimação pessoal de todos os atos processuais. É o que ocorre, v.g., com o Ministério Público (CPC de 1973, art. 236, § 2º; CPC de 2015, art. 180), com a Advocacia-Geral da (Lei Complementar n. 73/93, arts. 35 a 38) e com a Defensoria Pública (Lei n. 1.060/50, art. 5º, § 5º; CPC de 2015, art. 186). Nas execuções fiscais, por força da Lei n. 6.830/80, todos os procuradores públicos desfrutam do mesmo direito (art. 25). No Código de 2015, a prerrogativa da intimação pessoal foi estendida em quaisquer causas a todos os representantes judiciais das pessoas jurídicas de direito público (art. 183). Recordo-me do tempo em que o promotor trabalhava no próprio edifício do fórum e, então, para ser intimado, bastava que o escrivão levasse o processo a ele, sem a necessidade de expedição do mandado, para que naquele exarasse sua
ciência, mas lavrando apenas um termo de vista. Com o gigantismo que assumiram as diversas procuradorias e o elevado número de processos em que se faz necessária intimação pessoal dos seus representantes, tem-se discutido se essas intimações devem considerar-se efetivadas no momento da entrega dos autos pelo funcionário do cartório no protocolo da respectiva procuradoria ou somente quando o promotor ou procurador exara o seu ciente ou recebe oficialmente os autos. Parece-me que, se a procuradoria organizou o seu serviço de recebimento de autos do cartório, passa a ser de sua responsabilidade fazer chegar os autos às mãos do procurador, considerando-se efetivada a intimação desde o recebimento dos autos no protocolo da instituição. Por isso, o § 1º do artigo 183 do Código de 2015, a que fazem remissão os artigos 180 e 186, § 1º, determina que as intimações pessoais de todos esses promotores, defensores ou procuradores públicos se efetuem não pelo cumprimento de mandado pelo oficial de justiça, mas por carga, remessa ou meio eletrônico. Na carga, é a retirada dos autos do cartório judicial pelo procurador ou por funcionário da respectiva procuradoria que corresponde à intimação. Na remessa é o recebimento pelo procurador ou funcionário da sua procuradoria dos autos, transportados do cartório judicial por oficial de justiça, por funcionário cartorário ou por via postal, que corresponde à intimação. De acordo com este Código, todos esses procuradores públicos devem ter efetuado o seu cadastro para recebimento de citações e intimações eletrônicas, nos termos dos artigos 246, § 2º, e 270, parágrafo único. Destas intimações trataremos a seguir, no item 13.4.4. O mandado pode ser dispensado nas intimações, o que, todavia, não se aplica às citações, exceto na hipótese de que tratamos no item 13.1.6. Essa dispensa era objeto, inclusive, de uma disposição expressa do Código de 1973 (art. 238), que foi suprimida pela Lei n. 8.710/93. Contudo, como a forma dos atos processuais é livre (CPC de 1973, art. 154; CPC de 2015, art. 188), a expedição formal do mandado de intimação não é necessária quando a comunicação for simples, casos em que pode ser substituída pela petição da própria parte, na qual tenha sido requerida a intimação e o juiz tenha proferido despacho ordenando a intimação. Desde que a petição contenha todos os dados necessários para que o intimado tome ciência do ato processual que lhe é comunicado ou do ato que deva praticar, bem como dos dados de identificação do processo e de localização da sede do juízo, servirá a petição de mandado.
Na vigência do Código de 1973 tornou-se comum, ao apresentar o rol de testemunhas, requerer a parte que a própria petição represente o mandado. Assim, após o deferimento do juiz, o escrivão entrega a própria petição ao oficial de justiça, que intima as testemunhas sem a necessidade de extrair o mandado. Importante observar que nesse caso, para que ocorra a dispensa do mandado, a petição deve indicar, além dos dados anteriormente referidos, o dia, o local e a hora em que a testemunha deverá comparecer, além da sua qualificação. Antes das reformas que foram realizadas no Capítulo IV, Título V, do Livro I do Código de 1973, referente às intimações, as partes eram intimadas pessoalmente para a prática dos atos reais. Logo, quando a parte tinha de prestar depoimento pessoal, era intimada pessoalmente através de mandado, o que, aliás, ainda está previsto no artigo 343, § 1º, do Código de 1973. Ocorre que, a partir de 1993, com a nova redação conferida ao artigo 238 do referido Código pela Lei n. 8.710/93, bem como com o advento do artigo 274 do Código de 2015, todas as intimações às partes, aos seus representantes legais e aos advogados são feitas pelo correio, ou, se presentes no cartório, pelo escrivão ou chefe da secretaria. Este último Código priorizou, ainda, em relação aos sujeitos que tenham se cadastrado, as intimações por meio eletrônico (art. 270). A intimação pessoal também pode ser realizada pelo escrivão diretamente ao destinatário que compareça na sua presença. Os Códigos de 1973 e de 2015 não enumeram essa modalidade como espécie autônoma, embora a ela se refiram na parte final do caput dos artigos 238 e 274, respectivamente. Entretanto, os advogados e os escrivães devem ser extremamente cautelosos ao se utilizarem dessa modalidade de intimação. Isso porque, ainda que o advogado tenha consultado os autos na presença do escrivão, este deve, de forma clara e expressa, avisar àquele que o está intimando pessoalmente. Assim, não pode o escrivão, após a simples vista dos autos pelo advogado e depois que esse se retirar da sua presença, lavrar uma certidão afirmando que o intimou, se não o fez formal e diretamente ao próprio advogado. O destinatário, portanto, deve ser conscientizado de que está sendo intimado. Aconselha-se, ainda, a colheita da assinatura do advogado abaixo da certidão de intimação feita pelo serventuário, o que confere um maior grau de certeza sobre a validade da intimação.
Essa intimação pessoal em cartório foi perigosamente ampliada pelo Código de 2015 nos §§ 6º e 7º do artigo 272, com a simples retirada dos autos do cartório com carga pelo advogado, por pessoa por este credenciada, que pode não ser sequer um estagiário, pela Advocacia Pública, pela Defensoria Pública ou pelo Ministério Público. A simples retirada dos autos implicará intimação “de qualquer decisão contida no processo retirado, ainda que pendente de publicação”. Se consultar os autos em cartório passou a ser perigoso, muito mais o será retirálos. E quantas vezes os advogados, estagiários ou prepostos a seu mando retiram os autos de cartório por alguns minutos, deixando os seus documentos de identidade, sem assinar nenhum termo de carga ou recebimento, apenas para tirar cópias das últimas peças ou de todo o processo. Não se pode supor que o advogado constituído na causa, a cujas mãos não se sabe se as cópias chegarão a tempo oportuno e se a tempo hábil tê-las-á ele lido, porque sabe Deus em que folha haverá alguma decisão relevante que dele exija um peticionamento tempestivo, esteja intimado de todas as decisões existentes nos autos desse processo desde a sua retirada pelo seu preposto. Penso que esses dispositivos deverão ser interpretados com muito rigor para não se criar uma inverossímil e, portanto, injurídica presunção de intimação, incompatível com a natureza de meio de comunicação real, que caracteriza a intimação pessoal. Parece-me que a única interpretação possível é a de que a carga corresponde apenas à entrega dos autos ao advogado ou ao seu preposto com a simultânea colheita da sua assinatura no termo de carga no livro cartorário próprio. À retirada dos autos para extração de cópias, a que se refere o § 3º do artigo 107, não se aplica o disposto nos §§ 6º e 7º do artigo 272. O sistema processual brasileiro prioriza as intimações por meio eletrônico e pelo correio, mas a intimação pessoal deverá ser promovida sempre que uma das duas primeiras não for cabível ou tiver se frustrado e em alguns casos em que, por economia processual, pode a intimação pessoal ser realizada com muito menos custo e dispêndio de atividade de quaisquer sujeitos, como na hipótese do comparecimento do interessado em cartório. Na intimação pessoal por mandado cumprido pelo oficial de justiça ou efetivada diretamente pelo escrivão, será lavrada certidão pelo serventuário que praticar o ato, com os requisitos dos artigos 239, parágrafo único, do Código de 1973 e
275, § 1º, do Código de 2015. 13.4.2. Intimação pelo correio A segunda espécie é chamada de intimação pelo correio, feita por meio de carta registrada com Aviso de Recebimento (A. R.) de mão própria, constituindo a forma de intimação mais usual, que pode ter como destinatário qualquer dos sujeitos processuais. O artigo 238 do Código de 1973 estabeleceu como regra a intimação pelo correio das partes, dos seus representantes legais e dos advogados, dela dispondo, porém, de modo incompleto, ao não mencionar como seus destinatários também os demais sujeitos do processo. A Lei n. 11.382/2006, que reformou a execução de título extrajudicial, acrescentou a esse dispositivo um parágrafo único, assim dispondo: “Presumemse válidas as comunicações e intimações dirigidas ao endereço residencial ou profissional declinados na inicial, contestação ou embargos, cumprindo às partes atualizar o respectivo endereço sempre que houver modificação temporária ou definitiva.” A redação desse novo dispositivo suscitou muita incerteza, porque a lei, ao se referir a essa presunção de validade, não esclareceu se, para validar a comunicação, a mera entrega da carta no endereço declinado seria suficiente, isto é, se estaria dispensada a assinatura do aviso de recebimento de mão própria pelo destinatário. Em alguns países do continente europeu, existe regra semelhante. Ocorre que lá, em razão de uma enorme diferença cultural no trato da questão, o cidadão tem o dever de comunicar, não só ao juízo, mas também à própria polícia, a mudança de seu endereço, sob pena de incidir até mesmo em sanção criminal, pois o Estado tem o direito de saber onde o indivíduo tem residência, onde ele pode ser localizado, e este tem o dever de manter o Estado informado. A meu ver, esse dispositivo deve ser interpretado de acordo com a realidade brasileira. Em primeiro lugar, o nosso país tem dimensões continentais, o que pode dificultar, em muitos casos, o serviço postal. Além disso, a declinação do endereço não pode ser suficiente para gerar a presunção de que a intimação ocorreu, pois não raro deixamos de receber correspondências a nós endereçadas,
ou recebemos correspondências dirigidas a terceiros erroneamente. Portanto, não há no Brasil segurança na comunicação postal semelhante à encontrada na Europa. Por outro lado, não se pode retirar totalmente a eficácia do mencionado dispositivo. Então, como devemos interpretá-lo? Parece-me que a sua aplicação deve restringir-se às partes, que, em caso de mudança de endereço sem comunicação ao juiz, serão presumidas intimadas, se a correspondência for encaminhada ao seu antigo endereço e estiver comprovada a mudança de endereço sem comunicação ao juiz, restando dispensado o aviso de recebimento. Contudo, se não há prova de que a parte mudou de endereço ou se, ao fazê-lo, comunicou ao juiz, não pode ser dispensado o aviso de recebimento. O Código de 2015 manteve o dispositivo no parágrafo único do artigo 274, mas aperfeiçoou a sua redação, prescrevendo que: “Presumem-se válidas as intimações dirigidas ao endereço constante dos autos, ainda que não recebidas pessoalmente pelo interessado, se a modificação temporária ou definitiva não tiver sido devidamente comunicada ao juízo, fluindo os prazos a partir da juntada aos autos do comprovante de entrega da correspondência no primitivo endereço”. Se o destinatário simplesmente estiver ausente do endereço, sem haver prova de que tenha mudado de endereço, ficará frustrada a intimação. Nesse novo regime processual, parece-me que será dispensada a assinatura do interessado no aviso de recebimento, se houver prova de que o interessado não mais reside ou trabalha no endereço por ele anteriormente indicado nos autos. Essa prova poderá ser a informação do agente dos Correios que o procurou no endereço para entregar a carta de intimação ou outro qualquer documento idôneo que chegue ao conhecimento do juiz. Leve-se em conta, entretanto, que a informação do agente dos Correios nem sempre se reveste da necessária confiabilidade. Esses agentes não são funcionários públicos, mas empregados de uma empresa estatal ou até de serviços privados por ela utilizados. Por outro lado, os porteiros dos edifícios muitas vezes não sabem fornecer uma informação precisa sobre o paradeiro dos moradores. Assim, dispensar o aviso de recebimento assinado pelo próprio destinatário poderá constituir um risco de nulidade que poderá comprometer todo o desdobramento do processo. Se entregue a carta no endereço, mas não colhida a assinatura do destinatário no aviso de recebimento, este comparecer, estará suprido o eventual vício.
O uso do correio é de grande valia para a justiça, pois dispensa o deslocamento do oficial de justiça, mas, por outro lado, em certos casos, pode funcionar como instrumento de procrastinação do processo, o que não se coaduna com o nosso ordenamento jurídico – artigo 5º, inciso LXXVIII, da atual Constituição da República. O juiz deve conhecer o tempo de demora normal para a expedição e efetivação da intimação pelo correio, assim como para a devolução dos avisos de recebimento, de acordo com a sua experiência a respeito do funcionamento do cartório e dos Correios na localidade, para somente determinar a intimação das partes, das testemunhas, peritos e outros sujeitos por esse meio se tiver segurança de que o prazo disponível permitirá o seu cumprimento e a devolução dos avisos antes da audiência designada. O Código de 2015 inova de modo arrojado, atribuindo pela primeira vez em nosso direito processual ao advogado a responsabilidade de promover diretamente, sem a intermediação dos serventuários e do cartório, a intimação do advogado da outra parte (art. 269, §§ 1º e 2º), assim como das testemunhas que arrolou (art. 455), por correspondência própria, expedida e entregue por via postal com aviso de recebimento. Se se frustrar a intimação da testemunha por essa via, se o destinatário for servidor público ou uma daquelas pessoas que por deferência têm a prerrogativa de definir dia, hora e local para serem inquiridas (art. 461) ou se a testemunha tiver sido arrolada pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, a intimação deverá ser promovida pelo próprio juiz, por via postal, por mandado a ser cumprido pelo oficial de justiça (art. 455, § 4º) ou por ofício de requisição expedido ao chefe da repartição ou ao comando da corporação em que serve o funcionário. Embora omisso o artigo 269, por analogia com o inciso I do § 4º do artigo 455, deve-se entender que, frustrada a intimação postal de advogado a advogado, e não sendo possível a intimação pelo Diário da Justiça, deverá ser promovida a intimação judicial, não mais pelo correio, mas por mandado a ser cumprido pelo oficial de justiça. Cumpre observar que a intimação pessoal do advogado da parte é muito rara, porque, por via de regra, o advogado é intimado ou por meio eletrônico ou pelo Diário da Justiça. Entretanto, nas comarcas do interior cujo expediente forense de intimações não é publicado no Diário da Justiça, nem dispõem de outro órgão
oficial para essa publicação, são intimados pessoalmente de todos os atos do processo os advogados das partes que têm domicílio na sede do juízo (CPC de 1973, art. 237, inc. I; CPC de 2015, art. 273, inc. I). 13.4.3. Intimação pela publicação de aviso no Diário da Justiça Embora a lei processual atualmente priorize a intimação por meio eletrônico e a intimação pelo correio, quando a parte, que não seja pessoa jurídica de direito público nem o Ministério Público, constitui advogado, a partir desse momento, passa ela a ser intimada de todos os atos, exceto para a prática de atos reais, que são aqueles que somente o próprio intimado pode praticar, na pessoa do seu advogado, que recebe todas as intimações e postula em juízo em nome da parte. E a intimação dos advogados, nas capitais dos Estados, no Distrito Federal e em todas as comarcas do Interior em que haja órgão de imprensa que oficialmente publique as intimações judiciais, se efetiva pela publicação de aviso no Diário da Justiça (também é usada a denominação Diário Oficial – DO, na parte destinada ao Poder Judiciário) ou no órgão de imprensa local já mencionado. É uma modalidade de intimação que comunica atos praticados no processo, fixando o termo a quo dos prazos para a prática de atos das partes que não sejam personalíssimos e que devem, então, normalmente ser praticados pelos próprios advogados. No Estado do Rio de Janeiro e em todas as comarcas do Interior é adotada essa modalidade de intimação dos advogados, porque o Diário da Justiça do Estado publica as intimações de todos os juízos da capital e do Interior. Aliás, esse Diário da Justiça hoje também é eletrônico, ou seja, virtual, podendo ser consultado na internet, conforme determina a Lei específica que regula o processo eletrônico (Lei n. 11.419/2006). O caput do artigo 272 do Código de 2015 parece admitir que a intimação dos advogados das partes também possa efetivar-se por meio eletrônico, ou seja, como veremos no item seguinte, pela sua veiculação no sítio do tribunal dependente de consulta em certo prazo pelo destinatário cadastrado. Isso é possível, mas não é desejável. Se o advogado tem procuração nos autos, a sua expectativa é a de ser intimado pelo Diário da Justiça. A consulta ou a busca cotidiana no Diário da Justiça faz parte da rotina de qualquer advogado e de qualquer escritório. Sou menos do que um aprendiz em processo eletrônico, mas a minha convivência no meio forense gera a impressão de que estamos vivendo uma babel e de que o Código de 2015 não deveria ter se imiscuído nessa seara, de
forma tão incompleta. Ou deixasse integralmente o processo eletrônico para a lei especial, ou o regulasse integralmente. Há tribunais em que o formulário de cadastramento do advogado para peticionar eletronicamente lhe faculta a opção entre a intimação eletrônica ou via Diário da Justiça. Há outros em que não existe essa opção, o que significa que, entrando em vigor o Código de 2015, ficará ao arbítrio de cada tribunal, ou até de cada órgão julgador ou serventia, efetuar a intimação por um ou outro meio, gerando surpresa e incerteza para o advogado sobre em qual veículo acompanhar o andamento do processo. O teor insatisfatório desse dispositivo faz presumir que, feita a intimação pelo sítio do tribunal, não deverá ser realizada a intimação pelo Diário da Justiça, mas poderá haver partes com advogados diferentes, cadastrados ou não para receber intimações eletrônicas. O cartório deverá expedir intimações pelas duas vias, as contagens dos prazos serão diferentes. O que não pode ocorrer – e infelizmente vem ocorrendo, mesmo antes da entrada em vigor do Código de 2015 – é a supressão da publicação das intimações no Diário da Justiça, substituída pela intimação no sítio do tribunal, mesmo para advogados não cadastrados e que, portanto, não têm acesso ao portal em que são veiculadas as intimações, porque o cadastramento não é obrigatório para os advogados, mas apenas para os advogados dos entes públicos, pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público. E se o órgão que anteriormente efetuava as intimações pelo Diário da Justiça passar a efetuar a intimação dos advogados cadastrados no sítio do tribunal, em respeito ao princípio da confiança legítima, deverá expedir uma intimação no Diário da Justiça correspondente a cada processo em que ocorrerá a mudança de regime para que os advogados cadastrados a ele se adaptem sem riscos. Por outro lado, se, implantada para os advogados cadastrados a intimação pelo sítio do tribunal, acontecer um colapso que a impeça, antes de passar a efetuar as intimações pelo Diário da Justiça, o cartório deverá intimar da mudança cada advogado cadastrado por via postal ou por mandado com aviso de recebimento. A intimação pela simples publicação de aviso no Diário da Justiça constitui-se de uma nota contendo o número do processo, os nomes das partes, os nomes dos advogados e seus respectivos números de inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, além do próprio conteúdo da intimação (CPC de 1973, art. 236, § 1º; CPC de 2015, art. 272, § 2º). O dispositivo do Código de 2015, resolvendo situações específicas sobre as quais o diploma anterior era omisso, prevê ainda que o advogado requeira que da publicação conste apenas o nome da sociedade
de advogados a que pertença (§ 2º), que a grafia dos nomes das partes não contenha abreviaturas (§ 3º), que a grafia dos nomes dos advogados corresponda ao nome completo, o mesmo que conste da procuração ou que esteja registrado junto à OAB (§ 4º), e que, havendo pedido expresso, a publicação seja dirigida a um ou mais advogados escolhidos dentre os diversos que tenham nos autos procuração do cliente (§ 5º). As regras sobre as grafias dos nomes não podem levar ao exagero. Mello com um ou dois eles. Greco com um ou dois cês. Nomes de empresas, de partes ou de advogados muito longos e mais conhecidos em forma abreviada. Por outro lado, nem sempre o nome completo do advogado constou da procuração. Ao fazer uso da procuração pela primeira vez, esclareça o advogado a grafia que deseja ter o seu nome nas intimações. Se não o fez, parece-me que não poderá reclamar. A verdade é que, na consulta de documentos por meio eletrônico, cada vez mais são usados instrumentos de busca literais, que não captam eventuais imprecisões gráficas. Nesse caso, seria melhor se evoluíssemos para um sistema de identificação numérica, por exemplo, pelo CPF ou pelo CNPJ ou, no caso do advogado, pelo número de inscrição na OAB. Enquanto isso não ocorrer, a multiplicação de regras legais para resolver todos os problemas possíveis não soluciona todos que pretende e cria novos, que caberá à doutrina e à jurisprudência resolver, com riscos quanto à validade das intimações e aos atos subsequentes que delas decorrem. Assim, se o juiz, ao receber a contestação, necessitar despachá-la em réplica ao autor (CPC de 1973, arts. 326 e 327; CPC de 2015, arts. 350 e 351), como em geral ocorre, o escrivão, em ato contínuo, expedirá um aviso para publicação no Diário da Justiça, com o conteúdo do referido despacho, contendo os requisitos mencionados acima. Tanto o advogado do réu quanto o do autor são intimados desse despacho. O primeiro nada tem a fazer, enquanto o segundo disporá de dez dias, a partir da publicação do aviso, para apresentar a réplica. Como já vimos, esse tipo de intimação dos advogados somente é cabível nas capitais dos Estados, no Distrito Federal e nas comarcas em que houver órgão que publique o expediente forense (os atos do Poder Judiciário), o que não significa, necessariamente, publicação no Diário Oficial, podendo ocorrer por meio de jornal local conveniado à justiça para essa função. Então, o advogado, para se precaver, normalmente assina o periódico que contenha o expediente forense e lê as colunas dos juízos nos quais tramitam causas cujo patrocínio lhe caiba. Mais prudente ainda é, além da leitura desses
periódicos, a contratação de serviços privados de recortes, que comunicam aos advogados as publicações do Diário da Justiça que contenham os seus nomes. Com a implantação em Brasília, no Rio de Janeiro e em vários Estados dos Diários da Justiça eletrônicos, após a Lei n. 11.419/2006, os serviços de recortes também se estendem a essa nova modalidade de publicação. No Estado do Rio de Janeiro, em todas as suas comarcas, os advogados são intimados pelo Diário da Justiça. Em outros Estados, nas comarcas do interior que não possuam Diário da Justiça ou outro jornal conveniado, os advogados serão intimados pessoalmente, por mandado cumprido pelo oficial de justiça ou pelo escrivão se comparecerem em cartório, salvo nos casos em que não forem domiciliados na comarca, hipótese em que a intimação deve ser, necessariamente, pelo correio (CPC de 1973, art. 237, inc. II; CPC de 2015, art. 273, inc. II). Este último artigo suscita a mesma questão já comentada a respeito do artigo 272, de compatibilização desse regime de intimação do advogado com o da intimação eletrônica, sendo pertinentes os mesmos comentários que antes fiz a esse respeito. Cabe salientar ainda que a publicação de aviso que contenha erros ou omissões nos dados de identificação do advogado que, em decorrência, não tome ciência da intimação, sofrendo o seu cliente algum prejuízo, é nula. No Código de 1973, essa nulidade decorre do disposto no artigo 247, a que corresponde no Código de 2015 o artigo 280. Entretanto, neste último Código, a nulidade da intimação do advogado é regulada expressamente nos §§ 5º, 8º e 9º do artigo 272 do Código de 2015. O comentário que me sugere a leitura desses dispositivos é que o legislador deu à hipótese tratamento diverso e de certo modo mais favorável ao prejudicado pelo vício de intimação do que o que conferiu ao réu prejudicado pelo vício de citação no artigo 239, § 1º, que seguramente, na maioria dos casos, será muito mais grave do que o vício de intimação. Enquanto no vício de citação o comparecimento espontâneo do réu supre o vício e reabre, se acolhido, a partir dessa data, o prazo subsequente (v. item 13.2), no vício de intimação, embora a arguição do vício deva ser feita na prática do ato subsequente (art. 272, § 8º), que será considerado tempestivo se acolhida a arguição, pode a parte deixar de praticar o ato subsequente se tiver sido privada em razão do vício de intimação do acesso prévio aos autos, caso em que lhe será devolvido o prazo para a prática do ato, a partir da decisão que reconhecer a nulidade (§ 9º). Alerte-se que nem sempre a arguição se fará com a prática de ato subsequente. Imagine-se, por
exemplo, a intimação para uma audiência, com vício de nulidade na publicação. A sua arguição poderá ocorrer a qualquer tempo em petição autônoma até a data da audiência, com consequências que poderão variar, dependendo da antecedência da arguição e dos atos programados para a audiência, mas também poderá a parte, em razão do desconhecimento da designação, deixar de comparecer à audiência e posteriormente vir a alegar a nulidade em petição avulsa ou em qualquer outro ato imediatamente subsequente ao conhecimento do vício (CPC de 1973, art. 245; CPC de 2015, art. 278). Ademais, é preciso observar com atenção os casos em que ambos os patronos estão sendo intimados num mesmo aviso, pois a intimação pode ser nula em relação a uma das partes, e não o ser em relação à outra. Nessas hipóteses, se o prazo for comum, ele não correrá contra nenhuma das partes, mas, se o prazo for independente, o advogado cujos dados estejam corretos estará devidamente intimado e o seu prazo fluirá normalmente. 13.4.4. Intimação por meio eletrônico A quarta espécie de intimação é a realizada por meio eletrônico. A Lei n. 11.419/2006 criou as intimações por meio eletrônico e o Diário da Justiça online. A implantação desses sistemas de intimação virtual seguiu inicialmente o modelo adotado pela Justiça Federal. O nível de celeridade na sua disponibilização aos usuários, entretanto, tem variado de uma para outra organização judiciária. Em verdade, essa lei trata, de uma maneira geral, do chamado processo eletrônico, possuindo disposições sobre os atos de comunicação processual. Nesse passo, remeto o leitor aos comentários feitos sobre as citações por meio eletrônico, que tratam do peticionamento eletrônico, da assinatura também eletrônica e da realização de cadastro junto aos tribunais. O artigo 4º da Lei n. 11.419/2006 autoriza aos tribunais a criação de Diários da Justiça eletrônicos e afirma, no seu § 2º, que “a publicação eletrônica na forma deste artigo substitui qualquer outro meio e publicação oficial, para quaisquer efeitos legais, à exceção dos casos que, por lei, exigem intimação ou vista pessoal”.
Portanto, de acordo com o dispositivo acima, quando determinada organização judiciária cria definitivamente o Diário da Justiça eletrônico, está dispensada, em seu âmbito, a publicação dos atos e avisos no Diário da Justiça físico, impresso em papel. Entretanto, cumpre advertir que, no tocante às intimações realizadas por meio do Diário da Justiça eletrônico, há diferenças quanto à contagem dos prazos, previstas nos §§ 3º e 4º do artigo 4º daquela norma. Esse tema será mais bem analisado quando tratarmos da contagem dos prazos, no capítulo referente ao tempo e ao lugar dos atos processuais (capítulo XV). Além da criação dessa espécie eletrônica de Diário da Justiça, a lei também criou a intimação por meio eletrônico no portal do tribunal, que é uma nova forma de intimação. Todavia, essa modalidade somente pode ser realizada caso o destinatário tenha se cadastrado na forma prevista no artigo 2º da Lei n. 11.419/2006, o que está expresso no artigo 5º dessa Lei. Essa intimação será considerada realizada “no dia em que o intimando efetivar a consulta eletrônica ao teor da intimação, certificando-se nos autos a sua realização” (Lei n. 11.419/2006, art. 5º, § 1º), ou decorridos dez dias a partir da data em que a intimação foi disponibilizada no sítio do tribunal (§ 3º). Isso porque, implantado o sistema de autocomunicação, o cadastro implicará compromisso de consultar periodicamente o portal do tribunal. Sobre a implantação do processo eletrônico, cabem as ressalvas anteriormente realizadas no estudo das citações quanto à autenticidade dos documentos eletrônicos e quanto à possível elitização da advocacia, bem como, aqui mesmo no capítulo as intimações, sobre as incertezas criadas pela sua implantação nos diversos tribunais e pelas perplexidades trazidas pelo Código de 2015, com disposições que introduzem algumas regras que complementam e modificam as da Lei n. 11.419 e muitas apresentam dificuldades de harmonização com o regime de intimações herdado do Código de 1973. O temor é justificável, pois, no Estado do Rio de Janeiro, há estatísticas que atestam que possivelmente mais da metade de todos os processos existentes na justiça fluminense são patrocinados pela Defensoria Pública, que, até onde me é dado conhecer, não dispõe de equipamentos eletrônicos suficientes para atender a esse volume de demanda.
Distante dessa realidade, o Superior Tribunal de Justiça, a partir de 03 de março de 2008, publica seus atos judiciais e administrativos no Diário da Justiça eletrônico (DJe), em substituição ao periódico impresso. No seu sítio, o STJ orienta os interessados sobre esse novo meio de comunicação dos atos processuais (www.stj.jus.br). O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro instituiu na justiça estadual o Diário da Justiça eletrônico por meio da Resolução n. 10/2008, do seu Órgão Especial, e o processo eletrônico atualmente é regulado na Resolução n. 16/2009.
13.5. SUBSIDIARIEDADE RECÍPROCA ENTRE AS NORMAS QUE DISCIPLINAM OS ATOS DE COMUNICAÇÃO PROCESSUAL Para finalizar este estudo sobre os atos de comunicação, é necessário comentar o princípio, aceito pela doutrina, segundo o qual, pela afinidade que a citação e a intimação têm como espécies de atos da mesma categoria, o que a lei dispõe sobre uma se aplica subsidiariamente à outra. Assim, há uma subsidiariedade recíproca entre as regras que regem as citações e as intimações pelo recurso à analogia. Em decorrência desse princípio, tem-se reconhecido a validade das intimações por hora certa e por edital, nas mesmas hipóteses em que são admissíveis para a citação, embora não haja previsão legal. Pessoalmente, considero desnecessária a admissão de intimação por hora certa, pois as demais modalidades de intimação são plenamente suficientes para evitar eventual tentativa de ocultação do destinatário. No intuito de aperfeiçoar o ordenamento processual, o Código de 2015, numa singela frase que constitui o § 2º do artigo 275, estabelece que, caso necessário, a intimação poderá ser efetuada com hora certa ou por edital. É uma previsão de aplicação subsidiária, que ficará sujeita à insuficiência das modalidades específicas de intimação que anteriormente analisamos e à possibilidade de adaptação às intimações de institutos que o Código regulou especificamente para as citações. É verdade que, no que tange à publicação de editais como simples instrumento
de mais ampla publicização da existência do processo, em casos em que eventualmente possam existir sujeitos alheios ao processo, até de identidade desconhecida, que por esse meio venham a dele tomar conhecimento, como prevê o artigo 259 do Código de 2015, não se pode considerá-la como verdadeira intimação, embora possa a inércia ou a iniciativa desses sujeitos inicialmente estranhos produzir algum efeito no próprio processo, como ocorre com o edital para chamamento dos credores na falência (Lei n. 11.101/2005, art. 52, § 1º). ________ 1 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil. 2.
ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 212. 2 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil. 3. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2005. v. III, t. II. p. 151 e 170. 3 Ver GRECO, Leonardo. O processo… v.I, p. 306-307.
Os pressupostos processuais são requisitos da regular e válida formação e desenvolvimento do processo. São pressupostos que dizem respeito, portanto, ao próprio processo, como meio através do qual se exerce a jurisdição. Em outros termos, a jurisdição deve ser exercida não por um meio qualquer, mas por aquele que preenche e observa os requisitos para que a relação processual se instaure, se desenvolva e termine válida e regularmente. Digam eles respeito à constituição do órgão do Estado que exerce a jurisdição, às condições que devem ser observadas pelas partes ou por quaisquer outros sujeitos para atuarem validamente, ou aos requisitos dos atos processuais, são o princípio da legalidade, que rege todas as atividades do Estado que atingem a esfera de interesses dos particulares, e o direito dos cidadãos a um processo justo, que impõem a clara definição dessas regras, limitadoras do arbítrio estatal e concretizadoras das garantias democráticas mínimas do acesso à justiça por todos os cidadãos. Essas regras são incontáveis, apesar do progressivo abandono do formalismo que caracteriza o Direito Processual moderno, e a sua sistematização é indispensável justamente para estabelecer um limite seguro na aplicação desses dois princípios antagônicos, o da liberdade das formas (CPC de 1973, art. 154; CPC de 2015, art. 188) e o da legalidade. A doutrina processual procurou tratar da matéria através do instituto dos pressupostos processuais, por meio do qual pretende definir o conteúdo dessas normas, compreender a sua função e o seu alcance e disciplinar o seu exame pelo juiz, já que, antes de qualquer apreciação sobre o direito material das partes ou sobre o seu direito a um pronunciamento judicial sobre esse direito material, deve o juiz zelar pela legalidade e validade da sua própria atuação e pelo respeito às garantias democráticas mínimas de um processo justo. Esse exercício da jurisdição para verificar os pressupostos de validade dele próprio levou parte da doutrina a condenar o conceito de pressupostos processuais, pois seria uma contradição que essa validade fosse objeto do processo, da discussão processual e de decisões jurisdicionais válidas1, e que essa validade fosse pressuposto do próprio processo. A falta dos pressupostos
processuais, constatada pelo juiz através do processo, impediria apenas uma decisão sobre o direito material e, assim, os pressupostos processuais não seriam pressupostos de validade do processo, mas requisitos de um pronunciamento sobre o mérito da causa. Além disso, o conceito estaria ligado à noção proveniente de Bülow, de que o processo teria a natureza de uma relação jurídica, concepção que teria entrado em crise, por não atender ao caráter dinâmico do processo2. Naquela concepção, de requisitos de uma decisão sobre o mérito, não teria utilidade prática a distinção entre pressupostos processuais e condições da ação, especialmente após o abandono da teoria da ação como direito concreto, pois na teoria abstrata as condições da ação também são requisitos para uma decisão de mérito, e não para uma sentença favorável3. José Carlos Barbosa Moreira4 observa que a doutrina ora restringe, ora alarga o conceito de pressupostos processuais, constituindo estes uma categoria heterogênea e de escassa coesão interna. Também existem divergências a respeito das espécies de pressupostos processuais. Enquanto a doutrina tradicional se refere apenas a pressupostos de validade, forte corrente atualmente distingue estes dos pressupostos de existência. Para tentar reconstruir a teoria dos pressupostos processuais, parece indispensável definir qual é a sua importância no Direito Processual moderno, nesse Direito Processual inserido no Estado Democrático em que a jurisdição deve ser a garantia concreta da efetividade dos direitos dos cidadãos, exercida com absoluto respeito à dignidade humana dos contendores, ao devido processo legal, ao contraditório participativo e à ampla defesa. Para Calamandrei, enquanto o direito substancial é considerado antes de tudo pelo juiz como objeto do juízo, isto é, como o direito que outros teriam devido observar e que o direito processual visa a fazer observar pelos outros, o direito processual é norma de conduta para todos os sujeitos do processo, e, portanto, para o próprio juiz, que é chamado a observá-lo ele próprio. Para que o órgão judiciário possa chegar a aplicar o direito substancial, isto é, a prover sobre o mérito, é necessário que antes as atividades processuais sejam
desenvolvidas em conformidade com o direito processual5. A essência do processo não tem nenhuma relação com a existência do direito material que constitui o seu objeto, pois as relações de cada uma das partes com a outra e com o juiz são abstratas, independendo de terem elas razão ou não. Tenho me referido aos pressupostos processuais como requisitos de validade do processo. Entretanto, a doutrina recente, conforme observei acima, sem muita homogeneidade, tem distinguido os pressupostos de existência e os de validade do processo. Entre nós, José Carlos Barbosa Moreira6, invocando doutrina autorizada (Betti, Helio Tornaghi), distingue os de existência (pedido, jurisdição e partes) e os de validade (capacidade das partes, competência, insuspeição do juiz, inexistência de litispendência e de coisa julgada). À falta dos pressupostos de existência, o processo não teria chegado a existir e, assim, seria desnecessário qualquer despacho ou decisão para anulá-lo, podendo ser ignorado, porque não entrou no mundo jurídico. A meu ver, a categoria da inexistência, no âmbito das invalidades processuais, deve ficar reservada a casos extremos, pois de qualquer modo, mesmo à falta de jurisdição, de partes ou de pedido, normalmente estaremos diante de uma série de atos praticada por órgão do Estado ou perante órgão do Estado, que não pode ser simplesmente ignorada porque produz ou aparenta produzir efeitos no mundo jurídico. A nenhum juiz ocorreria deixar de despachar uma petição inicial sem pedido ou sem réu. Nenhum tribunal deixaria de examinar em grau de recurso, ainda que fosse apenas para declará-la inexistente, sentença proferida por falso juiz. Em casos de nulidade na investidura de magistrados, a jurisprudência tem aplicado a teoria do funcionário de fato, para reputar válidos julgamentos proferidos. Qual será a consequência da falta do pressuposto? Se inexistência do processo, ou se invalidade, se irregularidade ou simples erro material, será matéria que poderá variar em relação a um mesmo pressuposto, conforme o rumo que tenha seguido o processo após a ocorrência do vício7. Se o procedimento foi iniciado, estará em jogo a validade e não a existência, como bem lembra Friedrich Lent8.
Por isso, parece-me preferível não distinguir a priori entre os pressupostos de existência e os de validade, orientação adotada pela doutrina tradicional, desde Chiovenda. Se os pressupostos processuais são todos os requisitos que devem ser observados no processo, desde o ato introdutório até o seu desfecho, sua enumeração científica deve ser suficientemente abrangente para considerar todas as normas incidentes sobre todos os atos do processo. Destarte, devem ser desprezadas todas as concepções redutoras, que destacam apenas alguns requisitos de existência ou de validade, que consideram mais importantes. Apesar dos esforços de alguns autores contemporâneos para oferecerem uma enumeração mais completa, como, por exemplo, Mandrioli9, parece-me insuperável a proposta por Moacyr Amaral Santos, seguindo as lições de Chiovenda e de Galeno Lacerda10: I – pressupostos processuais referentes ao juiz: a) que se trate de órgão estatal investido de jurisdição; b) que o juiz tenha competência originária ou adquirida; c) que o juiz seja imparcial; II – pressupostos processuais referentes às partes: a) que tenham capacidade de ser parte; b) que tenham capacidade processual; c) que tenham capacidade de postular em juízo; III – pressupostos processuais objetivos: a) extrínsecos à relação processual, dizem respeito à inexistência de fatos impeditivos; b) intrínsecos à relação processual, dizem respeito à subordinação do procedimento às normas legais. Este último pressuposto abrange amplamente a observância do rito procedimental e de todos os requisitos estabelecidos pela lei para cada um dos atos do processo, inclusive os atos decisórios e os recursos. De ordinário, apreciáveis de ofício (CPC de 1973, arts. 267, § 3º, e 301, § 4º; CPC de 2015, arts. 485, § 3º, e 337, § 5º) e insuscetíveis de preclusão, às vezes dependem de arguição da parte, como os chamados impedimentos processuais (incompetência relativa e compromisso arbitral). A sua inobservância em muitos casos acarreta nulidade absoluta, mas crescentemente nulidade relativa sanável, como consequência do progressivo abandono do formalismo, raramente inexistência, mas também mera irregularidade ou erro material.
14.1. PRESSUPOSTOS RELATIVOS AO JUIZ
PROCESSUAIS
SUBJETIVOS
Esses pressupostos dizem respeito à capacidade do juiz não apenas como órgão jurisdicional, mas também como pessoa física, como servidor público investido da função jurisdicional, e são: jurisdição, competência e imparcialidade. 14.1.1. Jurisdição O processo somente se forma e se desenvolve validamente perante um órgão a que a Constituição e a lei atribuam função jurisdicional, sejam eles órgãos judiciais ou não, estatais ou não. Todos os autores, sem discrepância, apontam a jurisdição como o primeiro pressuposto processual subjetivo. Em dois sentidos a jurisdição é pressuposto processual. Primeiramente, no sentido de que somente se forma e se desenvolve validamente o processo se a pretensão de direito material é confiada ao provimento de um órgão jurisdicional, isto é, de um órgão dotado de independência e imparcialidade ao qual seja confiado o poder de prover com impessoalidade à tutela de interesses particulares, que normalmente é um órgão do Poder Judiciário. Quem representa o Estado, como sujeito principal e imparcial do processo, é uma unidade criada pela lei e integrante da estrutura organizacional do Poder Judiciário. Nenhum órgão de outro Poder do Estado pode exercer a atividade jurisdicional, a não ser nos casos em que a própria Constituição prevê, como, por exemplo, o Senado no julgamento de crimes de responsabilidade do Presidente da República (art. 52, inc. I). Somente um órgão jurisdicional, com os poderes e a independência que lhe são peculiares, pode assegurar às partes o devido processo legal (Constituição Federal, art. 5º, LIV). Em um segundo sentido, a jurisdição, como pressuposto processual, exige que a função do órgão jurisdicional seja exercida por juiz regularmente investido no
cargo de magistrado e que se encontre no seu efetivo exercício. A investidura em cargo de magistrado geralmente decorre de nomeação consequente à aprovação em concurso público de provas e títulos (Constituição, art. 93, inc. I). Além da regular nomeação e da posse em cargo de magistrado, deve estar o juiz no efetivo exercício do cargo, pois o poder jurisdicional é privativo de quem regularmente o esteja exercendo, excluídos, portanto, o juiz em férias11, licenciado, em disponibilidade ou aposentado. O vício na investidura do juiz ou o seu exercício irregular não acarretam necessariamente a nulidade ou a inexistência do processo. Se a jurisdição for exercida por quem não é juiz, por quem jamais foi investido no cargo de juiz, os atos praticados por essa outra pessoa, ainda que se trate de funcionário categorizado de outro poder ou de outra classe, são irremediavelmente nulos. Até de inexistência pode falar-se em certos casos, conforme examinaremos quando tratarmos das invalidades processuais. Mas se, apesar do vício, houve investidura no cargo, através de ato oficial da autoridade competente, ou se o exercício indevidamente ocorreu, não sendo impedido pela autoridade a que estivesse administrativamente submetido o juiz, não é mais o caso de cogitar-se de nulidade ou inexistência do processo, que remanescerá plenamente válido, salvo prova cabal de que o vício de investidura ou de exercício concretamente influiu no resultado da causa. A teoria do funcionário de fato acoberta os atos praticados pelo servidor irregularmente investido no cargo ou que se encontre em exercício irregular, pois a ninguém é lícito deixar de respeitar a autoridade de magistrado que exiba título legal de investidura no cargo, expedido pela autoridade competente, ou que se encontre no exercício do cargo, enquanto tal título não for anulado ou o exercício não for interrompido pela autoridade competente. 14.1.2. Competência Todo órgão dotado de poder jurisdicional recebe da lei uma parcela desse poder delimitada territorialmente, em razão da matéria ou em função de outros critérios. Essa parcela de jurisdição atribuída pela lei a determinado órgão
jurisdicional é a competência. O juiz pode ser absoluta ou relativamente incompetente. No primeiro caso, essa incompetência implicará nulidade absoluta do julgamento da causa (CPC de 1973, arts. 113, § 2º, e 485, inc. II; CPC de 2015, arts. 64, § 1º, e 966, inc. II), ao passo que a incompetência relativa gera apenas a nulidade relativa dos atos praticados no processo, devendo ser arguida na primeira oportunidade: no Código de 1973, por exceção de incompetência, oferecida no prazo de resposta (arts. 112 e 297); no Código de 2015, como preliminar da contestação (art. 65). Se não o fizer, prorrogar-se-á a competência do juízo perante o qual a ação foi proposta. A Lei n. 11.280/06 deu nova redação ao parágrafo único do artigo 112 e ao artigo 114 do Código de 1973, acolhendo entendimento doutrinário e jurisprudencial segundo o qual, na hipótese de nulidade de cláusula de eleição de foro em contrato de adesão, apesar de relativa, a incompetência pode ser conhecida de ofício pelo juiz. O Código de 2015 reformulou esse instituto, prescrevendo, no § 3º do artigo 63, que, “antes da citação, a cláusula de eleição de foro, se abusiva, pode ser reputada ineficaz de ofício pelo juiz, que determinará a remessa dos autos ao juízo do foro do domicílio do réu”. E no parágrafo seguinte deixou claro que, citado o réu, a este incumbe “alegar a abusividade da cláusula de eleição de foro na contestação, sob pena de preclusão”, o que já comentamos no item 6.5.1.1. Desse pressuposto já tratamos em todo o capítulo VI. 14.1.3. Imparcialidade A imparcialidade é a isenção, o desinteresse ou equidistância que o juiz deve manter em relação às partes e aos interesses em conflito. É um atributo da pessoa física do juiz. Hodiernamente, no estudo das garantias fundamentais do processo, alude-se à imparcialidade e também à independência. Portanto, o conceito tradicional de imparcialidade, hoje, abrange a independência e a imparcialidade propriamente dita. A primeira é a isenção, a neutralidade, a indiferença do juiz em relação ao resultado do processo, que resulta do fato de se revestir o exercício da sua função da absoluta segurança de que não sofrerá qualquer dano ou prejuízo na sua esfera de interesses pessoais ou profissionais em razão do conteúdo de suas decisões. O juiz independente é,
portanto, aquele que não se sente atemorizado por eventuais pressões dos outros poderes, de grandes grupos econômicos, do crime organizado ou de qualquer outra força que possa pretender influenciá-lo. No Código de Ética da Magistratura, editado pela Resolução n. 60/2008 do Conselho Nacional de Justiça, além da vinculação da independência à proibição de participação do magistrado em atividade político-partidária (art. 7º), ela lhe impõe o dever de “pautar-se no desempenho de suas atividades sem receber indevidas influências externas e estranhas à justa convicção que deve formar para a solução dos casos que lhe sejam submetidos” (art. 5º). Com vistas a assegurar essa independência, existem as chamadas garantias constitucionais da magistratura, que se constituem da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio (Constituição, art. 95, incs. I, II e III). Mas a simples enumeração constitucional dessas garantias não basta. Essas garantias e as prerrogativas dos magistrados, estabelecidas no artigo 33 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar n. 35/1979), precisam ter eficácia concreta e têm de ser respeitadas pelo próprio Poder Judiciário e pelos demais poderes, sob pena de comprometimento de um dos princípios fundamentais de um processo democrático: a sua formação e o seu desenvolvimento perante um tribunal independente. Juízes intimidados por convocações para depor e por investigações que devassam a sua privacidade e formulam julgamentos sobre a sua conduta funcional, promovidas perante órgãos de outros poderes ou estranhos ao tribunal ao qual se acham disciplinarmente subordinados (LOMAN, art. 33), são juízes sem independência, condutores e sentenciadores de processos viciados por absoluta nulidade12. Cabe ao próprio Judiciário repelir com energia e rapidez eventuais agressões à sua independência e coibi-las através do controle de legalidade dos atos dos três poderes e da promoção da responsabilidade criminal e política que o nosso sistema constitucional lhe reserva. O juiz não pode, então, sentir-se constrangido ou intimidado no exercício de suas decisões. Em que pese a relevância da independência do juiz, consagrada em diversos instrumentos internacionais em vigor no Brasil, como o Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas (art. 14) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8º), tanto o Código de 1973 quanto o de 2015 a ignoram como
pressuposto processual específico, me parecendo que cabe considerá-la no sistema processual entre os motivos de suspeição, no âmbito da imparcialidade, como veremos adiante. O Código de 1973 (arts. 134 e 135) e o Código de 2015 (arts. 144 e 145) subdividem os vícios que comprometem a imparcialidade do juiz em duas espécies: os impedimentos e os motivos de suspeição. 14.1.3.1. Impedimentos
Os impedimentos são vínculos mais fortes que tornam o juiz absolutamente incapaz para exercer jurisdição em determinado processo, ocasionando a nulidade absoluta de todos os seus atos. É importante ressaltar que, ao definir os impedimentos, a lei deve descrever situações objetivas que, por si sós, independentemente da análise da influência que essas situações possam ter concretamente sobre a vontade do juiz, fazem presumir a sua falta de isenção. Ao juiz, como à mulher de César, não basta ser honesto, é preciso aparentar ser honesto. Por isso, a existência de qualquer dos fatos que geram impedimento é uma nulidade absoluta de todos os atos do juiz, que deve ser reconhecida de ofício ou por provocação de qualquer interessado a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, podendo, ainda, nos dois anos seguintes ao trânsito em julgado da sentença de mérito, constituir fundamento de ação rescisória (CPC de 1973, art. 485, inc. II; CPC de 2015, art. 966, inc. II). O Código de 1973 estabelece, em primeiro lugar, que o juiz não pode exercer jurisdição no processo de que é parte (art. 134, inc. I). Também não pode o juiz ter exercido, no processo, qualquer outra função (art. 134, incs. II e III), porque ninguém pode julgar os seus próprios atos; ninguém pode ser juiz de si mesmo. O segundo tipo de impedimento é baseado no vínculo familiar, a saber, no casamento ou no parentesco (art. 134, incs. IV e V). Há duas espécies de parentesco: parentesco por consanguinidade e por afinidade. Aquele é o vínculo que une pessoas que possuem entre si um ou mais ascendentes comuns. Irmãos são, assim, parentes consanguíneos, pois possuem, ao menos, um ascendente comum. O segundo, por sua vez, forma-se pelo casamento e une um cônjuge aos parentes consanguíneos do outro. Os graus de parentesco se contam pelo número de gerações. Nesse sentido, pai e filho são parentes de primeiro grau. O parentesco pode ser ainda dividido em razão de duas linhas distintas: a linha reta e a linha colateral. A consanguinidade
em linha reta une pessoas que, entre si, possuem vínculos de ascendente e descendente: pai, avô, bisavô, neto, bisneto etc. No parentesco por afinidade, um cônjuge ocupa a mesma posição daquele com quem se casou, em relação à família deste. Assim, o parentesco entre genro e sogra, por exemplo, é um parentesco por afinidade, na linha reta e de primeiro grau. O Código de 1973 ainda inclui como impedimento do juiz ser “órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica, parte na causa” (art. 134, inc. VI). Por fim, no artigo 136, esse Código considera o juiz impedido quando outro juiz, seu parente em linha reta ou colateral até o segundo grau, tiver anteriormente praticado qualquer ato no processo, no mesmo ou em outro grau de jurisdição. O Código de 2015 foi muito infeliz na disciplina dos impedimentos do juiz. Certamente impressionado pelos abusos e escândalos resultantes do envolvimento de juízes ou de seus familiares em outras situações que aparentemente comprometeram a sua imparcialidade, exacerba as hipóteses de impedimentos, ou seja, de casos em que determinadas circunstâncias geram a nulidade absoluta da atuação do juiz, sem qualquer aferição se tais situações efetivamente poderiam ter influído no comportamento do juiz, e chegando ao ponto de criar impedimentos absolutamente imprevisíveis e incontroláveis. Algumas dessas situações são objetivas, como as contempladas no Código de 1973 e, assim, normalmente de fácil constatação, sendo lícito que o legislador as valore tão negativamente que, ainda que não suscitadas no curso do processo, devam invalidar a sua decisão final, porque pairará sempre a suspeita de que possam ter influenciado a conduta do juiz. Outras são situações de relativa proximidade de determinadas pessoas em relação ao juiz, que podem influenciálo ou não, mas que somente podem gerar o receio de que o influenciam se houver provas concretas dessa influência ou se se presumir que todos os juízes sejam desonestos, que todos atuem de má-fé e que todos os juízes não sejam capazes de distinguir as relações sociais que travam com outras pessoas na sua vida privada, do cumprimento dos seus deveres funcionais ou que não sejam capazes de resistir a pressões que podem sofrer. Há outras, ainda, de um irrealismo tão exacerbado, que exigiriam que o juiz, ao ser investido no cargo, apresentasse uma lista nominal, com dados suficientes de identificação, de todos os seus parentes consanguíneos ou afins na linha reta ou colateral até o terceiro
grau e que também os escritórios de advocacia mantivessem num cadastro público a lista nominal de todos os seus advogados, identificando o seu grau de parentesco com juízes de quaisquer tribunais, para que fossem facilmente constatáveis as situações de impedimento arroladas pelo legislador. Eu não sei se muitos juízes e muitos advogados se sentiriam seguros de assinar, sob as penas da lei, uma declaração desse tipo – eu não seria, pois não sei os nomes completos e os dados de identificação de todos os meus parentes –, a cuja falta, a descoberta no final do processo ou depois do seu término da existência de uma dessas situações, que nem de longe terá influenciado o ânimo do julgador, tornaria o processo irremediavelmente nulo. Será que os juízes e os advogados brasileiros são merecedores de tão elevada desconfiança quanto à sua honestidade por parte do legislador? E, pior, será que, vigorando essas novas regras e implementados hipotéticos mecanismos de controle de sua eficácia, estaremos absolutamente seguros de que todas as decisões judiciais foram proferidas por juízes imparciais? Felizmente, o próprio Código de 2015 fornece o meio de nos livrarmos de uma interpretação absolutamente absurda da norma, ao dispor no artigo 8º que o juiz, ao aplicar o ordenamento jurídico, atenderá aos seus fins sociais. Ora, são fins sociais da jurisdição a tutela efetiva dos direitos dos jurisdicionados e a pacificação social. Não atendem a esses fins disposições que geram grave insegurança sobre a validade dos atos do processo e sobre as suas decisões. O mesmo artigo 8º recomenda que o juiz, na aplicação da norma, observe, como critério hermenêutico, a razoabilidade. Conforme exposto anteriormente no item 2.2.6, a razoabilidade é a análise da adequação da norma aos fins por ela almejados, que examina a eficácia da norma para evitar que ela seja utilizada com desvio de finalidade ou que a sua aplicação conduza a situações absolutamente iníquas ou absurdas. É o que faremos a seguir, no exame das hipóteses de impedimentos do juiz arroladas nos artigos 144 e 147 do Código de 2015. Os incisos I e II do artigo 144 são idênticos aos incisos II e III do artigo 134 do Código de 1973, que não merecem qualquer crítica, pois declaram impedido o juiz que tenha exercido qualquer outra função no processo. Também o inciso III do artigo 144, que corresponde ao inciso IV do artigo 134 do Código de 1973 é bastante razoável, pois, como aquele, impede o juiz que tem vínculo familiar com o advogado. O dispositivo do Código de 2015 amplia em três aspectos o impedimento: estende-o ao vínculo familiar com o defensor
público e com o membro do Ministério Público; inclui, ao lado do cônjuge, também o companheiro; e aumenta o grau de parentesco na linha colateral até o terceiro grau, ou seja, até tio e sobrinho do juiz ou do seu cônjuge. Absolutamente irrazoável é o § 3º do artigo 144 que, nessa hipótese de impedimento do inciso III, o estende ao caso em que o juiz tem vínculo matrimonial, de união estável ou de parentesco consanguíneo ou afim na linha reta ou na colateral até o terceiro grau com advogado, que, mesmo não tendo procuração nos autos e não exercendo o patrocínio de qualquer das partes, seja “membro de escritório de advocacia” que patrocine a causa por outro ou outros advogados. A expressão escritório de advocacia é equívoca. O Estatuto da OAB e o Código de Ética Profissional dos Advogados (Lei n. 8.906/94, arts. 7º, inc. II, e 20, § 1º; Código de Ética, art. 29, § 3º) usam a expressão ora como indicativa do lugar em que um ou mais advogados exercem a profissão, recebem os seus clientes, mantêm os seus arquivos, recebem intimações, ora como representando um grupo de advogados que se reúne em um ou mais locais para compartilharem meios de uso comum (a sala, os computadores, a secretária, os telefones, os computadores) ou para conjuntamente prestarem serviços. Se o advogado que tem vínculo familiar com o juiz não patrocina a causa, não exercendo, portanto, qualquer influência sobre os seus atos, não pode a lei presumir que esse juiz vá atuar no processo de modo tendencioso e que, descoberta a existência desse familiar no escritório do advogado de uma das partes no final do processo ou depois de extinto o processo, venha esse fato, por si só, determinar a compulsória anulação do processo desde a intervenção do juiz, sem nenhuma prova de que esse familiar exerceu concretamente qualquer atuação junto ao julgador em benefício de uma das partes e de que essa hipotética atuação repercutiu de algum modo no conteúdo das suas decisões. Esse motivo de comprometimento da imparcialidade do juiz deve receber o mesmo tratamento que o legislador confere aos motivos de suspeição. Deve a parte argui-lo na primeira oportunidade que tiver para falar nos autos depois do conhecimento do fato, sob pena de preclusão, ou seja, de não poder mais argui-lo (CPC de 1973, art. 245; CPC de 2015, art. 278). Se a descoberta ocorrer depois de transitada em julgado a sentença, não bastará a sua simples comprovação para ensejar ação rescisória. Será necessário comprovar que o juiz proferiu a sentença em favor de uma das partes em razão do vínculo familiar com advogado do escritório que patrocinou a causa, ou seja, por interesse ou sentimento pessoal, caso em que o juiz terá praticado o crime de prevaricação e deverá ser instaurado contra ele o
necessário procedimento criminal (CPC, art. 485, inc. I; CPC de 2015, art. 966, inc. I). O inciso IV do artigo 144 do Código de 2015 equivale aos incisos I e V do artigo 134 do Código de 1973. Se o juiz é parte na causa ou se é parte na causa o seu cônjuge, seu companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, na linha reta ou na colateral até o terceiro grau, estará ele absolutamente impedido de exercer jurisdição. O inciso V do artigo 144 do Código de 2015 amplia exageradamente o disposto no inciso VI do artigo 134 do Código de 1973. Enquanto este impede o juiz que seja “órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica, parte na causa”, aquele se refere ao “sócio ou membro de direção ou de administração de pessoa jurídica parte na causa”. A meu ver, o impedimento não pode ir além do sócio ou associado de pessoa jurídica que nela exerça função de gerência ou que detenha o controle da sua administração, porque a sociedade moderna induz as pessoas a participarem de diversos entes com personalidade jurídica, na qualidade de cotistas ou associados, sem que tenham qualquer influência na sua administração, nem tenham qualquer interesse no desfecho das ações judiciais em que esses entes são partes. Se o desfecho da causa puder afetar de algum modo o interesse do juiz como cotista ou associado da pessoa jurídica, não será caso de impedimento, mas de suspeição (CPC de 1973, art. 135, inc. V; CPC de 2015, art. 145, inc. IV). Os incisos VI e VII do artigo 144 do Código de 2015 elevam a impedimento situações que no Código de 1973 (art. 135, incs. II e III) eram motivos de suspeição, quando o juiz for herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de qualquer das partes, bem como se ele for empregado ou prestador de serviços de instituição de ensino, que seja parte. São situações objetivas de vínculo muito próximo do juiz com a parte, que podem gerar a suspeita de que esta foi beneficiada em razão dessa proximidade. A hipótese do inciso VIII do artigo 144 do Código de 2015 é ainda mais absurda do que a do § 3º. Se a parte é cliente de escritório de advocacia de parente do juiz, o juiz está impedido em todas as causas dessa parte, mesmo que patrocinadas por advogado de outro escritório. Os advogados estão obrigados ao sigilo profissional. Como podem os juízes, que têm parentes advogados, conhecer a identidade de todos os clientes dos escritórios em que esses parentes
atuam, para se declararem impedidos em qualquer outro processo em que um desses clientes figure como parte? O inciso IX do artigo 144 do Código de 2015 considera impedido o juiz que promove ação contra a parte ou seu advogado. Há evidente exagero nesse dispositivo, que deveria estar arrolado entre os motivos de suspeição, porque em alguns casos concretos podem constituir indícios de alguma predisposição do juiz a favor ou contra o interesse de uma das partes, mas, em muitos outros não representam indício algum. Assim, por exemplo, um juiz federal, mutuário da Caixa Econômica Federal, que contra esta promova uma ação de revisão das prestações de seu contrato de financiamento, deve estar impedido de julgar todas as ações em que a Caixa Econômica Federal seja parte? A existência da sua ação faz presumir alguma predisposição, algum sentimento de inimizade, de ódio, em relação a essa empresa pública? E se, eventualmente, vier a julgar uma dessas ações a favor da Caixa, sem que o seu impedimento seja arguido: poderá o vencido propor ação rescisória, suscitando a nulidade da sentença? Esse é mais um caso que deve ser tratado como motivo de suspeição, e não como impedimento. Por fim, o artigo 147 do Código de 2015 trata do impedimento em caso de vínculo familiar entre juízes, tal como o artigo 136 do Código de 1973, a cujo comentário nos reportamos. 14.1.3.2. Motivos de suspeição
Cumpre, neste passo, analisar os principais motivos de suspeição. São fatos menos graves do que os impedimentos, cuja avaliação a lei relega à iniciativa das próprias partes, porque as circunstâncias da causa, a reputação, a credibilidade e o grau de confiança de que o juiz desfruta podem afastar qualquer temor de que, em razão desses fatos, o juiz possa vir a sofrer qualquer comprometimento na isenção com que deverá exercer a sua função. Comecemos pelo Código de 1973. O primeiro deles é a amizade íntima (art. 135, inc. I), que pode ser entendida como aquela amizade intensa que resulta da convivência na vida privada, no recinto doméstico, e que cria entre os amigos tal vínculo de solidariedade que se suspeita que possa levá-los a perder a consciência dos seus deveres de cidadão para praticar atos ilícitos, um em benefício do outro. A sociedade contemporânea multiplica as relações sociais,
mas superficializa os vínculos intersubjetivos. A amizade íntima, nos dias atuais, não é identificada com frequência. A inimizade capital, também prevista no inciso I do artigo 135 do Código de 1973, tampouco é verificada com facilidade atualmente. A palavra capital deriva do latim caput, cabeça, e, portanto, inimizade capital significa inimizade mortal. Seria uma inimizade tão intensa que um inimigo desejaria a morte do outro, arriscando-se a responder-me com a perda da própria liberdade para prejudicar o outro. Ainda que não chegue ao extremo da manifesta intenção de aniquilar a vida alheia, a inimizade capital deve ser identificada por sinais exteriores muito fortes, de um sentimento muito intenso de causar algum mal injusto e grave a outrem, como declarações expressas de ódio, agressões físicas, ameaças, xingamentos e outros fatos reprováveis, reveladores da existência de uma discórdia muito profunda. O segundo motivo de suspeição é ter o juiz interesse na causa (art. 135, inc. V). Assim, se o juiz já manifestou interesse em comprar o imóvel que as partes estão disputando no litígio, ele pode ter se tornado suspeito. O juiz não pode ter nenhum proveito no desfecho da causa; não pode se beneficiar com o seu resultado. O terceiro motivo de suspeição é manter o juiz uma relação de dependência econômica com uma das partes. Logo, o juiz não pode julgar causas do seu empregado ou empregador (CPC, art. 135, incs. II e III). Por exemplo: o juiz que exerça o magistério em determinada instituição de ensino não pode julgar as causas em que essa for parte, uma vez que com ela possui uma relação de subordinação, no âmbito acadêmico. O quarto motivo de suspeição é a predisposição manifesta do juiz a favor de uma das partes, decorrente do recebimento de presentes antes ou no curso do processo, o aconselhamento de uma das partes ou o fornecimento à parte de recursos para custeio das despesas do litígio (inc. IV). O parágrafo único do artigo 135 do Código de 1973 prevê ainda a suspeição por motivo íntimo. Nessas hipóteses, o juiz não é obrigado a revelar publicamente o motivo que ocasionou a sua suspeição, o que pode dar margem à prática de
abusos por parte de alguns magistrados. Isso porque essa modalidade de suspeição não pode servir de pretexto ao juiz que, não se sentindo confortável para julgar determinada causa, se declara suspeito para eximir-se do seu dever funcional. Conforme já observei anteriormente, esses excessos são cometidos porque o Código de 1973 não regulou a matéria com o mesmo cuidado do Código de 1939. De acordo com este último (art. 119), o motivo íntimo da suspeição do juiz deveria ser comunicado reservadamente ao presidente do tribunal ao qual ele estava subordinado, que por sua vez o comunicaria ao conselho da magistratura para aferir sua relevância. Se o motivo não fosse considerado relevante, o juiz poderia ser punido. O Código de 1973, entretanto, não repetiu essa regra, em que pese algumas leis de organização judiciária e regimentos internos de tribunais, como os de São Paulo (Código Judiciário do Estado de São Paulo, art. 64, inc. IV; Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, art. 216, inc. XV), ainda a mantenham, e de ter sido a questão disciplinada na Resolução n. 82/2009 do Conselho Nacional de Justiça (ver item 5.2.4). Esses abusos na utilização da suspeição por motivo íntimo violam a garantia do juiz natural e a indelegabilidade da função jurisdicional. Na realidade, o motivo de foro íntimo deve ser um dos outros motivos de suspeição ou impedimento tratados na Lei (arts. 134 e 135 do CPC de 1973), mas que o juiz não quer revelar publicamente para não expor a sua intimidade ou a de alguém a ele relacionado. É o caso, por exemplo, do juiz casado que possui um relacionamento extraconjugal com uma das partes; ou do juiz que é ascendente de uma das partes, mas não reconheceu tal filiação. O Código de 2015 manteve, em linhas gerais, o rol dos motivos de suspeição do juiz do Código de 1973. No inciso I do artigo 145, que corresponde ao inciso I do artigo 135 do Código de 1973, estende exageradamente a suspeição à amizade íntima ou inimizade capital do juiz com os advogados das partes. Já dissemos que o grau de simpatia ou de antipatia exigidos para que se caracterize essa suspeição deve ser elevado. Entretanto, estendê-la aos advogados parece-me absolutamente irrealista. Numa comarca do interior, a convivência privada do juiz e dos seus familiares normalmente se trava com os advogados, com os membros do Ministério Público, com os defensores públicos e respectivos
familiares, porque é natural que entre essas pessoas existam mais afinidades, decorrentes da formação cultural e intelectual e do comum estilo de vida. E mesmo nos grandes centros com frequência se encontram na vida profissional juízes e advogados que saíram dos mesmos bancos escolares, foram colegas de faculdade, estudaram juntos, frequentaram e ainda frequentam os mesmos ambientes sociais, mas que sabem dissociar as suas relações pessoais dos seus deveres profissionais e funcionais. O grau de amizade ou de inimizade entre juiz e advogado que ameace a imparcialidade do julgador há de ser muito intenso e avaliado de acordo com as circunstâncias da causa. O inciso II corresponde, sem alteração, ao inciso IV do artigo 135 do Código de 1973, já comentado. O inciso III, que corresponde ao inciso II do artigo 135 do Código anterior, reproduz a suspeição em razão da dependência econômica entre o juiz e a parte ou algum familiar, alterando o grau de parentesco que passa a ter por limite terceiro o grau de parentesco na linha reta, ou seja, até bisavô e bisneto, não se estendendo à linha colateral. O inciso IV reproduz sem alterações o inciso V do artigo 135 do Código de 1973. O Código de 2015 também permite ao juiz declarar-se suspeito por motivo de foro íntimo, mas, contrariando o que sustentamos anteriormente e diretriz do próprio Conselho Nacional de Justiça, dispensou o juiz de declarar as suas razões (art. 145, § 1º). 14.1.3.3. Aspectos gerais sobre os impedimentos e os motivos de suspeição
No curso do processo, a suspeição e os impedimentos devem ser arguidos por um meio próprio. No Código de 1973, esse meio é o de exceção de suspeição ou impedimento, previsto nos artigos 312 a 314. No Código de 2015, desaparece a exceção, e a arguição passa a ser objeto de uma petição específica, cujo processamento está regulado no artigo 146. Ocorre que a suspeição, por ser uma nulidade relativa, gera apenas uma presunção iuris tantum da parcialidade do juiz, devendo ser alegada pela parte interessada na primeira oportunidade que tiver para falar nos autos (CPC de
1973, art. 245; CPC de 2015, art. 278). Curiosamente, também pode ser reconhecida a qualquer tempo, de ofício, pelo próprio juiz, com fundamento no chamado motivo íntimo. Caso a parte desconheça o motivo de suspeição no momento da propositura da ação ou no momento de contestá-la, ela deverá alegá-lo igualmente na primeira oportunidade que tiver para se manifestar nos autos, a contar do momento em que tomou conhecimento do referido motivo, ou no prazo de quinze dias a partir desse conhecimento (CPC de 1973, art. 305; CPC de 2015, art. 146). Entretanto, se a descoberta se der depois de findo o processo, a lei confere tratamento diferenciado à suspeição e ao impedimento. O impedimento é um motivo objetivo, que gera uma presunção absoluta da parcialidade do juiz. Assim, basta que a parte prove o fato que ensejou o impedimento, para desconstituir a coisa julgada formada na sentença, através da propositura de uma ação rescisória (CPC de 1973, art. 485, inc. II; CPC de 2015, art. 966, inc. II). Por outro lado, nos casos de suspeição, como a amizade íntima, o interessado, além de provar a existência concreta do motivo elencado na lei, deve demonstrar que essa amizade com a parte adversa foi determinante ou influenciou decisivamente o juiz no julgamento da causa em seu desfavor, através da prática de algum dos crimes mencionados nos incisos I dos artigos 485 do Código de 1973 e 966 do Código de 2015, e definidos nos artigos 316, 317 e 319 do Código Penal. Assim, embora os artigos 485 do Código de 1973 e 966 do Código de 2015 não tenham enumerado a suspeição como causa de rescisão da sentença, o inciso I dos dois artigos indica que a sentença pode ser rescindida nos casos de prevaricação, concussão ou corrupção. Contudo, não é apenas o juiz que está sujeito ao pressuposto processual da imparcialidade, mas outros sujeitos do processo, como o escrivão, o Ministério Público, os peritos, as testemunhas e os demais sujeitos imparciais do processo, também devem preenchê-lo. Logo, os impedimentos e motivos de suspeição também se aplicam a esses demais sujeitos e podem ser arguidos, no regime do Código de 1973, por meio de exceção (art. 138), e, no regime do Código de 2015, na primeira oportunidade que tiver para falar nos autos após o conhecimento do fato de que se origina, com exceção do impedimento ou suspeição da testemunha, que pode ser arguida até o início do seu depoimento
em audiência (CPC de 1973, art. 414, § 1º; CPC de 2015, arts. 148 e 457, § 1º), através do procedimento da chamada contradita da testemunha.
14.2. PRESSUPOSTOS SUBJETIVOS RELATIVOS ÀS PARTES Os pressupostos processuais subjetivos relativos às partes são: a capacidade de ser parte, a capacidade de estar em juízo e a capacidade postulatória. 14.2.1. Capacidade de ser parte Quem pode postular em juízo, formular um pedido ou se defender como parte? Todos os seres humanos têm capacidade de ser parte, assim como todas as pessoas jurídicas, que são entes reconhecidos pelo Direito como dotados de personalidade jurídica, embora não possuam vida humana. Então, as pessoas físicas e as pessoas jurídicas, como as sociedades, as associações, e, no âmbito do Estado, a União, os Estados-membros, os Municípios e os seus respectivos entes personalizados, como as autarquias, as empresas públicas, a sociedades de economia mista e as fundações públicas, podem ser partes em demandas judiciais. Ocorre que o direito processual, visando a facilitar o acesso à justiça, conferiu capacidade de ser parte a entes de outra categoria, que não possuem personalidade jurídica, mas têm o que se tem denominado de personalidade judiciária. Assim, podem também figurar no processo como partes o condomínio, a sociedade sem personalidade jurídica, a massa falida, a herança jacente ou vacante, o espólio etc. Os três últimos são universalidades de bens ou de pessoas a que a lei confere a possibilidade de postularem ou serem demandadas em juízo (CPC de 1973, art. 12; CPC de 2015, art. 75). A lei e a jurisprudência têm admitido a postulação em juízo de outros entes sem personalidade jurídica, o que é corriqueiro nas ações civis públicas, que, nos termos do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90, art. 82, inc. III), podem ser propostas por entes da Administração Pública que não possuam personalidade jurídica. Assim, o PROCON, mesmo não dotado de personalidade jurídica própria, em razão de ser um órgão da administração direta estadual, pode propor tais ações, figurando, portanto, como autor nessas demandas.
Além disso, hoje tem sido admitido que certas autoridades e alguns órgãos venham a juízo em nome próprio, para atuar como sujeitos processuais em certas causas, o que se observa em algumas ações de controle concentrado de constitucionalidade. Assim, por exemplo, as mesas das Assembleias Legislativas, órgãos do Poder Legislativo (art. 103, inc. IV, da Constituição), têm legitimidade ativa para propor essas ações. Portanto, verifica-se uma ampliação da capacidade de ser parte, com o fim de assegurar o mais amplo acesso à justiça. O maior exemplo desse movimento é a ampliação das demandas que podem ser propostas pelo Ministério Público, que também não tem personalidade jurídica. Peculiar também é a atuação da chamada “autoridade coatora” no mandado de segurança, não somente prestando informações (Lei n. 12.016/2009, art. 7º, inc. I) e recebendo diretamente a comunicação da decisão, mas podendo atualmente interpor apelação da sentença concessiva (Lei citada, art. 14, § 2º). Por isso, o Código de 2015, no artigo 75, inciso IX, se refere a “outros entes organizados sem personalidade jurídica”. 14.2.2. Capacidade de estar em juízo Traçando-se um paralelo entre o direito civil e o processual civil, pode-se dizer que, enquanto a capacidade de ser parte aproxima-se da capacidade de direito, a capacidade de estar em juízo assemelha-se à capacidade de exercício ou de gozo. A capacidade de estar em juízo define quem pode, por si só, praticar atos processuais, vale dizer, quem pode praticá-los sem a necessidade de autorização, representação ou assistência de outrem. As pessoas físicas capazes, na forma da lei civil, têm capacidade de estar em juízo; as incapazes carecem de representação ou assistência, conforme o caso. O interdito somente pode estar em juízo através de seu curador. O mesmo ocorre com os menores, que devem ser assistidos ou representados em juízo por seus pais ou tutores (CPC de 1973, art. 8º; CPC de 2015, art. 71). As pessoas jurídicas de direito privado somente têm capacidade de estar em juízo por meio de seus representantes legais (CPC de 1973, art. 12, incs. VI e VIII; CPC de 2015, art. 75, incs. VIII e X). A União, os Estados e o Distrito
Federal devem ser representados em juízo por seus procuradores (CPC de 1973, art. 12, inc. I; CPC de 2015, art. 75, incs. I e II). Os Municípios são representados em juízo pelo prefeito, quando não possuírem órgãos especializados e criados para esse fim (CPC de 1973, art. 12, inc. II; CPC de 2015, art. 75, inc. III); as autarquias e fundações públicas, pelos seus procuradores ou por quem a lei designar (CPC de 1973, art. 12, inc. III; CPC de 2015, art. 75, inc. IV); as sociedades e associações irregulares e demais entes sem personalidade jurídica, pela pessoa a quem couber a administração dos seus bens (CPC de 1973, art. 12, inc.VII; CPC de 2015, art. 75, inc. IX). Então, essa representação em juízo das pessoas físicas e jurídicas e dos entes sem personalidade, para que possam praticar atos processuais validamente, é a capacidade de estar em juízo. Esse pressuposto processual, consistente na adequada representação em juízo das pessoas ou entes que têm capacidade de ser parte, caracteriza o que comumente se chama de legitimatio ad processum. A legitimatio ad processum, todavia, não se confunde com a legitimidade para agir ou legitimatio ad causam (condição da ação), e, portanto, há casos em que a parte, ainda que legítima, pois que afirmada titular da relação jurídica de direito material, pode não estar devidamente representada. Alguns autores entendem que a incapacidade de estar em juízo é uma nulidade relativa, ao passo que outros a consideram uma nulidade absoluta passível de convalidação apenas na hipótese extrema dos artigos 249, § 2º, do Código de 1973, e 282, § 2º, do Código de 2015. A meu ver, entretanto, essa incapacidade é geralmente uma nulidade absoluta, porque a inadequada representação por quem não tenha legitimidade coloca a parte em posição de absoluta desvantagem da sua defesa, ainda quando a própria parte intencionalmente tenha dado causa à deficiência de representação, caso em que deverá sofrer sanções e recair em responsabilidade civil pela sua conduta maliciosa, sem prejuízo da nulidade de todo o processo. Assim, aquele que litiga com uma parte que sabe não estar representada adequadamente em juízo deve comunicar tal vício ao juiz, sob pena de se submeter ao prejuízo posterior da nulidade daquela relação processual.
Logo, se o defeito de representação atinge o autor, o juiz deve mandar que este o regularize, sob pena de extinção do processo, de acordo com os artigos 284 e 327 do Código de 1973 e 321 e 352 do Código de 2015. Caso a representação do réu seja defeituosa, o seu advogado deve ser intimado para regularizá-la, sob pena de desentranhamento da contestação e consequente aplicação da revelia e seus efeitos. A matéria está também regulada nos artigos 13 do Código de 1973 e 76 do Código de 2015. 14.2.3. Capacidade postulatória A capacidade postulatória está disciplinada nos artigos 36 a 40 do Código de 1973 e 103 a 107 do Código de 2015 e relaciona-se com o chamado patrocínio obrigatório, que é a necessidade de que a parte, para a prática de atos processuais válidos, seja assistida por um advogado legalmente habilitado e investido no exercício do mandato judicial. O estudo deste pressuposto processual deve ser realizado sob dois aspectos: o subjetivo, que permite conhecer quais os requisitos que o advogado deve preencher para patrocinar a causa; e o objetivo, que analisa os atos processuais que devem ser praticados pelo advogado. Sob o aspecto subjetivo, somente pode praticar atos, na condição de mandatário da parte no processo, o advogado legalmente habilitado, que é aquele que tem a sua inscrição profissional regular junto à Ordem dos Advogados do Brasil (Lei n. 8.906/94, art. 3º). Assim, o advogado deve estar no pleno exercício da profissão, ou seja, não pode estar suspenso, licenciado ou impedido de exercer a advocacia em razão de sanções administrativas ou de proibições legais (Lei n. 8.906/94, art. 4º, parágrafo único). A inscrição do advogado se dá perante uma seção da Ordem dos Advogados do Brasil, que possui conselhos seccionais em todos os Estados e no Distrito Federal. Depois de regularmente inscrito em uma das seccionais, adquire o advogado habilitação para patrocinar causas em todo território nacional, perante qualquer juízo ou tribunal. O advogado, que frequentemente patrocina causas em seções diversas daquela em que se deu a sua inscrição originária, deve realizar inscrições suplementares, perante as seccionais desses outros Estados (Lei n. 8.906/94, art. 10, § 2º).
O outro requisito subjetivo é a investidura do advogado como mandatário em cada processo, através da outorga do mandato judicial, instrumentalizado na procuração. Logo, o advogado somente pode praticar atos processuais válidos em nome da parte se estiver munido da procuração, que é representativa do mandato (CPC de 1973, art. 37; CPC de 2015, art. 104). O mandato judicial é um tipo especial de mandato, que se celebra através de um contrato de prestação de serviços, por exemplo, ou simplesmente pela outorga da procuração. A procuração prova a existência do mandato, devendo ser apresentada e juntada aos autos, para que o juiz, as partes e os demais interessados possam se certificar de que o advogado preenche o pressuposto da capacidade postulatória. Contudo, pode o advogado ingressar em juízo sem juntar a procuração, para evitar decadência, a prescrição (ou também a preclusão, segundo o Código de 2015), enfim, para praticar atos reputados urgentes, conforme dispõem os dois Códigos nos artigos que acabamos de mencionar. Para tanto, deve afirmar-se mandatário da parte e comprometer-se a juntar a procuração no prazo de quinze dias, prorrogável por mais quinze, sob pena. O Código de 1973 comina de inexistência a não ratificação do ato no prazo legal. O Código de 2015 a comina de ineficácia em relação à parte em cujo nome foi praticado. A lei usa essas expressões para salientar a gravidade do defeito. Em minha opinião, não se trata propriamente de inexistência, mas de nulidade absoluta que tem como consequência a ineficácia do ato, mas não apenas em relação à parte em cujo nome o ato foi praticado, porque no processo todos os atos são interdependentes. Parece-me que este último Código quis dizer que o ato não representa uma manifestação de conhecimento ou de vontade do sujeito em cujo nome foi praticado. O artigo 36 do Código de 1973 e o artigo 103 do Código de 2015 dispensam a juntada de procuração também na hipótese de patrocínio em causa própria. O primeiro também a dispensa nas de inexistência de advogados na comarca ou impedimento ou recusa geral dos existentes. O desaparecimento de previsão destas duas últimas hipóteses se justifica não pelo fato de elas não poderem ocorrer, mas porque a falta de advogado constitui uma redução do direito de defesa constitucionalmente assegurado, que deve ser suprida por alguma outra via, como a atuação da Defensoria Pública ou, à sua falta, a indicação de um defensor pela Ordem dos Advogados do Brasil.
No mesmo sentido, não necessitam juntar procuração aos autos os procuradores das pessoas jurídicas de direito público que forem funcionários públicos efetivos, titulares de cargos de procuradores (Constituição, arts. 131 e 132), os membros do Ministério Público, os defensores públicos e os advogados dativos, que são aqueles que exercem a assistência judiciária dos necessitados, designados pela OAB ou pelo juiz, nos termos do artigo 5º, §§ 2º e 3º, da Lei n. 1.060/50. No processo civil, a procuração deve ser outorgada por escrito (CPC de 1973, art. 38; CPC de 2015, art. 105). Contudo, no âmbito do processo penal, pode-se encontrar a chamada procuração apud acta, que significa procuração “sobre os autos”. Então, no processo penal, ao final do interrogatório do réu, o advogado pode ser investido oralmente pelo seu cliente, não havendo necessidade de apresentar ou juntar procuração escrita (Código de Processo Penal, art. 266). Portanto, em resumo, a capacidade postulatória, no processo civil, sob o ponto de vista subjetivo, pressupõe a outorga de poderes através de uma procuração escrita, outorgada por instrumento público ou particular, juntada aos autos e conferida a um advogado regularmente escrito perante a Ordem dos Advogados do Brasil. Relevante dizer que não há necessidade de reconhecimento de firma para que seja dada a procuração. Cumpre ainda observar que os estagiários não podem praticar sozinhos atos postulatórios – que são privativos dos advogados –, embora possam praticar atos de movimentação do processo, como a juntada de um documento. Contudo, o estagiário, regularmente inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados, pode praticar atos postulatórios, quando assistido permanentemente na prática do ato por um advogado ou por procurador da respectiva pessoa jurídica de direito público, que deve referendar o conteúdo das suas alegações (Lei n. 8.906/94, art. 3º, § 2º). Sob o aspecto objetivo, importa analisar os atos que o advogado pode ou não praticar no exercício do mandato judicial. De acordo com os artigos 38 do Código de 1973 e 105 do Código de 2015, a procuração geral para o foro, conferida por instrumento público, ou particular assinado pela parte, habilita o advogado a praticar todos os atos do processo, exceto receber citação inicial, confessar, reconhecer a procedência do pedido, transigir, desistir, renunciar ao direito sobre o qual se funda a ação, receber, dar quitação e firmar compromisso.
O dispositivo mencionado do Código de 2015 ainda exige poderes especiais para assinar declaração de hipossuficiência econômica, para fazer jus aos benefícios da assistência judiciária gratuita. Conforme já se afirmou, os atos privativos dos advogados são os postulatórios, que são aqueles em que a parte deduz alguma proposição de fato ou de direito, seja ela processual ou de mérito. Por exemplo: a realização de perguntas às testemunhas; o oferecimento da contestação; a interposição de um recurso. Entretanto, a prática de alguns desses atos postulatórios demanda a concordância, a assinatura ou a presença da parte. É o que ocorre com os chamados atos de disposição, de que são exemplos a confissão, o reconhecimento do pedido, a renúncia ao direito, a desistência da ação etc. Então, para essas espécies de atos postulatórios, que implicam prejuízo à própria parte que os pratica, o advogado deve ter recebido poderes expressos na procuração (CPC de 1973, art. 38; CPC de 2015, art. 105), ou, caso contrário, deve praticá-los em conjunto com a parte. Por outro lado, há atos que são personalíssimos das partes e, portanto, ainda que autorizados, não podem ser praticados por advogados. São atos personalíssimos, por exemplo, aqueles que constituem atividades humanas das partes (atos reais), como o comparecimento da parte ao consultório do médico-perito para submeter-se a um exame. A prestação de depoimento pessoal normalmente é um ato personalíssimo da parte. Se for pessoa jurídica, deverá ser prestado pelo seu representante legal. Entretanto, deve admitir-se que grandes organizações, cujos representantes legais não sejam conhecedores diretos dos fatos que se apuram no processo, ou até mesmo pessoas físicas que confiam a administração dos seus bens a terceiros, não tendo contato direto com todos os pormenores fáticos das relações locatícias e outras entregues à responsabilidade dos administradores, designem para a prestação de depoimento pessoal, com poderes para confessar, na qualidade de seus prepostos, os seus empregados ou mandatários ad negotia diretamente responsáveis pela gestão dos negócios envolvidos no processo (ver item 6.3.1 no 2º volume). No procedimento sumário (CPC de 1973, art. 277, § 3º) e nos juizados especiais (Lei n. 9.099/95, art. 9º, § 4º), existe, para fins da tentativa conciliação, a figura do preposto, igualmente prevista no Código de 2015 (art. 334, § 10). Mitigando a exigência de patrocínio da causa por advogado, a Lei n. 9.099/95,
que regula os juizados especiais, no seu artigo 9º, dispensou a presença do advogado nas causas até vinte salários mínimos. Esse dispositivo foi objeto de muita polêmica, principalmente após o advento da Constituição de 1988 e da edição do Estatuto da Advocacia (Lei n. 8.906/94). O artigo 133 da Constituição – assim como o artigo 2º do Estatuto da Advocacia – estabelece que o advogado é indispensável à administração da justiça, o que, na visão de alguns autores, tornou a sua dispensa inconstitucional. O Supremo Tribunal Federal, contudo, tanto em relação aos juizados especiais quanto à Justiça do Trabalho – em que também é permitida a dispensa do advogado –, entendeu ser constitucional a possibilidade de ingresso em juízo sem a assistência do advogado, nos casos previstos em lei. Em minha opinião, o patrocínio obrigatório é uma imposição que visa a suprir a dificuldade no exercício da ampla defesa pela parte que não tenha suficiente consciência jurídica para se autodefender, ou, mesmo quando a parte tenha tal consciência, o processo seja complexo do ponto de vista técnico. Nesses casos, somente um profissional do direito poderia manejar corretamente os instrumentos legais e processuais, de forma a não comprometer a ampla defesa ou a validade do próprio processo. Entretanto, quando a causa for de menor complexidade e a parte tenha consciência jurídica para se autodefender, não se impõe o patrocínio obrigatório, que, em realidade, poderia dificultar o acesso à justiça, na medida em que seria um custo adicional e desnecessário a essa parte. Assim, a meu ver, andou bem o Supremo Tribunal Federal ao não considerar a dispensa do advogado, nos juizados especiais e na Justiça do Trabalho, inconstitucional. Por outro lado, nesses juizados especiais, pode ocorrer de o juiz deparar-se com uma parte que, embora não assistida por advogado, não tenha condições de se autodefender. Nesses casos, a Lei n. 9.099/95, no § 2º do seu artigo 9º, determina que o juiz “alertará” as partes sobre a necessidade de patrocínio por um advogado. A meu ver, no entanto, essa mera advertência não é suficiente, porque muitas vezes a parte, mesmo depois de advertida pelo juiz, é incapaz de compreender a deficiência na sua autodefesa. Seria melhor que se adotasse a solução prevista no direito alemão, em que o juiz não deve apenas advertir as partes, mas extinguir o
processo, nos casos em que a parte não tenha condições de se autodefender e resista a fazer-se representar por advogado. É importante verificar que o advogado constituído pela parte está autorizado a praticar todos os atos do processo como seu representante judicial. Assim, além das exceções legais, não podem ser estabelecidas limitações aos atos que podem ser praticados pelo advogado. Por exemplo: não se pode outorgar procuração com limitação temporal, uma vez que o mandato é conferido por tempo indeterminado; do mesmo modo, não podem ser impostas limitações quanto às instâncias em que o advogado deverá atuar ou quanto a certos atos ou fases do processo. O Código de 2015, no § 4º do artigo 105, faculta a limitação do mandato ao advogado por cláusula expressa da procuração juntada aos autos, para que fique restrita a uma ou mais fases do processo, por exemplo, apenas à fase de conhecimento, não à de cumprimento de sentença, ou a uma determinada instância recursal ou a um determinado incidente, como a exceção de suspeição ou o cumprimento de uma carta precatória. São etapas diferidas no tempo ou que tramitam em órgãos jurisdicionais diversos, a justificar essas restrições. Portanto, investido no exercício do mandato judicial, o advogado não pode sofrer limitações diversas daquelas previstas em lei, que abrangem os atos que carecem da outorga de poderes especiais e se encontram na parte final dos artigos 38 do Código de 1973 e 103 do Código de 2015, além das que este último Código contempla no § 4º do artigo 105 e dos atos considerados personalíssimos. O mandato é um contrato puro e revogável unilateralmente. Logo, as partes não podem excluir a revogabilidade unilateral do mandato, seja por iniciativa do cliente, seja do próprio advogado constituído, sendo necessário observar que, na hipótese de renúncia pelo advogado, este deve notificá-la ao seu cliente e permanecer no exercício do mandato por dez dias a partir dessa notificação (CPC de 1973, art. 45; CPC de 2015, art. 112). Neste último dispositivo, o Código de 2015 dispensou a notificação se a procuração tiver sido conferida a mais de um advogado e a parte continuar representada por outro, apesar da renúncia. Não me parece razoável a dispensa de notificação. A parte tem o direito de saber quem a representa, porque pode não lhe interessar seguir representada pelo advogado remanescente. Parece-me que a dispensa de notificação se refere apenas à conservação do dever de patrocínio por mais dez dias. Efetuada a renúncia, que, de qualquer modo, deverá ser notificada ao
mandante, estará o renunciante dispensado de prosseguir no patrocínio de imediato, porque o cliente não está indefeso.
14.3. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS OBJETIVOS Os dois pressupostos processuais objetivos são a inexistência de fatos impeditivos e a subordinação do procedimento às normas legais. Na verdade, esses pressupostos têm de ser verificados ao longo de todo o processo e em inúmeros atos, e, portanto, não são apenas dois pressupostos, mas diversos, que abrangem muitas situações. 14.3.1. Inexistência de fatos impeditivos Existem certos fatos jurídicos que impedem a formação válida do processo e, consequentemente, o julgamento do mérito da causa. Esses fatos são, basicamente, a litispendência, a coisa julgada e a perempção (CPC de 1973, art. 267, inc. V; CPC de 2015, art. 485, inc. V). Logo, ocorrendo algum desses fatos impeditivos da formação válida do processo, torná-lo-á absolutamente nulo, devendo ser extinto pelo juiz sem resolução do mérito. A litispendência é a repropositura de uma ação pendente de julgamento (CPC de 1973, art. 301, §§ 1º e 3º; CPC de 2015, art. 337, §§ 1º e 3º); ela ocorre quando há o ajuizamento de uma ação que já fora proposta e pendente, devendo haver, portanto, entre as ações, identidade nos seus três elementos identificadores – partes, pedido e causa de pedir. Também não se pode propor ação que viole a coisa julgada formada em causa idêntica e decidida em processo anterior. Assim, transitada em julgado a sentença, a autoridade da coisa julgada atinge as partes envolvidas e impede que o objeto da causa anterior seja novamente discutido por elas numa nova relação processual. A perempção é uma sanção imposta ao autor que, por abandono do processo (CPC de 1973, art. 267, inc. III; CPC de 2015, art. 485, inc. III), tiver dado causa à sua extinção por três vezes, o que o impedirá de intentar novamente a ação (CPC de 1973, art. 268, parágrafo único; CPC de 2015, art. 486, § 3º).
Há, ainda, outro fato impeditivo, que é a existência de compromisso arbitral, que, entretanto, de maneira diversa da que ocorre com os fatos enumerados acima, pode acarretar a nulidade relativa do processo. Assim, o compromisso arbitral necessita ser alegado pelo réu, sob pena de o juiz considerar que ambas as partes renunciaram à arbitragem como forma de solução daquele litígio. Embora nos artigos 267, inciso VII, e 485, inciso VII, respectivamente, os dois Códigos estabeleçam que o processo se extingue sem resolução do mérito pela convenção de arbitragem, os artigos 301, inciso IX, e 337, inciso X, determinam que a matéria deve ser alegada como preliminar da contestação, dispondo, ainda – o de 1973 no § 4º, e o de 2015 no § 5º – que o juiz não poderá conhecê-la de ofício, ou seja, é necessária a provocação da parte. Também é um fato impeditivo da formação válida do processo a imposição pela lei de algum requisito que deva verificar-se antes ou por ocasião do ajuizamento da ação e que deva ser comprovado desde logo pelo autor, como, por exemplo, a caução às custas do autor que residir em país estrangeiro e no Brasil não tiver bens (CPC de 1973, art. 835; CPC de 2015, art. 83), a notificação prévia exigida pelo artigo 1º do Decreto-lei n. 745/69 para a propositura da ação de rescisão de compromisso de compra e venda de imóvel, o protesto para a propositura do requerimento de falência (Lei n. 11.101/2005, art. 94, inc. I). 14.3.2. Subordinação do procedimento às normas legais De acordo com esse pressuposto, o processo, desde o seu primeiro ato – que é a petição inicial –, até o último, deve observar, em todos os atos e na sequência deles, todos os requisitos que a lei processual estabelece. Por exemplo: a petição inicial, a contestação e a sentença devem observar os requisitos contidos, respectivamente, nos artigos 282, 300 e 458 do Código de 1973 ou 319, 336 e 489 do Código de 2015. Da mesma forma, a sequência dos atos praticados no processo deve obedecer ao procedimento da causa e aos prazos nele estabelecidos para cada ato. Portanto, esse pressuposto se desdobra em inúmeros outros, uma vez que cada ato processual tem os seus requisitos estabelecidos em lei, assim como o seu encadeamento e os prazos em que deve ser praticado.
Contudo, essa disciplina legal dos requisitos dos atos e do procedimento não deve levar a um formalismo excessivo, mormente diante da atual tendência à relativização das nulidades e ao princípio de que, salvo motivos efetivamente graves, o processo judicial deve contribuir para o pleno e adequado exercício da jurisdição através da apreciação do mérito da causa, não se transformando os seus pressupostos em obstáculos não razoáveis à obtenção desse resultado. No Código de 2015, a flexibilização dos requisitos dos atos processuais e da sequência procedimental prevista em lei ganha nova dimensão com as regras dos artigos 139, inciso VI, e 190, a que já demos atenção nos itens 2.2.9, 11.1.1 e 12.2.2.2, que autorizam o juiz a dilatar prazos e a alterar a ordem de produção dos meios de prova e lhe impõem aceitar que as partes convencionem mudanças no procedimento. No desenrolar do nosso estudo, ao examinarmos as regras que disciplinam os diversos procedimentos e os requisitos de cada um dos atos que neles possam ser praticados, estaremos sempre tratando do alcance do presente pressuposto processual. ________ 1
INVREA, Francesco. Contro il concetto dei presupposti processuali. In: Rivista di Diritto Processuale. Padova, v. VIII, parte II, ano 1931. p. 113. 2
MANDRIOLI, Crisanto. Presupposti processuali. In: Novissimo Digesto Italiano. Torino: UTET, 1966, ristampa 1980, v. XIII. p. 785 e 788. 3 Ibidem. p. 794. 4
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Sobre pressupostos processuais. In: Temas de direito processual. Quarta Série. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 83-93. 5 CALAMANDREI, Piero. Istituzioni di diritto processuale civile secondo il
nuovo Codice. In: Opere giuridiche. Napoli: Morano Editore, 1970. v. IV. p. 184-185. 6 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Sobre pressupostos… p. 90. 7 Ver, a esse propósito, GRECO, Leonardo. O valor da causa e as custas iniciais
no mandado de segurança. In: Estudos de direito processual. Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2005. p. 175-198. 8 LENT, Friedrich. Diritto processuale civile tedesco. Torino: Morano, 1962. p.
129. 9 MANDRIOLI, Crisanto, Presupposti… p. 792 e 794. 10
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linha… v.I, p. 364; LACERDA, Galeno. Despacho saneador. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1985. p. 60-61. 11 Regimentos Internos de alguns tribunais têm permitido que o juiz em férias ou
em gozo de licença compareça a sessões para participar de julgamentos de processos em que passou visto ou para proferir votos em processos com vista ou para desempatar resultados. Ver, por exemplo, o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, art. 50, § 1º; ou o Regimento Interno do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, art. 49, § 1º. Nesses casos, o juiz reassume o exercício efetivo. 12
BARROSO, Luís Roberto. Comissões Parlamentares de Inquérito. Competências legítimas e limitações constitucionais. Inadmissibilidade de investigação de contrato particular entre pessoas privadas, sem repercussão sobre o interesse público. In: Revista dos Tribunais, n. 768. p. 99-112.
15.1. LUGAR DOS ATOS PROCESSUAIS Os atos processuais, em regra, são realizados na sede do juízo (CPC de 1973, art. 176; CPC de 2015, art. 217). Todavia, em hipóteses excepcionais, os atos processuais podem ser praticados em lugar diverso – situações que serão analisadas mais adiante. A sede do juízo é o prédio ou instalação em que se situam o gabinete do juiz, a sala de audiências e o cartório ou secretaria. Geralmente, esses três recintos estão localizados num mesmo local, interligados entre si. Contudo, atualmente, esse conceito de sede do juízo – local em que os atos processuais devem ser praticados – tem sido estendido, porque, nos foros maiores, os diversos juízos e seus órgãos auxiliares se instalam num único prédio, o fórum. Então, também se considera como sede do juízo o edifício do fórum como um todo, nele incluídas as áreas comuns a todos os juízos, como, por exemplo, o saguão principal e os serviços comuns, como os protocolos centralizados, em que são entregues as petições das partes. O conceito em referência ainda sofreu ampliação com a criação de protocolos gerais em diversas organizações judiciárias, que permitem o ajuizamento num único local de petições dirigidas a juízos sediados em bairros, cidades e até Estados diversos, bem assim com a celebração de convênios de certas organizações judiciárias, como a Justiça do Trabalho, com os Correios, que possibilitam o ajuizamento de petições em agências dessa empresa. Além disso, a Lei n. 9.800/99 permitiu a transmissão de petições através de equipamentos de fac-símile, desde que entregues os originais em juízo nos cinco dias seguintes (art. 2º). E a Lei n. 11.419/2006 possibilitou ao advogado, regularmente cadastrado junto ao tribunal (art. 2º), a prática de atos processuais da sua própria casa, do seu escritório ou de qualquer parte do mundo, via internet. No caso do fac-símile, a noção de sede do juízo não se altera, porque o órgão jurisdicional deve dar prévia publicidade ao número da linha telefônica autorizado a receber as mensagens, e a entrega dos originais em cinco dias dar-se-á na sede física do juízo ou em local que o próprio judiciário tenha indicado, como apto a recebêlos, como os protocolos gerais ou os Correios. E, no caso do peticionamento via
internet, a sede do juízo é virtual, ou seja, será o sistema eletrônico oficial do Poder Judiciário que receberá as petições e outros atos regularmente praticados (Lei n. 11.419/2006, arts. 3º e 8º). O Código de 1973 permite a realização de atos processuais fora da sede do juízo, nos casos de deferência, interesse da justiça ou obstáculo arguido pelo interessado e acolhido pelo juiz (art. 176), hipóteses às quais aparentemente o Código de 2015 (art. 217) acrescenta uma outra, a natureza do ato. O primeiro motivo, a deferência, refere-se aos casos em que o sujeito que deve praticar o ato é uma alta autoridade pública arrolada como testemunha, hipótese em que o juiz, em lugar de obrigá-la a comparecer à sua presença para ser inquirida, desloca-se até o local em que essa autoridade resida ou exerça suas funções. O artigo 411 do Código de 1973 enumera essas autoridades, cuja inquirição não se realiza na sede do juízo por deferência, sendo elas: o Presidente e o VicePresidente da República; os presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados; os ministros de Estado; os ministros do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores; o procurador-geral da República; os senadores e deputados federais; os governadores; os deputados estaduais; os desembargadores dos Tribunais de Justiça; e os embaixadores de países que, por lei ou tratado, concedem igual prerrogativa ao agente diplomático do Brasil. A esse rol o artigo 461 do Código de 2015 acrescenta: os conselheiros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, os procuradores-gerais do Estado, do Município e de justiça, os defensores públicos-gerais federal e dos Estados, os prefeitos e os deputados distritais. A finalidade dessa prerrogativa é a de permitir que essas autoridades colaborem com a justiça sem prejuízo para o exercício de suas funções, reputadas pela lei de grande relevância para a sociedade. O segundo motivo é o interesse da justiça, que o Código de 2015 desnecessariamente desdobra em interesse da justiça e natureza do ato. Assim, podem ser realizados fora da sede do juízo atos como as citações, as inspeções judiciais, as avaliações, os leilões etc. São atos que, pela sua natureza ou pelo maior grau de proveito que deles se pretenda obter, devem ser praticados onde se encontram as pessoas, que deles devam participar, ou os objetos que mereçam
especial atenção do autor do ato. A Constituição, por meio da Emenda Constitucional n. 45/2004, recomendou a criação de órgãos judiciais itinerantes, estimulando, assim, os juízes a irem ao encontro da população (arts. 107, § 2º; 115, § 1º; e 125, § 7º). Portanto, os magistrados devem também sair da sede do juízo para percorrerem as diversas localidades englobadas nas áreas geográficas em que exercem jurisdição, a fim de se tornarem mais acessíveis aos cidadãos, o que lhes possibilita, inclusive, conhecer melhor a realidade em que vivem os diversos jurisdicionados. Esses deslocamentos do juiz devem ser antecedidos da necessária publicidade e da intimação das partes e dos advogados das causas que neles serão objeto de sessões orais, para facultar o seu comparecimento. Os locais desses atos, nos quais o juiz deverá estar à disposição dos interessados (Lei Complementar n. 35/79, art. 35, inc. IV), deverão ser de fácil acesso público. Aí serão realizados os atos processuais orais dos processos que perante eles tramitam, sem prejuízo de a prática de atos processuais escritos, como as petições, poder também ocorrer na sede permanente dos respectivos juízos, que deve continuar a funcionar normalmente. A sede do juízo não é itinerante. A última hipótese é aquela relacionada à existência de um obstáculo à prática do ato, que inviabilize a sua realização na sede do juízo. Assim, se o juiz precisa inquirir uma testemunha que está num hospital, em razão de grave enfermidade que impossibilita a sua locomoção, o magistrado comparecerá a esse local para a prática do ato, desde que, obviamente, a testemunha possa conscientemente responder às perguntas formuladas. Também constituem obstáculo a temporária interdição da sede do juízo em razão de incêndio, inundação ou outro qualquer evento que impossibilite os sujeitos do processo de utilizarem as suas instalações, caso em que o juiz designará outro local para a sua prática.
15.2. TEMPO DOS ATOS PROCESSUAIS O artigo 93, inciso XII, da Constituição, acrescentado pela Emenda Constitucional n. 45/2004, estabelece que a atividade jurisdicional é ininterrupta. A administração da justiça é um serviço público essencial que deve estar à disposição dos cidadãos de modo permanente, para que dele façam uso sempre que necessitem. Todavia, a lei processual estabelece os limites temporais dentro
dos quais devem normalmente ser praticados os atos processuais, tendo em vista, de um lado, que, como todos os demais serviços públicos, também a justiça deve ser administrada de modo racional, com a otimização dos meios materiais e humanos de que dispõe; e, de outro, que os seus usuários, as partes, os advogados e os demais sujeitos que a ela devam dirigir-se devem ter assegurado amplo acesso aos seus serviços e devem desfrutar de absoluta segurança no que tange ao momento em que devam praticar com validade e eficácia atos nos processos perante ela pendentes. O caráter ininterrupto do serviço judiciário não impõe que todos os atos de todos os processos judiciais possam ser praticados em qualquer dia do ano e em qualquer hora do dia, pois a sociedade humana tem culturas e costumes, que condicionam a vida de todas as pessoas, inclusive dos servidores da justiça, tais como dias de repouso, dias de festas, horas para dormir, horas para se dedicar às relações familiares e à vida doméstica. Por isso, a justiça deve estar sempre de portas abertas, todos os dias e todas as horas, para as providências urgentes, ou seja, para prover àquelas situações fático-jurídicas que exijam tutela jurisdicional imediata ou muito rápida, sob pena de sofrerem lesão grave ou de difícil reparação. Para as demais, não obstante a celeridade seja um objetivo a ser perseguido (Constituição, art. 5º, inc. LXXVIII), devem as leis processuais e de organização judiciária prover de modo a que a justiça esteja durante a maior parte do tempo em pleno funcionamento, para que as causas não se eternizem, respeitado, entretanto, o ritmo normal de vida da própria sociedade. Assim, os artigos 172 do Código de 1973 e 212 do Código de 2015 estabelece que os atos processuais serão realizados em dias úteis, das seis às vinte horas. Dias úteis são considerados tradicionalmente aqueles em que o trabalho é permitido, de modo geral, em todas as atividades e profissões. Definem-se por exclusão. São úteis todos os dias do ano, exceto os feriados, entre os quais se incluem os domingos (CPC de 1973, art. 175). Abstraídos os fundamentos de índole religiosa, cujo enraizamento na cultura da sociedade brasileira tem se revelado progressivamente mais tênue, os domingos, que são os feriados mais comuns, porque ocorrem semanalmente, não são dias úteis, porque a própria Constituição, no artigo 7º, inciso XV, os institui como os dias em que preferencialmente os trabalhadores devam exercer o direito ao repouso semanal, o que levou o legislador processual a considerá-los feriados. E os demais feriados são estabelecidos, em princípio, pela lei federal, porque a não permissão
de trabalho é matéria da competência legislativa da União (Constituição, art. 22, inc. I), estando hoje regulada preponderantemente na Lei n. 9.093/95, que prevê, além dos feriados nacionais (1º de janeiro, 21 de abril, 1º de maio, 7 de setembro, 2 de novembro, 15 de novembro, 25 de dezembro, 12 de outubro e o dia de eleições)1, a data magna do Estado fixada em lei estadual, quatro feriados religiosos, sendo um deles a Sexta-Feira da Paixão, definidos em lei municipal, e mais dois dias no ano do centenário de fundação do Município. Também são feriados forenses, na Justiça Federal, os dias compreendidos entre 20 de dezembro e 6 de janeiro, inclusive; os dias da Semana Santa, compreendidos entre a quarta-feira e o Domingo de Páscoa; os dias de segunda e terça-feira de Carnaval; os dias 11 de agosto e 1° e 2 de novembro (Lei n. 5.010/66, art. 62). O Código de 2015 ampliou o conceito de feriado para fins processuais, incluindo no conceito também os sábados e os dias em que não haja expediente forense, que são aqueles em que este foi suspenso por algum motivo de força maior ou aqueles em que o chefe do Poder Executivo federal ou estadual, conforme o caso, tenha declarado ponto facultativo nas repartições públicas. Nos domingos e feriados não se praticam atos processuais, nem na sede do juízo, nem fora dela, salvo citações, intimações, penhoras e providências urgentes (CPC de 1973, arts. 172 e 173; Código de 2015, arts. 212 e 214). No Código de 1973, a prática de citações, intimações e penhoras nesses dias depende de expressa autorização judicial (art. 172, § 2º), enquanto no Código de 2015 a autorização judicial para a prática desses atos nesses dias foi categoricamente dispensada (art. 212, § 2º). Ambos os Códigos, quanto ao horário, ressalvam que a prática desses atos deve respeitar a inviolabilidade do domicílio durante o repouso noturno. Para as providências urgentes costumam os tribunais estabelecer, em rodízio, escalas de plantões de magistrados e de serventuários, em todos os graus de jurisdição. Na vigência do Código de 1973, como há dias úteis em que, não sendo domingos nem feriados, não há expediente forense, ou seja, o foro não abre, não se marcam audiências, os cartórios e secretarias não atendem o público, porque são dias em que juízes e serventuários, como funcionários públicos, não estão obrigados a trabalhar, além das citações, intimações, penhoras e demais atos urgentes, podem ser praticados fora da sede do juízo outros atos processuais. Na Justiça do Estado
do Rio de Janeiro, são dias em que não há expediente forense os sábados, domingos, o dia 8 de dezembro, os dias declarados de ponto facultativo nas repartições públicas, a segunda, a terça e a quarta-feira da semana do Carnaval, a quinta e a sexta-feira da Semana Santa e nos dias feriados nacionais, estaduais e municipais, quanto a estes, nos municípios sede das respectivas comarcas (Lei estadual n. 6.956/2015, art. 66). Ainda sobre os dias em que não podem ser realizados os atos processuais, cumpre mencionar as férias forenses, que são as férias coletivas dos magistrados (CPC de 1973, arts. 173 e 174; CPC de 2015, arts. 214 e 215). A Emenda Constitucional n. 45/2004 proibiu férias coletivas nos órgãos jurisdicionais de 1º grau e nos tribunais de 2º grau (Constituição, art. 93, inc. XII). Os magistrados desses órgãos gozam apenas férias individuais, que, de um modo geral, não afetam a continuidade da prática de atos nos processos perante os órgãos a que estão vinculados, que continuarão funcionando normalmente com os demais membros do tribunal ou outros magistrados que os substituam. Mas continuam os membros dos tribunais superiores da União (Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior do Trabalho, Tribunal Superior Eleitoral e Superior Tribunal Militar) a gozar férias coletivas de 2 a 31 de janeiro e de 2 a 31 de julho (Lei Complementar n. 35/79, art. 66, § 1º). Nesses dias, perante esses tribunais, não se praticam atos processuais, exceto os urgentes e alguns outros mencionados nos referidos dispositivos da lei processual. Quanto ao horário, os artigos 172 do Código de 1973 e 212 do Código de 2015 estabelecem que os atos processuais serão realizados das 6 às 20 horas. Antes do advento da Lei n. 8.952/94, esse período era das 6 às 18 horas, o que decorria do entendimento de que os atos processuais tinham de ser realizados à luz do dia. Às 6 horas, em média, nasce o sol, e, em torno das 18 horas, dá-se o crepúsculo. Esse entendimento prevalecia porque havia – como ainda há pelo interior do Brasil – cidades que não possuem rede de luz elétrica, sendo iluminadas muitas vezes à luz de lampião, não existindo, portanto, segurança suficiente para que as pessoas se dirijam a um lugar público para a prática de atos processuais. A Lei n. 8.952/94 estendeu o limite do horário, por considerar o legislador que o país já está suficientemente dotado de infraestrutura para oferecer condições de segurança à circulação de pessoas em locais públicos por mais duas horas. A lei federal estabelece o limite máximo – até as 20 (vinte) horas – para a prática
dos atos processuais, podendo, entretanto, a lei local de organização judiciária fixar um limite horário diverso, o que a própria lei processual ressalva quanto aos atos praticados por petição (CPC de 1973, art. 172, § 3º; CPC de 2015, art. 212, § 3º). Para a prática de atos na sede do juízo, à lei processual pode sobrepor-se a de organização judiciária, pois é a esta que cabe disciplinar o horário de funcionamento e de atendimento ao público das serventias judiciais. É o que acontece no Estado do Rio de Janeiro, em que o horário para a prática dos atos na sede do juízo é, em regra, das 11 (onze) às 18 (dezoito) horas (CODJERJ, art. 230). Nos juizados especiais, a Lei Federal (Lei n. 9.099/95, art. 12) permite a realização de atos processuais no horário noturno, nos termos da lei de organização judiciária. No Estado do Rio de Janeiro, o artigo 22 da Lei Estadual n. 5.781/2010 ratifica essa permissão, estendendo-a também à parte da manhã. Então, na verdade, para se verificar em que horário o ato processual pode ser praticado, devem ser consideradas as disposições da lei federal e também da lei local de organização judiciária, quanto às justiças estaduais ou do Distrito Federal. De qualquer modo, o horário-limite fixado em uma ou outra lei sempre poderá ser excedido para a conclusão de ato já iniciado, se o adiamento puder prejudicar o seu conteúdo ou causar grave dano (CPC de 1973, art. 172, § 1º; CPC de 2015, art. 212, § 1º). Assim, por exemplo, uma audiência iniciada antes das 18 horas na Justiça comum do Estado do Rio de Janeiro, poderá prosseguir, mesmo ultrapassado esse horário, cabendo ao juiz definir o melhor momento para interrompê-la ou não, ponderando todas as circunstâncias que possam militar em favor de uma ou outra solução. O magistrado deve usar da equidade para decidir em que momento paralisar ou prosseguir a audiência; para decidir se ele ouvirá todas as testemunhas ou apenas algumas etc. O juiz também deve considerar as dificuldades que ocorrem quando a audiência começa muito tarde, porque, às vezes, pode-se colocar em risco a vida ou a segurança das próprias pessoas que nela estiverem presentes. O julgamento iniciado antes do horário-limite pode continuar até de madrugada ou até o dia seguinte, como acontece, frequentemente nos julgamentos do tribunal do júri, que prosseguem noite adentro, já que o prejuízo no adiamento do ato seria imenso, acarretando a dissolução do conselho de sentença e o necessário reinício do julgamento em outro dia. No processo civil, o prosseguimento do ato até altas horas ou até a madrugada
não é recomendável, pois as pessoas envolvidas no processo precisam voltar para suas residências, e, muitas vezes, o trajeto a ser por elas percorrido não é seguro à noite, principalmente nas grandes cidades. A Lei n. 11.419/2006, sobre o processo eletrônico, estabeleceu que as petições eletrônicas podem ser protocoladas ou transmitidas até as 24 (vinte e quatro) horas do último dia do prazo (art. 10, § 1º). A referida lei é omissa sobre a possibilidade de prática de atos processuais por via eletrônica fora dos dias úteis ou em horário anterior às 6 horas da manhã, mas se extrai do seu artigo 14 que os limites temporais impostos pelo artigo 172 do Código de 1973 não se aplicam ao processo eletrônico, se os sítios virtuais dos tribunais se encontrarem acessíveis nos dias não úteis ou nos dias em que não haja expediente forense e, em qualquer dia, antes das 6 horas da manhã. Nesse caso, os atos de quaisquer sujeitos que forem praticados virtualmente, fora dos dias e horários úteis previstos em lei, serão considerados realizados na primeira hora do primeiro dia útil seguinte. É a solução que se infere do § 2º do artigo 5º da Lei n. 11.419, que considera intimado no primeiro dia útil seguinte o advogado ou a parte que tiver efetuado a consulta eletrônica do portal em dia não útil. Por outro lado, entendo que os tribunais não serão obrigados a manter os seus sítios eletrônicos acessíveis ininterruptamente. A regulamentação de cada tribunal, prevista no artigo 18, poderá fixar horário específico para acesso ao seu portal, desde que assegure a possibilidade da prática de qualquer ato sujeito a prazo até as 24 horas nos dias úteis. Corroborando esse entendimento, o Código de 2015, que não revogou a Lei n. 11.419, dispôs no artigo 213 que no processo eletrônico os atos podem ser praticados em qualquer horário até as vinte e quatro horas do último dia do prazo, o que, evidentemente, se refere aos atos escritos, não aos atos orais, como as audiências, que deverão realizar-se no horário de expediente forense, nem aos atos presenciais, como as citações, intimações e penhoras, que observarão a inviolabilidade constitucional do domicílio durante o horário de repouso noturno. O parágrafo único contempla regra de redação equívoca sobre o horário vigente no juízo para fim de atendimento do prazo. Embora ainda não estejamos tratando dos prazos, é evidente que o tempo dos atos processuais reflete na contagem dos prazos. Não me parece que este último dispositivo possa ser interpretado no seguinte de que, a despeito de todas as regras até aqui expostas, cada juízo possa ter o seu horário de funcionamento do sistema eletrônico para efeito de contagem de prazos. O parágrafo único não desmente o caput. Se no último dia de um prazo o sistema eletrônico do tribunal ou do juízo
não estiver acessível ao peticionamento das partes, o prazo estará prorrogado até as 24 horas do primeiro dia útil seguinte. Cumpre também examinar o chamado período de recesso forense. A prática do recesso – assim denominado na praxe – começou na Justiça do Trabalho e depois se estendeu à Justiça Federal. O recesso é uma série de dias, que normalmente se inicia no dia vinte de dezembro e termina no dia seis de janeiro. Na Justiça Federal, de acordo com a Lei n. 5.010/66, já mencionada, esses dias são considerados feriados e, portanto, neles não se praticam atos processuais, nem em juízo nem fora dele, exceto os de caráter urgente ou a citação, a intimação e a penhora expressamente autorizadas pelo juiz. Na Justiça do Estado Rio de Janeiro, os dias de recesso não são feriados, nem dias em que não há expediente forense. O foro funciona, mas o Código de Organização Judiciária, na redação atual do § 2º do seu artigo 230, estabelece apenas que nesse período os prazos ficam suspensos. Essa anômala solução, porque a justiça funciona, mas os prazos não fluem, teve alegado intuito moralizador, para não conceder a magistrados e serventuários mais 18 dias de férias coletivas por ano, especialmente depois do advento da Emenda 45/2004, que proibiu férias coletivas em 1º e 2º graus de jurisdição, mas, na verdade, mascara o descumprimento da nova exigência constitucional de que a justiça funcione durante todo o ano de modo ininterrupto, o que exige fluência dos prazos para que a atividade jurisdicional tenha continuidade. Por outro lado, a lei estadual invadiu esfera da competência legislativa federal (Constituição, art. 22, inc. I), pois, se a justiça funciona, os prazos somente podem ficar suspensos nas hipóteses previstas na lei processual, como veremos mais adiante. Essa situação tem criado grave insegurança jurídica. Se a lei estadual for inconstitucional, como penso, alguém pode ver julgado intempestivo um ato processual por ter contado com a suspensão de prazos nela prevista. E, afinal de contas, de que adianta o foro funcionar, os juízes e serventuários terem de comparecer ao trabalho, se os prazos não vão correr e se as audiências não podem ser realizadas, porque nelas há atos com prazos? Para propiciar férias aos advogados? O Código de 2015 veio ratificar esse recesso, estabelecendo no artigo 220 que entre 20 de dezembro e 20 de janeiro todos os prazos ficarão suspensos. Em lugar de se diminuírem os problemas do recesso, aumentam-se. Desculpem, aumenta-se o tempo em que as bruxas ficam soltas! Sim, porque os juízes e cartórios continuam trabalhando, mas não fluem prazos para nenhum
dos sujeitos processuais, nem para os próprios juízes e serventuários. Os juízes terão de despachar os requerimentos urgentes, mas não poderão impor nesse intervalo o cumprimento de prazos. Como poderá o juiz exigir que o requerido de uma medida de urgência se pronuncie sobre ela, se os prazos estão suspensos? Como poderá o juiz designar uma audiência de justificação prévia, para convencer-se da necessidade de uma tutela de urgência se os prazos estão suspensos e, durante a suspensão, não se realizam audiências (art. 220, § 2º)? Os próprios prazos do juiz e do escrivão estão suspensos. Tudo vai ser decidido por favor, por cortesia ou, perdoem-me o mau pensamento, por influência, e, liminarmente, sem a audiência da parte contrária. O § 3º do artigo 172 do Código de 1973 reza que “quando o ato tiver que ser praticado em determinado prazo, por meio de petição, esta deverá ser apresentada no protocolo, dentro do horário de expediente, nos termos da lei de organização judiciária local”. O § 3º do artigo 212 do Código de 2015, que reproduz essa regra, explicita corretamente que ela se aplica apenas ao peticionamento em autos não eletrônicos. Sobre os mencionados parágrafos cabem ainda duas observações importantes. A primeira refere-se aos atos que devem ser praticados por petição via protocolo, que são os atos das partes. A necessidade de entrega no protocolo não é uma regra rígida, porque o ato que pode ser praticado por petição pode ser levado diretamente a despacho do juiz ou entregue no cartório. As organizações judiciárias costumam disciplinar o recebimento de petições e documentos para evitar tumultos e até para conferir maior segurança às partes, recomendando, muitas vezes, que os cartórios não recebam petições diretamente, priorizando a sua entrega no protocolo. O carimbo recebido ao protocolar uma petição confere maior segurança a todos, evitando, por exemplo, que o escrivão registre o recebimento de alguma petição em dia ou horário diverso daquele em que efetivamente ela lhe foi entregue. Todavia, se o protocolo estiver muito sobrecarregado, em greve, se as máquinas responsáveis pelo seu funcionamento estiverem quebradas, ou se o sistema de processamento eletrônico estiver “fora do ar”, não há dúvidas de que se pode entregar diretamente as petições no cartório do juízo ou levá-las a despacho do próprio juiz. Nesses casos, se o ato estiver sujeito a prazo, será necessário documentar o dia e a hora de sua entrega em cartório ou do despacho do
magistrado. Conforme já mencionamos, a exigência prevista nesses dispositivos tem sido relativizada, em função de inovações legislativas que permitiram a entrega de petições por outros meios. Em 1999, foi publicada a Lei n. 9.800, que disciplinou a utilização de fac-símile (fax) ou outro similar para transmitir petições. Ao fazer uso desse meio, nos atos sujeitos a prazo, o advogado deve apresentar a petição original em juízo até cinco dias da data do término daquele, de acordo com o artigo 2º da referida Lei. Nos atos não sujeitos a prazo, os originais devem ser entregues até cinco dias da data da recepção da comunicação (art. 2º, parágrafo único). A petição original, entregue em juízo, deve ser rigorosamente igual à transmitida via fac-símile, sob pena de litigância de má-fé, conforme dispõe o parágrafo único do artigo 4º da Lei n. 9.800/99. Entretanto, apesar de criar nova possibilidade para a prática de atos processuais, a lei ressalva que os órgãos judiciários não estão obrigados a ter equipamentos para recepção dos dados enviados via fac-símile (art. 5º da Lei n. 9.800/99). Mais recente é a Lei n. 11.419/2006, que disciplinou o chamado processo eletrônico, prevendo a possibilidade de envio de petições por meio eletrônico, desde que o advogado possua assinatura eletrônica e realize o seu credenciamento prévio junto ao Poder Judiciário, em consonância com o seu artigo 2º. O parágrafo único do artigo 3º dessa Lei estabelece que: “Quando a petição eletrônica for enviada para atender prazo processual, serão consideradas tempestivas as transmitidas até as 24 (vinte e quatro) horas do seu último dia.” Esse dispositivo pode gerar dúvidas na aferição da tempestividade das petições, porque a lei não esclarece se a hora final é a do local de onde o advogado pratica o ato ou a do local em que é recebida a petição, o que possui relevo num país com dimensões continentais como o Brasil. Ora, se um advogado está no Acre e outro em São Paulo, as horas para eles são diferentes, devido ao fuso horário. Parece-me que prevalece a hora oficial na localidade da sede do juízo. Outra questão a ser examinada na análise desses dispositivos refere-se ao horário do expediente forense, fixado nos termos da lei de organização judiciária local. É com base nesse dispositivo que algumas leis de organização judiciária têm
permitido que protocolos funcionem após as 20 (vinte) horas, e, portanto, que haja possibilidade de peticionar depois desse horário, fora do expediente forense normal. Levar petições a despacho do juiz ou ao escrivão fora do horário previsto em lei não é admissível. Nem o juiz nem o escrivão devem aceitá-las, a não ser que se trate de algum ato urgente, como um habeas corpus ou um agravo de instrumento que necessitem ser despachados naquele momento, para a apreciação de uma liminar, sob pena de ocorrer algum dano irreparável a uma das partes, mas nunca para remediar a perda de prazo já findo. 15.2.1. Atos urgentes A Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar n. 35/79) determina que o juiz tem de receber a parte ou o advogado, a qualquer hora do dia ou da noite, quando se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência (art. 35, inc. IV). O ato é urgente se a sua omissão em determinado momento puder acarretar lesão grave ou de difícil reparação (CPC de 1973, arts. 798 e 799). O Código de 2015 caracteriza a urgência como o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo (arts. 300, 303 e 305). Em certas organizações judiciárias, para atender ao caráter ininterrupto da atividade jurisdicional, são estabelecidos plantões em rodízio fora dos dias e horários de expediente forense, bem como nos domingos e feriados, para facilitar o acesso dos jurisdicionados à justiça em situações de urgência. Essa prática, aparentemente democrática, tem favorecido muitos abusos, com a violação da garantia constitucional do juiz natural. A parte que sabe de antemão os dias e os horários das escalas dos juízes de plantão, alegando urgência, leva a sua postulação a despacho do juiz de sua preferência. O regime desses plantões precisa ser mais bem estudado, para evitar esses inconvenientes. Assim, por exemplo, se o juiz, em exercício em determinado órgão, reside na localidade de sua sede, como lhe impõe a Constituição (art. 93, inc. VII), nos termos do referido artigo 35, inciso IV, da Lei Complementar n. 35/79, deve ele próprio atender aos atos urgentes fora do horário ou dos dias de expediente forense, e não um juiz de plantão. As suas ausências da sede devem ser excepcionais, não habituais, e somente nessas ocasiões ser o juiz da causa substituído por outro, cuja escolha deve ter obedecido a um critério impessoal. Infelizmente, não é esse
o espírito da deformada justiça burocrática do nosso tempo, que, a pretexto de manter-se diuturnamente de portas abertas, se contenta com a designação de um plantonista para os dias e os horários em que o juiz da causa não está obrigado a comparecer ao foro, esquecendo-se de que ele não é juiz apenas nos dias e horas de expediente e que, como juiz natural da causa, ele deve estar ao alcance das partes em qualquer dia e em qualquer hora para despachar assuntos urgentes. Aliás, os modernos meios de comunicação favorecem o acesso ao juiz, mesmo que ele se distancie da sede do seu juízo, como acontece com os médicos e com outros profissionais, não justificando os rodízios de plantonistas que sujeitam as causas e as partes a uma sucessão de juízes, muitas vezes escolhidos pela vontade de alguém. Quanto aos atos urgentes, que, por exceção, podem ser praticados nos feriados e nas férias forenses dos magistrados dos tribunais superiores, ressalte-se que, por identidade de razões, deve entender-se que as hipóteses enumeradas na lei abrangem a prática desses mesmos atos nos dias em que não haja expediente forense, que no regime do Código de 1973 não são feriados, pois, na verdade, o perigo iminente do perecimento de algum direito exige que a jurisdição seja exercida. O artigo 173 desse Código menciona, em primeiro lugar, a produção antecipada de provas (inc. I), que é um procedimento cautelar probatório, regulado nos seus artigos 846 e seguintes e nos artigos e dos artigos 381 a 383 do Código de 2015, cujo objetivo é o de conservar a determinados provas que estão na iminência de perecer, para que possam produzir efeitos num processo futuro ou pendente. Por exemplo, certa testemunha é de grande importância para esclarecer fatos relativos a uma ação que já está em curso, mas ela está gravemente enferma, internada num hospital, na iminência de, a qualquer momento, falecer. Imaginese que a audiência de instrução e julgamento tenha sido marcada para daqui a três meses e o foro se encontre no período de recesso. Não se pode esperar a volta do funcionamento normal do foro para se requerer a produção antecipada do depoimento dessa testemunha, porque ela pode, inclusive, vir a falecer nesse ínterim. Então, pode-se requerer, mediante a comprovação da urgência, a produção dessa prova desde já, e o juiz, caso a defira, tomará o depoimento da testemunha durante as férias, recesso ou feriado no hospital. Segue o mesmo dispositivo do Código de 1973 e admite o processamento nas férias e feriados, ou em quaisquer outros momentos em que a justiça
normalmente não funcione, das citações, quando a sua efetivação se fizer necessária para evitar perecimento do direito, aplicando-se o mesmo preceito ao arresto, ao sequestro, à penhora, à busca e apreensão, ao depósito, à prisão, à separação de corpos, à abertura de testamento, aos embargos de terceiro, à nunciação de obra nova e a outros atos análogos (art. 173, inc. II). Ou seja, a citação, para evitar o perecimento de algum direito, assim como os atos constritivos urgentes, pode também ser praticada nesses períodos de tempo. O Código de 2015 abandonou uma exemplificação casuística, estabelecendo no artigo 214 o processamento durante as férias forenses e nos feriados de todas as medidas de urgência, assim como a prática de citações, intimações e penhoras. Para assegurar a continuidade do processo e superar a dificuldade de encontrar o réu para ser citado e de ingressar no recinto em que se encontrem os bens a serem penhorados (CPC de 1973, art. 660; CPC de 2015, art. 846), é a previsão da lei processual de citação, intimação ou penhora nos domingos, feriados ou nos dias úteis, após as 20 horas ou antes das 6 horas da manhã, respeitada a inviolabilidade do domicílio, prescrita no inciso XI do artigo 5º da Carta Magna, anteriormente comentada.
15.3. PRAZOS PROCESSUAIS Os atos processuais têm de ser praticados em determinados prazos, porque o processo precisa continuamente marchar em direção ao seu fim. Se não existissem os prazos processuais, o processo poderia retardar-se indefinidamente, comprometendo a sua celeridade, que é uma garantia fundamental do processo, introduzida explicitamente em nossa Constituição pela Emenda Constitucional n. 45/2004, que acrescentou o inciso LXXVIII ao seu artigo 5º. Diversos outros documentos de proteção dos direitos humanos já a previam, enquanto garantia individual, como o artigo 6º da Convenção Europeia de Direitos do Homem e o art. 8º da Convenção Americana. A teoria dos prazos é muito importante em qualquer sistema processual, porque ela sistematiza o assunto com a finalidade de assegurar a marcha contínua do processo em direção ao seu fim. O conceito de prazo é o de quantidade de tempo dentro do qual deve ser praticado cada ato processual ou cujo transcurso constitui pressuposto de validade de algum ato processual ou produz efeitos jurídicos no processo. A maioria dos prazos estabelece o período de tempo no
qual cada ato deve ser praticado (CPC de 1973, art. 177; CPC de 2015, art. 218). A fonte de Direito Processual que dispõe sobre o procedimento, que no nosso caso é preponderantemente a lei, deve estabelecer a seriação dos atos do processo e a quantidade de tempo em que cada um deverá ser praticado. O prazo é justamente esse espaço de tempo reservado para a prática de cada ato. Há, entretanto, outra espécie de prazos, que chamo de regressivos, porque, na verdade, o período de tempo previsto pela lei deve transcorrer para que algum ato seja praticado validamente, e não para que nesse espaço de tempo algum ato seja praticado. É, por exemplo, o prazo de dez dias que deve anteceder, no procedimento sumário do Código de 1973 (art. 277), à audiência de conciliação a partir da citação do réu, ou, no procedimento comum do Código de 2015 (art. 334), o prazo de vinte dias que deve anteceder à audiência de conciliação ou de mediação a partir da citação do réu. 15.3.1. Classificação dos prazos processuais Diversas são as espécies de prazos, que podem ser classificados pelos seguintes critérios: 1) quanto à natureza do sujeito ao qual é facultado praticar o ato no prazo ou a partir do seu decurso; 2) quanto à sua fonte instituidora; 3) quanto à unidade de tempo em que o prazo é medido; e 4) quanto à sua obrigatoriedade. Quanto à natureza do sujeito, os prazos classificam-se em prazos do juiz, prazos das partes e prazos dos auxiliares da justiça. O Código de 1973 estatui que o juiz proferirá os despachos de expediente no prazo de dois dias e as decisões no prazo de dez dias (art. 189). Já o Código de 2015 amplia esses prazos: cinco dias para os despachos, dez dias para as decisões interlocutórias e trinta dias para as sentenças (art. 226). Essas regras são residuais, aplicando-se a todos os atos do juiz para os quais a lei não estabelece um prazo específico. A regra geral acerca dos prazos das partes é a de que, não havendo preceito legal nem determinação pelo juiz, é de cinco dias o prazo para a prática de ato processual a cargo da parte (CPC de 1973, art. 185; CPC de 2015, art. 218, § 3º). Também é uma regra residual, como se infere do próprio enunciado. Já os prazos dos auxiliares da justiça, mais especificamente dos escrivães ou
chefes de secretaria, estão previstos no Código de 1973 no artigo 190, a saber, o prazo de 24 horas para remeter os autos conclusos ao juiz e o de 48 horas para cumprir as ordens do juiz, quando não houver alguma outra regra especial que fixe outro prazo. Um pouco mais generoso, o Código de 2015 confere um dia para a remessa dos autos conclusos ao juiz, sempre que receber alguma petição ou expediente dirigido ao magistrado ou se este lhe tiver ordenado a conclusão, e de cinco dias, a partir da ciência, para cumprimento das ordens judiciais (art. 228). É evidente que, embora não previstos nessa classificação principal, também há prazos para outros sujeitos processuais, como, por exemplo, para os peritos (CPC de 1973, art. 433; CPC de 2015, art. 471, § 2º). O segundo critério de classificação divide os prazos processuais de acordo com a fonte que os institui. Por essa classificação, os prazos dividem-se em prazos legais, prazos judiciais e prazos convencionais. Os prazos legais são aqueles instituídos pela lei. É o caso, por exemplo, do prazo de quinze dias para a interposição de apelação contra sentença (CPC de 1973, art. 508; CPC de 2015, art. 1.003, § 5º). Os prazos judiciais são os fixados pelo juiz, quando a sua estipulação não vier determinada na lei (CPC de 1973, art. 177; CPC de 2015, art. 218, § 1º). Já os prazos convencionais são aqueles fixados, de comum acordo, pelas partes. Todavia, é da tradição do nosso sistema que, como consequência do impulso processual oficial e do caráter público da relação processual, as partes somente podem convencionar os prazos processuais nos casos previstos em lei, como, por exemplo, na suspensão do processo, na modificação de prazos legais dilatórios ou no adiamento da audiência (CPC de 1973, arts. 265, inc. II, 181 e 453, inc. I). No meu estudo sobre os atos de disposição, fundado na garantia de um procedimento legal, previsível e flexível, sustentei a possibilidade de que, mantido o equilíbrio entre as partes e não comprometida a celeridade do processo, possam as partes convencionar a redução ou a prorrogação de quaisquer prazos2. O Código de 2015 deu um grande avanço nessa flexibilização com a previsão das convenções sobre procedimento (v. itens 2.2.9 e 12.2.2.2) no artigo 191, sujeitas ao controle de validade pelo juiz, além de outras hipóteses em que a estipulação convencional do prazo está expressamente prevista em lei,
como na suspensão do processo (art. 313, inc. II) ou no adiamento da audiência (art. 362). Coerente com essa nova orientação, o artigo 225 permite a renúncia unilateral do prazo estabelecido em favor da parte, ainda que peremptório, o que o Código de 1973 pretendeu inutilmente vedar no artigo 182. E, se a parte pode renunciar, pode também reduzir, que é menos do que renunciar. A expressão “prazo estabelecido em seu favor” não pode ser interpretada em sentido que impeça a redução convencional de prazos, de acordo com o artigo 190, mas apenas sob o aspecto de que ninguém pode renunciar a prazo alheio. Se de uma sentença resultar sucumbência recíproca, as duas partes podem ajustar a redução do prazo recursal ou a ele renunciarem, porque, na verdade, cada uma tem o seu prazo para impugnar parte diversa da decisão. Por sua vez, se de uma sentença resultar a mesma sucumbência imposta a dois réus solidariamente, nenhum deles pode renunciar unilateralmente ao prazo para recorrer, mas os dois réus podem conjuntamente fazê-lo. Perde sentido, com o advento do Código de 2015, o disposto no artigo 181 do Código de 1973, que aliás não era nem um pouco razoável, exigindo um motivo legítimo para a redução convencional dos prazos. Aliás, a redução convencional pode resultar de iniciativa do próprio juiz, como prevê o § 1º do artigo 222 do Código de 2015. Neste último caso, embora a regra se refira à necessidade de anuência das partes, se o prazo tiver sido instituído em favor de apenas uma das partes, bastará a sua anuência e a redução não poderá ser denominada de convencional. Quando a lei não fixar o prazo para a prática de determinado ato, o juiz poderá estipulá-lo. Não estando os prazos estabelecidos especificamente pela lei ou pelo juiz, aplicam-se as regras genéricas e residuais mencionadas anteriormente, dos artigos 185, 189 e 190 do Código de 1973 e 218, § 3º, 226 e 228 do Código de 2015. O terceiro critério de classificação dos prazos processuais agrupa-os quanto à unidade de tempo em que são medidos. De acordo com esse critério, os prazos poderão ser medidos em minutos, horas, dias, meses ou anos. Os prazos de minutos são raríssimos. Constituem exemplos dessa espécie: o prazo de 20 (vinte) minutos, prorrogáveis por mais 10 (dez) a critério do juiz, para as alegações finais orais das partes na audiência de instrução e julgamento (CPC de 1973, art. 454; CPC de 2015, art. 364); e o prazo de 15 (quinze) minutos, para sustentação oral dos advogados das partes nos tribunais superiores (CPC de 1973, art. 554; CPC de 2015, art. 937).
Os prazos de horas também não são muito comuns. Por exemplo, o prazo regressivo para comparecimento a partir da intimação, que é de 24 horas no CPC de 1973 (art. 192) e de 48 horas no Código de 2015 (art. 218, § 2º). Os prazos de dias são os mais frequentes, havendo diversos exemplos no bojo do Código de Processo Civil, como o prazo de 5 (cinco) dias para a prática de ato processual a cargo da parte, na ausência de preceito legal (CPC de 1973, art. 185; CPC de 2015, art. 218, § 3º); o prazo de 15 dias, para responder ou interpor recursos (CPC de 1973, art. 508; CPC de 2015, art. 1.003, § 5º). Pouco comuns, por sua vez, são os prazos de meses e os prazos de anos. Como exemplo dos primeiros, pode-se mencionar o prazo máximo de 6 (seis) meses para a suspensão do processo por convenção das partes (CPC de 1973, art. 265, § 3º; CPC de 2015, art. 313, § 4º), enquanto o prazo de dois anos para a propositura de ação rescisória (CPC de 1973, art. 495; CPC de 2015, art. 975) constitui exemplo dos segundos. A unidade de tempo é relevante para a contagem dos prazos, ainda que, aparentemente, o tempo contado por esta ou aquela unidade possa parecer o mesmo. Por exemplo: qual a diferença entre 48 (quarenta e oito) horas e 2 (dois) dias? Esses prazos não são exatamente iguais, em função da maneira em que se dá a sua contagem. Os prazos de dias se contam do dia do início ao dia do término, excluindo-se o dia do começo e incluindo-se o do vencimento (CPC de 1973, art. 184; CPC de 2015, art. 224; Código Civil, art. 132). Os prazos de horas se contam de minuto a minuto (Código Civil, art. 132, § 4º). Então, um prazo de 48 (quarenta e oito) horas não corresponde exatamente a um prazo de 2 (dois) dias. Um prazo de 48 horas iniciado às 15h32 da segunda-feira termina às 15h32 da quarta-feira subsequente. Já um prazo de dois dias iniciado nesse mesmo momento termina no final do expediente da quarta-feira. Nos prazos de dias, a parte ou o responsável pela prática do ato dispõem do último dia por inteiro, ou seja, podem praticar o ato até o final do expediente forense, enquanto um prazo de horas pode esgotar-se antes do término desse expediente. Entretanto, há uma tendência na jurisprudência em igualar o tratamento dos prazos nesses casos, tratando os prazos de horas que
correspondem a dias inteiros (24, 48, 72 horas) como se fossem prazos de dias. No mesmo sentido, um prazo de 2 (dois) meses não corresponde a outro de 60 (sessenta) dias, porque estes se contam um a um, enquanto aqueles se contam na medida em que sobrevierem dias iguais nos meses subsequentes. O Código de 2015 aumenta essa diferença porque, na contagem dos prazos de dias, computam-se apenas os dias úteis (art. 219). Logo, para efeito de contagem dos prazos processuais, a unidade de tempo é importante na definição do momento em que o prazo termina. Quanto à sua obrigatoriedade, pode-se dizer que os prazos se classificam em prazos peremptórios e prazos dilatórios. Peremptórios são aqueles prazos cujo decurso acarreta a perda da faculdade de praticar o ato. Os prazos das partes são, normalmente, peremptórios. Os artigos 183 do Código de 1973 e 223 do Código de 2015 dispõem sobre a prorrogação do prazo, quando, por motivo alheio à vontade da parte, ela não puder praticar o ato, constituindo uma exceção à disciplina dos prazos peremptórios. Dilatórios ou dispositivos são os prazos cujo decurso não extingue a faculdade de praticar o ato; são também chamados de prazos impróprios, porque, mesmo com o seu término, o ato ainda pode ser praticado. Então, na verdade, a ideia de prazo como limite temporal tem um sentido diverso para os prazos dilatórios, pois não implicará a perda da possibilidade de praticar o ato, mas poderá acarretar para o sujeito faltoso alguma consequência desfavorável. Ressalte-se que os prazos dos juízes e dos serventuários da justiça são, normalmente, dilatórios, e observa-se, quanto aos primeiros, o disposto nos artigos 198 do Código de 1973 e 235 do Código de 2015. 15.3.2. Princípios informativos da teoria dos prazos Sete são os princípios informativos da teoria dos prazos, quais sejam: brevidade, paridade de tratamento, utilidade, continuidade, inalterabilidade, peremptoriedade e preclusão. O princípio da brevidade impõe que os prazos sejam curtos, pois, caso contrário, o processo não teria fim. Esse princípio está consagrado no artigo 125, inciso II,
do Código de 1973 e no artigo 139, inciso II, do Código de 2015, que estabelecem que o juiz dirigirá o processo velando pela rápida solução do litígio. A celeridade processual é reconhecida como direito fundamental por diversos documentos de proteção humanitária, como já visto, tendo sido incluída na Constituição brasileira pela Emenda Constitucional n. 45/2004, que acrescentou no artigo 5º o seu inciso LXXVIII. Se os prazos forem muito longos, o processo se arrastará e as partes poderão ficar frustradas na busca de uma prestação jurisdicional tempestiva. O segundo princípio é o da paridade de tratamento, segundo o qual as partes têm de ser tratadas com igualdade, e, portanto, para os mesmos atos, elas devem gozar dos mesmos prazos. Algumas regras põem em xeque esse princípio, como as que conferem prazos privilegiados para o Ministério Público, as pessoas jurídicas de direito público, os defensores públicos e os litisconsortes com diferentes procuradores (CPC de 1973, arts. 188 e 191; CPC de 2015, arts. 180, 183, 186 e 229). Quanto aos entes públicos, o Código de 2015 já diminuiu parte dessa desigualdade, reduzindo do quádruplo para o dobro o prazo para contestar. Parece-me que o que restou é plenamente razoável, pois os seus procuradores dependem de informações internas, muitas oriundas dos mais diversos órgãos, e precisam manter coerência na defesa da instituição com as diretrizes da sua administração e as que são adotadas em todas as causas, o que lhes exige um estudo mais demorado. Isso também ocorre no Ministério Público. Quanto aos defensores públicos e demais órgãos que prestam assistência judiciária (CPC de 2015, art. 186, § 3º), também se justifica a diferença, pela dificuldade de coleta de informações e documentos junto aos seus assistidos. Mesmo assim, há casos em que a lei fixa um prazo determinado para ato que é específico de um desses sujeitos, caso em que se entende que não prevalece a dobra (CPC de 2015, arts. 180, § 2º, 183, § 2º, e 186, § 4º). A meu ver, é anti-isonômico que outros sujeitos que, tais como os protegidos pela lei processual, tenham dificuldades reais superiores às normais para a prática de atos processuais, como os advogados portadores de certos defeitos físicos, como os cegos, e até mesmo empresas, cujo gigantismo ou que em razão da renovação de seus quadros tenham momentaneamente maior dificuldade de localizar informações e documentos, não gozem do mesmo benefício. O Código de 2015 abre uma porta para superar essa desigualdade, cuja efetivação dependerá da conduta tolerante e flexível do
juiz no exercício da faculdade de dilatar os prazos processuais, que lhe confere o artigo 139, inciso VI. Quanto aos litisconsortes com distintos procuradores, também considero correto o tratamento diferenciado conferido pela lei. Se o prazo que vai correr para os dois litisconsortes é comum e eles têm o mesmo advogado, este pode retirar os autos e levá-los para o seu escritório, deles dispondo durante todo o prazo de 15 (quinze) dias, por exemplo, para fazer a sua petição de apelação. Diferentemente, se o prazo é comum e os advogados são diferentes, ou eles combinam entre si como irão retirar os autos, ou os autos não poderão sair do cartório. Então, nesse último caso, a facilidade de acesso aos autos fica muito reduzida e eles devem ter um prazo maior. Realmente, a postulação por advogados diferentes pode gerar uma dificuldade no exercício da ampla defesa por qualquer um dos litisconsortes, o que justifica esse prazo mais longo conferido pela lei. No intuito de coibir abusos, o Código de 2015 explicitou que os diferentes procuradores devem ser de “escritórios de advocacia distintos”. No item 14.1.3.1, quando tratamos dos impedimentos do juiz, explicamos o significado da expressão escritório de advocacia, que corresponde tanto ao local em que se reúnem advogados para compartilhar a utilização de uma infraestrutura de apoio comum, mesmo com clientela e causas diversas, ou a associação ou sociedade de advogados que copatrocinam causas e clientes. Num ou noutro significado, não terão advogados do mesmo escritório prazos em dobro, porque a eles não se aplicará a maior dificuldade de manuseio do processo. A paulatina implantação do processo eletrônico possibilitará a consulta simultânea dos autos por diversos advogados, o que eliminará essa desigualdade, deixando de justificar o tratamento diferenciado de litisconsortes com distintos procuradores, conforme prevê o § 2º do artigo 229 do Código de 2015. A aplicação desse mesmo princípio a certas modalidades de intervenção de terceiros, como a denunciação da lide, em que a Lei se refere à possível formação entre o interveniente e uma das partes de verdadeiro litisconsórcio (CPC de 1973, arts. 74 e 75; CPC de 2015, arts. 127 e 128), é polêmica3. O prazo em dobro também não se aplica quando a lei, referindo-se a litisconsortes, estabelece, desde logo, um prazo comum fixo para a prática de determinado ato, como ocorre na contestação à oposição (CPC de 1973, art. 57; CPC de 2015, art.
683, parágrafo único). A lei processual (CPC de 1973, art. 182; CPC de 2015, art. 222) permite ao juiz a prorrogação dos prazos, nas comarcas em que as condições de transporte sejam particularmente difíceis, bem como nas calamidades públicas, a ponto de impedir o deslocamento das partes e de seus patronos à sede do juízo, aplicandose esse dispositivo tanto aos prazos peremptórios quanto aos dilatórios. Em outras situações não previstas nesses dispositivos, que igualmente aumentem a dificuldade de cumprimento dos prazos, poderá o juiz dilatá-los, conforme expressamente lhe faculta o artigo 139, inciso VI, do Código de 2015. Esse poder do juiz é inerente ao due process of law, na medida em que busca garantir a plena eficácia do contraditório e da ampla defesa. Esses dispositivos se referem primeiramente às comarcas onde houver dificuldade de transporte. Por piores que sejam os transportes e o trânsito em cidades como em Rio de Janeiro e São Paulo, não comportariam a prorrogação por esse fundamento. A lei, nesse caso, está se referindo àquelas comarcas mais distantes e isoladas, localizadas no interior dos Estados, em especial aquelas com grande extensão territorial, em que muitas vezes o transporte entre uma e outra localidade dentro da própria comarca pode demorar vários dias. Basta lembrar de algumas comarcas situadas na Floresta Amazônica, nas quais o deslocamento de pessoas demanda o uso de barcos ou de veículos primitivos, como o cavalo, dificultando demasiadamente o cumprimento dos prazos. Outra hipótese de prorrogação é a de calamidade pública, que constitui um fato extremamente grave, que abala o funcionamento dos serviços públicos em geral, impedindo que as pessoas levem uma vida normal, e, portanto, torna impossível a prática de atos processuais nos prazos que a lei estabelece. É o que ocorre em enchentes, terremotos e incêndios de grandes proporções, que podem, durante muitos dias, inviabilizar a prática de atos processuais. Os tribunais com alguma frequência invocam esses dispositivos para determinar a prorrogação de prazos em situações muito duvidosas, por exemplo, em caso de greve dos serventuários da Justiça. Obviamente, a greve desses funcionários é um fato que impossibilita as partes de praticarem normalmente os atos do processo, pois não é possível, nesse período, consultar os autos, em razão do
fechamento ou não funcionamento pleno dos cartórios dos juízos. Os próprios sítios eletrônicos dos juízos e tribunais podem se tornar inacessíveis. Em geral, em casos semelhantes, os tribunais têm sido bastante tolerantes no respeito ao direito de defesa das partes. Ainda assim, é preciso encontrar uma forma de resolver o problema da greve dos funcionários públicos, que depende da regulamentação de dispositivo constitucional (art. 37, inc. VII, da Constituição). O Supremo Tribunal Federal, no trato da questão, tem interpretado como aplicáveis às greves ocorridas no funcionalismo público as normas referentes aos trabalhadores da iniciativa privada. Entretanto, alguns tribunais têm editado nesses casos atos de suspensão dos prazos, aplicando, assim, à hipótese de greve dos seus serventuários a mesma regra das férias coletivas, que determina a paralisação dos prazos, que voltam a fluir depois de terminado o impedimento. No ano de 2004, durante greve ocorrida na Advocacia-Geral da União (AGU), houve um exagero de muitos tribunais, que, em razão desse fato, suspenderam os prazos em favor da AGU. A meu ver, a medida adotada não tem cabimento, pois a União se beneficiou do ato unilateral de paralisação dos seus próprios funcionários, e os prejudicados foram os seus adversários, que nada tinham a ver com a greve. Considero que casos como esse não podem receber o tratamento de calamidade pública. A justa causa, que impediu a parte de praticar o ato, também pode ser um motivo para a prorrogação dos prazos, ainda que peremptórios. O artigo 183, § 1º, do Código de 1973 definiu a justa causa de forma exageradamente restritiva, como “o evento imprevisto, alheio à vontade da parte, e que a impediu de praticar o ato por si ou por mandatário”. Verificada a justa causa, o juiz permitirá a prática do ato no prazo que ele assinar. É necessário destacar que não só a parte pode ficar impedida de praticar o ato por justa causa, mas também o juiz, o perito ou o serventuário. Contudo, como não se opera a preclusão para esses três últimos sujeitos, é aceito que a lei defina justa causa como motivo para a prorrogação apenas dos prazos das partes. Há um exagero nesse dispositivo ao exigir que o evento que impeça a parte de praticar o ato seja um evento imprevisto. Exige-se ainda que, em face do impedimento previsto, a parte adote todas as cautelas necessárias para não deixar
de praticar o ato no prazo. Ora, muitas vezes essas cautelas necessárias exigem da parte um comportamento anormal, sobre-humano ou excessivamente penoso. Por exemplo, a parte que mora distante da sede do juízo pode saber, por meio dos jornais do dia anterior, que haverá greve nos ônibus e nos demais transportes públicos coletivos da sua cidade. Será que, diante dessa previsão, que pode impedi-la de ir e vir da sua casa até o fórum, a parte terá de acampar na porta da sede do juízo e dormir ao relento para poder praticar o ato? Em minha opinião, não. Mais uma vez, utilizo-me das palavras de Calamandrei, para quem o processo moderno não é um processo de fantoches, é um processo de seres humanos vivos, tal como eles existem na realidade da vida. O jurisdicionado, assim, não pode ser obrigado a ter um comportamento anormal, excessivamente penoso, de dormir no meio da rua, de ficar acampado ou pernoitar em um hotel na cidade, simplesmente em virtude da previsão de que ocorrerá greve nos transportes e será difícil chegar ao foro central. A meu ver, relevante para justificar a prorrogação do prazo e para caracterizar a justa causa é apenas a segunda parte da definição legal, ou seja, que o evento seja alheio à vontade da parte, que ela não lhe tenha dado causa, e que não seja lícito exigir da parte um esforço acima do normal para superar essa dificuldade que impossibilita a prática do ato. Suponha-se que alguém precise interpor um recurso por petição no foro central do Rio de Janeiro no dia 20 de março, até o final do expediente forense, que se encerra às 18 horas. Essa pessoa, no dia 18, embarca no Rio de Janeiro para Nova Iorque, contando retornar num voo que de lá partirá no dia 19, com chegada prevista no Rio às dezessete horas do dia 20 no Aeroporto do Galeão, para protocolar a petição às dezoito horas no foro central. Nesse caso, a parte voluntariamente se colocou numa situação de grande risco que poderá impossibilitar a prática do ato, e, então, ela não pode pedir a prorrogação do prazo, caso o voo de Nova Iorque atrase. Ela se viu em uma situação anormal, dando causa ao obstáculo. O importante é que o evento que impediu a parte de praticar o ato seja evento a que ela não deu causa e que de fato a impeça de praticar o ato, independentemente de se tratar de um evento previsto ou imprevisto.
A jurisprudência procura ser tolerante com a contagem dos prazos, quando surge algum evento extraordinário, mas ela nem sempre percebe com clareza que essa exigência da lei é abusiva. A não razoabilidade da exigência legal, no Código de 1973, para se configurar a justa causa a torna inconstitucional, por violação da garantia da ampla defesa. Em boa hora, o Código de 2015, no artigo 223, § 1º, redefiniu a justa causa como “o evento alheio à vontade da parte que a impediu de praticar o ato por si ou por mandatário”. O princípio da utilidade se opõe ao da brevidade. Se, por um lado, os prazos precisam ser curtos para que o processo chegue rapidamente ao seu fim, por outro, eles devem ser suficientemente longos para que os sujeitos possam praticar os atos processuais com proveito. Se o juiz ou a lei fixarem prazos muito curtos, pode haver violação ao princípio da utilidade. Deve-se, então, tentar conjugar ambos os princípios, para que as partes possam praticar os atos processuais com proveito, sem prejuízo para a celeridade do processo. Nós não temos tido, no Brasil, uma reflexão mais profunda sobre esse problema da utilidade dos prazos, a que a doutrina europeia chama de razoabilidade dos prazos ou de congruidade dos prazos. Frequentemente, a jurisprudência se depara com prazos absurdos e procura contorná-los pragmaticamente, interpretando-os de forma mais tolerante. Esse problema da não razoabilidade do prazo é bastante importante do ponto de vista humano, porque a lei dosa previamente os prazos, mas muitas vezes ela é inflexível, não considerando as dificuldades que o sujeito processual tenha in concreto para utilizá-lo de modo eficaz. Em tese o prazo parece adequado, mas, diante das circunstâncias do caso concreto, evidentemente não o é. Estou convencido de que, na cidade do Rio de Janeiro, como em outros grandes centros, o prazo de 15 (quinze) dias para o réu contestar uma ação, no regime do Código de 1973 (art. 297), por exemplo, não é um prazo razoável, porque a vida que as pessoas levam numa grande cidade – tendo de acordar cedo; permanecer horas no transporte coletivo para chegar ao trabalho ou voltar para casa (muitas vezes distante do local de residência); não tendo possibilidade, dentro do seu horário de trabalho, de afastar-se para procurar um advogado, tomar providências, ir em busca de provas – transforma esse prazo de 15 (quinze) dias num prazo diabólico para o réu.
Enquanto o autor teve meses ou até anos para escolher o melhor momento e se preparar para ingressar em juízo, o réu tem de sair correndo, largar tudo – como se fosse um súdito de um soberano absoluto –, saindo à cata de provas e em busca de um advogado que aceite defendê-lo naqueles exíguos 15 (quinze) dias. Então, essa é uma realidade na nossa vida, e o processo não pode ser desumano, quando justamente hoje o que se procura através do chamado processo justo ou das garantias fundamentais do processo é que esse processo respeite os seres humanos como eles são, ou como dizia Calamandrei em sua obra Processo e Democracia, em 1952, “o processo, objeto dos nossos estudos, não é como o legislador o previu em abstrato, mas como o fazem viver, como o ‘representam’ (no sentido teatral da palavra) os homens, juízes e jurisdicionados, que dele participam em concreto, que não são abstrações, não são fantoches mecânicos construídos em série, mas são homens vivos, cada um situado no seu mundo individual e social, com o seu sentimento, com os seus interesses, com as suas opiniões, com o seu costume…”4 No procedimento comum do Código de 2015 a exiguidade do prazo para contestação é minorada pela introdução da audiência de conciliação e mediação, que somente pode ocorrer depois de vinte dias da citação (art. 335), contando-se o prazo de contestação a partir do final dessa audiência, que pode se estender por dois meses (arts. 334, § 2º, e 335). Existem prazos na lei que são excessivamente curtos, como, por exemplo, o prazo de três dias para o executado efetuar o pagamento da dívida (CPC de 1973, art. 652; CPC de 2015, art. 829). Sendo esse prazo a última oportunidade que o devedor tem de pagar voluntariamente o débito, na iminência de sofrer atos coativos, esse lapso temporal deve ser humanamente viável para que o executado possa cumprir a obrigação, ou para que ele tente, pelo menos, um meio amigável ou voluntário de adimplemento. Se ele tiver de se desfazer de algum bem para pagar a dívida, ele dificilmente vai conseguir fazê-lo em três dias. Tendo em vista a exiguidade desse prazo, que anteriormente à Lei n. 11.382 era ainda menor (vinte e quatro horas), acredito que na sua aplicação deverá ser considerado um prazo não peremptório, mas dilatório, impróprio, como uma maneira de contornar a sua não razoabilidade. Na vigência do Código de 1973, talvez o mais escandalosamente não razoável prazo existente no nosso Processo Civil é o do agravo retido oral interposto em audiência, que, de acordo com o §
3º do artigo 523, tem de ser interposto imediatamente. Sua inconstitucionalidade é flagrante. Desmente tudo o que dissemos até agora. Qual é a duração – quantos minutos, quantos segundos – de um prazo para um ato que deve ser praticado imediatamente? É uma regra que resulta de uma visão do processo como um jogo de espertezas, inteiramente incompatível com a ampla defesa e com o devido processo legal (Constituição, art. 5º, incs. LIV e LV), como manifestações de um processo em que as partes desfrutem concretamente de todas as possibilidades de apresentar alegações, propor e produzir provas que possam influenciar de modo eficaz nas decisões judiciais. Felizmente essa hipótese desaparece no Código de 2015, que não mais prevê o agravo retido. Assim, o prazo tem de ser útil à prática do ato, sob pena de inconstitucionalidade, por violação das garantias constitucionais acima referidas. As Cortes constitucionais europeias têm sistematicamente declarado a inconstitucionalidade de prazos não razoáveis, exageradamente curtos. Nem se diga que a possibilidade de dilatar prazos conferida ao juiz pelo Código de 2015 exclui essa inconstitucionalidade, porque essa faculdade se destina a remediar situações especiais e excepcionais decorrentes de particularidades do caso concreto. Se o prazo é irrazoável em todas as situações às quais a norma se aplica, o erro foi do legislador, que deve ser remediado pela expulsão da norma do ordenamento jurídico. Obviamente, como já aduzimos, a utilidade deve ser equilibrada com a brevidade, conciliando-se, assim, a celeridade com a ampla defesa. Portanto, os prazos devem ser suficientemente longos para que o ato seja praticado com proveito, mas sem exageros, porque eles também precisam ser suficientemente curtos para não retardarem o desfecho da causa, a solução definitiva do litígio. Tal como a brevidade, a utilidade é uma imposição constitucional; não é simplesmente um princípio técnico-jurídico infraconstitucional da disciplina dos prazos. O princípio seguinte a ser comentado é o da continuidade dos prazos, segundo o qual, iniciado o curso de um prazo, ele segue inexoravelmente em direção ao seu término, sem qualquer interrupção ou suspensão, ainda que nesse espaço de tempo sobrevenham dias ou horas em que não haja expediente forense ou dias feriados, em que o ato não possa ser praticado. O prazo é contínuo; logo, também flui nos domingos, feriados, à noite e nos demais horários em que não é
materialmente possível praticar atos processuais. O prazo começa e termina em período de tempo útil, mas entre esses dois momentos, inicial e final, ainda que sobrevenham períodos de tempo inúteis ou em que não se possa praticar o ato, o prazo continua a fluir normalmente, de acordo com o artigo 178 de 1973. Existem, entretanto, exceções ao princípio da continuidade dos prazos. É o que ocorre, por exemplo, com as férias coletivas ou férias forenses (CPC de 1973, arts. 173 e 174; CPC de 2015, arts. 214 e 215), restritas hoje apenas aos Tribunais Superiores, vez que, para os demais órgãos jurisdicionais, elas se encontram vedadas, nos termos do inciso XII do artigo 93 da Constituição, acrescentado pela Emenda Constitucional n. 45/2004. A suspensão dos prazos, nos períodos de férias coletivas, nos termos dos artigos 179 do Código de 1973 e 220 do Código de 2015, significa a paralisação da sua continuidade durante todos os dias por elas compreendidos. Outras exceções podem ser encontradas na suspensão do processo como um todo (CPC de 1973, art. 265; CPC de 2015, art. 313), em várias hipóteses, como a morte ou perda da capacidade processual de qualquer das partes, a convenção destas, a arguição de impedimento ou suspeição do juiz e o oferecimento de exceção de incompetência relativa, de suspeição ou de impedimento e a pendência de ação prejudicial externa, entre outras. Assim, no regime do Código de 1973, se a parte arguir a suspeição ou o impedimento do juiz, o processo é suspenso, uma vez que aquele não poderá decidir nada enquanto não restar julgada a respectiva exceção, de acordo com o inciso III do artigo 265 e o artigo 306. No Código de 2015 (art. 146), fica suspenso o processo a partir da propositura do incidente de arguição de impedimento ou de suspeição do juiz que, de imediato, passa os autos ao seu substituto legal para exercer a tutela de urgência, se for o caso. Chegando o incidente no tribunal superior, o relator decidirá sobre o efeito suspensivo. Se o recusar, o processo voltará a correr. Se o acolher, o processo continuará suspenso até o julgamento do incidente. Pode-se dizer, então, que, nos casos de suspensão do processo, ocorrerá também a suspensão dos prazos que estiverem em curso, que, como já observamos, é a sua paralisação, enquanto vigorar o motivo da suspensão, e a continuação do seu
curso pelo que sobejar, imediatamente após o desaparecimento desse motivo. A mais importante inovação do Código de 2015 em relação ao princípio da continuidade foi a sua mitigação na contagem dos prazos de dias, que excluiu desse cômputo todos os dias não úteis (art. 219), ou seja, os que se incluem no conceito de feriado que passou a abranger, além dos domingos e dos dias declarados por lei, os sábados e os dias em que não haja expediente forense (art. 216). Outro princípio regente da teoria dos prazos é o da inalterabilidade dos prazos. Segundo ele, no momento em que se inicia a contagem do prazo, todos os sujeitos do processo têm de ter consciência do momento em que ele vai terminar. Daí decorre que circunstâncias, que acaso ocorram durante a sua fluência, a princípio, não podem determinar a alteração do momento final. A previsibilidade da marcha procedimental e a segurança jurídica impõem a inalterabilidade. Entretanto, nas várias hipóteses que já examinamos, o princípio não se aplica se ambas as partes concordam com a alteração ou se, embora apenas uma delas concorde, trate-se de redução de prazo de seu exclusivo interesse. Já as prorrogações ou dilatações de prazos que beneficiam apenas uma das partes ou apenas outro sujeito processual, ainda que tenham fundamento consistente, não devem ser autorizadas sem que a outra parte ou ambas tenham sido previamente ouvidas, como, aliás, veio a impor o artigo 10 do Código de 2015. A despeito do que estabelece o artigo 182 do Código de 1973, não é razoável impedir que esses prazos sejam reduzidos, se as próprias partes abrem mão do prazo instituído em seu benefício. Ora, se a parte pode renunciar ao direito de praticar o ato, ela também pode concordar com a redução do prazo para a sua prática. Uma hipótese em que comumente as partes requerem a alteração do prazo, mesmo depois de iniciada a sua fluência, é a do prazo para interposição de recurso contra a sentença de homologação da partilha amigável no inventário. Se os herdeiros têm diferentes procuradores, o prazo é de 30 (trinta) dias para interpor esse recurso, contado em dobro por força dos artigos 191 do Código de 1973 e 229 do Código de 2015. Além disso, são interessados no inventário a Fazenda Pública e eventualmente o Ministério Público, que também dispõem de prazo em dobro para recorrer.
A rigor, homologada a partilha no inventário, o formal de partilha não poderia ser expedido antes de decorridos 30 dias, contados da intimação dessa homologação a cada um dos interessados. No entanto, nesses casos, é muito comum os herdeiros dirigirem uma petição ao juiz renunciando ao prazo de que dispõem para recorrer ou requerendo a redução desse prazo para 15 dias, para poderem rapidamente alcançar o trânsito em julgado, a partir do qual poderão extrair os formais de partilha e levá-los a registro, com vistas a se imitirem na posse dos bens que lhes foram partilhados. Um problema que surge nesse momento consiste em saber se a Fazenda Pública e o Ministério Público podem concordar com essa redução de prazo. No meu entendimento, a Fazenda pode, pois não há nada que a impeça de concordar com a redução de prazos. Entretanto, a meu ver, o Ministério Público não pode dispor do prazo para recorrer. Assim, se os formais de partilha forem extraídos e o Ministério Público posteriormente recorrer da sua homologação, eles deverão ser recolhidos, uma vez que o recurso cabível tem efeito suspensivo. Isso demonstra que pode ocorrer a redução do prazo até mesmo peremptório, desde que manifestada anuência por todos os sujeitos interessados. Cumpre, por fim, examinar conjuntamente os princípios da peremptoriedade e da preclusão. Cabe advertir que as palavras peremptoriedade e preclusão, embora muitas vezes sejam usadas como sinônimas, encerram conceitos distintos. A peremptoriedade do prazo é o seu esgotamento decorrente do simples decurso do número de unidades de tempo fixado na fonte originária para a sua contagem, o que significa dizer que o prazo se extingue pelo simples decurso do tempo nela estabelecido, independentemente de qualquer declaração judicial. Logo, em razão desse princípio, a extinção do prazo ocorre automaticamente. Já a preclusão decorre da peremptoriedade; é a perda da faculdade de praticar o ato por ter se extinguido o respectivo prazo. A preclusão da prática do ato pelo decurso do prazo somente se aplica aos prazos peremptórios e, por isso, muitas vezes não se faz distinção entre peremptoriedade e preclusão, embora o esgotamento automático dos prazos pela primeira, que se aplica em qualquer
prazo – dilatório ou peremptório –, seja distinto da perda da faculdade de praticar o ato, que se aplica apenas aos prazos peremptórios. Sendo o processo uma direção no movimento, conforme anteriormente assinalado, as questões decididas durante a sua tramitação não devem voltar a ser discutidas, salvo se houver um motivo excepcional e relevante, porque isso faria com que, em lugar de caminhar para diante, o processo caminhasse para trás. Por isso, preceituam os artigos 473 do Código de 1973 e 507 do Código de 2015 que é vedado à parte discutir no curso do processo as questões já decididas, a cujo respeito se operou a preclusão. A referência “à parte” nesse dispositivo precisa ter uma abrangência maior, ou seja, deve abarcar todos os sujeitos do processo, como o juiz e o membro do Ministério Público. Entretanto, importa dizer que há algumas questões imunes à preclusão, que são matérias de ordem pública, como a falta de condições da ação, desde que ainda não haja coisa julgada (CPC de 1973, art. 267, § 3º; CPC de 2015, art. 485, § 3º). Há três tipos de preclusão: a preclusão temporal, a preclusão lógica e a preclusão consumativa. Quando a perda da faculdade de praticar um ato do processo for ocasionada pelo decurso de um prazo peremptório sem que essa prática tenha ocorrido, estaremos diante da chamada preclusão temporal. A preclusão também pode decorrer da prática de um ato incompatível com aquele que se poderia praticar. É a chamada preclusão lógica. Caso típico de preclusão lógica é a do inquilino que, em face da sentença que julga procedente o pedido de despejo, entrega as chaves do imóvel e depois interpõe recurso. Entretanto, em alguns casos, a preclusão lógica suscita polêmicas, como no depósito de valor da dívida. O réu, ao ser condenado na sentença ao pagamento de uma importância que tenha acessórios muito pesados, como os juros e a correção monetária, pode desejar se resguardar desses acessórios. Ele deve, então, dirigir uma petição ao juiz, depositando o valor da condenação, mas ressalvando o seu direito de apelar. Às vezes, a parte pratica um ato que pode ser interpretado como incompatível com outro que ela pretende praticar. Logo, ela deve ter o cuidado de esclarecer ao juiz que ela não está abrindo mão do seu direito de praticar o outro ato. Preclusão consumativa é a perda da faculdade de praticar novamente o ato já praticado. Assim, interposto determinado recurso no início do prazo, a parte não
pode posteriormente, ainda que dentro do prazo, aditar a petição do recurso alegando que esqueceu de aduzir determinado argumento. Em razão da preclusão consumativa, o prazo se esgota no momento em que o ato é praticado. No exemplo dado, no momento em que o recurso foi interposto. O artigo 183 do Código de 1973 trata da preclusão temporal, ao estabelecer que, “decorrido o prazo, extingue-se, independentemente de declaração judicial, o direito de praticar o ato, ficando salvo, porém, à parte provar que não o realizou por justa causa”. A redação do mesmo dispositivo no Código de 2015 (art. 223) introduz modificação pequena, mas substancial, acrescentando, após as palavras “o direito de praticar”, as palavras “ou emendar”. Ora, se o ato não foi praticado, não poderá ser emendado. E, se foi praticado no prazo, nesse momento deve ter ocorrido a preclusão consumativa, extinguindo-se o prazo, que não poderá mais ser utilizado para qualquer emenda. Certamente o acréscimo se deve a situações esdrúxulas de aditamento de contestação ou de petição de recurso que aqui e acolá os tribunais andaram aceitando. No entanto, a redação não foi feliz porque, a prevalecer o que escrevi no parágrafo anterior, o acréscimo das palavras “ou emendar” é absolutamente inócuo, sem nenhuma aplicação prática. Parece-me que o que o acréscimo quis estabelecer não foi o desaparecimento da preclusão consumativa, mas proclamar categoricamente que depois de esgotado o prazo não pode haver qualquer emenda de ato já praticado. 15.3.3. Contagem dos prazos Analisados os princípios informativos da teoria dos prazos, passa-se à análise de um tema de grande relevância prática, que é o da contagem dos prazos. Cumpre assinalar, inicialmente, que todo prazo possui um termo inicial ou dies a quo e um termo final ou dies ad quem. O termo inicial é, primeiramente, o momento a partir do qual o ato pode ser praticado, enquanto o termo final é o último momento em que o ato pode ou deve ser praticado. Se o processo é uma série encadeada de atos, ou seja, se os atos processuais devem seguir uma determinada ordem, nenhum ato, em princípio, deve poder ser praticado enquanto não tiver sido praticado o ato imediatamente anterior ou enquanto não tiver decorrido o prazo para a prática do ato imediatamente anterior.
Assim, há dois efeitos práticos na verificação dos prazos: definir a partir de que momento cada ato pode ser praticado (dies a quo) e em que momento se esgota o prazo, e, portanto, para os prazos peremptórios, se esgota a própria faculdade de praticar o ato (dies ad quem). Para essas duas finalidades, é preciso distinguir o curso do prazo da sua contagem. O curso do prazo é a fluência do período de tempo no qual o ato pode ser praticado; ele se inicia a partir do término do prazo para a prática ou da efetiva prática do ato imediatamente anterior na série procedimental. O ato imediatamente anterior, que abre a possibilidade de realização do ato subsequente, não é qualquer ato, mas apenas aquele que crie, para o sujeito ao qual caiba a prática deste último, o direito, o dever ou o ônus de praticá-lo. Por exemplo, proferida a sentença de 1º grau, pode o vencido interpor apelação, mesmo não tendo ainda recebido a devida intimação da decisão. O curso do processo para apelar começa no momento em que o juiz profere a sentença em audiência ou a publica com a sua entrega ao escrivão. No entanto, a contagem dos 15 dias para interposição da apelação, somente vai se iniciar a partir da intimação da sentença ao advogado da parte vencida, que pode ter ocorrido na própria audiência. Houve muita incompreensão na vigência do Código de 1973 a respeito dessa distinção, o que levou tribunais, incorretamente, a não conhecerem de recursos interpostos antes da intimação da decisão recorrida, o que levou o Código de 2015 a prescrever expressamente que “será considerado tempestivo o ato praticado antes do termo inicial do prazo” (art. 218, § 4º). Essa norma denomina de “termo inicial do prazo” o momento do início de sua contagem, não do seu curso, como explicamos. O termo inicial da contagem do prazo é o momento a partir do qual se inicia o efetivo cômputo das unidades de tempo em que o ato deve ser praticado, o que irá, consequentemente, determinar o seu momento final. Por seu turno, o termo inicial do curso do prazo se dá com o término da prática do ato imediatamente anterior ou com o decurso do prazo para praticá-lo, tratando-se de prazos peremptórios. Então, em razão do que vimos no exemplo mencionado, o prazo pode estar em curso sem que tenha sido iniciada a sua contagem. Para o juiz, a contagem dos prazos começa no momento em que o escrivão lhe apresenta os autos conclusos; para o escrivão, quando toma ciência da ordem do juiz, em que recebe em devolução os autos de qualquer outro sujeito ou em que recebe para juntar ao processo mandados cumpridos, petições, ofícios, laudos e
quaisquer outros expedientes ou, ainda, quando conclui a prática de ato imediatamente anterior; para o oficial de justiça, quando toma ciência das ordens do juiz ou em que o escrivão lhe entrega mandados e ofícios para cumprimento e endereçamento. No tocante às partes, a contagem dos prazos começa a partir da sua intimação ou citação (CPC de 1973, art. 240). Mais minucioso na revelação do alcance da norma, o artigo 230 do Código de 2015 estabelece que “o prazo para a parte, o procurador, a Advocacia Pública, a Defensoria Pública e o Ministério Público será contado da citação, da intimação ou da notificação”. A inclusão da notificação decorre do fato de que em certos procedimentos a lei processual se refere a ela, em lugar de citação, por produzir efeitos específicos, não necessariamente idênticos aos que produz uma citação. De qualquer modo, tratase de uma citação no sentido de que é a primeira comunicação ao destinatário a respeito de uma causa judicial de seu interesse. É o que acontece no procedimento de notificação ou interpelação, regulado no Código de 1973 nos artigos 867 a 873 e no Código de 2015 nos artigos 726 a 729, e no procedimento do mandado de segurança (Lei n. 12.016/2009, art. 7º, inc. I). Entretanto, esses atos de comunicação, por si sós, não bastam, sendo normalmente exigido que a eles seja dada a devida publicidade, ou seja, é preciso que esses atos se tornem acessíveis ao público ou pela publicação em órgão da imprensa ou pela comprovação nos autos do processo da sua efetivação. Assim, se a citação ou intimação forem realizadas pelo oficial de justiça, a contagem do prazo somente começará a partir da juntada aos autos do mandado devidamente cumprido (CPC de 1973, art. 241, inc. II; CPC de 2015, art. 231, inc. II). Nos casos de citação ou intimação pelo correio, a contagem do prazo tem seu termo inicial a partir da juntada aos autos do aviso de recebimento (CPC de 1973, art. 241, inc. I; CPC de 2015, art. 231, inc. I). É importante alertar que no processo eletrônico as juntadas ocorrem de forma automática, independentemente de ato do serventuário (CPC de 2015, art. 228, § 2º), mas para efeito de contagem de prazo é indispensável que a juntada conste do andamento do processo no sítio do juízo ou tribunal. Se a intimação ocorrer em audiência, a contagem do prazo dar-se-á desde logo ou a partir do momento que nela for estabelecido pelo juiz. Quando a citação é realizada por edital, a contagem do prazo para contestar começa a partir do término do prazo de eficácia daquele, fixado pelo juiz no
despacho em que ele defere a citação por esse meio (CPC de 1973, arts. 232, inc. IV, e 241, inc. V; CPC de 2015, arts. 231, inc. IV, e 257, inc. III), porque é somente depois de decorrido esse prazo que a lei presume que o edital tenha dado à citação a necessária publicidade. Se a intimação é feita por publicação de aviso no Diário da Justiça, a contagem começa na data da própria publicação. Quando houver litisconsórcio passivo, o prazo para a contestação ou para a prática do ato imediatamente seguinte se conta da juntada aos autos do último mandado de citação cumprido ou da última carta registrada com o aviso de recebimento (CPC de 1973, art. 241, inc. III; CPC de 2015, art. 231, § 1º). Enquanto o último dos corréus não tiver sido citado e o seu respectivo mandado ou aviso de recebimento juntado aos autos, o prazo para o ato seguinte não estará contando para nenhum dos demais. Essa regra se aplica a todas as modalidades de citação. Por vezes, quando ainda falta um réu a ser citado, o autor resolve desistir da ação contra esse réu. Cabe lembrar que, até o decurso do prazo de resposta, o autor pode desistir da ação unilateralmente (CPC, art. 267, § 4º; CPC de 2015, art. 485, § 4º). Então, nesses casos, para que se inicie a contagem do prazo para o ato seguinte em relação aos outros réus que já haviam sido citados, é preciso que seja homologada a referida desistência, com extinção do processo (CPC de 1973, art. 267, inc. VIII; CPC de 2015, art. 485, inc. VIII) em relação àquele réu que não foi citado, com a intimação do ocorrido aos outros réus. A intimação será, nesse caso, o termo inicial para a contagem do prazo para a prática do ato imediatamente seguinte. Quanto às demais intimações, havendo vários destinatários, os prazos para os atos daí decorrentes correrão individualmente para cada um a partir da sua própria intimação. É o que ocorre com a intimação da sentença aos vencidos, para efeito de contagem do prazo para interposição de recurso. O prazo para recorrer poderá começar a contar em relação a uma das partes, ainda que a outra não tenha sido intimada, ou que a intimação desta ainda não esteja comprovada nos autos. Muitas vezes, os cartórios dos juízos orientam mal os advogados, que têm o mau hábito de se fiarem mais nas informações que recebem dos serventuários da justiça do que na própria lei, o que pode lhes ocasionar, inclusive, a perda de certos prazos. Alguns advogados, ao se dirigirem ao cartório para tirarem cópias
de decisões publicadas no Diário da Justiça, recebem a informação de que o prazo não está correndo para eles, devido a algum erro na publicação em relação ao nome da parte contrária ou do seu advogado. Ora, nesses casos, em que o nome publicado erradamente é o do advogado da outra parte, a irregularidade não atinge a parte e o advogado cujos dados estão corretos, estando esses regularmente intimados, e o prazo, em relação a eles, consequentemente, já está correndo. A nulidade da intimação, pelo princípio da economia, só atinge a comunicação feita à parte que teve os seus dados ou os do seu advogado publicados incorretamente. Quando o ato se realizar em cumprimento de carta de ordem, carta precatória ou carta rogatória, a contagem do prazo para a prática do ato seguinte vai começar, no regime do Código de 1973, a partir da juntada aos autos dessas respectivas cartas devidamente cumpridas (art. 241, inc. IV). Exemplo: num processo que corre na comarca da capital do Rio de Janeiro, foi expedida uma carta precatória para a citação de um réu na comarca de Campos dos Goytacazes. O juízo deprecado determina a citação, devendo o escrivão lavrar o mandado de citação para que o oficial de justiça cite o réu e devolva o mandado cumprido para juntada aos autos da precatória. Contudo, a contagem do prazo para esse réu contestar somente vai começar quando a precatória cumprida for juntada ao processo no juízo deprecante. Assim, a juntada do mandado de citação na própria carta precatória não provoca o início da contagem do prazo para o ato seguinte, que ocorrerá apenas após a juntada da própria precatória aos autos originais. O Código de 2015 inovou nessa matéria, porque, no artigo 232, determinou que nos atos de comunicação por carta precatória, rogatória ou de ordem “a realização da citação ou intimação será imediatamente informada, por meios eletrônicos, pelo juiz deprecado ao juiz deprecante”. Em consequência, preceituou, no inciso VI do artigo 231, que nesses casos o dia do começo do prazo será “a data da juntada do comunicado de que trata o art. 232, ou, não havendo esse, a data de juntada da carta aos autos de origem devidamente cumprida”. Todavia, há uma exceção a essas regras, que ocorre na chamada execução por carta, regulada nos artigos 658 e 747 do Código de 1973, e 845, § 2º, e 914, § 2º, do Código de 2015. Nessa hipótese, a execução se inicia em determinado juízo e depois se desloca, continuando em outro, através de carta precatória, que, excepcionalmente, não é expedida visando apenas à prática de um ato isolado,
mas de uma série de atos, em regra a penhora, a avaliação e a alienação dos bens do devedor. Nesse caso, os atos praticados vão produzir efeitos como se tivessem emanado do próprio juízo originário da causa, que receberá a precatória com todos os atos já devidamente praticados, contando-se os prazos no juízo deprecado a partir das intimações nele efetuadas. O artigo 231 do Código de 2015 menciona duas outras hipóteses de definição do dies a quo da contagem dos prazos, nos incisos V e VIII. A primeira é a de citação ou intimação eletrônica, que trataremos à parte no item 15.3.5. A segunda é a intimação por meio de retirada dos autos, em carga, do cartório ou da secretaria. Mencionamos anteriormente que as intimações pessoais (v. item 13.4.1) de promotores, defensores e procuradores públicos podem efetuar-se por carga ou remessa. Os §§ 6º e 7º do artigo 272 do Código de 2015 também admitiram a intimação pessoal em cartório pela retirada dos autos com carga pelo advogado, por pessoa por este credenciada, pela Advocacia Pública, pela Defensoria Pública ou pelo Ministério Público. É dessa retirada dos autos com a assinatura do termo de carga no livro próprio que se iniciará a contagem do prazo. No caso dos promotores, defensores e procuradores públicos, me parece que, prevendo a lei a intimação pela remessa dos autos, que se consuma com a sua entrega ao procurador ou a funcionário da sua procuradoria, esta entrega também constitui o dies a quo para a prática do ato imediatamente seguinte por um desses órgãos. Dissemos que a publicidade da citação e da intimação por meio da sua veiculação em um meio de acesso público, como o Diário da Justiça, ou da juntada aos autos do mandado cumprido, do aviso de recebimento, da precatória ou da comunicação da sua efetivação, que a consumaram para dar segurança às partes da fluência dos prazos para os atos que delas decorrem. Entretanto, há ordens judiciais que criam para o destinatário o dever de cumpri-las de imediato ou no prazo fixado pelo juiz, independentemente da juntada aos autos da comprovação da intimação. É o caso do pagamento em três dias, na execução (CPC de 1973, art. 652; CPC de 2015, art. 829). A matéria suscitou divergências, porque o Código de 1973 não a regulou expressamente. No intuito de definir essas situações, o Código de 2015 dispôs no § 3º do artigo 231 que, se o ato tiver de ser praticado diretamente pelo destinatário, sem a intermediação de representante judicial, o dia do começo do prazo para o cumprimento da ordem judicial será a data em que se der a comunicação.
A contagem dos prazos das partes começa a partir da sua citação ou intimação, observadas as regras dos artigos 241 do Código de 1973 e 231 do Código de 2015. Existem ainda outras regras para a contagem dos prazos, que levam em consideração o tipo de prazo, a unidade de tempo em que o prazo é medido e os dias em que o prazo pode iniciar ou terminar a sua contagem. A primeira dessas regras de contagem diz respeito aos tipos de prazos. Os prazos de dias são contados excluindo-se o dia do início e incluindo-se o do vencimento, nos termos dos artigos 132 do Código Civil, 184 do Código de 1973 e 224 do Código de 2015. Assim, se a publicação de uma decisão no Diário da Justiça ocorre no dia 10 de março, o início da contagem do prazo para a manifestação das partes se dá no dia seguinte, ou seja, no dia 11 de março, se ambos os dias forem úteis. Se o dia 11 de março for um feriado, o primeiro dia da contagem do prazo será o dia 12, porque sempre o primeiro e o último dia de contagem dos prazos devem ser dias úteis, no sentido de dias em que haja expediente forense e, portanto, dias em que os autos do processo estejam acessíveis e em que os atos possam ser praticados. O antigo enunciado da Súmula n. 310 do Supremo Tribunal Federal estabelecia que, “quando a intimação tiver lugar na sexta-feira, ou a publicação com efeito de intimação for feita nesse dia, o prazo judicial terá início na segunda-feira imediata, salvo se não houver expediente, caso em que começará no primeiro dia útil que se seguir”. Esse entendimento tem sido estendido a todas as intimações ou citações que têm o primeiro dia de contagem em dia que não é útil ou em que não haja expediente forense, o que, entretanto, representa um risco, no regime do Código de 1973, pois o sábado é dia útil e a doutrina da súmula não é de observância obrigatória. O Código de 2015 incluiu os sábados no rol dos feriados (art. 216), equacionando definitivamente o problema. Quanto ao dia final do prazo, conforme já assinalei, ele não pode terminar em feriado, nem em dia em que não haja expediente forense ou esse seja reduzido. Se o dia de término se enquadrar num desses casos, o prazo será prorrogado para o primeiro dia útil seguinte (CPC de 1973, art. 184, § 1º; CPC de 2015, art. 224, § 1º). Se a intimação for feita pelo oficial de justiça aos sábados, domingos, feriados, ou outro dia em que não haja expediente forense, ela será considerada efetuada
no primeiro dia útil seguinte, com fulcro nos artigos 240, parágrafo único, do Código de 1973, e 224, § 1º, do Código de 2015, porque o dia do começo, que se exclui na contagem, é sempre um dia útil com expediente em horário completo. Os prazos de horas são contados de minuto a minuto, segundo dispõe o artigo 132, § 4º, do Código Civil, que cuida dos prazos na disciplina da teoria dos negócios jurídicos. Embora neste passo estejamos tratando dos prazos na teoria dos atos processuais, aplicam-se subsidiariamente as disposições da lei civil. Se o juiz mandou intimar pessoalmente o perito para, em 48 (quarenta e oito) horas, entregar os autos, sob pena de busca e apreensão, a contagem dessas horas se iniciará na data da comunicação (CPC de 2015, art. 231, § 3º), como já expusemos, independentemente da juntada aos autos do mandado de intimação, o que pode conferir ao oficial de justiça certo arbítrio na fixação do termo inicial de contagem desse prazo, o que vai refletir no seu termo final, de acordo com a referida regra do Código Civil (art. 132, § 4º), que dispõe que os prazos de horas se contam de minuto a minuto. A tendência da jurisprudência é aplicar, nesses casos, a exclusão do dia do começo, que está prevista no caput do artigo 132 do Código Civil, e, então, não contar esse prazo de horas como se assim fosse, mas como um prazo de dias. Os prazos de minutos contam-se de minuto a minuto, desprezados os segundos. Os prazos de meses e de anos, de acordo com o artigo 132, § 3º, do Código Civil, expiram no dia de igual número do de início, ou no imediato, se faltar exata correspondência. Assim, um prazo de dois meses iniciado no dia 4 de abril terminará no dia 4 de junho, não se excluindo o dia de início. Não se exclui o dia de início nos prazos de meses e de anos, e, portanto, transitando em julgado determinada sentença no dia 19 de abril de 2008, caberá a ação rescisória – cujo prazo para a propositura é de dois anos (CPC, art. 495), a partir do trânsito em julgado – até o dia 19 de abril de 2010. Evidentemente, se o dia de término do prazo de meses ou de anos não tiver expediente forense ou for feriado, ficará prorrogado para o primeiro dia útil seguinte. Essas são as regras de contagem dos prazos. O § 1º do artigo 242 do Código de 1973 e o § 1º do artigo 1.003 do Código de 2015 complementam a disciplina dos prazos dispondo que os advogados e obviamente quaisquer outros sujeitos processuais reputam-se intimados na audiência, quando nessa é publicada a
decisão ou a sentença. Caso o juiz não venha a proferir a sentença em audiência, será necessária a intimação por outro meio. Cabe observar que, embora não prevista em lei, não só da sentença ou decisão podem as partes e quaisquer outros sujeitos processuais sair intimados. É o próprio juiz, com a presença do escrivão e a devida certificação nos autos, o promotor da intimação. Para que não se diga que essa intimação não tem fundamento na lei, ela corresponde a uma intimação pessoal pelo escrivão, conforme previsto nos artigos 238 do Código de 1973 e 274 do Código de 2015. Não quero deixar de fazer uma menção à contagem de uma espécie de prazos que não é objeto de qualquer disposição dos dois Códigos, que é a que denomino de prazos regressivos, que são aqueles que se contam retroativamente a partir de um evento futuro, como, por exemplo, a citação do réu com antecedência de dez dias da audiência de conciliação no procedimento sumário do Código de 1973 (art. 277) ou com antecedência de vinte dias da audiência de conciliação ou de mediação no procedimento comum do Código de 2015 (art. 334), ou a intimação do perito para prestar esclarecimentos em audiência, com cinco dias de antecedência no Código de 1973 (art. 435, parágrafo único) ou com dez dias de antecedência no Código de 2015 (art. 477, § 4º). No regime do Código de 1973, na contagem dos dias a partir da data da audiência, exclui-se o dia da própria audiência, mas o primeiro imediatamente anterior pode ser ou não útil, pouco importa. Útil, com expediente forense, deverá ser o último dia da contagem regressiva, regredindo mais um dia caso o último recaia em dia em que não haja expediente forense. No regime do Código de 2015, todos os dias do intervalo, do primeiro ao último, têm de ser dias úteis (art. 219). Assim, por exemplo, no regime do Código de 1973, suponhamos que uma audiência de conciliação em ação de procedimento sumário esteja designada para uma determinada quarta-feira. O réu deverá ser citado até a sexta-feira de duas semanas antes, porque o décimo dia anterior seria o domingo, em que não há expediente forense. Não havendo expediente forense também no sábado antecedente, o último dia para a citação será a sexta-feira anterior. No regime do Código de 2015, suponhamos que uma audiência de conciliação ou mediação esteja designada para o dia 26 de julho de 2016, 3ª feira, devendo o mandado de citação do réu ser juntado com vinte dias de antecedência (art. 334). O primeiro dia da contagem do prazo regressivo é o dia 25 de julho, 2ª feira. Sábados e domingos não são computados. O último dia do prazo é o dia 28 de junho. Da
mesma forma, no artigo 947, que prevê a publicação da pauta de julgamento nos tribunais com cinco dias de antecedência (em vez das 48 horas do artigo 552, § 1º, do Código de 1973) em relação à data da sessão de julgamento: se a sessão estiver designada para o dia 28 de julho de 2016, 5ª feira, a pauta deverá ser publicada até a 5ª feira anterior, dia 21 de julho, se for dia útil. Em face do disposto no § 3º do artigo 231 do Código de 2015, também nos prazos regressivos a contagem não está sujeita à comprovação da intimação nos autos apenas se se tratar de ato que não possa ser praticado por representante judicial, o que não é o caso, por exemplo, da audiência de conciliação ou mediação, em que a parte pode ser representada por preposto (art. 334, § 10). 15.3.4. Suspensão e interrupção dos prazos Aos comentários feitos por ocasião do exame do princípio da continuidade dos prazos cabe agora acrescentar mais algumas considerações sobre a suspensão e a interrupção dos prazos. A suspensão é a paralisação do curso e da contagem do prazo por algum motivo legalmente previsto, que determina a retomada do seu curso pelo tempo que sobejava, a partir do momento em que cessar a causa da suspensão. A interrupção também é a paralisação do curso do prazo por um motivo legalmente previsto, mas, quando cessar a causa que a determinou, o prazo deverá recomeçar por inteiro, e não apenas pelo tempo que restava no momento da sua paralisação. Suspendem-se os prazos de dias nos dias não úteis e nas férias coletivas nos feitos em curso perante os tribunais superiores (CPC de 1973, arts. 174 e 179; CPC de 2015, art. 220), excetuados quanto às férias os feitos referidos nesses mesmos artigos. Suspendem-se quaisquer prazos na ocorrência de fatos que determinem a suspensão do processo (CPC de 1973, arts. 265, 543-B, § 1º, 543C, § 1º, e 791, 792, 666; Lei n. 9.868/99, art. 21 CPC de 2015, arts. 221, 313, 921, 922 e 1.037, inc. II). Na suspensão, se o fato que a determinou ocorreu em determinado dia, esse dia não fluiu por inteiro e deverá ser devolvido na retomada do seu curso. Como mencionamos anteriormente, o Código de 2015 determina a suspensão dos prazos processuais nos dias compreendidos entre 20 de dezembro e 20 de janeiro. A norma (art. 220) se dirige especificamente aos prazos de dias. O
mesmo Código no artigo 221, reproduzindo regra do artigo 180 do Código de 1973, prevê a suspensão do curso do prazo por obstáculo criado em detrimento da parte. O obstáculo poderá ter impedido a prática de ato sujeito a prazo de qualquer tipo, seja de horas, de dias, de meses ou de anos, ou apenas de algum desses tipos, o que o juiz explicitará ao deferir a suspensão ou ao determinar a devolução do prazo. O parágrafo único desse artigo consagra prática viciada, estimulada pelas mais altas instâncias judiciais de suspensão de processos para submetê-los a qualquer tempo aos chamados “mutirões de conciliação”. Outra prática viciada que merece ser combatida é a suspensão de prazos em períodos em que os cartórios estão sujeitos a correições. É preciso infundir nos responsáveis pela administração da justiça que o exercício da jurisdição, que é a sua atividade-fim, não deve ser inibido ou retardado pelo mau desempenho ou por conveniências das atividades-meio. Exemplos de interrupção encontram-se na interposição dos embargos declaratórios, em relação ao prazo de interposição de qualquer outro recurso (CPC de 1973, art. 538; CPC de 2015, art. 1.026) e agora, no Código de 2015, na interposição de embargos de divergência perante o Superior Tribunal de Justiça, que interrompe o prazo para a interposição de recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal (art. 1.044, § 1º). 15.3.5. Os prazos no processo eletrônico O advento da Lei n. 11.419/2006 mergulhou a justiça brasileira na era do processo eletrônico, através da prevista implantação do Diário da Justiça eletrônico, instituído no Superior Tribunal de Justiça, na Justiça Federal e em várias Justiças Estaduais, e da disciplina do processamento virtual dos feitos pela prática dos atos processuais nos portais dos tribunais. O Código de 2015 manteve a disciplina do processo eletrônico estabelecida nessa lei, introduzindo algumas regras complementares que com ela se harmonizam. Para efeito de contagem dos prazos, a primeira regra dessa legislação a ser ressaltada é a que estabelece que, de acordo com os §§ 3º e 4º do artigo 4º desse diploma, as publicações no Diário da Justiça eletrônico (DJe) se consideram efetuadas no primeiro dia útil seguinte ao da disponibilização da informação,
tendo os prazos início no primeiro dia útil que se seguir. Essa regra está reproduzida no artigo 224, § 2º, do Código de 2015 e se justifica porque essa disponibilização pode ocorrer até altas horas da noite, quando os destinatários das citações e intimações não estejam mais trabalhando. Daí resulta aparentemente uma consequência importante na contagem dos prazos para os advogados, a partir da publicação no Diário da Justiça, que é o acréscimo de pelo menos mais um dia. Com efeito, se o DJe de uma segunda-feira publicar uma intimação para um advogado, a data da publicação será a terça-feira e a contagem do prazo terá início na quarta-feira, diferentemente do que ocorreria se a intimação tivesse sido veiculada no Diário da Justiça tradicional. Se do DJe disponibilizado na sexta-feira constar intimação, a data da publicação será a segunda-feira subsequente e o primeiro dia do prazo a terça-feira. Muitos Diários da Justiça eletrônicos, entretanto, como o do Estado do Rio de Janeiro, já colocam como data da sua edição o primeiro dia útil seguinte ao da sua disponibilização na internet5, de modo que, nesse caso, a contagem dos prazos se fará normalmente, como nas publicações pelo Diário da Justiça físico. Parece-me que, com o advento do Código de 2015, essa prática deverá ser adotada em todos os diários de justiça eletrônicos, porque o artigo 231, inciso VII, determina a contagem dos prazos, quando a intimação se der pelo Diário da Justiça “impresso ou eletrônico”, a partir da data da publicação que, portanto, no caso do eletrônico, deverá já ter levado em conta anterioridade de um dia da disponibilização exigida no § 2º do artigo 224. Além dessa modalidade de intimação pelo Diário da Justiça, a que estão sujeitos todos os advogados, a Lei n. 11.419/2006 prevê outra, que também pode constituir modalidade de citação, que é a que vem sendo chamada de autointimação, que se realizará através do acesso às informações do processo veiculadas no portal eletrônico do tribunal na internet, dispensando a intimação pelo Diário da Justiça, mas que pressupõe que o destinatário, parte ou advogado, tenha previamente se cadastrado para receber citações ou intimações por esse meio. O cadastramento far-se-á não apenas para esse fim, mas também para o envio de petições e a prática de quaisquer outros atos por via eletrônica, conforme regulamentação de cada tribunal (art. 2º). As intimações de pessoas cadastradas por esse meio, inclusive da Fazenda
Pública, serão consideradas intimações pessoais para todos os efeitos (art. 5º, § 6º). O Código de 2015, nos §§ 1º e 2º do artigo 246, considera obrigatório o cadastramento junto aos sistemas de processamento em autos eletrônicos de todas as empresas públicas e privadas, bem como da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Nesse caso, a intimação será considerada efetivada no dia em que o usuário fizer a consulta eletrônica ao seu teor no site do tribunal (art. 5º, § 1º), começando a contagem do prazo para a prática do ato subsequente no primeiro dia útil seguinte. Se a consulta se realizar em dia não útil ou dia em que não haja expediente forense, considerar-se-á realizada no primeiro dia útil com expediente forense (§ 2º). O artigo 231, inciso V, do Código de 2015 deixa claro que o primeiro dia útil subsequente à consulta ou ao término do prazo para consulta é o dia do começo do prazo, que exclui na sua contagem. A lei presume a ciência do destinatário no décimo dia da disponibilização da intimação no site do tribunal (§ 3º), o que significa que aquele que se cadastrar para peticionar eletronicamente assumirá o compromisso de consultar o site do tribunal periodicamente para inteirar-se de eventuais citações ou intimações. Como qualquer prazo de dias, na sua contagem deverão considerar-se as regras do Código de Processo Civil a cujo regime esteja sujeito o feito, como as relativas à exclusão do começo, à obrigatoriedade de que o primeiro e o último dia sejam úteis, à inclusão na contagem ou não dos sábados, domingos e feriados intermediários, como já estudamos. O décimo dia dessa contagem deverá recair em dia útil, data em que se considerará a parte intimada. Se se tratar de intimação para a prática de algum ato, a partir do primeiro dia útil subsequente ao décimo iniciar-se-á a contagem desse novo prazo. Haverá, portanto, o encadeamento de dois prazos de dias, que deverão ser contados sucessivamente na forma da lei processual. A experiência apontará os rumos que o processo eletrônico deverá impor à contagem dos prazos processuais, especialmente quando conviverem no mesmo processo partes intimadas virtualmente e partes intimadas pelos meios tradicionais. ________
1 Esses feriados nacionais foram instituídos pelas Leis ns. 662/49, 6.802/80,
4.737/65 (art. 380) e 10.607/2002. 2 GRECO, Leonardo. Os atos de disposição… p. 290-304. 3 CARNEIRO, Athos Gusmão. Intervenção de terceiros. 19. ed. São Paulo:
Saraiva, 2010. p. 141. 4
CALAMANDREI, Piero. Processo e democrazia. In: Opere giuridiche. Napoli: Morano, 1965. v. I. p. 637. 5 REINALDO FILHO, Demócrito. Comunicação eletrônica de atos processuais
na Lei n. 11.419/2006. In: Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil, n. 47, maio/jun. 2007. p. 50.
16.1. A TEORIA DOS DEFEITOS DOS ATOS PROCESSUAIS E SUAS DIFICULDADES O tema também é tratado sob o título de nulidades processuais ou invalidades processuais. Contudo, atualmente, inclino-me pelo exame do assunto sob a denominação de defeitos dos atos processuais, porque, ao utilizar-se a expressão nulidades, excluem-se outros defeitos que não acarretam nulidade, o mesmo ocorrendo com a expressão invalidades, já que nem todos os defeitos geram a invalidade do ato processual. Assim, o vocábulo defeito não possui qualquer sentido específico, abrangendo qualquer vício que o ato processual possa conter. É frequente a associação dos defeitos do ato processual à inobservância dos seus requisitos formais. Essa é a ideia contida nos artigos 243 do Código de 1973 e 276 do Código de 2015, segundo os quais, “quando a lei prescrever determinada forma sob pena de nulidade, a decretação desta não pode ser requerida pela parte que lhe deu causa”. A preocupação com a forma está presente também nos artigos 154 e 188, de um e outro Código, que, ao tratarem do princípio da liberdade das formas, estabelecem que “os atos e termos processuais independem de forma determinada, salvo quando a lei expressamente a exigir, considerando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial”. Ora, a forma é especificamente o meio de exteriorização do ato processual. O ato é gerado pela vontade livre do sujeito que o pratica, mas ele se exterioriza, se comunica, se transmite aos demais sujeitos para poder produzir efeitos no processo através de uma determinada forma. A forma se compõe do conjunto de requisitos extrínsecos que devem ser observados na prática do ato, abrangendo o como, o onde e o quando do ato: o lugar, o tempo e o modo de expressão1. Apesar da liberdade das formas e do progressivo abandono do formalismo, por todos defendido, não há ato sem forma, porque é a forma que introduz o ato no processo.
Como bem acentuou Chiovenda2, a ciência tem uma missão grave: o estudo racional das formas vigentes, sem o qual o legislador vagará na incerteza e no erro. Esse estudo deve ter por objeto inicialmente o exame das origens de cada uma, das razões que determinaram a sua introdução e dos diversos fatores das suas transformações; a seguir, os resultados dessa pesquisa devem ser confrontados com as condições atuais para aferir-lhes a utilidade e estabelecer critérios de inovação e de interpretação. Muitas formas sobrevivem como corpo sem alma, que o legislador respeita pela força do hábito, não obstante tenham se modificado inteiramente as necessidades que as determinaram3. A instrumentalidade do processo induz-nos a desprezar essas formas obsoletas, libertando dessa camisa de força a pureza e a vitalidade da essência de cada ato. Por outro lado, o abandono das formas, que o legislador disciplinou para a prática de cada ato, pode lançar os cidadãos na mais completa insegurança jurídica, tornando imprevisíveis as consequências dos seus atos e pondo em risco o respeito às garantias mínimas de um processo justo. Afinal, é a forma que determina as consequências do ato processual4, que garante o cumprimento da finalidade para a qual a lei o previu, que assegura a sua comunicação aos demais sujeitos do processo e a sua documentação. Ademais, os atos do juiz e dos seus auxiliares, como órgãos do Estado, são necessariamente regidos pelo princípio da legalidade, única proteção segura dos jurisdicionados contra arbitrariedades ou abusos de poder. Assim, o regime moderno dos defeitos dos atos processuais deve encontrar o ponto de equilíbrio entre a preservação das formas, como garantia do devido processo legal, e a liberdade das formas como pressuposto da instrumentalidade do processo e da efetividade da tutela jurisdicional dos direitos5. É indispensável considerar, de outro lado, que os defeitos dos atos processuais não incidem apenas sobre a sua forma, mas também sobre o seu conteúdo, e no processo, pelo seu caráter nitidamente instrumental, com frequência o requisito, que aparenta ser apenas formal, é também substancial, porque predisposto à
realização da sua finalidade. No Direito Civil, talvez seja possível distinguir com clareza os requisitos formais dos substanciais, mas no Direito Processual essa diferenciação mostra-se muito difícil. Por exemplo, o artigo 282 do Código de 1973, que cuida da petição inicial, possui sete requisitos: o endereçamento ao juiz ou tribunal, a qualificação das partes, o pedido, a causa de pedir, o requerimento de citação do réu, a proposição das provas e o valor da causa. Desses sete requisitos o Código de 2015, no artigo correspondente (art. 319), exclui um deles, o requerimento de citação do réu, e inclui um novo: a opção do autor pela realização ou não da audiência de conciliação ou de mediação. Quais desses requisitos são de forma e quais são de conteúdo? Assim, também, quando os artigos 686 do Código de 1973 e 886 do Código de 2015 estabelecem os requisitos do edital de praça – descrição dos bens, valor, lugar onde se encontram, menção da existência de ônus etc. –, estão através da forma assegurando que o ato preencherá os requisitos para que todos os interessados tomem conhecimento das informações necessárias para, querendo, virem concorrer à arrematação. É o que Vicente Greco Filho denominou de princípio da tipicidade dos atos processuais6, em virtude do qual os modelos definidos pela lei descrevem não só a forma externa de cada ato, mas também o que deve conter, o seu conteúdo. Por isso, a sistematização dos defeitos dos atos processuais não visa simplesmente a assegurar a observância das formas, mas o cumprimento das finalidades de cada ato e do processo como um todo, que a lei faz decorrer dessa observância7. Nesse passo, cabe rememorar a observação já feita anteriormente de que é muito difícil aplicar a teoria dos atos jurídicos em geral aos atos processuais, tendo em vista certas características próprias destes últimos, como a sua interdependência e unidade teleológica.
16.2. ESPÉCIES DE DEFEITOS DOS ATOS PROCESSUAIS
Ao examinar os defeitos dos atos processuais, a doutrina brasileira, nas últimas décadas, valeu-se em grande parte da obra de Carnelutti sobre os atos processuais8 e classificou os defeitos em três espécies: nulidade absoluta, nulidade relativa e anulabilidade. O principal autor brasileiro que sistematizou, nos moldes expostos acima, a teoria dos defeitos processuais foi Galeno Lacerda, no seu estudo sobre o despacho saneador. Nessa disciplina, Lacerda sustenta que nulidades absolutas são aquelas que violam normas imperativas de ordem pública; nulidades relativas são aquelas que violam normas imperativas de interesse das partes; e anulabilidades são os defeitos dos atos que violam normas dispositivas, não imperativas9. Entretanto, depois dessa tentativa de classificação, percebeu-se que os critérios distintivos por ela adotados eram muito imprecisos e subjetivos, o que dava margem, inclusive, a arbitrariedades e soluções discrepantes adotadas casuisticamente. Além disso, a doutrina passou a apontar certas situações que não se amoldavam a quaisquer das categorias propostas, como os casos de inexistência do ato processual, mera irregularidade, ineficácia ou simples erro material. Isso demonstra que o Direito Processual está muito longe de possuir uma sólida teoria dos defeitos dos atos processuais. Como ponto de partida, reitero ser importante dissociar a ideia de defeito da ideia de forma, já que o vício pode ser formal ou substancial. Se a petição inicial não tiver pedido, por exemplo, esse não será apenas um vício de forma, mas um defeito de conteúdo, obviamente. Em outras palavras, os defeitos de forma não esgotam todos os vícios que os atos processuais podem conter; pelo contrário, no âmbito do processo é muito difícil separar o defeito formal do substancial, estabelecendo-se uma fronteira segura entre o que seja requisito meramente de forma do que seja requisito de conteúdo. Desse modo, os dispositivos do Código de Processo Civil que aludem somente à forma devem ser interpretados no sentido de que os defeitos a que se referem também podem ser de substância. Assim, melhor seria falar-se em liberdade dos requisitos e não em liberdade das formas; instrumentalidade dos requisitos e não instrumentalidade das formas.
Por outro lado, não oferece consistência distinguir as nulidades absolutas das relativas em razão do interesse que as determina, público ou das partes, se ambas violarem normas igualmente imperativas, porque nos dois casos a consequência deve ser a mesma. Some-se a isso que a ideia de anulabilidade não pode ter no Direito Processual o mesmo sentido adotado em outros ramos do Direito, porque no processo, que é uma cadeia de atos interdependentes, não podem existir determinados atos que produzam efeitos válidos até determinado momento e de repente deixem de produzi-los, sem desmoronar por inteiro a validade da sequência dos atos praticados até esse momento. Outra grande dificuldade a solucionar decorre da insuficiência dessa primeira classificação para justificar certos fatos que, com crescente frequência, passaram a ser caracterizados como de processo inexistente ou de ato processual inexistente. Como distinguir a nulidade absoluta da inexistência? No positivismo dos séculos XIX e XX, não se admitia ato inexistente, já que a inexistência era tida como uma contradição em si mesma. Carnelutti chegava a dizer que o ato inexistente, justamente por não existir, não precisa ser invalidado nem convalidado; é um não ato e pode ser simplesmente ignorado. Então, pelo raciocínio contrário, todo ato que entrou no processo e produziu algum efeito existe, por mais grave que seja o vício de que padeça. Tendo entrado no processo faticamente e nele produzido algum efeito, somente poderá sair através de um meio jurídico de invalidação. Assim, o juiz recebe uma petição inicial sem a assinatura do advogado, sem recolhimento de custas e sem pedido. Poderá ele simplesmente ignorar essa petição, rasgando-a e atirando-a no cesto de lixo? Não. Isso porque essa petição existe, ainda que viciada de modo gravíssimo, e o juiz deve tratá-la como tal, ordenando ao autor que a emende, nos termos dos artigos 284 do Código de 1973 e 321 do Código de 2015. O debate acerca da inexistência ganhou força nos últimos anos em razão da crise do judiciário, que passou a cometer muito mais erros do que antes, vários deles insolúveis por meios jurídicos. Assim, houve uma tendência na jurisprudência e na doutrina em recorrer à inexistência para dar solução a esses casos insolúveis,
ignorando atos processuais e decisões judiciais como se eles nunca tivessem ingressado no mundo jurídico. Ora, a falta de um requisito essencial não torna o ato inexistente, pois ele produziu efeitos no processo. A esse respeito, acredito estar correta a noção de Carnelutti, no sentido de que inexistente é o não ato. Não se convalida porque não existe e não se invalida… porque não existe!10 Mas em que casos poderemos afirmar com segurança que um ato não existe e não simplesmente que ele é nulo ou anulável? Por fim, constata-se claramente que existem outros defeitos menos graves dos atos processuais, que podem ter alguma consequência prática, mas que não justificam a invalidação do ato, porém apenas o seu aperfeiçoamento. E outros são de tal modo secundários que podem até mesmo ser simplesmente ignorados. Por tudo isso, a classificação que proponho dos defeitos dos atos processuais enumera seis espécies, que passarei a examinar: inexistência, nulidade absoluta, nulidade relativa, anulabilidade, irregularidade e erro material. 16.2.1. Inexistência A doutrina processual em geral admite essa espécie de invalidade, embora não consiga definir ontologicamente qual a característica que a distingue da nulidade absoluta. No processo, ainda que o ato esteja irremediavelmente comprometido por falta de requisito essencial, se a sua prática tiver desencadeado alguma atividade subsequente, terá ingressado no mundo jurídico, e não poderá ser simplesmente ignorado por inexistência. Partindo dessa premissa, nenhum ato deverá ser considerado inexistente, porque, por mais grave que seja o defeito que o atinja, tendo sido produzido na relação jurídica processual, ao Direito Processual caberá determinar o seu destino. Todavia, as preclusões e a coisa julgada que se formam no processo tornam em certo momento incorrigíveis quaisquer defeitos, por maiores que sejam, obrigando o prejudicado à árdua via da ação rescisória ou da ação anulatória para remediá-los, já que a segurança jurídica e a estabilidade das decisões judiciais não podem prevalecer quando o que houve foi um mero simulacro de
processo ou de atividade jurisdicional. E, assim, a inexistência termina por subsistir para solucionar em caráter excepcional situações teratológicas, porque somente ela pode sobrepujar a coisa julgada, permitindo recusar-lhe efeitos, independentemente da utilização de qualquer via de impugnação11. Grassa na doutrina processual a mais absoluta desarmonia a respeito da caracterização da inexistência e sobre os seus exemplos. Chiovenda entendia que a existência da relação processual exige uma demanda e um órgão jurisdicional. Se a demanda não existe ou é dirigida a um particular ou a um órgão destituído de poder de decisão, a relação processual não existe12. Para Hernández Galilea13 a inexistência ou é um conceito inútil, porque não se diferencia da nulidade, ou introduz na ciência jurídica um conceito metafísico, que provoca enorme distorção. Roque Komatsu considera o ato inexistente quando lhe falta o mínimo de elementos constitutivos, sem o que o ato não configura a sua identidade ou a sua fisionomia particular. Segundo o autor, a nulidade de citação geraria a inexistência da sentença, dispensando a sua anulação por ação rescisória14. Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho15 concordam que inexistentes são aqueles atos aos quais falta, de forma absoluta, algum dos elementos exigidos pela lei. São não atos. E apontam os seguintes exemplos: sentença proferida por quem não é juiz; ou a que falte parte dispositiva; ou proferida por juiz que não tem mais jurisdição, porque foi promovido; ou sentença de juiz constitucionalmente incompetente16. Muitos autores apontam como caracterizadora da inexistência a falta de requisitos mínimos para que o ato seja levado em consideração. A diferença entre a nulidade e a inexistência seria apenas de grau do defeito que atinge elemento essencial. A inexistência seria uma nulidade extremamente grave, que retiraria do ato qualquer possibilidade de ser reconhecido como um ato processual, impondo fosse simplesmente ignorado17. Certamente ocorreria essa falta de requisitos mínimos, caracterizador de inexistência, e não de nulidade absoluta, quando fosse seguramente indiscutível a certeza da ausência de vontade do sujeito que figurou como autor do ato18.
O ato humano, seja ele jurídico ou não, é sempre necessariamente uma manifestação no mundo exterior de uma volição, de um impulso espontâneo e consciente da mente do sujeito que se apresenta como o seu autor. Se da mente do sujeito que figurou como autor do ato não emanou qualquer volição, qualquer impulso gerador de um resultado, de uma manifestação no mundo exterior, não existe o ato19. A decisão proferida por quem não é juiz, ainda que dela conste o nome do juiz, a sentença sem dispositivo e a petição inicial sem pedido seriam atos inexistentes. Já a sentença não assinada, mas elaborada por um juiz, estaria eivada de um defeito formal grave, que impede a produção dos seus efeitos enquanto não for corrigido, pela incerteza decorrente da falta de autenticidade, mas é ato existente e como tal deve ser tratada pelo Direito. Também não é inexistente a sentença em razão da falta ou nulidade da citação20. Se a lei, em algum caso (CPC, art. 475-L, inc. I), facilita o reconhecimento do defeito da sentença resultante de citação nula, em razão da sua especial gravidade, isso não permite simplesmente ignorá-la, pois como ato de vontade do Estado deve ser respeitada, enquanto não for declarada nula pela via própria. Já vai longe o tempo em que a sentença nula era considerada inexistente, “sentença nenhuma”, como se lia no título LXXV do Livro III das Ordenações Filipinas, já anacrônica àquela época, em que o princípio da validade formal da sentença, oriundo do Direito germânico, havia sido adotado praticamente em toda a Europa, criando-se, em consequência, uma ação própria para desconstituíla, a querela de nulidade21. Nos casos mais graves, chamados de teratológicos, como falta de jurisdição, falta de pedido, falta de dispositivo na sentença, se o ato, após ter sido praticado, determinou a prática de outros atos subsequentes, ainda que seja para remediar o vício ocorrido, essa atividade se desenvolveu de acordo com os princípios e regras do procedimento legal, e, portanto, não se pode considerar que o ato e o processo simplesmente inexistiram. Já nos exemplos dados por Andrea Torrente22, do juiz que deu a sua opinião sobre a causa no café, entre os seus amigos, ou dos membros de órgão jurisdicional colegiado que em passeio encontraram a solução da causa, ainda
não existe a sentença, não por falta de requisito formal, como pretende o autor, mas porque naquelas ocasiões não se encontravam o juiz ou os juízes no exercício da função jurisdicional e nenhuma atividade ulterior no processo provocaram essas conversas. Escrita e assinada a sentença, mas ainda não entregue pelo juiz ao escrivão, escrito o voto ainda não lido na sessão de julgamento, não existe o ato da sentença nem existe o ato da prolação do voto, os quais somente se concretizam quando se exteriorizam perante os seus destinatários, e somente a partir dessa exteriorização desencadeiam atos subsequentes do processo. Muitos outros exemplos poderiam ser mencionados, a evidenciar que aquilo a que se procura qualificar de ato inexistente ou não chegou a ser ato do processo ou é apenas uma nulidade absoluta que transparece com mais evidência. Se a essas nulidades absolutas não é possível atribuir uma característica que objetivamente as diferencie das demais, certamente estaríamos no campo do puro arbítrio e da mais terrível insegurança jurídica, que comprometeriam mortalmente as finalidades de um sistema de defeitos ou de invalidades, conforme expusemos no início da análise deste tema, se não reduzíssemos a sua esfera de influência apenas àquelas hipóteses em que o ato não seja apto a produzir e de fato não tenha produzido quaisquer efeitos jurídicos, ainda que inválidos. Nos demais casos, estaremos diante de meras nulidades absolutas, a merecerem o tratamento que a lei lhes der. Se o tratamento da lei for causa de injustiças, como frequentemente ocorre com a ação rescisória, que depois de dois anos do trânsito em julgado não mais permite qualquer arguição de nulidade, por mais grave que seja, cumpre corrigir o defeito do sistema onde ele ocorre, e não criar outra solução sem qualquer racionalidade, em busca de um ideal de justiça fundado no casuísmo e no subjetivismo23. A sentença que é proferida por quem não é juiz, por exemplo, é um ato que não emanou do sujeito legitimado a praticá-lo. Assim, se um delegado de polícia proferir uma sentença, ela existirá no plano fático, mas para o mundo jurídico essa sentença será inexistente. Outra hipótese de ato inexistente é a referente aos atos que não emanaram minimamente do impulso volitivo daqueles que tinham legitimidade para praticá-lo. É o que ocorre no caso em que criminosos, que submeteram o juiz à coação física irresistível, amarrando-o e prendendo uma caneta em sua mão,
rabiscam uma assinatura na sentença que ele não proferiu. Nesse caso, a mão do juiz foi utilizada como mero instrumento para assinar a sentença, mas a assinatura não derivou do mínimo impulso volitivo do magistrado. Também é inexistente o ato que não chegou ao destinatário. O ato processual se pratica na sede do juízo e, assim, o advogado que elaborou uma petição em sua residência, mas não a levou ao protocolo da sede do juízo, ainda não praticou o ato processual. A questão ganha ainda mais importância após a edição da recente Lei n. 11.419/2006, que dispôs sobre a informatização do processo judicial, uma vez que a transferência de dados eletronicamente está sujeita a dificuldades de ordem técnica, que podem fazer com que o ato não chegue ao seu destinatário. Então, em resumo, pode-se dizer que inexistentes são os atos que não existem faticamente, os que não derivaram de qualquer impulso volitivo do sujeito legitimado, ou aqueles que não chegaram ao seu destinatário. Uma vez reputados inexistentes, tais atos podem e devem ser simplesmente ignorados, pois não admitem convalidação, não dependendo a sua invalidação de um pronunciamento formal do juiz. São atos que não estão aptos, de maneira alguma, a produzir efeitos válidos. Por outro lado, se o ato, por mais defeituoso que seja, emanou do sujeito legitimado e chegou ao seu destinatário, ele existe e, portanto, deve ser tratado como um ato jurídico existente, somente podendo sair do mundo jurídico por um meio jurídico. Portanto, a inexistência deve ser reservada a casos extremos, como os de ausência de impulso volitivo do sujeito legitimado ou os de absoluta falta de comunicação do ato ao seu destinatário. A imprecisão na sua diferenciação em relação à nulidade absoluta se observa na própria lei processual. Exemplo dessa imprecisão no tratamento da inexistência está contido no artigo 37 do Código de 1973, de acordo com o qual serão havidos por inexistentes os atos urgentes praticados pelo advogado sem procuração nos autos, quando não exibido posteriormente o instrumento de mandato no prazo legal de 15 dias, prorrogável por igual período mediante despacho do juiz. Esse não é um caso de inexistência, pois o ato existiu, não havendo razão para presumir que ele não emanou do sujeito legitimado a praticá-lo, pois o advogado afirmou ter mandato verbal do cliente: mas ele não poderá produzir efeitos
porque violou um princípio absoluto e indisponível do processo, qual seja, o de que ninguém pode postular em juízo sem procuração. Então, o que ocorreu, na verdade, foi uma nulidade absoluta, mas a que a lei se refere como inexistência para mostrar que esse é um vício irremediável, insanável e, portanto, gravíssimo, mas não é propriamente um caso de inexistência. O Código de 2015, pretendendo corrigir a imprecisão terminológica dessa regra, a caracterizou como caso de ineficácia (art. 104, § 2º). Como veremos mais adiante, a ineficácia não é um fenômeno de conteúdo próprio. Não produzir o efeito pretendido pode ocorrer com um ato absolutamente válido, se praticado em momento totalmente inoportuno, como pode também resultar da nulidade do ato, caso dos atos que o advogado praticou sem que os seus poderes tenham sido ratificados no prazo legal. 16.2.2. Nulidade e anulabilidade O segundo grande problema que atinge o estudo dos defeitos dos atos processuais é a diferença entre nulidade e anulabilidade. No direito privado, nulo é o ato que já nasceu defeituoso e que não pode produzir efeitos válidos desde o momento em que foi praticado, e, assim, caso o seu vício não seja percebido desde logo, nulos serão também todos os atos subsequentes dele dependentes. Em outras palavras, a nulidade do ato se reconhece com eficácia ex tunc, retroativa, através de sentença declaratória, porque o ato já nasceu defeituoso e, como tal, todos os seus efeitos são nulos, desde o momento em que foi praticado. O ato anulável não nasceu defeituoso; ao contrário, ele é válido. Entretanto, a lei permite que ele seja desconstituído, retirado do mundo jurídico, momento a partir do qual deixará de produzir efeitos válidos (Código Civil, art. 177), preservando-se, contudo, os efeitos já operados. Por isso, a decretação da anulação de um ato produz efeitos ex nunc, ou seja, a partir do momento em que ele foi invalidado, através de sentença constitutiva24. Então, estamos diante de uma importante distinção: o ato nulo assim o é desde o seu nascedouro, enquanto o ato anulável nasceu válido, permanecendo como tal até o momento da sua invalidação.
No Direito Civil, são atos anuláveis aqueles que contêm vícios do consentimento, vale dizer, aqueles resultantes de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão e fraude contra credores (Código Civil, art. 171, inc. II). São atos válidos, mas que podem vir a ser anulados para o futuro. A respeito desse ponto, o maior problema enfrentado pelo Direito Processual é o de saber se, no processo, podem existir atos que conservem a sua validade por certo tempo e que perdem tal atributo em determinado momento subsequente. Isso porque, como já estudamos, o processo é uma cadeia de atos sucessivos e interdependentes, e, toda vez em que um ato nessa sequência for invalidado, ele o será com efeitos retroativos, desde o momento em que foi praticado. Invalidado o ato desde o momento da sua prática, são também desconsiderados todos os efeitos subsequentes e todos os demais atos dele dependentes, como estabelecem os artigos 249 e 250 do Código de 1973 e 282 e 283 do Código de 2015. Ora, se o processo é uma cadeia de atos sucessivos e um dos elos dessa cadeia é rompido, os atos subsequentes não podem subsistir. Assim, em princípio, não se aplica aos atos processuais a categoria dos atos anuláveis e, por conseguinte, todos os motivos que ensejam a anulabilidade dos atos segundo a lei material civil, no processo, são causas de nulidade dos atos processuais. Por exemplo: se a parte alega que praticou um ato processual sob coação, a declaração da nulidade desse ato o invalidará desde o momento em que foi praticado, anulando-se também todos os atos subsequentes dele dependentes, pouco importando tratar-se de um vício de consentimento, que no Direito Civil geraria apenas a anulação do ato, mas não a sua nulidade. O ato processual, então, desde o seu nascedouro, ou é nulo ou é válido; ele não pode ser anulável, porque, se assim o fosse, estar-se-ia desmentindo a interdependência dos atos processuais. Essa é a regra geral para o Processo Civil, que comporta, entretanto, exceções. Há casos expressos de atos processuais anuláveis – ou seja, cuja invalidação se dará apenas para o futuro –, mas que se restringem ao último ato do processo, porque depois deste não existem atos subsequentes ou atos dele dependentes.
É o caso de sentença de mérito transitada em julgado, sujeita à ação rescisória. A doutrina converge em afirmar que a sentença, ainda que padeça de um vício grave que enseja a sua anulação por meio da ação rescisória, produzirá todos os seus efeitos até o momento da sua desconstituição, uma vez que ela se encontra acobertada pela coisa julgada. A rescisão da sentença produzirá efeitos desde então, ou seja, apenas para o futuro25. A meu ver, entretanto, o exemplo acima, apontado de forma praticamente unânime pela doutrina, é passível de algumas objeções importantes. Isso porque considero que nem todos os defeitos que ensejam a propositura da ação rescisória causam a sua anulabilidade, uma vez que alguns dos fundamentos previstos nos incisos do artigo 485 do Código de 1973 e do artigo 966 do Código de 2015 geram, em realidade, a nulidade da sentença. Dessa controvérsia cuidaremos mais adiante. A partilha amigável, judicialmente homologada, também pode ser objeto de anulação, com efeitos ex nunc. Enquanto não for anulada, a partilha produzirá todos os seus efeitos válidos, que serão preservados mesmo após a sua invalidação. 16.2.3. Nulidade absoluta A terceira grande dificuldade no estudo da teoria dos defeitos dos atos processuais é a distinção entre nulidade absoluta e nulidade relativa. Dentre os defeitos cuja declaração irá retroagir, invalidando o ato desde o seu nascedouro, existem uns que se classificam como nulidades absolutas e outros como nulidades relativas. A nulidade absoluta é também chamada de nulidade insanável, ou seja, ela nunca se convalida, devendo ser decretada de oficio pelo juiz, a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, independentemente de haver ou não causado algum prejuízo a uma das partes. Por sua vez, a nulidade relativa é sanável, e, assim, embora o ato tenha nascido nulo, essa nulidade pode ser convalidada, se não arguida pela parte interessada na primeira oportunidade que tiver para se manifestar nos autos. Logo, o juiz dela não poderá conhecer de ofício, dependendo, assim, da arguição da parte
interessada, que não poderá ser aquela que deu causa à nulidade. Exemplo dessa espécie de nulidade é a incompetência relativa, que deve ser arguida pela parte interessada na primeira oportunidade. A nulidade relativa depende de prejuízo. Assim, se a parte interessada não se manifestar na primeira oportunidade que tiver para falar nos autos e não comprovar, nessa oportunidade, que a nulidade relativa lhe causou algum prejuízo, o defeito estará sanado, convalidado. Nas hipóteses de convalidação, age-se como se o vício não existisse, como se o ato fosse plenamente válido desde a sua origem. Essas distinções, que são de fácil compreensão, diferenciam as nulidades absolutas das relativas sob o prisma das suas consequências. Entretanto, é muito difícil identificar quando uma nulidade é absoluta e quando ela é relativa. Acerca da matéria, a doutrina tem proposto diversos critérios. Os franceses, por exemplo, no século XVIII, propuseram o critério da expressa cominação legal, segundo o qual somente poderia ser reputada como absoluta a nulidade expressamente cominada. É a ideia de nulidade como sanção, prevista também no Código de 1973 (art. 243) e no Código de 2015 (art. 276); esse critério liga-se ao princípio segundo o qual não há nulidade sem texto. Por esse critério, nulidade absoluta é, portanto, nulidade cominada, cabendo ao legislador indicar quais são as nulidades de maior gravidade, prevendo-as no texto legal. Ocorre que o legislador, em regra, não é cuidadoso e rigoroso tecnicamente a ponto de prever legalmente todos os casos em que a falta de determinados requisitos acarretará a nulidade absoluta do ato. No âmbito do nosso Código de Processo Civil, há nulidades cominadas, como, por exemplo, as encontradas nos artigos 246 e 247 do Código de 1973 e 279 e 280 do Código de 2015. Entretanto, há diversas outras nulidades gravíssimas que não estão cominadas expressamente na lei. Nesse sentido, por exemplo, as que incidam sobre os requisitos da sentença, previstos no artigo 458 do Código de 1973 e 489 do Código de 2015, quais sejam, o relatório, a fundamentação e o dispositivo. A sentença defeituosa em qualquer um desses requisitos é absolutamente nula, embora o legislador assim não o tenha declarado expressamente. Logo, o critério
da expressa cominação legal não é satisfatório para distinguir as nulidades absolutas das nulidades relativas. Outro critério proposto é o da essencialidade. Diferenciam-se, segundo esse critério, os requisitos essenciais dos requisitos acidentais dos atos processuais. Os primeiros seriam os requisitos indispensáveis, sem os quais o ato não estaria apto a produzir efeitos, enquanto os segundos seriam requisitos complementares, cuja inobservância não impediria a produção dos efeitos do ato. A dificuldade reside em saber quais requisitos dos atos são essenciais e quais são meramente acessórios ou acidentais. Tomemos por exemplo os requisitos apresentados nos artigos 282 do Código de 1973 e 319 do Código de 2015, que cuidam da petição inicial. Quais são os requisitos, previstos no referido artigo, sem os quais a petição inicial não poderá produzir efeitos? Pode-se afirmar com relativa segurança que a indicação das partes, do pedido e da causa de pedir seria essencial à petição inicial porque definidora dos elementos individualizadores da demanda. Quanto aos demais requisitos, como a indicação do valor da causa e a proposição das provas, a questão se torna nebulosa, não sendo possível afirmar peremptoriamente que são meramente acessórios da petição inicial. Em estudo que realizei sobre o valor da causa no mandado de segurança, concluí que, em determinados casos, a indicação do valor da causa mostra-se como um requisito essencial, cuja inobservância gerará a nulidade absoluta do ato, ao passo que, noutros casos, a sua ausência acarretará apenas nulidade relativa. Há outros casos ainda em que a imputação do valor da causa visa tão somente a emprestar maior qualidade ao ato, de modo que a sua falta implicará mera irregularidade26. Então, a fronteira entre a nulidade absoluta e a nulidade relativa não deve ser definida pelo critério da essencialidade, na medida em que não assegura parâmetros objetivos para a fixação dessas categorias de defeitos. O terceiro critério adotado pela doutrina para diferenciar a nulidade absoluta da nulidade relativa é baseado no interesse público ou na ordem pública. Por esse critério, é absoluta a nulidade nos casos em que o vício contido no ato viola norma imperativa, norma de ordem pública, aquela inderrogável pela vontade
das partes, ou atinge um direito fundamental indisponível pelas partes. A ordem pública ou o interesse público são ideias de significado impreciso, indeterminado, que facilmente se tornam motivadoras de decisões arbitrárias ou subjetivas. Além disso, a legislação e a jurisprudência têm a tendência de considerar de ordem pública todas as regras processuais. Sirva de exemplo dessa concepção autoritária o enunciado no § 3º do artigo 267 do Código de 1973 e no § 3º do artigo 485 do Código de 2015, que determinam que o juiz examine de ofício, a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, a falta de quaisquer pressupostos processuais, em flagrante contradição com a liberdade das formas. Só vejo duas possibilidades de aceitar a ordem pública como critério de distinção entre as nulidades absolutas e as relativas. A primeira é conseguir determinar com objetividade e precisão o interesse público que o requisito de validade do ato ou do processo visa a assegurar. Assim, a concorrência das condições da ação visa a impedir que obtenha a prestação jurisdicional quem não tenha direito de exigi-la do Estado; o respeito às impenhorabilidades naturais, como, por exemplo, a de bens públicos de uso comum do povo, visa a resguardar o patrimônio público ou, ainda, a continuidade dos serviços públicos. Outro tipo de fundamento de ordem pública, que justifica a caracterização da nulidade como absoluta, é o que se sustenta na necessidade de proteção de direitos fundamentais indisponíveis e de efetividade das garantias constitucionais mínimas do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, mesmo porque quaisquer limitações, ainda que de ordem legal, à liberdade das partes de influir eficazmente na decisão judicial se apresentam constitucionalmente como legítimas apenas enquanto têm por justificativa assegurar as mesmas prerrogativas, em igualdade de condições, a ambas as partes27. Por isso, está coberto de razão Alberto Luís Maurino quando sustenta que o conceito de ordem pública deverá ter como fonte as garantias constitucionais, e, portanto, o direito de defesa, sendo irrenunciáveis e, por isso, absolutas as formas que tendem à preservação da bilateralidade do contraditório e à garantia do devido processo legal, devendo ser decretada de ofício a nulidade que lese essas garantias28.
Mas mesmo no âmbito das garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, constitucionalmente asseguradas, existem faculdades disponíveis em determinadas circunstâncias. No momento do seu exercício, já conhecida a pretensão do adversário e desde que resultante de livre ato de vontade do litigante, à própria defesa pode ele renunciar, desde que o litígio verse sobre direitos disponíveis. Ao acesso à jurisdição estatal também pode o litigante renunciar, em favor da arbitragem. Portanto, a nulidade é absoluta, insanável, decretável de ofício a qualquer tempo, independentemente de prejuízo, se atinge requisito do ato imposto de modo imperativo para assegurar proteção de interesse público precisamente determinado, o respeito a direitos fundamentais e a observância de princípios do devido processo legal, quando indisponíveis pelas partes29. Entre esses princípios indisponíveis, podem ser mencionados: a independência, a imparcialidade e a competência absoluta do juiz; a capacidade das partes; a liberdade de acesso à tutela jurisdicional em igualdade de condições por todos os cidadãos (igualdade de oportunidades e de meios de defesa); um procedimento previsível, equitativo, contraditório e público; a concorrência das condições da ação; a delimitação do objeto litigioso; o respeito ao princípio da iniciativa das partes e ao princípio da congruência; a conservação do conteúdo dos atos processuais; a possibilidade de ampla e oportuna utilização de todos os meios de defesa, inclusive a defesa técnica e a autodefesa; a intervenção do Ministério Público nas causas que versam sobre direitos indisponíveis, as de curador especial ou de curador à lide; o controle da legalidade e causalidade das decisões judiciais através da fundamentação; uma cognição adequada pelo juiz e, em certos limites, a celeridade do processo. Apesar da extensão desse rol, a nulidade absoluta é a exceção, e a relativa é a regra. E, mesmo quando absolutas, há nulidades que se convalidam in extremis, se o juiz puder proferir sentença de mérito a favor da parte à qual aproveitaria a decretação da nulidade (CPC de 1973, art. 249, § 2º; CPC de 2015, arts. 282, § 2º, e 488). Terão de ser nulidades absolutas cuja decretação tenha sido imposta exclusivamente em benefício da parte vencedora, e não para proteger interesse público determinado ou interesse de terceiro. Nesse caso, decidindo o mérito da causa a favor da parte a quem beneficiaria a decretação da nulidade, deixará o juiz de pronunciar a nulidade que ficará sanada, apesar de absoluta. E a
incompetência absoluta, que é uma nulidade absoluta (CPC de 1973, art. 113; CPC de 2015, art. 64, § 1º), também por exceção, não acarreta necessariamente a invalidação de todos os atos praticados pelo juízo incompetente, mas apenas da sentença final das decisões que o juízo competente entender que devam ser reformadas, conforme explicamos no item 6.4. Em muitos sistemas processuais, como o italiano, todas as nulidades, mesmo as absolutas, ficam sanadas com o advento da coisa julgada. Excetuam-se apenas as nulidades absolutas mais graves, como a violação da coisa julgada e a sentença proferida sem a intervenção obrigatória do Ministério Público ou a resultante de processo fraudulento30. No Brasil, a amplitude da regra dos artigos 485, inciso V, do Código de 1973 e 966, inciso V, do Código de 2015 prolonga a relevância da nulidade absoluta mesmo após o trânsito em julgado, o que vai de encontro à tendência moderna de relativização das nulidades e de diminuição das normas de ordem pública e a correspondente ampliação dos espaços de autonomia da vontade dos cidadãos, que tem levado a doutrina e a jurisprudência a dispensarem a observância inflexível de certas regras outrora reputadas intangíveis. Assim, por exemplo, a nulidade expressamente cominada nos artigos 246 do Código de 1973 e 279 do Código de 2015, decorrente da ausência de intervenção do Ministério Público no processo em que é obrigatória essa intervenção, em que a lei categoricamente determina o retorno do processo ao momento inicial em que essa intervenção deveria ter ocorrido, vem sendo relativizada pela jurisprudência, no sentido de que, se o Ministério Público interveio apenas no 2º grau de jurisdição e não alegou a nulidade do processo na instância inferior, essa intervenção em grau superior convalida o vício ocorrido na inferior. A sistematização das nulidades processuais visa a conferir maior qualidade ao processo, e a rigidez dos requisitos dos atos processuais pretende assegurar que esses atinjam a sua finalidade, conferindo, ao mesmo tempo, maior segurança jurídica às partes. Na medida em que, por outros meios que não aqueles previstos em lei, os atos atinjam a sua finalidade, ou em que as partes melhorem o seu nível de consciência jurídica, é possível tornar o processo menos formalista. Logo, há essa tendência à relativização das nulidades, de modo que, havendo dúvida quanto ao seu caráter absoluto ou relativo, a nulidade deve ser reputada relativa.
O juiz, portanto, somente deverá decretar de ofício uma nulidade quando for possível caracterizar precisamente a violação a uma norma imperativa ou a ofensa a um direito fundamental indisponível. Caso contrário, a nulidade será relativa e somente poderá ser decretada mediante arguição tempestiva da parte interessada e demonstração do prejuízo. Verificada uma nulidade absoluta, seguem-se as suas consequências: deve ser decretada de ofício, a qualquer tempo e grau de jurisdição, independentemente de prejuízo, não podendo ser convalidada. 16.2.4. Nulidade relativa As nulidades relativas também dizem respeito a defeitos nos requisitos essenciais dos atos processuais, mas que, por outro lado, podem ser sanados, se o ato por outro meio atingir a sua finalidade, ou se a nulidade não for alegada na primeira oportunidade pela parte a que interessar ou, ainda, se não causar prejuízo às partes. A nulidade relativa é sanável e, portanto, não arguida na primeira oportunidade, e, não demonstrada a ocorrência de prejuízo, o ato será reputado válido. A incompetência relativa, por exemplo, é uma nulidade relativa. Imagine-se, a título de exemplo, que certo autor tenha proposto uma ação num foro que não é o do domicílio do réu. Nessa hipótese, poderá o juiz, ao receber a petição inicial, declinar de ofício da sua competência? Não, pois ele deve aguardar a manifestação do réu por meio do oferecimento da exceção de incompetência, cuja ausência importará a prorrogação da competência (CPC de 1973, art. 114; CPC de 2015, art. 65). Exceção a essa regra diz respeito aos casos em que o juiz reconhece de ofício a nulidade da cláusula de eleição de foro constante de contrato de adesão. Embora seja caso de incompetência relativa, que, portanto, gera uma nulidade relativa, o juiz pode dela conhecer de ofício, declinando da sua competência para o juízo legalmente competente (CPC de 1973, art. 112, parágrafo único, acrescentado pela Lei n. 11.280/2006; CPC de 2015, art. 63, §§ 3º e 4º). A diferença entre a nulidade absoluta e a relativa, portanto, reside na imperatividade da norma ou preceito que foi inobservado, daí decorrendo várias
consequências próprias, de acordo com cada espécie de nulidade. Essa distinção, entretanto, é difícil de ser percebida na realidade do processo, porque nem sempre é possível aferir se, na prática do ato, houve o descumprimento de um requisito imperativo. Em razão do princípio da instrumentalidade das formas e da atual tendência de relativização das nulidades, não havendo certeza na qualificação da nulidade, essa deve ser considerada uma nulidade relativa. O processo não é um fim em si mesmo, mas um meio para atingir-se outra finalidade, que é o bom exercício da jurisdição. Se um requisito é estabelecido pela lei para a validade de um ato processual e o juiz não é capaz de identificar qual preceito de ordem pública foi violado pela sua inobservância, a anulação desse ato somente deve ser admitida se a parte houver arguido a sua nulidade na primeira oportunidade e se do referido ato tiver sido originado algum prejuízo para a parte que a arguiu. Isso porque, muitas vezes, mesmo com a inobservância de um dos seus requisitos legais, o ato foi capaz de atingir a sua finalidade e, assim, não deve ser repetido ou considerado nulo. Até a falta e a nulidade de citação, que são consideradas por muitos como as nulidades mais graves do processo, podem ser convalidadas através do comparecimento espontâneo do réu (CPC de 1973, art. 214; CPC de 2015, art. 239). Nesse ponto, cabe aludir novamente à hipótese que denomino de convalidação in extremis da nulidade absoluta (CPC de 1973, art. 249, § 2º; CPC de 2015, art. 282, § 2º). De acordo com esses dispositivos legais, se o juiz puder julgar o mérito da causa em favor da parte a quem aproveitaria a declaração de nulidade, ele não ordenará a repetição do ato defeituoso, nem pronunciará a nulidade. Também o artigo 498 do Código de 2015 recomenda o julgamento do mérito sempre que a decisão for favorável à parte a quem aproveitaria o pronunciamento que não o resolve. É o que acontece nos casos em que, havendo vício de citação, o juiz pode julgar a causa favoravelmente ao réu. Ele não precisa anular todo o processo e mandar que se repitam o ato de citação e os seus subsequentes, mas deve consignar expressamente na sentença que está julgando o mérito porque a sentença
favorece o réu, parte a quem aproveitaria a declaração de nulidade da citação, nos termos do artigo acima citado. A expressa menção ao vício em questão deve ser feita pelo juiz ao julgar o mérito, porque o autor pode interpor apelação contra essa sentença, recurso ao qual pode ser dado provimento pelo tribunal, para reformar a decisão de primeiro grau. Nesse caso, o tribunal não poderá ignorar a nulidade de citação para proferir uma decisão contrária ao réu, devendo, assim, anular todo o processo e determinar o seu retorno à instância de origem, para que seja repetida ou realizada a citação, assim como renovados todos os demais atos subsequentes. 16.2.5. Anulabilidade As anulabilidades são as próprias nulidades, em geral absolutas, depois do término do processo. Findo o processo, ainda determinados vícios podem vir a ser alegados, quais sejam, aqueles que podem ensejar a propositura de ação rescisória (CPC de 1973, art. 485; CPC de 2015, art. 966); ou de ação anulatória (CPC de 1973, art. 486; CPC de 2015, art. 966, § 4º). Os vícios que fundamentam a ação rescisória são nulidades absolutas, mas que sobrevivem à formação da coisa julgada, caracterizando, a partir de então, causas de anulabilidade, porque a sentença acobertada pela coisa julgada produz todos os seus efeitos válidos até que seja desconstituída pela ação rescisória. Logo, a doutrina brasileira entende, quase unanimemente – sem a minha adesão, conforme já expus –, que a ação rescisória é uma ação constitutiva negativa, ou seja, que, enquanto não for julgada procedente a ação rescisória, a sentença produz todos os seus efeitos válidos e a sua desconstituição somente irá produzir efeitos para o futuro. Para a doutrina majoritária, a sentença de mérito sujeita à ação rescisória é, portanto, um ato anulável, já que a sua desconstituição, em regra, se dá com eficácia ex nunc. Entretanto, considero que algumas causas previstas de ação rescisória, por sua maior gravidade, são motivos de nulidade propriamente dita, e não de anulabilidade, como, por exemplo, a violação da coisa julgada. Na desconstituição da sentença que violou coisa julgada anterior, a meu ver, o
processo deve ser anulado desde o seu ato inicial, não podendo a sentença rescindida conservar nenhum de seus efeitos, e, portanto, a sua rescisão se dará com eficácia retroativa. Há outras causas, contudo, que realmente ensejam apenas a anulabilidade da sentença, como o surgimento de uma nova prova após a sua prolação. 16.2.6. Irregularidade A quinta espécie de defeito dos atos processuais é a irregularidade. Ao contrário do que ocorre com a nulidade, a irregularidade não afeta requisito essencial do ato, mas algum requisito meramente útil, podendo ser suprida ou corrigida de ofício pelo juiz, se este a perceber. Contudo, caso o juiz não perceba a irregularidade, o processo permanecerá plenamente válido, não decorrendo nenhuma consequência que possa comprometer a validade da relação processual. Requisito meramente útil, não essencial, é aquele que melhora a qualidade do ato, se for observado, mas cuja ausência não o torna inválido, porque não predisposto para que o ato atinja a sua finalidade. Por exemplo, de acordo com o artigo 169 do Código de 1973, os atos e termos processuais devem ser lavrados com tinta escura e indelével. Ora, se determinado sujeito processual praticar um ato utilizando tinta de cor verde, não haverá nulidade do ato, mas se o juiz perceber o defeito deverá ordenar que o ato seja retificado para adotar a forma prescrita em lei. O Código de 2015 não reproduz essa regra. Os artigos 171 do Código de 1973 e 211 do Código de 2015 não permitem nos atos e termos lavrados pelo escrivão espaços em branco, o que não significa, por si só, que a sua existência acarrete a nulidade do ato. É uma mera irregularidade que dá mais segurança ao documento que registra o ato e evita qualquer possível adulteração. Então, há defeitos que não comprometem a validade do ato, porque não atingem aqueles requisitos que a lei predispõe para que o ato seja eficaz. A confecção do ato processual em tinta escura e indelével não é uma exigência necessária à validade do ato, mas é útil para que esse se conserve por mais tempo, para que se facilite a sua leitura etc. Esses últimos são benefícios acessórios do ato, mas não
se relacionam com a aptidão do ato de atingir a sua finalidade. Outro exemplo de mera irregularidade, em minha opinião, é a falta de recolhimento da taxa judiciária ou das custas iniciais. O processo, nesse caso, é plenamente válido e, acerca desse ponto, cabe uma crítica à disciplina do Código de Processo Civil, que ordena ao juiz a extinção do processo quando não houver recolhimento das custas (CPC de 1973, art. 257; CPC de 2015, art. 290). Ora, o processo não se destina a recolher custas; a finalidade dos atos do processo não é arrecadar receita para os cofres do Estado. Essa é uma visão ultrapassada, típica do Estado patrimonial, em que a justiça era vista como um meio de sustentar os seus funcionários, os seus juízes e seus serventuários. Os artigos 257 do Código de 1973 e 290 do Código de 2015 são, a meu ver, inconstitucionais, porque impedem ou dificultam o acesso à justiça para que o Estado possa arrecadar, desvirtuando a finalidade da função jurisdicional. Como já afirmamos anteriormente, às vezes um mesmo vício, dependendo da função do ato que atinge ou das suas consequências no processo, pode constituir diferentes espécies de defeitos. É o que acontece com a fixação do valor da causa, a respeito do qual, em estudo anterior, observei31 que a falta de indicação do valor da causa constitui nulidade, nas hipóteses em que essa fixação é necessária para determinar o juiz competente, o tipo de procedimento ou a admissibilidade de algum recurso, ainda que futuro. A nulidade vicia o ato desde o momento da sua prática, porque o defeito impede que o ato atinja a sua finalidade. A competência em razão do valor e a adoção do procedimento adequado são questões de ordem pública, se o vício puder ter como consequência o processamento da causa perante juízo de alçada inferior ou o seu processamento por rito menos garantístico do que o devido. Não pode haver convalidação desse defeito, porque ele viola regras de ordem pública, indisponíveis pelas partes. No entanto, se a falta de valor da causa tiver como consequência o curso do feito perante juiz de alçada superior, ou por procedimento de formas e prazos mais amplos e garantísticos, a nulidade será relativa, não devendo ser reconhecida de ofício, mas dependendo para a sua declaração da arguição do réu na contestação e da prova do prejuízo. Também relativa será a nulidade da falta de indicação daquele valor, se a consequência for eventual inadmissibilidade de recurso contra decisão futura. Não viola qualquer princípio ou norma de ordem pública a perda do direito de recorrer em razão da
adoção de um determinado procedimento. Trata-se de interesse francamente disponível. Já se o valor da causa não apresenta qualquer dessas finalidades, mas simplesmente serve de base para o recolhimento das custas ou cumpre formalidade prescrita em lei, a sua natureza se restringe à de um requisito simplesmente útil, e a sua falta, em si mesma, constitui mera irregularidade, que não retira do ato a sua validade, nem impede que esse produza os seus normais efeitos. O juiz mandará corrigir de ofício essa irregularidade a qualquer tempo, sob pena de extinção do feito, apenas em benefício da boa marcha da causa, mas se o vício perdurar até o fim do processo estará convalidado e não prejudicará a eficácia de qualquer ato nele praticado. O valor da causa na ação de investigação de paternidade, por exemplo, não tem nenhum conteúdo econômico e a sua não atribuição não prejudica o procedimento, nem a competência do órgão jurisdicional, nem a alçada recursal, de forma que constitui mera irregularidade. Se o juiz observar a ocorrência da irregularidade ainda a tempo de corrigi-la, mandará remediá-la. Se não a observar, o processo seguirá plenamente válido e com plena eficácia de todos os atos nele praticados. É o que ocorre, por exemplo, com a falta de recolhimento das custas devidas. O Estado cobrá-las-á posteriormente, através dos procedimentos administrativos e judiciais próprios de que dispõe. Há também irregularidades que não são corrigíveis, como o descumprimento dos prazos pelo juiz. O juiz poderá até sofrer uma sanção disciplinar (CPC de 1973, art. 198; CPC de 2015, art. 235), mas a qualidade do processo, prejudicada pela irregularidade, será irremediável. 16.2.7. Erro material A sexta espécie de defeito dos atos processuais é o erro material, tratado no artigo 463, inciso I, do Código de 1973 e no artigo 494, inciso I, do Código de 2015. O erro material é um defeito na confecção do ato, sem nenhum prejuízo ao seu conteúdo, que é perfeitamente perceptível. A forma do ato contém algum
vício que precisa ou pode ser corrigido, o que não significa a existência de um erro na inteligência daquele que o praticou, mas apenas um defeito na exteriorização da sua vontade. Os erros materiais são corrigíveis de ofício a qualquer tempo pelo juiz, independentemente da interposição de qualquer recurso. Assim, por exemplo, a correção do nome da parte, que foi grafado pelo advogado com a falta de alguma letra em seu sobrenome. Não há dúvidas acerca de quem está praticando o ato, mas houve apenas uma falha ou defeito na confecção material do ato, que gerou a grafia errônea do nome da parte. Os erros de cálculo também são erros materiais. Assim, se em vez de condenar o réu ao pagamento de dez prestações de cem reais, totalizando mil reais, conforme requerido pelo autor, o juiz equivoca-se na elaboração do cálculo e condena o réu ao pagamento de dez prestações de cem reais num total de dez mil reais, porque acrescentou mais um zero ao valor final do seu cálculo, estamos diante de um evidente erro material. Trata-se de defeito meramente extrínseco do ato, decorrente da sua confecção material, que não suscita qualquer dúvida quanto ao seu conteúdo, podendo ser corrigido pelo seu autor, a qualquer tempo, mesmo depois de encerrado o processo. Outro exemplo de erro material, bastante comum, é a metragem errada nas confrontações de um imóvel descrito em inventário. É preciso que do erro não resulte qualquer incerteza quanto ao seu caráter meramente extrínseco, para que a sua correção a qualquer tempo não se apresente como abusiva e violadora da coisa julgada ou da preclusão. Somente o próprio autor do erro pode corrigi-lo, mas é indispensável que também aos demais sujeitos do processo a sua retificação transpareça como inócua e fiel ao conteúdo do ato em que o defeito ocorreu sob pena de não poder ser considerado como erro meramente material, ficando o seu autor inibido de retificá-lo. O Código de 2015 também permite que o erro material seja corrigido por meio do recurso de embargos de declaração (art. 1.022, inc. III).
16.2.8. Ineficácia Costuma-se apontar ainda a ineficácia como uma sétima espécie de defeito dos atos processuais, que, entretanto, não considero ser propriamente um defeito do ato. A ineficácia do ato é a sua incapacidade para produzir efeitos no processo; o ato é válido, mas não é apto a produzir efeitos, ou é inválido, e por isso não pode produzir efeitos. Carnelutti considerava que a ineficácia era irrelevante no processo. Isso porque ou a inaptidão do ato para produzir efeitos resultaria de uma nulidade e, nesse caso, o ato seria tratado como nulo, ou essa inaptidão pode ser simplesmente ignorada, porque o ato é ineficaz em si mesmo. Por exemplo: após a prolação da sentença, a parte requer a inquirição de uma testemunha. Esse ato não é nulo, mas completamente ineficaz, porque a seu respeito nada poderá o juiz fazer, uma vez que ele já decidiu a causa. Atualmente, considero que há certos casos de ineficácia que possuem maior relevo para o processo, principalmente os que estão relacionados a determinados atos convencionais das partes, que incidem no processo ora para dispor sobre seus direitos e deveres processuais, ora para dispor sobre o próprio direito material. Alguns desses atos, por força de lei, dependem de homologação judicial para adquirirem eficácia. Eles existem e são válidos, mas os efeitos por eles almejados não são alcançados a não ser que seja praticado outro ato, que sobrevenha uma condição ou termo. É o caso, por exemplo, da desistência da ação, tratada nos artigos 158, parágrafo único, do Código de 1973 e 200, parágrafo único, do Código de 2015. Também é o caso da sentença sujeita a recurso com efeito suspensivo. Carecemos de doutrina sólida sobre as características desses atos, sobre a produção de graus diversos de eficácia que podem sobrevir em momentos diferentes, sobre a sua revogabilidade, questões que tangenciei em estudo recente32. Parece-me, entretanto, que no âmbito dos defeitos dos atos processuais interessam apenas aqueles atos absolutamente ineficazes, inteiramente inócuos ou inúteis, e não aqueles que produzem algum efeito, embora não totalmente o almejado pelo sujeito que o praticou. Quanto àqueles, parece-me acertada a opinião de Carnelutti, o que me leva a não considerá-los uma categoria própria de vícios dos atos processuais.
16.3. PRINCÍPIOS INFORMATIVOS DA TEORIA DOS DEFEITOS DOS ATOS PROCESSUAIS Expostas as espécies de defeitos, passamos a comentar o que a doutrina chama de princípios informativos da teoria dos defeitos dos atos processuais, que, na verdade, não são princípios que influenciam a disciplina de todos os defeitos, mas diretrizes que os autores vêm reconhecendo como aplicáveis aos principais deles, quais sejam as nulidades absolutas e as relativas, e, eventualmente, a alguns outros. São eles os princípios da liberdade das formas, da instrumentalidade das formas, da economia, do interesse, da lealdade e da causalidade. De acordo com os artigos 154 do Código de 1973 e 188 do Código de 2015, a forma dos atos processuais é livre. Isso significa que os requisitos que a lei estabelece para a prática de um ato processual podem não ser observados, desde que o ato atinja a sua finalidade. A liberdade das formas é, portanto, o princípio que rege as nulidades relativas e as irregularidades. O princípio oposto ao da liberdade das formas é o da legalidade das formas ou do formalismo, que é o princípio regente das nulidades absolutas. Os requisitos estabelecidos em lei para a validade do ato devem ser obrigatoriamente observados, independentemente de o ato ter ou não atingido a sua finalidade, quando constituírem imperativos de ordem pública. O segundo princípio é o da instrumentalidade das formas, que é consequência do anterior, contido nos mesmos dispositivos. Os requisitos dos atos processuais não são um fim em si mesmos, mas visam sempre a assegurar a utilidade do ato para o processo, de modo que, atingida a sua finalidade e ainda que inobservados alguns desses requisitos, o ato será reputado válido. Esse princípio se aplica particularmente às nulidades relativas. O princípio seguinte é o da economia, segundo o qual o reconhecimento do defeito do ato deve causar o menor prejuízo possível ao processo, daí resultando duas regras: a da repetição e a do aproveitamento. Essas regras estabelecem que, quando se reconhece a invalidade de um ato, repete-se apenas o ato ou a parte do ato em que ela ocorreu e todos os atos subsequentes por ela afetados (regra da repetição), aproveitando-se as demais
partes do ato e os demais atos posteriores que não tiverem sido por ela atingidos (regra do aproveitamento). Vale lembrar que o princípio da economia se aplica tanto às nulidades absolutas como às nulidades relativas e também às irregularidades. Por exemplo: numa audiência, foram inquiridas três testemunhas. Encerrada a inquirição dessas testemunhas, foi concedida a palavra ao advogado do autor e ao advogado do réu para fazerem as alegações finais orais e, em seguida, foi proferida a sentença. Suponha-se que o advogado do réu tenha recorrido da decisão final, aduzindo que, ao final do depoimento da terceira testemunha, não lhe foi assegurado o direito de fazer reperguntas, o que teria constituído uma nulidade absoluta. Acolhida a nulidade pelo tribunal, não serão repetidos todos os atos da audiência, nem sequer todos os depoimentos das testemunhas; apenas deverá o juiz garantir ao advogado do réu o direito de fazer reperguntas à terceira testemunha, aproveitando-se todos os atos válidos praticados na audiência, inclusive as respostas já constantes do depoimento anterior dessa testemunha. Os demais atos praticados posteriormente à ocorrência da nulidade, como as alegações finais orais e a sentença, deverão ser repetidos, já que foram por ela afetados. O próximo princípio a ser examinado é o do interesse, também chamado de princípio do prejuízo. Os franceses possuem um brocardo segundo o qual “não há nulidade sem prejuízo” (pas de nullité sans grief). Contudo, é importante frisar que o prejuízo é imprescindível apenas na decretação da nulidade relativa, já que, nas nulidades absolutas, em regra, a sua decretação independe de prejuízo, sendo esse relevante apenas nos casos em que ocorre a chamada convalidação in extremis, prevista no § 2º do artigo 249 do Código de 1973 e nos artigos 282, § 2º, e 498 do Código de 2015. O quinto princípio é o da lealdade ou da boa-fé, que, em realidade, é um princípio geral do processo, que obriga as partes a comportarem-se em conformidade com a verdade, a colaborarem com o juiz, a respeitarem os direitos dos seus adversários etc. Esse princípio se aplica à teoria dos defeitos dos atos processuais de diversas maneiras. Em razão desse princípio, por exemplo, as partes, tomando conhecimento de determinado defeito, são obrigadas a alegá-lo na primeira oportunidade que tiverem para se manifestar nos autos. Esse encargo impede que
o processo prossiga eivado de vícios, evitando, assim, a prática de atos sucessivamente nulos, o que se aplica tanto às nulidades absolutas como às relativas, embora com consequências diferentes em cada um dos casos. Nas nulidades relativas, se o interessado não arguir a nulidade na primeira oportunidade que tiver para se manifestar nos autos depois do seu conhecimento, o vício será sanado, convalidado, e a parte perde a faculdade de alegá-lo em momento posterior, ou seja, opera-se a preclusão. Nas nulidades absolutas, mesmo não tendo alegado a nulidade na primeira oportunidade, a qualquer momento a parte poderá fazê-lo. O Código de 1973 estabelece que o retardamento na alegação de nulidade absoluta fará recair sobre o faltoso a responsabilidade pelos prejuízos a que tiver causa (art. 267, § 3º). Não reproduzida essa regra no Código de 1973, de qualquer modo o retardamento poderá caracterizar a litigância de má-fé, coibida nos artigos 77 e seguintes. A segunda aplicação do princípio da lealdade sobre a teoria dos defeitos enuncia que ninguém pode se aproveitar da própria torpeza; ninguém pode se beneficiar de nulidade a que deu causa. Essa regra é o fundamento da convalidação das nulidades relativas, pois aquele que tiver dado causa a essa nulidade não poderá posteriormente alegá-la. Na verdade, é inócuo a lei dizer que a parte não poderá alegar a nulidade a que deu causa; o importante é que ela não se beneficie da nulidade que ocasionou, o que não a impede de alegá-la, desde que o seu acolhimento seja favorável à parte contrária. Especificamente no caso das nulidades absolutas, com mais razão poderá a parte causadora da nulidade alegá-la, já que todas as matérias que o juiz pode conhecer de ofício ele também poderá examinar por provocação ou a requerimento das partes, ressalvada a possibilidade de aplicação das sanções por litigância de má-fé (CPC de 1973, arts. 14 a 18; CPC de 2015, arts. 77 a 81) e de imposição do pagamento das custas pelo retardamento, quando prevista. O último princípio a ser analisado é o da causalidade, que está vinculado ao princípio da economia. Reconhecida a nulidade de um ato ou da parte de um ato, desfazem-se o ato em que ocorreu a nulidade e todos os demais atos subsequentes dele dependentes. Em outros termos, além do próprio ato eivado de nulidade, desfazem-se todos os atos que mantenham com ele uma relação de causalidade.
Embora de modo pouco técnico, todos esses princípios se encontram consagrados nos artigos 243 a 250 do Código de 1973 e nos artigos 276 a 283 do Código de 2015. Assim, os artigos 243 do primeiro e 276 do segundo esboçam uma definição de nulidade absoluta com base no critério da expressa cominação legal, mas em seguida afirmam que a sua decretação não pode ser requerida pela parte que lhe deu causa, o que é correto para as nulidades relativas, não para as absolutas. Os artigos 244 do primeiro e 277 do segundo esboçam uma definição de nulidade relativa, adotando o critério oposto, qual seja o da ausência de cominação legal, mas em seguida adota corretamente o princípio da instrumentalidade, aplicável a essa espécie de nulidade. O caput e o parágrafo único dos artigos 245 do primeiro e 278 do segundo corretamente adotam o princípio da lealdade, que exige que a nulidade seja alegada na primeira oportunidade, em relação às nulidades relativas, mas afirmam erroneamente que esse princípio não se aplica às nulidades absolutas, o que constitui um equívoco. Conforme expusemos acima, o princípio da lealdade se aplica às nulidades absolutas, sujeitando os infratores a sanções, com a responsabilidade por litigância de má-fé e eventualmente por custas, embora a sua inobservância não convalide a nulidade. Os artigos 246 e 247 do primeiro e 279 e 280 do segundo adotam o critério da expressa cominação legal para considerar absolutas as nulidades por falta de intervenção do Ministério Público e a inobservância das formalidades de citações e intimações. Já vimos que, nos dois casos, há situações em que esses vícios estão relativizados. Quanto às prescrições sobre intimações, também devem ser analisadas cuidadosamente. Assim, por exemplo, será que deveria considerar-se absolutamente nula uma intimação pessoal por mandado na qual, não tendo o destinatário aposto o seu “ciente”, tivesse o oficial de justiça esquecido de certificar o fato (CPC de 1973, art. 239, parágrafo único, inc. III; CPC de 2015, art. 275, § 1º, inc. III)? Claro que não. Esse é um requisito meramente útil, não essencial, da intimação, porque, não constando no mandado qualquer sinal que possa significar o “ciente” do destinatário, a declaração do oficial apenas confirmaria o que os olhos de qualquer pessoa podem ver. A ausência da nota de ciente não resulta da declaração do oficial, mas do fato de ela não existir no mandado. Mera confirmação útil de fato cuja prova resulta da
observação visual do próprio mandado. Sua falta não atingiu requisito essencial da intimação, nem impediu que atingisse a sua finalidade. O artigo 248 do primeiro e o artigo 281 do segundo expressam o princípio da causalidade e a regra do aproveitamento vinculada ao princípio da economia. O caput do artigo 249 do primeiro e o caput do artigo 282 do segundo expressam a regra da repetição decorrente do princípio da economia. O § 1º dos dois artigos contempla o princípio do interesse, aplicável apenas às nulidades relativas. O § 2º consagra o que chamei de convalidação in extremis, aplicável àquelas nulidades absolutas que beneficiariam a parte em favor da qual se encontra o juiz em condições de proferir sentença de mérito. E o artigo 250 do Código de 1973, a que corresponde o artigo 283 no Código de 2015, no caput, insiste na regra do aproveitamento e, no parágrafo, indiretamente, na regra da repetição. ________ 1 KOMATSU, Roque. Da invalidade no processo civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1991. p. 130. 2 CHIOVENDA, Giuseppe. Le forme nella difesa giudiziale del diritto (1901).
In: Saggi di diritto processuale civile. Milano: Giuffrè, 1993. 1º v. reimpressão, p. 357-358. 3 Ibidem. p. 362. E à página 363: “È un fenômeno comune a tutti i diritti, perchè
costante è il fato che la forma si svolge più lentamente del diritto e gl’istituti nuovi passano sotto le forme giudiziali antiche, come l’acqua sempre nuova del fiume sotto gli archi d’un vecchio ponte”. 4 HERNÁNDEZ GALILEA, Jesús Miguel. La nueva regulación de la nulidad
procesal. Oviedo: Forum, 1995. p. 101. 5 Ver, na doutrina brasileira, o excelente estudo de Carlos Alberto Alvaro de
Oliveira: Do formalismo no processo civil – proposta de um formalismo valorativo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
6 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro.
21. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012. 2º v. p. 7-8. 7 MAURINO, Alberto Luis. Nulidades procesales. 3. ed. Buenos Aires: Astrea,
2009. p. 8. 8 CARNELUTTI, Francesco. Sistema del diritto processuale civile. Padova:
CEDAM, 1938. 2º v.; Sistema de derecho procesal civil. Tradução de Niceto Alcalá-Zamora y Castillo e Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: UTEHA Argentina, 1944. 3º v. 9 LACERDA, Galeno. Despacho saneador. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 1985. p. 126-127. 10 CARNELUTTI, Francesco. Sistema… 3º v. p. 558. 11 CHIAVARIO, Mario. Processo e garanzie della persona. Milano: Giuffrè,
1982. 1º v. p. 129. 12 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução
de J. Guimarães Menegale. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1965. 2º v. P. 324; Principii… p. 653. 13 HERNÁNDEZ GALILEA, Jesús Miguel. Op. cit. p. 47. 14 KOMATSU, Roque. Op. cit. p. 159-164. 15
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 18. 16 Ibidem. p. 19 e 43-45. 17
ZANZUCCHI, Marco Tullio. Diritto processuale civile. 6. ed. Milano: Giuffrè, 1964. 1º v. p. 442; MICHELI, Gian Antonio. Curso de derecho procesal civil. Buenos Aires: EJEA, 1970. 1º v. p. 320. 18
Francesco Carnelutti se refere, a esse propósito, à legitimação, entendida
como a dependência do efeito jurídico do ato decorrente da posição no processo do agente que o pratica: parte, terceiro, juiz, perito. Op. cit. p. 161. 19
ROSENBERG, Leo. Tratado de derecho procesal civil. Buenos Aires: EJEA, 1955. t. I. p. 377-378; ROSENBERG, Leo; SCHWAB, Karl Heinz; GOTTWALD, Peter. Zivilprozessrecht. 17ª Auflage. München: Beck, 2010. p. 341: “Todo ato processual pressupõe um ato consciente de vontade, a vontade de agir; por isso, uma conduta externa que tenha lugar sem consciência não é ato, mas unicamente a sua aparência, cabendo alegar, na forma do § 105, II, do Código Civil (BGB), que foi realizado em estado de inconsciência”. 20 ARAGÃO, Egas Moniz de. Comentários ao Código de Processo Civil. 10.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 2º v. p. 292. O autor ressalta que a maioria absoluta da doutrina reputa nula a sentença proferida em processo no qual não houve citação inicial. 21
CALAMANDREI, Piero. La Cassazione Civile. In: Opere giuridiche. Napoli: Morano Editore, 1976. v. VI. p. 131 e ss. 22 TORRENTE, Andrea. Spunti per uno studio sull’inesistenza e sulla nullità
della sentenza. In: Studi in onore di Enrico Redenti. Milano: Giuffrè, 1951. 2º v. p. 395. 23 Ver GRECO, Leonardo. Ainda a coisa julgada… p.557-581. 24 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários… v. III, t. I. p. 550. 25 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo
Civil. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. 5º v. p. 107. 26 GRECO, Leonardo. O valor da causa… p. 175-195. 27
COMOGLIO, Luigi Paolo. La garanzia costituzionale dell’azione ed il processo civile. Padova: CEDAM, 1970. p. 154. 28 MAURINO, Alberto Luís. Op. cit. p. 9, 37-38 e 95. 29 HERNÁNDEZ GALILEA, Jesús Miguel. Op. cit. p. 81.
30
Código de Processo Civil italiano, arts. 395 e 397. Giuseppe Chiovenda leciona que, na sua quase totalidade, “os motivos de nulidade (assim como de anulabilidade) de uma relação processual desaparecem com o tornar-se definitivo o resultado de um processo”. (Instituições… 2º v. p. 231) 31 GRECO, Leonardo. O valor da causa… p.182-183. 32 GRECO, Leonardo. Os atos de disposição… p. 290-304.
17.1. DISTINÇÕES A doutrina, em que pese a pouca relevância atual, durante muito tempo preocupou-se em distinguir processo de procedimento. De um lado, conceitua-se processo como sendo a relação jurídica formada para o exercício da jurisdição sobre uma determinada causa e, por outro, o procedimento como o rito ou o conjunto de requisitos extrínsecos que devem ser observados na prática dos atos de cada processo e a série ou modo de encadeamento desses atos e os prazos em que devem ser praticados. Em razão do princípio da legalidade, que rege a atuação do Estado e de seus agentes, dentre eles os magistrados, todo processo judicial, como uma relação jurídica de direito público, tem o seu procedimento previsto em lei. Distinguem-se, ainda, os dois institutos afirmando-se que o processo é o conteúdo e o procedimento é a forma. Nesse sentido, o primeiro é o conjunto de atos e vínculos gerados pelos diversos sujeitos que dele participam, enquanto o segundo é o conjunto de requisitos formais desses atos e o modo pelo qual se encadeiam numa série contínua, que está sempre em movimento. Por ser o processo uma relação dinâmica, os diversos procedimentos existentes determinam que, terminado o prazo para a prática de um ato, começa a correr o prazo para a prática do ato imediatamente seguinte. No Código de 1973, o procedimento ordinário do processo de conhecimento é o que está mais extensamente regulado no Código, em dez capítulos do Título VIII do Livro I, nos artigos 282 a 475-R. Nele estão disciplinados institutos comuns a todos os procedimentos, como a petição inicial, a resposta do réu, a revelia, as provas, a audiência, a sentença e a coisa julgada. As suas regras se aplicam subsidiariamente ao procedimento sumário, aos procedimentos especiais de jurisdição contenciosa e voluntária, aos procedimentos executórios e cautelares, salvo no que forem com eles incompatíveis. O Código de 2015 adotou uma estrutura diversa. Na parte geral, dividida em cinco livros, dos artigos 1º a 317, tratou das normas processuais civis, da função jurisdicional, dos sujeitos do processo, dos atos processuais e da tutela sumária
de urgência e de evidência. Nesta última, regula dois procedimentos, da tutela antecipada e da tutela cautelar requeridas em caráter antecedente (arts. 303 a 310). Na parte especial, em que trata dos diversos procedimentos, institui no processo de conhecimento um procedimento comum, nos artigos 318 a 538, disciplinando institutos comuns aos vários procedimentos, mesmo alheios ao processo de conhecimento, como a petição inicial, a contestação, a reconvenção, a revelia, as providências preliminares, o julgamento conforme o estado do processo, as provas, a sentença, a coisa julgada, a liquidação de sentença e o cumprimento da sentença. Em seguida, nos artigos 539 a 770 regula inúmeros procedimentos especiais de jurisdição contenciosa e voluntária, assim como algumas medidas cautelares. No Livro II, dos artigos 771 a 925, trata da execução e dos respectivos procedimentos. O procedimento rege os requisitos formais do processo de dois principais modos: um que dispõe sobre a série sucessiva, a cadeia de atos do processo e os respectivos prazos; e outro que regula os requisitos de cada ato do processo individualmente. No Código de 1973, o processo de conhecimento possui dois procedimentos comuns: o sumário e o ordinário. O primeiro aplica-se às causas enumeradas no artigo 275 do Código de Processo Civil, como, por exemplo, as causas de valor não superior a 60 salários mínimos. Consiste – ou deveria consistir – num procedimento mais concentrado, que visa a dar mais rapidez e simplicidade a causas de menor complexidade, sem perder, todavia, a exaustividade da cognição de todos os tipos de questões de fato e de direito que possam ser relevantes para o seu julgamento. Lamentavelmente, o chamado procedimento sumário é tão ou mais complexo que o procedimento ordinário, que, em tese, deveria ser mais amplo, de maior complexidade e mais demorado. Certamente, a sua ineficiência, como instrumento de simplificação e de aceleração do processo, levou o legislador de 2015 a extingui-lo (v. art. 1.046, § 1º). O procedimento ordinário é o adequado às causas para as quais a lei não previu nenhum procedimento específico, determinado. Em minha opinião, se a lei prevê o procedimento sumário para causas inferiores a 60 salários mínimos e o autor escolhe como rito o procedimento ordinário, não há nulidade alguma, porque a escolha de um procedimento mais amplo, com prazos maiores, com formas mais
exigentes, não pode causar nenhum prejuízo às partes. Aliás, o artigo 277, § 5º, do CPC de 1973 permite que o juiz converta o procedimento sumário em ordinário, quando houver necessidade de prova técnica de maior complexidade. Posicionamento análogo é o que sustenta José Carlos Barbosa Moreira, que, invocando o artigo 250 do Código de 1973, exclui que o processo deva ser forçosamente anulado, se a causa for instaurada no procedimento ordinário, quando cabível o sumário, dando-se o aproveitamento se a opção não houver causado prejuízo à defesa (parágrafo único)1. Também não vejo, no regime de qualquer dos dois Códigos, nulidade se, cabível um procedimento especial, optar o autor pelo procedimento ordinário ou pelo procedimento comum, o que, aliás, está revisto no dispositivo que trata da cumulação de pedidos (CPC de 1973, art. 292, § 2º; CPC de 2015, art. 327, § 2º). Isso somente não será possível se se tratar de uma daquelas matérias, como o inventário, que, pela especificidade da atividade que vai ser desenvolvida no curso do processo, não comporta a sua realização pelo rito ordinário ou comum, exigindo todas as etapas e formalidades previstas no respectivo procedimento especial. Como já expus, considero não haver nenhum prejuízo para o réu na escolha de um procedimento mais demorado ou mais complexo. Nesse sentido, aliás, vem se firmando, aos poucos, a jurisprudência. Entretanto, haverá nulidade caso o autor escolha um procedimento especial quando a ação deve submeter-se ao rito ordinário ou ao rito sumário do Código de 1973 ou ao procedimento comum do Código de 2015. A distinção entre processo e procedimento é encontrada em praticamente todos os manuais de Direito Processual. Costuma-se dizer que o processo é o conteúdo e o procedimento é a forma. Como já vimos, o processo é uma relação jurídica plurissubjetiva, complexa e dinâmica, que cria diversos vínculos jurídicos, tais como direitos, deveres e ônus das partes em relação ao juiz e em relação à outra parte; poderes, direitos e deveres do juiz em relação às partes; e direitos e deveres de outros sujeitos auxiliares, como as testemunhas, os peritos, os advogados, os terceiros intervenientes, o Ministério Público etc. O processo é o instrumento de exercício da jurisdição, composto por um conjunto de relações ou vínculos jurídicos unitariamente direcionados a um
único fim: a prestação jurisdicional em relação à determinada demanda. Já o procedimento é o rito ou a forma que adotam os atos que compõem o processo; rito porque a lei regula todos os atos do processo numa sequência dotada de racionalidade, numa sequência lógica e adaptada, muitas vezes, às peculiaridades da relação jurídica de direito material. Dessa forma, se o Código Civil assegura a proteção possessória imediata contra o esbulho ou a turbação (art. 1.210), a lei processual precisa proporcionar um procedimento que concretize a tutela desse bem jurídico de forma célere. Assim, no procedimento das ações possessórias, tem-se a possibilidade de ser proferida uma decisão liminar de manutenção ou de reintegração da posse (CPC de 1973, art. 928; CPC de 2015, art. 562). Outro exemplo: a lei civil afirma que o administrador de um condomínio deve prestar contas (Código Civil, art. 1.348, inc. VIII), cabendo à lei processual engendrar o procedimento para estabelecer a sequência de atos que será necessária para que essa prestação de contas se dê de maneira lógica, racional, e com a observância de todas as garantias fundamentais do processo. Nesse caso, segundo a lei processual, ao administrador deve ser requerida a apresentação das contas, que devem ser prestadas em determinado prazo (CPC de 1973, art. 915; CPC de 2015, art. 550); se ele não responder ou não prestar as contas no prazo legal, devolve-se ao administrado a faculdade de prestar as contas (CPC de 1973, art. 915, § 2º; CPC de 2015, art. 550, §§ 5º e 6º). A sequência desses atos, os prazos em que esses atos têm de ser praticados e os requisitos que têm de ser observados em cada ato são justamente as regras que compõem o procedimento da ação de prestação de contas, regulado pelos artigos 914 a 919 do Código de 1973 e nos artigos 550 a 553 do Código de 2015, que a denominou de ação de exigir contas. O procedimento, então, compõe-se de um conjunto de regras que, de um lado, disciplina o rito, a sequência dos atos processuais, ou seja, o seu modo de encadeamento e os prazos em que eles devem ser praticados e, de outro, os requisitos de cada um dos atos que compõem o processo. Logo, afirmar que o procedimento é a forma do processo é um grande equívoco, porque ele também disciplina os requisitos substanciais de cada ato processual. Ao estabelecer tais requisitos, o legislador está exigindo o cumprimento de circunstâncias ou de fatores muitas vezes inerentes ao próprio conteúdo dos atos e que são indispensáveis para que estes atinjam a sua finalidade. Então, não é exato dizer que a lei processual, ao anunciar que a petição inicial
precisa conter determinados requisitos, está tratando somente de requisitos formais, extrínsecos. O procedimento, na verdade, instrumentaliza o conjunto de requisitos dos atos processuais, a sua sequência e os seus prazos, para que o processo seja formado para prestar a jurisdição sobre uma determinada causa, atingindo adequadamente a sua finalidade. A visão de procedimento apenas como forma irá influenciar o pensamento de alguns autores no tocante à caracterização do instrumento de exercício da jurisdição voluntária. Na visão dessa parte da doutrina, não há atividade jurisdicional na chamada jurisdição voluntária, mas apenas uma atividade de natureza administrativa, não se podendo, portanto, caracterizar o instrumento de exercício dessa modalidade de jurisdição como processo, mas sim como procedimento. De acordo com essa visão, o processo somente existiria nos casos em que exista uma lide, ou seja, na jurisdição contenciosa. Em minha opinião, entretanto, também há processo na jurisdição voluntária, uma vez que nela também existe uma relação jurídica com conteúdo próprio, formada por vínculos jurídicos que constituem poderes, direitos, deveres e ônus entre os respectivos sujeitos. O procedimento, no que se refere ao rito, é regulado pela lei para atender de modo mais adequado, econômico e eficaz à finalidade do processo, que é a prestação jurisdicional sobre o direito material. O direito romano, o direito medieval e o direito da Renascença, até o século XVIII, eram considerados muito procedimentalistas, o que significa que eles criavam praticamente um rito distinto para cada tipo de postulação de direito material, para cada tipo de ação. Por seu turno, o processo do século XIX – época em que o direito processual começou a emergir como um ramo específico do direito público, adquirindo autonomia científica e legislativa – teve uma tendência de simplificar os procedimentos e de criar procedimentos comuns aos vários tipos de ações, de postulações, de relações jurídicas de direito material, porque o excessivo número de procedimentos torna a administração da justiça muito mais complicada, repleta de obstáculos, estimulando o formalismo. Observando-se a evolução dos sistemas jurídicos, nota-se um movimento
decrescente na formulação de procedimentos, no sentido do desaparecimento de alguns procedimentos, porque quanto mais o legislador consiga, através de boas técnicas, homogeneizar os procedimentos, mais o juiz, o escrivão, as partes e os advogados vão poder lidar com o processo de forma ágil e hábil, tornando, assim, mais eficaz o exercício da jurisdição. Dessa forma, poder-se-ia dizer que, hipoteticamente, se tivéssemos de pensar em um futuro utópico, o ideal seria que houvesse um procedimento único para todas as ações, para todas as partes, mas um procedimento tão bem-regulado que nele todas as hipóteses e exigências do direito material pudessem ser atendidas. Com isso, o processo seria simples e todos os juízes adotariam os mesmos procedimentos, as mesmas regras, e até qualquer cidadão comum poderia, mesmo sem patrocínio de advogado, ingressar em juízo, porque tais regras seriam de conhecimento de todos e iguais em todos os processos. Entretanto, na verdade, o que se nota é um movimento pendular: os códigos e as codificações procuram enxugar os procedimentos, reduzi-los, estruturando procedimentos comuns que sirvam ao maior número de postulações. Todavia, na medida em que a eficácia dos códigos se frustra e os procedimentos existentes parecem não atender mais à multiplicidade de situações e exigências do direito material, verifica-se a criação de novos procedimentos especiais em leis extravagantes. Na história da justiça dos povos percebe-se esse movimento pendular: as codificações unificam e as leis extravagantes fazem proliferar novos procedimentos. O Código de Processo Civil de 1939 foi simplificador quanto aos procedimentos, porque reuniu no seu bojo todos aqueles então existentes e extinguiu os que não tinham mais utilidade, adotando para todos o procedimento ordinário. O Código seguinte, de 1973, teve a mesma pretensão reducionista, extinguindo, por exemplo, a ação de imissão de posse e as ações cominatórias, mas, se ele fosse tão enxugador quanto se desejava, não teria chegado a ser editado, pois acabou preservando muitos procedimentos regulados em leis extravagantes e no próprio Código anterior (CPC de 1973, art. 1.218), além dos procedimentos especiais regulados por ele próprio. O Código de 2015 mais uma vez reduz alguns procedimentos. Assim, desaparecem o procedimento sumário, o procedimento cautelar comum, os procedimentos previstos no artigo 1.218 do Código de 1973 não incorporados ao próprio Código de 2015 ou a outras leis (art. 1.046, § 3º), muitos procedimentos cautelares específicos, como os das
medidas cautelares incidentes de arresto, sequestro, busca e apreensão, arrolamento, que passam a processar-se no bojo do procedimento comum, mas manteve todos os procedimentos regulados em leis especiais (art. 1.046, § 2º).
17.2. A DISCIPLINA DOS PROCEDIMENTOS NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E SUAS ESPÉCIES O Código de 1973 estabeleceu dois procedimentos comuns para o processo de conhecimento: o procedimento ordinário e o procedimento hoje chamado de sumário (art. 272). Denomina-se procedimento comum porque aplicável a todas as causas que não sejam reguladas por algum procedimento especial, além de aplicar-se subsidiariamente aos procedimentos especiais naquilo em que esses forem omissos. Estabeleceu também um procedimento comum para o processo cautelar e um procedimento comum na jurisdição voluntária, regulando os outros procedimentos somente naquilo que eles têm de específico, em razão das exigências do direito material. Mas, se virmos o que aconteceu depois que o Código de 1973 entrou em vigor, notaremos que surgiram diversos procedimentos novos, além daqueles procedimentos previstos em leis extravagantes que ele próprio preservou. Então, no processo de conhecimento, tem-se um procedimento comum, que pode ser ordinário ou sumário, e vários procedimentos especiais, que podem ser tanto de jurisdição contenciosa como de jurisdição voluntária e que estão regulados no Livro IV do Código de 1973, a partir do seu artigo 890. No Código de 2015, desaparece no processo de conhecimento o procedimento sumário, e o procedimento-padrão passa a denominar-se simplesmente procedimento comum, no qual as fases e os requisitos dos atos estão analiticamente regulados, aplicando-se subsidiariamente aos diversos procedimentos especiais de jurisdição contenciosa ou voluntária, regulados no título III do Livro I da Parte Especial, nos artigos 539 a 770. No processo de execução, que no Código de 1973 é objeto do Livro II (arts. 566 a 795) e no Código de 2015 é objeto do Livro II da Parte Especial (arts. 771 a 925), não há um procedimento comum, porque cada procedimento corresponde a um tipo de prestação a ser executada: se a prestação é pecuniária, o processo seguirá o rito da execução por quantia certa; se a prestação é de entrega de coisa,
o processo observará o rito da execução de entrega de coisa, e assim por diante. Isso porque a sequência dos atos necessários à entrega de alguma coisa, ao pagamento em dinheiro, ou ainda à prática de um fazer ou de um não fazer tem de ser diferente. Observe-se que o Código de 2015 manteve temporariamente em vigor o procedimento executório da insolvência civil do Código de 1973 (art. 1.052). Em outras palavras, a atividade prática que o juiz deverá desencadear será diversa de acordo com o fim que se pretenda almejar. No caso de prestação pecuniária, por exemplo, é necessário arrecadar bens do devedor, apreendê-los, avaliá-los e aliená-los compulsoriamente, para que sejam transformados em dinheiro, que será entregue ao credor. Assim, em razão da especificidade de cada prestação, o processo de execução não pode possuir um procedimento comum; todos os seus procedimentos são específicos, embora a execução por quantia certa contra o devedor solvente possua o procedimento mais minuciosamente regulado na lei, uma vez que é a espécie de execução mais usual. Há uma tendência em dizer que esse é um procedimento comum, o que, contudo, não é correto, já que ele é um procedimento específico, previsto para a execução das prestações pecuniárias, ou seja, daquelas que impõem o pagamento de uma importância em dinheiro. Atualmente, boa parte da atividade executória está embutida na disciplina do processo de conhecimento, através do chamado cumprimento da sentença e das tutelas específicas (CPC de 1973, arts. 475-I a 475-R, 461 e 461-A; CPC de 2015, arts. 497, 498, 513 a 538). Na tutela cautelar, que no Código de 1973 está regulado no Livro III (arts. 796 a 889), há um procedimento cautelar comum e alguns procedimentos cautelares específicos; o primeiro está regulado nos artigos 801 a 812 e os demais nos artigos 813 a 887. São exemplos de medidas cautelares que possuem procedimentos específicos: o arresto (arts. 813 a 821); o sequestro (arts. 822 a 825); a busca e apreensão (arts. 839 a 843); os alimentos provisionais (arts 852 a 854); o protesto, as notificações e as interpelações (arts. 867 a 873); a produção antecipada de provas (arts. 846 a 851); a justificação (arts. 861 a 866); a posse em nome de nascituro (arts. 877 e 878) etc. O Código de 2015 regulou a tutela cautelar no âmbito do que denominou de
tutela provisória, abrangendo a tutela da urgência e a tutela da evidência, no Livro V da sua Parte Geral, desdobrado em três títulos, respectivamente sobre as disposições gerais, a tutela da urgência e a tutela da evidência (arts. 294 a 311). O título II, além de disposições gerais sobre a tutela da urgência, antecipada ou cautelar, subdivide-se em dois capítulos que disciplinam os procedimentos da tutela antecipada antecedente e da tutela cautelar antecedente. Procedimentos cautelares específicos previstos no Código de 1973 foram simplesmente previstos no artigo 301 (arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem), não tendo mais um procedimento próprio, ou foram disciplinados na Parte Especial do novo Código, com regras procedimentais próprias, como a produção antecipada da prova, o arrolamento e a justificação (arts. 381 a 383), e a exibição de documento ou coisa (arts. 396 a 404) no capítulo das provas, a homologação do penhor legal no título III sobre os procedimentos especiais do Livro I da Parte Especial (arts. 703 a 706), as notificações, interpelações e protestos no capítulo dos procedimentos de jurisdição voluntária (arts. 726 a 729). A disciplina de procedimentos ou a menção a providências nitidamente cautelares também se encontram, entre outros, nos artigos seguintes: 495, § 1º, inciso II, e 828 sobre o arresto; 740, § 1º, sobre o arrolamento; 536, §§ 1º e 2º, 538, 625 e 806, § 2º, sobre a busca e apreensão; 83, 300, § 1º, 337, inciso XII, 520, inciso IV, 521, 525, § 10, 559, 641, § 2º, 678, parágrafo único, 704, inciso IV, 708, § 3º, 840, inciso III, 895, § 1º, 897, 903, § 1º, 917, § 6º, e 919, § 1º, sobre a caução; 77, inciso VI e § 7º, sobre o atentado; 707 a 711 sobre a regulação de avaria grossa; e 766 a 770 sobre a ratificação dos protestos marítimos e dos processos testemunháveis formados a bordo. Salvo naquilo em que essas providências possuem regras próprias enunciadas nesses e em outros dispositivos, ou em que a sua própria natureza o impeça, a elas devem aplicar-se as regras constantes dos artigos 294 a 311, sobre a tutela provisória da urgência ou da evidência, como regras gerais aplicáveis a todas as hipóteses de tutela provisória e, não sendo antecedentes ou não tendo instrumentalidade imediata, estarão absorvidas nos procedimentos das causas a que estiverem vinculadas. A jurisdição voluntária também possui um procedimento comum, regulado nos artigos 1.103 a 1.112 do Código de 1973 e nos artigos 719 a 725 do Código de 2015. Os artigos 1.112 do Código de 1973 e 725 do Código de 2015 enumeram, de maneira não exaustiva, algumas dessas causas que serão submetidas ao procedimento comum da jurisdição voluntária, como, por exemplo, os pedidos
de emancipação, sub-rogação, alienação de quinhão em coisa comum etc. Em seguida, os dois Códigos regulam uma série de procedimentos especiais, tais como os das alienações judiciais, do divórcio e da separação consensual, da nomeação e remoção de tutores e curadores e da interdição. Cumpre lembrar que os procedimentos comuns, seja no processo de conhecimento, seja na jurisdição voluntária, seja na tutela da urgência, não são aplicados apenas às causas que não possuam um procedimento especial, mas também se aplicam subsidiariamente às próprias causas que tenham procedimentos especiais, justamente naquilo em que esses forem omissos, porque há uma tendência moderna na regulação legislativa dos procedimentos especiais no sentido de não serem disciplinados por inteiro, mas apenas naquilo que tenham de especial em relação ao procedimento comum. Tomemos como exemplo uma ação possessória, regulada nos artigos 920 a 933 do Código de 1973 e nos artigos 554 a 568 do Código de 2015, ou seja, respectivamente, em apenas catorze ou quinze artigos. Tudo aquilo que não é tratado nesses poucos dispositivos especiais é regido pelas regras do procedimento ordinário ou comum, que possuem em torno de duzentos artigos. No Código de 1973, no âmbito do processo de conhecimento, o procedimento básico é o ordinário, porque o próprio procedimento sumário – que também é chamado de comum – é regido pelo Código em apenas seis artigos (arts. 275 a 281), de modo que o procedimento ordinário é também subsidiário em relação ao procedimento sumário, embora a lei denomine a ambos de procedimentos comuns. O Código de 1973, diversamente do que ocorre com o Código Civil e com o Código de 2015, não possui uma parte geral. Em realidade, as regras do procedimento ordinário do Livro I do Código de 1973 fazem as vezes de parte geral do ordenamento processual civil, já que aplicáveis subsidiariamente ao procedimento sumário do mesmo Livro, aos procedimentos especiais de jurisdição contenciosa, aos procedimentos comum e especiais de jurisdição voluntária (Livro IV), aos procedimentos cautelares, comum e especiais (Livro III) e aos diversos procedimentos especiais do processo de execução (Livro II). No Código de 2015, embora exista uma parte geral de mais de trezentos artigos,
o procedimento comum está regulado na parte especial e as suas regras, com as da parte geral, se aplicam subsidiariamente a todos os demais procedimentos (art. 318). No Código de 1973, sem parte geral, há uma sucessiva subsidiariedade entre os seus procedimentos e os respectivos dispositivos legais. Por exemplo: suponhase que o autor necessite redigir a petição inicial de uma causa que seguirá determinado procedimento especial de jurisdição voluntária. Após consultar os dispositivos específicos do referido procedimento especial, deve o autor buscar as normas do procedimento comum da jurisdição voluntária (CPC, arts. 1.103 a 1.112) e, por fim, valer-se dos dispositivos que regulam a petição inicial no procedimento comum ordinário do processo de conhecimento, em especial o seu artigo 282. No Código de 2015, mesmo com uma parte geral, não é diferente. Como já afirmamos, há uma tendência legislativa, na disciplina dos procedimentos especiais, no sentido de disporem apenas sobre aquilo que eles têm de peculiar em relação ao procedimento comum. Entretanto, há uma ação que segue um rito especial disciplinado quase exaustivamente pela lei, que é o inventário; a lei regula praticamente todos os atos do inventário (CPC de 1973, arts. 982 a 1.045; CPC de 2015, arts. 610 a 667). A questão ganha relevo quando considerado o disposto nos artigos 292, § 2º, do Código de 1973 e 327, § 2º, do Código de 2015, que estabelecem regras sobre a cumulação objetiva de ações, vale dizer, sobre a cumulação de pedidos. Esses dispositivos enunciam que podem ser cumulados pedidos sujeitos a procedimentos diversos, quando o autor optar pelo procedimento ordinário ou comum. Ocorre que, como o procedimento do inventário se encontra regulado de forma completa pela lei, ele não poderá ser cumulado com outra ação, constituindo exceção à regra comentada acima. É o que se verifica, em geral, com as ações universais, como o inventário, a falência, a insolvência civil, que têm procedimentos minuciosamente regulados em lei, não podendo ser cumuladas com outras ações, mas, obviamente, se aplicam subsidiariamente a elas, por exemplo, muitas regras do procedimento ordinário ou comum, como as relativas às provas. A subordinação dos procedimentos às regras legais é um pressuposto processual
objetivo; mas será que tal subordinação é rígida? Não pode haver um procedimento livre, ditado pelo juiz? Será que o juiz não pode descumprir nenhuma das regras do procedimento? Essa é uma questão complexa, que tangenciamos no estudo dos pressupostos processuais, ocasião em que preconizamos o respeito ao procedimento legal com certa flexibilidade, para que o meio, o processo, não seja um obstáculo à consecução da finalidade do processo, que é a justa apreciação do mérito da causa, com o pleno respeito às garantias constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. No âmbito dos juizados especiais, por exemplo, a Lei n. 9.099/95 (art. 2º) se refere ao princípio da informalidade. Será que esse princípio significa a adoção de um procedimento livre? O juiz poderá estabelecer a sequência dos atos que lhe parecer melhor? Em alguns países, como a Alemanha, existem causas de procedimento livre, em que o juiz fixa qual será a sequência dos atos. Toda vez em que o legislador engendra um procedimento concentrado demais, o procedimento acaba se tornando livre. Isso porque alguns procedimentos são concentrados de tal forma que impedem a cognição satisfatória do juiz e o respeito às garantias do contraditório e da ampla defesa, por pressuporem a realização de inúmeros atos simultaneamente ou numa única audiência. É o que ocorre, por exemplo, na ação especial de alimentos (Lei n. 5.478/68, arts. 5º a 12), em que o réu é citado para defender-se em audiência, na qual será tentada a conciliação, serão colhidas as provas, realizados os debates e proferida a sentença. Se o autor requerer prazo para falar sobre os documentos que o réu juntou à contestação, o que o juiz deverá deferir, terá de remarcar a continuação da audiência para outro dia ou seguir com a tentativa de conciliação e a instrução da causa, remarcando a audiência para os debates e a sentença em outro dia, ou, ainda, fixar prazos sucessivos para alegações finais escritas, seguindo-se a sentença escrita. Diante da impossibilidade de atender-se ao procedimento previsto pela lei, acaba o juiz por criar um procedimento próprio, em que procura garantir às partes o contraditório e a paridade de armas, através da estipulação de uma nova série de atos, que não está definida na lei, a ser praticada em prazos razoáveis. Fenômeno semelhante ocorre no âmbito da Justiça do Trabalho, uma vez que o procedimento previsto na Consolidação das Leis do Trabalho prevê uma
audiência única (arts. 843 a 852), em que se darão a tentativa de conciliação, a defesa do réu, a produção de provas e a prolação da sentença. Penso que essa situação – de criação de um procedimento alternativo pelo juiz – não é desejável, pois impede que as partes arquitetem a defesa dos seus interesses, já que para planejá-la é necessário que haja uma previsão da sequência dos atos do processo e dos seus possíveis desdobramentos. A mudança de rumo do processo retira essa previsibilidade e pode causar prejuízo grave à ampla defesa das partes. Então, o procedimento legal bem-estruturado, seja sumário ou de maior amplitude, deve permitir às partes essa previsibilidade. As partes fazem jus, enquanto garantia fundamental, a um processo que adote um procedimento legal, flexível e previsível. O procedimento deve ser legal, vale dizer, estabelecido em lei, para que todos os juízes sigam as mesmas regras. Não tem sentido cada juiz ter o seu próprio código de processo, sendo que a criação de normas procedimentais pelo juiz ao arrepio da lei constitui uma medida de arbítrio. Logo, o procedimento legal deve ser observado, mas não de maneira tão formalista a ponto de prejudicar outras garantias fundamentais do processo, como o contraditório participativo e a ampla defesa. O juiz pode e deve flexibilizar moderadamente o procedimento, por exemplo, quanto à rigidez dos prazos, quanto à forma de equacionar um incidente da maneira mais adequada possível para não prejudicar a continuidade do processo. Como já temos observado, o Código de 2015 avançou algumas disposições no sentido de uma maior flexibilidade nos procedimentos que, de qualquer modo, deverão ser objeto de decisões judiciais solidamente fundamentadas, justamente para evitar que se tornem instrumentos de arbítrio, como nos seguintes dispositivos: no artigo 139, inciso VI, que permite que o juiz dilate os prazos processuais e altere a ordem de produção as provas; no artigo 190, que admite as convenções processuais sobre o procedimento; no artigo 357, § 2º, que faculta às partes a delimitação consensual das questões de fato e de direito; e no artigo 471, que prevê a escolha consensual do perito pelas partes. 17.2.1. Procedimento comum ordinário do Código de 1973
O procedimento ordinário do processo de conhecimento de jurisdição contenciosa é caracterizado pela clara separação entre as suas fases e pela amplitude de formas e de prazos processuais. Desenvolve-se em três fases bem distintas, embora não separadas de modo estanque, quais sejam: as fases postulatória, instrutória e decisória. A fase postulatória inicia-se com a propositura da petição inicial e termina normalmente com resposta do réu ou o decurso do prazo para essa resposta. É nessa fase em que as partes irão propor as questões de fato e de direito sobre as quais o juiz deverá se pronunciar na sentença, sendo que as questões de direito comportam tanto as de índole processual como as de natureza material. Na petição inicial, o autor apresenta a demanda, formulando o pedido, narrando a causa de pedir, indicando o réu, apresentando provas documentais e propondo a produção de outras provas (CPC, art. 282). Na contestação, o réu se defende do pedido do autor, alegando questões preliminares, entre as quais as relativas à falta de pressupostos processuais e de condições da ação (CPC, art. 301), negando o direito material ou os fatos que o autor alegou, invocando a titularidade de um direito que inibe o direito material do seu adversário, além de juntar documentos e propor outras provas (art. 300). Decorrido o prazo de contestação, o autor deve ser intimado para manifestar-se em réplica sobre as preliminares processuais, sobre as questões de direito novas que o réu suscitou, sobre os documentos que o réu juntou ao processo e sobre as provas que requereu. No direito brasileiro, essa é uma fase muito rígida, porque em razão da existência do princípio da eventualidade (CPC, arts. 300, 302 e 303) – que impõe a concentração das matérias de defesa na contestação –, a partir da citação do réu, o autor não pode mais modificar o pedido nem a causa de pedir (art. 264 do CPC), salvo com a concordância do seu adversário. Da mesma forma, depois de decorrido o prazo para a defesa do réu, o autor não pode mais desistir unilateralmente da ação (art. 267, § 4º, do CPC). Para o réu essa fase é ainda mais rígida, porque lhe impõe o ônus de contestar precisamente todos os fatos trazidos pelo autor, sob pena de serem presumidos verdadeiros os não impugnados (art. 302 do CPC). Ele somente poderá aduzir outros argumentos de defesa, excepcionalmente, nas hipóteses do artigo 303 do Código de Processo Civil, que contempla os casos de direito superveniente e as
questões de ordem pública, que podem ser examinadas de ofício pelo juiz ou arguidas pelas partes a qualquer tempo. Assim, a primeira etapa do procedimento ordinário é uma fase de postulações, embora, hoje, com a tutela antecipada (art. 273), possam ser adotados nessa fase também importantes atos decisórios sobre o próprio direito material das partes. Em seguida, no procedimento ordinário, adentra-se à segunda fase, que é a fase instrutória ou probatória. É nessa fase que serão produzidas as provas dos fatos relevantes e controvertidos, para que o juiz possa formar a sua convicção sobre a veracidade dos fatos alegados pelo autor e pelo réu. Na verdade, essa fase probatória começa com o despacho saneador, previsto no artigo 331, §§ 2º e 3º. No entanto, entre a fase postulatória – que termina com a resposta – e o despacho saneador há uma série de atos que compõem quase uma fase autônoma, as chamadas providências preliminares, podendo inclusive culminar com o julgamento conforme o estado do processo. As providências preliminares são um conjunto de atos do juiz e das partes após a fase postulatória que visam a completar o contraditório, a regularizar o processo e a preparar uma decisão de conteúdo variável, que é o julgamento conforme o estado do processo. Verificando a necessidade de alguma regularização ou esclarecimento, o juiz os determinará (arts. 324 e 327). Se o juiz esbarrar numa preliminar intransponível, ele extingue o processo sem resolução do mérito (art. 267). Assim, nesse caso, o processo não avança para a fase instrutória. Por outro lado, se o processo estiver todo em ordem e não houver necessidade de produção de provas orais em audiência, o magistrado julgará desde logo o seu mérito, através do chamado julgamento antecipado da lide. Por último, se o processo estiver em ordem, mas houver necessidade de produção de provas, será designada normalmente uma audiência preliminar de conciliação (art. 331); se ela não resultar na conciliação das partes, o juiz proferirá o despacho saneador definindo as provas, fixando os pontos controvertidos, e o processo ingressará na sua segunda fase, que é a fase probatória.
Se a conciliação for bem-sucedida, ou, ainda, se verificada após a audiência preliminar a existência de algum vício intransponível ou a desnecessidade de provas, poderá o juiz extinguir o processo sem resolução de mérito ou julgar antecipadamente a lide, embora não o tenha feito antes dessa audiência. Mesmo que vislumbre a necessidade de provas, pode o juiz deixar de realizar a audiência preliminar de conciliação, se o litígio não comportar solução amigável ou se estiver convencido de que o acordo é improvável (art. 331, § 3º). Em minha opinião, a utilização desse dispositivo, abundantemente invocado por muitos juízes para contornar desnecessário retardamento do processo com a designação dessa audiência, deveria ser evitada, esforçando-se o magistrado em ajudar as partes a encontrarem uma solução amigável, mesmo quando o direito não comportasse transação ou quando elas se encontrassem em posições de radical hostilidade. Mas isso exige um juiz que se disponha a abandonar o comodismo burocrático de esperar que as partes lhe tragam uma proposta de acordo, para tornar-se um provocador ativo da harmonização dos interesses em conflito. Na fase probatória, o juiz colherá as provas que não foram trazidas na primeira fase, como a perícia e os depoimentos orais das partes e das testemunhas. Normalmente, o juiz na decisão saneadora, além de deferir as provas, já designa audiência, mas isso se houver necessidade de produção de provas orais, como a prova testemunhal ou o depoimento pessoal das partes. Havendo o deferimento da prova oral, portanto, deve o juiz designar audiência de instrução e julgamento. No nosso sistema processual, a prova pericial não se produz preponderantemente na audiência; ela é predominantemente escrita, antecedendo a audiência final, embora, atualmente, desde a reforma do capítulo sobre a prova pericial com a edição da Lei n. 8.455/92, tenha sido criado, por influência do direito anglo-americano, o depoimento pericial em audiência (CPC, art. 435). Esse depoimento, contudo, não é usual, não faz parte da nossa cultura processual. Como vimos no primeiro capítulo deste livro, o processo é um fenômeno cultural e, muitas vezes, a lei quer mudar determinada cultura arraigada na consciência dos operadores do processo, mas não consegue fazê-lo nos moldes previstos.
Na audiência de instrução e julgamento, o juiz tentará novamente promover a conciliação das partes (art. 448). Não sendo possível, passará a colher as provas orais, como o eventual depoimento do perito, os depoimentos pessoais das partes e os depoimentos das testemunhas (art. 452). Em seguida, serão oferecidas as alegações finais orais dos advogados (art. 454), que podem ser substituídas por memoriais escritos (art. 454, § 3º). Quando houver a necessidade de realização da audiência de instrução e julgamento, com o fim desta estará encerrada também a fase probatória. A fase decisória constitui-se de apenas um ato: a prolação da sentença, oralmente na própria audiência ou por escrito em dez dias (art. 456). O ideal seria que o juiz estivesse em condições de proferir a sentença na própria audiência, porque em nenhum outro momento ele estará tão bem-instruído do conteúdo do processo quanto no final da audiência. É nesse momento posterior à oitiva das partes, das testemunhas, dos advogados, em que o juiz pode apreciar melhor os fatos e o direito a ele submetidos pelas partes. Entretanto, a complexidade da causa e o número elevado de audiências que o juiz tem de realizar cotidianamente acabam por tornar rotineira a não prolação das sentenças em audiência. É assim que, basicamente, se desenvolve o procedimento ordinário. Cappelletti, nos estudos que fez sobre direito comparado, criticou muito o procedimento ordinário usualmente adotado na América Latina, pela excessiva fragmentação dos atos e fases que o compõem2. É um fenômeno encontrado na América Latina como um todo, e não apenas no Brasil, que faz parte da cultura processual que herdamos da tradição ibérica, de um procedimento ordinário muito compartimentado e, ao mesmo tempo, muito centralizado nas mãos do juiz, que, em todo momento, está sendo provocado a proferir pequenas decisões que vão impulsionando o processo lentamente em direção ao seu fim e que, muitas vezes, suscitam questões que o desviam da busca desse fim, retardando indefinidamente o seu desfecho. O nosso procedimento ordinário se assemelha a uma longa novela, com vários episódios, e, muitas vezes, em lugar de andar para frente, o processo anda para o lado, ou até mesmo volta a cenas passadas, principalmente em razão da falta de uma leitura atenta dos processos pelos juízes. Para evitar essa falta de objetividade, o direito americano e o direito inglês instituíram, no final do século XX, o
chamado case management system, que obriga o juiz a planejar as etapas do procedimento desde o início do processo, prevendo todo o seu desenvolvimento e a sua duração temporal, assumindo, de fato, a sua função de condutor do processo (CPC, art. 125). Consequência dessa excessiva fragmentação do nosso procedimento ordinário e da excessiva demora em chegar à audiência final foi a adoção, pelo Código de 1973, da ampla recorribilidade de todas as decisões interlocutórias, desaconselhada pela doutrina, especialmente por Chiovenda, rendendo-se o legislador à prática viciada das partes e dos advogados de sempre procurarem algum meio de provocar desde logo o reexame pela instância superior das decisões interlocutórias, mesmo quando a lei não previa um recurso específico, através de sucedâneos recursais, como o mandado de segurança e a reclamação ou correição parcial. Além do retardamento do processo, causado pela excessiva fragmentação do procedimento ordinário, esta produz um efeito extremamente pernicioso no comportamento do juiz, porque ele passa a adotar na condução do processo uma postura burocrática, decidindo as questões que vão surgindo aos pedacinhos e sem um exame mais profundo da sua correlação com a causa como um todo, em cujo equacionamento ele somente vai pensar no momento de proferir a sentença final, após uma longa trajetória de questiúnculas bem ou mal resolvidas em um sem-número de decisões intermediárias. Essa excessiva fragmentação do procedimento ordinário, portanto, é extremamente prejudicial à celeridade do processo e estimuladora da postura burocrática ou indiferente dos juízes em relação aos dramas humanos, aos problemas reais das pessoas que se utilizam dos serviços judiciários. 17.2.2. Procedimento comum sumário do Código de 1973 A criação de procedimentos sumários, ao lado dos ordinários, para resolver com mais rapidez e menos custo causas de menor complexidade, é uma prática que provém da Idade Média, fruto especialmente das exigências do comércio3 e que tem sido utilizada com muito proveito por muitos sistemas processuais. O Processo Civil brasileiro contemporâneo não fugiu à regra, pois o próprio Código de 1973 regula um procedimento que também considera comum, a que
denomina procedimento sumário, e, em Leis extravagantes (Leis n. 9.099/95, n. 10.259/2001 e n. 12.153/2009), instituiu os chamados juizados especiais, que adotam um procedimento que poderíamos considerar sumaríssimo, em relação aos do Código. Dos juizados especiais trataremos mais adiante, juntamente com os outros procedimentos especiais. Na evolução do Direito Processual tem-se verificado com alguma frequência que os procedimentos sumários sejam mais utilizados do que os ordinários e, até mesmo, que sejam preferidos pelas partes e pelos advogados, pelas vantagens de simplicidade, custo e rapidez, que em geral apresentam. Por outro lado, os procedimentos sumários têm sido utilizados com grande eficácia em muitos ordenamentos como procedimentos de cognição não exauriente, limitada à produção de determinadas provas, para assegurar a sua economicidade e, ao mesmo tempo, não tolher ao eventual prejudicado pela redução cognitiva a possibilidade de, em outro processo de cognição mais ampla, reverter a decisão desfavorável. O direito brasileiro não tem sabido utilizar com proveito a técnica da sumarização dos procedimentos. O nosso procedimento sumário, regulado nos artigos 275 a 281 do Código de Processo Civil, é, tal como o ordinário, um procedimento de cognição exaustiva e, sob o aspecto da mera ritualidade, muito mais complicado e muito mais inçado de incertezas do que o procedimento ordinário. O nosso procedimento sumário tem por objeto as causas de valor não superior a 60 salários mínimos e outras, em razão da matéria, enumeradas no artigo 275, vedada a sua utilização nas causas relativas ao estado e à capacidade das pessoas (parágrafo único). Oriundo da Lei n. 9.245/95, que procurou atender às críticas que anteriormente se faziam ao procedimento que era então denominado “sumaríssimo”, o agora sumário conserva o mesmo defeito do anterior, de pretender resolver rapidamente, para atender a necessidades sociais, causas que são intrinsecamente complexas, como as ações de indenização por acidentes de tráfego (art. 275, inc. II, letra d). Essa complexidade se agravou com a nova disposição da Lei n. 11.232/2005, que exige que nesses procedimentos o valor da indenização seja arbitrado desde logo (CPC, art. 475-A, § 3º). É verdade que o § 5º do artigo 276 permite que o juiz converta o procedimento sumário em ordinário “quando houver necessidade de prova técnica de maior complexidade”, o que, se levado a
sério, poderá sempre inviabilizar a adoção do procedimento sumário nessas ações. O procedimento sumário brasileiro exige que o autor, em sua petição inicial, arrole desde logo testemunhas e formule quesitos para uma hipotética perícia, cuja necessidade, em geral, não é ainda conhecida (art. 276). Citado o réu, poderá ficar o autor meses sem saber quais serão os seus argumentos de defesa, porque ele somente deverá oferecê-la, por escrito ou oralmente, na audiência de conciliação que vier a ser designada (arts. 277 e 278). Se o réu, na audiência, impugnar o valor da causa ou a natureza da demanda, o que poderá afetar a validade do procedimento adotado, o juiz terá de decidir essas questões “de plano” na própria audiência de conciliação (art. 275, § 4º), o que significa que, se o autor necessitar de prazo para se manifestar sobre elas ou sobre documentos que as instruam, o juiz, em obediência às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, deverá adiar a audiência de conciliação ou então começar a improvisar um procedimento à margem do procedimento legal. O artigo 277, § 2º, aplica o efeito substancial da revelia (art. 319), qual seja, a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor, em consequência do não comparecimento do réu à audiência de conciliação, mesmo que este tenha contestado a ação. Há julgados, a meu ver, corretos, que procuram harmonizar a aparente discrepância entre esses dispositivos, somente aplicando a referida presunção, se o réu não contestar o pedido do autor. Frustrada a conciliação e não havendo necessidade de provas, ou porque o réu não apresentou defesa, ou porque a controvérsia não apresenta aspectos fáticos a serem elucidados, o juiz poderá dar sentença na própria audiência de conciliação (art. 278, § 2º). Essa regra deverá ser harmonizada com as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa porque, se o réu tiver alegado defesas indiretas, como preliminares processuais ou exceções substanciais, isto é, novas questões de direito, ou, ainda, formulado pedido contraposto (art. 278, § 1º), ao autor deverá ser assegurado prazo razoável para se manifestar. Havendo necessidade de produção de provas, pericial ou oral, o juiz as deferirá, designando, se necessário, nova audiência. Nesse caso, não prevê a lei em que
momento e de que modo o juiz saneará o processo. Se o fará na própria audiência ou em despacho ulterior escrito. Parece que o legislador quis que o juiz resolvesse todas as questões prévias porventura pendentes na própria audiência de conciliação, mas isso pode ser impossível, se o autor tiver de falar sobre documentos anexados ou sobre novas questões de direito suscitadas pelo réu na sua defesa. Para assegurar a celeridade do processo, o artigo 280 proíbe no procedimento sumário várias modalidades de cumulação de ações, ressalvando apenas a assistência e a intervenção fundada em contrato de seguro. Acho que houve exagero do legislador, pois a impossibilidade de propor incidentalmente algumas outras modalidades, como a denunciação da lide, pode frustrar profundamente a eficácia de eventual ação regressiva que o réu tenha de propor posteriormente contra terceiro, para ressarcir-se do que tiver de pagar ao autor em ação de procedimento sumário. Repito, aqui, o que já sustentei anteriormente – opinião que se reforça diante dessa absoluta incerteza sobre a provável economicidade do procedimento sumário –, que considero plenamente possível ao autor, nas causas enumeradas no artigo 275, a opção pelo procedimento ordinário, salvo se o réu, que vier a discordar dessa opção, vier a demonstrar efetivo prejuízo decorrente da adoção do rito ordinário, o que me parece absolutamente improvável. Embora não se conheçam dados estatísticos, a experiência e toda essa série de dificuldades apontadas têm revelado ser uma utopia imaginar que uma causa de procedimento sumário seja mais simples, tenha um processamento mais rápido e menos custoso do que outra de procedimento ordinário. 17.2.3. Procedimento comum do Código de 2015 O Código de 2015 desistiu de tentar engendrar um procedimento sumário efetivamente mais rápido e simples, mesmo porque boa parte da demanda de um mecanismo desse tipo é atendida pelos chamados juizados especiais, de que trataremos no 2º volume desta obra, e decidiu extingui-lo, instituindo apenas no processo de conhecimento um procedimento comum, correspondente e em grande parte semelhante ao procedimento ordinário do Código de 1973.
Seguindo o mesmo roteiro dos comentários feitos ao procedimento ordinário do Código de 1973, também o procedimento comum do Código de 2015 se caracteriza pela clara separação entre as fases postulatória, instrutória e decisória e pela amplitude de formas e de prazos. A fase postulatória, em que as partes propõem as questões de fato e direito, inicia-se com a petição inicial e termina normalmente com a contestação do réu ou o decurso do prazo para oferecê-la. A petição inicial (art. 319) tem os mesmos requisitos do artigo 282 do Código de 1973, com duas diferenças. Não mais exige o requerimento de citação do réu, mas impõe ao autor a opção pela realização ou não de audiência de conciliação ou de mediação. Essa audiência não se realizará em duas hipóteses: se o autor manifestar a opção pela sua não realização e com essa opção concordar o réu (art. 334, § 5º); ou por não se tratar de causa que permita a autocomposição. O Código não esclarece quais seriam as causas desta última espécie. A questão suscitou muita polêmica na interpretação do artigo 331 do Código de 1973 que, afinal, com a Lei n. 10.444/2002, acabou consagrando a fórmula “causa sobre direitos que admitam transação”. Em geral, são causas sobre direitos patrimoniais de caráter privado, limite estabelecido pelo Código Civil para o contrato de transação (art. 841), mais as causas de direito de família, mesmo que a controvérsia não seja patrimonial, embora a autocomposição possa abranger os próprios litígios dos entes públicos, se os seus representantes judiciais estiverem autorizados a celebrá-la e quaisquer outras causas, em que o acordo se forme em torno da continuidade ou do desfecho da relação processual ou com um ato de disposição unilateral de sujeito privado que possa praticá-lo, como na desistência da ação, na renúncia ao direito pelo autor, no reconhecimento do pedido pelo réu ou na suspensão convencional do processo. Apesar dessa amplitude, caso mantida a sistemática recusa dos entes públicos de celebrarem uma transação e para não retardar nas causas em que sejam réus o andamento do processo, acabarão estas por incluir-se no artigo 334, § 4º, inciso II. Então, se não for caso de autocomposição, o réu será citado para oferecer contestação (art. 335, inc. I). Se for caso de autocomposição, mas o autor manifestar opção por não realizá-la, o réu será citado para a audiência de conciliação, que será dispensada se o réu no mesmo sentido se pronunciar,
correndo a partir de então o prazo para a contestação (art. 335, inc. II). Sendo o caso de autocomposição e não havendo opção do autor para dispensá-la, também será o réu citado para participar da audiência de conciliação ou de mediação. O despacho do juiz ordenando a citação do réu deverá anteceder trinta dias da data da audiência designada e vinte dias da comprovação nos autos da citação do réu (art. 334). Portanto, o Código de 2015 antecipa a conciliação para antes da defesa do réu, o que me parece prematuro, porque este ainda não pôs the cards on the table, não fez alegações, não propôs provas, não têm ainda as partes como avaliar as suas perspectivas de êxito na causa. A audiência de conciliação ou de mediação poderá desdobrar-se em várias sessões, que poderão retardar o processo até por dois meses (art. 334, § 2º). O Código recomenda que os tribunais criem centros judiciários de solução de conflitos, desvinculados dos juízos, realizando-se perante conciliadores ou mediadores que integram esses centros, ou perante câmaras privadas neles credenciadas, as audiências de conciliação ou de mediação (arts. 165 a 175). Onde não houver centros estruturados, caberá ao juiz da causa conduzir a conciliação. Conforme já expus anteriormente (v. item 1.3.4), embora a lei sempre se refira alternativamente à conciliação ou à mediação, esta última tem mais sentido antes que um litígio sobre um determinado fato ou a respeito de um determinado direito tenha se configurado plenamente. Ela é normalmente eficaz antes ou fora de um processo judicial, quando a relação jurídica entre as partes se deteriorou, mas ainda não se delineou com precisão uma disputa concreta em torno de uma pretensão de direito material. No processo judicial, o mecanismo mais apropriado é a conciliação, em que o interlocutor não se limita a estimular a autocomposição dos interesses das partes, mas direciona a sua intervenção na proposição de solução concreta para a pretensão formulada em juízo, a ser materializada em um acordo que necessariamente terá de produzir efeitos em relação ao andamento ou ao desfecho do processo em curso e, por isso, terá de ser submetido à homologação do juiz, a quem cabe a direção do processo. Entretanto, nada impede que, encetada a conciliação, surja a conveniência de uma mediação mais ampla, que extravase os limites do litígio, daí a possibilidade de concretizar-se a autocomposição por uma ou outra via.
Frustrada a conciliação ou a mediação, terá o réu de apresentar a sua contestação, defendendo-se do pedido do autor, alegando questões preliminares (art. 337), juntando documentos (art. 434) e propondo provas (art. 336). Ao prazo de contestação segue-se o de réplica do autor sobre preliminares processuais, defesas indiretas de mérito ou para manifestar-se sobre documentos (arts. 350, 351 e 437). Todas as matérias de defesa devem se concentrar na contestação, e desaparece a arguição em petição à parte da incompetência territorial. Os impedimentos e motivos de suspeição são objetos de petição avulsa, mas sem o nome de exceção (arts. 146 e 148). Citado o réu, o autor não pode mais alterar o pedido ou a causa de pedir (art. 329, inc. I), salvo com a concordância daquele. A desistência unilateral da ação tem por limite o efetivo oferecimento da contestação pelo réu (art. 485, § 4º) e não mais o simples decurso do prazo para a resposta (CPC de 1973, art. 267, § 4º). O réu tem o ônus da impugnação específica dos fatos (art. 341), podendo, após a contestação, aduzir novos argumentos de defesa somente se relativas a direito superveniente, a matérias de ordem pública e outras que possam ser arguidas a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição. Na fase postulatória podem incidir medidas de antecipação de tutela de urgência ou de evidência (art. 294, parágrafo único). Segue-se o julgamento conforme o estado do processo, que acrescenta, ao lado da extinção do processo, do julgamento antecipado do mérito e do despacho saneador, o julgamento antecipado parcial do mérito (art. 356). A fase instrutória inicia-se com o saneamento do processo (art. 357) em que, além da solução das questões preliminares, da fixação dos pontos controvertidos de fato e de direito e do deferimento das provas, é o momento apropriado para a distribuição do ônus da prova, de acordo com o critério da carga dinâmica (arts. 357, inc. III, e 373). Deferida a prova testemunhal, o rol de testemunhas será apresentado em prazo
comum não superior a quinze dias da intimação do saneamento (art. 357, § 4º). Deferida a prova pericial, assim como em outros casos em que haja acordo entre as partes, o juiz poderá fixar calendário para a prática dos atos subsequentes (arts. 357, § 8º, e 191). A audiência final de instrução e julgamento será designada se houver necessidade de produção de prova oral. A prova pericial será preponderantemente produzida antes dessa audiência, salvo se for deferida “prova técnica simplificada”, consistente no simples depoimento do perito na audiência (art. 464, §§ 2º a 4º). Na audiência final, o juiz tentará a conciliação (art. 359), colherá as provas orais, caso aquela ou qualquer outra modalidade de solução consensual se frustre; em seguida, terão os patronos das partes a palavra para as sustentações orais, que poderão ser substituídas por memoriais escritos em prazos sucessivos (art. 364), seguindo-se a sentença, proferida no ato ou no prazo de trinta dias (arts. 366 e 367). Continua o procedimento comum a ser muito fragmentado, o que o Código de 2015 tenta coibir com a limitação da recorribilidade das decisões interlocutórias (art. 1.015), cujo sucesso dependerá, a meu ver, de vários fatores, entre os quais o comportamento dos próprios juízes que evitem a multiplicação desmedida de decisões, procurando concentrar a apreciação de várias questões de uma só vez e procurando oferecer fundamentos mais sólidos às decisões que proferirem; dependerá igualmente da parcimônia dos tribunais de segundo grau na admissão dos sucedâneos recursais, como a reclamação ou o mandado de segurança e na concessão de efeito suspensivo aos agravos de instrumento; e, sem dúvida, também da celeridade com que o processo se desenvolva e com que a apelação contra a sentença final seja julgada. Enfim, resta augurar que todos esses fatores se conjuguem e que possamos ter processos menos demorados, com menos incidentes e com mais qualidade. ________ 1 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil… p. 103.
2
CAPPELLETTI, Mauro. Procédure orale et procédure écrite. Milano: Giuffrè, 1971. 3 FAIRÉN GUILLÉN, Victor. Lo sumario y lo plenario en los procesos civiles
y mercantiles españoles: pasado y presente. Madrid: Fundación Registral, 2006.
Em sentido amplo, despesas processuais são todas as espécies de gastos gerados pela formação e desenvolvimento do processo e pela prática de seus diversos atos, que têm de ser cobertos ou supridos por algum tipo de receita. A lei processual não provê ao custeio de todas essas despesas, porque muitas delas são geradas por atividades das partes fora do processo, em volume variável de acordo com a sua vontade e as suas disponibilidades financeiras, como a contratação deste ou daquele advogado, a utilização de meios de transporte e de comunicação mais caros ou mais baratos para ir em busca de documentos que se encontram em repartições públicas ou em poder de terceiros. Outras são cobertas diretamente pelo próprio Estado, através das receitas oriundas dos impostos gerais, como a criação e investidura dos cargos dos diversos funcionários públicos que têm como atribuição atuarem na qualidade de sujeitos processuais, como os juízes, os serventuários, os procuradores judiciais das pessoas jurídicas de direito público, os membros do Ministério Público e da Defensoria Pública, a manutenção dos equipamentos e das instalações das varas e cartórios, a compra de material de consumo, como papel. Dessas despesas indiretamente geradas pelos processos judiciais a lei processual não se ocupa. As despesas que interessam ao Direito Processual são as geradas in concreto pelos atos efetivamente praticados em cada processo, que normalmente são custeadas pelas respectivas partes, e que a própria lei processual disciplina para atender às seguintes finalidades: facilitar o acesso das partes à justiça em igualdade de condições; assegurar a prática dos atos processuais que o próprio Estado não custeia; punir os sujeitos que descumprirem os seus deveres processuais; compensar modicamente as despesas em que tenha incorrido o vencedor, para que o seu prejuízo com o processo seja o menor possível; fazer recair sobre os cidadãos a responsabilidade pelo custeio do processo na proporção em que dele se utilizam.
18.1. SISTEMAS DE CUSTEIO Os sistemas de custeio das despesas processuais variam muito de um país para outro, por razões muitas vezes de ordem política. Simplificando todas as espécies de sistemas de custeio das despesas processuais, pode-se dizer que,
hipoteticamente, poderiam existir dois regimes extremos, que tratam de modo oposto a questão: o da absoluta gratuidade, em que o Estado arca com todas as despesas, e os usuários do serviço judiciário, ou seja, os jurisdicionados, nada têm de desembolsar; e o do custeio privado, em que todas as despesas necessárias para o funcionamento da máquina judiciária têm de ser custeadas pelas próprias partes, pelos próprios interessados que se utilizam desses serviços. A justiça absolutamente gratuita visa a facilitar o mais amplo acesso à justiça por todos os cidadãos, para que ninguém se sinta tolhido ou inibido de recorrer à justiça em razão dos gastos pecuniários que terá de realizar para poder utilizar os serviços judiciários. Logo, o sistema da ampla gratuidade facilita o acesso à justiça, uma vez que não comporta discriminações de caráter econômico. Em contrapartida, pode estimular perseguições ou o demandismo, pois o litigante não sofre qualquer restrição econômica ao seu ingresso em juízo, nem incorrerá em qualquer prejuízo se perder a causa. O sistema do custeio privado pode tornar-se discriminatório em relação aos pobres ou àqueles que, mesmo estando acima da linha da pobreza, não detenham condições econômicas de arcar com as despesas do processo sem prejuízo para o seu próprio sustento ou de sua família. Entretanto, esse sistema possui uma vantagem: o pagamento ou o ônus de arcar com o custeio da administração da justiça somente recai sobre aqueles que efetivamente dela fazem uso, porque aqueles que nunca fazem uso ou fazem pouquíssimo uso da justiça para ela não contribuirão, nem sequer através dos impostos gerais. Então, os dois sistemas extremos têm vantagens e desvantagens. A gratuidade absoluta tem a vantagem de facilitar o acesso à justiça, mas tem a desvantagem de ser injusta para quem faz pouco ou nenhum uso da justiça, porque, na verdade, obriga todos os cidadãos a contribuírem para a manutenção dos serviços judiciários, além de estimular o demandismo. Já o sistema do custeio privado, por seu turno, tem a vantagem de somente sobrecarregar com esse custo quem efetivamente faz uso da justiça, mas a desvantagem de dificultar o acesso à justiça daqueles que não têm meios de prover ao custeio dessas despesas. O sistema brasileiro apresenta, quanto ao custeio das despesas processuais, variações entre a jurisdição civil e a criminal, entre as jurisdições comuns e as especiais, entre a Justiça Federal e as Justiças de cada um dos Estados e do Distrito Federal. Assim, o sistema adotado no Processo Civil, de um modo geral,
pode ser considerado um sistema misto, em que o Estado custeia quase a totalidade das despesas fixas de funcionamento do Poder Judiciário, como o pagamento da remuneração de juízes e serventuários e a manutenção do funcionamento regular dos órgãos jurisdicionais. A partir do momento em que a administração da justiça foi oficializada, em que os juízes e os serventuários se transformaram em funcionários públicos, o que se consolidou no Brasil somente na segunda metade do século XX, ao Estado cabe incluir no seu orçamento, através da receita oriunda dos impostos gerais, as verbas necessárias ao custeio fixo da administração da justiça e, em especial, ao pagamento da remuneração dos juízes e dos auxiliares da justiça. Contudo, no nosso sistema, os cidadãos que fazem uso dos serviços judiciários devem também dar uma contribuição substancial para esse custeio fixo, que varia de uma organização judiciária para outra, através de tributos que incidem sobre a utilização efetiva desses serviços, como a taxa judiciária e as chamadas custas em sentido estrito. O custeio das despesas variáveis, ou seja, daquelas que não são uniformes, variando de acordo com as necessidades e peculiaridades de cada causa, deve ficar a cargo das respectivas partes interessadas. O nosso sistema – reafirme-se – é um sistema misto. O Estado arca com a maior parte do custeio fixo, através, por exemplo, da manutenção das instalações da justiça, da remuneração dos magistrados e serventuários, cabendo a todos os cidadãos contribuir para esse fim por meio do pagamento de impostos. Além disso, os particulares têm de arcar com o custeio variável das despesas processuais, na medida em que fazem uso da justiça e em que as suas causas necessitam gerar outras despesas próprias e distintas das demais, além de concorrerem parcialmente para o custeio das despesas fixas. Aqueles que, em razão da sua pobreza, não podem contribuir para o custeio das despesas processuais e da contratação de um advogado particular, devem ter garantido o seu acesso à justiça, independentemente do pagamento de tais despesas, através dos benefícios da chamada assistência judiciária. O sistema misto procura um ponto de equilíbrio, em que o Estado e os particulares compartilhem esse custeio, de forma que esses não sejam desestimulados a exercer o seu direito de acesso à justiça em razão do valor econômico que tenham de desembolsar para se utilizarem dos serviços judiciários. Ao mesmo tempo, nesse sistema, aqueles que usam mais os serviços
da justiça arcam de maneira mais efetiva com o seu custeio; aqueles que não podem arcar com essas despesas têm o seu acesso à justiça garantido, por meio de isenção das custas. Essa a lógica do sistema de custeio misto. Obviamente, quando da aplicação e interpretação das regras que compõem esse sistema, pode haver distorções que comprometam a sua eficácia. Por exemplo: no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, há uma insatisfação geral com os elevados valores cobrados a título de taxa judiciária. Alega-se que o Estado está procurando, através da contribuição das partes, cobrir praticamente todo o custeio fixo da administração da justiça. Isso é uma distorção, porque seguramente muitos estão se sentindo inibidos e estão sendo afastados do acesso à justiça por causa dessas despesas muito altas. Outras vezes, há distorções em razão de as despesas serem muito baixas, como nos juizados especiais, em que as partes não pagam custas no primeiro grau de jurisdição. A fixação das custas em valores muito baixos favorece o demandismo, o ajuizamento de lides temerárias. Isso porque o aventureiro, que se utiliza dos serviços judiciários para impedir o gozo de direitos alheios ou para molestar possíveis adversários, sente-se estimulado a ingressar em juízo, uma vez que, derrotado no processo, pouco ou nada perderá. Então, a busca desse ponto de equilíbrio tem de ser permanente, e, toda vez em que o legislador foge desse equilíbrio para facilitar o acesso à justiça, corre o risco de estimular o demandismo, vale dizer, o abuso do direito de demandar. O problema do alto custo da justiça não é um problema exclusivamente brasileiro. Ao contrário, nos chamados países desenvolvidos, a justiça é bem mais cara do que entre nós. Na Alemanha, nos Estados Unidos e na Inglaterra nenhuma causa custa menos do que mil dólares em despesas, o que, por si só, já é um fator inibidor de muitas demandas. 18.1.1. Momento de recolhimento das despesas Cumpre ainda tratar das despesas processuais quanto ao momento em que se realiza o seu pagamento ou arrecadação. Há sistemas processuais em que a responsabilidade das partes somente se concretiza ao final do processo; nenhuma das partes adianta contribuições em dinheiro para a realização de atos durante o
processo. No próprio direito brasileiro, há alguns sistemas desse tipo. No processo penal, por exemplo, nos crimes de ação penal pública, é costume dizer-se: “Processo penal, custas a final.” Ou seja, somente depois do trânsito em julgado da sentença penal condenatória é que o condenado vai ter de pagar as custas do processo. Em geral, os sistemas processuais civis adotam a regra do recolhimento antecipado das despesas necessárias à prática dos atos processuais. Por exemplo: a petição inicial deve ser acompanhada do comprovante de recolhimento das custas iniciais incidentes sobre o respectivo processo (CPC de 1973, art. 19; CPC de 2015, art. 82). No curso do processo, em regra, a parte interessada na prática de cada ato deverá custeá-la previamente, porque o Estado não trabalha fiado. Hoje, contudo, sob o ponto de vista humanitário, deve-se considerar que a continuidade do processo não pode ficar condicionada ao interesse arrecadatório do Estado. O direito de acesso à justiça é mais importante do que a realização da receita pública pelo Estado, em que pese o nosso sistema processual, estruturado na época em que vigorava a absoluta supremacia do interesse público sobre o interesse dos particulares, ainda conserve essa herança, segundo a qual, para ter acesso à justiça, o particular deve primeiramente assegurar ao Estado o recebimento do valor das custas respectivas, através do seu recolhimento antecipado. Prova dessa mentalidade se encontra no malfadado artigo 257 do Código de 1973, lamentavelmente reproduzido no artigo 290 do Código de 2015, que manda cancelar a distribuição de qualquer processo cujas custas iniciais não tiverem sido recolhidas. O único progresso deste Código foi exigir a intimação do autor, na pessoa do advogado, a fim de computar o prazo para o cancelamento da distribuição, que reduziu de trinta para quinze dias. Assim, o recolhimento das despesas geradas pelo processo civil deve dar-se, como regra, de maneira antecipada. Esse recolhimento antecipado pode ocorrer de uma só vez, com o pagamento único das despesas fixas logo quando ajuizada a ação, seguido, às vezes, de um recolhimento suplementar; ou, então, com o recolhimento ocorrido sempre antes de cada ato. Até a oficialização das serventias judiciais – que, no Estado do Rio de Janeiro, se
iniciou com o governo de Carlos Lacerda, na década de 1960, ainda no antigo Estado da Guanabara –, as organizações judiciárias costumavam prever o recolhimento de custas antecipadas a cada ato. O Código de 1973 refletiu esse sistema, ao dispor no seu artigo 19: “Salvo as disposições concernentes à justiça gratuita, cabe às partes prover às despesas dos atos que realizam ou requerem no processo, antecipando-lhes o pagamento desde o início até a sentença final; e bem ainda, na execução, até a plena satisfação do direito declarado pela sentença”. O § 1º do artigo em referência estabelece que “o pagamento de que trata este artigo será feito por ocasião de cada ato processual”. O sistema do recolhimento das custas a cada ato mostrou-se altamente favorecedor da propina, porque, ao promover o recolhimento das custas cujos valores variavam a cada ato e se diluíam no curso do processo, era comum que valores diretamente recolhidos pelos serventuários não correspondessem exatamente aos devidos. No Estado de São Paulo, pela primeira vez, rompeu-se esse sistema. Considerando que o sistema de recolhimento das custas não é estritamente de Direito Processual, mas de organização judiciária e de Direito Tributário, na década de 1960 fez-se um novo regimento de custas, em que não vigorou mais o recolhimento a cada ato, mas o recolhimento de um valor fixo no início do processo. Em seguida, a Justiça Federal caminhou no mesmo sentido, com a edição, em 1974, de um regimento de custas – para cuja elaboração, inclusive, colaborei pessoalmente – que previa o recolhimento inicial único e fixo. No Estado do Rio de Janeiro, o sistema de recolhimento a cada ato perdurou até 1986, quando, então, fez-se uma reforma no regimento de custas para extingui-lo. O recolhimento continua sendo antecipado, mas não realizado a cada ato, a não ser para aqueles atos que são imprevisíveis, como, por exemplo, a expedição de uma carta precatória. 18.1.2. Responsabilidade provisória e definitiva O ônus do recolhimento antecipado das custas distribui-se entre as partes de acordo com o interesse que cada uma tem na prática de cada ato. Então, na
verdade, existe uma responsabilidade provisória pelo recolhimento das importâncias necessárias ao custeio do processo referente ao custeio de cada ato, arcado pela parte nele interessada, e existe uma responsabilidade definitiva por esse pagamento, que recai a final sobre a parte vencida ou sucumbente. A responsabilidade provisória, portanto, é aquela que recai sobre cada uma das partes em relação aos atos que a ela interessam. O recolhimento inicial das custas, por exemplo, incumbe ao autor, porque responsável pela iniciativa de propor a ação; da mesma forma, os demais atos que interessem ao autor, como a citação do réu, são de sua responsabilidade provisória quanto ao custeio. Cada parte será responsável pelo custeio antecipado e provisório das despesas relativas aos atos probatórios que requerer, de forma que, se o réu requerer uma perícia, é ele quem vai ter de depositar antecipadamente os honorários do perito. Os atos que o juiz determinar de ofício ou a requerimento do Ministério Público serão custeados antecipadamente pelo autor (CPC de 1973, art. 19, § 2º). O dispositivo correspondente do Código de 2015 (art. 82, § 1º) restringiu a responsabilidade do autor pelas despesas dos atos requeridos pelo Ministério Público aos casos em que este atua como fiscal da ordem jurídica. Em resumo, o autor arca com as custas iniciais, com a taxa judiciária inicial, com as despesas de todos os atos que requerer, com as custas dos atos necessários ao impulsionamento do processo e também com as despesas dos atos que o juiz e o Ministério Público, a partir da vigência do Código de 2015 como fiscal da lei, requererem. O réu, por sua vez, arca com as despesas dos atos que ele requerer ou praticar. Essas são as regras que distribuem a responsabilidade provisória pela antecipação dos valores necessários ao custeio das despesas processuais. A responsabilidade definitiva é aquela que se verifica quando o processo se encerra e está vinculada ao critério da sucumbência. Definitivamente responsável por todas as despesas geradas pelo processo, antecipadas ou não, será a parte vencida que terá de reembolsar à vencedora as despesas que esta houver antecipado. Em geral, o autor é quem desembolsou a quase totalidade ou a totalidade das despesas, razão pela qual, se ele for sucumbente, não terá nada ou quase nada a
pagar ao réu. Entretanto, se o vencido é o réu, sempre ou quase sempre ele terá alguma coisa a ressarcir ao autor por aquilo que este antecipou. No que se refere ao beneficiário da justiça gratuita, há disposição legal específica que regula a sua responsabilidade, prevista no artigo 12 da Lei n. 1.060/50. Estabelece o referido dispositivo legal: “A parte beneficiada pela isenção do pagamento das custas ficará obrigada a pagá-las, desde que possa fazê-lo, sem o prejuízo do sustento próprio ou da família; se dentro de cinco anos, a contar da sentença final, o assistido não puder satisfazer tal pagamento, a obrigação ficará prescrita.” No mesmo sentido, dispõe o Código de 2015 que o beneficiário da gratuidade responde pelas despesas processuais e honorários advocatícios decorrentes da sucumbência (art. 98, § 2º), que poderão ser executadas pelo credor se demonstrar, nos cinco anos subsequentes ao trânsito em julgado, que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que ensejou a concessão da gratuidade. Geralmente, os juízes não condenam o beneficiário da justiça gratuita nos encargos da sucumbência porque sabem que, em regra, ele não pode arcar com tais despesas sem prejuízo do seu sustento, em que pese o correto, de acordo com as regras aqui reproduzidas, seja condená-lo, para que essa condenação fique pendente por cinco anos. O problema maior é que grande parte dessas despesas não foi paga pelo adversário, mas deixou de sê-lo a algum outro sujeito processual ou deixou de ser recolhida aos cofres do Estado, que dificilmente terão uma organização capaz de acompanhar a vida dos beneficiários para em cinco anos executar o que lhes é devido. Aquele que litiga com o beneficiário da justiça gratuita é sabedor de que, ao final do processo, muito provavelmente, não receberá o reembolso das despesas que houver antecipado, se vencedor. Essa situação não atinge apenas a parte adversária, mas também o seu advogado, o perito, e assim por diante. Outros sujeitos, que eventualmente pudessem exercer remuneradamente alguma atividade no processo, também terão de trabalhar de graça, como, por exemplo, o jornal que publica os editais de citação, se não houver órgão oficial etc. O Estado deveria arcar com todas essas despesas, mas, infelizmente, na nossa realidade, ele não tem meios suficientes para tanto.
O número de brasileiros que trabalham não ultrapassa oitenta milhões, ou seja, não corresponde nem à metade da população nacional. Considerando-se que dessa parcela menos da metade possui carteira assinada, é possível perceber que, se o Estado tivesse de arcar com os honorários da sucumbência e com as despesas de todos aqueles pobres a quem ele precisa assistir, ele não teria dinheiro para fazer mais nada ou, quem sabe, não tivesse nem dinheiro suficiente para fazer somente isso. Alguns tribunais têm criado mecanismos para remunerar, ainda que modestamente, peritos que atuam em causas de beneficiários da gratuidade de justiça, com a inclusão de verbas no orçamento para esse fim, o que o Código de 2015 chancela no artigo 91, § 2º, e no artigo 95, §§ 3º e 4º.
18.2. ESPÉCIES DE DESPESAS PROCESSUAIS Do ponto de vista processual, não interessa a parcela de recursos que o Estado destina aos serviços judiciários, oriunda dos impostos gerais, mas as contribuições que as próprias partes são obrigadas a pagar para o custeio da administração da justiça. No nosso sistema processual, didaticamente, pode-se dizer que há sete espécies de despesas processuais: as custas em sentido estrito; a taxa judiciária; os emolumentos; o ressarcimento de despesas com a utilização de serviços estranhos ao Poder Judiciário; a remuneração de sujeitos auxiliares e secundários do processo; as multas; e os honorários da sucumbência. 18.2.1. Custas em sentido estrito e taxa judiciária As custas em sentido estrito são um tributo com a natureza de taxa. A taxa é uma contribuição que o particular tem de pagar ao Estado por um serviço público efetivamente utilizado ou posto à sua disposição (Código Tributário Nacional, art. 77). Os próprios entes públicos são contribuintes das taxas, uma vez que a imunidade recíproca, instituída no artigo 150, VI, letra a, da Constituição, alcança tão somente os impostos. Antigamente, quando juízes e demais serventuários da justiça nem eram funcionários públicos, a receita oriunda dessa taxa era por eles percebida diretamente como remuneração. Contudo, hoje em dia, essas custas são receita do Estado, correspondendo a uma das contribuições
feitas pelas partes para o custeio fixo da administração da justiça. Sendo um tributo, as custas stricto sensu submetem-se ao princípio da legalidade tributária e às demais disposições contidas na Constituição e no Código Tributário Nacional. Cada Estado edita a sua própria lei que institui o seu Regimento de Custas. Na Justiça Federal, a matéria é objeto da Lei n. 9.289/96. Na Justiça do Distrito Federal o Regimento de Custas é editado pelo Decreto-lei n. 115/67. Na Justiça do Estado do Rio de Janeiro é a Lei estadual n. 3.350/99. Então, resumidamente, essa espécie de despesa processual corresponde aos valores que as partes têm de pagar com base na lei que institui o regimento de custas da respectiva organização judiciária, normalmente recolhidos no início do processo – o autor tem de anexar à petição inicial o comprovante do recolhimento das custas iniciais – e que visam a colaborar com o Estado no custeio fixo da administração da justiça. A taxa judiciária não existe em todas as organizações judiciárias estaduais nem no âmbito da Justiça Federal. Contudo, alguns Estados-membros, ao lado das custas stricto sensu, criaram, a meu ver de modo absolutamente indevido, outro tributo, que é a chamada taxa judiciária. Ambos os tributos – taxa judiciária e custas em sentido estrito – possuem o mesmo fato gerador: a utilização do serviço público da justiça. A coexistência dessas duas espécies de despesas remonta à época em que a receita oriunda das custas cabia ao escrivão e a da taxa judiciária, ao Estado. Hoje, entretanto, não tem mais sentido a diferenciação de destino dessas receitas porque todas são receitas do Estado, embora, no Estado do Rio de Janeiro, a lei atualmente destine a taxa judiciária ao fundo judiciário, que é administrado pelo próprio Tribunal de Justiça. No Estado do Rio de Janeiro, a Lei n. 2.524/96 criou esse fundo próprio para que o Tribunal de Justiça pudesse recolher diretamente as receitas da taxa judiciária, evitando dificuldades e atrasos no repasse de verbas destinadas ao Poder Judiciário por parte do Poder Executivo estadual. A taxa judiciária é também uma taxa incidente sobre a propositura de qualquer causa, regulada nos artigos 112 a 146 do Código Tributário do Estado do Rio de Janeiro (Decreto-lei n. 5/75), ressalvados os casos expressamente previstos nos
artigos 113 e 114. Diferentemente das custas stricto sensu, que, no Estado do Rio de Janeiro, são cotadas em valores fixos para todos os processos, a taxa judiciária tem como base de cálculo, normalmente, o valor do pedido, possuindo valores mínimo e máximo prefixados em lei (ver a Súmula n. 667 do STF). Nesse ponto, é importante não confundir o valor da causa para efeito processual com o valor do pedido ou da causa para fins tributários. Uma coisa é o valor da causa para efeito processual, que tem de ser arbitrado de acordo com o conteúdo econômico do pedido e com as regras dos artigos 258 a 260 do Código de 1973 e 291 e 292 do Código de 2015; outra é o valor do pedido ou da causa para efeito de taxa judiciária, que será determinado na legislação tributária de cada Estado, que no caso do Estado do Rio de Janeiro é o Código Tributário do Estado. Cabe ainda acrescentar que, em relação às custas em sentido estrito, há ainda uma grande inconstitucionalidade, que foi acentuada pela Emenda Constitucional n. 45/2004, que acrescentou o § 2º ao artigo 98 da Constituição, e reside no fato de que, no valor relativo às custas, estão inseridas contribuições a órgãos públicos e privados, como a caixa de assistência dos advogados, o instituto dos advogados, o fundo especial da procuradoria do Estado e o fundo especial da defensoria pública. Ora, se essas custas são uma taxa instituída para remunerar um serviço público de administração da justiça, a sua destinação não pode ter como beneficiários entes públicos ou privados que não prestam esse serviço. 18.2.2. Emolumentos Desconsiderando outros significados que a palavra possa conter fora do âmbito do processo judicial, emolumentos são despesas variáveis; são despesas que ocorrem ou não em alguns processos e que são ressarcidas de acordo com valores fixos, estabelecidos no regimento de custas. Por exemplo: ao requerer uma certidão, a parte deve ressarcir o Estado do trabalho e do custo desse ato, o que, na hipótese, é calculado pelo valor de determinados centavos por folha. Portanto, emolumentos são uma despesa variável que o processo gera e que se destina a ressarcir o custo de certos atos de acordo com valores previamente fixados na lei, e não com o valor do seu custo real. São atos praticados pela
própria justiça, pelo próprio escrivão, pelo próprio oficial de justiça. 18.2.3. Ressarcimento de despesas com a utilização de serviços estranhos ao Poder Judiciário Essa espécie de despesa processual destina-se a cobrir os gastos necessários à prática de certos atos processuais ou ao próprio andamento do processo, gerados pela utilização de serviços estranhos ao Poder Judiciário. Por exemplo: determinado juiz precisa expedir uma carta precatória e mandá-la com urgência ao juízo deprecado e, para isso, utiliza-se do serviço de Sedex oferecido pelos Correios. O valor de envio dessa correspondência é fixado diretamente pelos Correios. Logo, diferentemente do que ocorre com os emolumentos, que remuneram despesas com a prática de atos pela própria justiça e que têm, portanto, um valor fixo estabelecido no seu regimento de custas, as despesas tratadas no presente item são despesas de terceiros, que têm de ser ressarcidas de acordo com o seu custo real. O oficial de justiça, por exemplo, pode precisar tomar uma condução para realizar determinada diligência durante o processo. Assim, suponha-se que ele tenha de alugar um barco para ir a uma ilha intimar alguém, ou que precise alugar um caminhão para remover os bens despejados do locatário para o depósito público. Essas despesas vão ser pagas de acordo com o seu valor real, que não pode ser fixado pela justiça, porque o seu custo é aquele pelo qual esses serviços estão postos à disposição de qualquer cidadão. Nessa categoria se incluem as despesas de viagem, hospedagem e alimentação de testemunhas (CPC de 1973, art. 20, § 2º; CPC de 2015, art. 84). Como são atos que podem variar de acordo com a especificidade de cada causa, o seu recolhimento é antecipado e realiza-se a cada ato, ficando a cargo da parte interessada na sua prática ou do autor, se o ato for determinado de ofício pelo juiz ou a requerimento do Ministério Público, a partir do Código de 2015 apenas como fiscal da lei. 18.2.4. Remuneração de sujeitos auxiliares e secundários do processo
Essas despesas referem-se, principalmente, aos honorários dos peritos. Quando o perito é um serventuário da justiça, como é o caso, por exemplo, dos avaliadores e contadores judiciais na capital do Estado do Rio de Janeiro, a sua remuneração está cotada, prevista no próprio regimento de custas. Embora essas custas especiais se destinem ao fim específico de remunerar os peritos, quando estes forem funcionários públicos serão elas arrecadadas como receitas do Estado. Por outro lado, quando os peritos não são serventuários da justiça, mas particulares escolhidos pelo juiz, os seus honorários são por este fixados. O perito nomeado propõe os seus honorários; o juiz ouve as partes, que podem ou não concordar com os valores apresentados, e, em seguida, antes de começar a perícia, arbitra os honorários e manda que a parte provisoriamente responsável pelo seu pagamento os deposite no banco oficial. Quando o perito apresenta o seu laudo, ele pede ao juiz a expedição do mandado de levantamento dos honorários que estão depositados. Esse sistema, que não é obrigatório, mas é usual, está previsto no parágrafo único do artigo 33 do Código de 1973. Aperfeiçoando esse dispositivo, o Código de 2015, nos artigos 95 e 465, § 4º, permite que o juiz autorize o perito a levantar até cinquenta por cento dos honorários no início dos seus trabalhos, mas estabelece que o restante somente ser-lhe-á pago “depois de entregue o laudo e prestados todos os esclarecimentos necessários”, porque muitas vezes o laudo primitivo não é satisfatório, exigindo complementação, seja por esclarecimentos escritos, seja por esclarecimentos orais prestados em audiência. Se a parte responsável pelo pagamento antecipado desses honorários for beneficiária da justiça gratuita, a Fazenda Pública, a Defensoria Pública ou, na vigência do Código de 2015, o Ministério Público, a menos que haja verba no orçamento do tribunal ou de um desses entes públicos para esse custeio (CPC de 2015, arts. 91, § 2º, e 95, §§ 3º e 4º), o perito vai ter de trabalhar sem recebê-los, a não ser que aquela seja vencedora na causa, hipótese em que os seus honorários serão pagos ao final pela parte sucumbente. Nesse último caso, ocorre uma distorção porque o perito já sabe que somente vai perceber os seus honorários se a prova for favorável ao beneficiário da justiça gratuita ou ao ente público. Na vigência do Código de 1973, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou parcialmente esse problema, proclamando na sua Súmula n. 232 que “a Fazenda Pública, quando parte no processo, fica sujeita à exigência do depósito prévio dos honorários do perito”. O § 2º do artigo 91 do Código de
2015 revoga esse entendimento e restabelece a distorção anteriormente criticada, a menos, o que é difícil de acreditar, que os entes públicos venham a incluir verbas nos seus orçamentos para antecipar o custeio das periciais judiciais que requererem. Ainda que sem perspectiva de receber a remuneração devida, todos têm o dever de colaborar com a justiça na apuração da verdade, de forma que o perito não pode negar-se a cumprir esse mister. 18.2.5. Multas As multas são sanções pecuniárias impostas pelo juiz em razão do descumprimento de deveres processuais; hoje, elas podem ser impostas às partes, aos serventuários e até a terceiros. As multas impostas a cada uma das partes revertem em benefício da outra parte, ao passo que aquelas impostas aos serventuários e a terceiros revertem ao Estado (CPC de 1973, art. 35; CPC de 2015, art. 96). Por exceção, o parágrafo único do artigo 14 do Código de Processo Civil, introduzido pela Lei n. 10.358/2001, e aprimorado nos §§ 2º a 6º do artigo 77 do Código de 2015, instituiu uma multa, pelo descumprimento de ordem judicial, que sempre reverte em favor do Estado, seja a parte ou terceiro o infrator. Uma das hipóteses mais importantes de multas impostas às partes é a da litigância de má-fé (CPC de 1973, arts. 14 a 18; CPC de 2015, arts. 77 a 82). Processo Civil. Existem outras hipóteses de multas, dispersas em outros dispositivos dos Códigos. Em geral, elas são arbitradas com base no valor da causa, por exemplo, nos artigos 538, parágrafo único, do Código de 1973 e 1.026, §§ 2º e 3º, do Código de 2015, que tratam dos embargos de declaração manifestamente protelatórios. Outra importante espécie de multa são as astreintes, impostas para forçar uma das partes ou terceiro a cumprir uma obrigação de fazer, de não fazer ou de entrega de coisa. Essas multas podem ser de três tipos e estão previstas em diversos dispositivos da lei processual, especialmente nos artigos 287, 461 e 461-A do Código de 1973 e no artigo 537 do Código de 2015. As astreintes são denominadas simples quando incidem somente uma vez. Em
geral, são impostas para assegurar o cumprimento de obrigações de não fazer de violação permanente, vale dizer, que comportem uma única violação. Por exemplo: determinado indivíduo foi condenado a guardar um segredo, sob pena de pagar uma multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Se violar a obrigação, ele pagará uma única multa de dez mil reais. Serão chamadas múltiplas quando impostas para assegurar o cumprimento de obrigações de não fazer de violação instantânea, mas que podem ser violadas várias vezes, incidindo tantas vezes quantas forem as violações. A cada violação incidirá uma nova multa. Por exemplo: um condômino é condenado a não fazer barulho durante a noite, sob pena de pagar R$ 10.000,00 (dez mil reais) a cada noite em que descumprir a obrigação. Por fim, as astreintes são denominadas periódicas quando incidem sobre o retardamento do cumprimento de obrigações de fazer, de entrega de coisa, ou do desfazimento de um ato. Por exemplo: certo compositor é contratado para entregar uma música em determinado prazo, mas não o faz. O juiz o condenará a cumprir a obrigação em determinado prazo, sob pena de pagar multa pecuniária diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Ressalte-se que a periodicidade pode variar; a multa pode ser diária, semanal, mensal etc. 18.2.6. Honorários da sucumbência O artigo 20 do Código de 1973 e o artigo 85 do Código de 2015 prescrevem que a sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor. Honorários advocatícios ou honorários da sucumbência nada têm a ver com os honorários contratuais. Cada uma das partes contrata livremente os honorários do seu advogado (honorários contratuais); além desses, o vencido ainda tem de pagar ao vencedor os honorários que o juiz arbitrar, que são os honorários da sucumbência. Na sua origem, os honorários da sucumbência visavam a ressarcir o vencedor, pelo menos parcialmente, das despesas que ele tinha feito com a contratação do seu advogado. Contudo, esse ressarcimento não corresponde necessariamente ao valor contratualmente ajustado pelo vencedor com o seu patrono, mas é arbitrado pelo juiz, por equidade, em bases que considere razoáveis. Se os dois litigantes
têm de pagar o respectivo advogado, o vencedor deve, pelo menos em parte, recuperar aquilo que desembolsou com o pagamento do seu advogado. Essa é a ideia original dos honorários da sucumbência. Todavia, essa finalidade foi inteiramente desvirtuada no Brasil, em que os honorários da sucumbência foram transformados em receita própria do advogado. É o que prevê o Estatuto da Advocacia (Lei n. 8.906/94), em seu artigo 23: “Os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor.” Hoje, entende-se que os honorários da sucumbência podem ser executados pelo próprio vencedor ou pelo seu advogado indistintamente, mas eles são receita do advogado. Então, eles perderam aquele sentido de ressarcimento do vencedor pelas despesas com a contratação do seu advogado e passaram a ser uma receita a mais que o advogado do vencedor percebe. O Código de 1973 contém algumas poucas regras, incluídas nos seus artigos 20 e 21, sobre o arbitramento dos honorários da sucumbência. O Código de 2015 estendeu exageradamente essas regras que, embora incluídas num artigo, o artigo 85, se desdobram em dezenove parágrafos, tornando a disciplina da matéria extremamente complexa, de aplicação muito trabalhosa pelos juízes e que certamente suscitarão muitas controvérsias. A impressão que essas novas regras sugerem é a de que, em certos momentos do desenvolvimento do processo, mais importante do que um bom julgamento da causa, será a decisão sobre o arbitramento dos honorários da sucumbência. Em princípio, eles devem ser arbitrados pelo juiz, através de um juízo de equidade, observados os critérios do § 3º do artigo 20 do Código de 1973 e do § 2º do artigo 85 do Código de 2015, independentemente de requerimento das partes, por ocasião do julgamento final de qualquer ação, principal ou incidente. 18.2.6.1. Honorários da sucumbência no Código de 1973
No Código de 1973, há uma diferença substancial no alcance do princípio da sucumbência entre as despesas e os honorários. Os honorários da sucumbência somente são aplicados na decisão final de julgamento de ações, ou seja, de pretensões de direito material ou na extinção do processo como um todo, mesmo
sem resolução do mérito. Não há honorários da sucumbência no julgamento da exceção de incompetência, da impugnação ao valor da causa e de outros procedimentos incidentes, mas sim ressarcimento de despesas, a saber, custas, emolumentos, serviços de terceiros e remuneração de sujeitos auxiliares ou secundários, com fundamento no § 1º do artigo 20. Além da sentença final, arbitrará o juiz honorários da sucumbência em sentenças de ações incidentes, como os embargos de terceiro, a ação declaratória incidental, a reconvenção, a oposição, a ação incidente declaratória de falsidade documental, a ação cautelar, bem como na extinção do processo. Em grau de recurso, em que sejam julgadas ações, não simplesmente questões incidentes, os honorários da sucumbência arbitrados substituem os da decisão recorrida. Se o recurso versar sobre um incidente ou sobre matéria processual, não constituindo decisão final da causa, nem extinção do processo, somente caberá a aplicação ao vencido da responsabilidade pelas despesas, mas não a imposição de honorários em favor do advogado do vencedor. Ao contrário, não deve ser imposta essa condenação ao vencido no julgamento da liquidação de sentença (CPC, arts. 475-A a 475-H), que, embora seja uma ação, tem caráter eminentemente acessório e complementar em relação à ação principal em que foi proferida a condenação. Nos embargos à execução (arts. 736 e ss.), que também são uma ação, tem-se entendido que haverá rearbitramento dos honorários já incidentes sobre a própria execução e não novos honorários, porque o § 4º do artigo 20 se refere às execuções “embargadas ou não”. Também não haverá honorários da sucumbência no julgamento final, sem extinção do processo, de incidentes sobre questões processuais, que não constituem ações, e no julgamento de questões que, ainda que tenham alguma repercussão de direito material, possuem finalidade preponderantemente instrumental dentro do processo, sem apreciação definitiva do pedido, por exemplo, quando o juiz defere uma tutela antecipada, quando arbitra os honorários do perito ou quando na execução defere a arrematação em favor de determinado terceiro. Se houver condenação, serão eles fixados entre o mínimo de 10% e o máximo de 20% do seu valor (art. 20, § 3º), levando em conta o grau de zelo do profissional, o lugar da prestação de serviço, a natureza e a importância da causa, o trabalho do advogado e o tempo exigido. Não estão sujeitas a esses limites, mínimo e máximo, as causas de pequeno valor; as que não tenham valor econômico;
aquelas em que não houver condenação; aquelas em que for vencida a Fazenda Pública; e as execuções (§ 4º). É usual, nas hipóteses em que não haja condenação, arbitrar os honorários da sucumbência com base no valor da causa ou em importância fixa. Nas execuções e nas condenações da Fazenda, normalmente são fixados em percentual do valor do débito. A ausência de limites máximo e mínimo se justifica nas hipóteses do § 4º em que não haja condenação. Justifica-se, também, nas execuções, em que normalmente o esforço dos advogados é bem menor. Mas não se justifica, constituindo verdadeiro privilégio, nas condenações da Fazenda Pública, porque, em geral, a duração do processo e os privilégios da Fazenda tornam essas causas muito mais trabalhosas do que aquelas entre litigantes privados. O parágrafo seguinte (§ 5º do art. 20) contém regra especial sobre o arbitramento dos honorários nas ações de indenização por ato ilícito, de modo a incluir no seu cálculo as prestações vencidas e as vincendas. Se ambos os litigantes forem em parte vencedores e vencidos, responderão pelos honorários proporcionalmente à sua sucumbência, compensando-se as condenações (art. 21), o que significa que, nesse caso, será como se cada uma das partes vencidas, por ser também vencedora, fosse credora dos honorários do seu adversário, e não o seu advogado. Por exemplo, o autor pediu a condenação do réu em 100.000 reais, mas o juiz julgou o pedido procedente em parte e condenou o réu em 60.000 reais. O autor sucumbiu em 40% do pedido e o réu em 60%. Se o juiz julgasse justos honorários de 10% do valor de 100.000 reais, o autor deveria pagar 4.000 reais ao advogado do réu e este, 6.000 reais ao advogado autor. Como, nesse caso, os honorários se compensam, apenas o réu deverá pagar ao advogado do autor 2.000 reais, enquanto o autor nada pagará ao advogado do réu. Não se aplicará a distribuição proporcional nem a compensação quando a sucumbência de uma das partes for mínima (art. 21, parágrafo único). 18.2.6.2. A sucumbência no Código de 2015
Bastante diversa é a disciplina da sucumbência no Código de 2015. Não reproduz ele a regra do § 1º do artigo 20 do Código de 1973, segundo a qual o juiz, ao decidir qualquer procedimento incidente ou recurso, condenará nas
despesas o vencido. Se se entender que, em razão dessa omissão, as despesas de todos os incidentes e recursos serão imputadas ao derradeiro perdedor da causa como um todo, isso será extremamente injusto porque muitos desses procedimentos, como a exibição de documento julgada improcedente, a suspeição do juiz arguida infundadamente, o agravo contra o indeferimento de uma prova que foi desprovido, terão sido provocados sem nenhum proveito e o derradeiro vencido, que a eles não deu causa, terá de responder por todas as despesas por eles geradas. Desse modo, os prejuízos econômicos causados por esses incidentes somente serão ressarcidos pelos seus causadores se ficar comprovado que agiram de má-fé, sujeitando-se então às sanções previstas no artigo 81. Quanto aos honorários da sucumbência, o artigo 85 determina a sua aplicação pelo juiz, em favor do advogado do vencedor, na sentença, como tal entendida a decisão que encerra o processo ou a sua fase cognitiva (art. 203). No § 1º, o artigo 85 explicita que os honorários são devidos na reconvenção, no cumprimento de sentença, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, cumulativamente. No entanto, a meu ver, também ensejam a imposição dos honorários da sucumbência decisões interlocutórias que resolvam ações incidentes, como medidas cautelares e a arguição de falsidade de documento, se a parte requerer que seja decidida como questão principal (art. 430, parágrafo único). Diferentemente do Código de 1973, em que o arbitramento dos honorários entre o mínimo de dez e o máximo de vinte por cento fica restrito aos casos em que há condenação, nos demais cabendo ao juiz o seu arbitramento por equidade sem qualquer limitação percentual, o § 2º do artigo 85 determina a incidência dos honorários entre o mínimo de dez e o máximo de vinte por cento “sobre o valor da condenação, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurálo, sobre o valor atualizado da causa”. A aplicação dessa regra à extinção do processo sem resolução do mérito (art. 85, § 6º) certamente ensejará muitas polêmicas. Nas causas de interesse das pessoas jurídicas de direito público, a mudança foi substancial. No Código de 1973, regra específica (art. 20, § 4º) as isentava, quando vencidas, da imposição de honorários nos percentuais entre dez e vinte por cento do valor da condenação, sujeitando-as ao arbitramento por equidade. O
Código de 2015 deu um tratamento específico aos honorários nas causas de interesse da Fazenda Pública (art. 85, § 3º), mas acabou com o privilégio em favor desta, pois as regras estabelecidas se aplicam tanto no caso em que seja vencedora como naqueles em que seja vencida, instituindo cinco faixas de percentuais decrescentes incidentes sobre o valor da condenação ou do proveito econômico. Será uma operação complicada. Será necessário que a condenação ou o proveito econômico sejam líquidos, caso contrário a fixação dos percentuais das cinco faixas ficará relegada para a liquidação de sentença, salvo se não for possível mensurar o proveito econômico, caso em que os percentuais serão aplicados sobre o valor atualizado da causa (art. 85, § 4º). No cumprimento de sentença, se não houver pagamento voluntário da condenação, incidirão sobre o débito honorários de dez por cento sobre o valor executado (arts. 523, § 1º, e 526, § 2º). No cumprimento de sentença contra a Fazenda Pública que enseje a expedição de precatório, se não houver impugnação, não incidirão honorários (art. 85, § 7º). Nas execuções, incluindo os respectivos embargos, os honorários, que não têm percentual mínimo no Código de 1973, incidem desde o início no percentual de 10% (art. 827), sendo reduzidos à metade se o devedor pagar nos três dias da citação, podendo chegar a 20% na rejeição dos embargos ou até o final do procedimento executivo (art. 20, § 4º). Tal como no Código de 1973 (art. 20, § 4º), nas causas de pequeno valor e de valor inestimável, os honorários não estarão sujeitos aos limites percentuais mínimo e máximo, sendo arbitrados equitativamente (CPC de 2015, art. 85, § 8º). No § 9º, o artigo 85 corrige um exagero do Código de 1973 que, nas ações de indenização por ato ilícito, faz incidir o percentual de honorários sobre a soma das prestações vencidas com o capital necessário a produzir a renda correspondente às vincendas, para fazê-lo incidir sobre a soma das prestações vencidas com mais doze prestações vincendas. O § 10 do artigo 85 consagra solução que já vinha sendo acolhida na jurisprudência de imposição de honorários da sucumbência quando o processo é extinto por perda de objeto, ou seja, por perda superveniente de interesse de agir decorrente do cumprimento espontâneo da obrigação exigida no curso do
processo instaurado para cobrá-la. A solução é aparentemente justa, mas muitas vezes dificulta o cumprimento espontâneo pelo réu, que sabe que vai arcar com os honorários da sucumbência, que podem ser altos. Seria conveniente que, nesse caso, a lei facultasse ao juiz reduzir por equidade o percentual mínimo até a metade, por exemplo. Para inibir a interposição de recursos protelatórios, nova verba honorária será aplicada em caso de não provimento até o limite de 25% na fase de conhecimento (art. 85, § 11), o que significa que esse percentual poderá ser excedido no cumprimento de sentença e na execução. O § 14 do artigo 85, complementando o disposto nos artigos 23 e 24 do Estatuto da OAB (Lei n. 8.906/94), declara que os honorários da sucumbência são direito do advogado de natureza alimentar, o que favorece a sua execução contra a Fazenda Pública, nos termos do artigo 100 da Constituição. Atribui-lhes, em qualquer execução concursual, o privilégio correspondente aos créditos trabalhistas, isto é, o pagamento preferencial, até o limite de 150 salários mínimos, antes dos créditos tributários, dos créditos com garantia real e de quaisquer outros, nos termos do artigo 83 da Lei de Falências (Lei n. 11.101/2005). Esse mesmo parágrafo 14 introduz importante inovação que é a proibição de compensação dos honorários dos advogados quando houver sucumbência recíproca. No exemplo dado no item anterior a respeito do artigo 21 do Código de 1973, o autor que pediu uma condenação do réu a lhe pagar 100.000 reais e obteve a procedência parcial com a condenação do réu a lhe pagar 60.000, sobre a diferença de 40.000 terá de pagar de 4.000 a 8.000 reais de honorários ao advogado do réu e este, além da condenação a pagar 60.000 ao autor, terá de pagar ao advogado deste de 6.000 a 12.000 reais. Os §§ 15 a 18 do artigo 85 disciplinam outras questões de importância menor sobre o pagamento de honorários à sociedade de advogados, a incidência de juros moratórios, a advocacia em causa própria e a possibilidade de reivindicação dos honorários em ação autônoma, se não arbitrados na sentença. Coerente com o disposto no artigo 21 do Estatuto da OAB, que atribui os honorários da sucumbência ao advogado empregado, o § 19 do artigo 85 confere igual direito aos advogados públicos, nos termos da lei, pretendendo solucionar
controvérsia que há alguns anos se trava entre essa classe de profissionais de determinados entes públicos. A regra incide desde logo, o que não quer dizer que os procuradores venham a embolsar de imediato esse dinheiro, porque a distribuição desses valores dependerá de regras internas que deverão ser estabelecidas em leis próprias de cada ente federativo. O que me parece certo é que as pessoas jurídicas de direito público continuarão recebendo ou executando esses honorários, como, aliás, as partes vencedoras podem fazer, independentemente dos advogados, cabendo-lhes o repasse aos advogados que a eles fazem jus. Não haverá honorários recíprocos nem distribuição proporcional de despesas, se a sucumbência for mínima (art. 86). 18.2.7. Outras regras relevantes sobre as despesas O princípio da sucumbência impõe ao vencido o pagamento dos honorários do advogado do vencedor em todas as ações principais ou incidentes resolvidas conclusivamente e também a responsabilidade definitiva por todas as demais despesas processuais, devendo ressarcir o vencedor das que este desembolsou. Essa última responsabilidade do vencido pelas despesas se estende ainda a qualquer outro procedimento incidente, mesmo que não constitua uma nova ação, ou seja, qualquer procedimento incidente sobre questão meramente processual, que tramite em separado, como, por exemplo, a exceção ou arguição de suspeição e o julgamento de qualquer recurso (CPC de 1973, art. 20, § 1º; CPC de 2015, art. 82, § 2º). No Código de 1973, a parte, que omite a alegação na primeira oportunidade de matéria de ordem pública que poderia beneficiá-la, viola o dever de lealdade e de colaboração com a justiça e fica sujeita ao ressarcimento das despesas dos atos subsequentes que inutilmente tiverem sido praticados, ainda que vencedora, conforme dispõem os artigos 113, § 1º, 267, § 3º, e 22. Esse último dispositivo impõe a perda dos próprios honorários da sucumbência se o réu alegar tardiamente fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Diferentemente, o Código de 2015 não reproduz essas regras. Esses atos ficam sujeitos apenas às sanções pela litigância de má-fé (art. 81), caso em que, aí sim, arcará o infrator com os honorários advocatícios e com todas as despesas que efetuou, mesmo sendo afinal vencedor. Outra hipótese, em que o réu responde
pelas despesas mesmo que afinal vencedor, é a do artigo 339, se este deixar de alegar na contestação a ilegitimidade passiva e de indicar o verdadeiro responsável que deva figurar como réu. Se houver sucumbência de litisconsortes ativos ou passivos, a responsabilidade de cada um será proporcional ao seu número (art. 23). No Código de 1973, se forem cinco litisconsortes vencidos, cada um responderá por 1/5 das despesas e 1/5 dos honorários da sucumbência. Não havendo solidariedade, o vencedor não pode cobrar apenas de um a totalidade desses encargos. No Código de 2015, o parágrafo único do artigo 87 dá a entender que o juiz deverá atribuir expressamente para cada litisconsorte um percentual diverso na responsabilidade pelas despesas e pelos honorários e que, se não o fizer, a responsabilidade entre os litisconsortes tornar-se-á solidária. Evidentemente, essa regra não se aplicará aos casos em que a diversidade entre os litisconsortes, sob o aspecto do direito material, for tal, que tenha resultado, por exemplo, em condenações a prestações diversas, o que deverá determinar que cada um responda pelas despesas e honorários da parte que lhe couber. Na jurisdição voluntária, não havendo vencedores nem vencidos, mas apenas interessados, não haverá honorários da sucumbência, mas simples rateio proporcional das despesas entre todos os envolvidos (CPC de 1973, art. 24; CPC de 2015, art. 88). Se surgir litígio em procedimento de jurisdição voluntária, afinal serão aplicados ao vencido os encargos da sucumbência, tanto de despesas quanto de honorários. Na desistência da ação (CPC, art. 26; CPC de 2015, art. 90), assim como na renúncia ao direito, e em qualquer outra extinção do processo sem resolução do mérito, incorrerá o autor nas custas e nos honorários da sucumbência em favor do réu, exceção ao já comentado § 10 do artigo 85 do Código de 2015. No reconhecimento do pedido, arcará o réu com esses encargos, que poderão ser reduzidos se simultaneamente cumprir a prestação reconhecida. Na transação, se não houver disposição expressa dos transatores, as despesas serão divididas em partes iguais e não haverá honorários da sucumbência. As despesas dos atos que forem adiados ou tiverem de repetir-se serão pagas, sem inclusão nos encargos finais do vencido pela sucumbência, pelo sujeito processual que tiver sem justa causa dado causa ao adiamento ou à repetição, seja ele a parte, o juiz, o serventuário, o órgão do Ministério Público ou a
testemunha (CPC de 1973, arts. 29 e 412; CPC de 2015, arts. 93 e 455, § 5º). O Código de 2015 acrescentou a esse rol a Defensoria Pública. No Código de 1973, as correspondentes aos atos reputados protelatórios ou supérfluos serão arcadas pelo seu autor, se impugnadas pela outra parte (art. 31). No Código de 2015 essa situação estará sujeita às sanções da litigância de má-fé (art. 81). O assistente simples do vencido responde pela sucumbência quanto às despesas, não quanto aos honorários, na proporção da atividade que exerceu no processo (CPC de 1973, art. 32; CPC de 2015, art. 94), proporção essa que o juiz deverá arbitrar. Já o assistente litisconsorcial, como veremos, é parte e, como tal, responderá, caso vencido, pelas custas e pelos honorários como litisconsorte (CPC de 1973, art. 23; CPC de 2015, art. 87). Quanto à responsabilidade definitiva pela remuneração do assistente técnico, há uma aparente contradição, não resolvida pelo Código de 2015, entre o disposto no artigo 20, § 2º (artigo 84 no Código de 2015), e no artigo 33 do Código de 1973 (artigo 95 do Código de 2015), o primeiro incluindo-a nos encargos da sucumbência imputáveis ao vencido e o segundo atribuindo-a à parte que o indicou. Se essa discrepância poderia suscitar alguma incerteza na vigência da redação originária do Código de 1973, em que o assistente técnico era reputado um sujeito imparcial do processo, hoje não pode mais remanescer qualquer dúvida, porque a partir da Lei n. 8.455/92 passou ele a constituir um auxiliar técnico da parte que o designou, sendo excluído do rol de sujeitos imparciais do processo (art. 138). Assim, deve prevalecer a responsabilidade definitiva da parte que indicou o assistente técnico.
O acesso dos pobres à justiça é tema de grande relevância nos modernos estudos de Direito Processual. Chiovenda, em 1906, preocupado com as ideias liberais que haviam influenciado a maioria dos Códigos processuais do século XIX, perguntava como se comporta o processo civil em relação aos humildes, aos deserdados. E advertia que, na medida dos poderes do juiz, terá o processo ou não a possibilidade de tornar-se acessível ao homem frágil e inculto, ressaltando que esse não é um problema exclusivo do Direito Processual, mas o verdadeiro problema da relação entre o Estado e o cidadão, o conflito entre a liberdade individual e os poderes públicos1. Na segunda metade do século XX, Mauro Cappelletti impulsionou vários estudos sobre o tema, que considerava a primeira onda do acesso à justiça2. Entre nós, merece destaque a rica pesquisa empreendida por Cléber Francisco Alves3. Essas investigações têm como núcleo principal a análise da paridade de armas de que as partes devem desfrutar no Processo Civil. Essa paridade não deve configurar-se somente do ponto de vista formal da igualdade de direitos, deveres e ônus processuais, mas, preponderantemente, sob o prisma substancial da efetiva e concreta igualdade de oportunidades no exercício daquelas prerrogativas, de modo que ambas as partes desfrutem de iguais possibilidades de influir eficazmente na decisão judicial. As Constituições brasileiras, desde 1934, assumiram compromissos formais com o amparo aos pobres, como reflexo do Estado-providência, que dominou o panorama político brasileiro desde a Revolução de 1930, até a última reconstitucionalização, em 1988. Foi o texto de 1934 que introduziu no rol dos direitos e garantias individuais a assistência judiciária aos necessitados (art. 113, n. 32), que veio a ser implementada com a edição da Lei n. 1.060/50. No então Distrito Federal, foi criado o cargo de defensor público, como inicial da carreira do Ministério Público, para a assistência judiciária aos pobres, nos termos da referida Lei, tanto nas causas cíveis como nas criminais. Em 1960, com a transferência da capital da República para Brasília, o recém-criado Estado da Guanabara herdou o sistema de assistência judiciária do antigo Distrito Federal, que, também, foi instituído em 1960 na nova capital federal. No antigo Estado do Rio de Janeiro, foi criada uma carreira específica de defensores públicos,
subordinados ao procurador-geral da Justiça. Com a fusão dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, em 1975, foi essa estrutura adotada no novo Estado, no qual, mais tarde, a Defensoria Pública passou a ter a sua própria chefia, totalmente independente da chefia do Ministério Público estadual. Sobreveio, então, a Constituição de 1988, que, no seu artigo 5º, inciso LXXIV, incluiu nos direitos e deveres individuais e coletivos a “assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”, e, no artigo 134, instituiu a Defensoria Pública como organização “essencial à função jurisdicional do Estado”, atribuindo-lhe precipuamente “a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados”, na forma do artigo 5º, inciso LXXIV, o que veio a ser nacionalmente regulamentado pela Lei Complementar n. 80/94, que organizou a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e prescreveu normas de organização das Defensorias Públicas dos Estados.
19.1. SISTEMAS DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA Questão de extremo relevo na prestação da assistência judiciária é a de saber quem vai patrocinar os interesses dos pobres. A sua defesa será feita por advogados comuns, em igualdade de condições com aqueles que podem custear advogados privados? Será feita por advogados iniciantes? Ou será realizada por uma categoria especializada de funcionários públicos? Nesse passo, é importante examinar os diversos sistemas existentes, que outorgam a diferentes profissionais a defesa dos necessitados, concorrendo o Estado, em maior ou menor grau, ou até mesmo integralmente, para a sua remuneração. O sistema ideal é aquele em que o patrocínio dos interesses dos pobres é exercido em igualdade de condições com o daqueles que podem arcar com a contratação de advogados particulares. Para tanto, os pobres devem poder escolher livremente os seus advogados, cabendo ao Estado remunerá-los com os mesmos valores praticados por eles no mercado, de modo que não se sintam menos interessados na defesa dos pobres. Em razão do seu alto custo para o Estado – que paga os mesmos valores praticados no mercado –, esse sistema ideal, em que o pobre tem a possibilidade de escolher qualquer profissional, hoje não existe em nenhum país do mundo, embora já tenha vigorado na Inglaterra, com algumas restrições. Vislumbra-se,
nesse sistema, uma dupla qualidade: (i) o advogado não se sente desestimulado a patrocinar as causas dos necessitados, já que receberá a mesma remuneração cobrada usualmente pelos seus serviços; (ii) o pobre tem ao seu lado um advogado da sua confiança, livremente escolhido. Cabe, neste ponto, relembrar a lição de Calamandrei, exposta em 1952, no México4, no sentido de que, se o pobre não pode escolher o seu advogado, ele já está numa posição de inferioridade no exercício da sua defesa. Isso porque o vínculo de confiança entre a parte e o seu advogado é inerente à garantia da plenitude de defesa. O segundo sistema existente é aquele em que o advogado escolhido pelo pobre recebe do Estado uma remuneração inferior àquela praticada usualmente no mercado. O advogado não trabalha gratuitamente, mas recebe valores bem inferiores aos cobrados pelos advogados constituídos. Em virtude dessa desigualdade na remuneração, geralmente, nesse sistema, o Estado coloca à disposição dos necessitados advogados principiantes, que buscam ainda formar a sua clientela, adquirir reputação no meio jurídico. Outras vezes, o Estado confere capacidade postulatória a pessoas que não são ou ainda não se tornaram advogados, como estagiários ou determinados serventuários da justiça. Esse sistema é adotado em alguns países desenvolvidos, como a Alemanha. Esse sistema evidentemente cria uma desvantagem para o pobre, pois ele está sendo defendido por um advogado de menor qualidade, remunerado em condições desvantajosas em relação ao advogado da parte adversa. Então, mesmo que em alguns casos ele possa escolher o seu advogado, terá à sua disposição profissionais menos experientes ou que não possuem uma formação acadêmica completa ou adequada. O terceiro sistema é o adotado no Brasil, em que o Estado assume para si a responsabilidade de patrocinar todas as causas dos pobres, através de um corpo de advogados concursados, titulares de cargos públicos efetivos, que recebem daquele uma remuneração fixa. E o seu principal exemplo é a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, criada em 5 de maio de 1897 por Decreto que instituiu a Assistência Judiciária no Distrito Federal (então a cidade do Rio de Janeiro).
Nesse terceiro sistema, os advogados designados para exercerem a assistência judiciária podem ser melhores ou piores do que os advogados comuns, mas isso não está em jogo, pois, como são profissionais selecionados por meio de concurso público, consideram-se presumivelmente capacitados. Entretanto, eles não são livremente escolhidos pelos necessitados, porque trabalham vinculados a determinados órgãos de atuação, de modo que não há necessariamente um vínculo de confiança entre o pobre e o defensor público que o representa. Além disso, em razão do elevado índice de pobreza existente no Brasil, o defensor público patrocina um volume excessivo de causas. Há notícias que apontam no sentido de que mais da metade dos processos que correm na Justiça Estadual do Rio de Janeiro são patrocinados pela Defensoria Pública. Em alguns Estados brasileiros, a Defensoria Pública ainda não está completa e solidamente instalada, carecendo de profissionais e infraestrutura. Para remediar tal situação, algumas leis estaduais estabelecem o patrocínio das causas dos pobres pelos chamados advogados dativos, que são advogados particulares, sem vínculo de emprego com o Estado e que podem receber deste uma pequena remuneração em razão desse patrocínio. Na Justiça Federal, ainda é incipiente a implantação da Defensoria Pública da União, funcionando em algumas regiões um voluntariado, composto de advogados cadastrados nos Tribunais Regionais Federais, que recebem um pro labore correspondente às causas que patrocinam. A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro é tida por muitos como um modelo do nosso sistema. Atualmente, ela conta com um número razoável – embora insuficiente para atender à demanda – de defensores públicos, submetidos a um processo de seleção exigente e, em grande parte, impregnados de idealismo, ao dedicar seu labor ao auxílio dos necessitados. Ainda assim, é preciso lembrar que o nosso sistema não permite a livre escolha do advogado pelo pobre, a não ser nos casos em que algum advogado particular aceite patrocinar a sua causa sem receber honorários. O juiz deve ter consciência de que essa situação acarreta uma desvantagem para o beneficiário da justiça gratuita, colocando-o em uma posição de inferioridade em relação ao seu adversário no que toca aos meios de defesa. Cabe ao juiz, portanto, assistencialmente, suprir essa desvantagem, procurando garantir a igualdade
concreta das partes no processo. Muitos advogados se queixam de juízes que são muito tolerantes com o pobre, determinando a produção de provas de ofício, dentre outras providências. A atuação assistencial do juiz, obviamente, não pode exceder o limite da sua imparcialidade, mas ele deve, sim, garantir que ambas as partes litiguem em igualdade de condições, pois, caso contrário, estar-se-ia diante de um processo que não é justo.
19.2. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA E ASSISTÊNCIA JURÍDICA A primeira observação que deve ser feita a respeito do alcance dos dispositivos constitucionais em vigor é a de que ampliaram a proteção dos necessitados em relação à ordem constitucional anterior, que aludia apenas à mera assistência judiciária. A assistência jurídica integral, prevista no inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição, é mais ampla do que a assistência judiciária, vez que esta se refere apenas aos meios necessários à defesa dos direitos do assistido em juízo, ao passo que aquela inclui o aconselhamento jurídico extrajudicial, independentemente da existência ou da possibilidade de uma demanda em juízo (Lei n. 8.906/94, art. 1º, § 2º). Conforme já observei anteriormente, a prestação da assistência jurídica aos pobres tornou-se extremamente necessária nos últimos anos, em razão da complexidade jurídica que alcançou a vida em sociedade, mesmo para as pessoas de hábitos mais simples. A chamada “sociedade de massa” envolve o indivíduo numa rede de complexas relações jurídicas, cujos efeitos dificilmente são bem compreendidos pelo homem comum, exigindo frequente consulta a um profissional habilitado, muitas vezes um verdadeiro especialista, para ditar o seu comportamento.
19.3. CONTEÚDO DA ASSISTÊNCIA JURÍDICA No âmbito do Direito Processual, é preponderante a importância da assistência jurídica, na qual o assessoramento jurídico se insere precipuamente no aconselhamento jurídico e na negociação de acordos extrajudiciais, para os quais está hoje legitimada a Defensoria Pública (Lei Complementar n. 80/94, art. 4º, inc. II; CPC de 1973, art. 585, inc. II; CPC de 2015, arts. 3º, § 3º, e 784, inc. IV),
assim como na assistência que, na qualidade de patrono judicial, presta ao assistido por ocasião das tentativas de conciliação judicial (CPC de 1973, arts. 277, 331, 447-449; Lei n. 9.099/95, arts. 21 e 22; CPC de 2015, art. 334, § 9º). Para atingir o ideal da igualdade concreta entre as partes, a lei confere ao beneficiário da assistência judiciária os seguintes direitos: a) a isenção de custas e demais despesas processuais; b) a designação de um advogado para defendê-lo gratuitamente. O artigo 3º da Lei n. 1.060/50, que o Código de 2015 revoga no artigo 1.086, enumera de modo não exaustivo as espécies de despesas processuais, de que o beneficiário da assistência judiciária fica isento, tais como taxa judiciária, custas stricto sensu, gastos com publicações, com a realização de perícias, com a inquirição de testemunhas. Também sem exaurir o rol de isenções, menciona o artigo 98, § 1º, do Código de 2015 as taxas ou custas judiciais, os selos postais, as publicações na imprensa oficial, a indenização de testemunhas, exames considerados essenciais, honorários de advogado (também previstos no artigo 3º da Lei n. 1.060/50), do perito, de intérprete e de tradutor, custeio da memória de cálculo para propiciar execução, quaisquer cauções para o exercício de direitos processuais e emolumentos pelos atos de notários ou registradores. A isenção desses emolumentos dos notários e registradores pode ser por estes questionada junto ao juízo da vara de registros públicos, regra absolutamente esdrúxula introduzida no Código de 2015 (art. 98, § 8º). Se o beneficiário for assistido por advogado particular, o recurso que verse exclusivamente sobre os honorários da sucumbência fixados ou fixáveis em favor desse advogado estará sujeito a preparo, salvo se o próprio causídico for beneficiário d gratuidade (Código de 2015, art. 99, § 4º). Do rol de espécies de despesas, que analisamos no capítulo anterior, uma delas não é abrangida pela gratuidade: as multas, que recairão sobre o assistido, independentemente da sua capacidade econômico-financeira (Código de 2015, art. 98, § 4º). Embora esse dispositivo declare que essas multas serão pagas ao final do processo, parece-me que o beneficiário da gratuidade não pode ficar imune à execução imediata das multas coercitivas, como as previstas no artigo 537 do Código de 2015. Do recolhimento das demais despesas estará o assistido vencido isento por cinco anos, a contar da sentença final, podendo ser cobrado das que recaíram
provisoriamente sobre a outra parte se, nesse prazo, perder a condição de necessitado (Lei n. 1.060/50, arts. 11, § 2º, e 12, também revogados pelo art. 1.072 do Código de 2015; CPC de 2015, art. 98, § 3º). O dispositivo do Código de 2015 sujeita esse pagamento à execução iniciada nos cinco anos por iniciativa do credor, na qual este prove que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão da gratuidade.
19.4. O BENEFICIÁRIO Para definir os beneficiários da assistência judiciária, a Constituição utiliza as expressões “necessitados” (art. 134) e “os que comprovarem insuficiência de recursos”. À insuficiência de recursos também se refere o artigo 98 do Código de 2015 como requisito do direito à gratuidade. A definição de necessitado se encontra no parágrafo único do artigo 2º da Lei n. 1.060/50, como “aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família”. Mesmo revogado pelo artigo 1.072 do Código de 2015, esse dispositivo oferece conceito que a meu ver sobrevive para delimitar conteúdo da ideia de “insuficiência de recursos”. A lei não adota um valor mínimo de remuneração ou um outro critério objetivo para aferição da necessidade, que, se questionada, deverá ser objeto de um juízo de equidade, no qual o juiz pondere todos os ganhos e encargos do postulante, para verificar se, de acordo com o seu nível social e econômico, está em condições de arcar com as despesas do processo. Desde o advento da Lei n. 1.060/50, o legislador utilizou vários critérios para comprovação da necessidade, desde a atestação da pobreza pelo delegado de Polícia ou pelo prefeito, até a exibição de carteira de trabalho com salário não inferior a um determinado valor. A partir de 1986, na vigência do Código de 1973, por força da Lei n. 7.510, o artigo 4º da Lei n. 1.060/50 dispensou o requerente de apresentar qualquer prova a respeito da sua situação econômica, bastando a sua simples afirmação de que não dispõe de meios para prover às despesas do processo sem sacrifício para o seu sustento ou o de sua família. O Código de 2015, embora revogando o artigo 4º da Lei n. 1.060/50, exige apenas (art. 99, § 1º) “alegação de insuficiência” de recursos no pedido de gratuidade, de que extrai a presunção de existência desse requisito, desde que feita em benefício de pessoa natural, do que se conclui que,
se o pedido de gratuidade tiver como beneficiária pessoa jurídica, deverá oferecer provas concretas da sua necessidade, não bastando a simples alegação. Não exige o novo Código que a insuficiência de recursos seja declarada em documento assinado pelo próprio requerente. O próprio defensor ou advogado fará a alegação sob sua responsabilidade, atestando com a elaboração do pedido a necessidade do beneficiário. A lei cria, portanto, uma presunção de pobreza em favor daquele que a afirmar ou a alegar. Essa presunção é relativa, podendo ser ilidida por prova em contrário apresentada pelo adversário, bem como exigir a apresentação de provas concretas pelo requerente, se as circunstâncias da causa tornarem inverossímil a sua simples afirmação ou alegação de pobreza ou de insuficiência de recursos. Se a dispensa de comprovação favorece o acesso à justiça e poupa o pobre do constrangimento de pedir a terceiros declarações sobre o seu lamentável estado de penúria, não é menos verdade que esse sistema facilita o demandismo. O conceito de necessitado é impreciso, exigindo o exame de diversas circunstâncias que irão possibilitar aferir, em cada caso, se o indivíduo tem ou não condições de arcar com as despesas do processo sem prejuízo do seu sustento ou da sua família. Precisa-se saber, por exemplo, quantas pessoas vivem sob a sua dependência, se dentre essas há alguma que requeira cuidados médicos constantes. Da mesma forma, é necessário apurar quanto será necessário para custear o processo, analisando-se as circunstâncias da causa, o seu valor, a complexidade, a necessidade ou não de perícia. Logo, o dimensionamento da necessidade varia de acordo com os ganhos e encargos pessoais e familiares do pobre, assim como com os encargos do processo, já que há processos que geram mais despesas do que outros, comparados com os ganhos do pretendente. Compete, então, ao defensor ou advogado e, se questionado, ao próprio juiz avaliar caso a caso essas circunstâncias, através de um juízo de equidade acerca da necessidade do requerente do benefício. O que se verifica na prática, ao menos no âmbito da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, é a realização de uma espécie de triagem, com vistas a esclarecer a condição econômica do assistido, antes do ingresso em juízo, evitando que aqueles que disponham de recursos se utilizem indevidamente do
patrocínio gratuito fornecido pelo Estado. Nessa triagem, a Defensoria Pública também certamente examina, com bastante tolerância, a viabilidade da demanda, para que a gratuidade não se transforme em incentivo a demandas injustas, criando embaraços ao pleno gozo dos direitos pelos seus titulares e sobrecarregando a justiça com postulações fadadas ao fracasso. Como analisamos no capítulo anterior, a contribuição das partes para o custeio da administração da justiça constitui um freio à propositura de demandas infundadas, ao chamado demandismo, que é justamente o abuso do direito de demandar. Assim, a parte beneficiada pela assistência judiciária pode sentir-se estimulada a postular em juízo mesmo sabendo que não tem razão, uma vez que ela não tem nada a perder em caso de sucumbência no processo. Nos sistemas europeus de assistência judiciária, normalmente exige-se alguma comprovação da viabilidade da postulação do assistido. Essa exigência é passível de críticas, porque pode levar a algumas injustiças. Quando a inviabilidade de êxito da demanda do assistido é aferida pelo próprio juiz, isso implica praticamente um prejulgamento do direito das partes, ao passo que, quando é avaliada por um órgão diverso do órgão jurisdicional, por exemplo, a parte pode sentir-se injustiçada porque não lhe foi permitido o acesso à justiça, já que, na realidade, não foi o Poder Judiciário quem decidiu se a sua demanda era ou não viável. A Defensoria Pública, em regra, realiza esse filtro; dificilmente o defensor público irá ajuizar uma demanda manifestamente inviável. Contudo, nos casos em que é dispensado o patrocínio por advogado, como ocorre nos juizados especiais e na Justiça do Trabalho, a ausência de um exame acerca da viabilidade da causa pode escancarar as portas do judiciário para demandas manifestamente infundadas. Por essa razão, é importante encontrar-se um ponto de equilíbrio na fixação das custas judiciais, para que não haja obstáculos econômicos ao acesso à justiça e para que não seja estimulada a propositura de demandas inviáveis. Têm-se considerado também como beneficiárias da justiça gratuita algumas pessoas jurídicas, como as sociedades sem fim lucrativo. No entanto, para esses casos, a jurisprudência tem entendido ser necessária a comprovação de insuficiência de recursos para que façam jus à gratuidade (nesse sentido, a Súmula 481 do STJ), o que é corroborado pelo § 2º do artigo 99 do Código de 2015.
A presunção de pobreza, simplesmente afirmada ou alegada, tem sido instrumento de abusos, especialmente quando a assistência judiciária é prestada por um advogado privado, que nem sempre controla a sinceridade do cliente e muitas vezes se esquece de que não só a justiça fica onerada com a gratuidade concedida por quem dela não necessita, mas ele próprio, advogado, também terá de defender o cliente sem poder receber remuneração contratual. Diante dessas disposições infraconstitucionais, pode-se pensar que o advento da Constituição de 1988 significou um retrocesso em matéria de assistência judiciária, ao exigir do seu beneficiário a comprovação da sua condição de necessitado. A doutrina e a jurisprudência, entretanto, não interpretaram literalmente a parte final do inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição. Isso porque, em primeiro lugar, os direitos fundamentais constitucionalmente assegurados são estabelecidos em padrões mínimos de proteção, o que não impede que a legislação infraconstitucional estabeleça regras mais benéficas; em segundo lugar, porque a prova da pobreza passou a ser considerada constrangedora ou humilhante para o necessitado, ou seja, entende-se que a prova da própria miséria de certo modo viola a dignidade humana, na medida em que obriga o necessitado a expor todo o seu drama de vida, sua insuficiência de recursos. A presunção relativa decorrente da simples afirmação ou alegação de pobreza constitui um meio de prova, porque sujeita aquele que prestar declaração falsa à multa, no regime do Código de 1973, correspondente ao décuplo das custas (Lei n. 1.060/50, art. 4º, § 1º), e no regime do Código de 2015, comprovada a má-fé, à multa até o décuplo das despesas processuais que tiver deixado de adiantar (Código de 2015, art. 100, parágrafo único), que excepcionalmente será receita do Estado, e não da parte contrária. O juiz não está obrigado a aceitar a alegação ou afirmação de insuficiência de recursos, em face de outra prova que o convença do contrário ou da ausência de qualquer prova para robustecê-la, se a considerar necessária em face da pouca credibilidade da situação alegada.
19.5. REQUISITO PARA A CONCESSÃO DA GRATUIDADE A Lei n. 7.510/86 representou também um significativo avanço na simplificação do procedimento para a concessão e investidura do necessitado no gozo do benefício. Antes dela, o interessado-autor deveria requerer a gratuidade e a concessão do benefício antes do ajuizamento da demanda, porque tinha de
aguardar que o juiz a concedesse e determinasse ao serviço de assistência judiciária que assumisse o seu patrocínio. Dando nova redação ao artigo 4º da Lei n. 1.060/50, dispensou esse procedimento autônomo, facultando a inclusão do requerimento de gratuidade na própria petição inicial da ação. Por identidade de razões, embora silente a lei, deve entender-se que também o réu, na própria contestação, pode formular idêntico requerimento. Por isso, na vigência do Código de 1973, ficou parcialmente derrogado o artigo 6º da Lei n. 1.060, que exigia que o requerimento incidente de gratuidade fosse autuado em separado, hipótese que remanescerá apenas se o requerimento for formulado numa petição avulsa, anterior à demanda. O sistema consagrado no artigo 4º da Lei n. 1.060/50, com a redação dada pela Lei n. 7.510/86, facilitou extremamente o ingresso em juízo dos pobres, bastando afirmar as circunstâncias do artigo 4º na própria petição já subscrita pelo patrono que vai representá-los, seja ele o defensor público ou um advogado privado, e pelo próprio beneficiário. O Código de 2015 (art. 1.072) revogou os artigos 4º e 6º da Lei n. 1.060, e não mais prevê requerimento antecedente de gratuidade, salvo evidentemente se feito no bojo de tutela cautelar ou antecipada, exigindo a simples alegação de insuficiência feita pelo defensor ou advogado na primeira petição que, em nome do beneficiário, dirigir ao juiz para instaurar o processo ou no seu curso (art. 99). O juiz deverá decidir incontinenti o pedido, salvo se tiver fundadas razões para indeferi-lo (Lei n. 1.060, art. 5º). O § 1º do artigo 99 do Código de 2015 exige para o indeferimento que o juiz conceda previamente prazo ao requerente para comprovação do preenchimento dos requisitos para a sua concessão. Tanto a Lei n. 1.060 (art. 4º, § 2º) quanto o Código de 2015 (art. 100) permitem que o adversário impugne a gratuidade, assim que tomar conhecimento da sua concessão ou a qualquer tempo, para que seja revogada, provando a inexistência ou o desaparecimento dos seus requisitos.
19.6. A ESCOLHA DO ADVOGADO Calamandrei, em Processo e Democracia, releva a importância de assegurar aos pobres o direito à livre-escolha do seu advogado, essencial para que a parte
possa desfrutar de paridade de tratamento, tendo em vista o estímulo ao exercício da plenitude de defesa que representa o vínculo de confiança entre a parte e o seu patrono. Não conheço atualmente nenhum país do mundo em que essa escolha seja tão livre como a da parte que remunera o seu advogado, mas a observação de Calamandrei deve ser mencionada para que se tenha consciência de que todos os sistemas de assistência judiciária se ressentem de um déficit garantístico, que compete ao juiz suprir, pois o magistrado, diante da inferioridade em que se encontra o beneficiário da gratuidade, deve assistencialmente propiciar-lhe todos os meios de trazer a juízo os fatos e as provas que possam militar em favor do acolhimento do seu pedido ou da sua defesa. A partir da implantação das Defensorias Públicas, determinada pela Constituição de 1988, mas que, lamentavelmente, ainda não se completou em todas as organizações judiciárias, o advogado natural do necessitado será o defensor público em exercício no órgão jurisdicional em que tramite a causa ou em outro órgão de atuação da instituição. Ele terá tomado a iniciativa de entrevistar o assistido, exigir-lhe a comprovação mínima da sua situação econômica e terá elaborado e ajuizado a petição pertinente da causa, na qual requereu a gratuidade. Se o necessitado tiver se dirigido pessoalmente ao juiz, afirmando a sua situação, e o magistrado deferir a gratuidade, mandará intimar pessoalmente o defensor público em exercício naquele órgão jurisdicional para assumir a sua defesa (Lei n. 1.060/50, art. 5º, §§ 1º e 5º). Se houver Defensoria Pública organizada, mas não houver defensor designado para atuar no órgão ou na causa, o juiz, consoante o mesmo § 1º do artigo 5º, oficiará ao chefe desse órgão para que, em dois dias, designe um defensor. O defensor institucional, que faz parte do serviço de assistência judiciária estatal, possui algumas prerrogativas processuais, dentre elas a concessão de prazo em dobro e a intimação pessoal de todos os atos do processo (art. 5º, § 5º, da Lei n. 1.060/50; Código de 2015, art. 186). Enquanto não existir Defensoria Pública organizada, caberá à subseção da Ordem dos Advogados do Brasil na comarca a designação do advogado (art. 5º, § 2º), o que deverá fazer distribuindo equitativamente entre os advogados da
região o encargo da defesa gratuita dos pobres. Em algumas organizações judiciárias, como a da Justiça Federal, o próprio tribunal de 2º grau tem criado, com a colaboração da OAB, listas de advogados voluntários, aos quais o tribunal paga uma parca remuneração e que são designados para cada causa pelos próprios juízes. Esse sistema, ao arrepio da lei, compromete profundamente a independência dos advogados, pois esses passam a depender, na percepção de parte da sua remuneração, da designação do juiz. O defeito da escolha pelo juiz não se refere apenas à preferência manifestada pelo magistrado, o que alguns procuram evitar através de uma escolha impessoal, por sorteio ou em determinada sequência objetiva. Mais grave é que o juiz que nomeia pode entender que também possa destituir o advogado, o que, em alguns casos, tem ocorrido, submetendo o desempenho profissional do advogado à censura judicial. À falta de Defensoria Pública e de subseção da OAB no município, apenas nessa hipótese extrema, prevê a Lei (art. 5º, § 3º) a designação do advogado pelo juiz. Em todos esses casos, o advogado dativo não juntará procuração, pois a sua representação decorre de investidura pela Defensoria Pública, pela OAB ou pelo juiz. Entretanto, poderá o assistido recorrer a um advogado particular, por ele escolhido, desde que esse formalmente aceite defendê-lo sem qualquer remuneração, mediante a outorga de procuração, opção a que a Lei dá preferência em relação às anteriores (art. 5º, § 4º). Também poderá o necessitado outorgar procuração a advogado de escritório de prática jurídica de faculdade de Direito reconhecida ou de entidade que, em convênio com a OAB ou a Defensoria Pública, preste assistência jurídica gratuita, que também disporá de prazos em dobro (Código de 2015, art. 186, § 3º).
19.7. OUTROS ASPECTOS LEGAIS DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA No regime do Código de 1973, o arbitramento dos honorários da sucumbência, nas causas em que uma das partes seja beneficiária da assistência judiciária, está
sujeito a limite máximo diverso do fixado no § 3º do artigo 20 desse. Enquanto este estabelece um limite mínimo de dez por cento e um máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação, o § 1º do artigo 11 da Lei n. 1.060/50 fixa um limite máximo de quinze por cento sobre o líquido apurado na execução da sentença. No regime do Código de 2015 desaparece esse dispositivo (art. 1.086). O artigo 13 da Lei n. 1.060/50 e o artigo 98, § 5º, do Código de 2015 preveem a possibilidade de deferimento parcial da gratuidade de justiça, que abrangerá apenas determinados atos processuais ou despesas específicas. É o que ocorre, por exemplo, nos casos em que a instrução probatória demanda a realização de uma prova pericial de alta complexidade. Nessa hipótese, pode a parte ser isentada apenas do pagamento das custas relativas aos honorários do perito, uma vez que tal despesa poderia comprometer o seu orçamento pessoal ou familiar. É importante frisar que, a partir do momento em que o advogado requerer a gratuidade de justiça, ainda que parcial, ele perderá o direito a receber os respectivos honorários contratuais. Cabe também comentar, por fim, que algumas das disposições da Lei n. 1.060/50 foram revogadas pela legislação posterior, como as previstas nos seus artigos 16 e 18. O primeiro prevê a possibilidade de outorga de procuração apud acta, o que, atualmente, não é mais cabível, em face do que dispõem os artigos 37 do Código de 1973 e 104 do Código de 2015, ao exigirem instrumento de procuração na forma escrita; o segundo foi derrogado pelo que dispôs a Lei n. 8.906/94, que não permite aos acadêmicos de direito a prática de atos privativos do advogado, a não ser ao estagiário regularmente inscrito nos quadros da OAB, devendo os seus atos serem ratificados por um advogado. O artigo 1.072 do Código de 2015 expressamente revoga os artigos 2º, 3º, 4º, caput e §§ 1º a 3º, 6º, 7º, 11, 12 e 17 da Lei n. 1.060/50. Em princípio, portanto, a gratuidade é conferida sem contraditório prévio, mediante simples afirmação do requerente; o contraditório sobre a gratuidade de justiça somente vai se instaurar se a parte contrária a impugnar. Revogada a gratuidade, a nova decisão produzirá efeitos para o futuro, a menos que essa revogação tenha se baseado na falsidade da afirmação de pobreza feita pelo requerente no início da causa, hipótese em que o juiz determinará o recolhimento das custas iniciais, da taxa judiciária etc. (Código de 2015, art. 100, parágrafo único).
19.8. QUESTÕES EM ABERTO A assistência judiciária aos pobres no Processo Civil é um direito que ainda está muito distante de atingir o nível desejado. Em Estados que ainda não implantaram as suas Defensorias Públicas, existem convênios para a prestação de assistência judiciária por advogados credenciados. Nos que têm Defensorias Públicas, em geral os defensores têm sob a sua responsabilidade muito mais causas do que um advogado comum teria capacidade de patrocinar. A ausência de vínculo de confiança da parte em relação ao advogado dativo dificulta a sua defesa e também a sua participação na conciliação. Há municípios que organizam os seus próprios serviços de assistência judiciária. Os advogados desses órgãos, que não integram as Defensorias Públicas, devem ser tratados como advogados privados ou como defensores públicos, com prazos em dobro e intimações pessoais? Devem ser investidos por procuração ou por designação do respectivo chefe? Podem receber poderes especiais para a prática de atos de disposição? A recente Lei n. 11.448/2007 atribuiu à Defensoria Pública legitimidade para propor ações civis públicas. Essa legitimidade se estende a todas as espécies de direitos coletivos lato sensu, a saber, direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos? Essa legitimidade está vinculada apenas a interesses dos economicamente necessitados ou também de quaisquer outros cidadãos ou grupos, ou, ainda, daqueles que são necessitados num sentido mais amplo, de não terem condições práticas de postular o seu direito individualmente? Essas questões são ainda polêmicas. Não vejo com bons olhos a expansão das atribuições da Defensoria Pública, quando, sabidamente, ainda carecem os economicamente necessitados dos meios indispensáveis a demandarem em juízo em condições de razoável equilíbrio. Recorde-se que o Código de 2015, no artigo 185, declara que a Defensoria Pública exercerá a orientação jurídica e a promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos individuais e coletivos dos necessitados em todos os graus, e que o § 3º do mesmo artigo estendeu essas mesmas atribuições aos escritórios de prática jurídica das faculdades de Direito reconhecidas na forma da lei e às entidades que prestam assistência jurídica gratuita em razão de convênios firmados com a própria Defensoria Pública. Quando representa algum necessitado, a legitimidade não é propriamente da
Defensoria, mas do sujeito em favor do qual atua, que deve ser devidamente qualificado e que figurará como sujeito principal do processo. Quando atua na função de curador especial (CPC de 1973, art. 9º, inc. II; CPC de 2015, art. 72), o defensor público age em nome próprio na defesa de interesse alheio, como substituto processual, podendo propor ações ou procedimentos inerentes ao pleno exercício dessa função, em que também deverá declinar a identidade do beneficiário. Após a Constituição de 1988, a atuação da Defensoria Pública ganhou uma nova dimensão, extravasando muito da simples assistência judiciária gratuita aos necessitados. A Lei Complementar n. 80/94 lhe confere uma série de funções que não se referem necessariamente à defesa judicial de pessoa determinada em processo determinado, por exemplo (art. 4º, com a redação da Lei Complementar n. 132/2009): promover a solução extrajudicial dos litígios (inc. II); promover a ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos “quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes” (inc. VII); impetrar mandado de segurança ou qualquer outra ação em defesa das funções institucionais e prerrogativas de seus órgãos de execução (inc. IX); promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela (inc. X); exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado (inc. XI); executar e receber as verbas sucumbenciais decorrentes de sua atuação (inc. XXI). No exercício do direito de ação ou na promoção de procedimento de jurisdição voluntária em benefício de pessoas determinadas ou de grupos específicos, ainda que compostos de pessoas de identidade não definida, deverá o defensor público identificá-los para que o juiz e os demais sujeitos eventualmente interessados no procedimento possam constatar a caracterização da sua legitimidade. Se a sua iniciativa tiver por finalidade a defesa de interesse da própria instituição, como nas hipóteses dos incisos IX e XXI supracitados, a legitimidade decorre da adequação da situação fático-jurídica descrita à hipótese legalmente prevista. Por fim, a isenção da antecipação de honorários periciais tem constituído um
grave obstáculo ao acesso à justiça pelos pobres, porque esses honorários muitas vezes compreendem gastos para a realização das observações do perito, sem cuja antecipação a prova se torna impossível, ou ocupam com tanta intensidade o horário de trabalho do profissional escolhido, que é absolutamente injusto exigir que o seu serviço seja prestado sem qualquer remuneração. Nesses casos, o judiciário precisa aparelhar-se para custear diretamente esses gastos através de receitas públicas, o que alguns tribunais, em valores bastante modestos, já vêm realizando e o Código de 2015 favorece (art. 95, §§ 3º e 4º). ________ 1 CHIOVENDA, Giuseppe. Le riforme processuali e le correnti del pensiero
moderno. In: Saggi di diritto processuale. Milano: Giuffrè, 1993. 1º v. p. 379 e ss. 2 CAPPELLETTI, Mauro; GORDLEY, James; JOHNSON JR, Earl. Toward
equal justice: a comparative study of legal aid in modern societies. Milano: Giuffrè; New York: Dobbs Ferry, 1975; CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Access to justice. Emerging issues and perspectives. Milano: Giuffrè; Sijthoff and Noordhoff: Alphen aan den Rijn, 1979. 3º v. 3 ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos! Assistência jurídica gratuita
nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 4 CALAMANDREI, Piero. Processo… p. 618 e ss.
O conjunto de institutos que compõe o chamado processo cumulativo está disciplinado de modo fragmentado no Código de Processo Civil. Em que pese não estar sistematizado organicamente na lei processual, é possível identificar diversas características comuns a esses institutos, que permitem a aplicação analógica das regras estabelecidas na disciplina de uns aos outros, justamente pela similitude existente. Tais institutos, em verdade, fazem parte de um mesmo conjunto, que é o da cumulação de demandas num mesmo processo ou cumulação de ações. Usualmente, observa-se que as relações jurídico-processuais se formam em torno de uma única demanda: um pedido, com um só fundamento, de um único autor contra um único réu. Entretanto, com muita frequência, em razão de fenômenos muito variados, pode ser formada uma única relação processual para o julgamento ou para a resolução de várias demandas. É o que denominamos processo cumulativo ou cumulação de ações, em que um processo único, uma única relação jurídico-processual cria direitos, deveres, ônus e poderes entre todos os sujeitos envolvidos, destinando-se ao exercício da jurisdição em relação a várias demandas, a várias ações, ou mais precisamente a duas ou mais ações. Por cumulação de ações, portanto, se entende o fenômeno que ocorre quando no mesmo processo se reúnem duas ou mais demandas a serem instruídas e decididas ou resolvidas simultaneamente. Aproveita-se um só processo para resolver duas ou mais ações. O processo é único, mas as demandas são várias. Não é toda pluralidade de ações no mesmo processo que gera cumulação de ações, pois há casos em que, proposta uma ação no curso de outra, aquela, de natureza incidente, provoca a suspensão da tramitação desta, sendo instruída em separado e resolvida em decisão específica, após a qual o processo retoma o seu curso em direção à solução da ação originária. É o que ocorre, por exemplo, no regime do Código de 1973 no incidente de arguição de falsidade (arts. 390 a 394), e no regime do Código de 2015 nesse mesmo incidente se a parte requerer que o juiz a decida como questão principal (art. 430, parágrafo único). É da essência da cumulação de ações a formação do simultaneus processus, ou seja, de um processo cumulativo, no qual as ações reunidas no mesmo processo
serão instruídas e resolvidas em conjunto, pelo menos no julgamento final do seu mérito. Como já disse, o legislador processual e a própria doutrina ainda não conseguiram dar a todos os institutos que compõem o processo cumulativo um tratamento harmonioso, sistemático. Em 1976, realizei uma pequena tentativa nesse sentido, quando apresentei à Congregação da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro uma tese sobre o tema para um concurso de livre-docência – pois essa era a última oportunidade para realizar tal concurso –, previsto na legislação da época. Na oportunidade, tentei examinar as características comuns a esses vários institutos; contudo, esse trabalho jaz até hoje nos arquivos da referida Faculdade. Nunca foi defendido ou publicado, porque o referido concurso jamais se concretizou. Trinta anos mais tarde voltei ao assunto na prova escrita do meu concurso para professor-adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, estudo que publiquei, depois de revisto1. Considero importante a compreensão sistemática desses institutos porque o exame conjunto do tema ajuda a resolver problemas que o seu estudo isolado não esclarece. Para que se tenha ideia dos institutos que compõem o processo cumulativo, é conveniente identificar os principais. A cumulação de pedidos é o primeiro desses institutos. Ela ocorre quando o autor formula contra o mesmo réu, num único processo, vários pedidos, ainda que entre eles não exista conexão (CPC de 1973, art. 292; CPC de 2015, art. 327). Há, ainda, institutos que permitem a uma das partes a propositura, incidentalmente, no mesmo processo preexistente, de uma nova ação contra o seu adversário, para ser instruída e resolvida juntamente com a ação originária. São os casos da reconvenção (CPC de 1973, art. 315; CPC de 2015, art. 343) e da ação declaratória incidental (CPC de 1973, arts. 5º, 325 e 470) e formalmente abolida no Código de 2015. Pode ocorrer também de um terceiro, que não faça parte da relação processual originária, voluntariamente, propor uma ação incidente em processo alheio e dele passar a fazer parte como sujeito principal. É o que se verifica na oposição, regulada nos artigos 56 a 61 do Código de 1973 e nos artigos 682 a 686 do
Código de 2015 e que será tratada mais adiante, quando for feito o estudo das modalidades de intervenção de terceiros. Há outras hipóteses em que o terceiro é chamado a intervir no processo por iniciativa de uma das partes, como na denunciação da lide (CPC de 1973, arts. 70 a 76; CPC de 2015, arts. 125 a 129) e no chamamento ao processo (CPC de 1973, arts. 77 a 80; CPC de 2015, arts. 130 a 132). Vários sujeitos podem litigar em um mesmo processo, seja no polo ativo ou no passivo. Quando se verifica uma dessas situações, há o litisconsórcio, ativo ou passivo (CPC de 1973, arts. 46 a 49; CPC de 2015, arts. 113 a 118). Há hipóteses de ações que originariamente se processam em separado, através de processos autônomos, mas que, posteriormente, se reúnem num único processo, como nos casos de reunião de ações conexas (CPC de 1973, arts. 102 e 103; CPC de 2015, arts. 54 e 55). A partir da vigência da Lei n. 11.232/2005, criou-se o cumprimento da sentença que impõe prestação pecuniária no mesmo processo em que foi ela proferida (CPC de 1973, arts. 475-I a 475-R; CPC de 2015, arts. 513 a 538), o que, a meu ver, deu origem a uma nova modalidade de processo cumulativo, que vem sendo denominado processo sincrético.
20.1. CLASSIFICAÇÃO DO PROCESSO CUMULATIVO Apenas para compreender melhor a sua unidade sistemática, podemos classificar as diversas espécies de processo cumulativo, quanto ao elemento identificador da demanda, que varia nas diversas ações cumuladas, em cumulação objetiva e cumulação subjetiva. Não é demais lembrar que os elementos identificadores da demanda são: as partes (elemento subjetivo), a causa de pedir e o pedido (elementos objetivos). Na cumulação objetiva, o que varia, ou seja, o elemento plural é um dos elementos objetivos da demanda. Por exemplo: se o autor formula diversos pedidos contra o réu, essa cumulação é objetiva, vez que a pluralidade se encontra no pedido, que é um elemento objetivo da demanda. Na cumulação subjetiva, o elemento da demanda que varia é o subjetivo, ou seja, as partes; existirão, portanto, mais de um autor, ou mais de um réu, ou, simultaneamente, dois ou mais autores e dois ou mais réus.
Em vários desses institutos, especialmente nas modalidades de intervenção de terceiros, há, ao mesmo tempo, cumulação objetiva e subjetiva de demandas. Assim, por exemplo, quando o opoente reivindica para si o direito que as partes estão disputando. Nesse caso, a partir da oposição, haverá necessariamente mais de um sujeito principal na relação processual, gerando uma cumulação subjetiva, mas também irá existir mais de um fundamento jurídico – que, ao lado dos fatos, compõe a causa de pedir – a ser apreciado pelo juiz, que é o fundamento da ação incidente, proposta pelo opoente. Então, no exemplo citado, não há somente pluralidade de elementos subjetivos, mas também pluralidade de elementos objetivos. Outro critério de classificação do processo cumulativo é o que leva em consideração o momento em que ocorre a cumulação. De acordo com esse critério, a cumulação de ações num mesmo processo pode ser inicial ou ulterior. Ocorre a cumulação inicial quando o processo já nasce cumulativo, quando as várias demandas já foram propostas cumuladamente. É o caso do litisconsórcio inicial e da cumulação de pedidos inicial. Por sua vez, a cumulação ulterior é aquela que não existiu desde o início do processo, mas formou-se depois de instaurados um ou mais processos originais, como a que ocorre nos casos de reconvenção, de ação declaratória incidental, de oposição, de chamamento ao processo e de reunião de ações conexas. Resumidamente, por esse critério, a cumulação pode existir desde o início ou surgir no curso do processo, depois da sua formação. É necessário saber a utilidade da cumulação de ações num mesmo processo. Por que a legislação favorece essa cumulação? Existem duas razões que justificam a conveniência da reunião de várias ações num mesmo processo: (i) se duas ou mais ações têm algum elemento comum, que deva ser apreciado no seu julgamento, é conveniente que esse ponto seja decidido uniformemente em todas essas ações, evitando-se decisões contraditórias; (ii) se várias demandas podem ser resolvidas num único processo, diminui o tempo da prestação jurisdicional, evita-se a superposição de atos e reduzem-se a atividade e os custos da máquina judiciária. Atende-se, em última análise, à coerência entre decisões sobre causas diversas em pontos comuns e aos princípios da economia e da celeridade processual.
Suponha-se que determinado locador propôs contra o locatário ação de despejo por falta de pagamento. Paralelamente, o locatário propôs contra o locador ação de consignação em pagamento, alegando que este não quer receber os aluguéis. De um lado, o locador quer despejar o locatário, sob o argumento de que ele não está em dia com o pagamento dos aluguéis e com os demais encargos da locação; de outro, o locatário quer obter uma sentença declaratória na ação de consignação, no sentido de que ele está em dia com as obrigações da locação. Então, o adimplemento das obrigações contratuais pelo locatário é um ponto essencial para julgar essas duas ações, de modo que, se julgadas em separado, podem sobrevir decisões contraditórias a esse respeito. Seria incongruente se, na ação de consignação em pagamento, o locatário obtivesse a quitação dos aluguéis e dos encargos, porque se reconheceu que ele estava em dia com as suas obrigações, mas, apesar disso, na ação de despejo, que corre em separado, o contrato de locação fosse rescindido por inadimplemento. A primeira utilidade de reunir essas duas ações, então, é a de saber se o locatário está ou não em dia com os aluguéis e com os demais encargos da locação, possibilitando ao Poder Judiciário proferir decisões coerentes quanto a um mesmo litígio. A formação desse processo cumulativo evita decisões contraditórias sobre algum ponto comum, de fato ou de direito, nessas duas demandas. A segunda utilidade do processo cumulativo, como antes referida, é a economia processual. A justiça é exercida com mais eficiência, quando se aproveita um único processo para resolver várias demandas, vários litígios. Ainda com base no exemplo dado, imagine-se que a ação de despejo esteja em trâmite em determinada vara cível e a ação de consignação em outra. Tal fato acarretaria trabalho para dois cartórios, para dois juízes, o que geraria maior despesa ao Estado. Então, economicamente, é conveniente a reunião dos processos. Às modalidades de cumulação até aqui mencionadas, que eu chamaria de principais, poderiam ser acrescentadas outras espécies de processo cumulativo, em que as ações cumuladas não são instruídas e resolvidas simultaneamente, mas em que existe uma relação de acessoriedade de umas em relação às outras, sendo a ação acessória objeto de decisão incidente no mesmo processo, com ou sem cognição exaustiva. A elas nos limitaremos apenas a fazer menção, relegando o seu estudo para outro momento, porque não apresentam as
características comuns da cumulação com a formação do simultaneus processus. São exemplos dessa cumulação acessória o incidente de arguição de falsidade (CPC de 1973, arts. 390 a 395; CPC de 2015, arts. 430 a 433), a impugnação ao cumprimento da sentença (CPC de 1973, arts. 475-L e 475-M; CPC de 2015, art. 525, §§ 1º e 6º) e a propositura de medida cautelar incidente (CPC, art. 273, § 7º; CPC de 2015, art. 305, § 5º). Essa acessoriedade também se verifica na apreciação sumária pelo juiz de pretensões de direito material instrumentais, como o arbitramento dos honorários do perito, o arbitramento do reembolso de despesas em favor da testemunha e o deferimento da arrematação. A inexistência de instrução e solução simultânea também ocorre no processo sincrético, em que as diversas ações cumuladas se encadeiam em fases num único processo: cognição, liquidação e cumprimento (CPC de 1973, arts. 475-A a 475-R; CPC de 2015, arts. 509 a 538).
20.2. CARACTERÍSTICAS DA CUMULAÇÃO DE AÇÕES No estudo que realizei há aproximadamente trinta anos, cheguei a apontar oito características do processo cumulativo. Todavia, hoje, contento-me em apontar de plano apenas duas, que incontestavelmente são aceitas por toda doutrina e estão dispostas nos artigos 292 do Código de 1973 e 327 do Código de 2015, que cuidam da cumulação de pedidos. A primeira é a identidade de competência absoluta e a segunda é a unidade de procedimento. Um dos requisitos de admissibilidade de qualquer cumulação de ações, e não apenas da cumulação de pedidos, é ser o mesmo juízo absolutamente competente para conhecer das duas ou mais ações cumuladas (CPC de 1973, art. 292, § 1º, inc. II; CPC de 2015, art. 327, § 1º, inc. II). Isso significa que somente é possível cumular num mesmo processo, em cumulação inicial ou ulterior, objetiva ou subjetiva, duas ou mais ações, quando para todas elas o juiz for igualmente competente pelas regras de competência absoluta. Assim, não se pode cumular uma ação cuja competência seja da vara de família com outra da competência da vara cível, uma vez que essas competências são absolutas e distintas, ditadas em razão da matéria. Por exemplo: certa mulher foi
agredida verbalmente pelo marido e quer propor contra ele duas ações: uma ação de separação e uma ação de indenização. Ocorre que a ação de separação é da competência da vara de família, enquanto a ação de indenização é da competência da vara cível. A criação de órgãos jurisdicionais especializados em razão da matéria é assunto a ser tratado pela lei de organização judiciária de cada Estado, e, então, numa determinada comarca certas causas poderão ser cumuladas, enquanto noutras, não, justamente em razão da existência dessas varas especializadas. De acordo com a lei, não será permitida a cumulação dessas ações. No Estado do Rio de Janeiro, há uma exceção a essa regra, por força de disposição expressa da lei de organização judiciária, que diz respeito à ação de investigação de paternidade, quando cumulada com a ação de petição de herança. A ação de investigação de paternidade, isoladamente, é da competência da vara de família, ao passo que a ação de petição de herança é da competência da vara de órfãos e sucessões. Admite-se, entretanto, a cumulação do pedido de investigação de paternidade com a reivindicação de herança num mesmo processo, quando cumuladas as duas ações na vara de família (Lei estadual RJ n. 6.956/2015, art. 43, inc. I, alínea b). Há, nesses casos, portanto, uma extensão da competência em razão da matéria da vara de família para a petição de herança, quando esse pedido for cumulado com o de investigação de paternidade. Esse requisito de identidade de competência absoluta é encontrado em todos os institutos mencionados linhas acima. Logo, não é possível reunir ações conexas, reconvir, oferecer oposição, denunciação da lide e assim por diante, quando não houver identidade de competência absoluta para as demandas que se pretende cumular. Outra situação excepcional de cumulação de ações sem identidade de competência absoluta ocorre nas hipóteses em que a União intervém em causas que estão em curso perante a justiça dos Estados. Nos termos do artigo 109, inciso I, da Constituição, a Justiça Federal é competente para processar e julgar as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes. Vale dizer, se a União oferecer oposição numa ação que está em curso na Justiça Estadual, embora ela não seja parte na ação originária, a sua intervenção como opoente deslocará a competência para a Justiça Federal. Nesses casos, a Justiça
Federal exerce força atrativa, por disposição constitucional, porque sua competência absoluta pode vir a estender-se a demandas em relação às quais ela normalmente não seria competente. Esse deslocamento para a Justiça Federal por força de intervenção da União pode esbarrar numa importante garantia fundamental do processo, qual seja, a do juiz natural (Constituição, art. 5º, inc. LIII). Imagine-se que, numa comarca do interior, esteja correndo uma causa entre fazendeiros e posseiros do Movimento dos Sem-Terra. Mesmo sendo uma causa entre particulares, pode ser que a decisão ou o encaminhamento que a Justiça Estadual esteja dando ao processo não agrade ao governo federal. Consequentemente, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, ente responsável pela política fundiária nacional, intervém nessa ação para deslocar a competência para a Justiça Federal. Essa situação, obviamente, viola a garantia constitucional do juiz natural, pois, na verdade, aquela autarquia federal estaria usando a regra constitucional do artigo 109, inciso I, somente com o intuito de subtrair a causa do juiz legalmente competente. Por isso, a intervenção da União, das autarquias federais e das empresas públicas federais nas causas que estejam pendentes perante outras Justiças que não a Federal, em regra, tem de fundamentar-se em interesse jurídico claro, determinado e concreto. A Lei n. 9.469/97, oriunda da conversão da Medida Provisória 1.561, de 1997, veio a admitir a intervenção da União em qualquer causa pendente perante outra Justiça, mesmo sem necessitar demonstrar interesse jurídico (art. 5º, caput e parágrafo único). Estabelece o dispositivo legal mencionado: “A União poderá intervir nas causas em que figurarem, como autoras ou rés, autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas públicas federais.” Prossegue o seu parágrafo único: “As pessoas jurídicas de direito público poderão, nas causas cuja decisão possa ter reflexos, ainda que indiretos, de natureza econômica, intervir, independentemente da demonstração de interesse jurídico, para esclarecer questões de fato e de direito, podendo juntar documentos e memoriais reputados úteis ao exame da matéria e, se for o caso, recorrer, hipótese em que, para fins de deslocamento de competência, serão consideradas partes.”
Inicialmente, eu considerava esse dispositivo absolutamente inconstitucional, pois veio a permitir a intervenção da União, com deslocamento da causa para a Justiça Federal, mesmo que ela não tenha interesse jurídico na causa, ou seja, possibilitou que a União intervenha tão somente para deslocar a causa para a Justiça Federal, o que viola flagrantemente a garantia do juiz natural. Hoje, todavia, entendo que determinadas causas envolvem matérias afetas a políticas públicas cujas regulação e condução incumbem ao Poder Executivo federal, através de seus órgãos e agências. Nesses casos, portanto, ainda que o interesse não seja propriamente o de reivindicar ou fazer prevalecer um determinado direito subjetivo, é também um interesse decorrente de um dever jurídico, que impõe a esses órgãos públicos atuarem na implementação de políticas públicas, que podem ser afetadas por decisões judiciais. É o que ocorreria, por exemplo, com a intervenção de uma agência (ANATEL, ANEEL) em litígio entre um concessionário do serviço público, sob sua esfera de controle estatal, e um usuário, que dissesse respeito às obrigações do primeiro para com o segundo. O Código de 2015 tentou resolver esse problema no artigo 45, prevendo o deslocamento para a Justiça Federal de causa em que intervenha um ente federal, na qualidade de parte ou de terceiro, exceto a recuperação judicial, a falência, a insolvência civil, as ações acidentárias e as de competência da justiça eleitoral e do trabalho. Entretanto, no intuito de evitar a utilização abusiva dessa intervenção, permite que o juízo de origem recuse o deslocamento “se houver pedido cuja apreciação seja de competência do juízo junto ao qual foi proposta a ação”, mas nesse caso determina que aquele juízo não aprecie o mérito da causa em que haja interesse de ente federal (§§ 1º e 2º). Essas regras não são satisfatórias porque, evitando confronto com a Súmula 150 do STJ, que estabelece que a existência de interesse jurídico que justifique a presença de ente federal é matéria da competência da Justiça Federal, não resolvem o verdadeiro problema, que ocorre justamente quando o ente federal manifesta interesse numa causa sobre pedido cuja apreciação não é da competência da justiça federal, mas que passa a sê-lo pela intervenção do ente federal como assistente (Constituição, art. 109, inc. I). A força atrativa da competência federal, a que anteriormente aludimos, é constitucional. Parece-me que a solução deve ser buscada por outra via que as regras desse novo artigo não favorecem. Se o ente federal intervém como parte ou como assistente de uma das partes, porque tem interesse jurídico
em que a causa seja resolvida a favor de uma das partes, ainda que esse interesse se origine da sua responsabilidade de mobilizar a implementação de uma determinada política pública de sua competência, há um interesse federal preponderante que, nos termos do preceito constitucional referido, devem determinar o deslocamento do julgamento para a Justiça Federal. No entanto, se o ente federal intervém apenas para auxiliar o juízo, como amigo da corte ou como fiscal da lei, sem manifestar interesse próprio em que a causa seja decidida a favor de A ou de B, embora eventualmente informando, como um terceiro alheio aos interesses em conflito, que entende que deva ser decidida num ou noutro sentido, aí não se caracteriza a força atrativa da competência da Justiça Federal e a causa deve seguir no juízo de origem. É importante ressaltar que o processo cumulativo, em certos casos, pode tornarse tão complexo a ponto de dificultar o acesso à justiça das partes. Nessas hipóteses, a economia processual – uma das vantagens da cumulação principal de ações num único processo – será desvirtuada, podendo haver até uma morosidade maior na prestação jurisdicional. Para resolver esse problema, a Lei n. 8.952/94 introduziu um parágrafo único no artigo 46 do Código de 1973, reproduzido no § 1º do artigo 113 do Código de 2015, que, embora se refira ao litisconsórcio, também deve ser aplicado às demais hipóteses de processo cumulativo. De acordo com esse dispositivo, pode o juiz limitar o número de litigantes ou desmembrar os processos cumulados, quando, em razão da cumulação, a defesa do réu (ou de um dos corréus) se tornar excessivamente onerosa ou restringir-se demasiadamente o acesso à justiça por parte do autor, comprometendo a rápida solução do litígio. Dessa hipótese trataremos um pouco adiante. A segunda característica comum a todas as hipóteses de processo cumulativo é a da unidade de procedimento (CPC de 1973, art. 292, § 1º, inc. III; CPC de 2015, art. 327, § 1º, inc. III). O procedimento é o rito ou a forma que adotam os atos que compõem o processo. O procedimento prescreve a ordem dos atos do processo, o prazo em que devem ser praticados, os requisitos de cada ato, assim como os direitos, os deveres, os ônus e os poderes dos sujeitos do processo. Ora, se um pedido exige um procedimento diferente do exigido pelo outro, eles não podem ser cumulados num mesmo processo, pois o procedimento tem de ser único. Ou o procedimento
segue um determinado encadeamento comum a todas as demandas, ou o processo será uma grande desordem. Se os pedidos exigirem procedimentos diversos e a sua cumulação for inicial, o autor pode cumulá-los, desde que opte para todos eles pelo procedimento ordinário ou comum (CPC de 1973, art. 292, § 2º; CPC de 2015, art. 327, § 2º). Por exemplo, na vigência do Código de 1973, uma ação de valor inferior a 60 (sessenta) salários mínimos, que poderia ser proposta através do procedimento sumário (art. 275, inc. I), pode ser cumulada com outra de valor superior a 60 (sessenta) salários mínimos, desde que o autor opte para ambas, com expressa e obrigatória menção na petição inicial, pelo procedimento ordinário. Como o procedimento ordinário possui formas e prazos mais amplos, sendo, portanto, o mais garantístico, não há prejuízo algum para as partes, se nele forem cumulados pedidos que adotariam, isoladamente, outros procedimentos mais concentrados. É o que ocorre, também na vigência do Código de 1973, quando se cumula determinada ação possessória, que tem um rito especial com uma ação de reivindicação de propriedade, que segue o rito ordinário. Essas duas ações podem ser cumuladas, mas o autor deixará de obter as vantagens existentes no procedimento especial da ação possessória, já que ambas deverão seguir o rito ordinário. Essa é uma escolha do autor: se ele almeja usufruir das vantagens contidas no procedimento mais concentrado da ação possessória, deve propor as demandas em separado; por outro lado, se preferir um processo mais econômico, com menor risco de decisões contraditórias, deve propor as demandas cumulativamente, adotando o procedimento ordinário para ambas. O Código de 2015, fortemente influenciado pela preocupação com a flexibilização dos procedimentos, no § 2º do artigo 327 estabelece que na opção pelo procedimento comum poderão ser utilizadas as técnicas processuais diferenciadas dos procedimentos especiais a que se sujeitam um ou mais pedidos cumulados, desde que não sejam incompatíveis com as regras do procedimento comum. Assim, no último exemplo dado, a liminar possessória prevista no artigo 562 poderá ser requerida e concedida na cumulação do pedido possessório com o reivindicatório. Igualmente na investigação de paternidade cumulada com alimentos poderão ser arbitrados os alimentos provisórios previstos no artigo 4º da Lei n. 5.478/68, o que também encontra suporte na conjugação dos artigos 693, parágrafo único, e 694 do Código de 2015.
O procedimento sempre deve ser indicado na petição inicial. Na vigência do Código de 1973, essa exigência decorre implicitamente do disposto no artigo 295, inciso V, que determina o indeferimento da petição inicial quando o tipo de procedimento escolhido pelo autor não corresponder à natureza da causa ou ao valor da ação. Na vigência do Código de 2015 não existe preceito correspondente, que pode parecer desnecessário, e não existem mais dois procedimentos comuns, o ordinário e o sumário, mas apenas um. Entretanto, desde a petição inicial o procedimento que o processo seguirá deve estar determinado. É uma exigência de clareza da petição inicial. Normalmente, o próprio pedido já implica determinado procedimento, como numa ação de dissolução parcial de sociedade ou numa interdição. Contudo, em muitos casos, da leitura da inicial pode gerar dúvida sobre o procedimento a seguir, mas cabe ao autor defini-lo, como resulta claramente de diversos dispositivos do Código de 2015, como os artigos 327, § 2º, 382, § 4º, 509, 510, 538, § 3º, 548, 549 e 700, § 5º. Assim, a indicação do procedimento é um dos requisitos da petição inicial, assunto que será examinado com maiores detalhes no volume seguinte desta obra. Portanto, a unidade de procedimento é essencial; é um requisito comum a todas as modalidades de processo cumulativo. O procedimento tem de ser o mesmo do início ao fim do processo, a fim de se estabelecer um equilíbrio na relação processual e assegurar a paridade de armas, por meio da igualdade de prerrogativas, de direitos, de deveres e de ônus das partes. Por vezes, é possível cumular duas ações de procedimentos especiais. Por exemplo: tanto a ação de despejo por falta de pagamento como a ação de consignação em pagamento seguem procedimentos especiais. No entanto, depois de contestadas, ambas as ações seguem o rito ordinário, de maneira que, depois do prazo de defesa, é possível cumular a consignação e o despejo, pois o que cada uma dessas ações tem de especial em seu procedimento corresponde a uma fase superada no início do processo. Nada impede, portanto, que a partir dessa fase elas se reúnam. Então, essas duas características todas as modalidades de processo cumulativo principal têm de apresentar: identidade de competência pelas regras de competência absoluta e unidade de procedimento. Cabe observar que, quando a decisão de uma questão depende do
reconhecimento de outra, pendente de julgamento num processo diverso, que não pode ser reunido com o primeiro por adotarem ritos diferentes, é possível que um desses processos seja suspenso, até que a questão que lhe é prejudicial seja resolvida no outro (CPC de 1973, art. 265, inc. IV; CPC de 2015, art. 313, inc. IV, alínea a). Há, contudo, duas exceções a essa possibilidade de cumulação de pedidos através da adoção do procedimento ordinário ou comum para todos eles. São regras não escritas, mas aceitas pela doutrina. A primeira exceção veda a cumulação de ação relativa ao estado das pessoas com outra que não tenha esse mesmo fundamento; a segunda impossibilita cumular ações universais com qualquer outra. No caso da primeira vedação, o Código de 1973 estabelece apenas que as ações relativas ao estado e à capacidade das pessoas não poderão adotar o procedimento sumário (CPC, art. 275, parágrafo único). A mesma proibição também se aplica ao procedimento dos juizados especiais (Lei n. 9.099/95, art. 3º, § 2º). No tocante à segunda restrição, cabe esclarecer que ações universais são aquelas que dizem respeito a uma universalidade de bens, tais como o inventário, o arrolamento, a falência e a recuperação judicial. O inventário, bem como a falência, não comporta o rito ordinário ou comum. São ações que têm uma configuração própria. Nesse caso, ainda que mais garantístico, o procedimento ordinário ou comum não poderá ser adotado devido à sua incapacidade de satisfazer à complexidade de demandas ou de incidentes que existem ou podem surgir numa ação universal. Então, as duas exceções à possibilidade de cumulação de diversas ações num mesmo processo, através da adoção do rito ordinário para todas elas, são as cumulações de ações relativas ao estado das pessoas e de ações universais com quaisquer outras.
20.3. ESPÉCIES DE CUMULAÇÃO OBJETIVA A cumulação objetiva de ações ocorre quando há pluralidade de um dos elementos objetivos da demanda, ou seja, quando num mesmo processo há pluralidade de pedidos ou de causas de pedir. A cumulação objetiva de pedidos ocorre quando, entre as mesmas partes, o autor,
na petição inicial, formula contra o réu vários pedidos. Assim, a cumulação de pedidos é uma cumulação objetiva inicial, na qual o autor propõe, num mesmo processo, contra o réu vários pedidos. Isso porque, em regra, cada pedido poderia ser proposto em demanda autônoma. Como já se afirmou, na cumulação objetiva, o elemento objetivo plural pode ser também a causa de pedir, hipótese em que, mesmo havendo um único pedido, também se verificará uma cumulação objetiva inicial. Então, pode-se falar em cumulação objetiva inicial tanto nas hipóteses de pluralidade de pedidos como nas de causas de pedir. Por exemplo: determinado autor propôs em face do réu a cobrança de dois créditos diferentes, oriundos de diversos negócios jurídicos e que encerram dois pedidos distintos. O primeiro tem como pedido mediato o valor de cem mil reais pelo crédito “A” e o outro o valor de cinquenta mil reais pelo crédito “B”. Na verdade, no exemplo citado, não há apenas pluralidade de pedidos, mas também de causas de pedir, porque os créditos estão fundados em negócios jurídicos distintos. Pode ocorrer de existir no processo apenas um pedido, mas baseado em duas ou mais causas de pedir, embora essa situação, do ponto de vista processual, seja normalmente irrelevante. Imagine-se a hipótese de uma ação de separação fundada no adultério e no abandono do lar por parte de um dos cônjuges. Há, nesse caso, dois fundamentos diferentes, duas causas de pedir diversas, mas que geram apenas um único pedido. A pluralidade de causas de pedir, entretanto, somente é relevante quando determina também a pluralidade de pedidos. Como já vimos, a cumulação de pedidos subordina-se àquelas duas características comuns a todas as modalidades de processo cumulativo principal, que são a identidade de competência absoluta e a unidade de procedimento. A lei processual, nos dispositivos sobre a cumulação de pedidos que estamos comentando, parece impor a essa espécie de cumulação objetiva um terceiro requisito, que é a compatibilidade entre os pedidos. O caput dos artigos dos dois Códigos (292 e 327) enuncia que pode haver cumulação de pedidos ainda que entre eles não haja conexão; entretanto, o inciso I do § 1º prescreve que os pedidos cumulados devem ser compatíveis entre si, de forma que o autor não poderá cumular pedidos contraditórios, antagônicos ou conflitantes.
Há quatro espécies de cumulação de pedidos, quanto ao tipo de pedido, quais sejam a cumulação simples, a cumulação sucessiva, a cumulação eventual e a cumulação alternativa. Na cumulação simples, os pedidos cumulados são totalmente independentes uns dos outros. Portanto, o acolhimento de qualquer deles não depende do acolhimento ou da rejeição dos demais. Na cumulação sucessiva, há uma ordem lógica entre os pedidos e uma dependência dos subsequentes em relação aos antecedentes: somente se o primeiro pedido for acolhido, os outros serão examinados; ou seja, nessa espécie de cumulação, o exame dos pedidos sucessivos depende do acolhimento do pedido anterior. Por exemplo: numa ação de separação, o autor pede ao juiz que, além de decretar a sua separação, casse a pensão devida à mulher e lhe confira a guarda do filho menor, com fundamento na culpa do seu cônjuge pela separação. A cassação da pensão e a guarda do filho menor são pedidos sucessivos em relação ao pedido de separação por culpa da mulher, pois apenas se este for acolhido é que o juiz examinará aqueles. Caso contrário, os outros dois pedidos estarão rejeitados. Costuma-se dizer que os pedidos sucessivos ficaram prejudicados, mas em verdade eles foram rejeitados ou julgados improcedentes, juntamente com a rejeição ou improcedência do pedido principal. Na cumulação eventual ou subsidiária, há um pedido principal e outro ou outros pedidos cujo exame ou julgamento ficam condicionados à rejeição do pedido principal. Na verdade, o que o autor quer prioritariamente é o acolhimento do pedido principal, sendo que ele aduz os pedidos subsidiários para o caso de o juiz entender que não deva acolher o pedido principal. Nessa espécie de cumulação, o autor estabelece uma ordem de preferência entre os pedidos. O juiz não vai julgar procedentes todos os pedidos, e, por isso, a exigência de compatibilidade lógica entre eles pode ser atenuada, já que o pedido subsidiário somente poderá ser acolhido caso o principal seja rejeitado (CPC de 1973, art. 289; CPC de 2015, art. 326). Diferentemente, na cumulação de pedidos alternativos, deve-se observar a compatibilidade lógica entre os pedidos. Essa espécie de cumulação objetiva encontra previsão legal nos artigos 288 do Código de 1973 e 325 do Código de 2015, sendo que o dispositivo deste último Código admite, na hipótese de
obrigação alternativa, o cumprimento pelo devedor de um ou outro modo, ainda que o pedido não tenha sido alternativo. Existem duas espécies de pedidos alternativos: aquela em que, em face de um determinado direito material, o autor propõe dois pedidos diversos para que apenas um deles seja acolhido; e aquela que decorre de uma obrigação alternativa, em que o pedido será o de cumprimento de uma das prestações e a sentença de procedência imporá ao réu condenação igualmente alternativa, resolvendo-se a escolha no momento da execução (CPC de 1973, art. 571; CPC de 2015, art. 800). Na segunda modalidade, não há propriamente cumulação de ações. Há um só pedido, mas que pode ter mais de um conteúdo. Outro critério de classificação da cumulação de pedidos é o do momento da sua proposição em cumulação inicial ou ulterior. A cumulação inicial é aquela que surge no momento da propositura da ação pelo autor, e a cumulação ulterior é aquela que se dá depois da propositura da ação pelo autor, e que pode ocorrer em mais de uma hipótese expressamente prevista em lei, como na oposição (CPC de 1973, arts. 56 a 60; CPC de 2015, arts. 682 a 685, parágrafo único), na denunciação da lide proposta pelo réu (CPC de 1973, arts. 70 a 76; CPC de 2015, arts. 125 a 129). Hipótese relevante aparentemente abolida pelo Código de 2015 é a da ação declaratória incidental (CPC de 1973, arts. 5º, 325 e 470), em que a extensão da coisa julgada à questão prejudicial no Código de 2015 passa a ser aplicada de ofício pelo juiz, desde que da sua apreciação dependa o julgamento do pedido formalmente articulado e tenha havido contraditório prévio e efetivo. Incluo essa hipótese na cumulação ulterior de pedidos porque a questão prejudicial foi proposta pelo autor na petição inicial como fundamento. É o fato de ter se tornado controvertida pelo réu e de concorrerem as circunstâncias previstas (CPC de 2015, art. 503, §§ 1º e 2º), que a erige à condição de novo pedido, cujo julgamento ficará acobertado pela coisa julgada. Como as demais modalidades de cumulação de pedidos, também as diversas espécies de cumulação ulterior devem preencher os requisitos da unidade de competência e de procedimento. O requisito da compatibilidade existirá em umas, como a ação declaratória incidental, mas não em outras, como a oposição. Como elas podem surgir em procedimentos especiais, e não necessariamente em ações de rito ordinário ou comum, cabe em todas elas a ressalva, que o Código de 2015 explicita apenas em relação à extensão da coisa julgada à questão prejudicial, de que não é possível a cumulação “se no processo houver restrições
probatórias ou limitações à cognição” que impeçam a análise do pedido ou da questão incidente. 20.3.1. Concurso de ações Neste passo, parece-me importante a distinção entre cumulação de pedidos e concurso de ações. A expressão concurso de ações é utilizada em dois sentidos diversos. Moacyr Amaral Santos2 se referia ao concurso de ações como a concorrência de duas ou mais ações para a tutela do mesmo direito subjetivo material. Aquele que invoca determinado direito subjetivo é autorizado pelo direito material a pleitear a sua tutela por mais de um modo, pleiteando uma ou outra prestação. O exemplo clássico é o do vício redibitório, em que o autor pode escolher entre o pedido de resilição do contrato (ação redibitória) e o pedido de redução do preço (ação quanti minoris), mas se optar por um deles já não mais poderá posteriormente propor o outro. Electa una via non datur regressum ad alteram. O concurso de ações é um fenômeno do direito material, não tendo qualquer relevância processual. Ao formular um dos pedidos, o autor está automaticamente abrindo mão de formular o outro. Se o fizer, o seu segundo pedido deverá ser julgado improcedente. Saber se, em alguma hipótese, poderia ele propor o segundo pedido não é questão que afete o Direito Processual, mas que deverá ser resolvida à luz do direito material. Há duas ações, porque os pedidos são diversos. Liebman, num dos seus estudos sobre a coisa julgada, se refere ao concurso de ações em outro sentido, de demanda única que pode ser proposta por mais de um sujeito3. O exemplo por ele dado é o da ação do sócio contra a sociedade para anular a deliberação assemblear, que também pode ser proposta por qualquer outro sócio. Se a primeira ação for julgada procedente, a nulidade da deliberação atingirá todos os demais sócios. Julgada improcedente, não poderia mais qualquer outro sócio, pelo mesmo fundamento de direito, formular o mesmo pedido de anulação daquela deliberação. A incindibilidade do direito material plurissubjetivo levaria a considerar o primeiro autor como substituto processual de todos os cotitulares da mesma pretensão. O tema do concurso de ações nesse segundo sentido adquiriu especial relevância
no Brasil com a disciplina das ações coletivas, particularmente após as regras do Código do Consumidor. Dois legitimados coletivos podem formular o mesmo pedido com o mesmo fundamento. Na improcedência da demanda de um por insuficiência de provas, poderá o outro renovar a mesma ação. Na procedência da demanda do primeiro, perde o segundo o interesse de agir. Se os dois propuserem simultaneamente a mesma ação, haverá litispendência, mas o segundo processo, em minha opinião, não deverá ser extinto, pois ambos os legitimados podem concorrer como litisconsortes ativos no feito anteriormente iniciado4. Concurso de ações, na tutela coletiva, também pode ocorrer entre ações coletivas e ações individuais, matéria objeto do artigo 104 do Código do Consumidor, assim como na liquidação de sentença por direitos individuais homogêneos em que, não tendo o lesado promovido a liquidação individual no prazo de um ano do trânsito em julgado, nos termos do artigo 100 do Código do Consumidor, promove a liquidação individual o legitimado coletivo, com suporte no artigo 97 do mesmo Código, o que não excluirá ulterior e complementar liquidação pelo próprio lesado5.
20.4. CUMULAÇÃO SUBJETIVA: O LITISCONSÓRCIO Cumpre ainda examinar o litisconsórcio, que é a cumulação subjetiva de ações. Litisconsórcio é a modalidade de processo cumulativo em que dois ou mais sujeitos se reúnem simultaneamente como autores ou como réus num mesmo processo. Quanto ao momento do seu surgimento, o litisconsórcio também pode ser inicial ou ulterior. Será inicial quando surgir desde a propositura da ação, desde a petição inicial. Assim, o litisconsórcio é inicial quando os coautores se reúnem formulando o mesmo pedido ou pedidos diversos contra o réu único; quando um único autor demanda contra vários corréus; ou, ainda, quando vários autores insurgem-se contra vários réus. Será ulterior quando surgir posteriormente ao ajuizamento da demanda. O litisconsórcio ulterior não será objeto de estudo neste momento, pois resulta de alguma modalidade de intervenção de terceiros, assunto a ser examinado no capítulo seguinte.
Quanto ao polo da relação processual em que ocorre a pluralidade subjetiva, o litisconsórcio inicial pode ser ativo, passivo ou misto. Se a pluralidade subjetiva é de autores, o litisconsórcio diz-se ativo. Todavia, se a pluralidade subjetiva é de réus, está-se diante do litisconsórcio passivo. Ocorrendo concomitantemente pluralidade subjetiva de autores e de réus, o litisconsórcio será misto. Esse último ocorre, portanto, quando dois ou mais autores se reúnem para proporem demandas num mesmo processo contra vários réus. A mais importante classificação do litisconsórcio inicial tem como critério a obrigatoriedade do vínculo litisconsorcial. Por esse critério, o litisconsórcio se classifica em litisconsórcio necessário e facultativo. 20.4.1. Litisconsórcio necessário No litisconsórcio necessário, a presença de todos os litisconsortes no processo é obrigatória, sob pena de nulidade absoluta do feito. Corrigindo a má redação do artigo 47 do Código de 1973, o artigo 114 do Código de 2015 esclarece que o litisconsórcio é necessário se imposto pela lei ou quando, pela natureza da relação jurídica controvertida, a eficácia da sentença depender da citação de todos os litisconsortes. A eficácia da sentença depende da presença no processo de alguém, se a lei impõe essa presença ou se o julgamento do pedido lhe impuser uma prestação ou o respeito na sua esfera de interesses de uma situação jurídica da qual não possa se livrar, porque as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa asseguram que ninguém poderá perder um direito próprio em razão de uma decisão judicial proferida em processo no qual não teve ampla oportunidade de se defender. Isso não quer dizer que a sentença entre as partes não possa produzir efeitos em relação a terceiros, desde que desses efeitos possa o terceiro livrar-se pelos meios próprios, e ainda que a sentença não deixe de produzir efeitos em relação àquele que se defendeu se não puder produzir efeitos em relação ao que não se defendeu. Assim, não basta que entre dois ou mais sujeitos existam interesses jurídicos comuns. Impõe-se para que o litisconsórcio seja necessário que a presença de todos os titulares de um interesse comum seja indispensável para que a sentença produza efeitos em relação a qualquer deles. Se o juiz verificar que no processo é obrigatória a presença de todos os litisconsortes e o autor não os inseriu como coautores ou
como corréus, deve ordenar que o autor promova a sua citação, sob pena de indeferimento da petição inicial ou de extinção do processo sem resolução de mérito (CPC de 1973, art. 47, parágrafo único). O parágrafo único do artigo 115 também conduz a essa conclusão, pelo menos em relação ao litisconsórcio passivo necessário. A ausência de um litisconsorte necessário constitui uma nulidade absoluta e, portanto, insanável. O litisconsórcio necessário também pode ser classificado em simples ou unitário. Quando a obrigatoriedade da presença de todos os litisconsortes é determinada pela lei, o litisconsórcio necessário é simples; nas hipóteses em que essa obrigatoriedade se dá em virtude da natureza da relação jurídica, que deve ser provida de modo uniforme em relação a todos os litisconsortes, ele será unitário. Por exemplo, o Ministério Público propõe ação de nulidade de casamento fundada na bigamia de um dos cônjuges. Quem obrigatoriamente tem de figurar como réu nesse processo? O marido e a mulher. O Ministério Público não pode propor essa ação apenas em face do marido ou apenas em face da mulher, porque o casamento é uma relação jurídica essencialmente bilateral, de maneira que, ou ele é válido em relação aos dois cônjuges, ou ele é nulo em relação a ambos. Logo, nos casos de litisconsórcio necessário unitário, a decisão deve ser uniforme para todos os litisconsortes. O casamento não pode ser válido em relação a um cônjuge e nulo em relação ao outro. Então, esse é um caso de litisconsórcio necessário unitário, pois decorre da natureza da relação jurídica, que é essencialmente bilateral e cuja validade somente pode ser decidida com a presença dos dois sujeitos dessa relação jurídica no processo. No litisconsórcio necessário simples, existe a pluralidade de partes decorrente de exigência legal, e não do caráter uno da relação jurídica, dispensando a uniformidade da decisão para todos os litisconsortes. Um exemplo de litisconsórcio necessário simples é o da ação de usucapião, que é uma ação declaratória da propriedade daquele que detém a posse mansa e pacífica de determinado bem por um período de tempo fixado em lei. Se o bem que o autor pretende usucapir é um bem imóvel, a lei exige que, na ação de usucapião, além de citar o réu – que é aquele em cujo nome o imóvel está
registrado –, o autor cite também como corréus todos os vizinhos (confinantes) do imóvel (CPC de 1973, art. 942; CPC de 2015, art. 246, § 3º). A lei exige essa citação porque algum vizinho pode se sentir afetado, ainda que parcialmente, pelo pedido do autor. Pode ser, por exemplo, que a metragem indicada ou o formato do imóvel possam estar de algum modo atingindo o interesse de confrontantes. Embora a declaração da propriedade na ação de usucapião tenha efeito especial contra o proprietário anterior, a lei exige a presença dos proprietários dos imóveis confinantes, para que também sejam atingidos por essa declaração, na medida em que dela possa decorrer para a sua propriedade alguma limitação. Há duas questões muito delicadas no tocante ao litisconsórcio necessário. A primeira é saber se é possível haver litisconsórcio necessário ativo. Para renomada doutrina, essa possibilidade não existe, porque ninguém pode ser obrigado a vir a juízo propor, contra a sua vontade, uma ação em face de outrem. Essa doutrina influenciou a redação do artigo 115, parágrafo único, do Código de 2015, que somente exige a promoção do litisconsorte faltante na hipótese de litisconsórcio necessário passivo. Realmente, em princípio, ninguém é obrigado a vir a juízo demandar contra outrem, mas há certas relações jurídicas que têm de ser decididas com a presença de todos os sujeitos que dela fazem parte, impondo a sua respectiva citação no processo, ainda que os seus interesses coincidam com os do autor. Com Cândido Dinamarco6, entendo que o litisconsórcio necessário ativo é possível. Vejamos alguns exemplos. Se duas pessoas adquirem em condomínio um imóvel e depois verificam a diferença a menor ad mensuram, somente podem propor ação indenizatória ou rescisória contra o vendedor em conjunto. Então, nesse caso, queira ou não figurar no polo ativo, o condômino adquirente tem de ser citado para intervir no processo, mas não para figurar necessariamente como réu da ação do outro condômino, o que desde logo demonstra a imperfeição do conceito de citação do artigo 213 do Código de 1973, em parte aperfeiçoado pelo artigo 238 do Código de 2015, conforme comentamos no capítulo sobre os atos de comunicação processual. Será citado para figurar como parte, vale dizer, como sujeito principal na demanda, podendo aderir à postulação do autor, tornando-se litisconsorte ativo deste, ou repudiar a sua postulação, tornando-se litisconsorte passivo do alienante.
Há os casos, também, de determinados órgãos públicos responsáveis por áreas da Administração Pública relativas à intervenção no domínio econômico, que devem necessariamente ser chamados a vir a juízo nas causas em que particulares questionem os atos praticados por tais entes públicos. Assim, por exemplo, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) nas ações de nulidade de registro de marca ou patente é obrigatoriamente citado, mas não propriamente para se defender, como enuncia o artigo 213 do Código de 1973, podendo aderir ao pedido do autor, caso em que vai passar a atuar como litisconsorte necessário ativo. O mesmo acontece na ação popular. O artigo 6º da Lei n. 4.717/65 estabelece que a ação popular seja proposta “contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no artigo 1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo”. Entretanto, o § 3º do artigo acima transcrito dispõe que “a pessoa jurídica de direito público ou de direito privado, cujo ato seja objeto de impugnação, poderá abster-se de contestar o pedido, ou poderá atuar ao lado do autor, desde que isso se afigure útil ao interesse público, a juízo do respectivo representante legal ou dirigente”. Logo, na ação popular, a pessoa jurídica de direito público é obrigatoriamente citada, podendo optar, de acordo com cada caso, por figurar como corré ou como coautora. No Estado do Rio de Janeiro tem acontecido uma situação sui generis, quando da mudança dos governantes locais. O Estado contesta uma ação popular porque nela está sendo impugnado um ato de um determinado governante, mas, quando muda o governo, o Estado revê a sua posição e passa a aderir ao pedido do autor. Afora esses exemplos mais conhecidos, são excepcionais os casos de litisconsórcio necessário ativo. É preciso atentar, porém, para o fato de que não se pode impedir alguém de ingressar em juízo isoladamente porque outrem, que é cotitular do seu direito, não quer propor a ação conjuntamente com o primeiro. Então, o que este tem de fazer é promover a citação do outro litisconsorte necessário, quando a sua presença se fizer necessária ao julgamento da relação jurídica de que fazem parte.
Então, da mesma forma que ninguém pode ser obrigado a vir a juízo contra a sua vontade na posição de autor de uma demanda, ninguém pode ser impedido de acessar a justiça porque o cotitular do seu direito não quer ingressar em juízo. Esse é o primeiro problema afeto ao litisconsórcio necessário, que reclama uma solução cuidadosa. 20.4.1.1. Litisconsórcio multitudinário
A segunda dificuldade relacionada ao litisconsórcio necessário corresponde ao chamado litisconsórcio multitudinário, fenômeno cada vez mais frequente nas sociedades de massa. As dificuldades geradas, nesse caso, decorrem justamente da necessidade da presença de um grande número de sujeitos num mesmo processo, por compartilharem de uma mesma situação jurídica, vale dizer, de um feixe de relações jurídicas que afeta o interesse de dezenas, centenas ou milhares de indivíduos. Esse fenômeno já tinha sido percebido na primeira metade do século XX, em relação aos litígios societários. No Direito italiano, por exemplo, foi introduzida uma regra segundo a qual o acionista de uma sociedade anônima que quisesse anular judicialmente a validade de uma deliberação da assembleia-geral precisaria apenas citar um representante dos acionistas por estes escolhido ou designado pelo tribunal, mas o acolhimento do pedido atingiria todos (Código Civil italiano, arts. 2377-III e 2.413-III). No Direito brasileiro tem-se entendido predominantemente que o acionista deveria propor essa ação em face da sociedade, representada pelos seus administradores, mas que os efeitos da sentença atingirão todos os demais acionistas7. Imagine-se que a assembleia-geral de determinada sociedade anônima tenha deliberado a distribuição de dividendos, conferindo, assim, um direito a todos os acionistas. Caso algum acionista dessa sociedade discorde da deliberação adotada e pretenda impugná-la judicialmente, basta a citação da sociedade, na pessoa dos seus representantes legais, ainda que essa impugnação possa afetar os interesses de todos os demais acionistas. Isso porque se entende que os representantes legais da sociedade, nesse caso, atuam como substitutos processuais dos demais acionistas, e, portanto, a sentença que porventura anular a deliberação da assembleia, suprimindo o direito dos acionistas de receber dividendos, fará coisa julgada em relação a
todos, embora eles não tenham figurado como partes do processo. Essa solução não é a mais satisfatória, especialmente sob a perspectiva garantística, porque, no atual estágio de evolução das garantias fundamentais do processo, não se pode admitir que alguém perca um direito em consequência de uma sentença judicial proferida num processo no qual não pôde se defender. Tal situação viola a garantia constitucional do contraditório. Por outro lado, exigir-se a presença dos milhares de acionistas pode tornar absolutamente inviável a tramitação desse processo, tolhendo o direito de acesso à justiça do autor, que tem o direito à prestação jurisdicional sobre o seu pedido. Então, estamos diante de duas garantias que podem entrar em choque: de um lado, a garantia do acesso à justiça do autor, que tem direito à prestação jurisdicional sobre o seu direito material; e, de outro, a garantia da ampla defesa dos réus ou dos sujeitos passivos, que têm o direito de não serem atingidos por uma decisão desfavorável sem terem sido chamados para se defender. A solução tradicional – que, no exemplo citado, dispensa a citação dos demais acionistas – cria um direito processual do autor, privilegiando-o. Tal solução sobrepõe o direito de acesso à justiça do autor ao direito de defesa dos réus ou dos sujeitos passivos daquela relação jurídica. Chiovenda estabeleceu um delimitador para o litisconsórcio necessário que, a meu ver, tem aplicação até os dias atuais: o litisconsórcio é necessário, em razão da pluralidade subjetiva da relação jurídica, quando a presença de todos os litisconsortes é indispensável para que a sentença produza os efeitos almejados pelo autor. Se faltar um dos litisconsortes e, em razão dessa falta, a sentença não puder ser executada, ela vai ser proferida inutilmente, inutiliter data8. Então, o limite à presença dos cotitulares da relação jurídica no processo é a necessidade dessa mesma presença no futuro cumprimento da decisão. Ao longo de minha vida profissional, tive a oportunidade de lidar com esse tipo de problema. Certa vez, o governador do Estado do Rio de Janeiro publicou um decreto por meio do qual extinguia todos os cargos de determinada carreira. À época, essa carreira contava com cerca de quinhentos cargos, sendo que todos os servidores ocupantes desses cargos foram colocados em disponibilidade, com a
percepção de proventos proporcionais. Fui procurado por cerca de dez desses quinhentos servidores cujos cargos foram extintos e postos em disponibilidade e que passaram a receber proventos em valores inferiores aos que recebiam no exercício das suas funções. Na ocasião, impetrei, em favor desses dez servidores, no Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, um mandado de segurança contra o referido ato do governador, arguindo a sua nulidade. O Estado do Rio de Janeiro, por sua vez, alegou que os outros quatrocentos e tantos ocupantes dos cargos extintos tinham de ser citados, porque a declaração de nulidade do decreto em questão atingiria a situação de todos os demais. O desembargador-relator indeferiu a citação dos demais servidores, sob o fundamento de que, para julgar a situação dos dez impetrantes, bastava a presença do Estado no processo. A questão foi submetida ao Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por meio de recurso de agravo, ao qual foi dado provimento para que se promovesse a citação de todos. Obviamente, a citação de um número tão elevado de pessoas mostrou-se materialmente impossível, o que bloqueou por muitos meses a continuidade do processo, tendo sido a questão resolvida politicamente, na subsequente Assembleia Constituinte estadual. Outros exemplos de litisconsórcio multitudinário podem ser encontrados em causas que envolvam concursos públicos, a que se submetem milhares de candidatos. Imagine-se, por exemplo, o exame vestibular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, para o qual se inscrevem aproximadamente sessenta mil candidatos, dos quais cerca de seis mil logram aprovação. Se um candidato reprovado requer a anulação da prova de determinada matéria, pedindo a realização de nova prova para todos os sessenta mil candidatos, o direito que ele está reivindicando entra nitidamente em choque com os interesses dos seis mil candidatos aprovados. Obviamente, a citação dos aprovados inviabilizaria a solução do litígio, impedindo, em última análise, o acesso à justiça do autor daquela demanda. Ora, a quem caberá cumprir a decisão que acolha o pedido de anulação da prova de
uma das matérias do exame vestibular? O cumprimento dessa decisão incumbe e depende apenas da própria universidade promotora do certame, de modo que a citação de todos os demais candidatos, aprovados ou não, é dispensável. Não se trata, na espécie, de substituição processual, uma vez que a instituição promotora do concurso age em nome próprio na defesa do seu próprio interesse, mas da adoção de uma solução pragmática, ao considerar-se necessária apenas a presença dos litisconsortes sem os quais a decisão não poderá ser eficazmente cumprida. Como essa ação ataca um ato que criou direitos para milhares de pessoas e o acolhimento do pedido possui uma eficácia necessariamente plurissubjetiva, é preciso anular as provas da matéria impugnada de todos aqueles que a realizaram, pois, se somente o autor se submetesse a uma nova prova, essa situação violaria a isonomia na condução do certame. Condenada a universidade, todos os candidatos devem ter a sua prova anulada. Como qualquer outro cidadão, eles deverão respeitar a decisão judicial enquanto ato de autoridade do Estado-juiz, o que não quer dizer que eles tenham de conformar-se com a perda do seu direito em razão dessa decisão. Como essa sentença não foi proferida em um processo do qual faziam parte, de acordo com os artigos 472 do Código de 1973 e 506 do Código de 2015, ela não fará coisa julgada em relação aos demais candidatos, e, portanto, nada impede que qualquer deles proponha uma nova ação para declarar a validade da prova anteriormente impugnada. Essa nova ação terá como corréus a universidade e o autor da primeira ação, sendo que a segunda sentença, subjetivamente mais ampla, prevalecerá sobre a primeira. O indivíduo não pode ficar vinculado, mediante um artifício jurídico, a uma decisão judicial tomada num processo em que ele não foi parte. O Direito, hoje, não aceita mais artifícios jurídicos ou ficções que não correspondam à realidade da vida, e, assim, embora não haja solução perfeita para o problema do litisconsórcio multitudinário, a alternativa encontrada não poderá sacrificar o direito dos ausentes de rediscutirem a decisão num processo em que efetivamente tenham a possibilidade de defender-se. Nesse sentido, obviamente, as ações coletivas representam um avanço, ao possibilitarem a defesa em juízo de interesses de grupos muito numerosos,
principalmente no âmbito das ações civis públicas. Todavia, da mesma forma, também não se pode obrigar o indivíduo a ingressar numa ação coletiva, pois ninguém pode ser obrigado a associar-se a outrem para poder postular determinado direito. O direito de associação e organização dos chamados grupos intermediários tem a finalidade de dar suporte organizacional ao acesso à justiça daqueles que, individualmente, não podem prover à tutela dos seus próprios interesses. Subordinar o acesso à justiça de um indivíduo à vontade de uma associação ou do Ministério Público é uma medida autoritária e paternalista. No Estado Democrático de Direito contemporâneo, não existem relações de poder entre grupos e indivíduos. Aqueles existem para melhorar o acesso ao direto e à justiça destes, que podem livremente participar das associações ou delas se retirarem, na medida em que o direito de associação (Constituição, art. 5º, inc. XX) é uma liberdade e não uma imposição. 20.4.2. Litisconsórcio facultativo O litisconsórcio facultativo, de que tratam os artigos 46 do Código de 1973 e 113 do Código de 2015, não é imposto nem pela lei nem pela natureza da relação jurídica. É facultativo porque não é obrigatório; depende da vontade do autor de propor a demanda contra vários réus, ou da vontade dos vários autores de se associarem numa única petição inicial para proporem as suas ações contra um réu ou contra vários réus. Ele também pode ser unitário ou simples, conforme a causa necessariamente deva ou não ser resolvida de modo uniforme em relação a todos os litisconsortes. Cabe ao direito material estabelecer se o litisconsórcio unitário é necessário ou facultativo. O litisconsórcio facultativo pode ter três fundamentos diferentes. O primeiro fundamento do litisconsórcio facultativo é a comunhão de interesses (CPC de 1973, art. 46, inc. I; CPC de 2015, art. 113, inc. I), ao passo que o segundo é a conexão entre as causas (CPC de 1973, art. 46, incs. II e III; CPC de 2015, art. 113, inc. II), e, por fim, o terceiro fundamento é a afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito (CPC de 1973, art. 46, inc. IV; CPC de 2015, art. 113, inc. III). Acolhendo a crítica da doutrina, o Código de 2015 tratou da conexão em apenas um inciso, porque o inciso III do artigo do Código de 1973,
reproduzido no inciso II do artigo do Código de 2015, já inclui a hipótese a que se referiu o inciso do dispositivo do Código de 1973. Para a melhor compreensão desse assunto, é importante relembrar a disciplina do litisconsórcio facultativo sob a égide do Código de Processo Civil de 1939. A codificação anterior estabelecia que o litisconsórcio fundado na comunhão de interesses era um litisconsórcio necessário, o que constituía, sem dúvida, um exagero. Se há vários cotitulares do mesmo direito, o litisconsórcio pode ser necessário, mas há casos em que, expressamente, apesar da comunhão de interesses, a lei estabelece que a presença de todos esses cotitulares não é obrigatória. O caso mais característico de litisconsórcio facultativo por comunhão de interesses é o de solidariedade ativa ou passiva. O Código Civil estabelece que, na solidariedade ativa, qualquer credor pode exigir por inteiro a obrigação do devedor comum (Código Civil, art. 267); na solidariedade passiva, o credor pode exigir por inteiro a obrigação de todos ou de qualquer dos codevedores (Código Civil, art. 275). Então, na solidariedade, há comunhão de interesses entre os vários credores ou devedores solidários, mas o litisconsórcio entre eles não é obrigatório (necessário), justamente porque, pela natureza do próprio instituto e pela sua regulação no direito material, a parte contrária não é obrigada a demandar contra todos os credores ou devedores solidários. Além de estabelecer no seu artigo 88 que o litisconsórcio fundado na comunhão de interesses era necessário, o Código de Processo Civil de 1939 também dispunha, nesse mesmo artigo, sobre duas espécies de litisconsórcio facultativo: o facultativo impróprio, fundado na conexão, e o facultativo próprio, fundado na simples afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito. O Código de Processo Civil de 1939 distinguia, no litisconsórcio facultativo, entre essas duas hipóteses, porque o fundado na conexão (impróprio) era irrecusável pelo réu ou corréus, enquanto o fundado na simples afinidade (próprio) era recusável pelo réu ou pelos corréus. Então, o litisconsórcio facultativo fundado na conexão, chamado de impróprio, somente era facultativo para o autor ou para os vários autores, mas não para o
réu ou para os corréus. Por sua vez, o litisconsórcio fundado na afinidade, denominado facultativo próprio, era duplamente facultativo, porque dependia da vontade não somente do autor ou dos coautores, mas também da concordância ou não do réu ou dos corréus. O Código de 1973 acabou com essa distinção, seguindo o modelo italiano, ao estabelecer que dois ou mais sujeitos podem figurar facultativamente como autores ou como réus tanto nos casos de comunhão de interesses como nos de conexão ou simples afinidade. Podemos concluir, assim, que não sobrevive, após o advento do Código de 1973, a distinção, de acordo com a intensidade do vínculo, entre a recusabilidade e a irrecusabilidade do litisconsórcio facultativo. O autor pode propor a ação associado a quem ele quiser, contra quem ele quiser, desde que concorram em relação a todos os litisconsortes o interesse e a legitimidade (CPC de 1973, art. 3º; CPC de 2015, art. 17). Ele pode, unilateralmente, desistir de propor a ação contra algum corréu, mas terá de fazê-lo antes de decorrido o prazo para a resposta ou de oferecida a contestação (CPC de 1973, art. 267, § 4º; CPC de 2015, art. 485, § 4º). Contudo, os Códigos de 1973 e de 2015 não excluem totalmente a possibilidade de o réu rejeitar a cumulação subjetiva, pois ambos estabelecem que “há conflito de competência quando entre dois ou mais juízes surge controvérsia acerca da reunião ou separação de processos” (CPC de 1973, art. 115, inc. III; CPC de 2015, art. 66, inc.III), o que significa que pode haver desdobramento de um processo no qual, originariamente, haviam sido cumuladas duas ou mais ações. Acerca da matéria sob exame, a doutrina italiana desenvolveu uma ideia de grande utilidade, segundo a qual o autor tem a liberdade de propor a demanda, isoladamente ou em conjunto com os coautores, em face de vários réus, desde que preenchidas, para todas as ações cumuladas, as condições da ação. Todavia, se essa cumulação tornar a defesa do réu ou de algum dos corréus excessivamente onerosa ou morosa, o sujeito passivo atingido pode pedir o desdobramento, a separação dessas demandas cumuladas em processos distintos. Essa regra se aplica a qualquer tipo de litisconsórcio facultativo. Tal regra acabou sendo consagrada no Código de 1973, através do parágrafo único do seu artigo 46, introduzido pela Lei n. 8.952/94, que facultou a limitação do litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa, prevendo, ainda, que o pedido de limitação interrompe o prazo para resposta, que recomeça da intimação da decisão. Essa regra foi reproduzida nos §§ 1º e 2º do artigo 113 do Código de 1973, que acrescentaram que essa limitação pode ocorrer na fase conhecimento, na liquidação de sentença ou na execução, que o fundamento
pode ser, além da morosidade e do prejuízo para a defesa, o prejuízo ao cumprimento da sentença e que o prazo interrompido pelo requerimento de desdobramento pode ser o de resposta ou o de qualquer outra manifestação. Este segundo acréscimo deixa claro que o pedido de desdobramento pode se dar em qualquer fase do processo, e não apenas no prazo de resposta. A meu ver, o juiz não pode promover esse desdobramento de ofício porque, para isso, a lei exige o requerimento da parte. Nem pode o juiz estabelecer previamente um limite numérico, abuso que alguns juízes têm cometido, pois se inexistirem os motivos relevantes previstos na lei o autor tem o direito de cumular no mesmo processo quantas ações quiser. Ademais, a fixação de limite numérico pelo juiz implica desrespeito à regra que condiciona a aplicação do dispositivo ao requerimento do interessado. Suponha-se que determinada loja de utensílios domésticos populares resolva demandar 15.000 (quinze mil) devedores em um mesmo processo. O jurisdicionado que for citado e já tiver pago a dívida, se não puder desdobrar esse processo, somente terá proferida a sentença de mérito em seu favor depois de citados todos os demais corréus e depois de praticados em relação a eles todos os atos processuais da fase de conhecimento. A questão mais relevante nesse dispositivo é saber se o juiz desdobra ou extingue as ações que ele não irá julgar naquele processo. Em minha opinião, ele deve desdobrar essas ações, pois a petição inicial é comum a todas as demandas, podendo, inclusive, existir efeitos da citação ou do ajuizamento que interessem a todos os litisconsortes ativos, como a interrupção da prescrição e a constituição do devedor em mora. Assim, se o juiz decidiu que o processo originário somente pode prosseguir em relação a alguns litisconsortes, ele deve mandar o cartório copiar integralmente o conteúdo do processo original com vistas a formar outras autuações (tantas quantas forem necessárias), nas quais ele processará as outras demandas, preservando a existência e a validade dos atos praticados até esse momento. Se o juiz desdobrou o processo, ele não pode enviar os novos processos formados à livredistribuição, porque isso violaria a garantia do juiz natural. Para evitar que ele fique com mais causas do que os demais juízes, ferindo a igualdade na distribuição dos feitos dentre os órgãos jurisdicionais de mesma competência, o juiz pode oficiar à distribuição para compensar futuramente esse aumento do número de processos sob a sua responsabilidade. Caso contrário, isto é, se determinada a livre-distribuição das ações dos litisconsortes excluídos, estaria o juiz, na verdade, escolhendo quais réus ou autores ele iria julgar. No que concerne às diversas espécies de litisconsórcio facultativo, cumpre traçar uma linha divisória entre o litisconsórcio fundado na conexão e o fundado na simples
afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito. Os dispositivos que estamos examinando adotam um conceito restritivo de conexão, que coincide com o adotado nos artigos 103 do Código de 1973 e 55 do Código de 2015, que é muito criticado pela doutrina. Barbosa Moreira, por exemplo, entende que esse conceito de conexão é incompleto, porque se refere apenas às analogias entre ações que têm em comum um elemento jurídico objetivo – o pedido ou a causa de pedir. No entanto, há outras espécies de analogias, como a admitida entre a ação e a reconvenção, em que a conexão entre elas não reside no pedido, nem na causa de pedir, mas no fundamento da defesa (CPC de 1973, art. 315; CPC de 2015, art. 343)9. Para outras situações não abrangidas por esse conceito restrito de conexão, os artigos que regem o litisconsórcio facultativo utilizam a figura da afinidade. Assim, qual é a diferença entre a conexão e a afinidade, para efeito de litisconsórcio facultativo? Na conexão, há um elemento jurídico comum aos vários litigantes, como ocorre, por exemplo, quando o locador propõe uma ação de cobrança de aluguéis em face do inquilino e do fiador. Essas ações são conexas, pois o objeto, a causa de pedir e a relação jurídica são os mesmos. Considere-se, em seguida, uma situação hipotética na qual um acidente provocado por um ônibus tenha deixado cinco feridos, que resolvem propor uma ação indenizatória, em litisconsórcio ativo, em face da empresa proprietária do veículo. Esse litisconsórcio se funda na conexão ou na simples afinidade? Vejamos. O pedido é o mesmo? Não, pois cada vítima quer a sua própria indenização. A causa de pedir é a mesma? O direito material de cada um é o mesmo? Não, vez que cada um tem o seu próprio direito material. Logo, não há conexão no sentido estrito, mas uma simples afinidade fática (o acidente) e uma afinidade probatória, interessantes do ponto de vista da economia processual. Assim, nesse exemplo, o litisconsórcio funda-se na afinidade de questões por um ponto comum de fato, na medida em que o direito das partes é diferente, assim como o são os seus pedidos. Também pode existir afinidade por um ponto comum de direito. Por exemplo: o Governo bloqueia, através de Medida Provisória, os valores contidos nas contas bancárias dos cidadãos. Ocorreu um fato jurídico, que foi a edição de uma espécie normativa que bloqueou as contas bancárias. Além disso, há uma afinidade fática, pois esse bloqueio atingiu uniformemente o direito de todos. Geralmente, a afinidade por um ponto comum de direito é acompanhada também de uma afinidade fática, mas, às vezes, a afinidade de direito pode existir sem que haja nenhuma afinidade fática ou esta seja muito tênue. Então, a simples afinidade é a semelhança, a analogia, ou a conexão em sentido amplo, que pode dar ensejo ao
litisconsórcio facultativo, visando às finalidades da cumulação de ações num mesmo processo, quais sejam, as de evitar a prolação de decisões contraditórias e alcançar a economia processual. 20.4.3. O novo artigo 115 do Código de 2015 O artigo 115 do Código de 2015, na aparente tentativa de dar uma nova solução para a falta de citação do litisconsorte necessário, cuja existência muitas vezes somente se descobre muito tempo depois de findo o processo, prescreve que, ausente um litisconsorte que ficou, assim, privado de participar do contraditório, a sentença será nula, se a decisão deveria ser uniforme em relação a todos os que deveriam ter sido citados, e ineficaz, nos outros casos, apenas para os que não foram citados. Esclareça-se que, na primeira hipótese, de decisão que deveria ser uniforme em relação a todos os que deveriam ter integrado o processo, estamos diante de um litisconsórcio unitário, que tanto pode ser necessário quanto facultativo. A nulidade a que se refere o dispositivo ocorre apenas se o litisconsórcio unitário for necessário, ou seja, se a causa tiver sido proferida sem a presença de um litisconsorte, cuja ausência impede a eficácia da sentença mesmo em relação àquele litisconsorte que participou do processo. É o caso, por exemplo, da ação de nulidade de casamento por bigamia proposta pelo Ministério Público somente contra um dos cônjuges ou da ação de investigação de paternidade contra apenas um dos filhos reconhecidos do suposto pai falecido. Se o litisconsórcio unitário for facultativo, a sentença será plenamente válida em relação às partes e poderá até estender os limites subjetivos da coisa julgada àquele que poderia ter figurado como litisconsorte. Por exemplo, se a ação de cobrança proposta contra um devedor solidário for julgada improcedente porque a dívida já foi paga, estarão liberados do pagamento da dívida todos os devedores solidários que não foram citados e não se defenderam no processo. Entretanto, se a ação for julgada procedente, será plenamente válida entre as partes, mas não poderá ser executada contra o devedor solidário, que não se defendeu. No inciso II, a ideia de ineficácia em contraposição à de nulidade gera a falsa
impressão de que aquela exista sem esta, o que me parece um erro (v.item 16.2.8 supra). Também nessa hipótese há nulidade, mas parcial. Apenas na parte em que a sentença atinge aquele que deveria ter sido citado, e não o foi, é que ela é nula e, consequentemente, ineficaz. O exemplo mais típico é a ação de usucapião de imóvel, em que a lei exige a citação dos confinantes (CPC de 1973, art. 942; CPC de 2015, art. 246, § 3º), mas que são titulares de direitos que não se confundem com o direito do titular do domínio. O direito dos confinantes na ação de usucapião é o de defender que a aquisição da propriedade pelo usucapiente não ultrapasse os limites divisórios do imóvel para acarretar, ainda que em pequena porção, perda de propriedade dos vizinhos. Se um vizinho não foi citado, a sentença será nula na parte em que define os limites do imóvel usucapiendo em relação ao imóvel do vizinho não citado e, em consequência, deverá ser considerada ineficaz quanto a este, mas isso não prejudicará a sua validade e plena eficácia concernente ao titular do domínio e aos demais confinantes. Contudo, é preciso atenção. Se um lote vizinho é de dois proprietários, mas apenas um deles foi citado na ação de usucapião, em relação aos limites do imóvel usucapiendo com o imóvel desses vizinhos, a sentença é nula, porque, quanto a esses limites, a sentença deveria ter sido tomada com a presença de ambos os coproprietários. 20.4.4. Princípio da autonomia dos litisconsortes Para completar o estudo do litisconsórcio inicial, é preciso comentar o princípio da autonomia dos litisconsortes ou da independência dos colitigantes, que está consagrado nos artigos 48 e 49 do Código de 1973 e nos artigos 117 e 118 do Código de 2015. Dispõe o artigo 48 do primeiro: “Salvo disposição em contrário, os litisconsortes serão considerados, em suas relações com a parte adversa, como litigantes distintos; os atos e as omissões de um não prejudicarão nem beneficiarão os outros.” Por sua vez, o artigo seguinte estabelece que “cada litisconsorte tem o direito de promover o andamento do processo e todos devem ser intimados dos respectivos atos”. No Código de 2015, o artigo 118 é idêntico ao artigo 49 do Código anterior, mas o artigo 117 difere bastante do artigo 48, porque ressalva que, no litisconsórcio unitário, os atos e omissões de um litisconsorte podem beneficiar os demais.
A autonomia dos litisconsortes significa que, dentro da relação processual, os vários sujeitos que figuram como coautores ou como corréus devem ser tratados com igualdade e independência. Todos devem ser intimados dos atos do processo e os atos que cada um praticar não podem sofrer limitações em razão dos atos dos demais, mesmo que o direito seja comum. Esse princípio comporta, entretanto, algumas restrições, já que há pontos comuns na relação processual de que todos se beneficiam ou que a todos podem prejudicar, independentemente da unitariedade do litisconsórcio. Os artigos 320, inciso I, do Código de 1973 e 345, inciso I, do Código de 2015 estabelecem que, se houver vários corréus e um deles contestar a ação, os demais, mesmo permanecendo inertes, não sofrerão os efeitos substanciais da revelia. Isso significa que basta que um litisconsorte passivo conteste os fatos alegados pelo autor para que esses fatos se tornem controvertidos não apenas em relação a ele, mas também em relação aos demais que não contestaram. Então, não se aplica o efeito substancial da revelia – presunção de veracidade dos fatos afirmados pelo autor – ao litisconsorte revel, se os fatos foram contestados por outro litisconsorte. Assim, os fatos, ao se tornarem controvertidos, o são em relação a todos, pois seria absurdo que um fato fosse presumido verdadeiro em relação a um determinado litisconsorte revel, mas a sua inexistência fosse demonstrada pelo litisconsorte que ofereceu contestação. Isso porque a realidade fática não pertence ao juiz nem aos litisconsortes. Ela pertence ao mundo, pertence à história, e a sentença tem de ser um retrato dessa realidade. A interposição de recurso também beneficia os demais litisconsortes, por força do disposto nos artigos 509 do Código de 1973 e 1.005 do Código de 2015, o que, todavia, não ocorrerá se distintos ou opostos forem os seus interesses. Por outro lado, há situações em que os atos de um litisconsorte podem prejudicar os outros, como em matéria probatória. Por exemplo: determinado litisconsorte arrola em sua defesa uma testemunha cujo depoimento revela fatos desfavoráveis a outro litisconsorte. O depoimento dessa testemunha vai valer não apenas em relação ao primeiro, para beneficiá-lo, mas também em relação ao segundo, para prejudicá-lo, porque a prova é comum. A prova é o meio de revelação da verdade fática e essa verdade, como já se afirmou linhas acima, é comum, não pode ser compartimentada, valendo para uns e não para outros.
Até a prova trazida por uma das partes pode prejudicar ela mesma, porque, quando a parte arrola uma testemunha, ela não sabe o que esta vai dizer em seu depoimento. Pode ocorrer de a testemunha depor desfavoravelmente à parte que a arrolou e esse depoimento é válido contra ela, em razão do chamado princípio da comunhão da prova. Entretanto, a confissão de um litisconsorte não pode prejudicar os demais, como expressamente previsto nos artigos 350 do Código de 1973 e 391 do Código de 2015, segundo os quais “a confissão judicial faz prova contra o confitente, não prejudicando, todavia, os litisconsortes”. Se o litisconsórcio for unitário, a confissão não prejudica nem o próprio confitente. Isso porque, embora um dos litisconsortes tenha confessado determinado fato, o juiz não pode reputá-lo desde logo verdadeiro, inclusive em relação ao próprio litisconsorte que o confessou, caso os outros o estejam contestando, porque a causa não poderá ser decidida de modo diverso em relação a cada um dos litisconsortes. No entanto, isso não significa que, não sendo unitário, possa o juiz reputar verdadeiro o mesmo fato em relação ao que confessou e não verdadeiro em relação ao que contestou e provou que o fato existiu. Em qualquer caso, o princípio da comunhão da prova é mais forte e impede que no mesmo juízo cognitivo o juiz repute um fato verdadeiro e ao mesmo tempo não verdadeiro. No litisconsórcio unitário essa regra é mais forte, por causa da homogeneidade das situações dos litisconsortes. Por isso, os atos e omissões de um litisconsorte que podem beneficiar os demais não são uma exceção ao princípio da autonomia dos litisconsortes a que está sujeito apenas o litisconsórcio unitário, como indevidamente sugere a parte final do artigo 117 do Código de 2015. ________ 1 GRECO, Leonardo. Concurso e cumulação de ações. In: Revista de Processo,
São Paulo, n. 147, 2007. p. 11-26. 2 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas… 1º v. p. 225. 3 LIEBMAN, Enrico Tullio. Ações concorrentes. In: Eficácia e autoridade da
sentença e outros escritos sobre a coisa julgada. 4. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006. p. 209 e ss. Chiovenda também já se havia referido a essa espécie de concurso de ações, referindo-se às obrigações solidárias e à fiança. Principii… p. 287. 4 DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação civil pública. São Paulo: Saraiva, 2001.
p. 112-113. 5 Ver VENTURI, Elton. Execução da tutela coletiva. São Paulo: Malheiros,
2000. p. 137.GRECO, Leonardo. Execução nas ações civis públicas. In: Revista Forense, Rio de Janeiro, n. 369, 2003. p. 119-138. 6 DINAMARCO, Cândido Rangel. Litisconsórcio. 8. ed. São Paulo: Malheiros,
2009. p. 7 TALAMINI, Eduardo. Partes, terceiros e coisa julgada (os limites subjetivos da
coisa julgada). In: DIDIER JR., Fredie; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Aspectos polêmicos sobre os terceiros no processo civil e assuntos afins. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 193-246. 8 CHIOVENDA, Giuseppe. Principii… p. 1.080-1.085. 9
Ver BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A conexão de causas como pressuposto da reconvenção.São Paulo: Saraiva, 1979. p. 123-137.
Sob a denominação intervenção de terceiros, a legislação processual civil e a doutrina agrupam uma série de institutos que não têm uma unidade expressiva entre si. Nesses institutos, de algum modo, ocorre a intervenção no processo de um sujeito postulante distinto das partes originárias. A definição de terceiros, para efeito de caracterização de qualquer desses institutos, é uma definição negativa, feita por exclusão. Assim, os sujeitos do processo que exercem no processo atividade preponderantemente postulatória, mas não são as partes originárias, serão considerados terceiros. O perito e a testemunha, por exemplo, não exercem, em caráter preponderante, atividade postulatória, mas probatória, de modo que não são considerados terceiros intervenientes – que são sujeitos postulantes –, mas sujeitos probatórios. Como consequência da sua intervenção, o terceiro que ingressa em uma causa pendente figurará como parte, ao lado do autor ou do réu, ou auxiliará uma das partes, ou, ainda, assumirá uma posição própria. Tradicionalmente, todas as modalidades de intervenção de terceiros exigem que o sujeito interveniente tenha algum interesse jurídico na causa. O interesse jurídico pressupõe, em princípio, alguma relação jurídica própria do terceiro com uma das partes ou com ambas, e até mesmo com a própria relação jurídica objeto do litígio. O terceiro, portanto, não é alguém que se imiscui numa controvérsia alheia sem ter uma situação jurídica própria que justifique a sua intervenção. Ele precisa ter uma situação jurídica própria, mas a intensidade desse vínculo, dessa relação jurídica própria com a relação jurídica deduzida em juízo, varia de uma modalidade para outra de intervenção. Não são terceiros os litisconsortes necessários, porque, em verdade, eles deveriam estar presentes na relação processual desde a sua formação inicial. Então, caso o autor não direcione a sua demanda contra algum litisconsorte necessário e o juiz determine àquele que promova a citação do litisconsorte faltante, este ingressará na causa como parte principal no processo. Também não são considerados terceiros os sucessores das partes, porque eles são as próprias partes. Porém, os artigos 42 do Código de 1973 e 109 do Código de
2015, §§ 1º e 2º, tratam de modo especial o sucessor a título singular. O sucessor a título universal é distinto do sucessor a título singular. O primeiro é o herdeiro ou o legatário que, em razão da morte do titular do direito, deverá substituí-lo na relação processual. Já o segundo adquire o direito discutido na ação através de transmissão por ato entre vivos – cessão de crédito ou alienação do bem litigioso. Se a alienação ocorreu antes da citação, a ação deverá ser dirigida contra o adquirente e não contra o alienante. Mas se a alienação ocorreu depois da citação, aplicar-se-ão as regras dos dispositivos citados. Os artigos 42 do Código de 1973 e 109 do Código de 2015 estabelecem, no § 1º, que o adquirente ou cessionário não poderá ingressar em juízo, substituindo ou sucedendo o alienante, ou o cedente, sem que o consinta a parte contrária. Tal disposição se justifica, porque a parte contrária pode ter algum motivo especial para querer demandar contra aquele que figurou originariamente como seu adversário e, assim, ela não é obrigada a aceitar a substituição deste pelo seu sucessor. Existindo concordância, haverá simples substituição da parte, o que poderá consumar-se a qualquer tempo, independentemente dos limites temporais estabelecidos nos artigos 264 do Código de 1973 e 329 do Código de 2015, sem que ocorra intervenção de terceiros, porque o substituto ocupará no processo a mesma posição do substituído. Contudo, não concordando a parte contrária com a substituição da parte originária pelo sucessor a título singular, este poderá intervir no processo assistindo o alienante ou o cedente (CPC de 1973, art. 42, § 2º; CPC de 2015, art. 109, § 2º). Assim, nesse caso, a intervenção desse sujeito far-se-á por meio de uma das modalidades de intervenção de terceiros, a assistência, que o dispositivo do último diploma corretamente qualifica de litisconsorcial, porque a sentença influirá na relação jurídica entre o sucessor interveniente e o adversário do assistido (CPC de 1973, art. 54; CPC de 2015, art. 124). Deve-se destacar que também não são terceiros os sujeitos auxiliares da justiça, como o escrivão, o oficial de justiça e o Ministério Público. Este último tem funções próprias, embora seja também um sujeito postulante. Há certos procedimentos em que a lei proíbe a intervenção de terceiros. É o caso dos Juizados Especiais (Lei n. 9.099/95, art. 10). Essa restrição também ocorre no procedimento sumário do Código de 1973, no qual não é admissível a
intervenção de terceiros, salvo a assistência, o recurso de terceiro prejudicado e a intervenção fundada em contrato de seguro (art. 280). O Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90) veda a denunciação da lide, ressalvando expressamente que a ação de regresso poderá ser ajuizada em processo autônomo, nas hipóteses previstas no seu artigo 13 (CDC, art. 88). O artigo 101, inciso II, do Código consumerista autoriza expressamente o chamamento ao processo – que é uma modalidade de intervenção de terceiros – do segurador, pelo réu que houver contratado seguro de responsabilidade, mas veda a “integração do contraditório pelo Instituto de Resseguros do Brasil”, dispensando o litisconsórcio obrigatório entre eles. Não sou simpático a essas hipóteses de restrições à intervenção de terceiros, pois elas podem inviabilizar futura pretensão de ação regressiva proposta pela parte que está sendo demandada. A celeridade processual não pode ser um óbice ao direito de acesso à justiça. Reconheço, entretanto, que certos procedimentos não devem comportar intervenção de terceiros, como os embargos do devedor, em que apenas é permitida a assistência, pois admitir outras modalidades de intervenção de terceiros nesses embargos desvirtuaria a sua função precípua, que é a de resistir à execução. A doutrina costuma apontar oito modalidades de intervenção de terceiros, que estão reguladas no Código de Processo Civil. Recentemente, alguns autores têm se debruçado sobre figuras novas de intervenção surgidas em leis extravagantes. Limitando-nos às hipóteses reguladas no próprio Código, é preciso observar que entre as oito modalidades normalmente apontadas não se incluem hipóteses específicas de intervenção típicas do processo de execução, como a participação do arrematante, do credor adjudicante ou do credor concorrente. Pela dificuldade de sistematização dessas outras figuras, neste passo abordaremos especificamente apenas as oito modalidades de intervenção geralmente aceitas, destacando que quatro delas e uma espécie de outra são típicas do processo de conhecimento (oposição, nomeação à autoria, denunciação da lide, chamamento ao processo e assistência litisconsorcial). Trataremos também da desconsideração da personalidade jurídica e do amicus curiae, modalidades que vêm de ser reconhecidas pelo Código de 2015. No final deste capítulo faremos breve menção a algumas outras modalidades constantes de leis extravagantes. As modalidades de intervenção, presentes na codificação processual civil, podem ser classificadas, quanto à iniciativa da intervenção, em intervenção
espontânea ou voluntária e intervenção provocada ou coacta. As modalidades de intervenção de terceiros espontânea ou voluntária compreendem as hipóteses nas quais o terceiro intervém por iniciativa própria, ingressando em causa alheia. Por sua vez, as modalidades de intervenção provocada ou coacta são aquelas em que terceiros intervêm no processo alheio não espontaneamente, mas por provocação das partes originárias. O direito brasileiro se diferencia, nesse ponto, do direito italiano, pois, entre nós, a iniciativa ou provocação da intervenção é sempre de um dos litigantes, e não do próprio magistrado, como pode ocorrer naquele país através da chamada intervenção por ordem do juiz (iussu iudicis). São modalidades de intervenção espontânea ou voluntária: a assistência (CPC de 1973, arts. 50 a 55; CPC de 2015, arts. 119 a 124), a oposição (CPC de 1973, arts. 56 a 61; CPC de 2015, arts. 682 a 686), o recurso de terceiro prejudicado (CPC de 1973, art. 499; CPC de 2015, art. 996) e os embargos de terceiro (CPC de 1973, arts. 1.046 a 1.054; CPC de 2015, arts. 674 a 681). Já as modalidades de intervenção provocada ou coacta são: a nomeação à autoria (CPC de 1973, arts. 62 a 69), abolida como modalidade autônoma de intervenção pelo Código de 2015, a denunciação da lide (CPC de 1973, arts. 70 a 76; CPC de 2015, arts. 125 a 129), o chamamento ao processo (CPC de 1973, arts. 77 a 80; CPC de 2015, arts. 130 a 132) e a execução coletiva contra o devedor insolvente (CPC de 1973, arts. 748 a 786-A, mantidos em vigor pelo art. 1.052 do Código de 2015). No título da intervenção de terceiros, o Código de 2015 incluiu os institutos da desconsideração da personalidade jurídica (arts. 133 a 137) e do amicus curiae (art. 138), dos quais trataremos adiante.
21.1. ASSISTÊNCIA A assistência está regulada nos artigos 50 a 55 do Código de 1973 e 119 a 124 do Código de 2015. Ela é uma modalidade de intervenção de terceiros voluntária, através da qual o interveniente, invocando o seu próprio interesse jurídico, ingressa por sua própria iniciativa em causa em que não é parte, com a finalidade de auxiliar uma das partes como coadjuvante.
Estabelecem os artigos 50 do primeiro Código e 119 do segundo que, pendendo uma causa entre duas ou mais pessoas, o terceiro juridicamente interessado em que a sentença seja favorável a uma delas poderá intervir no processo para assisti-la. Assim, para que haja assistência, é preciso que o terceiro comprove o seu interesse jurídico na resolução da causa a favor de uma das partes, para então intervir como auxiliar dessa parte à qual está vinculado o seu interesse. A intervenção do assistente não implica a propositura de uma nova ação; não gera um processo cumulativo. Essa intervenção tem por objetivo auxiliar o assistido na defesa do seu próprio direito. Como já foi mencionado, deve existir um vínculo entre o interesse jurídico do assistente e o do assistido. Interesse jurídico é a relação jurídica de direito material que vincula o assistente ao assistido e, às vezes, também ao seu adversário, e que pode de algum modo ser afetada pela decisão da causa na qual o assistente não é parte. Para definir interesse jurídico, com frequência a doutrina invoca as classes de terceiros expostas por Liebman ao tratar dos limites subjetivos da coisa julgada; segundo essa doutrina, tem interesse jurídico todo aquele que possa sofrer algum efeito jurídico, alguma consequência em sua esfera jurídica, em razão da prolação de uma decisão judicial num processo em que não seja parte. De acordo com tal perspectiva, não haveria interesse jurídico para aquele que pudesse sofrer, em razão de decisão judicial, apenas uma consequência prática – e não uma consequência jurídica –, que afetasse o seu próprio direito. A meu ver, o que a doutrina qualifica como mero interesse prático muitas vezes também deve ser considerado um interesse jurídico. Defendo, assim, uma compreensão mais elástica do conceito de interesse jurídico, pois não é preciso que a relação jurídica do terceiro com o assistido possa ser diretamente atingida, sacrificada pela decisão da causa, para que aquele se caracterize; o direito do assistente pode não ser diretamente atingido, pode sobreviver plenamente íntegro, mas se a sua eficácia ou o seu exercício sofrer qualquer limitação prática estará caracterizado o seu interesse jurídico em intervir. O exemplo mais categórico desse interesse prático ocorre na ação de cobrança proposta por um credor em face do devedor comum. Nesses casos, o outro credor, cuja dívida ainda não venceu, não pode ainda propor a sua ação de
cobrança, mas, no momento do vencimento do seu crédito, em razão da ação de cobrança anteriormente proposta pelo outro credor, pode ser que o devedor comum não tenha mais bens para garantir, na prática, a sua própria execução e o recebimento do seu crédito. O credor cuja dívida ainda não venceu tem, nesse caso, interesse em intervir na ação de cobrança como assistente do devedor, para tentar demonstrar que o autor não tem direito ao crédito perseguido por meio da referida ação. Esse interesse não é meramente prático, como diria Liebman, porque o credor da dívida não vencida, eventualmente, não poderá concretizar o seu direito, apesar da sua essência não estar sendo afetada pela decisão da ação de cobrança, que não está tratando em nada do seu direito de crédito. No entanto, se ele, por causa da decisão dessa causa que está pendente, não puder mais exercer o seu direito de obter, na prática, o acesso ao bem da vida de que se considera titular e que se materializa, por exemplo, com o pagamento de uma importância em dinheiro, esse credor remanescente tem um interesse verdadeiramente jurídico na ação de cobrança do outro credor. Então, parece-me que toda vez em que, por qualquer razão, a decisão da causa puder comprometer a essência do direito do terceiro ou o seu exercício prático, evidencia-se o interesse jurídico, porque, na realidade, o Estado de Direito não protege direitos somente no seu aspecto abstrato, mas, sim, na medida em que eles outorgam aos seus titulares o gozo de bens que têm conteúdo e valor no mundo real. Com essa extensão, defendi a possibilidade de intervenção como assistente de entes públicos em litígios privados que versam sobre relações jurídicas que se encontram no âmbito da implementação de políticas públicas de responsabilidade daqueles entes públicos, cujos objetivos podem ser frustrados em decorrência do resultado desses litígios. Outra característica da assistência é a de que a intervenção do assistente pode ocorrer em qualquer procedimento e em qualquer grau de jurisdição, mas o terceiro, que nessa condição intervém em processo alheio, recebe o processo no estado em que se encontra (CPC de 1973, art. 50, parágrafo único; CPC de 2015, art. 119, parágrafo único). Logo, não existe um limite temporal para a intervenção do assistente, diferentemente do que ocorre em outras modalidades de intervenção de terceiros.
Como o assistente recebe o processo no estado em que se encontra no momento da sua intervenção, não pode ele alegar matérias já preclusas, visto que isso retardaria indevidamente a marcha do processo em direção ao seu fim. Desse modo, o assistente, que apenas passou a integrar a relação processual em grau recursal, não pode alegar teses de defesa que não foram deduzidas na contestação, salvo as de ordem pública ou as preliminares processuais relativas a nulidades absolutas. As matérias que ficaram preclusas para o assistido no curso do processo também o estarão para o assistente. Outra característica da assistência é a de que o assistente exerce no processo todos os direitos, deveres e ônus próprios das partes, devendo, assim, por exemplo, pagar as despesas processuais e compartilhá-las com o assistido, se este ficar vencido ao final no processo (CPC de 1973, art. 32; CPC de 2015, art. 94). A partir do ingresso do assistente no processo, ele é tratado como se fosse parte, devendo ser intimado de todos os atos do processo; ele pode ainda propor provas, interpor recursos, enfim, exercer praticamente todos os direitos, deveres e ônus que a lei atribui à parte principal. Todavia, há um limite à extensão da atuação do assistente. Ele não pode praticar atos que se choquem com os praticados pelo assistido, sendo-lhe vedado fazer aquilo que o assistido, expressamente, declarou que não queria fazer. Por exemplo: se o assistido pretender realizar um acordo, uma transação, o assistente não pode impedi-lo. Da mesma forma, se o assistido renunciou ao direto de recorrer, o assistente não poderá recorrer. Vale dizer, o assistente pode fazer tudo aquilo que o assistido poderia fazer, desde que não viole a liberdade de disposição do assistido acerca do seu próprio direito e da sua estratégia de defesa. A assistência tem sempre o intuito de ajudar o assistido, por isso é denominada intervenção ad adjuvandum. Toda vez em que alguém pretender intervir em causa alheia na qualidade de assistente, deverá dirigir uma petição ao juiz, requerendo a sua admissão, justificando e explicitando o interesse jurídico que tem na causa. O juiz, então, mandará ouvir as partes, que poderão impugnar o interesse jurídico do assistente. Se não houver impugnação, o juiz decide desde logo acerca da intervenção, ressalvado que ele não pode deferir a assistência se não estiver caracterizado o interesse jurídico. Se houver impugnação sobre ela, o magistrado ouvirá o assistente, colherá
provas e decidirá o incidente, sem suspensão do processo. No Código de 1973 o incidente se processa em apartado (art. 51, inc. I); no Código de 2015, se processa nos autos da própria causa (art. 120). A partir da admissão, o assistente será intimado de todos os atos, como se fosse parte. Há duas espécies de assistência, quais sejam a assistência simples e a litisconsorcial. Na assistência simples, o interesse jurídico do assistente está vinculado apenas à relação jurídica que ele mantém com o assistido. Por exemplo, o sublocatário intervém como assistente do locatário na ação de despejo proposta pelo locador. O sublocatário não mantém nenhuma relação jurídica com o locador – apenas com o locatário –, mas a posse do imóvel que ele detém pode ser atingida pela sentença de despejo. Então, ele pode intervir como assistente nessa causa. Essa assistência será simples. Na assistência simples, então, o assistente é um auxiliar da parte. Pode praticar todos os atos, exercer todos os direitos, poderes e deveres como se fosse parte, mas não pode tolher a liberdade do assistido, porque, na verdade, o direito ou o bem litigioso não são da sua titularidade, mas das partes principais do litígio, ou seja, do assistido e do litigante adversário do assistido. Excepcionalmente, o assistente simples pode assumir a posição de legitimado extraordinário, que o Código de 1973 qualifica de gestão de negócios (art. 52, parágrafo único) e o Código de 2015, mais corretamente, de substituição processual (art. 121, parágrafo único), na hipótese em que o assistido seja revel, que o Código de 2015 estende à hipótese em que, de qualquer outro modo, o assistido for omisso. Isso significa que o assistente deixa de ser apenas um sujeito auxiliar para se transformar em um substituto processual, enquanto perdurar a revelia ou a omissão do assistido, agindo em nome próprio na defesa do interesse do assistido. A assistência litisconsorcial caracteriza-se pela possibilidade de que a sentença proferida na causa entre o assistido e o seu adversário influa na relação jurídica entre o assistente e esse adversário (CPC de 1973, art. 54; CPC de 2015, art. 124). A assistência litisconsorcial é uma assistência qualificada, porque o assistente litisconsorcial não tem apenas um vínculo jurídico com o assistido, com a parte em favor da qual ele vai intervir, mas também com o adversário do assistido, liame esse que poderá ser diretamente atingido pela decisão da causa.
Assim, há casos em que o assistente também é parte na relação jurídica de direito material entre o assistido e o seu adversário, mas ele não integrou a relação jurídica processual originária como parte. A demanda, nessas hipóteses, poderia ter sido proposta em pluralidade subjetiva, formando-se um litisconsórcio facultativo, fundado, por exemplo, na comunhão de interesses. Assim, por exemplo, o credor pode cobrar a dívida por inteiro de todos os devedores solidários ou de qualquer deles. Caso o credor proponha a ação de cobrança da dívida apenas contra o codevedor “A”, o codevedor solidário “B”, tomando conhecimento dessa ação e querendo evitar uma futura ação regressiva, pode intervir como assistente do codevedor “A”. Essa assistência não é uma assistência simples, é litisconsorcial, porque esse terceiro interveniente tem vínculo jurídico com o adversário do assistido, que poderá ser afetado pela decisão da causa. O codevedor “B” também é cotitular dessa relação jurídica de direito material, e a sentença não vai apenas decidir a relação jurídica entre o assistido e o adversário deste, mas também a existente entre o assistente e o adversário do assistido. Em verdade, o assistente, ao intervir, está propondo uma ação incidente, tornando-se litisconsorte do assistido. No exemplo exposto, o processo inicialmente continha uma única ação do credor em face de um dos codevedores. Com a intervenção do assistente litisconsorcial, nesse mesmo processo correrão duas ações de cobrança: uma em face do réu originário e outra contra o assistente litisconsorcial. Isso se o assistente estiver intervindo para auxiliar o réu; se ele intervier para auxiliar o autor, inversamente, ele estará propondo uma ação incidente contra o réu originário e atuará em litisconsórcio ativo contra o adversário comum. Como toda espécie de cumulação de ações, a assistência litisconsorcial, que gera um litisconsórcio ulterior, deve observar os requisitos dos artigos 292 do Código de 1973 e 327 do Código de 2015, que são a compatibilidade entre os pedidos, a unidade de procedimentos e a identidade de competência absoluta. Como parte principal, o assistente litisconsorcial não está sujeito às limitações defensivas do assistente simples, a que se referem os artigos 53 do Código de 1973 e 122 do Código de 2015, a que fizemos referência acima. O maior problema relacionado à assistência decorre do previsto nos artigos 55 do Código de 1973 e 123 do Código de 2015. Esse dispositivo reproduz uma
regra muito antiga, oriunda da Idade Média, mas que sobrevive até hoje, segundo a qual aquele que intervém como assistente num processo alheio não pode mais discutir a justiça da decisão em um processo autônomo, salvo se provar que o assistido se defendeu mal ou que, no momento do seu ingresso, não pôde aduzir todas as alegações, todas as provas de que precisaria para defender o seu direito. O direito comum (ius commune) chamava essa situação excepcional de exceptio male gesti processus – exceção de processo mal administrado. O artigo 55 do Código de 1973 não esclarece se a exceptio male gesti processus se aplica apenas à assistência simples, apenas à assistência litisconsorcial ou a ambas. Já o artigo 123 do Código de 2015 situa o dispositivo na seção II do capítulo da assistência, em que agrupa as regras sobre a assistência simples. Na Idade Média, uma das características do direito germânico era justamente o caráter público e popular do julgamento. O instituto da assistência tem essa origem. Como no direito germânico primitivo as causas eram julgadas em assembleias populares, se alguém do povo tivesse algum interesse correlato com o que estava sendo decidido entre as partes, tinha de intervir na causa pendente entre elas e ficava vinculado à decisão nela proferida. Acredito que o entendimento segundo a exceptio male gesti processus que se aplica à assistência simples não é mais compatível com as garantias fundamentais do processo moderno, tais como a do contraditório e a da ampla defesa. Se o assistente simples não é parte, se o objeto litigioso não é o seu direito, se ele tem a sua atuação limitada pela do próprio assistido, do qual é um mero auxiliar, ele não pode ficar impedido de rediscutir a justiça da decisão, seja do ponto de vista fático ou jurídico, na causa em que estiver em jogo o seu próprio direito. Caso contrário, ele seria prejudicado na defesa do seu direito em razão da decisão proferida num processo em que não foi parte, em que ele interveio somente para colaborar e em que sofreu limitações no exercício da sua defesa. Mesmo o assistente litisconsorcial somente poderá ser atingido pelos efeitos da sentença transitada em julgado se tiver intervindo num momento em que fosse possível exercer plenamente a sua defesa, ou caso não tenha sido prejudicado pelo comportamento do assistido, pois se isso tiver ocorrido, deverá ser reputado um assistente simples. Parece-me, pois, que o verdadeiro alcance da regra em
comento não pode ultrapassar aquilo que Liebman denominou “eficácia natural da sentença”, isto é, que o assistente, em qualquer das duas modalidades de assistência, não poderá mais discutir que o direito entre as partes, o direito entre o assistido e o seu adversário, é o declarado na sentença, ressalvada a possibilidade de rediscutir os seus fundamentos na medida em que afetam o seu próprio direito material ou que, de algum modo, tenha sido prejudicado na sua defesa.
21.2. OPOSIÇÃO A segunda modalidade de intervenção de terceiros voluntária ou espontânea é a oposição, que o Código de 1973 regula no capítulo da intervenção de terceiros (arts. 56 a 61) e o Código de 2015 preferiu transferir para o rol dos procedimentos especiais (arts. 682 a 686). A oposição é uma ação incidente que veicula pretensão sobre coisa ou direito acerca do qual controvertem autor e réu. Trata-se de modalidade que não visa a auxiliar qualquer dos litigantes iniciais, mas a reivindicar para o opoente o direito ou a coisa que as partes originárias disputam. Por isso, a oposição é denominada intervenção ad excludendum. A oposição é sempre uma ação incidente, proposta pelo opoente, que é o terceiro que intervém em face das partes originárias, gerando normalmente um processo cumulativo. Com o oferecimento da oposição, ocorrerá a cumulação de três demandas: a ação originária, a ação do opoente em face do autor e a ação do opoente em face do réu. Nessas duas últimas, o opoente reivindica para si a coisa litigiosa, disputada entre autor e réu. A oposição é uma ação prejudicial incidente. Prejudicial porque, ao reivindicar para si a coisa ou o direito, o opoente quer que o juiz lhe atribua com exclusividade o bem da vida em litígio e, com isso, fique prejudicada a disputa entre autor e réu a respeito daquele bem. Se o juiz reconhecer, por exemplo, que o titular do bem é o autor da ação originária, julgará improcedente a oposição. Essa modalidade de intervenção não se confunde com os embargos de terceiro, que é outra modalidade de intervenção de terceiros. Nestes, o embargante não reivindica para si a coisa ou o direito que as partes estão disputando; ele requer apenas que o processo entre as partes não atinja um bem que é seu e, então, que o processo continue, mas fazendo incidir os atos coativos sobre outros bens que não os seus.
Os embargos de terceiro têm o caráter nitidamente de proteção do domínio, da posse ou de algum outro direito real do embargante sobre um bem. Por isso, a tradição os denomina embargos de terceiro, senhor ou possuidor. Eles não impugnam a controvérsia entre as partes e nem pretendem atribuir ao terceiro embargante o próprio objeto litigioso. Já na oposição o opoente reivindica exatamente aquilo que as partes estão disputando e, então, se ele obtiver o provimento jurisdicional pleiteado, a postulação do autor originário em face do réu originário estará prejudicada, ou melhor, deverá ser julgada improcedente. A petição inicial da oposição deve preencher todos os requisitos de uma petição inicial comum (CPC de 1973, art. 57; CPC de 2015, art. 683). A oposição é uma ação incidente e, por isso, a competência do juízo da ação principal se prorroga (CPC de 1973, art. 109; CPC de 2015, art. 683, parágrafo único) para a oposição. Logo, a oposição será dirigida ao juiz da causa e não submetida à livre-distribuição. A doutrina dominante, com a qual concordo, admite duas espécies de oposição: a proposta antes do início da audiência e a proposta depois do início da audiência, ambas, portanto, antes da sentença de primeiro grau. Para alguns, existiria, entretanto, uma terceira espécie: a oferecida depois da sentença, em grau de recurso. Considero que essa espécie não existe, não podendo haver oposição depois da sentença. Tanto o artigo 56 do Código de 1973 quanto o artigo 682 do Código de 2015 definem como limite temporal da oposição “até ser proferida a sentença”. O opoente não tem direito de interferir numa causa diretamente em uma instância superior, aí propondo originariamente uma ação incidente, com a supressão de uma ou mais instâncias inferiores; ele tem de submeter a sua causa ou postulação própria ao primeiro grau de jurisdição e, depois deste, se necessário aos que lhe são superiores. Se o opoente quiser reivindicar a coisa ou o direito disputado entre as partes e já houver sido proferida sentença no processo, ele tem de propor uma nova ação contra as partes, para submeter a sua demanda ao primeiro grau de jurisdição, o que deverá fazer não por meio da oposição, mas de uma ação autônoma. A diferença entre a oposição oferecida antes do início da audiência de instrução e julgamento e a oferecida depois do início da audiência é o procedimento que
daí poderá resultar. Oferecida antes do início da audiência, o juiz autuará a oposição em separado, mandando citar os opostos, autor e réu originários, para que a contestem (CPC de 1973, art. 57; CPC de 2015, art. 683, parágrafo único). Observe-se que a lei estabelece que essa citação se dará na pessoa dos advogados das partes originárias. Isso significa que os advogados deverão ser citados pessoalmente – por mandado, pelo correio ou por meio eletrônico –, mesmo que não tenham recebido na procuração poderes especiais para receber citação inicial. Depois de contestada, cessa o processamento em separado e a oposição seguirá nos próprios autos, juntamente com a ação principal, sua marcha normal, até a sentença final comum (CPC de 1973, art. 59; CPC de 2015, art. 685). Nessa sentença, o juiz decidirá primeiro a oposição, porque ela é uma ação prejudicial e o seu julgamento interferirá diretamente no resultado da ação primitiva. Caso rejeite a oposição, o juiz promoverá o julgamento da ação original (CPC de 1973, art. 61; CPC de 2015, art. 686). Se a oposição for oferecida depois de iniciada a audiência, ela não poderá prejudicar o andamento já avançado da causa original. Aqui há uma pequena diferença entre o Código de 1973 e o Código de 2015. O primeiro estabelece que, então, a oposição será processada separadamente, adotando o rito ordinário (art. 60). Entretanto, o juiz pode sobrestar a prolação da sentença da ação original por até noventa dias, para esperar o término do processamento da oposição e então dar uma sentença única, sobre a oposição e sobre a ação inicial. É uma faculdade que a lei confere ao juiz, não é uma imposição. Sobrestado o julgamento da ação original, a união das duas ações somente ocorrerá no momento da sentença. Se não for possível concluir o processamento da oposição em noventa dias, a sentença da ação principal deverá ser proferida separadamente da sentença da oposição. Esta vai prevalecer sobre aquela, porque o direito do opoente antecede, logicamente, ao direito das partes originárias. No Código de 2015 (art. 685, parágrafo único), o juiz suspenderá o processo para as contestações e a produção de provas na oposição incidente ou, se lhe parecer mais conveniente em benefício da celeridade, instruirá em conjunto esta e a ação principal. Ela será julgada sempre na mesma sentença, juntamente com a ação principal (art. 685, caput).
Essa oposição tardia, que pode provocar a reunião das ações apenas no momento da prolação da sentença ou no curso da audiência final, deve ser cuidadosamente ponderada pelo terceiro, antes da sua propositura, porque expõe o terceiro ao risco de ter a sua pretensão repelida como resultado do convencimento do juiz formado através das alegações e provas produzidas no processo da ação primitiva, no qual o terceiro não teve qualquer participação. À futura alegação de cerceamento de defesa, poderia o tribunal responder que o terceiro adotou essa via para reivindicar o seu direito, e não a da ação autônoma, por um ato absolutamente voluntário, ninguém podendo invocar em seu benefício nulidade a que deu causa. A grande controvérsia em relação à oposição relaciona-se às hipóteses em que um dos opostos não a contesta ou reconhece o pedido do opoente. Os artigos 58 do Código de 1973 e 684 do Código de 2015 – mal redigidos, em minha opinião – estabelecem que, “se um dos opostos reconhecer a procedência do pedido, contra o outro prosseguirá o opoente”. Esse artigo dá a falsa impressão de que se um dos opostos, autor ou réu originários, reconhece o pedido do opoente, somente contra o outro litigante prosseguirá a oposição, o que não é o que de fato acontece. O artigo em comento não está redigido com clareza porque o reconhecimento da procedência do pedido por um dos opostos não extinguirá a oposição em relação àquele que o fez. Isso porque o outro oposto pode provar que é o titular do direito ao bem e, então, este não poderá ser atribuído ao opoente, devendo o juiz proferir uma sentença de improcedência da oposição em relação a ambos os opostos – inclusive em relação àquele que reconheceu o pedido. Por exemplo: A move uma ação contra B reivindicando determinado bem. No curso dessa ação, C (opoente) oferece oposição afirmando que o bem litigado por A e B (opostos), na verdade, é da sua titularidade. Imagine-se que o oposto A (autor original) tenha reconhecido que o bem pertence a C (opoente). Se B (oposto e réu originário) consegue provar que é o titular do bem, o juiz não pode julgar a oposição procedente em relação a A e improcedente em relação a B. O juiz julgará improcedente a oposição de C contra ambos – mesmo que A tenha reconhecido o pedido – e julgará a ação inicial, que A move contra B, também improcedente, uma vez que a renúncia ao direito e as provas produzidas na oposição também influenciarão o julgamento da ação original.
Logo, a oposição não prosseguiu somente contra B, porque A se sujeita à sentença de improcedência na oposição, desmentindo, assim, o teor do comentado artigo 58. Imagine-se, como segunda hipótese, que o oposto B (réu original) tenha reconhecido que o bem pertence a C (opoente). Se A (oposto e autor originário) consegue provar que é o titular do bem, o juiz não pode julgar a oposição procedente em relação a B e improcedente em relação a A, mas improcedente contra ambos, A e B, e procedente a ação originária de A em face de B. B, apesar do reconhecimento do direito do opoente, se sujeitará à sentença de improcedência da oposição, porque o direito do opoente dependia da sua prevalência simultânea contra A e contra B. Para salvar esse infeliz dispositivo, o Código de 2015 oferece um caminho que não me parece ideal, mas que é possível, que resulta da instituição, no artigo 363 do julgamento antecipado parcial do mérito. Se o reconhecimento da oposição por um dos opostos preencher os requisitos desse dispositivo, poderá o juiz proferir decisão parcial de procedência do pedido do opoente em relação à parte que reconheceu o pedido, prosseguindo a oposição apenas em relação à outra.
21.3. NOMEAÇÃO À AUTORIA A nomeação à autoria só existe como modalidade autônoma de intervenção de terceiros no Código de 1973, como a espécie de intervenção de terceiros provocada exclusivamente pelo réu que indica para substituí-lo nessa posição o sujeito em nome do qual afirma que detém a coisa ou que praticou o ato em virtude do qual está sendo demandado. A nomeação à autoria ocorre em duas hipóteses. Quando o réu for demandado em uma ação possessória ou fundada em direito real, objeto do litígio, detendo a coisa em nome alheio, mas sendo demandado em nome próprio, deverá nomear à autoria o proprietário ou o possuidor, de acordo com artigo 62 do Código de 1973. O autor formula essa pretensão em face do réu na suposição de que ele seja o possuidor ou o proprietário, numa ação possessória ou numa ação fundada em outro direito real. Essa é a primeira hipótese. Por exemplo, uma pessoa, proprietária de uma fazenda invadida, ao procurar saber quais foram os invasores, é informada de que foi uma determinada pessoa. A partir desse conhecimento, propõe uma ação de reintegração de posse em face
da pessoa que lhe disseram que seria a invasora. No entanto, esse réu, ao se manifestar nessa ação de reintegração de posse, alega ser mero empregado, mero feitor de um determinado fazendeiro, que o mandara ocupar tal área em seu nome. Assim, diz ele, a ação deverá ser dirigida contra o seu empregador e não em face dele, que é mero detentor da área, agindo em nome do fazendeiro, como seu preposto. Essa é uma hipótese prevista pelo artigo 62 do Código de 1973. A segunda hipótese de nomeação à autoria é a do artigo 63 do Código, em que o réu, em ação indenizatória, é demandado em razão de um ato por ele praticado por ordem ou em cumprimento de instruções de terceiro. É o caso, por exemplo, de um motorista de ônibus pertencente a uma concessionária de transporte público que atropela alguém, e essa vítima propõe ação de indenização diretamente em face do motorista que assinou o boletim de ocorrência. Esse réu, em sua defesa, assevera que, embora tenha de fato atropelado o autor da ação, estava agindo como empregado da concessionária, devendo esta ser a responsável pela reparação dos danos civis. Diz-se frequentemente que a nomeação à autoria visa a resolver um problema de falta de legitimatio ad causam passiva. Não é assim, não é verdade, porque as condições da ação se aferem de acordo com a teoria da asserção (ver item 9.4), isto é, de acordo com a hipótese formulada pelo autor. E, assim, o réu originário pode ser o sujeito passivo legitimado daquela demanda; no entanto, ele se defende dizendo que o responsável por seus atos é outra pessoa. O réu primitivo deve fazer a nomeação no prazo de contestação. Sobre ela, o autor será ouvido em cinco dias (CPC de 1973, art. 64), podendo concordar ou não em substituir o réu originário pelo sujeito nomeado. Se o autor concordar, mandará promover a citação do nomeado, que, citado, poderá aceitar a posição de réu ou não (arts. 65 e 66). Eis aqui o grande defeito da disciplina do instituto da nomeação à autoria no Código de 1973, porque, se o novo réu não aceitar a nomeação, segundo o artigo 67, o autor terá de continuar a sua demanda em face do nomeante, o réu originário, ainda que esteja convencido de que o nomeante não é o responsável civil. Então, a nomeação à autoria, se aceita pelo autor e pelo nomeado, provoca uma alteração da demanda no polo passivo. Com isso, o nomeado passará a ocupar a posição de réu no lugar do nomeante. Se a nomeação à autoria não for aceita pelo autor ou pelo nomeado, ela fracassa, e o autor terá de continuar a sua demanda em face do réu originário.
Considero esse regramento absolutamente inadequado e injusto para o autor, porque este, muitas vezes, na apuração dos fatos que antecede a propositura da ação, tem dificuldade de descobrir quem é o verdadeiro responsável pela agressão ao seu direito real ou pelo dano causado ao seu patrimônio. As informações, muitas vezes precárias, que consegue colher, levam ao nome do nomeante como sendo o autor da lesão ao seu direito. Ele desconhece a existência do nomeado ou desconhece qual é a natureza da relação jurídica entre este e o nomeante. E o nomeante, para se livrar da responsabilidade, afirma que é um mero preposto do nomeado, um simples empregado, mero executor de ordens do nomeado. Este, por sua vez, para se liberar da responsabilidade, alega que não tem qualquer vínculo com o nomeante. E o Código de 1973, nesse caso, determina que o autor deve prosseguir a demanda somente contra o nomeante. Se o autor pudesse prever, antes do ajuizamento da demanda, que o réu primitivo fosse alegar que não é o responsável e promover a nomeação à autoria, certamente avaliaria melhor em face de quem devesse dirigir a sua pretensão. Talvez tivesse formulado seu pedido contra os dois, em litisconsórcio alternativo, pois não tem elementos prima facie para afirmar, ao certo, de quem é a responsabilidade, se do nomeante ou se do nomeado, porém sabe que algum dos dois é o responsável. Nesses casos, em que há dúvida quanto à titularidade passiva, o autor proporia a demanda em face dos dois, já que, dessa forma, a instrução da causa necessariamente elucidaria se o responsável é um ou outro. A nomeação à autoria não pode ser feita pelo juiz porque a legislação não permite. Segundo o artigo 66 do Código de 1973, se o nomeado reconhecer a qualidade que lhe é atribuída, contra ele correrá o processo; se a rejeitar, o processo continuará contra o nomeante. Isso não prejudica o direito de defesa do nomeante, prejudica o autor. A lei deveria permitir que, diante da recusa do nomeado, o autor pudesse escolher: continuar o processo somente contra o nomeante; continuar apenas contra o nomeado ou contra os dois. Porém, a lei não oferece ao autor essas opções. Então, com a recusa do nomeado, ou o autor continua contra o nomeante, se acreditar que conseguirá provar a sua responsabilidade, ou desiste da ação – mas para isso precisará da concordância do próprio nomeante (CPC de 1973, art. 267, § 4º) – e, depois, propõe outra ação em face do nomeado. Ou, ainda, prossegue contra o nomeante e propõe em separado outra ação contra o nomeado, requerendo a sua distribuição por dependência à anterior (art. 253, inc. I), e, em seguida, requer ao juiz a reunião
das duas ações pela conexão, o que poderá conseguir ou não (art. 105). Lamentavelmente, o autor não pode aproveitar o processo inicial para redirecioná-lo contra os dois ou para manter o nomeado como único réu, ainda que esteja convencido de que realmente o nomeante não é o responsável civil, pois o ordenamento processual não permite. É necessário dizer que, se o autor tivesse incluído o réu nomeado desde o início da relação processual, não haveria possibilidade de este desligar-se da demanda. Mas havendo a nomeação à autoria sido feita pelo réu nomeante, o nomeado tem o direito de optar em ser ou não réu na ação. Não há justificativa para que o nomeado se livre de tal demanda. Na verdade, a nomeação à autoria foi um instituto que ficou muito esvaziado no Código de 1973, com essa distorção decorrente de uma disciplina imprecisa. Aliás, todos os institutos de intervenção de terceiros têm alguma deficiência normativa e exigem o recurso à interpretação sistemática para resolvê-la. Mas, nesse caso, parece-me que não há como escapar. A doutrina e a jurisprudência poderiam ter dado uma solução para esse problema. Afinal, são mais de trinta anos de vigência do Código. Entretanto, a nomeação à autoria é um instituto que desperta pouco interesse, já que muito pouco utilizado. Embora seja obrigatória, ou seja, tenha o réu, que estiver na situação de preposto ou de executor de ordens de terceiros, nas ações a que ela se aplica, o dever legal de efetuá-la, a consequência do descumprimento dessa regra é a responsabilidade por perdas e danos, e não a nulidade do processo (art. 69). Essa responsabilidade pressupõe dolo, não é objetiva, e somente a culpa não é suficiente. Ainda que sobrevenha uma sentença de improcedência, favorável ao réu, ela gerará responsabilidade civil de indenizar ao autor os prejuízos que lhe causou em razão da ausência de nomeação, caso se verifique que a responsabilidade não era do réu, por ser ele preposto do real responsável. O artigo 64 do Código de Processo Civil prevê a suspensão do processo quando o juiz deferir o pleito feito pelo réu de nomeação à autoria. Porém, na verdade, o juiz não suspende o processo. Com o deferimento, interrompe-se o prazo para a contestação. Nesse prazo, o réu não contestou, e sim nomeou à autoria. Desse modo, não há suspensão do processo; o que há é interrupção do prazo para a contestação, com o desvio do processo para a diligência de citação e
consequente manifestação do nomeado. Trata-se de um dos casos de suspensão do processo imprópria, já examinado no capítulo em que tratamos dos prazos processuais. O processo não fica paralisado, mas entra num desvio para, posteriormente, ter continuidade em direção ao seu fim. Caso o autor recuse a nomeação, o juiz mandará intimar o réu para, se quiser, oferecer contestação. Se o autor concordar com a nomeação, o juiz mandará citar o nomeado. Se este aceitar, então, no mesmo prazo em que aceita, se defende. Mas, caso o nomeado se negue em reconhecer sua responsabilidade, o juiz mandará intimar o nomeante para contestar. Verifica-se, em face do exposto, que a nomeação à autoria não vai provocar a atuação simultânea das partes originárias e do terceiro, mas, se for o caso, a substituição de uma das partes, no caso o réu pelo terceiro, que assumirá a qualidade de parte. 21.3.1. A solução do Código de 2015 O Código de 2015 não mais inclui na intervenção de terceiros o instituto da nomeação à autoria. Mas nos artigos 338 e 339, no capítulo da contestação, regula as situações a que nos referimos no item anterior, influenciado pelo entendimento de que a questão é de falta de legitimidade ad causam do réu originário, ao qual impõe o dever de alegar essa ilegitimidade como preliminar da contestação, indicando o sujeito a quem atribui a condição de verdadeiro sujeito passivo da relação jurídica de direito material discutida, se o conhecer (art. 339, caput). Não limita mais o legislador essa arguição à matéria possessória ou às ações de indenização por ato ilícito. Nessa hipótese, e em qualquer outra em que o réu alegue a sua falta de legitimidade passiva, o que deverá ser feito na contestação, sem suspensão do processo, o juiz facultará ao autor a substituição do réu (art. 338, caput). No caso de indicação pelo réu originário do possível sujeito passivo da relação jurídica material, o autor poderá recusar a indicação, poderá aceitá-la, substituindo o réu, ou poderá manter o réu originário e incluir o indicado como litisconsorte passivo (art. 339, §§ 1º e 2º). Essa nova disciplina, apesar do erro de técnica de capitular o problema como falta de condição da ação, o que obviamente não é, tanto que o autor pode prosseguir contra os dois e, afinal, alcançar uma decisão de mérito contra ambos, é bem superior à do Código de 2015.
Os únicos reparos que, a meu ver, dizem respeito aos encargos da sucumbência. Parece justo que o autor, em caso de aceitação da substituição do réu originário pelo novo réu, reembolse a este as despesas que efetuou, mas não que lhe pague honorários da sucumbência. Afinal, o réu cumpriu um dever de lealdade e cooperação ao efetuar a indicação de terceiro, dever de tal importância que a omissão do réu lhe acarreta a responsabilidade pelos prejuízos causados e, ainda, a de arcar com as despesas processuais, mesmo que seja afinal vitorioso (art. 340). A sucumbência imposta ao autor que aceita a substituição pode constituir um desestímulo a essa aceitação.
21.4. DENUNCIAÇÃO DA LIDE A denunciação da lide é, provavelmente, a mais importante modalidade de intervenção de terceiros provocada, podendo ser feita pelo réu ou pelo autor. Esses sujeitos parciais do processo chamam para responder em ação regressiva aquele que pela lei ou pelo contrato está obrigado a garantir a existência do direito em que se fundamenta o pedido ou a defesa do denunciante. Apesar de também poder ser provocada pelo autor, é bem mais usual que o réu faça a denunciação da lide. É o caso de o réu ser demandado a respeito de um direito, que lhe fora transmitido por alguém, por um terceiro contra o qual ele tem ação regressiva. Um exemplo clássico de denunciação da lide, aliás expressamente previsto no artigo 70, inciso I, do Código de 1973 e no artigo 125, inciso I, do Código de 2015, ocorre nos casos de responsabilidade do alienante de um bem pelos riscos da evicção, que é a perda da propriedade da coisa pelo adquirente em razão de direito de terceiro. Então, se José comprou um imóvel de Pedro e João propõe em face de José uma ação reivindicatória desse mesmo bem, José poderá perder a propriedade adquirida de Pedro. De acordo com o artigo 447 do Código Civil, quem vende o bem tem o dever de garantir que não haverá a perda do imóvel em razão de direito de terceiro. Isto é que se chama de evicção. Assim, José, ao ser citado, denuncia a lide ao alienante (Pedro) para que exerça duas funções nesse processo: a primeira é a de ajudar na defesa da propriedade de José, para que ele não a perca; e, a segunda, a de responder desde logo em ação regressiva, caso José perca a propriedade em razão da sentença de procedência da ação
reivindicatória. Assim, a mesma sentença julgará procedente o pedido feito pelo reivindicante (João) na ação de reivindicação e também julgará procedente contra o alienante (Pedro) a ação regressiva, estando desde logo condenado a indenizar José pelos prejuízos decorrentes da perda da propriedade. A utilidade da denunciação da lide é a concentração em um único processo da ação original e da ação regressiva nos casos em que há essa relação de garantia, existente por força de lei ou por força de contrato. Embora não ocorra com tanta frequência, a denunciação da lide também pode ser provocada pelo autor quando a ação estiver fundada em um direito que lhe fora transmitido por outrem. Caso haja receio em perder essa ação, poderá já na petição inicial denunciar a lide àquele que tenha a obrigação legal ou contratual de garantir a existência do seu direito. Por exemplo, uma pessoa física firmou contrato de locação com uma administradora de imóveis sem antes fazer a visitação in loco e, depois de receber as chaves, quando foi entrar no imóvel, constatou que já havia outra pessoa morando lá. Esse morador pode ser um esbulhador, ou pode ser que a administradora tenha alugado ao mesmo tempo o imóvel para duas pessoas. Então, aquela pessoa, acreditando tratar-se de um esbulho, propõe em face do ocupante do imóvel a competente ação possessória, porque, com o contrato de locação, o locatário se investe na titularidade da posse direta do bem. Assim, pode propor em nome próprio ação possessória contra aquele que supõe ser o esbulhador, e também, ao mesmo tempo, na petição inicial, dirigir a denunciação da lide ao locador para ajudá-lo a retomar a posse do imóvel. Caso fracasse na ação possessória, o locador será condenado a ressarcir os prejuízos que lhe causou por ter locado ao autor um imóvel que já estava alugado a terceiro. O Código de 1973, em seu artigo 70, incisos I, II e III, e o Código de 2015, em seu artigo 125, incisos I e II, enumeram as hipóteses de denunciação da lide. Nos dois Códigos, o inciso I desses dois artigos tem o mesmo conteúdo, prevendo a hipótese em que o adquirente denuncia a lide ao alienante para resguardar-se dos riscos da evicção. O inciso II do artigo do Código de 1973 prevê as hipóteses em que a posse se desdobra em posse direta e posse indireta, como na locação, no usufruto ou no penhor. O proprietário ou o possuidor indireto pode sofrer a denunciação por iniciativa do possuidor direto, para auxiliá-lo e responder em ação regressiva pela garantia de posse que a ele transmitiu, o que tanto pode
ocorrer no caso de o possuidor direto ser autor ou réu, embora incorretamente esse inciso se refira apenas ao réu. Esse inciso desaparece no artigo do Código de 2015, ficando absorvido pelo inciso seguinte, que trata genericamente da obrigação de indenizar em ação regressiva. O inciso III do artigo 70 do Código de 1973 e o inciso II do artigo 125 do Código de 2015 possibilitam a denunciação da lide em todos os tipos de ações de que possa resultar a obrigação de indenizar, por parte de terceiro, o prejuízo do que perder a demanda. Esse inciso gerou muitas controvérsias doutrinárias, com argumentos e opiniões divergentes a respeito dos limites desse chamamento de terceiro responsável em ação regressiva por uma indenização. Penso que essas construções doutrinárias foram ociosas e não podem limitar o alcance dessa ação regressiva porque tal restrição pode representar o insucesso do réu numa futura ação regressiva autônoma. Por exemplo, se uma pessoa reside num prédio e contrata uma empreiteira para a pintura da fachada de tal imóvel e, um dia, um operário da empreiteira deixa cair um balde de tinta de cima do andaime e mata uma pessoa na calçada, a família da vítima ajuizará a ação de indenização contra o morador (Código Civil, art. 938), pois é civilmente responsável por todos os danos que a obra causar a terceiros. O morador, citado, se defende e faz a denunciação da lide à empreiteira, pois não precisa esperar a condenação para ajuizar a ação regressiva. Então, o morador responderá conjuntamente com a empreiteira, que tem interesse em colaborar com ele, uma vez que, ao mesmo tempo em que se defende da ação da vítima contra o morador, se defende eventualmente da ação regressiva deste. Há doutrina e jurisprudência que tentam reduzir o alcance desse dispositivo, o que, a meu ver, deve ser repudiado. Assim, por exemplo, se discute se, na ação de indenização em face de ente público, esse pode denunciar a lide ao servidor, com base no parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição, que tem a seguinte redação: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.” Alguns dizem não ser possível a denunciação da lide porque a responsabilidade estatal é objetiva enquanto a do servidor é subjetiva. Mas, caso não haja a denunciação da lide, retardará a ação regressiva do Estado, que poderá ficar frustrado na recuperação do prejuízo
causado pelo servidor. A denunciação da lide antecipa a promoção de responsabilidade do garantidor para que ocorra simultaneamente com a definição da responsabilidade do responsável civil. Essa é a sua grande vantagem. Como dito alhures, a disciplina legal da intervenção de terceiros é bastante imperfeita. O artigo 70 do Código de 1973 diz que a denunciação da lide é obrigatória e não distingue as hipóteses dos incisos I, II e III. Na hipótese do inciso I – de evicção – parece certo que seja obrigatória, porque o Código Civil (art. 456) assevera dessa forma. Se o adquirente não chamar o alienante, não poderá depois se voltar contra ele. Perde o direito de ação regressiva. O Código de 2015 altera essa regra, determinando que, em todos os casos, a denunciação não é obrigatória, ficando sempre preservado o direito de regresso a ser perseguido por ação própria, se não proposta, indeferida ou incabível a denunciação (art. 125, parágrafo único). Em relação às hipóteses dos incisos II e III do artigo 70 do Código de 1973, apesar do enunciado do artigo, prevaleceu o entendimento correto de que a denunciação não pode ser obrigatória, o que veio a ser corroborado pelo Código de 2015. A mudança de orientação do Código de 2015, que tornou facultativa a denunciação em todos os casos, apesar do disposto no Código Civil sobre a evicção, é correta. A lei processual não deve e não pode estabelecer a perda do direito de ação regressiva simplesmente porque não foi exercido num prazo tão curto, como é o prazo de contestação. Os prazos prescricionais, normalmente, variam de um a cinco anos (Código Civil, art. 206), não sendo razoável que o réu perca a ação regressiva em poucos dias, sem ter sido conscientizado desse risco, e, muitas vezes, por culpa do seu próprio advogado, que não fez a denunciação. A denunciação da lide é uma ação regressiva que corre no mesmo processo, na mesma relação processual, promovendo uma cumulação de duas ações: a ação originária e a ação regressiva, que serão decididas na mesma sentença (CPC de 1973, art. 76; CPC de 2015, art. 129). Como espécie de cumulação de ações, deve submeter-se aos dois requisitos comuns a qualquer cumulação, a idêntica competência absoluta do juízo da ação
originária para a ação de denunciação e a unidade de procedimento entre as duas ações. Se proposta na petição inicial, pode o autor-denunciante optar para ambas as ações pelo rito ordinário ou comum. Se a denunciação for feita pelo réu, será uma cumulação sucessiva; ou eventual, se a cumulação for proposta pelo autor. Isso porque no caso de denunciação da lide feita pelo réu, se julgada procedente a ação principal, o juiz julgará a ação regressiva. Assim, a cumulação sucessiva se caracteriza pela apreciação do segundo pedido (na ação regressiva) nos casos em que há acolhimento do pedido da primeira ação. É o que acontece na denunciação feita pelo réu. Ou seja, o juiz somente julgará a ação regressiva se a ação principal for julgada procedente. Se a ação principal for julgada improcedente, estará prejudicada a ação regressiva, que será julgada improcedente. Nos casos de denunciação feita pelo autor, ocorre o inverso. O juiz somente julgará a ação regressiva se a original for julgada improcedente, porque, se julgar a ação principal procedente, estará prejudicada, ou melhor, será improcedente a ação regressiva. Então, a cumulação de ações na denunciação da lide promovida pelo autor é subsidiária ou eventual. A denunciação da lide depende, exclusivamente, da vontade do denunciante, e não de concordância da parte adversária ou da concordância do denunciado, embora a lei esteja mal redigida e possa parecer o contrário. É importante saber qual é a posição do denunciado na relação processual. Ele assume uma dupla posição: é assistente do denunciante na ação principal e é réu da ação regressiva proposta pelo denunciante. Ajuda o denunciante a defender o seu direito, mas ao mesmo tempo se defende da ação regressiva proposta em face dele pelo denunciante. Se o denunciante for vencedor na ação principal, ele estará livre da responsabilidade regressiva, por isso tem interesse em ajudar o denunciante. No regime do Código de 1973, o artigo 73 permite denunciações da lide sucessivas. É o que acontece, por exemplo, no caso de alienações sucessivas, de evicção. O Código Civil (art. 456) exige, no caso de evicção, que o adquirente notifique o litígio ao alienante imediato ou a qualquer dos anteriores. Então,
seria permitida, no caso de evicção, a denunciação da lide não apenas do alienante imediato, mas de qualquer dos anteriores pelo próprio adquirente, e o alienante que fosse denunciado poderia chamar também qualquer alienante antecessor. O Código de 2015 dispõe de modo diverso que, no caso de evicção, a denunciação é apenas do alienante imediato (art. 125, inc. I). Mas esse novo diploma é silente quanto às hipóteses de indenização em ação regressiva em que me parece subsistir a possibilidade de denunciações sucessivas. A finalidade da denunciação da lide é permitir que a ação regressiva seja julgada juntamente com a ação principal e, portanto, a responsabilidade do garantidor seja promovida simultaneamente, forçando-o a ajudar o garantido na defesa de seu direito contra o adversário. Assim, o garantidor é, ao mesmo tempo, assistente na ação principal e réu na ação regressiva, embora os dois Códigos se refiram, respectivamente, nos artigos 74 e 75 do primeiro e 127 e 128 do segundo, à posição de litisconsortes. Outra característica da denunciação da lide no Código de 1973 é o processamento e julgamento simultâneo das duas ações, a principal e a regressiva, de acordo com o artigo 76. A sentença que julgar procedente a ação no caso de denunciação pelo réu ou que julgar improcedente a ação no caso de denunciação pelo autor, julgará simultaneamente a ação regressiva e valerá como título executivo contra o denunciado para ser ressarcido dos prejuízos decorrentes da perda do direito. Voltando-se àquele exemplo do inquilino que propôs a ação em face do esbulhador e denunciou a lide ao proprietário. Suponha-se que tenha perdido a ação possessória, com sentença de improcedência, que também julgou procedente a ação regressiva e condenou o denunciado a pagar os prejuízos. A execução da sentença se fará contra o denunciado, quanto à indenização por não ter garantido a posse da coisa. Com a criação no Código de 2015 do instituto do julgamento antecipado parcial do mérito (art. 356), esse Código passa a favorecer que a ação principal e a regressiva sejam resolvidas em decisões distintas. Nas situações previstas nos incisos II e III do artigo 128, reconhecendo o réu-denunciante o pedido do autor, pode o juiz decidir desde logo a ação principal, prosseguindo a instrução apenas em relação à ação regressiva.
Nos casos de ações de indenização, hipótese do inciso III do artigo 70 do Código de 1973, acontece um problema na ação regressiva. O direito de regresso somente nasce se o denunciante pagar a indenização ao autor. Entretanto, jurisprudência recente veio a reconhecer, em relação a seguradoras, que o autor da ação de indenização execute a sentença diretamente contra o segurador denunciado pelo réu. Se não fosse assim, poderia ficar inviável o recebimento da indenização, porque o réu, muitas vezes, não tem bens que possam garantir a execução, pois somente tem a garantia do contrato de seguro. Essa evolução resultou em grande parte das inovações do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990), cujo artigo 101, inciso II, previu expressamente, nas relações de consumo, a cobrança direta do seguro à seguradora na ação proposta pela vítima do ato ilícito contra o segurado. Consagrando esse entendimento, o Código de 2015, no artigo 128, parágrafo único, na hipótese de denunciação pelo réu condenado, permite a promoção do cumprimento da sentença em favor do autor diretamente contra o litisdenunciado. Para finalizar o estudo da denunciação da lide, cumpre comentar alguns dispositivos legais que tratam dessa importante modalidade de intervenção de terceiros. O artigo 71 do Código de 1973 e o artigo 126 do Código de 2015 determinam que a citação do denunciado seja requerida juntamente com a do réu, se o denunciante for o autor, o que significa que, na própria petição inicial, o autor já deve promover a denunciação da lide. Obviamente, o denunciado pelo autor pode aditar a petição inicial, porque, como assistente, ele pode praticar os mesmos atos que poderia praticar o assistido, mas não pode aditar aquela para mudar os elementos individualizadores da demanda. Ele pode aditá-la para aduzir argumentos de reforço ou para arguir fatos que confirmem os fatos jurígenos constitutivos do direito do autor, mas evidentemente ele não pode alterar a demanda porque não é parte na ação principal. No regime do Código de 1973, de acordo com o mesmo artigo 71, se a denunciação couber ao réu, este deverá promovê-la no prazo para contestar, ou seja, na própria contestação ou juntamente com ela. Ordenada a citação do denunciado, o processo ficará suspenso (art. 72, caput). Entretanto, essa é uma
das hipóteses de suspensão imprópria do processo, pois a demanda proposta pelo denunciante em face do denunciado não sofrerá qualquer suspensão, o que ocorrerá somente em relação à demanda originária. Na verdade, como na nomeação à autoria, o processo entra num desvio, para instruir a denunciação, e, em seguida, ter continuidade em direção ao seu fim. O § 1º do artigo 72 do Código de Processo Civil prevê que a citação do alienante, do proprietário, do possuidor indireto ou do responsável pela indenização far-se-á em 10 (dez) dias, quando residir na mesma comarca (alínea a) e em 30 (trinta) dias, quando um desses sujeitos residir em comarca diversa ou em lugar incerto (alínea b). Se a citação não for realizada no prazo estipulado, por culpa do denunciante, o processo continuará apenas em face deste (art. 72, § 2º, do CPC). Simplificando esse procedimento, o Código de 2015 estabelece que o réu proponha a denunciação na própria contestação, que os denunciados sejam citados para responder com observância das regras gerais do artigo 131, sem suspensão do processo. Realizada a denunciação pelo réu, se o denunciado a aceitar e contestar o pedido, o processo prosseguirá entre o autor, de um lado, e, de outro, o denunciante, assistido pelo denunciado (CPC de 1973, art. 75, inc. I; CPC de 2015, art. 128, inc. I). De outra forma, se o denunciado for revel ou comparecer apenas para negar a qualidade que lhe foi atribuída, poderá o denunciante prosseguir na defesa até o final (CPC de 1973, art. 75, inc. II) ou, no regime do Código de 2015, reconhecer o pedido do autor e prosseguir na busca da indenização regressiva (128, inc. II). Esses dispositivos não permitem ao denunciado recusar a denunciação, mas apenas repudiar a ação regressiva, alegando o descabimento da denunciação com o intuito de afastar a sua responsabilidade. Todavia, ele ficará vinculado ao processamento e julgamento da causa até o final, porque não há, em sede de denunciação da lide, a possibilidade do terceiro interveniente recusar a integração da relação processual, como pode ocorrer na nomeação à autoria do Código de 1973. Então, ocorrendo a recusa da sua qualidade pelo denunciado, a demanda prosseguirá normalmente entre autor e réu, subsistindo, contudo, a ação
regressiva contra o denunciado, que estará vinculado ao julgamento da causa principal. Se o denunciado confessar os fatos alegados pelo autor, poderá o denunciante prosseguir na defesa (CPC de 1973, art. 75, inc. III) ou, no regime do Código de 2015, reconhecer o pedido do autor, prosseguindo na ação regressiva (art. 128, inc. III). A confissão do denunciado, então, não prejudica o denunciante, pois se aplicam por analogia nesses casos as disposições referentes à assistência, segundo as quais os atos do assistente não podem prejudicar o assistido. Mesmo que se considere o denunciante e o denunciado como litisconsortes, como pretende a literalidade dos dois Códigos, não subsiste qualquer eficácia da confissão do segundo em relação ao primeiro, pois o artigo 350 do Código de 1973 e o artigo 391 do Código de 2015 estabelecem que a confissão judicial de um dos litisconsortes não prejudica os demais. A sentença que julgar procedente o pedido declarará, conforme o caso, o direito do evicto ou a responsabilidade por perdas e danos, fazendo coisa julgada e valendo como título executivo (CPC de 1973, art. 76; CPC de 2015, art. 129). A má redação do dispositivo do Código de 1973, que menciona apenas sobre os casos em que a denunciação é feita pelo réu, é corrigida no Código de 2015. Também este Código, dirimindo dúvidas, prevê no artigo 129 que, na denunciação pelo autor, cuja ação principal tenha sido julgada procedente, incorrerá o autor na responsabilidade definitiva das despesas da denunciação e dos respectivos honorários da sucumbência em favor do advogado do denunciado.
21.5. CHAMAMENTO AO PROCESSO O chamamento ao processo está regulado nos artigos 77 a 80 do Código de 1973 e 130 a 132 do Código de 2015. É uma modalidade de intervenção de terceiros facultativa, provocada apenas pelo réu, que, demandado como devedor solidário ou fiador de uma obrigação, requer a citação do codevedor solidário, do cofiador ou do devedor principal. O chamamento ao processo foi uma novidade trazida pelo Código de Processo Civil de 1973, importada do Código de Processo Civil português, que, até a reforma de 1995, a denominava chamamento à demanda (art. 330º). No Código
português de 2013 está parcialmente adotado no artigo 317º. O nosso chamamento ao processo é um instituto que tem fundamento na economia processual e visa a permitir que o devedor ou fiador exerça desde logo a ação regressiva contra o codevedor solidário, o cofiador ou o afiançado, na ação de cobrança que lhe move o credor. O chamamento ao processo caracteriza-se principalmente pelo fato de que somente pode ser provocado pelo réu, sendo sempre facultativo e provocando a cumulação de ações num mesmo processo. Como afirmado, o chamamento ao processo gera o fenômeno do processo cumulativo. Nesse sentido, imagine-se, por exemplo, a propositura de uma ação de cobrança do credor A em face do devedor solidário B. Com o chamamento ao processo pelo réu originário dos codevedores solidários, serão processadas simultaneamente tantas ações de cobrança quantos forem os chamados, além da ação originária. Além disso, passam a correr ações regressivas dúplices entre o réu originário e cada um dos chamados, assim como entre estes, de tal modo que qualquer um que pagar a dívida poderá usar a sentença para se reembolsar junto aos outros das quotas que lhes cabem. As ações cumuladas serão julgadas em conjunto e a sentença não disporá apenas sobre o direito do credor. Aquele que for executado tem o direito de se reembolsar dos outros da parte da indenização que couber a estes. No caso de o executado ser o fiador, ele poderá exigir do devedor principal a totalidade da dívida cobrada. Ainda em relação às ações dúplices, aquele que propôs o chamamento também pode ser condenado a reembolsar os chamados, mesmo sem reconvenção ou qualquer pedido expresso por parte destes, caso sejam estes executados e paguem a quota devida por aquele. Elas são, portanto, ações ambivalentes, porque funcionam como ações regressivas entre o réu e os chamados, reciprocamente, e entre estes. O chamado é mais do que um assistente simples; é um assistente litisconsorcial, porque passa a ser corréu da ação originária. Ele é corréu da ação originária (litisconsorte passivo) e réu e autor das ações regressivas. No Código de 1973, na disciplina do chamamento ao processo, assim como na
da denunciação à lide, ocorre a suspensão imprópria do processo (art. 79), o que não ocorre no Código de 2015, em que o chamamento será proposto pelo réu na própria contestação (art. 131). A sentença que julgar procedente o pedido da ação originária, condenando os devedores, valerá como título executivo em favor daquele que satisfizer a dívida, que, sendo fiador, poderá exigi-la por inteiro do devedor principal, ou de cada um dos codevedores a sua quota, na proporção que lhes tocar, se o executado for um devedor solidário (CPC de 1973, art. 80; CPC de 2015, art. 132).
21.6. RECURSO DE TERCEIRO PREJUDICADO O artigo 499 do Código de 1973 e o artigo 996 do Código de 2015 estabelecem que o recurso pode ser interposto pela parte vencida, pelo terceiro prejudicado e pelo Ministério Público. O § 1º do artigo estatui que “cumpre ao terceiro demonstrar o nexo de interdependência entre o seu interesse de intervir e a relação jurídica submetida à apreciação judicial”. No mesmo sentido, mas com outra redação, dispõe o parágrafo único do art. 996: “cumpre ao terceiro demonstrar a possibilidade de a decisão sobre a relação jurídica submetida à apreciação judicial atingir direito de que se afirme titular ou que possa discutir em juízo como substituto processual”. Se o terceiro intervém como assistente, opoente, denunciado ou chamado, ele não precisa dessa legitimidade especial para interpor recursos. Esses artigos referem-se ao terceiro que tem interesse jurídico na causa, mas que não foi parte ou não interveio por meio de qualquer das quatro modalidades de intervenção mencionadas. É, portanto, um terceiro que ainda não participou da relação processual como sujeito postulante, mas que, tomando conhecimento da decisão, pode dela recorrer para pedir a sua anulação ou a sua reforma em favor da parte à qual está vinculado o seu interesse. O tribunal, para admitir o recurso do terceiro prejudicado, deve exigir que o recorrente demonstre o nexo de interdependência entre o seu interesse e a relação jurídica submetida à apreciação judicial (CPC de 1973, art. 499, § 1º). Assim, ele precisa demonstrar que a decisão objeto do recurso o atinge. Ampliando o instituto, o Código de 2015 também faculta o seu manuseio por quem possa discutir em juízo como substituto processual direito que possa ser atingido pela decisão. É compreensível que o legislador queira dar a mais ampla
proteção a direito que é acionado ou defendido em juízo por substituto processual, mas o teor do dispositivo não é feliz. Em primeiro lugar, se o substituído não é parte na causa, não vai ficar vinculado à decisão que o substituto pode pretender reformar ou anular por meio do recurso. Em segundo lugar, a legitimidade para recorrer é tão importante quanto a legitimidade para agir. Se, para esta, a substituição processual depende de lei expressa, para aquela não deve ser diferente. Ainda que se possa presumir que muitos substitutos processuais são órgãos públicos que agem indiscutivelmente em benefício dos interesses legítimos dos substituídos, como o Ministério Público e a Defensoria Pública, não se pode esquecer que qualquer cidadão é substituto processual do Estado na ação popular. Se essa ação já é notoriamente instrumento de demandismo abusivo, não se pode esperar que seja diferente com a concessão a qualquer cidadão da legitimidade para recorrer de qualquer decisão em qualquer processo, de que possa resultar algum prejuízo para interesse que possa ser objeto de ação popular. Por fim, legitimidade para discutir implica em legitimidade para atuar no polo ativo e no polo passivo e a substituição processual passiva por vezes não confere ao substituto nenhuma responsabilidade pela tutela de qualquer interesse, mas cumpre um papel puramente dialético de oferecer alguma defesa a sujeito cujos interesses o substituto desconhece por completo, como na curadoria especial do réu citado por edital. Portanto, a extensão conferida à legitimidade do terceiro para recorrer pelo artigo 996 do Código de 2015 deve exigir prova robusta de interesse concreto do substituído que tenha elevada probabilidade, e não apenas possibilidade, de ser prejudicado pela decisão recorrida. Conforme já foi acentuado, o terceiro não recorre para pedir o julgamento do seu próprio direito, e sim a anulação ou a reforma da decisão em favor daquele ao qual está vinculado o seu interesse ou o interesse do substituído. Dessa forma, o terceiro prejudicado, desde que admitido a recorrer por se verificar o referido nexo de interdependência, age como assistente simples, pois o recurso que interpõe é em favor da parte vencida, para tutelar um direito desta. O tribunal vai julgar no recurso não o direito do assistente – no caso o terceiro prejudicado ou o seu substituto –, mas o direito do assistido. Na vigência do Código de Processo Civil de 1939, o terceiro prejudicado gozava de um prazo especial para recorrer, prazo esse mais longo, porque, como ele não é parte no processo, muitas vezes demora a tomar conhecimento da decisão que
lhe é prejudicial. Hoje, contudo, não existe nenhuma regra especial e, portanto, o terceiro prejudicado tem de recorrer no mesmo prazo de que dispõem as partes principais para fazê-lo. Como o terceiro prejudicado figura no processo numa posição análoga à do assistente simples, ele não pode tolher a liberdade do vencido de dispor sobre o seu direito de recorrer. Logo, se este renunciou ao seu direito de recorrer, o terceiro prejudicado não poderá praticar qualquer ato que retire a eficácia daquela disposição; o mesmo ocorre se o vencido, já tendo recorrido, desistir do seu recurso. Se o vencido realizou uma transação ou um acordo com a parte contrária, o terceiro prejudicado não pode recorrer, exceto para alegar a nulidade dessa transação. A sentença não faz coisa julgada em relação ao terceiro recorrente ou ao seu substituído (CPC de 1973, art. 472; CPC de 2015, art. 506). Por exemplo: suponha-se a propositura de uma ação de cobrança contra um devedor solidário, que, entretanto, não chamou ao processo os demais codevedores solidários. Estes poderiam ter intervindo, inclusive, como assistentes litisconsorciais – pois são titulares da relação jurídica discutida em juízo –, mas também não intervieram a esse título, mesmo tomando conhecimento da referida ação. Prolatada a sentença que condenou o devedor a pagar a totalidade da dívida, se um dos codevedores solidários a considerar injusta, poderá interpor recurso com base no artigo 499 do Código de 1973 e no artigo 996 do Código de 2015, na qualidade de terceiro prejudicado. Ele estará atuando apenas em benefício do vencido; não está propondo uma nova ação. Contudo, como também é titular da relação jurídica de direito material, o terceiro prejudicado poderá discutir amplamente a existência da dívida em ação autônoma, em que figure como parte. O recurso de terceiro prejudicado pode ser interposto tanto no processo de conhecimento como no de execução ou no processo cautelar.
21.7. EMBARGOS DE TERCEIRO Os embargos de terceiro são uma ação de rito especial, regulada nos artigos 1.046 a 1.054 do Código de 1973 e 674 a 681 do Código de 2015, entre os chamados procedimentos especiais. São uma ação incidente proposta pelo terceiro para a defesa do domínio, da posse ou de outro direito sobre determinado bem, que se propõe para a exclusão da incidência sobre esse bem de
qualquer ato de constrição judicial praticado em processo de que o embargante não seja parte. Distinguem-se da oposição (CPC de 1973, arts. 56 a 61; CPC de 2015, arts. 682 a 686) porque nesta o terceiro afirma ter pretensão incompatível com a das partes, sendo uma ação contra ambas as partes originárias; os embargos de terceiro, por sua vez, atacam um ato do Estado que incide sobre um bem do embargante e que tenha sido praticado numa relação processual de que ele não é parte, causando-lhe um dano ex executione. Distinguem-se também dos embargos do devedor, porque estes podem ter finalidade mais ampla e não apenas a de ilidir a execução, enquanto os embargos de terceiro visam somente a excluir o bem do embargante da incidência de um ato coativo, praticado em uma execução ou em qualquer outro processo de que não é parte, sem, contudo, pretender bloquear a continuidade dessa relação processual. O objeto dos embargos de terceiro é o desfazimento do ato constritivo que recaiu sobre o bem, com fundamento no domínio, na posse ou em outro direito do embargante. Por isso, a natureza desses embargos é a de ação constitutiva negativa. São pressupostos de acolhimento desses embargos: que o bem tenha sido atingido por um ato de constrição judicial; que o embargante seja terceiro em relação ao feito em que foi praticado o ato impugnado; que o embargante tenha algum direito sobre o bem que possa opor a sua sujeição ao ato de constrição; e que os embargos sejam propostos no prazo legal (CPC de 1973, art. 1.048; CPC de 2015, art. 675). O ato de constrição patrimonial é um ato de eficácia executiva, que determina a apreensão do bem. Não há necessidade de que a constrição já tenha sido cumprida, bastando que tenha sido determinada1. O ato impugnado por meio dos embargos de terceiro pode ter sido praticado em um processo de conhecimento, de execução ou cautelar. O artigo 1.046 do Código de 1973 enumera, exemplificativamente, alguns atos que têm esse caráter constritivo, a saber: a penhora, o depósito, o arresto, o sequestro, a alienação judicial, a arrecadação, o arrolamento, o inventário e a partilha.
O terceiro que tem legitimidade ativa para propor esses embargos é aquele que, não sendo parte no processo, é senhor ou possuidor do bem, ou ainda titular de algum outro direito a que a lei confira proteção através dessa ação especial. Do mesmo modo, podem propor essa ação incidente aqueles que, apesar de serem partes na demanda em que foi determinado o ato impugnado, têm submetidos à execução bens que, pelo título de aquisição ou pela qualidade da posse, a ela não deveriam ficar sujeitos, como, por exemplo, o cônjuge para a defesa dos bens reservados ou da sua meação2, e os credores hipotecários, pignoratícios ou anticréticos (CPC, arts. 1.046, §§ 2º e 3º, e 1.047; CPC de 2015, art. 674, §§ 1º e 2º). Há uma divergência antiga, mas não pacificada, sobre a admissibilidade de embargos de terceiro para proteger direito de crédito. Parece-me que em muitas das hipóteses figuradas pela lei pode ocorrer a incidência de indevida constrição judicial sobre dinheiro ou crédito de terceiro, situação que deve ser remediável por esses embargos3. Na execução, é considerado terceiro quem, cumulativamente, não estiver indicado no título executivo, não se sujeitar à responsabilidade executória e não integrar a relação processual executiva4. Têm sido admitidos a embargar como terceiros: a sociedade, quando penhoradas cotas do capital social por dívidas do sócio; o compromissário comprador (Súmula n. 84 do STJ) e o herdeiro, se a penhora exorbitar das forças da herança; o depositário; o possuidor direto; o cessionário de promessa de compra e venda imitido na posse; a mulher separada judicialmente, para defesa de bens que lhe foram partilhados, embora não registrado o formal; o donatário, embora não registrada a doação; o herdeiro com partilha homologada, mas não registrada; o herdeiro do possuidor, ainda que não tenha a posse material da coisa; o comprador por escritura não registrada; a mulher casada que não foi citada em ação possessória proposta contra o marido, sendo necessária essa citação (CPC de 1973, art. 10, § 2º; CPC de 2015, art. 73, § 2º). Igualmente, o terceiro que não for parte em ação divisória ou demarcatória pode sofrer ameaça ou esbulho na sua posse em razão dos atos executórios das decisões nessas ações, sendo-lhe permitido proteger o seu domínio ou posse através dos embargos de terceiro (CPC de 1973, art. 1.047, inc. I). O Código de
2015, evitando o casuísmo, generaliza a sua admissibilidade para a proteção do direito do proprietário, inclusive fiduciário, e do possuidor (art. 674, § 1º). Como ação incidente de terceiro contra ato judicial praticado em processo alheio, sempre me pareceu que, independentemente do benefício ou do prejuízo que o ato tenha ocasionado ao autor ou ao réu, ambos deveriam ser citados necessariamente nos embargos do terceiro, porque a decisão destes produzirá efeitos naquele processo em relação a ambos5. Todavia, tem prevalecido entre nós, salvo quando claramente o ato impugnado interesse a ambas as partes, como no caso da penhora, o entendimento de que o sujeito passivo dos embargos é apenas a parte que tenha sustentado a pretensão de sujeição do bem do embargante ao ato de constrição impugnado. O Código de 2015, no artigo 677, § 4º, estabelece que será legitimado passivo “o sujeito a quem o ato de constrição aproveita, assim como o será seu adversário no processo principal quando for sua a indicação do bem para a constrição judicial”. Se a ação se fundar em direito real sobre imóvel, deverão ser observadas as regras do artigo 10 do Código de 1973 e do artigo 73 do Código de 2015. Os embargos, como ação incidente dirigida à impugnação de um ato do processo principal, não comportam eles próprios qualquer ação incidente, como a reconvenção, a ação declaratória incidental, a denunciação da lide, o chamamento ao processo e a assistência, salvo na modalidade da assistência simples. Os embargos comportam liminar para proteção imediata da posse, com ou sem justificação prévia (CPC de 1973, arts. 1.050 e 1.051; CPC de 2015, arts. 677 e 678). Essa liminar não é cautelar, mas antecipatória. É facultativa a caução como contracautela a ser prestada pelo embargante, e não obrigatória conforme parece dispor o artigo 1.051 do Código de 1973 e deixa claro o artigo 678, parágrafo único, do Código de 2015. No regime do Código de 1973, tem-se entendido que o recebimento dos embargos de terceiro produzirá também a necessária suspensão do processo em relação aos bens a que se referem. Trata-se de rigidez injustificável, flexibilizada no dispositivo comentado do Código de 2015, que se presta a todas as manobras protelatórias. Noutro sentido, as reformas processuais promovidas pelas Leis n. 11.232/2005 e 11.382/2006, que incluíram, respectivamente, os artigos 475-M e
739-A no Código de 1973, tornaram a suspensão da execução excepcional. Assim, a suspensão prevista pelo recebimento dos embargos deve ter caráter eminentemente cautelar, demonstrados pelo embargante o fumus boni juris e o periculum in mora para inibir o prosseguimento dos atos executórios6. Se concorrerem no mesmo processo embargos do devedor e embargos de terceiro, estes serão julgados antes daqueles. A cognição nos embargos de terceiro é sumária quanto à profundidade, porque a sua rejeição não prejudicará definitivamente o direito do terceiro embargante, que poderá postulá-lo pelas vias ordinárias. Nesse sentido a lição da doutrina: “A lide nos embargos se refere apenas à exclusão ou inclusão da coisa na execução e não aos direitos que caibam ao terceiro sobre a coisa, mesmo quando deles se tenha discutido.”7 A defesa do embargado também é restrita, especialmente nos embargos do credor com garantia real, que somente poderá alegar as matérias previstas no artigo 1.054 do Código de 1973 e no artigo 680 do Código de 20158. Tendo em vista o seu caráter preponderante de ação de bloqueio, a coisa julgada somente se consolidará se forem julgados procedentes (CPC de 2015, art. 681). Caso contrário, poderá o embargante em ação autônoma reivindicar o direito que alega. Competente para o processamento e julgamento dos embargos, por prorrogação da competência, é o juízo perante o qual corre o processo em que foi praticado o ato de constrição impugnado, que receberá os autos por dependência (CPC de 1973, art. 1.049; CPC de 2015, art. 676). Se a apreensão tiver sido ordenada pelo juiz deprecado, será ele o competente para julgar os embargos9. No processo de conhecimento, os embargos de terceiro podem ser opostos incidentalmente a qualquer tempo, enquanto não transitada em julgado a sentença; no processo cautelar, enquanto vigorar a constrição, mesmo depois de findo o referido processo; na execução e no cumprimento da sentença, o prazo decadencial para a sua oposição se extingue cinco dias após a assinatura do auto de arrematação ou de adjudicação (CPC de 1973, art. 1.048; CPC de 2015, art. 675), mas sempre antes da assinatura da respectiva carta, ou na data da extinção do processo, se não ocorrer qualquer dessas espécies de alienação.
É de relevante utilidade didática o seguinte exemplo sobre a aplicação prática do instituto ora sob exame: suponha-se que o autor A tenha proposto em face do réu B uma ação de execução fundada num título executivo extrajudicial. No curso dessa execução, o juiz determina a penhora de um aparelho de televisão que estava na casa de B. Todavia, o referido aparelho não pertence ao executado, mas a um terceiro. Esse terceiro, cuja televisão foi indevidamente penhorada, tem o direito de livrar o seu bem dessa constrição porque a execução tem de recair sobre os bens do devedor. Para tanto, ele precisa opor embargos de terceiro, comprovando que é proprietário do bem e pedindo ao juiz que revogue a penhora. A finalidade dos embargos de terceiro, então, não é discutir a causa nem o direito das partes originárias, mas proteger a propriedade ou a posse que o embargante alega ter sido indevidamente atingida por um ato de constrição judicial. Tendo em vista o seu caráter de ação incidente de bloqueio, parece-me que não deve comportar outras ações incidentes, como a reconvenção, a denunciação da lide, o chamamento ao processo e a assistência litisconsorcial, admitida apenas a assistência simples.
21.8. EXECUÇÃO COLETIVA Essa modalidade de intervenção de terceiros encontra-se regulada nos artigos 748 a 786-A do Código de 1973, que dispõem sobre a insolvência do devedor não empresário, que são mantidos em vigor pelo artigo 1.052 do Código de 2015, bem como na Lei n. 11.101/2005, a chamada Lei de Falências, que regula a insolvência do devedor empresário. O pressuposto essencial da execução coletiva é a insolvência, assim entendido o estado de desequilíbrio patrimonial do devedor, empresário ou não, que, tendo dois ou mais credores, não tem bens suficientes para, com o produto da sua alienação, pagar integralmente a todos eles (CPC de 1973, art. 748). A insolvência do devedor não recomenda que cada credor possa promover a sua execução individualmente, porque, em razão da insuficiência dos bens daquele, poderiam sobrevir situações absolutamente injustas: alguns credores receberiam a totalidade dos seus créditos e a outros, ainda que diligentes, nada restaria, muitas vezes por conta de circunstâncias inteiramente alheias à sua vontade, como a morosidade da Justiça e os recursos ou incidentes suscitados pelo
devedor no processo de conhecimento ou de execução. Se o passivo do devedor é superior ao seu ativo, todos os seus bens devem ser arrecadados, todas as execuções individuais devem ser suspensas e todos os seus credores devem ser convocados e relacionados, para que o produto da venda desses bens seja destinado a eles na ordem de preferência legal. Receberão primeiro os credores que possuam os privilégios mais elevados. Entre credores da mesma classe, a distribuição deve ser feita por rateio, até que se esgote o dinheiro apurado com a alienação dos bens, assegurando-se, assim, tratamento equitativo. A execução coletiva tem, assim, uma dupla finalidade: uma de ordem privada, que é a de possibilitar o recebimento mais completo possível dos créditos pelos seus titulares, em igualdade de condições e respeitadas as preferências legais; e outra de caráter público, que é a de diluir os reflexos da insolvência do devedor, para que eles possam ser suportados pelo mercado, através da distribuição dos prejuízos, se possível, entre vários credores. Mais rigorosa com a pontualidade do empresário no cumprimento das suas obrigações, tendo em vista a confiança que deve vigorar nas relações empresariais, a legislação mercantil normalmente associa a insolvência do empresário à mora no pagamento de apenas um título executivo (Lei de Falências, art. 94, inc. I), geradora de presunção absoluta de desequilíbrio patrimonial. Já para o devedor não empresário são exigidos indícios mais concretos da sua insolvabilidade, como a não localização de bens para serem penhorados em execução individual (CPC de 1973, art. 750, inc. I) ou a comprovação concreta da insuficiência dos seus ativos para arcar com o passivo. Na segunda metade do século XX, consolidou-se na doutrina a prevalência da tese da natureza jurisdicional contenciosa da execução coletiva, apesar da possibilidade de instauração do processo ex officio que existe em alguns países (Itália, França), em contraposição à tese de que a sua natureza seria de jurisdição voluntária, que seduziu alguns expoentes10. Desde então, ocorreu na Europa uma reflexão crítica a respeito da efetividade do seu procedimento e da sua adequação às finalidades privada e pública que
haviam determinado o seu aparecimento. Na França, por exemplo, quando se preparava a reforma da legislação das sociedades comerciais em 1967, observou-se que, a cada três, uma concordata (règlement judiciaire) e duas falências terminavam sem nenhum rateio e que, naquelas em que houve rateio, ele era, em média, menor do que vinte por cento do montante dos créditos. A doutrina enfatiza que é preciso reconhecer com humildade que os processos de falência jamais atingiram as suas finalidades. A execução coletiva nunca andou bem e não se pode esperar que qualquer reforma legislativa traga grandes mudanças quanto à sua eficiência. A incapacidade da execução coletiva de satisfazer minimamente os credores gerou o desenvolvimento selvagem de um grande arsenal de garantias e preferências, como a alienação fiduciária, o leasing, além de outros institutos que propiciam ações diretas, destinadas a subtrair os seus beneficiários da lei do concurso, contribuindo por si mesmos para o enfraquecimento dos resultados do processo coletivo. Em verdade, a execução coletiva, seja falência ou insolvência civil, ressente-se de alguns defeitos graves, que o legislador deve tentar resolver sabendo de antemão que a sua solução não depende apenas da mudança no texto da lei, mas da sua aptidão de provocar nos interessados a iniciativa de equacionar a situação da empresa em dificuldade o mais cedo possível. De nada adianta procurar remediar a situação do devedor quando ele já está atolado em dívidas impagáveis, especialmente as devidas ao Fisco, que, pela preferência, acabam consumindo os poucos ativos que ainda subsistem no momento da quebra. No caso do empresário, em que a simples impontualidade no pagamento de um único título pode dar ensejo à decretação da sua falência, esse sistema induz a empresa em dificuldades a suspender o recolhimento de tributos e encargos sociais, para não deixar de pagar os empregados, os seus fornecedores e demais credores quirografários. O empresário paga aos primeiros para que não se paralisem as atividades da empresa, aos segundos para que não suspendam os seus fornecimentos, também a estes e aos últimos para que não requeiram a sua falência.
Contudo, credores quirografários cujos créditos deixaram de ser pagos não têm nenhum interesse em requerer a falência do devedor, pois sabem de antemão que dificilmente receberão os seus créditos e, quando a requerem, na verdade, são tentados a usar esse procedimento como instrumento de cobrança individual. Na insolvência civil, em que normalmente, além da impontualidade, o credor tem de demonstrar o efetivo desequilíbrio patrimonial – que, portanto, não se presume, a não ser em poucos casos (CPC de 1973, art. 750) –, esse expediente não pode ser usado como meio de cobrança, o que levou ao absoluto desuso do instituto, comprovando, portanto, que o credor individual não tem nenhum interesse prático na execução coletiva. Pode-se dizer, portanto, que, em geral, quando a falência é decretada (art. 73 da Lei n. 11.101/2005), não mais existe um patrimônio apto a satisfazer razoavelmente os interesses dos credores. A execução coletiva, para ser proveitosa, deveria ter se instalado muito antes. Outro defeito grave desse sistema é a falta de qualquer ação preventiva que envolva os credores, os trabalhadores e o Estado, na tentativa de equacionar antecipadamente a solução das dificuldades da empresa viável, mas que se encontra em situação momentânea de falta de liquidez. Essa empresa, em muitos casos, não se encontra patrimonialmente em estado de insolvência, mas lhe falta crédito ou fluxo de receita para honrar pontualmente o pagamento de todas as suas dívidas ou para reestruturar-se em face de mutações ocorridas no mercado. Se ela for acudida prontamente por meio de uma ação preventiva, poderá superar a dificuldade e sobreviver, ou, caso se constate que a sua crise é irremediável, poderá interromper as suas atividades pagando a boa parte dos seus credores. Se as suas dificuldades não forem enfrentadas com a colaboração dos credores, dos trabalhadores e do Estado, a sua falência certamente será adiada, mas, quando ocorrer, pouco ou nada sobrará para os credores quirografários. A lei falimentar prevê a recuperação judicial, que se subordina quase exclusivamente ao preenchimento de requisitos objetivos (art. 48 da Lei n. 11.101/2005) e a informações prestadas unilateralmente pelo devedor, cabendo
exclusivamente a ele próprio equacionar os problemas que o conduziram à situação de iliquidez. Quando a dificuldade é passageira e a empresa é viável, a recuperação judicial pode ser bem-sucedida, se bem administrada pelo próprio devedor, que ganha fôlego com a concessão de prazos e condições especiais para o pagamento das obrigações vencidas ou vincendas (Lei n. 11.101/2005, art. 50, inc. I), mas perde crédito e precisa operar com recursos escassos. A falência e a insolvência podem começar por iniciativa do próprio devedor (Lei n. 11.101/2005, art. 97, inc. I; CPC de 1973, art. 753, inc. II) ou do credor (Lei n. 11.101/2005, art. 97, inc. IV; CPC de 1973, art. 753, inc. I). Decretada a falência ou a insolvência, são chamados a intervir nesse processo todos os credores do falido ou do insolvente, de modo que a relação jurídica processual que, outrora, possuía apenas duas partes, passa a ter diversos litigantes: o devedor e todos os seus credores que se habilitarem. Além das ações, que são cumuladas, dos credores em face do devedor comum, aqueles também podem propor contra cada um dos outros credores ações declaratórias negativas da existência dos seus créditos. Há um litisconsórcio sui generis, múltiplo, de todos os credores contra o devedor comum e de cada um dos credores contra os demais. A insolvência civil será estudada no processo de execução. E a falência do empresário tradicionalmente não é estudada no Direito Processual Civil, mas no Direito Comercial.
21.9. INTERVENÇÃO LITISCONSORCIAL A intervenção litisconsorcial é oriunda do Código de Processo Civil de 1939 e atualmente não tem expressa previsão legal, nem no Código de 1973, nem no Código de 2015. Consiste no ingresso de um novo autor no processo, como litisconsorte, para formular um pedido próprio contra o réu, aproveitando-se de uma demanda já proposta. O interveniente afirma ser titular de direito idêntico ao do autor e intervém no processo alheio requerendo a sua admissão como litisconsorte ativo. Essa situação ocorre com frequência nas hipóteses em que os demais
intervenientes têm notícia de que o autor originário, no processo pendente, obteve um provimento liminar. Por exemplo, determinada Medida Provisória prejudicou determinada categoria de funcionários públicos. O advogado de um grupo desses funcionários propõe simultaneamente três ações idênticas com pedido de liminar, que vão ser distribuídas a juízos diferentes. Se algum dos juízos deferir o pedido liminar, os demais autores desistem das suas ações e tentam ingressar como litisconsortes no processo em que a referida liminar foi deferida. Esse tipo de manobra atualmente está bastante reduzida pelas alterações introduzidas no artigo 253 do Código de 1973 pelas Leis n. 10.358, de 2001, e 11.280, de 2006, que o Código de 2015 reproduziu no artigo 286. Até a citação, aparentemente, nada impede que isso seja feito, porque os artigos 264 do Código de 1973 e 329 do Código de 2015 estabelecem que até esse momento o autor pode unilateralmente modificar os elementos individualizadores da demanda, partes, pedido e causa de pedir, o que parece facultar a intervenção litisconsorcial de novos autores, desde que o autor originário concorde. Depois de feita a citação, contudo, esse ingresso de novos autores dependeria da concordância do réu. Ocorre que essa estratégia atenta contra a garantia do juiz natural. Ainda que em determinados casos, para o réu, possa ser benéfico se defender de vários autores num único processo, abrindo mão da garantia do juiz natural, ele não pode ser forçado a isso. Então, mesmo que a intervenção litisconsorcial ocorra antes da citação do réu, ela sempre dependerá da sua concordância. Se o réu não a aceitar, o juiz tem de mandar à livre distribuição ou indeferir a intervenção litisconsorcial. O primeiro autor também tem de concordar, já que não é obrigado a demandar ao lado de quem não escolheu, a não ser que seja um caso de litisconsórcio necessário.
21.10. OUTROS TIPOS DE INTERVENÇÃO DE TERCEIROS Examinaremos algumas outras espécies de intervenção de terceiros, duas das quais reguladas na lei processual, a desconsideração da personalidade jurídica e a intervenção do amicus curiae, e algumas outras localizadas na legislação extravagante, que têm sido mencionadas pela doutrina. 21.10.1. A desconsideração da personalidade jurídica
A primeira delas é a desconsideração da personalidade jurídica, que surgiu em diversos diplomas, como a legislação do trabalho, o Código Tributário Nacional, o Código do Consumidor e o próprio Código Civil, superando a norma do direito societário segundo a qual nas sociedades de pessoas, integralizado pelos sócios o capital social, não respondem os seus bens pelas dívidas da sociedade, salvo se apurada gestão fraudulenta dos seus administradores em ação própria. O Código Tributário Nacional (Lei n. 5.172/1966), no artigo 135, inciso III, declara pessoalmente responsáveis pelas obrigações tributárias da sociedade os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas, quando tiverem atuado com excesso de poderes ou infração de lei. O Código do Consumidor (Lei n. 8.078/1990), no artigo 28, permite em diversas hipóteses a superação judicial da personalidade jurídica da sociedade para assegurar o ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Sujeita, ainda, a desconsideração para alcançar bens de sociedades coligadas, consorciadas ou pertencentes a grupos de sociedades. E o artigo 50 do Código Civil de 2002 facultou que o juiz, a requerimento da parte ou do Ministério Público, estenda aos bens particulares dos sócios e administradores as obrigações da sociedade, em caso de abuso da personalidade jurídica desta, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. São os exemplos mais marcantes. A falta de uma disciplina processual do instituto tem levado o Judiciário a acolher essa desconsideração sem a observância das garantias fundamentais do contraditório e da ampla defesa, o que levou o Código de 2015 a instituir um incidente específico, inserido no capítulo da intervenção de terceiros, nos artigos 133 a 137. Do ponto de vista processual, a desconsideração visa a incluir como sujeito passivo da ação de conhecimento, do cumprimento de sentença ou da execução o sócio ou a sociedade que tenha incorrido numa das situações previstas em lei, para que, a partir de então, passe a responder como corréu da demanda e, consequentemente, pelo cumprimento de obrigações que, de acordo com a lei ou o contrato, seriam exigíveis do réu originário. A desconsideração, portanto, tem a finalidade de introduzir uma modificação subjetiva passiva da demanda, não sujeita aos limites temporais a que normalmente estaria ela sujeita (CPC de 1973, art. 294; CPC de 2015, art. 329) e, portanto, pelo seu caráter excepcional, depende da cabal comprovação dos fatos que, de acordo com o direito material, sujeitam os bens dos sócios a
responder por dívidas da sociedade, os da sociedade a responder por dívidas dos sócios, que é a chamada desconsideração inversa (art. 133, § 2º) ou o de uma sociedade a responder por dívidas de outra. A desconsideração pode ser requerida desde a petição inicial (art. 134, § 2º) ou será objeto de requerimento incidente em qualquer fase do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença ou na execução de título judicial. No requerimento o proponente alegará os fatos que legalmente admitem a desconsideração e proporá as provas para demonstrá-los, juntando desde logo a prova documental que tiver em seu poder. Ao deferir o processamento do incidente, o juiz mandará anotar no registro de distribuição, determinará a suspensão do processo e ordenará a citação do requerido para responder no prazo de quinze dias (arts. 134 e 135). Em seguida, produzidas as provas, caso necessário, o juiz decidirá fundamentadamente o pedido, da sua decisão cabendo agravo de instrumento ou agravo interno (arts. 1.015, inc. IV, e 136, parágrafo único). Em caso de procedência, determinará que o novo réu passe a figurar como corréu, sendo intimado de todos os atos do processo e deles participando. Visando o incidente ou o pedido originário de desconsideração a estender a responsabilidade patrimonial pelas dívidas que estão sendo cobradas do devedor originário ao novo responsável, e sendo o pedido acolhido, a partir da citação deste (arts. 137 e 792, § 3º), a alienação ou a oneração dos seus bens poderá caracterizar fraude de execução. A criação desse procedimento dá mais segurança ao requerido. Entretanto, não evitará que o requerente obtenha, inaudita altera parte, uma tutela de urgência que bloqueie os bens do requerido, antes mesmo de decidido o pedido de desconsideração. Também não resolve o procedimento outra questão crucial, que merece um estudo mais complexo, que é o de saber em que medida estarão preclusas para o requerido as questões já decididas antes da sua citação ou da decisão do incidente, ou, ainda, decididas em procedimentos antecedentes cujo desfecho pode estar acobertado pela coisa julgada. Sem dúvida, a garantia do contraditório deve ser respeitada com a maior amplitude possível. A sua observância não se satisfaz com a simples participação do requerido no procedimento que antecede a decisão de desconsideração da personalidade jurídica e nos atos subsequentes do processo. Se ocorreu um abuso da personalidade jurídica tão intenso que a desconsideração reconhece que o réu originário e o requerido são a mesma pessoa, com dois nomes ou duas fachadas
diferentes, torna-se perfeitamente razoável que ao requerido sejam impostas a coisa julgada e a preclusão de todas as decisões a que o réu originário tenha de submeter-se. Mas se são pessoas diversas, embora haja motivos legalmente previstos para estender a uma delas a responsabilidade por dívidas da outra, àquela não pode ser subtraído o exercício do direito de defesa a respeito de todas as questões decididas no mesmo ou em outro processo, não se podendo falar de preclusão, muito menos de coisa julgada. Essas questões extravasam do âmbito do procedimento ora comentado, se nele não forem suscitadas. Mas é de se esperar que, aberta com a citação para responder ao pedido de desconsideração a oportunidade para o requerido se defender, deva ele, nessa ocasião, aduzir a sua contrariedade a quaisquer pressupostos fáticos ou jurídicos da sua responsabilidade, de que resultem a própria certeza, liquidez ou exigibilidade do crédito, mesmo que já tenha sido objeto de decisão anterior e que também sobre essas questões lhe seja permitido formular alegações, propor e produzir provas, para que sejam em relação a ele apreciadas na decisão do pedido de desconsideração11. 21.10.2. Amicus curiae O amicus curiae é um instituto oriundo do direito norte-americano e recebe da doutrina diferentes interpretações quanto à sua extensão. A meu ver, esse instituto deveria ser interpretado de forma restritiva, porque acredito que o amicus curiae não deveria ser um sujeito interessado no desfecho da causa; teria de ser um amigo da corte e, portanto, um sujeito auxiliar imparcial, isento. No Brasil, como não temos a tradição da figura do amicus curiae, tendo sido importado de outro sistema, têm ocorrido casos de terceiros, diretamente interessados no desfecho de algumas causas, que nelas intervêm a esse título. A primeira modalidade de amicus curiae introduzida no nosso ordenamento está prevista na Lei n. 9.868/99, que é a lei que regula o processo da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) e da ação declaratória de constitucionalidade (ADC). O artigo 7º dessa Lei proíbe a intervenção de terceiros na ADI e na ADC, mas estabelece no seu § 2º que o relator, considerando a importância da matéria e a representatividade do postulante, poderá, por despacho irrecorrível, admitir a manifestação de outros órgãos ou entidades.
Para a doutrina, com base nessa possibilidade, introduziu-se no nosso sistema o amicus curiae, que deve ser um sujeito desinteressado, que não intervém para defender um determinado interesse, mas para prestar informações ou fornecer subsídios que possam ser úteis ao julgamento da causa. A meu ver, entretanto, esse dispositivo possui vários defeitos, entre eles o de deixar a admissão do amicus curiae a critério exclusivo do relator. A Lei que regula a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), Lei n. 9.882/99, no seu artigo 6º, § 1°, também prevê a figura do amicus curiae. Ainda nesse sentido, a Lei n. 11.418/2006 regulamentou o artigo 102, § 3º, da Constituição, introduzindo o artigo 543-A ao Código de 1973, que disciplina a repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário. De acordo com o § 6º do aludido dispositivo do estatuto processual, “o relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal”. De igual teor é o artigo 1.048, § 4º, do Código de 2015. A matéria foi regulamentada pelo Supremo Tribunal Federal através da Emenda Regimental 21/2007, que declara irrecorrível a decisão do relator. Também aqui temos a presença dos amici curiae, como terceiros que podem ser desinteressados ou não. Quanto às partes, cujos recursos tiverem ficado sobrestados, enquanto se processa o incidente de repercussão geral (CPC de 1973, art. 543-B, § 1º; CPC de 2015, art. 1.035, § 5º), parece-me que o seu direito de intervir não fica sujeito à decisão discricionária do relator, pois decorre das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Figura análoga é criada pelo Código de 2015 no procedimento do incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 995). A Lei n. 11.672/2008, que introduziu o artigo 543-C no Código de 1973, estabeleceu regras para o processamento de múltiplos recursos especiais com fundamento em idêntica questão de direito no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, podendo o relator, de acordo com o § 4º daquele artigo, “admitir a manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia” (art. 543-C, § 1º). O Código de 2015 regula uniformemente o julgamento de recursos especiais e de recursos extraordinários repetitivos, permitindo, no § 2º do artigo 1.051, que o relator, considerando a relevância da matéria e consoante dispuser o regimento interno do STF ou do STJ, solicite ou admita a
manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia. Valem aqui as observações feitas no parágrafo anterior e que se aplicam também a idêntica intervenção prevista na Lei sobre a súmula vinculante (Lei n. 11.417/2006, art. 3º, § 2º). Outra espécie de amicus curiae é verificada na intervenção de certos órgãos públicos, aos quais é atribuída a responsabilidade por determinadas políticas públicas e que, por força de lei, são chamados a intervir nos processos em que se disputam direitos submetidos a essas políticas. É o que ocorre, por exemplo, com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), que é um órgão do Ministério da Justiça encarregado da defesa da livre-concorrência. A Lei n. 12.529/2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, estabelece em seu art. 118 que em todas as ações nela fundadas o CADE deverá ser intimado para, querendo, intervir. Alguns defendem que essa intervenção do CADE se dá na qualidade de amicus curiae, como responsável pelo poder de polícia na área da livre concorrência. Outro caso semelhante ocorre em relação à Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O artigo 31 da Lei n. 6.385/76, com a redação da Lei n. 6.616/78, também estabelece essa obrigatoriedade da intimação da CVM em todas as causas sobre o mercado de ações. O terceiro caso é o do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). A Lei n. 9.279/96 estabelece a obrigatoriedade da intervenção do INPI em todas as ações relativas a patentes (Lei n. 9.279/96, arts. 57, 118 e 175). A respeito do amicus curiae instituído no artigo 138 do Código de 2015 cumpre ressaltar, de início, que esse Código não revoga os dispositivos das leis extravagantes que criaram essa nova modalidade de intervenção, exceto aqueles que introduziram essa figura no Código de 1973, revogado pelo Código de 2015 (art. 1.046) ou que foram substituídos por dispositivos específicos deste último Código. Assim, continuarão em vigor, a partir da vigência do Código de 2015, as regras sobre a intervenção do amicus curiae previstas nas citadas Leis n. 9.868/1999, 9.882/1999, 11.417/2006, 12.529/2011, 6.385/1976 e 9.279/1996. E o próprio Código de 2015 prevê casos específicos de amici curiae – por exemplo, nos artigos 1.035, § 4º, 1.038, inciso I, e 983 –, aos quais se aplicarão
subsidiariamente as regras do artigo 138. A simples leitura desse artigo revela que a sua redação foi fortemente influenciada por um modelo de amicus curiae traçado nas Leis n. 9.868/1999, 9.882/1999 e 11.417/2006. A primeira característica do instituto é que a intervenção desse colaborador se justifique pela “relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia”. A relevância da matéria e a repercussão social da controvérsia podem ser sintetizadas no impacto que a decisão judicial produzirá na sociedade, extravasando os seus reflexos dos simples interesses particulares dos litigantes, atingindo outras pessoas, grupos sociais, o interesse público ou o interesse geral da coletividade. Por exemplo, quando uma concessionária de um serviço público pleiteia em juízo o reajuste da sua tarifa em face do poder concedente, a decisão da causa vai atingir o patrimônio, o custo de vida ou o custo operacional de todos os seus usuários. O impacto da decisão ultrapassa a análise dos aspectos fáticos e jurídicos da controvérsia entre as partes. A especificidade do tema significa que, na sofisticação tecnológica do mundo contemporâneo, há conhecimentos científicos e técnicos que se tornaram de domínio seguro de poucas pessoas ou instituições altamente especializadas. Mas, mesmo fora desse âmbito, há costumes comerciais de determinados tipos de negócios e padrões de composição de custos de determinados produtos e serviços que constituem um conhecimento específico dos operadores de um determinado mercado e de profissionais que os assessoram. A prova pericial é o principal veículo desses conhecimentos, mas não necessariamente o único. A busca da verdade como um dos objetivos da instrução probatória e um dos pressupostos de uma decisão justa deve propiciar ao juiz o acesso ao conhecimento mais qualificado e idôneo à solução da controvérsia. Outra característica do amicus curiae, implícita no modelo traçado pelo artigo 138, é a de que esse terceiro seja pessoa natural, jurídica ou órgão sem personalidade jurídica, portadora dos conhecimentos e da reputação necessários para apresentar informações ou opiniões relevantes para o julgamento da causa. A norma faz referência à representatividade adequada, como indicadora dessa qualificação e dessa idoneidade, o que é um defeito. Sem dúvida, essa representatividade pode ser um indício de qualificação e idoneidade, mas nem
sempre. Por outro lado, há órgãos técnicos altamente especializados em determinadas matérias que não têm qualquer representatividade. Por outro lado, a invocação pelo legislador da representatividade adequada como indício de qualificação induz à distorção, que apontei no início deste tópico, de entidades de classe representativas que intervêm para fortalecer a defesa do interesse de uma das partes, em geral um dos seus associados, sem nenhuma isenção. Infelizmente, a isso temos assistido em julgamentos de grande repercussão do Supremo Tribunal Federal, em que entidades de defesa disso ou daquilo intervêm como pretensos amici curiae para defender isso ou aquilo e não para prestar uma colaboração desinteressada e impessoal à boa administração da justiça. Daí resulta outra característica do amicus curiae, que é a de ser um sujeito imparcial do processo, um sujeito dotado de isenção em relação aos interesses em conflito e que vem prestar informações ou opiniões para que a decisão da causa guarde a mais perfeita correspondência com os conhecimentos científicos, técnicos ou especializados de que é portador, ainda que um dos litigantes seja um dos seus associados. Esse desprendimento de uma entidade de classe dos interesses específicos dos seus associados em benefício da sua preponderante responsabilidade social e de colaboração isenta e confiável com o Poder Público, até mesmo como exigência da preservação da imagem positiva de que a classe por ela representada pretende desfrutar no meio social, não é bem compreendido em países latinos, como o nosso, embora com forte suporte constitucional no princípio da solidariedade (Constituição, art. 3º, inc. I), mas é muito exaltado em países anglo-saxões. Como sujeito imparcial do processo, pode sofrer a arguição de impedimento e de suspeição, nos termos do artigo 148, inciso III. Mas há uma outra característica desse amicus curiae, que é a sua admissão por decisão irrecorrível do juiz ou relator, que subtrai essa intervenção de qualquer controle, seja das partes, seja de qualquer órgão de composição mais qualificada do Poder Judiciário. Reafirmo aqui a minha convicção de que a irrecorribilidade de qualquer decisão unipessoal de um membro de tribunal colegiado é absolutamente inconstitucional, porque esse membro, que excepcionalmente exerce jurisdição por delegação do colegiado, o faz em nome do colegiado, que é o juiz natural da causa, ao qual as partes têm o direito de acesso constitucionalmente assegurado. Como terceiro desinteressado, o amicus curiae não pode recorrer. O direito de
recorrer é um corolário do princípio da demanda. O único sujeito desinteressado que sempre pode recorrer é o Ministério Público (CPC de 1973, art. 499; CPC de 2015, art. 996). Entretanto, no incidente de resolução de demandas repetitivas, a lei presume o interesse do amicus curiae na prevalência de uma determinada tese jurídica e lhe confere o direito de interpor recurso. Também, pela utilidade na clareza e precisão da decisão, lhe confere a lei a possibilidade de interpor embargos de declaração (art. 138, 1º). Na fixação dos limites da participação, não poderes, do amicus curiae pelo juiz ou relator (§ 2º), não se inclui a concessão do direito de recorrer. A ser reconhecida a inconstitucionalidade da irrecorribilidade da decisão de admissão, o que não vislumbro num horizonte próximo, pois o STF a tem aplicado, parece-me que o amicus curiae teria interesse em recorrer da decisão de inadmissão. Última característica do amicus curiae é que a sua intervenção pode resultar de iniciativa das partes, do Ministério Público como fiscal da lei, ou do próprio juiz. A lei não prevê a intervenção por iniciativa do próprio sujeito que pretenda atuar como amicus curiae, mas, evidentemente, tudo aquilo que o juiz pode fazer de ofício, pode fazer a requerimento de qualquer sujeito. Entretanto, como a sua intervenção tem caráter nitidamente instrutório, de colaborar na elucidação dos fatos relevantes ou no alcance da norma a ser aplicada ou interpretada, nas causas que versem sobre direitos disponíveis, a iniciativa judicial é subsidiária, por respeito ao princípio dispositivo, conforme explicaremos no capítulo seguinte. 21.10.3. Outras disposições referentes à intervenção de terceiros Um novo tipo de intervenção de terceiros pode ser encontrado no Código Civil de 2002, no artigo 1.698, em relação às ações de alimentos. Estabelece esse dispositivo: “Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide.” Por exemplo: se o filho deduziu um pedido de alimentos em face do pai e este
não pode prestá-los, aquele poderá chamar para integrar a lide os avós, devendo todos concorrer na proporção dos seus respectivos recursos. Contudo, frise-se que esse não é o chamamento ao processo de que tratam os artigos 77 a 80 do Código de 1973 e 130 a 132 do Código de 2015, porque este é exclusivamente promovido pelo réu. A codificação civil prevê uma nova modalidade de intervenção, sui generis, pois o parente chamado a integrar a lide o fará como litisconsorte, e não como responsável numa possível ação regressiva. Esse chamamento deve ocorrer no bojo do processo de conhecimento e vem sendo denominado pela doutrina chamamento ao processo do devedor de alimentos. Outra hipótese encontrada na legislação esparsa é a intervenção individual nas ações coletivas, prevista no artigo 94 do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90). Nesse caso, trata-se de intervenção individual em ações de responsabilidade fundadas em direito individual homogêneo, propostas por um legitimado coletivo, que pode ser, por exemplo, uma associação, o Ministério Público ou a Defensoria Pública, em benefício de todos os consumidores que foram lesados por um determinado produto ou serviço. A lei assegura a estes a intervenção como litisconsortes. O Código de Defesa do Consumidor traz ainda outra importante previsão no seu artigo 88, que veda a denunciação da lide, mas permite a ação de regresso depois de terminada a ação de indenização. A ratio desse dispositivo é a de não prejudicar o andamento da ação proposta pelo consumidor, mas, como já destaquei alhures, essa limitação pode violar o direito de acesso à justiça do réu, que seria facilitado pela via da ação regressiva. O Código de Defesa do Consumidor permite que, na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, o réu que houver contratado seguro de responsabilidade chame ao processo o segurador, sendo vedada a integração do contraditório pelo Instituto de Resseguros do Brasil (art. 101, inc. II). Cabe dizer que, embora a lei aluda a um suposto chamamento ao processo, ela o faz impropriamente, de uma maneira atécnica. A Lei n. 4.717/65, que disciplina a ação popular, prevê no seu artigo 6º, § 5º, que “é facultado a qualquer cidadão habilitar-se como litisconsorte ou assistente do autor da ação popular”. Nesse caso, a hipótese será de litisconsórcio ulterior ou de assistência. O § 3º desse mesmo artigo estabelece que “a pessoa jurídica de direito público ou de direito privado, cujo ato seja objeto de impugnação, poderá
abster-se de contestar o pedido, ou poderá atuar ao lado do autor, desde que isso se afigure útil ao interesse público, a juízo do respectivo representante legal ou dirigente”. A lei da ação civil pública permite que as pessoas jurídicas de direito público e as associações que representem certos interesses coletivos, difusos ou individuais homogêneos se habilitem nessas ações como litisconsortes, tanto em favor do autor como em favor do réu (Lei n. 7.347/85, art. 5º, § 2º). Não me parece que esses entes intervenientes serão sempre litisconsortes, pois, quando intervierem em favor do réu, a meu ver, devem ser considerados simples assistentes, uma vez que, em regra, o autor não pode modificar o pedido para estendê-lo a outros sujeitos não previstos na inicial. A lei de improbidade administrativa permite a intervenção das pessoas jurídicas de direito público ou de direito privado cujo ato seja objeto de impugnação ao lado do autor, reportando-se ao dispositivo previsto para a ação popular e comentado acima (Lei n. 8.429/92, art. 17, § 3º). Essas pessoas jurídicas de direito público ou de direito privado são sempre citadas nas ações de improbidade, mas elas podem assumir tanto a defesa quanto a impugnação do ato. Para concluir, embora a enumeração realizada nos parágrafos anteriores deste item não seja exaustiva, cumpre tratar de uma modalidade que está prevista na Lei n. 9.469/97. O caput do artigo 5º dessa Lei estabelece que a União poderá intervir em todas as causas em que figurarem como partes autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas públicas federais. O parágrafo único desse artigo dispõe que “as pessoas jurídicas de direito público poderão, nas causas em que a decisão possa ter reflexos, ainda que indiretos, de natureza econômica, intervir, independentemente da demonstração de interesse jurídico, para esclarecer questões de fato e de direito, podendo juntar documentos e memoriais reputados úteis ao exame da matéria e, se for o caso, recorrer, hipótese em que, para fins de deslocamento de competência, serão consideradas partes”. É o que a doutrina chama de intervenção anômala. Esse dispositivo já foi comentado no exame das exceções à unidade de competência absoluta como requisito da cumulação de ações. ________
1 AMBRA, Luiz. Dos embargos de terceiro. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1971. p. 25. 2
O artigo 655-B do CPC de 1973, introduzido pela Lei n. 11.382/2006, absorvido pelo artigo 859 do Código de 2015, gera dúvida sobre a sobrevivência dos embargos de terceiro para a defesa da meação do cônjuge, na hipótese de penhora de bem indivisível, pois estabelece que, nesse caso, a meação recairá sobre o produto da alienação do bem. Voltaremos ao assunto no 4º volume desta obra. 3 Ver sobre essa questão AMBRA, Luiz. Op. cit. p. 31-35. 4 ASSIS, Araken de. Manual
da execução. 15. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013. p. 454-456. 5
Crisanto Mandrioli e Antonio Carratta, no direito italiano, afirmam categoricamente que se trata de litisconsórcio necessário (Diritto processuale civile. 23. ed. Torino: G. Giappichelli Editore, 2014. v. II, p. 666). 6
Assim é na Itália (art. 624), conforme Francesco Bucolo (BUCOLO, Francesco. Il processo esecutivo ordinario.Padova: Cedam, 1994) e Crisanto Mandrioli e Antonio Carratta (Diritto processuale civile. 23. ed. Torino: G. Giappichelli Editore, 2014. v. II, p. 666-667); e na Alemanha (§§ 769-771), conforme Rosenberg (Tratado de derecho procesal civil. Buenos Aires: EJEA, 1955. t. III, p. 126). 7 LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execução. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
1980. p. 111. Ver também MENDES, João de Castro. Acção executiva. Lisboa: AAFDL, 1980. p. 142. 8 Para Araken de Assis (op. cit. p. 1.399), também existe outra limitação em
relação ao embargado, não podendo este alegar em defesa fraude contra credores, cujo reconhecimento depende de ação própria. 9 LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo… p. 111. 10 Nesse sentido, a opinião de Carnelutti, citada por José Frederico Marques
(Ensaio sobre a jurisdição voluntária. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1959. p. 257).
11 V. BIANQUI, Pedro Henrique Torres. Desconsideração da personalidade
jurídica no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 175-177.
Para encerrar esta introdução ao Direito Processual Civil após a exposição das noções gerais sobre os principais institutos que compõem a sua teoria geral, podemos voltar ao tema dos princípios, revisando alguns que já expuséramos como princípios informativos da jurisdição (capítulo V) e acrescentando alguns outros que balizarão todo o desenvolvimento da disciplina dos processos de conhecimento, de execução e cautelar. Esse rol se compõe dos seguintes princípios: o princípio da iniciativa das partes, o princípio do contraditório, o princípio dispositivo, o princípio da livre convicção, o princípio da publicidade, o princípio do impulso processual oficial, o princípio da lealdade processual e o princípio da oralidade. Essa enumeração não é exaustiva. A cada passo do nosso estudo depararemos com outros princípios, que a esses iremos acrescentando, embora os ora examinados sejam comumente reputados os mais relevantes.
22.1. PRINCÍPIO DA INICIATIVA DAS PARTES O primeiro princípio a ser examinado é o da iniciativa das partes, que já examinamos como princípio informativo da jurisdição sob a denominação de princípio da inércia da jurisdição (ver item 5.4). A jurisdição, em regra, somente se exerce sobre as causas e as questões propostas pelos interessados; ela não se exerce ex officio. Vale dizer, salvo raríssimas exceções, a jurisdição somente se exerce por provocação de algum interessado sobre causas e questões por ele suscitadas. O referido princípio também pode ser chamado de princípio da demanda e se exterioriza em três brocardos latinos: nemo iudex sine actore, ne procedat iudex ex officio e ne eat iudex ultra petita partium (respectivamente: não há juiz sem autor, o juiz não procede de ofício e não vá o juiz além dos pedidos das partes). Ainda, de acordo com esse princípio, é o autor quem delimita, objetivamente e subjetivamente, o objeto sobre o qual se exercerá a jurisdição, comumente chamado de objeto litigioso, definindo as partes, o pedido e a causa de pedir. Da mesma maneira que o autor tem liberdade para definir os limites da demanda, o réu é livre para escolher as matérias de defesa que pretende submeter à apreciação do juiz.
O princípio da inércia ou da iniciativa das partes é um princípio fundamental do processo, pois constitui uma garantia do respeito do Estado à liberdade individual. Assim, o Estado, por meio do Poder Judiciário, não deve apreciar o direito material das partes além dos limites por elas propostos. O juiz deve respeitar a liberdade das partes, não devendo intervir nas relações jurídicas de quaisquer sujeitos de direito, públicos ou privados, exceto quando provocado e nos limites das questões de direito que as partes lhe submeterem. Contudo, esse princípio comporta algumas exceções. A inércia do juiz na apreciação das questões de direito propostas pelas partes não se aplica às questões puramente processuais, consideradas de ordem pública, como vimos quando tratamos das nulidades absolutas, como a falta de certos pressupostos processuais e de condições da ação. A iniciativa das partes é uma garantia da liberdade do cidadão de que nenhuma intromissão sofrerá na sua vida, nos seus negócios e no seu patrimônio, a não ser por provocação dele próprio ou de outro particular que com ele alegue manter alguma relação jurídica que a autorize. É também uma garantia da imparcialidade do juiz. Não há jurisdição sem ação (CPC de 1973, arts. 2º e 262; CPC de 2015, art. 2º). Um anacrônico paternalismo, que ainda remanesce em nossa legislação, mantém no Direito brasileiro, por exceção, resquícios de processos judiciais instaurados por iniciativa do juiz. Essas hipóteses devem ser examinadas com cautela. Como imperativo do respeito que merece do Estado a liberdade humana, a jurisdição somente deve interferir na vida privada e nas relações jurídicas das pessoas quando provocada por algum interessado, pois é finalidade da jurisdição a tutela dos interesses dos seus próprios destinatários, salvo nos casos excepcionais em que determinados interesses privados, como os interesses de incapazes, estão diretamente confiados pela lei à tutela ativa do juiz e em que a ausência de iniciativa de qualquer outro legitimado põe em risco a sobrevivência desses interesses, como, por exemplo, na nomeação ou remoção de tutores ou curadores ou em certos procedimentos do Estatuto da Criança e do Adolescente. A iniciativa processual do réu, quanto às questões de direito material que extinguem, modificam ou impedem os efeitos substanciais do direito material do autor, é também uma garantia da sua liberdade, que o juiz deve respeitar, salvo
se estiver diante de matérias de ordem pública, que são aquelas que o juiz deve examinar ex officio em qualquer tempo ou grau de jurisdição (CPC de 1973, art. 303, inc. II; CPC de 2015, art. 342, inc. II). Recentemente, por exemplo, com críticas veementes da doutrina, a Lei n. 11.280/2006 determinou que o juiz pronunciasse de ofício a prescrição (CPC de 1973, art. 219, § 5º; CPC de 2015, art. 487, parágrafo único). Em que pesem essas exceções ao princípio da iniciativa das partes, ele é um princípio importante que precisa ser preservado, na medida em que é uma consequência do respeito pelo Estado à liberdade das partes de fazerem uso ou não dos seus direitos. Se, de um lado, o autor pode ser lesionado pelo réu por toda a sua vida e não propor contra ele nenhuma ação, de outro, o réu também pode ter alguma matéria de defesa relevante que poderia alegar, mas não fazê-lo. O Estado deve respeitar a autonomia da vontade das partes. Se algum direito individual for de tal relevância que deva merecer a tutela jurisdicional mesmo à revelia da vontade do seu titular, a lei deve conferir a algum outro sujeito ou a um órgão do Estado a iniciativa judicial, preservando, assim, a equidistância do julgador em relação aos interesses eventualmente conflitantes que lhe são submetidos. É o que ocorre, por exemplo, com o incapaz, que não dispõe total ou parcialmente da iniciativa da tutela ou não dos seus próprios direitos, pois, com frequência, deles não tem consciência. Para proteger a sua esfera de interesses, a lei exige que a sua representação judicial se exerça através de um representante, tutor ou curador, respeitando, assim, o princípio da iniciativa.
22.2. PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO O princípio do contraditório pode ser definido como aquele segundo o qual ninguém pode ser atingido por uma decisão judicial na sua esfera de interesses, sem ter tido a ampla possibilidade de influir eficazmente na sua formação em igualdade de condições com a parte contrária. O contraditório é a expressão processual do princípio político da participação democrática, que hoje rege as relações entre o Estado e os cidadãos na Democracia contemporânea. Essa compreensão estendeu o contraditório também aos processos administrativos, o que está, inclusive, expresso na Constituição (art. 5º, inc. LV). O processo se desenvolve através de uma marcha dialética, na qual, na medida em que as questões surjam, o juiz deverá colocá-las em debate para obter o pronunciamento das partes sobre elas e, depois, decidi-las. Esse é um princípio tradicional do
processo judicial, que remonta à Antiguidade e é uma consequência da própria imparcialidade do juiz. Como corolário do princípio político da participação democrática, o contraditório pressupõe a audiência bilateral das partes. Esse pressuposto consiste na adequada e tempestiva notificação do ajuizamento da causa e de todos os atos processuais nela praticados, através de comunicações preferencialmente reais, bem como na ampla possibilidade de impugnar e contrariar os atos dos demais sujeitos, de modo que nenhuma questão seja decidida sem essa prévia audiência dos interessados. O contraditório também pressupõe o direito das partes de apresentar alegações, propor e produzir provas, participar da produção das provas requeridas pelo adversário ou determinadas de ofício pelo juiz e exigir a adoção de todas as providências que possam ter utilidade na defesa dos seus interesses, de acordo com as circunstâncias da causa e as imposições do direito material, em igualdade de condições com os demais sujeitos principais do processo. Em função da congruidade dos prazos como integrante do conteúdo do contraditório, os prazos para a prática dos atos processuais, apesar da brevidade, devem ser suficientes, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, para a prática de cada ato da parte com efetivo proveito para a sua defesa. O contraditório eficaz é sempre prévio, anterior a qualquer decisão, devendo a sua postergação ser excepcional e fundamentada na convicção firme da existência do direito do requerente e na cuidadosa ponderação dos interesses em jogo e dos riscos da antecipação ou da postergação da decisão. O contraditório participativo pressupõe que todos os contrainteressados tenham o direito de intervir no processo e exercer amplamente as prerrogativas inerentes ao direito de defesa e que preservem o direito de discutir os efeitos da sentença que tenha sido produzida sem a sua plena participação1. Hoje, o contraditório ganhou uma projeção humanitária muito grande, sendo, provavelmente, o princípio mais importante do processo. Ele é um megaprincípio que, na verdade, abrange vários outros e, nos dias atuais, não se satisfaz apenas com uma audiência formal das partes, que é a comunicação às partes dos atos do processo, mas deve ser efetivamente um instrumento de
participação eficaz das partes no processo de formação intelectual das decisões e de cooperação entre todos os sujeitos do processo (Código de 2015, art. 6º). Assim, impõe-se que as partes sejam postas em condições de, efetivamente, influenciar as decisões. As regras tradicionais da igualdade das partes e da sua audiência bilateral são básicas, mas, como já se afirmou, não satisfazem o contraditório participativo como um instrumento do princípio político da participação democrática. É necessário que o contraditório instaure o diálogo humano, que permita, por exemplo, ao juiz flexibilizar prazos e oportunidades de defesa, para assegurar a mais ampla influência das partes na formação da sua decisão. Hoje, exige-se um contraditório participativo, em que o juiz dialogue com as partes, e não apenas as escute. Ao expor as suas opiniões ou os possíveis reflexos das alegações e das provas que estão sendo objeto da sua cognição, o juiz confere às partes a oportunidade de acompanharem o seu raciocínio e de influenciarem na formação do seu juízo, do seu convencimento. Ora, como as partes podem influir no convencimento do juiz se não sabem o que ele pensa? O contraditório participativo precisa ser efetivado até em relação às questões que, por expressa disposição legal, o juiz pode ou deve apreciar de ofício, como as relativas à concorrência das condições da ação ou à falta de pressupostos processuais que possam acarretar nulidades absolutas. Atualmente, os direitos francês, italiano e português possuem disposições expressas estabelecendo que os juízes não podem decidir de ofício nenhuma questão sem antes ouvir as partes, regras que são adotadas em diversos dispositivos do Código de 2015, especialmente em seus artigos 9º e 10. Essa nova perspectiva do princípio do contraditório exige que a prova seja um dos componentes do direito de defesa, ou seja, que às partes seja garantido o direito de defender-se provando, que não se exaure no direito de propor a produção das provas, compreendendo também o direito de efetivamente produzir todas as provas que potencialmente tenham alguma relevância para o êxito da sua postulação ou defesa. A parte não pode ter prejudicado o seu acesso à tutela jurisdicional em razão da dificuldade de produção da prova dos fatos que a ela interessam, motivada pela fria aplicação das regras que distribuem os chamados ônus da prova. A doutrina
e a jurisprudência vêm aconselhando, nesses casos, a inversão do ônus da prova ou a iniciativa probatória supletiva do próprio juiz, como meios de restabelecer o equilíbrio entre as partes no acesso à tutela jurisdicional efetiva, repudiando as chamadas provas diabólicas, ou de produção impossível, que põem uma das partes em indevida posição de vantagem, incompatível com a garantia do contraditório. Esse direito à prova não pode ser desvirtuado por ficções ou presunções jurídicas absolutas, nem tornar o acesso à prova excessivamente difícil ou impossível através de presunções legais, ainda que relativas. Por isso, muitas regras de valoração das provas, como as dos artigos 364 e 401 do Código de 1973 e 405 do Código de 2015, não podem mais ser consideradas verdadeiras proibições ou regras imperativas, mas simples recomendações meramente indicativas extraídas pelo legislador da experiência comum, que o juiz pode seguir ou não de acordo com as circunstâncias do caso concreto. O regime das provas legais deve também ser revisto à luz da presente garantia. Por outro lado, a proibição de provas ilícitas se justifica pela necessidade de resguardar a proteção de direitos fundamentais, especialmente os direitos da personalidade. A efetiva possibilidade de utilização dos prazos obriga a uma revisão das regras disciplinadoras da devolução ou prorrogação dos prazos. Se a parte demonstra ter ficado impossibilitada de praticar o ato no prazo por motivo alheio à sua vontade, o prazo deve ser-lhe devolvido, se já findo, ou prorrogado. Essa concessão não pode ficar na dependência, como indevidamente prescreve o § 1º do artigo 183 do Código de 1973, da imprevisão ou imprevisibilidade do fato impeditivo. Nesse aspecto, muito mais tolerante e democrático é o Código de 2015, que admite a prorrogação do prazo sempre que a parte for impedida de praticar o ato por motivo alheio à sua vontade (art. 223) e também confere ao juiz um poder genérico de dilatar quaisquer prazos (art. 139, inc. VI), conforme ressaltamos no Capítulo XV. Os contrainteressados, que têm o direito de atuar como partes e que não podem perder direitos em processos de que não participaram, são não apenas aqueles em relação aos quais o autor formulou o pedido, mas também aqueles em cuja esfera jurídica devam repercutir, direta ou indiretamente, os efeitos das decisões judiciais. Esse alcance do contraditório certamente exige reflexão doutrinária sobre a noção de interesse jurídico que legitima o terceiro a intervir como assistente (CPC de 1973, art. 50; CPC de 2015, art. 119), assim como sobre a
tradicional distinção liebmaniana entre a eficácia natural da sentença e a autoridade da coisa julgada, justificadora de efeitos reflexos da sentença sobre terceiros com interesse jurídico subordinado ao de uma das partes, o que estudaremos no 2º volume2. O contraditório está assegurado no artigo 5º, inciso LV, da Constituição. Com frequência, na sociedade em crise em que vivemos, os juízes são pressionados a abandonar o contraditório ou a postergá-lo, tomando decisões com a apreciação de argumentos unilaterais, isto é, trazidos por apenas um dos litigantes. É o caso das liminares, sejam cautelares ou antecipatórias, que hoje se tornaram tão frequentes nessa ansiedade pela rápida tutela jurisdicional que predomina na sociedade do nosso tempo. É preciso consolidar o primado do contraditório no direito processual, o que faz o Código de 2015 no artigo 9º. Para tanto, como já mencionei, os juízes devem, como regra geral, que somente deve ser posta de lado em situações excepcionais, assegurar o contraditório prévio, porque contraditório postergado é contraditório nenhum, é uma tentativa de reequilibrar um processo já desequilibrado, no qual a desigualdade prevaleceu. O juiz ao assegurar o contraditório a posteriori estará procurando remediar um mal que já foi feito. Toda liminar é uma violência, porque invade a esfera de influência de alguém sem dar a chance de seu pronunciamento prévio, sem dar a oportunidade de intervir na decisão. Contudo, muitas liminares são necessárias, porque, se o direito não for tutelado de imediato, ele vai perecer, e, em muitos casos, esse direito em jogo pode ser extremamente valioso do ponto de vista humano. Este é o grande dilema que enfrentam os juízes cotidianamente: conceder ou não liminares? Conceder liminares, suprimindo o contraditório, assegurando um contraditório meramente formal, posterior, e, portanto, não real, ou sujeitar o autor à perda efetiva de um direito valioso? É preciso estabelecer a prioridade do contraditório, porque, se de um lado, o autor tem o direito de acesso à justiça, que deve ser o mais amplo possível, de outro, o réu tem o direito de se defender e de influir nas decisões do juiz. Frise-se que influir eficazmente nas decisões não é influir depois que as decisões já foram tomadas, é influir antes. O direito constitucional, a teoria dos direitos fundamentais e o direito processual tentam estruturar e aplicar um mecanismo balizador de critérios para que o juiz possa decidir em favor da liminar ou do contraditório. Esses critérios estão
fundamentados no princípio da proporcionalidade, através da ponderação dos interesses em jogo. Na teoria dos direitos fundamentais, quando o juiz está diante do conflito entre dois direitos dessa categoria, ele pode ter de sacrificar um deles em benefício de outro que, no caso concreto, se apresente como mais valioso. O primeiro problema desse mecanismo está no estabelecimento de uma escala de valores entre os direitos fundamentais. É fácil concluir que a vida é mais valiosa do que a propriedade, ainda que ambos sejam direitos fundamentais, mas essa valoração não é tão simples quando confrontadas, por exemplo, a honra e a propriedade, ou esta e a privacidade ou intimidade. Nessa ponderação, o juiz deve aplicar a técnica da ponderação ou da aplicação do princípio da proporcionalidade e, na dúvida, não conceder a liminar e assegurar o contraditório prévio. Na dúvida, hoje, não deve ser invadida a esfera de liberdade de ninguém. Situação mais delicada é aquela em que o juiz se depara com o conflito entre o interesse particular e o interesse público. No chamado Estado-Providência, vigorou a mentalidade da absoluta supremacia do interesse público, que, infelizmente, ainda encontra profundos ecos na formação jurídica de nossos acadêmicos e operadores do direito. Essa absoluta supremacia do interesse público ainda é defendida no Brasil, por motivos ideológicos, por alguns administrativistas, mas ela é incompatível com o Estado fundado na dignidade da pessoa humana, porque se a aceitarmos não haverá respeito aos direitos humanos e aos direitos fundamentais. Por essa perspectiva, sempre que o interesse público se chocasse com um direito fundamental, este seria sacrificado. Ora, a nossa Constituição não permite a violação de um direito fundamental; no máximo, permite a restrição ou a suspensão de alguns direitos fundamentais no estado de sítio e no estado de defesa (Constituição, arts. 136 a 141), mesmo assim mediante decreto do Executivo (art. 136, § 1º e art. 138, caput), aprovação do Congresso Nacional, delimitação de qual é o direito suspenso e a duração temporal da eficácia da suspensão (art. 136, §§ 1º e 4º, e art. 138, caput e § 2º). Apenas nesses casos extremos, de grave crise da ordem jurídica ou do funcionamento do Estado, é que pode haver, atendidas todas as exigências constitucionais, a restrição a direitos fundamentais, o que significa que, fora do
estado de sítio e do estado de defesa, não é qualquer interesse público que pode prevalecer sobre o particular. Contudo, também não é correto sustentar a prevalência dos direitos fundamentais individuais sobre o interesse público em todos os casos, sob pena de incorrer-se num exagero liberal. É preciso ponderar esses interesses para que, à luz da ordem jurídica como um todo e das circunstâncias do caso concreto, seja tutelado o mais valioso. Parece-me, por ora, que talvez o único método possível, na falta de outro melhor, é procurar descobrir quais os direitos fundamentais que determinado interesse público visa a preservar, de modo a reduzir-se o conflito entre o interesse público e o interesse individual a um conflito entre direitos fundamentais, resolvido pelas regras da proporcionalidade. Esta breve explanação é útil para mostrar que o juiz não pode render-se a simples alegações de tutela do interesse público para recusar a tutela de um direito fundamental, assim como para evidenciar a complexidade das decisões que envolvem a chamada tutela de urgência, através da concessão ou não de medidas liminares, com a supressão ou a postergação do contraditório. O Código de 2015, com mais rigor, exige corretamente que o juiz, na concessão da tutela da urgência, justifique as razões de seu convencimento de modo claro e preciso (art. 298). O contraditório tradicionalmente adotado no processo judicial é o princípio que impõe ao juiz a prévia audiência de ambas as partes antes de adotar qualquer decisão (audiatur et altera pars) e o oferecimento a ambas das mesmas oportunidades de acesso à justiça e de exercício do direito de defesa, a chamada paridade de armas. Desdobra-se, pois, em duas regras: audiência bilateral e igualdade entre as partes. Essas regras foram sempre observadas no processo de conhecimento, como garantias de decisões justas e de juízes imparciais. Recentemente foram também estendidas à tutela cautelar e à execução, porque em nenhuma modalidade de jurisdição qualquer das partes pode, perante o juiz, estar em posição de inferioridade em relação a outra. A impossibilidade de rediscutir na execução o direito constante do título não reduz a garantia do contraditório, porque esse direito pode não mais existir, e, ainda que sobreviva, a sua satisfação deve efetivar-se do modo menos oneroso para o devedor, devendo, após cada ato e antes do seguinte, ser reavaliada a adequação da sequência empreendida para atender simultaneamente aos
interesses legítimos do credor e do devedor. É o primado da dignidade humana que impõe, em qualquer processo, que o poder das partes de influir nas decisões judiciais seja assegurado de fato, na prática, em concreto, e não apenas formalmente. Ora, não existe forma mais eficaz para isso do que através da instauração de um diálogo humano entre o juiz e os dois outros sujeitos principais do processo, autor e réu. Diálogo é o intercâmbio de ideias entre duas ou mais pessoas humanas a respeito de qualquer questão ou problema. No diálogo todos os interlocutores falam, ouvem, dizendo o que pensam e reagindo às opiniões dos outros, de tal modo que ao seu término cada um deles influiu nas ideias dos demais e por elas foi também influenciado. O diálogo pressupõe que os interlocutores manifestem as suas opiniões, ainda que hipotéticas e provisórias, numa audiência oral, porque somente o encontro, o contato imediato entre o juiz e as partes instaura diálogo verdadeiro e humano como um exercício leal de paciência, tolerância, humildade e respeito mútuo. Lamentavelmente o Direito brasileiro em muitos procedimentos não prevê audiências orais, e a quantidade de trabalho e de processos tem progressivamente afastado os juízes do exercício fecundo do diálogo em audiências orais, o que reduz o contraditório a uma garantia meramente formal, destituído de todo o seu vigor humanitário. Por fim, o contraditório participativo impõe ao juiz o dever de fundamentação consistente de todas as suas decisões, fundamentação essa que dê resposta a todas as questões relevantes suscitadas no processo com argumentos precisos e racionalmente desenvolvidos, não bastando que o juiz simplesmente desenvolva uma linha de argumentação que hipoteticamente possa sustentar as suas conclusões. Implementando o disposto no artigo 93, inciso IX, da Constituição, é o que exige o Código de 2015, nos §§ 1º e 2º do artigo 489, condenando precisamente os mais frequentes vícios de fundamentação que devem ser evitados em qualquer decisão judicial, como a mera indicação de artigos de lei, o emprego de conceitos indeterminados sem explicar o motivo da sua incidência no caso concreto, a adoção de argumentos genéricos que se prestam a justificar qualquer decisão diversa, a omissão de resposta a todos os argumentos relevantes deduzidos pelas partes que poderiam conduzir a conclusão diversa da
adotada, a simples invocação de precedente ou súmula sem identificar de que modo os seus fundamentos se aplicam ao caso concreto e a não explicitação das premissas e dos critérios de aplicação do princípio da proporcionalidade. Como megaprincípio, o contraditório interfere em outros princípios fundamentais do processo, como o da publicidade e o da oralidade.
22.3. PRINCÍPIO DISPOSITIVO Filio-me à doutrina de Liebman3 e de Moacyr Amaral Santos4, que distinguem o princípio dispositivo do princípio da iniciativa das partes. A maioria dos autores se refere ao princípio dispositivo, abrangendo o conteúdo de um e de outro. O princípio da iniciativa das partes diz respeito à inércia do juiz quanto às questões de direito material, enquanto o princípio dispositivo se refere à iniciativa relativa aos fatos e às provas. De acordo com esse princípio, iudex secundum allegata et probata partium iudicare debet, ou seja, o juiz deve julgar a causa de acordo com os fatos alegados e com as provas produzidas pelas partes. É o autor que deve descrever os fatos, os acontecimentos do mundo ou da vida aptos a gerarem o seu direito. Quanto a esses fatos, o juiz não pode ter nenhuma iniciativa; em regra, o magistrado somente vai julgar os fatos e as provas que as partes trouxerem ao processo. Esse juiz inerte em matéria de fatos e de provas era típico do direito angloamericano antes das reformas do final do século XX. Na civil law, era o juiz do século XIX – não o do nosso século –, porque, se ele sempre permanecesse inerte e somente enxergasse aquilo que as partes lhe trouxessem em matéria de fatos e de provas, correria o risco de cometer graves injustiças ou de proferir decisões escandalosamente erradas. O juiz, sabendo da existência de outros fatos não carreados ao processo ou de outras provas que poderiam ser relevantes para o julgamento da causa, não pode, em todos os casos, aplicar cegamente o brocardo quod non est in actis non est in mundo (o que não está nos autos não está no mundo), a não ser no sentido de que deve trazer para os autos esses fatos e essas provas, submetê-los ao crivo do contraditório e, então, com a mais ampla cognição sobre a realidade, proferir a sua decisão.
A inércia do juiz em relação aos fatos consagra um ideal de justiça originado na Antiguidade, qual seja, o do juiz, mais do que neutro, frio e passivo, indiferente ao que se passa no mundo e que simplesmente julga o que as partes lhe trazem. É claro que o juiz não pode trazer para os autos fatos diversos, que transformem a demanda proposta numa outra demanda, caracterizadores de outro direito material. Se o juiz deve respeitar a iniciativa das partes na proposição das questões de direito, não pode ele conhecer de fatos que levem a outros direitos, que não os alegados pelas partes, mas deve, sim, sem desfigurar a demanda e sem invadir a esfera de liberdade das partes, trazer ao processo quaisquer outros fatos que sirvam para provar os fatos jurígenos alegados pelas partes e, em caráter subsidiário, determinar a produção de todas as provas capazes de elucidálos, especialmente quando uma das partes estiver em condição de inferioridade em relação à outra ou não tiver capacidade de perceber qual seria a prova que poderia convencer o juiz da veracidade dos fatos que a beneficiam. O princípio que se opõe ao princípio dispositivo, em matéria de iniciativa sobre fatos e provas, é o princípio inquisitório, que obriga o juiz a investigar ex officio amplamente os fatos e a determinar por sua própria iniciativa a produção de todas as provas aptas a demonstrá-los. O processo moderno, na evolução da tradição romano-germânica, especialmente a partir do século XX, sob a influência de diversas ideologias, algumas de inspiração nitidamente totalitárias, como o fascismo e o comunismo, foi profundamente desvirtuado pelo dogma do absoluto primado do interesse público sobre o privado. A partir dessas ideias, o direito continental-europeu mitigou o princípio dispositivo, o que pode ser observado, entre nós, nos artigos 130, 131 e 462 do Código de 1973 e nos artigos 370, 371 e 493 do Código de 2015, que estabelecem que o juiz julgará a causa de acordo com os fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes, e que o juiz determinará de oficio a produção de todas as provas necessárias para a formação do seu convencimento. O alcance desses dispositivos deve merecer cuidadosa atenção, que levaremos a cabo no curso do 2º volume desta obra. Essas regras do Código pátrio parecem indicar o abandono do princípio dispositivo, que consagra o juiz inerte, e a adoção de um juiz inquisitivo. Contudo, não se pode levar a tal extremo a interpretação dessas normas, devendo interpretar-se os artigos 131 e 462 do Código de 1973 e 371 e 493 do Código de 2015 como permissivos da apreciação ex officio apenas dos chamados fatos
simples, que são aqueles que o autor pode não ter alegado, mas que não implicam alteração da causa de pedir nem a mudança da base fática do seu direito, pois não são fatos constitutivos do seu direito (fatos jurígenos). Esses fatos simples apenas reforçam a existência dos fatos constitutivos alegados pelo autor, servindo para demonstrá-los. Essa regra também se aplica ao réu, porque o juiz não pode conhecer de fatos impeditivos, extintivos ou modificativos do direito do autor, como a novação ou o pagamento, mesmo que estejam nos autos, se o réu não os alegou, mas sim de fatos não aduzidos que sirvam para demonstrar a novação ou o pagamento arguido. Exceções existem e a elas dedicamos o item 8.5.3.2. Quanto às provas, a questão mostra-se mais complexa, porque os artigos 130 do Código de 1973 e 370 do Código de 2015 não realizam nenhuma distinção e parecem dar ao juiz amplo poder de iniciativa probatória, amplo poder de investigar a verdade. Ocorre que, se for dado esse alcance ao dispositivo em comento, será instituído não simplesmente o juiz ativo, mas verdadeiramente o juiz autoritário, que pode nunca se contentar com as provas apresentadas pelas partes e desejar ir ele mesmo em busca de uma suposta verdade absoluta. Não deve ser assim, pois o juiz estaria colocando gravemente em risco a sua imparcialidade. Aquele que julga não deve ter também a função de investigar, porque “quem investiga suja suas mãos”. Liebman sempre defendeu que, quando algum interesse social exigisse uma iniciativa probatória por parte do Estado, essa função deveria ser confiada a outro órgão, como o Ministério Público, para não comprometer a imparcialidade do órgão julgador. Esse ideal proposto por Liebman nunca se realizou5. Daí a necessidade de exercício pelo juiz, em caráter supletivo, da iniciativa probatória. Quais são os limites ao respeito da iniciativa probatória das partes? Em que casos o juiz não precisa e não deve respeitar a iniciativa probatória das partes? A solução desses questionamentos, a meu ver, deve dar-se, em primeiro lugar, de acordo com a disponibilidade ou indisponibilidade dos direitos em jogo. Nas causas que versam sobre direitos disponíveis, deve ser respeitada a autonomia probatória das partes. Logo, se o direito material for disponível, a prova dos fatos que vão demonstrá-lo também será disponível. Contudo, muitas vezes, o juiz atento percebe que uma das partes não propôs as provas que poderia ou que queria produzir, por alguma circunstância alheia à sua vontade,
como, por exemplo, a falta de zelo ou deficiência técnica do seu advogado, ou seja, o juiz sabe que existem provas acessíveis, mas o advogado não requereu a sua produção. Nos dias atuais, não se pode mais defender que a inépcia ou a desídia do advogado sejam problema meramente contratual, exclusivo da parte que o escolheu, pois foi o Estado que o habilitou ao exercício profissional e que, por isso, fiscaliza a sua exação no exercício profissional através da Ordem dos Advogados do Brasil. Logo, ainda que diante de direitos disponíveis, há, a meu juízo, algumas outras hipóteses, além da indisponibilidade do direito material, que justificam a iniciativa probatória subsidiária do juiz, a saber: (i) a dificuldade de acesso à prova; (ii) a falta de zelo do advogado; (iii) a incapacidade da parte de perceber a relevância que o juiz daria à prova; (iv) a necessidade de coibir simulação, falsidade ou fraude; e (v) a necessidade de submeter ao contraditório a cognição de fatos e provas relevantes dos quais o juiz teve conhecimento fora do processo. Voltaremos ao assunto no estudo das provas, no 2º volume. Sem o contraditório instaurado na sua plenitude, existe um abismo de comunicação entre as partes e o juiz. Os advogados ficam imaginando qual seria a prova que poderia convencer o magistrado e, para não correrem riscos, muitas vezes requerem provas demais; noutros casos, receiam que uma prova cuja produção venham a requerer possa vir a prejudicar o interesse das próprias partes que representam e deixam de requerer as provas necessárias. Esse é o drama que vive o advogado sempre que o juiz não é capaz de garantir o pleno respeito ao princípio do contraditório, porque, sem diálogo humano, ele muitas vezes não é capaz de formular um prognóstico sobre a linha de raciocínio do juiz. Daí a importância de o juiz expor as suas opiniões, para que as partes possam acompanhar o seu raciocínio. É o diálogo humano, em respeito ao dever de cooperação, que constrói uma ponte de ouro entre a atividade das partes e o modo como essa atividade repercute no entendimento do juiz. A parte não pode ter o seu direito de acesso à justiça mitigado porque ela não foi capaz de compreender a linha de raciocínio do juiz, que é quem tem de suprir essa deficiência de comunicação. Então, em todos os casos em que uma das partes está em posição de inferioridade em relação à outra na busca da prova, seja por razões econômicas, seja por outras razões, o juiz deve complementar a sua iniciativa probatória. Se uma advertência do juiz puder despertar na parte ou no seu advogado a
consciência da necessidade ou utilidade de trazer a prova, como no chamado Hinweispflicht do direito alemão, que faz parte do diálogo que partes e juiz devem travar no processo, eximir-se-á o juiz da iniciativa probatória. Nas causas que versam sobre direitos indisponíveis, a iniciativa probatória do juiz, por redobrada razão, não é apenas uma faculdade, mas um dever. Nessas causas, quando necessário, o juiz não deve se contentar apenas com as provas trazidas pelas partes, devendo zelar para que não haja nenhum tipo de disposição oculta, dissimulada, acerca de um direito cuja disposição é proibida pela lei. A doutrina distinguia outrora a busca da verdade formal ou da verdade real, nas causas sobre direitos disponíveis ou indisponíveis. Essa distinção hoje deve considerar-se ultrapassada, porque não há dois tipos de verdade, que é uma só, e porque a verdade, como ela é, é objetivo a ser perseguido pelo juiz em qualquer causa, independentemente da indisponibilidade do direito material. Essa situação, portanto, difere da iniciativa probatória do juiz nas causas que envolvem direitos disponíveis, pois nelas essa iniciativa tem caráter subsidiário. É nesse sentido que devem ser interpretados os artigos 130 do Código de 1973 e 370 do Código de 2015. Na interdição, por exemplo, o interditando pode confessar que é louco, mas o juiz deve produzir provas concretas acerca da sua sanidade mental; o magistrado não pode se contentar com a iniciativa probatória das partes, quando esta não for suficiente para comprovar todos os fatos necessários à demonstração do fato que implicará o sacrifício do direito indisponível em jogo. Isso não significa, contudo, que o juiz deva exaurir todas as possibilidades probatórias, quando puder retirar dos autos firmes conclusões sobre a verdade dos fatos. O importante é que ele seja ativo, atuante, para não permitir a fraude à lei através de uma simulação da verdade, da ocultação de fatos ou de provas com o intuito de burlar a indisponibilidade do direito. Hoje, a jurisprudência dos tribunais consolidou-se no sentido de que, nas ações de reconhecimento de paternidade, a recusa do réu a submeter-se ao exame de DNA implica confissão quanto à matéria de fato. No processo civil, normalmente só um dos interesses em jogo é indisponível e, no caso, o é o direito do filho de investigar a sua paternidade. O direito do pai de recusar a paternidade é disponível, sendo que ele tem o ônus de colaborar com a apuração da verdade, sofrendo as consequências no caso da recusa, que serão as
decorrentes da presunção de veracidade dos fatos contra ele afirmados. Imagine-se a hipótese contrária, em que o pai propôs em face do suposto filho ação negatória de paternidade. O réu, que é o filho, pode recusar-se ao exame de DNA? A esse respeito, há duas correntes. A primeira responde afirmativamente, justificando que o autor deve comprovar a inexistência da paternidade por outros meios. O juiz poderia autorizar uma medida cautelar de busca e apreensão do suposto filho para que comparecesse a um laboratório, para ter a sua pele levemente raspada ou um fio de cabelo extraído? Isso violaria a privacidade do réu ou o seu direito de dispor do próprio corpo? Ao contrário do que pensa essa primeira corrente, acredito que não, pois dispor do próprio corpo seria se parte dele fosse mutilada, ou violaria a sua intimidade se fosse preciso que o réu expusesse o seu próprio pudor. A meu ver, nesses casos, acompanhando a segunda corrente, penso que o juiz pode de ofício determinar a realização do exame de DNA. O Tribunal Constitucional Federal alemão já se pronunciou sobre essa questão, num antigo acórdão que remonta à época em que não existia exame de DNA. Tratava-se de um caso em que o pai havia proposto ação negatória de paternidade contra o filho menor, representado pela mãe, e o juiz tinha determinado a realização do exame genético existente na época, que careceria da retirada de alguns mililitros de sangue do réu. A mãe recusava-se a submeter o filho ao exame de sangue e o processo ficou parado por sete anos. Então, o autor propôs uma ação diretamente no Tribunal Constitucional, alegando a violação do seu direito de acesso à justiça. Contudo, o referido tribunal entendeu que a retirada do sangue do réu violava o seu direito de dispor do próprio corpo e rejeitou a reclamação do pai. Acredito que a retirada de alguns mililitros de sangue não cria nenhum constrangimento ao indivíduo; não é uma violência contra a dignidade da pessoa humana. Aliás, todos nós não somos obrigados a nos vacinar? Nesse caso, não vislumbro nenhum constrangimento ilegal, nenhuma violação à dignidade da pessoa humana. Em resumo, o princípio dispositivo vigora, como regra geral, nas causas sobre direitos disponíveis, o que não significa que o juiz nelas deva ser inerte, omisso, alheio à atividade probatória da parte. Ao contrário, ele deve ser atento, ativo, para subsidiariamente suprir as deficiências de iniciativa probatória das partes.
Nas causas que envolvam direitos indisponíveis, o juiz tem de ser mais zeloso e dispor de um conjunto de elementos probatórios que possam assegurar que não houve nenhum ato de disposição acerca do direito em jogo. Deve-se reiterar que, em regra, no processo civil, a disponibilidade é apenas do direito de uma das partes e, portanto, essa atividade mais intensa do juiz deve dar-se apenas no sentido da conservação do direito indisponível, e não no sentido contrário. As demais hipóteses de iniciativa probatória judicial serão analisadas no Capítulo IV do 2º volume.
22.4. PRINCÍPIO DA LIVRE CONVICÇÃO Esse princípio está previsto no artigo 131 do Código de 1973, que estabelece que o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes, mas deverá indicar na sentença os motivos que lhe formaram o convencimento. Embora não empregue mais o adjetivo livre ou o advérbio livremente, que podem ser confundidos com arbítrio, os artigos 369 e 371 do Código de 2015 transmitem a mesma noção de que ao juiz cabe formar a sua convicção a respeito da verdade dos fatos com base nas provas constantes dos autos e que ele indicar as razões que a determinaram. O princípio da livre convicção tem origem religiosa. O juiz, na Antiguidade, era visto como um homem ungido pelo mundo sobrenatural, como se ele tivesse o poder de receber a inspiração divina ao julgar os fatos presentes no processo. Daí a liberdade do convencimento do juiz, consequência desse caráter sobrenatural e religioso que tinha a formação da sua convicção. O juiz não precisava fundamentar suas decisões, exigência que somente passou a ser observada a partir do século XVIII. É evidente que a livre convicção nesses moldes tornava o juiz um verdadeiro monarca, porque o direito era aquilo que ele dizia. Talvez essa tenha sido uma das razões que levou o Império Romano, durante o governo de Augusto, a criar a apelação, para permitir que se pudesse recorrer a outro juiz e inclusive ao próprio imperador. A previsão de recursos era uma forma de tentar controlar as decisões judiciais, que poderiam estar sendo proferidas em sentido diverso ao das leis do Império.
Contudo, a livre convicção se projetou ao longo dos séculos até a alta Idade Média, tendo declinado por ocasião da formação dos primeiros Estados nacionais. Os monarcas absolutistas já não aceitavam esse caráter sobrenatural da investidura dos juízes. Os soberanos desejavam chamar para si a autoridade e exigir que os juízes se submetessem às suas leis, e, com isso, decaiu a livre convicção, surgindo em oposição o sistema das provas legais. Esse novo sistema constituiu uma tentativa de reação contra o arbítrio dos juízes, mas, por outro lado, subordinou o cidadão ao arbítrio do soberano, pois este predeterminava o valor que o juiz deveria atribuir a cada prova. Na vigência do sistema das provas legais, por exemplo, era possível que determinada regra de direito estabelecesse que a prova da celebração de um contrato verbal somente seria possível mediante a apresentação de mais de dez testemunhas. Também era comum que se atribuísse maior valor ao testemunho dos detentores de títulos nobiliárquicos do que ao dos vassalos. A história da livre convicção é a história do movimento pendular que oscila entre a sujeição dos cidadãos ao arbítrio do juiz ou ao arbítrio dos soberanos. No final do século XVIII, alguns códigos de reinos italianos retomaram a livre convicção. Com a Revolução Francesa, recupera-se a livre convicção, mas não mais de forma absoluta e incontrolada, mas uma livre convicção motivada, devendo o juiz fornecer as razões da sua decisão. Não é por outro motivo que os artigos 131 do Código de 1973 e 371 do Código de 2015 estabelecem que o juiz deverá indicar na sentença os motivos que lhe formaram o convencimento. O juiz tem liberdade de julgar de acordo com a persuasão que as provas geram no seu entendimento; ele pode julgar os fatos verdadeiros ou não verdadeiros, mas ele precisa apresentar argumentos consistentes que justifiquem a sua decisão. A livre convicção do juiz o torna muito poderoso em matéria de revelação da verdade, pois as razões por ele expostas muitas vezes escondem os motivos reais das decisões. Há, inclusive, uma famosa sátira escrita por um frade do século XVI, François Rabelais, sobre o juiz que tinha a fama de ser o melhor da França, pois julgava rápido e dava belíssimas sentenças, que nunca tinham sido reformadas. Esse juiz certa vez teria dito que o segredo de motivações tão justas era fruto da sorte nos dados. Lançava os dados e, de acordo com a face que caía para cima, decidia entre a procedência ou improcedência do pedido, bastando apenas buscar uma boa justificação para a decisão tomada ao acaso.
Essa a grande dificuldade no controle da motivação através dos fundamentos da sentença. Apesar das exigências presentes no artigo 458 do Código de 1973 e na própria Constituição (art. 93, inc. IX), energicamente reforçadas no artigo 489 do Código de 2015, que determinam que todas as decisões judiciais sejam precisa e racionalmente fundamentadas, nunca se sabe se a motivação exteriorizada pelo órgão judicial foi a ensejadora da decisão. Michele Taruffo, o autor que tem a obra moderna mais rica sobre a motivação das decisões6, afirma que estas têm de ser vistas sob dois planos. O primeiro diz respeito às causas determinantes da decisão, que são o processo psicológico de formação da convicção do juiz. O segundo é o discurso justificador, que é aquilo que o juiz escreve depois. Devese fazer o possível para que o discurso justificador esteja o mais próximo dos motivos reais, mas nunca se poderá garantir com certeza essa coincidência. O princípio da livre convicção rege a avaliação das provas pelo juiz, conferindolhe ampla liberdade de decidir a verdade fática de acordo com a persuasão que as provas produzidas no processo tenham gerado no seu entendimento. A lei não pode obrigar o juiz a considerar não verdadeiros fatos de cuja veracidade esteja ele convencido, ou verdadeiros aqueles cuja veracidade não esteja suficientemente sedimentada na sua consciência. Afinal, a verdade fática não pertence a ninguém, mas ao mundo em sua projeção histórica, espaço-temporal. Embora não esteja ao alcance do juiz, nem de qualquer outro ser humano, apropriar-se de toda a verdade fática, porque a capacidade cognitiva do homem é limitada, finita, o contraditório processual é o melhor método para a sua descoberta7. A livre convicção moderna é a livre convicção fundamentada ou persuasão racional, exigindo que o juiz fundamente racionalmente as suas decisões sobre a verdade fática (CPC de 1973, art. 131; CPC de 2015, art. 371). A livre convicção não pode ser um pretexto para o arbítrio do juiz, para ele decidir contra a lei ou fingir que respeita a lei. Ao adotar o princípio da livre convicção, o legislador está conferindo um voto de confiança aos juízes, de que em seus julgamentos serão fiéis à verdade, conforme revelada ao seu entendimento pela cognição exercida sobre o conjunto das provas.
Todavia, para que as partes, os órgãos jurisdicionais, a que o juiz está subordinado em grau de recurso, e a própria sociedade possam aferir se a verdade reconhecida pelo juiz é a verdade histórica ou está bem próxima dela, o juiz tem o dever imposto pela lei de expender as razões que determinaram a formação do seu convencimento. A motivação da decisão sobre os fatos é indispensável para que qualquer pessoa, que tenha exercido ou venha a exercer a sua própria cognição relativa às mesmas provas, possa verificar se o juiz examinou e apreciou devidamente cada prova, se considerou de modo apropriado todas as circunstâncias apuradas, porque deu mais importância a esta prova do que àquela. A motivação da sentença obriga o juiz a tentar convencer os seus destinatários da verdade sobre a qual vai incidir o direito. Se a motivação for frágil, dificilmente convencerá o perdedor e abrir-lhe-á as portas para reformar a sentença em grau de recurso. Se for sólida e, mesmo assim, não convencer o perdedor, dificilmente este conseguirá reformá-la no segundo grau de jurisdição. A livre convicção fundamentada não tolhe a liberdade de julgamento do juiz, mas o obriga a sustentar racionalmente a verdade encontrada, que não pode ser fruto da paixão, do preconceito ou do impulso do momento, mas da apreciação ponderada e lógica de todas as provas; que não pode ser a verdade íntima, mas aquela que pela razão possa ser reconhecida como consistente por qualquer outro homem8, a partir dos elementos de prova constantes dos autos e submetidos ao contraditório. Sem dúvida é no processo de conhecimento que a livre convicção encontra a mais completa aplicação, porque nele é que o juiz se dedica, como atividade principal, a produzir a certeza do direito, o que pressupõe fatos igualmente certos. Mas também na execução e na tutela cautelar o juiz em diversos momentos tem de formar juízos positivos sobre a existência de certos fatos, com base nas provas que lhe forem fornecidas pelas partes. Apesar do disposto nos artigos 131 do Código de 1973 e 371 do Código de 2015, ainda remanescem no nosso sistema processual alguns resíduos de provas legais, ou seja, de regras probatórias que vinculam o juiz a reconhecer como
verdadeiros determinados fatos com base em certas provas ou, ao contrário, a não considerar verdadeiros fatos corroborados por determinadas provas. Vejamse, como exemplos, as regras dos artigos 364 e 401 do Código de 1973 e 405 do Código de 2015, relativas à força probante dos documentos públicos e da prova testemunhal, felizmente a segunda expungida do Código de 2015. No capítulo das provas examinaremos o alcance que ainda podem ter essas regras, no Estado de Direito contemporâneo. Por ora cumpre assinalar apenas que elas não podem ser obstáculos à livre convicção do juiz, pois isso implicaria admitir que o juiz se distanciasse da verdade como ela é, para atribuir direitos a quem não os tem. Em síntese, a livre convicção é uma garantia da liberdade de consciência do juiz. Aplicada por juízes escrupulosos e independentes, é também, para os jurisdicionados, em todas as modalidades de tutela jurisdicional, uma garantia de decisões acertadas e justas, porque proferidas em conformidade com a verdade, racionalmente revelada.
22.5. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE A publicidade nos atos processuais é uma das principais garantias democráticas do processo e está inscrita nos artigos 5º, inciso LX, e 93, inciso IX, da Constituição, assim como nos artigos 155 do Código de 1973 e 189 do Código de 2015. Ela é uma garantia democrática, porque é através dela que a sociedade exerce o controle social sobre a exação dos juízes, sendo também uma garantia importante para as partes, como freio ao arbítrio do julgador, pois assegura que os seus atos possam ser presenciados por pessoas do povo9. A publicidade também é um importante instrumento de controle da imparcialidade do juiz e, por isso, todos os sistemas processuais modernos a consagram. A justiça tem de ser feita de portas abertas, para que qualquer pessoa do povo possa conhecer e controlar os seus atos, de modo que todos têm o direito de acesso ao conteúdo dos atos processuais e ao local em que se realizam, mesmo aqueles que não são partes no processo. O princípio da publicidade comporta algumas exceções, previstas nos Códigos de Processo Civil e na Constituição, que devem ser analisadas com muita cautela. O primeiro grupo de restrições a esse princípio objetiva preservar a privacidade, a intimidade das pessoas, especialmente nas causas que dizem
respeito a direitos da personalidade. Por isso, o Código de 1973 estabelece que, nas causas que dizem respeito a casamento, filiação, separação, conversão desta em divórcio, alimentos e guarda de menores, o processo corre em segredo de justiça (art. 155, inc. II), rol ao qual o Código de 2015 acrescentou a união estável (art. 189, inc. II), o que significa que somente as próprias partes e os seus advogados podem ter acesso ao conteúdo dos atos processuais e aos locais onde se realizam os atos orais. O interesse público também pode determinar a decretação do segredo de justiça. Esse interesse público deve ser um interesse geral da coletividade, e não qualquer invocação do interesse público por autoridades públicas simplesmente para impedir a crítica e o controle dos seus próprios atos. O juiz deve ser muito rigoroso ao deferir o segredo de justiça, porque toda vez em que ele o faz, proibindo o acesso do público em geral ao conteúdo do processo, ele está suprimindo o controle social sobre as suas ações. Por isso, a decisão do órgão judicial de impor o segredo de justiça deve ser rigorosamente fundamentada. É claro que nas causas de direito de família a necessidade de respeito ao segredo de justiça é patente, porque está em jogo a privacidade da família. Todavia, nas causas em que se alega que o interesse público exige tal sigilo, é preciso que o juiz exija a comprovação de um preciso e concreto interesse público e que este não seja o interesse particular da Administração ou do administrador, mas um interesse geral da coletividade. Com o advento da Constituição Federal de 1988, cabe à lei especificar os casos em que a intimidade ou o interesse geral impõem o sigilo, não mais podendo o juiz determinar essa limitação da publicidade a seu critério ou a seu juízo exclusivo, pois o juiz não tem a faculdade de liberar-se, por um ato unilateral, do controle democrático que a sociedade exerce sobre a sua conduta funcional, controle esse que constitui uma das finalidades essenciais do princípio da publicidade. Somente nos casos expressos em lei, pode e deve o juiz impor o sigilo para proteger o interesse público. É o que ocorre com os processos relativos a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional, por força do art. 143 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13 de julho de
1990). O Código de 2015, nos incisos III e IV do artigo 189, reproduz a proteção da intimidade prevista nos dispositivos constitucionais acima mencionados e acrescenta as causas que versem sobre arbitragem, desde que comprovada a pactuação da confidencialidade, o que já vinha sendo admitido em face da autonomia das partes na arbitragem em disciplinar as regras do respectivo procedimento. Também é inovação do Código de 2015 a confidencialidade da conciliação e da mediação (art. 166), em benefício da preservação da intimidade das partes e para permitir que elas atuem sem receios nessa negociação. Essa confidencialidade deverá ser respeitada pelo próprio juiz no momento da homologação da autocomposição (art. 334, § 11) e na conciliação por ele conduzida na audiência final (art. 359). No Brasil, a publicidade do processo é mais intensa do que na Europa e nos Estados Unidos, porque o julgamento das causas por tribunais colegiados brasileiros é feito em sessões públicas, em que todos os juízes que compõem esses órgãos são obrigados a manifestar seus votos publicamente. Aliás, a Emenda Constitucional n. 45/2004 exigiu a publicidade até mesmo nas decisões administrativas dos tribunais (Constituição, art. 93, inc. X). Na Europa, os debates são públicos, mas quando os juízes começam a deliberação, a dar suas opiniões ou votos, o tribunal encerra a sessão pública e apenas os próprios juízes ficam presentes. Nos Estados Unidos, em que pese haver menos publicidade do que no Brasil quanto às sessões de julgamento, os juízes devem revelar individualmente seus votos. Na Europa, divulga-se apenas a decisão do colegiado e não se revela se ela foi unânime, por maioria ou quantos votos vencidos foram computados. Nesse aspecto, nós temos mais publicidade. Essa restrição da publicidade na Europa e nos Estados Unidos é justificada pelo argumento de que ela é fundamental para a independência dos juízes, para que eles não se sintam pressionados na hora de manifestar seus votos. Obviamente, isso tem raízes históricas nos regimes de opressão que governaram os países europeus. Os Estados Unidos nunca passaram por um regime de opressão, mas a restrição da publicidade é oriunda da tradição inglesa. O Brasil já experimentou
longos períodos de exceção e, no entanto, os juízes sempre continuaram obrigados a manifestar publicamente os seus votos. Em certo aspecto, temos até mais publicidade do que alguns países que têm democracias mais sólidas do que a nossa e um controle social muito mais vigilante sobre as ações dos juízes. Em outro aspecto a nossa publicidade é mais ampla do que a dos países europeus. Entre nós todas as peças dos autos são acessíveis ao público, enquanto na Europa continental, sob o argumento da proteção da privacidade das partes, somente a audiência oral e a sentença são públicas, de modo que os documentos anexados aos autos são acessíveis apenas às partes. Pelo princípio da publicidade, tal como delineado no texto constitucional, todos os cidadãos, independentemente de terem ou não qualquer interesse no processo, são titulares do direito cívico de acesso ao conteúdo de todos os atos processuais e de assistirem com a sua presença física aos atos processuais solenes ou orais. A publicidade assegura, assim, aquilo que modernamente se costuma chamar de transparência no exercício da função pública. A publicidade de todos os atos do processo, salvo dos que correm em segredo de justiça, vem sendo gravemente posta em xeque com a implantação do processo eletrônico, em que somente os advogados de cada causa e, excepcionalmente, outros advogados em requerimentos fundamentados têm tido acesso aos arquivos dos autos eletrônicos, ao arrepio do preceito expresso inscrito no inciso LX do artigo 5º da Constituição e reproduzido nos artigos 155 do Código de 1973 e 189 do Código de 2015. Há quem alegue que o amplo acesso de qualquer cidadão via internet aos arquivos eletrônicos que incluem todos os documentos privados ou públicos constantes de qualquer processo viola a intimidade dos litigantes, resguardada nos dispositivos constitucionais e legais, e que, por meio dos poderosos mecanismos de busca hoje existentes, devassa em demasia as relações jurídicas privadas. A lei deverá encontrar o necessário ponto de equilíbrio entre esses dois valores humanos que precisam ser conciliados, quais sejam, a preservação da privacidade das pessoas físicas e jurídicas e o controle social da exação dos juízes no exercício da jurisdição. Infelizmente, não temos no Brasil uma legislação adequada de proteção da intimidade, que defina o seu conteúdo e os seus limites, nem uma lei moderna de proteção de dados pessoais. O que não é
admissível é que o teor da lei seja um e a prática dos tribunais seja inteiramente contrária ao enunciado da lei.
22.6. PRINCÍPIO DO IMPULSO PROCESSUAL OFICIAL O impulso processual é o modo pelo qual o processo se movimenta em direção ao seu fim. Há dois sistemas de impulso processual: o do impulso oficial e o do impulso das partes. O nosso sistema processual civil adota o sistema do impulso oficial, o que está expresso nos artigos 262 e 125 do Código de 1973 e 2 e 139 do Código de 2015, segundo os quais o processo começa por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial, cabendo ao juiz dirigi-lo, velando pela sua rápida solução ou, como prefere o último desses dispositivos, pela duração razoável do processo. O sistema oposto ao nosso seria o do impulso das partes, em que o juiz é inerte e são as partes que impulsionam o processo em direção ao seu fim. O direito italiano, por exemplo, adota o princípio do impulso das partes. O impulso oficial é inspirado na ideia de que ao Estado não interessa a eternização dos litígios, mas a sua mais rápida solução, para que os cidadãos gozem efetivamente dos seus direitos. É preciso não esquecer que, a partir da Emenda Constitucional n. 45/2004, a celeridade do processo passou a figurar no rol dos direitos fundamentais (Constituição, art. 5º, inc. LXXVIII). Além disso, o impulso oficial se fundamenta na premissa de que as partes somente podem fazer uso da justiça se realmente quiserem uma solução para o litígio, porque o Estado não deve mobilizar seus recursos em benefício de causas cujas partes não têm interesse em resolvê-las. Ou seja, a atividade pública não pode ser sobrecarregada com causas cujos interessados não queiram movimentá-las e, por isso, o próprio juiz impulsiona o processo, mesmo porque estudos realizados em alguns países, como a Inglaterra, já demonstraram que muitas vezes a morosidade é a estratégia utilizada por uma das partes para obter da outra um acordo em condições bastante favoráveis. Todavia, o impulso oficial depende também, sob dois aspectos, da colaboração das partes, mesmo que ao juiz caiba, por exemplo, ordenar a citação, providenciar as intimações, marcar os atos subsequentes, intimar as partes ex
officio das decisões, e assim por diante. O primeiro aspecto é o econômico, que visa ao custeio dos atos processuais, na medida em que cada uma das partes tem o dever de custear, através de depósito antecipado, as despesas dos atos que requererem ou praticarem (CPC de 1973, art. 19; CPC de 2015, art. 82). Se o autor requereu a citação do réu, ele é quem deve custear a diligência do oficial de justiça; se o autor não fornecer os recursos para o cumprimento do mandado de citação, o oficial de justiça não poderá cumpri-lo. O fornecimento de meios materiais, especialmente econômicos, para o custeio dos atos processuais é o primeiro tipo de colaboração das partes. O segundo aspecto da colaboração das partes é a prestação de informações. O autor tem de indicar, para a citação, o endereço do réu. Alguns juízes, entretanto, exageram na imposição às partes do ônus de colaborarem para o impulso do processo. Essa situação é alvo de críticas, especialmente na execução, com relação à localização dos bens do devedor, pois muitos juízes acreditam que essa localização é um ônus do credor, mas se esquecem de que o exequente na maioria das vezes não conhece o devedor. Por exemplo: uma pessoa que foi atropelada por um caminhão de outro Estado já teve dificuldade em descobrir quem era o seu motorista ou o seu dono para propor a ação de indenização. No cumprimento da sentença, essa pessoa não tem nenhuma ideia de onde estão localizados os bens do devedor, de modo que é um exagero o juiz entender que cabe ao credor indicar os bens sobre os quais recairão os atos constritivos. Nesses casos, o juiz não pode lavar as mãos, mas deve prestar ao autor todo o suporte para que este localize o devedor, seja oficiando à Receita Federal para que informe os bens do devedor, seja oficiando a outros órgãos em que haja indícios de informações dos bens do devedor, pedindo saldos de contas em bancos e outras informações, sem prejuízo do dever do executado de informar onde se encontram os seus bens (CPC de 1973, art. 600, inc. IV; CPC de 2015, art. 774, inc. V). De todo modo, é forçoso reconhecer que, ainda que se adote, como nós o fazemos, o impulso oficial do processo, não se prescinde da colaboração das partes. Além disso, essa colaboração tem de dar-se também na apuração da verdade (CPC de 1973, arts. 339 e 340; CPC de 2015, arts. 378 e 379), porque muitas vezes a prova de determinado fato depende de alguma ação das partes. Um bom exemplo dessa situação são os atos reais, como o comparecimento da
parte a uma clínica médica para submeter-se a um determinado exame. Pode-se dizer que no nosso sistema prevalece o impulso oficial com a colaboração das partes. Contudo, o impulso oficial não significa que o processo deva estar burocraticamente centralizado nas mãos do juiz. O juiz não impulsiona sozinho o processo, contando para esse fim com o apoio administrativo e funcional do escrivão, do oficial de justiça, do contador, dos avaliadores, do leiloeiro, dos depositários, administradores e demais serventuários da justiça. Ao escrivão ou chefe de secretaria a lei processual reservou a prática, independentemente de despacho do juiz, de atos como a juntada e a vista obrigatória, a que denominou de atos meramente ordinatórios (CPC de 1973, art. 141, IV; CPC de 2015, art. 152, inc. IV). Como a lei não mencionou concretamente quais são os atos de movimentação que têm esse caráter meramente ordinatório, perdeu uma excelente oportunidade de descentralizar do juiz para o escrivão toda a atividade burocrática que hoje atormenta os magistrados com centenas de autos conclusos diariamente para a prolação de simples despachos de expediente, que perfeitamente poderiam estar sendo praticados pelo serventuário e que não exigem toda a gama de conhecimentos jurídicos que compõem o cabedal do juiz. No estágio atual, parece-me que atos meramente ordinatórios, que o escrivão está habilitado a praticar, são apenas aqueles atos de movimentação que não exigem cognição sobre qualquer questão de fato ou de direito, processual ou de mérito. O despacho da petição inicial não é um ato despido de cognição, embora ordinatório, porque o juiz para proferi-lo tem de verificar se a petição preenche as condições da ação e os pressupostos processuais para instaurar um processo válido. Cândido Dinamarco10 se refere à remessa dos autos ao contador, à entrega ao perito, à cobrança de autos retidos por este ou pela parte, à remessa de cópia de despachos à imprensa. Mais generoso, Sergio Bermudes11 menciona a juntada de petições, o desentranhamento de peças juntas por equívoco, a abertura de vista, a intimação
ao perito para ciência de sua nomeação, a retificação de erros de escrita, o recapeamento dos autos, a comunicação à corregedoria da distribuição de ação conexa, a nova publicação por defeito da anterior. Consciente da dificuldade de uma explicitação mais clara, o Código de 2015, no § 1º do artigo 152, atribuiu ao juiz titular de cada órgão jurisdicional a edição de ato que regulamente o exercício dessa atividade pelo escrivão. O ideal seria que essa regulamentação fosse uniforme no âmbito de todos os juízos subordinados ao mesmo tribunal, evitando a adoção de rotinas diversas em cada juízo. De qualquer modo, ainda predomina no nosso processo a excessiva centralização do impulso processual nas mãos do juiz e do escrivão, quando me parece que, seguindo a experiência de outros países, as partes e os advogados poderiam praticar diretamente muitos atos de simples movimentação, conferindo ao processo dinâmica bastante mais ágil e reservando ao juiz e ao cartório apenas os atos considerados indispensáveis. A ampliação, a partir da Lei n. 8.710/93, das possibilidades de citação e intimações pelo correio foi um passo importante, mas ainda há muito a evoluir nessa direção. Mais um avanço positivo, embora tímido, foi a concessão pelo Código de 2015 ao advogado da faculdade de promover a intimação do advogado da parte contrária e das testemunhas que arrolou (arts. 269, § 1º, e 455).
22.7. PRINCÍPIO DA LEALDADE PROCESSUAL Não é tão simples definir o princípio da lealdade, embora a ideia do que seja ou não um comportamento leal possa parecer intuitiva. Lealdade é probidade, honestidade e boa-fé. A probidade e a honestidade são exigidas das partes durante o curso do processo em relação ao juiz e ao seu adversário, enquanto a boa-fé é uma consequência das primeiras e significa que as partes devem realmente acreditar na justiça e na procedência das suas postulações. Embora o legislador se preocupe com esses deveres especialmente em relação às partes, na verdade eles se aplicam a todos os sujeitos processuais, inclusive ao juiz, conforme passou a reconhecer expressamente o Código de 2015 no artigo 5º. A lealdade processual, enquanto honestidade e boa-fé, se concretiza numa série
de regras que estão consagradas na lei processual em vários artigos, especialmente nos artigos 14 a 18 do Código de 1973 e 77 a 81 do Código de 2015, que tratam dos deveres das partes e da sua responsabilidade por dano processual, que já comentamos no Capítulo XI desta obra. Em razão desse princípio, as partes somente devem postular aquilo que acreditam ser veraz, ou seja, somente devem fazer alegações em conformidade com a verdade, alegando fatos em cuja existência efetivamente acreditem (CPC de 1973, art. 14, inc. I; CPC de 2015, art. 77, inc. I). A veracidade é um dever das partes. É um erro grave supor que a parte ou o seu advogado têm o direito de mentir. O advogado tem de ser não somente fiel ao cliente, mas também à justiça. Para o advogado, o dever de se comportar em conformidade com a verdade é um dever profissional, decorrente do seu compromisso de lealdade à justiça. A lealdade também impõe às partes e, consequentemente, aos seus advogados o dever de respeitar a posição da outra e a autoridade juiz, não praticando atos que possam dificultar o exercício dos seus direitos e poderes. Todas essas exigências compõem o dever de lealdade. O processo precisa ser ético, pois, caso contrário, o seu resultado não será confiável. Os advogados são corresponsáveis, ao lado do juiz, pela manutenção desse clima de lealdade, honestidade e boa-fé no processo, e, por isso, os sistemas europeus, o sistema americano e até o sistema japonês12 procuram aprofundar os vínculos entre os juízes e os advogados, para que aqueles se sintam mais seguros ao impor sanções às partes quando estas agem deslealmente, na presunção de que os seus advogados as aconselharam a agir de maneira ética e leal. Infelizmente, se o sistema processual não é capaz de estabelecer esse vínculo profundo de confiança entre juízes e advogados, aqueles acabam pensando que a deslealdade da parte é manobra destes, o que faz com que ela não seja punida devidamente. Por isso, Calamandrei já dizia, em 1952, no México, que onde existe confiança entre juízes e advogados dispensam-se os formalismos. A confiança vale mais do que qualquer regra formal que pretenda conferir segurança e validade aos atos do processo. No nosso sistema, o distanciamento entre juízes e advogados compromete a confiabilidade do processo pela falta de certeza e de respeito a essas regras mínimas.
O princípio da lealdade é um princípio geral do processo e também um princípio informador do sistema das nulidades. Nesse último sentido, se a parte deu causa a uma nulidade relativa, ela não pode argui-la a seu favor porque isso seria o mesmo que premiar a sua deslealdade. A consequência do princípio da lealdade com relação à nulidade relativa é a sua convalidação, ou seja, o fato de o ato, apesar do prejuízo sofrido pela parte que o praticou e posteriormente alegou o seu vício, ser reputado válido. Já nas nulidades absolutas, não há possibilidade de convalidação, ainda que haja desrespeito à lealdade, porque essas nulidades encerram vícios que violam normas imperativas ou atingem algum direito indisponível. Assim, o princípio da lealdade, no tocante às nulidades absolutas, é aplicado através das sanções à litigância de má-fé e o ressarcimento dos danos causados pela nulidade. Na verdade, o princípio da lealdade se aplica às nulidades absolutas de uma forma indireta, não pela convalidação do ato absolutamente nulo, mas pela imposição à parte desleal de sanções pela litigância de má-fé. Os artigos 14 e 17 do Código de 1973 e 77 e 80 do Código de 2015 enunciam algumas condutas das partes que decorrem do princípio da lealdade: expor os fatos em juízo conforme a verdade; não formular pretensões nem alegar defesas, cientes de que são destituídas de fundamento; não produzir provas nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito; não interpor recurso com intuito manifestamente protelatório; cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais e não criar embaraços à sua efetivação. Todos esses deveres são impostos não apenas às partes, mas a “todos aqueles que de qualquer forma participem do processo”. A esse rol podem ser acrescentadas, entre outras, as proibições: de emprego de expressões injuriosas (CPC de 1973, art. 15; CPC de 2015, art. 78); de uso do processo para alcançar objetivo ilegal (CPC de 1973, arts. 17, inc. III, e 129; CPC de 2015, arts. 80, inc. III, e 142); de paralisação do processo por mais de um ano por negligência das partes (CPC de 1973, art. 267, inc. II; CPC de 2015, art. 485, inc. II) ou de abandono da causa pelo autor por mais de 30 dias (CPC de 1973, art. 267, inc. III; CPC de 2015, art. 485, inc. III); de intervenção ou aparte do advogado ou membro do Ministério Público sem autorização do juiz na audiência (CPC de 1973, art. 446, parágrafo único; CPC de 2015, art. 361, parágrafo único); de alegação de nulidade pela parte que lhe deu causa (CPC de 1973, art. 243; CPC de 2015, art. 276); de interposição de embargos
declaratórios protelatórios (CPC de 1973, art. 538, parágrafo único; CPC de 2015, art. 1.026, §§ 2º e 3º); e de abuso do direito de defesa (CPC, art. 273, inc. II; CPC de 2015, art. 311, inc. I). São também aplicação desse princípio, sob a vertente do que vem sendo chamado de princípio da colaboração ou da cooperação, os seguintes ônus: de alegar as nulidades relativas na primeira oportunidade (CPC de 1973, art. 245; CPC de 2015, art. 278); de concentrar todas as matérias de defesa na contestação (CPC de 1973, arts. 300 e 303; CPC de 2015, arts. 336, 337 e 342); de alegar o impedimento ou a suspeição do juiz no prazo de 15 dias do conhecimento do fato (CPC de 1973, art. 305; CPC de 2015, art. 146); de alegar o impedimento ou a suspeição do órgão do Ministério Público, do serventuário e de outros sujeitos imparciais do processo, como o perito e o intérprete, na primeira oportunidade em que lhe couber falar nos autos (CPC de 1973, art. 138, § 1º; CPC de 2015, art. 148, § 1º); de submeter-se ao depoimento pessoal, à inspeção judicial e a qualquer outro ato que for determinado pelo juiz, como a perícia (CPC de 1973, arts. 340 e 343, § 2º; CPC de 2015, arts. 379 e 385); de exibir documento ou coisa (CPC de 1973, art. 359; CPC de 2015, art. 400); de não dificultar a defesa do réu por meio da excessiva cumulação objetiva ou subjetiva de ações (CPC de 1973, arts. 46, parágrafo único, e 115, inc. III; CPC de 2015, arts. 113, § 1º, e 66, inc. III). No processo de execução, existem ainda outras regras impostas pelo princípio da lealdade, como a repressão aos atos atentatórios à dignidade da justiça (CPC de 1973, art. 600; CPC de 2015, art. 774), a fraude de execução (CPC de 1973, art. 593; CPC de 2015, art. 792), o emprego de ardis e meios artificiosos para retardar a execução, a resistência injustificada às ordens judiciais e a não indicação da localização dos bens sujeitos à execução (CPC de 1973, arts. 599 e 600; CPC de 2015, arts. 772 e 774); a sanção pela omissão do dever de pagar espontaneamente a dívida no prazo de quinze dias da intimação da sentença condenatória (CPC de 1973, art. 475-J, introduzido pela Lei n. 11.232/2005; CPC de 2015, art. 523, § 1º); e a repressão da resistência à penhora (CPC de 1973, arts. 660 a 663; CPC de 2015, art. 846). Além desses casos, a medida cautelar de atentado (CPC de 1973, arts. 879 a 881; CPC de 2015, art. 77, inc. VI) e o artigo 347 do Código Penal coíbem a inovação ilegal no estado de fato da causa. As condutas impostas pelo princípio da lealdade, que constituem deveres
processuais das partes, são resguardadas por uma série de sanções, que, apesar da diversidade, estão muito longe de criar um autêntico interesse da parte, em agir em conformidade com a lei: ineficácia da alienação (CPC de 1973, art. 592, inc. V; CPC de 2015, art. 790, inc. V); multas pecuniárias (CPC de 1973, arts. 601, 538, parágrafo único, 746, parágrafo único, e 475-J; CPC de 2015, arts. 774, parágrafo único, 1.026, § 2º, e 523, § 1º); penas criminais (Código Penal, arts. 179 e 347); indenização das perdas e danos (CPC de 1973, arts. 18 e 881, parágrafo único; CPC de 2015, art. 81); proibição de falar nos autos (CPC de 1973, art. 881; CPC de 2015, art. 77, § 7º); tutela antecipada (CPC de 1973, art. 273, inc. II; CPC de 2015, art. 311, inc. I). As multas pecuniárias, embora exigíveis na própria execução (CPC de 1973, art. 601; CPC de 2015, art. 774, parágrafo único), são pouco usadas, especialmente quando dependentes de sua imposição por ato do juiz. A moderada tolerância dos juízes com a deslealdade da parte não é necessariamente um defeito, mas em geral indica respeito pelo trabalho do seu advogado, que o magistrado não deve reprimir. Por outro lado, há multas pouco expressivas, como a imposta aos embargos declaratórios manifestamente protelatórios (CPC de 1973, art. 538, parágrafo único; CPC de 2015, art. 1.026, § 2º), que não têm qualquer caráter intimidativo. As penas criminais são ainda mais raras do que as multas. Ademais, dependem da instauração de outro processo a ser instruído e decidido provavelmente por outro juiz. A indenização das perdas e danos depende em geral de liquidação, salvo em limite reduzido (CPC de 1973, art. 18, § 2º; CPC de 2015, art. 81), sendo também raramente aplicada. A suspensão do processo no atentado (CPC de 1973, art. 881) somente é eficaz para reprimir a conduta desleal do autor; para o réu seria um prêmio. A regra não foi reproduzida no Código de 2015. A proibição de falar nos autos hoje está restrita ao atentado (CPC de 1973, art. 881; CPC de 2015, art. 77, § 7º) e é de discutível constitucionalidade, em face das garantias do contraditório e da ampla defesa. Nos artigos 601 do Código de 1973 e 774, parágrafo único, do Código de 2015
estão previstas “outras sanções de natureza processual ou material”. Estas, as de natureza material, dependem de previsão na lei ou no contrato. Aquelas, as de natureza processual, igualmente dependem de lei13. Falta ao nosso sistema um rol de sanções mais eficazes pelo descumprimento do dever de lealdade, como as multas pecuniárias diárias (astreintes endoprocessuais), os juros progressivos e outras consequências desfavoráveis que decorram diretamente da lei ou do decurso do tempo, como adotado em outros sistemas processuais. Quanto ao descumprimento dos ônus, existem outras consequências, como preclusões, pagamento de despesas, pena de confissão, desmembramento de processos.
22.8. PRINCÍPIO DA ORALIDADE A oralidade é essencial para a existência de uma justiça humanizada, dialogada, porque somente o uso da palavra oral e o contato humano do juiz com as partes podem efetivamente assegurar a estas o direito de influir eficazmente na decisão. A oralidade, hoje, emerge com muita força, como imposição do contraditório participativo. Na sua concepção técnica, tal como estruturada por Chiovenda, a oralidade não era um princípio, mas um sistema de princípios. Chiovenda lecionava que a oralidade consistia na predominância da palavra oral sobre a palavra escrita. Hodiernamente, não se aceita mais a oralidade com esse sentido de predominância da palavra oral sobre a escrita, como exigência obrigatória em todos os processos, embora esse princípio esteja previsto na Constituição da Espanha (art. 120, 2), da Dinamarca (art. 65, 1) e da Áustria (art. 90,1). Existe, na Itália, um forte movimento para se incluir na Constituição a oralidade como garantia fundamental do processo. A oralidade não significa mais, como no tempo de Chiovenda, a predominância da palavra oral sobre a escrita, porque os costumes mudaram e, hoje, a maior parte dos negócios se documenta por escrito, especialmente nos países da tradição romanogermânica. Nos países da civil law, a prova escrita sempre foi mais valiosa do que a prova oral. O significado moderno da oralidade é o de que,
em qualquer processo, o juiz tem de estar sempre aberto à instauração de um diálogo humano, que se dá pela palavra oral, porque esta é o modo mais perfeito de comunicação, e, portanto, aquele que pode efetivamente assegurar o respeito ao contraditório participativo e assegurar o direito das partes de influir eficazmente nas decisões. Isso não quer dizer que as partes não possam abrir mão da oralidade. Em inúmeros litígios, as partes aceitam que eles se processem sem nenhum contato do juiz com as partes. Não obstante, em qualquer processo, mesmo naqueles em que o procedimento é todo escrito, deve ser assegurado às partes o direito de exigir do juiz uma audiência para um contato oral, um contato humano. Chiovenda apontava como subprincípios da oralidade a imediatidade, a concentração, a identidade física do juiz e a irrecorribilidade das decisões interlocutórias. A imediatidade é uma consequência direta da oralidade. De nada adianta os atos processuais serem orais se eles não forem praticados perante o próprio juiz. Então, quando a lei estabelece a realização de audiências ou a realização de atos orais, como a inquirição de testemunhas, a tomada dos depoimentos pessoais das partes, as alegações finais orais dos advogados, eles têm de ser praticados na presença do juiz. É o juiz que deve presidir os atos orais, porque a oralidade é mais expressiva do que a comunicação escrita, não compreendendo somente as palavras, mas também os gestos, as entonações e as imagens. Por essas razões, os atos orais têm de ser praticados na presença de quem vai julgá-los, porque nenhum registro escrito desses atos vai conseguir reproduzir todo o seu realismo. O juiz deve ter contato direto com as partes e com as provas. A Lei n. 9.099/95, que dispõe sobre os juizados especiais, estabeleceu que a instrução pode ser dirigida por juiz leigo (art. 37), o que compromete gravemente a imediatidade e, consequentemente, a oralidade. A imediatidade é fundamental ao diálogo humano e, assim, a ideia de Chiovenda sobrevive, mesmo que o princípio da oralidade não tenha mais o alcance que esse ilustre autor lhe dava. No Código de 2015, a audiência de conciliação ou de mediação é conduzida pelo conciliador ou mediador (arts. 165 e 334, § 1º), embora sob supervisão do juiz da causa ou do juiz coordenador do centro de conciliação e mediação, se houver
(art. 173, § 2º). Se a negociação for bem sucedida, no momento final dessa audiência o juiz deverá estar presente para homologar a autocomposição (art. 334, § 11), momento em que deverá certificar-se junto aos conciliadores ou mediadores e às próprias partes e seus advogados da adequação das conclusões submetidas à sua aprovação. De qualquer modo, não me parece que a ausência do juiz no curso da negociação constitua uma afronta substancial à imediatidade, porque, de um lado, as partes devem ter sempre a possibilidade de acesso ao juiz, se desejarem, e se a negociação fracassar, na audiência final o próprio juiz conduzirá a conciliação (art. 359) e os demais atos orais. A concentração prega a convergência de todos os atos orais em uma única audiência, ou, quando isso não seja possível, que todas as audiências sejam realizadas num curtíssimo intervalo de tempo. A concentração de atos orais, como a tentativa de conciliação, a tomada dos depoimentos e as alegações finais orais dos advogados, coloca o juiz numa posição privilegiada, na medida em que a sua cognição foi amplamente enriquecida pelo contato humano. Além disso, durante o período de tempo correspondente à audiência, ele não desviou sua atenção para nenhum outro processo; concentrou-se na realização daqueles atos orais, em tirar deles o maior proveito possível. Dessa forma, quando o magistrado chega ao término dessa audiência, ele está numa posição ideal para proferir uma boa sentença. Em países nórdicos, relata-se que, se um juiz não consegue terminar a audiência num só dia, ele tem de remarcar a audiência dentro dos próximos quinze dias. Se isso não for possível, ele tem de começar a audiência novamente, porque nesse intervalo ele vai se distanciando do processo, pelo exercício de outras atividades, e, ainda que ele se recorde de muita coisa, já não tem mais a impressão viva, minuciosa de todos os detalhes que ocorreram na sua presença durante a última sessão. Em época recente, muitos países têm optado por um sistema intermediário, que é o do processo bifásico, que procura concentrar todas as decisões a serem adotadas no curso do procedimento em dois momentos orais, a audiência preliminar e a audiência final. No Código de 1973, o procedimento ordinário tem
uma audiência preliminar (art. 331), na qual, se não houver conciliação, o processo é saneado e preparado para a fase instrutória que culminará na audiência final, mas não há uma concentração de decisões nesses dois momentos, o da audiência preliminar e o da audiência final. Nesse aspecto, o Código de 2015 contribui para uma fragmentação ainda maior do processo, porque, na ânsia de precipitar a solução amigável, com a antecipação da audiência de conciliação ou de mediação para momento anterior à própria contestação, a partir daí todo o processo será escrito, favorecendo a proliferação de uma série infindável de decisões intermediárias. No Brasil, em síntese, a concentração se resume à unidade da audiência final, de acordo com os artigos 455 do Código de 1973 e 365 do Código de 2015. A identidade física do juiz é o princípio segundo o qual o juiz que iniciou a instrução oral em audiência deve concluí-la e dar a sentença. A identidade física do juiz torna a oralidade eficaz, porque de nada adiantaria um juiz presidir os atos orais e outro dar a sentença ou juízes diferentes presidirem atos orais sucessivos. No entanto, o artigo 132 do Código de 1973, que consagrava esse princípio, foi alterado pela Lei n. 8.367/93, e, hoje, ele representa apenas uma tênue sombra da identidade física, porque estabelece que “o juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor”. Esse dispositivo não assegura a identidade física do juiz, pois os atos anteriores à conclusão da audiência podem ser presididos por outros magistrados e aquele que a concluir proferirá a decisão com base em atos friamente registrados em papéis escritos ou em arquivos de computador. O legislador recuou na adoção desse princípio para coibir uma prática de muitos juízes, especialmente os substitutos. Na vigência da redação original do artigo 132 do Código de 1973, que determinava que o juiz que iniciasse a audiência deveria concluir a instrução e julgar a causa, ocorria com muita frequência, especialmente no Estado do Rio de Janeiro, uma deturpação desse princípio. Juízes substitutos, quando diante de processos com previsão de audiências muito longas ou de processos muito volumosos, adiavam as audiências para não ficarem presos a esses processos, tendo de retornar para julgá-los quando já estivessem substituindo outro juiz em outra vara distinta. Esse círculo vicioso se
repetia e ninguém queria iniciar as audiências nesses processos mais complexos. Essa prática é uma das grandes violações do juiz natural e Machado Guimarães já a denunciava antes do Código de 1939, ao defender que era preciso resolver o problema do excesso de juízes no Rio de Janeiro circulando de uma vara para outra por designação do presidente do Tribunal14. Para coibir esse defeito, criouse outro, esvaziando a identidade física, que é fundamental à oralidade. Infelizmente, o Código de 2015, rendendo-se à ideologia da eficiência, não reproduz nem mesmo a tênue identidade da última redação do artigo 132 do Código de 1973, o que significa que, a partir da sua vigência, juízes poderão proferir sentenças em processos em que não participaram de quaisquer atos orais. A irrecorribilidade das decisões interlocutórias foi sustentada por Chiovenda, porque o processo deveria ser concentrado, chegando rapidamente à audiência. Nessa audiência, na presença das partes, o juiz deveria estar em condições de rever todas as decisões que ele tivesse proferido anteriormente. Essa proposta de Chiovenda dependia de que o processo chegasse rapidamente ao seu momento culminante, que é a audiência final, e de que todas as decisões proferidas anteriormente não precluíssem, para que o juiz pudesse, na audiência final oral, com uma cognição mais perfeita decorrente da oralidade e do diálogo humano, rever tudo. Todavia, ao defender essa posição, Chiovenda não tinha em mente o processo latino-americano, que é excessivamente fragmentado15. No Brasil, ocorreram algumas tentativas de implantar esse princípio da irrecorribilidade das decisões interlocutórias, como no processo trabalhista e no procedimento dos juizados especiais, que, em regra, não admitem recursos contra decisões interlocutórias. No Código de 1939, adotava-se esse princípio, mas ele comportava exceções, porque em inúmeros casos previstos em lei a decisão interlocutória podia ser impugnada por agravo de instrumento, agravo no auto do processo ou carta testemunhável. Todavia, devido à grande fragmentação e demora do processo, a jurisprudência começou a aceitar a impugnação dessas decisões através de instrumentos não previstos originalmente nas leis processuais, os chamados sucedâneos recursais, como a reclamação, a correição parcial e o mandado de segurança.
Na verdade, o direito brasileiro não conseguiu implantar o sistema de irrecorribilidade de decisões interlocutórias e o Código de 1973 se curvou à realidade e abandonou esse princípio, adotando o princípio contrário, que é o da ampla recorribilidade dessas decisões por meio de agravo, previsto no seu artigo 522. A possibilidade de agravar de todas as decisões interlocutórias exalta um processo de preclusões, um processo fragmentado, compartimentado, e tira a força que Chiovenda desejava que o juiz tivesse na audiência, porque este não julga a causa em todos os seus aspectos de uma só vez, mas vai julgando aos poucos, à medida que as questões vão surgindo. Ao chegar à audiência final, se a parte suscita alguma questão que já foi decidida, ele não poderá decidir novamente; se a parte não agravou, ele não poderá, em princípio, reavaliar tal questão, porque nenhum juiz deve voltar a decidir questões já decididas (CPC, art. 471). Em minha opinião, um processo de preclusões afasta o juiz da realidade da vida, burocratizando o exercício da função jurisdicional. Chiovenda tinha razão ao dizer que um processo humanizado, em que o juiz tira proveito de todas as palavras orais, é um processo sem preclusões ou com poucas preclusões. O problema é conciliar um processo sem preclusões com o processo fragmentado que temos, penosamente longo na sua duração. Para muitos, as preclusões são necessárias porque impedem que o processo ande para trás em vez de andar para a frente. O Código de 2015 compreende o desacerto da ampla recorribilidade de todas as decisões interlocutórias e procura mitigá-la, voltando ao regime da enumeração taxativa das hipóteses de recorribilidade, não havendo preclusão das demais, consideradas irrecorríveis (arts. 1.009 e 1.015). É uma evolução positiva, mas os seus resultados dependerão em grande parte do comportamento dos advogados e dos juízes, especialmente dos que atuam nos tribunais superiores, porque o sistema recursal brasileiro é um sistema aberto, no qual, aos recursos formalmente instituídos pela lei processual, se somam sucedâneos recursais que suprem as lacunas dos recursos formais, como o mandado de segurança e a reclamação ou correição. Para concluir, é preciso ressaltar, conforme observado por Cappelletti16, que a oralidade deve ser considerada um pressuposto indispensável da livre convicção
e da publicidade do processo. A interdependência entre a livre convicção e a oralidade fora várias vezes ressaltada por Chiovenda17. A oralidade cria a atmosfera necessária para a atuação da livre convicção, pela singeleza e espontaneidade dos atos de produção das provas, favorecendo a sua apreciação através de uma metodologia concreta e empírico-dedutiva. E quanto à publicidade, entendida como a principal garantia de uma justiça democrática, protetora da liberdade individual contra todas as formas de autoritarismo, pressupõe indissociavelmente a oralidade, porque somente um julgamento oral pode ser realmente um julgamento aberto ao público, pois confere a qualquer cidadão o acesso imediato a todos os fatos e circunstâncias determinantes da formação da decisão, gerando no juiz, que a elabora, a consciência do controle a que está submetido e que será fator refreador de qualquer ímpeto de arbítrio ou de autoritarismo. As partes podem dispensar essa oportunidade de contacto imediato com o juiz, mas, se uma delas a requerer, não pode o juiz recusá-la. A sobrevivência entre nós de procedimentos, como o do mandado de segurança, em que normalmente não se admite qualquer audiência oral, é um sintoma da distância em que nos encontramos de uma justiça de qualidade. ________ 1
ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modelo costituzionale del processo civile italiano. Torino: G. Giappichelli, 1988. p. 109-110. 2
A respeito desta última questão é ilustrativa a citação de Luiso, feita por Andolina e Vignera, segundo a qual “toda hipótese de extensão a terceiros dos efeitos de um provimento jurisdicional, emitido em confronto de uma parte, como regra (in linea di maxima), deve considerar-se contrário ao princípio do contraditório, a menos que seja justificável com base em outros e prevalentes interesses protegidos, ou que isso derive do modo de ser da situação substancial do terceiro. Dito sinteticamente, o princípio do contraditório não amplia as hipóteses de litisconsórcio necessário, mas antes restringe as hipóteses de eficácia ultra partes àquelas, exclusivamente, justificáveis constitucionalmente” (op. cit., p. 109-110).
3 LIEBMAN, Enrico Tullio. Fondamento del principio dispositivo. In: Problemi
del processo civile. Napoli: Morano Editore, 1962. p. 3 e ss. 4 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas… 2º v., p. 106. 5 LIEBMAN, Enrico Tullio. Fondamento… p. 3-17. 6 Ver GRECO, Leonardo. Resenha: Michele, TARUFFO. La motivazione della
sentenza civile. Padova: CEDAM, 1975. In: Revista de Processo, São Paulo, ano 32, n. 144, p. 306-327, fev. 2007. 7 TARUFFO, Michele. Note per una riforma del diritto delle prove. In: Rivista
di Diritto Processuale, Padova: CEDAM, v. XLI, p. 249, 1986: “In realtà, chi parla di ricerca della verità giudiziale solitamente pensa a fantomatiche verità assolute, non determinabili neppure al di fuori dei limiti del processo, ma alla massima approssimazione alla realtà dei fatti materiali concretamente raggiungibile entro coordinate spazio-temporali (e giuridiche) limitate”. 8 HUGONET, Pierre. La Vérité Judiciaire. Paris: Librairies Techniques, 1986.
p. 24: “Le juge ne devra évidemment pas se contenter de son appréciation personnelle. Il devra s’efforcer de voir la chose par les yeux des autres”. 9 CAPPELLETTI, Mauro; TALLON, Denis. Fundamental guarantees of the
parties in civil litigation.Milano: Giuffrè, 1973. p. 756: “Publicity, of course, has been the great ideal of a liberal administration of justice – the justified reaction against a system of secret justice exemplified in England by the Star Chamber and in more general use on the Continent until the sweeping reforms of the French and European Revolution”. 10 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma… p. 80. 11 BERMUDES, Sergio. A reforma do Código de Processo Civil. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 1996. p. 15-16. 12 TANIGUCHI, Yasuhei. Japan’s recent civil procedure reform: it’s seeming
success and left problems. In: TROCKER, Nicolò; VARANO, Vincenzo. The reforms of civil procedure in comparative perspective. Torino: G. Giappichelli, 2005. p. 92-113.
13
Cândido Rangel Dinamarco (A reforma… p. 66) observa que a lei não esclarece que sanções são essas, parecendo-lhe que uma delas seja certamente a correspondente às perdas e danos por litigância de máfé. 14 GUIMARÃES, Luiz Machado. O processo oral e o processo escrito. In: O
processo oral. Rio de Janeiro: Forense, 1940. p. 23. 15 CAPPELLETTI, Mauro. Procédure orale… p. 22-23. 16 Ibidem. p. 89 e ss. 17 CHIOVENDA, Giuseppe. A ideia romana no processo civil moderno. In: O
processo oral. Rio de Janeiro: Forense, 1940. p. 92: “Um processo dominado pelo princípio da livre convicção do juiz, e que entenda realizar seriamente este princípio, só pode ser oral, porque só o processo oral permite ao juiz formar convicção pela observação pessoal e direta do material da causa”. E em outro estudo (A oralidade e a prova), publicado na mesma coletânea (p. 137): “A oralidade entendida como imediatidade de contato entre o juiz que vai pronunciar a sentença e os elementos de que deve haurir a sua convicção (pessoas, lugares, objetos) é condição indispensável para a atuação do princípio da ‘livre convicção do juiz’ em oposição ao sistema da prova legal”. E, mais adiante (p. 149): “Sem dúvida, nós também banimos de nossas leis, em princípio, o sistema da prova legal. Mas, com que vantagem, se acolhendo o sistema oposto, não lhe demos a atmosfera de que precisa? A liberdade de convicção – e também foi um progresso não descurável na história da renovação do pensamento humano o havê-lo proclamado como princípio básico do processo civil e penal – exige o ar e luz da audiência. Nos labirintos do processo escrito, corrompe-se e morre”.
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